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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
GIANE INÊS FAUST
A ÉTICA DE ESPINOSA E A RELAÇÃO PEDAGÓGICA:
MIGRAÇÕES POSSÍVEIS
FLORIANÓPOLIS
2008
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GIANE INÊS FAUST
A ÉTICA DE ESPINOSA E A RELAÇÃO PEDAGÓGICA:
MIGRAÇÕES POSSÍVEIS
Dissertação apresentada como
requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Educação, Área de
Concentração: Ensino e Formação
de Educadores do Programa de s-
Graduação em Educação da
Universidade Federal de Santa Catarina.
Orientador: Prof. Dr. Wladirmir Antônio
da Costa Garcia
FLORIANÓPOLIS
2008
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Baruch de Spinoza / Reprodução
O agradecimento ou a gratidão é o desejo ou o empenho de amor pelo qual nos
esforçamos por fazer bem a quem, com igual afeto de amor, nos fez bem.
Baruch de Spinoza
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AGRADECIMENTOS
Ao finalizar mais um desafio o poderia deixar de lembrar e agradecer quem fez
parte deste momento da minha vida:
a Universidade Federal de Santa Catarina;
os professores das disciplinas que realizei, pois contribuíram significativamente para
realização dessa pesquisa;
o meu orientador por dividir sua sabedoria, paciência e contribuir para a descoberta de um
novo caminho na educação;
os colegas de turma, em especial Ana Brasil e Cecília, com os quais dividi minhas angústias e
conquistas;
a minha família, marido, filhos e Ica, que muitas vezes tiveram que administrar minha
ausência e sempre me incentivaram a enfrentar os desafios;
os meus pais e irmãos que mesmo longe estiveram sempre perto torcendo por mim;
os meus amigos sempre dispostos a me ouvir e me fortificar para que chegasse ao fim;
aqueles que tiveram preocupação em ajudar e acrescentar, na busca de referências
bibliográficas, Roberta, Eleonora e tantos outros;
os meus colegas de trabalho pela compreensão e carinho nos momentos difíceis;
a Cristiane pela disposição em contribuir para que a pesquisa de campo se realizasse;
a Escola de Educação Básica Professor Hilda Theodoro Vieira que abriu suas portas para que
eu pudesse realizar meu trabalho empírico;
os professores que se dispuseram a responder o questionário utilizado na coleta de dados;
o Gelson, um amigo muito especial, que foi um dos responsáveis pela busca do Mestrado,
pela credibilidade que sempre depositou em minha pesquisa e por toda ajuda que sempre
esteve disposto a dar;
a Daniela, por toda sua criatividade e eficiência, pela ajuda num momento difícil que foi a
finalização deste trabalho;
a Adriana pela inestimável ajuda nas correções de texto.
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Não há nada que saibamos, com certeza, ser
bom ou mau, exceto aquilo que nos leva
efetivamente a compreender ou que possa
impedir que compreendamos.
Baruch de Spinoza
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RESUMO
A educação carece de novos caminhos que possibilitem ao professor refletir e renovar
mais que sua postura, a sua prática ética. Para tanto, a proposta deste trabalho é buscar na
filosofia de Espinosa um sistema que responda a esta problemática com uma concepção de
ética. Nos postulados desta pesquisa, ela pode constituir uma postura docente que venha
afetar as relações interpessoais no ambiente escolar. Busca-se especificamente construir
alternativas críticas que favoreçam uma prática docente, firmada em valores éticos
formulados por Espinosa, relacionando conceitos discutidos na ética espinosista com a
educação. Esta pesquisa caracteriza-se por ser qualitativa, já que se volta a traçar e mostrar as
relações professor-aluno e os conseqüentes resultados das mesmas no processo ensino-
aprendizagem. Para tanto, foi usado, no âmbito de sua aplicação, o questionário como
instrumento que visa a ter um espaço de reflexão, a partir de situações vividas no cotidiano,
no qual os docentes poderão expor suas idéias, objetivando provocá-los a uma discussão das
idéias de Espinosa e da realidade de suas práticas docentes, a partir de situações-problema. A
pesquisa realizou-se numa escola, no município de Florianópolis, que nela/onde existe
uma diversidade sócio-cultural. Encontrou-se na Ética de Espinosa a possibilidade de abrir
caminhos, que não visam trazer respostas, e sim possibilidades de reflexão sobre a relão
pedagógica.
Palavras-chave: Ética. Conhecimento. Processo ensino-aprendizagem. Relação professor-
aluno.
8
ABSTRACT
Education needs new ways that can make possible to the teacher a further reflection on
and a renewal of his/her position, his/her ethical practice. For such, the proposal of this work
is to search for in Spinoza’s philosophy a system that responds this problematic with an
ethical conception. In the postulates of this research, it can constitute a teacher’s posture that
can affect the interpersonal relations in the school environment. I search specifically to
construct critical alternatives that favour a teacher’s practice, based on ethical values
formulated by Spinoza, relating concepts discussed on the his ethics with education. This
research is characterized by being qualitative, since it is turned to trace and show the teacher-
student relations and their consequent results in the teaching-learning process. To show it, a
questionary was used as an instrument that aims to be a space of reflection from the situations
lived in the quotidian and in which the teachers can expose their ideas, in order to lead them
to a discussion of Spinoza’s ideas and the reality of their teachers’ practices from the problem
situations. The research was done at a municipal school in Florianopolis since there is a socio-
cultural diversity in it. Spinoza’s ethics can open possibilities to open new ways that do not
aim to bring answers but possibilities of reflection on the pedagogic relation.
Key-words: ethics, knowledge, teaching-learning process, teacher-student relation.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO......................................................................................................................10
CAPÍTULO 1
O PENSAMENTO DE ESPINOSA:CONVERGÊNCIAS TEÓRICAS...............................18
1.1 Uma dimensão critico-teórico: a releitura de Chauí...................................................24
1.2 Uma dimensão teórico-crítico: a releitura de Deleuze................................................34
CAPÍTULO 2
DIFERENCIANDO ÉTICA E MORAL...............................................................................46
CAPÍTULO 3
O ESPINOSISMO E A EDUCAÇÃO MIGRAÇÕES POSSÍVEIS..................................61
3.1 Ética e Currículo............................................................................................................75
3.2 Ética e o Professor.........................................................................................................78
3.3 Ética e Disciplina............................................................................................................81
CAPÍTULO 4
A LEI DOS ENCONTROS E AS PRÁTICAS DOCENTES...............................................85
4.1 Liberdade........................................................................................................................89
4.2 Conhecimento.................................................................................................................91
4.3 Potência...........................................................................................................................94
4.4 Paixão..............................................................................................................................96
ÚLTIMAS OBSERVAÇÕES...............................................................................................99
REFERÊNCIAS...................................................................................................................103
APÊNDICES: questionários conceitos de Espinosa
10
INTRODUÇÃO
O quadro da educação no Brasil é crítico. As notícias divulgadas a cada dia nos
apresentam uma realidade em que são comuns problemas como a evasão escolar, a exclusão
social, a repetência, a indisciplina e tantos outros, nos levando a pensar que a escola não tem
conseguido desempenhar um papel de protagonista, talvez épico, utópico, ao qual ela é
convocada numa demanda infinita. Então, questiona-se sobre o porquê deste panorama
desanimador.
É comum encontrarem-se para as questões acima justificativas como: os alunos estão
cada vez mais rebeldes; a pregua impera; os pais são pobres cultural e financeiramente; ou
que os pais não o atenção necessária a seus filhos; que a educação - ainda que a Lei-maior o
determine - não é prioridade para o governo e também que as famílias estão desestruturadas.
Sabe-se que as razões citadas anteriormente são reais, mas não se pode esquecer que o
professor tem um papel relevante diante deste panorama e uma possibilidade ética no
exercício de sua tarefa docente. A postura que o professor assume diante da realidade
apresentada na escola pode ser potencializadora ou castradora do desejo de saber. Para ajudar
na transformão do quadro negativo da educação, o professor precisa de algo mais que o
“saber sobre” e mais do que reproduzir atividades em série, as quais pressupõem uma classe
homogênea; ele precisa de conhecimentos que possibilitem uma atuação que considere seus
alunos dentro de suas possibilidades e diversidades. Percebe-se que a maior parte dos
programas de formação de professores são contaminados pelo pensamento tecnocrático,
limitam-se a discutir apenas a relação dos alunos com o conhecimento, mas se isentam da
responsabilidade de analisar as ações educativas como uma prática eivada de valores, como
uma relação entre seres singulares diante do conhecimento e do mundo, reduzindo a educação
11
a um conjunto de técnicas. O conhecimento instrumental é priorizado no lugar das dimensões
filoficas, culturais, sociais e antropológicas da educação.
A atuação do professor que busca apoiar efetivamente seus alunos exige uma atitude
ética (não moralista, como veremos), tanto nos aspectos estritamente didáticos quanto nos de
relação interpessoal. No entanto, é importante que o professor tenha o direito de vivenciar na
sua formação experiências que lhe forneçam o conhecimento necessário para refletir sobre
suas escolhas, sobre seu agir e sobre as decisões que precisa tomar frente a um fazer fundado
no conflito, porque se tratam de relações entre pessoas portadoras de valores.
Freqüentemente, a escola coloca seus alunos em contato com o que não sabem e com o
desafio de aprender. Se eles não tiverem uma autoconfiança bem-estabelecida, se não
experimentarem o sucesso e a tranqüilidade para “ousar” aprender, se não puderem contar
com o acolhimento do professor, a escola poderá desencadear desinteresse no aluno. Torna-se
necessária a eticidade que conota expressivamente a prática educativa enquanto prática
formadora.
Paulo Freire (1996) afirma que o preparo científico do/a professor/a deve coincidir
com sua retidão ética. O descompasso entre estes dois aspectos é lastimável. Para o autor:
Formação científica, corrão ética, respeito aos outros, coerência, capacidade de
viver e de aprender com o diferente, não permitir que o nosso mal-estar pessoal ou a
nossa antipatia com relação ao outro nos façam acusá-lo do que não fez o
obrigações a cujo cumprimento devemos humilde, mas perseverantemente nos
dedicar. (p. 16)
É comum deparar-se com a tenncia do professor em investir mais nos alunos que
aprendem com facilidade e produzem melhor. Estes trazem satisfação, ao passo que os que
o aprendem facilmente colocam o professor frente a frente com seu próprio fracasso e com
sua impotência, o que acaba gerando uma sensação de desconforto na relação do professor
com o aluno.
12
A educação carece de novos caminhos que possibilitem ao professor refletir e renovar
a sua prática ética, mais do que a sua postura. Para isso, torna-se necessário buscar
significados que saiam do senso comum e permitam uma descoberta pessoal, no qual cada um
encontre sua singularidade e, assim, viva de maneira mais intensa.
A construção do conhecimento envolve dois processos conhecidos como ensino e
aprendizagem que são complexos e envolvem as relações intensas entre docente e discente.
No decorrer do procedimento ensino-aprendizagem, a relação que o professor estabelece com
o aluno nem sempre permite que este aprenda, o que acaba gerando obstáculos para o desejo
de saber. Diante de tal realidade da educação escolar, a proposta deste trabalho consistiu em
buscar na filosofia concebida pelo holandês Baruch de Espinosa (1632-1677) um sistema que
responda àquela problemática com uma concepção de ética. Nos postulados desta pesquisa,
ela pode constituir uma postura docente que venha a afetar as relações interpessoais no
ambiente escolar.
Adentrando os estudos nessa noção da ética espinosista, buscou-se saber até que ponto
ela contribui para a construção de alternativas críticas que favoreçam a prática docente? Ou
seja, como o professor em suas reflexões sobre sua atuação em contato com seu aluno
transforma sua relação com este a partir da ética espinosista? Por meio das definições dadas
por Espinosa aos seguintes termos: liberdade, conhecimento, potência e paixão, também
questionou-se de que forma tais conceitos poderiam ser relacionados com a prática docente.
Além disso, perguntou-se qual o pensamento que os educadores tinham a respeito destes
termos, e o quanto esta percepção poderiam se relacionar com o sistema de Espinosa.
Por meio destes questionamentos, objetivou-se entender a ética espinosista para a
constituição de uma postura por parte do educador que pudesse afetar as relações professor-
aluno presentes na escola. Buscou-se especificamente construir alternativas que favorecessem
uma prática docente- tudo que envolve o comportamento do professor com o aluno, com o
13
conteúdo e com a escola- firmada em valores éticos formulados por Espinosa, relacionando
conceitos discutidos na ética espinosista com a educação.
Pela experiência da pesquisadora como docente durante 20 anos, pode-se vivenciar a
realidade, tanto da escola blica quanto da privada, que mostrou crianças com diversas
dificuldades, de tal forma a instigar a compreender as várias posturas que os professores
assumem diante das diferentes exigências de aprendizagem presentes nas salas de aula.
Posturas essas que potencializam ou inibem o processo de aprender e, em algumas situações,
classificam o aluno como capaz ou incapaz. Durante o acompanhamento presenciou-se
educadores que, em face de alunos que apresentam modalidade de aprendizagem
1
diferente,
preferem delegar aos pais, ou à escola, ou à sociedade o insucesso da aprendizagem do aluno;
certos educadores não percebem a importância de sua relação com o aluno dentro do processo
de construção do conhecimento. Essa visão relaciona, de forma direta, a conjuntura adversa
com fracasso do ensino, deixando pouca margem para uma ação ou reação por dentro desta
conjuntura por parte dos professores.
Esta última observação converge com a experiência da investigadora e seu constante
olhar da situação cotidiana na escola, o que gerou e continua a despertar o interesse pela
pesquisa nascida de sua necessidade de aprimoramento profissional e principalmente pelo
exercício de sua profissão. Ao afirmar isto, entende-se que é preciso relativizar a visão que
deposita sobre o aluno a responsabilidade por sua não aprendizagem. Parte-se, pois da posição
na qual se deva assumir que a relação do professor com seu aluno é parte fundamental no
processo de construção do conhecimento deste e, se, em muitos casos, o conhecimento não é
construído, torna-se imprescindível pesquisar e buscar alternativas que possam viabilizar o
aprimoramento e o sucesso das relações. Isto indica uma responsabilidade por parte do
1
Modalidade de aprendizagem é, segundo Alícia Fernández, uma maneira pessoal para aproximar-se do
conhecimento e para conformar seu saber.
14
professor para com seu aluno, sendo o professor aquele que necessita de uma formação ética,
antes uma retórica científica.
Além desta visão que se mostra concretamente na escola, ocorre um grave problema
na circulação freqüente da palavra ética em muitas esferas da vida contemporânea. Ao entrar-
se em contato com os meios de comunicação, como periódicos, e ao assistir-se a congressos
científicos, depara-se com discussões a respeito, muitas vezes, não fundamentadas noções de
ética. Paradoxalmente, ouvem-se tantas lamentações sobre os comportamentos que permeiam
as relações humanas, seja na potica, na economia, na escola, e tantas outras instâncias. Esta
situação ressalta que se vive uma crise ética, por isso, realizar esta pesquisa é atual e
relevante, pois ainda se carece de caminhos norteadores neste tema, sobretudo, no sentido de
uma visão que vá além do senso comum em que ética é confundida com moral, doutrina ou
bons costumes.
Este trabalho visou contribuir para a potencialização da relação professor-aluno, pois
apontaram-se situações positivas e negativas presentes na mesma; propôs-se, assim, descrever
e analisar tais relações, abrindo caminhos que favorecessem o processo de aprendizagem. Isto
foi possível, porque se localizou no pensamento de Espinosa suporte que auxiliou a nortear
uma postura ética. As idéias deste filósofo são ainda apliveis quando se trata de relações
interpessoais. Baseado nas idéias de Espinosa, André Martins (2006) escreve que se passa a
ter um novo olhar sobre ética, no qual esta é superior à moral imposta pela sociedade: em
resumo, em vez da divisão oposta entre razão e paixão, Espinosa inaugura uma teoria dos
afetos, base de sua ética fundada na compreensão da realidade e contrária à moral,
fundamentada no conhecimento de um bem transcendente a ser imposto à realidade” (p. 9).
Ou seja, Espinosa traz uma nova interação entre a Natureza e o ente, em que há um
pressuposto inerente à existência dentro de leis e espaços criados pelo mundo natural.
Partindo da constituição de uma ontologia que ressalta a univocidade do ser, a Ética, obra
15
maior deixada por Espinosa, apresenta Deus como substância de todas as coisas, como ser
uno que se expressa na multiplicidade de todos os entes. Essa ontologia fornece o fundamento
tanto para uma teoria complexa do conhecimento, quanto para uma reflexão sobre os modos
de formão das condutas, que é o interesse da pesquisadora. O pensamento de Espinosa tem
valor inestimável, porque propõe uma ética que, por partir de uma perspectiva monista, não
precisa basear-se em dicotomias entre vontade livre e desejo patológico, mente autônoma e
corpo preso à heteronomia da natureza, entre outros. Quando se mencionam dicotomias, es-
se falando naquilo que marcará estruturas gerais da reflexão moderna sobre ética que atingem
os mais diversos universos sociais, inclusive o meio educacional. Assim, pode-se perceber
que esse autor oferece um caminho inovador para os educadores refletirem sobre as relações
professor-aluno no ambiente escolar.
Por esse motivo”, diz Marilena Chauí em Espinosa uma Filosofia da Liberdade, seu
pensamento é uma crítica radical a todas as formas de irracionalismo e superstição seja na
religião, na potica, seja na Filosofia.” (2005). Ainda segundo Chauí, a ética espinosista não
oferece um quadro de valores e virtudes, distanciando-se de Aristóteles e da moral cristã, para
buscar na idéia moderna de indivíduo livre, o núcleo da ação moral. Espinosa o fala em
pecado nem em dever, mas em força para ser, pensar e agir, reitera Chauí. Além dos
comentários desta, buscou-se em Gilles Deleuze sustentação e aprofundamento do sistema de
Espinosa.
Ao delinear estes parâmetros, esta pesquisa voltou-se a traçar e mostrar as relações
professor-aluno e os conseqüentes resultados das mesmas no processo ensino-aprendizagem.
Para tanto, no âmbito de sua aplicação, usou-se o questionário como instrumento que visou a
promover um espaço de reflexão, a partir de situações vividas no cotidiano, no qual os
docentes puderam expor suas iias, objetivando-se provocá-los a uma discussão das idéias
de Espinosa e da realidade de suas práticas docentes, por meio de situações-problema.
16
Caracterizando esta pesquisa desta forma, tiveram-se como informantes educadores do
ensino fundamental, pois é nesse período o momento em que se adquirem as bases para a
construção do conhecimento.
Este trabalho foi realizado na Escola de Educação Básica Municipal Hilda Teodoro
Vieira, no município de Florianópolis, já que nesta escola uma diversidade sócio-cultural e
uma administração que proporcionou um espaço de diálogo com pesquisadora, com os
colegas e com a comunidade na qual está inserida.
Uma vez recolhidos os dados para a análise, realizou-se a uma averiguação tanto
teórica quanto prática, para que nessa convergência fossem esclarecidos aspectos pressupostos
e/ou que surgiram da observação quando da pesquisa. Esta análise não visou fazer qualquer
julgamento a respeito da prática dos educadores, outrossim abrir possibilidades de reflexão e
de discussão sobre o levantamento feito, em situações de crise, para contribuir
posteriormente a estudos e/ou aprofundamento.
A pesquisa organizou-se da seguinte forma:
No primeiro capítulo, abordou-se a ética a partir da concepção de Espinosa, quem é
este filósofo, em que circunstâncias ele viveu, a etimologia da palavra ética. Além
disso, fez-se uma convergência com outros autores da contemporaneidade: no
subtítulo “A retomada de Chauí” buscou-se a dimensão crítico-teórica; “A releitura de
Deleuze”, fundamentou-se a dimensão teórico-crítica;
No segundo capítulo, apresentaram-se os pensamentos de Aristóteles e Santo
Agostinho sobre ética, e uma diferenciação baseada principalmente no pensamento de
Deleuze sobre ética e moral;
No terceiro capítulo, levantaram-se as migrações possíveis, ou seja, aquilo que o
pensamento de Espinosa valoriza para a atualidade;
17
No quarto capítulo, procurou-se levantar deste estudo posturas que favorecessem a
relação professor-aluno. Este capítulo consistiu no trabalho empírico com educadores
da escola anteriormente mencionada, no município de Florianópolis. Foram realizados
questionários fundamentados nos conceitos relacionados durante a pesquisa;
As últimas observações foram, paradoxalmente, o momento em que se abriu o estudo,
indicando a extensão que a ética espinosista alcança no processo da relação professor-
aluno.
18
CAPÍTULO 1
O PENSAMENTO DE ESPINOSA: CONVERGÊNCIAS TEÓRICAS
Alexander Gurevich, Spinoza, 2006.
Os homens que, sob orientação da Razão,
procuram o que lhes é útil, não desejam para
si mesmo nada que não desejem também
para o resto da humanidade.
Baruch de Spinoza
19
Para buscar-se uma postura ética por parte do docente que afete as relações humanas
presentes na escola, considerou-se relevante pesquisar a etimologia da palavra ética, através
da concepção de diferentes autores, e também, de que maneira este termo circulou pela
hisria.
A palavra ética originou-se do grego ethos, que significa o modo de ser, o caráter. Os
romanos traduziram o “ethos” grego para o latim “mos” (ou no plural mores), que quer dizer
costume, de onde vem a palavra moral. Esses significados indicam um comportamento
humano que não é natural, mas social e cultural, portanto, dizem respeito a uma realidade
humana que é criada a partir das relações coletivas dos seres humanos e da natureza. A versão
dicionarizada define a ética ainda sob esta derivação moralizante, “o estudo dos juízos de
apreciação que se referem à conduta humana suscetível de qualificação do ponto de vista do
bem e do mal, seja relativamente à determinada sociedade, seja de modo absoluto”.
