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UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA
DEPARTAMENTO DE LETRAS E ARTES
MESTRADO EM LITERATURA E INTERCULTURALIDADE
DA UTOPIA DILUÍDA OU DA UTOPIA SUPERADA: UMA LEITURA DE CONTOS
DE CAIO FERNANDO ABREU
Elisabete Borges Agra
Campina Grande/PB
2008
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ELISABETE BORGES AGRA
DA UTOPIA DILUÍDA OU DA UTOPIA SUPERADA: UMA LEITURA DE CONTOS
DE CAIO FERNANDO ABREU
Dissertação submetida ao Programa de Pós-
Graduação em Literatura e Interculturalidade,
Departamento de Letras e Artes da Universidade
Estadual da Paraíba, como parte dos requisitos
necessários para obtenção do título de Mestre em
Literatura e Interculturalidade.
Orientadora: Profª Drª Rosilda Alves Bezerra
Campina Grande
2008
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É expressamente proibida a comercialização deste documento, tanto na sua forma impressa
como eletrônica. Sua reprodução total ou parcial é permitida exclusivamente para fins
acadêmicos e científicos, desde que na reprodução figure a identificação do autor, título,
instituição e ano da dissertação.
F ICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL – UEPB
A277d Agra, Elisabete Borges.
Da utopia diluída ou da utopia superada: uma leitura
de contos de Caio Fernando Abreu / Elisabete Borges
Agra. – Campina Grande: UEPB, 2008.
86 f.
Dissertação (Mestrado em Literatura e
Interculturalidade) Universidade Estadual da Paraíba.
Orientação: Profª. Drª. Rosilda Alves Bezerra,
Departamento de Letras e Artes.
1. Literatura – Crítica. I. Título.
22. ed.
CDD 808.4
TERMO DE APROVAÇÃO
ELISABETE BORGES AGRA
DA UTOPIA DILUÍDA OU DA UTOPIA SUPERADA: UMA LEITURA DE CONTOS
DE CAIO FERNANDO ABREU
Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade,
Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual da Paraíba, composta pela seguinte
banca examinadora:
Orientadora: Profª Drª Rosilda Alves Bezerra
Mestrado em Literatura e Interculturalidade/UEPB
Prof. Dr.José Hélder Pinheiro
Programa de Pós-Graduação em Letras/UFCG/UFPB
Prof. Dr. Antônio Carlos Melo Magalhães
Mestrado em Literatura e Interculturalidade/UEPB
Campina Grande
2008
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a meu filho Pablo Odilon Agra de
Queiroz por se constituir belo e admirável em essência,
estímulo que me impulsionou a buscar vida nova a cada
dia, meus agradecimentos por ter, apesar da idade, aceito
se privar de minha companhia durante o processo de
construção do texto, concedendo a mim a oportunidade de
me realizar ainda mais.
AGRADECIMENTOS
A meus pais, Jandira Borges de Lima e Odilon de Alencar Agra, que sempre me
incentivaram à leitura.
A Caio Fernando Abreu, que, de alguma forma...
A Otávia Karla, Maria do Carmo e Otonilson Medeiros, sempre presentes e ativos me
auxiliando chegar até aqui.
Em especial, a Carlos Pereira de Almeida, pelas horas infinitas de discussão sobre o tema.
A Rosilda Alves Bezerra, minha orientadora, por me fazer compreender o tempo das coisas.
A meu primeiro professor, de fato, de teoria literatura, Luciano Barbosa Justino, que me
ajudou a desconstruir o olhar.
A banca examinadora, José Hélder Pinheiro e Antônio Carlos Melo Magalhães.
Aos meus colegas de trabalho, especialmente, a Maria de Fátima Andrade pela generosidade
com que me acolheu.
Aqueles que falam de revolução sem relacioná-la
explicitamente com a vida cotidiana, falam com um
cadáver na boca.
Vaneigem
RESUMO
Este trabalho investiga de que maneira algumas narrativas de Caio Fernando Abreu, marcadas
pelo diálogo com o momento histórico no qual se inscrevem, elaboram uma simbologia social
efetivando-se como metáfora do horror cristalizado nas relações intersubjetivas e entre
indivíduo e as instituições sociais. Para o percurso feito, priorizaram-se as seguintes
categorias: sujeito, identidade, utopia, resistência e desencanto, categorias que parecem
pontuar a contística desse autor. Fez-se necessária a busca de interseção entre a teoria literária
e outras áreas epistemológicas. A problemática da utopia enquanto postura atrelada à
condição do sujeito na contemporaneidade se faz perpassada, inescapavelmente, pela
tendência ambivalente de comportamentos tecidos entre o desencanto e a transgressão.
Anfibologia comportamental estreitamente relacionada à constituição de sujeitos fraturados,
portadores de identidades múltiplas e cambiantes. Nessas discussões, a questão concernente às
formas como o indivíduo apreende e reage diante da diluição e urgência dos projetos utópicos
configura-se como o problema central das especulações éticas e políticas mais freqüentes nos
três últimos quartéis do século passado. Os teóricos como Stuart Hall e Frederic Jameson,
entre outros, serviram como eixo teórico, pois, entendem que os mecanismos de poder são
abordados através dos agenciadores que suplantam o conceito tradicional de sujeito singular e
individual. A abordagem que pretende associar essa conjuntura com a produção literária é
feita por autores como Theodor Adorno e Antonio Candido, teóricos que problematizam e, de
certo modo, desanuviam questões concernentes à representação, condição do narrador,
condição da personagem, literatura e sociedade, elaboração estética e sociedade de mercado
etc.
RÉSUMÉE
Ce travail examine comment quelques récits de Caio Fernando Abreu, marqués par le
dialogue avec le moment historique dans lequel ils s’inscrivent, élaborent un symbolisme
sociale en s’effectuant comme métaphore de l’horreur cristallisé dans les relations inter
subjectives et entre l’individu et les institutions sociales. Pour le parcours fait, on a donné la
priorité aux éléments suivants : sujet, identité, utopie, résistance et désenchantement,
catégories qui semblent ponctuer le récit de cet auteur. La recherche de l’intersection entre la
théorie littéraire et autres secteurs épistémologiques a été nécessaire. La problématique de
l’utopie en tant que position ajoutée à la condition du sujet dans la contemporaneité est
traversée, inévitablement, par la tendance ambivalente de comportements tissus entre le
désenchantement et la transgression. Amphibologie comportamentale étroitement rapportée
à la constitution de sujets cassés, porteurs d’identités multiples et changeantes. Dans ces
discussions, la question concernante aux manières comment l’individu appréhende et réagit
devant la dilution et urgence des projets utopiques configure le problème central des
spéculations éthiques et politiques plus fréquentes dans les trois derniers quarts du siècle
dernier. Les théoriciens comme Stuart Hall et Fredéric Jameson, entre autres, ont servi d’axe
théorique, car ils comprennent que les mécanismes de pouvoir sont abordés à travers les
agents qui supplantent le concept traditionnel de sujet singulier et individuel. L’abordage qui
prétend associer cette conjoncture à la production littéraire est faite par des auteurs comme
Theodor Adorno et Antonio Candido, théoriciens qui problématisent et, d’une certaine façon,
dissipent des questions concernantes à la représentation, à la condition du narrateur, à la
condition du personnage, à la littérature et la société, à l’élaboration esthétique et à la société
de marché etc.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 06
2 O SOCIAL NA PROSA INTIMISTA DE CAIO FERNANDO ABREU 11
2.1. PRÉVIAS CONSIDERAÇÕES 11
2.2. A PROSA DE CAIO FERNANDO ABREU EM DIÁLOGO COM O SEU
TEMPO 13
2.3.UMA CONTÍSTICA ENTRE O INTIMISMO E A CONTESTAÇÃO SOCIAL 19
2.4. UMA CONTÍSTICA COMO “PALCO DOS DESAJUSTADOS” 22
3 VIAGEM AO ENCONTRO DOS PORÕES DE SI MESMO: UMA LEITURA DO
CONTO HOLOCAUSTO, DE CAIO FERNANDO ABREU 30
4 PARA ALÉM DOS MORANGOS MOFADOS A UTOPIA RECUPERADA 44
4.1 NEM INFERNO NEM PARAÍSO: O EU É O OUTRO UMA LEITURA DE “LUZ E
SOMBRA” E “EU, TU, ELE” 44
4.2 A URGÊNCIA DA UTOPIA REINVENTADA EM “OS SOBREVIVENTES” E “ALÉM
DO PONTO” 56
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 76
6 REFERÊNCIAS 78
1 INTRODUÇÃO
Entre meados da década de 70 e início dos anos 80, a narrativa moderna brasileira
sofreu significante impulso de um grupo de ficcionistas que começava a se identificar como
centro de transformação da ficção contemporânea. Nesse contexto, o conto sofreu
modificações substanciais promovidas pela estética modernista, sobretudo pela geração de 45
e seus sucessores imediatos. Anteriormente, as narrativas se prendiam à estrutura linear de
começo, meio e fim, seguindo uma tendência de relato convencional e objetivo dos fatos, o
conto contemporâneo se pautou na exploração das linguagens do homem comum, na
observação intimista marcada pela tomada de consciência e na descrição psicológica de
nuances que formam o conjunto das relações cotidianas.
Desse modo, há em grande parte da literatura contemporânea uma tendência
metalingüística que insiste em discutir as possibilidades da linguagem, buscando encontrar o
centro nevrálgico do fazer literário, onde se encontra, quiçá, a força motriz de emanações de
significados e razões de ser da elaboração poética no mundo em que a reificação e
estandartização norteiam as práticas e as relações sociais.
Esse voltar-se para o fazer estético dá-se concomitantemente com o adentramento do
sujeito si mesmo. Evidentemente, um si mesmo que não se define e que, diante da
perplexidade de constatar sua fratura e multiplicidade, se estilhaça. Duas faces do espelho, o
ser da linguagem literária e o ser do sujeito intercruzam-se, interpenetram-se e, assim sendo,
constituem-se enquanto dois dos objetos prioritários dos esforços epistemológicos e
filosóficos da contemporaneidade, sobretudo no âmbito da ciência e do pensamento sociais.
Às preocupações éticas e políticas somam-se as especulações e divagações psicológicas,
desenhando-se uma prática narrativa que oscila entre o testemunho documental e o relato
intimista. Esse tipo de narrativa, esteja abordando temáticas urbanas de forma mais realista e
objetiva ou esteja enfocando hermeticamente problemáticas relacionadas a uma
fenomenologia do indivíduo concebido psicologicamente, traduz, principalmente através do
conto, uma tendência para o experimentalismo formal e discussão dos conflitos existenciais,
comportamentais e políticos. Contistas como Lygia Fagundes Telles, com sua narrativa
intimista, tentando reconstruir o passado; Rubem Fonseca retrata a burguesia massacrante dos
grandes centros metropolitanos; entre outros nomes que contribuíram para a renovação do
universo da ficção curta e que rompem com o modelo do conto tradicional.
Dessa forma, o eixo temático da obra de Caio Fernando Abreu é o cotidiano e a
relação existencial do homem em diálogo com a sociedade. Numa sociedade que exige do
indivíduo o cumprimento de normas para que este faça jus a seu status de cidadão. A obra
aborda os desencontros das relações humanas em suas diversas realizações e o desencontro
entre o indivíduo e sociedade. Situada entre as décadas de 1970 e 1990, o conjunto de sua
obra marca-se profundamente pelos eventos que perpassaram tal período, como os anos de
repressão militar, os movimentos de resistência estudantil e/ou pela guerrilha, o tropicalismo,
a contracultura, exílio, abertura para a democracia, anistia, fim das utopias, e globalização. O
fato é que tal narrativa, evidentemente marcada pelo diálogo com o momento histórico no
qual se inscreve, elabora, contudo, uma simbologia social a partir de uma hermética
elaboração poética que se utiliza de elementos e imagens bizarras, efetivando-se como
metáfora do horror cristalizado nas relações intersubjetivas e entre estes e as instituições
sociais.
Ao propor a análise de um texto literário, através de sua interação com o tempo, fez-
se necessária a escolha de elementos que proporcionassem o percurso a ser feito. Priorizou-se,
então, por eleger os seguintes elementos: sujeito, identidade, utopia, resistência e desencanto,
categorias e/ou posturas que parecem pontuar a contística de Caio Fernando Abreu.
De acordo com essa linha de raciocínio, fez-se necessária a busca de interseção entre
a teoria literária e outras áreas epistemológicas. Para tanto, a aproximação com teóricos da
filosofia, história, psicologia, antropologia cultural e sociologia fez-se indiscutivelmente
necessária, visto que presumivelmente as categorias eleitas para análise sejam contempladas
por tais campos teóricos.
A problemática da utopia enquanto postura atrelada à condição do sujeito na
contemporaneidade se faz perpassada, inescapavelmente, pela tendência ambivalente de
comportamentos tecidos entre o desencanto e a transgressão. Anfibologia comportamental
estreitamente relacionada à constituição de sujeitos fraturados, portadores de identidades
múltiplas e cambiantes. Nesse campo de discussões, a questão concernente às formas como o
indivíduo apreende e reage diante da diluição e urgência dos projetos utópicos configura-se
como o problema central das especulações éticas e políticas mais freqüentes nos três últimos
quartéis do século passado.
A abordagem que pretende associar essa conjuntura com a produção artística, mais
especificamente a literatura, é feita por autores como Theodor Adorno, Walter Benjamin e
Antonio Candido, teóricos que problematizam e, de certo modo, desanuviam questões
concernentes à representação, condição do narrador, condição da personagem, literatura e
sociedade, elaboração estética e sociedade de mercado etc.
Os teóricos como Félix Guattari, Gilles Deleuze e Frederic Jameson analisam a
noção de sujeito ligada a uma concepção de um eu múltiplo e a representação dessa
multiplicidade em seus conflitos existenciais. Assim, os mecanismos de poder são abordados
através dos agenciadores que suplantam o conceito tradicional de sujeito singular e individual.
Os conceitos referentes à identidade propostos por esses autores tem como tema o
descentramento do sujeito, uma das características da contemporaneidade.
Num outro momento, através de autores como Heloisa Buarque de Hollanda, Flora
Sussekind e Ítalo Moriconi, procurou-se apreender como se organiza a vivência existencial
dentro da realidade brasileira das décadas de 70 a 90, em pleno período de repressão. Nesse
aspecto, pretendemos entender como se apresentam as identidades em trânsito no Brasil
urbano do fim do século XX.
Em relação ao desafio da busca de identidade parece notório que os narradores
clamam encontrar o que eles realmente são, ou o que deveriam ser. Assim, a convivência de
mais de um protótipo de identificação acaba sendo insuficiente e transforma a busca do eu
num projeto em elaboração constante. Como esse exemplo, encontramos outros que estão
analisados no decorrer do trabalho. Frise-se ainda que optou-se, aqui, por uma discussão que
põe em primeiro plano a questão existencial das situações das personagens e não análise
apenas estrutural das relações metafóricas que as narrativas apresentam com o período
histórico o qual estão inseridas.
Em função das bases teóricas explicitadas nesta introdução, este trabalho está
distribuído em três capítulos e as considerações finais. Cada capítulo analisará de forma
específica as questões existenciais no cenário ficcional de Caio Fernando Abreu. As narrativas
priorizadas derivam das obras Pedras de Calcutá (1977) e Morangos mofados (1982). Em
um primeiro momento, a escolha dos contos seguiu critérios de observações através das
incessantes leituras.
No primeiro capítulo, O social na prosa intimista de Caio Fernando Abreu,será
discutida a relação entre elaboração artística, mais precisamente uma escrita de cunho
intimista, e contestação social e as possibilidades históricas de sua efetivação, para, logo em
seguida, estabelecermos um painel da inserção do contexto histórico e social na narrativa de
Caio Fernando Abreu. Nos dois últimos subitens, serão abordadas questões pertinentes à
relação de sua produção contística, eminentemente intimista e psicológica, e a transgressão
social e política verificada nos universos ficcionais delineados em tal produção, bem como, o
modo com que se a inserção das individualidades condenadas à marginalização nessa
contística.
No segundo capítulo, intitulado Viagem ao encontro dos porões de si mesmo: uma
leitura do conto Holocausto, o cenário social, convertido em espaço de ficção, será abordado
enquanto território onde se efetivam práticas e discursos que se referem à marginalização e
confinamento de individualidades “desviantes” e destoantes e as possibilidades de sabotagem
e resistência de tais configurações de individualidade. Prioriza-se, aqui, a abordagem das
questões relacionadas à maneira como, enquanto universo ficcional, o texto consegue
capturar, através de metáforas bizarras e imagens herméticas, uma configuração materializada
do real, entrelaçando ficção e contexto histórico. Optou-se por dedicar todo um capítulo à
análise de um único conto por considerar-se a narrativa proposta enquanto representativa da
condição aventada como pertencente a uma dada constituição do sujeito calcada no estigma e
exílio sociais, bem como, por questões metodológicas, pelo fato de o conto inserir-se numa
obra distinta da que encerra os outros quatro contos analisados no terceiro capítulo. Afinal,
“Holocausto” insere-se na obra “Pedras de Calcutá”, enquanto que os demais, que serão
contemplados no capítulo seguinte, estão inseridos em “Morangos Mofados”.
No terceiro e último capítulo, denominado Para além dos Morangos Mofados a
utopia recuperada, vislumbra-se compreender de que forma as narrativas eleitas para
análise, as quais sejam Luz e sombras”, Eu, tu, ele, Os sobreviventes e Além do ponto,
representam a problemática da queda das utopias e a urgência de novos projetos utópicos,
contextualizando-se com o período histórico pós-contracultura e pós-68. A análise dos dois
primeiros contos enfocará a busca pela totalidade por sujeitos fragmentados e dispersos,
mergulhados numa condição de ambivalência e multiplicidade das identidades, busca que
suscita a problemática da alteridade, isto é, o outro enquanto sujeito que institui a
possibilidade de configuração do eu. Essa totalidade da condição humana, certamente,
consiste na recuperação de um estado digno de humanidade. Os outros dois serão abordados
enquanto relatos que refletem as vozes de uma geração que carrega um sabor amargo e podre
do fracasso. Os sobreviventes e Além do ponto consistem numa horrenda e bem delineada
metáfora da condição de sujeitos amalgamados entre a diluição vivenciada da utopia e a ânsia
por sua reinvenção, de onde se admite que, dentre os detritos de sonhos esfacelados, resiste,
renitentemente, a esperança.
2 O SOCIAL NA PROSA INTIMISTA DE CAIO FERNANDO ABREU
Minha dor é perceber/ Que apesar de termos/ Feito tudo o que fizemos/ Ainda somos os mesmos/E
vivemos/Ainda somos os mesmos/
E vivemos/Como Os Nossos Pais...
2.1 Prévias considerações
No âmbito das discussões sobre uma possível ontologia da literatura, enquanto
elaboração estética, um questionamento renitente paira ao longo dos tempos, sobretudo na
modernidade, em que um individualismo onipresente e uma busca por redenção do gênero
humano se misturam no seio das práticas e discursos sociais. Em que medida o fato literário
reflete e/ou testemunha a realidade e, mais ainda, até que ponto a produção poética
desempenha uma função social que consiste no abalo de estruturas e aponta para a instauração
de formas alternativas de estar-no-mundo?
É cediço que, em fins do século XIX e começo século XX, o recrudescimento dos
aglomerados urbanos instaura, paradoxalmente, a intensificação de um isolamento individual
e a sensação da necessidade de participação efetiva nas efervescentes lutas políticas
delineadas no campo dos problemas suscitados pelas transformações das relações sociais.
Assim, nos movimentos estéticos e intelectuais associados a esse quadro ambivalente da
modernidade surge uma experiência subjetiva pertubadora. Como assevera Hall (1999, p. 32),
encontramos, aqui, a figura do indivíduo isolado, exilado ou alienado,
colocado contra o pano-de-fundo da multidão anônima e impessoal.[...]; e
aquela legião de figuras alienadas da literatura e da crítica social do século
XX que visavam representar a experiência singular da modernidade.
Do ponto de vista da questão da produção literária, no que concerne ao jogo de
relações entre o elaborador do fato literário e o produto do seu impulso criativo, constrói-se, a
partir de então, uma perspectiva que tende a aproximar o escritor às camadas marginalizadas,
as quais, em alguns casos, passam a ter voz nos universos ficcionais das obras desses
escritores.
A ampliação da participação intelectual do escritor, com o ideal artístico de vida e a
subversão individual, conduz ao acirramento da problemática conflitual entre preceitos
estéticos e pressupostos políticos, fazendo com que novas alternativas do fazer do literário,
como o conto introspectivo, o depoimento, o relato, a escrita confessional, tornem-se
evidentes e ganhem importância desembocando na instauração de uma literatura do
descontentamento.
Em Literatura e Sociedade, ao abordar a relação de manifestações literárias com a
organização da sociedade, Candido confere à literatura três funções que, embora distintas,
devem ser consideradas concomitantemente. Essas funções – total, social e ideológica –
permitem, segundo o autor, uma compreensão mais equilibrada da obra e da sua relação com
o meio social. Assim, ao considerarmos a predominância da função social nas elaborações
literárias, que implicam certa contestação, tomemos a seguinte afirmação de Candido (2002,
p. 46),
A função social (ou razão de ser sociológica, para falar com Malinowski)
comporta o papel que a obra desempenha no estabelecimento de relações
sociais, na satisfação de necessidades espirituais e materiais, na manutenção
ou mudança de uma certa ordem na sociedade.
O fato de evidenciar-se essa função social, não impõe, de modo algum, uma
funcionalidade utilitária à essência literária, embora, não a isente de uma imanente relação
com os discursos delineados com base no jogo de tensões entre os diversos estratos sociais, os
indivíduos, e entre estes e as instituições. Essa relação imanente inscreve a postura da obra
diante da ordem estabelecida: conformidade ou discordância.
Com o substrato da linguagem, a invenção literária age de modo destrutivo sobre as
forças formadoras de verdades imponderáveis, não obstante, no andamento cíclico da história,
tencione criar outras verdades.
Defrontando-se com a problemática dessa modernidade, que exige no seio dos
fenômenos e relações que a refletem e a modelam, tanto a urgência da felicidade coletiva
quanto a emergência da satisfação individual, a produção literária comporta-se de forma a
desenhar uma esperança, incapturavelmente, abstrata que, entretanto, se materializa, ganha
forma e contornos a partir de um descontentamento cujas feições consistem no mais hediondo
esgar contra o real dado. Ou seja, a produção estética busca opor o projeto alternativo do vir-
a-ser à aparente onipotência do ser-dado. Isso parece efetivar-se tanto do ponto de vista da
presumível intenção de um autor quanto da interação dos elementos estruturais que compõem
o universo interno do objeto estético enquanto simbologia social.
Não se trata, aqui, de definir uma missão para a literatura, mas de pensar
cuidadosamente acerca de sua possível, ainda que nebulosa, consistência ontológica, para que
não sejamos gratuitamente seduzidos pela conveniência de tendenciosos modismos
travestidos de relativismos culturais.
Afinal, de acordo com Sevcenko (2003, p. 29),
[...] Se a literatura moderna é uma fronteira extrema do discurso e o
proscênio dos desajustados, mais do que o testemunho da sociedade, ela
deve trazer em si a revelação dos seus focos mais candentes de tensão e
mágoa dos aflitos. Deve traduzir no seu âmago mais um anseio de mudança
do que os mecanismos da permanência. Sendo um produto do desejo, seu
compromisso é maior com a fantasia do que com a realidade. Preocupa-se
com aquilo que poderia ou deveria ser a ordem das coisas, mais do que com
o seu estado real (2003: 29).
