Download PDF
ads:
ANDRÉ LUIS JARDINI BARBOSA
DA RESPONSABILIDADE DO ESTADO QUANTO AO ERRO
JUDICIÁRIO NA SENTENÇA PENAL ABSOLUTÓRIA
FRANCA
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
ANDRÉ LUIS JARDINI BARBOSA
DA RESPONSABILIDADE DO ESTADO QUANTO AO ERRO
JUDICIÁRIO NA SENTENÇA PENAL ABSOLUTÓRIA
Dissertação apresentada à Faculdade de História,
Direito e Serviço Social da Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, para obtenção
do Título de Mestre em Direito.
Área de concentração: Obrigações em Direito
Público.
Orientador: Prof. Dr. Élcio Trujillo.
FRANCA
2008
ads:
Barbosa, André Luis Jardini
Da responsabilidade do Estado quanto ao erro judiciário na
sentença penal absolutória / André Luis Jardini Barbosa.
– Franca : UNESP, 2008
Dissertação – Mestrado – Direito – Faculdade de História,
Direito e Serviço Social – UNESP.
1.Direito civil – Responsabilidade estatal. 2.Erro judiciário –
Indenização – Estado. 3.Direito processual civil – Sentenças.
CDD – 342.151
ANDRÉ LUIS JARDINI BARBOSA
DA RESPONSABILIDADE DO ESTADO QUANTO AO ERRO
JUDICIÁRIO NA SENTENÇA PENAL ABSOLUTÓRIA
Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, para obtenção do Título de
Mestre em Direito.
Área de concentração: Obrigações em Direito Público.
BANCA EXAMINADORA
Presidente: ________________________________________________________________
Prof. Dr. Élcio Trujillo
1° Examinador: _____________________________________________________________
2° Examinador: _____________________________________________________________
Franca, _____ de _________________________ de 2008
Aos meus pais, Claudio e Maria Cristina.
Aos meus irmãos, Marcus Vinícius e Maria Claudia.
À minha namorada, Maísa.
AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro lugar, a DEUS, que sei que tem por mim especial
apreço;
Ao meu orientador, Professor Doutor Élcio Trujillo, pela paciência e confiança
em mim depositadas;
Aos meus professores do curso de Mestrado, pelos quais desenvolvi especial
apreço;
À minha namorada Maísa Cristina Dante da Silveira, pelo amor e pelo apoio
prestados nos momentos mais complicados desse estudo;
Às funcionárias Laura e Silvana, da Biblioteca da UNESP campus de
Franca/SP, pelo inestimável auxílio na conclusão desse trabalho;
Ao Desembargador Renato de Salles Abreu Filho, a quem sou subordinado,
exemplo de magistrado, por quem tenho grande respeito e admiração;
A todos aqueles que, de um modo geral, lutam para fazer do Direito uma
ciência mais humana e um verdadeiro ideal de vida.
“O fim do Direito é a paz,
o meio de que se serve para consegui-lo é a luta.
Enquanto o direito estiver sujeito às ameaças da injustiça
– e isso perdurará enquanto o mundo for mundo –,
ele não poderá prescindir da luta.
A vida do direito é a luta:
a luta dos povos, dos governos, das classes sociais, dos indivíduos.”
Rudolph von Ihering
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo discutir os motivos pelos quais o Estado deve arcar com
os prejuízos causados pelo erro judiciário na sentença penal absolutória, já que, a depender da
fundamentação dessa decisão judicial, a tima ficará impossibilitada de pleitear do próprio
agente do crime o ressarcimento dos danos causados pelo fato criminoso. Argumenta-se que,
se por um lado o processo é instrumento de consecução e aplicação da justiça, não se pode
olvidar que a solução dos conflitos intersubjetivos de interesses foram entregues a órgãos
integrantes do Estado, personificados nos juízes. Desse modo, a decisão acerca do mérito do
processo reside na convicção do julgador. Entretanto, ao contrário do que se pensava, esta não
é formada simplesmente por aspectos próprios da pessoa do julgador, mas deriva do
somatório das condutas verificadas no decorrer do processo, seja por atividade instrutória
própria do juiz, seja pela intervenção das partes da relação jurídica processual. Por isso se
afirma que não deve o julgador, jamais, se afastar dos elementos de convicção contidos nos
autos. Essa afirmação se justifica, na medida em que o ordenamento jurídico brasileiro adotou
a regra do livre convencimento motivado. De fato, existe um princípio implícito na relação
jurídica processual, consistente num dever de conduta ética das partes. Contudo, e a despeito
da existência do citado princípio, é plenamente possível que as partes venham a se utilizar de
condutas que induzam o magistrado a erro, levando, inclusive, à absolvição do réu, quando,
no caso, a condenação se impunha. Desse modo, a depender do fundamento da absolvição,
nem mesmo poderá ser proposta a ação de reparação civil pelo fato criminoso, restando a
vítima, assim, sensivelmente prejudicada. Como o ordenamento jurídico vigente não prevê
solução específica para a hipótese, albergando, apenas, as hipóteses de erro judiciário na
sentença penal condenatória, e, ainda assim, em casos bastante restritos, analisa o presente
estudo uma forma de se garantir que a vítima ingresse com a competente ação de reparação,
agora movida contra o Estado, sob pena de restar duplamente apenada: primeiro pelo fato
delituoso contra ela praticado, e, segundo, pela conduta das partes que levaram o magistrado a
proferir sentença absolutória com erro.
Palavras-chave: responsabilidade civil do Estado; ação civil ex delicto; elementos de
convicção do julgador; efeitos civis da sentença penal absolutória.
ABSTRACT
This paper is due to discuss why State should assume the responsibility for the losses
caused by a false judgment that led to an acquittal, since, depending on the motivation
of the sentence, the victim could be unable to suit the criminal for the reparable injuries
related to the crime. It is pleaded that, although a law suit is an instrument used to
pursue justice, it must not be forgotten that the pacification of the conflicts of interest
were ceded to state officers, the judges. So, the decision on the merits lies on the beliefs
of the judge. However, in spite of what was considered true, these beliefs are not
composed only by personal aspects regarding to the judge, but they arise from a sum of
conducts that occur during the proceedings, by the diligence of the judge or by the
activity of the parties. That is why it is said that the judge should never disregard the
indicia produced during a lawsuit: because, in Brazil, the rule called free but justified
persuasion is valid. In fact, there is an unwritten principle that guides the relation
between the parties the obligation to behave ethically. However, and despite the
existence of the aforementioned principle, it is absolutely possible that the parties
behave in such a way that leads the judge to a mistake, which can even cause an
erroneous acquittal. In this case, depending on the motivation of the sentence, the
reparation suit would not even be possible. The victim would bare, therefore, his losses.
As the law in vigor does not bring a solution to this problem, the present paper analyzes
a way to guarantee to the victim the right to a reparation lawsuit otherwise, he would
suffer two injuries: the crime itself and the conduct of the parties that guided the judge
to an erroneous acquittal.
Keywords: State obligation to repair damages caused by its officers; reparation law suit
originated from a crime; elements of the conviction of the judge; civil
effects of the acquittal.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................9
CAPÍTULO 1 DO ESTADO E DE SUAS ATIVIDADES..................................................12
1.1 Do surgimento do Estado. Relação entre sociedade e Estado. Do Estado enquanto
ente ordenador das condutas individuais......................................................................12
1.2 Dos fundamentos da atuação do Estado.........................................................................18
1.3 Das funções e dos Poderes do Estado..............................................................................24
CAPÍTULO 2 DAS OBRIGAÇÕES E DA RESPONSABILIDADE ................................35
2.1 Das obrigações. Conceito e evolução do tema................................................................35
2.2 Dos elementos, dos momentos e dos efeitos das obrigações..........................................48
2.3 Das obrigações em direito público ..................................................................................43
2.4 Da responsabilidade propriamente dita. Responsabilidade civil e penal – uma
distinção necessária.........................................................................................................48
CAPÍTULO 3 DA RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL DO ESTADO.................................54
3.1 Das atividades do Estado de que decorra dano ao particular. Obrigação de
indenizar...........................................................................................................................54
3.2 Dos fundamentos da responsabilização do Estado........................................................61
3.3 Teorias adotadas...............................................................................................................63
3.4 Direito brasileiro...............................................................................................................73
CAPÍTULO 4 DA RESPONSABILIDADE DO ESTADO PELO ATO ORIUNDO
DO EXERCÍCIO DA ATIVIDADE JURISDICIONAL.............................................78
4.1 Do exercício da atividade jurisdicional pela via do processo........................................78
4.2 Do erro judiciário e seus efeitos.......................................................................................87
4.3 O erro judiciário na sentença penal absolutória decorrente da errônea
interpretação dos fatos e a responsabilidade do Estado..............................................97
CONCLUSÃO.......................................................................................................................106
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................108
9
INTRODUÇÃO
Em minha atuação profissional, tanto na condição de advogado como na de
escrevente técnico judiciário do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, certas
circunstâncias sempre me chamaram a atenção.
Uma delas diz respeito ao imenso volume de processos a que estão submetidos
os magistrados brasileiros a cada dia.
Esses profissionais, imbuídos de tão relevante mister, encontram-se muitas
vezes obrigados à formulação de decisões-padrões ou standards, fazendo com que a análise
concreta do fato colocado ao seu arbítrio seja relegada a plano secundário, e que a justiça
passe a assimilar a idéia de produção em série, conceito próprio da atividade empresarial e
que, por óbvio, não lhe convém.
Outra circunstância que, de forma odiosa, faz-se paulatinamente mais presente
diz com a atuação maliciosa das partes na sua atuação na relação jurídica processual,
ocultando a verdade dos fatos ou atribuindo a esses efeitos não necessariamente albergados
pelo ordenamento jurídico vigente. O magistrado, por sua vez, perdido na imensidão dos
casos que a cada dia se avolumam em sua serventia, algumas vezes é levado a uma errônea
interpretação, tanto dos fatos como do direito submetido ao seu exame.
As circunstâncias mencionadas constituem faces de um mesmo fenômeno, qual
seja, o erro judiciário. E diz-se faces porque o estudo do erro judiciário não se esgota na
análise dessas situações. A restrição se apenas em razão do dever de racionalidade da
pesquisa.
O erro judiciário, por constituir anomalia do ordenamento jurídico, subverte a
finalidade última do Direito, a pacificação e conseqüente restabelecimento das relações
sociais.
Se o resultado natural de uma relação jurídica processual que tenha sido bem
conduzida pelo magistrado, por si, mostra-se apto a causar o descontentamento ou a
insatisfação, ao menos de uma das partes dita sucumbente –, quanto mais quando essa
posição de inferioridade constitui decorrência do erro judiciário.
Em relação às sentenças cível e penal condenatória, o tema encontra-se
bastante discutido, na doutrina e na jurisprudência. Em relação à segunda existe, inclusive,
dispositivo constitucional expresso.
O mesmo não ocorre, porém, quanto à sentença penal absolutória.
10
Apesar de o tema ainda não ter sido submetido ao crivo dos Tribunais
Superiores e ter o fenômeno passado despercebido praticamente pela unanimidade da
doutrina, a relevância da discussão se apresenta na medida em que um eventual decreto de
improcedência da denúncia ou da queixa, motivado ou não por atuação maliciosa das partes,
pode induzir o magistrado a proferir sentença absolutória.
E em especial porque, em algumas hipóteses, essa absolvição tem o condão de
inviabilizar a competente ação de responsabilização civil do autor do fato delituoso ação
civil ex delicto. Tal se daquando estiverem presentes quaisquer das causas excludentes da
ilicitude ou desde que atestada, de forma categórica, a inexistência material do fato, conforme
dispõe o Código de Processo Penal.
Estaria a vítima, assim, desamparada em face do Estado. Mais. Seria
duplamente apenada. Primeiro pelo fato delituoso contra ela praticado e, depois, porque
inviabilizada a sua pretensão ressarcitória.
Vislumbro, a partir das idéias expostas, o surgimento de uma nova relação
jurídica, dessa vez instaurada em desfavor do Estado, enquanto responsável pelo advento de
uma situação que se afigura desfavorável à vítima. Essa integraria um dos pólos da referida
relação por não poder ser obrigada a suportar um prejuízo para o qual não tenha dado causa.
O ente estatal, porque o erro advém de órgão por ele investido no poder de julgar e que, por
igualmente não ter concorrido a título de dolo ou culpa para o advento do resultado
desfavorável à vítima, não pode ser obrigado a responder pessoalmente pela indenização.
É o que se pretende analisar na presente pesquisa.
Resguardei ao capítulo 1 noções imprescindíveis acerca do surgimento do
Estado, bem como das relações havidas entre esse ente e os indivíduos componentes de um
determinado ordenamento social. Estabeleceram-se, ainda, os fundamentos da atuação do
primeiro, bem como a relação de submissão devida pelos indivíduos aos comandos dele
advindos. O encerramento do capítulo em questão se deu com o estudo, ainda que breve, das
funções e dos Poderes do Estado.
Idéias sobre obrigações e responsabilidade foram traçadas, de forma conjunta,
no capítulo 2 do trabalho. Tal se fez necessário pelo fato de a responsabilidade se apresentar
enquanto momento sucessivo ao da obrigação, o que dispensa, para efeito de concessão de
maior dinâmica às tratativas, a análise de ambas em capítulos distintos. Aproveitei a
tradicional classificação das obrigações em de direito público e de direito privado,
procurando, sempre que possível, tecer considerações pessoais a respeito do tema.
Privilegiou-se a análise do tema quando em face do Estado.
11
É sabido que, na grande maioria dos casos, a atuação do Estado se dá de forma
legítima. É esse, inclusive, o fundamento do dever de abstenção dos indivíduos. Não quer
dizer, contudo, que não esteja aquele ente desobrigado de responder em face do advento de
danos àqueles que, porventura, virem-se prejudicados por essa atuação. Foi esse o enfoque do
capítulo 3. Como o tema demanda a análise do próprio desenvolvimento do homem em
sociedade, fez-se necessária uma abordagem histórica das teorias que cercam o instituto da
responsabilidade do Estado, outorgando-se sempre maior relevo ao trato da questão em
relação ao ordenamento jurídico nacional.
O capítulo 4 encerra o estudo do tema, analisando a questão da
responsabilização do Estado quando advinda do exercício da atividade jurisdicional.
Tratando-se o processo da forma ordinariamente utilizada pelo Estado para a solução dos
conflitos intersubjetivos de interesses, não poderiam ser esquecidos os aspectos a ele
relativos. Procedeu-se, também, à análise da conduta das partes e a relação havida entre essa e
o erro judiciário.
Até por necessidade de delimitação do tema, restringiu-se o objeto da pesquisa
à sentença penal absolutória. Não me descuidei, todavia, da análise da sentença penal
condenatória, bem como da forma pela qual o tema da responsabilização do Estado é tratado
na hipótese.
Por fim, aponto na conclusão a solução que entendo melhor adequar-se à
hipótese da responsabilização do Estado pelo erro judiciário na sentença penal absolutória,
tanto em relação à legitimidade ativa como no que se refere a quem deve integrar o pólo
passivo da ação indenizatória.
Por óbvio que qualquer trabalho a que o estudioso do Direito se proponha
jamais terá o condão de encerrar a análise de um tema.
Nem era essa a minha pretensão.
Satisfaço-me com o simples fato de ver instaurado o debate acerca do tema, aproveitando-me
de todas as questões e dúvidas suscitadas a respeito das afirmações aqui expendidas.
12
CAPÍTULO 1 DO ESTADO E DE SUAS ATIVIDADES
1.1 Do surgimento do Estado. Relação entre sociedade e Estado. Do Estado enquanto
ente ordenador das condutas individuais
O presente catulo tem a finalidade de analisar a forma pela qual se deu o
surgimento do Estado. Para que seja atingido tal objetivo, faz-se necessária a abordagem de outros
temas, sobretudo aqueles relativos ao desenvolvimento do homem em sociedade.
Quer-se, com isso, demonstrar que o surgimento do Estado tal como hoje o
conhecemos não pode ser visto simplesmente como um evento isolado, mas que decorreu – e ainda
decorre, na medida em que o se pode esquecer que o Estado permanece em contínuo
desenvolvimento de uma rie de acontecimentos, intimamente relacionados com a evolução
humana em sociedade.
Assim, é perfeitamente admissível afirmar-se ser o homem a razão fundamental da
existência do Estado.
Não é outra a rao pela qual Aluísio Dardeu de Carvalho aponta ser o povo a
dimensão pessoal do Estado
1
.
Note-se que, para tanto, deve-se levar em consideração o estudo quadripartite dos
elementos do Estado, que seria, nas palavras de Jo Afonso da Silva, [...] um poder soberano de
um povo situado num território com certas finalidades”
2
.
Ou, como prefere Themístocles Brano Cavalcanti, em estudo acerca dos
elementos do Estado:
Para que possa constituir e adquirir personalidade interna e internacional, o
Estado precisa organizar-se com alguns elementos essenciais, que são: a)
território; b) povo; c) governo; d) soberania. Alguns autores, como Carré de
Malberg reduzem os dois últimos elementos a um só – puissance publiqueto,
isto é, poder. Mas a discriminação representa melhor, com a sua
decomposição, os elementos do Estado.
3
1
CARVALHO, Aluísio Dardeu de. Nacionalidade e cidadania. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1956. p. 11.
2
AFONSO DA SILVA, José. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros Editores,
2005. p. 98.
3
CAVALCANTI, Thestocles Brandão. Teoria do Estado. 3. ed. o Paulo: Revista dos Tribunais, 1977.
p. 118.
13
autores que, como Alexandre Groppali, endossam as idéias anteriormente
apontadas, a elas acrescendo, porém, a idéia de finalidade:
Nós consideramos como incompleta a classificação feita pelos primeiros,
porquanto prescinde da finalidade que, indubitavelmente, é um elemento
essencial ao lado do território, do povo e do poder de império e a qual se
deve ter em conta, se pretendemos ter uma noção integral da complexa
figura constituída pelo Estado [...] Procuremos agora examinar
separadamente, aquêles elementos que, segundo nós, são os constitutivos do
Estado, isto é, o povo, o território, o poder de império e a finalidade, em
função dos quais êle aparece como uma forma particular da sociedade
humana, como uma coletividade de indivíduos organizada em uma parte da
superfície terrestre sob o comando de um poder originário e soberano, para
um fim comum de defesa, bem-estar e elevação.
4
Entretanto, e muito embora a afirmação referida se mostre plenamente
justificável sob o aspecto jurídico, acaba por vezes sendo evitada por aqueles que se
aventuram no estudo desse ramo do conhecimento humano. Justificam essa aversão pelo fato
de que o Direito deve supostamente procurar se dissociar de quaisquer resquícios de
ideologias, qualquer que seja a natureza dessas, sob pena de restar por elas contaminado.
Como se isso fosse realmente possível!
Acerca do íntimo relacionamento existente entre a Ciência do Direito e a
ideologia, confira-se o magistério de Maria Helena Diniz:
Ensina-nos Tércio Sampaio Ferraz Jr., com sua fascinante intelectualidade,
que se tem ideologia sempre que ocorre uma neutralização de valores, por
ser ela um sistema de valorações encobertas. Pode-se encobrir valorações, p.
ex.: a) substituindo fórmulas valorativas por fórmulas neutras, como ocorre
com a noção de norma hipotética fundamental de Kelsen, que ao sistema
jurídico a imagem de um sistema formalmente objetivo; b) escondendo a
presença inevitável do emissor de uma valoração, dando a impressão de se
tratar de uma proposição sem sujeito, p. ex., quando se usa a expressão
fontes do direito”. Neste sentido é comum o jurista valer-se, p. ex., do
argumento de autoridade representado por certos autores de nomeada, que é
usado deslocadamente no texto teórico, dando a impressão de que as
conclusões são dos autores citados, quando, na verdade, resultam de
valorações feitas por aquele que argumenta.
Ciência jurídica e ideologia se complementam, pois o discurso científico é
ideológico e a reflexão epistemológica se sustenta em supostos ideológicos.
5
4
GROPPALI, Alexandre. Doutrina do Estado. Tradução de Paulo Edmur de Souza Queiróz. São Paulo:
Saraiva, 1953. p. 123-125.
5
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
1993. p. 193-194.
14
Procuremos, para não incorrer em supostos erros, demonstrar o racionio
empreendido anteriormente.
Num primeiro estágio do desenvolvimento humano, as sociedades se
mostravam um tanto quanto encerradas em si mesmas. Não há relatos de interações entre
os agrupamentos sociais então existentes.
Essa atitude, no entanto, ao mesmo tempo em que se mostrava salutar, na
medida em que por meio dela foram constituídos os líderes daquelas comunidades, por
outro lado constituía-se num malefício, pois sujeitava-as aos seus predadores.
O instinto de preservação da espécie fez com que essas primeiras
comunidades se determinassem no sentido de deixar suas cavernas. Ao mesmo tempo,
despertava a atenção dos seus integrantes à existência de outras comunidades.
As pequenas comunidades passam a perceber, então, que, unidas, são mais
fortes e estão mais aptas a satisfazer as suas necessidades vitais, que, a partir desse
momento, tornam-se coletivas.
É despertado nos homens, assim, o instinto de se agregar, de viver em
coletividade.
Acerca da evolução humana, bem como dos critérios determinantes do
surgimento das primeiras comunidades e sua relação com o surgimento do Estado e do
próprio ordenamento jurídico, conforme se ve , Ives Gandra da Silva Martins assim
leciona:
O inimigo mais forte (animais e variações climáticas), assim como a
ausência de uma técnica de defesa mais avançada, certamente, no início
da história da espécie humana, devem ter sido fatores a determinarem
sua agregação como forma de sobrevivência, parecendo-nos que o estilo
de vida, espalhado pelo mundo, de diversas sociedades indígenas ainda
existentes, fosse aquele próprio dos nossos primeiros ancestrais.
6
O desenvolvimento da vida em sociedade trouxe consigo, porém, uma
série de conflitos. Esses conflitos, de naturezas as mais diversas, a depender do interesse
envolvido, desestabilizavam o corpo social. A composição desses embates se mostrava
imprescindível, uma vez que, do contrário, restaria inviabilizada a ppria convivência
humana em sociedade.
6
MARTINS, Ives Gandra da Silva. O estado de direito e o direito do Estado. São Paulo: Bushatsky,
1977. p. 8.
15
A doutrina processualista é pródiga no sentido de demonstrar as formas pelas
quais se dava a solução dos conflitos de interesses. Cabe aqui mencionar, especificamente, a
autotutela e a autocomposição. A primeira caracteriza-se pela sujeição da parte mais fraca à
mais forte, enquanto, na segunda, cada uma das partes cede parcela de seu interesse, a fim de
que seja alcançado um resultado que se mostre mais favorável a todos.
Entretanto, e a despeito do sucesso que as citadas formas possam ter
alcançado, a história é testemunha do extermínio de civilizações inteiras pela aplicação
dessas, uma vez que, nelas, a solução do conflito de interesses é deixada a cargo dos próprios
litigantes
7
.
Percebeu-se, com isso, a necessidade da criação de uma figura central, dotada
de soberania, cuja finalidade seria a de ordenar os comportamentos individuais, de forma a se
atingir, como fim último, o bem comum.
Em artigo sobre o tema, Carlos Roberto Souza da Silva assim procura
demonstrar:
O indivíduo para viver em sociedade não desfruta de plena liberdade. As
limitações impostas a cada um estão para atender ao bem estar do grupo.
Dessa forma, cada ente do corpo social entrega parte de sua liberdade,
pretendendo que a coletividade coexista harmoniosamente. Essa “entrega”
pretende que o indivíduo atinja, através do grupo, a felicidade, a
conservação e a evolução.
Para tal, os homens contratam-se uns com os outros. Prometem
respeitarem-se mutuamente e buscarem, juntos o bem de ambos e de
todos, pois contratam-se com todos. Como em um contrato sinalagmático,
são iguais, são livres dentro dos limites do que contratam e têm
obrigações recíprocas.
Para promoverem-se, delegam a um Ser Livre de Paixões, o
gerenciamento das autonomias que individualmente cederam ao grupo. E
por todos os entes do grupo terem contratado entre si, é cedida a vontade
do grupo. Esse Ser idôneo age em nome de todos os contratantes, através
da vontade do grupo, buscando o bem comum.
8
Surgia, aqui, o embrião do que hoje conhecemos como Estado.
7
É relevante mencionar, no entanto, que essas formas não foram suprimidas, em absoluto, dos ordenamentos
jurídicos dos países. No Brasil, inclusive, há exemplo de aplicação de ambas. Como exemplo da autotutela,
temos, ainda hoje, a causa de exclusão da ilicitude denominada legítima defesa (artigo 24 do Código Penal), ao
passo que, como exemplos de aplicação da autocomposição, podem ser mencionadas a transação, a renúncia ao
pedido pelo autor e o reconhecimento jurídico do pedido pelo réu – nos termos do que dispõe o artigo 269,
incisos II, III, e IV, do Código de Processo Civil.
8
SILVA, Carlos Roberto Souza da. A delinqüência e o direito penal. Neofito. Disponível em:
<http://www.neofito.com.br/artigos/art01/penal116.htm >. Acesso em: 20 jul. 2007.
16
As idéias até aqui apontadas traduzem-se no conceito de Estado, e dele podem
ser extraídas as características principais desse. Assim, como leciona Dalmo de Abreu Dallari,
Estado é a “[...] ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado
em determinado território”
9
novamente salientado, aqui, o entendimento quadripartite a
respeito dos elementos do Estado, já mencionado em momento anterior.
Os mais diversos grupos sociais, em nome do desenvolvimento do Estado,
abriam mão de parcela de suas soberanias, agora transformadas em autonomias
regionalizadas, com o fim de constituírem um ente único, forte e soberano, com poder de
representação sobre os indivíduos que compusessem um determinado corpo social.
Não é outro que não esse o espírito e a própria essência do princípio do
federalismo, adotado como fundamento imutável pelo legislador constituinte de 1988
10
.
Segundo o conceito ofertado por Dalmo de Abreu Dallari, a forma federativa
de Estado é uma “[...] aliança ou união de Estados em que os Estados que ingressam na
Federação perdem sua soberania no momento mesmo do ingresso, preservando, contudo, uma
autonomia política limitada”
11
.
Uadi Lammêgo Bulos, sobre o tema, também nos ensina:
Federação, do latim foedus, foederis, significa pacto, interação, aliança, elo
entre Estados–membros.
Trata-se de uma unidade dentro da diversidade. A unidade é ela, a
federação, enquanto a diversidade é inerente às partes que a compõem, isto
é, os Estados, com seus caracteres próprios.
A federação, portanto, é um pluribus in unum, ou seja, uma pluralidade de
Estados dentro da unidade que é o Estado Federal.
É a federação, portanto, uma genuína técnica de distribuição do poder,
destinada a coordenar competências constitucionais de pessoas políticas de
Direito Público Interno, que, no Brasil, equivalem à União, Estados, Distrito
Federal e Municípios (CF, arts. 1º e 18).
12
E desse ente central decorreria o poder de editar atos veiculadores de normas
dirigidas a todos, de forma indistinta, do que dependeria o futuro e a sorte de todos os seus
integrantes.
É bem verdade que o fator determinante do nascimento do Estado foi a
necessidade de ordenação do corpo social.
9
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1985. p. 104.
10
Arts. 1º e 60, § 4º, inciso I, da Constituição Federal.
11
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1985. p. 227.
12
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 713-714.
17
Essa ordenação, no entanto, não se deu tão-somente no campo das idéias.
Isso porque o mero estabelecimento de comandos normativos não seria capaz
de, por si só, garantir a plena submissão de todos ao seu império. A obediência aos comandos
oriundos do poder central não poderia ser deixada ao simples arbítrio daqueles que se
encontravam sujeitos à já mencionada soberania do Estado.
Era preciso que fossem efetivados enquanto corpo normativo, sob forma
escrita ou não, que a todos sujeitasse, de maneira indistinta. À eventual desobediência aos
comandos oriundos do ordenamento central era imposta uma sanção, inclusive como forma de
se garantir a eficácia e a efetividade desse corpo de normas.
Estava plantada, dessa forma, a semente do ordenamento jurídico.
Estado e ordenamento jurídico são, portanto, conceitos que se equiparam,
absolutamente indissociáveis, o que equivale dizer que a análise de um prescinde da do outro.
Ou, como prefere Giorgio Del Vecchio:
“A idéia do direito e a idéia do Estado estão, portanto, intimamente
relacionadas: não Estado sem direito e nem direito sem Estado. [...] O
Estado, isto é, a estabilidade da sociedade, é um produto, e até o produto do
direito.”
13
A esse respeito, merecem transcrição, ainda, as lições expendidas por Luiz
Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart:
Como é necessária a existência de regras jurídicas para a harmônica
convivência social, e como pode existir dúvida em torno de sua
interpretação, ou mesmo da intenção de desrespeitá-las, podem eclodir no
seio da sociedade conflitos de interesses. Como a insatisfação de um
interesse – principalmente quando essa insatisfação decorre da resistência de
alguém pode gerar tensão aos contendores e até mesmo tensão social, é
importante que os conflitos sejam eliminados e seja encontrada a paz social,
escopo do Estado.
14
Às idéias até então veiculadas cabe acrescentar algumas observações.
A primeira delas diz respeito, justamente, às dificuldades que são postas a
todos aqueles que se aventuram a procurar obter uma exata extensão do conceito de
Estado.
13
DEL VECCHIO, Giorgio. Evolução e involução no sistema jurídico. Tradução de Henrique de Carvalho.
Belo Horiznte: Líder, 2005. p. 53.
14
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de processo civil. Processo de
Conhecimento. v. 2. 6. ed. revista, atualizada e ampliada da obra Manual do processo de conhecimento. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 31.
18
Isso porque, enquanto entidade abstrata, criada para assegurar o pleno
desenvolvimento das relações entre os homens, o Estado encontra-se sujeito a um sem
número de variações, sendo absolutamente dependente do estágio do desenvolvimento
humano.
Não nos esqueçamos, também, de que, muito embora estejamos no limiar
de um novo milênio, ainda hoje não nos é possível falar em plena estabilização das
relações humanas. Logo, homem e Estado, entes que se complementam reciprocamente,
encontram-se em constante evolução.