2
Segundo Vazquéz (2005) não se podem confundir a ética e a moral. A ética não cria a
moral. A ética depara com uma experiência histórico-moral no terreno da moral, ou seja, com
uma série de práticas morais em vigor. Partindo delas, procura determinar a essência da
moral, sua origem, as condições objetivas e subjetivas do ato moral, as fontes da avaliação
moral, a natureza e a função dos juízos morais, os critérios de justificação destes juízos e o
princípio que rege a mudança e a sucessão de diferentes sistemas morais. Para este autor: “A
ética é a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. Ou seja, é
ciência de forma específica de comportamento humano.” (2005, p. 23).
Ainda para este autor, ética e moral relacionam-se, pois, como uma ciência específica
e seu objeto. Essa relação não existia propriamente em suas origens etimológicas. Certamente,
moral vem do latim mos ou mores, costume” ou “costumes”, no sentido do conjunto de
normas ou regras adquiridas por hábito. A moral refere-se, assim, ao comportamento
2
Disponível em: <http://pessoal.educacional.com.br/up/1580001/198212/PAG.htm>.
20
adquirido ou modo de ser conquistado pelo homem. Ética vem do grego ethos, que significa
analogamente “modo de ser” ou “caráter” enquanto forma de vida também adquirida ou
conquistada pelo homem. Podemos perceber que, originariamente, ethos e mos, “caráter” e
costume” assentam-se num modo de comportamento que não corresponde a uma disposição
natural, mas que é adquirido ou conquistado por hábito.
Lima Vaz (2002) afirma que na ngua filofica grega, ethike procede da
substantivo ethos, que receberá duas grafias distintas, designando matizes diferentes da
mesma realidade: eths (com eta inicial) designa o conjunto de costumes normativos da vida
de um grupo social, ao passo que ethos (com epsilon) refere-se à constância do
comportamento do indivíduo cuja vida é regida pelo ethos-costumes.
Com relação ao vocábulo moral, Lima Vaz escreve que, uma evolução semântica
análoga à do termo ético(a). Buscando a etimologia, a raiz de moralis é substantivo mos
(mores) que corresponde ao grego ethos, mas é dotado de uma polissemia mais rica, pois seu
uso se estende a um amplo campo de expressões como pode ser verificado nos léxicos latinos.
Marilena Chauí (2002), partindo dos textos de Platão e de Aristóteles, afirma que no
Ocidente a ética ou filosofia moral inicia-se com crates. Sócrates costumava andar pelas
praças e ruas de Atenas, questionando as pessoas sobre o que acreditavam ser valores e o que
respeitavam ao agir. Costumava perguntar o que é a coragem, a justiça, a amizade, a piedade.
A resposta que obtinha dos atenienses é que se tratavam de virtudes. Logo, Sócrates os
provocava indagando o que eram virtudes. Eles respondiam que era agir em conformidade
com o bem. As respostas que Sócrates recebia levaram-no a perceber que os atenienses não
pensavam no que diziam, apenas repetiam o que lhes fora ensinado desde a infância o que
levava uma pergunta receber respostas diferentes e contraditórias, pois cada um respondia da
maneira como aprendera. Esta situação levava as pessoas ao constrangimento, pois muitos
21
acabavam reconhecendo que não sabiam o que imaginavam saber. Alguns desses atenienses
resolveram, então, buscar na companhia socrática, a busca filosófica da virtude e do bem.
Os atenienses sentiam-se constrangidos, porque perceberam que confundiam fatos e
valores, pois ignoravam as causas ou as razões, na medida que valorizavam certas coisas,
certas pessoas ou certas ações e desprezavam outras, embaraçando-se ou irritando-se quando
crates lhes mostrava que estavam confusos. Porém, tais confusões não eram inexplicáveis
(CHAUÍ, 2002, p. 166).
Somos formados pelos costumes da sociedade na qual estamos inseridos. Somos
educados para respeitarmos e reproduzirmos os valores propostos por ela como bons e,
portanto, como obrigações e deveres. É importante lembrar que os alunos de Sócrates eram
sempre meninos, jamais meninas; e os mesmos eram estimulados a serem varões virtuosos, o
que, em certo grau, significava cumprir com seu papel de membro da polis em que viviam.
Podemos lembrar que a literatura grega está coberta desta visão antropocêntrica, ou seja, o
homem como centro da sociedade, pois ser virtuoso é agir como os homens atenienses e seus
antepassados agiram. A palavra costume se diz, em grego, ethos - de onde, e ética, em latim,
mores- de onde, moral. Então, ética e moral referem-se ao conjunto de costumes tradicionais
de uma sociedade e que, como tais, são considerados valores e obrigações para a conduta de
seus membros (CHAUÍ, 2002, p. 168).
Como foi salientado nos parágrafos anteriores, os valores morais vão modificando-
se na História. O filósofo holandês Baruch de Spinoza (1632-1677) deixou-nos um sistema
ético que trouxe alterações profundas nos quadros de valores até então apresentados.
Baruch de Spinoza
3
viveu no século XVII, sofreu o peso desta condição. Nasceu em
3
Baruch em português diz-se Bento; em latim é equivalente a Benedictos. Segundo Tomaz Tadeu
(2002, p. 57), na grafia oficial do Brasil, pelo menos nos últimos 30 ou 40 anos, usa-se "Espinosa". rém,
Tadeu contraria esta versão grafando em seus textos "Spinoza" e afirma que a mudança de "Spinoza" para
"Espinosa" tem haver com duas coisas: 1) a tendência lusitana a adaptar a grafia de nomes próprios estrangeiros
à fonética portuguesa; 2) a questão da reinvindicação portuguesa relativamente à língua materna do filósofo
holandês. Uso no decorrer dos textos a grafia Espinosa, por ser a opção de maior uso corrente.
22
24 de novembro de 1632 em Amsterdã. Descendente de judeus portugueses, a família
emigrou para a Holanda e pôde abandonar o pseudocristianismo a que era forçada pela
Inquisição, voltando ao judaísmo de seus antepassados. Na Holanda havia maior tolerância
religiosa, porque nela se iniciava um novo poderio econômico que iria suplantar o de Portugal
e Espanha. A infância de Espinosa foi marcada pela perda do pai, um comerciante bem
sucedido, e da mãe, que veio a falecer de parto quando ele tinha 6 anos (STRATHERN, 2000,
p. 11).
Desde pequeno, seu pai ensinava-lhe a não confundir carolice com devoção. Percebeu
que seu filho tinha vocação para o estudo e achou que ele poderia se tornar um rabino. Então,
estimulou Espinosa a tomar aulas de latim e grego. Esses estudos foram feitos na escola
Árvore da Vida e também na Academia da Coroa e da lei, onde teve oportunidade de
conhecer os grandes problemas do judaísmo (CHAUÍ, 1991, p. 8).
No mundo judaico em que vivia, as mais variadas tendências se entrecruzavam,
obrigando os pensadores a buscar soluções próprias, que nem sempre eram aceitas pela
comunidade. Dentro deste contexto, o jovem Espinosa cada vez mais se tornava um
questionador das verdades bíblicas pregadas pelas autoridades da Sinagoga. Interessou-se
pelas questões políticas, defendendo a liberdade de pensamento e de expressão contra a tirania
teológico-religiosa e defendeu a iia de que a democracia é o mais natural dos regimes
políticos”, porque realiza nosso direito natural pelo qual todos os homens desejam governar
e não serem governados” (CHAUÍ, 1991).
Os deres da comunidade judaica tinham grandes preocupações com essa tendência
que Espinosa e outros estudantes independentes traziam. As Províncias Unidas dos Países
Baixos eram uma sociedade tolerante, mas os judeus ainda não eram cidadãos na Holanda e
23
críticas à Bíblia poderiam ser vistas como ataques ao cristianismo (STRATHERN, 2000, p.
12). É importante lembrar que a Holanda foi um dos maiores centros do Calvinismo na
época de Espinosa.
Com 22 anos, Espinosa começou a “fazer ponto” em volta da sinagoga, divulgando
suas idéias que afirmavam que os autores do Pentateuco (os cinco livros iniciais da Bíblia)
eram simplórios do ponto de vista científico e também teológico. E, ainda, dizia que não havia
provas na Bíblia de que Deus tinha corpo, de que a alma era imortal ou de que os anjos
existiam (STRATHERN, 2000, p. 13).
Aos 24 anos Espinosa foi chamado pelo talmudista Morteira, chefe da comunidade
espiritual e diretor da Academia da Coroa e da Lei, para que se retratasse das blasfêmias que
vinha apregoando. Espinosa rejeitou o chamado e passou a ser convocado pelo nível superior
da Sinagoga de Amsterdã, que o submeteu a intenso interrogatório, cuja finalidade foi mostrar
seu ateísmo. Espinosa resolveu afastar-se, antes que a sinagoga se visse compelida a
excomungá-lo e, neste momento, redigiu o opúsculo Apologia para Justificar uma Ruptura
com a Sinagoga, atualmente perdido (CHAUÍ, 1991, p. 9).
A persistência de Espinosa levou-o, em julho de 1656, a uma grandiosa cerimônia de
excomunhão e, assim, foi banido da comunhão judaica. Este acontecimento foi seguido por
outras transformações em sua vida. As finanças na família o iam bem e, então, seus iros
e cunhados viram na excomunhão uma boa razão para deserdá-lo. Mas Espinosa não se
abalou com esses fatos e foi buscar um meio de subsistência. Assim, aprendeu a polir lentes
para lunetas e desenvolvia este ocio com eficiência. Portanto, sua clientela aumentou
rapidamente, fornecendo-lhe o suficiente para viver.
Neste período, integrou-se à vida cultural holandesa, no momento em que os Países-
Baixos valorizavam a atividade econômica e promoviam a tolerância religiosa, pois as
barreiras confessionais apresentavam-se como empecilho para o intercâmbio comercial.
24
Dentro deste contexto, Espinosa escreveu a maior parte de suas obras, na fase de maior
esplendor da vida intelectual e artística da nação (CHAUÍ, 1991, p. 10).
As a excomunhão, o filósofo abandonou os estudos judaicos e se aprofundou no
humanismo clássico. Na mesma época, comou a estudar a filosofia de Descartes. O
cartesianismo trouxe para Espinosa o racionalismo do século XVII, a confiança no poder da
razão, tanto nos domínios da teoria quanto na ação prática, e começou pela necessidade de
elaborar as noções de método, de verdade e, a partir delas, as noções de ser e de ação.
Apresenta-se a seguir, uma releitura do pensamento de Espinosa através dos escritos
de Marilena Chauí e Gilles Deleuze, pois eles podem auxiliar no entendimento e na busca de
conexões entre o espinosismo e a relação pedagógica.
1.1 Uma dimensão crítico-teórico: a releitura de Chauí
A filosofia de Espinosa é uma crítica da superstição, em qualquer área, seja na
religião, na política ou na filosofia. Segundo Chauí (1991, p. 12), a superstição é uma paixão
negativa nascida da imaginação que, pela de falta de compreensão sobre as leis do universo,
fica oscilando entre o medo dos males e a esperança dos bens. Através desta oscilação, o
homem é manipulado e submetido a um ser supremo, que existiria fora do mundo e o
controlaria segundo sua vontade. Portanto, a superstição gera o poder religioso que domina a
massa popular ignorante e, ainda, forma um aparato militar e potico que serve de sustentação
para um Estado autoritário e tirânico. Este olhar, levantado por Espinosa, levou-o a escrever a
Ética, que acaba se tornando uma de suas principais obras, onde ele demonstra como Deus é a
causa racional produtora e conservadora de todas as coisas, segundo leis que o homem pode
conhecer plenamente.
25
Espinosa distingue-se de outros filósofos do século XVII pelo racionalismo absoluto.
Ele afirma e demonstra que a totalidade do real é inteligível e pode ser conhecida por nosso
intelecto, não havendo no mundo lugar para misrios, milagres e coisas ocultas. Portanto, diz
Chauí, “racionalismo absoluto significa libertar-nos das causas da ignorância para com isso
libertar-nos das causas do medo e da esperança e, ao fazê-lo, liberta-nos de seus efeitos
religiosos e políticos. Racionalismo absoluto é a confiança na capacidade libertadora da
razão” (2005, p. 33). Para Espinosa, uma consciência dilacerada por paixões contrárias e
atônita diante do infinito jamais alcançaa verdade nem se sentiunida a Deus, isto é, à
Natureza. Não é possível sentir alegria e amor sob as ruínas da razão. Este autor trouxe uma
nova concepção de verdade, afirmando que esta é imanente ao próprio conhecimento, não
necessitando de garantia externa, como afirmavam filósofos anteriores a ele. Conhecer
adequadamente uma coisa é conhecer o seu modo de produção (CHAUÍ, 1991, p. 14). Este é
o acento interpretativo que Chauí empresta.
Através desta concepção de verdade, Espinosa mostra que Deus se produz a si mesmo,
às coisas e ao homem, demonstrando que esse modo de autoprodução é o próprio modo de
produção do real. Para ele, não se pode separar o produtor do produto, pois desta forma estará
se aceitando a incompreensibilidade divina, sendo vítima da superstição.
Em sua obra, Tratado da correção do intelecto, Espinosa propõe que nosso intelecto
conheça a si mesmo, diferenciando-se da imaginação. Imaginar é conhecer as imagens das
coisas e, por meio delas, conhecer uma imagem de nós mesmos. A imagem é um efeito da
ação de causas externas sobre nós. Assim, ela não nos oferece a própria coisa tal como é em si
mesma e sim o que julgamos que ela seja pelo efeito que produz em nós. a iia, ao
contrário, é um ato de nosso intelecto que apreende a natureza íntima ou essência de um ser
porque conhece sua causa e os nexos que ligam necessariamente a outras idéias. Este autor
distingue três neros de conhecimento: a imaginação, a razão e a intuição intelectual. A
26
imaginação opera com idéias inadequadas, isto é, uma opinião em que depositamos nossa
confiança enquanto nenhuma outra imagem a puser em vida. A razão conhece
adequadamente as noções comuns, isto é, as leis necessárias entre um todo e suas partes, bem
como as relações necessárias entre as partes de um mesmo todo. A intuição intelectual alcança
as idéias adequadas, isto é, as idéias das coisas enquanto essências singulares, conhecendo
sua natureza íntima por conhecer suas causas e efeitos necessários, é a certeza intelectual que
nos faz saber que sabemos (CHAUÍ, 2005, p. 36).
Nas idéias inadequadas ou imaginativas, somos passivos, pois nossa atividade se reduz
a associar imagens que nos parecem semelhantes e a separar as que nos parecem diferentes,
para com elas formarmos idéias imaginativas gerais sobre a realidade e sobre nós próprios. As
idéias imaginativas ou inadequadas são parciais e confusas porque se formam em nós sem que
conheçamos as causas verdadeiras que as produziram. Nas idéias adequadas ou intelectuais,
somos plenamente ativos: nosso intelecto, por uma força que lhe é própria, conhece por si
mesmo as causas e efeitos das idéias, a gênese necessária delas, os nexos que formam com
outras conexões e ordens internas necessárias.
Para Espinosa, conhecer é conhecer pela causa, ou seja, conhecer a origem necessária
de alguma coisa, conhecendo a maneira como é produzida por outra. Esse conhecimento
adquire-se por uma operação de nosso intelecto que produz a definição do real ou a iia
verdadeira do objeto conhecido, dando-nos a razão ou causa necessária de sua essência e de
sua existência. Quando Espinosa usa a matemática para falar sobre o homem, suas paixões e
ações, é porque acredita que através dela pode-se oferecer definições reais, dando a conhecer,
apenas pelo intelecto, suas causas e efeitos necessários, sua origem e a maneira como suas
essências e existências são produzidas. Para passar das definições imaginativas inadequadas à
definição intelectual, real e verdadeira, precisamos desembaraçar nosso intelecto da teia da
imaginação através do método. Para formular um método, diz o filósofo, precisamos conhecer
27
sua causa, que se encontra no conhecimento do poder ou da capacidade de pensar. O método
nada mais é do que o próprio trabalho intelectual, a atividade ordenada da própria
inteligência. Tanto o todo quanto a força nativa do intelecto para pensar, ou a inteligência,
tem o mesmo ponto de partida: um instrumento natural (CHAUÍ, 2005, p. 38).
Segundo Chauí (2005, p. 39), a inteligência é demonstrada na Ética como a potência
da alma para pensar. Para Espinosa essência (ser) e potência (agir ou causalidade interna)
indicam que a essência da alma é a potência interna para pensar. Assim, este filósofo
demonstra que o intelecto ou razão é uma potência inata para pensar, conhecendo as essências
das coisas graças ao conhecimento de suas causas necessárias. Este pensamento inova a
concepção de verdade. Segundo Espinosa, a idéia verdadeira é aquela que mostra as
operões realizadas pelo intelecto para concebê-la, construindo o objeto (o ideado, ou
conteúdo da idéia) através de suas causas necessárias.
Espinosa inova também no que refere à Ética e à Moral. Para o senso comum, estas
duas palavras têm o mesmo significado. Para ele, a Moral fica junto à religião e define ambas,
Moral e Religião, como sistemas que impõem certos deveres do homem. A Ética nada tem a
ver com os deveres, pois quem age por dever não é livre, age por mandamento. Essa ética
apresentada por Espinosa é liberada do peso de duas tradições: a da transcendência teológico-
religiosa ameaçadora, que coloca a ética sob a tutela do pecado; e a normatividade repressiva
da moral, que submete a ética às idéias imaginativas de bom e mau, identificando a liberdade
com o poder para escolher entre valores postos como regras e normas para o agente moral. A
Ética é a definição do ser do homem tal como ele é, e demonstrando por que o homem é tal
como é recuperando assim o sentido grego Ethos: modo ou maneira de ser (CHAUÍ, 1991, p.
14). A ética espinosista tem como principal idéia que o homem é parte imanente da Natureza;
sendo parte, dela possui a peculiaridade de não ser apenas parte e sim capaz de tomar parte
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na atividade do todo do universo. Assim, podemos perceber que segundo Espinosa, a ética
está ligada obrigatoriamente à Natureza do homem e não ao social em que ele está inserido.
Afirma Chauí (2005, p. 50)
que Natureza é a expressão imanente de uma atividade infinitamente infinita cujo
nome é Substância. A substância, una e única, é uma unidade infinitamente
complexa constituída por infinitos atributos infinitos, isto é , por infinitas qualidades
infinitas diferenciadas, unificadas pela potência infinita de autoprodução de todas as
coisas. Unidade internamente diferenciada e unificada pela maneira como opera, a
substância é o Ser e a Causa: o Ser, porque plenitude da identidade da essência e da
existência; a Causa, porque é causa de si mesma e causa livre imanente de todas as
coisas, existe nelas e Exprime-se nelas.
Portanto, o homem, é um modo singular finito da Substância, isto é, efeito imanente da
atividade dos atributos substanciais. Contrariamente a tradição que nega que o homem seja
uma substância e um composto substancial, Espinosa afirma que o corpo é uma
individualidade; é uma dinâmica intercorpórea (CHAUÍ, 2005, p. 51).
Com relação ao corpo-alma, contamos com uma inovação espinosista. Esse filósofo
afirma que a união corpo e alma e a comunicação entre eles decorrem direta e indiretamente
do fato de serem expressões finitas determinadas de uma mesma e única substância, cujos
atributos se exprimem diferenciadamente numa atividade comum a ambos. Corpo e alma
estão sob as mesmas leis e sob os mesmos princípios, expressos diferenciadamente,
rompendo-se assim a longa tradição que definira a alma como superior ao corpo e devendo ter
comando sobre ele. A alma é uma atividade pensante que se realiza como imaginação, querer
e reflexão. Pensar é ter consciência de alguma coisa e ser consciência de alguma coisa. É da
natureza da alma estar internamente ligada ao seu objeto, porque ela não é senão atividade de
pensá-lo, potência para abrir-se ao objeto e para acolhê-lo. Sendo assim, podemos afirmar que
Espinosa ressignifica a definição de alma quando afirma que esta é a idéia do corpo: “A
ordem e conexão das iias é a mesma que a ordem e conexão das coisas” (apud CHAUÍ,
2005, p. 55).
29
Podemos dizer então que existe uma correspondência entre os acontecimentos
psíquicos e os corporais, manifestando a causalidade única da substância. Somos a unidade de
um complexo corporal (os milhares de corpos que constituem nosso corpo) e de um complexo
psíquico (as inumeveis idéias que constituem nossa mente ou nossa alma). Assim, a alma é
definida como consciência das afecções de seu corpo e das idéias dessas afecções: é
consciência do corpo e consciência de si, ou, em linguagem espinosana, iia do corpo e idéia
da idéia do corpo. Complementando, é consciência dos movimentos, das mudanças no
equilíbrio interno de seu corpo sob a ação das causas externas. A alma á consciência da vida
de seu corpo e consciência de ser consciente disso (apud CHAUÍ, 2005, p.55-56)
Porém, a alma começa e vive um conhecimento confuso de seu corpo e de si. Ela tem
idéias imaginativas. Imaginar não é uma atividade da alma, mas do corpo. Afetando outros
corpos e sendo afetado de inúmeras maneiras, o corpo cria imagens de si a partir do modo
como é afetado pelos demais corpos. Imaginar exprime a primeira forma da
intercorporeidade, aquela na qual a imagem do corpo e de sua vida é formada pela imagem
que os demais corpos oferecem do nosso. A idéia imaginativa é o esforço da alma para
associar, diferenciar, generalizar e relacionar abstrações ou fragmentos, criando conexões
entre imagens para com elas orientar-se no mundo. É um conhecimento desprovido de sua
causa ou de sua razão.
O corpo é capaz de imaginar, pois não é de sua natureza pensar. O acesso ao
verdadeiro abre-se para a alma quando esta assume sua natureza própria, sua potência própria,
isto é, o poder para pensar, e toma a iniciativa do conhecimento. Assim, estará desimpedida
para chegar ao conhecimento verdadeiro de seu corpo, de si e do mundo (CHAUÍ, 2005, p.
58).