A literatura contemporânea é, dessa forma, marcada pela transgressão. Embora não
seja possível (muito menos necessário) apontar marcas que evidenciem sua funcionalidade
prática no sentido propriamente político, decerto que se pode indicar o ponto de sua
satisfação, erigido sobre os alicerces da dissonância, do desligamento, do desacordo, o que
implica mais uma postura ética, na medida em que sugere, no plano narrativo das personagens
destoantes, propostas alternativas de relações sociais.
Assim, nos parece, se configuram as narrativas de Caio Fernando Abreu. Ficção e
análise copulam num ritmo alucinantemente lúcido engendrando um espiral em que falas
desordenadas e renitentes, eventos insólitos, imagens bizarras e reflexões contraditórias
aproximam-se, fundem-se e se dispersam no ponto exato em que se enquadram as
personagens e os fenômenos experienciados nesse estar-no-mundo.
2.2 A prosa de Caio Fernando Abreu em diálogo com o seu tempo
Durante a década de 60, período de agitação político-cultural e efervescência
estética, quando a juventude passou a questionar os princípios éticos, os valores morais e os
fundamentos filosóficos que regiam os modos de fazer, ser e pensar da racionalidade técnica
ocidental, a produção literária no Brasil marca-se pela predominância da elaboração poética
de cunho social e psicológico e da prosa histórica e autobiográfica, reflexo desse espírito
revolucionário que exigia a transformação urgente de um determinado estado de coisas.
Assim, as mais variadas manifestações artísticas como a música, o cinema, o teatro e, como
mencionado, a literatura reforçam a imagem de uma época profícua no que concerne às
propostas de rupturas com modelos sócio-culturais e estéticos, culminando com a
contracultura e a arte pop internacional, que, discutindo e transgredindo os mecanismos de
produção e circulação do objeto artístico numa sociedade degradada por sedutores apelos
plásticos produzidos em série, sugeriram projetos libertários e arrebatadores, para, enfim,
descobrirem a impotência anunciada de seus esforços.
Em Verdade Tropical, Caetano Veloso registra o panorama desses anos como o
marco da introjeção das massas aqui no Brasil. Na política os CPC’S, nas artes o movimento
vanguardista, como o concretismo. Segundo Caetano, a sensação de quem viveu esse período
era de quem fazia parte do corpo revolucionário do mundo. A obra define essa década como,
embora tumultuada pela ditadura, palco de um projeto coletivo de mudança que consistiria,
pelo menos, numa distribuição de renda mais justa. De acordo com esse autor, sua geração
recebeu esse espírito revolucionário. Aqui, ele destaca o movimento tropicalista como
movimento que estava envolvido por esse sonho de mudança. Na introdução do citado livro,
Veloso (1997, p. 07) explicita que:
A aventura de um impulso criativo surgido no seio da música popular
brasileira, na segunda metade dos anos 60, em que os protagonistas entre
eles o próprio narrador queriam poder mover-se além da vinculação
automática com as esquerdas, dando conta ao mesmo tempo da revolta
visceral contra a abissal desigualdade que tende um povo ainda assim
reconhecivelmente uno e encantador, e de fatal e alegre participação na
realidade cultural urbana. Universalizante e internacional, tudo isso valendo
por um desvelamento do mistério da ilha Brasil.
Evidentemente, que o movimento tropicalista aliado à poesia marginal dos anos 70
marca essa efervescência revolucionária vivida por esse período descrito. Mas a década de 70,
de acordo com Heloisa Buarque de Holanda, em Impressões de viagem, foi caracterizada
pela frustração dos projetos revolucionários de 60, que alimentaram a arte e a literatura, como
também, criou-se um palco para o surgimento de novas estratégias de intervenções culturais.
Diante disso, temos uma década de 60, “marcada por um extraordinário momento de debates
em torno de engajamento e da eficácia revolucionária da palavra poética” (HOLANDA, 2004,
p. 36), enquanto que, na década posterior, verificam-se posturas estéticas e políticas
delineadas por um certo niilismo que, descuidando-se por vezes na sua vigilância, permite
alguns escapes de ímpetos transgressivos.
As esquerdas de 60, que sempre alimentaram a ilusão que suas ações
conscientizariam o povo e, em conseqüência disso, transformariam a realidade, constataram,
agora, uma impotência diante das estruturas de poder, fato que, não obstante, redesenhou a
urgência utópica, conferindo-lhe as feições do descontentamento e da nostalgia,
reivindicadores da recuperação de certas atitudes rebeldes.
Dois aspectos foram essenciais para a definição do contexto brasileiro nesse período
histórico: o tortuoso processo de instauração e consolidação da racionalidade capitalista
moderna no Brasil e o advento do regime militar, após o Golpe de 1964.
Segundo Ridenti (2003), a modernização do país alcançará sua consolidação com a
ditadura de 64, quando aprofunda o caráter conservador deste processo. Na verdade, o golpe
possui um duplo significado: por um lado ele se define por sua dimensão essencialmente
política; por outro, aponta para transformações mais profundas que se realizam no que se
refere à economia. Desta forma, 64 é visto, tanto pelos economistas quanto pelos cientistas
políticos, como momento de reorganização da própria economia brasileira que cada vez mais
se insere no processo de internacionalização do capital.
De acordo com Ridenti (2003, p. 135-165):
A modernidade capitalista desenvolvida ao longo do século XX, com a
crescente industrialização e urbanização, avanço complexo industrial-
financeiro, expansão das classes médias, extensão do trabalho assalariado e
da racionalidade capitalista também ao campo etc. viria a consolidar-se
como desenvolvimento nos anos 1950 e especialmente após o movimento de
1964, implementador da modernização conservadora, associada ao
capitalismo internacional, com pesados investimentos de um Estado
autoritário, sem contrapartida de direitos de cidadania aos trabalhadores.
O historiador Pereira (1990) definiu este período como tecnoburocrático-capitalista.
Segundo ele, o que caracterizou o período dessa forma foi o fato deste estar baseado em uma
aliança entre a tecnoburocracia militar e civil de um lado, e o capitalismo internacional e
nacional de outro. A aliança estava ancorada em um modelo econômico de desenvolvimento
que tinha como meta a modernização da economia, através da concentração de renda nas
classes alta e média e pela marginalização da classe baixa.
De acordo com Pereira, o objetivo inicial dos militares, ao proferir o golpe em 1964,
era o de entregar posteriormente o poder ao grupo capitalista, dentro dos moldes clássicos do
capitalismo liberal. Entretanto, os militares “verificaram que possuíam força e suficiente
capacidade técnica e organizacional para se manterem no poder” e que “poderiam liderar uma
política desenvolvimentista, em estreita aliança com o capitalismo nacional e internacional”.
O golpe teria tido seu êxito neste sentido, pois, segundo Pereira (1990, p. 180-185),
Os militares, que assumiram o poder em 1964, constituem um grupo técnico-
burocrático por excelência. Originaram-se de uma organização burocrática
moderna como são as Forças Armadas. Possuem preparo técnico,
administram recursos humanos e materiais consideráveis. Adotam sempre
critérios de eficiência própria da tecnoburocracia. Como se não bastassem,
chamaram imediatamente para participar do governo os tecnoburocratas
civis. Estes dois grupos, de origem da nova classe média, a partir
especialmente do governo Costa e Silva, assumiram plenamente as rédeas do
governo, e colocaram como seus objetivos básicos o desenvolvimento
econômico e a segurança.
O regime militar no Brasil buscou modernizar o país nestes moldes do capitalismo
moderno e imperialista. O projeto dos militares visava justamente à modernização do nosso
país, com enfoque na sua economia e na industrialização dos seus meios de produção. Os
militares usaram o discurso da segurança nacional e do desenvolvimento econômico do país e
consolidaram, através da força, a ditadura.
Para tanto, foi necessário, conforme Bosi (2004, p. 145),
[...] cristalizar as divisões da sociedade, fazendo-as passar por naturais;
depois, encobrir, pela escola e pela propaganda, o caráter opressivo das
barreiras; por último, justificá-las sob os nomes vinculantes como Progresso,
Ordem, Nação, Desenvolvimento, Segurança, Planificação e até mesmo (por
que não?) Revolução.
A oposição ao regime ocorreu de diversas maneiras, e pelos mais diferentes grupos
sociais. De acordo com Tavares e Weis, a oposição ao regime orquestrava-se por uma classe
média artística e intelectualmente influenciada pela as lutas revolucionárias que se
espalhavam pelo mundo. Essa oposição se efetivava das mais diversas maneiras, desde o
empreendimento de ações espontâneas e ocasionais, até o engajamento em tempo integral em
milícias armadas. Entre estes extremos, participar da oposição incluía assinar manifestos,
participar de assembléias e manifestações blicas, dar conferências, compor músicas,
escrever artigos, romances, filmes ou peças de teatro, emprestar a casa para reuniões políticas,
guardar ou distribuir panfletos de organizações ilegais.
Houve, então, diversos locais onde a arte passou a assumir o seu caráter de
resistência. Grupos de teatro proliferaram, como o caso do Teatro Paulista do Estudante
(TPE), o Teatro Arena, Centros Populares de Cultura (CPC), o Teatro Opinião, entre outros.
Assim, a década de sessenta foi composta por movimentos estéticos que apresentavam um
diálogo amplo, que, nas palavras de Hollanda (2004, p. 132), “se radicaliza progressivamente
numa crítica à noção técnica, de progresso e na própria maneira de pensar o futuro”.
Santiago (2004) aborda que esse momento foi marcado principalmente no campo da
arte, por um discurso encorajador do conflito armado. O autor, influenciado pelo exemplo do
cinema novo, mostra que o filme Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, segundo a
opinião do guerrilheiro Fernando Gabeira, “o ator principal, Jardel Filho, saía com sua
metralhadora dando tiros a esmo, simbolizando dessa forma uma revolta quase que pessoal e
desesperada”. “Sempre estivemos diante de discursos que encorajavam o conflito armado” (p.
109).
Com o crescimento da repressão o cenário cultural brasileiro sofreu nova mudança.
As torturas, os exílios, e as prisões de intelectuais e artistas, desenharam uma conjuntura de
contenção das expressões artísticas através da vigilância e da censura. É o momento da poesia
marginal, que com sua simplicidade aborda o mal-estar de uma geração tendo como cenário o
ambiente cotidiano para o “fazer” poético num clima contaminado pela opressão e pelo início
da diluição dos projetos utópicos da geração de 60.
A poesia marginal representa o resultado do encontro de duas gerações: daqueles que
produziram nos anos 60 e daqueles que começaram a produzir nos pós-68. É uma poesia em
contato direto com o leitor interessado. Produzida em mimeógrafo e vendida pelos próprios
poetas que, contrariando o mercado editorial, propõem formas alternativas de edição e
distribuição.
Essa poesia se aproxima do dia-a-dia das pessoas, refletindo as encruzilhadas e as
possibilidades de fuga de uma geração que experimentava um desencantamento nascido da
diluição dos projetos libertários da década anterior, agonizantes e perplexos ante à cooptação,
por parte dos apelos do consumismo capitalista, de figuras heróicas que simbolizavam a
rebeldia evidenciada nessa década. A geração de 70 é formada pela população ainda
adolescente em 68. É uma década composta por indivíduos que faziam faculdade nos fins dos
anos 60 e se profissionalizavam em meados dos anos 70. O comportamento dessa juventude é
caracterizado pela revolução de comportamentos. Era a vez do sexo livre, da apologia às
drogas e diversão sem limites. E aliada a essa revolução comportamental a afirmação
individual e ao mesmo tempo coletiva de escancaramento dos valores por essa juventude
difundidos. Nesse panorama, os atos de loucura são vistos como atos corriqueiros e as drogas
aparecem como elemento essencial dessa nova postura juvenil. Os comportamentos
paradoxais permeiam o cotidiano desse jovem de 70: euforia e morte; prazer e sofrimento;
peso e leveza.
Como define Moriconi (1996, p. 46 ),
[...] a geração 70 é formada pela fração mais jovem, ainda adolescente em 68
[...] a revolução comportamental [...] a loucura como pão cotidiano, em
diversos graus, diferentes modalidades. Do patológico ao fogo brando, do
caso de internação ao deslize inadvertido da viagem de cogumelo ao delírio
passional. O lado sombrio da revolução. Woodstock e Altamont. Woodstock
e Ato Institucional Número 5.
Ao final dos anos sessenta era latente o fracasso do projeto estético/político que,
utopicamente construído a partir de uma sociedade fantasiosa, não se deu conta do que
realmente estava acontecendo nas bases concretas da sociedade em vigor. Nesse período, o
intelectual se depara com o fracasso histórico real e, em função disso, não consegue
configurar o mundo de acordo com o protótipo dos anos 60. Resta-lhe a sensação de
estranhamento e solidão. Não lhe cabe mais ser a voz do oprimido. Resta-lhe no momento
escutar seus próprios anseios e desilusões, pois sua voz engajada cede lugar ao silêncio
proporcionado por um espaço político destituído de práticas de contestação mais sólidas e
evidentes.
De acordo com as palavras de Gonzaga (1981, p. 146),
Poder-se-ia dizer em termos esquemáticos que a literatura brasileira, nos
primórdios da atual década, viveu duas perspectivas preponderantes. De um
lado, aquela vertente psicologista, estabelecida em geral por mulheres, e que
segue até hoje, onde toda a ação, todo o gesto social convertem-se em
matéria de consciência, fluxo interior, contemplação obsessiva de
subjetividade histórica dos setores destroçados pela nova modernização da
sociedade e que não aceitaram ser cooptados. Dessa tendência, temos um
punhado de obras importantes. Obras que refletem tanto a crise política
quanto a existencial.
As marcas antitéticas, suscitadas pelo estilhaçamento do indivíduo, sua dispersão e a
busca desenfreada por uma totalidade que recupere o eu-no-mundo, definem o conjunto de
elaborações literárias nesse período. Subjetividades sedimentadas pela fratura dos sonhos
passeiam pelos universos ficcionais prodigalizando as agruras e angústias provenientes do
fato de ainda se ter esperança. Os textos são compostos por um irracionalismo que se refugia
na história numa busca incessante pelo impossível. Autores como Caio Fernando Abreu,
segundo Gonzaga, representa bem essa nova era da literatura, pois “ninguém soube apontar a
inviabilidade de tal evasão como Abreu. Afinal, ele participara daquela voragem,
glamourizada sob o nome de contracultura”.
2.3 Uma contística entre o intimismo e a contestação social
A postura intimista que caracteriza a ficção de Caio Fernando Abreu efetiva-se, de
certa forma, na esteira de uma produção literária delineada a partir de 1945 e que consistia na
expressão exacerbada de um eu multifacetado e disperso num hermético universo psicológico
que, não obstante, traduzia um descontentamento com as engrenagens que determinavam as
relações sociais e intersubjetivas. A representação desse eu atordoado entre os cacos de uma
identidade em desagregação parece, ainda assim, apontar para a urgência da instauração de
um estado digno de humanidade, cicatrizando as feridas da guerra.
A problemática que se interpõe entre elaboração estética e preocupação ética
resolveu-se através de um experimentalismo marcado por fluxo da consciência, imersão no
universo inconsciente, uso de metáforas bizarras, enfim, por um aparato estilístico e simbólico
que visa à representação do mal-estar do indivíduo diante do absurdo de um mundo em
degradação social.
Na obra de Abreu, a essa sombra densa das lembranças das agruras do pós-guerra,
aglutinam-se alguns outros eventos histórico-culturais que marcarão toda a segunda metade
do século XX, os quais sejam: o aperfeiçoamento da racionalidade técnica capitalista, a
produção em massa dos bens culturais, as práticas de resistência contraculturais, os regimes
políticos autoritários de esquerda e de direita, a ditadura militar, os movimentos de renovação
estética e política, a luta armada. Esses eventos alicerçam uma conjuntura que fornece
condições materiais para o surgimento de uma geração que semeia a utopia delirantemente e
que vivencia a angústia de um fracasso na semente anunciado.
Os contos de Abreu, predominantemente escritos em primeira pessoa, oferecem ao
narrador uma posição privilegiada. A postura desse narrador evolui do entusiasmo inicial à
escritura fortemente contestadora que se estrutura numa forma de dizer e articular
experiências existenciais singulares que funcionam como marca engajada em torno das
representações da sensibilidade e dos vazios deixados pela contracultura radical. Entendemos
que a literatura não representa a realidade, mas a imita de maneira que haja uma vertente para
a ficção e dela se reconheça o processo simbólico das relações humanas.
Dessa forma, o autor atribui vida a um narrador que será protótipo de boa parte de
sua poética: de maneira introspectiva, o narrador captura os momentos reais em que, através
de digressões, coaduna um cenário de ocorrências que estruturam um enredo entrecortado por
vozes e situações distintas buscando retratar identidades imersas em conflitos construídos a
partir das suas inaptidões no lidar com seus vários eus. A função desse narrador, atordoado
ante a sensação de impotência do narrar, é constituir as formas de recuperar sua totalidade,
instituindo esteticamente o caos em busca da ordem.
Em quase todos os contos, o escritor aborda temas do tipo: o estranhamento, a
solidão, a dor e o sentimento de marginalização. Mergulhados no espaço da pós-modernidade,
sua narrativa representa seres degradados pelas drogas, paranóias, esquizofrenia, desencanto,
muita procura e muito desamparo.
A cidade é o cenário preferido dos seus personagens, que embora tratem de
narrativas onde a temática social predomina, esta é filtrada pela interioridade das figuras
humanas, que reagem de várias maneiras aos fatos. Por isso a literatura de tema urbano tende
a aprofundar a análise da vida interior das personagens.
Assim, sua narrativa pode ser classificada de psicológica, porque enfatiza o prisma
intimista sob o qual os eventos externos são percebidos; e estes, embora não deixem de ter
sentidos sociais, misturam-se aos problemas de uma subjetividade que se lança à angústia de
questionar tais eventos.
Em Pedras de Calcutá, todos os contos abordam esse caráter intimista aliado a um
inconformismo diante de regras sociais impostas, que configuram um quadro psicológico em
que os matizes de uma esperança melancólica e renitente copulam com uma flagrante
sensação de impotência. A asfixia e a náusea instalam-se nas narrativas, contornando-lhes a
silhueta caótica que parece capturar o desencanto da juventude dos anos 70 que, oprimida pela
censura político-ideológica do regime militar, assistiria à ruína dos ideais da contracultura e
ao chamado fim das utopias. Tumultuada pela paranóia e pelo abandono, a obra consiste num
grito agonizante e mudo, quase insano. O próprio Caio Fernando Abreu vai denominá-la de
“livro de horror”. Nesta antologia, estão distribuídos seres desprezíveis, perseguições e
passagens que beiram ao absurdo.
Vale salientar que a essência de Pedras de Calcutá não se resume apenas às
posturas desses personagens, mas, sobretudo, consiste na projeção de um interior torturado
pelo horror psicológico, um conjunto de “eus” esmagado entre a realidade decadente e o
imaginário torvo. Revela, no que há de mais subjetivo e grotesco, a revolta e amargura de uma
geração ainda embebida pela ilusão de dias melhores.
Influenciado por autores intimistas, Caio Fernando Abreu cita Carlos Drummond de
Andrade e Clarice Lispector, a fim de adornar seus contos ágeis e os fluxos de pensamento. O
livro, dividido em duas partes, compila 19 contos de temáticas distintas, no entanto,
interligadas por manifestações como solidão, amor, dor e sensação de estar à margem. Seus
personagens transitam entre a histeria diária à loucura progressiva. Representam, em sua
totalidade, mais indagações e catarses que descobrimentos. Todavia, abrem espaço, através de
uma poesia urgente, para o sentimento paradoxal do conformismo inconformado que,
também, tomaria conta das personagens de outra coletânea de contos do escritor intitulada
Morangos Mofados.
O inconformismo conformado de Morangos Mofados caracteriza-a como uma obra
de transição que apresenta uma linguagem literária composta por um desprendimento
sintático-semântico no corpo de cada texto. Texto em que a palavra tem consciência do seu
limite, de sua incapacidade de dizer tudo. Apresenta na organização dos seus contos, que
compõem suas três partes “O Mofo”, “Os Morangos” e “Morangos Mofados”, uma forma
excêntrica e atípica, uma vez que a estrutura de suas narrativas se destituída da linearidade
e da especificidade: apresenta contos com estrutura de uma ópera: “Morangos Mofados”,
homônimo do livro; contos que simbolizam uma câmara fotográfica: fotografia: “18 x 24:
Gladys / 3 x 4: Liége”; “Além do ponto” e contos com estrutura de teatro: “Diálogo”; O dia
em que Júpiter encontrou Saturno”, entre outros.
A estrutura da linguagem fragmentada calcada num desregramento do texto é
conseqüência de uma consciência crítica que fica notória quando personagens e narradores se
encontram inseridos na sociedade de consumo. Daí, os contos compostos em Morangos
Mofados apresentam um valioso arsenal de significantes e significados que farão parte
integrante do conjunto dessas narrativas. Tais recursos polifônicos são perceptíveis na obra,
pois o autor se utiliza desses artefatos para tratar do mal-estar que a contemporaneidade
provoca no sujeito. Cada narrativa constrói as imagens da dor, do fracasso, da esperança, dos
anseios, dos encontros e desencontros. Percebe-se que o enredo de cada conto se completa na
incompletude do outro e assim sucessivamente.
A perspectiva de mudança para uma sociedade mais justa é posta em questionamento
por essa juventude de 70. São jovens conscientes de que o sonho acabou. A utopia de dias
esplendorosos chega ao seu final. O que resta é desvendar o ser humano naquilo que ele
possui de mais íntimo sua existência intenta sempre decifrar os vários eus que compõem
esse sujeito. A busca do conhecimento de si também abre uma ponte para o conhecimento do
outro. Isso ocorre na obra de diversas maneiras: ora pela poesia, ora pela crueza do
desmascaramento da sociedade hipócrita, mas de maneira sutil e irônica com toda sutileza de
um mestre.
Na primeira parte do livro “O mofo” composto por nove contos percebe-se a
presença de narradores e personagens que representam a vida numa época de plena repressão
a ditadura militar -. Os personagens que compõem os enredos desses contos vivenciam o
dilema de restrição da liberdade. A segunda parte do livro “Os Morangos” é a continuação
desse martírio. Os oito contos que a integram reforçam a idéia desse período conturbado. A
última parte do livro “Morangos Mofados” representada por um único conto homônimo
do livro, simboliza a esperança. Metaforicamente, os morangos são a queda e insuficiência da
utopia, pois representam nas duas partes iniciais o mofo; ou seja, a desilusão de que o sonho
acabou.
No entanto, essa última parte metaforiza a esperança: os morangos mofaram, mas
resta-lhe sua essência. O sujeito, nos textos de Abreu, será mostrado com sua fragilidade e
exposto a várias formas de opressão. O autor compõe suas tramas numa abordagem de
problemáticas estéticas, existenciais e políticas, perfilando as personagens em situações
periféricas e perturbadoras, desenhando um ambiente em que desfilam indivíduos
desajustados, construindo, sob uma forma agenciadora de dizer e de articular experiências
existenciais próprias dessas individualidades destoantes, uma possibilidade alternativa de
escrita engajada, diferenciada do que se convencionou denominar arte engajada, posto que,
aqui, o que predomina são os modos de representar a sensibilidade, as inquietações de sujeitos
descontentes com as formas de ser distribuídas na e pela máquina social.