Como últimas, mas não menos importantes, observações, cumpre
mencionar que o progresso da humanidade acabou por acarretar, também, uma série de
conflitos de interesses envolvendo, de um lado, o Estado e, de outro, os particulares que
a esse devem sujeição. Conflitos esses que devem, igualmente, ser solucionados, uma
vez que, do contrário, constituiriam óbice ao pleno desenvolvimento da vida humana em
sociedade, assim como ocorre com os conflitos de interesses de particulares.
Não nos descuidemos, também, de mencionar a possibilidade de que da
atuação do Estado, nos estritos limites da legalidade, possa decorrer dano ao particular.
Esses temas, no entanto, serão objeto de análise mais aprofundada no
decorrer do presente estudo.
1.2 Dos fundamentos da atuação do Estado
Da análise do conceito de Estado surgem questionamentos a respeito dos
fundamentos de sua atuação. A partir daí nos será possível entender as razões que
sustentam o exercício do poder estatal, bem como quais as causas determinantes da
responsabilização ou não desse ente.
Isso porque não deve ser esquecido que, a partir de quando o
desenvolvimento humano fez surgir a necessidade da criação do Estado, passou-se a
conviver com um poder que detém o controle sobre os interesses individuais da
comunidade que a ele se encontra sujeito.
19
A partir da opção pela vida em comunidade, o conceito de interesse privado
cede espaço para um interesse cuja titularidade é indeterminada, chamado interesse
coletivo.
Ou seja, os interesses passam a ser da coletividade como um todo, e não
mais considerados em um sentido meramente privatístico. E caberá ao Estado, a partir de
agora, tutelá-los.
A proteção ao interesse coletivo torna-se, portanto, um dos fundamentos de
atuação do Estado, e a essa proteção deve ser outorgada primazia, sempre que se
configure situação de conflito ou contraposição a outro direito ou interesse, considerado
individualmente.
Quer-se dizer, com isso, que o ordenamento social é composto de uma
infinidade de direitos e de interesses. Cabe ao Estado a tutela daqueles que se lhe mostrem
mais relevantes, sempre com vistas a o inviabilizar o convívio humano em sociedade.
Fala-se, tempos, na exisncia de um princípio, denominado supremacia do
interesse blico sobre o interesse particular. É ele quem deve determinar a conduta daquele que
se encontre no exercício de qualquer dos Poderes do Estado.
Hely Lopes Meirelles, acerca desse princípio, assim nos ensina:
O princípio do interesse público está intimamente ligado ao da finalidade. A
primazia do interesse público sobre o privado é inerente à atuão estatal e
domina-a, na medida em que a existência do Estado justifica-se pela busca do
interesse geral. Em razão dessa inencia, deve ser observado mesmo quando as
atividades ou servosblicos forem delegados aos particulares.
15
Celso Annio Bandeira de Mello afirma a sua existência e importância, a despeito
de não se traduzir em dispositivo expresso, sendo ínsito à própria condição humana em sociedade.
O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é
prinpio geral de Direito inerente a qualquer sociedade. É a ppria condão de
sua existência. Assim, o se radica em dispositivo específico algum da
Constituição, ainda que inúmeros aludam ou impliquem manifestações
concretas dele, como por exemplo, os princípios da função social da
propriedade, da defesa do consumidor ou do meio ambiente (art. 170, III, V e
VI), ou tantos outros. Afinal, o princípio em causa é um pressuposto lógico do
convívio social.
16
15
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 31. ed. São Paulo: Malheiros Editores,
2005. p. 103.
16
MELLO, Celso Annio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 87.
20
Assim, no choque entre direitos considerados na sua individualidade e direitos
titularizados por pessoas indeterminadas, far-se-á necessário ao exercente do poder estatal
proceder a um balanceamento entre ambos, devendo dar primazia, porém, aos segundos, por
serem de caráter geral.
Deverá procurar, no entanto, não suprimir o direito ou interesse privado, mas
adequá-lo aos anseios da coletividade.
É essa, inclusive, a finalidade atual do próprio Direito, ou, como prefere Maria
Sylvia Zanella Di Pietro: “O Direito deixou de ser apenas instrumento de garantia dos direitos
do indivíduo e passou a ser visto como meio para consecução da justiça social, do bem
comum, do bem-estar coletivo”
17
.
É bem verdade que o citado princípio constituía uma orientação a ser
seguida pelo legislador infraconstitucional, em face da adoção, no texto da Constituição
Federal de 1988, do perfil democrático do Estado brasileiro.
No entanto, tal tarefa via-se, em larga medida, obstada em razão das inúmeras
desavenças ainda existentes entre os defensores do dualismo Direito Privado versus Direito
Público.
Ganha relevância a observação, nesse ponto, acerca do advento do vigente
Código Civil
18
. Esse, num flagrante desapego e abandono da concepção meramente
individualista, que reinava sob a égide do revogado Código Civil de 1916, adotou
expressamente uma série de conceitos que têm por finalidade última o primado do interesse
coletivo sobre o particular.
A título de ilustração, podem ser citados os dispositivos referentes às relações
contratuais e ao direito de propriedade
19
.
Cumpre ressaltar, porém, que, a despeito da relevância que se possa dar ao
princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse particular, tem-se que esse
restaria como disposição meramente retórica se se deixasse ao exercente do poder estatal uma
irrestrita discricionariedade acerca do exercício ou não de sua atividade.
Importa dizer, com isso, que aquele que detém o poder, quando instado a
atuar, fa-lo-á não em seu nome, mas em nome de toda uma coletividade. Assim, salvo
17
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 69.
18
Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
19
Arts. 421 e 1.228, § 1º, respectivamente, do Código Civil.
21
nos casos em que se admite uma certa discricionariedade à autoridade estatal
20
,o
poderá essa sujeitar tal poder aos seus meros caprichos.
Assim, ao lado do princípio da supremacia do interesse público sobre o
interesse particular deve ser colocado o princípio da indisponibilidade do interesse
público, que, no dizer de Celso Antônio Bandeira de Mello:
[...] significa que sendo interesses qualificados como próprios da
coletividade internos ao setor público não se encontram à livre
disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis. O próprio órgão
administrativo que os representa não tem disponibilidade sobre eles, no
sentido de que lhe incumbe apenas curá-los – o que também é um dever – na
estrita conformidade do que dispuser a intentio legis.
21
Diz-se, ainda, que os princípios citados constituem o próprio fundamento
do Direito Administrativo da atualidade.
Ou seja, muito mais do que meros princípios disposições impregnadas
de altíssima carga valorativa, constituindo-se em norte à atuação da autoridade estatal ,
são o próprio espírito desta matéria, tal qual o corpo necessita da alma para que tenha
vida, ou o mais alto edifício deve a sua sustentação a uma base sólida.
Nesse ponto, contudo, passarei a formular um complemento à idéia até
então desenvolvida.
Não se trata de contestá-la. Procurarei apenas adequar as idéias até aqui
apresentadas à própria orientação democrática atual do Estado brasileiro, assumida
quando da entrada em vigor da Constituição Federal de 1988.
Atribui-se a qualidade de Estado de Direito àquele Estado que se submete
a um corpo de normas, que compõem o seu ordenamento jurídico.
Mas não só.
É necessário, ainda, que, desde que haja a previsão da existência do Poder
Judiciário, esse Estado se submeta às decisões advindas desse Poder.
Aliás, muito mais do que a mera previsão do Poder Judiciário, enquanto
Poder do Estado, a idéia de Estado de Direito encontra-se indissociavelmente ligada à
essência do que apregoa a teoria da separação dos poderes estatais.
20
Saliente-se que a própria discricionariedade é regrada e limitada pela lei, ou seja, o ordenamento jurídico
brasileiro não se coaduna com a discricionariedade absoluta ou meramente presumida.
21
MELLO, Celso Annio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 69.
22
A esse respeito, confira-se o magistério de Carlos Ari Sundfeld:
A iia intuitiva a respeito dada pelo próprio sentido literal da
expressão é aquela segundo a qual Estado de Direito é o que
subordina ao Direito, vale dizer, que se sujeita às normas jurídicas
reguladoras de sua ão. O Estado Polícia apenas submetia os
indiduos ao Direito, mas o se sujeitava a ele.
Assim, definimos Estado de Direito como o criado e regulado por uma
Constituição (isto é, por norma jurídica superior às demais), onde o
exercio do poder político seja dividido entre órgãos independentes e
harmônicos, que controlem uns aos outros, de modo que a lei produzida
por um deles tenha de ser necessariamente observada pelos demais e
que os cidadãos, sendo titulares de direitos, possam opô-los ao próprio
Estado.
22
Pois bem, o legislador constituinte de 1988 não previu o Estado brasileiro
meramente como de Direito. Para tanto, bastaria que estivessem atendidos os requisitos
acima apontados.
Foi além, prevendo o caráter democrático desse Estado. Prova disso é o
que dispõe o artigo 1º, caput, da Constituição Federal de 1988.
Mas, afinal, o que se deve entender por Estado Democrático de Direito?
É o Estado que, além de atender às exigências formuladas anteriormente,
ainda se obriga ao atendimento do primado da dignidade da pessoa humana.
Para tanto, cabe-lhe formular disposições relativas aos direitos e garantias
individuais, mas, também, prever formas de essas disposições não virem a ser
suprimidas, senão pelo advento de uma nova Constituição
23
.
Não é outra senão essa a razão de o legislador constituinte ter previsto os
direitos e garantias individuais como cláusulas pétreas, condicionando o pprio
exercício do poder constituinte derivado
24
.
Estabelecer o exato conceito e alcance da expressão dignidade da pessoa
humana constitui tarefa bastante tormentosa. Essa é a razão pela qual, no momento,
socorro-me da doutrina de Uadi Lammêgo Bulos:
22
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 4. ed. São Paulo: Malheiros Editores,
2001. p. 37-39.
23
A esse respeito, cumpre mencionar que o entendimento pessoal do autor é no sentido da existência de um
direito natural que condiciona o próprio exercício do poder constituinte originário.
24
Art. 60, § 4º, inciso IV, da Constituição Federal de 1988.
23
Quando o Texto Maior proclama a dignidade da pessoa humana, está
consagrando um imperativo de justiça social, um valor constitucionalmente
supremo. Por isso, o primado consubstancia o espaço de integridade moral
do ser humano, independentemente de credo, raça, cor, origem ou status
social. O conteúdo do vetor é amplo e pujante, envolvendo valores
espirituais (liberdade de ser, pensar e criar etc.) e materiais (renda mínima,
saúde, alimentação, lazer, moradia, educação etc.). Seu acatamento
representa a vitória contra a intolerância, o preconceito, a exclusão social, a
ignorância e a opressão. A dignidade humana reflete, portanto, um conjunto
de valores civilizatórios incorporados ao patrimônio do homem. Seu
conteúdo jurídico interliga-se às liberdades públicas, em sentido amplo,
abarcando aspectos individuais, coletivos, políticos e sociais do direito à
vida, dos direitos pessoais tradicionais, dos direitos metaindividuais (difusos,
coletivos e individuais homogêneos), dos direitos econômicos, dos direitos
educacionais, dos direitos culturais etc. Abarca uma variedade de bens, sem
os quais o homem não subsistiria. A força jurídica do pórtico da dignidade
começa a espargir seus efeitos desde o ventre materno, perdurando até a
morte, sendo inata ao homem. Notório é o caráter instrumental do princípio,
afinal ele propicia o acesso à justiça de quem se sentir prejudicado pela sua
inobservância. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal
de Justiça têm reconhecido a importância da dignidade da pessoa humana.
25
Acerca da dignidade da pessoa humana, Gustavo Tepedino também nos ensina:
Se o direito é uma realidade cultural, o que hoje parece fora de dúvida, é a
pessoa humana, na experiência brasileira, quem se encontra no ápice do
ordenamento, devendo a ela se submeter o legislador ordinário, o intérprete e
o magistrado.
26
Essa nova orientação, assumida a partir de 1988, fez com que o
fundamento do Direito Administrativo atual figurasse como um tripé, pressupondo, para
a sua configuração, portanto, o prinpio da supremacia do interesse público sobre o
interesse particular, o princípio da indisponibilidade do interesse público e o prinpio
da dignidade da pessoa humana.
Esse último, isoladamente considerado, na visão de alguns, passaria a
reger a atividade de todos os Poderes do Estado. Isso porque estabeleceria um claro
padrão de decisão e ponderação entre os interesses em jogo qual seja, aquilo que, no
25
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 389.
26
TEPEDINO, Gustavo. Do sujeito de direitos à pessoa humana. Revista Trimestral de Direito Civil. Editoral.
v. 2, 2000. p. V-VI.
24
caso concreto, se mostre apto a melhor atender aos interesses da coletividade –,
contrariamente ao que ocorre em relação aos demais princípio citados
27
.
Não nos descuidemos de observar, todavia, a existência de cticas acerca
do que fora expendido. Essas vêem o citado princípio enquanto disposição
extremamente vaga, dificultando a sua aplicação no caso concreto.
Esquecem-se, contudo, de que a aplicação desse princípio jamais poderá
se dar em abstrato, sendo sempre dependente da análise do caso concreto posto à
análise.
A despeito da necessidade de se delimitar o tema, para efeito de
racionalização da pesquisa, e de se proporcionar uma melhor compreensão àqueles que
vierem a ter contato com ela, a verdade é que o entendimento apontado não pode e nem
deve se restringir às fileiras do Direito Constitucional ou do Direito Administrativo. Ao
contrário, deve se irradiar para todos os demais ramos do Direito.
1.3 Das funções e dos Poderes do Estado
28
Já se disse que o desenvolvimento da humanidade a partir de grupos
organizados em comunidades trouxe consigo a necessidade da criação de um poder
central, a quem foi atribuída a tarefa de ordenar os inúmeros interesses envolvidos,
tendo o bem comum ou o interesse coletivo sempre como fator norteador dessa atuação.
Nasceu ali a idéia do que hoje conhecemos como Estado.
Essa ordenação dá-se por intermédio da imposição genérica e impessoal
de comandos veiculadores de normas, tendo esses forma escrita ou o. Ao
descumprimento desses comandos é imposta a sanção respectiva. É essa a gênesis do
que hoje conhecemos como ordenamento jurídico.
27
A esse respeito, confira-se o entendimento de Gustavo Binenbojm, em Da supremacia do interesse público ao
dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo (Revista de Direito
Administrativo.Rio de Janeiro, n. 239, jan./mar. 2005. p. 01-31).
28
Para fins de melhor compreensão do presente trabalho pelo leitor, utilizar-me-ei da expressão “Poder”, com
inicial maiúscula, sempre que estiver me referindo a um dos poderes constituídos do Estado, previstos no
artigo 2º da Constituição Federal de 1988. Ao contrário, sempre que quiser fazer menção à faculdade de agir de
uma ou de outra maneira, diante do caso concreto, utilizarei o termo “poder”, com inicial minúscula.
25
Uma vez bem delimitada a forma como se deu o nascimento do Estado,
bem como a garantia de imposição coativa dos comandos oriundos do mesmo, outra
questão se impõe: mas, afinal, a quem caberia o exercício de tão relevante poder?
Certo é que, desde os estágios iniciais do desenvolvimento do Estado,
percebeu-se o inconveniente de se outorgar o exercício do poder aos próprios
integrantes das comunidades existentes. Isso porque os interesses que moveram o
homem a se integrar em comunidades correspondiam à necessidade que tinham de
satisfazer interesses que lhes eram vitais. Afora esses, porém, quaisquer outros
interesses mostravam-se incompatíveis e até conflitantes.
O povo de outrora clamava, assim, pela presença de alguém que
detivesse o poder de dar o arranjo devido aos inúmeros interesses que se apresentavam
em uma dada comunidade.
Uma pessoa, materializada na figura de homem, a quem pudessem
obedecer e encaminhar suas súplicas. Surgia, com isso, a figura do líder soberano, a
quem caberiam as decisões acerca do destino das pessoas que a ele estivessem sujeitas.
Prova da confiança depositada por um povo em seu governante, com o
decorrer da História, são os relatos contidos em uma infinidade de documentos
históricos. Dentre tantos, mencionamos as passagens contidas no relato bíblico acerca
da unção do primeiro rei sobre o reino de Israel, que bem demonstram o que foi
afirmado
29
.
A mesma História incumbiu-se de demonstrar, porém, o inconveniente
de se concentrar nas mãos de uma só pessoa a totalidade das decisões acerca dos
destinos de todas as demais.
A imensa gama de poderes outorgados aos monarcas não trouxe o bem
ao povo que lhes era subordinado. Ao contrário, na maioria dos casos, revelou-se
extremamente pernóstica, o que obrigou a comunidade a novamente se empenhar no
sentido da busca de uma mudança no cenário que ora se apresentava.
29
“Naqueles dias, não havia rei em Israel, porém cada um fazia o que parecia reto aos seus olhos.” (BÍBLIA
SAGRADA, Jz 21, 25) “Então, todos os anciãos de Israel se congregaram, e vieram a Samuel, a Ramá, e
disseram-lhe: Eis que já estás velho, e teus filhos não andam pelos teus caminhos; constitui-nos, pois, agora,
um rei sobre todos nós, para que ele nos julgue, como o têm todas as nações [...] Então, disse Samuel a todo o
povo: Vedes já a quem o Senhor tem elegido? Pois em todo o povo não há nenhum semelhante a ele. Então,
jubilou todo o povo, e disseram: Viva o rei!” (Ibid, 1 Sam 10, 24)
26
É sabido, porém, que as transformações jurídicas no âmbito dos Estados
não acompanham, necessariamente, as transformações sociais neles verificadas. E isso,
até os dias atuais. Sobretudo quando se trata de países que têm por tradição o direito
positivado.
Os soberanos, por sua vez, cientes da possibilidade de virem a perder o
poder que outrora detinham, na maioria dos Estados, passaram a ceder parcela de seus
poderes.
Essa cessão, no entanto, no mais das vezes era meramente simbólica, uma
vez que se dava entre órgãos criados pelos próprios monarcas, e, portanto, sempre
sujeitos ao seu rígido controle.
Esse fracionamento do poder dos monarcas, porém, ainda que no passado
tenha sido determinado como medida meramente retórica, trouxe consigo efeitos
extremamente benéficos.
Delineou e demonstrou a necessidade de que o poder estatal fosse
fragmentado em diversos órgãos, autônomos e independentes em relação à pessoa que
detivesse o poder central.
Percebeu-se, ainda, que uma fragmentação inicial do poder estatal, a longo
prazo, traria consigo a limitação da ingerência do monarca sobre a vida daqueles que a
ele estivessem subordinados.
Essa ingerência, que, até então, mostrava-se absoluta, restaria relativizada,
e o poder do soberano passaria, então, a estar sujeito a um rígido controle.
Não se admitiria, no entanto, que a pretendida fragmentação dos poderes
do governante viesse a repercutir no que diz respeito à unidade do poder estatal. E essa é
uma observação relevante, muito embora por vezes omitida por aqueles que se
aventuram na análise desse tema, na medida em que a existência do Estado pressupõe
que esse seja dotado do atributo da soberania, como, aliás, já se fez referência.
A soberania, enquanto poder de autodeterminação e de auto-organização
que emana do povo, deve ser sempre resguardada.
A idéia, portanto, é de que houvesse uma nítida divisão entre as funções
do Estado, preservando-se, no entanto, uno e indivisível o seu poder.
27
Por funções do Estado devem ser entendidas as atividades por ele
prestadas com o fim de se atingir o bem comum ou o interesse coletivo, ou, como
prefere Cretella Júnior: [...] as diferentes atividades que o organismo estatal exerce,
para atingir os fins a que se propõe
30
.
Sob o aspecto funcional, a doutrina classifica a divisão das funções
estatais, tradicionalmente, de forma tripartida. Assim, são reconhecidas como funções
estatais: a função administrativa, a legiferante e a judicante.
É bem verdade que a classificação apontada poderia vir a induzir o leitor a
erro, na medida em que pode ser confundida com a também tradicional divisão dos
Poderes do Estado.
A confusão, contudo, somente poderia vir a atingir o recém-iniciado nos
estudos do Direito, uma vez que o conceito de função estatal é mais abrangente que a de
Poder do Estado, ou, como prefere José Afonso da Silva: Cumpre em primeiro lugar,
não confundir distinção de funções do poder com divisão ou separação de poderes,
embora entre ambos haja uma conexão necessária
31
. A separação dos poderes, aliás,
leva em consideração um critério meramente orgânico, como procurarei demonstrar logo
a seguir.
Assim que se vislumbrou a necessidade de fragmentação dos poderes do
Estado, percebeu-se, também, que a efetivação dessa restaria inócua caso não houvesse a
previsão da atribuição das funções estatais a órgãos distintos, autônomos e
independentes vinculados, porém, ao próprio Estado.
Muito embora sejam conhecidos estudos anteriores relativos ao tema
32
, foi
outorgada a Montesquieu a glória de ter formulado uma teoria acerca da repartição dos
Poderes do Estado
33
, que até hoje permanece extremamente atual.
Foi Montesquieu quem, após ter identificado as funções do Estado,
afirmou a necessidade de se fragmentar o poder desse ente, tendo como finalidade
última a limitação desse mesmo poder. A partir daí, dividiu essas funções entre os
30
CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito administrativo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989. p. 81.
31
AFONSO DA SILVA, José. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros Editores,
2005. p. 98.
32
É preciso mencionar que o primeiro a esboçar uma teoria acerca da separação dos poderes do Estado foi
Aristóteles, na obra Política, detalhada posteriormente por John Locke, na obra Segundo tratado sobre o
governo civil.
33
MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis. Introdução, tradução e notas de Pedro
Vieira Mota. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.
28
órgãos integrantes do próprio Estado, os quais denominou Poderes do Estado, sendo
esses, a saber: o Poder Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
As lições do autor citado, no entanto, o se resumiram ao que foi tratado
até o momento. Foram além, tendo esse previsto, ainda, que aos Poderes do Estado
haveriam de ser atribuídas determinadas prerrogativas, as quais tinham por fim
assegurar o exercício e a própria existência desses poderes.
É essa a razão de ser dos atributos da independência e da autonomia dos
três Poderes estatais.
A indepenncia entre os poderes é manifestada pelo fato de cada Poder
extrair sua competência da Carta Constitucional, depreendendo-se,
assim, que a investidura e a permanência das pessoas num dos óros
do governo não necessitam da confiança nem da anuência dos outros
poderes. No exercício das próprias atribuições, os titulares o precisam
consultar os outros, nem necessitam de sua autorização e que, na
organização das atividades respectivas, cada um é livre, desde que
sejam verificadas as disposições constitucionais e infraconstitucionais.
34
A autonomia e a independência dos Poderes do Estado traduzem-se numa
garantia de que esses órgãos possam exercer livremente as suas funções, sem que sejam
molestados pelos demais.
Do exercio das funções pprias de cada um desses Poderes, no entanto,
jamais poderá decorrer qualquer arbitrariedade, sob pena de desvirtuamento dos próprios
fundamentos que determinaram a sua criação.
Assim, em contrapartida à independência de cada um dos Poderes do
Estado é resguardada a possibilidade de controle sobre os atos deles oriundos. Quando
efetuado por cada poder sobre seus próprios atos, ocorre o que a doutrina costuma
denominar poder de autotutela.
No entanto, esse mecanismo de controle não se encerra no âmbito interna
corporis de cada um dos Poderes do Estado. Vai além, de forma a possibilitar o controle
dos atos procedentes desses por cada um dos demais. Esse controle, dito externo, está
presente sempre que se afigure o exercio abusivo ou a usurpação de função.
A independência do Poder do Estado, portanto, é sempre limitada aos
atributos próprios da função que lhe é outorgada pelo ordenamento jurídico.
34
Funções típicas e atípicas dos poderes. Direitonet. Disponível em:
<http://www.direitonet.com.br/resumos/x/27/77/27/p.shtml>. Acesso em: 16 ago. 2007.
29
Nos casos de desvirtuamento das finalidades para as quais esses Poderes
foram criados, abre-se a possibilidade de incidência de controle, seja interno quando
realizado pelos órgãos integrantes do próprio Poder , seja externo quando efetivado
por qualquer dos demais Poderes constituídos.
Merece transcrição, nesse ponto, os ensinamentos ofertados por Canotilho
e Vital Moreira sobre o tema:
Um sistema de governo composto por uma pluralidade de órgãos requer
necessariamente que o relacionamento entre os rios centros do poder
seja pautado por normas de lealdade constitucional (Verfassungstreue,
na terminologia alemã). A lealdade institucional compreende duas
vertentes, uma positiva, outra negativa. A primeira consiste em que os
diversos órgãos do poder devem cooperar na medida necessária para
realizar os objetivos constitucionais e para permitir o funcionamento do
sistema com o nimo de atritos possíveis. A segunda determina que os
titulares dos óros do poder devem respeitar-se mutuamente e
renunciar a prática de guerrilha institucional, de abuso de poder, de
retaliação gratuita ou de desconsideração grosseira. Na verdade,
nenhuma cooperação constitucional será possível, sem uma deontologia
política, fundada no respeito das pessoas e das instituições e num
apurado sentido da responsabilidade de Estado (statesmanship).
35
No sentido do que foi até então exposto é que o legislador constituinte de
1988, atento ao esrito democrático
36
que orienta o Estado brasileiro, assim dispôs:
São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo
e o Judiciário.
37
É justamente no citado mecanismo de controle externo de cada um dos
Poderes do Estado sobre as funções outorgadas aos demais que se funda a diferencião
apontada entre as funções e os Poderes do Estado.
Isso porque a configuração atual dos Estados modernos jáo mais se
coaduna com um conceito estanque acerca das funções do Estado, como se pensava
anteriormente.
Assim, é reconhecida a cada um dos Poderes do Estado uma função
específica, dita típica. Por outro lado, não se pode deixar de outorgar a esses mesmos
Poderes uma parcela do exercio das funções que tocam aos demais. Essa segunda
35
CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Os poderes do presidente da república. Coimbra: Coimbra
Editora, 1991. p. 71.
36
Art. 1º, caput, da Constituição Federal de 1988.
37
Art. 2º da Constituição Federal de 1988.
30
hipótese, porém, possui sempre caráter excepcional ou subsidiário, e, por essa razão, é
chamada atípica.
A esse respeito cumpre mencionar os ensinamentos ofertados por Élcio
Trujillo, nos termos que se seguem:
Hoje, na análise da aplicação dos Poderes do Estado, apura-se a ocorrência
de flexibilidade entre as funções de tal forma que, cada um dos Poderes
desempenha, prevalentemente, uma função típica, restando as demais,
específicas dos outros, como aplicação excepcional ou ainda em caráter
meramente subsidiário. Dessa forma, a identificação das funções do Estado
pelo critério orgânico ou subjetivo que busca o Poder ao qual se vincula, não
conduz a resultado satisfatório. Também se mostra insuficiente o critério
material, fundado no conteúdo das atividades realizadas no desempenho das
diferentes funções, vez que um Poder pode praticar atos, materialmente
atribuíveis, à função própria ou, conforme já apontado, típica de outro.
38
Uma vez demonstrados, em linhas gerais, o exato conceito e a efetiva abrangência
dos termos funções estatais e Poderes do Estado, mister se faz proceder a uma tratativa, ainda que
breve, a respeito das especificidades de cada uma dessas relevantes fuões.
Acerca da função administrativa, tamm chamada executiva, do Estado, duas
observações preliminares fazem-se necessárias.
A primeira delas refere-se ao fato de que se optou por o se fazer meão às
inúmeras divergências doutrinárias existentes a respeito dessa fuão estatal. O mesmo se diga em
relação a todas as demais fuões que vio a ser analisadas.
A segunda diz respeito à forma pela qual se procurou abordar o tema. Preferiu-se
analisar essa função mediante a adão de seu duplo sentido, preconizado por Maria Sylvia Zanella
Di Pietro
39
.
Segundo essa autora, a essa atividade estatalo resguardados dois sentidos, a saber:
o sentido objetivo e o sentido subjetivo.
No que se refere ao sentido objetivo, o conceito de atividade administrativa
corresponderia ao atuar no sentido de traçar as diretrizes poticas do Estado. Assim, a depender da
orientação seguida pelo Estado, seja ela liberal ou do welfare state, o exercente da atividade
administrativa comportar-se de um ou de outro modo.
38
TRUJILLO, Élcio. Responsabilidade do Estado por ato lícito. São Paulo: Editora de Direito, 1995. p. 27.
39
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2004. passim.
31
Quando se questiona acerca do sentido subjetivo, quer-se descobrir a quem cabe, no
caso concreto, o exercio dessa fuão estatal. Estão incluídas no estudo desse sentido noções
acerca da administração blica direta e indireta do Estado, dos óros públicos, dos agentes
públicos, bem como das formas de responsabilização dos mesmos – essas últimas, objeto de estudo
específico no presente trabalho.
Por função legislativa do Estado entenda-se aquela correspondente à atribuição de
conceber, de forma inicial, o ordenamento jurídico do Estado. Por essa rao, a doutrina
administrativista, de forma maciça, vislumbra, na lei, a tríplice característica: a abstrão, a
generalidade e a autonomia.
Diz-se ser a lei abstrata, uma vez que elao se destina a alcançar fatos ou situações
concretas, mas a totalidade dos casos que eventualmente venham a ela se amoldar. A generalidade,
por sua vez, significa que a lei não se destina a pessoas determinadas, visando, sempre, a um
número indeterminado de pessoas. O atributo da autonomia, próprio da lei, determina que somente
os atos produzidos de acordo com as regras do devido processo legislativo podem introduzir
disposões novas no ordenamento jurídico do Estado. Somente a lei, portanto, inova no
ordenamento jurídico, atribuindo direito ao particular ou dele exigindo obrigão ou sujeão a
então inexistente em qualquer outro comando normativo.
Essa é a rao pela qual se diz que a fuão administrativa própria ou típica de
qualquer Poder do Estado, à exceção do Poder Legislativo, sempre decorre da lei.
Não é sem rao que, numa adaptão do conceito extraído da obra de Celso
Antônio Bandeira de Mello
40
, podemos nos referir ao conceito de ato administrativo como sendo a
declarão jurídica do Estado ou de quem lhe faça as vezes, decorrente do exercício da fuão
administrativa do Estado, sujeita ao regime jurídico de Direito blico, praticada enquanto comando
complementar da lei, sendo, em todo caso, sempre revisível pelo Poder Judicrio.