Espinosa também mostra uma maneira muito singular de interpretar o erro. Para ele, o
erro é um conhecimento parcial ou mutilado da totalidade e não uma ausência de
30
conhecimento. E, também, o erro consiste em anexar conhecimentos parciais para querer
retirar daí um conhecimento geral, e este será também abstrato na medida em que resulta de
uma simples justaposição de parcialidades. Associando por semelhança, dissociando por
diferenças, justapondo por contigüidade espacial e por sucessão temporal, a imaginação tece
uma teia de nomes vazios e abstratos e quer com eles explicar a realidade. Portanto, o
conhecimento verdadeiro tem que ser um conhecimento que preserve o particular sem destruí-
lo numa nomenclatura abstrata. Espinosa afirma que o conhecimento verdadeiro é o
conhecimento das leis que produzem as coisas singulares e que determinam a natureza própria
e o lugar próprio de cada uma delas no Todo. Então, conclui que o conhecimento deve partir
do incondicionado rumo àquilo que é determinado por ele - ou seja, deve partir de Deus
(CHAUÍ, 1991, p. 15).
Dentro do pensamento de Espinosa encontra-se o termo conatus que significa a
essência do homem, o esforço para perseverar na existência, o poder para vencer os
obstáculos exteriores a essa existência, o poder para expandir-se e realizar-se plenamente.
Uma potência natural de autoconservação (CHAUÍ, 2005). Cada conatus está perpetuamente
relacionado com outros e cada um pode realizar uma verdadeira guerra contra os demais para
poder preservar-se, e o mundo exterior surge como um conjunto de causas que podem
aumentar ou diminuir o poder do conatus de cada um. A ação consiste em apropriar-se de
todas as causas exteriores que aumentem o poder do conatus. A paixão, em deixar-se vencer
por todas aquelas que diminuem seu poder. Assim, na ação, o conatus (alma e corpo)
incorpora o exterior graças ao seu próprio poder, enquanto nas paies ele se torna incapaz
disso. Espinosa define ação e paio em termos de causa adequada e de causa inadequada. A
ação é uma potência positiva, a paixão, um declínio da potência. O homem livre não é aquele
que faz o que quer, mas aquele que, conhecendo as leis da natureza e as leis de seu corpo, não
se deixa vencer pelo exterior, mas sabe dominá-lo. No corpo, o conatus se chama apetite; na
31
alma, desejo. Assim, podemos dizer que as afecções do corpo são imagens que, na alma, se
realizam como iias afetivas ou sentimentos. Portanto, a relação originária da alma com o
corpo e de ambos com o mundo é a relação afetiva. Partindo destes conceitos, Espinosa
definirá a essência humana pelo desejo. O desejo é a tendência interna do conatus a fazer algo
que conserve ou aumente sua força. O desejo do homem livre é o desejo no qual não existe
distância entre o ato de desejar e o objeto desejado. Ser livre é conhecer as leis humanas,
deixar-se vencer apenas pelas paixões positivas. As paixões negativas podem ser vencidas
pelas positivas, modificando a direção do desejo rumo a objetos que destruam a oscilação do
conatus e aumentem sua força (CHAUÍ, 1991, p. 17).
Chauí (2005, p. 60) afirma:
Nosso corpo é definido pela intensidade maior ou menor da força para existir - no
caso do corpo, da força maior ou menor para afetar outros corpos e ser afetado por
eles; no caso da alma, da força maior ou menor para pensar. A variação da
intensidade da potência para existir depende da qualidade de nossos apetites e
desejos e, portanto, da maneira como nos relacionamos com as forças externas,
sempre muito mais numerosas e mais poderosas do que a nossa. A força do desejo
aumenta ou diminui conforme a natureza do desejado, e a intensidade do desejo
aumenta ou diminui conforme ele seja não conseguido, havendo ou não satisfação.
Sendo assim, quando realizamos um desejo, aumenta nossa força para existir e pensar.
Chama-se alegria, o sentimento que temos de que nossa capacidade de existir aumente,
chamando-se amor quando atribuímos esse aumento a uma causa externa (o objeto do desejo).
O desejo frustrado diminui nossa força para existir e pensar. Chama-se tristeza o que diminui
nossa capacidade para existir. Caso essa diminuição existencial seja um efeito proveniente de
uma causa externa (o objeto do desejo), chama-se de ódio. Todos os demais apetites e afetos
são derivados ou variantes dos três originários: desejo, alegria e tristeza (CHAUÍ, 2005, p.
60).
Na vida imaginária, as afecções corporais e os afetos são paixões, e estas, são efeitos
necessários do fato de sermos uma parte finita da Natureza circundada por um número
32
ilimitado de outras partes, que, mais poderosas e mais numerosas do que nós, exercem poder
sobre nós. Portanto, para Espinosa, somos causa inadequada de nossos apetites e de nossos
desejos, pois somos apenas parcialmente causa do que sentimos, fazemos e desejamos, pois a
causa mais forte e poderosa é a imagem das coisas, dos outros e de nós mesmos.
Espinosa destruiu os valores correntes como: bem, mal, feio, injusto, perfeito e
imperfeito, pois estes são nomes abstratos que nasceram de comparações que os homens
fizeram entre si e entre os objetos. Assim, o bem é o que procuramos para aumentar nossa
potência; o mal, aquilo que diminui nossa potência. A virtude é força, é o próprio conatus se
expandindo. A virtude ou liberdade consiste em procurar aquele bem que por sua realidade
atual e necessária realiza plenamente nosso desejo: Deus. Por isso, a liberdade é definida
como amor intelectual de Deus. Amor: é a paixão positiva. O amor intelectual é a paixão
guiada pela consciência. Temos de alcançar a plenitude de nosso ser na consciência que temos
de nós mesmos através de nossa compreensão de Deus, isto é, da totalidade (CHAUÍ, 2005, p.
29).
A chave da ética encontra-se na posição do conatus que tem como fundamento,
primeiro e único, a virtude, palavra que, no olhar espinosista, o tem o sentido moral de
valor e modelo a ser seguido, mas em seu sentido etimológico de força interna (em latim,
virtus deriva de vis, força). A virtude do corpo é poder afetar de inúmeras maneiras
simultâneas outros corpos e ser por eles afetado de inúmeras maneiras simultâneas (CHAUÍ,
2005, p. 63).
A virtude da alma é conhecer, é pensar, e sua força interior dependerá, portanto, de sua
capacidade para interpretar as imagens de seu corpo e dos corpos exteriores, passando dessas
imagens às idéias propriamente ditas. Ela é passiva quando o conhecimento depende de
causas exteriores - é passiva na imaginação. Ela é ativa quando o conhecimento depende dela
própria, de sua força própria - é ativa na razão (CHAUÍ, 2005, p. 63). A virtude é, por um
33
lado, um movimento e um processo de interiorização da causalidade e, por outro lado, a
instauração de nova relação com a exterioridade. Assim, a possibilidade da ética encontra-se
na possibilidade de fortalecer o conatus para que se torne causa adequada dos apetites e
imagens do corpo e dos desejos e iias da alma (p. 64).
Chauí (2005, p. 64), citando a proposição 18 do Livro IV da Ética: “O desejo que
nasce da alegria é mais forte do que o desejo que nasce da tristeza”. Espinosa nos revela que a
alegria e o desejo nascido da alegria (e, portanto, o desejo nascido de todos os afetos de
alegria, como o amor, a amizade, a generosidade, o contentamento, a misericórdia, a
benevolência, a gratidão, a glória) são as paixões mais fortes. E, ainda, que a vida ética
começa, assim, no interior das paixões, pelo fortalecimento das mais fortes e enfraquecimento
das mais fracas, isto é, de todas as formas da tristeza e dos desejos nascidos da tristeza. Uma
tristeza intensa é uma paixão fraca; uma alegria intensa, uma paixão forte, pois fraco e forte se
referem à qualidade do conatus ou da potência de ser e agir, enquanto a intensidade se refere
ao grau dessa potência. À medida que as paixões tristes vão sendo afastadas e as alegres vão
sendo aproximadas, a força do conatus aumenta, de sorte que a alegria e o desejo dela nascido
tendem, pouco a pouco, a diminuir nossa passividade e preparar-nos para a atividade.
Afirma Chauí (2005, p. 65):
O primeiro instante da atividade é sentido como um afeto decisivo: quando, para
nossa alma, pensar e conhecer for sentido como mais forte dos afetos, o mais forte
desejo e a mais forte alegria, um salto qualitativo tem lugar, pois descobrimos a
essência de nossa alma e sua virtude no instante mesmo em que a paixão de pensar
nos lança para a ação de pensar.
Assim, encontramos sentido nas quatro primeiras proposições do Livro Ética: a ética
o é senão o movimento de reflexão, isto é, o movimento de interiorização no qual a alma
interpreta seus afetos e as afecções de seu corpo, destruindo as causas externas imaginárias e
descobrindo o seu corpo como causas reais dos apetites e desejos. A possibilidade da ação
reflexiva da alma encontra-se, portanto, na estrutura da própria afetividade: é o desejo de
34
alegria que impulsiona rumo ao conhecimento e à ação. Pensamos e agimos não contra os
afetos, mas graças a eles.
Para Espinosa, a essência da alma é o conhecimento e, quanto mais conhece, mais
realiza sua essência ou sua virtude. A liberdade consiste em reconhecer-se como causa
eficiente interna dos apetites e imagens, dos desejos e iias, afastando a miragem ilusória das
causas finais externas.
Conclui-se que, para Espinosa, o retrato do homem livre é aquele que não faz o mal
justamente porque o ignora, mas é o homem que age para além do bem e do mal, porque age
apenas pela força interior de seu desejo e de sua compreensão. É o homem que não teme, não
odeia, nem tem remorsos porque domina os objetos exteriores em vez de ser uma vítima deles
(CHAUÍ, 2005, p. 70).
1.2 Uma dimensão teórico-crítico: a releitura de Deleuze
Gilles Deleuze baseou-se em filósofos como Nietzsche e Espinosa para desenvolver
seus próprios propósitos, para acrescentar seus próprios problemas, para extrair de suas obras
uma outra coisa, algo novo e irreconhecível, uma criação própria.
Deleuze (2002, p. 10) retoma o pensamento de Espinosa e adentra nas grandezas
deixadas por ele. Ele lembra a solidão de um filósofo que não pode se integrar a nenhuma
sociedade, para que fosse preservada sua potência de pensar que transcende os fins de um
Estado, de uma sociedade e de qualquer meio em geral. Mostrará Espinosa que a melhor
sociedade será aquela que isenta o poder de pensar do dever de obedecer. Logo, enquanto o
pensamento for livre e, portanto, vital, nada estará comprometido; quando deixa de o ser,
todas as outras opressões tornam-se igualmente possíveis e, uma vez realizadas, qualquer ação
se torna culpável e toda vida ameaçada.
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Espinosa levou uma vida simples, foi consumido pela doença. No entanto, ofereceu
uma imagem da vida positiva e afirmativa, questionando a morte, as regras do bem e do mal,
o justo do injusto. Para ele, conforme a leitura deleuziana, a vida é uma maneira de ser, um
mesmo modo eterno em todos os seus atributos. Por conseguinte, é somente desse ponto de
vista que o método geométrico assume todo sentido. O método geométrico deixa de ser uma
exposição intelectual e passa a ser um método de invenção. Ele torna-se um método de
retificação vital ótica. Essa geometria ótica perpassa toda a Ética, no qual aparecem as
demonstrações que Espinosa afirma serem os “olhos da alma”. Refere-se ao terceiro olho,
aquele que permite ver a vida para além das falsas aparências, das paixões e das mortes. Para
essa visão são necessárias virtudes, humildade, pobreza, castidade; não mais como virtudes
que mutilam a vida, mas como potências que a desposem e a penetrem. Esse terceiro olho visa
constituir lentes para uma visão livre e inspirada (DELEUZE, 2002, p. 20).
Gilles Deleuze apresenta os principais conceitos da Ética, que se considerou
importante uma elucidar, pois são termos específicos em Espinosa. Além disto, o
apresentadas de uma maneira particularizada pela leitura de Deleuze, em que são
ressignificadas essas percepções. Daí este plano da releitura de Deleuze”. Entre eles,
salientaram-se alguns, os quais estarão presentes no decorrer do trabalho, por entender serem
importantes nos problemas que concernem às relações pedagógicas que me interessa pensar
por meio de Espinosa (apud DELEUZE, 2002, p. 55-114):
AÇÃO - Cf. Afecções.
ADEQUADO - INADEQUADO - Cf. Idéia.
AFECÇÕES, AFETOS - 1º) As afecções (affectio) são os próprios modos. Os modos são as
afecções da substância ou seus atributos (Ética, I, 25, cor.; I, 30).
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2º) Em um segundo grau, as afecções designam o que acontece ao modo, as modificações do
modo, os efeitos dos outros modos sobre este. De fato, estas afecções são imagens ou marcas
corporais (II, post. 5; II, 17, esc; III, pot. 2); e as suas idéias englobam ao mesmo tempo a
natureza do corpo afetado e a do corpo exterior afetante (II, 16).
3º) Essas afecções- imagens ou idéias formam certo estado (constitutio) do corpo e do
espírito afetados, que implica mais ou menos perfeição que estado precedente. Essas afecções,
imagens ou iias não são separáveis da duração que ao estado precedente e as induzem ao
estado seguinte. Essas durações ou variações contínuas de perfeição são chamadas “afetos” ou
sentimentos (affectus).
A afecção do corpo e sua idéia envolve a natureza do corpo exterior, por um lado, e,
por outro lado, o afeto que implica tanto para o corpo como para o espírito um aumento ou
uma diminuição da potência de agir. Existe, pois, uma diferença de natureza entre as
afecções-imagens ou iias, e os afetos-sentimentos, se bem que os afectos-sentimentos
podem ser apresentados como um tipo particular de idéias ou de afecções.
Um modo existente define-se por certo poder de ser afetado (III, post. 1 e 2). A
passagem a uma perfeição maior ou o aumento da potência de agir denomina-se afeto ou
sentimento de alegria; a passagem a uma menor perfeição ou diminuição da potência de agir,
tristeza. É assim que a potência de agir varia em função das causas exteriores, para um mesmo
poder de ser afetado.
Na medida em que nossos sentimentos ou afetos provêm do encontro exterior com
outros modos existentes, eles explicam-se pela natureza do corpo afetante e pela idéia
necessariamente inadequada desse corpo, imagem confusa envolvida no nosso estado. Esses
afetos são paixões, visto que não somos causa adequada (III, def. 2).
37
ATRIBUTO - “Aquilo que o entendimento percebe da substância como constituindo a sua
essência” (Ética, I, def. 4). Cada atributo “exprime” certa essência (I, 10, esc.1). Se o atributo
se refere necessariamente ao entendimento, é porque é expressivo e aquilo que exprime
implica necessariamente um entendimento que o percebe”.
Conhecemos dois atributos: o pensamento e a extensão, na medida em que somos
espírito e corpo (II, 1 e 2).
BOM-MAU - O bom e o mau são duplamente relativos e exprimem-se um em relação ao
outro, e ambos em relação a um modo existente. Não conhecemos o bom e o mau a não ser
pelo sentimento de alegria ou de tristeza de que estamos conscientes (IV, 8). O bom é o útil, e
o mau é o nocivo.
O bom e o mau exprimem, pois os encontros entre modos existentes (“ordem comum
da Natureza”, determinações extrínsecas ou encontros fortuitos, fortuito occursu, II, 29, cor).
Tudo o que é mau mede-se pela diminuição da potência de agir (tristezadio); tudo o que é
bom, pelo aumento dessa mesma potência (alegria-amor).
CONHECIMENTO (Gêneros de) - O conhecimento é afirmação da idéia na alma. Espinosa
recusa qualquer análise do conhecimento que distinguisse dois elementos: entendimento e
vontade. O conhecimento como afirmação da idéia distingui-se: ) da consciência como
reduplicação da idéia; ) dos afetos como determinações do conatus pelas idéias. A
formulação definitiva dos gêneros de conhecimento na Ética (II, 40. esc.2), o primeiro gênero
define-se antes de tudo por signos equívocos, é constitdo pelo encadeamento das idéias
inadequadas e dos afetos-paixão que dela decorrem.
O segundo gênero define-se pelas noções comuns, são ainda idéias gerais que se
aplicam apenas aos modos existentes; é nesse sentido que não nos fazem conhecer a essência
38
singular. Pertence ao terceiro gênero fazer-nos conhecer as essências: nesse caso, o atributo é
captado como uma forma comum (a saber, unívoca) à substância cuja essência constitui e às
essências de modo que ele contém como essências singulares (V, 36, esc.).
ENCONTROS (occursus) - Cf. Afeccções, Bom, Natureza, Necessário, Potência.
ERRO - Cf. Idéia
LIBERDADE - Todo o esforço da Ética consiste em romper o vínculo tradicional entre a
liberdade e a vontade. O princípio de Espinosa é o seguinte: jamais a liberdade é propriedade
da vontade, finita ou infinita, é sempre um modo que é determinado por outra causa, ainda
que esta causa seja a natureza de Deus sob o atributo pensamento (I, 32). O que define a
liberdade é um “interior” e um si mesmo da necessidade. Nunca somos livres em virtude da
nossa vontade e daquilo porque ela se regula, mas em virtude da nossa essência e daquilo que
dela decorre. O livro IV da Ética descreve o perfil do homem livre ou forte (IV, 54 etc.). O
homem, o mais potente dos modos finitos, é livre quando entra na posse da sua potência de
agir, ou seja, quando seu conatus é determinado pelas idéias adequadas de onde decorrem
afetos ativos, que se explicam por sua própria essência. A liberdade está sempre ligada à
essência e ao que dela decorre, e não à vontade e ao que a regula.
MODO - as afecções de uma substância ou, em outras palavras, aquilo que está em outra
coisa pela qual também é concebido (Ética, I, def. 5). Constitui o segundo termo da
alternativa daquilo que é: ser em si (substância), ser em outra coisa (I, axioma 1). Deus
produz uma infinidade de coisas numa infinidade de modos” (Ética, I, 16). Isto significa que
os efeitos são efetivamente coisas, isto é, seres reais, tendo uma essência e uma existência
próprias, mas não existem e não estão fora dos atributos nos quais são produzidos. Assim,
39
uma univocidade do Ser (atributos), embora aquilo que é (aquilo de que o Ser se diz) não seja,
de forma alguma, o mesmo (substância ou modos).
O modo infinito imediato é infinito por sua causa e o por natureza. Este infinito
compreende uma infinidade de partes atuais inseparáveis umas das outras. O modo infinito
mediato é para extensão, isto é, o conjunto de todas as relações de movimento e de repouso
que regulam desta vez as determinações dos modos como existentes; sem vida, para o
pensamento, as relações ideais que regulam as determinações das iias como iias de
modos existentes.
NATUREZA - A Natureza dita naturante (como substância e causa) e a Natureza dita
naturada (como efeito e modo) estão vinculadas por uma mútua imanência: por um lado, a
causa permanece em si mesma para produzir; por outro, o efeito ou o produto permanecem na
causa (Ética, I, 29, esc.).
NECESSÁRIO - O necessário é a única modalidade daquilo que é: tudo aquilo que é, é
necessário, ou por si, ou por sua causa.
O que é necessário é:
1º) a existência da substância enquanto é envolvida por sua essência;
2º) a produção pela substância de uma infinidade de modos;
3º) os modos infinitos;
4º) as essências de modos finitos;
5º) os encontros puramente extrínsecos entre modos existentes.
NEGAÇÃO - Repousa na diferença entre distinção, sempre positiva, e a determinação
negativa.
40
1º) Os atributos são realmente distintos, cada um é infinito no seu gênero ou na sua
natureza, não pode ser limitado ou determinado por qualquer coisa de mesma natureza. Cada
natureza se define por sua essência positiva independente.
2º) O finito é bem limitado e determinado: limitado na sua natureza por outra coisa de
mesma natureza; determinado na sua existência, por alguma coisa que lhe nega a existência,
em determinado lugar ou em dado momento. O modo existente finito é limitado na sua
essência e determinado na sua existência. Isto é verdadeiro quando considera o modo em si
mesmo, separado da causa que o faz ser em essência e em existência. A essência do modo é
um grau de potência, que não significa um limite, mas uma distinção positiva intrínseca tal
que todas as essências ou graus convêm junto e formam um conjunto infinito em virtudes de
causa comum.
O princípio espinosista é que a negação não é nada, é um ser de razão, de comparação,
que resulta do fato de agruparmos todas as espécies de seres distintos num conceito abstrato
no intuito de os relacionar a um mesmo ideal fictício, em nome do qual dizemos que a uns ou
a outros faltam perfeição desse ideal. Em suma, toda privação é uma negação, e a negação não
é nada.
NOÇÕES COMUNS - As noções comuns representam algo de comum aos corpos. São iias
gerais e conforme a sua extensão, aplicando-se a todos os corpos ou apenas a alguns, são mais
ou menos gerais.
Numa palavra, noção comum é a representação de uma composição entre dois ou
rios corpos, e de uma unidade dessa composição.
Todos os corpos têm algo em comum: extensão, movimento e repouso. É que todos se
comem do ponto de vista do infinito mediato. As noções comuns são necessariamente
idéias adequadas, mas todo problema consiste em saber como se consegue formá-las. Elas são
41
supostamente dadas e diferentes são suas ordens de formação. Efetivamente, quando se
encontra um corpo que convém com o nosso, experimentamos logo um afeto ou um
sentimento de alegria-paixão, apesar de ainda não conhecermos adequadamente o que tem de
comum conosco. Mas a alegria-paixão, como aumento de potência de agir e de compreender,
induz-nos a fazê-lo: é a causa ocasional da noção comum.
As primeiras noções comuns são, pois, as menos gerais, as que representam algo de
comum entre meu corpo e outro que me afeta de alegria-paixão; 2ª) dessas noções comuns
decorrem, por sua vez, afetos de alegrias, que não são paixões, porém alegrias ativas que
vêm, por um lado, superar as primeiras paixões, e, por outro, substituí-las; 3ª) essas primeiras
noções comuns e os afetos ativos que delas dependem dão força para formar noções comuns
mais gerais, exprimindo o que há de comum, mesmo entre nosso corpo e corpos que o lhe
convêm, que lhe são contrários ou o afetam de tristeza ; ) e dessas novas noções comuns
decorrem novos afetos de alegria ativa que m ultrapassar as tristezas e substituir as paixões
nascidas da tristeza.