2.4 Uma contística como “palco dos desajustados”
Considerando-se a inescapável possibilidade da configuração de uma simbologia
social nos empreendimentos ficcionais, propõe-se aqui, na medida em que este trabalho
consiste na análise da condição de personagens em desacordo com formas de ser distribuídas
e aceitas pela máquina social, uma abordagem sobre noções acerca da questão do sujeito.
A concepção cartesiana de sujeito baseia-se na noção de um centramento constituído
pela razão consciente, conferindo-lhe uma identidade que se vincula à idéia de fixidez e
unicidade. Essa consciência racional, que atrela à condição humana um caráter de autonomia,
fundamenta o campo de qualquer conhecimento. Para Descartes (2005), a verdade reside no
cogito, a que se opõem as incertezas de um mundo objetivo e sensível, colocando, dessa
forma, a problemática do sujeito no âmbito da abstração evidenciada segundo uma proposta
conceitual que aponta para o estatuto do universal. Tem-se, portanto, uma noção
universalizante e abstrata do sujeito.
Posteriormente, a crítica da sociologia ao pensamento cartesiano introduz a noção do
sujeito sociológico, detentor de uma subjetividade construída nas relações sociais. Essa
subjetividade, que é conectada a um “eu real” preexistente, define a identidade do sujeito
como processos de “internalização do exterior” nele mesmo e de “externalização do interior”
no mundo social onde o indivíduo exerce suas atividades (HALL, 2002, p. 31). Neste caso, o
eu como “essência interior”, embora não seja autônomo, que é “formado e modificado”
pela cultura, continua como agenciador do sujeito, pois é ele o “eu real” que estabelece a
conexão do sujeito com o mundo cultural fora dele.
Contrapondo-se ao racionalismo cartesiano e sociológico, a psicanálise, com a teoria
do inconsciente, produziu um descentramento da razão e da consciência, retirando-as do trono
sagrado onde se localizavam. É esse sujeito do conhecimento compreendido pela psicanálise
que surgirá como a referência a partir da qual a verdade aparece. Mais que isso, a psicanálise
não aborda a questão do sujeito da verdade, mas a questão da verdade do sujeito. Ela
questionará este sujeito do desejo que o racionalismo excluiu. Introduzir a idéia de
inconsciente nos processos de construção do conhecimento instaura, no campo das discussões
epistemológicas, a questão das verdades relativas, uma vez que o comportamento humano
passa a ser concebido como determinado pelas forças cegas e irracionais do inconsciente,
sobretudo, porque a psicanálise não defende a idéia da consciência em sua totalidade. Deste
modo, ela faz com que se reconheça uma parte de nós (capacidades psíquicas e mentais)
incontrolável, o que não se coaduna com a idéia de soberania do sujeito.
Diante disso, a psicanálise com a concepção do inconsciente, afirma que a
identidade, a sexualidade e os desejos derivam de “processos simbólicos” e não da razão
(HALL, 2002, p 36). Para Freud (1997), a imagem do eu unificado é uma ilusão que tem
origem na primeira infância, quando a criança ainda não possui uma essência do eu formada.
Neste caso, ela passa a ter uma imagem de si mesma pelo olhar do outro, e é este outro que
lhe porá em contato com estes sistemas a cultura, a diferença entre os sexos e a língua – que
a fora dela. A identidade, nessa perspectiva, é construída ao longo da vida, por meio de
processos inconscientes, implicados com a fantasia e com a imaginação da completude.
A descoberta de Freud sobre o inconsciente, aliado ao pensamento de outros teóricos,
que viram a subjetividade como uma “propriedade de ser do sujeito”, construída por meio de
relações e dependências sociais, culturais e políticas, impulsionou os estudos atuais no campo
da epistemologia do sujeito e da identidade, conferindo uma perspectiva dialética entre
identidade e alteridade, estando esse último termo conceitual diretamente implicado com a
desconstrução, tanto da concepção exclusivamente sociológica de sujeitos históricos, políticos
e sociais como da tradição cartesiana, bem como com a possibilidade de visualização dos
sujeitos excluídos na esfera social.
Nessa perspectiva, também a crítica feminista da cultura “teve uma relação direta
com o descentramento conceitual do sujeito cartesiano e sociológico” (HALL, 2002, p. 45) ao
problematizar o modo como os sujeitos são formados e construídos, ao atrair para dentro das
noções de subjetividade, identidade e identificações dos sujeitos sociais, homens e mulheres,
uma conotação política. Isto aconteceu a partir da preocupação feminista com a não
visualização das mulheres na construção da história e da ciência, com a desigualdade de
tratamento verificada nas relações de gênero e sedimentada pelos discursos das diferenças
biológicas, e com as conseqüências dessa desigualdade para as relações intersubjetivas. Essa
conotação política culmina na efervescência de lutas pelos espaços e direitos dos mais
variados grupos minoritários, suscitando a formação de todo um arcabouço teórico acerca das
minorias excluídas.
De acordo com Foucault (1972), o tema do sujeito é explicitado a partir dos elos
entre as micro-relações de poder, a cultura e a implicação dessas noções na produção dos
sujeitos. Dessa forma, a idéia de uma identidade una, fixa e centrada recebe seu golpe de
misericórdia, na medida em que suas bases passam a ser consideradas como estratégias
discursivas e simbólicas tecidas no jogo dessas micro-relações. Sobre isso, afirma Foucault
(2001, p 34),
Esta identidade, bastante fraca, contudo, que nós tentamos assegurar e reunir
sob uma máscara, é apenas uma paródia: o plural a habita, almas
inumeráveis nela disputam: os sistemas se entrecruzam e se dominam uns
aos outros. [...] E, em cada uma destas almas, a história não descobrirá uma
identidade esquecida, sempre pronta a renascer, mas um sistema complexo
de elementos múltiplos, distintos, e que nenhum poder de síntese domina: “é
um signo de cultura superior manter em toda consciência certas fases da
evolução que os homens menores atravessam sem pensar...”
Assim, a identidade é inacabada e relativa, porque está associada às condições
sociais e simbólicas de cada indivíduo que ela representa. Neste caso, os processos sociais e
simbólicos, embora sejam distintos, são complementares para a criação e manutenção das
identidades. Assim, tais processos permitem que pensemos a identidade como um sistema
classificatório capaz de revelar como as relações sociais são organizadas e divididas. Daí se
conclui que as identidades não podem ser consideradas unificadas uma vez que, são
representantes de uma cultura composta por um sistema simbólico atrelado ao conjunto de
relações sociais variadas. Como afirma Rutherford (
1990, p. 19-20),
[...] a identidade marca o
encontro de nosso passado com as relações sociais, culturais e econômicas nas quais vivemos
agora... a identidade é a intersecção de nossas vidas cotidianas com as relações econômicas e
políticas de subordinação e dominação”.
De acordo com Guattari (1996, p. 69-99) “a identidade é aquilo que faz passar a
singularidade de diferentes maneiras de existir por um e mesmo quadro de referência
identificável”. A reflexão considera que nós nos formamos com base nas experiências pelas
quais passamos. Estas nos direcionam e nos redirecionam num contexto amplo pertinente, ou
seja, nós existimos e vivenciamos referências múltiplas, uma vez que somos múltiplos.
Deleuze (1991), ao abordar o sujeito sob esse prisma, explicita que “um indivíduo
adquire um verdadeiro nome próprio no fim do mais severo exercício de despersonalização,
quando se abre às multiplicidades que o atravessam de lado a lado, às intensidades que o
percorrem” (p. 143). Em outras palavras, “o sujeito não deve ser entendido nem como
universal, nem como um indivíduo, mas, antes, como uma multiplicidade virtual...O uno, o
Todo, o Verdadeiro, o objeto, o sujeito não são universais, mas processos, singulares de
unificação, totalização, verificação, objetivação, subjetivação” (DELEUZE, 1992, p. 162).
O processo de constituição do sujeito é, assim, perpassado por uma rede de múltiplas
referências que, concomitantemente, fratura e estilhaça o eu sob a ilusão de modernos
discursos e práticas vinculados à idéia de liberdade individual, bem como cristaliza formas de
ser padronizadas, configurando ilhas periféricas de individualidades destoantes no âmago de
suas relações com tais discursos e práticas que os marginalizam, criando a problemática das
minorias com seus sujeitos excluídos.
A experiência de mundo, enquanto lugar onde o ser humano se desenvolve
plenamente pressupõe a interação do sujeito com os diferentes outros que lhe interpelam e de
cuja presença não pode se privar em sociedade. Como parte desse mundo, o outro participa na
construção da própria imagem do eu, vendo-se também como parcela desse outro ao qual
revela componentes de uma alteridade semelhante. Perceber-se pelo outro é entender que este
possui “pontos” idênticos aos seus, facilmente reconhecidos, ou que, ao contrário, alguns
deles podem lhe causar “estranheza”.
De acordo com Augras (1986, p. 56), as dificuldades em aceitar o outro como
diferente repousam na própria dificuldade em aceitar “o duplo” inerente a si mesmo, “para si
e para os outros”. A negação, o não reconhecimento dessa totalidade que caracteriza a
experiência humana, isto é, a junção do eu com o outro no processo de formação da
subjetividade, desencadeia inúmeros problemas de relacionamento entre os sujeitos.
De acordo com a crítica da cultura, o estágio da modernidade atual
“desregulamentou” e “privatizou” os projetos coletivos, que deveriam se voltar para o
desenvolvimento social e humano, deixando-os a cargo dos próprios indivíduos que tendem
agora, mais que em outras épocas, a disputar os espaços da sobrevivência e a buscar a auto-
afirmação por meio de estratégias individualistas, conforme discute Bauman (2001, p. 38),
Essa importante alteração se reflete na realocação do discurso
ético/político do quadro da ‘sociedade justa’ para o dos ‘direitos humanos’,
isto é, voltando o foco daquele discurso ao direito de os indivíduos
permanecerem diferentes e de escolherem à vontade seus próprios modelos
de felicidade e de modo de vida adequado.
Zbysko Melosik e Tomasz Szkudlarek (2001) em estudo sobre a identidade, afirmam
que a liberdade de escolher o que se deseja ser para tornar-se alguém pressupõe o
inacabamento do sujeito e sua expansão ao longo da existência. Mas essa expansão depende
de que o caminho esteja aberto. Numa sociedade onde nada o que ilumine a escolha, a não
ser a imposição de padrões modernos de vida, os indivíduos assumem sozinhos o risco dessas
escolhas, na ilusão de que dispõem de sua liberdade individual.
A questão da emergência de projetos utópicos confrontando-se com o advento dos
individualismos apregoados como independência e liberdade tem sido discutida por alguns
estudiosos da pós- modernidade, os quais, não raro, dialogam com a cultura, a economia, a
política, a ética dentre outros aspectos sociais vigentes em sua época.
Sobre essa questão, o pensamento de Jameson (1993, p. 27) enfatiza que
Um conceito periodizante, cuja função é correlacionar a emergência de
novos aspectos formais da cultura com a emergência de um novo tipo de
vida social e com uma nova ordem econômica aquilo que muitas vezes se
chama, eufemisticamente, de modernização, sociedade pós-industrial ou de
consumo, sociedade da mídia ou dos espetáculos, ou capitalismo
multinacional.
Na pós-modernidade, todos os conceitos são válidos, à medida que são postos em
diálogo pelo olhar recepcional que deles quer uma resposta à angústia e à perplexidade
existencial do momento presente. A literatura, nesse aspecto, é entendida como polifônica,
uma paródia pós-moderna, que coexiste no espaço ficcional multifacetado, auto-crítico,
porque se encontra situada “na transição” dos saberes, das fatias de temporalidade e de
costumes.
Na escritura do mundo contemporâneo, os conflitos de ordens política, social,
religiosa e étnica ajudam a compor o cenário globalizado onde os atores universalizam suas
vozes não apenas diante das contingências nacionais, mas, sobretudo, diante das
contingências dos sujeitos inseridos nesse mundo, cujas influências sobre eles têm modificado
suas ações e as formas de inter-relação com o outro.
No que concerne à representação das identidades constituídas no jogo dessa
configuração social, cultural e existencial no âmbito da literatura, evidentemente que o que
está em jogo são as temáticas que o texto literário aborda. Temas como a angústia e solidão
representam os sujeitos pós-modernos no espaço desconfortável que a pós-modernidade
proporciona. Nesse sentido, estamos diante de uma literatura que descreve a cultura como um
repertório permanentemente aberto e dinâmico, o que valida as considerações anteriores sobre
o conceito de identidade múltipla e dos agenciamentos presentes nessa cultura que permitem
constantes transformações desse sujeito híbrido cuja multiplicidade resulta nessa polifonia.
Veremos que, paralelamente à dinamização das relações de consumo e de descentramentos, o
sujeito se desloca em relação a seus referenciais familiares, geográficos, político-pedagógicos,
tornando-se uma consciência dispersa em meio à multidão. Desse processo, surge uma
constante insatisfação por estar no mundo em que as regras são elaboradas à revelia dos
desejos, um mal-estar generalizado que tende à formação da melancolia, da depressão e da
angústia e, ainda assim, de uma esperança cega e renitente.
A literatura está destituída de uma função apenas informativa e busca novos modos
de perceber o mundo que a cerca e de relacionar-se com ele. O escritor tem consciência da
resistência da realidade em deixar-se apreender numa linguagem e procurará cada vez mais,
incessantemente, afirmar sua autonomia e sua insubordinação, não apenas em relação à
realidade supostamente concreta do mundo, mas também em relação aos demais campos do
conhecimento humano. O homem não tem acesso direto ao mundo, mas somente às suas
representações; que não um modelo primeiro e originário, que este é sempre e ainda
apreendido não como coisa, mas como representação que convoca instantaneamente outra
representação.
A realidade em si é, na verdade, inapreensível e o que se representa, se escrevem um
texto literário é sempre mais uma representação da realidade, uma outra representação da
realidade. Longe, pois, de tentar responder à questão sobre o que se representa quando se
representa alguma coisa, o artista contemporâneo veio fazer da sustentação da interrogação,
do esforço de não dissimulá-la, o desafio de sua arte.
A partir de toda essa discussão, conclui-se que a configuração do sujeito
contemporâneo parece caracterizar-se pela efetivação de identidades múltiplas e cambiantes
que, não raro, conferem ao indivíduo uma sensação de vazio ontológico, uma dispersão do eu
que, desagregado entre os detritos de uma humanidade esfacelada e amorfa, tateia as
infinitesimais possibilidades de si e as capilares e esvoaçantes metralhas de utopias humanas
desmoronadas. Individualidades destoantes margeiam uma estrutura densa, pesada, petrificada
que, a mercê de suas vestes insinuantemente aladas por um vento liberal e democrático,
relegam tais individualidades ao exílio do desprezo, ao ostracismo da indiferença. A estratégia
dos discursos delineados pela máquina social capitalista e liberal não se trata mais da
distribuição gratuita de métodos coercitivos explícitos, mas do desdém dissimulado através da
cínica transformação dos sonhos de toda uma geração em atraentes bens de consumo.
A representação dessa conjuntura nos universos ficcionais dos contos de Caio
Fernando Abreu constitui-se, como foi sugerido, através da forma com que o plano não
linear das narrativas, caótica e visceralmente configurado, desenha o horror da depreensão do
mundo materializado numa engrenagem com a qual se está em permanente desacordo.
Parece procedente aventar aqui a relação do narrador verificado nas narrativas de
Caio Fernando Abreu com a discussão proposta por Adorno (1983) sobre a impotência que
caracteriza o narrador contemporâneo. Embora suas considerações teóricas circunscrevam-se
ao universo da narrativa romanesca, consideramos pertinente relacioná-las a abordagem das
narrativas curtas, na medida em que o fato romanesco contemporâneo (denominado pelo
teórico de epopéia negativa), cuja característica que lhe confere a possibilidade de se efetivar
como uma “resposta antecipadora a uma condição do mundo em que a atitude contemplativa
virou escárnio total, porque a ameaça permanente de catástrofe não permite a mais ninguém a
observação desinteressada, nem mesmo sua reprodução estética” (ADORNO, 1983, p. 272),
verifica-se também no conto contemporâneo.
A crise da narrativa tradicional, enquanto encadeamento linear de fatos, que
permeiam o universo das relações entre as personagens num dado tempo cronológico
transcorrido, consiste no reflexo de um mundo estandartizado e coisificado que explicita um
paradoxo agora imanente à condição da narrativa, o qual seja: impossibilidade do narrar e a
exigência da narração. O estado de espírito das personagens envolvido em intensas e
constantes crises suscitadas em suas relações com o meio é mencionado e analisado por um
narrador em primeira pessoa imerso em caóticos e cíclicos monólogos em que se flagra a
impotência de sua contestação diante dos eventos que relata.
Para elucidar o que foi dito acima, afirme-se ainda, de acordo com Adorno, (1983)
que “o sujeito da criação literária, que renega as convenções da representação do objeto,
reconhece, ao mesmo tempo, a própria impotência, o superpoder do mundo coisa que no meio
do monologo retorna” (p.273).
O narrador personagem nos contos de Caio Fernando Abreu, constatando o paradoxo
advindo de sua dispersão em busca da totalidade, submerge-se nas profundezas de universos
ficcionais cuja impotência diante da necessidade da recuperação de uma narrativa da utopia
num mundo onde se cristalizam as individualidades estandartizadas se flagrada no centro
de seus monólogos, os quais, apesar disso, denotam, no pertencimento a personagens
portadoras de estigmas sociais e de formas de ser alternativas, a possibilidade de superação do
holocausto.
3 VIAGEM AO ENCONTRO DOS PORÕES DE SI MESMO: UMA LEITURA DO
CONTO HOLOCAUSTO, DE CAIO FERNANDO ABREU
Na segunda metade do século XX, um processo que arrastava desde o final do século
anterior acentua-se vertiginosamente. Todos os eventos intrínsecos à modernidade e o
recrudescimento das populações urbanas oriundos das condições materiais, sejam
econômicas, políticas ou simbólicas, nesse momento histórico evidenciadas, teciam um
quadro de dessedimentação e dispersão da experiência da subjetividade. As oscilações bruscas
e constantes das forças centrífugas e centrípetas produzidas por uma rede de interações
confeccionadas entre os sujeitos e os fenômenos sociais desembocam na constituição de um
sujeito que vive a experiência do isolamento na multidão, catando entre os detritos do
universo urbano os cacos de utopias dilaceradas.
Verifica-se um recrudescimento dessa condição precisamente nesses períodos
mencionados, estabelecendo-se uma variedade de posições do sujeito que, inserido nesse
vendaval que solapa formas tradicionais de ordem social e instauram novos modos de
existências, mergulha numa busca desenfreada pela idéia de uma totalidade humana
possibilitada, quiçá, pela construção de um sonho coletivo, tudo isso configurado pela
sensação do malogro iminente e inescapável, herói degradado de um mundo entre ruínas e
construção, “vítima anônima, confrontado por uma burocracia sem rosto”(HALL, 2000 p. 33).
A urbanização que proporciona essa individualidade do sujeito deixa como resultado
a construção de indivíduos com identidades em trânsito, iniciando assim, uma incessante
busca do Eu. A esse sujeito são apresentadas as diversas possibilidades de identidade. O
espaço urbano pode ser visto como lugar de estranhamento por aqueles que não se
reconhecem nele. A vida citadina é, muitas vezes, encarada com um certo espanto, uma
inadequação, uma dúvida. De acordo com Bruno Sousa Leal (2002)
O desafio contemporâneo de individualização carrega consigo um
estranhamento, um sentimento de inadequação, como se toda certeza
estivesse impregnada por uma transitoriedade [ ...] A metrópole uniformiza
os indivíduos e as coisas e determina relações e atitudes; é, também uma
estrutura impessoal, que se sobrepõe aos indivíduos, indiferenciando-os. É,
ainda, o lugar da divisão econômica do trabalho, da especialização, da
fragmentação e do rompimento com vínculos históricos tradicionais.” (p-
13).
Diante dessas individualidades destoantes proporcionadas pela contemporaneidade, o
indivíduo do espaço urbano se vê estimulado e confuso, ao mesmo tempo, em seu processo de
individualização. É um ser anônimo e impessoal, mas é também livre e desenraizado, ele tem
que encontrar-se, constantemente, numa constante elaboração de si mesmo.
É o que acontece com o narrador de “Holocausto”, de Caio Fernando Abreu. Aqui,
um narrador-personagem, inominado e degradado por chagas físicas que metaforizam um
estado psicológico angustiantemente imerso na agonia da ambivalência instaurada pela
necessidade da urgência de recuperação de um projeto coletivo que se sabe irrealizável.
Delineada a melancolia nesses termos, observa-se a referência ao fogo em todas as suas
implicações simbólicas, desde a associação com o castigo imposto sob o véu da purificação e
redenção até a sua relação com a idéia de liberdade e transformação. Analisaremos a seguir
como se efetiva a postura desse narrador-personagem diante da condição que lhe é imposta
(ou proposta compulsoriamente) e aceita em meio a protestos e sublevações que, entre o
desencanto e a resistência, busca meios de cristalizar a sabotagem dos discursos e práticas
definidos pela engrenagem social que o marginaliza.
Holocausto é um conto um pouco distante da forma tradicional, o enredo se prende a
descrições de estados emocionais e existenciais do narrador. É como se o leitor estivesse
diante de uma paisagem íntima do protagonista. O conto discute o problema da experiência
humana e os conflitos sociais através da produção das individualidades destoantes também
criadas pelos grandes centros urbanos. O narrador-personagem inominado representa um ser
isolado e muitas vezes marginalizado:
Consegui localizar um movimento interno em mim no momento em que
queimei aquela fita azul. Eu a guardava fazia muito tempo. Foi uma menina
de cabelos vermelhos que a jogou para mim, um dia, no parque, como quem
joga um osso a um cão faminto. A minha mão estremeceu (ABREU 1977:
21).
O monólogo interior do narrador é composto por uma linguagem solitária,
desesperançada que busca incessantemente encontrar-se. Parece que sua angústia maior é a
sua incapacidade de chegar ao seu interlocutor através de palavras, da não comunicação de
suas emoções. A história é contada a partir do olhar do narrador que observa atentamente a
transformação do seu corpo. Paralela a essa transformação, através de metáforas e uma
linguagem imagética, a trama descreve as dúvidas, devaneios e a subjetividade do
protagonista.
Um traço bastante observado no conto é o rompimento de conceitos tradicionais que
se efetiva através da desintegração da família, negação da religiosidade, destruição dos bens
culturais. O narrador, oscilando entre resistência e desencanto, tenta recompor seus pedaços,
almejando, nesse ato desesperado de insulamento, capturar um universal, um conjunto de
referências palpáveis que resgate um estado digno de humanidade, que propicie o advento de
um etos mais harmonioso:
[...] estendi as mãos e, quando olhei em volta, havia mais doze pares de mãos
estendidas ao lado das minhas. Os doze pares de mãos estavam cheios de
feridas úmidas e violáceas. Todos viram ao mesmo tempo, mas ninguém
gritou. Eu gostaria de ter conseguido olhá-los no fundo dos olhos, de ter
visto neles qualquer coisa como compaixão, paciência, tolerância, ou mesmo
amizade, quem sabe amor. [...] Na verdade não sei se não estarei cego.[...]
suponho que os olhos de todos eles estejam assim. Suponho também que
seus pensamentos tenham sido iguais aos meus, [...] . E fiquei pensando se
era mesmo verdade que ainda sofríamos (op. cit. 1977:21).
Diante da complexidade de seus pensamentos, da precariedade de sua condição, o
narrador esboça a ilusão de uma fraternidade que irmana indivíduos estigmatizados,
condenados ao degredo social. Ele questiona a veracidade da duração desse sofrimento que o
atormenta, transtornando-se ao perceber a relutância dessa agonia.