Cretella Júnior, acerca do conceito de ato administrativo, assim leciona:
[...] ato administrativo é a manifestão da vontade do Estado, por seus
representantes, no exercício regular de suas funções ou por qualquer pessoa que
detenha nas mãos, frão de poder reconhecido pelo Estado, que tem por
finalidade imediata criar, reconhecer, modificar, resguardar ou extinguir situões
jurídicas subjetivas, em maria administrativa.
41
40
Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros,
2004. p. 69.
41
CRETELLA JÚNIOR. Do ato administrativo. 2. ed. São Paulo: José Bushatsky Editor, 1977. p. 19.
32
Ou seja, aos demais Poderes do Estado, embora se reconheça a possibilidade
de exercer a função de legislar, em caráter atípico, os comandos normativos oriundos do
exercício dessa atividade jamais poderão se constituir em inovação ao ordenamento jurídico,
devendo sempre a esse se conformar.
Essa afirmação, que, até bem pouco tempo atrás, constituía-se em verdadeiro
dogma do Direito Administrativo, vem, contudo, perdendo a sua razão de ser.
Isso porque, muito embora existam doutrinadores ainda avessos à idéia, o texto
da Constituição Federal é expresso no sentido da admissão dos chamados decretos
autônomos
42
.
A citada aversão vem bem representada pelo magistério de Carlos Ari
Sundfeld, quando refere:
O princípio da legalidade, somado à literalidade da própria norma
constitucional para quem a edição de regulamentos serve apenas à fiel
execução das leis –, permite a imediata constatação de que, no sistema
brasileiro, não há espaço senão para os regulamentos de execução. São
estranhos ao nosso Direito os chamados regulamentos autônomos,
produzidos pelo Executivo em matérias não reservadas ao legislador. Entre
nós, todas as matérias devem ser tratadas em lei, cumprindo à Administração
apenas aplicá-la.
43
Os chamados decretos autônomos em muito se diferenciam dos decretos de
execução ou regulamentares. Os segundos têm por objeto aclarar o sentido da lei ou
instrumentalizar o administrador público no sentido de melhor aplicá-la, deles não decorrendo
qualquer obrigatoriedade senão àqueles que se lhe devem sujeição hierárquica imediata, ou,
como ensina Geraldo Ataliba:
O regulamento não pode criar obrigações para terceiros, que não os
subordinados hierárquicos do Chefe do Poder Executivo que o editou. O
regulamento emanado do Presidente da República obrigará os servidores
da União. Não obriga os Estados nem os Municípios, nem os administrados
da própria União, que só são obrigados pela lei.
44
Os decretos autônomos, por sua vez, não dependem de qualquer comando
legislativo anterior para que tenham vigência e eficácia no ordenamento judico. Ao
42
Art. 84, inciso VI, a e b, da Constituição Federal de 1988.
43
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. o Paulo: Malheiros Editores, 1993. p. 32.
44
ATALIBA, Geraldo. República e constituição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1985. p. 112
33
contrário, retiram seu fundamento de validade diretamente do texto da própria Constituição
Federal, conforme já se viu.
Aos decretos autônomos, portanto, tem sido reconhecida a característica da
autonomia, restrita, porém, aos estritos casos constantes do texto constitucional.
A respeito desses, necessário trazer à baila o entendimento proposto por Pierre
Souto Maior Coutinho de Amorim, em artigo sobre o tema:
A recente emenda constitucional n. 32, de 11 de setembro de 2001, além de
trazer novo regramento sobre a edição de medidas provisórias, inseriu,
outrossim, uma mudança de grande interesse doutrinário, que implica sérias
conseqüências práticas. Tal mudança refere-se à introdução de uma nova
modalidade de decreto no Direito brasileiro, qual seja, o decreto autônomo.
Para melhor esmiuçar o tema proposto, válida a definição do que seja
decreto, decreto de execução (regulamentar) e decreto autônomo. O termo
decreto traduz um dos instrumentos de exercício do poder normativo da
Administração Pública. É verdade que tal poder pode expressar-se através de
outros instrumentos, tais como portarias, resoluções, instruções, etc. Há,
basicamente, dois tipos de decretos, os tidos como de execução (também
chamados regulamentares) e os autônomos. Os primeiros destinam-se,
exclusivamente, a pormenorizar o fiel cumprimento da lei, ou seja, não
podem inovar na ordem jurídica. Não podem introduzir direito novo,
tampouco impor obrigações ou conceder direitos não previstos legalmente.
Os segundos podem inovar na ordem jurídica, na falta de lei que trate do
assunto ou no caso de matéria que lhe é reservada.
45
Por fim, cumpre-nos analisar a função judicante do Estado. Essa tem por
finalidade dirimir os conflitos intersubjetivos de interesses surgidos da interação dos homens
em comunidade.
Concretiza-se por intermédio da relação jurídica processual, em regra invocada
pela parte que teve uma pretensão sua obstada pela resistência da outra
46
.
O exercício da função judicante é típica dos órgãos integrantes do Poder
Judiciário
47
, cabendo-lhes, portanto, sempre que instados a fazê-lo, fazer cessar qualquer
45
AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho da. A reintrodução do decreto autônomo com a E. C. 32/01. Neofito.
Disponível em: <http://www.neofito.com.br/informativo.htm>. Acesso em: 20 jul. 2007.
46
A afirmação é plenamente justificada pelo fato de ser característica do poder jurisdicional do Estado a inércia,
conforme estabelece o artigo 2º do Código de Processo Civil. Diz-se em regra porque há casos em que será
possível ao próprio magistrado dar início à relação jurídica processual, ainda que a parte não a requeira. É o
caso, por exemplo, do procedimento de inventário, quando se verifique a omissão de qualquer dos legitimados
em requerer a sua abertura. É o que determina o artigo 989 do Código de Processo Civil.
47
Art. 92 da Constituição Federal de 1988.
34
ameaça, seja efetiva ou potencial, a direito de quem quer que seja
48
, aplicando o direito ao
caso concreto.
Assim, uma vez cumpridas as disposições relativas ao devido processo legal
49
,
as decisões oriundas desse Poder estatal estarão revestidas do caráter de imutabilidade, ou,
como prefere a doutrina processualista civil brasileira, ocorrerá a coisa julgada material.
Esse é o caráter que distingue as decisões proferidas pelos órgãos integrantes
do Poder Judiciário das decisões oriundas de qualquer dos outros Poderes do Estado em
caráter atípico, portanto –, ainda que tenham por objeto a composição de litígios.
48
Art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal.
49
Art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal de 1988.
35
CAPÍTULO 2 DAS OBRIGAÇÕES E DA RESPONSABILIDADE
2.1 Das obrigações. Conceito e evolução do tema
Uma vez analisadas, ainda que em breves linhas, as mais relevantes
observações acerca do conceito e da evolução do Estado, bem como a íntima relação
havida entre esse e o desenvolvimento do homem em sociedade, o podeamos
descuidar do estudo, em capítulo próprio, dos temas das obrigações e da
responsabilidade.
É de todos conhecida a relevância dos citados assuntos, o que bem
proporcionaria, inclusive, uma análise de ambos os institutos em capítulos distintos
do presente trabalho. Fez-se opção, contudo, por uma tratativa em conjunto de
ambos em um único capítulo.
Isso porque o desenrolar do presente capítulo demonstrará a adoção da
concepção doutrinária que entende ser a responsabilidade decorrência direta da
obrigação, constituindo momento sucessivo desta.
Cabe-nos, num primeiro momento, desenvolver o tema das obrigações.
Deve-se observar, no entanto, que as obrigações, assim como acontece
em relação ao Estado, decorrem, também, do desenvolvimento humano em sociedade
e, por conseguinte, das formas como se dão as relações interindividuais.
A razão disso é que, como não se deve deixar de reconhecer, as
obrigações têm o seu surgimento no exato momento em que é desperta no homem a
necessidade de se agrupar em comunidade.
Já se disse ser o homem um ser eminentemente social. Esse instinto,
próprio da condição humana, muito embora possa ser creditado a um sem número de
fatores, deriva, em larga medida, do anseio que teve o indivíduo, particularmente
considerado, de ver satisfeita uma necessidade de que era titular.
Ocorre, contudo, que a opção pela vida em comunidade faz cessar os
interesses meramente privatísticos, derivando desses interesses que passam a ser de
toda a coletividade.
36
Some-se a isso o fato de que a evolução do homem não pode ser
considerada enquanto fenômeno meramente estanque, variando conforme o tempo e
o lugar em que se procure situá-la.
Do atingimento de um determinado objetivo, todavia, decorre a
necessidade de se buscar outro. Esse fenômeno, pprio, também, do homem, deriva
da imensa variedade de interesses envolvidos nas relações entre os indivíduos.
Historicamente, muito cedo o homem percebeu que não detinha pleno
poder sobre todos os bens existentes.
As pequenas comunidades eram, então, desprovidas dos meios
necessários para atender a todas as necessidades de seus concidadãos.
O ordenamento jurídico, ainda incipiente, não obteve êxito na sua
tarefa de tentar acompanhar as transformações por que passavam as relações
interindividuais o que ainda hoje ocorre.
Assim, uma vez que fora criado para evitar o aniquilamento e a
submissão dos interesses das partes mais fracas pelas mais fortes, acabou por entrar
em verdadeiro colapso.
O convívio entre os homens tornava-se insustentável.
Sob risco de extinção de sua ppria espécie, a partir de um
determinado momento o homem percebe que, não muito distante da comunidade que
integra, existem outras, com necessidades bem próximas às da sua.
Muito embora esse contato inicial não tenha sido necessariamente
amistoso, acabou por produzir, a longo prazo, a forma de solução dos conflitos por
intermédio do diálogo e das cessões recíprocas.
A necessidade de satisfação dos interesses, fossem esses individuais
ou pertencentes a toda a coletividade, fez, portanto, com que cada comunidade de
pessoas, de alguma forma, viesse a se vincular a outra.
É essa a gênese das obrigações. Vê-se aqui, também, a fonte dos
contratos.
A obrigação corresponde, assim, a um vínculo que une duas partes em
torno de um determinado objeto. Caberia à primeira ceder aquele à outra, mediante o
recebimento de alguma prestação, em geral conversível em bens de primeira
necessidade, tais como gêneros alimentícios, vestuário, etc. Ou, simplesmente, como
se extrai da obra Código Civil Comentado, “A obrigação é a relação jurídica por
37
intermédio da qual o sujeito passivo (devedor) se obriga a dar, fazer ou não fazer
alguma coisa (prestação) em benefício do sujeito ativo (credor).
50
De se recordar, também, o magistério de Washington de Barros
Monteiro sobre o tema:
Obrigação é a relação jurídica, de caráter transitório, estabelecida entre
devedor e credor e cujo objeto consiste numa prestação pessoal
econômica, positiva ou negativa, devida pelo primeiro ao segundo,
garantindo-lhe o adimplemento através de seu patrimônio.
51
A regra orientadora dessas relações, em geral costumeiras e, portanto,
não escritas –, impunha que aqueles que viessem a, porventura, obrigar-se, estariam
vinculados ao cumprimento do acordo celebrado.
Ocorre, contudo, que, por vezes, uma das partes da relação citada
simplesmente se abstinha da obrigação que lhe cabia. A outra, por sua vez, não dispunha
de meios coercitivos para exigir a prestação aventada. Restava, assim, prejudicada, num
claro locupletamento ilegítimo de uma parte em relação à outra.
As relações interindividuais encontravam-se novamente abaladas, d
decorrendo uma série de conflitos, o que já foi objeto de tratativa em momento anterior do
presente trabalho.
Era preciso, assim, que fossem previstas regras específicas, as quais
garantiriam às partes o direito de exigir da outra, caso essa não honrasse o que havia
acordado, o cumprimento coercitivo da obrigação.
Percebe-se, todavia, que a mera previo de uma norma de conduta a ser
observada nessas relações, por si , não era apta a garantir efetividade às obrigações. Era
preciso ir além, outorgando-se ao ordenamento judico a previsão de soluções específicas para
a hipótese tratada.
Corresponde a dizer, portanto, que a relão obrigacional, embora decorrente de
um femeno advindo da evolução do homem em sociedade, transformou-se em uma relação
jurídica, e, dessa forma, es sujeita às regras que lhe são pprias.
O femeno social, assim, reflete mais uma vez na órbita do Direito, como
forma de proteção da parte que, eventualmente que, saliente-se, a regra é a de que as
50
PELUSO, César (coord.). Código civil comentado. Doutrina e jurisprudência. São Paulo: Manole, 2007. p. 155.
51
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. 34. ed. v. 5. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 19.
38
relações obrigacionais devam ser cumpridas por ambas as partes –, restasse prejudicada pelo
inadimplemento, justificado ou injustificado, da outra.
Haja vista o aventado a o momento, estamos obrigados a uma correção quanto
ao conceito do fenômeno jurídico-social da obrigação.
A obrigação corresponde, agora, portanto, a umnculo pelo qual duas partes
credor e devedor –, acordes quanto a um determinado objeto a prestação –, obrigam-se
reciprocamente, ou, como leciona Orlando Gomes:
Relão obrigacional é o vínculo jurídico entre duas partes, em virtude do
qual uma delas fica adstrita a satisfazer prestação patrimonial de interesse da
outra que pode exigi-la, se o for cumprida espontaneamente, mediante
agreso ao patrimônio do devedor.
52
Ao eventual descumprimento do que fora devidamente acordado entre ambas,
qualquer delas, antecipadamente, tamm se compromete a responder à parte contrária pelos
prejuízos que de sua conduta advierem o que é o vínculo jurídico.
2.2 Dos elementos, dos momentos, e dos efeitos das obrigões
Das idéias expostas no item anterior podem ser extrdos os três elementos que
caracterizam a relação judica obrigacional, quais sejam: o elemento pessoal ou subjetivo, o
elemento objetivo, e o vínculo jurídico, tamm chamado elemento espiritual.
A partir daqui passa a ser plenamente cabível uma alise mais apurada a
respeito de cada um deles, sem, contudo, perdermos de vista o objeto do presente trabalho.
Compõem o elemento pessoal ou subjetivo as partes que mutuamente se
obrigam a uma determinada conduta, seja ela comissiva ou omissiva. Assim, em toda escie de
obrigão, sempre se esta diante do credor e do devedor
53
.
Ao credor é resguardada a posição de sujeito ativo da relação jurídica
obrigacional, sendo aquele em benecio do qual advi o cumprimento da prestação, objeto da
relação.
52
GOMES, Orlando. Obrigações. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 19.
53
Cumpre ressaltar, porém, que os pólos da relação jurídica obrigacional, por vezes, podem se alternar. É o caso
das chamadas obrigações ou contratos sinalagmáticos, em que ambas as partes são tidas como credoras e
devedoras entre si, de modo que a cada uma delas tocam direitos e obrigações recíprocas.
39
Caberá ao devedor, por sua vez, enquanto parte passiva da citada relação, o
dever de cumprir a prestação tal como aveada, seja no tempo, na forma ou lugar, sob pena de
inadimplemento absoluto ou relativo
54
.
A fim de que o devedor o se locuplete indevidamente da parcela do
patrinio despendida pelo credor quando da conclusão do ato ou negócio jurídico havido entre
as partes, o ordenamento jurídico lhe impõe o dever de responder à parte contria pelos
eventuais danos advindos de sua conduta.
Quer-se com isso afirmar, portanto, que no que toca ao direito das obrigões,
impera a regra de que a obrigação deve ser cumprida de forma esponnea pela parte que a ela
se obrigou, de maneira voluntária.
Sendo caso, contudo, de descumprimento da obrigão referida, tornando a
prestação de qualquer forma itil para o credor, o próprio devedor, de antemão, lhe assegura
o direito de invadir o seu patrimônio pessoal, mediante atos materiais de disposão patrimonial
advindos de autoridade pública competente para tanto – no caso, o Poder Judiciário –, a fim de
satisfazer o direito que lhe cabe.
Do exposto até o presente momento tornam-se perfeitamente visualizáveis dois
momentos distintos da relação jurídica obrigacional, a saber, a obrigação e a responsabilidade, o
que se confunde com o que a doutrina denomina nculo judico ou elemento espiritual das
obrigões.
Dada a relevância do tema tratado, merece transcrão, nesse ponto, a lição de
Álvaro Villaça Azevedo:
O elemento espiritual da obrigão é o vínculo judico, o liame, que liga os
sujeitos, ativo e passivo, que participam da mesma, possibilitando àquele
exigir deste o objeto da prestação. É um elemento imaterial, que retrata a
coercibilidade, a jurisdicidade, da relão jurídica obrigacional. Ele garante,
em qualquer escie de obrigação, o seu cumprimento, porque, se esteo se
realizar espontaneamente, realizar-se-á coercitivamente, com o emprego da
foa, que o Estado coloca à disposição do credor, por intermédio do Poder
Judiciário.
55
54
Muito embora seja comum se fazer referência ao termo inadimplemento relativo, o termo técnico-jurídico
aplicável é mora.
55
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral das obrigações. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 34.
40
O primeiro deles, o débito, se insere no campo da liberdade individual de
contratar, e alcança todos aqueles que tenham a livre administração do seu patrimônio
56
.
Ao devedor é dada a oportunidade de proceder ao cumprimento voluntário
da obrigação. Uma vez que não o faça, a obrigação adentra em seu momento sucessivo,
qual seja, o da responsabilidade.
Assim, a responsabilidade somente terá incidência se e quando a obrigação
não vier a ser satisfeita voluntariamente pelo devedor. Consiste essa, portanto, numa
garantia dada ao credor quanto à satisfação de um direito que lhe assiste.
É plenamente possível afirmar-se, portanto, que o ordenamento jurídico
privilegia aquele que cumpre voluntariamente a obrigação por ele consciente e
voluntariamente assumida.
A esse respeito, inclusive, confira-se a doutrina de Nelson Rosenvald:
Certamente, a solução ideal para o término da relação obrigacional
reside no cumprimento voluntário das obrigações de dar, fazer e não
fazer, respeitando-se os requisitos das partes – quem paga e quem recebe
–, modo, lugar e tempo do cumprimento do bito. Quando a prestação
corresponde exatamente ao avençado, a relação exaure-se, desonerando
o devedor e satisfazendo o interesse do credor.
57
casos, porém, em que o descumprimento de uma obrigação não gerará,
necessariamente a responsabilidade. Tal se dará nos casos em que não seja possível
imputar conduta dolosa ou culposa ao devedor em relação ao inadimplemento da
obrigação
58
, sendo exemplos o caso fortuito e a força maior.
Por fim, deve o estudo dos elementos das obrigações abranger o elemento
objetivo dessas.
O elemento objetivo refere-se à conduta humana a que o devedor se obriga
a prestar em benefício do credor, no momento da celebração do ato ou negócio jurídico
havido entre ambos. É a própria prestação devida pelo devedor ao credor.
56
Como forma de preservação do interesse coletivo, o ordenamento jurídico pátrio adotou como baliza a função
social do contrato, princípio expresso no artigo 421 do Código Civil vigente.
57
ROSENVALD, Nelson. Direito das obrigações. 3. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2004. p. 220.
58
E, também, nos casos em que, embora o inadimplemento decorra de culpa do devedor, esse conseguir
comprovar que a impossibilidade de cumprimento da obrigação assumida adviria ainda que a coisa estivesse
em poder do credor.
41
Enquanto conduta humana, o objeto da obrigação pode se exteriorizar tanto sob
forma comissiva, como omissiva. Tal afirmação é justifivel, sobretudo quando do estudo da
classificação das obrigões proposta pela doutrina civilista nacional.
A necessidade de delimitação do tema, objeto da pesquisa, impede-nos, porém,
de adentrar em profundidade a classificão das obrigões.
No entanto, no que se refere à classificação sob o prisma de seu objeto ou seja,
quando se leva em conta, justamente, a conduta a que se obrigou o devedor – , é imprescinvel
constar que essas podem ser de dar, de fazer e de não fazer ou abster-se de fazer.
Cito, novamente, a lição de Nelson Rosenvald sobre o tema:
O objeto de qualquer relão obrigacional é a prestação, consistente na coisa a
ser entregue (obrigão de dar) ou no fato a ser prestado (obrigação de fazer
ou não fazer, importando invariavelmente em umaão ou omiso do
devedor.
59
No primeiro caso, o eventual descumprimento da obrigação assegurará ao
credor socorrer-se do Poder Judicrio a fim de ver reconhecida a relação jurídica havida entre
as partes e, conseentemente, condenado o devedor à prestão pela qual se obrigou.
Ao inadimplemento das obrigações de fazer, a sentença, além de reconhecer a
obrigão havida entre as partes, impõe o cumprimento específico ou assegura o resultado
ptico correspondente, sob pena de incincia na chamada astreints
60
.
Quanto às obrigões de o fazer ou de abster-se de fazer, a responsabilidade
do devedor restará configurada sempre que adote conduta comissiva, no sentido de praticar ato
ou fato a que se obrigou a não fazer ou tolerar. Caberá ao magistrado, portanto, sempre a pedido
do credor, determinar que cesse o procedimento do devedor, incompavel com a vontade
anteriormente manifestada.
O estudo dos elementos mencionados possui imporncia fundamental,
repercutindo de forma direta no que diz respeito aos efeitos decorrentes da relação jurídica
obrigacional havida entre credor e devedor.
E, muito embora a análise de alguns possam se traduzir em verdadeira
obviedade, devem ser mencionados.
59
ROSENVALD, Nelson. Direito das obrigações. 3. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2004. p. 4
60
Nos casos em que haja urgência, o Código de Processo Civil permite ao credor tomar iniciativas de defesa
própria, o que se traduz em verdadeira autodefesa a seu dispor, legalmente permitida.
42
Dessa forma, o efeitos que decorrem da obrigão: a vinculão entre as
partes que mutuamente se obrigam, o conteúdo econômico da prestação, o fato de responder o
patrinio do devedor pela satisfão do direito do credor, e a temporalidade das relações
jurídicas obrigacionais.
A esse respeito, tem-se como o primeiro dos efeitos das obrigações o de
vincular juridicamente as partes. Por intermédio dessa vinculão que uma das partes se
compromete a oferecer à outra uma determinada prestação para o caso de vir a, de forma
indevida, faltar à prestação pela qual se obrigou.
Note-se que o efeito mencionado corresponde ao próprio conceito de bito e
de responsabilidade, mencionados em momento anterior do presente trabalho, e que constituem,
como se disse, momentos da relão jurídica obrigacional.
A prestão, objeto da obrigação, por sua vez, em geral deve ter contdo
econômico, apreciável ou conversível em moeda ou em cujo valor nela se possa exprimir.
Segundo estabelece o Código Civil, deve, ainda, ser lícita ou conforme ao
direito –, posvel –sica e juridicamente –, perfeitamente determinada que possa se
distinguir de outra de mesmo nero, qualidade e quantidade ou, ao menos, determinável – o
que se quando qualquer de suas caractesticas vier a ser objeto de escolha (ou concentrão)
no decorrer da execução do contrato.
Importante observação deve ser feita no momento. Diz respeito ao fato de que a
responsabilidade pelo adimplemento das obrigões é sempre real
61
, ou seja, o pode incidir
sobre a liberdade ou a vida do devedor, nem atingir seus sucessores para além das foas do
patrinio que lhes seja transferido, tal como se admitia em épocas remotas.
A esse respeito, de se conferir o magistério de Vicente Greco Filho:
Conta a história que a execução mais antiga se fazia na pessoa do
devedor, per manum injectionem, podendo o devedor ser vendido pelo
credor fora da cidade, trans Tiberim. Consta, até, que o devedor poderia
ser esquartejado, partes secanto, não se sabendo se tal ato seria real ou
simbólico. O devedor que chegasse a tal situação perdia a condição de
cidadão romano, status civitatis, a de membro de uma família, o status
familiae, e a condição de liberdade, status libertatis, transformando- se
em coisa, res.
62
61
Art. 591 do Código de Processo Civil.
62
GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 13. ed. v. 3. São Paulo, Saraiva, 2006. p. 10-11.
43
Assim, é o patrimônio do devedor, enquanto complexo de relações
jurídicas, que responde pela satisfação do direito do credor.
se afirmou, também, que a obrigação gera um vínculo jurídico entre as
partes contratantes.
Contudo, e a despeito da relevância que possa outorgar ao objeto da
prestação, não se deve reconhecer à obrigação o caráter da perpetuidade.
Ou seja, o vínculo obrigacional é sempre transitório, devendo extinguir-se,
seja pelo cumprimento espontâneo da obrigação, seja pelo decurso de um prazo
determinado pela lei ou pela vontade das partes – a saber, a prescrição e a decadência
63
.
Fundamenta-se a afirmação apontada na regra de segurança jurídica que
orienta as relações jurídicas de modo geral.
2.3 Das obrigações em direito público
É sempre tormentosa a tarefa de se procurar definir os exatos limites e o
âmbito de incidência das normas de Direito Público e das de Direito Privado. Nem mesmo
as doutrinas que se propuseram a essa análise conseguiram chegar a bom termo.
Entretanto, as dificuldades iniciais não podem constituir-se em obstáculos
na busca pelo conhecimento. Fosse assim, e ainda estaríamos à procura de fogo!
É momento, portanto, de se procurar distinguir as obrigações decorrentes
das condutas individuais daquelas em que o Estado se faça, de qualquer modo, presente.
Não nos descuidamos de observar, numa consideração preliminar, a
existência de parcela de doutrinadores sobretudo aqueles que defendem a existência do
chamado Direito Civil Constitucional que chegam a afirmar, inclusive, ter a discussão
perdido em parte a sua razão de ser. Fundamentam suas razões no fato de que o
ordenamento jurídico vigente procura privilegiar, no todo, a publicização de conceitos e
de institutos antes havidos como de caráter meramente privado e, portanto, de cunho
egoístico.
63
Cumpre ressaltar que, enquanto a decadência pode ser legal ou convencional, conforme esteja prevista na lei
ou seja objeto de convenção entre as partes, a prescrição é somente legal.
44
Por um lado, a afirmativa tem a sua razão de ser.
Veja-se o caso, por exemplo, do Código de Proteção e Defesa do
Consumidor. Essa lei, acorde com a orientação já contida no texto constitucional de 1988,
num reconhecimento da hipossuficiência de uma das partes da relação jurídica, outorgou a
ela no caso, o consumidor uma série de prerrogativas, com finalidade eminentemente
protetiva.
Constitui-se isso numa superação de conceitos, fundando-se um novo
paradigma, seja em relação ao direito material – como, por exemplo, nas regras relativas à
decadência –, seja em relação ao direito processual no que toca às regras relativas à
inversão do ônus da prova pelo juiz – até então vigente.
A partir da alteração do paradigma, outras normas foram surgindo.
Dispositivos esparsos foram inseridos em normas, alterando-se a própria essência dessas.
A essas normas, contudo, podia ser oposto o inconveniente de serem
meramente setorizadas. Ou seja, não tinham o condão de serem aplicadas à totalidade dos
casos.
Foi preciso, então, estender os efeitos dessa publicização a uma norma de
caráter geral, de forma a se fugir do mero arbítrio do magistrado quanto à sua aplicação
ou não no caso concreto.
O exemplo mais recente desse comando normativo geral é o Código Civil
vigente.
Isso porque das disposições nele contidas é possível perceber a sempre
constante preocupação do legislador infraconstitucional com o caráter social das relações
jurídicas individuais, contrariamente à orientação defendida pela lei revogada.
Entretanto, e muito embora não se negue a existência desse fenômeno
crendo-se que é, inclusive, salutar –, a verdade é que as relações que, de qualquer modo,
envolvam o Estado devem ser objeto de estudo em separado, haja vista os interesses
envolvidos nessas relações.
O estudo das obrigações em Direito Público, porém, não pode se descuidar
de uma análise de cada um dos elementos das relações jurídicas obrigacionais em geral.
Essas obrigações, portanto, assim como as individuais, têm como
elementos os sujeitos, o objeto e o vínculo jurídico. Cada um deles, porém, dentro da sua
especificidade.
O desenvolvimento do presente pico demonstra que a necessidade
de delimitação do tema levou a que se procedesse a um estudo relativo aos elementos
45
pessoal e espiritual das obrigações em direito blico, o que, contudo, em nada afeta
a pesquisa.
No que diz respeito ao objeto dessas relações, tem-se que esse vem
expresso em disposições contratuais, o que importaria uma análise individual de cada
um dos contratos que podem ser celebrados pelo Estado
64
.
Por ora, portanto, cumpre simplesmente observar que, como já foi
aludido em relação ao objeto, o ordenamento jurídico exige que esse seja lícito ou
conforme ao direito , posvel o que diz com a aptidão de ser realizável, seja sob a
ótica jurídica, seja sob a ótica material , determinado ou, pelo menos, determinável
aquele que seja passível de se distinguir de outros da mesma escie, qualidade e
quantidade –, mas, sobretudo, moral aquele que guarde conteúdo ético, compatível
com a conduta de quem se encontre, ainda que temporariamente, no exercio do
poder.
Quanto aos sujeitos da relação judica obrigacional, cumpre dizer que
essas relações se caracterizam sempre que o Estado, de qualquer modo, fa-se
presente.
Essa presença, no entanto, não deve ser entendida o-somente sob a
ótica do pólo ativo ou passivo dessas relações. Ao contrário, é possível que o Estado
apenas detenha interesse preponderante no desenvolvimento dessas.
Assim, perfeitamente possível falar-se em obrigão em Direito
Público, ainda que as partes contratantes sejam particulares. Será preciso que caiba a
algum deles, porém, uma prestação que, de algum modo, seja de interesse do Estado.
Sabe-se que, onde quer que o Estado se faça presente como parte ou
como detentor de interesse prevalente , as relações judicas deveo ser regidas por
um conjunto pprio de normas.
A esse conjunto de normas dá-se o nome de regime judico de Direito
Público, que se distingue, em absoluto, daquele que rege as relões jurídicas
individuais.
Isso porque, enquanto as obrigações celebradas entre particulares são
regidas pelo princípio da autonomia privada – vinculada, porém, ao atendimento da
64
O efeito imediato dessa observação, porém, somente será sentido quando da análise da responsabilidade civil
do Estado. Isso porque importa para o presente estudo a chamada responsabilidade aquiliana ou
extracontratual, uma vez que a meramente contratual se encerra nas disposições específicas de cada um dos
contratos eventualmente celebrados pelo Estado ou por quem o represente.