PAIXÃO - Cf. Afecções
PENSAR - Cf. Espírito, Idéia, Método, Potência.
POTÊNCIA - Um dos aspectos cruciais da Ética é negar de Deus qualquer poder análogo ao
de um tirano ou mesmo de um príncipe esclarecido. O entendimento divino é um modo pelo
qual Deus não compreende outra coisa senão a sua própria essência e o que dela segue. A sua
vontade é apenas modo sob o qual todas as conseqüências decorrem da sua essência ou do que
ele compreende. Ele tem uma potência idêntica a sua essência. Por esta potência, Deus é
igualmente causa de si mesmo, isto é, da sua existência tal como é envolvida pela essência.
42
Toda potência é ato, ativa, e em ato. Toda potência é inseparável de um poder de ser
afetado, e esse poder de ser afetado encontra-se constante e necessariamente preenchido por
afecções que o efetuam.
A essência do modo é grau de potência, parte da potência divina, ou seja, parte
intensiva ou grau de intensidade. Quando o modo passa à existência, é que uma infinidade de
partes extensivas são determinadas do exterior a entrar sob a relação que corresponde à sua
essência ou grau de potência. A partir disso, esta essência é determinada como conatus ou
apetite (Ética, III, 7). O conatus dever ser compreendido como uma tendência a perseverar na
existência, já que o modo é determinado a existir.
O modo existente es aberto ao exterior, experimenta necessariamente paixões,
encontra necessariamente outros modos existentes capazes de lesar uma das suas relações
vitais, porque as partes extensivas que lhe pertencem sob sua relação complexa não deixam de
ser determinadas e afetadas do exterior, assim a morte se torna inevitável.
O modo existente pode encontrar outros modos existentes que convêm ou não convêm
a ele. A diferença nesses dois encontros é que: na tristeza, a nossa potência como conatus
serve toda ela para investir a marca dolorosa e para repelir ou destruir o objeto que a causou.
A nossa potência está imobilizada e só pode reagir. Na alegria, pelo contrário, a nossa
potência está em expansão, come-se com a potência do outro e une-se ao objeto amado (IV,
18). Podemos dizer que a alegria aumenta a nossa potência de agir, e a tristeza a diminui. O
conatus é, pois, o esforço para aumentar a potência de agir ou experimentar paixões alegres.
O conatus com esforço bem-sucedido, ou a potência de agir como potência possuída
chamam-se Virtude. Por essa razão, a virtude não é outra coisa senão o conatus; nenhuma
outra coisa senão a potência, como causa eficiente, nas condições que a exerce.
A potência de imaginar não é uma virtude, nem mesmo a aptidão para ser afetado.
Somente quando, sob o esforço da Razão, as percepções ou iias se tornam adequadas;
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somente quando nos tornamos nós mesmos causas dos nossos próprios afetos e senhores das
nossas percepções adequadas é que o nosso corpo tem acesso à potência de agir e o nosso
espírito à potência de compreender, que é sua maneira de agir.
PRÓPRIOS - Distinguem-se ao mesmo tempo da essência e daquilo que decorre da essência
(propriedades, conseqüências ou efeitos). Por um lado, o próprio não é a essência, porque não
constitui nada da coisa e não nos faz conhecer nada dela; mas é inseparável da essência, é
modalidade da própria essência. Por outro, o próprio não se confunde com o que decorre da
essência, pois o que desta decorre é um produto que por sua vez tem uma essência, quer no
sentido lógico de propriedade, quer no sentido físico de efeito.
RAZÃO - Cf. Noções comuns.
SENTIMENTOS - Cf. Afecções, afetos.
SIGNO - Em um primeiro sentido, signo é sempre a idéia de um efeito captado em condições
que separam de suas causas. Tais signos são indicativos, são efeitos de mistura; mostram
primeiramente o estado do nosso corpo, e secundariamente a presença do corpo exterior. Num
segundo sentido, signo é a própria causa, porém captada em condições tais que o lhe
compreendemos a natureza, nem a relação com efeito. Tais signos imperativos ou efeitos de
revelação não possuem outro sentido que nos fazer obedecer. Um grave erro da teologia é ter
negligenciado e ocultado a diferença de natureza entre obedecer e conhecer, o de nos ter
levado a tomar princípios de obediência por modelos de conhecimento.
Num terceiro sentido, signo é aquilo que garante de fora essa idéia desnaturada da
causa ou esta mistificação da lei. Tais signos são interpretativos e são efeitos de superstição. É
próprio das idéias inadequadas serem signos que solicitam as interpretações da imaginação e
o expressões submetidas às explicações do entendimento vivo.
44
SUBSTÂNCIA - “Aquilo que é em si e por si concebido, isto é, aquilo cujo conceito não
carece do conceito de outra coisa para se formar” (Ética, I, def. 3). As oito primeiras
proposições da Ética dedicam-se a mostrar que não várias substâncias por atributo: a
distinção numérica nunca é uma distinção real. Cada substância é única, a causalidade por si,
a infinidade e a existência necessária.
Deleuze (2002) traz Espinosa para nosso convívio, mostrando que o primeiro princípio
deste autor é: uma única substância para todos os atributos. E também outros: uma única
substância para todos os corpos, uma única Natureza para todos os indivíduos, uma Natureza
que é ela própria um indivíduo variando de uma infinidade de maneiras. É a exposão de um
plano comum de imanência em que estão todos os corpos, todas as almas, todos os indivíduos.
Então, estar no meio de Espinosa é estar nesse plano modal, ou melhor, instalar-se nesse
plano; o que implica um modo de vida, uma maneira de viver.
Espinosa define um corpo de duas maneiras. De um lado, um corpo, por menor que
seja, sempre comporta uma infinidade de partículas: são as relações de repouso e de
movimento, de velocidades e de lenties entre partículas que definem um corpo, a
individualidade de um corpo. De outro lado, um corpo afeta outros corpos, ou é afetado por
outros corpos: é este poder de afetar e de ser afetado que define um corpo na sua
individualidade. Do ponto de vista cinético, do movimento, o importante é conceber a vida,
cada individualidade de vida, não como uma forma, ou um desenvolvimento de forma, mas
como uma relação complexa entre velocidades diferenciais, entre abrandamento e aceleração
de partículas. Essa velocidade permite deslizar entre as coisas e, assim, nos conjugamos com
outra coisa. Do ponto de vista dinâmico, remete-nos ao poder de afetar e de ser afetado. Para
Espinosa os corpos e almas são modos, e não substâncias, nem sujeitos. Um animal ou um
homem são definidos pelos afetos que eles são capazes. Capacidade de afetos, com um limiar
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máximo e um limiar mínimo, é uma noção freqüente no pensamento de Espinosa. Ninguém
sabe os afetos de que é capaz; é através da experimentação, uma demorada prudência, uma
sabedoria espinosista que implica a construção de um plano de imanência ou de consistência.
Nesse plano de imanência, o plano de Natureza que distribui os afetos, não separa
absolutamente coisas que seriam ditas naturais e coisas que seriam ditas artificiais. O artifício
faz parte completamente da Natureza, que toda coisa, no plano imanente da Natureza,
define-se pelos agenciamentos de movimentos e de afetos nos quais ela entra, quer esses
agenciamentos sejam artificiais ou naturais. A Ética espinosista não tem nada a ver com uma
moral, ela é concebida como uma composição das velocidades e das lenties, dos poderes de
afetar e de ser afetado nesse plano de imanência.
Um animal, uma coisa, nunca é separável de suas relações com o mundo: o interior é
somente um exterior selecionado; o exterior, um interior projetado; a velocidade ou a lentidão
dos metabolismos das percepções, ações e reações entrelaçam-se para constituir tal indivíduo
no mundo.
Segundo Deleuze (2002), Espinosa é um filósofo que dispõe de um extraordinário
aparelho conceitual, extremamente avançado, sistemático e sábio; e, contudo, ele é, no vel
mais alto, o objeto de encontro imediato e sem preparação, tal que um não-filósofo, ou ainda
alguém despojado de qualquer cultura, pode receber dele uma súbita iluminação, um “raio”. A
releitura de Deleuze resulta, então, neste admivel léxico que come uma filosofia da vida,
um estilo e os modos de ser, um pathos de linguagem e uma chave para a abertura do
universo vibrante e complexo de Espinosa.
No capítulo seguinte, serão abordadas e aprofundadas noções de ética e de moral
desde pensadores que marcaram o pensamento da civilização ocidental, tais como Aristóteles
na Antiguidade, e Santo Agostinho na Idade Média pois tais noções auxiliam a compreender
melhor o pensamento espinosista.
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CAPÍTULO 2
DIFERENCIANDO ÉTICA E MORAL
Ilustração de José Otávio Femino Zamgirolami, 2008
O homem que é dirigido pela Razão,
não é obrigado a obedecer pelo temor.
Baruch de Spinoza
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Espinosa foi inovador e até considerado imoral, pois para ele ética e moral ocupam
lugares diferentes. A primeira tem a ver com a potência e os afetos; a segunda, com dever.
Tanto Espinosa quanto Nietzsche negaram o dever e apenas se ocuparam de entender o que
aumenta ou diminui a potência para a vida. No entanto, é interessante conhecer as concepções
trazidas por filósofos como Aristóteles, Agostinho e Deleuze, pois através destes de-se
perceber focos diferentes no que se refere ao termo ética.
Aristóteles, 384 anos antes de Cristo, foi discípulo de Platão, porém, opõe-se ao seu
dualismo ontológico. Para este filósofo a idéia não existe separada dos indivíduos concretos,
que são o único existente real; a idéia existe somente nos seres individuais. Percebeu que,
acima de todas as questões do mundo sico, havia questões sobre qual vida, a melhor vida, o
que é a virtude e como encontrar a felicidade e a satisfação. Aristóteles inicia reconhecendo
que o objetivo da vida não é a bondade pela bondade, mas a felicidade (eudaimonia)
(DURANT, 2000, p. 90).
Segundo Aristóteles, a Ética deverá responder à pergunta: quais os bens da vida
humana e como classificá-los hierarquicamente? Portanto, sua finalidade como saber prático é
responder à pergunta socrática: como devemos viver? A resposta imediata à primeira dessas
questões, oferecida por toda a tradição do saber ético grego, é assim enunciada: os
verdadeiros bens da vida humana são os que lhe trazem a verdadeira eudaimonia e, dentre
eles, o mais perfeito é aquele cuja posse é fonte da eudaimonia mais perfeita; a resposta para
tais questões socráticas encontra, pois, na Ética, como ciência dos bens da vida humana, de
sua ordenação segundo o grau de perfeição que lhes compete, e da forma de eudaimonia que
deles resulta (LIMA VAZ, 2002, p. 120).
Para ele, a principal condição para a felicidade, excluindo certos pré-requisitos sicos,
é a vida do ser baseada na razão. A vida virtuosa, em Aristóteles, é a vida feliz, não como algo
passageiro, mas como algo ligado ao desenvolvimento total do homem. A função própria do
48
homem é a racionalidade. A forma de reali-la é a vida virtuosa. A virtude, ou melhor, a
excelência, dependerá de um julgamento claro, autocontrole, simetria de desejos, mestria dos
meios. O caminho para se chegar à excelência é o caminho do meio termo justo.
Assim, entre a covardia e o arrojo está a coragem; entre a avareza e a extravagância,
a liberalidade; entre a indolência e a ganância está a ambição; entre a humildade e o
orgulho, a modéstia; entre o segredo e a loquacidade, a honestidade; entre a
casmurrice e a palhaçada, o bom humor; entre a belicosidade e a bajulação, a
amizade; entre a indecisão de Hamlet e a impulsividade de Dom Quixote, o
autocontrole. (DURANT, 2002, p. 91)
O meio-termo justo, entretanto, flutua com as circunstâncias colaterais de cada
situação e se revela à razão madura e flexível. A excelência, não é um ato, mas um hábito.
Nós somos aquilo que fazemos repetidas vezes. É pela prática de boas ações que nos
tornamos virtuosos.
Em seu livro Ética a Nicômaco (1979), Aristóteles afirma que os atos que estão de
acordo com as virtudes têm determinado caráter, não se segue que sejam praticados de
maneira justa ou temperante. Também é mister que o agente se encontre em determinada
condição ao praticá-los: em primeiro lugar deve ter conhecimento do que faz; em segundo,
deve escolher os atos, e escolhê-los por eles mesmos; e em terceiro, sua ação deve proceder
de um caráter firme e imutável (1979, p. 70). É pela prática de atos justos que se gera o
homem justo, e pela prática de atos temperantes, o homem temperante; sem essa prática,
ninguém teria sequer a possibilidade de tornar-se bom.
Ainda nesta mesma obra, Aristóteles define o que é a virtude. Para ele os estados da
alma são divididos em paixões, disposições, faculdades. A virtude deve pertencer a uma
destas. As paixões são sentimentos acompanhados de prazer ou dor; o que chamamos de
emoções. Em Aristóteles, apetite é epithimia, geralmente ligado a desejos carnais. As paixões
representam uma certa inquietação da alma. Por faculdades entende-se a capacidade de sentir
as paixões. Por disposição de caráter, forma de ser, maneira de ser, hábito, podemos
49
classificá-las em boas ou más. Este autor afirma que as virtudes não são nem paixões nem
faculdades, mas disposição de caráter. Aristóteles conclui que:
A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com escolha e consistente
numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual é determinada por um
princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática. E é um meio-
termo entre dois vícios, um por excesso e outro por falta; pois que enquanto os
vícios ou vão muito longe ou ficam aquém do que é conveniente no tocante às ações
e paixões, a virtude encontra e escolhe o meio-termo. (1979, Em, VI, p. 72)
Para este filósofo, o segredo da felicidade também está em nós termos um grau de
bens exteriores. A amizade é o mais nobre auxílio externo à felicidade. Ela é mais importante
que a justiça, pois quando ela existe, a justiça é desnecessária. A amizade representa uma
alma em dois corpos (DURANT, 2000, p. 92). Em seu livro, Ética a Nicômaco, parte VIII,
Aristóteles afirma que a amizade é querer para alguém o que se pensa ser bom; ou seja, querer
o bem para alguém. Esse desejo tem em vista o outro e não a si próprio [aqui um aspecto
social em Aristóteles]. A amizade é uma disposição de caráter (héxis), e o amor é um
sentimento (pathos). Somos afetados pelo amor, mas a amizade é racional, ligada à virtude.
Podemos ter amor sem reciprocidade, já a amizade, não. Assim, a essência da felicidade
está dentro de nós, no conhecimento perfeito e na clareza da alma. A felicidade deve ser um
prazer da mente; e podemos confiar nela quando ela resulta da busca ou da captura da
verdade (DURANT, 2000, p. 93).
O que se percebe com essa exposição é que o pensamento de Artistóteles revela um
pouco das experiências éticas originadas no curso da transformação da cultura grega
tradicional como cultura da razão e os ideais éticos que florescem como ramos da árvore que
cresce frondosa nesse novo clima cultural: a filosofia. Os ideais éticos e a prática
correspondente têm como alvo a consecução da eudaimonia ou da plena realização humana, a
ser obtida pelo próprio ser humano seguindo os caminhos traçados pela razão; de tal forma
50
que poderíamos compreender ética como um caminho em que a razão conduz à plena
realização humana conhecida como felicidade.
Vistas as considerações de Aristóteles sobre ética, vejam-se agora as noções de moral
concebidas por Agostinho (354-430), para assim perceber que ambas são termos diferentes,
pois originalmente concebidas com focos também diferentes. Considerou-se importante a esta
pesquisa, além de caracterizar a ética na cultura grega, apresentar o impacto e as mudanças
que o Cristianismo trouxe na história da ética. O anúncio feito por Jesus sobre o advento do
Reino de Deus, não obstante o breve tempo da sua pregação, de um a três anos na Galiléia e
em Jerusalém, trouxe com uma das mais profundas, se não a mais profunda, revolução ética
que a hisria conhece. O acolhimento do anúncio do Reino de Deus implica igualmente a
aceitação de um novo ethos que recebe como que sua carta de fundação na proclamação por
Jesus das normas fundamentais da moral do Reino reunidas, em sua versão mais longa, pelo
evangelista Mateus no chamado Sermão da Montanha. Ali é proposta uma inédita e
surpreendente tábua de valores, elevando as prescrições do ethos da Lei a uma altura
infinitamente distante da rotina legalista dominante na cultura ética do judaísmo tradicional
(LIMA VAZ, 2002).
O Cristianismo é originariamente um ramo da tradição bíblico-palestinense que se
destaca pouco a pouco em meio à efervescência sectária que agitava a Palestina nos fins do
século I a.C. e nos começos do século I d.C. Expandindo-se rapidamente pelo ecúmeno
mediterrâneo, o Cristianismo distancia-se definitivamente, após algumas hesitações iniciais,
dos condicionamentos geográficos, religiosos culturais e poticos do sectarismo palestinense
e do culto oficial, adquirindo a identidade própria com a qual irá influir decisivamente no
curso da história do Ocidente. Será a versão universalista do Cristianismo que irá, sobretudo
por obra da pregação e do ensinamento de São Paulo, orientar definitivamente o Cristianismo
51
primitivo no sentido de tornar-se uma religião universal e, finalmente, a religião dominante do
ecúmeno mediterrâneo e de todo o mundo antigo (LIMA VAZ, 2002, p. 166-167).
O corpo de doutrinas que poderia ser denominado propriamente uma Ética cristã,
aparece já plenamente constituído por Santo Agostinho, que nasceu em Tagaste, na Numídia
(Africa proconsularis, segundo a nomenclatura romana). Em 384, devido a suas ambições
literárias e profissionais, foi para Milão que era considerada a cidade imperial. Um conjunto
de situações levaram-no ao abandono definitivo do maniqueísmo, ele se volta à descoberta do
mundo inteligível e finalmente à plena conversão ao catolicismo: a participação dos sermões
do bispo Santo Ambsio, a presença de sua e nica, que o acompanhou a Milão, e, em
386, à leitura de livros neoplatônicos e a aproximação ao rculo neoplatônico-cristão,
florescente naquela cidade, que gozava das simpatias de Ambrósio. Após ser batizado em
387, permanece cerca de um ano em Roma, depois retorna a Tagaste, onde funda uma
comunidade religiosa e passa a viver como monge. Em 391 é ordenado sacerdote pelo bispo
Aurélio que, em 395, o consagra seu bispo auxiliar. Tendo sucedido Aurélio, Santo Agostinho
dedica inteiramente as últimas décadas da vida ao trabalho pastoral e às suas obras exegéticas
e teológicas (LIMA VAZ, 2002).
Em sua obra, Agostinho, pela primeira vez com nitidez inconfundível na história
literária e intelectual do Ocidente, mostra o Eu como categoria fundadora da Antropologia.
Em cada um de seus grandes itinerários intelectuais, traz o apelo à experiência interior e à
busca dos caminhos da interioridade. Neles se entrelam de maneira original e profunda uma
experiência intelectual e moral, uma experiência religiosa e uma experiência propriamente
cristã.
Nas primeiras conversões de Agostinho, os estágios de sua formação filofica são
assinalados. A partir da leitura do diálogo, hoje perdido, Hortensius, de M. T. Cícero, uma
exortação ao estudo da filosofia, foi despertado nele o amor à sabedoria que acabou se
52
tornando o impulso mais poderoso de sua vida interior. Este fato culminou para sua entrega a
leitura de livros filoficos, levando-o a penetrantes reflexões morais sobre o costume e a lei
moral, a lei divina, a natureza como norma e as faltas morais. Em Milão, aconteceu a segunda
conversão de Agostinho, onde passou a conviver com o círculo neoplatônico. Abandonando
definitivamente o maniqueísmo, critica o ceticismo e adere plenamente à teoria do
conhecimento e à metafísica neoplatônicas. A partir de sua conversão à fé cristã (386-387),
Agostinho consagra-se inteiramente ao estudo e meditação da Sagrada Escritura, ao
conhecimento e assimilação da tradição teológica cristã. Em sua obra De diversis
quaestionibus libri e em sua resposta a Simpliciano, sucessor de Santo Ambsio em Milão
(De diversis quesionibus ad Simplicianum, libri duo), contendo uma interpretação dos textos
paulinos que ensinam a absoluta gratuidade da graça, a teologia de Santo Agostinho recebeu
sua feição definitiva (LIMA VAZ, 2002).
Desta forma, o corpo doutrinal agostiniano apresentou uma estrutura especificamente
teológica na qual, entretanto, serão integradas organicamente articulações filosóficas, de
procedência, sobretudo neoplatônica que, consideradas em sua coerência e adequação à
intentio teológica, irão caracterizar a filosofia cris de Agostinho.
Depois de se tornar Bispo e pastor, consagrou sua atividade literária exclusivamente
aos grandes tratados como o De Trinitate ou o De Civitate Dei e em comentários à Sagrada
Escritura, ou ainda na catequese popular nos Sermões. Essa imensa obra é rica de
ensinamentos de natureza ética, tanto teóricos quanto práticos.
Segundo Lima Vaz (2002), as grandes linhas da Ética de Santo Agostinho podem ser
vistas a partir da categoria fundamental de ordem. Trata-se de uma idéia diretriz que guia a
reflexão agostiniana nos diversos campos em que se exerceu sua inteligência da fé, desde os
problemas de natureza ética às mais altas questões especulativas. A idéia de ordem também
ilumina a experiência interior e a contemplação do mundo exterior, as duas fontes imediatas
53
do saber para Agostinho, como procede igualmente das duas fontes últimas que alimentam
esse saber: a tradição da filosofia antiga e a tradição bíblico-cristã.
O fim da moralidade é a manutenção da reta ordem, pois esta se identifica à bondade
objetiva, ao passo que o mal consiste na transgressão culposa desta ordem. Mesmo quando a
reta ordem é perturbada pela vontade humana, a justiça divina é suficientemente poderosa
para restaurar o equilíbrio numa ordem superior. Por isso, a tarefa moral do homem resume-se
na execução fiel das normas eternas. A força motriz para a realização da ordem moral é o
amor, que remata na caridade. Sua força orientadora é a vontade, que culmina na liberdade.