A passagem que liga esse fragmento a outro fluxo de consciência diz respeito,
indiretamente, a constatação e resistência que os sistemas de valores o trouxeram para o
isolamento desse espaço fronteiriço que se configura num local de passagem e que
precederam essa vinda pelo não enquadramento ao sistema:
[...] A casa, os outros. Quando percebi que eles existiam e eram muitos,
[...] E temi que me expulsassem. Nós não tínhamos luz elétrica [...] quando
acendíamos aquelas longas velas que costumávamos roubar das igrejas [...]
queimamos depois as paredes, as escadas, os tapetes, os objetos do banheiro,
da cozinha, os quadros, as portas e as janelas. Chegou um momento em que
precisamos queimar também os livros (op. cit. 1977: 20/21).
A quebra das instituições fica explícita nesse fragmento marcado por imagens que
desenham uma cena psicológica matizada pela revolta que se expressa pelo roubo das velas
das igrejas, a afirmação de que “Deus morreu”, a degradação de algo que lembre a
organização familiar, a queima de quadros, livros, tapetes, o que pode significar o desejo da
destruição de uma cultura orquestrada pelas elites estéticas e econômicas, fazendo-nos inferir
que a personagem se trata de uma vítima de um sistema autoritário, exilada por se posicionar
contrariamente ao discurso oficial.
Pelo que foi exposto anteriormente, o conto se organiza em torno do protagonista que
se apresenta como indivíduo de identidade destoante que vive às voltas com angústias
existenciais. No esforço de constituir naquele espaço, o seu refúgio, esse protagonista lança
mão de descrever o estado doentio marcado por uma dor que a princípio conhece a sua
localização, mas que no decorrer da narrativa essa dor torna-se enigmática causando então,
uma angústia entre ele e seu espaço circundante. Assim, ao longo do conto, elabora em torno
da sua dor de existir e das conseqüências dessa existência, um narrador que, embora esteja ali,
não é daquele lugar. Ele tem, então, um olhar objetivo sobre sua situação periférica, da qual
participa sem está nela integrado. No entanto, no conto em questão, o olhar do narrador se
dirige tanto para o ambiente brasileiro dos anos 70 quanto para as imagens identificadoras da
condição do indivíduo em situação destoante:
Havia sol naquele tempo e apenas um dente doía. No começo, apenas um.
Eu conseguia localizar a dor e orientava três de meus dedos, indicador,
médio, polegar, as extremidades unidas, até aquele ponto latejante. Eu
inspirava fundo. E quando expirava, alguns raios saíam das extremidades
dos dedos, atravessavam a pele dos maxilares e a carne das gengivas, para ir
ao encontro do ponto. Depois de alguns minutos eu suspirava, os músculos
soltavam-se, as pernas e os braços distendiam-se e a minha cabeça afundava
na grama, o rosto voltado para o sol ( op. cit.1977, p. 19).
Inquieto com a existência, percebe-se um narrador capaz de descrever sua
degradação através de uma dor, a princípio localizável, que vai se intensificando de acordo
com a decadência do seu corpo que ele faz questão de descrever minuciosamente. Trata-se,
portanto, de uma narrativa composta de uma linguagem marcada por descrições dolorosas,
mas que pretende acima de qualquer coisa, delimitar o sofrimento do sujeito em pleno
exercício de viver.
Dessa forma, pode-se inferir que o protagonista é um ser melancólico, pois se coloca
na posição de observador da realidade que o cerca, apenas pensando sobre a situação, sem
reagir. No início da historia, o narrador gradativamente vai sensibilizando o leitor com sua
condição. Descreve que “havia sol naquele tempo e apenas um dente doía” entende-se que,
nessa condição, o sujeito volta-se para si mesmo, impossibilitado de lutar contra as forças
externas.
Com efeito, a atitude crítica frente a si mesmo fica destituída de forças para reagir,
deixando-o num estado de desinteresse pelo mundo. No conto, o protagonista se afasta das
relações comuns com a sociedade, numa busca de isolamento e contemplação, mantendo-se
um ser pensante em estado angustiante. A dor é a metáfora dessa condição marginal vivida
por esse indivíduo que dentro do seu próprio país se sente um deslocado, um intruso, um
indesejável. Ele faz parte de uma massa que ameaça a segurança daqueles que são
reconhecidos institucionalmente.
Sobre a condição do marginal, Gonzaga (1981) discorre que esse tipo de condição
periférica, antes destinada apenas aos favelados, agora é destinada a todos que fazem parte da
massa que procuram meios alternativos de sobrevivência à sociedade capitalista nas pequenas
e grandes cidades. Assim, marginal é qualquer pessoa que não se encaixa nos moldes do
capitalismo:
[...] posto que socialmente passiva, essa massa ocupa um espaço na cidade e
ergue-se como ameaça potencial à segurança dos indivíduos ao sistema. Daí
a institucionalização, na sociedade civil, de um saber policialesco que passou
a ver no marginal não apenas o favelado (como nos tempos juscelinistas),
mas todo elemento que excluído das formas mais ou menos ortodoxas de
apropriação e sobrevivência capitalista procurasse outras maneiras de
adaptação vital nos médios e grandes centros. Marginal tornou-se o ladrão,
a prostituta, o mendigo, o menor abandonado, etc (GONZAGA, 1981, p.
148).
Nesse ponto, a literatura pode ser vista como expressão de uma época, pois este
conto apresenta a depressão de um sujeito em decorrência do seu contexto do fracasso do
projeto coletivo utópico. No caso, a personagem central caracteriza-se angustiada por estar
submetida a um momento no qual vigorava a tortura tanto física como psicológica, além de
questões de marginalização social em decorrência da utopia dilacerada.
O protagonista, em decorrência da situação de desencantamento pelo mundo que o
circula, está descentrado. Por isso mesmo, não consegue dar legitimidade ao seu projeto
coletivo que tem consciência ser irrealizável. A narrativa expõe uma consciência social ao
apresentar-se densa, desviando, dessa forma, dos padrões tradicionais das narrativas, os quais
se denominam lineares. Sobre essa narrativa não-linear faz-se necessário coadunar com a
visão de Adorno sobre “O narrador do romance contemporâneo”. Pela definição expressa pelo
autor, parece se tratar também do narrador em Caio Fernando Abreu, pois esse conto pode
atuar na consciência dos leitores para que certas situações permaneçam nas suas mentes, ou
para que os provoque a sentir a inquietação de um indivíduo - neste caso, do protagonista -
que projeta a situação de muitos cidadãos naquele contexto de desilusão. Tomar consciência
do passado é atributo humano que confere amplas perspectivas da realidade.
E a narrativa segue em ritmo de descrição de todos os momentos angustiantes desse
narrador. Passa da dor física a dor moral. Inscreve-se na possibilidade de que algo benéfico
jamais irá acontecer naquele local fétido em que se encontra o seu corpo:
[...] depois de alguns minutos eu suspirava, os músculos soltavam-se, as
pernas e os braços distendiam-se e a minha cabeça afundava na grama, o
rosto voltado para o sol. Agora ficou escuro e todos os dentes doem ao
mesmo tempo. Como se um enorme animal ferido passeasse, sangrando e
gemendo, dentro de minha boca. Levo as duas mãos ao rosto,
continuamente. Inspiro, expiro. Mas nada mais acontece (op. cit.1977, p.
19).
O devaneio do momento de dor, a símile que é comparada ao sofrimento. As atitudes
do narrador demonstram o mal-estar deste com o seu mundo tanto exterior quanto interior.
Comparar sua ao “enorme animal ferido” simboliza o processo de degradação desse indivíduo
perante a vida. Por alguns momentos, através da densidade que o conto apresenta, o leitor é
levado a entrar na dor desse personagem e vivenciar com ele as crises, os choques, o horror. O
verdadeiro horror de dentro e fora das pessoas, num período trágico da história do Brasil,
período esse, marcado por uma total falta de esperança numa sociedade mais justa. O peso e a
densidade dessa narrativa encontram-se justamente na contaminação e na degradação
progressivas do seres humanos.
O conto é marcado pela descontinuidade, pela fragmentação e lida com idas e vindas
no tempo, antecipando o que pode ocorrer e interrompendo o presente da trama com a
intenção de evocar fatos anteriores ou até mesmo fatos por vir. Em constante monólogo
interior, o narrador de depara prevendo o futuro que é certo “inspiro, expiro. Mas nada mais
acontece”. É como se ele dissesse: nada mais acontece e nem vai acontecer. O sonho do
projeto coletivo está cada vez mais distante Estamos condenados a esse turbilhão que é o
mundo o qual fazemos parte apenas como parcela integrante, não como seres que podem e
devem modificá-lo.
A falta de perspectiva da personagem representa a desilusão da juventude pós-
utópica. Em linguagem metafórica, a personagem vai se degradando lentamente, assim como
se diluíram os seus sonhos de coletividade. Começa com as dores pequenas, ou seja; no
princípio se percebe apenas a degradação individual que vai sendo reforçada pelos objetos
externos como, por exemplo, os piolhos. Estes se confundem com o próprio pensamento do
narrador. Exterior e interior se misturam causando então uma erupção entre sujeito e
sociedade.
O protagonista se conscientiza da sua condição destoante em contato com o outro.
Esse alguém que lhe toca os cabelos puxa-lhe “um piolho” o traz para a sua realidade. um
sentido novo ao fervilhar em sua cabeça. É como se esse outro se responsabilizasse pela sua
localização no mundo:
[...] até o dia em que alguém tocou nos meus cabelos eu julguei que apenas
dentro havia aquelas súbitas corridas, aquele fervilhar. Ainda havia sol,
então, e esse alguém puxou para fora, entre as pontas unidas de três dedos,
aquela pequena coisa branca, mole, redonda, que ficou se contorcendo ao
sol. Desde então, alertado, passei a separar a sua ebulição daquela outra, a de
dentro (op. cit.1977, p. 20).
O narrador obtém uma consciência do total a partir do simples gesto do outro que o
faz distinguir entre o que lhe acontecia por dentro e por fora. A construção desse texto se
através de uma linguagem que traz a tona imagens que se faz com que ela se diferencie dos
textos tradicionais. Ela compartilha com a própria condição do narrador. Representa sua
exclusão e faz-se pertinente, pois não aborda apenas o fluxo de consciência desse
protagonista, como também, as mazelas que são advindas da sociedade.
O contato com os outros moradores representa uma tentativa fracassada desse ser
isolado de aproximação, uma vez que uma barreira invisível que o separa dos outros e que
tenta saciar no poço alheio uma sede impossível de ser dividida; a sede de juntar os cacos de
uma utopia dilacerada irrealizável::
[...] Creio que movido pela esperança de que a luz e o calor pudessem
amenizar a dor e secar as feridas, aproximei-me lentamente do fogo. Estendi
as mãos e, quando olhei em volta, havia mais doze pares de mãos estendidas
ao lado das minhas. Os doze pares de mãos estavam cheios de feridas
úmidas e violáceas. Todos viram ao mesmo tempo, mas ninguém gritou. Eu
gostaria de ter conseguido olhá-los no fundo dos olhos, de ter visto neles
qualquer coisa como compaixão, paciência, tolerância, ou mesmo amizade,
quem sabe amor. Não tenho certeza de ter conseguido (ABREU, p. 21).
Nesse processo em que o ser humano se depara com a realidade, torna-se estranho a
si mesmo, na medida em que perde o controle de sua posição no mundo, de sua finalidade,
pois os objetos que o permeiam passam a adquirir existência independente do seu poder.
O outro para o protagonista aparece com dois significados distintos. Primeiro,
localiza o narrador no mundo (como mencionado anteriormente) e segundo, aparece como
antagonista dele quando este propõe que se continue o projeto coletivo que os faça burlar
aquela situação limite: “Tive vontade de gritar e segurar a mão mais próxima. Mas ela
recusou como se tivesse nojo, então segurei minha mão e fiquei sentindo entre os dedos a
umidade das feridas”. Dessa forma, a contato com os outros não preenche as lacunas e ele se
questiona sem conseguir respostas. O narrador não consegue se constituir plenamente e seu
interior não é harmonioso. Ele ao tentar se narrar, não consegue construir uma narração.
Mais uma vez ocorre aqui, a constatação de que esse narrador do conto “Holocausto”
coaduna com o conceito de narrador contemporâneo explicitado por Adorno. Segundo
Theodor Adorno (1983), a posição do narrador se caracteriza hoje por um paradoxo: "não se
pode mais narrar, embora a forma do romance seja a narração [...] Pois contar algo significa
ter algo especial a dizer, e justamente isso é impedido pelo mundo administrado, pela
estandardização e pela mesmice”.
Do ponto de vista do narrador, o autor aponta o subjetivismo como fator que abalou
as bases do preceito épico da objetividade. Dessa forma, o autor elege o romance como uma
forma de resistência à reificação, à coisificação do indivíduo no mundo contemporâneo. O
rompimento com o realismo e a criação de novas formas de linguagem seria uma saída para
alcançar o verdadeiro significado da essência do que se apresenta, quebrando o processo de
mistificação.
Para o teórico, a narração objetiva pressupõe que os eventos sociais e históricos são
simples, e, nesse sentido, ao marcar o discurso pela objetividade, o romance distorce a
experiência humana, uma vez que ela é complexa e contraditória. A proposta do crítico é a de
rejeitar a objetividade dos relatos para que o romance possa representar a essência do
processo social da vida: “Se o romance quer permanecer fiel à sua herança realista e dizer
como realmente são as coisas, então ele tem de renunciar a um realismo que, na medida em
que reproduz a fachada, só serve para ajudá-la na sua tarefa de enganar” (1983:276).
Resta a reflexão, traduzida no monólogo interior e no fluxo de consciência, que
rompe a pura imanência da forma, sintomática do narrador moderno afeito à contemplação.
Nesse sentido, a indagação do narrador representa o desencanto do mundo que vem da
percepção de uma experiência em que “os homens estão separados uns dos outros e de si
mesmos. Na transcendência estética reflete-se o desencantamento do mundo.” (ADORNO,
1983, p. 270).
A denúncia presente no conto se configura não apenas pela construção de uma
personagem integrante da juventude do período pós 64, todavia, o que resulta dessa
juventude. Nesse momento, ele não narra, apenas deixa emergir o fluxo de consciência capaz
de revelar os vários universos pessoais à corrente de consciência, a qual, dada à semelhança
de linguagem do sujeito que monologa, assume uma face da resistência. O léxico com
compõe a narrativa simboliza um contínuo e denso de experiência existencial associada à
experiência social.
Situado numa cultura de massa plural, a qualidade estética desse conto se pela
imagem de sua consciência crítica. Percebe-se aqui, um texto oriundo de uma contracultura
que por apresentar um narrador que tenta reclamar um lugar, ou seus diversos espaços num
mundo do capitalismo avançado - detentor dos bens materiais e dos bens simbólicos
convertidos nos desejos do sujeito contemporâneo - resiste a todo esse processo de
coisificação. Sobre essa questão, Bosi (2006,
p. 435) afirma que:
[...] principalmente entre os jovens, os apelos da contracultura que
reclamavam o lugar, ou os múltiplos lugares do sujeito, as potências do
desejo, a liberdade sem peias da imaginação. A virada era internacional,
como panfletárias eram as transformações ideológicas que ela representava.
[...]O capitalismo avançado, combinando selvageria e sofisticação eletrônica,
os suas representações e as suas contrafações, convertiam-se em mercadorias
sob a batuta dos meios de comunicação de massa.
A narrativa em discussão é composta por uma poética caótica e descentrada que
assume no espaço do papel a missão de ordenar os elementos dispersos do imaginário
narrativo, dando-lhes um novo olhar sobre a sociedade dominante. Dialogando com o
contexto da desilusão e descrença dos anos setenta, o texto literário busca agora retratar
identidades imersas em conflitos oriundos da impotência do narrador em lidar com as suas
agonias existenciais. O conto explora a existência precária de sujeitos deslocados num mundo
em que são apenas figurantes.
No abandono das personagens dessa narrativa a sua própria sorte, em busca do que
está sempre perdido, reside a essencialidade dessa literatura. Se afastando do convencional e
deixando em evidência o abismo que separa os seres e os classifica dentro desse mundo
hierarquizado, a poética descentrada dessa narrativa é marcada por um enredo que a torna
desarticulada, pois este é entrecortado pela voz inquieta do narrador. Não existe uma
linearidade. Ele se estrutura a partir do desregramento.
É interessante atentar também para as digressões presentes nesse monólogo, uma vez
que, elas simbolizam a paranóia do protagonista em meio àquilo que o cerca. Elas descrevem
com precisão as etapas desse corpo quase em decomposição “[...] o certo é que um dia houve
também as bolhas. Apareciam primeiro entre os dedos das mãos [...] algumas subiram pelo
rosto, outras desceram pela perna...”.
Os espaços destinados a ele são tão degradados quanto a sua condição. O narrador
não poupa esforços ao descrever as condições do local em que ele habita. Habitação essa,
diga-se de passagem, provisória, assim também provisória é a sua vida.
Diante da condição do narrador e dos outros personagens que permeiam o conto,
percebemos que esse núcleo faz parte da sociedade pós-moderna
.
São indivíduos urbanos que
rompem com os laços tradicionais de família e acentuam suas individualidades
.
Em
conseqüência da individualidade proporcionada pela contemporaneidade, o sujeito tem sua
identidade questionada, demarcada então, por uma constante busca pelo eu.
A contemporaneidade cria várias possibilidades apresentadas de descentrar esse
sujeito. Dessa forma, ele se vê como um estranho em meio à metrópole. Há todo um
estranhamento, uma inadequação, uma dúvida. Segundo Leal (2004, p. 36), “O desafio
contemporâneo de individualização carrega consigo um estranhamento, um sentimento de
inadequação, como se toda certeza estivesse impregnada por uma transitoriedade”. Isso gera
uma condição paradoxal do sujeito contemporâneo, pois ao mesmo tempo em que o sujeito
busca adaptar-se à vida solitária, busca também se fixar nesse mundo de modo que o
diferencie dos outros. O paradoxo vivido por esse indivíduo mostra o quão ele é sem raízes,
fragmentado e portador de uma constante transitoriedade diante do mundo em que habita.
Como habitante desse mundo contraditório, esse sujeito também é responsável pela
construção de uma cultura pós-moderna deliberadamente contraditória.
A narrativa em questão, (como mencionado anteriormente) distante da forma
tradicional por ter um enredo construído a partir do fluxo de consciência que marca o estado
emocional e existencial do narrador, reflete problemas de ordem da experiência humana e ao
mesmo tempo dos conflitos sociais.
O conto segue uma tendência que reflete o momento em que foi escrito. Por isso, o
protagonista é assombrado pela solidão, falta de esperança e busca incessantemente se
encontrar em meio esse turbilhão que é a vida. São os conflitos e crises pertinentes à difícil
condição de descontentamento e falta da utopia que constroem um narrador marcado pelas
incertezas e questionamentos. O narrador lança mão de descrições sobre o estado que se
encontra o seu corpo a fim de retratar a sua condição solitária e desajustada:
[...] Minhas unhas crescidas dilaceravam a frágil pele rosada que escamava,
transformando-se em feridas úmidas e lilazes. [...] Na verdade não sei se não
estarei cego. feridas em torno de meus olhos, as sobrancelhas e os cílios
fervilham de piolhos. Os dentes fizeram meu rosto inchar tanto que os olhos
estreitaram-se e recuaram até tornarem-se quase invisíveis. Suponho que os
olhos de todos eles também estejam assim [...] Na verdade não (ABREU, p.
20 - 21).
O indivíduo pós-moderno, assim como o protagonista de Holocausto são
fragmentados e muitas vezes marginalizados e sempre estão buscando formas diferentes de
saírem das sombras, de descobrir um sentido para suas medíocres existências.
O “Holocausto” é devido à inserção do narrador em um cenário múltiplo, caótico e
esquizóide, pois atrai toda sorte de imagens, de fragmentações. Nota-se uma consciência em
constante divisão, orientando-se dos farrapos daquele local, tentando buscar nessa
desorientação, aquilo que comporá a narrativa de que participa, como narrador-personagem.
Percebem-se cenas em que a profundidade do olhar não representa apenas uma visão crítica
sobre os acontecimentos externos, todavia, uma visão para dentro de si mesmo, que ao mesmo
tempo aniquila-se e reagrupa os estilhaços de eus em novas consciências fragmentadas.
A impotência física e existencial, nesse caso, resulta num estado angustiante desse
narrador, pois ele se encontra preso ao mundo exterior das convivências interpessoais e toda
essa impessoalidade implode ante o outro sempre inacessível. Como se nota, o protagonista
em virtude desse isolamento, desse estado melancólico, cultua exageradamente os espaços
interiores dessa casa; dos andares que compõem o ambiente; redutos dos sujeitos
enclausurados, dos monólogos e dos devaneios frasais. O sujeito angustiado apresenta um
discurso incompleto, assim como é incompleta a sua identidade.
A narrativa é composta por uma linguagem que quer preencher com seu excesso
descritivo a precariedade extrema de seus personagens, seres destoantes, que vivem em pleno
abandono. Uma linguagem que quer mostrar ao leitor através de um excesso, a condição
desviante desses seres numa sociedade que nomeia para controlar e subjugar:
É preciso falar também nos outros. E na casa. Eu estava tão absorvido pelo
que acontecia em meu próprio corpo que nada em volta me parecia
suficientemente real. A casa, os outros. Quando percebi que eles existiam – e
eram muitos, doze, treze comigo – já meu corpo estava completamente
tomado. E temi que me expulsassem. Nós não tínhamos luz elétrica, o sol
tinha-se ido há algum tempo, os dias eram curtos e escuros, dormíamos
muito e, quando acendíamos aquelas longas velas que costumávamos roubar
das igrejas, a chama não era suficiente para que pudéssemos ver uns aos
outros. E também há muito tempo não nos olhávamos nos olhos.
Somente uma semana como fazia muito frio e precisássemos de lenha
para a lareira fomos obrigados a queimar os móveis do andar de cima. As
chamas enormes duraram algumas horas. Creio que movido pela esperança
de que a luz e o calor pudessem amenizar a dor e secar as feridas, aproximei-
me lentamente do fogo (ABREU, p. 20 -21).
Parece que a solução encontrada pelo narrador para alívio do seu sofrimento e dos
outros, se dá pelas imagens do “fogo” e da “luz” que são metaforizados pelo “sol”. Esse signo
obtém dentro do enredo uma conotação especial de esperança. Mas como o conto se estrutura
numa linguagem paradoxal, essa esperança não existe. A passagem do sol pela existência
desses seres é uma passagem provisória, assim como o próprio sol clareia durante o dia, mas
isso não ultrapassa dia. Tem um limite. É como se a esperança desse narrador também tivesse
um limite. Note que toda forma de luz presente no conto é efêmera. Para ele “os dias eram
curtos e escuros”, assim como sua esperança.
A fala do narrador, apesar de verborrágica, parece sempre se debater com a
incompletude, com a ausência de sentido que se perpetua no percurso do enredo. Tudo é
válido com a intenção de provocar certo mal-estar na comunicação, ou se abre uma porta para
possibilitar os outros sentidos ao leitor. Apesar de tratar das coisas banais o texto é metafísico,
pois proporciona ao leitor visualizar o naufrágio dessas personagens. Os sentidos se misturam
e se completam. Daí a linguagem cede lugar à imagem e essa mistura acaba se transformando
numa espécie de processo alegórico e uma maneira de questionar sujeito e sociedade. Esse
sujeito que tenta buscar alguma forma de esperança, mesmo onde reconhece que não há mais.