46
fuão social do contrato –, ao Estado é resguardada a tutela de interesses titularizados pela
coletividade. Disso decorre, também, a indisponibilidade desses interesses por ele regidos.
Esse regime caracteriza-se, assim, pela outorga, em favor do Estado, de uma
rie de prerrogativas. Essasm por finalidade dotá-lo dos meios necessários para fazer valer,
no caso concreto e de forma efetiva, o interesse público.
Com efeito, enquanto o Direito Privado repousa sobre a igualdade das
partes na relão jurídica, o Direito blico assenta em princípio diverso,
qual seja, o da supremacia do Poder Público sobre os cidaos, dada a
prevalência dos interesses coletivos sobre os individuais. Dessa
desigualdade originária entre a Administração e os particulares resultam
inegáveis privilégios e prerrogativas para o Poder blico, privilégios e
prerrogativas que o podem ser desconhecidos nem desconsiderados pelo
intérprete ou aplicador das regras e princípios desse ramo do Direito.
65
Por outro lado, e como forma de balizar e limitar a conduta daquele que se
encontre no exercício do poder, são impostas uma rie de sujeições. Essas constituem-se,
portanto, em garantias à disposição do indivíduo contra o eventual exercício arbitrário do
poder.
Muito embora as raes até então apontadas se mostrem plenamente
suficientes a fundamentar a imprescindibilidade da diferenciação entre as relações
obrigacionais meramente individuais e aquelas que envolvam, de qualquer modo, a figura do
Estado, cumpre-nos, ainda, analisar essas obrigações sob o prisma do seu elemento espiritual.
se disse que esse é o vínculo jurídico, que submete o patrimônio do devedor
à solvência da obrigação por ele avençada, garantindo-se, assim, a satisfação do direito do
credor.
foi mencionado, também, que é possível vislumbrar o Estado em qualquer
dos pólos da relação jurídica ativo ou passivo.
Com relação à situação em que venha a ocupar a posão de credor da relão
obrigacional, não se fazem necesrios maiores esclarecimentos.
A dúvida se ime quando o Estado se faz presente na posão de devedor.
Ora, o regime jurídico regente dos bens estatais que podem ser de uso
comum, de uso especial, e dominiais outorga-lhes a tríplice característica da
inalienabilidade, impenhorabilidade e imprescritibilidade.
65
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 31. ed. o Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 49.
47
A primeira delas significa que os bens do Estado, uma vez que vinculados
a uma atividade específica, não são passíveis de alienação ou qualquer outra espécie de
cessão válida pela pessoa do administrador público. Isso porque, conforme também se
disse, são bens que pertencem a toda a coletividade.
Cessa essa característica, no entanto, uma vez que for retirada por lei
autorizativa específica aquela vinculação especial do bem, trazendo-o para o âmbito do
patrimônio disponível do Estado.
Por impenhorabilidade entenda-se que os bens integrantes do patrimônio
estatal não podem ser objeto de constrição judicial. Ou seja, nas execuções movidas
contra o Estado, os pagamentos por ele devidos devem ser saldados pela via dos
precatórios judiciais, que devem obedecer à rígida ordem cronológica de apresentação,
salvo se se tratar de créditos de natureza alimentícia ou de valores excepcionados pelo
artigo 100 da Constituição Federal.
O desatendimento do disposto no dispositivo mencionado viabiliza o
seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito, constituindo-se, portanto, em
medida de extrema gravidade
66
, plenamente reconhecida, seja pela doutrina, seja pela
jurisprudência pátria.
Por fim, cumpre analisar a característica da imprescritibilidade relativa aos
bens públicos. Sendo a única característica a não admitir qualquer tipo de exceção ou
condicionamento, consiste na impossibilidade de os bens públicos virem a ser objeto de
usucapião
67
, bem como de qualquer tipo de oneração por qualquer espécie de direito real
de garantia, seja ele o penhor, a hipoteca e a anticrese.
É bem verdade que uma infinidade de outras observações seriam ainda
cabíveis, no sentido de demonstrar a extrema utilidade e necessidade de uma efetiva
diferenciação entre as obrigações regidas pelo Direito Privado e aquelas regidas pelo
Direito Público esse, saliente-se, permeado de normas que, por vezes, ab-rogam as de
Direito Privado, por vezes determinam a sua aplicação em caráter subsidiário.
É preciso, porém, restringir o objeto do presente estudo, sob pena de se
afastar do seu foco principal.
66
Art. 100, § 2º, parte final, da Constituição Federal.
67
A esse respeito, confira-se o expresso na Súmula 340 do Supremo Tribunal Federal: “Desde a vigência do
Código Civil, os bens dominicais como os demais bens públicos não podem ser adquiridos por usucapião”.
48
2.4 Da responsabilidade propriamente dita. Responsabilidade civil e penal uma
distinção necessária
A responsabilidade, já se disse, corresponde ao momento sucessivo da
obrigação. Por meio dela o devedor se obriga, desde o momento da celebração do negócio
jurídico havido entre as partes, a responder com o seu patrimônio pela eventualidade de a
prestação, objeto da obrigação, não vir a ser por ele cumprida no tempo, lugar e modo
devidamente convencionados.
É esse, inclusive, o próprio conceito do vocábulo responsabilidade, ou,
segundo o disposto na lição de José Carlos de Oliveira:
Etimologicamente, responsabilidade deriva do latim respondere,
responder, e, deste sentido, promana o seu significado técnico jurídico,
ou seja, responsabilizar-se, tornar-se responsável, ser obrigado a
responder. A responsabilidade é expressão que serve para indicar a
situação de todo aquele a quem, por qualquer título, incumbem as
conseqüências de um fato danoso (Zanobini, 1952, p. 269).
68
Do conceito exposto deve ser extraído que, muito embora a
responsabilidade seja da própria essência do vínculo obrigacional, que une
temporariamente credor e devedor, constitui-se numa eventualidade, ou seja, não estará
necessariamente presente.
Ou seja, a sua existência pressupõe, de qualquer modo, o inadimplemento
pelo devedor.
A responsabilidade, assim como a obrigação – até porque decorre dela –, é,
também, um fenômeno eminentemente social. Ou seja, nasce com o homem e tende a
somente por ação dele desaparecer.
Seu nascimento se deu no exato momento em que da prática cotidiana se
fez notar que em um mero considerável de negócios jurídicos nem sempre era possível
a uma das partes cumprir com a prestação tal qual originalmente avençado.
A esse respeito, é a lição de Élcio Trujillo sobre o tema:
68
OLIVEIRA, José Carlos de. Responsabilidade patrimonial do Estado: danos decorrentes de enchentes,
vendavais e deslizamentos. Bauru, SP: Edipro, 1995. p. 15.
49
De todos os seus significados, fundados nas mais diferentes doutrinas,
aquele que mais imune tem se colocado às críticas é o que adota a noção
de responsabilidade como aspecto da realidade social. Este instituto não
é um fenômeno exclusivo da vida jurídica, mas antes, vincula-se a todos
os campos de atuação da vida social.
69
Merece transcrição, igualmente, a doutrina de João Francisco Sawen Filho:
O conceito de responsabilidade é bastante difícil de ser fixado, embora o
seu conceito, antes mesmo de ser assimilado, quase que é sentido por
nós em nossa vida cotidiana, isso porque toda a atividade humana, em
qualquer campo que se exerça, traz em si problema da responsabilidade.
Entretanto, o seu conceito, variando de acordo com os aspectos que
possa abranger, determina uma diversificada gama de entendimentos
que se amoldam a esta ou àquela posição doutrinária, conforme as
teorias filosóficas que os inspiram.
70
A despeito do caráter social, próprio também da responsabilidade, num
determinado momento coube ao Direito outorgar-lhe a devida proteção.
Isso, por um lado, privilegiava aquele que visse, de qualquer modo,
reduzido o seu patrimônio, em virtude da conduta do devedor, na medida em que disporia
de meios próprios para se insurgir contra o patrimônio desse.
De outro lado, outorgava proteção ao próprio devedor, nas hipóteses em
que o dito inadimplemento não decorresse de conduta culposa sua. Nessa hipótese, a
conduta do devedor passou a ser considerada justificável, exonerando-o de qualquer
responsabilidade, ainda que fosse possível vislumbrar dano para o credor.
Toda a teoria formulada acerca da responsabilidade, bem como a sua
previsão e instrumentalização pelo Direito, tinha por finalidade evitar que o homem
retornasse ao mecanismo da autotutela, com todos os seus inconvenientes, o que,
inclusive, já foi objeto de tratativa anterior.
Note-se que até o momento restringi-me a analisar o conceito de obrigação
decorrente de manifestações de vontade de partes, tendente à formação de preceitos
privados.
Tal idéia é acertada. Todavia, não está completa.
Isso porque as condutas geradoras da responsabilidade do agente podem
advir de outros fatores para além daqueles decorrentes da mera manifestação de vontade.
69
TRUJILLO, Élcio. Responsabilidade do Estado por ato lícito. São Paulo: Editora de Direito, 1995. p. 30.
70
SAWEN FILHO, Jo Francisco. Da responsabilidade civil do Estado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 1.
50
Os romanos conheciam quatro fontes de obrigações. A primeira delas
era o contrato conventio , em face da qual as partes mutuamente expressavam as
suas vontades, tendo por fim imediato a celebração de negócios jurídicos. Ao lado
dessa, encontrava-se o chamado quase contrato, que, a despeito de vincular as partes
quanto a uma determinada prestação, não trazia ínsita a declaração de vontade.
Percebeu-se, de outro lado, que as obrigações o decorriam,
necessariamente, da prática de atos lícitos, ou conformes ao ordenamento jurídico
vigente. Por vezes, poderiam decorrer de um comportamento da parte contrário ao
Direito.
Era o que ocorria com o delito, que pressupunha a exteriorização de
uma conduta dolosa, importando, dessa forma, voluntariedade e intenção de uma das
partes, dirigida à causação de dano à outra. Mas não é só.
Outras vezes, esse comportamento decorria da inobservância de um
dever de cuidado objetivo, sem que houvesse a espefica vontade da parte de lesar à
outra. Era o se conhecia por quase delito.
Já tive a oportunidade de enfatizar que a finalidade do surgimento do
ordenamento jurídico o é outra senão a de ordenar as condutas individuais como
forma de possibilitar a existência e o desenvolvimento harmônico de um
determinado corpo social.
O descumprimento dos deveres de conduta, por sua vez, sempre se
fizeram presentes, e é plenamente possível afirmar-se que jamais deixarão de existir.
Na vida em comunidade, é possível perceber a existência de
indivíduos que se sujeitam à lei, bem como de outros que a ela são absolutamente
avessos. Os fatores que determinam os agentes a atuarem nesse sentido constituem,
porém, matéria afeta a outras disciplinas, tais como a sociologia e a criminologia.
Assim agindo, porém, devem se sujeitar à conseqüência advinda de
sua própria conduta, tornando-se responsáveis, seja em relação aos demais
indivíduos, seja em relação à própria vítima.
Assim, sendo o comportamento do agente orientado no sentido do que
estabelecia o ordenamento jurídico ou não, certo é que, na hipótese de advirem danos à
parte contrária, estará o agente causador obrigado a indenizar.
51
O fator distintivo entre as hipóteses corresponde à natureza da sanção
imposta ao transgressor da ordem jurídica, que pode consistir numa pena ou na devolução
à vítima da quantia correspondente ao dano por ela experimentado.
A ilicitude é de todos sabido não é uma peculiaridade do Direito
Penal. Sendo ela essencialmente, contrariedade entre a conduta e a
norma jurídica, pode ter lugar em qualquer ramo do Direito. Será
chamada de ilicitude penal ou civil tendo exclusivamente em vista a
norma jurídica que impõe o dever violado pelo agente. No caso do ilícito
penal, o agente infringe uma norma penal, de Direito Público; no ilícito
civil, a norma violada é de Direito Privado.
71
Quando atingido bem de valor inestimável para os indivíduos, tal como a
vida ou a integridade física, essa conduta será rotulada pelo Direito como criminosa.
Essas condutas, por gerarem extremo grau de instabilidade ao corpo social, devem ser
mais severamente perseguidas e castigadas pelo Direito, inclusive com incidência da
tutela do Estado – jus puniendi – sobre a própria liberdade do indivíduo – jus libertatis.
Trata-se, portanto, da chamada responsabilidade penal imposta ao
delinqüente, pressupondo, sempre, que tal se apenas após a observância do princípio
constitucional do devido processo legal
72
.
A essas condutas são impostas as penas, objetos de estudo específico do
Direito Penal.
Outras vezes, porém, o comportamento do agente não configura crime.
Nesses casos, a sanção a ele respectiva que não mais se traduz numa
pena, mas sim no equivalente pecuniário experimentado pela vítima deve incidir não
mais sobre a pessoa do devedor, mas sobre o patrimônio a ele pertencente.
Temos, aqui, a chamada responsabilidade civil.
Muito embora se trate de temas diversos, não raras vezes, a segunda forma
de responsabilidade pode decorrer diretamente da primeira.
Ou, como leciona João Francisco Sauwen Filho:
Não obstante, existem lesões patrimoniais decorrentes do atuar humano
que se enquadram em um tipo penal, erigido em crime na legislação
pertinente e, nesse caso, dois serão os lesionados, a vítima em seu
patrimônio e a sociedade em sua ordem jurídica e social. Nesse caso,
71
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 36.
72
Art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal.
52
coexistem as duas responsabilidades como decorrência de um mesmo
ato, a civil e a criminal.
73
É o que ocorre, por exemplo com a ação civil ex delicto, movida pela
vítima ou seus sucessores contra o autor do fato classificado, pela lei, como criminoso.
No que diz respeito ao bem jurídico protegido pela lei norma penal
incriminadora, a lesão causada pelo crime tanto pode atingir,
diretamente a coletividade do corpo social, sem a completa
particularização ou personificação da vítima, tal como ocorre com o
tráfico de drogas, por exemplo, como pode afetar mais intensamente o
patrimônio (moral ou econômico) de determinada pessoa.
Na segunda hipótese, tais condutas darão ensejo a intervenções judiciais
distintas da resposta penal, diante da diversidade e pluralidade de graus
de ilicitude que as acompanham. Nestas situações, quando a repercussão
da infração houver de atingir também o campo da responsabilidade
civil, terá lugar a chamada ação civil ex delicto, que outra coisa não é
senão o procedimento judicial voltado à recomposição do dano civil
causado pelo crime.
74
O fundamento da ação apontada é o título executivo gerado com a sentença
penal condenatória proferida em desfavor do agente
75
.
O ordenamento jurídico é expresso, portanto, no sentido de admitir essa
responsabilização materializada na sentença penal condenatória.
Em relação à sentença absolutória, porém, refere apenas que essa obstará a
que seja intentada a ação referida nos casos em que se tenha reconhecido ter a conduta se
originado de uma das excludentes da ilicitude previstas na lei
76
, ou ter sido reconhecida,
de forma expressa, a inexistência material do fato
77
.
Não deve ser esquecido, porém, que as causas determinantes da absolvição
do agente podem ter origem tanto na malícia processual de uma das partes quando não
de ambas – quanto, até mesmo, na errônea interpretação do direito pelo magistrado.
O ordenamento jurídico vigente, todavia, não oferece solução para a
hipótese.
Nesses casos, inviabilizado o exercício da ação civil ex delicto, restaria a
vítima duplamente apenada. Primeiro, pelas conseqüências advindas da prática da conduta
73
SAWEN FILHO, Jo Francisco. Da responsabilidade civil do Estado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 15.
74
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 7. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 163.
75
Art. 63 do Código de Processo Penal.
76
Art. 23 do Código Penal.
77
Arts. 65 e 66 do Código de Processo Penal.
53
criminosa. Segundo, pela impossibilidade de mover contra o agente a competente ação de
ressarcimento dos danos por ela experimentados.
Assim, essa que sempre se pautou por determinar sua conduta nos estritos
limites dos comandos legais, ver-se-ía desprotegida por um ordenamento cuja origem teve
por finalidade lhe dar guarida.
Teríamos, aqui, hipótese em que deveria ser responsabilizado civilmente o
próprio Estado, sob pena de perpetuação de uma clara situação de injustiça.
Isso porque os juízes são considerados órgãos detentores de parcela do
poder estatal, agindo em nome do Estado, portanto, para a consecução de suas finalidades.
É o que se procurará analisar a partir de agora.
Não deve ser esquecido que, embora a lei preveja a responsabilização do
magistrado, nos casos de dolo ou fraude
78
, por se tratar de hipótese de responsabilização
pessoal do agente, foge aos objetivos do presente estudo.
78
Art. 133, inciso I, do Código de Processo Civil.
54
CAPÍTULO 3 DA RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL DO ESTADO
3.1 Das atividades do Estado de que decorra dano ao particular. Obrigação de indenizar
O capítulo que ora se inicia tem por objeto a tratativa da responsabilização do
Estado, que corresponde às hipóteses em que esse será instado a responder pela indenização
de um dano experimentado pelo particular, advindo do exercício das atividades de quaisquer
dos Poderes do Estado. Reitere-se, todavia, que se trata de uma análise meramente superficial,
já que corresponde a considerações iniciais a respeito do tema.
Quando se pretende analisar a questão da responsabilização do Estado, é
imprescindível, desde já, estabelecer que, assim como ocorreu quando da análise do
nascimento e desenvolvimento desse ente, é a atividade humana que acaba por determinar as
formas pelas quais essa se dará, conforme se verá. A esse respeito, inclusive, Marco Fábio
Morsello ensina:
A importância da responsabilidade civil, ao longo da História, denotou
ampliação condizente com as mudanças econômicas, sociais e políticas, cuja
complexidade crescente é inquestionável no mundo contemporâneo.
Com efeito, influxos (inpitus) provenientes do sistema social exigiram que
referido instituto pudesse desempenhar, a contento, sua função de reparação,
com a justa compensação à vítima, sem prejuízo da função de retribuição ao
causador do dando-evento, como observam Philippe Le Torneau e Loïc
Caldiet
79
.
O atendimento aos interesses inadiáveis da sociedade é o que rege a atuação do
Estado, e traduz-se no parâmetro a ser seguido por aquele que se encontre no exercício do poder.
Pom, ainda que seja essa a sua finalidade prepua, não devemos perder de vista
que o mero exercício dessa atividade – vista sob a ótica de qualquer dos Poderes constituídos que
a exercem, seja em cater pico ou atípico –, por vezes mostra-se apto a gerar uma série de
inconvenientes àqueles que devam sujeão e obedncia aos comandos normativos dele oriundos.
Frederico dos Santos Messias, em artigo sobre o tema, assim se manifesta:
79
MORSELLO, Marco Fábio. A responsabilidade civil e a socialização dos riscos. O sistema neozelans e a experiência
escandinava. Revista da Escola Paulista da Magistratura. Ano 7, n. 2, jul./dez. 2006. p. 13-22.
55
Neste diapasão, para a viabilizão de todas essas atividades visando à satisfação
plena do interesse público, por fim primordial buscado pela atividade estatal, faz-
se necessário que o Poder Público atue de forma efetiva perante os administrados,
podendo, contudo, no realizar de suas atividades causar danos à terceiros, por
meio de comportamentos materiais ou omises, que devem indubitavelmente,
serem reparados, como forma de resguardar a confiança do administrado em seus
administradores.
80
É preciso ressaltar, todavia, que, em alguns casos, muito embora esses
inconvenientes se façam presentes, deveo ser tolerados pela sociedade.
Isso porque se mostram plenamente adequados ao pprio atendimento do bem
comum.
Corrobora a tese afirmada o pensamento de Octavio Pelucio Ottoni Pizato:
Com efeito, situações em que o interesse privado deva ser sacrificado para que
haja a satisfação de um interesse coletivo, ou seja,blico. Note-se que ambos os
interesses neste caso o tutelados pelo Estado, porém, por circunstâncias diversas,
não pode o Estado satisfazer o segundo sem que isto importe em reais supressões
ao direito de outrem, dando-se, a equivancia destes direitos sob a égide do
princípio da legalidade que por sua vez é consagrado pelo ordenamento judico
pátrio vigente.
81
Tal se dará, por exemplo, nas hiteses de exercício de qualquer dos poderes de que
é investida a administração pública no desempenho das atividades que lhe o próprias, desde que
não se afigure abuso ou ilegalidade.
Quanto aos poderes outorgados ao Estado, a doutrina administrativista m-nos por
instrumentos postos à disposão do Poder blico para melhor fazer valer a atuação do Estado no
atendimento ao interesse público.
Sua natureza instrumental faz, assim, com que se distingam dos já mencionados
Poderes do Estado.
A esse respeito, inclusive, Hely Lopes Meirelles lecionava.
Para bem atender o interesse público, a Administrão é dotada de poderes
administrativos distintos dos poderes poticos consentâneos e proporcionais
aos encargos que lhe são atribuídos. Tais poderes são verdadeiros instrumentos de
trabalho, adequados à realizão das tarefas administrativas. D serem
considerados poderes instrumentos, diversamente dos poderes poticos, que são
80
MESSIAS, Frederico dos Santos. Responsabilidade da administração pública. Neofito. Disponível em:
<http://www.neofito.com.br/artigos/art01/admin34.htm>. Acesso em: 20 jul. 2007.
81
PIZATO, Octavio Pelucio Ottoni. Breve histórico da responsabilidade extracontratual do Estado e seu
tratamento no direito positivo brasileiro. Jus navigandi. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5272>. Acesso em: 20 jul. 2007.
56
estruturais e ornicos, porque compõem a estrutura do Estado e integram a
organizão constitucional.
82
A despeito da relencia que possa ter cada um deles, em fuão do já apontado
dever de racionalização da pesquisa, ganham especial importância, no momento, as considerações
acerca do poder de polícia do Estado.
Esse é o poder que tem a administração de limitar a esfera de atuação dos direitos
individuais, de forma a melhor adequar o exercício desses ao perfeito atendimento do interesse
coletivo. A doutrina administrativista não logrou bom êxito na tentativa de buscar uma conceituação
única para esse poder. Prova disso é a inúmera variedade de conceitos encontrados nas mais
diversas obras existentes.
Aproveitamo-nos, aqui, novamente, das lições expendidas por Hely Lopes
Meirelles:
Poder de pocia é a faculdade de que dispõe a Administrão Pública para
condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em
benefício da coletividade ou do pprio Estado.
Em linguagem menos cnica, podemos dizer que o poder de polícia é o
mecanismo de frenagem de que dispõe a Administração blica para conter os
abusos do direito inidividual. Por esse mecanismo, que faz parte de toda
Administração, o Estado dem a atividade dos particularidasdes que se revelar
contria, nociva ou inconveniente ao bem-estar social, ao desenvolvimento e à
segurança nacional.
83
Muito embora se trate de maria essencialmente afeita ao Direito Administrativo, e
que tem ali as suas bases, vem do Direito Tributário a melhor abordagem acerca do tema. Isso, em
rao de constituir o exercicio regular desse poder uma das hiteses de incincia da espécie
tributária taxa
84
. Prova disso se encontra na doutrina de Hugo de Britto Machado:
Antes do advento do CTN, os administrativistas conceituavam o poder de
polícia como a faculdade discricioria da Administrão Pública de restringir e
condicionar o exercio dos direitos individuais com o objetivo de assegurar o
bem-estar social.
Exercendo o poder de polícia, ou mais exatamente, exercitando atividade fundada
no poder de pocia, o Estado impõe restrições aos interesses individuais em favor
do interesse blico, conciliando esses interesses.
85
Mas, se por um lado o se conseguiu extrair um perfeito delineamento doutrinário
para o conceito desse poder, o mesmo o se pode dizer em relação ao legislador.
82
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 31. ed. o Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 116.
83
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 31. ed. o Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 131.
84
Art. 145, inciso II, primeira parte, da Constituão Federal.
85
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 26. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 422.
57
Esse, no artigo 78 do digo Triburio Nacional, o somente forneceu-nos
conceituação bastante segura desse poder, como, também, estabeleceu os parâmetros em que o
exercício constituirá atuão legítima, adequada e proporcional, e, assim, de observância coercitiva
por parte dos administrados.
Considera-se poder de polícia a atividade da Administrão Pública que, limitando
ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a ptica de ato ou
abstenção de fato, em razão do interesse público concernente à segurança, à
higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da prodão e do mercado, ao
exercio de atividades ecomicas dependentes de concessão ou autorizão do
Poder blico, à tranilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos
individuais ou coletivos.
86
Assim, uma vez que o exercício desse poder se nos estritos limites exigidos pela
lei constituindo-se, portanto, em atuação regular do Estado , estará o particular obrigado a se
sujeitar a ele, o lhe sendo reconhecido o direito de opor qualquer resistência.
A doutrina aponta diversos exemplos de atuação regular do poder de pocia do
Estado.
Pode ser mencionado, aqui, o dever que têm os proprietários de iveis urbanos de
não edificar sobre determinada área da propriedade de que o titulares, com a finalidade de
proporcionar à municipalidade a instalação de instrumentos blicos, tais como as calçadas, dentre
outros. A jurispruncia, instada a se manifestar a respeito do dever mencionado, assim deixou
expresso:
PROPRIEDADE Área non aedficandi Margem de rodovia Área sujeita ao
poder de pocia da DERSA, devendo eventuais projetos ser por ela apreciados
Ação improcedente Recurso provido (Relator: Scarance Fernandes Apelação
Cível n. 177.074-2 São Vicente 18.8.92).
87
Outro exemplo -se nas hiteses em que se impõe ao particular a demolição de
um ivel de que seja titular, que amea ruir e, com isso, danificar a propriedade alheia.
MANDADO DE SEGURANÇA Objetivo Permanência de atividade
comercial em prédio ameaçado de rna Inadmissibilidade Recurso provido
para denegar a segurança. Administração Pública agiu dentro de seu poder de
polícia, garantindo a seguraa da coletividade, uma vez que o pdio estava
ameado de desabamento. Nessa hipótese não há que se falar em ilegalidade
administrativa (Relator: Flávio Pinheiro – Apelãovel 138.854-1o Roque
09.04.91).
88
86
Artigo 78 do Código Triburio Nacional.
87
Extraído da Biblioteca Virtual do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Disponível em:
<http://www.biblioteca.tj.sp.gov.br/acervo/principal.nsf/Result_Juris?OpenForm&ID=22382&FORM=.>.
Acesso em: 16 ago. 2007.
88
Extraído da Biblioteca Virtual do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Disponível em:
<http://www.biblioteca.tj.sp.gov.br/acervo/principal.nsf/Result_Juris?OpenForm&ID=19375&FORM=.>.
Acesso em: 16 ago. 2007.
58
Nesses casos, porém, em face da excepcionalidade, o exercio desse poder somente
ter-se-á por regular, se for atendido, também, o requisito da proporcionalidade, e constituir a única e
última medida à disposição do Poder blico para fazer cessar o perigo.
Os meios devem ser legítimos, humanos e compatíveis com a urncia e a
necessidade da medida adotada. A demolão de obras, a destruição de bens
particulares, o emprego de foa sica, se justificam como expedientes
extremos do Poder Público. Enquanto houver outros modos de realizar a medida
de pocia e outras sanções menos violentas o se autorizam os atos destrutivos
da propriedade, nem interdões sumárias de atividades, nem a coação física para
impedir o exercício de profissões regulamentadas
89
.
É bem verdade que, sempre que se refere ao exercio do poder de polícia, a
primeira iia é a de relacioná-lo ao exercio da atividade administrativa ou executiva do Estado.
Esse, porém, muito embora seja um erro comum, no qual incidem muitos daqueles
que se aventuram na seara do estudo do Direito Administrativo portanto, escuvel –, deve ser
evitado, tanto quanto seja posvel.
Isso porque o exercio desse poder também se faz presente quando da atuação dos
demais Poderes constitdos do Estado.
Veja-se, por exemplo, a edão das leis, no que se relaciona à atividade pica do
Poder Legislativo. Essas, desde que observados os estritos termos do devido processo legislativo
90
,
imem-se à observância dos particulares, independemente da eventual concorncia ou
discordância desses.
O respeito ao devido processo legislativo na elaboração das espécies normativas é
um dogma cororio à observância do princípio da legalidade, consagrado
constitucionalmente, uma vez que ningm será obrigado a fazer ou deixar de
fazer alguma coisa, senão em virtude de escie normativa devidamente elaborada
pelo Poder competente, segundo as normas de processo legislativo constitucional,
determinando dessa forma a Carta Magna quais os órgãos e quais os
procedimentos de crião das normas gerais, que determinam, como ressaltado
por Kelsen “não só os órgãos judiciais e administrativos e o processo judicial e
administrativo, mas também os conteúdos das normas individuais, as decisões
judicias e os atos administrativos que devem emanar dos aplicadores do direito”.
91
Importa-nos mais de perto, pom, a atuão do Estado pela via jurisdicional.
Mas, para o corrermos o risco de nos alongar no aprofundamento do tema,
tenhamos como parâmetro de consideração a prática da conduta criminosa.
89
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 31. ed. o Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 141.
90
Artigos 59 e seguintes da Constituição Federal.
91
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2002. p. 524.
59
Nesse ponto, temos que a saão penal pode ser considerada como exemplo de
exercício do poder de pocia pelo Estado. Vejamos.
Quanto às infrões penais, é sabido que a lei exige a previsão da conduta
criminosa, am da sanção a ela respectiva, anteriormente à ptica dessa.
É esse, inclusive, um dos postulados do sistema judico-penal vigente
92
: não há
crime sem lei anterior que o defina, o pena sem prévia cominão legal nullum crimen,
nulla poena sine praevia lege
93
.
Trata-se de uma garantia que toca ao indiduo, de o ter um comportamento seu
indevidamente criminalizado, seo quando se trate de um fato que a própria lei considere contria
ao direito e, portanto, passível de punão.