Sua consumação é a ordem da caridade (BOEHNER, 1995, p. 188).
Portanto, o problema central da moralidade é o da reta escolha das coisas a serem
amadas. Apesar de o objeto último de nosso querer ser o próprio Deus, trata-se apenas de
determinar e de querer o que é realmente apto a conduzir-nos a Ele. O que pode levar-nos a
Deus é o amor a Deus. A caridade é o coração da moralidade e a própria vida moral. O
começo do amor é o começo da justiça; o progresso no amor é o progresso na justa; a
perfeição do amor é a perfeição da justiça. Dominada pelo amor, a alma cumpre cabalmente a
lei divina (BOEHNER, 1995).
Para Agostinho a existência da vontade livre não é um problema. Temos consciência
de nos determinarmos e de sermos responsáveis por nossos atos. O problema propriamente
agostiniano diz respeito ao uso desta vontade livre, bem como ao seu valor e à sua bondade. O
poder da vontade para optar livremente entre o bem e o mal baseia-se na sua aptidão para
participar da felicidade. Podemos usar a vontade tanto para o bem quanto para o mal. Nosso
destino é a participação na felicidade, o que indica a presença em nós de uma vontade capaz
de tomar posse da felicidade. A felicidade é um bem próprio e pessoal. Aqui está bem claro
que Agostinho se aproxima demais a Aristóteles, mas a base dessa felicidade de Agostinho
54
difere radicalmente da de Aristóteles por ter aquele se colocado dentro do Cristianismo
medieval e este no domínio da razão.
Porém, assim como a vontade pode fazer seus estes bens, ela pode também rejeitá-los
e regozijar-se egoisticamente no seu próprio bem, ao invés de buscar a felicidade no bem
incomutável e comum a todos: nisto consiste o pecado. Quando a vontade aspira a governar-
se por si mesma, ou quando procura conhecer o que não lhe compete, ou ainda, quando cede
aos desejos da carne, o homem exclui da verdadeira vida, passando a levar uma vida de morte
(BOEHNER, 1995).
Segundo a doutrina agostiniana, nenhuma criatura é auto-suficiente, quer para existir,
para conhecer ou para viver. Todo bem procede de Deus: a existência pela criação, a verdade
pela iluminação ou fortalecimento de ordem moral. Somos inteiramente dependentes de Deus,
nossa existência de Sua eternidade, nosso conhecimento das razões eternas de Sua sabedoria,
e nossa vida moral do Seu amor (Id. Ibid.).
Para Agostinho, a maneira como o homem chega a uma vida moral perfeita, importa
atender a dois conceitos fundamentais, que são do utie do frui”. A vida moral se traduz,
forçosamente numa seqüência de atos individuais. Frente a isto, podemos nos posicionar de
duas formas: ou fruímos delas ou delas nos utilizamos. “Fruir” significa afeiçoar-se a uma
coisa por amor a ela mesma. “Usar”, ao contrário, é servir-se de algo para alcançar um objeto
que ama, mas “suposto que tal objeto seja digno de ser amado”, pois um uso ilícito deveria
antes chamar-se de excesso ou abuso (Id. Ibid.).
Para o pensamento agostiniano, Deus merece um amor ilimitado, assim nosso amor
por outros objetos deve ser limitado. Nossa primeira tarefa moral é, pois, a de ajuizar de todas
as coisas segundo o seu verdadeiro valor e de conformar o nosso amor a esta valoração.
Procedendo assim, será instaurada a ordem do amor pela prática da virtude, que outra coisa
o é senão o amor bem ordenado. O vício consiste na inversão desta ordem do amor.
55
O respeito a esta ordem do amor tem por conseqüência a mais perfeita sujeição ao
Criador. E esta sujeão torna os indivíduos livres em face de todas as criaturas. O mais alto
grau de liberdade consiste em não estar sujeito senão a Deus.
Agostinho acredita que a ordem social não é senão um prolongamento da ordem moral
fundamental, ou seja, da reta ordem do amor. A concepção agostiniana da moralidade ou da
vida feliz é inseparável de sua doutrina social: a vida moral e a felicidade pressupõem uma
vida em comunidade. O homem que ama a Deus de -lo também aos seus semelhantes. É
aqui que podemos ver o encontro de Agostinho com Aristóteles, pois a doutrina de Aristóteles
prevê o bem próprio e da comunidade, ou seja, se estende para o social.
Espinosa causou grande polêmica e também trouxe importantes contribuições ao
diferenciar Ética de Moral. Quando diz que: uma única substância que possui uma
infinidade de atributos, Deus sive Natura, sendo todas as criaturas apenas modos desses
atributos ou modificações dessa substância; e, ainda, ao negar a existência de um Deus moral,
criador e transcendental, o filósofo foi odiado e criticado por muitos.
Deleuze (2002, p. 23) apresentou as três teses práticas que fizeram do espinosismo um
objeto de escândalo: a da “consciência”, dos “valores” e das “paixões”. Essas são as razões
que levaram Espinosa a ser acusado de Materialismo, imoralismo e ateísmo. No pensamento
espinosista o corpo é instituído como modelo: “não sabemos o que pode o corpo...”.
Espinosa apontou uma tese chamada paralelismo. Este autor recusou qualquer
superioridade da alma sobre o corpo. O paralelismo aparece na inversão do princípio
tradicional em que se fundava a Moral como empreendimento de dominação das paixões pela
consciência. Segundo a Ética (III, 2, esc), ao contrário, o que é ação na alma é também
necessariamente ação no corpo; o que é paixão no corpo é por sua vez necessariamente paixão
na alma (DELEUZE, 2002, p. 24).
56
Quando Espinosa convida a tomar o corpo como modelo, mostra que o corpo
ultrapassa o conhecimento que se tem, e o pensamento não ultrapassa menos a consciência
que se tem dele. Precisa-se conhecer as potências do corpo para descobrirem-se paralelamente
as potências do espírito que escapam à consciência, para poder-se compará-los. O modelo de
corpo, segundo Espinosa, implica uma desvalorização da consciência em relação ao
pensamento: uma descoberta do inconsciente e de um inconsciente do pensamento, não
menos profundo que o desconhecido do corpo. A consciência é naturalmente o lugar de uma
ilusão, que recolhe efeitos, mas ignora as causas. Partindo desse pensamento pode-se
perguntar; não estaria aqui uma proposta pedagógica de valorização do corpo conjuntamente à
alma, de tal forma que as idéias que advêm do plano da consciência e as potencialidades do
corpo possam ser aproveitados para juntamente potencializarem não apenas a relação do
professor com o aluno, mas principalmente e a partir disso aprimorar a aprendizagem a que se
objetiva a tarefa do professor?. A ordem das causas é uma ordem de composição e
decomposão de relações que afeta infinitamente toda a natureza. Nós, como seres
conscientes, recolhemos apenas o efeito de um corpo sobre o nosso, o efeito de uma idéia
sobre a nossa. As condições em que conhecemos as coisas e tomamos consciência de nós
mesmos condenam-nos a ter idéias inadequadas, confusas e mutiladas, efeitos distintos de
suas próprias causas. A consciência é transitiva, tem apenas um valor informativo de uma
informão ainda necessariamente confusa e mutilada (DELEUZE, 2002, p. 25). Na Segunda
parte de Ética, Espinosa afirma: “As idéias das afecções do corpo humano, consideradas
apenas na sua relação com a alma humana, não são claras e distintas, mas confusas” (prop.
28). Assim, com essa iia Espinosa nos mostra que o corpo em si nada pode sem a alma e
vice-versa, de tal forma que um influencia o outro.
Sendo que a consciência recolhe apenas efeitos, ela supre a sua ignorância invertendo
a ordem das coisas, tomando os efeitos pelas causas. A consciência, além de gerar ilusões, é
57
inseparável da tripla ilusão que a constitui, a ilusão da finalidade, ilusão da liberdade e ilusão
teológica (DELEUZE, 2002, p.26).
Encontra-se na Ética, III, (prop. 9) a definição de desejo e apetite: “... entre o apetite e
o desejo não há nenhuma diferença, a não ser que o desejo se aplica geralmente aos homens
quando têm consciência do seu apetite e, por conseguinte, pode ser assim definido: o desejo é
o apetite de que se tem consciência.” É importante a definição real do desejo que mostre ao
mesmo tempo a causa” pela qual a consciência é como que cavada no processo do apetite. O
apetite nada mais é que a própria essência do homem, da natureza da qual se segue
necessariamente o que serve para sua conservação. É o esforço para preservar o ser. Este
esforço motiva a agir de forma diferente de acordo com os objetos encontrados, então pode-se
dizer que está a cada instante determinado pelas afecções que vêm nos objetos. Espinosa diz
que “Essas afecções determinantes são necessariamente causa da consciência do conatus”. A
consciência é como sentimento de passagem dessas totalidades menos poderosas às mais
poderosas e inversamente. A consciência tem um valor informativo, de uma informação ainda
necessariamente confusa e mutilada (DELEUZE, 2002, p. 27).
No sistema de Espinosa encontrar-se a desvalorização de todos os valores e,
sobretudo, do bem e do mal. O autor lembra que os fenômenos que se agrupam sob a
categoria do mal (doenças, morte) o deste tipo: mau encontro, indigestão, envenenamento,
intoxicação, decomposição de relações. O Bem e o Mal não existem, mas o bom e o mau.
O bom existe quando um corpo come diretamente a sua relação com o nosso, e, com toda
ou com uma parte de sua potência, aumenta a nossa. O mau para nós existe quando um corpo
decompõe a relação do nosso, ainda que se componha com as nossas partes, mas sob outras
relações que aquelas que correspondem à nossa essência. Bom e mau, neste momento, se
caracterizando de maneira objetiva, porém relativo e parcial; o que convém ou não com a
nossa natureza. Como conseqüência, um segundo sentido para bom e mau, subjetivo e
58
modal, qualificando dois tipos, dois modos de existência do homem: será dito bom aquele que
se esforça por organizar os encontros que convêm com sua natureza e, assim, aumentam sua
potência. Diz-se mau, aquele que vive ao acaso dos encontros, que se contenta em sofrer os
prejuízos, pronto a gemer e a acusar toda vez que o efeito sofrido se mostra contrário e lhe
revela a sua própria impotência. Isto é a Ética, uma tipologia dos modos de existência
imanentes, que substitui a Moral, aqui vista como aquela que relaciona sempre a existência a
valores transcendentes. A oposição dos valores (Bem/Mal) é substitda pela diferença
qualitativa dos modos de existência (bom/mau). A ilusão dos valores se confunde com a
ilusão da consciência: a consciência por ser essencialmente ignorante se contenta em esperar
e recolher o efeito, desconhece toda a Natureza. Aquilo que não se compreende se moraliza
(DELEUZE, 2002, p. 29).
Segundo Deleuze a lei, moral ou social, não traz conhecimento algum, não nada a
conhecer. A lei supre o conhecimento naqueles que são incapazes de obtê-lo em função do
seu modo de existência. Mas, de qualquer forma, não deixa de se manifesta-se uma diferença
de natureza entre o conhecimento e a moral, entre a relação mandamento-obediência e a
relação conhecido-conhecimento. Espinosa considera que o drama da teologia, a sua
nocividade, não são apenas especulativos; provêm da confusão prática que ela inspira entre
essas duas ordens diferentes por natureza. A lei é sempre a instância transcendente que
determina a oposição dos valores Bem/Mal, mas o conhecimento é sempre a potência
imanente que determina a diferença qualitativa dos modos de existência bom/mau.
Também apresentou-se no espinosismo a desvalorização de todas as paixões tristes. A
Ética caracteriza o homem do ressentimento, para quem qualquer tipo de felicidade é uma
ofensa, e faz da miséria ou da impotência sua única paixão. Na Ética, IV, Espinosa escreve:
Os que não sabem fortificar os espíritos dos homens, mas sim deprimi-los, esses são
insuportáveis para si mesmos. Dque muitos tenham preferido viver no meio dos
animais a viver entre os homens. Como as crianças e os adolescentes que não podem
59
suportar de ânimo igual as censuras de seus pais se refugiam no serviço militar, eles
preferem os inconvenientes da guerra e a autoridade de um tirano às comodidades da
família e às admoestações paternas, e suportam que lhes imponham qualquer carga,
desde que se vinguem dos pais... (p. 269).
Em Espinosa, efetivamente, uma filosofia da “vida” que denuncia tudo o que nos
separa da vida, todos esses valores transcendentes que se orientam contra a vida, vinculados
às condições e às ilusões da consciência. Para ele, o que perverte a vida é o ódio contra si
mesmo, a culpabilidade. A análise de Espinosa é tão profunda que consegue encontrar, até na
esperança e na segurança, o grão de tristeza que basta para fazer delas sentimentos de
escravos. Através do espinosismo são denunciadas todas as falsificações da vida, todos os
valores em nome dos quais se deprecia a vida: quando o se vive, mantém-se apenas uma
aparência de vida, pensa-se apenas em evitar a morte e toda a vida é um culto à morte
(DELEUZE, 2002, p. 32).
As paixões tristes têm suas raízes na teoria das afecções. Um indivíduo é antes de mais
nada uma essência singular, ou seja, um grau de potência. A esse grau de potência
corresponde certo poder de ser afetado. Essa relação, finalmente, subsume partes, esse poder
de ser afetado é necessariamente preenchido por afecções. Desta forma, os animais são
definidos menos por noções abstratas de nero e de espécie do que pelo poder de serem
afetados. A consideração dos gêneros e das espécies implica ainda uma “moral”, enquanto a
Ética é uma etologia que, para os homens e para os animais, considera em cada caso somente
o poder de ser afetado. É importante distinguir duas espécies de afecção: as ações, que se
explicam pala natureza do indivíduo afetado e derivam de sua essência; as paixões, que se
explicam por outra coisa e derivam do exterior. Então, o poder de ser afetado apresenta-se
como potência para agir, na medida em que se supõe preenchido por afecções ativas,
apresentando-se como potência para padecer, quando é preenchido por paixões. As paixões
tristes representam o grau mais baixo da potência de agir, é sempre impotência. Quando
encontra-se um corpo exterior que não convém ao nosso, nossa potência de agir é diminuída
60
ou impedida, sendo estas paixões correspondentes à tristeza. Mas, quando encontra-se um
corpo que convém ao nosso, diríamos que sua potência é somada à nossa: as paixões que nos
afetam são de alegria e assim nossa potência de agir é ampliada. A Ética é necessariamente
uma ética da alegria: somente a alegria é válida, a alegria permanece e nos aproxima da
ação e da beatitude da ação (DELEUZE, 2002, p. 33-34).
61
CAPÍTULO 3
O ESPINOSISMO E A EDUCAÇÃO MIGRAÇÕES POSSÍVEIS
Ilustração de José Otávio Femino Zamgirolami, 2008
Para cada coisa existente há necessariamente
uma certa causa emvirtude da qual ela existe.
Baruch de Spinoza
62
A escola é uma instituição social fundamental para as sociedades se desenvolverem. O
trabalho dos professores e suas interações concretas com seus alunos fazem parte do processo
sociabilizador, o qual estimula os indivíduos que se encontram no ambiente escolar a
alcançarem o objetivo principal dessa instituição, que é o de potencializar o sujeito para seu
convívio na sociedade. Para entender melhor essa teia social existente na escola, citou-se o
pensamento de dois autores, que, embora apresentassem posturas diferentes de Espinosa,
favoreceram o entendimento dessa questão.
É comum encontrar literaturas que apresentam o educar como a principal tarefa do
professor. Mas essa questão não é tão simples assim, quando se encontra com os vários
sentidos, todos localizados num determinado tempo e espaço, que a palavra educar ocupa.
Tardif (2004) escreve que o ofício do professor perpassa todos os seus saberes. Faz
uma reflexão sobre os conhecimentos, o saber-fazer, as competências e as habilidades que os
professores mobilizam diariamente nas salas de aula e nos outros ambientes da escola, a fim
de realizar concretamente as suas diversas tarefas. Para esse autor,
o saber não é uma coisa que flutua no espaço: o saber dos professores é o saber deles
e está relacionado com a pessoa e a identidade deles, com sua experiência de vida e
com a sua história profissional, com as suas relações com os alunos em sala de aula
e com os outros atores escolares na escola, etc. (p. 11)
Por isso, para falar sobre as relações na escola, fez-se necessário entender também
sobre o saber no nível de docente. Tardif (2004) faz uma articulação entre os aspectos sociais
e individuais do saber dos professores. Quando esse autor relaciona as dimensões social e
individual no saber docente, reporta-se a Espinosa, que, embora tenha vivido no século XVII,
destacava que o conhecimento é fruto das boas relações interiores, do indivíduo com ele
mesmo e, exteriores, do indivíduo com o mundo ao redor, classificadas como afecções.
Tardif (2004) afirma que o saber docente é social: porque é partilhado por todo um
grupo de agentes; porque sua posse e utilização repousam sobre todo um sistema que vem
63
garantir sua legitimidade e orientar sua definição e utilização; porque seus próprios objetos
são objetos sociais, isto é, práticas sociais; porque o que os professores ensinam e sua maneira
de ensinar evoluem com o tempo e as suas mudanças sociais; porque é adquirido no contexto
de uma socialização profissional, no qual é incorporado, modificado, adaptado em função dos
momentos e das fases de uma carreira, ao longo de uma história profissional em que o
professor aprende a ensinar fazendo o seu trabalho (p. 12). Ou seja, há nessas palavras, em
que pese a absolutização do social, um constante movimento do fazer docente.
Ainda, segundo esse autor, é impossível compreender a natureza do saber dos
professores sem colocá-lo em íntima relação com o que os professores são, fazem, pensam e
dizem, nos espaços de trabalho cotidianos. Entende-se assim que o saber dos professores é
social e , ao mesmo tempo, é o saber dos atores individuais que possuem e o incorporam à sua
prática profissional para adaptá-la e transformá-la (p. 15).
O docente, geralmente, se encontra em interação com outras pessoas, a começar pelos
alunos. A atividade docente é realizada concretamente numa rede de interações com outras
pessoas, num contexto onde o elemento humano é determinante e dominante, e no qual estão
presentes símbolos, valores, sentimentos, atitudes, que são passíveis de interpretação e
decisão. Essas interações exigem, portanto, dos professores, a capacidade de se comportarem
como sujeitos [agentes], como atores, de serem pessoas em interação com pessoas (p. 50).
Tardif acredita que o professor se baseia em vários tipos de juízos práticos para
estruturar e orientar sua atividade. Para atingir fins pedagógicos, o professor também se
fundamenta em juízos provenientes de tradições escolares, pedagógicas e profissionais que ele
mesmo assimilou e interiorizou. Valores, normas, tradições, experiência vivida são elementos
e critérios a partir dos quais o professor emite juízos profissionais (2004, p. 66). Esses fatores
potencializaram o professor que é quem deverá potencializar da mesma forma seus alunos, ou
64
seja, o professorpotencializará em seu aluno, seu objeto, aquilo que tem potencializado em
si.
Os professores também atuam sobre seres humanos individualizados e socializados ao
mesmo tempo. As relações que eles estabelecem com seu objeto de trabalho são, portanto,
relações humanas. Embora ensinem a grupos, os professores não podem deixar de considerar
as diferenças individuais, pois são indivíduos que aprendem, e os grupos, por seqüência disso.
Esse componente individual significa que as situações de trabalho se referem a situações
muitas vezes complexas, marcadas pela instabilidade, pela unicidade, pela particularidade dos
alunos, que são obstáculos inerentes a toda generalização, às receitas e às técnicas definidas
de forma definitiva (TARDIF, 2004, p. 129).
Os alunos são heterogêneos e, logo, não possuem as mesmas capacidades pessoais
nem as mesmas possibilidades sociais, por terem sido previamente estimulados a serem o que
e como são. As suas possibilidades de ação variam, a capacidade de aprenderem, assim como
as possibilidades de se envolverem numa tarefa, entre outras coisas. Os alunos igualmente são
seres sociais cujas características socioculturais despertam atitudes e julgamentos de valor nos
professores já que trazem para o convívio da escola todo uma vivência prévia. Por outro lado,
o aluno também sofre inúmeras influências sobre as quais o professor o exerce nenhum
controle (TARDIF, 2004, p. 128).
No trabalho docente ainda existe o aspecto afetivo, que se baseia em emoções, em
afetos, na capacidade não somente de pensar nos alunos, mas igualmente de perceber e de
sentir suas emoções, seus temores, suas alegrias, seus próprios bloqueios afetivos (p. 130).
Uma das atividades dos professores consiste em fazer com que as ações dos alunos se
relacionem com as suas, ao invés de se oporem a elas, pois os alunos são ativos e capazes de
oferecer resistência às iniciativas do professor. A escola não é escolhida livremente, é
imposta, e isso, inevitavelmente, suscita resistências importantes em certos alunos (p. 131).
65
O ser humano é “um objeto complexo”, pois envolve uma natureza sica, biológica,
individual, social e simlica ao mesmo tempo. Em razão dos professores trabalharem com
seres humanos, a sua relação com o seu objeto de trabalho é fundamentalmente caracterizada
por ser complexa. Assim, o trabalho pedagógico dos professores consiste precisamente em
gerir relações sociais com seus alunos. Portanto, ensinar é fazer escolhas constantemente em
plena interação com os alunos, visando ao bom encontro. Nessas escolhas estão envolvidas as
experiências dos professores, seus conhecimentos, convicções e crenças, seus compromissos
com o que fazem, suas representações a respeito dos alunos e, evidentemente, dos próprios
alunos (p. 132). os alunos reagem a essas escolhas, positiva ou negativamente, resultando
numa interação em que haverá uma exploração ou não de suas potências.