A verborragia do “eu”, em “Holocausto”, traduz uma escritura fragmentária com
constante diálogo com o fluxo de consciência. Sugere também, através de uma linguagem
metafórica e metonímica os encontros de fragmentos inesperados com o contexto histórico,
permutáveis e incoerentes entre si.
O momento se constrói em torno dos fragmentos que apontam o fim da liberdade
política, do direito de ir e vir. Mas por outro lado, mesmo nesses momentos de cerceamento,
de repressão de liberdade pública todo um universo interior a ser trabalhado, a ser
conquistado que pode ser ele um objeto do processo de libertação pessoal.
De posse dessa imagem percebemos uma visão negativa da cidade como o local das
vidas isoladas, particulares, pequenas ilhas, em geral sujas e feias. Os personagens são
transformados em uma “classe” ou “massa” de rostos sem nome. São pessoas dilaceradas
entre o cotidiano miserável e a nobre tarefa de sobreviver. O texto aborda a degradação, o
desespero, a insânia desse mundo. Em passos lentos quase estáticos, a personagem
protagonista segue em direção a algo que nem ele mesmo sabe o que é. Sentimentos como
liberdade, amor e pureza são totalmente descartados por ele. É o fim do sonho e a
conseqüente descida para a realidade da década de 70. Sua voz configura-se como um
desabafo amargo daquele momento. Ele descreve o horror de dentro e fora das pessoas. A
sensação que se tem é de que as coisas estão ocorrendo neste exato momento. Isso é reforçado
pelos verbos no presente do indicativo: “hoje é dia que não temos nada para queimar”; “são
elas que estão queimando agora”; “estamos olhando as chamas e pensando”. O desconforto,
como se observa, é a própria impotência diante do fato constatado de que não há saída.
A gradação presente na trama permite uma visualização das etapas de degradação
desse indivíduo. Primeiro ele aponta a decomposição do seu corpo, depois aponta a destruição
lenta dos ambientes e finalmente, a certeza de não mais pertencer àquele ambiente. Parece a
que narrativa dialoga com a própria condição da juventude da década de 70 que aos poucos
vai se tornando parte da sociedade de consumo, sem sonhos de liberdade nem perspectiva de
futuro. Depois da constatação de não haver mais nada para queimar o protagonista resolve
queimar o próprio corpo numa tentativa de aliviar dor permanentemente:
[...] bem pouco um pensamento cruzou minha mente, talvez a mente de
todos: creio que quando essa última chama apagar um de nós terá que jogar-
se ao fogo. Quando pensei nisso, minha primeira reação foi o medo. Depois
achei que seria bom. Os piolhos morreriam queimados, as bolhas
rebentariam com o calor, o fogo cicatrizaria todas as feridas. Os dentes o
doeriam mais. Não nos falaremos, não nos olharemos dentro dos olhos.
Apenas um de nós treze fará o primeiro movimento, se jogará ao fogo,
aquecerá os outros por alguns momentos, depois se tornará cinza, e depois
mais, e outro mais. Como um ritual. [...] Eu ainda estou aqui. Talvez daqui a
pouco eu chore, ou grite, ou saia correndo no escuro [...] Talvez apenas
afaste esses braços e pernas que enredam meus movimentos e faça o
primeiro gesto em direção ao fogo. Daqui a pouco (ABREU, p. 22).
A incerteza povoa o final da trama como forma de estranhamento do eu e do mundo.
Isso se dá pela escolha de uma opção de vida, a escolha de um mundo marginal. O narrador,
através de questionamentos sobre a sua condição existencial, questiona-se com base na sua
própria constituição de si, qual a finalidade de estar povoando esse mundo. Esse
descentramento apresentado pelo protagonista corresponde à forma como ele encara a
realidade. Essa forma também é percebida na construção do texto literário. A recorrência de
temas como loucura, delírio e descentramento fazem parte de um projeto literário que
identifica a obra.
De acordo com Lima (1982, p. 212), tal projeto “baseia-se tanto num duplo repúdio
da realidade e da ficção documental, quanto numa tentativa de registrar, incorporar e
retrabalhar as fronteiras entre o delírio, a realidade e a literatura”. Dessa forma, essa trama
“antes parece documentar a tentativa de implodir as vigas de aço do mundo sério, do que a
êxito de monumentalizar seu desejado aniquilamento”.
No processo narrativo, a personagem, aos poucos, oferece pistas que expõem o seu
mal-estar, como se tivesse plena consciência dele. A hipótese é a de que ele, embora
apresentasse algum traço peculiar com aquele ambiente, deseja ir, além disso, experimentando
a compaixão que antecipa o desespero. Note-se que a forma como ele se dirige ao fogo como
última esperança de alívio do sofrimento, evidencia, não a vontade de libertação desse
mundo dos padrões comportamentais registrados no seu universo, a manifestação da sua não-
fragilidade e da capacidade de autodefesa e resistência contra os ditames e preceitos da
sociedade dominante.
Essa hipótese é corroborada pela descrição das sensações vividas pelo protagonista
durante o momento em que ele se oferece para se jogar no fogo: “talvez apenas afaste esses
braços e pernas que enredam meus movimentos e faça o primeiro gesto em direção ao fogo”
.
O
corpo tomaria a decisão. Tudo isso pode ser tomado como indício de que o protagonista
associa seus desejos aos dos outros que estão na mesma situação que ele. Tais experiências
inscrevem uma espécie de sentença de morte daquela candura ingênua e incapaz de desafios
que ele mesmo encerra: “daqui a pouco”.
Não resta dúvida que o objetivo do texto, conforme Lima (1982: 47), é “implodir as
vigas de aço do mundo sério, um enlouquecimento da realidade”. Sendo assim, angústia e
sonho juntam-se na construção de um texto provocador que, por aproximar-se do real e
distanciar-se da artificialidade, lança o leitor num ambiente confuso que o deixa espantado
diante de tamanho estranhamento.
4 PARA ALÉM DOS MORANGOS MOFADOS A UTOPIA RECUPERADA
4.1 Nem inferno nem paraíso: o eu é o outro uma leitura de “Luz e Sombra” e “Eu,
Tu, Ele”
Em “Holocausto”, o narrador é o represente de uma geração órfã de utopias, de
ideologias, de ingenuidade. No entanto, essa mesma geração procura, através da insistente
busca do Eu, uma alternativa que a leve ao encontro de uma nova utopia que consista, talvez,
na negação da sociedade utilitária individualista. É um ideal de sociedade fundada na
cooperação, na incorporação, no predomínio do interesse coletivo sobre o individual. A
consciência da inviabilidade desse projeto coletivo, desancorado agora das bases oníricas,
espontâneas e subversivas que o sustentavam, tece a condição de indivíduos resultantes da
desagregação proporcionada pelo fim da utopia. O sujeito é um construto fragmentado e
colado de acordo com o seu sentimento de pertencimento (ou não) a determinado grupo ou
sociedade.
Desta forma, o conto Luz e Sombra”, como em “Holocausto”, retratam um
indivíduo que não se encaixa mais no status quo, todavia se reconhece nele, na medida em
que se espelha nele para definir-se como diferente. Não há indivíduo único e, dessa forma, seu
discurso não pode ser uno, no entanto, heterogêneo e fragmentado, mostrando a própria
fragmentação do ser que nele habita. No caso da narrativa “Luz e Sombra”, do discurso
fragmentado do narrador emerge diferentes visões, diferentes sujeitos e, independente de seu
posicionamento social, se tem nele um instantâneo da intimidade humana destituída de ilusão
em busca de um novo rumo, além de si mesmo. O título remete a essa imagem antética do
sujeito. Ora é luz, ora é sombra. Expressão pertinente para explicar a ambigüidade que é o
sujeito.
A discussão acerca desse sujeito tanto como um processo em andamento quanto
como um aparato social, será percebido no âmbito literário acerca desse conto e do conto “eu,
Tu, Ele”. Nestes, interessa-nos investigar a incompletude completa do sujeito, o incômodo da
existência vivido pelos narradores protagonistas, que descobrem em si mesmo, no decorrer da
trama, a busca incessante em tentar explicar os outros que os constituem. Além das diversas
posturas desses sujeitos que abrem perspectivas para um local de abertura dos seus processos
singulares e não de uma postura única capaz de explicar a sua existência.
A partir do pressuposto de que o sujeito se modifica contínua e abertamente, este não
pode mais ser entendido como universal, nem tampouco como individual, mas como múltiplo,
um ser em andamento que viaja sem sair do lugar. Por conseqüente, não possui residência fixa
nem cria raízes. Em suma, o sujeito é aquilo que Deleuze (1992, p. 85) classifica tanto como
nomádico quanto rizomático. Essa classificação permite que se entenda esse sujeito como
algo que é representado através “da contínua variação da ex-apropriação e do Devir-Outro.
Esquizoanálise.
Em “Luz e sombra”, o narrador protagonista inicia um monólogo pautado em um
questionamento sobre algo indefinido, que pode ser hipotetizado como a busca de uma
explicação para a condição existencialista do sujeito; a tentativa de explicar a ordem do
movimento contínuo diante do mundo:
Deve haver alguma espécie de sentido ou que virá depois? (...) Mas não
quero me apressar. Penso que se conseguir dar algum tipo de ordem nisto
que vou dizendo haverá em conseqüência também algum tipo de sentido. E
penso junto, ou logo depois, não sei ao certo, que após essa ordem e esse
sentido deve vir alguma coisa (ABREU, 2005, p.67).
As incertezas do narrador protagonista estão refletidas nas respostas que ele venha
arriscar acerca de seus questionamentos, no sentido de sempre haver algo a ser dito, pois não
existe uma explicação que se esgote nela mesma. A partir das indagações sem respostas
completas apresentadas por essa personagem em questão, podemos situá-la numa perspectiva
de incompletude do ser, que busca ao mesmo tempo, alteridade e singularidade.
O narrador, por meio dos seus questionamentos, viaja para dentro de si mesmo numa
tentativa de não encontrar respostas, mas de se libertar desse eu (ou desses eus) em busca de
um outro que considera trancado (os) em seu corpo. Ele começa interpretar tudo que cerca o
seu ambiente. Local esse marcado apenas pela sua presença e pelos utensílios que o
compõem. Os barulhos que se escutam, a cor do carpete, a forma como o telhado se apresenta.
Tudo isso determina esse novo modo de agenciamento solitário. É a forma de a personagem
criar situações que definam o seu próprio universo:
[...] mas os telhados o intermináveis [...] não vejo nada, o cinza pesado
do céu e a fuligem que se deposita aos poucos nas beiradas da janela [...]
duas pombas, cada uma delas bica um dos meus olhos. Talvez um dia
consigam quebrar o vidro [...] escuto os dentes rangendo e os ruídos
internos do meu próprio corpo, tudo isso me cega (ABREU, 2005. p 70- 72).
A situação vivida por ele delimita um espaço povoado por aquilo que Deleuze (1992,
p. 89) define como “singularidades pré-individuais: intensidades, profundidades, movimento”.
A subjetividade refletida por esse personagem indetermina os limites desses eus, sem que
pensemos nesses limites como interior e exterior, mas como o resultado do efeito produzido
pelos fatores externos que provocam as indagações desse eu.
Nesses termos, o sujeito não é único, interior ou exterior, todavia, a interação
entre interioridade e exterioridade. Seus reflexos interiores é conseqüência do seu contexto
exterior que por sua vez reflete o interior, e assim, cria novas multiplicidades de eus, que se
relacionam e se transformam de acordo com o espaço de montagem em movimentos
contínuos. Numa perspectiva de criar seu próprio universo a partir da interação com o meio.
Teóricos como Guattari discutem:
Nesse modo de agenciamento solitário, ele começou a forjar um modo de
expressão, a desenvolvê-lo, a criar uma espécie de cartografia de seu próprio
universo, coisa que eu não podia desenvolver no território familial (...) na
consistência desse agenciamento está em jogo uma série de fluxos que me
são inteiramente exteriores (GUATTARI; ROLNIK. 1996. p. 243).
A partir dessa perspectiva de multiplicidade; de recebimento e doação simultâneos, o
sujeito se define como uma “figura fissípara”. Isso significa afirmar que, dependendo dos
processos de relações, das capacidades de atingir e ser atingido, esse “eu” pode,
simultaneamente, se transformar no outro ou se situar no espaço das indefinições; das não
explicações lógicas. Aquilo que o sujeito vive deve ser entendido como algo transitório, e não
como um transporte para o futuro:
Não, você não me entende. Sei que você não me entende porque não estou
conseguindo ser suficientemente claro, e por não ser suficientemente claro,
além de você não me entender, não conseguirei dar ordem a nada disso.
Portanto não haverá sentido,
Portanto não haverá depois. Antes que me faça entender, se é que
conseguirei, queria pelo menos que você compreendesse antes, antes de
qualquer palavra, apague tudo, faz de conta que começamos agora, neste
segundo e nesta próxima frase que direi (ABREU, 2005, p. 68).
Uma suposta cronologia da narrativa (final da década de
70) marca a década que
entrou para a História como os anos de chumbo. O chumbo é um metal pesado, cinzento, e
esta metáfora uma idéia do que se passou naqueles anos. Foram anos de ditadura, mas
também de rebeldia, em que os jovens participaram da vida política do país intensamente.
Parece que o narrador do conto é o resultado dessa juventude desiludida diante de um futuro
incerto: “portanto não haverá depois”, a ser enfrentado com os instrumentos da cartografia do
seu universo que ele vida por necessidade. O conto se organiza em torno das necessidades
desse narrador que quer ser entendido, mas que sabe ser impossível “não, você não me
entende. Sei que vo não me entende porque não estou conseguindo ser suficientemente
claro”. Percebe-se uma inquietude de existência. Sabemos que se trata de alguém instável. O
que ocorre na trama é uma oposição entre saber e conhecer.
O protagonista sabe que existe, todavia, se desconhece nessa existência. Torna-se
uma figura precária, à mercê de acontecimentos maiores do que ele o momento conturbado
em que a sociedade vive. É um conto narrado por alguém que se desvincula do passado “antes
de qualquer palavra, apague tudo, faz de conta que começamos agora, neste segundo e nesta
próxima frase que direi” para fazer sua aprendizagem no desengano de se compreender.
A narrativa se suspende na urgência desse personagem se conhecer. Seu nome
permanece anônimo para o leitor, assim como, seu interlocutor. Não se sabe se ele dialoga ou
consigo ou com outro personagem. Esse anonimato é uma marca da poética desse autor.
Neste sentido, o futuro do sujeito é por vez, indeterminado, ou melhor, não existe
futuro porque não existe um espaço nem que o futuro esteja inserido. Esse futuro é
hipotetizado pelo personagem como forma de inexistência, pois ocorre em suas indagações
uma consciência plena da transitoriedade do ato de viver. Por outro lado, uma interação
entre o eu-personagem e o espaço que o rodeia. Nota-se que ele interage com esse meio de
modo a resultar numa multiplicidade de identidades oriundas da interação com esse meio. Em
outros termos, esse movimento interativo anula uma identidade única, porém, possibilita ao
sujeito uma abertura para as transformações sugeridas pelo contexto em que ele encontra-se
inserido, através do processo de troca simultânea entre interior e exterior desse sujeito. Essa
possibilidade de transformação é entendida por Deleuze (1991) como a dobra que consiste
em:
Pensar os processos de subjetivação como dobra implica, como vimos,
despojar o Sujeito de toda identidade (essencialista) e toda interioridade
(absoluta) e, ao mesmo tempo, reconhecer a possibilidade de transformação
e de criação que eles deixam aberta. Em outras palavras, a dobra nos permite
pensar os processos pelos quais o ser humano transborda e vai além de sua
pele, sem recorrer à imagem de um Sujeito autônomo, independente,
cerrado, agente... a não ser, precisamente, com base em seu caráter aberto,
múltiplo, inacabado, cambiante... (DELEUZE, 1991, p. 189).
Os pensamentos dispersos apresentados pelo narrador protagonista reforçam a idéia
dessa identidade aberta a todas as ações decorrentes do meio que em contato com o interior do
sujeito promovem essa “dobra” que permite entender esse sujeito como a possibilidade das
várias transformações ocorridas pela intersecção do espaço com o interior desse sujeito.
A partir desse princípio, o conceito de dobra de Deleuze (1991) explica a
possibilidade de um eu que resiste aos poderes e saberes estabelecidos. Esse eu, segundo
Deleuze, apoiado na teoria de Foucault, irá além do poder e do saber, ultrapassando o limite
das regras impostas pelo poder e possibilidade de criar um ir além das imposições pré-
estabelecidas.
O sujeito corporificado no conto “Luz e sombra”, é uma possibilidade de explicar
essas várias identidades que o permeiam. O modo como ele encara sua própria condição burla
tudo que está normatizado. A forma como a narrativa se apresenta atribuindo voz a esse
sujeito, aparentemente preso em um local indeterminado, evidencia o caráter inventado,
cultural e passageiro de todas as identidades. Ele possui identidades cambiantes, pois vive a
deriva do seu espaço; ao mesmo tempo em que vive descrevendo esse espaço, ele se desloca
dele para negá-lo e negar a si mesmo:
Não sei que idade tenho, mas devo ter chegado sequer à adolescência, pois
minhas pernas nuas não tem pêlos ainda. Por estar descalço, talvez não me
atrevo a pisar a terra solta e vermelha do meio da rua (ABREU, 2005, p. 69).
As incertezas do narrador determinam o seu caráter transitório e a sua possibilidade
de mudança radical entre aquilo que ele representa e aquilo que ele quer representar. Ele se
indefine o tempo inteiro. Não sabe sua idade, seu nome, sua localização, sua identidade. Cria
possibilidades de se definir de acordo com o que hipotetiza a partir dele mesmo. Imagina não
ser adolescente porque não possui pêlos nas pernas. Não toca o chão porque está descalço.
Observe que, aparentemente, ele segue a risca os valores sociais pré-estabelecidos, no entanto,
sua incerteza “talvez não me atrevo” não define suas próximas atitudes, ou melhor, o novo ser
que irá surgir a partir da interação com esses modos de agenciamentos. O personagem se
modifica, mas permanece aberto às mudanças que virão.
Sendo assim, o personagem é mais plural; mais múltiplo do que se possa imaginar.
Ele não é descrito como uma figura convencional. Sua individuação parece ser de um dia,
uma hora, um segundo. Está sempre se transformando, se pluralizando. Ele age sobre ele
mesmo. As falas em forma de indagações denotam os seus atributos, suas crenças, suas
intenções como uma multiplicidade do eu. E a forma como ele descreve suas ações
denunciam não um caráter natural do ser humano, todavia, conquistas técnicas pertencentes a
uma determinada cultura.
O conto “Luz e Sombra” explicita sobre os muitos sentidos da perda, colocando em
questão antecipadamente o significante que aparece com insistência nas referências à década
de 70. Fala do isolamento do narrador “pela manhã, toda dia, alguém enfiou um pedaço de
pão pela fresta da porta, uma lata com água, como se eu fosse um cão, e um maço de
cigarros”. Discute sua causa perdida de se conhecer e de entender porque está naquele
isolamento diante da incógnita que é o seu futuro “querer um sentido me leva a querer um
depois, os dois vêm juntos, se é que você me entende”. Fala de toda uma época revolucionária
perdida.
que a perda aqui se transforma em adubo que prepara o terreno para um outro
tempo e para uma outra escrita. A escrita que fragmenta o sujeito diante da sua condição
existencial é também a escrita de uma nova utopia. A indefinição da trama, o que o conto
deixa propositalmente indefinido; a indefinição do narrador “não sei que idade tenho” anuncia
um tempo em que não há mais lugares marcados na escrita nem na estética, um tempo que
não se apega ao passado e sugere uma nova escrita. A linguagem poética nessa narrativa é
configurada de maneira coloquial e despretensiosa, revela os sentimentos mais íntimos desse
narrador. Valoriza a problemática da subjetividade e privilegia a experiência existencial deste.
Embora a época na qual o nosso conto foi escrito, tenha sido marcada pelo gênero
das memórias de ex-presos políticos e exilados, que contam suas experiências para
compartilhar uma história que foi silenciada, ele aborda um exílio e uma carceragem
diferentes: o exílio e a prisão existencial. Parece que o autor se liberta desse modelo coletivo
de literatura e prioriza a liberdade estética. Não sendo mais necessário se adequar às molduras
de um projeto coletivo fracassado, mas pelo momento de exacerbação do individualismo e,
consequentemente, de isolamento.
O conto explora a existência precária do narrador num mundo em que parece ser
apenas figurante. Nele encontramos, por exemplo, a metáfora do vidro que representa a
exposição da intimidade do narrador: grito grito e grito até que tudo passe [...] olhando os
telhados intermináveis através do vidro”. A partir do momento em que o protagonista esbarra
nesse vidro esbarra também no seu anonimato. Benjamin (1933) afirma que “o vidro é um
material tão duro e tão liso” que nada pode ser fixado a ele. Além de ser também para esse
autor “um material frio e sóbrio”. Para o autor, o vidro faz parte da arquitetura moderna.
Arquitetura essa em que o sujeito transita e não deixa pistas, ao contrário do mundo burguês
que por onde passa deixa sua marca. O vidro, nesse sentido, funciona como a metáfora da
selvageria da contemporaneidade.
É aquilo que o crítico chama de barbárie, pois, “impele a partir para frente, a
começar de novo, a contentar-se com pouco” (BENJAMIN, 1993, p. 116). Ainda, de acordo
com o autor, a cultural do vitral possui dois significados distintos: o primeiro é representado
pela barbárie, como mencionamos anteriormente, e o segundo é representado por uma nova
liberdade, “uma existência que se basta em si mesma, em cada episódio, de modo mais
simples e mais cômodo” (p. 119).
O narrador de Luz e Sombra” é o representante dessa crueldade do mundo
contemporâneo. Entregue a sua própria sorte ele se distante do outro através dessa cultura
de vidro. Mas a necessidade do outro se faz evidente, embora esse outro não o entenda: “não,
você não me entende”; “não consigo ver claro seu rosto que os panos e os cabelos cobrem por
inteiro, soprados pelo vento”; “leva-me daqui, eu peço”.
Essa personagem está sempre em busca desse contato, que é impedido pelo
embaçado proporcionado pelo vitral. A cultura do vidro não deixa que o narrador veja o outro
com nitidez, ou melhor, não deixa que ele se sinta parte do mundo do outro. Mas mesmo
assim, ele deposita alguma confiança, ainda que remota, no outro e solicita dele uma atitude
que o ajude a se libertar desse tormento de viver. No entanto esse outro nunca aparece:
Não, você não me entende. Sei que você não me entende porque não estou
conseguindo ser suficientemente claro, e por não ser suficientemente claro,
além de você não me entender, não conseguirei dar ordem a nada disso.
Portanto não haverá sentido, portanto não haverá depois. Antes que me faça
entender, se é que conseguirei, queria pelo menos que você me
compreendesse antes, antes de qualquer palavra [...] (ABREU, p. 68).
Essa busca incessante pelo outro, mesmo mediada pela cultura de vidro, acontece
com freqüência no conto. No abandono desse protagonista, reside a poética do autor. Nos
momentos finais do conto, o narrador deixa notório que está impedido pelo vidro de
ultrapassar o seu limite “aperto o rosto contra o vidro. Duas pombas, cada uma delas bica um
de meus olhos. Talvez um dia consigam quebrar o vidro”. Essa suposição feita pelo narrador
logo é quebrada por ele mesmo quando afirma no desfecho da narrativa, ao chegar ao seu
limite e sem se deparar com a presença do outro que: “gritarei, então. Muito alto, com todas
as minhas forças, durante muito tempo. Não sei se foi esta a ordem, se será assim o depois.