Fernando Capez, a esse respeito, assim se expressa:
Trata-se de garantia constitucional fundamental do homem. O tipo exerce fuão
garantidora do primado da liberdade porque, a partir do momento em que se pune
alguém pela prática de crime previamente prevista definido em lei, os membros da
coletividade passam a ficar protegidos contra toda e qualquer invasão arbitrária do
Estado em seu direito de liberdade. O princípio contém uma regra segundo a
qual ningm poderá ser punido pelo poder estatal, nem sofrer qualquer violação
em seu direito de liberdade e uma exceção, pela qual os indivíduos somente
seo punidos se, e quando, vierem a praticar condutas previamente definidas em
lei como indeseveis
Podemos, portanto, assim resumir: o prinpio da legalidade, no campo penal,
corresponde a uma aspirão básica e fundamental do homem, qual seja, a de ter
uma proteção contra qualquer forma de tirania e artrio dos detentores do
exercio do poder, capaz de lhe garantir a convivência em sociedade, sem o risco
de ter sua liberdade cerceada pelo Estado, a não ser nas hipóteses previamente
estabelecidas em regras gerais, abstratas e impessoais.
94
Alberto Silva Franco, também em lição sobre o tema, citando Gonzalo Rodrigues
Mourullo, leciona:
A origem e o predominante sentido do princípio da legalidade foram
fundamentalmente poticos, na medida em que, através da certeza jurídica ppria
do Estado de Direito, se cuidou de obter a seguraa potica do cidao. Assim
Sax acentua que o princípio do nullum crimen nulla poena sine lege é
conseqüência imediata da inviolabilidade da dignidade humana, e Arthur
92
Artigos 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal e 1º do Código Penal.
93
Heleno Cláudio Fragoso, em lição sobre o tema, deixa expresso: “Essa regra básica denomina-se princípio da
legalidade dos delitos e das penas ou princípio da reserva legal, e representa importante conquista de índole
política, inscrita nas Constituições de todos os regime democráticos e liberais” (Lições de direito penal:
parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 89).
94
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 37-38.
60
Kauffmann o considera como um prinpio concreto de Direito Natural que se
impõe em virtude de sua própria evidência.
95
A garantia apontadao se encerra, porém, na mera necessidade de previsão
legislativa da conduta.
Faz-se necessário, ainda, que essa mesma lei seja anterior à própria conduta
perpetrada pelo agente, de forma a se vedar a atribuição de crimes a situões determinadas ou
pontuais, ou, como leciona Fvio Augusto Monteiro de Barros, A lei que cria o crime e a pena
deve ser anterior ao fato que se pretende punir.”
96
Instado a se manifestar acerca da existência e do alcance do citado prinpio, o
Supremo Tribunal Federal assim entendeu:
Penal. Habeas corpus. Prinpio da anterioridade da lei. Desrespeito. ão penal.
Trancamento. O prinpio do nullum crimen, nulla poena sine lege praevia,
inscrito no art. , XXXIX, da Carta Magna, e no art. 1º, do Código Penal,
consubstancia uma das colunas centrais do Direito Penal dos pses democráticos,
não se admitindo qualquer tolencia sob o argumento de que o fato imputado ao
denunciado pode eventualmente ser enquadrado em outra regra penal. Se ao u
imputa-se um fato que somente em lei posterior veio a ser definido como crime, a
denúncia o tem vitalidade por ferir o princípio da anterioridade, impondo-se o
trancamento da ação penal. Recurso ordinário provido. Habeas corpus
concedido.
97
Portanto, uma vez que essa previo se dê de forma antecedente à conduta
perpetrada pelo agente, esse passa a conhecer, de anteo, as conseqüências da suaão na órbita
jurídica, o podendo a elas se opor, exceto quando a sua conduta tenha sido motivada por alguma
das causas excludentes da ilicitude previstas na lei penal
98
.
Não nos descuidemos, ainda, de considerar que a imposição da pena, no caso
concreto, somente se dará as observado o devido processo legal, como, als, determina o
ordenamento jurídico vigente
99
.
Quis-se com o que foi expendido até o momento demonstrar que na grande maioria
das relações em que o Estado se faça, de qualquer modo, presente, os eventuais inconvenientes
suportados pelos indivíduos devem ser entendidos como mera decorrência necessária ao próprio
atendimento do bem comum, e devem, por essa rao, ser tolerados por esses,o lhes sendolido
opor nenhuma resistência.
95
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral. 9. ed.o Paulo: Saraiva, 2005. p. 38. Nota 29.
96
BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 55.
97
RHC 8.171 – CE – DJU de 5-4-1999. p. 153.
98
Artigo 23, caput, do Código Penal.
99
Artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal.
61
Em outras ocasiões, contudo, o comportamento adotado por aquele que se encontra
no exercio do poder – ainda que de forma temporária nem sempre se coaduna com o que lhe é
exigido.
Nesses casos, os inconvenientes extrapolam os limites do tolerável, passando a
afetar, de forma mais direta, o âmbito das relações Estado versus indivíduo, acarretando uma rie
de danos.
Passa-se a exigir do ordenamento judico, então, a solução desses novos conflitos.
Ou, como prefere Maria Helena Diniz:
Deveras, a todo instante surge o problema da responsabilidade civil, pois cada
atentado sofrido pelo homem, relativamente à sua pessoa ou ao seu patrimônio,
constitui um desequilíbrio de ordem moral ou patrimonial, tornando
imprescindível a criação de soluções ou redios que nem sempre se
apresentam facilmente, implicando indagações maiores que sanem tais lees,
pois o direito não pode tolerar que ofensas fiquem sem reparação. Quem deverá
ressarcir esses danos? Como se operará a recomposição do status quo ante e a
indenização do dano? Essa é a tetica da responsabilidade civil.
100
Nasce, aqui, a iia de uma eventual responsabilizão do Estado, que, nas palavras
de Yussef Said Cahali, deve ser entendida comoa obrigão legal que lhe é imposta, de ressarcir os
danos causados por suas atividades a terceiros”
101
.
3.2 Dos fundamentos da responsabilizão do Estado
O estabelecimento do exato modelo no qual se encaixa o estudo da teoria da
responsabilidade do Estado constitui tarefa sobremaneira árdua e complexa.
Essa é a rao pela qual, ainda hoje, podemos notar uma extensa fileira de autores
que se debram sobre os seus delineamentos.
Isso porque a idéia da imposição de um dever ao Estado de responder pelo eventual
prejuízo suportado por um indiduo que, de ordinário, dever-lhe-ía submissão decorre diretamente
da própria teoria geral da responsabilidade civil essa, porém, especificamente aplicável no âmbito
das relações judicas havidas entre particulares.
100
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro.16. ed. 7. v. Responsabilidade Civil. São Paulo:
Saraiva, 2002. p. 3.
101
CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do estado. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, [1995]. p. 1
62
Não é demais lembrar que as relações em que o Estado participe seja
como parte, seja enquanto detentor de interesse preponderante constituem mera
decorrência das relações jurídicas havidas entre os particulares.
Essas relações, todavia, marcadas que são pelo traço caractestico da
autonomia privada hoje delimitada pelos ditames da boa-fé objetiva, da probidade e da
função social dos contratos –, passaram a exigir dos estudiosos do tema da
responsabilidade pública a busca por um novo fundamento para a imposição da
obrigação de indenizar
102
.
Isso, em razão dos interesses envolvidos nessas relações, sobretudo em rao da
aplicação do chamado regime jurídico de Direitoblico, com o predomínio de seus princípios e de
regras próprias e derrogarias do regime jurídico de Direito Privado.
Assim, a forma de aplicação da teoria da responsabilidade civil oriunda do direito
romano o mais poderá servir-nos na sua inteireza.
A doutrina, inclusive, já atentava para isso
103
.
Élcio Trujillo, também em lão sobre o tema, deixa expresso:
Portanto, subdivide-se a responsabilidade em duas categorias: a de
direito privado, própria do Direito Civil e a de Direito blico,
pertinente ao Direito Administrativo.
Quanto à primeira, instituto milenar, tem suas bases no direito romano e
se fundamenta na ilicitude do ato lesivo e na culpa do agente causador
do dano, admitindo em casos excepcionais a definição da
responsabilidade fundada no risco.
Já a segunda, informada por princípios publicísticos, exorbitantes e
derrogatórios do direito comum, tem cerca de uma centena de anos.
Surgiu praticamente com o Direito Administrativo, como criação
jurisprudencial, a contar da sempre lembrada decisão do Tribunal de
Conflitos da França o famoso caso Blanco.
104
Cabe, por fim, mencionar os ensinamentos de Lair da Silva Loureiro Filho
a esse respeito:
Apesar de originária da milenar responsabilidade civil (da qual
decorrem talvez quase todos os institutos jurídicos), afirma-se a
autonomia da responsabilidade pública, por seus diversos fundamentos
e objetivos, pertencendo a essência daquela não apenas ao Direito
Privado, mas à Teoria Geral do Direito, ensejando, portanto,
102
Arts. 421 e 422 do Código Civil (Lei n. 10.406/02).
103
A esse respeito, Odoné Serrano Júnior afirma: “Em verdade, do direito civil vêm os conceitos básicos de
conduta, dano indenizável, nexo causal, dentre outros. Porém, o regime jurídico de direito público derroga
todas as regras de direito privado, no que dispuser em contrário (Responsabilidade civil do estado por atos
judiciais. Curitiba: Juruá Editora, 1996. p. 47-48).
104
TRUJILLO, Élcio. Responsabilidade do Estado por ato lícito. São Paulo: Editora de Direito, 1995. p. 34.
63
tratamentos diferenciados em consonância com a hipótese fática
tratada.
105
Será preciso, assim, remodelar e adequar conceitos, de modo a se
estabelecer a exata forma pela qual o instituto passará a ser aplicável.
Muito embora se afigurasse plenamente possível traçar os fundamentos da
responsabilização do Estado, sob a ótica do Direito Público, nesse momento, creio que
essa análise em muito se identifica, e até mesmo se confunde com as teorias formuladas
a respeito do tema.
Assim, preferi tratar os fundamento e teorias em conjunto, novamente
procurando conferir certa dinâmica ao presente trabalho.
Adianto-me, todavia, no sentido de que toda a teoria até então
desenvolvida acerca da responsabilidade do Estado tem, como escopo último, a
observância do princípio ético da vedação do locupletamento ilícito ou indevido de uma
das partes da relação jurídica em relação à outra.
O citado princípio, muito embora se traduza em disposição implícita no
ordenamento jurídico vigente, corresponde verdadeiramente a uma garantia estabelecida
em favor da vítima, no sentido de que não ficará a descoberto ante o eventual
cometimento de qualquer ato ilícito ou cito por parte de qualquer dos Poderes do
Estado.
3.3 Teorias adotadas
Já se disse constituir o Direito um reflexo do fenômeno social, traduzindo-
se em verdadeira conquista dos povos.
O desenvolvimento desta pesquisa demonstrou que o mesmo se pode dizer
do próprio Estado.
A despeito disso, é notória a incapacidade do ordenamento jurídico de
fazer frente às inovações a queo submetidos os componentes de um determinado
ordenamento social a cada dia, não acompanhando, com a necesria agilidade, a
dinâmica dos fatos
106
.
105
LOUREIRO FILHO, Lair da Silva. Responsabilidade pública por atividade judiciária. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2005. p. 27.
106
Não nos esqueçamos de mencionar, por óbvio, que uma diversidade de fatores atua, porém, no sentido de influenciar a
forma pela qual essas normas incidiriam sobre uma ou outra comunidade, tais como a ideologia, a cultura e a religião,
64
Como conseqüência, não raras vezes, essas transformações sociais, ao
ingressar no ordenamento jurídico de um determinado Estado tornando-se aptas,
assim, a irradiar validamente os seus efeitos
107
já carecem de uma alteração.
Essa observação, além de legitimar a afirmação de que o ordenamento
jurídico jamais se mostrará suficientemente amplo a ponto de amparar todas as hipóteses
em que seja instado a oferecer a solução devida aos conflitos de interesses havidos nas
relações entre os indivíduos, revela a dinâmica do próprio Direito, afastando-o de
dogmas e conceitos estanques.
E, aliás, não é a reformulação cotidiana do conhecimento uma forma de
engrandecimento do pprio homem?
Partindo das idéias até então apontadas, resta-nos no presente tópico
analisar as etapas pelas quais passou o ordenamento jurídico até se alcançar o que hoje
se pode chamar de teoria da responsabilidade do Estado. Isso, em razão de constituir a
referida teoria, também, uma tradução do estágio histórico-evolutivo pelo vem passando,
também, o ser humano.
A forma pela qual se dá a responsabilização estatal em muito diverge da
aplicável às relações judicas de Direito Privado.
Enquanto nesse segundo grande ramo do Direito sempre prevaleceu a
regra da vedação do locupletamento indevido ou desprovido de causa que o legitime o
que, desde o início, assume contornos nitidamente principiológicos , no Direito Público
a presença do Estado na relação jurídica fez com que, num primeiro momento, fosse
reconhecida a impossibilidade de se determinar a responsabilização desse ente uma
vez que dotado do chamado poder de império
108
, para, somente em momento posterior,
partir-se para a adoção da idéia de culpa própria do Direito Privado , e, por fim,
verificar-se a eficácia do modelo atual, absolutamente alheio à verificação da culpa,
assumindo a responsabilidade feição nitidamene publicista. Abstrai-se com isso, por
completo, o comportamento do próprio agente.
A primeira fase coincide, portanto, com a chamada doutrina da
irresponsabilidade do Estado.
que ainda hoje permeiam e conformam de forma extremamente marcante as condutas das mais variadas sociedades.
Em alguns países do mundo, por exemplo, a ptica do aborto e a união poligâmica o aceitos como válidos.
107
É preciso distinguir, porém, entre o que seja a eficia da norma e a sua efetividade. A primeira diz com a aptio que
tem a norma mandamento de um comportamento tido como normal e aceitável de irradiar validamente os seus
efeitos, dirigida ao exterior. A efetividade, por sua vez, se refere à aplicão concreta da norma.
108
Por vezes, o poder de imrio do Estado confundia-se com a própria pessoa do governante, sendo, assim, causa de um
sem-número de barbaridades por esse cometidas.
65
Própria dos regimes absolutistas e totalitários, deitava seus fundamentos
na idéia de soberania estatal, sem o que a submissão aos preceitos ordenados pelo
detentor do poder ter-se-ia por absolutamente inviabilizada.
Merece transcrição, nesse ponto, a doutrina de Lair da Silva Loureiro
Filho sobre o tema:
A teoria da irresponsabilidade estatal, também denominada regalista ou
regaliana pode ser estabelecida a partir de três fundamentos: a soberania
do Estado diante do súdito, em relação ao qual é subordinante; a
impossibilidade de aparecer como violador do direito, se é ele mesmo
que o organiza e aplica; a impropriedade de ter-se como atos do Estado
aqueles praticados por funcionários, devendo tais atos serem atribuídos
pessoalmente.
109
Na parte final da citação apresentada, é posvel perceber que os atos danosos
oriundos do exercício das atividades estatais era atribuível ao próprio funciorio, e o ao próprio
Estado, enquanto pessoa jurídica que é, em absoluta divergência do que hoje é apregoado em
relação ao tema, conforme oportunamente se verá.
Não levou muito tempo a que surgisse o mito da infalibilidade do monarca
110
.
Esse decorria da idéia de ser o detentor do poder a própria representão terrena da
divindade. Era exigido dos súditos, com isso, obediência cega às ordens emanadas do soberano.
Tais ordens deviam ser cumpridas, o sendo lícito a quem quer que fosse opor nenhum tipo de
questionamento.
Na época dos Estados absolutos e despóticos vigorava a autoridade completa do
pncipe, cuja infalibilidade foi secularizada na regra The king can do no wrong”
ou “Le Roi ne peut mal faire. O Estado era o pprio rei e este, sendo infavel,
não cometia erros.
111
Atribuir ao Estado qualquer responsabilidade corresponderia a nivelá-lo à categoria
do dito, o que seria inadmisvel. Mais do que isso, demonstrava-se afrontoso.
Excepciona-se, por óbvio, a situação em que o próprio governante admitia o
excesso. Tal conduta, porém, havia de ser entendida como um gesto decorrente da mera liberalidade
daquele.
109
LOUREIRO FILHO, Lair da Silva. Responsabilidade blica por atividade judicria. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005. p. 48.
110
Embora não constitua objeto da presente pesquisa, não se pode olvidar que em muito auxiliou na construção
do mito citado o apoio incondicional oferecido aos monarcas pela Igreja Católica, igualmente ansiosa pelo
poder. Não deve ser esquecido terem sido alguns Papas verdadeiros reis em seu tempo.
111
TRUJILLO, Élcio. Responsabilidade do Estado por ato lícito. São Paulo: Editora de Direito, 1995. p. 45.
66
A responsabilidade, enquanto vínculo judico, pode-se afirmar ter sido inexistente
a eno.
[...] tampouco existe a possibilidade de algum particular agir em juízo contra o
Estado. Até logicamente é impensável que um particular possa chamar a juízo o
poder blico, salvo se este o permitir, por exceção, a respeito de determinados
atos que, além de ilegais, interessar ao poderblico ver ressarcidos, como
emanação de sua benignidade e zelo para com os súditos. A essa época, é
incorreto falar em responsabilização do Estado, por isso que, como regra, o
particular não tem legalmente qualquer preteno acionável contra o Estado
absolutista; este pode, se o desejar, estabelecer hipóteses em que faça a mercê de
ressarcir o dano, antes como uma liberalidade sua do que como dever, muito
menos como legítimo dever judico.
112
As ordens reais visavam ao bem de todos. Pelo menos era essa a presuão.
Não se admitia, assim, a figura do Estado como violador de direitos.
Eventual dano sofrido pelo administrado advindo do exercício de qualquer das
atividades do Estado, portanto, haveria de ser por ele suportado, como encargo natural da posão de
superioridade detida pelo Estado em face daquele.
A Hisria, todavia, foi testemunha da desconstrução dessa vio romanceada dos
fatos, embora tenham sido os ordenamentos judicos de grande parte dos Estados ainda existentes
nitidamente influenciados por essa doutrina.
A teoria da irresponsabilidade prevaleceu na época dos Estados despóticos ou
absolutos em que vigorava o princípio incontestável: o rei o erra (the king can
do no wrong), dominando absoluto até o século XIX, permanecendo até pouco
tempo, resquícios de tal fase em muitos ordenamentos, mesmo em países
desenvolvidos e de inquestiovel tradição democtica como nos Estados Unidos
(abandonado com a Federal Tort Claim Act, de 1946) e Inglaterra (abandonado
com a Crown Proceeding Act, de 1947).
113
O excessivo poder atribdo à pessoa do governante que, no mais das vezes,
traduzia-se em verdadeiro artrio –, aliada ao surgimento do movimento de outorgar ao Estado de
uma feão democrática dentro da qual se encaixa perfeitamente a iia de um direito natural e
pprio da condão humana
114
, demonstraram o extremado inconveniente da manuteão da
citada teoria, e atuaram de forma a determinar o declínio dessa
115
.
112
SILVA, Juary C. A responsabilidade do estado por atos judiciários e legislativos. o Paulo:
Saraiva, 1985. p. 75-76
113
LOUREIRO FILHO, Lair da Silva. Responsabilidade pública por atividade judiciária. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2005. p. 49.
114
A que, inclusive, já se fez referência em momento anterior do presente trabalho.
115
Não nos é possível afirmar, contudo, tenha esse desaparecimento se dado na sua integralidade.
67
É preciso ressaltar, pom, que nenhuma alteração de paradigma decorre de um ato
meramente isolado. Ao contrário, é fruto de um longo e paulatino processo de assimilação de idéias,
com posterior sedimentação do instituto, cuja variação estará sempre a depender das vicissitudes de
cada Estado.
A imensa gama de responsabilidades deixadas a cargo do Estado fez com que os
acontecimentos danosos deixassem de constituir uma mera eventualidade, passando a ocorrer de
forma cada vez mais presente na realidade das relações sociais.
O poder estatal passa a ser fragmentado. Resta uno quanto à sua essência, tendo sido
dividido em parcelas de atuão entre óros por ele mesmo constituídos.
Passa-se a valorizar o homem, concebendo-o o mais como mero objeto da tutela
do Estado, mas como um sujeito de direitos e deveres na órbita jurídica.
Por conseguinte, percebeu-se a necessidade de que fosse outorgada ao Estado
parcela de responsabilidade. Ainda que em grau diminuto.
A iia aventada coincide, em absoluto, com o relato doutrinário a respeito:
A responsabilidade do Estado outra coisa não é que o subproduto do
constitucionalismo europeu continental e da concepção judico-liberal do Estado,
que em seguida à Revolução Francesa veio suplantar os modelos absolutistas no
solo europeu; a Inglaterra, e depois os Estados Unidos, conquanto imbuídos de
liberalismo talvez até em maior grau do que as nações do Continente, seguiram
nesse particular evolução à parte.
116
Temendo pelo enfraquecimento dos poderes de que eram detentoras, as autoridades
constituídas, na tentativa de estabelecer uma teoria geral das obrigões do Estado, entenderam por
bem fracionar os atos decorrentes do exercício das atividades estatais em duas espécies.
À primeira era resguardada a aplicão do regime jurídico de Direito Público, a que
já se fez refencia, com todas suas prerrogativas. Em contrapartida, submetia-se a uma rie de
sujeões.
Reconhecia-se, por meio desses atos, a absoluta soberania do Estado e a
conseqüente impossibilidade do nivelamento desse ente àqueles que lhe deviam submissão e
obediência, sem as quais o pprio convio social restaria seriamente ameado.
A atividade estatal era exercida enquanto expreso xima do próprio poder
estatal, com todas as suas caractesticas.
E, por essa rao, quanto a esses atos o havia se falar em responsabilização civil
do Estado.
116
SILVA, Juary C. A responsabilidade do estado por atos judiciários e legislativos. São Paulo: Saraiva, 1985. p. 75.
68
Foram esses denominados pela doutrina atos de imrio ou de autoridade.
Atos de império ou de autoridade são todos aqueles que a Administração
pratica usando de sua supremacia sobre o administrado ou servidor e lhes
impõe obrigatório atendimento. É o que ocorre nas desapropriações,
interdições de atividade, nas ordens estatutárias. Tais atos podem ser gerais
ou individuais, internos ou externos, mas sempre unilaterais, expressando a
vontade onipotente do Estado e seu poder de coerção.
117
De outro lado, porém, encontravam-se atos absolutamente despidos das
característica anteriormente mencionadas.
Sendo esses atos de mera administração, incidentes sobre os bens e serviços
públicos, sem qualquer carga de imperatividade em face dos administrados, não traduziam, a
despeito de sua relevância, não mais do que a simples movimentação do aparato estatal. Eram,
por isso, denominados atos de gestão.
Atos de gestão são os que a Administração pratica sem usar de sua
supremacia sobre os destinatários. Tal ocorre nos atos puramente de
administração dos bens e serviços públicos e nos negociais com os
particulares, que não exigem coerção sobre os interessados.
118
Equivaliam a esses atos aqueles desenvolvidos pelo Estado com fim puramente
negocial.
Não se encontravam nos atos de gestão quaisquer resquícios da soberania
estatal, estando o Estado absolutamente nivelado aos particulares. O Estado se despia de sua
soberania. De lhes ser aplicável, portanto, o regime jurídico próprio dos atos civis.
O mesmo se diga em relação à eventual responsabilização do Estado.
Essa passou a ser regida pelas disposições constantes do Código Civil.
Os benefícios da adoção desse novo paradigma foram inúmeros, podendo ser
destacado, numa análise imediata, o fato de se ter reconhecido o Estado como ente violador de
direitos.
A despeito da importância que se possa outorgar a um determinado instituto,
esse, todavia, nem sempre escapará do olhar atento dos críticos.
A adoção do sistema de responsabilidade previsto no Código Civil trazia e
ainda hoje traz – ínsita a idéia de culpa. E aqui encontramos a sua falha.
É sabido que dentre os diversos comandos oriundos do sistema processual se
destaca o da outorga do ônus da prova à parte que alega a existência dos fatos que determinam
117
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 31. ed. o Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 165.
118
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 31. ed. o Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 166.
69
a aplicação do direito por ela invocado. Atribui-se à parte contrária, assim, a prova relativa
aos fatos impeditivos, modificativos ou extintivos daqueles
119
.
A doutrina referenda a afirmação acima:
De acordo com o art. 333 do CPC, o ônus da prova incumbe ao autor quanto
ao fato constitutivo de seu direito, e ao réu quanto à existência de fato
impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Essa regra, que
distribui o ônus da prova entre o autor e o réu funda-se na lógica de que o
autor deve provar os fatos que constituem o direito por ele afirmado, mas
não a não existência daqueles que impedem a sua constituição, determinam
a sua modificação ou a sua extinção.
120
Em ação movida contra o Estado, torna-se ao menos razoável supor que, ainda
que se reconheça a possibilidade de eventual condenação, aquele ente se utilizará de todo o
arsenal de que eventualmente disponha para desconstituir os argumentos lançados pelo autor
arsenal com o qual não conta, necessariamente, a parte autora, no mais da vezes
hipossuficiente em relação ao Estado.
A demonstração da culpa estatal torna-se, assim, bastante improvável para
não dizer praticamente impossível de ser alcançada –, subvertendo, assim, toda uma
construção doutrinária acerca da responsabilização do Estado.
Permitir que o Estado assim aja equivaleria a abrir mão de outro dos
postulados do sistema processual vigente, que determina o dever de observância da igualdade
das partes na relação jurídica processual, postulado que deve, a todo custo, ser observado pelo
magistrado na condução do processo
121
.
Ou, como já entendeu o Superior Tribunal de Justiça:
O juiz, no exercício de sua função jurisdicional, não deve concorrer para a
instabilidade das relações jurídicas entre as partes.
122
Todo o sistema criado, com a finalidade precípua de proteção à pessoa da
vítima, restaria seriamente afetado.
Não se pode perder de vista que ao Estado, quando demandado em juízo,
são asseguradas uma série de prerrogativas, tais como a contagem diferenciada dos
prazos processuais
123
.
119
Art. 333, incisos I e II, do Código de Processo Civil.
120
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de processo civil. Processo de
Conhecimento. v. 2. 6. ed. revista, atualizada e ampliada da obra Manual do processo de conhecimento.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 262.
121
Art. 125, inciso I, do Código de Processo Civil.
122
RT 692/182.
123
Art. 188 do Código de Processo Civil.
70
Essas justificam-se não pela soberania detida pelo Estado em face
daqueles que lhe devam sujeição e obediência, mas em razão dos interesses envolvidos
nas relações jurídicas nas quais o Estado, de qualquer modo, se faça presente. Não
devem ser esquecidos os princípios da supremacia do interesse público sobre o
particular e o da indisponibilidade do interesse blico, que regem a atuação do
exercente do poder do Estado e já foram mencionados em momento anterior.
O exercício dessas prerrogativas o pode, portanto, importar supressão
dos interesses titularizados pela própria sociedade, sob pena de desvio de finalidade, o
que equivaleria à utilizão arbitrária do poder por aquele que o detenha.
Mas as críticas à adoção do sistema civilista de culpa não se encerram nas
observações referidas.
É preciso mencionar, ainda, a dificuldade que poderia vir a enfrentar a
vítima no sentido da identificação do autor da conduta culposa, o agente do Estado.
Lembremo-nos de que a idéia de culpa vista sob o prisma de quaisquer
de suas modalidades, a saber, a imprudência, a negligência e a imperícia pressupõe a
atuação pessoal do agente causador do dano.
O exercício das atividades estatais pode se dar tanto de forma direta como
indireta.
Tem-se a atuação direta quando couber ao próprio Estado, por seus órgãos
e entidades, o desempenho das atividades que lhe são atribuídas. A indireta, de outro
lado, pressupõe a prestação daquelas por outro ente, que não o Estado, à sua conta.
Porém, em nome daquele.
Não é desconhecida a imensa gama de atividades que ainda na atualidade
toca ao Estado. Isso, a despeito da suposta adoção do sistema liberal ou neoliberal,
conforme se apregoa.
Assim, nem sempre constituirá tarefa fácil identificar o agente responsável
pela prática do ato causador do dano.
Outras vezes essa identificação é absolutamente inviabilizada, importando
a adoção o sistema civilista da responsabilidade fundado na idéia de culpa num claro
prejuízo à vítima, que, com isso, vê-se duplamente prejudicada.
Num primeiro momento, pelo comportamento danoso advindo do
exercício de quaisquer das atividades do Estado. Depois, por não se lhe ser reconhecido
o direito a mover a competente execução específica contra o ente estatal. Retorna-se,
dessa forma, ao conceito da irresponsabilidade do Estado.
71
O sistema civilista o é mais capaz de atender às necessidades que ora
se impõem.
Mais uma vez, portanto, é a ordem social que passa a demonstrar a
necessidade de criação de um novo sistema de responsabilização civil do Estado. Esse,
porém, agora não mais baseado na idéia de comportamento culposo do agente causador
do dano, mas fundado na idéia do risco assumido pelo Estado quanto às atividades às
quais entendeu por bem se arvorar.
Assim, quando o Estado assume como sendo de sua titularidade a
prestação de determinadas atividades aos particulares, vincula-se, em contrapartida, ao
dever de responder pelos eventuais danos advindos do exercício dessas.
Tem-se, aqui, a adoção de um verdadeiro sistema de custo-benefício. Aos
benefícios oriundos da titularidade de determinadas atividades deve corresponder o ônus
de responder pela indenização de eventuais danos delas advindos.
Significa dizer que o Estado assume, ainda que implicitamente, os riscos
de vir a responder por eventual ação de responsabilização movida pela vítima contra
atos danosos supostamente oriundos do exercício de suas funções.
Não é outra a razão pela qual a doutrina denomina essa teoria de teoria do
risco administrativo.
A responsabilidade decorre, agora, não mais de eventual comportamento
culposo do exercente da atividade administrativa, mas, simplesmente, do risco que o
exercício dessa possa vir a trazer à coletividade.
É subtraída da noção de responsabilidade a idéia de culpa, que, como se
disse, reside num eventual juízo de valor acerca do comportamento humano, num
determinado caso concreto. Essa cede espaço para critérios agora puramente objetivos
de responsabilização do ente estatal.
E é justamente esse o critério distintivo entre as duas teorias que
defendem ser o Estado responsável pelos atos praticados por ele ou em seu nome.
Como conseqüência, a adoção da teoria do risco administrativo, em ação
de responsabilização movida contra o Estado, impõe à vítima a simples comprovação da
efetiva ocorrência do dano, bem como do vínculo que o liga à atividade estatal.