De acordo com as pesquisas de Tardif, os professores utilizam, em suas atividades
cotidianas, conhecimentos práticos provenientes do mundo vivido, dos saberes do senso
comum, das competências sociais. Justamente por seu objeto ser um sujeito, suas técnicas não
se apóiam nas ciências positivas, mas sobretudo nos saberes cotidianos, em conhecimentos
comuns, baseados na linguagem natural. De fato, por lidar com seres que se expressam, o
professor precisa desenvolver comportamentos que sejam significativos para eles, e não
somente para si mesmo. O mesmo autor afirma que:
Nessa perspectiva, o principal problema da atividade docente não é provocar
mudanças causais num mundo objetivo- por exemplo, no cérebro dos alunos- mas
obter o empenho dos atores considerando os seus motivos, isto é, os seus desejos e
os significados que atribuem à sua própria atividade de aprendizagem. (2004, p.
137)
Tardif acrescenta que no que se refere às tecnologias dos professores, a maioria das
vezes, eles precisam tomar decisões e desenvolver estratégias de ação em plena atividade, sem
poderem se apoiar num saber-fazer” técnico-científico que lhes permita controlar a situação
com toda certeza.
66
O trabalho docente, no cotidiano, é fundamentalmente um conjunto de interações,
portanto, exige constantemente um investimento profundo, tanto do ponto de vista afetivo
como cognitivo, nas relações humanas com os alunos, envolvendo-se pessoalmente nessas
interações.
Tardif também relata a dimensão ética dos trabalhadores do ensino. Para ele, os
ofícios ou profissões de relações humanas apontam para questões de poder, de maneira
intrínseca, mas também para problemas de valor, pois seus próprios objetos são seres
humanos capazes de emitir juízos de valor e possuem, como seres humanos, direitos e
privilégios. Essa dimensão ética se manifesta concretamente no ensino de alguma forma (p.
145).
Inicialmente, ela se manisfesta, no trabalho com os grupos de alunos. O fato de
trabalhar com grupos levanta um problema ético particular, o da eqüidade do tratamento. A
atividade docente inclui agir sobre grupos, atingindo os indivíduos que os comem. De uma
maneira ou de outra, cada professor deve assumir essa tensão constante entre o uso de padrões
gerais e os casos individuais.
A dimensão ética se manifesta, em seguida, no componente simbólico do ensino. O
professor domina algo que os alunos não dominam. Deste modo, entra a questão de como o
professor vai dar acesso a esses códigos simbólicos que ele domina. Esse problema passa a ser
ético, pois, para resolvê-lo, o professor deve entrar num processo de interação e de abertura
com o outro com um outro coletivo de modo a dar-lhe acesso ao seu próprio donio.
Finalmente, a dimensão ética se manifesta na escolha dos meios empregados pelo
professor. Assim como um médico é avaliado pela qualidade de sua decisão médica e de seu
ato, um professor também é julgado de acordo com sua prática profissional, revelado
diretamente nos atos pedagógicos por ele realizados. Esse problema é bastante delicado e até
as pesquisas feitas mostram que a avaliação do ensino é sempre uma construção na qual
67
interfere um grande número de critérios utilizados por atores com expectativas e percepções
freqüentemente muito diferentes: alunos, pais, administradores, professores, conselheiros
pedagógicos, funcionários, etc. Não existem critérios absolutos, coerentes e perfeitamente
objetivos para avaliar um trabalho (TARDIF, 2004, p. 147).
Coll (2002) também complementa algumas questões colocadas por Tardif e traz
outras ponderações interessantes referentes à ação, interação e construção do conhecimento
em situações educativas, que auxiliam no entendimento das relações.
Segundo este autor, o caráter construtivo do processo de aquisição do conhecimento
passou da iia de um ser humano relativamente fácil de moldar e dirigir a partir do exterior,
para um ser humano que seleciona, assimila, processa, interpreta e confere significações aos
estímulos e configurações de estímulos. Essa nova perspectiva de aquisição do conhecimento
contribui, de um lado, para o questionamento de alguns métodos de ensino essencialmente
expositivos, que concebem o professor e o aluno como simples transmissores e receptores de
conhecimentos; e, de outro, para revitalizar as propostas pedagógicas que situam na atividade
auto-iniciada, e sobretudo autodirigida, o ponto de partida necessário para uma verdadeira
aprendizagem (COLL, 2002, p. 100).
Em outras palavras, identificou-se a construção do conhecimento como uma atividade
auto-estruturante cuja dinâmica é regida por algumas leis de tipo endógeno, que balizam e
limitam as possibilidades da intervenção pedagógica. Jean Piaget trouxe, semvida, o
enfoque cognitivo-evolutivo que maior incidência teve sobre a educação escolar (Id. Ibid., p.
101).
Porém, esta nova visão o implica, em absoluto, que seja impermeável à influência
do professor e da intervenção pedagógica. Mais ainda, razões para conjecturar que é esta
influência que faz com que a atividade do aluno seja ou não auto-estruturante e tenha,
definitivamente, um maior ou menor impacto sobre a aprendizagem escolar. Isto supõe
68
desclocar o centro de interesse da atividade auto-estruturante para os processos de interação
professor/aluno que a desencadeiam e a promovem (Id. Ibid., p.102).
A função do professor tem importância decisiva como orientador, guia ou facilitador
da aprendizagem, já que lhe compete criar ótimas condições para que se produza uma
interação construtiva entre o aluno e o objeto de conhecimento. No entanto, não é tão simples
assim saber quais são estas condições e o que o professor deve fazer concretamente para guiar
e facilitar a aprendizagem dos alunos. O ato educacional não consiste unicamente num
processo de aprendizagem. Há, também, uma vontade expcita de incidir ou intervir no
processo de aprendizagem do aluno, ou seja, não uma aprendizagem desejável do aluno
como também uma vontade manifesta do professor de incidir sobre tal aprendizagem (Id.
Ibid., p. 103).
Os processos escolares de ensino/aprendizagem são, em essência, processos
interativos com três vértices: o aluno que está levando a cabo uma aprendizagem; o objeto ou
os objetos de conhecimento que constituem o conteúdo da aprendizagem; e o professor que
age, isto é, que ensina, com finalidade de favorecer a aprendizagem dos alunos. A
aprendizagem escolar deve levar em conta as atuações do professor que, encarregado de
planejar sistematicamente “encontros” felizes entre o aluno e o conteúdo da aprendizagem,
aparece como um mediador, dentro de uma proposta construtivista, e determina, com suas
intervenções, que as tarefas de aprendizagem ofereçam uma maior ou menor margem para a
atividade auto-estruturante do aluno (Id. Ibid., p. 141).
Na relação educacional professor-aluno, a avaliação e interpretação contínua das
dificuldades da criança, a continncia das intervenções, a adequação do nível de ajuda ou de
diretividade ao nível de competência infantil, a significância do contexto de interação, o
estabelecimento de uma definição intersubjetiva e negociada da situação, a utilização de
formas apropriadas de mediação semiótica; em suma, todos os fatores devem ser construídos
69
laboriosamente na relação educacional escolar para assegurar o ajuste da ajuda pedagógica
(Id. Ibid., p. 143).
Ainda dentro de uma proposta construtivista, os métodos de ensino não são bons ou
maus, adequados ou inadequados, em termos absolutos, e sim em função de que a ajuda
pedagógica que ofereçam esteja ajustada às necessidades dos alunos. Conseqüentemente, as
propostas curriculares não devem prescrever um método de ensino determinado, mas
proporcionar critérios geris de ajuste da ajuda pedagógica e exemplificá-los. Partindo da fala
de Coll, pode-se trazer as perspectivas de ação que o pensamento de Espinosa contempla, com
relação às queses da prática docente.
Espinosa é considerado um dos pensadores originais da hisria da filosofia. É
considerado por Bertrand Russell “o filósofo dos filósofos” ou o mais nobre e o mais amável
dos grandes filósofos”. Embora tenha influenciado muitos dos que vieram depois dele, seu
pensamento foi amplamente rejeitado em sua época. No entanto, muitas das suas idéias, como
pode-se perceber, continuam atuais e relevantes, não para a sociedade, que vive conflitos
éticos, seja nas relações humanas, seja na potica, na economia, mas também para a prática
docente que está sujeita a conflitos diários. Para tanto, retomam-se alguns aspectos da ética
espinosista, já pontuados no primeiro capítulo, e faz-se uma correlação com o quadro
problemático descrito acima.
Para esse filósofo, o homem é um modo de expressão divina e Deus é a Natureza;
então, esta-se diante de um pensamento que nega a existência de um Deus moral, criador e
transcendente. Como conseqüência, tudo o que existe no mundo natural pode ser
compreendido pela razão humana. Tudo aquilo que é escondido, reservado e envolto em
enigmas e obscuridades, acaba servindo como um instrumento por meio do qual quem tem
acesso a esses saberes pode exercer poder sobre quem não os tem. Quanto mais intensas as
interações e os entendimentos entre as pessoas e, destas com o mundo natural, mais livres elas
70
se tornarão de poderes supostamente superiores, transcendentes e de verdades a elas externas,
muitas das quais incompreensíveis para ditos aqueles “comuns”, sobre os quais se exerce o
poder e dos quais se exige obediência. Os poderes mágicos e saberes ocultos - e o medo e a
esperança que eles suscitam - se baseiam num ponto central: a reserva de saber, que gera a
reserva de poder.
Espinosa afirma que os humanos podem, por meio da razão, conhecer a realidade em
seu todo. Desta forma podem alcançar a liberdade e construir um mundo melhor, livre de
deuses autoritários. Assim, entende-se que quanto mais intensos forem os entendimentos entre
as pessoas, mais independentes as comunidades humanas se tornarão de diretivas vindas de
cima” ou “de fora”.
A filosofia espinosista não oferece conforto ou consolação, mas sim, vias de
autoconhecimento e a autodeterminação. No Tratado da correção do intelecto, ele afirma que
a razão e a imaginação devem ser separadas e que a razão pode conhecer a totalidade do
mundo real, desde que para tanto siga um método adequado. A idéia básica do método
espinosista consiste em examinar o pensamento não apenas depois de estruturado, mas
investigar o processo de sua formação. É apresentado um método de invenção, que corrige,
por uma geometria ótica, a ligação de homem com suas causas. Esse método é eticamente
o moralmente construído (GARCIA, 2007). Procura formas de “melhorar e esclarecer o
intelecto”: é preciso descobrir como o conhecimento é produzido, descobrir a nese do que
se quer conhecer, conhecer pelas causas. O mais importante não é a conclusão que uma
pessoa chega, mas sim, saber como ela chegou a essa conclusão, a esse conhecimento: saber
qual processo ela passou para chegar ao seu pensamento. O método espinosista propõe que
lidemos com a “idéia da idéia” (DELEUZE, 2002). O propósito é examinar o pensamento e o
conhecimento, descobrir seus processos, sua mecânica e sua complexidade com fim de
melhorá-los e levar o indivíduo, a partir de então, a usar seu intelecto para outras funções; o
71
que lhe proporciona liberdade de estruturar sua vida e meio social conforme suas potências.
Ele passa a se autogerir e o mais a ser conduzido. Deleuze (2002) lembra que o Método
“não visa a nos fazer conhecer qualquer coisa, mas a nos fazer compreender a nossa potência
de conhecer. Trata-se, pois, de tomar consciência desta potência: conhecimento reflexivo ou
idéia da idéia.” Este pensamento remete à escola onde geralmente se é induzido no modo
como se deve ver o mundo, como conceituar as coisas. Espinosa dá a possibilidade de
conceituar algo o arrogantemente “é assim”, mas provocativamente perguntando e se
fosse assim?”, abrindo, desta forma, muitos caminhos para o pensar e não para o reproduzir.
De acordo com Espinosa, o corpo é uma máquina complexa, que opera por meio de
estados de movimento e repouso. Seu equilíbrio interno é alcançado por meio de mudanças
constantes, que interagem e se harmonizam com modificações também incessantes do
ambiente. O que acontece no corpo repercute no ambiente e vice-versa. Esse filósofo encara o
corpo como um sistema composto de subsistemas e situado dentro de um sistema maior. O
contexto ambiental é também examinado por Deleuze (2002, p. 130) que, em sua leitura de
Espinosa, diz que nenhum ser vivo pode ser compreendido sem que levem em consideração
suas relações com o ambiente. Podemos perceber que embora Espinosa tenha vivido há três
séculos, ele tinha salientado a importância e a influência do meio exterior para os seres
humanos. Essa idéia veio influenciar muitos estudiosos que vieram depois dele.
Na concepção de Espinosa existe diferença entre apetites e desejos. Os apetites são
pulsões originalmente corporais, como a fome, a sede e as relacionadas à sexualidade. Os
desejos correspondem à consciência dos apetites - são os apetites percebidos no plano
consciente. Para Espinosa, o desejo é a essência do ser humano. Não se desejam as coisas
porque se as consideram boas; ao contrário, elas são consideradas boas porque são desejadas.
Portanto, o desejo é a consciência dos apetites do corpo. Quando se está alienado, os apetites
são levados a extremos. Em seu livro Ética, na parte III, o filósofo apresenta o termo conatus
72
que tem a ver com esses aspectos. Nas proposições VI, VII ele afirma: “Toda a coisa se
esforça, enquanto está em si, por perseverar no seu ser”, e ainda, O esforço pelo qual toda
coisa tende a perseverar no seu ser não é senão a essência atual dessa coisa.” Ou seja, conatus
é esforço que cada coisa faz para continuar a existir em sua integridade, seja em termos de
extensão, seja em termos de pensamento.
A alegria, a felicidade e o amor aumentam a potência para agir; a tristeza e o ódio
fazem o contrário. A relação entre a tristeza e a falta de energia para desejar agir é hoje
comumente encontrado no meio escolar. O aluno que não é estimulado a analisar a estrutura
das coisas e o processo pelo qual as coisas ocorrem, sente-se receptáculo de conhecimento
que se caracteriza apenas por uma assimilação forçada e passiva. o aluno que tem seu
intelecto estimulado a conhecer os processos de formação das coisas, pode se descobrir capaz
de ir além daquilo que recebe como informação, permite-se assim ir além, descobrir novas
coisas e auxiliar na construção do conhecimento em si e de sua sociedade. Logo, ele deixa de
ser um ser puramente passivo/receptivo, para ser um sujeito agente na construção do mundo
em que se insere. Se o aluno não se motiva a potencializar-se, ele pode ver na evasão escolar,
na repetência, a formação de quadros de dificuldade de aprendizagem e num estado de sem-
razão que a escola passa a ter em sua existência. O conatus é aquilo que nos impele a buscar
as paixões alegres e evitar as paixões tristes. Então, se a escola e o professor não provocam no
aluno o desejo pelo aprender a partir das potencialidades do aluno estimuladas no ambiente
escolar, este arrumará uma forma de fugir dessa situação, para encontrar algo que o reaviva.
Se o professor afeta seu aluno positivamente, também vai se sentir recompensado e valorizado
por seu trabalho e, conseqüentemente, sua potência para agir aumentará.
Para Espinosa, do encontro dos corpos e das idéias, emergem tanto a composição de
forças como a decomposição da coesão das partes, conforme um quadro de afetações que é
extensivo a toda a natureza. Enquanto seres conscientes recolhe-se os efeitos destas relações:
73
a alegria, na composição dos corpos e idéias; a tristeza, quando tem-se decomposta a própria
coerência na relação destrutiva com outro corpo ou iia. Isto mesmo que não se saibam as
regras que constituem as relações.
Esse filósofo se refere aos homens como eles são na realidade: duros, frios, voltados
para o auto-interesse - mas também altruístas, generosos e compassivos. O ser humano é ao
mesmo tempo razão e emoção, raciocínio e paixão. Na concepção de Espinosa, se atinge a
potência para agir mediante um esforço racional. É por meio da razão que as idéias se tornam
claras, e se torna capaz de compreender as paixões, e, em conseqüência, pode-se buscar a
alegria, evitando as paixões tristes.
O pensamento espinosista conceitua liberdade não como uma forma de livrar-se das
paixões tristes, mas de aceitar apenas as paixões positivas, alegres, convenientes e não ceder
diante das paixões tristes. Ou seja, o indivíduo escolhe por bons encontros.
Para Espinosa, permanecer passivo diante das paixões é um estado de servidão; o
indivíduo não escolhe. Este autor entende que no ser humano a razão e a emoção estão sempre
em confronto, mas é através da compreensão dessas paixões, percebendo suas relações com
causas externas, que se livra da servidão. Assim, a consciência passa a assumir uma
importância chave na conduta do indivíduo. O homem livre é aquele que tem capacidade para
agir segundo as necessidades da sua essência. O homem é livre quando tem potência para
agir, e isso acontece quando ele encontra as iias e as paixões adequadas à sua essência. A
liberdade está ligada ao conhecimento, pois este amplia a potência de agir.
Sobre a felicidade, Espinosa escreve no livro V, proposição XLII, da Ética: “A
felicidade o é o prêmio da virtude, mas a própria virtude; e o se goza dela por refrearem-
se as paixões, mas ao contrário, goza-se dela por poder-se refrear as paixões.” Somente
através da inteligência o homem pode refrear as afecções; ninguém, por conseqüência, goza
da felicidade por refrear as afecções, mas pelo contrário, o poder de refrear as paixões nasce
74
da própria felicidade. É então nesse estado de espírito, a felicidade, que o ser tem consciência
de sua capacidade de ação e interferir em seu meio.
O pensamento espinosista não classifica o Bem e o Mal [entidades] como categorias
absolutas. O que é o bom e o mau [qualidades: o sujeito e sobre os seres, as entidades],
tal como se os experiencia. O mau o é nada, assim como o bem não é, uma vez que o Ser
está para além do bem e do mal. O mal, como veneno, é um dado da experiência, um a
posteriori, que decome uma parte do ser (Cf. Ética, parte IV); o bom é quando um corpo
come uma relação com o corpo e aumenta a potência. Neste sentido, o bom e o mau, para
além de um sentido objetivo, possuem a relatividade daquilo que convém e não convém,
que nenhuma ação considerada em si pode ser boa ou má, mas sim a imagem do ato como
vínculo entre duas relações; “as afecções que o contrárias a nossa natureza, isto é, que são
más, são más na medida em que impedem a alma de compreender” (Cf. Ética, parte V,
demonstração da prop. X). Essa experiência é pessoal, nem sempre o que é bom para um
necessariamente separa o outro. No entanto, o indivíduo é livre quando tem potência para
agir e escolher os encontros que lhe convêm - os bons encontros. O indivíduo que busca a
escravidão, que não tem suficiente força de existir para escolher os bons encontros, por isso
os vivencia de maneira aleatória, é fraco e terá maus encontros.
Espinosa assegura que a lei moral se refere a valores transcendentes, nos quais vigora
a binariedade Bem/Mal, mandamentos/obediência. Portanto na lei moral prevalece o
raciocínio binário, na Ética a proposta é perceber a diferença qualitativa dos modos de
existência: o bom e o mau. No primeiro caso, fala-se em divisões e afastamentos. No
segundo, de relações, conexões. É justamente a não-compreensão e a não-valorização das
relações que leva as pessoas aos moralismos. Espinosa à Ética um caráter relacional. Não
se expressa em termos de pode/não pode, deve/não deve. Na lei moral, obedecer passa a ser
75
confundido com conhecer: tomar conhecimento” de um mandamento e obedecer a ele é
confundido com aprender, adquirir conhecimento.
Pode-se perceber, na filosofia espinosista, a insistência na necessidade de mudar o
modo de pensar para compreender de outro modo a realidade. Em nossa cultura, a iia de
que todos os seres do Universo tendem naturalmente para autoconservação e a continuar a
existir foi substituída pela mentalidade de “salve-se quem puder”. O conatus nos impulsiona a
um modo de existir que, na prática, significa viver orientados pelo diálogo razão-paixões.
Parece que nosso pensamento está inundado pelo pensamento linear-cartesiano. Essa
hipótese exige que se saia da passividade e se adote uma atitude como a que Espinosa
aconselha em relação ao determinismo da Natureza: a contradição entre a liberdade e a
necessidade pode ser resolvida pela razão, que levará à compreensão de que se trata de
opostos ao mesmo tempo antagônicos e complementares.
A partir desses aspectos, que foram retomados do primeiro capítulo a respeito do
pensamento de Espinosa, fez-se um diálogo sobre instrumentos que fazem parte da prática
docente e que interferem diretamente na relação professor aluno. Para tanto, utilizam-se
autores que fizeram uma releitura de Deleuze no encontro com Espinosa.
3.1 Ética e Currículo
O currículo é um instrumento de apoio ao professor. Porém, questionou-se até que
ponto a visão que temos de currículo tem favorecido o docente em sua relação com o aluno?
O que se tem visto na prática escolar são currículos descontextualizados e ineficazes, que
cooperam para o fracasso da escola, pois são elaborados sem que a escola conheça os seus
alunos e os que estão à margem dela. Portanto, os currículos não refletem o meio social e
76
cultural em que se inserem. A integração entre as áreas do conhecimento e a concepção
transversal das novas propostas de organização curricular convertem as disciplinas
acadêmicas em meios e não em fins da educação escolar.
Na elaboração desses currículos parece que as escolas alimentam a falsa idéia de que
podem organizar turmas homogêneas. O que a experiência da pesquisadora como educadora
tem mostrado é que as turmas escolares são desiguais. Essa heterogeneidade tem um aspecto
positivo: dinamiza os grupos e, além disso, movimenta as questões curriculares.
Como diz os (2002, p. 112) “... a educação tem se essencializado, fixando um único
modo (e apenas um) de ser educado e de ser sadio, distinguindo e separando aquilo que o é
distinguível nem separável.Qualificar alguém como educado implica uma dualização, feita a
partir de um critério logocêntrico, que instala um dos termos do par como diferente,
obstaculiza a possibilidade de que o diferente não seja diferido e condenado a um “não-lugar”.