Mas sei com certeza que nem você nem ninguém vai me ouvir.
Assim, a linguagem antética que compõe o conto coloca o outro na posição ambígua.
O outro não representa nem inferno nem paraíso, mas os dois simultaneamente.
Em “Eu, Tu, Ele”, conto, ocorre uma intensificação dessa busca do eu de através do
outro, através de uma linguagem que tenta preencher com seu excesso a precariedade extrema
do narrador, um ser carente de tudo e de todos. Uma linguagem que quer chegar até o outro,
através de uma verborragia feita de repetições, frases longas e sem vírgulas. Essa sintaxe,
própria do autor, é capaz de representar a angústia do narrador ao perceber que é composto de
muitos outros eus. A análise dessa narrativa é realizada sob a perspectiva de sujeito enquanto
singularidade, atrelando-o não a uma idealização, mas a sua própria existência, direcionando-
o não a um único quadro de referência, mas a uma multiplicidade de experiências.
A leitura do conto, à primeira vista, parece não indicar sentido de unidade e
significado totalizante: é algo que desconcerta a percepção do leitor, talvez não familiarizado
com a literatura construída a partir de fragmentos. Este último termo sintetiza a construção da
obra de Caio Fernando Abreu, que suas histórias, se analisadas separadamente, não
remetem a uma unidade temática nem a uma unidade formal.
Em “Eu, Tu, Ele”, o autor constrói a trama e explora especialmente a posição do
narrador, numa narrativa que é fragmentada e lacunar, densa e complexa que passam num
plano psíquico, cujo enredo consiste, justamente, nos movimentos da mente, assim também
como acontece no conto “Luz e Sombra”. As três pessoas gramaticais que compõem o conto
podem ser relacionadas aos elementos como Id, Ego, e Superego dentro do ser narrador. A
análise dessa narrativa sugere uma discussão baseada nos estudos psicológicos, pois segundo
Freud (1997), o psiquismo humano é dividido em três partes: Id, Ego, e Superego. O id é o
conjunto dos impulsos inconscientes, de origem biológica, ou recalcados, dominado pelo
princípio de prazer e pelo desejo impulsivo; O ego, do latim, ego, “eu”, é a parte mais
superficial do id, que é modificada, através dos sentidos, pela influência do mundo exterior.
Ao ser tomada consciente, tem por funções a comprovação da realidade e a aceitação, através
de seleção e controle, de parte dos desejos e exigências procedentes dos impulsos que
emanam do id. O superego é o eu ideal. Desempenha a função de juiz, trabalha para a
formação da consciência moral, provocando recalcamento exercido pela censura. Integra o
indivíduo à sociedade e parte da interiorização da autoridade e das proibições.
O ego é a parte mais profunda da psique, uma espécie de receptáculo dos impulsos
instintivos. Ele parece apresentar comportamentos irracionais e deixar à tona os desejos
inconscientes. Entretanto, como esse personagem não é construído apenas no plano racional,
sua postura denuncia o seu inconsciente em conflito com as restrições sociais. Para a
psicanálise, o sujeito não é composto apenas de “um todo unificado”, mas de um processo
inconsciente.
De acordo com Freud (1997, p. 12),
“Estar consciente” é, em primeiro lugar, um termo puramente descritivo, que
repousa na percepção do caráter mais imediato e certo. A experiência
demonstra que um elemento psíquico (uma idéia, por exemplo) não é, via de
regra, consciente por um período de tempo prolongado. Pelo contrário, um
estado de consciência é, caracteristicamente, muito transitório; uma que é
consciente agora não o é mais um momento depois, embora assim possa
tornar-se novamente, em certas condições que são facilmente ocasionadas
.
Na narrativa “Eu, tu, ele” o autor reconhece esta multiciplicidade do sujeito quando
nos apresenta um personagem dividido em três partes, (como dito anteriormente) uma espécie
de id, ego e superego. O “Eu” representa os desejos, as emoções e os medos escondidos. O
“Tu” seria o espaço da possível conciliação, do possível diálogo. Este jogo dentro da própria
identidade, estas variações de identidade estão buscando o outro, sem que nenhuma delas,
isoladamente, conseguirá encontrar esse outro.
No conto analisado, o personagem é construído sem identidade própria: não tem
nome, idade, profissão, sendo referido por meio dos pronomes pessoais. A incorporação desta
marca estética à história não é gratuita, porque revela traços fundamentais à interpretação da
narrativa.
De acordo com Zilberman, o fato da ausência de nomes nos personagens dos contos
de Caio, pode simbolizar o vazio da identidade e as constantes perdas de humanidade dos
seres enquadrados nessa sociedade cada vez mais competitiva. “O esvaziamento decorre do
modo de convivência imposto pela sociedade: tão competitivo, que corrói a personalidade dos
indivíduos. Mesmo quando excêntricos, eles se tornam parte da massa informe.”
(ZILBERMAN, 1992. p. 140). O conto também leva o leitor a entrar em contato com um
personagem que vivencia crises, choques. É uma narrativa marcada pela fragmentação,
descontinuidade e é construída em torno de solilóquio.
Os elementos destacados neste conto ilustram como o autor concebe uma imagem da
sociedade e do homem contemporâneo, com uma representação extremamente critica no
sentido de se questionar as relações entre indivíduo e sociedade, conforme a proposta teórico-
metodológica defendida por Candido (2000). O crítico, ao unir literatura e história, argumenta
que o estudo literário pode partir de uma abordagem interpretativa em que o elemento social é
analisado “como fator da própria construção artística, estudado no nível explicativo, e não
ilustrativo”, tornando-se um elemento interno que desempenha funções na estrutura da obra
literária.
As experiências do narrador aparecem associadas aos conflitos sociais, os quais
desencadeiam um sentimento de desencanto, frustração e incapacidade de superação de
problema. O olhar do narrador perante a paisagem, que a seu ver, se transforma em múltiplas
paisagens, remete a sua própria condição de múltiplo. E sob esse olhar que o personagem se
constitui. O eu, o tu e o ele constroem esse indivíduo numa “dimensão psíquica que não
estabelece relação com o sujeito da razão, pois funciona através de suas próprias leis”.
(WOORD WARD, 2000, p. 46).
Na medida em que o narrador entra em conflito com esses tu e ele (pessoas
gramáticas que servem para determinar o outro) percebe-se que esses outros não existem
efetivamente. Na verdade, os outros descritos pelo protagonista são do seu “eu” conflitante. O
narrador insatisfeito com a permanência do “ele” (o outro dele) define esse “ele” como algo
que faz parte de si, mas que ao mesmo tempo lhe parece estranho. Atitudes desse “ele” não
combinam com ordem racional que o eu se apega para direcionar sua existência, por isso,
procura fugir sempre desse outro e para isso tenta negá-lo: “Estou me afastando, estou indo
embora e preciso que me entendas antes que eu vá”, [...] “tento devagar, mais claro: ele não se
afasta”. [...] “ele não se afasta, mas é dentro dele que eu me afasto. Dentro dele, eu espio o de
fora de nós. E não me atrevo” (ABREU, 2005 p. 60).
Esse conflito vivido pelo narrador, marcado pela multiplicidade de “eus” que o
constitui, define como o sujeito é formado a partir de “um contínuo processo de identificação
que pretende entender o que nos identifica e de como os outros nos identificam. Assim sendo,
a princípio, a identidade é marcada pela exterioridade do “eu”, esse exterior define o que
queremos ser. No entanto, o que pretendemos ser está distante do que fomos, por isso o eu
está constantemente fragmentado na sua interioridade. WoorWard (2000, p. 67) define esse
conflito da seguinte forma:
O sujeito ainda anseia pelo eu unitário [...] Existe, assim, um contínuo
processo de identificação, no qual buscamos criar alguma compreensão
sobre nós próprios por meio de sistemas simbólicos e nos identificar com as
formas pelas quais somos vistos por outros. Tendo inicialmente, adotado
uma identidade a partir do exterior de eu, continuamos a nos identificar com
aquilo que queremos ser, mas aquilo que queremos ser está separado do eu,
de forma que o eu está permanentemente dividido no seu próprio interior.
O reconhecimento do outro não pode ser separado do conflito surgido a partir da
legitimidade do outro. Essa legitimidade pode ser compreendida ontológica e
historicamente do ponto de vista da relação entre o Eu e os outros. Nesse sentido o paradoxo
se instara: não é possível o sujeito exercer sua singularidade sem o outro como um objeto,
como também é impossível tratar o outro como objeto sem que ele se instaure enquanto
sujeito, que por sua vez exerce a sua singularidade. Em busca desses eus, o personagem torna-
se entidade múltipla que em conflito com os outros eus, vê-se encurralado, aprisionado a eles.
A impotência perante o outro o faz conflitar consigo mesmo, concomitante busca por esses
outros que habitam o seu ser, como podemos observar no fragmento a seguir:
[...] ele me pressente e me rechaça, ele me empurra para o fundo de si para
que eu não o desmascare. E me rouba a voz, e me leva o gesto, fazendo com
que me cale e me imobilize impotente entre as pontas duras das quais ele se
desvia [...] E sem testemunhas que eu o desmascaro todas as manhãs,
enquanto [...] Mas te investigo, te busco te suspeito, cúmplice de mim, não
dele, porque a tua ajuda é a única que posso esperar [...] Foste tu quem me
ajudou (ABREU, 2005 p. 63).
Ocorre, aqui, uma disputa entre o ego, o id, e o superego. Cada constituinte do
inconsciente, tentando prevalecer nos atos desse narrador determinando, então, qual postura
deve ser seguida por ele diante da situação ali vivenciada. Essa inquietação revela os outros
que permeiam esse ser conflitante. É o interior (subjetividade) se contrapondo ao exterior
(modos de agenciamentos). Essa experiência, vivida pelo personagem, de constante diálogo
consigo mesmo, faz com que esse indivíduo disponha de desejos que entram em choque com
os “modos de agenciamento”. Modos esses, também responsáveis pela formação desse ser
personagem por serem reconhecidos através da problemática desse eu”, que parece conduzir
o sujeito em variados modos de sujeitos. Dessa forma, o protagonista é capaz de conceber a si
próprio como sujeito de suas práticas e das práticas de outros direcionadas a ele.
A subjetividade é aqui entendida como meio que liga os indivíduos a outros objetos,
práticas e forças. Essas diferentes relações e ligações são responsáveis por construir “o sujeito
como um agenciamento”. No caso do narrador do conto fica latente os agenciadores que
afloram esse desejo: a vista da janela, o modo como o observado abria o fecho das calças, o
corpo do objeto desejado, as convenções sociais entre outros.
Todos esses modos de agenciamento contribuem para que esse sujeito se construa em
sua subjetividade. Quando ele observa e descreve o ato sexual adota um discurso marcado
pelas convenções sociais (agenciadores) de como os indivíduos devem se comportar durante
esse tipo de relação. É neste instante que os eus (ego, id e superego) compartilham do mesmo
desejo; possuem orgasmos iguais e tornam-se um, embora que mais adiante voltem a ser
múltiplos:
[...] Da janela eu observava as mãos abrindo apressadamente o fecho das
calças [...]. Eras tu, era eu ou era ele quem contorcia lentamente o corpo [...]
como uma fêmea deve sentir seu macho. [...] Atrás da janela dele, eu olhava
sem me permitir. Mas nosso orgasmo era o mesmo, e éramos então um só os
três (ABREU, 2005 p. 62).
Dessa maneira, a construção do protagonista se pelas várias formas de
“agenciamentos” processos metamorfoseadores capazes de mudarem suas propriedades de
acordo com as ligações estabelecidas entre sujeito e agenciadores. Para Rose (1995 p. 146),
“uma forma melhor de ver os sujeitos é como “agenciamentos”, que metamorfoseiam ou
mudam suas propriedades à medida, que expandem suas conexões: eles não “são” nada mais
nada menos que as cambiantes conexões com as quais eles são associados”. Percebe-se que o
personagem é moldado para que apresente certo tipo de eu e essa forma de se moldar é
resultado dos agenciamentos que, simultaneamente, se conectam não a subjetividade do
sujeito, como também ligam ao lado de fora desse sujeito num processo interativo com os
outros elementos que circulam o contexto do indivíduo.
A partir desse processo interativo para conceituar o sujeito, observamos que ele é
dotado de “capacidades de afetar e de ser afetado”. A subjetividade, nesse sentido, é não pode
ser vista apenas ponto de vista da “linguagem-discurso-significado”, mas compreendida como
“um espaço de conexão ou de montagem, contínua pré-posição, uma dobra do exterior. A
dobra” (DELEUZE, 2005, p. 23). Dessa forma, entender a subjetividade no sentido de
“dobra”, faz com que ela se constitua como agrupamento, agregação e agenciamento relativos
ao diferente que partem da construção do sujeito, acompanhando-o e determinando-o. Assim,
as propostas deleuzianas buscam a criação de novas maneiras de experimentar e conhecer o
sujeito, apontando suas diferenças, seus processos metamorfósicos e de variações como
resistência ao poder estabelecido.
Para Deleuze
(2005, p. 87)
,
Se é verdade que o poder investe cada vez mais nossa vida cotidiana, nossa
interioridade e individualidade, se ele se faz individualizante, se é verdade
que o próprio saber é cada vez mais imdividualizado, formando
hermenêuticas e codificações do sujeito desejante, o que é que sobra para a
nossa subjetividade? Nunca “sobra” nada para o sujeito, pois, a cada vez, ele
está por se fazer, como um foco de resistência, segundo a orientação das
dobras que subjetivam o saber e recurvam o poder.
A partir da concepção de “dobra” para compreender os processos de subjetivação
que envolvem os sujeitos, percebemos que o personagem do conto em análise se enquadra
nessa definição. Ele se apresenta como ser agregado e formado a partir dos agenciadores que
circulam o seu espaço. Seu monólogo interior mostra um protagonista agenciado e conectado
em outras relações que permitem vê-lo como um espaço aberto, que difere da visão de sujeito
autônomo, agente de suas práticas. O personagem se apresenta cambiante. Além do seu corpo,
da sua psique ele dispõe de objetos técnicos e dispositivos de ação e pensamento que
contribuem com o caráter aberto e múltiplo de sua identidade. Estas atitudes estão presentes
em vários momentos do conto. Em um deles podemos verificar a seguinte declaração:
[...] Assim eu próprio, me parecendo a mim mesmo, de um lado para o outro,
entre cigarros sem sabor, jornais sangrentos [...] Quando me julgo fora, estou
dentro. E quando me julgo dentro, estou fora. De ti ou dele, de mim em mim,
tríplice engasgado, embora pareça confuso assim formulo, e me parece quase
claro enquanto ruge a cidade longe e debruço este corpo de nós sobre os sete
viadutos: tríplice inseparado para sempre, a morte de um é a morte de três,
não quero que me ajudes a matá-lo porque mataria a ti também a mim. E me
recomponho, e te recomponho, e recomponho a ele, que é também eu e
também tu.[...] sei que não entendes, sei que ele também não entende. Do teu
dia, quase o sei, mas sei do teu labirinto em ti, como sei do labirinto dele
em mim, do meu labirinto em ti. E também não entendo (ABREU, 2005 p.
64-5-6).
Ciente de sua multiplicidade, o personagem traça os agenciamentos que permitem
essa divagação entre os seus desejos e as condições que lhe são oferecidas. O cigarro é um
agenciador que permite enquadrá-lo na categoria dos fumantes; os jornais exercem a função
de agenciadores, pois proporcionam a construção de uma subjetividade em conexão com o
exterior. Assim, esses agenciadores servem de conectivos entre desejos e convenções sociais,
proporcionando o reconhecimento desse ser aprisionado nos seus vários eus e ao mesmo
tempo, consciente de que pode ser transformado. Ou seja, a consciência de uma subjetividade
inacabada. Essa tríplice, num espaço labiríntico que o protagonista tanto enfatiza sugere os
movimentos de “dobra” produtor dessa forma de ser humano apresentada em todo contexto
narrativo.
A importância do outro que nos habita, assim como foi explicitado em “Luz e
Sombra”, é também retratada em “Eu, Tu, Ele” de forma intensa e consistente ao mesmo
tempo. O outro que faz parte do nosso eu também faz parte dos nossos encontros e
desencontros. Dos nossos projetos malogrados e das novas formas de insistência num novo
projeto em que o eu e outro façam parte simultaneamente.
4.2 A urgência da utopia reinventada em “Os sobreviventes” e “Além do ponto”
Nas palavras de Antonio Candido (1995) “a literatura confirma e nega, propõe e
denuncia, apóia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os
problemas” (p. 241). Desse modo, de acordo com esse teórico, a literatura proporciona um
diálogo entre ficção e realidade que resulta numa proposta que irá desde as mais profundas
mudanças até às ações mais corriqueiras do cotidiano. Partindo dessa afirmação, verificamos
que a literatura de Caio Fernando Abreu pode ser entendida como uma escrita caracterizada
por uma visão negativa da experiência social no Brasil, em especial no que se refere à
representação da estruturação social e da condição humana nos anos de repressão num país
em que idéias vanguardistas andam lado a lado do pensamento conservador.
No caso específico de Morangos Mofados, escrito em 1982, nas palavras de Heloisa
Buarque de Holanda (2005, p.9), o texto “não deixa de revelar uma enorme perplexidade
diante da falência de um sonho e da certeza de que é fundamental encontrar uma saída capaz
de absorver, agora sem a antiga fé, a riqueza de toda essa experiência” trazendo para dentro
de seus contos “sobreviventes” de uma era que se perdeu e que agora têm que lidar com toda
a enormidade de sentimentos que lhes inundam o ser. Estes mesmos indivíduos, agora sem o
sonho e a utopia com os quais antes eram movidos, têm que explicar para si mesmos quem
são e encontrar seu novo lugar no mundo.
O conto “Os sobreviventes” é um exemplo dessa literatura, pois explora nuances do
processo histórico-social recente e convida o leitor a refletir não somente sobre um fracasso
de projetos utópicos, mas também sobre os valores humanos. Como sobrevivente de um
grupo de militantes contrários ao sistema ditatorial brasileiro, a personagem protagoniza e
demonstra uma espécie de mal-estar por ter fracassado na luta contra esse poder.
O conto, que tem como base uma indagação ininterrupta de uma mulher sufocando a
voz do suposto companheiro ao desabafar suas desilusões, quebra a estrutura tradicional da
forma de narrar, uma vez que comporta um discurso fragmentado em decorrência da
repressão e das implicações psicológicas que resultaram da violência física e moral. Nessa
forma de narrar, o fluxo de consciência conduz à substituição da narrativa linear pelo relato
fragmentado.
Tem-se, então, um texto denso e fraturado, composto por descrições das personagens
presas a lembranças de um passado diluído num mar de memórias e sonhos estrebuchantes e a
expectativas amalgamadas pela esperança e pelo pessimismo quanto ao devir. Aparentemente,
o discurso da protagonista é desprovido de qualquer coerência, pois as falas parecem
representar um fluxo contínuo de consciência que oscila entre idéias e convicções, discurso e
pensamento: “ claro que deve haver alguma espécie de dignidade nisso tudo, a questão é onde,
não nesta cidade escura, não neste planeta pobre e pobre, dentro de mim?” (2005: 27).
A insatisfação da narradora com o mundo no qual habita se pela constatação de
que as utopias de outrora não mais retornarão. Contudo, a esperança por mudança parece
emergir de dentro dela como que elemento transformador de um futuro não tão distante. A
forma como o pensamento da protagonista é representado implica na limitação do trabalho do
narrador que, tradicionalmente, apenas relatava as experiências psíquicas das personagens na
transmissão de seus pensamentos. Novamente aqui, temos um narrador que ilustra as
considerações sobre a condição do narrador contemporâneo sugeridas por Theodor W.
Adorno, onde afirma ser essa categoria estrutural algo que narra o inenarrável.
Dessa forma, a poética de Caio Fernando Abreu, especificamente neste conto, é
configurada por uma linguagem em crise que encontra espaço no interior da narrativa através
da voz angustiada da narradora-personagem, que em sua sisudez, mostra-se um indivíduo,
embora aparentemente centrado (com bom emprego, reconhecimento profissional etc.), de
humor frágil e depressivo. Esta se releva, ao longo do conto, um sujeito angustiado pelos
fracassos amorosos e inconformados por ver, também, seus planos de uma sociedade
igualitária fracassarem.
A narrativa em questão é marcada por uma poética em processo de desconstrução da
figura do intelectual outrora marcadamente relacionado com os anseios das esquerdas,
exibindo agora, entre os dramas, transtornos, alegrias e prazeres confeccionados entre quatro
paredes, sua impotência existencial. Poderíamos dizer, então, que esse autor cria uma espécie
de linguagem da resistência, pois se interpõe textualmente num exercício contínuo sobre seu
fazer poético. No conto também percebemos uma escrita calcada na utilização de recursos
estilísticos que serve como mascaramento, jogos de simulacros, incapacidade de lidar com o
malogro para simbolizar o inconformismo de um indivíduo fracassado tanto no aspecto
pessoal quanto em sua vida social.
A personagem narradora , por ser vítima da sociedade massificada e dominada pelos
símbolos da cultura, embora consciente de ser presa a este sistema de significação, tenta
resistir se atirando num novo caminho, montando suas próprias cartografias, novas e
perigosas:
Quanto a mim, a voz tão rouca, fico por aqui mesmo comparecendo a atos
públicos, pichando muros contra usinas nucleares, em plena ressaca, um dia
de monja, um dia de puta, um dia Joplin, um dia de Teresa de Calcutá, um
dia de merda enquanto seguro aquele maldito emprego de oito horas diárias
para poder pagar essa poltrona de couro autentico onde neste exato momento
vossa reverendíssima assenta sua preciosa bunda e essa exótica mesinha-de-
centro em junco indiano que apóia nossos fatigados pés descalços ao fim de
mais outra semana de batalhas inúteis, fantasias escapistas, maus orgasmos e
crediários atrasados (ABREU, 2005, p. 25).
As oscilações de comportamento descritas pela personagem são representações de
um mundo que constrói sujeitos diversos, prontos para ocuparem qualquer papel na esfera
social. Através do discurso da personagem, percebe-se que ela constata justamente as
imposições que a cultura dominante lhe oferece. No momento em que afirma “um dia de
monja, um dia de puta, um dia de Joplin, um dia de Teresa de Calcutá, um dia de merda”,
deixa implícito que cada identidade constantemente modificada está relacionada aos papeis
que lhe impõe o sistema de valores. Tais valores servem para instaurar uma determinada
ordem a que todos devem obedecer ou transgredi-la, mas que mesmo o sujeito transgressor
tem consciência de que sua luta não alcançará êxito, uma vez que não parece encontrar
ressonância nas vozes e práticas de outros tantos desvalidos, os quais afirmam o discurso do
dominador.
De acordo com o argumento de Foucault (2001) sobre o discurso em torno do poder
como uma “prática social”, percebemos que a narradora faz parte dessa prática e o que a
difere de outros é que ela é consciente de que é um resultado de uma construção histórica, por
isso, o fragmento em questão, aponta para uma personagem presa ao sistema, porém
inconformada com isso. Sua reflexão desenfreada, marcada por uma escrita incomum que não
abre espaço para normas, é também palco de incomunicabilidade do diálogo, da resistência.