A análise de eventual comportamento culposo daquele que atua em nome
do Estado fica resguardada, porém, à ação regressiva movida por esse em face daquele.
72
Fala-se, agora, em culpa anônima do serviço público, querendo significar
o dever de comprovação pela vítima do mau funcionamento
124
da atividade titularizada
ou prestada pelo Estado.
Ao Estado, por outro lado, caberá a demonstração da incidência, em sendo
caso, das chamadas excludentes de responsabilidade. Essas correspondem a
circunstância imprevisíveis e inevitáveis, que, uma vez configuradas, retiram o caráter
ilícito do fato praticado, ainda que presente o dano.
As causas que determinam a irresponsabilidade são três, a saber, o caso
fortuito ou o de força maior e a culpa exclusiva da vítima.
Em breves linhas, portanto, procuramos delimitar as principais
características de cada uma das teorias adotadas acerca da responsabilização do Estado.
Relevante mencionar, a respeito dessas, a doutrina de Hely Lopes Meirelles:
Sob o domínio dos Governos absolutos negou-se a responsabilidade do
Estado, secularizada na regra inglesa da infalibilidade real “The King can
do no wrong” extensiva aos seus representantes; sob a influência do
liberalismo, assemelhou-se o Estado ao indivíduo, para que pudesse ser
responsabilizado pelos atos culposos de seus agentes; finalmente, em nossos
dias, atribuiu-se à Administração Pública uma responsabilidade especial de
Direito Público.
125
O tema, porém, aqui não se esgota.
Hoje muito se tem discutido acerca da necessidade de adoção de um sistema de
risco integral de responsabilização do Estado. Esse sistema estabelece que o risco de causação
de danos é ínsito a determinadas atividades, tais como a exploração de energia atômica.
Partindo-se dessa premissa, não se poderia admitir a invocação de qualquer das
excludentes de responsabilidade pelo Estado.
Ocorre, porém, que inviabilizar a invocação das excludentes anteriormente
mencionadas corresponderia a uma injustiça aos concidadãos como um todo, uma vez que
poderia vir a impor ao Estado e, conseqüentemente, ao povo, uma obrigação que pode não
decorrer, necessariamente, do exercício de uma atividade sua, mas do comportamento da
própria vítima, por exemplo.
124
A má prestação do serviço público estará configurada sempre que a atividade a ser prestada pelo Estado for
inexistente, ou quando, embora existente, funcionar inadequadamente para os fins a que se presta ou de
forma tardia.
125
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 31. ed. o Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 664.
73
Assim, não nos descuidando do devido acatamento e respeito àqueles que
defendem essa última teoria, cremos que a teoria do risco administrativo ainda corresponde às
expectativas exigidas pela sociedade.
3.4 Direito brasileiro
Muito embora o tema da responsabilidade civil ainda se mostre bastante
recorrente no Brasil, é plenamente possível afirmar ter ele atingido grau de maturidade
suficiente a ponto de garantir à vítima o direito à indenização. Isso, porém, quando se leva em
consideração apenas o texto constitucional vigente.
Não se pode jamais perder de vista, contudo, as construções do instituto ao
longo da história. Isso porque não é esse senão o reflexo da evolução cultural do nosso povo.
A doutrina aponta-nos que, a despeito de ter o Brasil vivenciado, num passado
recente, um período de monarquia, sempre teria prevalecido no ordenamento jurídico nacional
a doutrina da responsabilização do Estado.
O raciocínio, todavia, muito embora tenha a sua razão de ser, deve ser
resguardado ao período posterior ao colonial, que nesse imperava a idéia da plena
irresponsabilidade do Estado.
A doutrina compartilha do entendimento esposado:
No Brasil Colônia dominou, de modo incontestável, a idéia da plena
irresponsabilidade do Estado. Com a independência, muda-se a situação e
passa-se a admitir que o Estado seja responsável pelos atos ou omissões
ilícitas de seus agentes.
126
Com o atingimento da independência política, o ordenamento jurídico
brasileiro adota ainda que de forma não expressa a idéia da plena responsabilização por
eventuais danos oriundos do exercício das atividades estatais. Isso corresponde ao
reconhecimento do Estado como ente violador da própria ordem jurídica.
Mas não propriamente.
126
LOUREIRO FILHO, Lair da Silva. Responsabilidade pública por atividade judiciária. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2005. p. 71.
74
Em verdade, o que se tinha era a hipótese de responsabilização pessoal do
agente, na medida em que era exigida da tima a demonstração e identificação tanto do
evento danoso quanto do agente que supostamente teria dado causa àquele.
O texto da Constituição Imperial de 1824, em seu artigo 179, inciso XXIX, é
expresso nesse sentido: “Os empregados públicos são estritamente responsáveis pelos abusos,
e omissões praticados no exercício de suas funções, e por não fazerem efetivamente
responsáveis aos seus subalternos”.
A questão da responsabilidade residia, dessa forma, não na figura do Estado,
pessoa jurídica que é, mas na do próprio funcionário. Alguns autores defendem, todavia,
pudesse o Estado ser responsabilizado de forma solidária.
De idêntica inspiração o texto da Constituição Republicana de 1891: “Os
funcionários públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões em que
incorrerem no exercício de seus cargos, assim como pela indulgência, ou negligência em não
responsabilizarem efetivamente aos seus subalternos”
127
.
Coube a uma série de outras leis tratar do tema, sempre, porém, de forma
esparsa.
Esse panorama começa a se alterar com a entrada em vigor do Código Civil de
1916, que, em seu artigo 15, tratava da responsabilização do Estado: “As pessoas jurídicas de
Direito Público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa
qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a
dever prescrito por lei, salvo o direito de regresso contra os causadores do dano”.
A repercussão da nova legislação sobre a doutrina administrativista foi,
também, bastante intensa. Esse estatuto das relações jurídicas individuais passou a prever a
responsabilidade como dever que toca ao próprio Estado, resguardando-se a esse o direito de
regresso contra o agente causador do dano.
Percebeu-se que as ações e omissões praticadas pelo causador do dano
haveriam de ser imputadas ao próprio Estado, que aquele agia em representação e no
interesse daquele. É essa, inclusive, a gênese do que hoje se conhece por teoria do órgão.
Estabeleceu-se, com isso, a delimitação de duas relações jurídicas
absolutamente diversas. A primeira delas, movida pela vítima contra o Estado. A segunda,
contrapondo Estado e funcionário.
127
Art. 82.
75
Era ainda, contudo, demandada da vítima não somente a prova do dano mas,
também, do comportamento culposo, tanto do Estado quanto daquele que atuava em seu
nome
128
.
O Código Civil de 1916 trouxe inúmeras benesses ao desenvolvimento do
tema da responsabilidade civil do Estado, conforme se viu, é bem verdade.
Tanto que passa a ser o sistema imperante nos textos constitucionais que a ele
se seguiram, com algumas nuances.
A Constituição Federal de 1934
129
– no que foi seguida pela de 1937
130
– assim
estabelecia: “Os funccionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda
Nacional, Estadual ou Municipal, por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão
ou abuso no exercício de seus cargos”.
Percebe-se que a solidariedade dizia respeito, agora, ao funcionário público,
sendo a responsabilidade própria da pessoa jurídica.
Ocorre, contudo, que o desenvolvimento das relações Estado versus indivíduos
fez aflorar a percepção de que nem sempre os resultados danosos advêm de um
comportamento ilícito praticado por aquele ente central.
Começa a ganhar cada vez mais espaço a idéia de abuso do direito, no mais das
vezes praticado por aquele que se encontrava no exercício do poder.
O sistema civil de outrora, portanto, baseado na rígida distinção entre
comportamentos lícitos e ilícitos, passa a não mais servir na sua inteireza.
Coube à Constituição Federal de 1946 afastar do sistema da responsabilidade
estatal a idéia de culpa, fundando a ação da vítima contra o Estado no visto risco
administrativo. Previa o texto constitucional: “As pessoas jurídicas de direito público interno
são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a
terceiros. Caber-lhe-á ão regressiva contra os funcionários causadores do dando, quando
tiver havido culpa destes.”
131
Responsabiliza-se, assim, o Estado num primeiro momento, resguardando-se-
lhe o direito de mover a competente ação regressiva contra o agente causador do dano. Essa,
sim, baseada na culpa.
128
Em relação ao Estado,tratava-se da chamada culpa in eligendo, ou seja, o Estado não se teria cercado das
cautelas necessárias para a escolha daquele que age na sua representação.
129
Art. 171.
130
Art. 158.
131
Art. 194.
76
Os textos das Constituições de 1967 e da Emenda Constitucional n. 1, de 1969,
prevêem dispositivos em idêntico sentido
132
.
O texto constitucional em vigor manteve intacta a doutrina da
responsabilização civil objetiva do Estado.
Inovou, todavia, ao estender o rol daqueles que a essa encontram-se
submetidos, de forma a alcançar, também, as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras
de serviço público, no que andou bem o legislador constituinte.
Assim é que, conforme estabelece o artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição
Federal de 1988: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras
de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a
terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
Quanto ao exercício da atividade administrativa pelo próprio Estado ou por
seus órgãos de forma direta, portanto ou indiretamente, pela via de personalização de
determinadas entidades com a finalidade específica de prestação de serviços públicos
determinados – pessoas jurídicas de direito público, a saber, autarquias e fundações públicas –
, o texto constitucional é bastante elucidativo. E nem poderia ser de outro modo, na medida
em que essas constituem-se em verdadeira exteriorização do próprio Estado ou, como se
costuma dizer, em longa manus do Estado.
O mesmo se diga em relação à hipótese de exercício descentralizado de
serviços públicos por pessoas jurídicas de direito privado, que têm autorizado o seu
funcionamento por ato do próprio Estado – empresas públicas e sociedades de economia mista
e constituem forma bastante comum nos dias atuais. Ora, nada mais justo do que outorgar
ao Estado a responsabilidade pelos atos dela decorrentes.
A expressão utilizada pelo legislador constituinte, contudo, mostra-se bastante
ampla, de modo a abarcar, também, a atividade prestada pelos concessionários e
permissionários de serviço público.
A esses, porém, outorga-se a responsabilização objetiva, sendo própria da
pessoa jurídica constituída. Significa dizer, assim, que o Estado somente será instado a
responder a eventual ação de responsabilização de forma subsidiária.
Muito embora se tenha atribuído ao Código Civil de 1916 a glória de ter sido a
primeira lei a tratar, de forma geral, da questão da responsabilidade do Estado, não deve ser
esquecido o advento da lei n. 11.406/02, que, tendo revogado aquele, previu, agora de forma
132
Artigos 105 e 107, respectivamente.
77
expressa, a aplicação da teoria do risco administrativo, nos termos do que estabelece o artigo
927, parágrafo uníco, aqui transcrito: “Haverá obrigação de reparar o dano,
independentemente de culpa, nos casos especificados pela lei, ou quando a atividade
normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os
direitos de outrem”.
78
CAPÍTULO 4 DA RESPONSABILIDADE DO ESTADO PELO ATO ORIUNDO DO
EXERCÍCIO DA ATIVIDADE JURISDICIONAL
4.1 Do exercício da atividade jurisdicional pela via do processo
O estudo da responsabilização do Estado deve abranger, tamm, uma alise das
funções desempenhadas pelos óros e pelas pessoas judicas por ele criados e que passam, assim,
a representá-lo no exercício das atribuições que lhe são pprias.
Isso se justifica pelo fato de, sendo o Estado ente abstrato, o dem o atributo da
atuação pessoal, exceto no que se refere a questões de cater eminentemente potico
133
. Essa, no
entanto, -se por intermédio dos óros e das pessoas jurídicas criadas por aquele ente. Ou, como
ensina Marcello Caetano:
O órgão faz parte da pessoa coletiva (pessoa jurídica), pertence ao seu ser,
exatamente como acontece com os órgãos da pessoa humana. É através dos seus
órgãos que a pessoa coletiva conhece, pensa e quer. O órgão o tem existência
distinta da pessoa; a pessoa não pode existir sem órgãos. Os atos dos órgãos o
atos da própria pessoa e tudo quanto diz respeito às relações entre os diversos
órgãos da mesma pessoa coletiva tem cater meramente interno.
134
Os efeitos dos atos decorrentes da atuação daqueles óros e pessoas seo
imputados, porém, ao próprio Estado. Inclusive no que tange à responsabilidade. É o que se
denomina vínculo de imputão, a cujo respeito leciona Hely Lopes Meirelles:
A atuão dos óros é imputada à pessoa judica que eles integram, mas
nenhum órgão a representa judicialmente. A representação legal da entidade é
atribuão de determinados agentes (pessoas sicas), tais como os Procuradores
judiciais e administrativos e, em alguns casos, o próprio Chefe do Executivo
(CPC, art. 12, I, II e VI). o se confunda, portanto, a imputação da atividade
funcional do órgão à pessoa jurídica com a representão desta perante a Justa
ou terceiros: a imputação é da atuão do óro à entidade a que ele pertence; a
representação é perante terceiros ou em juízo, por certos agente.
Não entre a entidade e seus óros relação de representação ou de mandato,
mas sim de imputação, porque a atividade dos órgãos identifica-se e confunde-se
com a da pessoa judica.
135
E continua:
133
Art. 21, inciso I, da Constituição Federal.
134
CAETANO, Marcello. Manual de direito administrativo. Lisboa, 1965. p. 154.
135
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 31. ed. o Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 69.
79
D por que os atos dos órgãos o havidos como da ppria entidade que eles
comem. Assim, os órgãos do Estado são o próprio Estado compartimentado em
centros de compencia, destinados ao melhor desempenho das fuões estatais.
Por sua vez, a vontade psíquica do agente (pessoa física) expressa a vontade do
órgão, que é a vontade do Estado, do Governo e da Administrão.
136
O caráter distintivo entre a responsabilização pelos atos praticados pelos óros e a
pelos atos das pessoas jurídicas criadas pelo Estado reside, justamente, no fato de ser concedida às
segundas personalidade jurídica própria, o que determina seja o Estado instado a responder pelos
atos por elas praticados apenas em caráter subsidrio.
Essa personalidade, faltante em relação aos óros mera desconcentrão
administrativa, sujeitos, inclusive hierarquicamente, às pessoas poticas que determinaram a sua
criação –, determina seja a atribuição da responsabilidade outorgada ao próprio Estado, sempre de
forma direta e pessoal. É a essência da formulação da chamada teoria do óro.
Não é demais lembrar, todavia, a existência de imeras discussões acerca da forma
de atribuão dessa responsabilidade ao Estado. Alguns entendiam-na como relação judica de
representão, enquanto outros consideravam-na a exteriorizão de um mandato recebido pelo
exercente das fuões estatais quando nela investidos. Desde Otto Gierke, porém, prevalece o
entendimento apontado a teoria do órgão.
Merecem novamente transcrão os ensinamentos ofertados por Hely Lopes
Meirelles que, de forma bastante esclarecedora, pontua os pontos de discordância entre uma
corrente e outra, salientando, por fim, a prevancia da teoria mencionada:
A teoria do óro veio substituir as superadas teoria do mandato e da
representação, pelas quais se pretendeu explicar como se atribuíram ao Estado e
às demais pessoas judicas públicas os atos das pessoas humanas que agissem em
seu nome. Pela teoria do mandato considerava-se o agente (pessoa sica) como
mandario da pessoa judica, mas essa teoria ruiu diante da indagação de
quem outorgaria o mandato. Pela teoria da representação considerava-se o agente
como representante da pessoa, à semelhança do tutor e do curador de incapazes.
Mas como se pode conceber que o incapaz outorgue validamente a sua ppria
representação? Diante da imprestabilidade dessas duas concepções doutrinárias,
Gierke formulou a teoria do órgão, segundo a qual as pessoas jurídicas expressam
a sua vontade através de seus próprios órgãos, titularizados por seus agentes
(pessoas humanas), na forma de sua organizão interna. O óro sustentou
Gierke é parte do corpo da entidade e, assim, todas as suas manifestões de
vontade o consideradas como da própria entidade (Otto Gierke, Die
Genossenschaftstheorie in die deutsche Rechtsprechnung, Berlim, 1887).
137
136
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 31. ed. o Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 69.
137
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 31. ed. São Paulo: Malheiros Editores,
2005. p. 67. nota 21.
80
As idéias traçadas já foram objeto de análise em momento anterior do presente
estudo, é bem verdade. Constitui, todavia, elemento imprescindível ao entendimento da
responsabilidade do Estado quando decorrente da atuação desse ente pela via jurisdicional, o
que, até o momento, constituiu pequena parcela dos comentários.
Isso, porém, de forma confessadamente propositada, uma vez que, do
contrário, incorrer-se-ia no risco de adiantar o que viria a ser tratado no presente capítulo,
tornando-o vazio de conteúdo.
A análise da função jurisdicional do Estado se mostra de extremada
importância. É por intermédio dela que o Estado se arvora na função de árbitro dos conflitos
de interesses havidos nas relações entre os indivíduos.
Ao poder que toca ao Estado de dizer o direito a ser aplicável no caso concreto
denomina-se jurisdição.
É a jurisdição, portanto, atividade estatal, devendo, por essa razão, serem-lhe
resguardadas todas as observações formuladas acerca dos atributos e características
próprias das funções e dos Poderes do Estado.
O exercício dessa atividade exterioriza-se por intermédio da atuação dos
órgãos integrantes da estrutura do Poder Judiciário, personificado nos magistrados.
São esses, portanto, os agentes estatais encarregados do exercício da relevante
missão de julgar e, com isso, compor o conflito de interesses instaurado entre as partes, tendo
como finalidade última a pacificação social.
O surgimento da jurisdição constituiu exigência do progresso da humanidade,
bem como do próprio ordenamento jurídico. Isso em face do crescimento – maior a cada dia
dos conflitos de interesses havidos das relações entre os indivíduos, para os quais as demais
formas amigáveis de solução não surtiam o efeito desejado.
A sujeição do mais fraco pelo mais forte não refletia, necessariamente, a
justiça esperada para o caso concreto. Abusos e arbitrariedades tornavam-se paulatinamente
mais recorrentes.
A solução encontrada pelo ordenamento jurídico foi, portanto, a de entregar a
solução do conflito a uma terceira pessoa, alheia às partes envolvidas no litígio, substituindo-
as na solução daquele.
Retira-se, da análise do caso, a parcialidade dos contendores, presente em
todas as demais formas de solução dos conflitos intersubjetivos de interesses.
Assegura-se, por conseguinte, a imparcialidade do julgador, característica
basilar da função estatal ora analisada.
81
É essa garantia das partes a imparcialidade que faz com que a atuação dos
órgãos jurisdicionais estejam sempre a depender da invocação dos interessados. Ou seja,
estará o magistrado impedido de fazer atuar a vontade da lei no caso concreto meramente por
entender que assim deve proceder. Trata-se de uma verdadeira limitação ao arbítrio e
discricionariedade judicial.
Significa dizer, portanto, que estará o magistrado impedido de instaurar a
relação jurídica processual por iniciativa própria e pessoal, salvo, porém, nas restritas
hipóteses em que o próprio ordenamento jurídico lho determina
138
.
Prevalece, então, a regra segundo a qual a jurisdição é poder inerte do Estado,
apenas sendo determinada a sua atuação quando as partes ou os interessados expressamente o
requererem.
É o que, aliás, estabelece a redação do artigo do Código de Processo Civil,
que consagra o princípio da ação, também denominada da demanda: “Nenhum juiz prestará a
tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e formas
legais.”
Humberto Theodoro Júnior, em comentário sobre o dispositivo citado, assim
leciona:
Consagrando o princípio da demanda ou da ação a prestação da tutela
jurisdicional se exercitará quando o juiz for provocado pela parte ou pelo
interessado, uma vez que a autoridade judiciária em regra não atua ex officio
ou sem ação própria
139
.
É relevante ressaltar, desde já, que a garantia citada apenas impede o
magistrado de dar início ao processo. Isso porque constitui dever inerente ao seu cargo o de
conferir andamento regular à relação jurídica processual devidamente instaurada por iniciativa das
partes.
É o chamado impulso oficial, a cujo respeito dispõe o artigo 262, do digo de
Processo Civil, nos seguintes termos: “O processo civil começa por iniciativa das partes, mas se
desenvolve por impulso oficial.
A esse respeito, merece transcrição a lição expendida por Nelson Nery nior e
Rosa Maria de Andrade Nery:
138
Ressalte-se, por óbvio, determinados procedimentos especiais que podem ser instaurados, de ofício, pelo
magistrado. É o caso, por exemplo, do inventário, da arrecadação de bens de herança jacente e do ausente, a
suscitação de conflito de competência e o incidente de uniformização de jurisprudência.
139
JÚNIOR, Humberto Theodoro. Código de processo civil anotado. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p.
2.
82
O processo se origina por iniciativa da parte (nemo iudex sine actore; ne procedat
iudex ex officio), mas se desenvolve por impulso oficial (CPC 262). Podem
provocar a atividade jurisdicional a parte ou o interessado (jurisdição voluntária),
bem como o Minisrio Público nos casos em que estiver legitimado a ajuizar a
ação civil pública (CF 129 III; CPC 81; LACP 5º, caput; CDC 82 I)
140
.
É bastante nítido, pom, que a garantia da imparcialidade do julgador seria
absolutamente inócua caso fosse outorgada às partes a faculdade discricioria de se submeter ou
não aos efeitos oriundos da decio por ele proferida.
Essa é a rao pela qual se entende ser a jurisdão uma atividade substitutiva dos
interesses colocados diante da apreciação judicial, fazendo com que o magistrado, muito mais do
que um mero aplicador da lei, estabeleça a norma própria e específica para reger aquele caso
concreto.
Acerca da citada garantia de imparcialidade do magistrado, bem como no cater
substitutivo da jurisdição, conm transcrever o ensinamento de Moacyr Amaral Santos:
Diversamente, a jurisdição é uma atividade secundária, substitutiva, porque se
exerce em substituão à atividade das partes, que seria a atividade primária.
Realmente, a atividade das partes em conflito se substitui pela do juiz, a fim de
com-lo e resguardar a ordem judica. O juiz nunca é parte no conflito, mas um
terceiro estranho a este. O juiz delibera, decide, julga quanto às atividades das
partes, substituindo-as pela atividade pública. Deliberando, decidindo, julgando
quanto à própria atividade, a administrão procede na conformidade da lei;
deliberando, decidindo, julgando quanto à atividade os interessados, a jurisdão
atua a lei, atingindo com isso a sua finalidade. Ali, a lei tra os poderes da
administração; aqui, a lei é a própria finalidade da jurisdição.
O principal argumento dos que negam a substituão seja a característica
diferencial da atividade jurisdicional decorre do fato de o óro judiciário tamm
decidir litígios em que a administração ou outros órgãos públicos sejam parte. Mas
ainda aqui se verifica a característica da substituição. O órgão jurisdicional não
substitui as partes, mas suas atividades. Assim, no ligio entre a administrão,
que é órgão do Estado, do qual também é órgão, mas as atividades daquela, e
assim o faz tendo em vista a finalidade jurisdicional, que é a de atuar a lei no caso
concreto
141
.
Estabeleceu-se a jurisdão, portanto, como um poder de que se socorrem as partes
sempre que as demais formas de solução dos conflitos de interesses o forem capazes de oferecer
solução satisfatória ao seu conflito particular.
140
NERY JÚNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado e legislação
extravagante. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 165. nota 1.
141
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 25. ed. v. 1. São Paulo:
Saraiva, 2007. p. 70.
83
E ao comando contido na decio oriunda do óro jurisdicional devem as partes se
submeter, conferindo-se-lhe, dessa forma, caráter coativo
142
.
Ao lado da imparcialidade do julgador, garantia inerente às partes de serem julgadas
por uma pessoa necessariamente eidistante dos interesses envolvidos na relação jurídica, põe-se a
substitutividade, garantia que toca agora ao Estado, conferindo respeitabilidade e eficácia aos
comandos contidos nas decies proferidas pelos magistrados.
Mas o é só.
Conferiu-se aos comandos oriundos do exercício da atividade judiciária, também, a
característica da imutabilidade após o decurso de determinado prazo previsto em lei. Tem-se
aqui a idéia de coisa julgada.
É essa a eficácia de que se reveste a sentença, que não mais permite qualquer
espécie de discussão acerca do comando nela contido. Quando essa imutabilidade se
circunscreve ao objeto da demanda, é chamada coisa julgada formal, própria de toda e
qualquer manifestação judicial. Uma vez que ultrapasse as fronteiras do que fora decidido,
passa a ser considerada absoluta ou inatingível, recebendo a denominação de coisa julgada
material.
O relevante mister exercido pelos magistrados é objeto do presente trabalho.
Entretanto, nele não se exaure.
Isso porque o estudo da atividade estatal decorrente do exercício da função
jurisdicional do Estado não pode estar alheia à própria idéia de processo e, por conseguinte,
de uma série de noções acerca do que hoje se entende por relação jurídica processual.
O vocábulo processo pode ser tomado numa infinidade de concepções. O
dicionário refere algumas destas: ação continuada, andamento, método, procedimento, ação
judicial
143
.
Na órbita do direito, contudo, essa amplitude de entendimento acerca do tema
se restringe, uma vez que passa a ser vista sob a ótica da técnica jurídica.
Além do consagrado conceito de lide, estabeleceu Carnelutti, também, a
idéia de processo, entendido como instrumento à disposição do Estado para a composição da
lide. Seria o processo, no seu modo de ver, o meio ou a forma de que se vale o Estado para a
solução do conflito de interesses instaurado entre as partes.
142
É preciso mencionar que o citado caráter coativo do comando contido na sentença não importa,
necessariamente, a satisfação espontânea do direito pela parte sucumbente. Tratam-se de coisas diversas.
Essa é, aliás, a razão da existência do processo de execução.
143
HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Minidicionário houaiss da língua portuguesa. 1. ed. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 357.
84
Embora se deva reconhecer a inteligência da argumentação exposta, certo é que a
conceituação ofertada por Carnelutti correspondia meramente a uma aplicação ptica da idéia de
lide por ele anteriormente formulada. Com isso, restringia o desenvolvimento do processo ao
artrio das próprias partes, o que nem sempre se mostrava prudente. Am disso, pressupunha à
existência do processo a da própria lide, esquecendo-se das hiteses em que o Poder Judicrio é
instado a agir, ainda que inexistente conflito entre as partes
144
.
Não se deve deixar de mencionar que, o senso comum por vezes esquecido por
aqueles que se aventuram nas searas do Direito
145
bem assimilou a conceituão ofertada por
Carnelutti.
Note-se que, sempre que um indivíduo se refere ao direito deão, utiliza o
vocábulo no sentido de busca de um direito ainda não realizado na sua plenitude ou de algo a ser
perseguido em juízo contra alguém, ou seja, sempre conforme o artrio de qualquer das partes.
Nada mais é do que a consagração do dito popular: procurar os seus direitos”.
Chiovenda manteve a mesma idéia de instrumento adotada por Carnelutti. Ousou,
porém, atrib-la à própria jurisdão, fazendo com que o processo, muito mais do que um meio à
disposão das partes, passasse a ser considerado como um meio ou uma forma de que se utiliza o
pprio Estado para fazer valer, pelo exercício da jurisdição, a vontade abstrata da lei no caso
concreto posto à sua alise.
Ou seja, o processo constitui um instrumento de que se vale o Estado para proteger
os direitos eventualmente violados, garantindo-se ao ente estatal a oportunidade de usufruir o seu
exercício, ao mesmo tempo em que impõe ao sucumbente a subordinão ao comando estabelecido
na decisão.
Muito embora a teoria de Chiovenda ainda se apresente bastante atual, o que faz
com que detenha um maior mero de adeptos, certo é que o deve ser esquecida a formulão
estabelecida por Oscar von Büllow sobre o tema
146
.
Entretanto, o perfeito entendimento da formulação procedida pelo autor citado deve
passar, necessariamente, pela plena distião do que seja processo e do que seja procedimento.
Enquanto a idéia de processo pressue a abstração, a de procedimento se torna
mais facilitada, na medida em que constitui o aspecto palvel ou fisicamente verificável daquele.
144
Como, por exemplo, nas hipóteses dos procedimentos especiais de jurisdição voluntária, que correspondem,
no dizer da doutrina, hipótese de atuação anômala da jurisdição, traduzindo-se em verdadeira administração
pública de interesses privados.
145
Sendo que, na verdade, o objeto do estudo do próprio Direito são o conjunto das relações humanas,
exteriorizado na lei apenas como decorrência do sistema positivado.
146
BÜLOW, Oscar von. Die Lehre von den Prozesseinreden und den Prozessvorausetzungen. Giessen: [s.e], 1868.
85
Não se pode visualizar o processo. O mesmo o se diga, pom, do procedimento,
já que constitui a face exterior daquele.
O procedimento corresponde a um conjunto de atos a serem praticados no curso do
processo, de maneira absolutamente coordenada no tempo e no espaço, sempre tendente ao
atingimento de um objetivo comum, no caso, a declarão judicial acerca do rito da preteno
levantada em juízo.
Büllow, partindo da conceão de procedimento, conseguiu identificar no processo
muito mais do que um mero instrumento à disposão do Estado. Viu-o como um conjunto de atos
ou obrigações que tocam a todos os intervenientes do processo, que, por essa razão, devem se ajudar
mutuamente, sempre com a finalidade última de que seja alcançado o resultado do processo.
Veja-se que a noção por ele estabelecida diverge, e muito, das demais apresentadas,
sobretudo porque traz consigo a idéia de um magistrado que se porta não mais como um mero
espectador inerte da conduta das partes no processo, aguardando lhe sejam trazidos os elementos
que fundamentarão a conclusão por ele apontada na sentea. Tem-se na pessoa do magistrado,
agora, um verdadeiro interveniente da relação judica processual.
Ou, como leciona Lúcio Grassi de Gouvea:
Tem sido uma preocupação constante dos processualistas modernos, além da
entrega da prestação jurisdicional de forma rápida e eficiente, que os
procedimentos tenham um caráter eminentemente dialético, com ampla
participação das parte, que devem cooperar com o juiz na busca da verdade
real, devendo ter este uma participação ativa no processo.
Nesse sentido, por exemplo, o art. 130 do Código de Processo Civil
brasileiro, importante regra que determina “caberá ao juiz, de ofício ou a
requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do
processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias”.