O que se nota é que alguns professores parecem continuar na ilusão de que seus alunos
apresentarão um desempenho escolar semelhante, em um mesmo tempo estipulado pela
escola para aprender um dado conteúdo escolar. Estes educadores esquecem-se das diferenças
e especificidades existentes entre os alunos, cada um a seu próprio modo e ritmo de
aprendizagem. Embora saibam que os alunos são pessoas distintas umas das outras, os
professores lutam para que o processo escolar torne os alunos “iguais”. Esperam e trabalham
em cada série, ciclo, nível de ensino, para que os alunos alcancem um padrão pré-definido de
desempenho escolar. Esta ânsia de nivelar o alunado segundo um modelo, pode levar,
invariavelmente, à exclusão escolar e produzir no professor uma culpabilidade por seu aluno
o ter aprendido determinado conteúdo e uma sensação de impotência em função de não
encontrar forma(s) de alcançar esse aluno. Estas situações geram um quadro negativo na
relação professor-aluno e, por conseguinte, no meio escolar.
os escreve sobre a relação professor e currículo:
77
A instituição escolar, enquanto máquina sedentária, racionaliza e codifica de acordo
com um modo de pensar dominante. Isso significa que ela elabora um modelo global
e homogeneizador do social, que se institui com a onipotência do logos, exorcizando
tudo aquilo que atrapalha, incomoda, ou seja, um cosmos que tenta ser coerente,
organizado, homogêneo, frente a um caos, heterogêneo, incômodo, em certo sentido
diluidor dessa única maneira de ser que implica estar subordinado a uma ordem.
(2002, p. 114)
Observou-se que disparidade entre a subjetividade do indivíduo-aluno e a posição
assumida pela escola voltada ao cumprimento de um currículo que pode estar estanque o
suficiente para causar afecções negativas ao aluno e impedir sua aprendizagem em vez de
conduzi-lo à mesma.
Tadeu (2002), inspirado na leitura de Deleuze e Espinosa, fala de uma nova
possibilidade de conceber a educação e o currículo de uma outra forma, não como um
processo de desenvolvimento e formação, porém organizado em torno das tradicionais
categorias de sujeito/objeto. Ele sugere que o currículo e a educação podem ser concebidos
como uma arte do encontro e da composição, na qual o que importa não é a forma e a
substância, o sujeito ou o objeto, mas o que se passa entre os diferentes corpos que habitam
um currículo. Ele afirma que um plano de imanência e o currículo para dançar, ou seja,
pode colocá-lo em movimento (TADEU, 2002, p.48).
Como se citou anteriormente, foi num encontro que um corpo se definiu. Por isso, o
importante é a intersecção das linhas de movimentos e dos afectos, pois assim fica-se
sabendo daquilo de um corpo é capaz. se começa a saber o que é um corpo quando se fixa
nas relações de movimento que ele entretém com outros corpos. Também que efeitos um
corpo tem sobre o outro. A potência para agir é o critério para determinar se um encontro é
bom ou não (p. 54).
Assim, uma pedagogia embasada no cumprimento do currículo pode mudar, pois o
que passa a interessar agora é saber quais composições são feitas e quais podem ser feitas, se
elas são boas ou más do ponto de vista de agir. Se o currículo fosse concebido como um
encontro, uma composição, poderia-se imaginar que corpos, os mais heterogêneos, os mais
78
improváveis, se encontram e se combinam no currículo, para compor um agenciamento-
currículo particular. A partir disso, o que importa são as composições, quais encontros, quais
agenciamentos são bons e quais são maus, ou seja, quais aumentam ou diminuem nossa
potência para agir (TADEU, 2002, p. 56). Isto é, cada indivíduo pode participar da
composição curricular através de sua agência, de seu ser sujeito na interação com o professor,
contribuindo com suas particularidades e enriquecendo a dinâmica da aprendizagem.
Para Corazza (2007), desde a chegada do pensamento de Deleuze à educação, já não é
possível operar com qualquer tipo de currículo; a não ser com currículos plurais, que pode-se
chamar por diferentes nomes, como currículos-nômades, e que o sem memória nem
ambição, disforme e alienado, que rejeitam planos homogêneos e unidades metodológicas,
objetivos e projetos, formas didáticas e medidas avaliativas.
Kohan (2008) diz que não modelo a imitar, e sim um mundo novo a ser criado. Ele
lembra Deleuze que afirma que o novo não se opõe ao velho, não é o futuro melhor perante o
passado, mas se oe ao rotineiro, previsível, ordinário. O novo é um acontecimento
inesperado que interrompe a previsibilidade na hisria, sua tranila sucessão, para atualizar
um virtual inesperado, imprevisível, intempestivo. Com Deleuze, aprende-se que sem criação
o aprendizagem, pensamento nem vida. Quando admiti-se o que Kohan escreve, esta-se
diante de uma pedagogia inovadora, que se constitui numa possibilidade de sala de aula,
priorizando a criação tanto do professor e do aluno no desenrolar da aula sem desprezar o já
apresentado e trazido para o ambiente escolar em ocasiões anteriores.
3.2 Ética e o Professor
Segundo Tadeu (2002), é interessante e pertinente para a reflexão lembrar o que
Deleuze traz sobre o professor. Para ele o professor é aquele da pedagogia do problema que é
79
a pedagogia do pensar, e não, aquele da Pedagogia da pergunta da resposta na manga. O
pensamento, nessa pedagogia, tem pouco a ver com aquilo que tem forma, mas tem a ver
com aquilo que, em uma zona que não é a da atualização, das coisas determinadas e
formadas, faz saltar o impensável. “O pensamento é uma fulguração: acontecimento,
intensidade, diferença pura” (TADEU, 2002, p. 49). O pensamento encontra, pois um outro,
que é o seu “fora”, um signo que é o ainda não-pensado, o impensável, o intempestivo, o
extemporâneo.
Para Corazza (2007), num plano educacional de imanência, a aula brilhante de um
professor não será comparada a nenhum modelo-aula, nem às outras aulas dadas por ele ou
por seus colegas; tampouco terá sido um bom-professor, em comparação com um professor-
padrão, nem com outros professores, mas porque circunstancialmente ele conseguiu formular
algo novo para pensar; ele problematizou, com e diante dos alunos, o que até então o era
considerado probletico por ninguém; ele fez os alunos desaprenderem as besteiras-
verdades, que lhes tinham sido ensinadas e que eles assimilaram, para, assim, poderem
aprender algo que não fosse senso comum; ele conseguiu mostrar que a dificuldade de pensar
é algo de direito do pensamento, já que pensar não tem nada de inato, nem recognição, nem se
trata de responder perguntas para as quais existem respostas; mas pensar é criar e, portanto,
trata-se de engendrar o pensar no próprio pensamento (p. 21).
Ainda conforme este autor, na pedagogia do problema, não é o ensinar, mas o
aprender que é correlativo do pensar. O pensar é o momento do choque do encontro com
outro pensamento. Lembrando Deleuze, pensar é sempre uma violência, uma
heterogeneidade. Tadeu (2002, p. 50) afirma que Se pensar é o momento em que o signo de
algo estranho ao pensamento entra no meu campo de percepção, então aprender é o momento
de decifração e interpretação desse signo”.
80
Segundo Kohan (2008) pensar é um ato de sensibilidade, um encontro com signos.
Para este autor existe nas “ciências humanas” uma imagem dogmática, moralizada do
pensamento. É a imagem do bem-pensar e do bom pensador; ela diz que o bem move-se em
direção ao pensamento e que quem pensa bem encontra a verdade. Segundo esse autor, pensar
é uma força que abre mundos e não que controla o mundo. Pensar é um ato imoral; ele diz
com respeito a encontros com signos que nos forçam a pensar e que entram pela sensibilidade
aberta. O pensar tem mais a ver com o sentido do que com a verdade. Ele não busca resolver
problemas, mas criá-los, já que os problemas abrem horizontes de sentido, inauguram
perspectivas impensadas e levam à criação de conceitos. Uma imagem moralizada do
pensamento tira dele sua potência, imobiliza o agir, faz dele um exercício triste. O pensar
dominante na instituição escolar, calcado na técnica, nas idéias de representação e
reconhecimento, é um modo de exercer poder, de diminuir a força dos outros, de impedir que
de fato se pense: uma maneira de controlar, julgar e condenar. Quando depara-se com esse
quadro, abri-se um espaço para uma ética do pensamento, que o dita seu dever, porém abre
condições para os encontros positivos no pensamento, aqueles que expandem a potência do
pensar e com ela a da vida.
Pelas palavras de Kohan, denuncia-se o moralismo da ética na educação e abrem-se
portas de uma ética imoral educadora. Há no pensamento de Espinosa e Deleuze um convite a
pensar um outro pensamento, a viver uma outra vida educacional. Então, pergunta-se: o que
pode um professor? Apesar de não se saber, a partir dessa força denunciada por Deleuze,
pode-se encontrar uma outra vida, que não legisle, que não diga a si mesma o que um
professor deve ou não fazer, que explore os bons encontros, que aumentem a sua capacidade
de ser afetado.
Tadeu (2002) lembra, através de um linha de fuga espinosiana, que esse professor
feito macaco, feito lagosta, feito universo, feito vida pode fazer conexão de uma filosofia da
81
imanência com uma pedagogia ou com um currículo da imanência. Nessa história, o que
importa é o devir-outro que não tem nenhuma forma, que é estranho a toda forma, que é
impessoal, que tem a imanência de uma vida. A preocupação não é com o ponto de partida ou
de chegada, mas com o que se passa no meio. A filosofia de Espinosa desconstrói o papel do
professor, dessacraliza a posição imposta pela cultura que presumivelmente ganha algo com
tal papel. Espinosa em sua filosofia provê um outro lugar ao professor, aquele que o lhe
impõe uma responsabilidade sua, pois o aluno recupera sua posição de sujeito constituinte
de sua formação. Assim, a relação professor-aluno aprimora-se no momento em que cada
indivíduo assume sua parte.
Do encontro de Deleuze com Espinosa descobre-se um mundo que deixa de lado
qualquer preocupação com divisões em gêneros, espécies, indivíduos, toda a parafernália da
metafísica aristotélica. O que importa é como as coisas se combinam, como elas se come,
com elas se conjugam. Através do resultado desses movimentos, perguntar-se se eles são bons
ou maus, ou seja, se aumentam ou diminuem a potência.
3.3 Ética e a disciplina
Para discutir sobre as disciplinas reportou-se as considerações feitas por Garcia
(1990), que propõe uma nova visão em que as disciplinas deixam de ser orgânicas para
entrarem numa zona de vizinhança, de contaminações, provocando a invenção de novas
matérias, de novos desenhos espaciais, através da imagem-pensamento das paisagens (p.
103).
A paisagem é um espaço de intensidade, uma geografia intensiva, terra criada,
habitada por um povo porvir. A paisagem é o lugar destes agenciamentos estranhos; é um
agenciamento coletivo de enunciação. Ela aparece no movimento e se numa potica de
82
desejo que resulta numa coexistência, muitas vezes, de opostos que não são contrários (p.
104). Através dessa visão, o professor é lançado a abrir seus horizontes, entrando num plano
de composão oposto a um plano de organização, buscando ser não mais professor de
disciplina, mas configurador de paisagens (p. 105).
Essa paisagem é o que surge das rupturas epistemológicas; é aquilo que se forma nas
relações o localizáveis entre disciplinas. A paisagem o pode ser aprisionada por qualquer
pobreza dialética, por qualquer categoria acadêmica, ainda que vopossa habitar e provar a
paisagem intensamente, porque, como uma vida, ela é arte, é excessiva, a ela nada falta (p.
106). Assim, remete-se ao lugar não mais do ensino-aprendizagem, mas da composição. A
aula desterritorializada, ao ser sobre o nada, é sobre tudo que for invocado, ou melhor, sobre
tudo que nos invoca. O importante é que sejamos convidados a pensar e o mais a reproduzir
(p. 107).
Por meio deste pensamento pode-se conduzir ao fato de os cursos formadores de
professores, as licenciaturas ainda ensinarem e enfatizarem métodos e técnicas didáticas que
primam pelo preparado-de-antemão, pelo livro-texto e outros procedimentos que não
enxergam a individualidade de cada aluno, sua rica contribuição para a aprendizagem e para a
relação social com seu professor e os colegas. Tudo o que extrapola aquilo que se organiza,
traz inquietação, intranqüilidade; este estado de espírito e de atuação pode ser indicativo de
que qualquer coisa na aula está sendo mais priorizado do que a participação do sujeito-aluno.
Garcia (1990) aponta um novo pensamento para a escola, uma geografia, uma
espacialização, que significa potencializá-la afirmativamente como espaço móvel, com uma
velocidade absoluta que permita todos os devires intempestivos (p. 108). O conhecimento é
visto de uma forma não-hierarquizada, aberta aos eventos que emergem dos encontros, das
mutações. Trata-se de uma pedagogia espinosista (p. 110). O aspecto que Garcia está
apontando aqui é aquele em que Espinosa concebe ética como liberdade. Se assim também a
83
concebemos, a noção de liberdade pode expandir-se até ao nível em que o aluno pode trazer,
assim como o professor, contribuições para um bom devir.
O mesmo autor pontua a superação do currículo orgânico, hierarquizado, através do
acesso lateral, ou seja, entrar no assunto por vários conceitos. Desta forma leva-se a um novo
tipo de escola, onde a disciplina não poderia ser pensada sem a circulação de saberes não-
disciplinares, sem pensar na educação ou na paisagem que emerge daí (p. 111).
Baseado na Ética espinosista encontra-se, no plano do método, uma desconstrução
das propriedades territoriais que demarcam os campos disciplinares; um currículo que o
visa mais produtos finais, que recalcam processos potenciais. Assim, livra-se o docente da
culpabilidade e do dever que o sobrecarrega, levando-o à busca desesperada por uma proposta
metodológica salvadora. A idéia de currículo escolar que circula no campo educativo-
metodológico sempre esteve associada à obediência, à obrigatoriedade de ser seguido. No
entanto, é importante refletirmos sobre que conhecimento é produzido na obediência ou
desobediência de uma lei moral. Através de Espinosa, a tradução das afecções ou do modo
das substâncias cumpre um papel decisivo, na medida em que as afecções indicam o que
acontece aos modos, aos seus efeitos e suas modificações, implicando mais ou menos
perfeição que o estado precedente. Vai ser bom aquilo que aumenta nossa potência de agir.
Por conseguinte, os fluxos curriculares serão potencializados (GARCIA, 1990, p. 112).
Currículo, método, disciplina não constituem algo negativo em si mesmos, antes,
podem ser muito positivos no processo de aprendizagem; para tanto, é preciso que a
preocupação do professor seja acima de tudo com o bom devir, que as contribuições e as
diferenças trazidas pelo sujeito-aluno possam ser instrumentos para o aprender e não
obstáculos para o bom desempenho de uma aula. Logo, está-se falando do procedimento do
professor e em como ele aborda o conteúdo, em como ele aplica disciplina, em como ele
84
desenvolve o currículo sem que estes sejam fardos contínuos e escravizantes no ambiente
escolar.
85
CAPÍTULO 4
A LEI DOS ENCONTROS E AS PRÁTICAS DOCENTES
Ilustração de José Otávio Femino Zamgirolami, 2008
Aquele que pretende a igualdade entre os
homens desiguais pretende uma coisa absurda.
Baruch de Spinoza
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Para refletir sobre a prática docente não se pode ignorar o que dizem os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN), documento elaborado pelo ministério da educação, com o
objetivo nortear a execução do trabalho dos professores e apontar metas de qualidade que
ajudem o aluno a enfrentar o mundo atual como cidadão participativo, reflexivo e autônomo,
conhecedor de seus direitos e deveres. Os objetivos a serem alcançados no que tange a
normas, valores e atitudes, apontados nos atuais PCNs, em todos os seus segmentos, têm por
base as orientações forjadas no contexto das reformas educacionais espanholas.
Na apresentação dos Temas Transversais dos PCNs encontrou-se a discussão sobre
Ética. Na descrição deste tema, a Ética diz respeito às reflexões sobre as condutas humanas.
Também é lembrado que a reflexão sobre as diversas faces das condutas humanas deve fazer
parte dos objetivos maiores da escola comprometida com a formação para a cidadania. Assim,
o tema Ética traz a proposta de que a escola realize um trabalho que possibilite o
desenvolvimento da autonomia moral, condição para a reflexão ética.
Este documento admite que seria um erro pensar que, desde sempre, os homens têm os
mesmos critérios, valores e a mesma forma de estabelecer relações e hierarquias entre esses
valores que norteiam as ações em sociedade. Sendo assim, a moralidade humana deve ser
enfocada no contexto histórico e social. Por conseqüência, um currículo escolar sobre ética
pede uma reflexão sobre a sociedade contemporânea na qual está inserida a escola. Por se
tratar de uma referência curricular nacional que objetiva o exercício da cidadania, foi
imperativa a remissão à maior referência legal brasileira, a Constituição da República
Federativa do Brasil, promulgada em 1988, na qual se encontram elementos que identificam
questões morais.
Encontrou-se também neste documento uma breve retomada hisrica, relembrando
que havia uma preocupação com a formação moral do aluno. Em 1826, o primeiro projeto de
ensino blico apresentado à Câmara dos Deputados previa que o aluno deveria ter
87
conhecimentos morais, cívicos e econômicos”. Não se tratava de conteúdos, pois havia ainda
um currículo nacional com elenco de matérias. Quando o elenco foi criado, em 1909, a
educação moral não apareceu como conteúdo, mas havia essa preocupação quando se tratou
das finalidades do ensino. Em 1942, a lei orgânica do Ensino secundário falava em “formão
da personalidade integral do adolescente” e em acentuação e elevação da “formação
espiritual, consciência patriótica e consciência humanista” do aluno. Em 1961, a Lei de
Diretrizes e Bases do Ensino Nacional colocava a “formação moral e cívica do aluno”. Em
1971, pela Lei n.5692/71, institui-se a Educação Moral e Cívica como área da educação
escolar no Brasil.
Mesmo reconhecendo tratar-se de uma questão polêmica, estes Parâmetros Nacionais
afirmam que cabe à escola empenhar-se na formação moral de seus alunos. Segundo estes, as
pessoas não nascem boas ou ruins; é a sociedade, quer queira, quer não, que educa
moralmente seus membros, embora a família, os meios de comunicação e o convívio com
outras pessoas tenham influência marcante no comportamento da criaa, assim como a
escola também tem. A escola participa da formação moral de seus alunos, pois valores e
regras são transmitidos pelos professores, pelos livros didáticos, pela organização
institucional, pelas formas de avaliação, pelos comportamentos dos próprios alunos.
Quando se examina esses documentos, percebe-se que essas orientações povoam os
cursos de formação de professores por todo o país, seja na modalidade inicial ou continuada.
Sabe-se que são poucas as oportunidades que o professor tem para refletir e discutir sobre
essas orientações. Não faltam oportunidades para que os professores sejam convocados a
implementar ações pedagógicas no sentido de incutir valores nos seus alunos. Então,
pergunta-se não apenas a legitimidade desses valores, mas principalmente as possibilidades
dos mesmos serem ensinados através de uma mera instrumentalização, ou seja, como um
saber cristalizado e não como dilemas relacionais.
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Percebe-se que esses documentos, apesar de orientarem a ação do professor, ao mesmo
tempo limitam e ignoram a natureza humana. Quando se define uma escala de valores, criam-
se padrões de comportamento e classificam-se quem segue ou não esses padrões de bom ou
de mau, de perfeito ou imperfeito. Para uma sociedade melhor, o pensamento livre,
descomprometido de tantos padrões, talvez trouxesse uma nova possibilidade de relação entre
as pessoas e, conseqüentemente, entre o professor e o aluno.
Espinosa abre uma discussão interessante a respeito dos padrões criados pelo homem.
Em seu livro Ética, afirma que a perfeição e a imperfeição são, na realidade, apenas modos do
pensar, isto é, noções que se tem o hábito de inventar, por comparar-se entre si indivíduos da
mesma espécie. Para ele, tem-se o hábito de reduzir todos os indivíduos da natureza a um
único gênero, que dizem ser o gênero supremo, ou seja, a noção de ente, que pertence sem
exceção a todos os indivíduos da natureza. Este autor afirma que o bem e o mal nada mais são
do que modos do pensar ou de noções que formamos por compararmos as coisas entre si.
Essa discussão se justifica, porque na prática do magistério encontra-se essa situação,
onde todos e alunos são tratados de forma massificada. Uma mesma metodologia, um
mesmo livro didático, cada um a sua maneira tem que atingir alunos que trazem vivências,
realidades muito diferentes. Parece que se naturalizou a homogeneidade a ponto de quando
um aluno responde de forma diferente àquela esperada, o mesmo é categorizado de bom ou
ruim, perfeito ou imperfeito. Quanto ao professor, pode-se afirmar que ele também vive o
sentimento de frustração e de culpabilidade por não ter alcançado o aluno. Esses aspectos o
contribuem para a relação do professor com o aluno, tornando-se assim um obstáculo para a
aprendizagem.
Espinosa trabalha com alguns termos, como afecção; conhecimento; liberdade;
potência; paixão, que foram vistos anteriormente e serão retomados, pois envolveram a
prática pedagógica e propuseram uma nova maneira de pensar.
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Utilizou-se a prática docente como um campo empírico para problematizar as questões
de interesse deste estudo e promover um exercício reflexivo em torno de uma postura ética
que contribua para a relação professor-aluno. Buscou-se fazer uma correlão dos termos,
citados anteriormente, com os pensamentos de alguns professores coletados através de
questionário. Nele, diferentes olhares sobre os conceitos usados por Espinosa podem
estabelecer relação com a prática docente. O questionário foi formulado com questões
envolvendo o quotidiano do professor e sobre as quais eles mesmos registraram suas
respostas. Os professores entrevistados lecionam de a série, em uma escola estadual,
localizada em um meio urbano, num bairro considerado de classe média, com uma
comunidade relativamente bem informada. Porém, a clientela atendida é de famílias cujos
alguns pais, estão comprometidos com a justiça; outros presos, ou envolvidos com o
consumo de drogas ou de álcool. Algumas crianças ficam em abrigos no horário em que não
estão na escola. A estrutura física do ambiente escolar é bastante danificada; os recursos
pedagógicos são escassos, limitando as condições de trabalho, tanto para o professor quanto
para o aluno. Portanto, uma realidade suscetível a conflitos diários, tal como a violência, mas
paradoxalmente habilitada a buscar respostas éticas.