Dessa forma, há, em torno desse questionamento, certo tom conformista, que à
primeira vista parece paradoxal uma pessoa inconformada que acaba se conformando com
sua condição mas que se torna o lugar incomum do processo de comunicação. O aparente
fracasso da escrita, da literariedade no mundo da cultura de massa parece ficar comprovado.
A protagonista vive um momento marcado pela não utopia. O próprio título “Os
sobreviventes” sugere a relação anacrônica em que tanto a narradora quanto outras
personagens presentes neste conto sobrevivem a si mesmo. É a luta pela sobrevivência real,
sem utopias, uma vez que, o que conduz seus atos corriqueiros são formas de poderes díspares
capazes de controlá-la de forma bastante suave, quase imperceptível ao olho humano. Assim,
o poder se constitui como uma prática que domina meticulosamente seus subordinados,
mesmo aqueles que têm consciência disso. Tal poder se apresenta de várias formas para vários
indivíduos, por isso, é considerado algo heterogêneo, pois vive se transformando de acordo os
anseios sociais:
Não existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente formas
díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder não é um
objeto natural, uma coisa; é uma prática social é, como tal, constituída
historicamente [...] os poderes se exercem em níveis variados e em pontos
diferentes da rede social e neste complexo os micro-poderes existem
integrados ou não ao Estado [...] o importante é que essa relativa
independência ou autonomia da periferia com relação ao centro significa que
as transformações ao vel capilar, minúsculo, do poder não estão
necessariamente ligadas às mudanças ocorridas no âmbito do Estado
(FOUCAULT, 2001 p. X – XII).
Retomar a esfera do conto em questão faz com que a narradora viva constantemente
presa ao poder das mais variadas formas. Seja para obedecer ao ritual trabalhista, ou para
cumprir o papel do intelectual comprometido com a causa social, ou seja, para sobreviver em
meio ao turbilhão de exigências apresentadas por essa força que aparece de qualquer lugar sob
as mais diversas formas. Assim como o presente, o passado também lhe causa algo
inquietante. É através das recordações da narradora, que se percebe uma dose de sensibilidade
ao memorizar o tempo de outrora e essa memória é marcada por um culto a esse passado
talvez utopicamente glorioso, mas que não serviu para os projetos futuros, daí a razão de tanta
desilusão.
A inconformada personagem repete em sua cartografia presente o que condenou no
passado. O juízo de valor que ela outrora condenou, hoje está impregnado dentro dela. Não
existe salvação. Metaforicamente, essa narrativa alerta para uma necessidade de vigilância
quanto aos problemas e conseqüências da imposição de regras e condutas sociais, uma
vigilância que também é indispensável na análise da conduta estabelecida pelos regimes
autoritários no Brasil. Entretanto, a personagem sabe que a luta é em vão, pois não crê no
poder da linguagem, no poder dos signos, o seu discurso jamais poderá mudar o mundo, não
serve nem mesmo para descobrir a si mesmo. A descrença na compreensão humana pode aqui
ser entendida como a descrença na própria literatura. A lacuna que a personagem nos oferece
é que nem ela mesma considera as coisas estáveis, nem acredita em seus projetos anteriores.
O nível intelectual se apresenta como entrave:
Cultura demais mata o corpo da gente, cara, filmes demais, livros demais, só
consegui te possuir me masturbando,tinha a biblioteca de Alexandria
separando nossos corpos, eu enfiava fundo o dedo na boceta noite após noite
e pedia mete fundo, coração, explode junto comigo, me fode, depois virava
de bruços e chorava travesseiro, naquele tempo ainda tinha culpa nojo
vergonha, mas agora tudo bem, o relatório Hite liberou a punheta.[...] o que
acontece é que como bons-intelectuais-pequeno-burgueses o teu negócio é
homem e o meu é mulher, podíamos até formar um casal incrível [...] podia
ter dado certo entre a gente, ou não, eu nem sei o que é dar certo, mas
naquele tempo você ainda não tinha se decidido a dar o rabo nem eu a
lamber boceta, ai que gracinha nossos livrinhos de Marx, depois Marcude,
depois Reich, depois Castañeda, depois Laing (op.cit. p. 26 – 27).
A escrita é inútil, a literatura torna-se inútil. A falta de sentido na literatura é algo
que se estabelece do conto. A mensagem não alcança seu objetivo justamente por apresentar
um discurso baseado apenas nas tentativas, mas que nunca chega à concretude - o de produzir
universos paralelos em que vozes se sobrepõem umas às outras rumo a uma tessitura dos
desejos reprimidos. Daí emerge, por efeito, um desejo de “estar à toa”, de entregar-se a uma
maré comumente contrária ao andamento da vida. A prostração física e existencial, nesse
caso, adquire coloração específica.
Nota-se que a narradora-personagem de “Os Sobreviventes” vive em situações de
extrema solidão de caráter melancólico. Isso acontece devido a inúmeras frustrações
vivenciadas por ela nas esferas social e pessoal. Quando as vivências intelectuais se chocam
contra determinadas imposições como o fracasso socialista e, ainda, quando as situações
de convivências pessoais implodem perante o outro, que se mostra intocável, restam os
espaços solitários interiores, do apartamento, do quarto, esconderijos de sujeitos vivendo sob
redomas, marcadas pelas debilidades frasais. Porque o discurso dessa narradora melancólica é
sempre incompleto, entrecortado sendo esse discurso marcado por um encadeamento caótico,
avesso à linearidade, e centrado na presença dos enlutados.
A linguagem presente neste conto é caracterizada por uma escrita literária que não
cabe no papel, representa um mundo em pedaços, infinitamente maior do que o parco espaço
sígnico. Dito isso, como o conto tem o melancólico como sua principal característica, pois
significa o seu mundo interior, esse mundo também é significado pela fragmentação que
também representa um alastramento do descentramento identitário:
O sujeito ainda anseia pelo eu unitário [...] entretanto, existe, um contínuo
processo de identificação, no qual buscamos criar alguma compreensão
sobre nós próprios por meio de sistemas simbólicos e nos identificar com as
formas pelas quais somos vistos por outros. Tendo, inicialmente, adotado
uma identidade a partir do exterior do eu, continuamos a nos identificar com
aquilo que queremos ser, mas aquele ser está separado do eu, de forma que o
eu está permanentemente dividido no seu próprio interior (WOODWARD,
2000, p. 64).
No caso da nossa personagem sua fala melancólica é a maneira de representar sua
fragmentação identitária. Nessa espécie de discurso iniciático fundado pelo sujeito narrador
observa-se um texto de caráter rebelde à própria construção de uma identidade única, erigido
para ser lido por si mesmo, sempre autoreferencial. Assim, esse sujeito melancólico não
estará, jamais, nos mesmos espaços em que circulam os sujeitos aptos aos convívios
interpessoais e a cooptação pelos mecanismos que integram o maquinário do cotidiano
(relações trabalhistas, econômicas, enfim, comportamentos regidos pelas trocas materiais e
simbólicas). Seja no âmbito de um descentramento pelos processos de identificações, seja no
da construção de um lugar ficcional como cenário para a recordação fantasiosa:
li tudo cara, já tentei macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio
ioga dança natação cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay
ecologia, sobrou esse no peito, agora faço o quê? não é plágio do
pessoa não, mas em cada canto do meu quarto tenho um imagem de Buda,
uma de mãe Oxum, outra de Jesusinho, um pôster de Freud, às vezes acendo
vela, faço reza,queimo incenso, tomo banho de arruda, jogo sal grosso nos
cantos, não te peço solução nenhuma, você vai curtir os seus nativos em Sri
Lank depois me manda um cartão-postal contando qualquer coisa como
ontem à noite, na beira do rio, deve haver uma porra de rio por lá, um rio
lodoso, cheio de juncos sombrios, mas ontem na beira do rio, sem planejar
nada, de repente, sabe, por acaso, encontrei um rapaz de tez azeitonada e
olhos oblíquos que (ABREU, p. 27).
Junto a essa fragmentação da linguagem que pode ser percebida por uma escritura
não convencional, pois um tópico frasal se encerra com um suposto pronome relativo
“encontrei um rapaz de tez azeitonada e olhos oblíquos que.”, a narradora descreve seus
fracassos em ter tentado encontrar uma fórmula para conter a angústia que a atormenta. Nesse
sentido, temos também uma identidade fragmentada, em trânsito, cambiante. A
impossibilidade de se fixar num lugar exato cria a sensação angustiante para a personagem de
que não há uma salvação, de que não há saída.
A linguagem literária, neste conto, parece refletir que vivemos sempre em busca de
algo. Então, ler e viver é uma tentativa de alcançar algo que sempre nos foge, como diria
Derrida; a linguagem é um jogo. Nela, o signo nunca se mostra por completo; ele nos escapa,
pois a cada instante que precisamos dele se mostra morto, ineficaz, não diz nada. O signo é
composto de incompletudes, ambigüidades, incertezas ele é incomum e incomunicável. A
nossa comunicação revela-nos muito mais do que desejamos, ou muito menos do que
planejamos. A procura de um sentido é a morte do signo da qual a literatura deve escapar.
Para Caio Fernando Abreu, a escritura, assim como a vida, é frágil. Neste conto, a
narradora descreve que não alcançamos o que procuramos. O desejo não pode ser nunca
concretizado porque assim deixaria de sê-lo. Mas que isso não seja confundido com o passado
ufânico e nostálgico do romantismo. Ao contrário, o presente é frio, pois condiciona o sujeito
no plano real a perceber suas limitações. Nessa realidade não escapatória. A narradora, ao
tentar refúgio em outro lugar, recebe ironicamente o fracasso de outro personagem,
comparando-o a Rimbaud:
Uma certa saudade, e você em Shi Lanka, bancando o Rimbaud, que nem foi
tão longe, para que todos lamentem ai como era bonzinho e nós, palmeiras &
abacaxis. Sem parar, abana-se com a capa do disco de Ângela enquanto
fuma sem parar e bebe sem parar sua vodca nacional sem gelo nem limão
(ABREU, p. 25).
A comparação com Rimbaud demarca o território da desilusão, como também da
busca, tendo em vista que este poeta, deixando de escrever aos vinte e um anos de idade,
buscou nas terras solares da África a redenção que a literatura não lhe propiciou. A narradora
descreve também fugas quando remete às suas ações cotidianas; “fuma”, “bebe sem parar sua
vodca nacional”. Recorrer a signos que tentam simbolizar o país -“palmeiras & abacaxis”
revela um autor cheio de opiniões acerca do seu espaço territorial. Isto significa dizer que
mesmo recorrendo a símbolos tidos nacionais como é o caso de “palmeiras e abacaxis”, Abreu
apresenta uma escrita irônica confrontando-se com esses símbolos que, na verdade, aqui não
são reconhecidos como tais, no sentido de estabelecer associações imanentes com uma idéia
de Brasil.
A alusão ao poeta francês europeu reforça a temática da narrativa que consiste na
depreensão do malogro da luta por um estado digno de humanidade e, ainda assim, numa
atitude que insiste na esperança renitente e melancólica de construção de formas de viver
alternativas. A narrativa, ao sugerir a viagem de uma das personagens para uma terra distante,
traduz a ânsia pela configuração de um novo projeto utópico que contemple os mais
profundos anseios de mudanças sociais e pessoais.
Nos grandes centros ou na periferia estamos presos a um sistema que nos molda e diz
como quer que nos comportemos. Portanto, resta a essas personagens uma espécie de
conformismo com o mundo e encarar isso como algo do cotidiano de viver. Ou se vive dessa
forma ou não se vive. Mais uma vez, as ações das personagens, embora pessimistas sobre o
mundo em que se inserem, não se comparam com os personagens românticos, porque, como
foi dito anteriormente, estes idealizavam o mundo ao redor e criavam uma redoma de
proteção para não serem atingidos por esse mundo. No entanto, a narradora constata esse
mundo frio e cruel e têm consciência de que faz parte dele, sendo também responsável por sua
condução, clamando desesperadamente por uma âncora, por algo que sustentação e
convicção a seus passos rumo à recuperação de uma outra utopia:
Te desejo uma enorme, em qualquer coisa, não o quê, como aquela fé que
a gente teve um dia, me deseja também uma coisa bonita, uma coisa
qualquer maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo, que nos faça
acreditar em tudo outra vez, que leve para longe da minha boca este gosto
podre de fracasso, este travo de derrota sem nobreza, não tem jeito,
companheiro, nos perdemos no meio da estrada e nunca tivemos mapa
algum, ninguém mais carona e a noite vem chegando. A chave gira na
porta. Preciso me apoiar contra a parede para não cair (op. cit. 2005:29).
Questionar o fim da utopia e desejar um vir-a-ser alternativo parece ser traço
marcante de narrativas urbanas de Caio Fernando Abreu. Paradigmático neste sentido é o
conto “Além do ponto”, que tem como ponto de partida a relação espaço-tempo dos percursos
circulares e opressivos do narrador protagonista na cidade, sem nome e sem futuro, marcado
pela ausência de respostas, pela impossibilidade da linguagem
,
esse personagem oferece uma
visão, de dentro, do fim do projeto utópico, mas que ao mesmo tempo, resta-lhe uma
esperança. Tudo é representado por questionamentos constantes que se alimentam da
realidade e do desejo de transformá-la.
O percurso do narrador em seus deslocamentos no espaço narrativo abre caminho
para o caracteriza-lo como um ser nostálgico. Este sentimento é percebido pela dor da perda.
Sob o signo da diversidade e pluralidade, no que refere a estilística de Caio Fernando Abreu e
aos caminhos da leitura e interpretação, o conto “Além do ponto” se apresenta de forma
enigmática para o leitor. Segundo Adorno (1983) o grande escritor é capaz de reconhecer os
conflitos sociais e representá-los artisticamente de forma a torná-los perceptíveis na própria
obra de arte, o que, num primeiro momento, pode dificultar sua interpretação.
A narrativa que adiante será analisada comprova que o viés transgressor da poética
do autor, antes de qualquer posicionamento político perante a sociedade na qual se insere, se
no interior do próprio sujeito, multiplicado em vários eus mal-resolvidos que representam
identidades descentradas. Seu processo escritural evidencia as tensões interiores responsáveis
por produzir personagens e situações híbridas e incertas sobre o seu eu/outro. O conto inicia-
se com repetições enfáticas do verbo Chover: “chovia, chovia, chovia”, e logo em seguida o
enunciado se completa com “e eu ia indo por dentro da chuva ao encontro dele”.
Essa procura pelo o outro enigmático, haja vista que o narrador, durante o desenrolar
da trama, não esclarece, em momento algum, quem é esse outro, parece evidenciar que esse
protagonista tenta buscar uma renovação do eu através dessa busca pelo outro. A chuva, que
segundo Chevalier e Gheerbrant (2007) simboliza na hierogamia Céu-Terra o esperma que
fecunda. É o líquido purificador e renovador. “A chuva, filha das nuvens pesadas e da
tempestade, reúne símbolos do fogo (relâmpago) e da água”. Ela apresenta também a dupla
significação de fertilização espiritual e material (p. 237).
No caso deste conto, a chuva é a metáfora da renovação desse narrador que vive em
busca desse outro eu. Essa personagem não receia o contato com a chuva/ renovação: “eu ia
indo por dentro da chuva”, mas ao mesmo tempo, da forma como os verbos estão distribuídos
na narrativa, denota que é um processo lento que ocorre com indivíduo gradativamente. Esse
outro tão desejado pelo eu-narrador é uma busca incessante e solitária pelo outro/eu
decorrente da insatisfação humana e do sofrimento causado pela
instabilidade interior
provocada pelo desequilíbrio do mundo exterior. A forma como o narrador descreve o seu
estado solitário em plena noite de chuva numa cidade qualquer, revela um homem solitário,
por isso, cada vez que se sente a si mesmo, sente-se como carência do outro:
[...] hesitava mas ia indo, no meio da cidade como um invisível fio saindo da
cabeça dele até a minha, quem me via assim molhado não via nosso segredo,
via apenas um sujeito molhado sem capa nem guarda-chuva, [...]. Era a mim
que ele chamava, pelo meio da cidade, puxando o fio desde a minha cabeça
até a dele, por dentro da chuva, (op.cit. 2005. p. 47).
Mais uma vez a chuva parece como objeto mediador desse encontro do eu com o
outro. Os sintagmas verbais “chovia”, “ia indo”, “puxando”, “batendo”, “andava”, caía”,
“fedendo”, “escondendo”, ”saindo”, “jogando”, entre outros que compõem o léxico do texto
indicam movimentos repetitivos e às vezes funcionam como eco. Esses ecos que se repetem
insistentemente caracterizam uma vontade do narrador em trazer para o presente o sonho
perdido no passado.
Entretanto, ele tem consciência de que o passado não volta, todavia, pode existir uma
nova possibilidade de transformação desse presente agonizante em algum lugar “além do
ponto”. uma predominância do uso do verbo na forma nominal gerúndio, forma essa,
indicadora de uma ação que está em andamento, algo que não está completo. Essa recorrência
ao gerúndio marca a agonia das ações inacabadas e nos remete também à idéia da
momentaneidade dos fatos. É uma repetição, como frisamos anteriormente, quase, especular,
dos movimentos, como se fosse um eco: “Batendo batendo batendo batendo batendo batendo
batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo”(p. 48). Encerrar o conto com a
repetição enfática do gerúndio pode indicar que existe uma meta de um novo projeto para o
futuro. Tudo caminha num processo de desenvolvimento.
Para destacar a clareza da representatividade dos verbos neste conto, chamamos a
atenção para o valor de dois tipos de passado: o pretérito imperfeito e o perfeito. Na fixação
da cena, o imperfeito cria no passado a duração de um evento, caracterizando-o: “mas eu ia
indo pela chuva porque era o meu único sentido, meu único destino: bater naquela porta
escura onde eu batia agora”. o pretérito perfeito quebra essa continuidade, instaurando uma
transformação pontual (“Eu bati, e bati outra vez”), também no passado. A ocorrência no
trecho indica a insistência do narrador em penetrar em algo desconhecido por ele, mas que era
preciso fazer aquilo, como o fez no passado.
O modo subjuntivo também irá ter um destaque especial nessa narrativa, pois pode
ser considerado o espaço gramatical-discursivo em que o narrador formula hipóteses e
desejos, tendo forte carga de subjetividade: “e fumaríamos beberíamos sem medidas”; “se
quisesse eu poderia imaginar alguma coisa”.
A dupla significação dos verbos que ora indicam copulação, ora indicam movimento
parecem estabelecer uma relação de associação da personagem com noções que indicam sua
degradação: “não queria que ele pensasse que eu andava bebendo, e eu andava; e eu não
queria que ele pensasse que andava insone, e eu andava”.
Semanticamente, os gerúndios “bebendo” e “fedendo” podem apontar para uma
qualidade, que no caso da personagem, são as qualidades de ser bêbado e fedido reforça mais
ainda o suposto desajustamento social vivido pelo narrador. As outras significações das às
ações de andar, beber, pensar, querer remetem a manifestação da busca esperançosa, que
provavelmente se dará através do encontro com o outro, de um mundo mais habitável.
Tudo isso, diz respeito à questão da vida, relacionada à problemática do ser que
questiona, em busca do sentido da vida. Por isso, a personagem se questiona o tempo todo. E
desse questionamento, percebe-se o olhar de um narrador que vivenciou plenamente os
conflitos e a descrença da consciência de estar atravessando por dois mundos e de pertencer a
ambos: o mundo utópico e o pós-utópico.
Esse eu refletido no outro tão procurado pelo protagonista vem acompanhado de uma
linguagem fracassada, mbolo do fracasso do próprio narrador, que falhou tanto em seus
projetos de resistência como em seu exílio, tendo em vista a agudeza de sua carência e a
lacuna quanto ao futuro. Á medida que os fatos passados, ainda por serem entendidos, são
recuperados, tais fracassos vão sendo evidenciados, anunciando um estado de desilusão
irreversível, o estado de um eu pavoroso diante de um desencantamento, uma desilusão:
[...] e eu andava [...] e eu andava [...] e eu andava, roxas olheiras, teria que
ter cuidado com o lábio inferior ao sorrir, se sorrisse, e quase certamente
sim, quando o encontrasse, para que não visse o dente quebrado e pensasse
que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse,
mas depois de pensar isso me deu porque fui percebendo, por dentro da
chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era
(ABREU, 2005 p. 46).
Os critérios não-convencionais de escrita, a construção fragmentária do tempo e da
própria narrativa, a dificuldade que o leitor tem de identificar quem é esse outro que o
narrador tanto recorre podem ser interpretados como pontos de tensão interna no conto
analisado. O uso de uma linguagem que desobedece às regras de pontuação com insistentes
repetições: “e eu andava, e eu andava, eu e andava”, é por si só, um indício de protesto em
relação à normatividade. “Além ponto”, título do conto, também pode ser exemplificado
como um tipo de tensão interna.
Diante da fragmentação do texto, da precariedade do narrador é possível estabelecer
um elo entre o conto e suas conturbadas condições de produção e considera-lo relevante,
portanto, dentro do pensamento adorniano, para critério de valor, de que forma deve ter
profunda relação com o conteúdo
:
A sua própria tensão é significativa na relação com a tensão externa. Os
estratos fundamentais da experiência, que motivam a arte, aparentam-se com
o mundo objectivo, perante o qual retrocedem. Os antagonismos não
resolvidos da realidade retornam às obras de arte como os problemas
imanentes de sua forma (ADORNO, 1988, p. 16).
É relevante observarmos que o conto aqui analisado mostra ter abertura a um caráter
de resistência no momento em que se faz singular em relação ao modo tradicional literário.
Diferente da tradição literária, o narrador de “Além do ponto” termina com os mesmos
desencantos e desilusões iniciais. Por outro lado, mesmo sem compreender sua situação, sem
ser capaz de resolver seus conflitos interiores e não se realizar de modo algum, ele resiste.
Essa resistência presente na obra literária é uma qualidade primeira, de acordo com Adorno,
como valorização desta, para que não se perca a necessidade de constante reflexão, em
especial nos regimes autoritários, como é o caso Brasil na época analisada – repressão,
conservadorismo, desigualdades sociais, entre outros:
A arte se mantém em vida através da sua força de resistência; se não se
reifica, torna-se mercadoria. O seu contributo para a sociedade não é
comunicação com ela, mas algo de muito mediatizado, uma resistência, em
que a evolução social se reproduz em virtude do desenvolvimento intra-
estético, sem ser a sua imitação (op. cit, 1988, p. 254).
Diante de uma realidade que impõe o silêncio, resultado do ambiente repressivo e
limitador, falar da dor humana, é transgredir muitas proibições, pois funciona como uma ação
provocativa em relação à submissão calculada pelos agentes repressores na conservação da
ordem social e política. É a linguagem do sofrimento humano que surge da própria
experiência resgatadora da voz dos que foram silenciados pela repressão, permitindo, por
exemplo, que o sujeito de posse das inquietações sobre si procure um outro eu para poder
sobreviver ao processo traumático de viver que não consegue superar:
Os carros me jogando água e lama ao passar, mas eu não podia, ou podia
mas não devia, ou podia mas não queria ou não sabia mais como se parava
ou voltava atrás, eu tinha que continuar indo ao encontro dele, que me abriria
a porta [...] eu precisava deter a vontade de voltar atrás ou ficar parado, pois
tem um ponto, eu descobria, em que você perde o comando das próprias
pernas, não é bem assim [...] eu apenas começava a saber que tem um ponto,
e eu dividido querendo ver o depois do ponto e também aquele agradável
dele me esperando quente e pronto (op. cit.2005 p. 46).