Não pode assim o magistrado, diante da prova colhida nos autos e ainda
quando os fatos não lhe parecerem devidamente esclarecidos, adotar o
cômodo entendimento de que se trata de um poder discricionário a ser ou
não exercido por ele. Trata-se do poder-dever de esclarecer os fatos, se
necessário, determinando a produção de provas de ofício. Ultrapassada esta
etapa, então poderá aplicar o ônus da prova, que, geralmente, em relação
aos fatos constitutivos caberá ao autor e aos fatos impeditivos, modificativos
ou extintivos, ao réu.
Dessa forma, uma concepção hodierna de processo civil passa por um juiz
ativo e participativo. Essa realidade vem sendo destacada pela legislação e
doutrina estrangeiras
147
.
Essa nova atuação do magistrado, porém, esbarra no resguardo da necessária
imparcialidade em relação ao interesse posto à sua análise.
147
GOUVEA, Lúcio Grassi de. Cognição processual civil: atividade dialética e cooperação intersubjetiva na
busca da verdade real. In: Leituras complementares de processo civil. Fredie Didier Jr. (org.). 3. ed.
Salvador: Podivm Edições, 2005. p. 283.
86
Às partes propriamente ditas cabe uma atuação mais ativa no sentido de
prestar a sua efetiva colaboração ao regular desenvolvimento da atividade desenvolvida
no processo. Por outro lado, é delas exigido o dever de submeter-se aos resultados das
atividades exercidas por todos os intervenientes do processo.
Compartilha da idéia mencionada Vicente Greco Filho que, com
propriedade, leciona:
O processo é uma entidade complexa que apresenta dois aspectos: o
intrínseco ou essencial e o exterior. Na essência, o processo é a relação
jurídica que se instaura e se desenvolve entre autor, juiz e réu; na
exteriorização o processo se revela como sucessão ordenada de atos
dentro de modelos previstos pela lei, que é o procedimento.
Essência e exterioridade, porém, são inseparáveis. Não há processo sem
procedimento e o há procedimento que não se refira a um processo.
Mesmo nos casos de processo nulo ou procedimentos incidentais o
procedimento o existe em si mesmo, mas para revelar um processo,
ainda que falho
148
.
Fernando Capez, também em análise sobre o tema, assim se expressa:
O processo, instrumento de atuação da função jurisdicional, pode ser
encarado sob dois prismas distintos, mas intimamente conexos entre si:
a) dos atos que representam sua forma extrínseca (objetivo); b) das
relações que vinculam os sujeitos processuais (subjetivo).
Analisando-o sob o aspecto objetivo, isto é, dos atos, identificamos o
seu primeiro elemento constitutivo: o procedimento, entendido como
cadeia de atos e fatos coordenados, juridicamente relevantes, vinculados
por uma finalidade comum, qual a de preparar o ato final, ou seja, o
provimento jurisdicional, que, no processo de conhecimento, é a
sentença de mérito.
Sob o aspecto subjetivo, surge o segundo elemento, que lhe dá vida e
dinamismo: a relação jurídica processual
149
.
Dessa forma, além da noção de instrumento, o processo corresponde,
também, ao estabelecimento pelo ordenamento jurídico das diretrizes e regras básicas a
orientar não só a conduta das partes como do próprio magistrado, no sentido do
atingimento do objetivo precípuo do processo, qual seja, a busca por uma decisão acerca
do mérito da demanda, compondo-se a lide, e, por conseguinte, tornando novamente
estáveis as relações sociais.
Tornam-se as partes, com isso, agentes ativos na condução da relação
jurídica processual ao seu termo, fazendo com que o magistrado, quando da fase de
148
GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 17. ed. v. 2. São Paulo, Saraiva, 2007. p. 87.
149
CAPEZ, Fernando. Curso de direito processual penal. 12. ed. São Paulo, Saraiva, 2005. p. 13-14.
87
prolação do pronunciamento judicial, tenha maiores subsídios a amparar a sua
convicção.
A respeito do advento dessa nova concepção do processo, já tive a
oportunidade de me manifestar em estudo sobre as provas produzidas no processo penal,
que tomo a liberdade de ora transcrever:
A alteração da concepção do processo, que repercute em todas as suas fases,
determina, também, que se proceda a uma necessária revisão quanto ao
destinatário da prova. Veja-se, como exemplo, a posição do professor
Fernando da Costa Tourinho Filho: Entende-se, também, por prova, de
ordinário, os elementos produzidos pelas partes ou pelo próprio juiz visando
a estabelecer, dentro do processo, a existência de certos fatos.
Antes do advento da Constituição Federal de 1988, a doutrina processual
penal nacional lecionava (e, ainda hoje encontramos quem lecione) ter a
prova como destinatário único e final o magistrado, na medida em que visa à
formação da convicção desse. No sentido da concepção anterior, a título de
exemplo, temos a lição de Paulo Lúcio Nogueira: quanto à sua finalidade, é
formar a convicção do juiz para proferir uma decisão de mérito. Essa
afirmação, muito embora correta quanto ao seu sentido, encontra-se
incompleta quanto à sua extensão.
Apesar de se saber que o objetivo ou a finalidade da prova é formar a
convicção do juiz sobre os elementos necessários para a decisão da causa,
pode-se afirmar que é o magistrado, portanto, o destinatário final da prova.
Mas não é o único.
A prova das alegações formuladas pelas partes ou eventualmente trazidas
aos autos por atividade instrutória de ofício pelo magistrado serve não
somente ao juiz, mas ao próprio processo, e, em última análise, à jurisdição,
constituindo-se em garantia da sociedade e do Estado. Assim, pode-se
afirmar que, no âmbito do processo, a prova não pertence à parte que a
produziu, mas ao próprio processo. Trata-se do princípio da aquisição ou da
comunhão da prova
150
.
Ganha não o Estado mas, também, a própria sociedade, que, a partir dessa
nova visão, passa a depositar maior confiança nas decisões avindas do Poder Judiciário.
É esse o escopo atual do processo.
4.2 Do erro judiciário e seus efeitos
A face exterior do processo, como visto, traduz-se na prática de uma série
de atos coordenados de forma lógica e cronológica cujas natureza e seqüência são
150
BARBOSA, André Luis Jardini. O valor da sentença penal condenatória fundamentada em impressões
subjetivas do magistrado. Monografia de conclusão de curso de pós-graduação lato sensu junto à Escola
Paulista da Magistratura. São Paulo, 2005. p. 22.
88
previamente determinadas pela ppria lei –, tendo sempre como finalidade última o
atingimento da decisão acerca do mérito da causa.
Embora seja a sentença o ponto culminante do processo, não se deve
descuidar que o seu alcance está a demandar tenha sido observado o devido processo
legal, por imposição do próprio texto constitucional vigente, a que, aliás, já se fez
referência
151
.
Moacyr Amaral Santos, a respeito do tema, assim se expressa:
Repita-se mais uma vez, o processo é uma série de atos, uns causando
outros, tendentes a uma provio do órgão jurisdicional. É o movimento
dos atos das partes e do juiz, ou seja, dos sujeitos da relação jurídica
processual, em direção até a sentença. Assim, no processo, as atividades
dos sujeitos da relação processual convertem-se em atos. Atos
processuais, porque atos do processo
São, assim, atos dos sujeitos da relação processual: atos das partes
(Cód. Proc. Civil, arts. 158 a 161) e atos do juiz (Cód. Proc. Civil, arts.
162 a 165). O principal ato da parte é o ato constitutivo da relação
processual a petição inicial; do juiz, o principal ato, no processo de
conhecimento, é o que define e resolve a relação – a sentea. Mas
entre esses atos, que são o primeiro e o último, produzem-se numerosos
outros, conservando, desenvolvendo, modificando ou encerrando a
relação processual
152
.
Logo, a sorte do processo estará a depender, muito mais do que do mero
apego ao ordenamento jurídico vigente, de um bom encadeamento dos atos processuais
por parte de cada um dos intervenientes da relação judica processual juiz, autor e réu
, seja no sentido da busca pelos elementos que servio de subsídios para a formação da
convicção do magistrado, seja no sentido da preservação da integridade da relação
jurídica instaurada.
Essa atuação dos sujeitos da relação jurídica, todavia, não poderá jamais
se descuidar da obserncia aos ditames estabelecidos pela própria ordem judica. É
imposta aos atores do processo a fiel obediência aos ditames da probidade, da lealdade e
da boa-fé.
Do contrário, restará configurada a injustiça, num flagrante desapego à
função precípua do Direito, qual seja, a do restabelecimento da paz social.
A esse respeito, merece transcrição a lição expendida por Carlos Aurélio
Mota de Souza:
151
Art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal.
152
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 25. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva,
2007. p. 284-285.
89
Conclui-se destas observações predominar no processo moderno o
princípio de probidade, que determina sejam as partes verazes,
comportando-se com lealdade e boa-fé, impondo-se limitações às
atividades nocivas, a fim de que não extravasem da conduta ética que,
implícita ou explicitamente, se contém na disciplina processual.
Entende-se, pois, que a violão ao dever de probidade no processo
equipara-se a ilícito processual, passível de sanções, quer incidindo na
relação de direito material, caracterizada pelas figuras típicas da lide
temerária e defesa maliciosa, quer se manifeste em atos do
procedimento ou na conduta das partes no desenvolvimento da relação
processual (provocação de acidentes infundados, inércia prolongada,
resistência à penhora, ocultação de documentos, etc.).
E reputa-se como ilícito processual, ou em espécie mais grave, delito ou
dolo processual, os desvios ao prinpio de probidade que esbarram em
medidas de proteção adequada, seja de ordem econômica, seja de
natureza meramente processual, seja afetando mesmo o direito
disputado, impondo-se aos infratores um sistema fiscalizador, ou
medidas de prevenção, que visa antes obstá-los que repri-los.
A contenção das atividades das partes, portanto, não se reduz apenas ao
respeito às condições materiais ou formais do processo, mas também às
regras morais que as sustenta e as vivifica
153
.
A probidade diz com o dever que toca às partes de se portarem de acordo com
a ética na condução de sua atividade no processo e na apresentação de suas razões,
procurando se abster da utilização de mecanismos fraudulentos e passíveis de denotarem o
cometimento de fraudes.
A boa-fé refere-se ao dever da parte de estabelecer as suas manifestações no
processo de acordo com a verdade, a respeito da qual cabe uma necessária observação.
Muito embora seja finalidade do processo a busca da verdade real, ou seja, a
reconstituição dos fatos tal como se deram na realidade, os inúmeros obstáculos apostos ao
processo dentre os quais se recorre, com freqüência, à questão cronológica que permeia a
relação jurídica processual fazem com que o magistrado, muitas vezes, contente-se com a
chamada verdade possível, sem que isso determine qualquer espécie de invalidade.
A esse respeito, leciona Guilherme de Souza Nucci:
É preciso destacar que a descoberta da verdade é sempre relativa, pois o que
é verdadeiro para uns pode ser falso para outros. A meta da parte no
processo, portanto, é convencer o magistrado, através do raciocínio, de que a
sua noção da realidade é a correta, isto é, de que os fatos se deram no plano
real exatamente como está descrito em sua petição
154
.
153
SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Poderes éticos do juiz. A igualdade das partes e a repressão ao abuso no
processo. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1987. p. 47.
154
NUCCI, Guilherme de Souza. digo de processo penal comentado. 3. ed. São Paulo: RT, 2004. p. 327.
90
A lealdade compreende, por fim, a tentativa de se impedir a parte de formular
manifestações absolutamente desprovidas de fundamentos, de todo inúteis ou meramente
procrastinatórias.
A obediência a esses preceitos tem sido uma preocupação constante do
legislador
155
. Prova disso é o que se extrai da leitura de alguns dos artigos inaugurais do
Código de Processo Civil – artigos 14 e 15 –, quando estabelecem serem os princípios citados
deveres a serem observados pelas partes na condução de sua atividade na relação jurídica
processual. Sobre eventual desobediência ao comando citado incidirão as hipóteses de
responsabilidade, igualmente estabelecidas pela legislação vigente – artigos 16 a 18.
A responsabilização da parte pela má-fé processual, com a conseqüente
imposição de seus efeitos, pressupõe tenha sido observado, em relação àquela, o contraditório
e a ampla defesa.
Isso não somente em face do mandamento constitucional
156
como, também,
porque a má-fé exige a correspondente prova de culpa da parte, não sendo essa, portanto,
presumida.
É o que demonstra o entendimento jurisprudencial acerca do tema:
A má-fé não se presume, devendo estar plenamente configurada. Necessária
a comprovação induvidosa para caracterizar-se a litigância de má-fé, não
estando suficientemente demonstrada, impossível aplicação da sanção por
suposta incursão ao artigo 17 do Código de Processo Civil.
157
A análise feita pela jurisprudência acerca dos três deveres básicos que tocam às
partes na relação jurídica processual tem produzido resultados bastante significativos no
sentido de reprimir atitudes contrárias ao que determina a lei.
É o que se verifica da análise da decisão a seguir transcrita:
O art. 14 do vigente CPC discrimina, no concernente às partes, os preceitos
éticos basilares, entre os quais expor os fatos em juízo conforme a verdade,
proceder com lealdade e boa-fé, e não formular pretensões, nem objetar
defesa, ciente de que são destituídas de fundamento. A inobservância desses
preceitos acarreta as sanções do art. 16 responsabilidade por perdas e
danos e do art. 18 indenização dos prejuízos, honorários advocatícios e
todas as despesas efetuadas.
158
155
Muito embora se deva reconhecer as importantes inovações trazidas pelo Código Civil de 2002, fez-se
necessária a restrição do tema à análise dos artigos do Código de Processo Civil sobre o tema.
156
Art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal.
157
TAPR, EDcl n. 139762202, (12826) Cerro Azul, 4ª C. C., Rel. Juiz Fernando Wolff Bodziak, DJPR
09.06.2000.
158
Ac. da 8ª Câm. Do 1º TACívSP de 28.04.87, no Agr. n. 372.127, Rel. Juiz Pinheiro Franco;
JTACiv.SP, 103/181.
91
As discussões, todavia, não se restringiram ao âmbito da Justiça dos Estados,
ganhando âmbito e relevância nacionais, o que demandou a manifestação do Superior
Tribunal de Justiça a respeito:
O impetrante, como o autor de qualquer ação, deve guardar lealdade
processual. Atua ilicitamente, omitindo fato relevante de que é exemplo,
ação, antes deduzida, cujo pedido fora julgado improcedente, transitando em
julgado. Incidência do art. 17, II c/c art. 18 do CPC.
159
Talvez a porção mais visível dos resultados anteriormente mencionados seja a
cada vez mais recorrente utilização de reformas nas leis processuais civis e penais, ainda que
se possa taxá-las de meramente pontuais.
A crítica, embora tenha sua razão de ser, é descabida. Sabe-se que a reforma do
sistema como um todo demandaria um lapso temporal bastante considerável, com o qual
não se coaduna a velocidade das transformações sociais verificadas na atualidade.
Assim, quando finalmente a lei reformadora estivesse apta a irradiar
validamente os seus efeitos, já estaríamos a demandar uma nova reforma.
Teríamos a insegurança jurídica aliada à descrença nos órgãos encarregados da
distribuição da justiça, tal como ocorre na atualidade.
A análise procedida até o momento refere a atuação e os deveres a serem
observados pelos sujeitos parciais do contraditório. Viu-se, contudo, que o conceito moderno
de processo não se exaure na conduta das partes, demandando a análise, também, da conduta
do magistrado, sujeito imparcial da relação jurídica processual.
Impedido que é de provocar a atuação da jurisdição, de ofício nemo procedat
judex ex officio –, ao juiz é resguardada a prática de uma série de atos processuais. Alguns
deles têm por finalidade simplesmente conferir movimentação do processo. São os despachos
de mero expediente. A outros, porém, é conferida certa carga decisória, dentre os quais insere-
se a sentença.
É a sentença o ato mais importante não dentre todos os que são atribuídos
ao magistrado no curso da relação jurídica processual, como, também, para o próprio
processo.
Isso porque é dela que se extrai o raciocínio empreendido pelo magistrado, em
face da argumentação e contra-argumentação expendida pelas partes nas suas razões, assim
159
STJ, 3ª Seção, MS n. 4.638/DF, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, ac. 25.06.1997, DJU
15.09.1997, p. 44.274.
92
como o estabelecimento do comando que passará a reger o caso concreto, vinculando-se as
partes ao cumprimento daquele, seja de forma espontânea ou provocada.
Com isso, compõe-se o conflito de interesses surgido, restabelecendo-se a paz
social.
É o que, aliás, leciona Elpídio Donizete Nunes:
Como ato processual, a sentença é síntese do processo, cujo objetivo é a
composição do litígio. O autor, por meio da petição inicial expõe a sua tese,
isso é, o pedido com a devida fundamentação. O réu, por seu turno, a
despeito de ter a faculdade de permanecer inerte ou reconhecer a
procedência do pedido do autor, geralmente, oferece resposta (contestação,
exceção ou reconvenção) opositiva à pretensão objeto da tese a antítese. À
resposta do juiz que põe fim ao processo, seja acolhendo ou rejeitando o
pedido do autor, dá-se o nome de sentença
160
.
A sentença, portanto, constitui o momento culminante da relação jurídica
processual. É nela que o magistrado cumpre o seu ofício, ou seja, entrega às partes a prestação
jurisdicional invocada. Prova disso é que, a partir de sua publicação
161
, não mais deterá o
juiz competência para a solução de eventuais questões que, porventura, surgirem. Salvo, por
óbvio, a correção de erros materiais ou de contradição, obscuridade ou omissão, vícios
sanáveis pela via do recurso de embargos de declaração
162
.
Mais importante do que a conceituação da sentença, visto tratar-se de um ato
processual deixado a cargo do magistrado, é o entendimento a respeito da forma pela qual o
raciocínio judicial é empreendido.
Sabe-se que muito embora seja o magistrado livre na formulação de sua
convicção, não está livre de ter de fundamentar a decisão proferida.
Corresponde essa a uma garantia das partes e, também da própria sociedade
de conhecer as razões de fato e de direito que conduziram o magistrado àquela conclusão.
Não fosse assim, poder-se-ia ter configurada a arbitrariedade judicial, com o que não se
coaduna o ordenamento jurídico vigente.
Assim, na formação da sua convicção, estará o julgador necessariamente
adstrito aos elementos de prova contidos nos autos, tenham sido trazidos por atividade
probatória das partes ou dele próprio – isso nos casos em que a lei o autorize a assim
proceder.
160
NUNES, Elpídio Donizetti. Redigindo a sentença cível. 3. ed. Belo Horizonte: DelRey, 2005. p. 1.
161
Quando às partes é conferido o conhecimento acerca do decidido.
162
A esse recurso é negado, porém, o efeito infringente ou modificativo da decisão.
93
Merecedora de elogios, nesse ponto, a atuação das partes, quando tenha por
objetivo proporcionar ao magistrado um conhecimento preciso tanto quanto seja possível –,
acerca de como os fatos se deram na realidade. A formação da convicção do magistrado,
desse modo, se dará de forma isenta e imparcial, fazendo, por conseguinte, com que seja
aplicada a justiça.
As idéias até então aventadas dizem respeito a um ideal de processo a ser
perseguido. E diz-se ideal uma vez que nem sempre será possível visualizar o
desenvolvimento da relação jurídica processual de acordo com os preceitos citados.
Infelizmente, não raras vezes, vê-se que o processo tem sido utilizado como
mero instrumento de consecução de finalidades nem sempre acobertadas pelo Direito ou pela
moral.
Tal ocorre quando as partes, pelos elementos de convicção por elas trazidos
aos autos, procuram induzir o magistrado no sentido da formulação errônea do raciocínio por
ele expendido por ocasião da prolação da sentença.
É o que se denomina erro judiciário, cujos efeitos e possibilidade de atribuição
ao próprio Estado constituem objeto do presente trabalho.
Aqui, faz-se necessária uma pequena observação.
A pesquisa é delimitada de forma a restringir-se ao estudo da sentença
penal absolutória, proferida, portanto, no âmbito do processo penal. O entendimento das
razões determinantes dessa restrição são as mais diversas, ressaltando-se, sobretudo, os
interesses envolvidos num ou noutro processo.
Enquanto no processo civil, de regra, a discussão havida entre as partes
reside na transgressão a direitos meramente disponíveis, o processo penal lida com a
liberdade do indivíduo em contraposição ao direito que tem o Estado de perseguir o
crime e o criminoso, impondo-se a esse, caso comprovado tenha agido com culpa
considerada em seu sentido lato, de forma a abranger tanto o dolo como as modalidades
de culpa , a correspondente sanção de natureza penal, seja ela privativa de liberdade ou
restritiva de direitos.
A liberdade é bem que, ao lado da vida, traduz-se no de maior relevância
para o indivíduo.
Não se quer dizer com isso que, de outro lado, não tenha a vítima o direito
à devida reparação caso seja possível confirmar tenha sido a absolvição determinada
pelo erro judiciário. Afinal, trata-se de regra inscrita no ordenamento jurídico, desde os
94
seus primórdios, que a ninguém é dado impingir lesão ao direito de outrem, o que
equivaleria a um enriquecimento indevido.
Isso não significa, contudo, que não serão abordados aspectos próprios da
sentença condenatória e até mesmo do processo civil.
Há muito se tem defendido uma abordagem sistemática da matéria,
fazendo com que o estudo do Direito não se torne estanque.
Feita a necessária observação, prossigo na análise do tema.
Não constitui tarefa das mais fáceis estabelecer um exato conceito de erro
judiciário. Prova disso é a diversidade existente na própria doutrina, a qual se justifica,
na medida em que os conceitos restringem as idéias, de modo que uma tentativa
imprudente de conceituação poderia vir em prejuízo do pprio exercio do poder
jurisdicional pelo Estado, causando embaraços aos magistrados quanto ao desempenho
das funções de que são investidos.
A respeito da conceituação, Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias leciona:
Não é fácil precisar tecnicamente o que seja erro judiciário, verdadeiro
risco inerente à função jurisdicional do Estado, sendo procedente a
advertência de Juan Montero Aroca, em tal sentido, ao observar que
muito se tem divagado sobre o erro judiciário, mais com ânimo
sentimentalista e menos com precisão técnica, tratando-se, portanto, de
um desses conceitos em direito que mais se sente do que se pode
expressar. Segundo o autor, a qualquer pessoa que se pergunte o que
venha a ser erro judiciário, ao pretender dar a resposta, suporá sabê-lo,
porém, no momento de explicá-lo perder-se em considerões óbvias.
Não obstante, sob a ressalva de correr esse risco, o autor concebe o
chamado erro judiciário aquele que desponta em uma decisão
interlocutória ou sentença produzida em qualquer processo de
conhecimento, execução ou cautelar compreendendo tanto o erro de
fato quanto o erro de direito.
163
À dificuldade apontada aponha-se, também, a de que muitos são os fatores
que podem determinar a errônea aplicação do direito ao caso concreto, variando da má-
fé ou deslealdade processual atuação livre e consciente no sentido da causação de um
mal ao próprio equívoco na interpretação dos fatos ou do pprio direito pelo
magistrado
164
.
163
DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Responsabilidade do estado pela função jurisdicional. Belo
Horizonte: DelRey, 2004. p. 186-187.
164
Muito embora tenha prevalecido na doutrina e na jurisprudência o entendimento segundo o qual o erro
judiciário diz respeito ao erro quanto à interpretação fática, já que se presume deter o magistrado
conhecimento suficiente acerca dos fundamentos jurídicos que permeiam a pretensão invocada pela parte.
95
No primeiro dos exemplos citados, visam as partes, em atuação conjunta
ou isolada, o mero atingimento dos seus próprios interesses, o que é censurável, vez que
absolutamente contrária à dignidade da Justiça.
Uma vez que o magistrado perceba esteja a parte se utilizando desse
expediente, deverá procurar atuar no sentido de prevenir ou de reprimir tal conduta. Para
tanto, utilizará seu poder de polícia na condução da relação jurídica processual
165
.
Júlio Fabbrini Mirabete, em comentário sobre os poderes que tocam ao
magistrado na condução do processo, expressa-se nos termos que se seguem:
Deve o juiz prover a regularidade do processo, ou seja, não evitar que as
irregularidades de rito e de ordem formal ocorram, mas promover as
medidas que assegurem a justa aplicação da lei penal do processo. Incumbe-
lhe também manter a ordem no curso dos atos processuais, podendo para tal
fim requisitar a força pública. Trata-se de atividade administrativa, em que o
juiz pratica atos de polícia com o objetivo de assegurar a ordem no decorrer
do processo, podendo requisitar o concurso da polícia. É o que ocorre, por
exemplo, com a polícia nas audiências (arts. 794 e 795) e sessões e no
julgamento do júri (art. 497).
166
Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, também em análise sobre
o tema, assim lecionam:
Dirigir o processo significa fiscalizar e controlar a relação processual,
fazendo com que se desenvolva regular e validamente. Deve decidir quem
permanece e quem sai da relação processual; quais os atos que devem ser
praticados. Edita comandos de natureza cogente, que devem ser suportados
pelos sujeitos do processo (partes, MP, intervenientes), bem como pelos
auxiliares da justiça.
O juiz deve coibir, prevenindo ou reprimindo os atos atentatórios à
dignidade da justiça que sejam praticados no processo, independentemente
de quem seja o seu autor (parte, interveniente, advogado, MP, auxiliar da
justiça etc.). Deve, por exemplo, punir o litigante de má-fé; mandar riscar
dos autos expressões injuriosas (CPC 15); reprimir a fraude de execução
(CPC 593,600), dentre outras medidas.
167
Mas não é só.
Por vezes, as partes contam com a anuência do próprio magistrado, que,
igualmente motivado por interesse egoístico, atua no sentido de acobertar a má-fé ou a
deslealdade processual daquelas, numa atitude, muito mais do que deplorável,
verdadeiramente odiosa.
165
Arts. 125, inc. III, do Código de Processo Civil e 251, do Código de Processo Penal.
166
MIRABETE, Júlio Fabbrini. digo de processo penal interpretado. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 632-633.
167
NERY JÚNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado e legislação
extravagante. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 384. notas 2 e 5.
96
E, uma vez que à conduta maliciosa advinda das partes é imposta a
correspondente sanção processual, ao menos de se questionar não devesse ser a mesma
solução adotada quanto à atuação dolosa advinda do órgão investido da jurisdição?
A resposta é, à evidência, positiva. Encontra-se, inclusive, expressa na
lei
168
.
Decorre, ademais, da própria concepção do processo.
Ou seja, tratando-se o processo de uma relação jurídica, deve tocar ao
magistrado, assim como às partes, o resguardo da lealdade, da probidade e da boa-fé na
condução das suas atividades.
E, uma vez que tenha agido com dolo, culpa grave
169
ou fraude, deve lhe
ser imposta a correspondente responsabilização.
É preciso ressaltar que, nesse caso, a responsabilização será do
magistrado, e não do Estado.
Como se viu, o dever do Estado de responder pelas condutas advindas de
seus agentes se dará somente quando a atuação daqueles se de forma absolutamente
condizente com o que determina a lei.
Não é, contudo, o que se verifica na situação posta, em que a atuação do
magistrado se deu motivada por interesse exclusivamente seu. Cabe-lhe, portanto,
responder pela eventual indenização.
Mas, se de um lado se pode afirmar que, no caso concreto, afigura-se de
extremada dificuldade a comprovação do dolo ou da má-fé processual do magistrado ou
das partes, por outro, o entendimento que se tem acerca dessas circunstâncias mostra-se
bastante simplificada.
Tanto é verdade que, uma vez configurados, basta que se recorra às
disposições expressas no ordenamento jurídico para a solução da questão.
Isso em tese, já que, na prática, a solução é bem diversa.
O mesmo não ocorre, porém, em relação à conduta das partes no sentido
de induzir o magistrado à errônea interpretação dos fatos postos à sua análise. E d a
relevância da presente pesquisa.
168
Art. 133, do Código de Processo Civil. Vale lembrar que idêntica regra atinge, também, as partes, o
Ministério Público e os demais intervenientes da relação jurídica processual.
169
Vale lembrar que a culpa grave é equiparada ao dolo.
97
Não poderia me descuidar de mencionar, por óbvio, que outros fatores
determinam, ainda, a prestação falha ou deficiente da atividade jurisdicional do Estado,
dentre os quais a disfunção do próprio aparelhamento de que dispõe o Poder Judiciário.
A observação encontra respaldo doutrinário, sobretudo nas lições de
Odoné Serrano Júnior, para quem:
O erro judiciário, lato sensu, é um error in judicando. Ele
freqüentemente sucede por: a) dolo do juiz; b) culpa do juiz, nas
modalidades negligência ou imprudência; c) decisão contrária à prova
dos autos (por dolo ou culpa do juiz); d) indução a erro através da
juntada ou não aos autos de elemento relevante ao esclarecimento da
verdade (culpa da tima ou culpa de terceiro exclusiva e
concorrente); e) aparecimento posterior de fatos ou elementos
relevantes dos autos e que influíram decisivamente na prolação da
sentença; etc
170
.
Joel Carlos Figueira Júnior, também em análise sobre as causas citadas,
esclarece serem essas:
a) decorrente de ato ilícito (omissivo ou comissivo dolo ou fraude); b)
por recusa, omissão ou retardamento de provincia que deva tomar de
ofício ou a requerimento da parte, sem justo motivo (culpa grave);
disfuão da Administrão da Justiça (deficiência no funcionamento
da máquina judiciária); erro no oferecimento da tutela jurisdicional
(erro judiciário stricto sensu)
171
.
Socorro-me, contudo, mais uma vez, do inafastável dever de
racionalização do tema, a fim de que o presente capítulo não se torne absolutamente
vazio de conteúdo e sem qualquer utilidade ptica.
4.3 O erro judicrio na sentença penal absolutória decorrente da errônea
interpretação dos fatos e a responsabilidade do Estado
Pelo que foi exposto até o momento, torna-se plenamente possível afirmar
que o erro judiciário não constitui inovação dos tempos presentes.