4.1 Liberdade
Na Ética, encontra-se a definição de liberdade, a qual não é propriedade da vontade.
Para Espinosa, a vontade não pode ser nomeada causa livre” (I, 32). A liberdade é definida
como um “interior” e um “si mesmo” da necessidade. Somos livres em virtude de nossa
essência e daquilo que dela decorre. Localiza-se na Ética I, prop. 36, apêndice:
90
... que, enfim, todas as coisas foram predeterminadas por Deus, não certamente pela
liberdade de sua vontade, ou seja, por seu absoluto beneplácito, mas por sua
natureza absoluta, ou seja por sua infinita potência.
De acordo com o pensamento de Espinosa, ser livre implica estar conectado aos
elementos. Para Espinosa: “O homem que se conduz pela razão é mais livre na sociedade
civil, onde vive de acordo com as leis comuns, do que na solidão, onde obedece apenas a si
mesmo(parte IV. Prop. 73). Assim, o homem que se conduz pela razão não obedece por
medo, mas porque se esforça por viver livremente, deseja manter o princípio da vida e da
utilidade comuns e, conseqüentemente, deseja viver de acordo com as leis comuns da
sociedade civil. O pensamento livre não está vinculado à necessidade de obedecer e sim, de
viver. Ou seja, o homem é livre quando entra na posse da sua potência de agir; em outras
palavras, quando seu conatus é determinado pelas idéias adequadas de onde decorrem os
afetos ativos, que se explicam por sua própria essência. Na Ética IV, proposição 68, diz que:
Se os homens livres nascessem livres, o formariam, enquanto fossem livres, qualquer
conceito do bem e do mal. Assim disse que é livre quem é conduzido pela razão. Quem
nasce livre e permanece livre não tem senão idéias adequadas.
A questão três do questiorio se refere à liberdade: você acha que liberdade
para seus alunos construírem seus conhecimentos? Volembra de uma situação onde isto
aconteceu? A fala de alguns professores foi:
- O aluno deve sim ser agente do processo ensino-aprendizagem, porém é uma liberdade
assistida, com limites
- O aluno está sempre expondo seu conhecimento, baseado na troca de suas experiências.
- Penso que sim, pois quando iniciamos algum assunto novo, procuramos explorar o que
sabem sobre o assunto, deixo procurar mais informações para depois entrarmos no assunto
propriamente dito.
91
A relevância destas respostas está no fato de elas mostrarem que liberdade está muito
voltada ao comportamento e à oportunidade do aluno expor seu pensamento. Pensa-se que a
cultura ocidental baseada em valores judaico-cristãos nos prepara para viver a liberdade como
algo limitado e culpabilizante, pois assim somos facilmente manipulados pelos interesses
daqueles que ostentam o poder. Entretanto, a noção espinosista de liberdade nos remete a
nossa essência enquanto seres sociais, o que pode nos conduzir a uma reflexão e conseqüente
ação diferentes daquelas estipuladas pela cultura vigente. A noção de Espinosa propõe um
viver que corresponde àquilo que somos, ou seja, seres que podem agir com o objetivo de
afectar o outro de forma positiva; o homem livre aprende a dominar seus atos, de forma que
causem no outro reações e ações que potencializam o seu ser. Por que os limites ocupam um
lugar tão expressivo em nossa prática docente? A resposta pode estar no fato de o se ter a
oportunidade de conhecer a liberdade sem preconceitos e poder ter com ela uma relação mais
saudável; através da razão, o homem livre pode atuar em sua comunidade de modo que
considere sempre as reações que podem surgir no outro decorrentes de suas ações, como
também ter domínio sobre as reações negativas que atingem o indivíduo e deixar-se vencer
pelas ações positivas.
4.2 Conhecimento
Com relação ao conhecimento, Espinosa propõe uma maneira diferente de pensar.
Para ele conhecimento é a afirmação da idéia na alma; auto-afirmação da idéia, “explicação
ou desenvolvimento da iia. O conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa
e envolve este último” (Ética, I, ax. 4). No pensamento espinosista, o conhecimento é
diferente de obedecer, não há conhecimento na repetição, pois a criação implica aumento de
potência. Algo diferente do que muitas vezes encontra-se na escola, onde reproduzir o que o
92
livro apresenta é sinônimo de conhecimento, de aprendizagem. Espinosa apresenta os três
gêneros de conhecimento, mas afirma que consegue-se distinguir o verdadeiro do falso
através do segundo e do terceiro gênero. Encontra-se na Ética (II, prop. 42): “O
conhecimento de segundo e de terceiro gênero, e não o de primeiro, nos ensina a distinguir o
verdadeiro do falso.” E ainda, é do terceiro gênero de conhecimento que procede a iia
adequada de certos atributos de Deus para o conhecimento adequado da essência das coisas.
Por isso, a virtude suprema da mente, isto é, sua potência ou natureza, ou seja, seu esforço
supremo consiste em compreender as coisas por meio do terceiro gênero de conhecimento.
Assim, apresenta-se na Ética V, prop. 25: “O esforço supremo da mente e sua virtude
suprema consistem em compreender as coisas por meio do terceiro gênero de conhecimento.
Esta situação aparece na questão dois: o professor elabora uma prova e pergunta quem
descobriu o Brasil. O aluno responde que foi Pedro Álvares Cabral. O Professor elogia o
acerto do aluno e comenta com a turma que este é um modelo a se seguir. Na sua opinião: o
professor conseguiu avaliar o conhecimento desse aluno? As respostas foram:
- O aprendizado não consiste em decorar. Para este professor ele conseguiu avaliar apenas
baseado no conteúdo decorado.
- O professor não tem êxito nesta situação, pois não é apenas com uma pergunta que se
avalia um aluno e sim num grande contexto. A atitude do professor ao elogiar este aluno está
desmerecendo a capacidade dos outros alunos presentes. E mais uma vez não respeitando as
diferenças. Ninguém é modelo para ser compara do, cada aluno tem suas habilidades e
conhecimentos.
- O elogio é válido, mas a avaliação é contínua e não pontual e também deve-se evitar
comparações.
Percebe-se que existe por parte dos docentes uma preocupação com o reducionismo da
reprodução do conhecimento, com o decorar e com as comparações. Este pode ser um
movimento interessante dentro da prática docente e oportunidade para o professor repensar
93
metodologia, currículo e disciplina de uma forma mais dinâmica e, assim, contribuir com este
processo. Para Espinosa, conhecer é estar ciente da causa que provocou algo. Conhecer a
origem das coisas faz com que o indivíduo seja capaz não de entender sua constituição,
bem como dele compreender sua razão de ser. Embora as respostas fornecidas pelos
professores sejam alentadoras, pois relatam uma consciência sobre a necessidade de
realmente aprender, não se verifica na prática que os alunos estejam de fato aprendendo, visto
que exames de diferentes concursos comprovam que não houve uma prática voltada a
conhecer a causa das coisas, mas de decorar definições e/ou conteúdos. Esta conclusão é de
senso comum dentro do magistério, pois se sabe que a escola não está formando para a vida,
antes ela forma para uma ascensão escolar, de grau para grau; o que não significa uma
verdadeira apreensão da informação e do conhecimento. Também não se pode esquecer que
os atuais programas de formação de educadores, seja inicial ou continuada, o oferecem ao
professor experiências que possam fornecer o conhecimento necessário para refletir sobre
suas escolhas e sobre o seu agir. Portanto, o professor tem dificuldades para ir além das
prescrições curriculares, o que acaba limitando sua prática.
Também traz-se no questionário na questão quatro o seguinte: você é contratado por
uma escola que não adota livro didático, no entanto, ela deixa na sua decisão adotar ou não. O
que você faria? As respostas foram:
- Conforme a escola, seria mais um recurso pedagógico.
- Depende da situação financeira dos alunos, da realidade da escola, mas é perfeitamente
possível trabalhar sem seguir um livro.
- O livro didático às vezes é uma ajuda no trabalho. Adoto parcialmente em respeito ao
dinheiro público que é empregado na compra destes livros.
- Faria uma análise do livro e adotaria o que fosse conveniente.
94
Através das respostas, nota-se que existe por parte dos professores uma pré-disposição
para o uso do livro didático. Por isso questiona-se até que ponto eles contemplam a realidade
e as necessidades do aluno? De uma certa forma torna-se modo o uso do livro, pois nos
oferece um conteúdo e um programa pré-estabelecido. No entanto, se limitar-se a ele,
provavelmente ficar-se a aquém do educar, pois se estará apenas instruindo o aluno e o
instigando a somente reproduzir e não construir conhecimento. Para Espinosa, o
conhecimento é um processo e não uma repetição.
4.3 Potência
Para Espinosa, o termo potência é extremamente significativo dentro das relações
humanas, as quais também ocorrem no espaço da escola. Este autor afirma que a potência do
homem é uma parte da potência infinita de Deus ou da natureza, isto é, de sua essência. Toda
potência é ato, ativa e em ato. Segundo Espinosa na Ética, IV, prop. 21: Ninguém pode
desejar ser feliz, e agir e viver bem sem, no mesmo tempo, desejar ser, agir e viver, isto é,
existir em ato.Ou seja, segundo este mesmo autor, o desejo de ser feliz ou de viver e agir
bem é a própria essência do homem, isto é, o esforço pelo qual cada um se esforça por
conservar o seu ser. Toda potência é inseparável de um poder de ser afetado. Esse poder de
ser afetado encontra-se constante e necessariamente preenchido por afecções que o efetuam.
Ética, I, 35 afirma que: “Tudo que concebemos como estando no poder de Deus existe
necessariamente.” O ser humano está necessariamente aberto para o exterior, porque
experimenta paixões e encontra outros modos existentes capazes de lesar uma das suas
relações vitais. Somos constantemente afetados pelas forças exteriores de forma positiva ou
negativa. Quando somos afetados por uma paixão alegre, nossa potência para agir aumenta e,
quando somos afetados por uma paixão triste, nossa potência para agir diminui.
95
A questão número seis traz a seguinte situação: o professor de Educação sica propõe
um jogo de competição que envolve resistência. Uma criança com sobrepeso leva um dos
grupos a perder a brincadeira e é rechaçada pelo grupo. Na aula seguinte essa criança se nega
a fazer Educação Física. Como o professor poderia intervir nessa situação?
- O professor poderia proporcionar jogos de cooperação, uma conversa com o grupo sobre
respeito, discriminação e amizade, aceitando o outro como ele é torna-se indispensável.
- Primeiramente conversando com o professor de educação física sobre o tipo de competição
e pedindo para ele conversar com o grupo. Também enquanto professora de turma
conversaria com o grupo sobre as diferenças e as atitudes discriminatórias. Também
conversaria com o aluno em particular.
- O professor deve trabalhar as diferenças e mostrar que em outras situações aquele aluno
pode levar o grupo a ganhar, ou seja, valorizar as aptidões de cada um.
As respostas sinalizam para uma necessidade de compreensão de sua [do indivíduo]
essência; em outras palavras, pode-se compreender que à medida que a pessoa conhece a sua
essência, ela pode conhecer sua potência. Esta pode afetar e ser afetada, tanto de forma
positiva quanto negativa. Neste caso específico da questão 06, vê-se diversos problemas
envolvendo a relação professor-aluno e aluno-aluno. Isto é, o primeiro aspecto está no fato de
que o aluno com sobrepeso pode não estar consciente de seu estado real [atual] muito menos
de sua essência enquanto ser humano; segundo, o aluno não sabe lidar com situações que lhe
afetam negativamente, pois para ele parece haver uma percepção negativa de si mesmo em
função de seu sobrepeso, bem como o olhar do outro sobre sua situação; terceiro, o professor
responde que dialogaria com o aluno sobre sua situação e com os outros sobre a necessidade
de respeitar as diferenças. Entretanto, na realidade, falta ao professor a percepção de que ser
um indivíduo com sobrepeso o é necessariamente a essência do indivíduo (e que a questão
verdadeira não está no sobrepeso, mas sim na essência do ser), fazendo com que o docente
o consiga aceder à mesma, não potencializando, assim, positivamente os atos do aluno em
96
questão e seus colegas. Além disso, por falta dessa consciência, o professor não consegue
afectar” positivamente os outros alunos sobre a questão, por não compreender que a essência
do ser está além de sua aparência, que no caso, pode ser resolvida ou não, conforme a atitude
dos responsáveis pelo aluno obeso. Os professores não têm oportunidade de vivenciar na sua
formação experiências que possam fornecer o conhecimento necessário para refletir sobre as
situações dilemáticas presentes em sua prática.
4.4 Paixão
Sobre paio, Espinosa afirma que os sentimentos ou afetos provêm do encontro
exterior com outros seres existentes; por essa razão, eles podem ser inadequados, se o afeto
causado pelo afectante não for real, for confuso. Em seu livro Ética, IV, prop. 33, diz que:
“À medida que são afligidos por afetos que são paixões, os homens podem discrepar em
natureza e, igualmente, sob a mesma condição, um único e mesmo homem é volúvel e
inconstante.” Ou seja, este autor afirma que disso resulta que tantas espécies de afetos
quantas são as espécies de objetos pelos quais se é afetado, que os homens são afetados de
diferentes maneiras por um único e mesmo objeto e, sob essas condições, discrepam em
natureza; e, finalmente, que um único e mesmo homem é afetado de diferentes maneiras
relativamente a um mesmo objeto e, sob tal condição, ele é volúvel. Ele indica que, quando
encontramos um corpo que nos afeta no nível de nossa essência e assim ampliamos nossa
potência para agir, estamos agindo a partir da essência, potência e não da paixão.
Quando a potência de agir é estimulada por uma impressão inadequada do afectante,
age-se levado por paixões alegres ou tristes, pois se limitam dentro de uma passividade. Em
ambos os casos, se é passivo àquela impressão, paixão, por não se dominar formalmente.
Para Espinosa (parte quatro, proposição 35) “Apenas à medida que vivem sob a condução da
97
razão os homens concordam, sempre e necessariamente, em natureza.” Este pensamento
remete à prática docente e conseqüentemente à relão professor-aluno, pois pode-se
questionar: de que maneira é possível afetar o aluno para provocar nele o paixões tristes,
às quais é passivo, mas sim, potencializar o aluno para a consciência de sua própria essência?
As questões número sete e oito do questiorio trouxe situações de discriminação: na
questão sete a professora entrega uma corda para que as crianças pulem na hora do recreio.
Um dos alunos entra na fila para participar da brincadeira, no entanto é rejeitado por ser de
cor negra. Como você agiria nessa situação? As respostas são:
- Conversaria com as crianças e explicaria o que é racismo e preconceito. Falaria que,
apesar da cor ser diferente, todos são iguais e com os mesmos direitos e deveres.
- Trabalharia com as diferenças, visto que já está incluso nos PCNs a cultura afro.
- Conversaria com os alunos que rejeitaram a criança, comunicaria à direção de escola aos
pais, pois discriminação racial é crime, fora da lei.
Em ambas as respostas, percebe-se que as crianças que rejeitaram o colega negro
agiram a partir de um estímulo que chamamos de paixão triste, pois uma idéia inadequada
sobre o afectante, o aluno negro. Inadequada, vale esclarecer, no aspecto em que as crianças
o possuem uma visão não-racista sobre os outros. Agiram passivamente a partir daquilo
que lhes foi ensinado na cultura, dentro de suas famílias e/ou dos ambientes que freqüentam e
que não respeitam as diferenças de raça. Os alunos que rejeitam parecem precisar agir a partir
de uma idéia adequada sobre o colega negro, ou seja, de uma idéia não reducionista sobre o
mesmo, pois as crianças que rejeitam possuem idéia equivocada sobre os indivíduos de cor
negra.
Pode-se perceber que há por parte dos professores uma aproximação da necessidade de
levar os alunos a uma reflexão sobre a questão de raça e potencializá-los a agirem a partir de
uma idéia adequada sobre o colega negro. Logo, a possibilidade de expandir a todos os
98
alunos a iia adequada, bem como o próprio rejeitado, que pode também, por ser rejeitado,
agir por uma paixão em relação a seus colegas, pensando que eles não gostam dele
gratuitamente, quando na realidade o que está ocorrendo é que todos estão equivocados sobre
a essência uns dos outros, que não se reduz à cor da pele.
Por meio das respostas dadas, pode-se perceber uma preocupação dos professores em
trabalhar com as diferenças e sobre as potencialidades de cada um.
Na questão número oito: o professor de Língua Inglesa pede que os alunos sublinhem
no texto dado tudo que eles acham que entendem. Após o exercício, o professor mostra aos
alunos que eles sublinharam a maioria das palavras e ajuda-os a perceberem que eles sabiam
mais do que eles imaginavam. Você considera positiva a ação do professor?
- Sim, tudo que visa valorizar aquilo que o aluno já sabe é válido.
- Sim, porque valorizou os acertos em vez dos erros.
- Sim, tudo que visa valorizar aquilo que o aluno já sabe é válido.
Em ambas as respostas, nota-se que o professor estimulou os alunos a agirem a partir
de suas potências, desde uma auto-percepção positiva o apenas no mundo das iias, mas
principalmente, desde a prática que lhes mostrou que o que ele dizia pôde ser comprovado no
momento presente. O que se pode acrescentar é que as respostas dos professores corroboram
com a idéia de que havia a priori uma consciência do professor sobre uma falsa auto-
percepção, a ponto de levá-lo a mostrar a seus alunos que eles têm potência para efetuar um
exercício que eles podiam achar que não sabiam ou não eram capazes de fazer.
Assim, vê-se que o professor proporcionou oportunidade para que os alunos saíssem da
paixão triste para uma ação baseada numa idéia adequada sobre eles mesmos, sobre suas
essências, sobre suas potências.
99
ÚLTIMAS CONSIDERAÇÔES
Geometrias justas-movimento- Milton Toledo
100
ÚLTIMAS OBSERVAÇÕES
Ao chegar na última parte desta pesquisa, não considero ter chegado ao fim. Pelo
contrário, penso ser o começo de um fim que não vai chegar. Quando falamos em educação,
estamos falando em relações, em pessoas, falamos em um processo que é dinâmico, não é
estático que, portanto, não pode cessar seu movimento. A natureza, os objetos, as pessoas,
estão em constante transformação e a escola faz parte deste universo.
Encontramos na Ética de Espinosa a possibilidade de abrir caminhos, que não visam
trazer respostas e sim possibilidades de reflexão sobre a relação do professor com o aluno. A
obra de Espinosa é uma tentativa empreendida para desembaraçar-se dos preconceitos, das
idéias preconcebidas e de permitir as coisas falarem por si mesmas. Não se pode conhecer a
nós mesmos e aos corpos exteriores senão pelas afecções que os corpos exteriores produzem
sobre o nosso. Saber do que se é capaz, não como uma questão moral, mas antes de mais
nada como questão física. Embora sejamos da mesma espécie humana, somos afetados de
forma diferente. Para Espinosa, gênero humano, espécie humana ou mesmo raça, não tem
nenhuma importância. O que importa é a lista dos afetos dos quais alguém é capaz. Espinosa
diferencia ética de moral, pois jamais pergunta o que devemos fazer, este autor pergunta o
tempo todo do que somos capazes, o que está em nossa potência; desta forma vincula a ética a
um problema de potência e jamais a um problema de dever. Espinosa compreende os bons
encontros, os maus encontros, os aumentos e diminuições de potência. Logo, produz uma
ética e de modo algum uma moral.
Por meio do pensamento espinosista, o professor encontra a liberdade e a motivação
para selecionar e organizar bons encontros, ou seja, aqueles que inspiram a ele e ao aluno
paixões alegres. A palavra “encontro” tem, para Espinosa, uma importância muito grande,
101
pois é num encontro que um corpo se define. Não interessa quem é o professor ou o aluno
individualmente, isoladamente. Interessa é o que acontece nessa intersecção de corpos,
sempre do ponto de vista de seu movimento e de seus mútuos afectos. Num afecto de alegria,
o corpo que nos afeta é indicado como compondo a relação dele com a nossa. Assim, somos
induzidos a percepção e a compreensão das noções comuns ou das relações que entram nesta
composição, a fim de experimentarmos novos sentimentos ativos. Desta forma, saímos das
paixões e conquistamos a posse formal da potência de agir. Apesar das noções comuns nos
remeterem a uma coletividade, a uma multiplicidade, elas são sempre individuais.
Percebi através da fala dos professores uma preocupação com o respeito às diferenças
entre os alunos, com sua individualidade, com o aproveitamento da realidade trazida por eles,
mas ao mesmo tempo uma dificuldade em aplicar esta realidade em sua prática. A
preocupação em seguir um currículo, uma metodologia, o programa pré-estabelecido de uma
disciplina, acabam limitando tanto a potência de agir do aluno quanto a do professor. Para
Espinosa, não importaria seguir a tecnocracia proposta pelos cursos de formação, porém
buscar quais composições podem ser feitas e se elas são boas ou más do ponto de vista do
agir. Não se trata mais de repetão, de representação, mas de criação.
A concepção de Espinosa sobre liberdade, não está vinculada à libertinagem, mas a
um princípio norteador das relações em que se pensa sempre no outro. Assim, as relações
sociais podem aprimorar-se não partindo de um a concepção religiosa, mas de uma visão de
mundo em que a vida se constrói juntamente numa busca constante de bons devires.
Trata-se, então, de uma visão que nos leva a detestarmos todos os poderes ligados à
tristeza, os quais transmitem a idéia de vivermos sempre devendo algo. Esses poderes
trabalham para diminuir ou nos separar das forças ativas de que somos capazes. Desta forma,
conduzem nossas vidas à resignação, à culpa e, conseqüentemente, nos imobiliza. Esta visão
nos dá a possibilidade de pensar e de viver a alegria em educação.
102
Por meio desta inovação, acredito que Espinosa contribui significativamente na
relação professor-aluno, para a prática docente e para a aprendizagem, pois oferece uma
possibilidade ética, que como nos fala Deleuze, organiza bons encontros, come os
relacionamentos vivenciados, forma potências, experimenta.
103
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106
APÊNDICES: questionários conceitos de Espinosa
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