À medida que os fatos passados, ainda por serem entendidos, são recuperados, os
fracassos do projeto vão sendo evidenciados, intensificando estado de desilusão irreversível
referido anteriormente.
No plano narrativo é um texto que se efetiva através de um movimento caoticamente
cíclico, embora sugestione a possibilidade de um além ponto, o que implica a idéia de
superação, de processo. É como se o conto gritasse por esse horizonte que consistisse
novamente em um novo projeto utópico. Diante disso, evidenciamos uma escrita paradoxal
que se resume na afirmação do movimento cíclico, ao mesmo tempo em que remete para um
anseio da possibilidade de uma superação:
Chegava num ponto, eu voltava ao ponto, em que era necessário um esforço
muito grande, era preciso um esforço o terrível que precisei sorrir mais
sozinho e inventar mais um pouco, aquecendo meu segredo, e dei alguns
passos, mas como se faz? me perguntei, como se faz isso de colocar um
após o outro, equilibrando a cabeça sobre os ombros, mantendo ereta a
coluna vertebral, desaprendia, não era quase nada, eu, mantido apenas por
aquele fio invisível ligado à minha cabeça [...] (op. cit. 2005: 47).
A narrativa se apresenta em forma de fragmentação do discurso tendo em vista a
dificuldade do personagem em organizar logicamente a sua fala. Como ser em crise, a
condição para elaboração de um discurso com encadeamento ordenável é estrito e a
segmentação torna-se inevitável. Nesta linha de raciocínio entendemos que o protagonista
vive em uma situação-limite e não têm condições de elaborar uma fala cuja seqüência seja
ordenável; logo, a representação dessa condição não pode se apresentar lógica e linearmente.
Temos então, uma postura desestabilizada de qualquer tipo de pensamento conservador. A
resistência se dá através do jogo entre sujeito e sociedade.
Como mencionamos no decorrer do nosso trabalho, o sujeito pós-moderno é
despojado de toda identidade essencialista e de toda interioridade absoluta. Sendo assim, ele
pode ser entendido como algo mutável que pode ser transformado e transformar. Esse
conceito permite que pensemos o sujeito que vai além do esquema de “opressão/
libertação/identidade” em busca de outras maneiras de entender sua existência no mundo,
valorizando a diferença, se metamorfoseando constantemente, como resposta à resistência as
formas atuais de sujeição. Dessa forma, o eu não pode ser investigado como espaço único de
“individualidade humana”, mas como, resultado das ligações entre humanos, estrato social,
“práticas, multiplicidades e forças. São essas variadas relações e ligações que produzem o
sujeito como um agenciamento” (ROSE, 2001, p. 146).
O Protagonista sente o impacto e ao mesmo tempo sente-se desafiado a reconhecer o
outro, perceber o mundo que o cerca e finalmente, toda essa multiplicidade que chama de
realidade. É neste mundo real que ele se depara com a existência do seu corpo, ou melhor, do
seu lugar nesse mundo:
[...] e eu andava, estômago dolorido de fome, e eu não queria que ele
pensasse que eu andava insone, e eu andava, roxas olheiras, teria que ter
cuidado com o lábio inferior ao sorrir, se sorrisse, e quase certamente sim,
quando o encontrasse para que não visse o dente quebrado e pensasse que eu
andava relaxando [...] quem me via assim [...] via apenas um sujeito
molhado sem capa nem guarda-chuva, uma garrafa de conhaque apertada
contra o peito (op. cit. 2005, p. 46/7).
Essa linguagem usada pelo narrador para descrever seu mal-estar, evidencia os
processos agenciadores que determinam a submissão deste em relação ao sistema de regras.
Quando o personagem se esconde através da máscara ilusória ele tem a sensação de estar
protegido dos olhos do poder. A caricatura o camufla, mas não o impede ser reconhecido pela
matriz dominante. Esses agenciadores internos (dente quebrado, garrafa de conhaque, roupas
molhadas, roxas olheiras) aliados aos agenciadores externos (o sistema dominante
representado pelo olhar do outro que pune e reprime) são responsáveis por desmascarar esse
eu que desestabiliza os modelos aceitos pelo poder dominante. Sobre esses agenciadores
internos e externos Guattari (1996) expõe o seguinte ponto de vista:
A produção da fala, das imagens, da sensibilidade, a produção do desejo não
se cola absolutamente a essa representação do indivíduo. Essa produção é
adjacente a uma multiplicidade de agenciamentos sociais, a uma
multiplicidade de processos de produção maquínica, a mutações de
universos de valor e de universos históricos (GUATTARI, 1996, p. 32).
No âmbito da narrativa em questão, o personagem não é marcado pela subjetividade
quase imperial do cogito cartesiano, mas pela multiplicidade de vozes oriundas do interior
dessa mesma personagem. Trata-se de uma espécie de polifonia, que demarca nossa
multiplicidade desde nosso mais íntimo pensamento.
As várias transgressões que o conto ensaia, sugere uma nova expressão da pós-
modernidade, ou seja, não precisa reinscrever o passado para subvertê-lo, mas que subverte o
presente de forma que o torna incompreensível até mesmo para o universo ficcional da
personagem, uma vez que reduz o ato de viver a contundente trajetória do desejo, sem
sublimações. Atrelado a esse desejo surge o sujeito cambiante revelando o discurso do outro,
do excêntrico, perverso e incompreensível até para si mesmo; o discurso dos tipos
transgressores. O corpo é o lugar da descoberta do ser, em que a liberdade, sob a forma do
desejo, se revolta contra tudo que a sociedade constrói sob a forma do discurso repressor.
Em “Além do ponto”, o autor constrói um personagem participante de uma narrativa
fragmentada e lacunar, densa e complexa. Através dos questionamentos desse protagonista
percebem-se em seus discursos, os aspectos do contexto social sob a forma de uma revisão
dos valores, condutas e ideologias próprias dos períodos autoritários e de sociedades
conservadoras.
Ao fazer esse questionamento das ideologias e posicionamentos preconceituosos
marcados por um pensamento conservador, esse texto literário mostra a mediocridade e o
preconceito de uma sociedade voltada para o culto de valores tradicionais. Mostra também,
como o diálogo entre escritura, contexto e leitor possibilitam a este, fazer parte da história e
tomar posição crítica e reflexiva em relação ao contexto autoritário e as posturas assumidas
pela elite que domina. Adorno (1983) discutindo a posição do narrador no romance
contemporâneo, explicita que essa categoria narrativa aproxima-se do leitor, fato esse que não
ocorria no romance tradicional, com a intenção de mostrar-lhe que o mundo real não lhe é
alheio e nem lhe provoca desinteresse. Para esse autor, a distância estética é diminuída
quando há uma interação entre narrador e leitor:
O narrador ataca um elemento fundamental na sua relação com o leitor: a
distância estética. Esta era inamovível no romance tradicional. [...] são a
resposta antecipadora a uma condição do mundo em que a atitude
contemplativa virou escárnio total, porque a ameaça permanente de
catástrofe não permite a mais ninguém a observação desinteressada, nem
mesmo sua reprodução estética (p.272).
Metaforicamente, o conto alerta para o fracasso e ilusões perdidas do indivíduo
fragmentado participante de um sistema autoritário brasileiro e censura explicitamente a
sociedade conservadora, que deixa como saldo sujeitos amargurados, porém resistentes à
violência e à opressão. Esses indivíduos, no entanto, são barrados na severa e rigorosa ação
social.
Assim, de acordo com o argumento de Bakhtin, (2003, p. 360-1),
Os estudos literários devem estabelecer o vínculo mais estreito com a
história da cultura. A literatura é parte inseparável da cultura, não pode ser
entendida fora do contexto pleno de toda a cultura de uma época. É
inacreditável separá-lo do restante da cultura e, como se faz constantemente,
ligá-la imediatamente a fatores socioeconômicos, por assim dizer, passando
por cima da cultura. Esses fatores agem sobre a cultura no seu todo e
através dela e juntamente com ela influenciam a literatura. Entre nós, durante
um período bastante longo deu-se atenção particular à especificidade da
literatura.
No ambiente móvel das identidades que consomem identidades, a forma como a
personagem encara a realidade é um desdobramento dos pontos de vista esboçados por essa
contracultura e por movimentos sociais das chamadas minorias, nos anos 60. Por sua vez, os
movimentos sociais do período em questão são derivados dos movimentos ideológicos
críticos do modelo capitalista, surgidos após a Revolução Industrial.
O conto, nesse momento, descreve a linguagem do corpo: penso, sinto, desejo e é
assim que existo. Sem dualidades. A fragmentação na narrativa representa a dificuldade da
produção poética contemporânea. Sendo esta dificuldade a revelação da intensidade da
contemporaneidade. É o reconhecimento de que somos múltiplos, somos milhões. Esta
narrativa de Caio Fernando Abreu é a projeção de um imaginário em que se interceptam ao
discurso polifônico moderno e o mosaico s-moderno multicultural que resguarda a
contracultura como expressividade de frustrações e conflitos em torno da auto-imagem do
indivíduo, em face à ditadura das imagens e dos superficialismos capitalistas. O narrador que
“não narra”, mas que apenas divaga seu mal-estar perante o mundo real, constrói sua
subjetividade através desse monologo interior.
Essa forma de narrar não linear e o descentramento que caracteriza esse protagonista
evidencia o sujeito em crise, reforça ainda mais a quebra desse modelo hegemônico cultural
ocidental.
Marcado por uma narrativa que a tudo torna presente, apresentando uma visão não
linear de tempo, sem a preocupação de contar uma fábula qualquer, o conto rompe com a
estrutura discursiva típica do patriarcado, como forte tendência a instrumentalizar a realidade,
mais do que compreendê-la.
Salientamos que essa marcação atemporal impossível de ser medida e controlada não
deve ser confundida com qualquer espécie de subjetividade ou devaneio do narrador ou
personagem, mais sim com o tema do descentramento do sujeito; uma das características do
pós-moderno. Assim, a verdade sobre o sujeito, como afirmam Santos e Oliveira é relativa,
pois:
A verdade é sempre uma forma provisória de interpretação. O homem uno,
indivisível, senhor de sua identidade, é substituído pelo homem múltiplo,
fragmentado, que não sabe exatamente quem é. A idéia de pessoa depende,
portanto, de um imaginário social. Se cada sociedade veicula uma idéia
diferente de pessoa, é de se esperar que tal diversidade se expresse nos textos
que as sociedades produzem. Em função disso, encontramos, nos textos
literários de cada época e cultura, variações nos modos de conceber e de
articular os sujeitos ficcionais. Para distintas concepções de pessoa,
encontramos distintas idéias a respeito do que é um autor, uma personagem,
um narrador (SANTOS e OLIVEIRA. 2001 p. 24- 25).
É dentro dessa atmosfera estática que se insere a questão do sujeito fragmentado. O
conto em si representa a condição de um sujeito fragmentado pertencente à sociedade
contemporânea ocidental. O sujeito corporificado no texto é o eu, tipo anônimo (personagem
sem nome, apenas, representado pelo pronome “eu”). Essa falta de um nome com o qual esse
narrador possa ser identificado caracteriza-se como um ser sem identidade ou porque a perdeu
ou porque a busca.
Sobre a questão da fragmentação do sujeito na pós-modernidade, Guacira Louro
traduz no livro Um corpo estranho como “na pós-modernidade, parece necessário pensar não
em processos mais confusos, difusos e plurais, mas, especialmente, supor que o sujeito que
viaja é, ele próprio, dividido, fragmentado e cambiante” (LOURO, 2004, p.13).
Podemos encarar a condição fragmentada desse protagonista sendo representada por
uma viagem em busca dos seus eus. No decorrer da história, o narrador se desloca de um local
a outro procurando insistentemente por ele”: “[...] e além da água da chuva e da lama dos
carros na minha roupa, agora também estava encharcada [...] e pensei na lama que ele
limparia terno, porque era para mim e só para mim que ele abriria a sua porta” (p.47).
Esse “ele” tão enfatizado pelo protagonista nunca é encontrado: “eu quis chamá-lo,
mas tinha esquecido do seu nome, se é que alguma vez o soube, se é que ele o teve um dia,
[...] meu corpo sujo gasto exausto batendo feito louco naquela porta que não abria, era tudo
um engano [...]” (p.48). Talvez o outro seja a representação dessa identidade que o
personagem tanto busca e nunca encontra. Na verdade, a procura não é pelo outro, mas sim,
por si mesmo. Pelas pistas que o conto oferece: esse narrador não mora em lugar nenhum,
vive perambulando pelas ruas a procura de um lugar fixo, e esse lugar, ele nunca encontra.
Dentro do conto, o narrador assume a condição de nômade, não tem lugar fixo:
[...] tive vontade de voltar para algum lugar seco e quente, se houvesse, e não
lembrava de nenhum, ou parar para sempre ali mesmo naquela esquina
cinzenta que eu tentava atravessar sem conseguir, os carros me jogando água
e lama ao passar, mas eu não podia, ou podia, mas não deveria, ou podia,
mas não queria ou não sabia mais como se parava ou voltara atrás (ABREU,
p.46).
A forma como o texto se apresenta atribuindo voz a esse sujeito marginalizado o
nômade posto numa posição excêntrica na sociedade determina a não-identidade fixa desse
sujeito. Pois, segundo Deleuze e Parnet, “os nômades estão sempre no meio”, eles “não têm
passado, nem futuro, têm apenas deveres, não têm história, apenas a geografia” (DELEUZE &
PARNET, 1998, p.41).
A personagem se apresenta como nômade evidenciando, mais do que outros, o
caráter inventado, cultural e passageiro de todas as identidades. Possui um caráter
significativo de uma identidade cambiante, pois vive intensamente os conflitos que sugerem
uma ampliação nas possibilidades de ser e viver.
O conto “Além do ponto” descreve um sujeito com marcas que podem ser entendidas
como desviantes dos padrões sociais exigidos pela sociedade dominante. Entendendo que os
sujeitos são rotulados, classificados e hierarquizados pela aparência dos seus corpos, podemos
afirmar que o narrador desse conto não pertence a uma posição privilegiada dentro dessa
sociedade. A forma como ele se descreve parece evidenciar a classe social a qual ele pertence,
o tipo de vida que leva:
[...] se eu tomasse o táxi não poderia comprar cigarros nem conhaque [...]
fumaríamos beberíamos sem medida [...] para que não visse o dente
quebrado e pensava que eu andava relaxando, sem ir ao dentista, e eu andava
[...] um sujeito molhado sem corpo nem guarda-chuva, uma garrafa de
conhaque barato apertada contra o peito (ABREU, p. 45-7).
A maneira como se veste, o jeito de perambular pelas ruas, a descrição do dente
quebrado, a ênfase nas drogas que consome (bebida e cigarro), tudo isso supõe marcas de um
corpo degradado perante as normas, valores e ideais da cultura. Então, o seu corpo simboliza
exatamente, sua posição diante dessa sociedade hierarquizadora. A descrição desse corpo
remete aos locais subalternos nos quais o narrador transita. Isto implica dizer que, segundo
Judith Butler “os discursos “habitam corpos”, que “eles se acomodam em corpos” ou, ainda
mais contundente, que “os corpos, na verdade, carregam discursos como parte de seu próprio
sangue” (BUTLER, 2002 p. 55)”.
O narrador sente certo incômodo em aparecer para o “outro” com “dentes
quebrados”. Se analisarmos a citação acima, entenderemos que, como enfatiza Butler, os
corpos falam por si, se enquadram nos padrões sociais e culturais. O personagem, mesmo a
deriva, não se sente à vontade com sua aparência. Nesse momento, absorve os valores
propagadores da estética de boa saúde, da higienização. A conclusão que se chega é de que,
“os discursos habitam corpos”, sim. Uma vez que o narrador sente incômodo em aparecer
“relaxado”, como o próprio afirma.
Essa resumida exclamação permite afirmarmos que as normas impostas reguladoras
do indivíduo em determinada sociedade impõem “limites de sanidade e legitimidade, de
moralidade ou coerência” (LOURO, 2004, p.82). Entretanto, sabemos que em se tratando de
corpos não podemos, assim como pensamos identidades, defini-los permanentemente como
um espelho cultural, pois sabemos que eles se alteram constantemente. Os corpos nomeados
como signos, no contexto de uma cultura, são provisórios, e estão, indiscutivelmente, ligados
à relação de poder dessa cultura.
O fato de o personagem do conto se sentir deslocado do padrão social simboliza
como os discursos dominantes são eficazes e produtores da imagem ora subvertida, ora
tradicional. Afinal, o narrador bebe e fuma porque, de certa forma, lhe são oferecidos tais
produtos. A cultura define, através de múltiplos sinais, códigos, atitudes e referências no seu
interior, o sujeito.
Essas marcas podem ser representadas simbólica e fisicamente, podem ser indicadas
por discursos, pela forma como o estereótipo se encontra etc. O narrador se descreve, do
ponto de vista visual, como um indivíduo com marcas deixadas pelo tempo (dentes
quebrados) e tem um discurso angustiante por não conseguir se encontrar, mesmo sabendo
que habita algum lugar, não sabe que lugar é esse. Desse modo, todas as representações
explícitas pelo narrador, dando pistas de quem ele é, produz efeitos simbólicos, condição
social e material. A questão se define da seguinte forma: “os corpos o marcados social,
simbólica e materialmente – pelo próprio sujeito e pelos outros” (LOURO, 2004, p.83).
Por isso que o nosso personagem se define como um indivíduo em busca de um
outro, mas sem êxito:
Eu estava parado naquela porta fazia muito tempo, depois do ponto, tão
escuro agora que eu não conseguiria nunca mais encontrar o caminho de
volta, nem tentar outra coisa, outra ação, outro gasto além de continuar
batendo batendo batendo batendo [...] (p.48).
pelo que se percebe uma espécie de perda de identidade, ou de busca. Entretanto,
esse sujeito perdido quer se encontrar no outro, que como evidencia o conto, não existe. O
outro desejado pelo narrador é apenas uma tentativa de totalidade do eu: “eu reaprendia e
inventava sempre em direção a ele, para chegar inteiro, os pedaços de mim todos misturados
que ele disporia sem pressa”, embora, ele saiba que essa totalidade do eu é ilusória, assim
como é ilusório a efetivação do projeto coletivo.
Enfim, o conto em questão, constrói um narrador que transmite uma sensação de
impotência e fracasso anunciado. Uma espécie de esperança amorfa. Todavia, ele consegue
conferir feições ao descontentamento. Tal sentimento consiste na falta de referencial que
identifique uma ontologia desse ponto. Às vezes ele nem sabe o que existe no ponto, quiçá, o
que está para além do ponto.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Da utopia diluída ou da utopia superada explicita que nos contos analisados de Caio
Fernando Abreu ocorre uma nostalgia em torno de uma utopia perdida, mas também aponta
para uma espécie de superação dessa utopia, criando assim, uma nova utopia.
Nos três capítulos desenvolvidos buscamos uma aproximação do texto de Caio
Fernando Abreu com a intenção de uma apreensão do seu universo ficcional através das
escolhas teóricas. Algumas hipóteses nortearam esse percurso. Uma delas se relacionou aos
contos que compõem a obra desse autor. Notificamos que entre um conto e outro, mesmo em
obras diferentes, uma conexão. É como se o narrador iniciasse suas indagações num
primeiro momento ou num determinado conto e se estendesse noutro conto a fim de mostrar
seu conflito existencial mais intensificado. Um exemplo desse aspecto foi observado nos
contos “Holocausto” e “Luz e Sombra”, de Pedras de Calcutá e Morangos Mofados,
respectivamente. Depois entendemos essa continuidade entre “Luz e Sombra” e “Eu, Tu,
Ele”, em seguida, dando continuidade ao projeto, percebemos a inter-relação entre Os
sobreviventes” e “Além do ponto”, ambos de Morangos Mofados.
Em “Holocausto”, de Pedras de Calcutá, a personagem questiona o mundo em que
se vive, mas não se limitava a isso. Interrogava-se o próprio eu a partir de seus
deslocamentos de um lugar a outro. O eu e o mundo dialogavam para uma reflexão constante
sobre si. Esse mundo mesmo fragmentado mostrou-se por inteiro. No conto, o narrador lançou
mão de descrever o estado doentio marcado por uma dor que, a princípio conhece a sua
localização, mas no decorrer da narrativa essa dor tornou-se enigmática, causando uma
angústia entre o protagonista e seu espaço circundante. Assim, ao longo do conto, elaborou-se
em torno da sua dor de existir e das conseqüências dessa existência, um narrador que, embora
esteja ali, não é daquele lugar. Ele compreendia um olhar objetivo sobre sua situação
periférica, da qual participou sem, no entanto, permanecer nela integrado.
Observamos no conto desse autor, o olhar do narrador dirigido tanto ao ambiente
brasileiro dos anos 70, quanto às imagens identificadoras da condição do indivíduo em
situação periférica. O narrador sem utopias apareceu nesse conto como protagonista que
expôs de modo cruel, uma espécie de confirmação interna.
Morangos Mofados fundamentou as bases da literatura de Caio Fernando Abreu
como marco referencial. Todas essas discussões foram delineadas a partir dos discursos
proferidos pelos personagens de cada trama – uma vez que cada personagem exprimiu
emoções e se posicionou perante seus dramas existenciais, apresentando-se como sujeito que,
diante dos mecanismos institucionais que integravam a estrutura social, se comportaram de
modo transgressivo. A partir desses comportamentos fragmentados, pressuposto segundo o
qual se concebeu o sujeito pós-moderno, é que o conceito de identidade diferiu das
concepções iluminista e sociológica, estas, como mencionado no decorrer do trabalho,
compreendiam o indivíduo como possuidor de uma identidade unificada e estável. Enquanto
que aquela entendia o indivíduo como ser em deslocamento dotado de várias identidades.
Assim, a pós-modernidade apresentou o indivíduo em processo de identidade mutável. A
obra apresenta personagens com comportamentos solitários reforçados pela exclusão social,
que traz como conseqüência a construção de sujeitos conflitantes com suas posições
existenciais. Sendo esse conflito reforçado por ambientes escuros e fechados onde envolve
personagens marcados como sujeitos solitários, tristonhos e as políticas de exclusão, que
transformaram esses sujeitos em desiludidos e participantes de um mundo à parte.
A literatura de Caio Fernando Abreu parece ser um projeto de um tempo pós-
utópico, na medida em que o presente não almeja no futuro o paraíso prometido, questionando
as certezas divulgadas na modernidade. A contemporaneidade parece desestabilizar o sujeito
uno, frente aos apelos pelas singularidades. Essa literatura plural enxerga os dramas do sujeito
contemporâneo que habita as médias e grandes cidades, espaços esses, capazes de fragmentar
ainda mais o sujeito, uma vez que acentua as contradições e as desigualdades.
A narrativa brasileira dessa virada de século, ao tematizar o indivíduo que reside nas
grandes metrópoles brasileiras, detecta e reflete esse sujeito desencantado e caracterizado por
uma ausência. Essa ausência presente no habitante urbano é fruto do fim da idéia de utopia
organizada e totalizante do país. Homens e mulheres que residem nesse espaço urbano atual
plural e fragmentário, não vêem mais a cidade enquanto espaço idealizado dentro de uma
perspectiva racional e em função do progresso. Paradoxalmente, tais narrativas apontam
também que, existe uma esperança advinda desse sujeito que resulta a partir dos espaços
proporcionadores de individualidades. No prefácio do livro “Morangos Mofados”, de Caio
Fernando Abreu, a autora Hollanda (2005) afirma que os contos relatam o desencanto com o
projeto utópico sugerido pela contracultura e, ainda assim, apontam para ânsia, o desejo de
um vir-a-ser alternativo.
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