Muito embora o imenso volume de ações judiciais a que estão sujeitos os
nossos jzos a cada dia possa, eventualmente, justificar uma maior incidência de erros
170
SERRANO JÚNIOR, Odoné. Responsabilidade civil do estado por atos judiciais: O serviço judiciário
visto como um serviço público essencial num estado democrático de direito. Curitiba: Juruá, 1996. p. 149.
171
FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Responsabilidade civil do Estado-juiz. Curitiba: Juruá, 1995. p. 58.
98
no desenvolvimento da atividade jurisdicional, a verdade é que dele se tem notícia desde
o estabelecimento da jurisdição enquanto forma de solução dos conflitos de interesses.
Aliás, não fosse o erro judiciário, e estaríamos ainda hoje impedidos de
mover a competente ação de indenização contra o Estado.
Isso porque ocorreria hipótese de carência de ação por ausência de
condição tida pela lei como apta ao exercício daquela, qual seja, a impossibilidade
jurídica do pedido, já que ausente a correspondente previsão legislativa a amparar a
pretensão deduzida pela vítima em juízo. A solução, por conseguinte, seria a extinção do
processo sem resolução do mérito
172
, conforme o entendimento da doutrina ainda
majoritária sobre o tema
173
.
Luís Guilherme Catarino, referindo-se ao fenômeno da aplicação
equivocada do Direito, refere que: [...] os escândalos judiciais foram durante muito
tempo o motor da evolução legislativa neste domínio da responsabilidade por acto
danoso da função jurisdicional
174
.
Ainda a esse respeito, Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias esclarece terem
sido as injustiças cometidas contra as vítimas em juízo o fator determinante da alteração
legislativa referente à responsabilização do Estado. E, quanto a isso, deixa expresso:
Com efeito, assinalam os doutrinadores que, na França, a mudança
legislativa do seu Code de Procedure Penal (Código de Processo
Penal), alterando o texto normativo do artigo 446º, efetivada por Lei de
8 de junho de 1895, teve sua marca histórica e gênese em rumorosos
escândalos judiciários, entre os quais sobressaiu o célebre caso Dreyfus,
de grande repercuso blica na época, projetando-se para o campo
internacional. O jovem capitão Alfred Dreyfus, tima de erro
judiciário, embora sempre sustentasse sua inocência, no ano de 1884,
foi acusado de crime de espionagem a favor da Alemanha (revelação de
segredos e informações militares), o que resultou perda da patente
militar, degradão e condenação à prisão perpétua, sedo deportado
para a ilha do Diabo, na Guiana Francesa em 1894. Tendo-lhe sido
negado o primeiro recurso de revisão, posteriormente veio a ser
declarado inocente, reabilitado, indultado e indenizado, após descoberto
o verdadeiro traidor e demonstrada a falsificação de documentos nos
quais se fundamentou a sentea condenatória
175
.
172
Art. 267, inciso VI, dodigo de Processo Civil.
173
Diz-se majoritária uma vez que não se pode negar a relevante contribuão prestada por aqueles que defendem a
efetividade como um aspecto pprio do processo. A esse respeito, aliás, ganha destaque a obra de José Roberto dos
Santos Bedaque: Efetividade do processo e técnica processual (2. ed.o Paulo: Malheiros Editores, 2006.).
174
CATARINO, Ls Guilherme. A responsabilidade do estado pela administração da justiça: o erro judiciário e o
anormal funcionamento. Coimbra: Almedina, 1999.
175
DIAS, Ronaldo Btas de Carvalho. Responsabilidade do estado pela função jurisdicional. Belo Horizonte:
DelRey, 2004. p. 184.
99
Também no Brasil o erro judiciário fez suas vítimas, as quais, sem a
necessária previsão legislativa, ficavam expostas aos efeitos da injustiça. Confira-se, a
esse respeito, a lição expendida pelo autor anteriormente referido:
No Brasil, também ocorreu algo mais ou menos semelhante, havendo
registro histórico de rumoroso caso de erro judiciário ocorrido em 1852,
mas descoberto cerca de vinte anos mais tarde, o que levou o Código
Penal de 1890 (publicado pelo Decreto n. 847, de 11.10.1890), ao tratar
do processo de reabilitação criminal, em seu artigo 86, § , a impor ao
Estado a obrigação de indenizar os danos sofridos pela tima de erro
judiciário reconhecido na sentença de reabilitação criminal, norma que
viria a ser repetida no Código de Processo Penal de 1941 (art. 630),
ainda em vigor. Mencionado erro judiciário envolveu o fazendeiro Mota
Coqueiro, que vivia na região de Macaé, Estado do Rio de Janeiro.
Tendo ocorrido a morte de Francisco Benedito e de sua falia, meeiro
da fazenda de Mota Coqueiro, este foi acusado do morticínio, julgado e
condenado à morte pela forca, em virtude de depoimentos tendenciosos
prestados por várias pessoas arroladas como testemunhas, as quais
queriam proteger aqueles que ajudaram o verdadeiro culpado. Duas
décadas após a execução de Mota Coqueiro, um escravo de nome
Herculano, já liberto, confessou o crime, informando que o efetuara a
mando da mulher de Mota Coqueiro, impelida por acesso de ciúmes do
marido, que tivera suposto caso amoroso com uma jovem filha de
Francisco Benedito
176
.
Trata-se de erro bastante comum, portanto, o de tratar esse fenômeno
como sendo oriundo dos tempos presentes. Advém, ao contrário, da ppria condição
humana e da interação havida entre os mais diversos grupos sociais.
Assim como igualmente se deve ter por errônea a premissa de considerar
que o erro – que justifica seja movida a competente ação de responsabilização civil
contra o Estado somente se fará presente quando se esteja diante de uma sentença
penal condenatória.
Pelo contrário, procuro demonstrar que o erro judiciário advém, também,
da sentença penal absolutória. A fim de procurar justificar essa conclusão, contudo,
algumas observações se fazem imprescindíveis.
É sabido que, uma vez ocorrido o crime, nasce para o Estado o interesse
na precisa determinação da materialidade e da autoria daquele.
Isso porque a conduta criminosa, uma vez que incide sobre bens judicos
relevantes e, por isso, protegidos pelo ordenamento jurídico, afeta de maneira bastante
176
DIAS, Ronaldo Btas de Carvalho. Responsabilidade do estado pela função jurisdicional. Belo Horizonte:
DelRey, 2004. p. 184-185.
100
sensível o âmbito das relações sociais. Ou seja, a prática da conduta delituosa, por si,
inviabiliza o pleno desenvolvimento da vida em sociedade.
Instaura-se, com isso, a competente persecução penal contra o agente.
Essa, por sua vez, de regra
177
, é realizada em fases distintas, resguardando-se à primeira
delas a obtenção de subsídios mínimos a amparar a convicção do órgão
constitucionalmente legitimado para a instauração da fase subseqüente. Trata-se do
inquérito policial
178
. A segunda delas diz respeito à ação penal propriamente dita, instaurada,
agora, perante o Poder Judiciário, a quem, como se viu, é outorgado o poder de dizer o direito
no caso concreto.
Em ambas as fases citadas, portanto, percebe-se que estão colocados em lados
diametralmente opostos o Estado e o indivíduo.
Ao primeiro é resguardado o poder-dever de, uma vez comprovada a
materialidade e a autoria do crime, impor ao agente a sanção correspondente. Ao indivíduo,
de outro lado, é concedida a garantia de se opor aos argumentos contra si lançados, aduzindo,
para tanto, todos os argumentos defensivos que, porventura, entenda dispor. A isso
corresponde o princípio da ampla defesa.
Mais uma vez, não é só.
O exercício da ação não pode importar, ainda, a supressão da observância do
procedimento legalmente previsto como apto à verificação da responsabilização penal do
agente pela prática do fato.
Trata-se, aliás, de norma inscrita na própria Constituição Federal e quanto a
isso se fez referência em momento anterior –, a de que ninguém será privado de sua
liberdade ou de seus bens senão após observado o procedimento previsto em lei, tido como
hábil para tanto
179
.
Ou seja, para que se possa chegar ao resultado final do processo, é preciso que
sejam ultrapassadas todas as fases do procedimento legalmente estabelecido, outorgando-se
ao magistrado o conhecimento mais próximo possível da realidade dos fatos.
177
Diz-se de regra porque nem sempre a instaurão do inquérito policial constitui condição necessária para o exercício
da ação penal. Nada obsta a que o Minisrio blico, desde que se trate de ação penal pública, socorra-se de outros
elementos de informação colhidos em procedimento apuratório diverso. É o caso, por exemplo, da apuração das
infrações penais pela via das Comissões Parlamentares de Inquérito. O que, aliás, pode ser inferido da
análise conjunta dos artigos 12 e 39, § 5º, ambos do Código de Processo Penal.
178
Art. 4º, caput, do Código de Processo Penal.
179
Art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal.
101
Para tanto, mostra-se imprescindível o exercício da atividade probatória no
processo, a fim de que se possa determinar, com precisão, todas as circunstâncias que cercam
a conduta cuja autoria é imputada ao agente.
Tem a citada atividade por objeto a comprovação de um fato ou de uma
alegação trazida por aqueles que participam da relação jurídica processual
180
.
Percebe-se, com isso, a extremada relevância da atuação das partes na relação
jurídica processual, sobretudo no que toca à fase instrutória do processo, já que cabe a elas, de
ordinário, o oferecimento dos elementos formadores da convicção do magistrado, o qual será
devidamente externado por ocasião da sentença penal, tenha ela cunho condenatório ou
absolutório, a depender da distribuição do ônus da prova no processo.
É bem verdade que sempre que se trata de tecer considerações acerca da
distribuição desse ônus, não se pode deixar de fazer menção à nova orientação trazida
pelo texto constitucional de 1988.
Ao estabelecer a presunção de o-culpabilidade do indivíduo até o
advento do trânsito em julgado da sentença penal condenatória
181
, fez o legislador
constituinte com que fosse alterado todo o panorama instrutório processual, bem como a
posição do próprio acusado no processo, tornando-o sujeito de direitos, e não mais mero
objeto de investigação.
Firmada essa premissa, no que tange ao citado ônus, torna-se
perfeitamente possível afirmar caber à acusação a comprovação dos fatos constitutivos
dos argumentos descritos na inicial acusatória
182
. À defesa, por sua vez, cabe a alegação
e a prova dos fatos extintivos, impeditivos e modificativos da pretensão deduzida pela
acusação. Toca-lhe, por exemplo, a invocação de que esteja a conduta perpetrada pelo
agente devidamente acobertada por qualquer das causas excludentes da ilicitude
183
.
Significa dizer que constitui pressuposto da culpabilidade de um indiduo
que esteja devidamente comprovada a existência material do fato considerado pela lei
como delituoso que é imputado ao agente na peça inicial acusatória, ao mesmo tempo
180
Note-se que, pela afirmação referida, inclui-se na atividade instrutória a pessoa do magistrado, devendo esse
procurar manter íntegra a sua imparcialidade no processo.
181
Art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal. Muito embora receba o mencionado dispositivo, também, a
denominação de princípio da presunção da inocência, prefiro e adoto no presente estudo a denominação de
princípio da não-culpabilidade, haja vista que a inocência é prerrogativa de qualquer indivíduo, sendo
culpável somente quando ocorrer sentença condenatória transitada em julgado que assim o afirme.
182
Corresponde à denúncia, nas ações penais públicas (incondicionadas e condicionadas), e à queixa nas ações
penais privadas (exclusiva, personalíssima e subsidiária da pública).
183
Art. 23 do Código Penal. Nesses casos, o agente será absolvido com fundamento no artigo 386, inciso V, do
Código de Processo Penal.
102
em que haja prova efetiva do cometimento da infração penal pelo agente. Do contrário,
impor-se-á a absolvição daquele.
É o que, aliás, determina o artigo 386, incisos I e II, do Código de
Processo Penal.
Mas pode ocorrer, também, que a conduta, cuja existência restou afirmada
e comprovada e que tenha sido efetivamente afirmada na pessoa do acusado, o se
traduza em fato criminoso.
São hipóteses em que a conduta do agente se insere no âmbito meramente
privado das relações jurídicas havidas entre os indivíduos, não merecendo
criminalização pelo ordenamento jurídico vigente.
Nesses casos, estará o magistrado igualmente impedido de impor a
responsabilização penal ao agente. Isso porque se trata de fato que a própria lei entende
não ser criminoso
184
.
Restará à tima, com isso, tão-somente se socorrer da ão de
responsabilização do agente pela via civil.
Não deve ser esquecido, todavia, que o processo penal, marcado que é
pelas circunstâncias próprias de cada conduta delituosa havida no mundo dos fatos, por
vezes determina, ainda, que esse ônus da prova venha a ser mitigado ou até mesmo
excepcionado.
Uma vez que o ordenamento jurídico vigente veda a responsabilização
penal tanto pelo fortuito como pelas meras presunções, o eventual surgimento de dúvida
no tocante à culpabilidade do acusado deverá ser interpretado em favor da defesa.
Entende o legislador que o órgão acusatório não se teria desincumbido a
contento de um ônus que a ele tocava. Não resta ao magistrado outra solução que não a
de absolver o acusado por insuficiência de provas a embasar a condenação.
É o que determina o artigo 386, inciso VI, do Código de Processo Penal.
Percebe-se, assim, que, muito embora deva ser a relação judica
processual permeada e marcada pelo traço característico da igualdade das partes
traduzindo-se esse, aliás, num dever a cargo do magistrado na condão do processo ,
de forma a que seja garantida a elas, tanto quanto seja posvel, a chamada paridade de
armas, a verdade é que, no que diz respeito às provas das alegações feitas em jzo pelos
184
É o que estabelece o artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal.
103
sujeitos do contraditório, a própria lei estabelece, já de antemão, uma distinção, fazendo
com que prevaleça a liberdade do indivíduo.
É o que faz com que a atividade do magistrado seja a mais árdua dentre
todas aquelas desenvolvidas pelos demais sujeitos da relação judica processual.
Isso em razão de caber-lhe não só a condução e a polícia das atividades
desenvolvidas pelas partes mas, principalmente, a interpretação das alegações trazidas
por essas, determinando, no caso concreto, qual das versões haverá de prevalecer.
É a sentença, portanto, o ponto culminante do processo, traduzindo-se em
ato de inteligência pelo qual o magistrado analisa os pontos principais das alegações
trazidas aos autos, formulando sobre elas a síntese do raciocínio por ele apreendido.
É justamente essa ntese que corresponderá ao comando regente da
relação jurídica posta ao seu exame, e ao qual as partes devem se submeter.
Se, de um lado, percebe-se a complexidade do trabalho empreendido pelo
magistrado por ocasião da formulação do raciocínio expendido na sentença
traduzindo-se a fundamentação da decisão num fator de garantia não só das partes, mas
também de todo jurisdicionado, tanto que transformado em princípio constitucional
185
,
de outro, é plenamente possível se afirmar que esse raciocínio restará extremamente
dificultado quando se vislumbre a atuação ardilosa ou maliciosa de qualquer das partes
no que toca à omissão acerca de pontos que se mostrem relevantes para o desfecho da
causa.
Isso porque, afirmada a inexistência material do fato, ausente prova de que
seja o acusado o autor da conduta praticada ou comprovado que o fato praticado está
acobertado por qualquer das excludentes de ilicitude, como se viu, não restará ao
magistrado outra opção que não a de absolver o acusado.
Estará a tima do fato, por outro lado, inviabilizada de mover a
competente ação civil ex delicto, por expressa determinação legal
186
.
Torna-se ao menos possível o questionamento se não seriam essas,
também, causas de determinação do erro judicrio.
Percorrendo-se a análise procedida pela doutrinária sobre o tema, a
resposta é afirmativa. Essa situação, inclusive, é tida como um risco inerente ao
185
Art. 93, inciso IX, da Constituição Federal.
186
Artigos 65 e 66 do Código de Processo Penal.
104
exercício da jurisdição. Confira-se, quanto a isso, a lição expendida por Odoné Serrano
Júnior:
O erro judiciário é a própria negação da Justiça, o que importa, para sua
reparação, no ressarcimento integral dos seus efeitos lesivos é o mais
rápido possível.
Mas o erro judiciário, nem sempre gera prejuízo. Na maioria das
vezes gera prejuízo para uma das partes e benefício para outras. Na
esfera penal, podemos cogitar numa absolvição indevida, que beneficia
o condenado e prejudica a sociedade; na esfera civil, o erro judiciário
pode importar num enriquecimento sem causa e, portanto, ilícito, para
uma das partes, em contrapartida ao empobrecimento de outra.
Em todos os seus aspectos, o erro judiciário deve ser tido como um
risco inerente ao próprio exercio da função jurisdicional. Compete ao
Estado assu-lo, para figurar na posição de devedor, toda vez que um
ato judicial provocar um dano injusto
187
.
Embora não se deva deixar de reconhecer a razão dos argumentos acima
referidos, a verdade é que eles refletem não mais do que uma atuação covarde do próprio
Direito, ferindo-o na sua função precípua de pacificação dos conflitos havidos entre os
indivíduos e distribuição de justiça.
Isso porque corresponde a uma obediência cega ao comando decorrente da lei,
quando se sabe que as disposições legislativas estão cada dia mais distantes da realidade.
É verdade que o comportamento criminoso afeta de maneira bastante relevante
o ordenamento jurídico. Afinal, o que é o Direito senão o conjunto das normas advindas do
poder soberano, estabelecidas com a finalidade precípua de ordenar os comportamentos tidos
como aceitáveis numa determinada comunidade?
É o Estado, portanto, o sujeito passivo constante da conduta delituosa.
Mas não é o único.
Esquecemo-nos de que a questão deve ser vista, também, sob a ótica da vítima
do fato criminoso praticado, uma vez que é sobre ela que recaem as conseqüências mais
próximas e diretas daquela atuação contrária ao ordenamento jurídico.
A vítima, por vezes, dependente do resultado advindo do processo, obstado
o seu direito de mover a competente ação de responsabilização civil pelo fato porque
afirmadas pelo magistrado a existência de quaisquer das circunstâncias mencionadas no artigo
187
SERRANO JÚNIOR, Odoné. Responsabilidade civil do estado por atos judiciais: O serviço judiciário
visto como um serviço público essencial num estado democrático de direito. Curitiba: Juruá, 1996. p. 149-
150.
105
65 e 66 do Código de Processo Penal, em razão de atuação maliciosa ou ardilosa de qualquer
das partes.
Resta, dessa forma, duplamente penalizada. Primeiro, em razão da prática do
crime. Depois, pelo obstáculo decorrente do próprio ordenamento jurídico que inviabiliza,
inclusive, a revisão do julgado, que o ordenamento jurídico não se coaduna com a revisão
criminal pro societate.
Nada mais justo, portanto, que se lhe assegure ao menos o direito de mover a
competente ação de responsabilização civil em face do Estado, e não mais do acusado, uma
vez que o ordenamento jurídico veda expressamente a pretensão referida.
A responsabilização, ademais, pertence ao próprio Estado, que o erro foi
determinado por atuação de órgão dele integrante, sem que se tenha configurado o dolo ou a
culpa grave do magistrado
188
.
Do contrário, a prevalecer a orientação doutrinária apontada, estaríamos diante
de uma obediência cega ao ordenamento jurídico vigente em detrimento dos ideais de justiça
aos quais juramos um dia defender.
188
Do contrário, como já se viu, a responsabilização será direta e pessoal desse.
106
CONCLUSÃO
O presente trabalho teve por escopo a análise acerca da possibilidade de
imposição ao Estado enquanto ente central ordenador das normas de conduta a serem
observadas pelos indivíduos – do dever de indenização da vítima pelo prejuízo por ela
eventualmente suportado em decorrência do decreto de absolvição do agente a quem é
imputada a prática da conduta delituosa, oriunda a sentença do erro judiciário.
Muito embora se saiba que o erro judiciário se exterioriza pelas mais diversas
formas, optou-se em especial pela análise da conduta maliciosa das partes, agindo essas no
sentido de influenciar na convicção do julgador acerca da interpretação dos fatos ou do
próprio direito.
Fez-se necessário, dessa forma, estabelecer se em alguma hipótese seria o
Estado instado ao ressarcimento da vítima, passando a integrar o pólo passivo da relação
jurídica processual.
A resposta ao questionamento proposto mostrou-se afirmativa. E isso em
decorrência do fato de que, em determinadas situações, a tima encontra óbice à propositura
de ação em desfavor do acusado pela prática da conduta. São as hipóteses em que seja
reconhecida a existência de causa de exclusão da ilicitude, em qualquer de suas formas
(legítima defesa, estado de necessidade, exercício regular de direito ou estrito cumprimento
do dever legal), bem como os casos em que haja a afirmação categórica da inexistência
material do fato.
Não se mostra justo esperar que a vítima venha a arcar com prejuízo para o
qual não deu causa.
Necessário, assim, o estabelecimento de uma nova relação jurídica processual,
contrapondo-se, de um lado, a própria vítima e, do outro, o Estado, enquanto ente detentor do
poder-dever de perseguir o delito e impor a pena a ele correspondente.
A solução adequada à hipótese é, portanto, a de aguardar que a própria vítima
ingresse com a competente ação de responsabilização.
O objeto da ação, como se viu, é o estabelecimento de indenização
correspondente ao prejuízo gerado pela conduta delituosa, devendo, por óbvio, guardar a
necessária proporção ao bem jurídico atingido. Isso porque a pretensão de imposição de pena
não mais subsiste, em face do caráter pessoal da pena, bem como a aplicação de sanção é
incompatível com a própria natureza do Estado.
107
Mas, se por um lado responde o Estado, não se pode afirmar deva ser acionado,
em hipótese alguma, o magistrado. Explico.
As hipóteses de responsabilização pessoal do magistrado encontram-se
previstas, de forma taxativa, em rol ofertado pela lei. Demandam o reconhecimento de que
tenha aquele agente estatal atuado com dolo, o que não é o caso.
Não deve ser esquecido, também, que afirmação contrária viria de encontro aos
princípios inerentes à jurisdição enquanto poder do Estado de resolver os conflitos, trazendo
insegurança jurídica e ausência de provimentos de caráter definitivo por parte dos
magistrados, comprometendo-se a complicada relação havida entre o Poder Judiciário e a
população que a ele se vê submetida.
Muito embora a função estatal de dizer o direito no caso concreto seja de
extremada relevância e constituam os seus exercentes, sem qualquer sombra de dúvida,
órgãos detentores de relevante parcela do poder político do Estado, a verdade é que o estudo
acerca da forma pela qual essa função se exterioriza sempre se mostrou e não pretendo
nesse breve trabalho corrigir esse vício – incompleto.
E as razões são as mais diversas.
As mazelas da vida cotidiana têm demonstrado, contudo, a premente
necessidade de uma análise mais detida das hipóteses em que se tenha por configurado o erro
judiciário.
Afinal, a cada dia nascem novos processos, entravando a precária estrutura
judiciária brasileira e dando lugar à incidência desse fenômeno que, como se viu, nada tem de
novo, mas que se afigura como uma incongruência do sistema.
Não me restringi, contudo, ao apontamento dos erros havidos no ordenamento
jurídico brasileiro.
Busquei ir além, estabelecendo de forma clara e precisa a solução a ser dada à
hipótese.
O presente trabalho certamente atuará como agente propagador da idéia de um
controle pessoal mais rígido sobre o trabalho exercido pelos juízes que, sabedores das
circunstâncias apontadas, certamente agirão no sentido de conferir maior zelo na condução do
processo, cumprindo não só com a sua função institucional mas exercendo, também, seu papel
de poder do Estado.
108
REFERÊNCIAS
AFONSO DA SILVA, Jo. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo:
Malheiros Editores, 2005.
AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho da. A reintrodução do decreto autônomo com a E. C.
32/01. Neofito. Disponível em: <http://www.neofito.com.br/informativo.htm>. Acesso em:
20 jul. 2007.
ARISTÓTELES. A política. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
ATALIBA, Geraldo. República e constituição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
1985.
AZEVEDO, Álvaro Villa. Teoria geral das obrigações. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1999.
BARBOSA, André Luis Jardini. O valor da sentença penal condenatória fundamentada
em impressões subjetivas do magistrado. Monografia de conclusão de curso de pós-
graduação lato sensu junto à Escola Paulista da Magistratura. São Paulo, 2005.
BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 2004.
BEDAQUE, Jo Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. 2. ed. o
Paulo: Malheiros Editores, 2006.
BÍBLIA SAGRADA. Tradução de João Ferreira de Almeida. Deerfield: Editora Vida, 1994.
BINENBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade:
um novo paradigma para o direito administrativo. Revista de Direito Administrativo.Rio
de Janeiro, n. 239, jan./mar. 2005.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.
BÜLOW, Oscar von. Die Lehre von den Prozesseinreden und den Prozessvorausetzungen.
Giessen: [s.e], 1868.
CAETANO, Marcello. Manual de direito administrativo. Lisboa, 1965.
CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do estado. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores,
[1995].
CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Os poderes do presidente da república.
Coimbra: Coimbra Editora, 1991.
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
109
CARVALHO, Alsio Dardeu de. Nacionalidade e cidadania. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
1956.
CATARINO, Ls Guilherme. A responsabilidade do estado pela administrão da justa: o
erro judicrio e o anormal funcionamento. Coimbra: Almedina, 1999.
CAVALCANTI, Thestocles Brandão. Teoria do Estado. 3. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1977.
CAVALIERI FILHO, rgio. Programa de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros,
2005.
CRETELLA NIOR, José. Curso de direito administrativo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1989.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva,
1985.
DEL VECCHIO, Giorgio. Evolução e involução no sistema jurídico. Tradução de Henrique
de Carvalho. Belo Horiznte: Líder, 2005.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2004.
DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Responsabilidade do estado pela função jurisdicional.
Belo Horizonte: DelRey, 2004.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 5. ed. São
Paulo: Saraiva, 1993.
FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Responsabilidade civil do Estado-juiz. Curitiba: Juruá,
1995.
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense,
1995.
FUNÇÕES típicas e atípicas dos poderes. Direitonet. Disponível em:
<http://www.direitonet.com.br/resumos/x/27/77/27/p.shtml>. Acesso em: 16 ago. 2007.
GOMES, Orlando. Obrigações. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978.
GOUVEA, Lúcio Grassi de. Cognição processual civil: atividade dialética e cooperação
intersubjetiva na busca da verdade real. In: Leituras complementares de processo civil.
Fredie Didier Jr. (org.). 3. ed. Salvador: Podivm Edições, 2005.
GRECO FILHO, Vicente Greco. Direito processual civil brasileiro. 13. ed. v. 3. São Paulo,
Saraiva, 2006.
GROPPALI, Alexandre. Doutrina do Estado. Tradução de Paulo Edmur de Souza Queiróz.
São Paulo: Saraiva, 1953.
HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Minidicionário houaiss da língua
portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
110
JÚNIOR, Humberto Theodoro. Código de processo civil anotado. 11. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2007.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos: ensaio sobre a
origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil. Tradução de Magda Lopes e
Marisa Lobo da Costa. Petrópolis: Vozes, 1994.
LOUREIRO FILHO, Lair da Silva. Responsabilidade pública por atividade judiciária. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito triburio. 26. ed. São Paulo: Malheiros Editores,
2005.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de processo civil. Processo
de Conhecimento. v. 2. 6. ed. revista, atualizada e ampliada da obra Manual do processo de
conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
MARTINS, Ives Gandra da Silva. O estado de direito e o direito do Estado. São
Paulo: Bushatsky, 1977.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 31. ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2005.
MELLO, Celso Annio Bandeira de. Curso de direito administrativo. o Paulo: Malheiros,
2004.
MESSIAS, Frederico dos Santos. Responsabilidade da administração pública. Neofito.
Disponível em: <http://www.neofito.com.br/artigos/art01/admin34.htm>. Acesso em: 20
jul. 2007.
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código de processo penal interpretado. 11. ed.São Paulo:
Atlas, 2007.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. 34. ed. v. 5. São Paulo: Saraiva,
2003.
MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis. Introdução, tradução e
notas de Pedro Vieira Mota. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2002.
MORSELLO, Marco bio. A responsabilidade civil e a socialização dos riscos. O sistema
neozelandês e a experncia escandinava. Revista da Escola Paulista da Magistratura. Ano 7,
n. 2, jul./dez. 2006.
NERY JÚNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil
comentado e legislação extravagante. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 3. ed. São Paulo: RT,
2004.
111
NUNES, Elpídio Donizetti. Redigindo a sentença cível. 3. ed. Belo Horizonte: DelRey,
2005.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 7. ed. Belo Horizonte: Del Rey,
2007.
OLIVEIRA, José Carlos de. Responsabilidade patrimonial do Estado: danos decorrentes de
enchentes, vendavais e deslizamentos. Bauru, SP: Edipro, 1995.
PELUSO, César (coord.). Código civil comentado. Doutrina e jurisprudência. o Paulo: Manole,
2007.
PIZATO, Octavio Pelucio Ottoni. Breve histórico da responsabilidade extracontratual do
Estado e seu tratamento no direito positivo brasileiro. Jus navigandi. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5272>. Acesso em: 20 jul. 2007.
ROSENVALD, Nelson. Direito das obrigações. 3. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2004.
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 25. ed. v. 1.
São Paulo: Saraiva, 2007.
SAWEN FILHO, João Francisco. Da responsabilidade civil do Estado. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2001.
SERRANO JÚNIOR, Odoné. Responsabilidade civil do estado por atos judiciais: O
serviço judiciário visto como um serviço público essencial num estado democrático de
direito. Curitiba: Juruá, 1996.
SILVA, Carlos Roberto Souza da. A delinqüência e o direito penal. Neofito. Disponível em:
<http://www.neofito.com.br/artigos/art01/penal116.htm >. Acesso em: 20 jul. 2007.
SILVA, Juary C. A responsabilidade do estado por atos judiciários e legislativos. São
Paulo: Saraiva, 1985.
SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Poderes éticos do juiz. A igualdade das partes e a
repressão ao abuso no processo. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1987.
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. o Paulo: Malheiros Editores,
1993.
________. Fundamentos de direito público. 4. ed. São Paulo: Malheiros Editores,
2001.
TEPEDINO, Gustavo. Do sujeito de direitos à pessoa humana. Revista Trimestral de
Direito Civil. Editoral. v. 2, 2000.
TRUJILLO, Élcio. Responsabilidade do Estado por ato lícito. São Paulo: Editora de
Direito, 1995.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo