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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA - MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA DA FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
DIREITO À RESISTÊNCIA NA FILOSOFIA DE THOMAS HOBBES
CLÓVIS BRONDANI
CURITIBA
2007
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
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SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA - MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO:
HISTÓRIA DA FILOSOFIA MODERNA E
CONTEMPORÂNEA
CLÓVIS BRONDANI
DIREITO À RESISTÊNCIA NA FILOSOFIA DE THOMAS HOBBES
Dissertação apresentada como requisito parcial à
obtenção do grau de Mestre do Curso de Mestrado
em Filosofia do Setor de Ciências Humanas, Letras e
Artes da Universidade Federal do Paraná.
Orientador: Profa. Dra. Maria Isabel Limongi
CURITIBA
2007
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Agradecimentos
Que fiquem aqui expressos meus agradecimentos especiais a Maria Isabel Limongi, pela
orientação sempre atenta e pela sua disponibilidade, sem a qual este trabalho não teria
sido realizado; a André M. Duarte e Natália Maruyama, que participaram de minha
banca de qualificação; aos meus colegas do programa de Pós- Graduação da UFPR com
os quais tive oportunidade de discutir partes deste texto; a Vinícius B. Figueiredo e Luís
A. Alves Eva, professores do programa de Pós-Graduação em filosofia da UFPR, ao
meu amigo Rafael Sega, que sempre incentivou e apoiou meus estudos; e por fim à
Andréia, por todo incentivo e paciência durante todo o processo de pesquisa.
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Resumo
O direito à resistência é concebido por Hobbes como a “verdadeira liberdade dos
súditos”. Segundo o filósofo inglês, nos momentos em que a vida é ameaçada os súditos
podem, sem injustiça, recusar obediência ao soberano. Entretanto, toda a argumentação
de Hobbes conduz à concepção de que a injustiça consiste no rompimento das
promessas do contrato. Como então conceber uma resistência por parte dos súditos que
não seja injusta? Esta consiste na primeira questão de nosso trabalho: a busca de uma
justificativa do direito à resistência. Esta justificativa será encontrada em dois conceitos
fundamentais para Hobbes: o direito natural e o contrato social. O direito natural
consiste no fundamento do direito à resistência na medida em que esta consiste naquela
parte do direito natural que permanece com o súdito após a instituição do Estado Civil.
O argumento do contrato social serve de complemento para pensar o direito à
resistência, dado que é o artifício pelo qual se transferem direitos. Desta forma, o
próprio artifício do contrato se coloca como um impedimento à transferência total do
direito natural por parte do indivíduo, constituindo-se desta forma numa justificativa
para o direito à resistência. A partir da admissão do direito à resistência no interior do
Estado Civil, partimos para uma análise da articulação deste direito com o poder
soberano. A ciência civil hobbesiana produz um poder soberano irresistível. Como
pensar então a admissão da resistência diante de um poder soberano irresistível? A
análise desta relação constitui a segunda questão deste trabalho. Procuramos apontar
que a resistência, ao se colocar contra o poder soberano, produz uma tensão interna no
Estado civil. Procuramos então provar que, apesar de inegável, esta tensão não se
constitui como uma contradição no pensamento hobbesiano, dado que a tensão
permanece na esfera da positividade, constituindo-se como uma disputa de poder e não
como uma contradição jurídica. Desta forma, é possível admitir que o direito à
resistência não se constitui como uma incoerência no pensamento hobbesiano, apesar de
provocar uma tensão com o poder soberano.
Palavras-Chave: Resistência, direito natural, obediência, contrato social, Thomas
Hobbes.
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Abstract
The right to resistance is conceived by Hobbes as the “true freedom from the subjects”.
According to the English philosopher, when life is threatened the subjects can, without
rightness, to refusal obedience to the sovereign. However, all these Hobbes’s arguments
lead to the conception that the injustice consists of the rupture of the covenant promises.
How can one conceive a resistance by the subject’s part which is not unjust? This
consists on the first question of our research: the search for a justification of the right to
resistance. This justification will be met in two fundamental concepts to Hobbes: the
natural right and the social covenant. The natural right consists on the basis of the right
to resistance according to this consists on that part of the natural right which remains
with the subject after the establishment of the Civil State. The argument of the social
covenant is a complement to thinks the right to resistance, given that is the artifice by
which rights are transferred. So, the artifice of the social covenant is an obstruction to
the total transference of the natural right by the individual, this way composing in a
reason to the resistance right. Since the acceptation of the right to the resistance in the
interior of the Civil State, we go to an analysis of the articulation of this right as a
sovereign power. The hobbesin civil science produces an irresistible sovereign. How to
think about the admission of the resistance in front of an irresistible sovereign power?
The analysis of this relation constitutes the second question of this work. We tried point
out that the resistance, placing against the sovereign power, produces an internal tension
in the civil state. We tried to prove that, despite of evident, this tension does not
constitute as a contradiction in the hobbesian thoughts, since that the permanent tension
in the positive sphere, establishing as a power dispute and not as a juridical
contradiction. So that, it is possible to admit that the right to the resistance does not
constitute itself as an incoherence to the hobbesian thought, by no means, it provokes a
tension in the sovereign power.
Key-words: Resistance, natural right, obedience, social covenant, Thomas Hobbes.
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Sumário
Introdução........................................................................................................................8
Capítulo I: O direito à resistência...............................................................................16
1.O problema do direito à resistência..............................................................................16
2.Resistência e Rebelião..................................................................................................29
2.1. O problema da Rebelião........................................................................................30
2.2. A rebelião e a análise das doutrinas sediciosas no Leviatã...................................34
Capítulo II: O fundamento do direito à resistência....................................................41
1. O direito natural como fundamento do direito à resistência........................................41
1.1. O estado natural...................................................................................................43
1.2. O conceito de direito natural...............................................................................50
1.3. Liberdade natural................................................................................................52
1.4. A noção de posse e o direito a todas as coisas....................................................59
1.5. O sentido negativo do direito natural..................................................................67
2.O contrato como justificativa do direito à resistência.................................................74
2.1. Razão e linguagem...............................................................................................75
2.3. O contrato como possibilidade de outra perspectiva para a compreensão do
direito à resistência.............................................................................................91
Capítulo III: O direito à resistência e o poder soberano............................................94
1. Os Direitos do Soberano e o Direito à Resistência......................................................94
2. O Direito de Punir como contraponto ao direito à resistência...................................116
Conclusão.....................................................................................................................128
Referências Bibliográficas..........................................................................................132
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Nota sobre as referências.
As referências às obras de Hobbes são feitas no corpo do texto, entre parênteses.
A numeração das páginas do Leviatã refere-se à edição brasileira da Abril Cultural de
1997. As referências ao Elementos da Lei, ao Do Cidadão e ao Sobre o Corpo indicam
em algarismo romano a parte ou seção da obra, e em algarismos arábicos o capítulo e o
parágrafo, sucessivamente. A numeração das páginas do Elementos da Lei tomam por
base a edição brasileira da Editora Ícone, de 2002. Para o Do Cidadão as paginas
referem-se à edição brasileira da Martins Fontes, de 2002. A numeração das paginas do
Sobre o Corpo referem-se à edição do IFCH/UNICAMP, DE 2005. As referências às
obras de comentadores ou demais autores são feitas em notas de rodapé, apresentando o
autor e a obra, respectivamente.
ABREVIATURAS:
EL = Elementos da Lei Natural e Política.
L = Leviatã
DCi = Do Cidadão
DCo = Sobre o Corpo
B = Behemoth
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INTRODUÇÃO
No capítulo XXI do Leviatã, Hobbes propõe que a liberdade dos súditos está
“apenas naquelas coisas que, ao regular suas ações, o soberano permitiu” (L, XXI, p.
173). Esta concepção de liberdade civil proposta inicialmente por Hobbes é derivada
diretamente do seu conceito geral de liberdade concebida como “ausência de
impedimentos”. O conceito em questão, por sua vez, é derivado por Hobbes de um
conceito da física: a inércia. A liberdade é tratada aqui como ausência de impedimentos
à ação humana, ou seja, liberdade existe apenas naquelas ações que não são proibidas
pela lei. A lei torna-se o impedimento para a ação e, na sua ausência, a liberdade se
efetiva. Por isso o súdito tem liberdade de comprar, vender, realizar contratos, escolher
residência, entre outras ações que são permitidas pelo soberano.
Entretanto, ainda no mesmo capítulo XXI do Leviatã, Hobbes trata de outra
forma de liberdade civil, à qual ele denomina “a verdadeira liberdade dos súditos, ou
seja, quais são as coisas que, embora ordenadas pelo soberano, não obstante eles podem
sem injustiça recusar-se a fazer” (L, XXI, p. 175). Esta “verdadeira liberdade”
ultrapassa os limites do conceito de liberdade como ausência de impedimento,
caracterizando-se como uma forma de reação ao impedimento, ou seja, um reação à lei.
Quer dizer que, de acordo com Hobbes, há situações na vida do súdito em que, mesmo
havendo a lei, ele pode desobedecer, sem com isso cometer injustiça. Esta
desobediência consiste no objeto de estudo desta pesquisa: o direito à resistência. Este
direito deve ser compreendido como a liberdade de desobedecer à lei, sem que esta
desobediência constitua uma forma de injustiça.
Porém, não é sem percalços que podemos conceber a desobediência em Hobbes
como sendo justa, tendo visto que, para o filósofo, a justiça consiste no cumprimento do
contrato, artifício que fundamenta a obediência civil. Logo, aparentemente, toda
desobediência deveria ser compreendida como injusta tendo em vista que todos os
súditos contrataram em obedecer ao soberano em troca da proteção de suas vidas. No
Leviatã Hobbes funda a obrigação a partir do argumento da autorização, que se dá
através do ato contratual:
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Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordam
e pactuam, cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou
assembléia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar
a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção,
tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele, deverão
autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembléia de homens, tal
como se fosse seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com
os outros e serem protegidos dos restantes dos homens. (L, XVIII, p. 145).
O artifício da autorização cria a lógica da obediência através da qual o soberano
é instituído com poder absoluto sobre os súditos. O contrato de autorização funda a
obediência e se os súditos autorizaram todas as ações do soberano como sendo as suas,
é evidente que o soberano possui o direito de realizar qualquer ação sem ser limitado
pela vontade dos súditos. Seguindo esta lógica, toda a desobediência constituiria uma
injustiça, em virtude de que o contrato cria o vínculo da obediência incondicional. A
desobediência torna-se uma injustiça na medida em que representa o não cumprimento
de uma promessa feita no contrato: “Mas, depois de celebrado um pacto, rompê-lo é
injusto. E a definição de injustiça não é outra senão o não cumprimento de um pacto. E
tudo que não é injusto é justo.” (L, XVIII, p. 145).
Se a justiça se caracteriza pelo cumprimento de contratos, como podemos
conceber um direito à resistência, caracterizado como uma forma de desobediência,
dado que por desobediência compreende-se o não cumprimento das promessas feitas no
contrato? Este é um dos problemas ao qual nos dedicamos nesta pesquisa: a busca dos
fundamentos para o direito da resistência, que nos permitem pensar este direito como
uma forma justa de desobediência.
O outro problema ao qual nos dedicamos consiste na admissão da resistência,
mesmo que fundamentada, no interior do Estado absoluto. A forma como Hobbes
concebe a soberania, através do conceito de autorização, concede-lhe um caráter
irresistível. O poder do soberano é de tal forma que, por ser absoluto, não pode ser
resistido pelos súditos. O poder absoluto na mão do soberano não somente é uma
decorrência lógica da autorização, mas também uma necessidade para o bom
funcionamento do sistema. A partir da constatação hobbesiana de que os contratos, por
si só, não obrigam, e que a lei de natureza somente obriga em foro interno, faz-se
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necessário um poder forte o suficiente para poder conformar as individualidades à
vontade do soberano, que se traduz em forma de lei. A descrição psicológica que
Hobbes faz do homem nos conduz à conclusão de que ele é um ser eminentemente
passional, e que suas paixões são contrárias à lei natural. Isto de certa maneira invalida a
possibilidade coercitiva da lei natural. Isto pode ser tomado como válido também para a
lei positiva. Por si só, a lei positiva não tem força de coerção, da mesma maneira que o
contrato também não a possui. Necessita-se assim da força concentrada no soberano
que, através da punição, força os homens à obediência. Com isso não se quer dizer que
o fundamento da obediência seja simplesmente a força. O fundamento da obediência
está no contrato de autorização, mas a força é necessária para fazer as vontades
individuais convergirem à obediência da lei. Desta maneira o direito à resistência se
coloca como um contraponto ao poder soberano. Percebe-se em Hobbes o surgimento
de uma tensão entre o poder irresistível do soberano e direito à resistência. É possível
admitir esta tensão no interior do Estado, sem que se coloque em risco a coerência
argumentativa de Hobbes? Esta questão perfaz nosso segundo problema.
Um primeiro capítulo de nosso trabalho tratará então de uma descrição do direito
à resistência e de uma análise dos casos propostos por Hobbes nos quais ela se efetiva.
Procuramos apontar uma distinção que percebemos no texto hobbesiano quanto ao
direito à resistência. De acordo com nossa leitura, Hobbes propõe fundamentalmente
dois modos de resistência ao poder soberano. A primeira forma de resistência consiste
na desobediência a uma ordem do soberano que possa ameaçar a vida do súdito. É o
caso da seguinte passagem:
Portanto, se o soberano ordenar a alguém (mesmo que justamente condenado)
que se mate, se fira ou se mutile a si mesmo, ou que não resista aos que o
atacarem, ou que se abstenha de usar os alimentos, o ar, os medicamentos, ou
qualquer outra coisa sem a qual não poderá viver, esse alguém tem a liberdade
de desobedecer. (L, XXI, p. 175)
Neste caso específico trata-se de uma ordem direta do soberano que, ao ameaçar
a vida do súdito, justifica o direito à resistência. Nesta circunstância, o súdito
desobedece a uma ordem específica do soberano que está a ameaçá-lo.
Uma segunda forma de resistência ocorre quando o Estado perde a capacidade
de garantir uma condição de segurança favorável à manutenção da vida. Neste caso, o
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Estado não está ameaçando diretamente o súdito. Mas é a sua insuficiência no exercício
do governo que motiva ao súdito desobedecer e escolher ele mesmo os próprios meios
para a defesa da vida. Hobbes afirma: “Entende-se que a obrigação dos súditos para
com o soberano dura enquanto, e apenas enquanto, dura também o poder mediante o
qual ele é capaz de protegê-los” (L, XXI, p. 178).
Procuramos desenvolver os problemas específicos que cada uma das formas de
resistência produz no interior da filosofia política de Hobbes. A segunda forma nos
parece mais problemática do que a primeira, em virtude da tese hobbesiana de que
somente o soberano pode decidir acerca de assuntos relativos à segurança pública. O
problema é que no caso desta forma de resistência ocorre justamente a possibilidade de
uma decisão por parte do súdito a respeito da segurança pública, o que, de acordo com
Hobbes não poderia acontecer. Logo, esta segunda forma de resistência apresenta uma
dificuldade maior, em relação à primeira, de articulação com o poder soberano.
Ainda neste capítulo apontamos a distinção importante feita por Hobbes entre
resistência e rebelião. Os dois conceitos não podem ser tomados como sinônimos no
pensamento de Hobbes, e nos parece essencial ao nosso trabalho apontar esta distinção.
A resistência, como já afirmamos, é a desobediência sem injustiça. A rebelião ou
revolta, segundo Hobbes, é a desobediência injusta. Ou seja, a desobediência em virtude
de outros motivos que não a defesa da vida. Procuramos, portanto, demonstrar a
essência irracional da rebelião proposta por Hobbes, analisando as suas causas para
comprovar que a rebelião não possui qualquer fundamento na lógica contratual.
O segundo capítulo trata do fundamento do direito à resistência. Procuramos
responder à pergunta: como pode uma desobediência ser justa? Para Hobbes, a injustiça
consiste no descumprimento da palavra dada no contrato. Se o homem prometeu
obediência, como pode haver ainda um direito à resistência? Para tanto procuramos o
fundamento para a resistência a partir de duas vias: o conceito de direito natural e a
perspectiva do artifício contratual. Sob estes dois conceitos está erigida uma lógica que
nos permite pensar a resistência como uma forma justa de desobediência.
O primeiro fundamento do direito à resistência é encontrado no conceito de
direito natural. O direito à resistência pode ser compreendido a partir da perspectiva de
que o direito natural não pode ser totalmente abandonado pelo súdito no ato contratual.
Permanecendo assim, após a instituição do Estado, uma parte do direito natural,
especificamente, o direito à auto-defesa. Este direito, segundo Hobbes, não pode ser
abandonado. Entretanto, não é de modo simples que se retira esta característica de
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inalienabilidade do direito natural a partir unicamente de seu conceito. Isto por que o
conceito de direito natural possui um sentido negativo em Hobbes. Demonstramos esta
tese no texto a partir de dois argumentos. O primeiro se baseia na constatação de que há
uma dificuldade em precisar o conteúdo específico do direito natural em Hobbes,
devido à sua definição como liberdade de usar o poder para se preservar. Este
argumento tem como base a concepção de liberdade hobbesiana, à qual é
essencialmente negativa. Derivada do conceito de inércia, a liberdade hobbesiana é
entendida negativamente a partir da ausência de impedimentos. Portanto, somente se
efetiva na falta de um impedimento que a limite. Esta falta de positividade da noção de
liberdade nos conduz a outro argumento: sendo o direito uma liberdade que só se efetiva
na ausência de impedimento, no momento da instituição do Estado, que consiste num
impedimento, este direito seria cancelado. Porém, o que ocorre na teoria hobbesiana é
que não há este cancelamento total do direito natural. Ao contrário, parte dele
permanece no Estado civil Desta forma, unicamente a partir da noção de direito natural,
torna-se difícil a compreensão da sua permanência após a instituição do Estado. Sendo
assim, complementamos a questão dos fundamentos, a partir da perspectiva do artifício
contratual.
O recurso ao contrato nos permite a análise da resistência de outra perspectiva.
Tomado como ato da vontade humana, o contrato deve estabelecer sempre a
possibilidade de um bem futuro. Porque todos os atos da vontade humana devem
necessariamente contemplar um benefício futuro. Por essa perspectiva podemos pensar
que seria impossível a realização de um contrato no qual o súdito se comprometeria a
não se defender da força que ameace sua vida. Desta forma, a própria lógica da
construção racional exige o direito de resistência ao impossibilitar a transferência do
direito de auto-defesa. Demonstramos assim toda a argumentação de Hobbes a respeito
da razão como um artifício da linguagem, analisando os conceitos de razão e linguagem
propostos por Hobbes, e sua conseqüente influência na determinação do artifício
contratual. Fundamentalmente a tese que defendemos a respeito desta questão é que um
contrato em que alguém se comprometa a não se defender da força é logicamente
contraditório e, portanto, nulo.
O terceiro capítulo deste trabalho é dedicado à análise da articulação entre
direito à resistência e poder soberano. Procuramos demonstrar o modo como Hobbes
constrói o conceito de soberania a partir do argumento da autorização, através da qual
os súditos autorizam todas as ações do soberano. A partir deste argumento Hobbes
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demonstra o caráter irresistível do poder soberano. Esta conclusão a respeito do caráter
irresistível do poder soberano embasa a nossa proposta de que há uma tensão entre
direitos do soberano e direito à resistência perpassando a teoria de Estado proposta por
Hobbes. Nosso objetivo então é compreender qual o estatuto desta tensão, procurando
provar que ela não compromete a construção lógica da ciência hobbesiana. Ou seja, a
tensão não significa uma contradição lógica e, portanto, não compromete a estrutura
jurídica da filosofia de Hobbes. Entretanto, é inerente ao sistema hobbesiano esta tensão
entre súdito e soberano que, ao se efetivar no direito à resistência, abre espaço para uma
disputa de poder entre súdito e soberano. Esta disputa de poder está estribada sobre o
sistema jurídico de Hobbes, pois encontramos tanto um argumento coerente para retirar
os direitos do soberano como também para o direito à resistência.
Desta forma, a nossa leitura do problema do direito à resistência em Hobbes nos
permite vislumbrar que, mesmo sendo o objetivo de Hobbes a construção de um sistema
que substitua relações de poder por relações de direito, sua construção jurídica ainda
assim permite a existência de uma disputa de poder devidamente fundamentada na
própria lógica. O que, de maneira alguma desmerece a tarefa desse ilustre pensador do
século XVII. Natureza e artifício se fazem presentes em toda obra Hobbesiana. A
natureza - o homem e suas paixões - está na base do conceito de estado de natureza. O
propósito de Hobbes é resolver o problema da guerra através do artifício – a razão, o
contrato e, consequentemente, o Estado - mediante a construção de um sistema racional
que cancele as relações de poder. Entretanto, em toda construção racional proposta
transparece um conteúdo da natureza (direito natural tornado resistência) que provoca
uma tensão constante no Estado civil entre súdito e soberano.
Para o desenvolvimento da pesquisa tomamos por base a argumentação exposta
nas três apresentações da filosofia política de Hobbes: Elementos da Lei, Do Cidadão e
Leviatã. Sendo esta última tomada como fonte principal, tendo em vista que o tema da
resistência não aparece de modo similar nas três obras. Efetivamente percebe-se um
desenvolvimento progressivo do conceito da primeira à última obra. Nos Elementos da
Lei o problema da resistência é inexpressivo. Somente a partir do Do Cidadão é que lhe
é conferido o tratamento mais adequado e, finalmente, no Leviatã o tema merece uma
exposição mais profunda e detalhada. Portanto, é principalmente sobre esta última obra
que nossos esforços se concentrarão, sem, no entanto, deixarmos de nos utilizar,
oportunamente, das outras duas obras políticas.
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Quanto aos Elementos da Lei e ao Do Cidadão é importante frisar que mesmo
não se encontrando neles um desenvolvimento do tema da resistência no mesmo nível
do que está exposto no Leviatã, os textos se tornam importantes se considerarmos que
para tratar do problema da resistência é necessário compreender os inúmeros outros
conceitos Hobbesianos tais como direito natural, liberdade, moral, obediência, entre
outros, os quais se encontram nos referidos textos. Sendo assim, recorrer também a
essas duas obras nos parece adequado na tentativa de compreender a argumentação
hobbesiana a respeito do direito à resistência. Ainda que ocorra uma pequena, mas
nítida, mudança na estrutura conceitual de alguns temas da política hobbesiana no
decorrer das suas três apresentações sobre o tema, tentamos considerar o aspecto
sistemático da obra hobbesiana exposto nesses três textos. Desta forma, mesmo
considerando as possíveis mudanças conceituais, tendemos a conceber as três obras
como parte de um sistema coerente de pensamento.
Ainda na tentativa de uma compreensão abrangente do problema da resistência,
outros textos de autoria do filósofo inglês também são utilizados, na medida em que
possam oferecer algumas luzes para o problema, assim também como comentadores
autorizados da obra hobbesiana.
Para a análise do problema da resistência em Thomas Hobbes nos propusemos,
na medida do possível, a nos concentrarmos na estrutura argumentativa dos seus textos,
deixando de lado a análise do contexto histórico no qual o filósofo esteve envolvido e
que, como se sabe, teve grande influência no desenvolvimento de sua filosofia.
Entretanto, Hobbes sempre foi considerado um pensador extremamente sistemático, um
dos maiores do século XVII, o que nos permite a possibilidade de fazer uma leitura de
seus textos separadamente da condição histórica na qual foram produzidos. As menções
aos fatos históricos não foram totalmente abolidas em nosso texto, tendo em vista
justamente a motivação política por trás dos textos do filósofo inglês. Entretanto, o
caráter sistemático da obra de Hobbes faz dele um autor que está acima das simples
discussões político-ideológicas de seu tempo, permitindo a leitura de seus textos a partir
unicamente de seu esquema conceitual. Ou seja, Hobbes não é um simples panfletário
como o foram muitos dos autores envolvidos na revolução de 1642 e sobre os quais
recai apenas um mero interesse histórico atualmente. Assim, as menções a fatos
históricos do contexto político em que Hobbes esteve inserido são feitas apenas em
momentos extremamente necessários, mas nunca são tratadas de modo profundo como
seria necessário a uma análise historicista dos textos. Tais eventos são mencionados
15
muito mais num sentido de compreender as motivações hobbesianas do que no sentido
de compreender a estrutura de sua argumentação.
16
Capítulo I
O Direito de Resistência
1. O problema do direito de resistência
A existência do direito à resistência é questão de extrema relevância para a
filosofia política hobbesiana. Sua admissão no pensamento hobbesiano conduz a
implicações bastante sérias para a sua filosofia. Ao admitirmos que sua existência não
seja efetiva, o argumento contratual torna-se discutível, pois seu objetivo é a
preservação dos indivíduos. Logo, dever-se-ia admitir a possibilidade de autodefesa. É o
medo que os indivíduos têm dos seus semelhantes que conduz ao pacto. Diante de uma
situação de insegurança no estado de natureza, na qual a vida é constantemente
ameaçada, os homens racionalmente concebem que o melhor meio para a conservação
da vida é a busca da paz, a qual somente é possível mediante um contrato no qual todos
cedem parte de seu direito natural. Porém, Hobbes deixa claro que os indivíduos não
podem ceder o direito a se defender de um ataque, seja ele proveniente de um indivíduo
ou do próprio soberano. Concordar em não se defender de um ataque futuro seria uma
incoerência, porque os indivíduos somente contratam em nome de uma garantia de vida.
Ou seja, o pacto é feito com vistas à proteção da vida. Um pacto feito dessa maneira,
com o objetivo de preservação da vida, no qual o indivíduo não teria mais o direito a se
defender de um ataque, seria contraditório.
Ao mesmo tempo em que se configura um direito à resistência ao súdito,
também se deduz, a partir do argumento contratual, a necessidade de um poder absoluto
por parte do soberano, cuja característica principal é justamente seu caráter
“irresistível”. Este poder absoluto é constituído a partir da prerrogativa do contrato, do
qual são deduzidos direitos que outorgam ao soberano um estatuto de potência superior
a todas as vontades individuais.
Ocorre assim uma tensão no interior da estrutura estatal proposta por Hobbes: de
um lado o direito à resistência e de outro o poder absoluto e irresistível do soberano.
Como é possível então, conciliar o direito à resistência com os direitos do soberano que
conferem a ele um poder absoluto sobre seus súditos? A tensão se aprofunda
17
especialmente ao se contrastar, especificamente, direito à resistência com o direito de
punição, o qual faz parte do conjunto de direitos atribuídos ao soberano. O direito de
punir é uma das bases da soberania. Esta, para poder subsistir, deve possuir poder
suficiente para conformar as vontades individuais aos ditames da lei. Trata-se de uma
prerrogativa do Estado, sem a qual é impossível garantir a segurança dos indivíduos. A
punição é essencial para conformar as vontades individuais em uma só, evitando assim
as transgressões da lei. Os súditos, em contrapartida, possuem, em casos específicos, o
direito de resistir à punição: “Porque pelo que anteriormente ficou dito ninguém é
considerado obrigado pelo pacto a abster-se de resistir à violência” (L, XXVII, 235).
Este é apenas um dos possíveis casos onde a autoridade do soberano entra em conflito
com um direito específico do súdito. Hobbes inicia o capítulo XXVIII do Leviatã
abordando este conflito. O que nos leva a crer que ele estava consciente da sua
existência no interior de sua ciência civil.
O problema do direito à resistência, no entanto, deve ser colocado de modo
mais abrangente do que no estrito círculo da punição. O súdito - é o que queremos aqui
demonstrar - possui em algumas situações específicas o direito de resistir não só à
punição, mas ao Estado como um todo. E é esta tensão entre direito de resistir e o poder
soberano instituído que motiva o presente trabalho. Buscaremos apontar, em nossa
leitura, como Hobbes concebe o direito à resistência, demonstrando seus fundamentos
racionais a partir da lógica contratual proposta pela ciência civil de Hobbes, e,
finalmente, apontar os casos nos quais o direito de resistência e poder soberano operam
uma tensão, um jogo de forças no interior do Estado. Para tanto, partiremos dos casos
apontados por Hobbes nos quais se efetiva o direito à resistência. Somente depois disso
poderemos analisar a tensão entre o direito à resistência e o poder soberano e as
implicações desta questão para filosofia política de Hobbes.
O direito de resistência no pensamento de Hobbes se coloca em duas vias: o
direito de resistir diretamente a uma ordem do soberano, quando tal ordem ameaça
diretamente a vida, e a resistência ao Estado quando este não supre mais as garantias de
uma vida segura e tranqüila, não realizando assim o fim para o qual ele foi instituído.
Vejamos mais detalhadamente em que momentos a resistência é apontada por Hobbes
em seus textos.
No Leviatã a resistência é definida como “... a verdadeira liberdade dos súditos,
ou seja, quais são as coisas que, embora ordenadas pelo soberano, não obstante eles
18
podem sem injustiça recusar-se a fazê-lo” (L, XXI, 175). Na seqüência do texto são
enumerados os momentos em que a resistência se apresenta.
O súdito tem direito a resistir contra qualquer ação por parte do Estado que
coloque em risco a preservação da sua vida. Isto porque, “os pactos no sentido de cada
um abster-se de defender seu próprio corpo são nulos” (L, XXI, p.175). A resistência
neste caso não pode ser pensada apenas como a simples defesa física, se estendendo a
qualquer ordem do soberano que possa vir a ameaçar a sua sobrevivênica:
Portanto, se o soberano ordenar a alguém (mesmo que justamente condenado)
que se mate, se fira ou se mutile a si mesmo, e que não resista aos que o
atacarem, ou de se abster de usar os alimentos, o ar, os medicamentos, ou
qualquer outra coisa sem a qual não poderá viver, esse alguém tem a liberdade
de desobedecer. (L, XXI, p. 175)
É permitido ao súdito também recusar a confissão, mesmo sendo culpado, por
que para Hobbes um pacto não pode obrigar ninguém a acusar a si mesmo. “Se alguém
for interrogado pelo soberano ou por sua autoridade, relativamente a um crime que
cometeu, não é obrigado (a não ser que receba garantia de perdão) a confessá-lo” (L,
XXI, p. 176). Em outras palavras, o súdito jamais pode ser obrigado a testemunhar
contra si mesmo. Hobbes outorga ao súdito o direito de mentir ou recusar-se a falar
quando acusado de qualquer infração.
Nas missões perigosas, que coloquem em risco a vida do súdito, Hobbes também
aponta o direito de resistir. Neste caso, para determinar se o direito é justificado, deve-
se observar o objetivo da missão. Ela deve estar em concordância com o objetivo da
própria instituição do Estado: a paz e a segurança. Hobbes afirma: “Portanto, quando
nossa recusa de obedecer prejudica o fim em vista do qual foi criada a soberania, não há
liberdade de recusar; mas caso contrário há essa liberdade” (L, XXI, p. 176).
Outra possibilidade de direito à resistência ocorre em relação ao serviço militar.
Existem dois casos em que, segundo Hobbes, não é ilegítimo negar-se a combater no
exército. Um súdito pode recusar legitimamente o serviço militar, caso ele se faça
substituir por um soldado suficiente em seu lugar. A recusa pode acontecer também
devido ao medo natural da morte. O medo, de acordo com Hobbes, justifica a fuga de
uma batalha. Alguns homens têm uma natureza mais fraca, feminina, e no momento do
combate não possuem coragem suficiente. É natural que debandem, e o fazem sem
19
cometer injustiça. “Quando dois exércitos combatem sempre há os que fogem, de um
dos lados, ou de ambos; mas quando não o fazem por traição, e sim por medo não se
considera que o fazem injustamente, mas desonrosamente” (L, XXI, p. 176). O medo,
de acordo com Hobbes, é o recurso à natureza, que impele o homem a fugir da morte
iminente, o maior de todos os males possíveis. Não se trata, portanto, de traição, mas de
um impulso natural que deve ser perdoado.
Estes são casos nos quais o súdito tem direito à resistência individualmente.
Hobbes aponta também um direito coletivo de resistência. Este ocorre quando um grupo
de homens, já condenados, que esperam a morte, se unem, pegando em armas, resolvem
defender-se:
1
Mas caso um grande número de homens em conjunto tenha já resistido
injustamente ao poder soberano, ou tenha cometido algum crime capital, pelo
qual cada um deles pode esperar a morte, terão eles ou não a liberdade de se
unirem e se ajudarem e defenderem uns aos outros? Certamente que a têm: por
que se limitam a defender suas vidas, o que tanto o culpado como um inocente
podem fazer. (L, XXI, p. 176-77)
A resistência é assim ampliada para a coletividade. Um grupo de homens, já
culpados por algum crime anterior, une-se e luta em legítima defesa. “Este é o único
texto em que Hobbes dá uma dimensão coletiva ao direito de resistência”
2
. Nos demais
casos, Hobbes apenas reconhece que individualmente o homem pode resistir.
Os casos expostos até aqui se referem à resistência diretamente a uma lei ou
ordem do soberano. Toda resistência a uma lei específica é também uma resistência ao
Estado como um todo. Mas o que queremos apontar é o fato de que a resistência ocorre
porque a ordem do soberano ameaça diretamente à vida do indivíduo. Razão pela qual
ele tem direito a se defender.
Entretanto, existe um outro modo de resistência, a qual não é motivada devido a
uma ordem ou lei do soberano, mas sim pela insuficiência da garantia de segurança por
parte do Estado. Nesses casos, o súdito não se sente ameaçado diretamente pelo Estado,
1
Este direito coletivo de resistir não deve ser apressadamente entendido como o direito à revolta social.
Trata-se tão somente de um grupo de condenados, que tendo a morte como única perspectiva, fazem valer
o seu direito de defender a vida. Iremos, mais adiante analisar esta questão e sua relação possível com a
rebelião ou revolta social. Ainda sobre esta questão da rebelião, ver o Behemoth de Hobbes, ou também
A Marca do Leviatã de Renato Janine Ribeiro.
2
Riberio, R. J. A Marca do Leviatã. Linguagem e Poder em Hobbes. São Paulo: Editora Ática, 2003, p.
78-79
20
mas se sente desprotegido por este. Trata-se de uma situação na qual aquelas promessas
feitas no pacto se invalidam porque o próprio objetivo pelo qual o pacto foi feito não
está sendo cumprido pelo soberano. Este modo de resistência ocorre quando o soberano
não apresenta mais garantias efetivas de segurança. Não há aqui uma ameaça do
soberano sobre o súdito. É a incapacidade do Estado para garantir a segurança que
coloca a vida em risco. Ou seja, para Hobbes, quando o soberano não apresenta mais
condições de garantir a paz e a segurança, os súditos não lhe devem mais obrigação.
“Entende-se que a obrigação dos súditos para com soberano dura enquanto, e apenas
enquanto, dura também o poder mediante o qual ele é capaz de protegê-los” (L, XXI, p.
178). Desta forma, se o Estado não garantir a segurança necessária, ele não cumpre o
objetivo do pacto, que é a garantia da vida. Sem proteção estatal, os súditos devem
procurá-la por si próprios: “O fim da obediência é a proteção, e seja onde for que um
homem a veja, quer em sua própria espada quer na de outro, a natureza manda que a ela
obedeça e se esforce por conservá-la” (L, XXI, p. 178).
Todas estas formas de resistência são abordadas de forma definitiva no Leviatã.
No entanto, as teses já aparecem de maneira menos clara nos textos políticos anteriores
de Hobbes. Nos Elementos da Lei Natural e Política
3
a resistência pouco é mencionada.
No capítulo 8 da parte II, intitulado “Das Causas da Rebelião”, Hobbes aponta apenas as
causas da rebelião e se ocupa em contestar o direito de rebelião, concebido por ele como
uma forma ilegítima de revolta. Coloca-se desta forma contra a rebelião, tomando-a
como uma das causas da “morte da república”. Poder-se-ia afirmar que há neste texto
uma posição teórica contrária ao direito de resistência. Porém, neste capítulo dos
Elementos da Lei Hobbes não está tratando do direito legítimo de resistência, o qual é
descrito de maneira mais profunda nos textos posteriores. Por mais que Hobbes utilize
em algumas passagens deste capítulo o termo resistência, não podemos conceber nesta
passagem dos Elementos o termo como significando aquele direito à resistência
apontado no capítulo já mencionado do Leviatã. A utilização do termo “resistência” se
dá no sentido de que a rebelião é uma forma de resistir ao soberano, mesmo que não
possua um fundamento nas premissas básicas da sua ciência civil. E Hobbes deixa claro,
no entanto, que não se trata de uma resistência de direito. Há apenas uma pretensão de
direito, mas não um direito legítimo como aquele tratado no Leviatã. Desta forma, neste
capítulo dos Elementos da Lei Hobbes se posiciona contrariamente à rebelião,
3
Doravante Elementos da Lei.
21
demonstrando que existem três motivos que levam os homens a sedição: o
descontentamento, a pretensão de direito, e a expectativa de êxito. Os três são
sistematicamente analisados por Hobbes no texto, que procura demonstrar a falta de
fundamento para estes. Concluímos então que daqui não podemos retirar elementos que
nos levem a justificar uma posição de Hobbes contrária à tese exposta no Leviatã. Até
porque existem no Leviatã e também no Do Cidadão capítulos correspondentes, nos
quais as causas da rebelião são também analisadas, e a pretensão de direito é refutada.
Tomemos então como objeto de análise o texto definitivo sobre a questão da
resistência: o Leviatã. Neste texto a resistência encontra-se exposta em dois grupos
básicos, que podem ser subdivididos em outros dois.
A primeira das formas é a resistência do súdito diretamente a uma ordem, lei ou
punição por parte do soberano a qual ameaça diretamente a sua vida. É o caso da
resistência à punição de morte, aos ferimentos e aprisionamentos, aos interrogatórios e
ao serviço militar. Essa forma de resistência subdivide-se em outras duas: a resistência
individual e a resistência coletiva. A resistência desse tipo em sua forma coletiva ocorre
quando um grande número de homens que já tenha resistido injustamente ao soberano,
tem liberdade de tomar armas, unir-se e defender-se uns aos outros (Cf. L, XXI, p. 176).
A outra forma de resistência é aquela feita não diretamente a alguma lei
específica por que esta ameace a vida dos indivíduos, mas aquela feita ao Estado como
um todo, ou seja, a não obediência a todas as leis, ou a recusa ao Estado, não porque
este ameace a vida dos indivíduos, mas porque ele não garante mais a segurança. No
momento em que o súdito entende que o Estado não lhe garanta mais a segurança, este
teria direito de resistir à espada pública e busca a proteção onde sua razão melhor
determinar.
As duas formas de resistência, apesar de justificadas pala lógica contratual,
inserem problemas específicos no interior do Estado Civil. De forma mais geral, o
problema mais claro é o surgimento de uma tensão entre o poder absoluto do soberano e
o direito de resistir a esse poder. É difícil compreender como um Estado absolutista nos
moldes hobbesianos possa garantir aos súditos alguma forma de resistência. Isto
pareceria operar uma contradição no interior do pensamento hobbesiano. Enquanto
numa passagem Hobbes demonstra que o poder soberano é irresistível, em outra
concede aos súditos a liberdade de lhes resistir em alguns casos. Seria realmente difícil
entender que o soberano absoluto de Hobbes pudesse garantir aos súditos um direito de
resistência.
22
A garantia do direito de resistência remete à positividade jurídica da resistência.
Entretanto, a questão da positividade da resistência não é uma tese que pode ser retirada
de maneira clara e segura da lógica hobbesiana. Podemos entender o direito de
resistência como um direito estabelecido na constituição? Ou será ele meramente o
direito natural inalienável, que somente se efetiva no momento em que há a ameaça ao
súdito? Esta é uma questão difícil de ser respondida, já que Hobbes trata a resistência
apenas como uma liberdade de resistir. Desta forma, a resistência não se circunscreve
necessariamente numa constituição, mas é uma prerrogativa do contrato, que, ao entrar
em cena reportaria o homem novamente ao estado natural, restituindo-lhe aqueles
direitos cedidos no pacto. Entretanto, independentemente do fato de constituir um
direito positivo garantido pela constituição feita pelo poder soberano, a resistência não
tem necessidade de ser garantida pela constituição para se tornar efetiva, podendo ser
apenas uma liberdade, no sentido de que, mesmo o poder soberano jamais poderia tolher
completamente o direito natural dos indivíduos. O contrato garantiria, desta forma, a
permanência do direito natural de auto-defesa. A questão central, desta forma, é esta: até
que ponto pode haver um fundamento para que os indivíduos permaneçam com parte de
seu direito natural depois da fundação do estado civil? Caso exista uma fundação
racional para a permanência de parte do direito, não há necessidade de uma existência
positiva desse direito, pois ele estaria racionalmente fundamentado e se efetuaria nos
próprios indivíduos e não na lei positiva.
O direito à resistência pode, de acordo com nossa leitura, ser fundamentado na
argumentação hobbesiana, independentemente da necessidade de estar circunscrito na
lei positiva. Entretanto, ainda assim, a resistência conduz a uma tensão com o poder
soberano. O fato de que o direito à resistência não se efetive como direito positivo não
anula a conclusão de que ele se coloca em contraposição à força estatal. Não há como
negar que a resistência constitua uma força contrária ao poder soberano absoluto.
Inúmeros comentadores de Hobbes perceberam esse fato e, com o objetivo de
salvaguardar o conteúdo absolutista de sua filosofia política, procuraram negar qualquer
forma de resistência no pensamento hobbesiano. Carl Schmitt talvez seja o melhor
exemplo desse tipo de interpretação, entre os importantes comentadores de Hobbes.
Para ele não existe qualquer possibilidade de resistência ao soberano no pensamento do
filósofo inglês. O Estado hobbesiano, segundo Schimtt, é irresistível. Dessa forma os
súditos não podem possuir um direito que ameace destruir o Estado, já que este foi
23
instituído com objetivo de por fim ao estado de guerra.
4
O que Schmitt percebe é o
quanto é problemática a admissão do direito à resistência no Estado absolutista. Ele
coloca em risco o próprio Estado.
A. E. Taylor também não admite a existência do direito de resistência no
pensamento de Hobbes, e aponta que ela poderia colocar em risco a existência do
Estado e o seu poder de obrigar os indivíduos a cumprirem a lei. Segundo Taylor, o
soberano foi autorizado pelos súditos a fazer qualquer lei a qual pense ele ser necessária
para a manutenção da paz e da segurança. Portanto, como foi autorizado, não pode ser
resistido. A partir de uma leitura que entende a lei natural como obrigação incondicional
por ser uma lei divina, Taylor afirma que quebrar uma promessa é contra a lei natural, e
consequentemente, contra a própria vontade divina: “Recusar a obedecer, ou resistir à
execução de um comando do soberano é assim uma quebra de minha promessa dada, e
contra a ‘lei de natureza’”.
5
Uma promessa dada não pode ser quebrada, esta é uma das
leis naturais para Hobbes e, segundo Taylor, no sistema hobbesiano elas tem estatuto de
obrigação absoluta. O soberano não pode ter contra ele nenhum tipo de ação por parte
do súdito que possa vir a sustentar uma espécie de violação do pacto. A admissão do
direito à resistência se constituiria assim num grande problema para a teoria da
obrigação hobbesiana, e não se sustentaria no interior do argumento do contrato, de
acordo com a leitura de Taylor. A questão não poderia ser resolvida de qualquer forma,
portanto não é admissível que o direito de resistência possa se efetuar. A interpretação
de Taylor nos propõe a tese de que antes do direito à resistência constituir uma ameaça
ao soberano, ele não pode se sustentar no pensamento hobbesiano. Não haveria nenhum
argumento que pudesse demonstrar que ele realmente se efetua.
A posição destes dois autores é contrária àquela que move o presente trabalho.
No entanto, suas teses servem de ilustração para representar o quanto é problemática a
questão da resistência no pensamento de Hobbes. Pensamos que a possibilidade de um
direito à resistência realmente encontra um fundamento na lógica da construção
hobbesiana, apesar de que sua admissão consiste num problema difícil de ser resolvido.
Para Taylor e Schmitt, o problema nem se coloca no pensamento hobbesiano. Pensar a
resistência seria enfrentar um problema sem solução, já que, de acordo com seus
estudos, a resistência não encontra fundamentos racionais.
4
Cf. The Leviathan In the State Theory of Thomas Hobbes, London: Greemwood Press, 1996.
5
Taylor. A. E. Hobbes. Bristol: Thoemmes Press, 1997, p. 102.
24
Passemos agora às dificuldades específicas de cada uma das formas de
resistência. A começar pela resistência a uma ordem. Esta forma de resistência, que
tanto pode ocorrer coletiva ou individualmente, permite aos indivíduos a recusa a uma
ordem ou lei imposta pelo soberano que tenha como conseqüência direta a ameaça à
vida do indivíduo. É o caso da pena de morte, dos interrogatórios e do serviço militar,
apontados no Leviatã. Esta forma resistência se colocará inicialmente em conflito com o
direito do soberano, que lhe confere um poder absoluto sobre os súditos. Além da
tensão geral provocada por qualquer direito de resistir ao Estado, o direito de resistir a
uma ordem irá provocar outra tensão mais específica com o direito de punir do
soberano. É o caso da já citada passagem do Leviatã na qual Hobbes afirma que um
grupo de homens condenados possuem o direito de unir-se para defender suas vidas
enfrentando o poder soberano (Cf. L, XXI, p. 176)
Este direito permite a livre defesa das vidas dos indivíduos, mesmo que
justamente condenados à pena capital. Acontece assim, um confronto direto entre o
soberano - que para manter o respeito à lei não pode prescindir do poder de punir os
transgressores - e os súditos. Por hora nos basta apontar esse problema específico do
conflito entre direito de punir e resistir, o qual será mais aprofundado
subsequentemente.
Um outro problema se coloca quando Hobbes aponta a possibilidade da
coletivização da resistência. Homens já condenados podem unir-se para defender suas
vidas. A união de um grupo de resistentes irá permitir a constituição de um poder com
força suficiente para ameaçar o poder soberano. Haveria assim uma ameaça de fato ao
poder do Estado, colocando em risco a sua própria existência. Ameaça esta difícil de ser
admitida a partir da filosofia hobbesiana. Se nos é difícil imaginar o que pode o
indivíduo solitário frente ao poder do Estado, o mesmo não ocorre se pensamos num
grupo numerosamente razoável. Um indivíduo solitário certamente seria esmagado pela
força descomunal do Leviatã, e não representaria uma ameaça suficientemente forte
para colocar em risco a estabilidade do Estado. No entanto, um grupo de dissidentes
poderia realmente se tornar um poder alternativo ao Estado. Ocorre que é difícil pensar
que Hobbes poderia admitir a simples possibilidade de permissão para o surgimento de
tal força. Nada mais estranho ao pensamento de Hobbes do que a admissão de um poder
paralelo ao poder soberano. Para Hobbes o poder soberano é o único acima das
individualidades, e a conseqüência lógica do pacto é inexoravelmente a criação de um
poder artificial absoluto, a partir das vontades individuais. Admitir um poder que possa
25
ter força suficiente para ameaçar o Estado não é comum na interpretação dos textos de
Hobbes. Ainda que a resistência deva ser pensada apenas como defesa da vida e,
portanto, não poderia tornar-se um risco para o poder soberano, ela abre a possibilidade
de que neste confronto para defender a vida o poder do estado seja ameaçado, tendo em
vista que, para defender suas vidas, os súditos devem necessariamente opor o seu poder
ao soberano. Assim, em última instância, a união de um grupo em defesa da vida pode
apontar a possibilidade de um conflito que ganha contornos de uma tentativa de
derrubada do poder. Esta derrubada do poder pode parecer impensável, mas não é,
porque já está prevista pela resistência. Porque o homem, no momento da resistência,
volta a usar o seu direito natural, ou seja, volta a escolher os melhores meios para
defender sua vida. O que pode ser pensado também como uma derrubada do poder, se
isto for a melhor possibilidade de salvar sua vida.
A segunda forma de resistência, motivada pela insegurança, insere uma
dificuldade ainda maior no interior da teoria hobbesiana do Estado. Admitir que o
súdito pudesse recusar a obediência em caso de o soberano não poder garantir mais a
segurança até parece se coadunar com a exposição inicial de Hobbes a respeito da
manutenção do direito de defesa. A conclusão é admitida a partir da observação rigorosa
do método geométrico, sendo conseqüência das premissas de Hobbes acerca do direito
natural e do contrato. Porém, não representa um grande perigo à paz pública a
consciência desta liberdade por parte dos súditos anteriormente a uma situação de
insegurança efetiva? Ou seja, não há perigo no fato de os súditos em momentos de paz e
tranqüilidade, enquanto o soberano estiver mantendo a segurança e a paz, estarem
conscientes de que podem recusar a obediência e se desvincular do Estado em caso de
este, futuramente, não possuir mais condições de manter a paz? O problema se colocaria
neste caso em termos de relação de forças entre súdito e soberano, o que, de todo modo,
sempre ocorre na resistência, abrindo margem para a guerra civil, através da contestação
da capacidade do poder soberano de manter a segurança. A diferença para a outra forma
de resistência é que o conceito de insegurança não é tão nítido quanto a ameaça à vida.
O risco que apontamos é derivado da própria concepção do conceito de “insegurança”.
Até onde iria o limite que separa insegurança e segurança? A concepção desses limites
certamente irá variar entre os súditos. Portanto, se assim fosse, haveria momentos em
que algum súdito poderia muito bem determinar que o Estado não esteja garantindo sua
segurança e assim recusar a obediência, enquanto que os demais poderiam não agir
dessa maneira. Deixar a decisão dos limites entre segurança e insegurança inteiramente
26
nas mãos dos súditos ampliaria demasiadamente o horizonte da resistência, e certamente
faria o Estado perder o controle. Este processo poderia facilmente se converter em mais
uma causa da insegurança. Por outro lado, se considerarmos a segurança como um bem
público, não podemos admitir que o súdito possa decidir sobre ela. Isto porque, para
Hobbes, após o pacto, é o soberano que decide sobre o bem e o mal, e decide o que é
bom e o que é nocivo para a paz. Portanto, somente o soberano possuiria autoridade
para decidir a respeito da segurança pública. Um caso de exceção seria apenas quando a
vida do súdito é diretamente ameaçada. Dessa forma, então, falar em resistência não
faria muito sentido, já que ela somente se daria em momentos nos quais o soberano se
decidisse por ela, o que jamais poderia acontecer. Pois tal decisão, contra si mesmo,
jamais seria levada a cabo pelo soberano.
O direito à resistência motivado pela insegurança insere na interpretação
hobbesiana duas questões importantes. Em primeiro lugar o fundamento para esta
resistência ao Estado como um todo é menos evidente. Em segundo lugar, a tensão
gerada por esta forma de direito em relação ao direito absoluto do soberano é de uma
instância ainda maior. O problema em relação à fundamentação é maior porque nesse
caso se está inserindo a questão dentro dos limites da decisão individual. Caberá apenas
ao súdito opinar sobre a segurança pública. Quando a vida do súdito está ameaçada
diretamente pela pena de morte, por exemplo, caso admitamos que exista realmente a
impossibilidade de transferência do direito de defesa, fica claro o momento em que a
vida é ameaçada. Entretanto, ao pensarmos no conceito de insegurança, o mesmo não
acontece, por que a delimitação do significado do termo é uma tarefa mais complicada.
A decisão estaria exclusivamente circunscrita á vontade individual do súdito.
Podemos admitir que o súdito possua um poder de decisão num ponto como este
onde o que está em jogo não é só a sua segurança individual, mas a segurança pública?
Algumas passagens dos textos nos apontam para a negação dessa possibilidade.
No Leviatã, Hobbes afirma que compete exclusivamente ao soberano o direito de fazer
“tudo o que considere necessário ser feito, tanto antecipadamente, para a preservação da
paz e da segurança, mediante a prevenção da discórdia no interior e da hostilidade vinda
do exterior, quanto também, depois de perdidas a paz e a segurança, para a recuperação
de ambas” (L, XVIII, p. 148). Seguindo a letra do texto, parece óbvia a conclusão de
que o súdito, ao pactuar, ainda pode defender sua vida, mas perde o direito de decidir
qualquer questão sobre a segurança pública. Há uma dificuldade então, a partir das
afirmações de Hobbes no capítulo XXI do Leviatã, de se deduzir em que momento
27
exato o súdito poderia ter direito de negar a obrigação ao Estado durante uma situação
de aparente insegurança. Imaginemos a hipótese de o Estado estar sendo atacado por
uma força externa. Há duas hipóteses para se pensar uma possível reação do súdito.
Uma reação possível seria ele decidir obedecer ao Estado e cumprir o seu papel na
defesa deste. Outra possibilidade seria de o súdito compreender o fato como gerador de
uma insegurança tal que ameace sua vida e recusar a obediência em nome da auto-
defesa. De acordo com a tese hobbesiana de que somente o soberano decide os meios
para a paz e a segurança, o súdito não poderia pensar em recusar a obrigação, já que ele
não tem o poder de avaliar aquele momento em relação à segurança. Então, a não ser
que o soberano pudesse desobrigá-lo diretamente, o súdito não poderia concluir pela
desobrigação como a melhor medida para a sua segurança, pois em última instância,
teria como obrigação a defesa da paz, objetivo do soberano.
O súdito não possui, após o contrato, o direito de julgar sobre o bem e mal, algo
que compete apenas ao soberano. O bem e o mal, para o súdito, derivam diretamente do
que o soberano impõe como obrigação. A partir da instituição do Estado o justo e o
injusto são calculados a partir da lei positiva. Portanto, se procuramos uma forma de
resistência que não seja injusta, faz-se necessária uma delimitação da possibilidade de
resistir perante a mais leve ameaça à segurança. Se a base para a resistência é a defesa
da própria vida, esta se concretizará na ameaça direta à vida e não no julgamento de
uma questão que se refere à coisa pública, instância que compete apenas ao soberano
julgar. Ao desobrigar-se voluntariamente num caso destes, o súdito estaria cometendo
injustiça, pois está ferindo o pacto, pelo qual autorizou ao soberano a tomada de
decisões referentes à segurança pública. Esta decisão tomada estritamente a partir de um
julgamento particular em relação à segurança, ao qual o súdito não está mais autorizado,
não está de acordo com a lógica contratual, consistindo em injustiça e colocando em
risco a paz pública. Está claro o risco de se estender o direito de resistência para este
campo. A admissão da resistência devido à insuficiência do Estado necessariamente
coloca para a consciência particular do súdito uma decisão que deveria ser unicamente
tomada pelo soberano, de acordo com as premissas do contrato hobbesiano. Poderíamos
admitir que em caso de perigo iminente, quando o cidadão se encontra diretamente
ameaçado por uma outra força, ele simplesmente poderia reagir defendendo sua vida.
Mas pensar que ele pode decidir pela recusa à obrigação através de uma análise sobre as
condições de segurança do Estado é um tanto problemático. A questão está justamente
em se definir o significado de “insegurança”. A variação do significado do conceito
28
seria muito ampla, pois se trata de um julgamento subjetivo que depende da consciência
dos súditos.
Hobbes é bem cuidadoso ao tratar do problema. Limita-se a afirmar que
“Entende-se que a obrigação dos súditos para com o soberano dura enquanto, e apenas
enquanto, dura também o poder mediante o qual ele é capaz de protegê-los” (L, XXI, p.
178). E aponta alguns casos que delimitam bem situações nas quais o Estado não tem
mais o poder de manter a segurança dos súditos: no caso da renúncia do monarca,
durante um período de banimento ou em caso de o monarca ser feito prisioneiro de
guerra. Nestes casos é nítida a insuficiência do Estado, já que de certa forma, ele deixou
de existir. A dificuldade encontra-se na possibilidade de o súdito entender que a
insegurança no interior do Estado é tal que sua vida se encontra em sério perigo, e por
isso ele pode resistir. Podemos retirar daí um direito de resistir à obediência quando o
Estado não é mais capaz de proteger o cidadão? Como podemos delimitar o que
significa a “incapacidade de proteção”? Diante da falta de um tratamento mais extenso
para a questão da desobrigação motivada pela insegurança, voltamos novamente à
questão da decisão por parte do súdito. Como os casos especificados por Hobbes são
poucos, a decisão recai inteiramente ao súdito, e esta tomada de decisão por parte do
súdito, como já demonstramos, é negada ao súdito no Estado Civil.
De todo modo, podemos concluir a respeito dos dois casos de resistência que: há
um direito à resistência nitidamente estabelecido no caso da motivação ser uma ordem
do soberano que ameaça o súdito, e há um direito à resistência motivado pela
insegurança que não parece ser tão nítido. No segundo caso, apesar de Hobbes
mencionar casos no texto, não há como se avançar além dos exemplos citados sem
incorrer em riscos interpretativos. Há um direito à resistir pelo motivo de falta de
segurança, mas, por outro lado, há um argumento preciso que impede a liberdade de
decisão a respeito da segurança por parte do súdito. Pensamos que não há uma
conclusão nítida para o problema oferecido no segundo caso e, portanto, se tomarmos
por critério apenas o texto do capítulo XXI, há apenas três casos nítidos de resistência
por insegurança.
Tentaremos doravante englobar as duas formas de resistência sob o mesmo
prisma: a tesão gerada em relação ao poder soberano. Tanto uma como a outra operam
no interior do Estado de modo a se contraporem ao poder soberano. Procuraremos
também, num segundo capítulo, levar em conta a distinção entre as duas formas na
tentativa de encontrar um fundamento racional para a resistência. No capítulo sobre os
29
direitos do soberano manteremos a distinção apenas oportunamente em caso de
exigirem tratamentos diferenciados, caso contrário tomaremos sempre as duas formas
como um único conceito.
2. Resistência e Rebelião
Os conceitos de resistência e rebelião não possuem o mesmo estatuto na filosofia
de Hobbes. Por mais que possam ser tomados por sinônimos, os dois conceitos possuem
definições diferentes no pensamento hobbesiano. O direito de resistência é admitido por
Hobbes nos momentos em que a vida do súdito se encontra ameaçada. Hobbes
fundamenta a legitimidade da resistência através do direito natural e do argumento
contratual, segundo o qual um contrato é invalidado se não permite a defesa da vida
pelos contratantes. Por outro lado, a rebelião é concebida como uma revolta ilegal
contra o poder soberano, motivada por questões de disputa de poder, que vão além da
simples defesa da vida. Por rebelião Hobbes entende a sedição que coloca em risco o
Leviatã. A sedição é “(...) também uma morte da república (...)” (EL, II, 8, 1, p. 196).
Hobbes não admite direito à rebelião. Ela é apontada em várias passagens como uma
das principais causas, se não a principal, da dissolução do Estado. Hobbes dedicou-se
em grande parte de seus escritos a apontar os perigos da rebelião para o poder soberano.
Há um livro inteiro, o Behemoth, dedicado à sua análise.
A resistência, mesmo que legitimamente fundada, também encerra uma oposição
ao poder do Estado. Um indivíduo que resista, ou um grupo de resistentes, certamente
se coloca como uma força contrária às ações do soberano. Se a resistência se caracteriza
também como uma oposição ao Estado, em que ela difere da rebelião? Antes de
procurar desvendar o conceito de rebelião, cabe uma distinção essencial entre esta e a
resistência.
Resistência e rebelião caracterizam-se por uma negação da obediência e,
portanto, uma oposição ao Estado. Porém, enquanto a resistência é concebida por
Hobbes como uma desobediência legitimamente fundada no direito natural, a rebelião
constitui uma revolta ilegítima. A resistência se opõe de fato o poder soberano,
enquanto a rebelião, além de se opor de fato ao poder, também produz um problema
jurídico, já que não é compreendida como um direito. No caso da resistência não há um
problema jurídico envolvido, já que ela seria juridicamente fundamentada no direito
30
natural, via contrato social, instância racional que garantiria a defesa da vida. No caso
específico da rebelião, ocorre um problema jurídico, já que não há um fundamento
lógico que possa ser deduzido diretamente do artifício do contrato para sustentá-la. A
rebelião carece de uma fundamentação racional, oriunda da própria lógica da instituição
da soberania.
Estabelecida esta primeira diferença entra resistência e rebelião, partimos para
um exame mais aproximado da questão da rebelião no texto hobbesiano.
2.1 O problema da rebelião
Quem observasse a Inglaterra entre as décadas de 1640 e 1660, encontraria um
panorama deplorável gerado pela guerra civil. A rebelião proporcionava aos olhos do
filósofo um espetáculo nada agradável: “um panorama de todas as espécies de injustiça
e de loucura que o mundo pode proporcionar, e de como foram geradas pela hipocrisia e
presunção” (B, II, p. 31). A justiça e a paz estavam definitivamente comprometidas e “O
povo em geral estava corrompido” (B, II, p. 31). Os sedutores pregavam livremente
doutrinas que faziam germinar a revolta contra o poder soberano. A descrição da
deplorável situação da Inglaterra durante a guerra civil que Hobbes nos faz lembra a
descrição do estado de natureza, no qual a vida do homem é embrutecida e curta. Se não
são todos os elementos daquele estado pernicioso a se fazer presentes, pelo menos
reinam igualmente a desordem e a insegurança. A rebelião é uma volta ao estado de
natureza originada por alguma falsa doutrina, cujo objetivo está apenas em destruir o
Estado. Não encontramos em Hobbes algum fundamento jurídico que possa legitimá-la.
Ela é contraditória em si mesma porque racionalmente o homem não encontraria outro
motivo para a desobediência que não seja a defesa da vida. E as causas da rebelião estão
longe disso. Se a razão conduz o homem para a paz porque ela é a melhor das
possibilidades para garantir a sobrevivência, em hipótese alguma o homem
racionalmente abandonaria a paz por algum outro motivo que não envolvesse
unicamente a sua vida.
Porém, os sedutores estão na praça. E lançam seus discursos sediciosos, que
convencem alguns ouvintes de que existem outros motivos importantes para se entrar
em controvérsia com o soberano.
31
Nas suas três obras políticas de Hobbes aponta os perigos da rebelião, e tenta
refutar prováveis justificativas teóricas para ela. O assunto é tratado em capítulos
correspondentes nos Elementos da Lei, Do Cidadão e Leviatã.
Nos Elementos da Lei Hobbes dedica um capítulo inteiro (VII, parte II) à análise
das causas da rebelião. Três causas gerais são apontadas: o descontentamento, a
pretensão de direito e a expectativa de êxito.
O descontentamento pode ser de dois tipos: causado por uma dor corporal
presente ou esperada, ou ainda por aquilo que Hobbes denomina confusão da mente.
Quanto à primeira forma de descontentamento, a dor corporal, existe a possibilidade de
fazermos uma breve relação com o texto do Leviatã que trata da resistência. Neste texto,
Hobbes afirma que um grupo de homens, já condenados, poderia legitimamente unir-se
em defender suas vidas. Já nos Elementos da Lei, fazendo alusão ao medo da dor física,
ele afirma:
Por exemplo, quando uma grande multidão ou montante de pessoas concorre
num crime que merece a morte, elas se agrupam e tomam as armas para defender
a si mesmas do medo daquela. Da mesma forma, o medo da miséria, ou na
miséria presente, o medo dos arrestos e da prisão levam a sedição. (EL, II, 8, 2,
p. 196)
Trata-se da mesma situação apresentada no Leviatã: um grupo de condenados
resiste à morte. A diferença é que nos Elementos Da Lei a situação é entendida apenas
como o exemplo de um caso no qual o descontentamento devido às dores corporais
conduz os homens à rebelião. Neste caso específico, Hobbes não aponta um direito
legítimo para ela. Ademais, em várias outras passagens do texto ele se posiciona
contrariamente à revolta. Entretanto, no Leviatã, a mesma situação é utilizada como
exemplo de um direito à resistência legítima, estando os condenados apenas lutando
para defender as suas vidas, o que todos têm direito de fazer. Ocorre assim, uma
mudança significativa entre estas duas apresentações da filosofia política hobbesiana.
Nos Elementos da Lei a união de um grupo de homens já condenados com o objetivo de
lutar por suas vidas é concebida por Hobbes como um caso de rebelião. Entretanto, no
Leviatã, este caso é tomado para exemplificar o direito coletivo à resistência. É bem
perceptível esta evolução do conceito de resistência que ocorre da primeira para a
32
última apresentação de sua filosofia política. Aquilo que era ilegítimo nos Elementos da
Lei, passará a ser legítimo no Leviatã.
“A segunda coisa que leva à rebelião é a pretensão de direito” (EL, II, 8, 4). Isso
ocorre devido a opiniões ou falsas doutrinas que pregam a legitimidade da rebelião em
muitos casos. Os homens deixam-se fascinar muitas vezes por doutrinas errôneas as
quais afirmam que: “em certos casos eles podem legitimamente resistir àquele ou
aqueles que detêm o poder soberano, ou privá-los dos meios de executar esse poder”
(EL, II, 8, 4, p. 198). Mas a rebelião não pode ser legitimada. É isto que Hobbes quer
demonstrar ao refutar tais falsas doutrinas. Daqui pode-se extrair a distinção hobbesiana
entre a rebelião ilegítima e à resistência legítima, se compararmos este texto com o Do
Cidadão ou o Leviatã. Especialmente no último texto Hobbes procura legitimar o
direito de resistência sobre o direito de auto-preservação que não pode ser abandonado
através do contrato. Este não é o caso das falsas doutrinas condenadas por Hobbes. Tais
doutrinas estão além da simples defesa da vida e da segurança. Consistem em sofismas
que conduzem os homens à sedição. Encontra-se aqui a essência da distinção entre
resistência e rebelião. Enquanto a resistência é a defesa da vida e suas circunstâncias, e
ocorre quando esta se encontra ameaçada, a rebelião tem outros motivos, entre os quais
está a pretensão de um poder de julgamento sobre o certo e o errado, que na opinião de
Hobbes só cabe ao soberano. Desta forma, Hobbes concede um tratamento aprofundado
à análise das falsas doutrinas, visto o perigo que representam ao Estado. Pregadas por
falsos ideólogos, são instrumentos que desvirtuam e colocam em risco o Estado. Elas
enganam os indivíduos, fazendo-os crer que podem eles decidir sobre o bem ou mal ou
que a constituição atual do poder soberano não esteja embasada numa edificação
bastante segura.
As doutrinas corrompem os homens, levando-os a questionar as leis e as ações
do poder soberano. Apesar da variedade de pregações, todas elas conduzem a uma
conseqüência: imprimem nos homens uma crença de que existem casos nos quais
legitimamente podem não só resistir ao soberano, mas também impedi-lo de exercer
seus direitos. São propagadas publicamente, e o poder soberano corre sérios riscos, ao
permitir que elas sejam divulgadas livremente. Apesar do risco, parece que os Estados
da época de Hobbes, especialmente a Inglaterra, ainda não haviam se dado conta do
perigo que representavam as doutrinas, levando-se em conta as constatações do filósofo:
“Todas essas opiniões são afirmadas nos livros dos dogmáticos, e vários dentre estes
ensinam nas cadeiras públicas, entretanto são deveras incompatíveis com a paz e o
33
governo, e contraditórios as regras necessárias e demonstráveis do mesmo” (EL, II, 8, 5,
p. 198).
Nos Elementos da Lei Hobbes analisa seis doutrinas que constituem a pretensão
de direito que leva a rebelião. Resumidamente tratam-se das seguintes: que os homens
não têm obrigação de fazer nada contra sua consciência; que os soberanos estão sujeitos
às suas próprias leis; que a soberania é divisível; que os súditos têm uma propriedade
distinta do domínio do soberano; que o povo é uma pessoa distinta do soberano; e,
finalmente, que o tiranicídio é legítimo. Hobbes aponta o perigo que representam, e se
empenha em demonstrar que são ilegítimas e inconsistentes.
6
Ao lado do descontentamento e da pretensão, os Elementos da Lei apontam uma
terceira causa: a expectativa de êxito. Um indivíduo solitário desesperançado da
possibilidade de ajuda mútua dificilmente empenhar-se-á na perigosa empresa da
rebelião. A união dos indivíduos, a sua concordância mútua, paralelamente à
constituição do Estado é também fundamental para a constituição da rebelião. Assim a
expectativa de êxito requer:
i. Que o descontentamento tenha entendimento mútuo; ii. Que eles tenham
número suficiente; iii. Que eles tenham braços; iv. Que eles concordem com uma
cabeça. Pois estes quatro pontos devem concorrer a causa de algum corpo de
rebelião, no qual o entendimento é a vida, o número são os membros, os braços
são a força, e a cabeça é a unidade, pela qual eles são direcionados a uma e a
mesma ação. (EL, II, 8, 11, p. 201)
Nas apresentações posteriores da sua filosofia política, a questão da rebelião
também merecerá a devida atenção por parte de Hobbes. No Do Cidadão Hobbes
começa por tratar diretamente das doutrinas sediciosas, às quais acrescenta, em relação
aos Elementos da Lei, duas novas: A opinião segundo a qual pertence aos particulares o
julgamento do bem e do mal, e aquela que afirma ser a fé e a santidade adquiridas
através da inspiração sobrenatural e não pelo estudo e pela razão. E também acrescenta
outras quatro causas da rebelião: Uma taxação alta, a ambição, a esperança do sucesso e
a eloqüência desprovida de sabedoria. È importante observar que já no Do Cidadão
Hobbes concede mais importância à análise das doutrinas que levam à rebelião,
6
Grande parte dessas teses acabaram por ser adotadas pelos filósofos liberais posteriores a Hobbes, mas
já eram defendidas por diferentes teóricos contemporâneos a Hobbes.
34
destacando a sua força como motivadora da rebelião, ao convencer os homens de que há
outros motivos, além da defesa da vida, para desobedecer. Esta mudança de foco se
estenderá até o Leviatã, no qual, como veremos, o tratamento dado às doutrinas ocupa a
grande parte da argumentação de Hobbes a respeito da rebelião.
2.2. A rebelião e a análise das doutrinas sediciosas no Leviatã
No Leviatã o problema da rebelião é tratado no capítulo XXIX chamado “Das
coisas que enfraquecem ou levam à dissolução de um Estado”. Hobbes afirma que a
dissolução do Estado por uma desordem interna tem como causa os homens enquanto
organizadores. Um Estado dirigido de um modo precário e de maneira pouco hábil está
disposto a enfermidades. Segundo Hobbes há várias causas que contribuem para a
dissolução do Estado, entre elas, as doenças provocadas pelas doutrinas sediciosas, às
quais nos esforçaremos para retratar aqui, dada a sua contribuição para surgimento da
rebelião.
Hobbes se propõe a examinar as doenças que debilitam o Estado e que tem
origem nas falsas doutrinas. Neste texto, a análise das doutrinas é a preocupação
essencial de Hobbes ao tratar do problema da dissolução do Estado. A rebelião é uma
doença que coloca em risco o Estado e deriva do “veneno das doutrinas sediciosas” (L,
XXIX, p. 244). Hobbes procura atacar a rebelião através da demonstração de que as
doutrinas que conduzem a ela são infundadas. Portanto, a rebelião não pode ser
justificada juridicamente, visto que não há um argumento baseado na lógica contratual
que possa justificá-la. As doutrinas são analisadas a partir de um horizonte comum aos
outros textos: o perigo que representam à paz.
A primeira doutrina analisada é aquela que propõe ser o indivíduo particular o
juiz das boas e más ações. Porém, para Hobbes o direito de julgar sobre o bem e o mal
faz parte da essência da soberania, não podendo ser alienado pelo soberano, sob o risco
de perder o controle da paz. Afirmar que o indivíduo é juiz do bem e do mal é uma
falsidade. “Isto é verdade na condição de simples natureza, quando não existem leis
civis e também sob o governo civil nos casos que não estão determinados pela lei” (L,
XXIX, p. 244). A partir da fundação do Estado é este que determina através da lei
positiva quais são as ações boas e más. Uma ação será boa ou má se está de acordo ou
35
em desacordo com a lei. O indivíduo, diante da lei, não tem autoridade para decidir
sobre o justo ou o injusto. Pretender a reserva de tal autoridade ao indivíduo é uma
ameaça grave ao poder soberano.
Hobbes também está preocupado com as doutrinas sediciosas que corrompem os
indivíduos a partir de suas crenças religiosas. “Outra doutrina incompatível com a
sociedade civil é a de que é pecado o que alguém fizer contra a sua consciência” (L,
XXIX, p. 244). Ou, em outras palavras, a opinião segundo a qual os súditos pecam ao
obedecerem a seus príncipes. A verdade dessa tese depende também do pressuposto de
que o homem é juiz do bem e do mal, o que só é possível no estado de natureza, no qual
é a consciência do homem que dita as regras a seguir. Mas no Estado, como diz Hobbes,
“a lei é a consciência pública” (L, XXIX, p. 245). Esta dificuldade da sujeição absoluta
ao poder soberano em função da consciência religiosa que leva à obediência de Deus
não é tão antiga. Segundo Hobbes este fato não ocorria no passado, pois os homens
tinham plena consciência de que o poder soberano e o poder religioso estavam
extremamente unidos. O problema acontece justamente no tempo em que Hobbes vive,
porque outros poderes pretendem para si a exclusiva interpretação da palavra. Hobbes
afirma:
Esta dificuldade não tem sido tão antiga sobre o mundo. Não existia dilema
desse tipo entre os judeus, pois para eles a lei civil e a lei divina eram uma e a
mesma lei de Moisés; os intérpretes desta eram os sacerdotes, cujo poder estava
subordinado ao poder do rei; dessa forma era o poder de Aarão com relação ao
poder de Moisés. (EL, II, 6, 2, p. 174)
O que Hobbes pretende é a submissão do religioso ao político, pois dessa forma
evita-se justamente a tentação de uma interpretação das escrituras independente do
poder soberano, o que conduz à doutrina de que se peca agindo contra a consciência.
Esta doutrina adentra no espaço público através da religião. Pois os religiosos
pretendem estar acima da lei positiva, e apelam à consciência dos indivíduos. A sedição
causada por doutrinas religiosas é uma preocupação pertinente em Hobbes, as quais ele
procura combater com veemência, especialmente no Behemoth. A pretensão da
superioridade da religião em relação ao poder soberano pregada por inúmeras doutrinas
conduz o súdito ao questionamento da lei positiva. Observando a realidade inglesa,
36
Hobbes percebeu o quanto as doutrinas religiosas contribuíram para a revolução. O
catolicismo lhe preocupa profundamente pela pretensão de um poder universal superior
aos Estados sediado em Roma. O presbiterianismo causa-lhe temor por sua tendência
revolucionária. Para a manutenção da paz o poder temporal deve submeter o espiritual:
“Atacar o clero, desmontar-lhe as pretensões é essencial se queremos a paz”
7
. O clero
carrega uma pretensão ao acesso às verdades sagradas, coloca-se perante os cidadãos
acima da lei do Estado, e nas suas palavras destilam o veneno da sedição que corrompe
o coração dos homens. O risco da volta a uma situação de guerra é evidente. A situação
de guerra somente é possível fora do Estado, ela é a contradição do Leviatã. Por isso a
revolta é contraditória. Carece de lógica dentro do sistema hobbesiano. O que está em
jogo não é a defesa na vida neste caso específico de revolta por motivos religiosos, e
sim a religião e sua pretensão de superioridade à lei positiva. Associadas a esta estavam
a pretensão do clero de ser o poder supremo, a questão da salvação da alma, entre outras
questões propriamente religiosas. Hobbes entende que o problema da salvação da alma
é realmente mais importante do que a sobrevivência do corpo, e por isso admite que o
súdito escolha a salvação da alma diante do perigo da danação eterna, em detrimento do
corpo. O que Hobbes quer condenar é justamente a doutrina que prega que, em alguns
casos, o súdito ao obedecer uma ordem que vai contra a sua consciência religiosa, não
conseguirá obter a salvação. Logo, o problema para Hobbes é a doutrina e não a
salvação, pois conduz os homens à desobediência.
O único poder possível dentro do Estado é o poder soberano do próprio Estado.
Outros poderes constituídos tornam-se uma ameaça à paz porque se colocam como uma
ameaça ao poder soberano. O clero, com sua pretensão ao acesso ás verdades eternas, ao
julgamento do bem e do mal, impõe um limite ao poder soberano. Constitui um poder
invisível que se levanta como uma sombra ao poder soberano. O poder da espada do
soberano é deveras forte, porque traz consigo o signo da punição. Mas não temerão os
homens talvez mais ainda a ameaça da danação, da morte eterna, da qual o clero se crê o
legítimo juiz? Eis o risco que Hobbes vislumbra na ação espiritual de todo o clero. E eis
porque não pode admitir um Estado laico.
Uma doutrina que leva o homem a tal situação de dualismo, prostrado entre a
necessidade de obedecer a sua consciência religiosa e a necessidade de cumprir a lei
positiva é uma ameaça à unidade do Estado. Ao pregar esta doutrina o clero acaba por
7
Ribeiro, R.J. Prefácio ao Behemoth, 2001, p. 14.
37
dicotomizar o Estado. Pretende assim retirar parte da sua autoridade absoluta
anteriormente concedida pelas vontades individuais através do pacto. A unidade, grande
princípio lógico do contrato, erigida racionalmente a partir das vontades individuais,
que a partir do contrato tornam-se uma só, perde a sua essência ante esta doutrina
sediciosa. Portanto, a doutrina segundo a qual o homem peca obedecendo ao soberano
não se encaixa à lógica do contrato. A partir dele inúmeras vontades individuais
tornaram-se uma só vontade. A multidão de homens do estado de natureza tornou-se
uma persona artificial, o Leviatã. Dividi-la é voltar ao estado de natureza, voltar à
situação de simples multidão na qual os indivíduos agem de acordo com um julgamento
particular a respeito do bem e do mal.
Há outra doutrina de origem religiosa que ameaça a ordem estatal. Trata-se
daquela que afirma que “a fé e a santidade não podem ser atingidas pelo estudo e pela
razão, mas sim por inspiração sobrenatural, ou infusão” (L, XXIX, p.245). Para
Hobbes o perigo desta doutrina está em que, uma vez aceita, os súditos, sem uma
justificação racional para a fé, não teriam mais motivo para seguir as leis do seu país, e
seguiriam apenas a sua inspiração. Hobbes aqui contrapõe a racionalidade do Estado e
suas leis à irracionalidade da crença na inspiração. Portanto, defende que toda a fé e a
santidade são alcançadas mediante o estudo e o esforço racional, e não mediante uma
inspiração irracional. Através da crença na inspiração irracional os homens caem
novamente no erro de julgar o bem e o mal, esquecendo-se de que a instância racional
de julgamento do bem e do mal é o Estado.
Entre as demais doutrinas ilegítimas que conduzem à rebelião, merece atenção
de Hobbes aquela que diz que “o detentor do poder soberano está sujeito às leis civis”
(L XXIX, p. 245). Para Hobbes esta doutrina fere a lógica de toda a sua construção
política. Ele admite que todo soberano está sujeito à lei de natureza, tendo em vista que
ela é derivada de Deus. Mas essa não é a questão em discussão. Discute-se aqui a
relação entre o soberano e a lei civil. Estar sujeito à lei é estar sujeito ao próprio Estado,
consequentemente ao próprio soberano. O soberano sujeito à lei civil está sujeito a si
mesmo, o que, segundo Hobbes, não é sujeição, mas liberdade. Eis o erro lógico. Erro
que se estende se pensarmos que estando o soberano sujeito à lei, deve haver um juiz
acima dele para poder condená-lo. Como o soberano é a persona na qual foram
depositadas todas as vontades, não pode haver ninguém acima dele. A doutrina portanto
é contraditória, já que ninguém pode estar sujeito a si mesmo.
38
A quinta doutrina analisada por Hobbes refere-se à questão da propriedade.
Trata-se da doutrina que ensina que “todo indivíduo particular tem propriedade absoluta
dos seus bens, a ponto de excluir o direito do soberano” (L, XXIX, p. 247). Para Hobbes
a propriedade do súdito não é um direito absoluto. O direito à propriedade do súdito
exclui apenas os outros súditos, mas esse direito é garantido pelo soberano. Não fosse o
poder soberano o súdito não possuiria segurança dos seus bens. Logo, a propriedade
absoluta é sempre do Estado. Em Hobbes não há uma teoria da propriedade como
direito natural intransferível. No estado de natureza os homens têm apenas um direito a
todas as coisas, que acaba por gerar conflitos entre os indivíduos. Ao fazer o pacto o
indivíduo abandona esse direito a todas as coisas, em nome da garantia de vida. Por isso
a vida é um direito absoluto, pela qual o súdito pode resistir ao soberano. Mas no que
toca à propriedade não há esse direito absoluto. Se uma das fontes de discórdia no
estado natural era justamente a posse dos objetos, para que seja efetivado um estado de
paz, será o poder soberano a regulamentar a propriedade. Consequentemente, o
soberano tem direito sobre a propriedade do súdito. É claro que o objetivo do soberano
é proteger também a propriedade do súdito em relação aos outros, mas em certos casos
o soberano pode ter necessidade de utilizar a propriedade do súdito para a própria defesa
do Estado. Logo, esta tese é infundada, e conduz o homem á rebelião sem motivo justo.
A última doutrina analisada por Hobbes é a tese da divisão do poder soberano.
Dividir o poder é uma incoerência, e o filósofo de Malmesbury a aponta de modo
bastante direto: “Pois em que consiste dividir o poder de um Estado senão em dissolvê-
lo, uma vez que os poderes se destroem mutuamente uns aos outros?” (L, XXIX, p.
246). Na lógica de Hobbes não existe paz possível num sistema constituído de poderes
independentes. Eles tendem à mútua destruição. É o que ocorre no estado de natureza.
Os homens constituem poderes independentes, lutando individualmente por power after
power. A guerra é constantemente declarada. Por isso a necessidade de um poder único,
que possa transformar uma simples multidão de homens numa pessoa única, e assim
moldar as vontades individuais numa única vontade e direcioná-la a um objetivo maior:
a paz. Poderiam poderes individuais unir-se sempre em torno de um objetivo comum?
Eis a dúvida de Hobbes. Eis a falha da divisão dos poderes. Contra todos os defensores
da divisão do poder soberano, e antecipando-se aos célebres Locke e Montesquieu,
Hobbes a condena como “uma opinião quase sempre fatal para as repúblicas” (DCi, II,
12, 5, p. 186).
39
É importante apontar que, mesmo condenando a tese política da divisão dos
poderes de forma bastante dura, Hobbes permanece ainda preocupado com a questão
religiosa. Seu ataque parece ser mais diretamente dirigido à divisão do poder no sentido
político-religioso, do que na divisão política tradicional entre dois ou três poderes
defendida mais tarde pela teoria liberal, sistematizada por Locke e Montesquieu. No Do
Cidadão, isto fica claro. Hobbes afirma: “Assim alguns repartem a supremacia do poder
civil no que diz respeito à paz e às vantagens desta vida, porém a transferem a outros
nos assuntos referentes à salvação da alma” (DCi, II, 12, 5, p. 186-187).
Fundamentalmente trata-se da questão da relação entre poder civil e poder
religioso. A existência de dois poderes, civil e religioso, é um risco para a paz. O poder
sobre a salvação das almas nas mãos de outros indivíduos que não constituam o poder
soberano levará necessariamente ao não cumprimento da lei e à sedição. Porque o temor
dos castigos eternos pode ser mais forte do que o dos castigos temporários nesta vida. O
que na realidade não condiz com a verdade segundo Hobbes. O medo da morte é o
maior medo. É o medo que faz os homens pactuarem e procurar a vida social. Entra aí o
papel ideológico da doutrina, convencendo indivíduos a não cumprir a lei positiva, a
qual conduz os homens para o fim em busca do qual pactuaram, impondo de maneira
enganosa um medo de castigos eternos. Assim os homens agem contra si mesmos:
(...) então, por mero temor supersticioso, eles não ousarão cumprir a obediência
devida a seus príncipes, caindo assim, graças ao medo, justamente naquilo que eles mais
temiam. Ora, o que pode ser mais pernicioso para um Estado do que ter seus membros,
por receio de tormentos intermináveis, convencidos a não obedecer ao príncipe, isto é,
às leis; ou tê-los impedidos de ser justos? (DCi, II, 12, 5, p. 187)
Está, portanto, bem evidente a posição de Hobbes a respeito da rebelião. Sua
admissão não encontra justificativa na construção filosófica do autor inglês. A partir
disso cabe uma distinção mais precisa entre resistência e rebelião. Enquanto a
resistência é a defesa da vida, a rebelião é motivada pela disputa de poder no interior do
Estado. O que as duas noções têm em comum é sua oposição ao poder soberano. Tanto
a resistência como a rebelião permitem o surgimento de um outro poder que faça frente
ao poder soberano. Existe uma oposição de fato ao poder do Estado. Cabe ao poder
soberano definir qual a melhor ação a ser levada a cabo para combater aqueles que por
algum motivo resolveram negar a obediência.
40
A diferença entre as duas consiste, a partir do que expomos até aqui, que
enquanto a resistência oferece uma oposição de fato ao Estado, a rebelião apresenta um
problema jurídico, pois não se encontram fundamentos lógicos que possibilitem deduzi-
la do contrato. Toda a lógica hobbesiana se estabelece no sentido de não permitir que a
rebelião possa ser entendida como um direito fundamentado racionalmente. Enquanto
que no caso da resistência existem fundamentos racionais de onde ela pode ser
deduzida. A rebelião é uma contradição, e não há um argumento ou fundamento
racional de onde ela posa ser extraída no interior do pensamento hobbesiano.
8
Todos os
fundamentos da rebelião se encontram em bases falsas, as doutrinas sediciosas. O súdito
que se revolta, portanto, não possui direito, mas apenas a pretensão de direito. Essa
pretensão de direito nasce das doutrinas sediciosas que convencem os súditos de que
existem outros motivos além da defesa da vida para desobedecer ao soberano.
Admitir a rebelião, como foi exposta acima, seria admitir que toda a construção
hobbesiana seria inválida. A rebelião, portanto, é irracional, e a construção hobbesiana
assentada em sólidas bases racionais não a comporta. Se, por um lado, Hobbes
demonstrou a necessidade racional da constituição de um Estado para a manutenção da
vida dos indivíduos, isto impossibilita, de outro, a racionalização da rebelião. A
resistência possui uma explicação racional. Podemos encontrar uma base assentada na
necessidade racional, a partir da construção do pacto que tem por objetivo maior seguir
a lei natural, a qual impele os homens a fazer tudo para manter-se vivos. O argumento
da resistência não fere a lógica contratual proposta por Hobbes. Pelo contrário, a própria
lógica contratual exige o direito à resistência por parte do súdito. O mesmo não ocorre
com a rebelião. Não há argumentos na construção da ciência hobbesiana que nos
permitam encontrar um direito à rebelião. Portanto, a rebelião é sempre ilegítima e
infundada, baseando-se apenas numa falsa crença derivada de doutrinas enganadoras
que não podem ser permitidas pelo soberano.
8
Apesar de que nessa questão Gregory Kavka admitite que existe em Hobbes um direito de revolução,
fundado no direito de auto-preservação, quando o Estado não oferece perdão a um grupo de pessoas que
anteriormente já se recusaram a obedecer, não entendemos esse direito como propriamente rebelião, mas
sim como resistência, se encaixando na forma coletiva de resistência apontada no capítulo XXI, onde
homens já condenados unem-se para defender-se uns aos outros. (Cf. Hobbesian Moral and Politic
Theory, Princeton: Princeton University Press, 1986, p. 433)
41
Capítulo II
O fundamento do direito à resistência no pensamento de Hobbes.
Neste capítulo queremos investigar qual é a fundamentação para o direito à
resistência em Hobbes. Comumente tem-se apontado para o direito natural como o
fundamento da resistência. Entretanto, apensar de concordarmos com tal posição,
queremos demonstrar que, dada a definição do direito como “liberdade”, a tarefa de
fundamentar a resistência no direito torna-se complexa, apesar de ser a resistência a
permanência do direito natural no interior do Estado civil. Queremos propor então um
estudo mais detalhado da definição de direito, e demonstrar que, apesar de se constituir
como fundamento da resistência, a tarefa é complexa tendo em vista que há uma
dificuldade em precisar o conteúdo para o direito, o que, por sua vez torna esta
concepção de direito eminentemente negativa. Queremos então problematizar acerca
desta tese comum entre os intérpretes de se fundar o direito à resistência unicamente em
vista do direito natural. E a partir desta problematização, queremos propor que é
possível também pensar o direito à resistência a partir de outra perspectiva: a do
contrato social. Desta forma, apesar de ser o direito natural o fundamento do direito à
resistência, podemos pensar esse direito a partir de uma necessidade posta pelo próprio
contrato para a manutenção do direito natural no interior do Estado civil.
1. O Direito Natural como fundamento do direito à resistência
A noção de direito natural no pensamento de Hobbes geralmente é concebida
como o fundamento do direito à resistência. Na tradição da interpretação de Hobbes
inúmeros estudiosos apontaram que o direito natural de auto-preservação não pode ser
abandonado e, portanto, justifica o direito à resistência. Hampton, por exemplo, afirma
que este direito não pode ser abandonado pelos súditos e garante assim a resistência em
defesa da vida.
9
A tese encontra confirmação no texto de Hobbes que, no Leviatã,
9
Cf. Hobbes and The Social Contract Tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 201 e
seguintes.
42
afirma que o direito de resistir à força não pode ser alienado (Cf. L, XIV). No entanto,
uma análise mais próxima do conceito de direito natural aponta que esta tese não é tão
simples quanto parece. Para saber se realmente o direito de natureza pode fundar o
direito à resistência é necessário um estudo detalhado deste conceito. A problemática se
coloca no momento em que atentamos para o sentido do direito, o qual, segundo
Hobbes, é apenas liberdade. Esta definição dificulta a determinação exata para o
conteúdo do direito natural, que por sua vez complica a possibilidade de precisar em
que medida o direito natural pode ser entendido como o fundamento do direito à
resistência. Ainda que a maioria dos intérpretes conceba que o conteúdo do direito
natural em Hobbes seja a vida, queremos aqui problematizar esta tese, apontando que,
apesar de sua possível validade, entendemos que há certa dificuldade em determinar a
vida como conteúdo do direito, dada a definição de direito como “liberdade”.
O direito natural hobbesiano é concebido como liberdade que o homem tem de
usar o poder para realizar qualquer ação em benefício da preservação de sua vida. Esta
definição se apresenta de maneira semelhante no Leviatã e no Do Cidadão. Mas há nas
duas obras uma pequena disparidade, não na definição de direito em si, mas no contexto
em que ela é descrita. No Do Cidadão o direito natural é utilizado como uma premissa
para descrever a guerra no estado natural. No Leviatã o direito é definido de forma
independente da guerra. Hobbes descreve primeiro a guerra (cap. XIII) e depois o
direito (Cap. XIV).
No Do Cidadão Hobbes afirma:
Se agora, a essa propensão natural do homens a se ferirem uns aos outros, que
eles derivam de suas paixões mas, acima de tudo, de uma vã estima de si
mesmos, somarmos o direito de todos a tudo, graças ao qual um com todo direito
invade, outro, com todo direito, resiste, e portanto surgem infinitos zelos e
suspeitas por toda parte; se considerarmos que tarefa árdua é nos resguardarmos
de um inimigo que nos ataca com a intenção de nos oprimir e arruinar, ainda que
ele venha a com pequena tropa e escasso abastecimento; não haverá como negar
que o estado natural dos homens, antes de ingressarem na vida social, não
passava de guerra de todos contra todos. (DCi, I, 1, 12, p. 33)
O direito natural no Do Cidadão, associado à propensão natural dos homens à
violência, é um pressuposto para a guerra. No Leviatã ele é definido de forma
independente. A guerra é definida antes como fruto de três paixões básicas: competição,
desconfiança recíproca e busca de glória. O direito, portanto, não é um elemento na
consecução da guerra. Porém, ainda no Leviatã, existe uma implicação do direito
43
natural com a própria guerra. Ele é descrito numa condição de guerra, e dada a condição
de guerra irá se tornar direito a todas as coisas: “...segue-se daqui que numa tal condição
todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos outros” (L, XIV, p.
113). Trata-se de uma ampliação do conceito inicial de direito, que só ocorre numa
situação de guerra. No Leviatã é a guerra que precede o direito natural que, inicialmente
definido de forma independente, é ampliado para direito a todas as coisas ao ser
aplicado a uma dada situação de guerra. Fica aqui uma discussão: até quanto pode-se
compreender a noção de direito sem compreender o conceito de estado natural e todas
as suas implicações?
A resposta a esta questão não perfaz o objetivo deste trabalho. Portanto, abordar
o problema no sentido de buscar uma solução para esta controvérsia se encontra em
outros horizontes que não os nossos. Porém, tendo em vista as implicações do estado
natural para a compreensão do direito natural fazem-se necessárias algumas
considerações a respeito daquele. O percurso da demonstração de Hobbes parte das
paixões, conatus, e prossegue até a condição de guerra, de tal modo insuportável que se
coloca como um impedimento para a auto-conservação, conduzindo então os homens à
busca de um estado de segurança. Esta demonstração perpassa pelo conceito de direito
natural. Para Hobbes os homens desejam a conservação, e o conatus é movimento,
então a preservação é possível se o movimento for possível. Só há possibilidade de
movimento se há liberdade. O direito natural consiste justamente na liberdade de usar o
poder. Portanto para compreendermos o direito natural é necessário apontar algumas
premissas básicas a respeito das concepções de Hobbes sobre o homem em seu estado
natural.
1.1. O estado natural
A concepção de estado natural, apesar de seguir algumas linhas gerais a todos os
pensadores do contrato, possui elementos específicos em cada um deles. Em geral
concebe-se o estado natural como um estado não político e anti-político, no qual
indivíduos não associados
10
vivem em liberdade e igualdade. À condição de não
10
Alguns autores como Locke, por exemplo, admitem associações anteriores ao estado civil, como a
família por exemplo. (Cf. Dois Tratados Sobre o Governo. São Paulo: Martins Fontes, 2001, Livro II,
Cap. II)
44
associação segue-se a ausência de um poder comum que possa submeter à todos. Na
ausência de um poder coercitivo superior que oriente a vida dos indivíduos, estes
procuram conduzir suas vidas de acordo com aquilo que sentem ou pensam. Alguns
pensadores, como Locke, por exemplo, crêem que a razão seja o parâmetro pelo qual os
homens se comportam nesse estado. Hobbes pensa que os homens agem de acordo com
o direito natural, entendido como uma “liberdade que cada homem possui de usar o
próprio poder, de maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza” (L,
XIV, p. 113). E, nesse sentido, agem conforme a sua razão ditar como sendo o meio
mais eficaz para sua preservação.
O conceito de estado natural na filosofia moderna não é pensado como um
momento histórico pelo qual a humanidade passou, mas sim como uma hipótese, ou um
modelo teórico para que se possa compreender os fundamentos do poder político. O que
os contratualistas modernos querem, na verdade, é propor um modelo de construção
política baseado no consenso e racionalidade, demonstrando através do recurso ao
estado natural e ao contrato que o Estado é uma construção humana e artificial, e,
portanto, fundada na vontade livre dos indivíduos. Enquanto na maioria dos
contratualistas estes argumentos servirão para fundamentar uma teoria do Estado
Liberal, em Hobbes estes mesmos argumentos embasarão a construção racional de um
Estado absoluto.
11
Em linhas gerais essas são as principais características do conceito de estado
natural concebidas pelos contratualistas modernos. Partiremos agora para as
características especificas desse conceito no pensamento hobbesiano.
A interpretação tradicional do pensamento de Hobbes entende que a análise
psicológica hobbesiana trata o indivíduo natural completamente abstraído da sociedade,
fazendo uma descrição de suas paixões para, então, a partir delas, deduzir logicamente a
necessidade de um Estado soberano.
12
A análise hobbesiana do homem, compreendido
de forma mecanicista, parte da analise das paixões, e da influência que estas provocam
no comportamento humano no estado de natureza. Hobbes procura entender a origem
11
Quanto ao absolutismo e anti-liberalismo de Hobbes, não há um consenso entre o interpretes, pois
alguns apontam elementos liberais na sua construção teórica. C. B. Marcpherson, aponta o
individualismo, como uma característica liberal do pensamento de Hobbes. (Cf. A Teoria Política do
Individualismo Possessivo, De Hobbes até Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 13-14)
12
A tese de que a análise das paixões é feita a partir a partir do homem abstraído da sociedade é
contestada por Macpherson. Segundo ele, Hobbes parte de um conceito de homem inserido na sociedade
capitalista: “Porque o método redutivo-compositivo que ele tanto admirava em Galileu e que adotou era
reduzir a sociedade existente a seus elementos mais simples e então recompor esses elementos em um
todo lógico”. (Ibidem, p. 41)
45
interna das paixões como fator determinante do comportamento dos indivíduos. Esta
análise servirá de ponto de partida à fundamentação da teoria do contrato.
Paixão, segundo Hobbes, é um esforço (conatus) gerado nos homens, a partir da
sensação provocada por um objeto externo. O conatus está relacionado com o poder de
auto-preservação dos indivíduos. Todos os seres vivos esforçam-se para preservar-se e
estão constantemente envolvidos com tentativas de aumentar esse poder. “O conatus é
uma característica necessária de tudo na natureza, pois esta tendência à autoconservação
faz parte da definição do que é ser uma coisa distinta e identificável.”
13
Quando o
conatus é direcionado a um objeto, chama-se apetite ou desejo. Quando este esforço
surge no sentido de evitar um objeto, Hobbes o chama de aversão (Cf. L, VI). São estes
dois movimentos os móbiles do comportamento humano, um de aproximação e outro de
afastamento em relação a objetos que cercam o homem. Hobbes também utiliza, para
designar esses movimentos, os termos “amor e ódio”:
Do que os homens desejam se diz também que o amam, e que odeiam aquelas
coisas pelas quais sentem aversão. De modo que o desejo e o amor são mesma
coisa, salvo que por desejo sempre se quer significar a ausência do objeto, e
quando se fala de ódio pretende-se indicar a presença do objeto. (L, VI, p. 57)
Além destas paixões iniciais, Hobbes aponta também o desprezo, relacionado às
coisas que o homem não deseja e nem odeia, mas permanece indiferente perante as
mesmas. A partir dessas paixões primárias originam-se também os conceitos de bom,
mau e vil, que estão relacionados com o próprio indivíduo que as usa, não possuindo
validade universal:
Mas seja qual for o objeto do apetite ou desejo do homem, esse objeto é aquele a
que cada um chama bom; ao objeto de seu ódio e aversão chama mau, e ao de
seu desprezo chama vil e indigno. Pois as palavras “bom”, “mau” e
“desprezível” são sempre usadas em relação à pessoa que as usa. Não há nada
que o seja simples e absolutamente, nem há qualquer regra comum do bem e do
mal, que possa ser extraída da natureza dos próprios objetos. (L, VI, p. 58)
13
Barbosa Filho, B. Condições de Autoridade e autorização em Hobbes, in Filosofia Política 6, 1991,
p.63.
46
As noções de bom e mau não são concebidas a partir dos objetos em si mesmos.
Tais noções são extraídas subjetivamente a partir das paixões humanas, sendo que
desejo ou aversão determinam se um objeto será compreendido como bom ou mau. Os
objetos em si mesmos não determinam juízos de valor. Não são em si mesmos nem
bons nem maus. No Do Cidadão, Hobbes afirma: “devemos saber, portanto, que bem e
mal são nomes dados as coisas para significarem a inclinação ou aversão daqueles por
quem foram dados” (DCi, I, 3, 31, p. 72). Ele insiste também no sentido de que os
juízos de valor partem das paixões, e de que os próprios nomes das coisas são conotados
pelas paixões ou interesses políticos.
14
A partir dessa noção inicial de paixão Hobbes descreve uma cadeia de relações
produzidas pelas paixões primárias que se desdobram em todas as outras paixões ou
juízos de valor presentes no homem, como prazer e desprazer, alegria e tristeza,
esperança e medo. Medo e esperança, é importante destacar, desempenham uma função
importante no desenvolvimento posterior de sua teoria. São essas duas paixões, aliadas
à razão, que conduzirão o homem ao Estado civil. A esperança é o apetite ligado à
crença de conseguir, e o medo é a opinião, ligada à crença, de dano provocado por um
objeto (Cf. L, VI).
As paixões são determinantes para o surgimento do estado de guerra. Dentro de
certas circunstâncias no estado natural as paixões operam no homem um
comportamento que inexoravelmente conduz ao conflito. As causas da guerra, portanto,
estão diretamente relacionadas com as paixões. No Leviatã Hobbes aponta três causas
para a guerra: a competição, a desconfiança e a glória.
A primeira das causas – o comportamento competitivo – é determinado por uma
paixão – a esperança – que por sua vez é explicada a partir de uma condição de
igualdade natural. “A natureza fez os homens tão iguais quanto às faculdades do corpo e
do espírito (...)” (L, XIII, p. 107) diz Hobbes. Portanto, os homens são naturalmente
iguais física e intelectualmente. O primeiro fundamento dessa igualdade é a aspiração a
um benefício. Mesmo que entre os homens exista certa desigualdade de força física ou
inteligência, ainda assim, todos têm a possibilidade de aspirar aos mesmos benefícios.
Quanto a isso Hobbes diz que:
14
Cf. Renato Janine Ribeiro, nas Notas ao Do Cidadão, 2002. Nessa nota Janine Ribeiro segue dizendo:
“Por isso uma denominação incorreta ou malévola pode levar a revolta e a sedição, e para garantir a paz é
preciso que as palavras sejam atribuídas com comedimento ou pelo soberano”.
47
(...) embora às vezes se encontre um homem manifestadamente mais forte de
corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera
tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é
suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela
reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele.
(L, XIII, p. 107)
Por maior que seja a disparidade de força e de inteligência entre os homens
naturais, somando-se todas as condições de vida, todos os indivíduos têm a mesma
possibilidade de aspirar à mesma coisa, e nesse caso, a diferença de força e inteligência
é insignificante.
Tratando da questão da igualdade de força, Hobbes aponta o fato de que todos os
homens estão sujeitos à morte, independentemente de sua força. O fraco pode matar o
mais forte, seja por maquinação, ou aliando-se a outros. Portanto, mesmo sendo
desiguais em força física, os homens são todos iguais na possibilidade da morte.
Segundo Bobbio:
A principal das condições objetivas é a igualdade de fato: enquanto iguais por
natureza, os homens são capazes de causar um ao outro o maior dos males, a
morte. Se se aduz depois uma segunda condição objetiva, pelo que pode ocorrer
que mais de um homem deseje possuir a mesma coisa, a igualdade faz surgir em
cada um a esperança de realizar seu próprio objetivo.
15
Quanto à inteligência, Hobbes afirma encontrar uma situação de igualdade ainda
mais profunda entre os homens. Esta igualdade é nitidamente perceptível, segundo ele,
porque por mais que os homens reconheçam nos outros muitas capacidades intelectuais,
eles mesmos se consideram mais sábios ou pelo menos tão sábios quanto aqueles:
Pois a natureza dos homens é tal que, embora sejam capazes de reconhecer em
muitos outros maior inteligência, maior eloqüência ou maior saber, dificilmente
acreditam que haja muitos tão sábios como eles próprios; porque vêem sua
própria sabedoria bem de perto, e a dos outros homens à distância. Mas isto
prova que os homens são iguais quanto a esse ponto, e não que sejam desiguais.
Pois geralmente não há sinal mais claro de uma distribuição eqüitativa de
15
Bobbio, N. Thomas Hobbes. Rio de Janeiro: Campus, 1991, p. 34.
48
alguma coisa do que o fato de todos estarem contentes com a parte que lhes
coube. (L, XIII, p. 107-108)
Esta tese é justificada pelo fato de que todos se encontram suficientemente
contentes com a parcela de inteligência que lhes coube, e que cada indivíduo, além de se
contentar com sua parcela de talento, ainda concebe-o em maior grau em si mesmo do
que nos demais. Mesmo permanecendo certo nível de desigualdade, a possibilidade de
ser morto coloca todos no mesmo plano.
É justamente a questão da possibilidade de ser morto pelo outro que torna os
homens iguais. Hobbes entende que existem diferenças mínimas quanto aos talentos e à
força física. Mas, no estado natural, no qual a qualquer momento o indivíduo pode ser
atacado pelo outro, a desigualdade praticamente não tem efeitos práticos.
No Do Cidadão (DCi, I, 3) a igualdade se encontra deduzida mais diretamente
da capacidade de matar. Segundo Hobbes, especificamente neste texto, iguais são
aqueles podem fazer coisas iguais uns aos outros. Se todos têm a capacidade de matar,
então todos podem fazer coisas iguais. A dedução aqui não é feita a partir de uma
observação empírica de uma absoluta igualdade física. Há uma admissão da
possibilidade de igualdade, o que torna necessário, do ponto de vista da razão, afirmar a
igualdade. Em Os Elementos Da Lei, há uma passagem que descreve bem essa
necessidade de admissão da igualdade a partir apenas da possibilidade:
Em primeiro lugar, se considerarmos quão pouca é a diferença de força ou
sagacidade existente entre os homens na idade adulta, e com quão grande
facilidade aquele que é menos potente em força ou em senso, ou em ambas, pode
apesar disso destruir o poder do mais forte, com base nisso não é necessária
muita força para que se retire a vida de um homem, podemos concluir que os
homens, considerados na sua simples natureza, devem admitir igualdade entre
eles. (EL, I, 14, 2, p. 94)
A igualdade permite a Hobbes explicar a primeira das causas do conflito no
estado natural: a competição. A igualdade de capacidades ocasionará a esperança dos
indivíduos atingirem o mesmo fim, ou conquistarem as mesmas coisas. Porém, quando
é impossível que alguma coisa seja desfrutada em comum, a competição se instaura
entre os indivíduos. Como não há nenhum poder superior às individualidades, todas as
49
coisas estarão à mercê dos desejos desses indivíduos. A circunstância da igualdade
justifica o surgimento de uma paixão, a esperança, que por sua fez justifica um
comportamento que é causa do conflito: a competição. “Trata-se portanto de explicar
uma paixão – a esperança – a partir de uma circunstância – a igualdade”.
16
A segunda causa do conflito é a desconfiança. Trata-se de uma paixão que
conduz os indivíduos a conceberem os outros como se fossem prováveis inimigos, os
quais a qualquer momento poderiam atentar contra o fruto de suas conquistas e contra a
sua própria vida. Para tanto, a melhor prevenção contra o possível ataque do outro é o
ataque antecipado. “(...) portanto, surgem infinitos zelos e suspeitas por toda parte (...)”,
diz Hobbes no Do Cidadão (DCi, I, 1, 12, p. 33). Na busca pela própria conservação, o
homem olha o outro com a mais absoluta desconfiança, sempre temendo um possível
ataque. Passa o tempo todo de prontidão protegendo os frutos de suas conquistas e a sua
própria vida. Nessas condições, o homem ataca em vista de sua segurança, já que não
está tranqüilo nesse estado, no qual é apenas a sua própria força e astúcia podem
protegê-lo dos perigos que os outros representam. Segundo Limongi “Dessa razoável
disputa, segue-se ser também razoável desconfiarmos dos outros homens. Isto é, a
desconfiança é uma paixão que se explica pela circunstância de uma possível disputa”.
17
A terceira causa da guerra do conflito entre os homens no estado natural é a
busca de glória. Esta também é deduzida a partir da natureza humana, concebida de
modo um tanto pessimista por Hobbes. Segundo ele, os homens não encontram prazer
na companhia dos outros no estado natural. Naturalmente, o homem não nutre nenhum
sentimento de empatia pelos semelhantes, pelo menos “quando não existe nenhum
poder capaz de manter todos em respeito” (L, XIII, p. 108). O homem busca que o outro
o valorize tanto ou mais quanto ele valoriza a si mesmo. Essa necessidade de glória leva
o homem a buscar na companhia do outro apenas uma forma de confirmar externamente
aquele valor que ele próprio se atribui. E se por acaso o outro não lhe tem em tão alta
consideração, o conflito é inevitável.
São estes os três argumentos utilizados por Hobbes para fundamentar a sua tese
de que o estado natural é necessariamente um estado de conflito: a competição, a
desconfiança e a busca de glória.
16
Limongi, M.I. Hobbes. Rio De Janeiro: Jorge Zahar Editor 2002, p. 21.
17
Ibidem.
50
A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda,
a segurança; e a terceira, a reputação. Os primeiros usam a violência para se
tornarem senhores das pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos outros homens.
Os segundos, para defendê-los; e os terceiros por ninharias, como uma palavra,
um sorriso, uma diferença de opinião, e qualquer outro sinal de desprezo (...).
(L, XIII, p. 107-108)
Esta guerra não é necessariamente uma guerra declarada e permanente onde os
homens lutam o tempo todo uns contra os outros. Trata-se de um estado de insegurança
no qual os homens estão o tempo todo preparados para o conflito. A preparação
permanente para a luta é, na verdade, a única garantia de sobrevivência que os homens
têm no estado natural. Como não há um poder geral que submeta as individualidades, o
homem deve apenas confiar em si mesmo, nos seus talentos e na sua força para
preservar-se.
Porque tal como a natureza do mau tempo não consiste em dois ou três
chuviscos, mas numa tendência para chover que dura vários dias seguidos, assim
também a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida
disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário.
Todo o tempo restante é paz. (L, XIII, p. 109)
Esta condição é permanente num estado sem uma autoridade soberana, porque
mesmo que os indivíduos se batam em duelos, e deles saiam vencedores e vencidos, isto
não coloca um ponto final no conflito, pois os vencedores não tem nenhuma garantia, e
continuam correndo os mesmos riscos, porque as condições de estado natural
prevalecem e eles deparam-se com outros indivíduos, sempre inimigos potenciais.
1.2. O conceito de direito natural
É na condição de simples natureza que o direito natural é compreendido. Hobbes
propõe inicialmente uma distinção entre direito e lei e aponta para a confusão entre os
dois conceitos feita por muitos filósofos (Cf. L, XIV). Direito é uma liberdade de fazer
ou omitir, enquanto a lei obriga ou determina a uma dessas duas coisas. “De modo que a
51
lei e o direito se distinguem tanto como a obrigação e a liberdade, as quais são
incompatíveis quando se referem à mesma matéria” (L, XIV, p. 113).
A partir desta distinção fundamental, podemos nos debruçar sobre a questão do
direito. Hobbes começa o capítulo XIV do Leviatã com a sua clássica definição:
O DIREITO de natureza, a que os autores chamam de jus naturale, é a liberdade
que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a
preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e conseqüentemente de
fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios
adequados a esse fim. (L, XIV, p. 113)
No Do Cidadão a definição é semelhante: “Nada mais significa do que aquela
liberdade que o homem tem para utilizar suas faculdades naturais em conformidade
com a razão reta” (DCi, I, 1, 7, p. 31).
Nos Elementos da Lei, primeiro texto a tratar significativamente da questão,
Hobbes afirma: “É entretanto um direito de natureza que todo homem possa preservar
a sua própria vida e membros, com toda a potência que possui” (EL, I, 14, 6, p. 95).
Segundo esta concepção, direito natural é apenas uma liberdade, não se
referindo, inicialmente, a qualquer coisa que poderia se constituir em conteúdo. De
acordo com a definição proposta, trata-se de um direito a uma ação de acordo com a
reta razão. Na ausência de um poder comum, o homem tem liberdade para agir de
acordo com aquilo que sua razão apontar como mais eficaz para a própria
conservação. Dada a concepção de direito como “liberdade” torna-se uma tarefa
complexa precisar qual é especificamente o conteúdo deste direito. Pode-se conceber
– como se faz comumente – que a vida seja o conteúdo desse direito natural.
Entretanto, a questão é problemática se atentarmos para o fato de que Hobbes não
define inicialmente a vida como um direito natural e sim define o direito natural como
a liberdade de fazer tudo para proteger a vida. A vida, em última instância se delineia
como objetivo do direito, o que fundamenta a resistência pela vida, entretanto,
pretendemos analisar de maneira mais apurada a definição de direito, para entender de
que modo ela pode servir de fundamento para a resistência e, ao mesmo tempo,
delinear melhor os problemas trazidos por uma definição que supõe o direito apenas
como “liberdade”. Porque, se por um lado está claro que a defesa da vida está na base
52
do direito à resistência, por outro nos parece complexo entender como esse direito
permanece após o contrato, dada a sua definição extremamente abrangente.
Tentaremos então investigar de modo mais detalhado a definição de direito proposta
por Hobbes para determinar em que medida se pode fundamentar de maneira precisa o
direito à resistência sobre esta concepção.
1.3. Liberdade natural
Inicialmente atentemos para o conceito de liberdade. A concepção hobbesiana de
liberdade é retirada da física moderna e, a princípio, não possui um sentido ético. No
capítulo sobre a liberdade dos súditos no Leviatã Hobbes a define:
Liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição (entendo por
oposição os impedimentos externos do movimento); e não se aplica menos às
criaturas irracionais e inanimadas do que às racionais. Porque tudo o que estiver
amarrado ou envolvido de modo a não poder mover-se senão dentro de um certo
espaço, sendo esse espaço determinado pela oposição de algum corpo externo,
dizemos que não tem liberdade de ir mais além. (L, XXI, p. 171)
Ainda no Leviatã, Hobbes afirma que um homem livre “...é aquele que, naquelas
coisas que graças à sua força e engenho é capaz de fazer, não é impedido de fazer o que
tem vontade de fazer”.
18
Nenhuma concepção moral de liberdade parece existir aí, mas
apenas uma noção física de liberdade como “ausência de impedimento”. Hobbes não
está se referindo ao livre-arbítrio ou à liberdade política, mas ao fato de que espaço
externo esteja desimpedido para o movimento. Ou seja, a liberdade está ligada
diretamente ao movimento e, portanto, aos fenômenos físicos e não morais.
Percebe-se aqui a influência da ciência de Galileu e do mecanicismo na teoria
política hobbesiana. Bernardes afirma que:
A definição de liberdade, em Hobbes, é marcada pelo seu compromisso
intelectual com as cláusulas que, como vimos caracterizam a nova ciência. A
concepção hobbesiana é tributária da teoria mecanicista e materialista, que
18
Bernardes, J. Hobbes e a Liberdade. Rio De Janeiro: Jorge Zahar Ediror, 2002, p. 19.
53
defende a tese de que a realidade é constituída por matéria e movimento e
condicionada pela lei da inércia.
19
A obra de Hobbes sofreu grande influência da nova ciência da Idade Moderna,
tanto de Galileu quanto do mecanicismo cartesiano. Sua formação também recebeu
desde cedo a influência dos Elementos de Euclides, com a qual o autor teve contato na
sua segunda viagem ao continente em 1629.
20
Sobre esse acontecimento, conhece-se a
famosa narração de Aubrey:
Encontrando-se na biblioteca de um cavalheiro em... estavam abertos os
Elementos, de Euclides, no El. 47 libri I. ele leu a proposição. “Santo Deus!”,
exclamou, “isso é impossível!” Assim, leu a demonstração, que o remeteu de
volta a uma certa proposição; proposição esta que ele leu. Esta o remeteu a mais
outra, e leu-a também. Et sic deinceps, donde, no final das contas, foi
demonstrativamente convencido daquela verdade. Isso o fez apaixonar-se pela
geometria.
21
Hobbes contava com quarenta anos de idade na época, e estava começando aí
uma espécie de novo direcionamento intelectual, em que abandonava cada vez mais
suas influências da retórica humanista do renascimento, para dedicar-se aos estudos da
ciência experimental.
22
Essa mudança de rumos ocorre na década de 1630, quando
Hobbes fica cada vez mais interessado nos experimentos científicos que acontecem em
vários lugares da Europa. “É evidente que ele ficou muito intrigado e cada vez mais
fascinado com os experimentos científicos que vinham sendo conduzidos na época na
Abadia De Welbeck(...)”
23
, afirma Aubrey. Seu entusiasmo foi tão grande que o levou a
marcar um encontro com o próprio Galileu, o qual ele considerava como “o maior
filósofo não apenas de nossa época mas de todos os tempos.”
24
Esse entusiasmo para
19
Ibidem.
20
Cf. João Paulo Monteiro, In Hobbes. São Paulo: Abril Cultural, 1997, p. 6.
21
Aubrey, J. Apud Skinner, Q. Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes. São Paulo: Fundação Editora
UNESP, 1999, p.339.
22
Sobre essa mudança de postura intelectual, é interessante a obra já citada Razão e Retórica na Filosofia
de Hobbes, de Quentin Skinner, o qual procura analisar a primeira mudança, quando Hobbes deixa de
lado suas bases humanistas para concentrar-se na ciência experimental, fato que influenciará vários textos
seus como o Do Cidadão, e finalmente mais tarde irá ocorrer uma espécie de revalorização da retórica no
Leviatã.
23
Cf. Aubrey, Apud Skinner, Q. Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes, 1999, p. 340.
24
Hobbes, T. Apud Skinner, Q. Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes, 1999, p.342.
54
com a geometria e a ciência experimental, associado ao mecanicismo cartesiano, foi aos
poucos delineando os novos rumos do pensador, influenciando decisivamente na
construção de sua teoria política.
Esta dedicação à nova ciência e ao mecanicismo será decisiva para o conceito
hobbesiano de liberdade. A noção de movimento, retirada da nova física de Galileu,
passa a ser o ponto chave para Hobbes desenvolver o conceito de liberdade. “Cheguei à
conclusão de que, no mundo inteiro, só existe uma coisa que é real, embora
indubitavelmente seja falsificada de muitas maneiras (....) que é a razão por quem quiser
compreender a física deverá, antes de mais nada, fazer um estudo das leis do
movimento.”
25
A nova física estava pautada pelas leis do movimento. E Hobbes,
interessado na física, passa a utilizar esses conceitos na sua tentativa de entender e
descrever a organização social. Para ele, era como se o homem e a vida social também
estivessem organizados de acordo com leis da física, e bastava ao filósofo descobri-las,
como faz o físico com as leis que regem o movimento do universo. O próprio
comportamento humano é explicado em termos de movimento. Ele dá a tônica às
paixões humanas fundamentais: desejo e aversão. “As palavras apetite e aversão vêm do
latim, e ambas designam movimentos, um de aproximação e outro de afastamento.
Também os gregos tinham palavras para exprimir o mesmo, hormé e aphormé” (L, VI,
p. 58).
A noção moderna de movimento que nasce com a nova física de Galileu sepulta
a concepção aristotélica de universo e de movimento. O novo modelo explica o
movimento a partir da lei da inércia, que, grosso modo, propõe que todo corpo tende a
permanecer no estado em que se encontra. O movimento e o repouso são estados
eventuais do ser, e o movimento não mantém nenhuma relação com os aspectos
ontológicos do corpo que se move. Movimento e repouso são relações que um corpo
mantém com outro tomado como referência. “Logo, um corpo está em movimento
somente em relação a outro que se supõe estar em repouso, e vice-versa”.
26
Movimento
e repouso são estados opostos e, de acordo com a lei da inércia, se um corpo está em
repouso, para que ele passe ao estado cinético do movimento, deverá ser aplicada uma
força para que ele entre neste estado, ou então, permanecerá em repouso. Hobbes
tomará o movimento como o primeiro princípio da sua filosofia e, além disso, entenderá
25
Hobbes, T. Apud Skinner, Q. Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes, 1999, p.342.
26
Bernardes, J. Hobbes e a Liberdade, 2002, p. 14.
55
que tudo que existe consiste em corpos em movimento.
27
Quanto à ligação do conceito
de liberdade hobbesiano com a lei da inércia, basta pensarmos que o princípio de inércia
exige uma condição ideal – como sempre é exigida na física moderna – onde
absolutamente não haja impedimentos. Esta condição ideal, que para os físicos
modernos somente pode ser pensada, é o vácuo. Somente nessa condição ideal é que
podemos conceber a lei da inércia agindo na sua plenitude, sem impedimentos. Nesse
estado de vácuo, um corpo em movimento permaneceria eternamente nesse estado, já
que nenhuma força, ou obstáculo se transporia no seu caminho. O mesmo se daria com
um corpo em repouso. A partir deste pressuposto Hobbes extrai seu conceito de
liberdade, como um estado no qual não existem impedimentos externos para que um
corpo siga o seu movimento.
A ciência moderna, portanto, encontra-se na base da filosofia social hobbesiana.
É nesse contexto, um universo composto de matéria e movimento, que Hobbes
apresenta sua clássica concepção de liberdade como “ausência de impedimento
externo”. Dessa forma, Hobbes naturalizou a liberdade, ou seja, tornou-a
definitivamente uma liberdade ligada ao mundo dos fenômenos físicos. E partindo dos
fenômenos físicos ele a amplia também para os campos da moral e da política. É por
isso que Hobbes afirma no Leviatã que essa liberdade se refere tanto a seres racionais
quanto às criaturas irracionais (Cf. L, XXI, p. 171). Além disso, somente há sentido em
falar de liberdade para seres que estão sujeitos ao movimento. Um exemplo é quando se
usa a expressão “o caminho está livre” (Cf. L, XXI, p. 171). Esta expressão não se
refere a nenhuma liberdade do caminho, já que este, por não estar sujeito ao movimento,
também não pode ser relacionado à liberdade. Apenas objetos ou seres que trazem a
possibilidade de movimento podem ser colocados na esfera da liberdade. Sobre aqueles
corpos que, devido à constituição própria, não podem mover-se ou ser movidos não se
pode afirmar que não têm liberdade, e sim que lhes falta o poder de se mover. O
obstáculo à liberdade aqui, é exterior, e não interior. Caso seja interior, não é um
impedimento, mas a falta de poder para realizar uma ação.
Mas quando o que impede o movimento faz parte da constituição da própria
coisa não costumamos dizer que ela não tem liberdade, mas que lhe falta o poder
de se mover; como quando uma pedra está parada, ou um homem se encontra
amarrado ao leito pela doença. (L, XXI, p. 171)
27
Ibidem, p. 18.
56
A liberdade tratada aqui não é ética ou política, mas uma liberdade puramente
física. Porém, esta definição é necessária para a compreensão da liberdade civil. É uma
noção generalizada de liberdade que, segundo Júlio Bernardes, “se aplica
indiscriminadamente a tudo que existe” e “dela são caudatárias, por definição, as noções
de liberdade natural e liberdade civil”.
28
Este conceito geral de liberdade hobbesiana é
praticamente igual ao conceito de liberdade natural, característica do homem no estado
natural. No capítulo XIV do Leviatã,a liberdade natural dos homens se torna uma
prerrogativa do direito.
A liberdade adquire uma envergadura moral ao ser contraposta com a lei natural.
Esta pode ser pensada como um impedimento que restringe a possibilidade da ação.
Entretanto, ela não pode ser pensada como um impedimento físico externo que impeça o
movimento dos indivíduos. Desta forma, a concepção de lei natural conduz a noção de
liberdade para além da física. Inserida no contexto da lei natural a liberdade deixa de ser
compreendida apenas como ausência de impedimento físico externo. Para Hobbes a lei
natural só obriga in foro interno (Cf. L, XV), não constituindo assim um fator externo
de coerção. O impedimento, ou a obrigação, encontra-se apenas na esfera da
consciência. Trata-se de um impedimento moral, o que opera uma modificação da a
noção de liberdade conduzindo-a para o campo moral. Desse modo, já no estado natural
a liberdade hobbesiana recebe uma conotação de moralidade, ainda que tenha sido
derivada do conceito de inércia. Mesmo adentrando para o espaço da moralidade, a
liberdade permanece fundamentalmente significando a ausência de impedimento para a
ação.
Os obstáculos às ações, na visão hobbesiana, nunca são impedimentos absolutos,
pois sempre restará a possibilidade de o indivíduo usar o poder que lhe resta. Não
representam uma força grande o suficiente para esgotar todas as possibilidades do uso
do poder. Um obstáculo externo pode impedir um homem de seguir numa certa direção,
mas não em outra. Resta ao indivíduo ainda um poder. Uma cela pode impedir um
indivíduo de andar por onde quiser, mas ainda resta a ele um pequeno espaço para se
mover, no qual a liberdade é exercida. Um indivíduo preso, no sentido físico da
liberdade, não a possui para se mover para onde quiser. Mas ele ainda possui liberdade
28
Ibidem, p. 22.
57
para usar o poder que lhe resta na tentativa, por exemplo, de livrar-se daquela prisão. Se
existe um obstáculo físico, não existe um obstáculo moral. Neste primeiro sentido há
uma perda da liberdade física. O obstáculo físico por si só não pode cancelar o direito
de usar o poder que resta ao indivíduo que se encontra de algum modo aprisionado.
Apenas a lei poderá exercer essa coerção, já que ela age não sobre as condições físicas,
mas sobre a consciência.
A liberdade é alçada para uma esfera moral ao se pensar que o direito não pode
ser totalmente impedido pelos obstáculos externos. Trata-se de um sentido moral da
liberdade que só pode ser aplicado aos homens. Somente uma lei pode realmente
cancelar o direito e, portanto, privar o homem da liberdade. Neste sentido, no estado
natural, a liberdade, além de ser ausência de impedimento externo, é também ausência
de lei. Como não há lei positiva que possa impedir o homem de se utilizar plenamente
de seu poder, ele possui liberdade de usá-lo da maneira que convier à sua razão: eis o
direito.
Ao conceber a liberdade a partir da lei da inércia Hobbes se encontrará diante da
exigência de resolver o problema da dicotomia liberdade/necessidade. Isto por que a lei
da inércia e todo o pressuposto mecanicista inexoravelmente conduzem ao
determinismo, enquanto que Hobbes concebe um homem dotado de liberdade no estado
natural. Ocorre assim uma nítida oposição entre a liberdade de agir para se proteger e a
causalidade natural. Hobbes procura resolver o problema demonstrando que “liberdade
e necessidade são compatíveis” (L, XXI, p. 172). Para ele, toda a ação humana deriva da
vontade, portanto, é livre. Porém, toda ação também deriva de uma causa, a qual é
ligada a uma cadeia de outras causas, chegando até Deus. Partindo da premissa de que
Deus é a causa de todas as coisas, toda a ação humana também é determinada. Sob esse
aspecto podemos concluir que a ação estará sempre de acordo com a vontade. Em
qualquer ação o homem estará agindo em conformidade com a vontade e, portanto,
nunca forçado. “Quando alguém atira seus bens ao mar” diz Hobbes, “com medo de
afundar seu barco, e apesar disso o faz por vontade própria, podendo recusar fazê-lo se
quiser, tratando-se, portanto da ação de alguém que é livre” (L, XXI, p. 172). Sobre essa
questão parece difícil realmente determinar quando uma ação é livre, pressupondo-se
que o homem age ao mesmo tempo livremente e ao mesmo tempo determinado.
Segundo Bernardes
29
a liberdade ocorre no momento discursivo da ponderação, quando
29
Ibidem, p. 21.
58
o sujeito, auxiliado pela razão, pondera sobre o que irá fazer em relação a um objeto de
desejo ou aversão. Nesse momento de ponderação, a causa da ação, ou seja, a vontade
ainda não está determinada. Ela é o último elo dessa cadeia de desejos e aversões, e é
dela que se segue a ação. Seria nesse momento de ponderação que a liberdade ocorreria.
Esta tensão entre liberdade e necessidade se torna evidente também quando se
trata da liberdade dos súditos no estado civil, da qual trataremos adiante. No Estado
civil também há esse jogo de forças. Porque mesmo havendo leis o súdito tem a
liberdade de desobedecer algumas. Ao tratar da liberdade dos súditos Hobbes estabelece
uma distinção entre a liberdade no silêncio da lei, ou seja a liberdade como ausência, e a
“verdadeira liberdade dos súditos”, à qual é representada pelo direito à resistência. O
direito à resistência opera justamente onde há lei, mas há liberdade para resistir.
A vontade, então, não é livre, porém, o homem pode ser livre para agir. Como
entender isso? O homem, segundo Hobbes, pode agir de forma não ordenada por Deus,
porém os desejos, que são os verdadeiros móbiles das ações humanas, são causados por
Deus. Assim o homem pode fazer o que quer, mas, ao realizar livremente o seu desejo,
está realizando a vontade divina, já que dela dependem os desejos. “Embora os homens
possam fazer muitas coisas que Deus não ordenou (...)” diz Hobbes, “(...) não lhe é
possível ter paixão ou apetite por nada de cujo apetite a vontade de Deus não seja a
causa” (L, XXI, p. 172). Se desejos ou apetites movem o homem, como diz Hobbes, e
se Deus é a causa dos desejos e apetites, então é compreensível a tese de que liberdade e
necessidade são conciliáveis. O homem é livre, e a própria definição de direito natural
aponta para esse fato, mas a vontade não é livre, e sim determinada pela causalidade
divina. O homem é livre na sua ação. Liberdade “é, portanto, liberdade da ação e não
da vontade”.
30
Esta argumentação acerca da determinação da vontade conduz Hobbes à enfática
negação do livre-arbítrio. A expressão “livre-arbítrio” é desprovida de sentido, pois a
liberdade é entendida como ausência de impedimentos e não como liberdade da
vontade. Todos os desejos, como determinantes da vontade, são condicionados por
Deus: “Se acaso sua vontade não garantisse a necessidade da vontade do homem, e
conseqüentemente de tudo que depende da vontade do homem, a liberdade dos homens
seria uma contradição e um impedimento à onipotência da liberdade de Deus” (L, XXI,
p. 172).
30
Limongi, M. I. Hobbes e as Virtudes, in: Filosofia Política III, n. 6, 2003, p. 89.
59
O homem concebido de forma mecanicista é determinado pelos movimentos de
aversão e desejo. A aversão é um movimento de afastamento em relação a um objeto
que causa ódio, é a noção natural de mal. O desejo, ao contrário, é o movimento em
relação a algo que causa prazer. É a noção natural de bem, longe de qualquer noção
moral de bem. Portanto, o homem, devido à determinação de sua própria natureza, está
sempre fugindo do mal e procurando aquilo que é bom. Entre todos os males possíveis,
a morte é o pior, afirma Hobbes (Cf. DCi, I, 1). Naturalmente o homem está impelido a
se proteger da morte. É a sua própria natureza que o impele a fugir desta terrível
possibilidade. Ao usar todo o seu esforço para defender o corpo e os membros de todo o
sofrimento, o homem não está de forma alguma agindo contra os ditames da razão. A
razão natural, portanto, está na base do direito. O direito, segundo o filósofo inglês, é
aquilo que não contraria a reta razão. Proteger a vida de todas as formas possíveis, é
agir, não só de acordo com os desejos, mas também de acordo com a razão. Bernardes
diz que “Este é o fundamento do direito, a saber, a vida e as ações que visam mantê-la
pois é o fim legítimo de toda ação de um ser finito e racional”.
31
Agora avançamos um
pouco no conceito de direito. Temos então, a vida como valor máximo, e o homem
concebido como um ser que busca o que é bom e foge do que é mau. E ao agir segue a
direção apontada pela razão. A liberdade entra aqui como uma liberdade para o homem
agir de acordo com o que a sua razão determinar para atingir seu objetivo máximo, que
é a vida. A liberdade é uma condição necessária para a proteção da vida. Como não há
um poder superior capaz de proteger os indivíduos e, portanto, eles devem julgar o que
é melhor para a sua proteção, é necessário que haja uma condição de liberdade para que
esses indivíduos possam colocar em prática suas ações, às quais a razão entende como
as mais eficazes na defesa e preservação da vida.
1.4. A noção de posse e o “direito a todas as coisas”.
Essa noção de direito natural como liberdade do homem usar o poder para se
preservar, ainda é uma noção vazia de conteúdo. Porque a liberdade é entendida em
sentido negativo, como ausência de impedimentos e não como positividade. Não é uma
característica da natureza humana, pois em relação à vontade ou aos desejos o homem
31
Bernardes, J. Hobbes e a liberdade, 2002, p. 35.
60
não possui liberdade. A liberdade não pode ser compreendida então como uma
característica imanente ao homem, mas apenas como ausência de oposição, à qual
permite ao homem que use seu poder de acordo com sua razão. Conseqüentemente, o
direito natural também não pode ser entendido de forma positiva, mas apenas
negativamente, sendo ele apenas uma liberdade para proteger a vida. Esta concepção
negativa do direito acaba por ser determinante na tentativa de se fundamentar o direito à
resistência. Dada a negatividade da noção de direito acaba por se estabelecer uma
dificuldade para se determinar em que medida o direito pode fundamentar a resistência.
Antes de discutir a questão da negatividade procuraremos avançar ainda mais na análise
do direito na tentativa de encontrar no conceito elementos que possam estabelecer um
possível conteúdo específico.
Para Hobbes, proteger a vida é o objetivo da ação humana, e como não há
nenhum poder que possa proteger os indivíduos, estes têm liberdade para protegerem-se
sozinhos. “Por conseguinte”, diz Hobbes, “a primeira fundamentação do direito natural
consiste em que todo homem, na medida de suas forças, se empenhe em proteger sua
vida e membros” (DCi, I, 1, 7, p. 31). E o direito outorga a liberdade de se fazer o
possível para atingir este fim. O direito aos fins, de acordo com aquilo que é exposto no
Do Cidadão, concede também direito aos meios para atingi-los. Se o homem é livre
para se defender, e esse é o fundamento do direito natural, é também livre para usar os
meios possíveis para se defender. Todo direito é nulo, segundo Hobbes, se ao indivíduo
forem negados os meios necessários para a sua fruição (Cf. DCi, I, 1, 8, p. 31). Podemos
tentar buscar nesses meios um conteúdo para o direito natural?
Cabe a razão a escolha dos meios mais eficazes entre todos os que se apresentam
diante do homem no estado natural. Ou seja, antes de ser dotado de uma liberdade para
usar os meios para conservação, o homem também tem a liberdade de, através de uma
escolha racional, decidir quais meios irá usar. No Do Cidadão Hobbes diz: “Contudo, se
aos meios que ele está para usar, ou a ação que está praticando, são necessários ou não à
preservação de sua vida e membros – isso só ele próprio, pelo direito de natureza, pode
julgar” (DCi, I, 1, 9, p. 32). O direito natural, amplia-se para o terreno da decisão. Na
falta de uma autoridade que decida o que é o certo e o errado, e que decida como o
cidadão deve agir para se proteger, é o indivíduo, por direito de natureza, que decide.
De Acordo com Limongi, o raciocínio jurídico de Hobbes é: “Todo homem tem o
direito a fazer qualquer coisa que possa ser compreendida com o um bem para ele
61
mesmo, ou, se quisermos, que possa ser pensada como de algum modo contribuindo
para sua conservação ou para o progresso de seu desejo, seja ele qual for.”
32
A questão dos meios nos possibilita então uma tentativa de ampliar um pouco a
compreensão do direito, no sentido de encontrar um possível conteúdo. A noção de
“meios” pode também abranger os objetos necessários para a conservação. Ao
possibilitar que a razão julgue os meios mais eficazes, permite-se ao homem fazer uma
análise de tudo aquilo que possa lhe servir de meios, incluindo ações e objetos, e agir de
acordo com a conclusão dessa análise. Por isso “(...) era lícito cada um fazer o que
quisesse, e contra quem julgasse cabível, e portanto possuir, usar e desfrutar tudo o que
quisesse ou pudesse obter” (DCi, I, 1, 10, p. 32). Esta passagem do Do Cidadão refere-
se não somente a ações, mas também a “possuir” e “desfrutar”. Desta forma o direito
natural poderia ser ampliado para além da liberdade de auto-preservação, passando a
englobar uma noção de posse. A questão está em saber se essa noção inicial de posse
pode ser entendida como um direito à propriedade. Se isto fosse possível,
encontraríamos um conteúdo bem específico para o direito, pelo qual o súdito buscaria a
segurança no estado de natureza, e assim facilmente o direito natural poderia
fundamentar a resistência, tal como ocorre em Locke. Porém, em Hobbes é difícil
conceber essa situação inicial de posse como sendo direito natural à propriedade. E isto
dificulta extremamente a adesão à tese de que a propriedade é um direito natural. Desta
forma, não há possibilidade de se extrair um possível conteúdo para o direito natural a
partir da tese da propriedade. A noção de posse não pode ser compreendida como um
direito natural à propriedade, mas apenas como uma forma de apropriação das coisas
disponíveis para a preservação, e se estenderá a tudo aquilo que o indivíduo, de acordo
com sua racionalidade, calcular como necessário ou útil para sua sobrevivência.
Podemos admitir que há apenas uma noção restrita de posse. É restrita porque tal posse
só existe enquanto o indivíduo conseguir mantê-la através de sua própria força. Não há
nada, além da força individual, que garanta essa posse, o que não aconteceria se
houvesse realmente um direito à propriedade. Não há nenhum fundamento para a posse
tornar-se um direito à propriedade. É um direito momentâneo de uso, constantemente
ameaçado pelos outros indivíduos. A propriedade, de acordo com Hobbes, somente se
estabelecerá no Estado. É uma noção diferente de Locke, que concebe a propriedade
como um direito anterior à sociedade. A partir de uma comparação com a teoria da
32
Limongi, M. I. A Vontade como Princípio de Direito em Hobbes, Cad. Hist. Fil. Ci. Série 3, V.12, n.1-
2, 2002, p. 96.
62
propriedade de Locke, podemos esclarecer esta questão em Hobbes, demonstrando que
nossa proposta de que não há direito natural à propriedade neste autor é coerente.
Em Locke propriedade de um objeto é derivada da propriedade que cada homem
possui de sua própria pessoa. Entretanto, Deus concedeu a terra a todos os homens, e os
frutos dessa terra são também propriedade comum. Esta circunstância parece dificultar o
surgimento da propriedade particular, mas Locke a deduz diretamente da propriedade
que cada pessoa tem de si mesmo: “A esta ninguém tem direito senão ele mesmo”.
33
Deriva daí o direito que os homens têm do produto de seu trabalho. Este acrescenta
àquilo que era coletivo algo que pertence ao homem, retirando o objeto da situação
coletiva, tornando-o propriedade particular:
Uma vez que esse trabalho é propriedade exclusiva do trabalhador, nenhum
outro homem tem direito ao que foi agregado, pelo menos quando houver
bastante e também de boa qualidade em comum para os demais.
Aquele que se alimenta das bolotas colhidas debaixo de um carvalho ou das
maçãs apanhadas nas árvores da floresta, com toda certeza delas se apropriou
para si.
E ninguém poderá negar que tal alimento lhe pertence. Pergunto então: quando
começaram a pertencer-lhe? Quando as digeriu? Quando as comeu? Quando as
cozinhou? Quando as trouxe para casa? Quando as colheu? E é evidente que, se
a colheita, de início, não gerou a propriedade nenhuma das outras ações poderia
o tê-lo feito.”
34
O trabalho, ao retirar as coisas da coletividade, torna-se o fundamento da
propriedade, e tem um valor moral realizando o dever de auto-preservação esboçado por
Locke. Como enfatizou Tully: “No fundo, esse termo de propriedade significa que
alguém tem um direito sobre alguma coisa, que não pode ser tirada sem o seu
consentimento”.
35
A propriedade em Locke, portanto, constitui-se na própria natureza
humana, dela é deduzida, constituindo um direito anterior ao Estado. O homem lockiano
é naturalmente proprietário, e a constitui através de sua ação sobre as coisas naturais
que são dadas por Deus. Segundo Janine Ribeiro:
Ontológica, a dimensão lockiana da propriedade: o homem é propriedade do
criador, que o produziu; feito à sua imagem, espelha a ação divina ao apropriar-
se, trabalhando, da natureza que Deus lhe apontou. O homem é, porque criatura,
33
Locke, J. Dois Tratados Sobre O Governo, 2001, p. 409.
34
Ibidem, p. 409-410.
35
Tully, J. Apud Michaud, Y. Locke. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991, p. 38.
63
porque imagem de Deus; a sua humanidade – ou a imagem, nele, da Divindade –
está em, criando, constituir a propriedade.
36
Está bem claro em Locke que a propriedade é um direito. E no seu pensamento
significa mais do que os bens, estendendo-se à vida, propriedade e bens, “designando o
direito de cada um à conservação de si, aos seus atos e às suas posses”.
37
Locke diz:
Tudo isso evidencia que, apesar de a natureza se oferecer a nós em comum, por
ser o homem senhor de si próprio e dono de si mesmo, das suas ações e do
trabalho que executa, tem ainda em si mesmo os fundamentos da propriedade; e
tudo aquilo que aplica ao próprio sustento ou conforto, quando as invenções e
artes aperfeiçoam as conveniências da vida, é totalmente propriedade sua, não
pertencendo a mais ninguém.
38
O mundo político de Locke, como Strauss e MacPherson
39
perceberam, é um
mundo de proprietários. A propriedade é essencial aos indivíduos, e em nome dela, ou
também dela, eles racionalmente decidem que o melhor meio de conservá-la é vivendo
sob as condições seguras de um Estado político. Segundo Michaud “O indivíduo
lockiano espera da sociedade civil que ela lhe assegure a possibilidade de exercer sua
atividade de apropriação e de valorização do mundo.”
40
O conceito de propriedade se apresenta em nuances variáveis nos textos de
Locke. Em muitas passagens o conceito se amplia para além da simples propriedade da
terra ou bens materiais. O sentido de propriedade abrange muitas vezes a vida, a
liberdade e os bens. No capítulo IX do Segundo Tratado ele se refere à “conservação
recíproca da vida, da liberdade e dos bens a que chamo de propriedade.”
41
Mais adiante,
no capítulo XV, afirma: “Por propriedade entendo, aqui e alhures, aquilo que os homens
têm, quer na própria pessoa, quer nos bens materiais”.
42
Em outras passagens o termo
torna-se menos abrangente, designando mais precisamente a propriedade dos bens.
36
Ribeiro, R.J. Ao Leitor Sem Medo. Hobbes escrevendo contra seu tempo. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 1999, p. 81.
37
Moura, C. A. Hobbes, Locke e a Medida do direito. Filosofia Política 6. Porto Alegre: L&PM Editores,
p. 150.
38
Locke, J. Dois Tratados Sobre o Governo, 2001, p. 423-424.
39
Natural Rigth and History de Strauss, e A Teoria Política do Individualismo Possessivo, de Hobbes até
Locke de MacPherson.
40
Michaud, Y. Locke, 1991, p.59.
41
Locke, J. Dois Tratados Sobre o Governo, 2001, p. 495.
42
Ibidem, p. 541.
64
MacPherson aponta esse estreitamento da noção de propriedade: “Em sua argumentação
decisiva quanto às limitações dos poderes dos governos está nitidamente usando
propriedade no sentido mais comum, de terras e bens (ou o direito à terra e aos bens),
como o faz durante todo o capítulo Da Propriedade.”
43
Independentemente da maneira como Locke concebe a propriedade, sua
proposta é bem clara a respeito: o homem possui direito natural à propriedade. Desta
forma pode-se afirmar que o conceito de direito natural em Locke possui um conteúdo
específico. E é pela preservação desses direitos, para que eles possam ser desfrutados
com tranqüilidade, que os homens contratam.
A mesma questão em Hobbes possui um tratamento bem diverso. Para ele há
apenas uma noção de posse momentânea e não de propriedade. Isto fica claro quando
Hobbes afirma que na condição de guerra o homem tem direito a todas as coisas, dado
que numa tal situação de insegurança ele pode lançar mão de qualquer coisa que possa
servir-lhe de ajuda na proteção contra os inimigos. Porém, Hobbes também diz que
nessa situação não haverá para os homens segurança nenhuma (Cf. L, XIV, p113).
Como não existe segurança, não existe outra garantia de posse que não seja a própria
força, o que não constitui de forma alguma o direito de propriedade.
A passagem da liberdade para uma noção de posse não é um acréscimo à
definição inicial de direito natural, e sim muito mais uma conclusão lógica da própria
definição de direito. Sendo este uma liberdade que o homem natural tem de auto-
preservação, então a idéia de que ele pode realizar qualquer ação e fazer uso de qualquer
objeto já está necessariamente contida na definição inicial. Dizer que ele tem liberdade
de auto-preservação, necessariamente implica em dizer que ele pode fazer e usar o que
quiser. Trata-se apenas de uma conseqüência necessária de uma proposição inicial. No
Do Cidadão Hobbes afirma:
Ora, como basta um homem querer uma coisa qualquer para que ela já lhe
pareça boa, e o fato de ele a desejar já indica que ela contribui, ou pelo menos
lhe parece contribuir, para sua conservação (e ademais já o autorizamos, no
parágrafo anterior, a ser juiz da questão se ela contribui ou não, portanto
consideraremos como necessário à sua conservação tudo o que ele assim
entender), e pelo parágrafo sétimo se evidencia que o direito de natureza permite
que sejam feitas ou havidas aquelas coisas que necessariamente conduzem à
proteção da vida e dos membros – de tudo isso então decorre que, no estado de
natureza, para todos é legal ter tudo e tudo cometer. E é este o significado
43
Macpherson, C.B. A Teoria Política do Individualismo Possessivo, 1979, p.209.
65
daquele dito comum, “a natureza deu tudo a todos”, do qual portanto
entendemos que, no estado de natureza, a medida do direito está na vantagem
que for obtida. (DCi, I, 1, 10, p. 32-33)
Quando Hobbes diz “é legal ter tudo e tudo cometer” está demonstrando que, na
falta de um poder instituído, não há, então, nenhum impedimento legal para que o
indivíduo se aposse do que sua razão estabelecer como um bem, já que não está
legalizada a noção de propriedade ainda. Ainda que esse direito admita a posse de tudo,
não é uma garantia, um certificado de posse, já que é apenas o indivíduo, solitariamente
e através da sua força, que irá tentar garantir a posse de qualquer objeto. Portanto, ainda
é uma liberdade de se apossar de algo, ou liberdade de praticar uma determinada ação.
No Leviatã, Hobbes trata dessa questão de modo mais resumido, mas deixa claro
duas coisas: que a condição natural é um estado de guerra e que assim sendo o homem
só é governado pela sua própria razão, e portanto pode servir-se de tudo nessa luta:
E dado que a condição do homem (conforme foi declarado no capítulo anterior)
é uma condição de guerra de todos contra todos, sendo neste caso cada um
governado por sua própria razão, e não havendo nada, de que possa lançar mão,
que não possa servir-lhe de ajuda para a preservação de sua vida contra seus
inimigos, segue-se daqui que numa tal condição todo homem tem direito a todas
as coisas, incluindo os corpos dos outros. (L, XIV, p 113)
Enquanto as leis civis ainda não existem para regulamentar a questão da
propriedade, toda a ação no sentido da preservação é válida. Tudo pode ser feito onde
ainda não existe a lei positiva, sem que com isso o indivíduo esteja cometendo qualquer
tipo de injustiça.
A liberdade natural, no entanto, do mesmo modo em que permite aos indivíduos
a defesa da vida, permite a existência de uma situação de extrema insegurança. A
liberdade de tudo fazer é desfrutada por todos ao mesmo tempo, logo, ninguém está
seguro de sua vida enquanto todos desfrutam da mesma condição de liberdade total.
“Enquanto perdurar este direito da cada homem a todas as coisas”, nos diz Hobbes, “não
poderá haver para nenhum homem (por mais forte e sábio que seja) a segurança de viver
todo o tempo que geralmente a natureza permite ao homem viver” (L, XIV, p. 113-114).
A liberdade de usar os meios que o indivíduo tem como única forma de sobreviver, ao
mesmo tempo, enquanto liberdade dos outros, torna-se também uma ameaça. Quer dizer
que esse direito a tudo por parte de todos, acaba inutilizando o próprio direito. Por que
66
ao mesmo tempo em que todos dispõem de uma ampla liberdade na falta da lei positiva,
não há nada que garanta essa liberdade, pois ela resume-se apenas na falta de oposição
externa. No Do Cidadão, Hobbes aponta para o fato de que esse direito de todos a tudo
torna-se nulo:
Mas foi pequeno benefício para os homens assim terem um comum direito a
todas as coisas; pois os efeitos desse direito são os mesmos, quase, que se não
houvesse direito algum. Pois, embora qualquer homem possa dizer, de qualquer
coisa, “isto é meu”, não poderá porém desfrutar dela, porque seu vizinho, tendo
igual direito e igual poder, irá pretender que é dele essa mesma coisa. (DCi, I, 1,
11, p. 33)
Ou seja, o direito a todas as coisas, como uma extensão do direito natural numa
condição de guerra, acaba por ser invalidado, porque não há garantia de que algo possa
pertencer a um determinado indivíduo, a não ser sua própria vontade e força particular
para conquistá-lo. Conclui-se com isso que o direito natural, ao se transformar, numa
condição de guerra, em direito a todas as coisas, persiste sendo apenas liberdade de usar
o que a razão calcular como melhor meio para sobrevivência, não atingindo o estatuto
de direito à propriedade. Se liberdade é ausência de impedimentos, quando um
indivíduo busca fazer uso de um bem que já está sendo usado por outro, não poderemos
então dizer que ele tem liberdade para usar aquele objeto. O uso de algum objeto pode
até tornar-se posse, se o objeto não estiver sendo usado, ou se o indivíduo o fizer pela
força. Mas isto não implica jamais em direito a propriedade, que, como vimos, é
invalidado pelo direito natural do outro. Portanto não podemos retirar qualquer
positividade dessa noção de direito como “direito à todas às coisas”. Esta noção não
significa direito à propriedade e, portanto, não atribui nenhum conteúdo ao conceito
hobbesiano de direito natural. Se o direito natural significasse direito intransferível à
propriedade encontraríamos nele um fundamento suficiente para o direito à resistência.
Em nome da propriedade o súdito poderia, sem cometer injustiça, resistir ao poder
soberano. Entretanto, não podemos concluir que o direito natural é direito à
propriedade. A propriedade , então, não atribui um conteúdo positivo ao direito natural.
67
1.5. O sentido da negatividade do direito
A concepção de direito como liberdade pode ser entendida como uma concepção
negativa de direito. Isto se justifica por dois motivos: primeiro porque há uma
dificuldade em precisar o seu conteúdo específico, apesar de poder-se entender a vida
como conteúdo, e segundo porque ele se efetiva numa condição de liberdade também
concebida negativamente, ou seja, como ausência de impedimento. E o direito a todas as
coisas torna-se nulo diante da situação de insegurança geral que a guerra provoca. No
estado natural não há comunidade, não há propriedade, mas apenas os homens
permanentemente dispostos à luta. O direito é concebido então no sentido negativo.
Faz-se presente na falta da lei. Eis aqui o problema de tratar o direito natural como
fundamento da direito à resistência. Se ele não pode ser entendido de maneira positiva,
ou seja, como o direito a algo muito bem definido, pelo qual os indivíduos contratam,
então fica difícil entender em que medida ele serve de fundamento para a resistência no
interior do Estado Civil. O direito natural servirá de fundamento da resistência na
medida em que parte dele permanecerá após o pacto, porém, a dificuldade está em
retirar do conceito de direito, que é negativo, a característica da inalienabilidade.
Pensemos mais detalhadamente na primeira questão da negatividade do direito:
que a definição de Hobbes é vazia e não se refere especificamente a nada. Isto torna
difícil determinar em que casos a resistência é legítima. Como não encontramos uma
especificação do direito natural (como existe em Locke), não podemos determinar, se
entendermos o direito como fundamento da resistência, em que momento preciso ele é
ferido e, portanto, se a resistência se legitima. Em Locke isso é claro, porque se entende
claramente quando a vida, a propriedade ou a liberdade são ameaçadas. O que torna
claro o momento em que o direito de resistência é legítimo. Quando a liberdade é
ameaçada, por exemplo, a resistência se legitima. O mesmo acontece com a propriedade
ou a vida. Mas em Hobbes isso não fica claro.
Poderíamos partir do conceito de direito como “liberdade de usar o poder para se
auto-preservar”, e afirmar então, que no caso de a vida ser ameaçada, o direito de
resistência se legitimaria. Isto pareceria bem claro e até poderia resolver a situação,
porém, devemos atentar que a compreensão hobbesiana de vida vai muito além da
simples preservação física, o que dificultaria especificar o exato momento em que a vida
se encontra ameaçada. O direito à vida para Hobbes vai muito além da compreensão da
68
vida bruta, e se amplia para outras questões que devemos especificar. A vida, em
Hobbes, é muito mais do que simplesmente o corpo.
Hobbes entende que o desejo é o princípio da ação humana. Portanto, o direito à
vida inclui também o direito ao movimento do desejo. No Leviatã, ele afirma que: “ao
homem é impossível viver quando seus desejos chegam ao fim, tal como quando seus
sentidos e imaginação ficam paralisados” (L, XI, p. 91). Ou seja, a ameaça à vida não se
restringe apenas à vida diretamente e, portanto, há momentos em que os desejos são
impedidos nos quais ocorre, indiretamente, uma ameaça à vida. O problema é
justamente a dificuldade de determinar exatamente em que momento isso acontece.
Ainda no Leviatã Hobbes diz: “A Felicidade é um contínuo progresso do desejo” (L,
XI, p. 91). O desejo se encontra de tal modo vinculado com a noção de vida, que é
impossível dissociá-los. A vida só é possível na sua plenitude se o movimento dos
desejos for permitido. O direito à vida não se refere somente à pura sobrevivência do
corpo, mas há uma vida realmente satisfatória de acordo com aquilo que o indivíduo
entende por vida satisfatória:
Portanto as ações voluntárias e as inclinações dos homens não tendem apenas
para conseguir mas também para garantir uma vida satisfeita, e diferem apenas
quanto ao modo como surgem, em parte da diversidade das paixões em pessoas
diversas, e em parte das diferenças do conhecimento e opinião que cada um tem
das causas que produzem os efeitos desejados. (L, XI, p. 91)
Isto posto, torna-se então difícil determinar os momentos da legitimação da
resistência. Não se trataria somente da ameaça direta à vida do indivíduo alçada pelo
poder soberano. A vida é mais do que isso, a vida é desejo e a consecução do desejo
consiste na vida. E, portanto, o Estado pode ameaçar a vida do indivíduo não somente
quando atenta diretamente contra ela, mas também quando impede que o movimento do
desejo seja realizado, ou quando impede que as ações que garantem a vida do indivíduo
sejam realizadas. De todo modo, neste conceito alargado de vida insere-se também a
questão da vida satisfatória. As ações do homem visam à vida satisfatória, e não
somente à vida simples e bruta. Mas o problema é determinar o que é a vida satisfatória,
já que esse julgamento depende de cada indivíduo em particular. Não podemos deixar
de avaliar o conceito de vida por esse viés. Uma das paixões que leva os homens
69
naturais ao contrato é o desejo de uma vida confortável, e não somente o desejo de
viver. A primeira paixão é o medo da morte, mas uma segunda paixão é o desejo de
uma vida confortável, e uma terceira é a esperança de consegui-la através do trabalho (
Cf. L, XIII, p. 111).
Proteger a vida é também proteger uma condição de vida confortável.
Determinar até onde se amplia o horizonte do conforto é mais difícil. Porque se
pensarmos, mais uma vez, que o direito ao fim também é direito aos meios, a possível
ameaça ao conforto também pode se constituir indiretamente numa ameaça à vida. O
direito à resistência ganharia uma amplitude imensa. Estender-se-ia para um espaço
quase inesgotável de possibilidades, nas quais a vida estaria ameaçada, quando o
conforto também é ameaçado. Poderia se pressupor então que o indivíduo teria
legitimamente direito a resistir a uma ordem do soberano não somente quando sua vida
estivesse diretamente ameaçada, mas também quando ele sentisse que uma ordem
ameaçasse também uma idealizada condição de vida confortável.
Ao afirmar que a felicidade é um contínuo progresso do desejo Hobbes está
relativizando o fim último das ações humanas. Ou seja, não se trata de conceber a vida
humana como o bem máximo em si, em virtude do qual todas as ações são realizadas,
mas apenas enquanto ela permite a livre progresso do desejo de um objeto ao outro.
Hobbes é enfático nesse ponto, ao afirmar que “não existe o finis ultimus (fim último)
nem o summum bonum (bem supremo) de que se fala nos livros dos antigos filósofos
morais” (L, XI, p. 91). Podemos então compreender que, em última instância, é à
preservação da vida que tendem todas as ações humanas, na medida em que ela consiste
na permanente fruição. Entretanto, como não há um summum bonum, segue-se apenas
que é ao eterno movimento dos desejos que tendem as ações humanas. Desta forma,
ainda que a vida possa vir a se constituir no conteúdo desse desejo, não podemos
afirmar isto de forma precisa, tendo em vista a falta de um fim último. Conclusão esta
que acaba por constituir uma dificuldade na tarefa de propor o direito natural como
fundamento do direito à resistência.
Passamos agora ao segundo sentido da negatividade do direito. Por essa
perspectiva podemos pensar em um direito natural que só se efetiva no estado natural,
porque não existe uma lei positiva que possa servir de oposição a esse direito e que
poderia garantir a segurança. O direito então só vigoraria no estado natural na ausência
de uma oposição, dada a concepção hobbesiana de liberdade como ausência de
impedimento. Desta forma, a instituição do Estado civil não se colocaria como uma
70
oposição positiva colocando um fim a esse direito? O Estado passa a existir e institui a
lei positiva e se torna um obstáculo a liberdade. O direito natural então, que só se
constituía a partir da ausência de obstáculo, deixa de existir. A partir do contrato é
Estado que vai fundar o direito.
Sobre este ponto Tönnies comenta, citando Gierke:
Na opinião de Gierke, Hobbes intenciona desfazer o direito natural, colocando
pé sobre ele com suas próprias armas, ‘já que rebaixa o direito pré-estatal do
estado de natureza à categoria de um jus inutile, que, na realidade, não contém
nem o germe de um direito; diante do Estado, mediante cuja ordem e coação
nasce o direito, desaparece qualquer direito não pronunciado por ele; rechaça
pura simplesmente toda idéia de um vínculo jurídico que não seja o poder
estatal, definidor soberano do justo e do injusto’.
44
O jus naturale torna-se jus inutile, segundo a análise de Gierke. Isto ocorre
porque a ordem estatal revoga o jus naturale, estabelecendo um direito positivo que
passa a vigorar. Não existe outro vínculo jurídico que não seja aquele do poder estatal.
Esta revogação do direito natural também é apontada por Renato Janine Ribeiro. Para
ele o Estado:
Suprime a autonomia e mesmo a existência (a não ser física) das antigas
individualidades, exceto em parcos casos precisos, os únicos a justificarem uma
espécie de resistência, de que trataremos e que nem se pode chamar de rebelião.
Nem deve nem pode haver um contra peso para o Estado: seu poder não
prolonga uma realidade anterior, mas possui o peso do novo e o vigor do
inaugural. Não é instrumento para a obtenção de fins bem precisos; é verdade
que visa a garantia da paz e da vida, mas para isso urge que se torne ele a pedra
de toque do novo organismo.
45
Janine Ribeiro aponta o Estado como fundador de uma nova realidade que se
opõe totalmente à anterior. É justamente o que tentamos demonstrar quando afirmamos
que o direito natural é apenas uma liberdade de se defender quando não existe Estado.
Quando o Estado funda uma nova realidade esta liberdade, se não é totalmente apagada,
44
Tönnies, F. Hobbes. Madri: Alianza Editorial, 1988, p.241.
45
Ribeiro, R.J. A Marca de Leviatã, 2003, p. 77-78.
71
pelo menos encontra na soberania e na lei impedimentos que a limitem. O que torna
problemática a tentativa de fundamentar juridicamente o direito de resistir somente no
direito natural.
Pretender apontar no texto de Hobbes o fato de que é o Estado que funda o
direito, e que o mesmo Estado nega todo e qualquer direito anterior não é uma tarefa
sem percalços. Nem todos os estudiosos concordam com esta interpretação. Dentro
dessa perspectiva ficaria difícil compreender a primeira parte do Leviatã, na qual
Hobbes procura elaborar um conceito de direito natural. Mesmo que o conceito de
direito natural em Hobbes tenha uma definição negativa, sem um conteúdo específico,
entender que é o Estado absolutamente que funda o direito é uma compreensão radical
da relação entre direito natural e Estado civil. Porém, essa visão aponta um caminho
para questionar a tese de que somente o direito natural seja a base da resistência por ser
um direito inalienável, como já fizemos. Não que necessitemos concordar totalmente
com essa tese ou negá-la por completo, mas podemos tomá-la como ponto de partida
para o questionamento da inalienabilidade do direito natural.
Acontece que em Hobbes essa questão não é tratada da mesma forma como em
outros autores do contrato, como Locke, por exemplo, para quem o Estado apenas
garante os direitos. Esses direitos já preexistem ao Estado, estão no estado natural, são
inerentes ao homem, e ao Estado cabe assegurá-los. Até mesmo por isso o direito à
resistência em Locke é bem mais nítido.
O fim do Estado, segundo Locke, é a garantia de que os indivíduos possam
usufruir seus direitos, isto é, sua vida, sua liberdade e sua propriedade, sem ser
ameaçados por outros indivíduos, o que não é de modo algum garantido no estado
natural, já que nem todos os indivíduos respeitam a lei natural. A situação repleta de
perigos no estado natural conduz os homens à busca de uma convivência social regida
por um poder comum que lhes garanta a tranqüila fruição de todos os seus direitos. Diz
Locke no Segundo Tratado:
Tais circunstâncias forçam o homem a abandonar uma condição que, embora
livre, atemoriza e é cheia de perigos constantes. Não é, pois, sem razão que
busca, de boa vontade, juntar-se com outros que estão já unidos, ou pretendem
unir-se, para conservação recíproca da vida, da liberdade e dos bens a que chamo
de propriedade.
46
46
Locke, J. Dois Tratados Sobre o Governo, 2001, p. 92.
72
Os homens buscam o Estado Civil não somente para a proteção de suas vidas,
mas também para a garantia de sua liberdade e propriedade, direitos fundamentais do
homem. O Estado aqui não funda os direitos, mas surge como uma necessidade para
garanti-los, para salvaguardá-los das possíveis ameaças que existiam antes, no estado
natural. No parágrafo seguinte do Segundo Tratado, Locke reafirma o papel do Estado:
“O maior e principal objetivo, portanto, dos homens se reunirem em comunidades,
aceitando um governo comum, é a preservação da propriedade. De fato, no estado de
natureza faltam muitas condições para tanto”.
47
O Estado lockiano de forma alguma pode se constituir como fonte do direito. O
homem possui naturalmente propriedade sobre si mesmo, e o seu trabalho acrescenta
algo seu às coisas comuns, o que fundamenta a propriedade. Portanto o homem é
naturalmente proprietário. Naturalmente portador de direito. Cabe ao Estado apenas
constatá-los e garanti-los. O Estado, segundo Moura, “deverá apenas reconhecer e
preservar direitos que preexistem a ele. O trabalho toma o lugar da convenção: a
sociedade constata direitos mas não os constitui, como supunha Hobbes”.
48
O Direito Natural em Locke possui uma definição bem clara, constitui-se não
somente da liberdade, mas de coisas concretas também, o corpo e os bens adquiridos
através do trabalho. A propriedade, segundo Michaud “é a forma concreta dos direitos,
algo distinto do sujeito, mas que é uma parte dele mesmo.”
49
E no momento do contrato
os indivíduos não cedem esses direitos fundamentais. Eles apenas cedem seu direito de
autodefesa a um juiz comum, a partir de um consentimento entre os cidadãos, que vai
instaurar o Estado. Cabe ao Estado a condição de ser juiz que serve de protetor daqueles
três direitos fundamentais, os quais constituem o objetivo de manutenção permanente
pelos indivíduos, e que por isso mesmo, em função dessa proteção, confiam o direito de
autodefesa ao Estado, na esperança de que este proteja aqueles direitos.
No caso de Hobbes, além da dificuldade de se precisar um conteúdo específico
para esse direito, ou pelo menos sendo esse conteúdo discutível entre os comentadores,
nota-se também que não há uma argumentação mais ampla sobre ele. O direito é
descrito de forma extremamente concisa, apenas como liberdade de usar o poder para se
47
Ibidem.
48
Moura. C. A. Hobbes, Locke e a Medida do Direito, 1989, p.144.
49
Michaud, Y. Locke, 1991, p. 52
73
preservar. Esta constatação realmente dificulta a discussão a respeito do direito natural,
de sua amplitude e de seus conteúdos. Pois se precisa extrair de passagens
extremamente breves uma noção fundamental para a filosofia política hobbesiana.
A compreensão clara do que é o direito natural em Hobbes é fundamental para
saber se ele pode ser transferido ou se ele é inalienável. Porque se compreendermos,
por exemplo, que o direito designa diretamente alguma coisa, a vida, por exemplo, e
que, por ser um direito natural, o Estado de forma alguma pode cancelá-lo por completo
depois do pacto, então ele realmente pode fundamentar um direito de resistir. Isto por
que ele seria realmente inalienável, já que é natural, e está inscrito na natureza humana,
que é uma criação divina, e que o homem, portanto, o possui de forma radical antes do
Estado, ficando este impossibilitado de atentar contra a vida humana.
Mas se o pensarmos concebido por Hobbes de forma negativa, ou seja, somente
existe por que o Estado ainda não existe, porque ainda não existe nenhuma lei positiva
que limite a ação do homem, e que por isso, devido às características naturais do
homem, entre elas o medo, este indivíduo, de forma natural e instintivamente irá se
defender, então parece que ele não apresenta conteúdo suficiente para permanecer
depois do pacto. Ou seja, ele não constituiria uma instância suficientemente absoluta
para se manter dentro do Estado. Ele existe porque o Estado não existe e, portanto,
depois do Estado não pode permanecer. Entretanto, o que efetivamente ocorre a partir
da argumentação de Hobbes é justamente a permanência de parte desse direito natural
no Estado. O direito à resistência pode ser compreendido como aquela parte do direito
natural que é inalienável e, portanto, permanece após a instituição do Estado, e pode ser
compreendida como o direito de resistir à força que provoque ameaça à integridade.
“Em primeiro lugar, ninguém pode renunciar ao direito de resistir a quem que o ataque
pela força para tirar-lhe a vida, dado que é impossível admitir que através disso vise a
algum benefício próprio” (L, XIV, p. 115). Parece que desta forma se coloca aí uma
tensão entre a inalienabilidade (o fato de que ele permanece no Estado) e a
alienabilidade ( sentido negativo do direito). Ou seja, por um lado é difícil compreender
por que não se pode alienar completamente o direito em virtude de sua negatividade e,
por outro, ele é inalienável porque não se pode admitir a alienação da resistência à
força. Pode-se perguntar então se é possível pensar o direito natural como inalienável
apenas em virtude de seu conceito. A dificuldade nesta tarefa, como já propomos, é a
característica negativa do direito natural. Entretanto, se pensarmos que no momento do
contrato aliena-se o direito aos meios e não o direito aos fins, parece-nos que há uma
74
possibilidade de pensar a inalienabilidade deste direito em virtude de uma análise
exclusiva a partir de seu conceito. Ou seja, no momento da alienação dos direitos, os
indivíduos o fazem em nome da garantia de outro direito, que é a proteção das suas
vidas. Logo, há um objetivo maior para a transferência que é a defesa da vida. O
indivíduo concorda, então, em abandonar uma liberdade absoluta na escolha dos meios
para a defesa da vida, mas não abdica do objetivo final que é a vida.
De todo modo, pensamos que a referência ao artifício contratual seja também
exigida para pensar a resistência. Isto porque o contrato é o artifício pelo qual se faz a
transferência de direitos. Logo, se no problema da resistência está envolvida a questão
da transferência, uma compreensão deste artifício se faz necessária.
2. O contrato como justificativa para o direito à resistência
Neste capítulo analisaremos a questão da resistência por outra perspectiva: a do
contrato. Procuraremos demonstrar como é possível pensar a resistência a partir do
contrato, o qual é concebido por Hobbes como um artifício da razão, um ato puramente
lingüístico. O contrato encontra-se, portanto, na esfera do artifício, que, ao lado da
natureza, sustenta o edifício político hobbesiano.
Na medida em que a natureza é representada pelo direito natural, o qual acaba
também por fundamentar o próprio contrato, tentaremos buscar no texto hobbesiano a
possibilidade de entender de que forma a estrutura do contrato pode servir de
justificativa para pensarmos o direito à resistência no interior do estado civil.
A resistência não deve ser pensada como uma criação objetiva do contrato,
portanto, não é por esse caminho que pretendemos seguir. O contrato hobbesiano cria
objetivamente direitos do soberano que lhe outorgam um poder absoluto. Torna-se
difícil imaginar a resistência como uma regra estabelecida pelo contrato ou então um
direito estabelecido por uma constituição positiva. O que tentaremos buscar na estrutura
do contrato é uma justificação para a resistência por outra via. Procuraremos determinar
em que sentido a não admissão da resistência poderia anular o contrato. Ou seja, para o
próprio contrato poder se tornar válido, há a necessidade lógica de se admitir certos
momentos de possibilidade de resistência no Estado civil. Procuraremos demonstrar
que, de acordo com a estruturação do contrato hobbesiano, a validade deste depende da
75
admissão de certas condições pré-estabelecidas de acordo com a razão, entre as quais
está a resistência.
O contrato é concebido por Hobbes como um artifício da razão. Esta, por sua
vez, também é também como um artifício. Desta forma, tanto a razão, quanto o seu
fruto contratual, se encontram numa esfera não natural. Há duas esferas transparecendo
na teoria hobbesiana do contrato. Uma esfera natural, na qual estão as paixões do
homem originadas pelo movimento e, consequentemente, o direito. A outra é a esfera
artificial, na qual se encontra o ato contratual. Porém, há uma articulação bem estreita
entre as duas esferas, já que todo o artifício do contrato é feito em nome da esfera
natural. Em busca de sobrevivência, em busca de poder continuar desejando, é que o
homem cria o artifício contratual. É a partir desta dinâmica entre natureza e artifício que
o contrato hobbesiano traz consigo muitas especificidades que o tornam, sob
determinados prismas, distante dos outros teóricos contratualistas. Uma destas
especificidades é exatamente o tratamento dado por Hobbes ao direito de preservação da
vida também no interior do Estado civil. Procuraremos então demonstrar como se
constrói no interior do pensamento hobbesiano este artifício, para entendermos como ele
pode servir de fundamento para a resistência.
2.1. Razão e Linguagem
O contrato é um artifício da razão. Hobbes entende a razão como simples cálculo
feito pelo homem tendo em vista a consecução de um determinado objetivo (Cf. L, V, p.
51, DCo, I, 1, EL, I, 5). O verdadeiro sentido da razão hobbesiana é o cálculo ou
raciocínio com nomes. É neste âmbito e apenas nele que a verdade pode ser encontrada.
Os raciocínios são efetuados através do cálculo de nomes, o qual pode conferir
necessidade e universalidade aos resultados encontrados.
50
Para compreendermos a noção hobbesiana de razão é necessário que se atente
para a distinção que Hobbes propõe entre discurso mental e discurso verbal. A primeira
esfera, o discurso mental, é o campo da imaginação, enquanto a segunda é o campo
específico da razão, ou da ciência, e consequentemente é a esfera do artifício. É o
50
Hobbes aponta para o significado originário do termo raciocínio significando cálculo: “Os latinos
chamavam os cômputos de moeda rationes, e ao cálculo ratiocinatio, e àqulo que nós em contas ou livros
de cálculo denominamos intens, chamavam nomina, isto é, nomes; e daí parece resultar a extensao da
palavra ratio à faculdade de contar em todas as outras coisas”. (Cf. L, IV, p. 47)
76
discurso verbal que irá gerar toda a estrutura jurídica do Estado civil, substituindo as
relações de poder estabelecidas no estado de natureza pelas relações de direito.
51
O discurso verbal é uma cadeia de pensamentos ou de imaginações. “Por
conseqüência, ou cadeia de pensamentos, entendo aquela sucessão de um pensamento a
outro, que se denomina (para se distinguir do discurso em palavras) discurso mental
(L, III, p. 39). Este é o discurso que se dá exclusivamente no âmbito da imaginação,
constituindo uma forma de cálculo, sem palavras, onde ocorre a passagem, através da
adição ou subtração, de um pensamento a outro. Efetivando-se, portanto, no campo da
imaginação, o discurso mental não pode atingir a instância de universalidade da ciência,
já que a imaginação é fruto da memória, atingindo apenas o nível da prudência: “(...)
visto que a Experiência nada mais é que memória; e a Prudência ou prospecção do
tempo futuro, nada mais que a expectativa das coisas das quais já tivemos experiência, a
Prudência tampouco pode ser considerada filosofia” (DCo, I, 1, 2, p. 13).
Diretamente da imaginação não podemos produzir conhecimento científico. É
claro que há uma vinculação entre imaginação e ciência, já que é a partir da imaginação
que se constitui o conhecimento para Hobbes. Mas o conhecimento do universal, isto é,
da ciência, vai além da imaginação, e atinge uma outra esfera para além da imagem:
aquela das palavras.
A teoria da imaginação está inserida na concepção mecanicista de universo de
Hobbes. A imaginação tem origem na sensação, cuja causa é o movimento de um corpo
exterior que pressiona o órgão próprio de cada sentido. Esta pressão é conduzida ao
cérebro e ao coração, e causa ali uma contrapressão. Esta contrapressão é o que se
chama de sensação. Esta é forte e dura o tempo que dura a pressão exercida pelo objeto
exterior. A imaginação ocorre quando o homem, através da memória, recorda-se
daquelas sensações, torna-as imagens enfraquecidas: “A imaginação nada mais é
portanto que uma sensação diminuída, e encontra-se nos homens, tal como em muitos
outros seres vivos, quer estejam adormecidos, quer estejam despertos” (L, II, p. 34-35).
O discurso mental é o cálculo que ocorre sem a utilização de palavras situado no
plano da imaginação. Esta cadeia de pensamentos, efetuada sempre através de adição e
subtração entre os pensamentos, um a partir do outro, conduz o homem a uma forma
51
Nos Elementos Da Lei Hobbes utiliza o termos discursão da mente (mental discursion) e discurso
(discourse) da língua. É a partir do Leviatã que ele opta por fazer a distinção entre discurso mental
(mental discourse) e discurso verbal (discourse in words). Tomamos por base então o texto definitivo da
política hobbesiana que é o Leviatã e preservamos a sua terminologia, tendo em vista que
conceitualmente não há diferenças profundas entre os dois textos.
77
específica de conhecimento: a prudência. Esta não garante a certeza, não produz
necessidade universal, diversamente do cálculo com palavras. Há dois tipos de
raciocínio mental: um é livre, quando o pensamento vagueia sem um desígnio maior
que o controle, e outro é constante, regulado por um desejo ou desígnio (Cf. L, III, p.
41-42).
Este é o plano daquilo que Hobbes denomina prudência, a faculdade de calcular
mentalmente através de imaginações. A prudência nasce da experiência, a qual nada
mais é do que “(...) a recordação de quais antecedentes foram seguidos por quais
conseqüentes” (EL, I, 4, 6, p 35). Durante a vida, o homem cotidianamente depara-se
com certos efeitos seguidos de certas causas. Em outro momento, ao deparar-se
novamente com as mesmas causas ele inferirá os mesmos efeitos antes percebidos. A
este cálculo de antecedentes e conseqüentes Hobbes dá o nome de prudência, e enfatiza
sempre a sua estreita ligação com a experiência. No Leviatã, Hobbes afirma:
(..) (pondo de lado as artes que dependem das palavras, e especialmente aquela
capacidade para proceder de acordo com regras gerais e infalíveis a que se
chama ciência; a qual muito poucos têm, e apenas numas poucas coisas, pois não
é uma faculdade nativa, nascida conosco, e não pode ser conseguida – como a
prudência – ao mesmo tempo em que se está procurando alguma outra coisa),
encontro entre os homens uma igualdade ainda maior que a igualdade de força.
Porque a prudência nada mais é do que a experiência (...). (L, XIII, p. 107)
Sendo a prudência nada mais do que a experiência que o homem tem através da
observação de eventos, ela não garante a necessidade universal de suas conclusões, já
que se refere sempre ao particular. A partir da experiência um homem pode conjecturar
sobre o passado e o futuro. É impossível ao homem ter presente em seu pensamento o
futuro, pois este ainda não foi. Mas, através da prudência, o homem pode imaginar,
depois de ter visto inúmeras vezes das nuvens se seguir a chuva, que o mesmo se
seguirá a partir das nuvens que estão no céu naquele momento. Da mesma forma, para
usar o exemplo de Hobbes, ele conjectura sobre o passado, ao olhar as cinzas conclui
que ali houve fogo, após ter visto inúmeras vezes os dois fenômenos ligados (Cf. EL, I,
4). A repetição da experiência com antecedentes e conseqüentes leva os homens a tomar
os antecedentes e conseqüentes como sinais um do outro “assim como as nuvens são
sinais de chuva por vir e a chuva é sinal de nuvens passadas” (EL, I, 4, 9, p. 35). O
78
problema é que a prudência como cálculo através desses sinais conjecturais não pode
garantir a universalidade exigida pela ciência. Para Hobbes jamais haverá uma
segurança ou evidência completa de que um antecedente deva ser seguido por outro.
Mesmo que os dois tenham se seguido inúmeras vezes anteriormente, não há garantia
que isto também acontecerá no futuro. Com o passado o homem constrói o futuro, como
se estivesse chamando o passado de futuro, mas isto apenas relativamente, porque não
há garantia absoluta de que os mesmos eventos se repitam. Esta tese de certa forma é
uma antecipação do problema da relação causa e efeito apontado por Hume, apesar de
que para Hobbes a universalidade e a necessidade podem ser atingidas na esfera do
discurso verbal, na razão, o que garantiria os resultados encontrados pela ciência,
enquanto que para Hume nem mesmo esta pode garantir a universalidade e a
necessidade.
52
O discurso mental está diretamente relacionado com as paixões. Segundo
Hobbes, as paixões são opiniões que os homens têm a respeito daquilo que é bom ou
mau. Estas opiniões são formadas através do cálculo prudencial, a partir da experiência.
No âmbito da prudência as relações entre os homens consistem necessariamente
em relações de poder. Isto ocorre porque a esfera da racionalidade ainda não impera, e
consequentemente não há a instituição de um aparato jurídico-racional que transforme
as relações de poder em relações de direito. No estado de natureza o homem é guiado
pelas paixões. São elas que se impõem sobre o comportamento humano. Desta forma
nasce o conflito. O poder de uns se choca com o poder de outros, e a guerra é
deflagrada. Os homens, de acordo com o cálculo da prudência, estão em busca
incessante por mais poder. O que não quer dizer que os homens não ajam de acordo
com a razão, já que Hobbes admite que os homens possuam e façam uso da razão neste
estado, mesmo que sejam “muito poucos, e em poucas coisas” (L, XIII, p. 107). No
entanto, este é o uso da razão ainda individualizado, em ações de interesse puramente
imediato. A guerra não é detida enquanto não se estabelecer um contrato que possa
realmente efetivar relações racionais de direito entre todos os envolvidos. Ficará a cargo
da razão a tarefa de converter um estado onde reinam as puras relações de poder para
um estado racional instituidor de relações de direito. Esta é a esfera do artifício. A
52
As dúvidas de Hume parecem de certa forma ecoar as palavras de Hobbes: “(...) pois ainda que um
homem tenha sempre visto o dia e a noite até hoje se seguirem um ao outro, não pode daí concluir que
eles assim farão ou que sempre o fizeram eternamente. A experiência nada conclui universalmente. Se os
sinais ocorrem vinte vezes para cada uma vez que faltarem, um homem poderá apostar vinte vezes por
uma no evento; só que não pode concluí-lo como uma verdade”. (EL, I, 4, 10, p. 36)
79
própria natureza também impele o homem ao estado racionalizado. As paixões tanto
estão na origem da guerra de todos contra todos, quanto são motivadoras para a saída
daquele estado. Porém, se a natureza motiva o homem para o fim da guerra, cabe à
razão apontar o caminho.
A razão é um artifício. Uma criação humana fruto de outro artifício: a
linguagem. Hobbes a define como um cálculo com nomes: “Pois razão, neste sentido,
nada mais é do que cálculo (isto é, adição e subtração) das conseqüências de nomes
gerais estabelecidos para marcar e significar nossos pensamentos” (L, V, p. 52, 53). A
prudência também é um cálculo, no entanto, é um raciocínio mental, o qual, ao
prescindir do uso de nomes, não garante a universalidade e a necessidade de suas
conclusões. Já o cálculo com nomes, a razão, ao atingir a necessidade e universalidade,
será o fundamento da ciência, que, por sua vez, possibilitará a organização da estrutura
jurídica do Estado. A verdadeira ciência civil somente poderá ser efetuada a partir do
cálculo racional, partindo de uma correta atribuição de nomes, isto é, de definições
evidentes por si mesmas, tais quais são as definições adotadas pelos geômetras. A
ciência civil nos moldes hobbesianos constitui-se através de uma dedução das normas
que devem ser seguidas no estado civil a partir dos princípios básicos de sua filosofia, a
partir da exata construção de definições.
O cálculo com nomes somente será possível com o uso de um instrumento
artificial, a linguagem. “A mais nobre e mais útil de todas as invenções” (L, IV, p 43),
nas palavras do filósofo. A linguagem consiste na atribuição de nomes às coisas e suas
eventuais conexões, sem a qual a vida coletiva seria impossível. O uso da linguagem
permite a passagem do discurso mental, a prudência, para o discurso verbal, a razão.
Este permite registrar ou marcar a conclusão de uma cadeia de pensamentos, e evita
assim, em caso de esquecimento, que ocorra a necessidade de se retornar outra vez à
mesma cadeia de pensamentos. Desta forma, a linguagem se constitui inicialmente
como uma ação de atribuição de marcas ou notas de lembrança (Cf. L, IV, p. 44). Outra
utilização dos nomes é em forma de sinais, o que ocorre quando o homem comunica aos
outros aquilo que pensa ou sente. De uma rigorosa atribuição de nomes às coisas
depende toda a constituição da verdadeira ciência. Todo o fundamento rigoroso da
ciência parte da construção de definições tão rigorosas quanto aquelas dos objetos
abstratos da geometria. Somente uma ciência rigorosa poderá erigir uma construção
jurídica artificial não sujeita aos erros do discurso mental. Por isso Hobbes adverte
sobre os abusos da linguagem, os quais originam conclusões absurdas, provocando a
80
sedição no interior do Estado. Estes abusos estão fundamentados justamente na
inconsistência da significação das palavras (Cf. L, IV, p. 44). A ciência tem o poder de
evitar a guerra não somente através do contrato, mas também através da produção de
conhecimento para homem. A ignorância das causas da guerra e da paz é um dos
motivos para a guerra, segundo a visão de Hobbes.
53
A linguagem, através da atribuição de nomes, supera o caráter particular do
simples cálculo da prudência. Conseqüências descobertas a partir de um caso particular
podem ser generalizadas, tornando-se regras universais, através das quais o homem
pode aliviar-se de todo esforço de construir uma nova cadeia de pensamentos sempre
que a necessidade surgir: “alivia nosso cálculo mental do espaço e do tempo, e liberta-
nos de todo o trabalho do espírito, economizando o primeiro, e faz que aquilo que se
descobriu ser verdade aqui e agora seja verdade em todos os tempos e lugares” (L, IV,
p. 47). Consequentemente, a questão da verdade para Hobbes é uma questão
estritamente relativa à linguagem. Fora da linguagem não ocorre o problema do
verdadeiro e do falso, já que a verdade nada mais é do que a correta ligação entre nomes
a partir do significado. Quando um nome está ligado ao outro numa conseqüência, a
verdade existe se um significar tudo o que o outro significa (Cf. L, IV, p. 47).
Sendo a verdade uma questão de linguagem, a partir da correta ordenação de
nomes, uma ciência rigorosa deve observar esta regra. Portanto, Hobbes aponta para o
fato de que somente é possível um caminho rigoroso para a ciência a partir da
observação do problema da linguagem. Uma ciência rigorosa deve, assim, ser embasada
a partir de uma observação rigorosa de seus fundamentos: os nomes. Portanto, o passo
inicial para a construção da ciência é a correta atribuição de nomes. O método proposto
por Hobbes é derivado justamente daquela ciência que Deus proveu à humanidade: a
geometria. Os geômetras iniciam a sua tarefa estabelecendo as corretas significações das
palavras utilizadas. Trata-se das definições geométricas, a partir das quais todos os
outros princípios serão derivados. Tal é o método que deve ser utilizado por todo aquele
que pretenda construir qualquer ciência rigorosa, até mesmo uma ciência civil. Uma
ciência embasada por definições incorretas fatalmente levará ao homem a conclusões
totalmente falsas: “Pois não pode haver certeza da última conclusão sem a certeza de
53
Taylor diz: “E os homens entram em guerra, não porque querem faze-la, ou por que nao conhecem que
a guerra produz efeitos maléficos, mas por que nao conhecem as verdadeiras causas da guerra e da paz”.
(in Thomas Hobbes, 1997, p. 30)
81
todas aquelas afirmações e negações nas quais se baseou e das quais foi inferida” (L, V,
p. 52).
Do cálculo com nomes, ou da adição e subtração de nomes, serão derivadas
todas as conclusões das ciências, aos moldes daquela fabulosa criação de Euclides. Da
mesma forma que os geômetras adicionam e subtraem com linhas, ângulos e formas,
também os escritores da ciência civil adicionam em conjunto pactos para descobrir os
deveres dos homens (Cf. L, V, p. 51).
A razão como cálculo tornará possível identificar a partir de pressupostos
básicos, as definições, - retiradas da concepção mecanicista de mundo a partir das
noções de corpo e movimento - quais serão os deveres e os direitos do súdito no interior
do Estado civil. A razão calcula quais as melhores condições para a preservação da vida,
a qual se encontra ameaçada na condição natural da humanidade.
Na situação de simples natureza a ciência pouco se efetiva. Este estado é
dominado pelas paixões que determinam uma condição de relações de puro poder, onde
os indivíduos permanecem apenas seguindo seus impulsos naturais. Os homens
calculam as conseqüências de suas ações unicamente de acordo com os benefícios
almejados para si mesmos. Mesmo que Hobbes admita o uso da razão nesta condição,
será o cálculo prudencial que regulará as ações dos indivíduos. Não há uma esfera
racional que possa superar as individualidades e assim direcioná-las para uma situação
de benefício coletivo onde reine a paz. A conseqüência de uma condição natural não
racional regulada pelas relações de poder é a guerra. Mais do que a guerra: a guerra de
todos contra todos e uma constante disposição dos homens para tomar em armas, o que
torna a vida do homem um estado de constante intranqüilidade.
Partindo da noção básica do mecanicismo, isto é, de que a realidade se constitui
de corpos em movimento, Hobbes, através do método extraído da geometria euclidiana,
demonstra que a única possibilidade científica para a saída deste estado de guerra é a
instituição de uma esfera que possa regular as relações de poder
54
. Esta esfera é o
Estado, construção jurídica que instaurará relações de direito e possibilitará a vida
coletiva em estado pacífico. O instrumento de instauração deste Estado é o contrato. De
acordo com Polin:
54
Apesar de toda a tradição interpretativa de Hobbes que compreende as conclusões políticas de Hobbes
como sendo derivadas do mecanicismo e, portanto, do princípio do movimento, há alguns intérpretes que
propõem uma leitura no sentido de tornar as conclusões políticas independentes de suas concepções
ontológicas ou propriamente físicas de universo, o que excluiria assim o princípio do movimento como
causa. Ver especialmente Gregory Kavka: Hobbesian Moral and Political Theory.
82
O contrato interrompe o mecanismo natural simplesmente causal e o substitui
por um mecanismo social artificial em que as forças naturais se recompõem em
forças novas convergindo na direção de novos corpos e se distribuem segundo
um plano teleológico, como por uma espécie de sobredeterminação que se
superpõe às determinações simplesmente causais da natureza.
55
Como já apontamos, o contrato está na esfera da razão. Porém, a motivação
principal para o fim do estado de guerra é o medo, uma paixão fundamental no
pensamento hobbesiano. Portanto, o móbile principal que leva o homem a pôr um fim
no estado de guerra está na ordem da natureza. Precisamos entender como estas duas
esferas se coadunam neste esforço rumo ao estado civil.
Além do medo, outras duas paixões desempenham papel fundamental como
móbiles que conduzem o homem ao estado de segurança: o desejo de uma vida
confortável e a esperança de conquistá-la pelo trabalho. Esta é a voz da própria natureza
que clama por uma situação onde a preservação humana seja garantida. O próprio
desejo humano o conduz a uma busca por segurança. Porém, a natureza apenas não é
suficiente. Como já afirmamos, a esfera da natureza é a esfera das paixões, a esfera das
relações de poder, condição para guerra permanente. Ficará a cargo na razão apontar
qual é o melhor caminho para a construção deste estado de paz.
Neste ponto temos um problema que se põe. Porque inicialmente o papel da
razão é apontado por Hobbes como sendo de conduzir o homem ao conhecimento das
leis naturais. Porém estas leis naturais por si próprias são incapazes de estabelecer um
estado de segurança. Elas existem no estado de natureza e por si só são incapazes de
conduzir o homem à paz. Torna-se complexo entender como Hobbes pode assim tratar
as leis naturais como mandamentos da reta razão, ou seja, da razão natural, se a razão é
concebida como puramente artificial, fruto da aquisição da linguagem pelo homem.
Não cabe aqui uma discussão mais profunda sobre como devemos entender a lei
natural na filosofia de Hobbes. Mas para superarmos o problema que se coloca,
pensamos que devemos conceber que as leis naturais no fundo não estejam na esfera da
razão entendida como artifício lingüístico. As leis naturais se encontram na esfera da
prudência, e assim pode-se entendê-las como sendo naturais no homem. O contrato,
entretanto, encontra-se na esfera da razão lingüística. Trata-se de uma construção
55
Polin, R. O mecanismo social no Estado civil. In: Pensamento Político Clássico, 2003, p.118.
83
abstrata da linguagem e que poderá então reorganizar as relações entre os indivíduos
transformados em cidadãos. O contrato é inspirado pelas leis naturais. Até porque uma
delas discorre justamente sobre os contratos, apontando que esta é a única possibilidade
de se garantir a coexistência pacífica. Porém, o ato contratual em si é um ato puramente
lingüístico. Somente através deste ato lingüístico é que a obrigação pode ser fundada. A
linguagem é o meio pelo qual os homens criam os vínculos da obrigação. As leis
naturais, por serem apenas regras de prudência, não criavam relações de obrigação entre
os homens visto que obrigam apenas in foro interno. O Estado, construção jurídica da
razão, funda a obrigação, e faz valer aquelas leis naturais que no estado de natureza
apenas sugeriam a paz como a melhor forma de coexistência.
É a segunda lei de natureza que, de forma prudencial, aconselha ser o pacto a
melhor medida a ser tomada para se preservar a vida:
Que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em que
tal considere necessário para a paz e a para a defesa de si mesmo, em renunciar a
seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com
a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo. (L,
XIV, p. 114)
O contrato é uma transferência mútua de direitos. Ele tanto pode fundar uma
simples relação comercial entre os homens, a compra ou a troca de bens, por exemplo,
quanto fundar a estrutura jurídica do Estado Civil.
Se o pacto hobbesiano é a transferência do direito, como é que ele pode então
servir de fundamento para pensar a resistência no Estado civil? O pacto, no Leviatã, é
um pacto de autorização. O súdito, ao pactuar, torna-se autor de todas as ações do
soberano. Esta característica justifica todas as ações do soberano no interior do Estado,
contra as quais o sujeito não pode se revoltar, já que, racionalmente falando, ele é autor
de todos os atos do soberano. Não há como, de acordo com as regras da lógica
hobbesiana, revoltar-se contra si mesmo. Da autorização Hobbes deriva os elementos da
soberania absoluta e, consequentemente, da obediência absoluta. Diante disto
chegaríamos a uma conclusão paradoxal: o pacto de autorização é fonte ao mesmo
tempo da obediência absoluta quanto da resistência.
Por um lado, o contrato é a fonte da obrigação absoluta, já que é um contrato de
autorização, tornando o súdito autor dos atos do soberano. O fato de Hobbes conceber o
84
contrato como transferência mútua de direitos, não obriga em nada o soberano, já que,
de acordo com a situação ideal proposta por ele, o soberano não faz pactos. São os
súditos que realizam o pacto entre si, transferindo seu direito ao soberano. A obrigação,
portanto, tem apenas uma via: somente o súdito está comprometido com ela.
Para pensar o contrato como fonte do direito de resistência devemos ter clara a
idéia de que o contrato é uma construção racional motivada por um objetivo. Ele não é
uma construção abstrata simplesmente vazia de sentido. Seu sentido está justamente no
objetivo pelo qual ele foi proposto: a garantia da vida. Desta forma existem alguns
limites apontados por Hobbes para a transferência de direitos nos pactos. Ao fazer uso
do método geométrico e da lógica na construção de uma ciência civil, Hobbes acaba por
concluir que é um contra-senso realizar um contrato através do qual se transfere
justamente aquilo que se quer manter através do mesmo contrato. Há, num caso desses,
a quebra das regras próprias da lógica que embasa o próprio artifício do contrato, o que
acaba por invalidá-lo.
Tendo por horizonte o objetivo do pacto, a manutenção da vida, renunciar ao
direito de defendê-la não pode ser admitido. Segundo Hobbes: “ninguém pode renunciar
ao direito de resistir a quem o ataque pela força para tirar-lhe a vida, dado que é
impossível admitir que através disso vise a algum benefício próprio” (L, XIV, p. 115).
O homem que transfere o seu direito sempre o faz em consideração a um bem
que daí espera. O contrato constitui-se fundamentalmente num ato voluntário, e de
acordo com a psicologia hobbesiana todos os atos voluntários são aqueles realizados
pelo homem em função de um bem para si mesmo. “Visto que o objeto dos atos
voluntários de um homem é sempre um bem aparente qualquer para ele, é
analiticamente necessário que a transferência dos direitos – o contrato – tenha um bem
por objeto. Este não pode ser senão a preservação da vida”.
56
Um benefício aparente é
sempre o objetivo do contrato, o que, necessariamente, invalidaria um contrato feito de
outro modo. Haveria desta forma um limite para a transferência de direitos no contrato.
Um contrato no qual um homem expressa por palavras a transferência do direito de se
defender de um ataque não pode ser considerado um ato voluntário. Homem algum
aceitaria voluntariamente não resistir à morte ou à agressão física. Por conseguinte, o
contrato hobbesiano não pode contemplar a transferência total do direito natural ao
poder soberano. Há um limite muito bem definido à transferência: a defesa da vida. O
56
Barbosa Filho, B. Condições de Autoridade e Autorização em Hobbes. In: Filosofia Política 6, 1991, p.
71.
85
contrato como fundamento da resistência está colocado aqui. Não há possibilidade de
contrato que determine a não resistência quando a vida está ameaçada. A própria lógica
contratual só pode realmente se efetivar ao resguardar aos contratantes a possibilidade
de defesa da vida.
Hobbes é até mais abrangente ao se referir à auto-defesa:
O mesmo pode dizer-se dos ferimentos, das cadeias e do cárcere, tanto porque
desta aceitação não pode resultar benefício, ao contrário da aceitação de que
outro seja ferido ou encarcerado, quanto porque é impossível saber, quando
alguém lança mão da violência, se com ela pretende ou não provocar a morte.
Por último, o motivo e fim devido ao qual se introduz esta renúncia e
transferência do direito não é mais do que a segurança da pessoa de cada um,
quanto a sua vida e quanto aos meios de preservá-la de maneira tal que não
acabe por dela se cansar. (L, XIV, p. 115)
Os homens pactuam buscando benefícios para si mesmos, os quais
compreendem mais do que a vida em si mesma, como também os meios essenciais para
a sua manutenção. No Leviatã, é importante lembrar, entre as paixões que conduzem o
homem ao estado civil, além do medo da morte, encontram-se também o desejo de uma
vida confortável e a esperança de conquistá-la através do trabalho. O homem espera, ao
erigir o Estado, não somente sobreviver em condições simplórias, mas também certo
conforto e segurança permanentes, que tornarão este estado melhor do que aquele em
que se encontram. O direito de se defender não pode ser, portanto, negado aos súditos,
já que a lógica contratual o exige. Hobbes é enfático quanto à nulidade de um contrato
através do qual o direito de se defender seja transferido. O contrato é invalidado porque
não há transmissão de direito algum dessa forma: “portanto a promessa de não resistir à
força não transfere nenhum direito em pacto nenhum” (L, XIV, p. 119).
A valorização da lógica contratual diante dos outros aspectos da teoria política é
uma característica que deve ser destacada no pensamento de Hobbes. A sobreposição da
lógica do contrato diante da moral é um exemplo desta característica. O contrato que
expressa a vontade define as regras da moral. As próprias leis de natureza são elencadas
a partir de um objetivo maior que sempre é o contrato. A segunda lei natural impele o
homem ao contrato. E a terceira, a qual é fonte da justiça, sugere o cumprimento dos
pactos: “Sem esta lei os pactos seriam vãos, e não passariam de palavras vazias” (L,
86
XV, p. 123). Nota-se a força da lógica contratual: Hobbes concebe a justiça como sendo
o cumprimento do pacto. Tönnies afirma que:
O que definitivamente distingue a Moral do Direito natural é que aquela
estabelece postulados fundamentalmente absolutos; este, fundamentalmente
condicionados. Hobbes, sem conhecer esta diferença, oferece, de fato, os
supostos, os princípios primeiros e os traços fundamentais do direito natural
racionalista posterior. No conforma o direito natural segundo princípios morais,
e sim a moral segundo princípios jurídico-naturais.
57
A lógica do contrato se impõe sobre a moralidade. Para Hobbes os princípios
universais somente são concebidos através da sua rigorosa ciência civil, portanto, a
estrutura jurídica prevalece. “Devemos considerar como injustas (wrong) apenas as
ações que repugnem à reta razão” (DCi, I, 2, 1), afirma o filósofo. Partindo do
pressuposto de que o contrato é o representante legítimo da racionalidade, a lógica
contratual prevalece sobre a moral.
Esta lógica é ferida ao se desconsiderar a possibilidade de autodefesa no interior
do estado civil. O rompimento com a lógica ocorre pelo fato de que o contrato é uma
representação da vontade dos homens. Se, como já demonstramos, o contrato é um
artefato da razão, então, consequentemente, a sua construção deve obedecer uma
coerência lógica bem rigorosa. Em Hobbes este aspecto adquire uma força ainda maior,
tendo em vista a utilização do método geométrico, segundo o qual as conseqüências
extraídas corretamente de definições exatas alcançam um status de validade universal.
Desta forma, um contrato fundado na vontade dos indivíduos, seja qual for esta vontade,
deverá possibilitar que se derive dele certos direitos e deveres logicamente necessários.
A lógica hobbesiana não permite que se pense numa relativização de direitos e deveres
no interior do Estado. Dado um contrato, dele é derivado inexoravelmente um conjunto
de direitos e deveres. Partindo do pressuposto de que o contrato é uma representação da
vontade, é impossível que ele possa eliminar um direito de se defender. Seria uma
conclusão falsa a partir de uma definição inicial. De um modo mais direto, podemos
afirmar que o homem não pode querer a sua própria morte. Nem pode expressar isso
através de um artefato lingüístico como o contrato.
57
Tönnies, F. Thomas Hobbes, 1988, p. 247.
87
É preciso, porém, estarmos atentos antes de tudo ao próprio problema da
definição hobbesiana de vontade. Para Hobbes, vontade é o último apetite da
deliberação. Ou seja, é aquele apetite que prevalece numa deliberação, e que
efetivamente orientará a ação. Desta forma fica difícil determinar um objeto específico
da vontade, já que, sendo os desejos determinados em relação a objetos externos, são as
circunstâncias que determinam os objetos escolhidos. Qualquer objeto pode ser objeto
da vontade. De acordo com Limongi “a vontade, para Hobbes, não tem essência, ou,
não está ligada por princípio e a priori a um conjunto de objetos em detrimento de
outros”.
58
Esta dificuldade em estabelecer um objeto para a vontade remete-nos a outra
dificuldade: como podemos, a partir de um conceito de vontade sem essência,
determinar os direitos e deveres a serem derivados do contrato enquanto concebido
como ato da vontade?
Apesar de se apresentar como um senso comum na interpretação hobbesiana, a
idéia de que a “vontade” é a vontade de viver não é exposta de maneira tão evidente nos
textos de Hobbes. No capítulo VI do Leviatã Hobbes nos expõe sua teoria da vontade,
distinguindo nos animais dois tipos de movimento, os quais são designados pelo
filósofo como movimento vital e movimento voluntário. Os primeiros são aqueles nos
quais a imaginação não é necessária, ou, que não são gerados pela imaginação do
homem, como por exemplo, a circulação, a digestão e a respiração. Já os movimentos da
segunda categoria são aqueles determinados pela imaginação. São ações realizadas pelo
homem que inicialmente foram imaginados na mente. E a imaginação, de acordo com a
teoria hobbesiana, é fruto da sensação. Esta por sua vez é determinada pela pressão de
objetos externos sobre os sentidos. O que nos leva a pensar que, em última instância, a
imaginação tem seu fundamento nos objetos externos, apesar de ser um evento mental.
Todos os movimentos feitos pelo homem basicamente são constituídos em relação a
objetos. Movimentos em direção (desejo) ou de afastamento (aversão). Qualquer coisa,
portanto, tanto pode ser objeto de desejo ou de aversão para o homem. Sendo que são as
circunstâncias externas que determinam desejo e aversão, torna-se difícil determinar
qual é o objeto da vontade humana. Diante de tal conclusão é apressado concluir que a
vida ou a autoconservação é o objeto da vontade expressado no contrato. Aquilo que se
apresenta mais claramente nos textos de Hobbes é o fato de que a vontade está ligada ao
desejo. Este, como vimos, é um movimento determinado pela imaginação, ligado a
58
Limongi, M. I. A vontade como Princípio de Direito, 2002, pg. 93.
88
objetos que lhe são a causa. Não há para Hobbes um objeto final do desejo, pelo qual os
homens estão constantemente lutando. Os homens estão constantemente envolvidos
com a possibilidade de extinção desse processo fluído e constante do desejo, que é a
passagem de um objeto a outro na imaginação.
59
O que mais temem os homens é a
interrupção desse processo contínuo de desejo. Ora a interrupção da vida, mais do que
qualquer outro acontecimento, representa a interrupção definitiva do movimento
contínuo dos desejos. A defesa da vida, desta forma torna-se objeto da vontade humana
no sentido em que ela permite a permanência do processo do desejo. Se ela é expressa
no contrato como a vontade do homem que desencadeia o processo de criação do
Estado, é nesse sentido de garantir o movimento do desejo e não como objeto final
deste. Ainda seguindo o raciocínio de Limongi:
A noção de auto conservação não designa o fim último do desejo em seu
movimento natural ou o único objeto especificamente universal e determinável
da vontade. Ela não é um objeto do desejo,mas uma noção que permite traduzi-
lo para um contexto jurídico, a fim de que se possa fazer a partilha entre o que
pode e o que não pode ser considerado objeto da vontade num ato contratual, e,
por conseguinte, a partilha entre os contratos legítimos e ilegítimos.
60
É a partir daí que se calcula que um contrato no qual os homens se
comprometem a não se defender são falsos, já que há neles uma incoerência lógica
interna. É neste sentido que se compreende a afirmação categórica de Hobbes no Do
Cidadão: “Ninguém está obrigado, por qualquer contrato que seja, a não resistir a quem
vier matá-lo, ou ferir ou de qualquer outro modo machucar seu corpo” (DCi, I, 2, 18, p.
48). Comprometer-se com alguém através de um contrato a não se defender da força
colocaria em risco aquilo que é a expressão própria da vontade, ou seja, a possibilidade
de continuidade do movimento do desejo. Para que este movimento esteja sempre
preservado, a garantia da vida é indispensável.
Há, portanto, uma lógica interna do contrato, que garante ao súdito o direito de
se defender depois da instituição da soberania. Qualquer contrato que não cumpra as
exigências desta lógica é nulo. Tratar-se-ia efetivamente não de um contrato verdadeiro,
mas um simulacro, a partir do qual é impossível deduzir verdadeiramente os direitos e
59
Cf. Idem, Ibidem.
60
Ibidem, p. 95.
89
deveres do súdito no interior do Estado civil. Somente um contrato que respeite esta
lógica, que propõe o Estado como ato da vontade, pode ser considerado legítimo.
A vontade expressa, ou denotada, num ato lingüístico artificial irá criar todo o
aparato jurídico do Estado, cujo contrato é a sua expressão racional obtida através do
cálculo com nomes, baseado num método fundado na geometria euclidiana. A partir do
artifício do contrato é possível calcular direitos e deveres incondicionais, superando
assim a possibilidade de uma futura variação da vontade. A vontade dos indivíduos
poderá variar segundo as circunstâncias após a instituição do contrato, mas o ato
contratual feito a partir desta construção lingüística estabeleceu direitos e deveres que,
doravante, deverão ser observados incondicionalmente. Tanto que Hobbes concebe a
eternidade como uma das características fundamentais do corpo político, pois, uma vez
instituído o Estado a partir da esfera da razão, ocorre a criação de um artefato jurídico
contendo princípios dotados de validade universal e, consequentemente, eternos. O
Estado, como entidade composta de território e pessoas comandadas por um soberano,
pode até ser destruído por uma revolução ou por guerra. Mas como ficção da razão
permanece universal.
Há uma outra abordagem a ser feita a partir da lógica contratual hobbesiana que
também permite pensar a resistência no contexto do Estado. Trata-se da observação de
uma característica marcante do contrato aos moldes da política de Hobbes. Segundo ele,
os pactos não podem obrigar além do máximo esforço. Esta premissa da construção
jurídica de Hobbes conduz necessariamente à conclusão de que pactos não podem
obrigar os indivíduos a não se defender da morte, pois esta ação seria impossível. Outra
vez a questão da vontade está colocada em cena. Isto por que, segundo Hobbes, somente
as coisas sujeitas à deliberação podem ser passíveis de contratos. A vontade, como já
afirmamos, é o último ato na deliberação. Logo, não se pode contratar nada que exceda
a vontade dos indivíduos. O contrato, desta forma, “só pode se referir a coisas possíveis
e futuras” (DCi, I, 2, 14, p. 45). É impossível um contrato que vincule uma obrigação
referente a ações impossíveis de serem realizadas pelos contratantes. Qualquer contrato
no qual um indivíduo se comprometa a não defender-se de ataques que venham a causar
ferimentos ou a morte é inválido na sua essência. Esta tese de Hobbes nos conduz a uma
conclusão clara: a resistência. Se os contratos são os instrumentos através dos quais a
estrutura jurídica-política estatal é formulada, não haveria então a possibilidade de se
fazer nascer o Estado a partir de um contrato já inválido pela sua própria natureza. Mais
uma vez a lógica contratual seria quebrada. A conseqüência necessária deste raciocínio
90
é: todo Estado, por essência, deve trazer na sua constituição a possibilidade da
resistência quando a vida está diretamente ameaçada pela força física, seja esta ameaça
advinda de outro cidadão ou do próprio Estado. É o medo, segundo Hobbes, que torna
impossível, neste caso, a não resistência aos ataques. “Pois em todo homem existe um
certo grau, sempre elevado, de medo, através do qual ele concebe o mal que venha a
sofrer como o maior de todos” (DCi, I, 2, 18, p. 48). O impulso natural do medo, esta
paixão tão importante para Hobbes, anularia um contrato de não resistência, pois esta se
tornaria uma ação impossível, à qual o homem não poderia ser obrigado. A lógica pela
qual é erigido o contrato, como um produto da vontade humana, garantiria assim a
resistência também como uma forma natural do medo. Hobbes refere-se inúmeras vezes
aos homens de coragem feminina, como talvez ele próprio se conceba. A estes homens
de pouca coragem está desculpada a fuga durante a batalha, já que obedecem ao
impulso natural do medo. Da mesma forma o homem que, condenado à morte, tenta
fugir por todos os meios ou pega em armas contra o poder soberano, nada mais faz do
que ceder ao impulso do medo. O medo da morte violenta é o maior de todos os medos.
O contrato, desta forma, permitiria, de acordo com sua lógica própria, a resistência em
nome do medo.
De acordo com o raciocínio de Hobbes, o pacto, ao mesmo tempo que transfere
direitos, também limita esta transferência. Com a lógica quebrada, certos pactos tornar-
se-ão inválidos, devido à transferência de direitos que não podem ser transferidos. No
Leviatã Hobbes faz uma exposição clara desses casos. O problema sempre gira em torno
da defesa da vida, que é o motivo pelo qual o pacto foi feito.
Primeiramente, Hobbes aponta a impossibilidade da transferência do direito de
renunciar ao direito de resistir: “Em primeiro lugar, ninguém pode renunciar ao direito
de resistir a quem o ataque pela força para tirar-lhe a vida, dado que é impossível
admitir que através disso vise a algum benefício próprio” (L, XIV, p. 115). O raciocínio
de Hobbes segue a sua teoria da vontade. Como o contrato é um ato da vontade, é
impensável que voluntariamente um homem deseje um acordo desta forma, visto que
não lucraria nada com este. Todo ato da vontade é aquele através do qual o homem visa
um benefício próprio. Hobbes amplia o seu raciocínio para além da defesa da vida. Um
contrato não pode transferir também o direito de defesa do corpo contra ferimentos ou
cárcere, já que destes não se pode esperar nenhum benefício. Portanto, o direito de
defender a integridade do corpo não pode ser abandonado de forma alguma por meio do
contrato.
91
Este direito de se defender deve obrigatoriamente permitir o uso da força: “ Um
pacto em que eu me comprometa a não me defender da força pela força é sempre nulo.
Porque (conforme acima mostrei) ninguém pode transferir ou renunciar a seu direito de
evitar a morte, os ferimentos ou o cárcere (o que é o único fim da renúncia ao direito)”
(L, XIV, p. 119). Aquele direito de usar a força presente nos homens na simples
condição de natureza permanece no cidadão, no estrito caso de ser usado contra
eventuais ataques, sejam eles da parte do Estado ou de outros cidadãos.
Por fim, Hobbes propõe também que não se pode transferir por pacto algum o
direito de não se acusar a si mesmo. A transferência deste direito igualmente anularia o
pacto: “Um pacto no sentido de alguém se acusar a si mesmo, sem garantia de perdão, é
igualmente inválido” (L, XIV, p. 120). Pois no estado de natureza não existe
possibilidade de acusação, enquanto no estado civil esta é seguida pelo castigo. Esta
situação nos faz voltar à questão do direito de se defender, pois o castigo é força, e um
contrato é inválido caso não permita a defesa contra a força.
Estes são três casos bem específicos a partir dos quais o contrato se torna
inválido. Não se pode pensar no contrato sem a possibilidade da garantia do direito no
Estado civil nestes três casos. Assim a resistência se insere no Estado a partir da lógica
contratual.
2.3. O contrato como possibilidade de outra perspectiva para a compreensão do
direito à resistência.
O recurso à lógica contratual nos oferece outra forma de pensar a resistência. De
certa maneira, o contrato pode ser compreendido como um complemento para entender
o fundamento do direito à resistência. Na medida em que o contrato é o artifício pelo
qual se transfere direitos, a lógica contratual justifica a resistência, tendo em vista que o
problema envolve uma transferência do direito natural. Logo, a compreensão do direito
à resistência – pensado como parte do direito natural não transferido – também
perpassa a compreensão do conceito de contrato.
A lógica do contrato não permite que o direito de defender a vida seja alienado.
Isto por que, sendo fruto da vontade, o contrato não pode produzir um efeito maléfico
aos contratantes. Todo ato voluntário sempre tem como objetivo um bem ao agente.
Logo, um contrato no qual se aliena o direito de se defender da força é essencialmente
92
inválido, porque fere a lógica do argumento contratual. É nesta medida que o contrato
serve como complemento para a fundamentação do direito à resistência. O direito
natural permanece no Estado, e o contrato, pela sua lógica, exige o direito de defender a
vida no interior do Estado civil.
A lógica contratual nos permite assim compreender melhor a própria função do
direito natural na fundamentação da resistência. Porque podemos explicar que o direito
natural funda um direito à resistência na medida em que ele é direito “para preservar a
vida” tendo em vista que o contrato é a forma da alienação de direitos e pela sua lógica
não permite a alienação deste objetivo que é preservar a vida. Sendo um ato voluntário,
o contrato não pode prescindir de preservar ou produzir por si próprio um bem para os
indivíduos. E a alienação da possibilidade de defender a vida não pode ser
compreendida como um benefício.
Entretanto, apesar de contribuir para a justificação do direito à resistência, o
argumento contratual não resolve o problema da dificuldade de se especificar quando a
vida está ameaçada. Um dos problemas trazidos pelo conceito de direito natural é sua
falta de especificidade, dado que é um conceito extremamente abrangente. Isto dificulta
a decisão a respeito do que consiste a ameaça à vida. É possível tomar o conceito de
vida referindo-se apenas à vida bruta em si mesma, como também pensá-la num sentido
mais amplo, no qual estariam incluídas as circunstâncias que possibilitam a preservação
da vida. Tomar a vida no último sentido consiste num risco de ampliar a resistência para
inúmeros casos, ultrapassando inclusive aqueles descritos por Hobbes no capítulo sobre
a resistência do Leviatã. O conceito de direito natural não possibilita a tomada de
decisão a respeito do que consiste especificamente a defesa da vida. Isto ocorre também
com o argumento contratual, que não nos permite solucionar o problema da delimitação
a respeito da ameaça da vida. O contrato complementa o fundamento da resistência,
porque impede a alienação da auto-defesa, mas não especifica quais são os momentos
onde a vida se encontra ameaçada. O problema da delimitação permanece. Segue-se que
afirmar que a vida está ameaçada quando o súdito está numa situação de risco iminente
de morte é simples, mas, ao tomarmos um conceito mais alargado de vida, o que, aliás,
é notório nos textos de Hobbes, poder-se-ia pensar numa resistência por motivos que
não estão ligados diretamente à defesa da vida, mas que indiretamente estão ligados a
ela, como, por exemplo, a questão da propriedade. O contrato não dá conta desta
segunda opção.
93
A partir do argumento contratual é possível afirmar com precisão que há um
direito à resistência logicamente fundamentado no pensamento de Hobbes. A negação
desse direito ao súdito no pensamento hobbesiano só é possível através da rejeição de
uma atenção ao argumento contratual. Pode-se realmente propor que o direito natural
não resiste ao poder soberano, mas não há como negar que o argumento do contrato não
cancele o direito à resistência. Porém é também relevante entender que o direito à
resistência coloca problemas sérios ao sistema Hobbesiano. Imediatamente parece uma
contradição pensar a possibilidade dos súditos resistirem a um estado irresistível. Nossa
tarefa agora é demonstrar quais são os problemas gerados pelo direito à resistência, que
se revelam de fato dignos de atenção, visto que alguns comentadores não o admitiram
para salvaguardar o caráter irresistível da soberania absoluta. Nossa tarefa agora é
apontar a articulação entre os direitos do Estado e o direito à resistência.
94
Capítulo III
O direito à resistência diante do poder soberano
1. Os Direitos do Soberano e o Direito à Resistência
O pensamento de Hobbes foi reconhecido pela tradição como uma justificação
racional do absolutismo. De acordo com as conclusões de Hobbes, somente o
estabelecimento de um Estado portador de poder absoluto poderia dar conta de uma
forma de organização social na qual a paz e a segurança sejam garantidas. O poder
absoluto do soberano reside num ato de autorização, no qual os súditos, ao pactuar,
autorizam o portador do poder soberano a realizar todas as ações necessárias para a
manutenção do fim da instituição da própria soberania: a paz. Ao homem ou assembléia
de homens que detém o poder soberano foi concedido, mediante um ato de autorização,
o direito de representar a pessoa de todos os contratantes. Diante de uma construção tal
que possa realmente justificar, a partir de um argumento racional, o poder absoluto do
soberano, nos perguntamos quais seriam as condições em que se encontraria um direito
de resistência, também justificado racionalmente. A questão pode ser colocada da
seguinte forma: diante de uma argumentação rigorosa que necessariamente conduz ao
absolutismo, como podemos admitir que a resistência ainda possa ser pensada como
possível? Procuraremos demonstrar aqui que, da mesma fora que há um argumento
calcado numa lógica rigorosa para a resistência, da mesma forma há um argumento
rigoroso que conduz à noção de poder soberano irresistível, o que conduz a uma
inegável tensão interna no Estado civil. É questão bastante controversa saber se esta
tensão abala a estrutura jurídica proposta por Hobbes, entretanto, nossa proposta se dá
no sentido de que, apensar da inegável tensão, há a possibilidade de se conciliar a
resistência com o poder absoluto do Estado. Ainda assim, nossos esforços se constituem
muito mais no sentido de demonstrar como ocorre a tensão do que necessariamente de
resolver por completo o problema que ela coloca ao leitor de Hobbes, tarefa que com
certeza estaria além das possibilidades de um estudo como este.
95
Procuraremos agora demonstrar quais os direitos, poderes e faculdades do
soberano, derivados a partir do contrato, e analisar como se articulam os direitos do
soberano com o direito à resistência.
61
A criação daquela magistral pessoa artificial, para a qual Hobbes usa a metáfora
do monstro bíblico Leviatã, tem como finalidade a conservação da vida e a
possibilidade de condições de vida mais satisfatórias do que aquelas em que o homem
se encontrava no estado de natureza. Não somente a conservação da vida, mas também a
preocupação com uma “vida mais satisfeita” (Cf. L, XVII). O que significa possuir toda
a segurança necessária para poder trabalhar na busca da obtenção de uma vida
confortável que não existia naquela situação de embrutecimento resultante da guerra
generalizada no estado natural. Há um desejo, este grande móbile de todas as ações
humanas, por uma vida melhor na qual não impera a constante preocupação a respeito
da segurança. Em outras palavras, o Leviatã tem seu ponto de partida no “desejo de sair
daquela mísera condição de guerra” (L, XVII, p. 141).
No estado de natureza as leis naturais não imperam. Há um aspecto
antropológico importante para explicar esta falta de obrigação das leis naturais no
estado de natureza. Segundo Hobbes, as leis naturais são contrárias às paixões naturais,
que conduzem o homem ao orgulho, vingança e à guerra generalizada. Portanto, por si
só, na ausência do temor, as leis naturais não são suficientes para fazer reinar a paz no
estado de natureza. Desta forma “se não for instituído um poder suficientemente grande
para nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar apenas em sua
própria capacidade, como proteção contra os outros” (L, XVII, p. 141). Para Hobbes, os
indivíduos movidos pelo auto-interesse buscarão racionalmente um poder que possa
defendê-los dos outros e das invasões externas. Os indivíduos também concluem
racionalmente que, caso não encontrem esse poder, não poderão confiar na lei natural, já
que nem todos os indivíduos a cumprem. Portanto, sem aquele poder capaz de garantir o
cumprimento das normas que conduzem à paz, poderão confiar apenas em si mesmos, o
que os conduz a uma situação totalmente desfavorável à paz.
Hobbes aponta também a impossibilidade de que, juntando-se em pequenos
grupos, os homens possam eventualmente tentar garantir a sua segurança no estado de
61
Para a análise dos direitos do soberano tomaremos como base o Leviatã, texto definitivo da filosofia
política hobbesiana. Os outros textos – Elementos da Lei e Do Cidadão – serão utilizados de forma
secundária. Apesar de não existir entre o Leviatã e Do Cidadão uma diferença substancial em relação aos
direitos do soberano, ocorrem algumas alterações superficiais principalmente no que se refere à ordem de
exposição desses direitos.
96
natureza. Uma união em pequenos grupos pode até garantir momentaneamente a
segurança, deveras ilusória, pois não há o estabelecimento de um poder soberano que
possa garantir um estado permanente de paz e tranqüilidade, por que os grupos não são
diferentes dos indivíduos que isoladamente lutam por sua segurança, a qual depende
unicamente das suas faculdades físicas e intelectuais. Ademais, se existem pequenos
grupos hostis entre si, basta uma pequena diferença numérica entre eles para que aquele
de maior quantidade se sinta incitado ao ataque.
A união dos homens em grupos maiores também não consiste numa garantia de
segurança. Grandes grupos não passam de uma multidão, na qual indivíduos agem de
acordo com seus instintos e não são direcionados por um poder comum a um único
objetivo. A multidão não evita que as individualidades sigam agindo unicamente de
acordo com suas próprias determinações. “Se as ações de cada um que a compõe (a
multidão) forem determinadas segundo o juízo individual e os apetites individuais de
cada um, não poderá esperar-se que ela seja capaz de dar defesa e proteção a
ninguém...” (L, XVII, p. 142). Há dois impedimentos que se colocam à garantia de
segurança pela multidão: o fato de que os homens discordarão nos assuntos que se
referem aos melhores meios de defesa, e o fato de que essa discordância tem como
conseqüência a anulação da possibilidade da defesa mútua, o que os coloca em risco
perante outros grupos.
Na ausência de um poder comum, mesmo unidos por um objetivo, os indivíduos
seguem agindo como tais, de acordo com aquilo que racionalmente decidem a respeito
dos meios para a segurança, e provavelmente irão divergir entre si, colocando assim a
segurança do grupo em risco. A segurança, portanto, somente se conquista através da
sujeição. Segurança e liberdade natural não são compatíveis dentro do sistema político
de Hobbes. Se todos os homens unidos numa multidão respeitassem a justiça natural e
seguissem um objetivo único sem divergir quanto aos meios para alcançá-lo, o governo
não seria necessário. Mas esta situação é impensável para Hobbes. Abandonados à sua
liberdade natural, mesmo que unidos em torno de um objetivo, os homens sem dúvida
não teriam sucesso. Portanto, há a necessidade de um poder comum que os oriente. Em
outras palavras, não há paz sem sujeição.
A necessidade de um poder absoluto, que possa reduzir as vontades isoladas a
uma única vontade compacta e assim garantir a paz, é demonstrada por Hobbes a partir
da sua constatação da impossibilidade de se encontrar outra forma de união através da
qual se poderia alcançar a segurança. A partir de um contrato feito por indivíduos
97
racionais, as vontades tornam-se uma única vontade, e o poder soberano é instituído. É
o contrato que torna possível essa transição de um estado de selvageria para um estado
de ordem social:
Como a maioria dos teóricos politicos desde Hooker no século dezessete até
Rousseau no século dezoito, Hobbes também admite que a transição da
selvageria para a sociedade civil deve ter começado com um acordo expresso ou
contrato, também chamado ‘pacto social’.
62
Os direitos do soberano, que daquele momento em diante irá ser o grande agente
de coalizão das individualidades, serão deduzidos a partir do pacto. “É desta instituição
do Estado”, afirma Hobbes, “ que derivam todos os direitos e faculdades daquele ou
daqueles a quem o poder soberano é conferido mediante o consentimento do povo
reunido” (L, XVIII, p. 145). Estas faculdades ou direitos são derivados do pacto de duas
maneiras: ou diretamente da instituição do poder soberano, ou seja, do pacto em si
mesmo, ou então a partir dos meios necessários para a manutenção daquilo que é o
objetivo do pacto, a segurança. Dado que para Hobbes é “vão alguém ter direito ao fim
se lhe for negado o direito aos meios que sejam necessários” (DCi. I, 1, 8, p. 31), os
direitos que derivam diretamente da instituição do pacto concedem ao soberano também
direito aos meios para exercer aqueles direitos autorizados, de maneira que o soberano
possa cumprir os objetivos da própria instituição da soberania. Estes direitos podem ser
entendidos como a possibilidade de tomar certas medidas ou ações com o objetivo da
preservação da paz. São meios de governo, através dos quais os soberanos podem
realmente realizar o fim pelo qual foi instituída a soberania. E mesmo que não tenham
sido autorizados expressamente pelos súditos no momento do pacto, podem ser
deduzidos a partir da proposição de que os direitos aos fins concedem também direito
aos meios. Procuraremos a seguir fazer uma análise destes direitos ou poderes do
soberano descritos no Capítulo XVIII do Leviatã, sempre procurando manter a
diferenciação entre os direitos derivados diretamente do contrato e aqueles derivados
indiretamente.
O poder soberano, instituído pelo contrato, está fundado na noção de
autorização. Esta noção de autorização, é importante ressaltar, só aparece no Leviatã. É
apenas nessa obra que Hobbes utiliza este argumento para justificar os poderes do
soberano. Os indivíduos naturais reunidos em torno de um objetivo comum, ao pactuar,
62
Taylor, A.E., Thomas Hobbes, 1997, p. 77.
98
autorizam o soberano a realizar as ações que ele entender como necessárias à
manutenção da segurança. A autorização constrói a sujeição, e determina os poderes
absolutos do soberano. O Estado é instituído no momento em que uma multidão de
homens concorda e pactua que todos devem “autorizar todos os atos e decisões desse
homem ou assembléia de homens, tal como se fossem seu próprios atos e decisões, a
fim de viverem em paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes homens” (L,
XVIII, p. 145). Neste instante é criada a pessoa artificial do autorizado e suas ações irão
representar absolutamente os contratantes. A transferência do direito, mediante a
autorização, cria o Estado.
Através da autorização o poder soberano torna-se o representante legítimo de
todos os pactuantes. Na função de representante de todos, o soberano agirá em nome
daqueles que o autorizaram na obtenção dos melhores meios para concretizar o
almejado estado de paz. Tendo sido autorizado pelos contratantes, o soberano passa a
agir como se ele próprio fosse o súdito que o autorizou. A autorização cria, através da
lógica da representação, o caráter absoluto da soberania, à qual os homens estão
obrigados pelo contrato.
A partir do contrato ficam os contratantes impedidos de realizarem um novo
contrato e, portanto, impedidos de renegarem a submissão por eles contraída. Um
contrato anterior sempre anula um posterior, portanto é necessário que, ao contratar, os
indivíduos se encontrem desobrigados de qualquer outro contrato anterior. Após
contratarem, os homens não podem mais “legitimamente celebrar entre si um novo
pacto no sentido de obedecer a outrem” (L, XVIII, p. 145). Se os contratantes
autorizaram o soberano a ser seu representante, devem obrigatoriamente reconhecer-se
autores de tudo o que ele fizer. Esse reconhecimento de todas as ações do soberano, que
segue diretamente da autorização, confere o caráter absoluto ao poder soberano. Segue-
se que, após o contrato, aqueles que autorizaram o soberano a ser seu legítimo
representante não tem mais direito de “sem licença deste renunciar à monarquia,
voltando à confusão de uma multidão desunida” (L, XVIII, p. 145). Este é o primeiro
dos direitos do soberano: ele não pode ser legitimamente renunciado, e os súditos não
podem alegar qualquer motivo para abandonar a sujeição, porque a partir do pacto tudo
o que o soberano fizer deve ser considerado como uma ação tomada pelo próprio súdito.
A recusa e o abandono da obediência contraída no pacto constituem uma
injustiça, pois a dissensão de alguém levaria os outros, pelo princípio de desconfiança, a
romper também o pacto. A injustiça se dá também pelo fato de que, no momento do
99
contrato, a soberania foi conferida a um homem ou grupo de homens, e, portanto, retirá-
la é retirar o que lhe foi devidamente concedido, o que constitui injustiça.
Da autorização decorre outro direito do soberano, este talvez a principal base da
soberania: o soberano jamais pode ser acusado de quebra de pacto. Por conseqüência os
súditos não podem tentar desvencilhar-se da obrigação alegando este motivo. O
absolutismo está assim estabelecido. O soberano não quebra os pactos, e,
consequentemente, seus atos não podem ser tomados como motivos para a insubmissão.
Os súditos devem aceitar todos os atos do soberano, e qualquer reação a ele constitui
injustiça.
A impossibilidade da quebra do contrato por parte do soberano está
fundamentada no modo como Hobbes entende a própria construção do artifício
contratual. A quebra do contrato por parte do soberano poderia muito bem servir de
motivo para a resistência, pois, quando um dos lados contratantes não cumpre o seu
compromisso o outro lado fica desobrigado da promessa. Hobbes evita essa
possibilidade isentando o soberano do compromisso. Essa tese é desenvolvida com base
na compreensão que Hobbes tem do momento do estabelecimento do Estado. O contrato
é feito entre os súditos com eles mesmos e não entre os súditos e o soberano. “É
evidente que quem é tornado soberano não faz antecipadamente nenhum pacto com seus
súditos, porque teria ou que celebrá-lo com toda multidão, na qualidade de parte do
pacto, ou que celebrar diversos pactos, um com cada um deles” (L, XVIII, p. 146).
Para o soberano fazer um pacto com a multidão haveria a necessidade de que esta já se
houvesse constituído como uma pessoa, o que só é possível mediante o contrato. Esta
possibilidade, portanto, é inconcebível, pois ainda não há contrato. Restaria outra
possibilidade, que também se apresentará como um contra-senso, de o soberano realizar
um contrato com cada pessoa individualmente. Tal forma de pacto será nula, diz
Hobbes, porque “qualquer ato que possa ser apresentado por um deles como
rompimento do pacto será um ato praticado tanto por ele mesmo como por todos os
outros, porque será um ato praticado na pessoa e pelo direito de cada um deles em
particular” (L, XVIII, p. 146). Além disso, em caso de um pacto assim feito, não
haveria juiz com poder suficiente para julgar uma possível controvérsia entre o soberano
e os súditos (ou qualquer súdito) acerca de uma questão remetente à quebra do contrato.
O juiz absoluto é o soberano, e seria um contra-senso pensar que há possibilidade de
existir um juiz acima dele para julgar questões referentes à quebra de pacto por parte do
soberano (Cf. L, XVIII, p. 146). Nesse caso voltaria a ser a força a decidir o litígio
100
acerca do contrato entre os súditos e o soberano. O uso da força faria os homens
retornarem ao estado natural, e o contrato tornar-se-ia inválido.
Feito o pacto entre os súditos, cada um com cada um, não há como acusar o
soberano de quebra do pacto. Muito menos há como se acusar o soberano de injustiça,
já que ele não possui nenhuma promessa a cumprir e também porque cada súdito
autorizou todas as ações realizadas pelo poder soberano. De acordo com Taylor, o
soberano “uma vez instituído, não pode em nenhum caso ser culpado de uma injustiça
para com (towards) seus súditos”.
63
Warrender também procura demonstrar a
importância deste argumento: “Concluído o acordo político, o sujeito, como vimos,
autorizou tudo o que o soberano fizer, e disto Hobbes deduz a conseqüência de que tudo
o que o soberano fizer não pode ser considerado injúria contra o sujeito”.
64
A injustiça, de acordo com a filosofia hobbesiana, consiste basicamente na
quebra do contrato. O conceito de justiça é um dos mais importantes analisados por
Hobbes na construção da sua ciência civil. Ao analisá-lo, Hobbes tem diante de si uma
dupla tarefa: elaborar uma definição de justiça que atenda aos rigores de uma ciência
civil e demonstrar rigorosamente que dessa definição decorrem conseqüências políticas
logicamente necessárias. A análise que Hobbes faz da justiça parte do pressuposto de
que as palavras justiça e injustiça são ambíguas por se referirem tanto a ações como a
pessoas. Ele procura então descartar a utilização desses termos referentes a pessoas,
reduzindo sua aplicação unicamente para as ações humanas. Nos Elementos da Lei
afirma que originalmente a palavra injúria e, consequentemente, injustiça, significava
ou era atribuída àquelas ações praticadas sem direito (iure). Trata-se da “ação ou
omissão sem jus, ou direito, que foi transferida ou abandonada antes” (EL, I, 16, p.
108). Se a ação injusta é a ação sem direito de um indivíduo sobre o outro,
consequentemente a ação justa é aquela com direito. Está aqui implícita a noção de
transferência. Só tem direito sobre um outro aquele a quem o outro prometeu ou lhe
concedeu tal direito. Para Hobbes, uma ação injusta é semelhante àquilo que os
escolásticos chamavam de absurdo nas suas disputas. Ou seja, quando alguém acaba
contradizendo uma asserção que ele mesmo havia sustentado anteriormente. Da mesma
forma, diz Hobbes “comete uma injustiça aquele que, por intermédio da paixão, faz ou
deixa de fazer aquilo que por convenção prometera fazer ou não deixar de fazer” (EL, I,
16, p. 108). Logo, a ação injusta é aquela que contradiz a promessa feita no contrato. A
63
Taylor. A. E. Thomas Hobbes, 1997, p. 104.
64
Warrender, H. The Political Philosofy of Hobbes. Oxford: the Clarendon Press,1957, p. 178.
101
questão do comportamento justo ou injusto se reduz à ação de cumprimento ou quebra
do contrato. Esta é a primeira tarefa de Hobbes na sua tentativa científica de uma
demonstração de justiça geometricamente elaborada. A segunda tarefa é demonstrar
quais são as conseqüência políticas dessa definição. A conseqüência mais importante é
que, tendo Hobbes demonstrado que o soberano não celebra contratos com os súditos,
ele está livre de qualquer compromisso com os súditos, portanto, não há como acusá-lo
de praticar injustiça contra eles.
O contrato impõe aos indivíduos a força da maioria. Estabelecido um objetivo
comum, as individualidades devem se sujeitar à decisão da maioria. No estado civil não
há espaço para decisões individuais sobre assuntos referentes à soberania. O soberano é
escolhido pela maioria, e à decisão da maioria devem se conformar todos os indivíduos.
Quem porventura se recusar a aceitar a soberania cujo portador foi escolhido pela
maioria estará incorrendo em injustiça. Agir contra qualquer decreto da soberania é agir
contra o pacto (Cf. L, XVIII, p. 148). O indivíduo que não concordar com a decisão da
maioria na escolha do soberano tem duas opções: ou resigna-se a essa vontade da
maioria, aceitando as decisões tomadas pelo soberano, escolhido pela maioria, ou então
permanecerá ele apenas na condição de simples natureza. Em tal condição de simples
natureza poderá ser considerado como um inimigo do Estado, podendo ser morto por
este ou por qualquer um de seus integrantes, sem que isto seja considerado injustiça
pelas leis positivas. É, portanto, direito do soberano, de ser aceito por todos, já que foi
escolhido pela maioria. E suas decisões devem ser indiscriminadamente aceitas por
todos, mesmo por aqueles que não tenham concordado com a pessoa escolhida para ser
o portador da soberania.
Outro direito do soberano por instituição derivado diretamente do pacto é o de
que qualquer ação realizada por ele não pode ser considerada injúria para com os
súditos, e que, em conseqüência disso, ele não pode ser acusado pelos mesmos de
injustiça. É a autorização que garante ao portador da soberania este direito. Os
indivíduos pactuantes autorizaram o soberano a agir em nome de todos, e Hobbes
argumenta que quem age em virtude da autoridade de outro não pode fazer mal àquele
do qual derivou a autorização (Cf. L, XVIII, p. 147). Hobbes parte da premissa de que
cada súdito é autor de todas as ações do soberano, e, portanto seria incoerente por parte
do súdito acusar o soberano de injustiça, pois estaria acusando a si mesmo. A
autorização remete os homens a uma obediência absoluta, sem qualquer possibilidade
de renúncia e sem qualquer possibilidade de reclamar de injustiça por parte do soberano.
102
Sendo o indivíduo o autor das ações do soberano, fica ele impedido de acusar o
soberano de injustiça. A obediência absoluta fica assim demonstrada, não havendo
como alegar injustiça por parte do soberano para com o súdito como um motivo para a
recusa. A injustiça não pode constituir, a partir das teses hobbesianas, motivo
juridicamente válido para o direito à resistência.
Conseqüência direta do que foi explanado é a impossibilidade de que aquele que
detém a soberania possa ser justamente morto ou punido pelos súditos (Cf. L, XVIII, p.
147). O súdito é, em última instância, autor de tudo aquilo que o soberano faz, e o
autorizou a agir em seu nome na defesa da paz. Matar ou punir o soberano seria um
contra-senso, pois o súdito estaria castigando a si mesmo. Hobbes, através da noção de
autorização, consegue colocar o soberano acima dos súditos, fora do alcance da
punição. A partir do contrato, o soberano não só não pode ser punido, mas também será
a fonte do bem e do mal sociais, fonte da lei positiva, emanada diretamente dele ao
interpretar a lei natural. Trata-se de um poder “maior que os homens tenham direito a
conferir: tão grande que nenhum mortal pode ter sobre si mesmo um maior” (DCi. II, 6,
13, p. 108).
Resumidamente estes são os diretos do soberano que derivam diretamente do
pacto de autorização, ou seja, da forma como o contrato é feito. Os indivíduos pactuam
entre si e autorizam o soberano a fazer tudo o quanto ele entender como necessário para
a preservação da paz. O soberano não pactua com ninguém, portanto, está acima dos
indivíduos, não podendo ser punido nem retirado do poder. É a forma como o pacto é
feito que atribui tais direitos ao soberano. Consideraremos este primeiro grupo de
direitos como sendo a priori, em virtude de serem derivados diretamente do contrato,
em contraste com outro grupo que denominaremos a posteriori.
65
Um segundo conjunto de direitos do soberano não deriva diretamente do
contrato, mas é outorgado ao soberano tendo em vista o objetivo do contrato, que é a
paz. São direitos que necessariamente devem estar nas mãos do soberano para que este
possa cumprir o objetivo pelo qual o pacto foi proposto, e sem os quais haveria a
impossibilidade da consecução do estado de segurança. No Leviatã Hobbes afirma:
65
Utilizamos aqui a classificação proposta por Zarka em Do Direito de Punir. In Filosofia Política. Porto
Alegre: L&PM, 2000. Vol. 5. Pg.156-178.
103
Visto que o fim dessa instituição é a paz e a defesa de todos, e visto que quem
tem direito a um fim tem direito aos meios, constitui direito de qualquer homem
ou assembléia que detenha a soberania o de ser juiz tanto dos meios para a paz e
a defesa quanto de tudo o que possa perturbar ou dificultar estas últimas. E o de
fazer tudo o que considere necessário ser feito, tanto antecipadamente, para a
preservação da paz e da segurança, mediante a prevenção da discórdia no
interior e da hostilidade vinda do exterior, quanto também, depois de perdidas a
paz e a segurança, para a recuperação de ambas. (L, XVIII, p. 147-148)
O fim da instituição da soberania é a paz. Ao soberano, mediante o pacto, é
outorgado o poder de garanti-la. Para a perfeita realização desse objetivo, é necessário
outorgar ao soberano certos meios que tornarão a tarefa possível. Estes meios podem ser
classificados em outro grupo de direitos, que complementam os primeiros, mas que se
derivam necessariamente a posteriori, como meios necessários que possibilitam a
construção do estado de paz. Podemos entendê-los como meios de governo, através dos
quais o soberano obtém positivamente o poder de converter o estado de selvageria em
estado de paz.
Para que o soberano então possa governar de forma eficaz, garantindo a
manutenção da segurança, há a necessidade de que seja ele a escolher os meios para a
preservação da mesma. Como conseqüência ocorre imediatamente a eliminação da
possibilidade de decisão do súdito no que se refere às questões de segurança. O súdito
não pode opinar ou contrariar as ordens impostas pela soberania nas questões sobre as
quais somente compete a esta decidir. O soberano, da mesma forma, não pode ser
criticado ou punido por ter tomado certa medida com o objetivo de manter a paz. Cabem
apenas a ele as decisões sobre assuntos referentes a ela.
O soberano é o juiz máximo sobre as questões referentes à segurança, o que lhe
outorga também a faculdade de ser juiz das opiniões e doutrinas pregadas no interior do
Estado. Trata-se do direito de censurar ou permitir a vinculação de doutrinas através dos
mais variados meios de comunicação. Para Hobbes, o poder absoluto certamente não se
absteria de uma grande dose de censura. Esta se encontra num patamar bem elevado
entre os meios de se garantir a paz: “é no bom governo das opiniões que consiste o bom
governo das ações dos homens” (L, XVIII, p.148), nos diz o filósofo inglês. A total
liberdade de expressão é impensável no Estado absoluto hobbesiano. Ao Estado cabe o
controle e a manipulação de tudo o que é publicamente exposto pelos súditos,
104
principalmente as doutrinas religiosas, as quais, de acordo com Hobbes, podem consistir
numa grande incitação à desobediência.
A relação entre as doutrinas e as ações dos homens está pautada na concepção
mecanicista que Hobbes tem do homem. As ações voluntárias têm origem na vontade. E
a vontade do homem é orientada pela opinião que ele tem do bem e do mal ou da
recompensa e castigo. Desejo e aversão são os movimentos iniciais do homem. Dor e
prazer são os parâmetros para o desejo e a aversão, que por sua vez são os indicadores
do bem e do mal: “todo homem, da sua própria parte, chama de bom (good) aquilo que
o agrade e lhe é deleitável e chama de ruim (evil) aquilo que o desagrada” (EL, I, 7, 3,
p. 48). Portanto, o homem age sempre calculando os benefícios e prejuízos que suas
ações poderiam lhe causar, sempre tentando evitar um mal e buscando um bem. Hobbes
afirma que “a vontade de fazer ou deixar de fazer qualquer coisa depende de nossa
opinião sobre o bem e o mal, e sobre a recompensa ou castigo que concebemos vir a
receber pelo referido ato ou omissão” (DCi, II, 6, 11, p107). Consequentemente é
necessário ao Estado o poder de examinar todas as doutrinas, as quais têm o poder de
induzir o homem tanto à realização de boas quanto más ações. Diante disso é
impensável, por exemplo, a divulgação de uma doutrina que conduzisse o homem a
pensar que tenha direito a desobedecer às leis. Qualquer doutrina que possa conduzir o
homem a cometer ações que porventura venham ferir as leis civis ou ao Estado
representam um perigo para a paz e não devem ser permitidas. Cabe ao soberano a
análise de quais doutrinas contribuem para a paz e quais não.
No exame das doutrinas o soberano deve atentar sempre para a verdade. De
acordo com Hobbes, nenhuma doutrina verdadeira pode ser contrária à paz. Com
relação às doutrinas e opiniões Hobbes está preocupado especialmente com as doutrinas
religiosas, pois muitas delas incitam à rebelião. A religião, portanto, deve ser submetida
ao Estado, que deve fazer um controle rigoroso tanto das doutrinas quanto dos
pregadores públicos: “Não há nação no mundo cuja religião não seja estabelecida pelas
leis dessa nação, e que delas não receba sua autoridade” (B, I, p. 85), diz um dos
interlocutores nos diálogos do Behemoth. E mais adiante, na mesma obra, quando os
interlocutores discutem sobre se os homens devem confiar na pregação de um estranho
ou de súditos ao se encontrarem em dúvida sobre o seu dever para com Deus, o
interlocutor B afirma: “Não há grande dificuldade sobre esse ponto. Porque todos os
pregadores, daqui ou de qualquer outro lugar, ou ao menos todos os que deveriam
pregar, são autorizados a isso por aquele ou aqueles que detém o poder soberano” (B, I,
105
p. 85). Essa afirmação reflete precisamente a tese de Hobbes segundo a qual o Estado
deve manter o controle sobre a doutrina cristã a ser ensinada, para que assim se evite
que certos pregadores desautorizados pelo Estado possam incutir nos súditos a idéia de
que existe outro poder maior do que o soberano, ao qual os súditos devem respeitar
mais do que o próprio Estado. Diante do perigo que as opiniões podem representar, o
Estado deve tomar o máximo de cuidado com elas. “Portanto compete ao detentor do
poder soberano ser o juiz, ou constituir todos os juízes de opiniões e doutrinas, como
uma coisa necessária para a paz, evitando assim a discórdia e a guerra civil” (B, I, p.
85).
Outro direito que compete ao soberano, que também é um meio de governo, é “o
poder de prescrever as regras através das quais todo homem pode saber quais os bens de
que pode gozar, e quais as ações que pode praticar, sem ser molestado por nenhum de
seus concidadãos” (L, XVIII, p. 148). Significa aqui todo o poder legislativo nas mãos
do soberano, que tem como conseqüência, segundo a conclusão de Hobbes, de
determinar também a propriedade do indivíduo. O que significa que, para Hobbes, a
propriedade não constitui um direito inalienável do súdito. Na descrição hobbesiana do
estado natural, não existe direito natural à propriedade. Há sim um direito a todas as
coisas, direito esse que se anula quando as individualidades entram em competição, e
necessariamente leva à guerra de todos contra todos. A instituição do Estado Civil
necessariamente limita o direito a todas as coisas que os homens têm no estado de
natureza, e desta forma o homem adentra o Estado como um não-proprietário. Cabe ao
Estado, em razão da paz e segurança, determinar as propriedades que são necessárias a
cada homem. Como não existe o meum e o tuum no estado natural, serão as leis civis
que irão determiná-los: “Essas regras da propriedade (ou meum e tuum), tal como o bom
e o mau, ou legítimo e o ilegítimo nas ações dos súditos, são as leis civis” (L, XVIII, p.
148).
Hobbes entende que a propriedade deve ser um direito concedido pela soberania
não somente porque não concebe o homem como naturalmente proprietário, mas
também porque entende que a propriedade é uma questão essencial para a preservação
da paz e da segurança. A falta de uma regulamentação da propriedade no estado natural
era uma das condições para a instauração do estado de guerra. O problema não poderia
permanecer no Estado civil. Não devem ser os súditos a estabelecer, a partir de um
atributo particular como a força, a inteligência ou o trabalho, as condições da
propriedade no Estado.
106
Compete também ao soberano direito de possuir todo o poder judiciário do
Estado, sem o qual seria impossível governar de forma eficaz no combate à violência
entre os súditos e insurreições. O soberano é a maior autoridade judicial existente no
Estado civil, possuindo o direito de “ouvir e julgar as controvérsias que possam surgir
com respeito às leis, tanto civis quanto naturais, ou com respeito aos fatos” (L, XVIII, p.
148-149).A proteção de um súdito contra as injúrias dos outros somente é possível a
partir da existência de uma autoridade absoluta nas questões referentes a disputas entre
os súditos. Todas as leis do Estado seriam inválidas sem tal autoridade nas mãos do
soberano, pois, argumenta Hobbes, os homens permaneceriam defendendo-se a si
mesmos de forma igual ao estado de natureza, situação esta que nada mais é do que o
estado de guerra a ser evitado.
Hobbes não admite que os poderes de fazer, julgar e executar as leis estejam
separados. A separação desses poderes enfraqueceria o Estado e o impediria de garantir
a paz: “pois, se o poder de julgar estivesse em alguém, e o de executar em outrem, nada
se faria. Assim, em vão julgaria quemo pudesse executar suas ordens” (DCi, II, 6, 8,
p. 105). A união dos poderes numa só pessoa consiste numa das marcas características
do absolutismo hobbesiano.
O soberano é legislador e juiz absoluto para o súdito. Ainda que Hobbes
considere a existência da lei natural derivada da razão humana, a partir da instituição do
Estado será a lei positiva a imperar. A lei natural obriga apenas in foro interno, não tem
um poder de coerção comparável à espada do Estado. Abandonados à condição de
simples natureza, pressupõe Hobbes, os homens não cumpririam as leis naturais. Desta
forma não há justiça ou injustiça no estado natural, não há distinção entre o meuum e o
tuum. O estado natural é um estado de guerra e, como diz o provérbio: inter arma silere
leges. Deve-se, pois, tendo instaurado o Estado civil, dotar o soberano de poder para
fazer falar a lei, suprimindo o estado de guerra a partir da instauração da lei positiva.
Garantir a permanência do estado de paz através do poder de executar as leis e de julgar
e castigar os que não a respeitam. O soberano é o senhor do bem e do mal, ele
determinará o que será justo ou injusto ao súdito cometer. Ele determinará o meum e o
tuum e todas as demais regras pelas quais os homens deverão orientar-se doravante a
instauração do Estado Civil:
Estas regras e medidas são usualmente denominadas leis civis, ou leis da cidade,
por serem as ordens de quem possui o poder supremo na cidade. E as lei civis
107
assim as definimos: nada mais são do que as ordens de quem tem a autoridade
principal na cidade, dirigindo as ações futuras dos cidadãos. (DCi, II, 6, 9, p.
106).
O justo e o injusto são determinados pelo soberano. Logo, somente o soberano
pode fazer as leis, já que elas é que determinarão os parâmetros para se julgar o justo e o
injusto. Hobbes procura negar a tese de que existem lei justas e injustas, tese esta que
era aceita pela tradição do direito natural e de certa forma pelos escritores políticos da
Inglaterra renascentista.
66
Hobbes quer demonstrar que essa tese é falsa e que toda a lei
que parte de um soberano legítimo é justa. A injustiça, como Hobbes demonstra, ocorre
quando o contrato não é cumprido. E o soberano, Hobbes procura explicitar, realizou
nenhum pacto com os súditos, logo, suas ações não podem ser concebidas como
injustas. No Do Cidadão
67
, Hobbes examina os ditados populares que afirmam que só é
rei quem age segundo a justiça. De acordo com ele nada há de mais falso e perigoso do
que esse adágio. Porque justo e injusto não existiam antes que houvesse reis a reinar
pela face da terra. É o soberano que determina a justiça da lei por ele feita: “Os reis
legítimos assim tornam justas as coisas que eles ordenam, só com ordená-las” (DCi, II,
12, 1, p. 182).
Também fazem parte deste conjunto de direitos a posteriori os seguintes direitos:
direito de fazer a guerra e a paz com outras nações, escolher magistrados, ministros e
funcionários, direito de punir e compensar os súditos, e direito a distribuir os títulos de
nobreza.
O direito de fazer a guerra ou a paz com outras nações somente pode ser
admitido nas mãos daquele que detém a soberania. Poder determinar a guerra ou paz
com outro Estado é fundamental manutenção da sociedade. A guerra pode representar
um benefício para um Estado e, portanto unicamente o soberano deve ter direito a tomar
essa decisão. E consequentemente é ele o chefe maior das forças armadas.
O direito da escolha de conselheiros, magistrados, ministros e funcionários, é
entendido por Hobbes também como um meio para a preservação da paz e da
segurança. Como é uma conclusão necessária aquela que diz que quem tem direito a um
fim deve ter direito aos meios, o soberano, tendo como direito a decidir sobre o bem e o
mal para a sociedade, possui o direito exclusivo de escolher aqueles que irão auxiliá-lo
nesta tarefa.
66
Cf. Skinner, Q. Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes, 1999.
67
Cap. XII.
108
O direito de recompensar e de punir os súditos é formulado resumidamente no
capítulo XVIII do Leviatã: “(...) é confiado ao soberano o direito de recompensar com
riquezas e honras, e o de punir com castigos corporais, ou com a ignomínia, a qualquer
súdito, de acordo com a lei que previamente estabeleceu” (L, XVIII, p. 149). Além
disso há no Leviatã um capítulo inteiro dedicado às recompensas e punições,
68
no qual o
tema é melhor desenvolvido. Hobbes entende que este direito é necessário para
incentivar o cumprimento da lei e os bons serviços ao Estado, através das recompensas
estipuladas pelo soberano, e desencorajar as infrações através da punição.
O último dos direitos enumerados no Leviatã é o de conceder títulos de honra
aos cidadãos. Hobbes aqui retoma a sua concepção de homem no estado natural e a
condição deste como um permanente estado de guerra. Lembremos que uma das causas
da guerra de todos contra todos era a busca de glória. Os homens esperam receber dos
outros o mesmo valor que atribuem a si mesmos, e quando isto não ocorre o conflito
nasce. Partindo desta propensão natural para a busca de glória como um motivo
fundamental para a discórdia, é necessário à conservação da paz que o Estado determine
as regras pelas quais os títulos de honra serão distribuídos aos homens. A existência
dessas regras impediria que novamente os homens se batessem devido à disputas
relativas à honra. Para tanto, apenas o soberano deve decidir as regras que determinarão
os títulos de honra. Apenas ao poder supremo do Estado cabe “(...) conceder os títulos
de honra, e decidir qual a ordem e lugar e dignidade que cabe a cada um, assim como
quais os sinais de respeito, nos encontros públicos ou privados, que devem manifestar
uns com os outros” (L, XVIII, p. 149-150).
São estes os direitos que representam a essência da soberania: “(...) e são as
marcas pelas quais se pode distinguir em que homem, ou assembléia de homens, se
localiza e reside o poder soberano” (L, XVIII, p. 150). Por constituírem a essência da
soberania resulta que são inseparáveis e inalienáveis.
Diante de tais condições de poder estabelecidas nas mãos do soberano, pode-se
perguntar quais seriam as condições de vida dos súditos vivendo sob um poder tão
restritivo. Dadas as dimensões desse poder qual será a possibilidade da liberdade nas
ações do súdito? Haverá a possibilidade, em casos específicos, de resistência? As
condições de um súdito vivendo sob o império de um soberano com tanto poder
levariam necessariamente à desconfiança sobre a felicidade do homem no Estado civil.
68
Trata-se, neste caso, do capítulo XXVIII.
109
Hobbes esteve ciente disso: “Mas poderia aqui objetar-se que a condição de súdito é
muito miserável, pois se encontra sujeita aos apetites e paixões irregulares daquele ou
daqueles que detêm em suas mãos poder tão ilimitado” (L, XVIII, p. 151). O preço da
segurança e da vida tranqüila é a submissão total. Trata-se de uma troca: a liberdade do
estado guerra é trocada pela submissão no estado de natureza. Como compensação, a
insegurança é substituída pela paz e tranqüilidade. A submissão é um alto custo a pagar
pela segurança, porém, para Hobbes é a única forma de conquistá-la, e não é um custo
maior do que o sofrimento do homem no estado natural:
Porque todos os homens são dotados por natureza de grandes lentes de aumento
(ou seja, as paixões e o amor de si), através das quais todo pequeno pagamento
aparece como um imenso fardo; mas são destituídos daquelas lentes prospectivas
(a saber, a ciência moral e civil) que permitem ver de longe as misérias que os
ameaçam, e que sem tais pagamentos não podem ser evitadas.” (L, XVIII, p.
151)
Diante das conclusões de Hobbes a respeito dos direitos do soberano, as quais
têm como conseqüência o poder absoluto da soberania e a submissão total dos súditos,
advém a questão de entender como é possível existir, no interior dessa argumentação
racional em defesa do absolutismo a possibilidade do direito à resistência. Como já
observamos, a possibilidade de um direito à resistência está bem clara no texto
hobbesiano. Por outro lado, o Estado absoluto é uma exigência racional da teoria de
Hobbes, o qual procura demonstrar que, sendo erigido o Estado com objetivo máximo
de preservar a vida dos homens, o soberano só pode proteger os súditos se detiver nas
mãos todo aquele poder. Deste modo há duas teses bastante claras na filosofia de
Hobbes que parecem se contrapor: o caráter irresistível do poder soberano e o direito de
resistência por parte do súdito em momentos específicos, fundamentado no direito
natural e no contrato. É evidente que há uma tensão bem clara entre estas duas teses.
Como conciliá-las então no interior da filosofia política hobbesiana, sem que o edifício
jurídico seja ameaçado? Procuraremos doravante analisar a articulação entre direitos do
soberano e direito à resistência.
Como já apontamos anteriormente, os direitos do soberano podem ser divididos
em dois grupos. O primeiro deles representa o conjunto daqueles direitos derivados
imediatamente do pacto de autorização, os quais denominamos a priori. Hobbes funda
110
esses direitos sobre a noção de autorização. O contrato de autorização não é apenas uma
promessa dos súditos de obedecerem ao soberano, mas uma expressão do
reconhecimento de todas as ações do soberano como sendo próprias dos súditos. Um
segundo grupo de direitos (exame das doutrinas, propriedade, punição etc.) são
fundados na necessidade que o soberano tem de possuí-los para poder cumprir o
objetivo pelo qual o pacto foi feito, os quais denominamos a posteriori. Trata-se do
exercício da soberania propriamente dito, ou então, de meios de governo, através dos
quais a manutenção de um estado de direito é possível, evitando assim que os homens
voltem a uma relação exclusivamente de poder como se encontravam no estado de
natureza.
O primeiro grupo de direitos, aparentemente, parece não gerar uma tensão ao se
admitir a possibilidade de um direito de resistência na filosofia hobbesiana. Há não
somente um fundamento essencialmente racional para justificá-los, a autorização, mas
também um fundamento na vontade livre dos indivíduos. Estes pactuaram
voluntariamente e livremente autorizaram o soberano a ser seu legítimo representante.
Sendo este ato voluntário e racional, pois foi a razão que determinou as regras para o
fim do estado de guerra, os indivíduos teriam consciência de que este ato deveria lhes
trazer um benefício futuro. Lembramos que em Hobbes toda decisão racional é aquela
em que são calculadas as conseqüências mais benéficas da própria ação, os meios mais
eficazes para se alcançar um objetivo, o qual será sempre um bem. Logo, os homens, ao
pactuarem voluntariamente, estariam cientes de que a sua decisão de autorizar o
soberano deveria reproduzir no futuro aquela condição ideal por eles almejada: a
garantia da vida. Mesmo que a autorização imponha algumas restrições ao seu
comportamento, este seria o preço pago pela garantia da vida. Portanto, a conclusão
mais racional possível é que uma autorização em busca de proteção da vida preservaria,
num horizonte longínquo, a possibilidade de sempre voltar a usar os próprios meios de
defesa sempre que o objetivo do pacto é colocado em risco. Por esta perspectiva, a
admissão da resistência não ocasionaria nenhum problema com os direitos derivados
diretamente da autorização. Haveria basicamente uma coerência entre um Estado
absoluto e a liberdade de resistir, atestada também pelo fato de que para Hobbes tanto a
obrigação quanto a liberdade fazem parte do mesmo ato de submissão, ou seja, da
autorização. No mesmo instante em que os indivíduos autorizaram o soberano a ser seu
legítimo representante, selando assim sua submissão ao poder do Estado, eles também
asseguraram a si mesmos certa liberdade, sem a qual o pacto tornar-se-ia um acordo
111
irracional. Em outras palavras, os súditos, ao autorizarem estariam negando a si mesmos
certas liberdades em nome da garantia de vida, e assegurando outras também pelo
mesmo objetivo.
Ao analisarmos mais profundamente cada um dos direitos do soberano derivados
da autorização, encontra-se um caso específico em que a coerência parece ameaçada.
Trata-se do caso em que Hobbes diz, no Leviatã, que “(...) não pode haver quebra do
pacto da parte do soberano, portanto nenhum dos súditos pode libertar-se da sujeição,
sob qualquer pretexto de infração” (L, XVIII, p. 146). Como conciliar esta
impossibilidade de libertação da sujeição com o direito à resistência? Porque no
momento da resistência o que está ocorrendo é uma libertação da sujeição. A resistência
é a negação da sujeição absoluta. Não haveria então aqui uma antítese entre o direito do
soberano de não ser desobedecido e o direito do súdito de desobedecer? No entanto, a
coerência é encontrada a partir da tese que propõe estar o soberano livre do
cumprimento dos contratos. É errado então se pensar que é um motivo justo a
resistência sob o pretexto de quebra de pacto por parte do soberano. A resistência nesse
caso, sob o pretexto de quebra de pacto por parte do soberano, não pode ser admitida. A
tensão se desfaz de maneira que apenas o direito do soberano não ser recusado seja
admitido. Pode haver outros motivos para o súdito libertar-se da sujeição, não
obedecendo ao soberano, porém, não pode ser admitido como um motivo justo a
acusação da quebra de pacto. O soberano não será nunca injusto com o súdito, já que a
justiça está baseada no cumprimento dos contratos. Logo, é possível admitir que entre o
direito que tem o soberano de não ser resistido por motivo da quebra do pacto e o direito
à resistência não se produz uma tensão de ordem jurídica. Os dois possuem
fundamentos na lógica contratual, sendo que a admissão de ambos na esfera do Estado
não representa nenhum problema jurídico.
Entretanto, pensando no conjunto de direitos a priori, é necessário ressaltar um
aspecto importante que se percebe a partir desses direitos. Eles conferem ao soberano
um caráter irresistível. A essência da idéia de um poder absoluto é justamente a sua
característica de ser irresistível. Logo, por mais que tomados individualmente os direitos
a priori se articulam sem maiores tensões com a resistência, ao serem tomados em
conjunto reforçam essa característica bem visível na teoria de Hobbes: a tensão entre o
poder absoluto e a resistência.
Passemos agora àquele segundo grupo de direitos do soberano. Aqueles que
representam os meios de governo. Este grupo de direitos, apesar de serem derivados a
112
partir de um cálculo racional, não podem ser considerados direitos a priori porque não
se seguem diretamente do ato contratual em si, mas de uma necessidade que o próprio
objetivo do contrato impõe. Eles não são derivados da descrição da natureza humana e
do estado de natureza, como ocorre com os outros direitos do primeiro grupo. Podemos
considerá-los então, direitos a posteriori, já que seu fundamento está na necessidade
que o soberano tem de possuí-los para garantir a fruição dos direitos do primeiro grupo,
e garantir, assim, a paz e a segurança.
O fundamento desses direitos encontra-se a posteriori, entendido como um
pressuposto para o primeiro grupo de direitos. Esses direitos encontram-se
essencialmente ligados à soberania em função da compreensão a posteriori de que eles
consistem nos meios de garantir o exercício daquilo que o ato de autorização criou, a
soberania absoluta, cuja essência é circunscrita pelo primeiro grupo de direitos. O que
queremos analisar agora é a questão: dado que esses direitos não possuem um
fundamento a priori na autorização, como podem ser articulados com um direito de
resistência?
O primeiro dos direitos a posteriori do soberano é o de ser juiz das opiniões e
doutrinas que são contrárias à paz. Trata-se da censura entendida por Hobbes como
necessária ao bem estar social. A livre expressão do pensamento não é bem vista pelo
filósofo inglês, que a entende como uma forma perigosa de se fazer entrar na opinião
pública doutrinas sediciosas que podem, por exemplo, levar os súditos a questionar a
obediência absoluta. A admissão de um direito à resistência não coloca em risco a
existência de um direito de censura. Ao autorizar as ações do soberano, o súdito apenas
não pode abandonar o direito à vida, mas a liberdade de pensamento e expressão
existentes no estado de natureza são voluntariamente permutadas por um estado de
segurança. Portanto, este direito concilia-se de forma coerente com a admissão de um
direito à resistência. O homem natural, mesmo não tendo autorizado diretamente o
soberano a praticar censura, está implicitamente admitindo que estaria disposto a
conviver num sistema onde ela exista. Desta forma, mesmo não possuindo um
fundamento a priori, o direito de censura do soberano se articula no interior do estado
civil sem entrar em contradição com o direito de resistência.
Em seguida Hobbes apresenta o direito do soberano de prescrever as leis, que
tem como conseqüência o poder de determinar a distribuição de bens e legislar acerca
dos contratos de compra e venda que devem ser respeitados. Por si só o direito de fazer
leis parece complicar a admissão de um direito à resistência, tendo em vista que a
113
resistência significa justamente a desobediência à lei, dado que toda ordem é lei.
Poderia se admitir que a resistência em caso de leis que atentavam contra os princípios
cristãos, como pregavam jesuítas e presbiterianos na época, mas esta tese não é válida
para Hobbes
69
. Toda lei é justa em virtude de advir do poder soberano e, portanto não se
pode resistir sob alegação de que a lei é injusta. A resistência para Hobbes não tem
fundamento na injustiça de uma lei, mas apenas na defesa da vida. Logo, o poder de
fazer leis produz uma tensão em relação à resistência, na medida que a lei é irrevogável
por parte do súdito.
Há outra questão que pode ser analisada a partir da lei, que consiste na
prerrogativa do soberano de, através da lei, estabelecer o direito de propriedade ao
súdito. A partir deste direito soberano, constata-se que a propriedade, após a instituição
do Estado, não é derivada do súdito, mas do próprio poder soberano. Não há em Hobbes
uma teoria da propriedade natural
70
. Hobbes apenas propõe que o homem no estado de
natureza é portador do direito a todas as coisas, sendo este uma ampliação da definição
inicial de direito natural entendido como uma liberdade de usar o poder para defender a
vida (Cf. L, XIV). Porém, o direito a todas as coisas acaba por tornar-se nulo diante do
mesmo direito sendo exercido pelos outros. Além disso, não existe um poder comum
capaz de garantir que essa propriedade seja mantida. O homem hobbesiano não é
naturalmente proprietário. Esta é a conclusão imediata de uma análise sobre a questão
da propriedade. Conclusão esta que nos levaria a pensar então que o direito de
prescrever a propriedade do soberano, mesmo sendo a posteriori, não poderia provocar
uma tensão com o direito de resistência legítimo. Isto porque não haveria um direito à
resistência por parte do súdito no caso de o soberano atentar contra a propriedade do
súdito. Portanto, o direito do soberano de regular a propriedade pode conviver com
direito à resistência admitido em outros casos que não a questão da propriedade. Ao
analisar-se o capítulo XXI do Leviatã não se encontra nenhuma menção a respeito de
um direito do súdito legitimamente não obedecer tendo como motivo a interferência do
soberano na sua propriedade.
69
Cf. Ostrensky, E. As Revoluções do Poder. São Paulo: Alameda, 2005.
70
Richard Tuck afirma que existe um direito mínimo à propriedade no estado de natureza. Este direito
estaria ligado às condições mínimas de sobrevivência, o que levaria a um direito à propriedade elementar,
como é o caso da comida e moradia. Porém, como afirma-se no capítulo sobre o Direito Natural neste
trabalho, não consideramos que esta posse mínima de elementos essenciais à sobrevivência possa ser
considerado efetivamente um direito à propriedade, mas apenas uma posse momentânea garantida
exclusivamente pela força. (Cf. Tuck, R. Hobbes. São Paulo: Edições Loyola, 2001. Col. Mestres do
Pensar.)
114
Entretanto, se observarmos mais atentamente a questão podemos perceber que
ela está longe de ser tão clara. Apesar de não se encontrar nenhuma passagem na qual
Hobbes aponta a possibilidade de resistência em nome da propriedade, se entendermos a
propriedade não como um fim em si mesmo, mas como um meio de preservação da
vida, poderíamos pensar que ameaçar a propriedade do indivíduo é ameaçar também a
sua vida, mesmo que de forma indireta. Desta forma, não se poderia admitir o direito de
resistência coexistindo de maneira tranqüila com um direito absoluto à propriedade por
parte do soberano. Haveria situações recorrentes no interior do tecido social, nas quais
ocorreria a possibilidade de uma tensão entre os dois.
Comentadores autorizados têm apontado para o fato de que a preservação da
segurança do súdito não se refere apenas a preservação da vida em si, mas também das
condições de manutenção da vida, ou seja, dos meios para uma vida boa. Porque não é
apenas em busca da vida bruta que o homem pactua, mas em busca de uma vida
confortável. É o caso de Warrender, o qual através de uma leitura que foge às
interpretações tradicionais, aponta a existência de deveres do soberano, obrigação que o
soberano tem diretamente para com Deus, tendo o súdito como beneficiário. Warrender
afirma que o dever do soberano de manter a segurança não se resume a proteger a vida
do súdito: “A provisão da segurança , é considerada por Hobbes não meramente como a
preservação da vida mas também como os meios para a vida boa”.
71
A partir disto
poderíamos pensar que, em nome da manutenção da vida, o súdito poderia resistir ao
soberano se este, ao tentar tomar seus bens, colocasse a sua sobrevivência em perigo. É
certo que para Hobbes a propriedade é direito exclusivo do soberano, mas o problema é
o fato de que uma certa distribuição ineficaz da propriedade do soberano poderia vir a
ameaçar a vida do súdito. O súdito não estaria resistindo em nome da propriedade, mas
em nome da auto-defesa, o que, como já demonstramos, ele tem o direito de fazer.
Segundo Richard Tuck, que defende a existência de um direito natural básico à
propriedade, haveria certa obrigação do soberano para com uma razoável distribuição da
propriedade:
Logo, se a distribuição da propriedade funciona de modo tal que as pessoas
corram riscos físicos por isso e se membros do Estado não tiverem acesso ao
atendimento de suas necessidades da vida, requer-se que o soberano intervenha e
71
Warrender, H. The Political Philosophy of Thomas Hobbes, 1957, p. 181.
115
a redistribuía; ele tem de garantir sempre que todos tenham ao menos o mínimo
necessário à sobrevivência.
72
Pensar numa obrigação do soberano perante o súdito é uma questão polêmica no
pensamento de Hobbes, e nesse sentido a interpretação de Tuck pode ser deveras audaz.
Entretanto, a sua leitura nos leva a concluir que realmente a questão da propriedade em
relação ao direito à resistência não é isenta de problemas. É bastante claro que um
direito absoluto do soberano em relação à propriedade gera uma tensão em relação a um
direito de resistência do súdito. Mas a posição de Hobbes é clara: toda a distribuição da
propriedade está a cargo do soberano. O problema está justamente em se uma
distribuição injusta da propriedade poderia ser motivo para a resistência. Se analisarmos
a questão a partir da ótica da alienação do direito mediante o contrato a resistência por
esse motivo não pode ser justificada. Porque o contrato se caracteriza pelo abandono ao
“direito à todas as coisas”. A transferência não é total, o que justifica a defesa da vida.
Mas o contrato ao mesmo tempo produz a prerrogativa de distribuição da propriedade
apenas para o rei. Logo, apenas a partir de uma compreensão do conceito de vida de
forma extremamente alargada poderia se justificar uma resistência motivada pela
questão da propriedade, o que produziria riscos mais graves para a coerência da
argumentação hobbesiana. Assim, parece que o problema da propriedade não parece
oferecer tensões maiores ao se admitir o direito à resistência.
O oitavo direito do soberano exposto por Hobbes é o de “ouvir e julgar todas as
controvérsias que possam surgir com respeito às leis, tanto civis quanto naturais, ou
com respeito aos fatos” (L, XVIII, p. 149). Este é o direito de ser a suprema autoridade
judicial. De maneira direta este direito do soberano não entra em tensão com o direito de
resistência. Porém, se soberano determinar um pena que coloque em risco a integridade
do súdito a tensão se produz, pois coloca em cena o direito à resistência. Neste caso, é o
direito de punição por parte do soberano que entra em cena, o qual produz uma tensão
bem nítida em relação à resistência.
O nono direito do soberano é o de fazer a guerra e a paz com outras nações. É
um direito essencial para a manutenção da segurança dos súditos. Pensamos que não é
isento de problemas em relação à resistência. Hobbes afirma que o súdito tem em alguns
casos direito de resistir ao serviço militar, caso encontre um substituto ou então quando
72
Tuck, R. Thomas Hobbes, 2001, p 92.
116
uma convocação ao exército não seja uma questão de segurança nacional. Mas quando a
segurança do Estado está em risco o súdito não tem direito de resistir. O problema que
se coloca aqui é o da decisão por parte do súdito sobre uma questão de segurança.
Poderia o súdito decidir se uma eventual convocação está relacionada com a segurança
do Estado? Evidentemente que não, de acordo com Hobbes, já que esta é uma decisão
que cabe exclusivamente ao soberano. Logo, o súdito não teria efetivamente o direito de
resistir neste caso, e seria obrigado a servir o exército incondicionalmente, contanto que
o soberano decida que esta é uma situação que represente perigo ao Estado. Mas a
solução não é assim tão fácil, já que Hobbes ainda reserva uma possibilidade de
resistência nos casos onde se faz presente o medo, esta paixão natural tão forte no
homem. Hobbes procura isentar de culpa um indivíduo que na iminência da batalha
fugisse covardemente. Ele nada mais estaria fazendo do que recorrendo ao instinto mais
básico de sobrevivência, e o faria apenas para defender sua vida. Assim, produz-se
realmente um conflito entre os dois direitos. Porque o direito que o soberano tem ao
convocar o súdito para o serviço militar motiva o direito à resistência, ao ameaçar a vida
do indivíduo. Se tomarmos toda a guerra como uma ameaça à vida do indivíduo, ela
pode ser motivo de resistência, e Hobbes deixa claro sua posição a respeito. Por outro
lado, em nome da segurança do Estado, o soberano tem pleno direito de convocar o
súdito para o serviço militar.
Toda essa problemática da tensão se agrava ao analisarmos o direito de punição.
O soberano possui o direito de punir o súdito com castigos que podem chegar até a pena
capital. É o caso dos castigos corporais, principalmente a pena de morte, que se
apresenta como um problema realmente sério, no qual a tensão entre direito do soberano
e direito de resistir se apresenta de modo mais forte. Portanto, nos dedicaremos agora de
maneira mais específica no caso do direito de punir.
2. O Direito de Punir como contraponto ao direito à resistência.
A punição é um instrumento que possibilita ao poder soberano forçar os súditos
ao cumprimento da lei. Esta, por si só, não tem força de coerção, necessitando da força
de um poder punitivo para conduzir a vontade dos homens à obediência. Os pactos, que
outorgam ao soberano o poder de fazer leis, por si próprios também não são coercitivos.
Como diz Hobbes no Leviatã: “Pactos sem a espada não passam de palavras, sem força
117
para dar menor segurança a ninguém” (L, XVII, p. 141). A lei natural é contrária às
paixões naturais do homem. Assim, o homem tende à imparcialidade devido ao ódio,
orgulho, vingança e outras paixões, e no estado de natureza não respeita a lei natural,
expressão da razão. Portanto, é necessária ao soberano uma força ampla para
transformar as individualidades num corpo único que age de acordo com a lei. Caso
esse poder não seja suficientemente grande, os indivíduos confiarão apenas em si
mesmos para a sua proteção, e não terão motivo algum para cumprir a lei.
As penas imputadas aos súditos têm a função de predispor a vontade dos homens
à obediência. Mais do que uma vingança ou reparo de um dano às vítimas, seu móbile é
conformar as vontades à vontade daquele corpo artificial que é o Leviatã. “Uma pena é
um dano infligido pela autoridade pública, a quem fez ou omitiu o que pela mesma
autoridade é considerado transgressão da lei, a fim de que assim a vontade dos homens
fique mais disposta à obediência” (L, XXVIII, p. 235).
A punição deve constituir uma ameaça ao súdito, fazendo imperar o medo,
conduzindo desta forma ao respeito às leis. Porém, se a punição é uma ameaça de dano
ao súdito, ao mesmo tempo ela pode, ao colocar em risco a vida do súdito, conduzir a
uma situação na qual o direito de resistência possa ser exercido pelo súdito. Se o súdito
tem direito de auto-defesa, em caso de uma punição que coloque em risco sua vida,
pode legitimamente resistir. Por um lado, o soberano tem o direito de punir para manter
a ordem, e por outro, o súdito também tem direito de se defender para preservar a sua
vida. Entendidos desta forma, torna-se uma tarefa complexa tentar articular ambos no
interior da mesma estrutura jurídica do Estado.
O direito de punir só pode existir no Estado. No estado de natureza os atos de
violência entre os homens não podem ser tratados como atos punitivos. No máximo
constituem uma vingança, mas nunca uma penalidade, já que não existe nenhuma
instância, ou poder comum, que possa decidir ou aplicar uma punição. No Estado civil
somente o poder soberano está habilitado a decidir em relação a qualquer pena e atribuir
qualquer castigo. Porque ele é a fonte da lei, e, portanto, a punição advém
exclusivamente dele. Encontramos aqui uma aproximação com a leitura webberiana
segundo a qual o Estado possui o monopólio do uso da força. O direito de punir
constitui na, visão hobbesiana, a marca por excelência do poder soberano: “Em primeiro
lugar, é uma marca infalível da soberania do homem, ou em uma assembléia de homens,
se não existir direito em nenhuma outra pessoa natural ou civil, de punir aquele homem
ou dissolver aquela assembléia” (EL, II, 1, 19, p. 142).
118
O soberano pode punir e legitimamente não pode ser punido. Está acima de
todas as individualidades, e seu poder de punir necessariamente representa um poder
maior do que aquelas. Associa-se ao direito de fazer leis a seu bel-prazer o direito de
punir a quem quer que as tenha infringido. O soberano é a fonte da lei. A partir da
constituição do corpo civil, o certo e o errado passam a ser determinados de acordo com
o soberano. Justiça e injustiça, inexistentes no estado natural, constituir-se-ão a partir do
respeito ou desrespeito à lei. Ao poder de fazer as leis, Hobbes associa o poder de fazê-
las cumprir e de punir os contraventores. Clássico inimigo da divisão dos poderes,
Hobbes não admite a possibilidade de que o poder de fazer as leis esteja em mãos
diferentes daquelas que têm o poder de punir. Poderes divididos se destroem uns aos
outros (Cf. L, XXIX).
A partir do argumento da indivisibilidade do poder, conclui-se que somente o
soberano pode determinar quais os castigos serão impostos aos que eventualmente
encontrarem-se tentados a se desviar do caminho da retidão em direção à transgressão.
Estas penas, de acordo com Hobbes, para se fazerem eficazes, devem representar um
dano real ao transgressor, seja ele corporal ou não. Mas é de suma importância que a
pena implique num dano maior do que o benefício que o indivíduo obteria com a
transgressão. De outra forma, as penas não possuiriam força de coerção social. Porque
“se o dano infligido for menor do que o benefício resultante do crime cometido, tal dano
não é abrangido pela definição, e é mais preço ou redenção do que pena aplicada por um
crime” (Cf. L, XXIX, p. 246).
Sendo as penas constituídas em danos ao transgressor, em alguns casos irão se
chocar com o direito de se defender que o súdito preserva no Estado civil. Vamos
examinar em que casos isso acontece.
Para Hobbes as penas humanas
73
imputadas pelo Estado civil se dividem em
corporais, pecuniárias, ignomínia, prisão e exílio. Quais destas punições podem entrar
em conflito com o direito de resistir? Numa primeira análise o argumento de Hobbes
deixa transparecer que somente as penas corporais poderiam conflitar com os casos de
direito à resistência expostos no Leviatã. Isto por que ela ameaça diretamente a vida dos
indivíduos, e estes poderiam então recusar. As penas pecuniárias, a ignomínia, a prisão
e o exílio não constituiriam, inicialmente, motivo suficiente para a resistência, se
tomássemos como princípio motivador da resistência apenas as questões onde a vida
73
Existem as penas divinas, não impostas pelo Estado, e que desta forma não constituem interesse de
nossa pesquisa. (Cf. L, XXVIII)
119
está diretamente ameaçada – a condenação à morte, por exemplo. Porém, se tomarmos
como princípio motivador da resistência não somente a situação onde a vida esteja
diretamente ameaçada, mas também aquelas onde a vida é indiretamente ameaçada, a
tensão se estende para as outras formas de resistência.
A tensão referente à punição corporal é bem clara. O súdito, mesmo que
justamente condenado à morte, poderia resistir. O conflito assim fica evidente. O poder
de punição do Estado, que é absoluto, derivando diretamente da vontade do soberano,
cuja necessidade é demonstrada por Hobbes como instrumento para o cumprimento da
lei, choca-se com o direito de resistência do súdito.
Aparentemente somente as penas corporais constituiriam um problema. Mas se
concebermos que Hobbes afirma no Leviatã que se o soberano determinar que o súdito
se abstenha de qualquer coisa que lhe seja necessária para a sua conservação este
também pode recusar (Cf. L, XXI), surgiria assim outro caso de tensão entre os direitos.
Porque o direito a resistir pela vida engloba também os meios pelos quais ela é mantida.
Se o soberano, por exemplo, ordenar a um súdito que ele não se alimente mais, esta é
uma ameaça à sua vida. Sendo assim, por exemplo, uma pena pecuniária pode colocar
em risco a vida do indivíduo. Caso o Estado confisque todos os bens do indivíduo, e
este não tenha mais como se alimentar, estando dessa forma a sua vida ameaçada, a
resistência nesse caso se legitima. Porque, para Hobbes, tanto a obrigação como a
liberdade do súdito é derivada do objetivo da instituição da soberania, ou seja, a paz e a
defesa (Cf. L, XXI, p. 175). Logo, quando a defesa da vida estiver ameaçada, o súdito
legitimamente tem liberdade de resistir. Assim, uma pena pecuniária ou o exílio podem
ameaçar o objetivo pelo qual o súdito pactuou ao impedir que ele se mantenha vivo. No
capítulo XIV do Leviatã Hobbes demonstra que um pacto no sentido de um indivíduo
não defender o corpo é nulo. E nós poderíamos entender que uma pena pecuniária, por
exemplo, que ameaça a sobrevivência do indivíduo, acaba por permitir a resistência. Já
que racionalmente, um indivíduo não pactuaria no sentido de não defender o corpo ou
os meios para mantê-lo vivo.
A relação entre punição e resistência se faz presente desde Os Elementos da Lei,
no qual os dois princípios estão presentes. Porém, nessa obra o que fica claro é a
preponderância do direito de punir. De forma diferente do Do Cidadão e do Leviatã,
nos Elementos da Lei o direito de resistência é mencionado, mas não é intransferível.
Portanto, o direito de resistência especificamente neste texto não é inalienável. O poder
de coerção do soberano consiste na “transferência do direito que cada homem tem de
120
resistir àquele a quem se transferiu o poder de coerção” (EL, II, 1, 7, p. 137). Sendo o
direito de resistir transferido pelo pacto, ele não é mais validado pelo direito positivo.
Agora, nas mãos do soberano ele se torna poder de coerção, o qual não pode ser mais
resistido: “segue-se que nenhum homem, em qualquer república que seja, tem o direito
de resistir àquele, ou àqueles, a quem transferiu este poder coercitivo” (EL, II, 1, 7, p.
137).
No Do Cidadão as descrições sobre a resistência se ampliam, e a transferência
do direito de se defender ou resistir é vista de outro modo. Hobbes tenta provar que
pactos onde alguém se comprometa a não se defender não são válidos:
Afinal, por um contrato de não resistir somos obrigados a escolher, entre dois
males, o que parece ser o maior – pois a morte certa é mal maior do que a luta.
Ora, dentre dois males é impossível não escolhermos o menor. Portanto, um
pacto daquele espécie nos prenderia ao que é impossível – o que vai contra a
natureza dos pactos. (DCi, I, 2, 18, p. 49)
Ao mesmo tempo em que Hobbes formula um argumento a respeito da
impossibilidade de transferência do direito de auto-defesa no Do Cidadão, ele também
aponta para a submissão total ao soberano como uma marca da união, a qual é
necessária para a constituição do Estado. A submissão ocorre quando “ cada um deles se
obriga, por contrato, ante cada um dos demais, a não resistir à vontade do indivíduo (ou
conselho) a quem se submeteu” (DCi, II, 5, 7, p. 96). Ao mesmo tempo em que há a
resistência também deve haver a submissão total ao poder soberano. O problema está
em conciliar a submissão total como a resistência em alguns casos. É preciso lembrar
que a submissão ao corpo soberano, ou seja, a transferência de força e poder ao
soberano é somente possível para Hobbes através da não resistência:
Esse poder e direito de comando consiste em que cada cidadão transfira toda a
sua força e poder àquele homem ou conselho; e fazer isso – uma vez que
ninguém pode transferir seu poder de forma natural – nada mais é que abrir mão
de seu direito de resistência. (DCi, II, 5, 11, p. 98).
121
Naturalmente não há possibilidade de transferência de força ou poder de um
indivíduo para outro, mas apenas artificialmente, mediante a promessa. Assim, ao
transferirem seu direito ao soberano, os indivíduos nada mais fazem do que deixar livre
o caminho para que o soberano exerça a sua força no estado civil. Esta é a promessa
feita no contrato: não resistir ao soberano. Como então conciliar uma transferência de
direitos entendida como não resistência com a permanência de um direito, mesmo que
subjetivo, de resistência com vistas à autodefesa?
A conciliação somente seria possível se pensássemos numa submissão parcial ao
poder soberano. Ou seja, partindo-se do argumento de que a submissão se dá através da
não resistência, poderíamos supor que transfere-se no contrato apenas parte do direito,
desta forma, o indivíduo se compromete a não resistir ao soberano na maioria dos casos,
exceto quando a sua vida estiver ameaçada. Pois, transferir este direito seria impossível.
Logo seria impossível não resistir ao soberano em caso de ameaça da vida. O direito
soberano de punição poderia ser justificado apenas na não resistência ao castigo sobre
os demais, mas nunca diretamente sobre o indivíduo. Este raciocínio parece se justificar
a partir da seguinte passagem do Do Cidadão:
Entende-se que alguém recebe o direito de castigar, quando todos contratam não
socorrer aquele que há de ser punido. A esse direito chamarei de gládio da
justiça. E esse tipo de contrato os homens observam bastante bem, em sua
maioria, até que eles próprios ou seus amigos próximos venham a sofrer por sua
causa. (DCi, II, 6, 5, p. 104)
Todo fundamento do direito soberano de punição estaria aqui embasado numa
transferência do direito de defender os outros, o qual os homens possuem no estado de
natureza. Os homens concordariam então em não resistir ao soberano quando este
punisse qualquer pessoa, que não fosse o próprio súdito em questão ou um de seus
próximos, sobre os quais uma punição influenciaria a sua própria vida. Está claro que
Hobbes, ao afirmar que os homens respeitam bem o castigo até que não estejam
diretamente envolvidos com ele, está se referindo ao argumento da impossibilidade de
transferência do direito de autodefesa.
Este argumento evidencia tensão entre direito de resistência e direitos do
soberano. Porque a submissão total é necessária para a soberania absoluta. Hobbes
122
aponta inúmeras vezes a necessidade de um poder ilimitado para o soberano, sem o qual
não haveria condições de garantir a paz. Sem a possibilidade da garantia da paz o
próprio contrato torna-se nulo. A tensão pensada desta forma se faz ainda mais nítida.
Ou seja, é nulo o contrato em que não se pode garantir a soberania absoluta, como
também é nulo o contrato no qual não se pode garantir a autodefesa.
Podemos até aceitar esta distinção que Hobbes faz no capítulo VI do Do
Cidadão entre a não resistência quanto à punição dos outros e a resistência à punição do
indivíduo em questão. Encontrar-se-ia aí um fundamento para o direito de punição por
parte do poder soberano. Porém neste caso o direito de resistência se sobreporia de
maneira decisiva sobre o direito de punição, o que levaria o Estado a uma situação de
descontrole, já que a punição é estritamente necessária para a manutenção da paz. No
Do Cidadão, Hobbes observa que a falta de garantia ao cumprimento das leis conduz o
homem de volta a um estado de guerra. Para esta garantia se faz necessário o direito de
punição. Logo, o direito de punição, mesmo não encontrando no Do Cidadão um
fundamento na transferência do direito de auto-preservação dos indivíduos, continua
existindo como uma necessidade posta pelo próprio objetivo do pacto. A seguinte
passagem esclarece a necessidade:
(...) e por isso, enquanto não houver garantia contra a agressão cometida por
outros homens, cada qual conserva seu direito primitivo à autodefesa por todos
os meios que ele puder ou quiser utilizar, isto é, um direito a todas as coisas, ou
um direito de guerra. (DCi, II, 5, 1, p. 91)
A punição torna-se assim uma necessidade para a efetivação de uma situação
que é, na verdade, o grande objetivo pelo qual os homens pactuam. A segurança para os
súditos, e consequentemente a realização do próprio pacto somente é possível através
dos rigores da lei e da punição. Porque o contrato, por si só, não oferece as condições
para a segurança. De certa forma, o pacto, exige a posse, pelo poder soberano, do direito
de punição. “Devemos portanto providenciar nossa segurança, não mediante pactos,
mas através de castigos” (DCi, II, 6, 4, p. 103-104).
Direito de resistência e direito de punir, no Do Cidadão não podem ser retirados
ao mesmo tempo a partir de uma transferência no contrato, já que o direito de
autodefesa não pode ser transferido, por isso necessariamente o direito de resistência se
123
apresenta como um resquício deste. A partir deste ponto o direito à resistência exclui a
possibilidade de punição, já que em última instância, o que permanece é a autodefesa.
Mas a necessidade objetiva do direito de punição se faz a partir do objetivo do contrato,
ou seja, para a manutenção da paz e da segurança se faz absolutamente necessária a
existência do direito de punição nas mãos do soberano. O direito de punição está entre
aquelas coisas que “serão necessárias para a paz e defesa comum, dentre as quais
poderão ser propostas, discutidas e decretadas numa assembléia de indivíduos...” (DCi,
II, 6, 3 , p. 103).
É possível que o indivíduo admita como necessária a punição aos outros, pois ele
mesmo, no contrato, abandonou o direito de proteger os demais. Mas é impossível ao
indivíduo admitir a punição contra si mesmo sem lhe resistir. Se pensássemos apenas a
punição aos outros o problema estaria resolvido. Haveria um fundamento na
transferência para a punição e permaneceria o direito individual à autodefesa.
Permaneceriam assim os dois direitos numa coexistência perfeitamente justificável no
interior do Estado. Entretanto, ao pensarmos a punição contra o próprio indivíduo, não
há como conceber uma fundamentação no contrato para os dois direitos ao mesmo
tempo. Ademais, dada a necessidade objetiva da punição a partir do argumento a
respeito do objetivo da instituição do pacto, e a demonstração lógica da permanência do
direito de autodefesa, produz-se no interior do Estado uma condição de inevitável
conflito entre punição e resistência, que aparentemente não se resolve no Do Cidadão.
Ainda poderíamos admitir que há nessa obra uma sobreposição da resistência em
relação ao direito de punição. Esta conclusão estaria embasada numa evidente falta de
fundamentação mais sólida para a punição contra o indivíduo, mesmo admitindo a
necessidade objetiva da punição. Porém, uma conclusão assim nos conduziria a pensar o
Do Cidadão como um texto no qual o absolutismo hobbesiano não se sustentaria, dada a
falta do fundamento para punição. Seria compreender o Do Cidadão de modo bem
díspar do que se tem compreendido historicamente os textos de Hobbes. A obra se
apresentaria assim como uma ênfase à liberdade em relação à punição, algo difícil de
ser mantido no que se refere ao pensamento de Hobbes. A tensão entre direito à
resistência e punição já se perfaz, portanto, desde o Do Cidadão.
Resta observarmos esta mesma questão naquela obra que representa o momento
mais bem acabado da teoria política hobbesiana: o Leviatã. No capítulo XXI Hobbes
refere-se à impossibilidade de transferir o direito de resistir: “ todo súdito tem liberdade
124
naquelas coisas cujo direito não pode ser transferido por um pacto” (L, XXI, p. 175).
Portanto, pactos nos quais o súdito se obrigue a não se defender são inválidos.
O direito de punição é abordado no Leviatã inicialmente no capítulo XVIII, que
trata dos direitos do soberano por instituição. Hobbes é bastante breve na constatação
desse direito: “(...) é confiado ao soberano o direito de recompensar com riquezas e
honras, e o de punir com castigos corporais ou pecuniários, ou com a ignomínia, a
qualquer súdito, de acordo coma lei que ele previamente estabeleceu” (L, XVIII, p.
149). É a única referencia à punição em todo o capítulo. É importante ressaltar que ele é
considerado aqui entre os direitos que constituem “a essência da soberania”, e pode ser
colocado entre aqueles direitos que não derivam imediatamente do pacto, mas que são
exigências objetivas para que este seja efetivado, ou seja, estão dispostos entre os meios
de governo, sem os quais a paz não é possível. São, em resumo, elementos de uma arte
de governar, e teriam aí o seu fundamento.
No capítulo XXVIII, que trata especificamente da punição, Hobbes aborda o
problema do fundamento a partir da impossibilidade de se transferir o direito de
autodefesa. Assim ele tenciona manter um direito de punição, mesmo com a
impossibilidade de se transferir o direito de autodefesa. Se o direito natural de
autodefesa não pode ser transferido, a punição deve se justificar de outro modo. Esta
somente poderia ser fundamentada a partir de um pacto no qual o súdito concordaria em
não resistir ao soberano quando este lhe punisse. Pois, como já afirmamos, naturalmente
não há como transferirem-se poderes ou direitos, mas apenas artificialmente através da
não resistência.
Hobbes expressa a questão nos seguintes termos: “Ao fundar um Estado, cada
um renuncia ao direito de defender os outros, mas não sua pessoa. Além disso, cada um
se obriga a ajudar o soberano na punição de outrem, mas não na sua própria”. (L,
XXVIII, p. 235). É mais uma vez o direito de autodefesa, que no Estado se transforma
em direito à resistência que impede um fundamento para o direito de punir através do
artifício da autorização. O fundamento da punição em relação às outras pessoas pode se
justificar numa renúncia, já que os homens contratam não defender os outros. Mas a
punição contra o próprio súdito não pode ser daí derivada, pois o direito de autodefesa é
inalienável. O súdito não pode obrigar-se a não resistir a uma punição. A
inalienabilidade do direito natural de autodefesa é determinante para a problematização
do direito de punir. De acordo com Kavka “The foundational right of Hobbes’s
normative system is an unlimited and inalienable rigth of self-preservation that he calls
125
the rigth of nature”.
74
Diante da inalienabilidade deste direito de autodefesa, a punição
não pode ser fundada mediante o argumento da transferência. A conclusão de Hobbes
então é:
Fica assim manifesto que o direito de punir que pertence ao Estado (isto é,
àquele ou àqueles que o representam) não tem seu fundamento em qualquer
concessão ou dádiva dos súditos. Mas também já mostrei que, antes da
instituição do Estado, cada um tinha direito a todas as coisas, e a fazer o que
considerasse necessário a sua própria preservação, podendo com esse fim
subjugar, ferir ou matar a qualquer um. E é este o fundamento daquele direito de
punir que é exercido em todos os estados. Porque não foram os súditos que
deram ao soberano esse direito; simplesmente, ao renunciarem o seu, reforçaram
o uso que ele pode fazer do seu próprio, da maneira que achar melhor, para a
preservação de todos. (L, XXVIII, p. 235)
O direito de punir não deriva, portanto, de nenhuma concessão ou transferência
de qualquer direito dos súditos. Nesta passagem Hobbes procura fundar o direito de
punir no abandono do direito a tudo existente no estado de natureza. O direito que o
próprio soberano também possuía como indivíduo naquele estado. Ao abandonarem o
direito a todas as coisas com o pacto, os indivíduos reforçaram o uso que o soberano,
como pessoa natural, pudesse fazer dele no estado natural.
Hobbes concede ao direito de punição um estatuto jurídico, ao tomá-lo como um
poder única e exclusivamente pertencente ao Estado. “Uma pena é um dano infligido
pela autoridade pública” (L, XXVIII, p. 235), nos diz o filósofo. É a autoridade pública
que determina o que é certo e errado e que determina a punição para a transgressão. O
mal infligido ao cidadão pela autoridade pública, devido à transgressão da lei, difere da
simples vingança. Pois não é o soberano como pessoa natural que está punindo alguém
por ter-lhe feito mal diretamente, mas a pessoa jurídica do soberano, a pessoa artificial,
punindo o transgressor da lei. A punição não é um ato de hostilidade praticado à
margem da lei, mas um ato praticado dentro dos limites impostos pela lei, dentro da
legalidade. Os danos aos indivíduos transgressores não podem ser impostos por um
usurpador ou por juízes não autorizados, pois toda punição somente pode derivar do
soberano. Todos os atos de punição que não derivam da espada pública ou que tenham
outro objetivo que não o terror e a conformação das vontades individuais à obediência,
não passa de hostilidade.
74
Kavka, G. Hobesian Moral and Political Theory, 1986, p. 315.
126
Mas a despeito deste estatuto jurídico concedido ao direito de punir, fica
evidente que a questão a inalienabilidade do direito de autodefesa se coloca como um
contraponto para a punição, um problema que não se afasta muito daquele que
apontamos no Do Cidadão. O argumento da impossibilidade de transferência da
autodefesa, e consequentemente a efetivação de um direito de resistência, dificultam a
compreensão de um fundamento para o direito de punição. Compreende-se que ele é
necessário objetivamente, mas não se compreende como ele pode se tornar justificável a
partir do contrato, ato gerador de todos os direitos, tanto do súdito quanto do soberano.
Compreendendo-se o argumento da inalienabilidade do direito de autodefesa
parece difícil aceitar como fundamento para o direito de punir o abandono do direito a
tudo no estado de natureza. Mesmo que isto pudesse de certa forma justificar um
possível direito de punição, em última instância o direito de resistência se sobreporia ao
direito de punição. Porque os súditos abandonam o direito a todas as coisas da seguinte
forma: concordam entre si em não resistir ao poder soberano quando este fizer uso
daquilo que antes era uma liberdade de todos. Mas efetivamente eles não se obrigam a
não resistir aos ataques contra suas próprias vidas.
Porém, o fato é que o direito de punição é uma exigência para o sistema
hobbesiano, e não podemos excluí-lo de sua filosofia política sem conseqüências
realmente importantes. Como Hobbes demonstra, sem o poder de punição não há como
garantir a paz e a tranqüilidade, e desta forma o próprio pacto tornar-se-ia inválido.
Podemos pensar então o direito de punição como uma necessidade objetiva para a
manutenção da paz. Ele teria assim como razão de ser a própria instituição daquele
poder que tudo controla, sendo uma necessidade nas mãos do poder soberano, para que
este possa realizar com eficácia o seu papel. Sendo a paz e a segurança de todos o fim
da instituição da soberania “constitui direito de qualquer homem ou assembléia que
detenha a soberania o de ser juiz tanto dos meios para a paz e a defesa quanto de tudo o
que possa perturbar ou dificultar estas últimas” (L, XVIII, p. 147-148). A lógica de
Hobbes é a seguinte: só um Estado forte consegue realmente manter a paz. Somente um
Estado com direito de prescrever o bem e o mal e punir os transgressores poderá
cumprir o objetivo da soberania. Caso contrário o pacto estaria ameaçado na sua
coerência interna. Os indivíduos racionalmente não fariam um pacto no qual não teriam
como contraponto à obediência a garantia de segurança. E, portanto, racionalmente
entenderiam que somente com o poder de punição na mão do Estado a ordem civil seria
devidamente preservada.
127
Mas este outro modo de pensar o direito de punir não extingue a tensão entre os
dois direitos. Admitir a existência de ambos os direitos é abrir margem para o conflito
entre súdito e soberano, que eventualmente surge no interior do Estado. Logo, é a
própria estrutura jurídica elaborada por Hobbes, que abre espaço para o conflito, na
medida em que há fundamentos para os dois direitos de acordo com a ciência civil
elaborada por Hobbes. A questão, a partir da admissão da existência de uma tensão é:
dada a existência da tensão, ela ameaça a lógica da construção Hobbesiana? Antes de
responder à tal questão, é importante definir o estatuto dessa tensão. Em que plano se
desenvolve essa tensão, no plano jurídico ou apenas no plano de fato? Seria essa tensão
comprometedora para o sistema de ciência civil proposto por Hobbes?
Alguns comentadores perceberam essa tensão, e por entenderem que ela poderia
comprometer a coerência da ciência hobbesiana, procuraram negar o direito à
resistência. É o caso de Carl Schmit, para quem o direito de resistência constitui-se em
uma utopia, não podendo persistir dentro do Estado hobbesiano. Segundo Schmit com o
direito de resistência “o Estado pode deixar de funcionar e a grande máquina pode parar
por causa da rebelião e da guerra civil”.
75
O direito de resistência é incompatível com o
Estado absoluto hobbesiano. O direito de resistência constituiria um paradoxo na teoria
hobbesiana, pois constituiria um direito de destruir o Estado.
Porém, como já demonstramos nos dois capítulos anteriores, não há como negar
o direito à resistência no pensamento de Hobbes. Há um conceito bem claro de
resistência, concebido por Hobbes como uma liberdade para resistir ao soberano
naqueles momentos nos quais a vida se encontra, diretamente ou indiretamente,
ameaçada. É também possível extrair a partir da lógica contratual hobbesiana, uma
argumentação que fundamente o direito à resistência. Logo, não é possível evitar o
conflito, como quer Schmit. O sistema hobbesiano produz uma tensão interna entre
direito à resistência e poder soberano que é inegável, e até se constitui como uma
conclusão necessária ao sistema, tendo em vista que há uma demonstração geométrica
que conduz tanto à resistência quanto ao poder absoluto do soberano. Se confiarmos nos
resultados obtidos por um método científico na política hobbesiana, a tensão é
inevitável e, até mesmo, pode ser compreendida como inerente ao sistema. É necessário
então, entender em que plano ocorre o conflito, para compreender como podem ser
conciliados os dois direitos.
75
Schmitt, C. apud Pogrebinschi, T. O problema da obediência em Thomas Hobbes. Bauru: EDUSC,
2002, p. 204-205.
128
Conclusão
A questão que norteou este trabalho foi a tensão gerada pela admissão de
direitos, aparentemente contraditórios, no projeto de Estado proposto por Hobbes. De
um lado o soberano com direito absoluto sobre os súditos, o que lhe confere um caráter
irresistível, e de outro, o direito à resistência ao soberano por parte do súdito. Como
seria possível articular direitos aparentemente opostos sem risco de incoerência lógica
no pensamento de Hobbes? Poderia a estrutura jurídica elaborada por Hobbes comportar
direitos opostos? Ou haveria no pensamento de Hobbes uma contradição interna
incontornável? Nossa proposta sempre foi uma tentativa de compreensão da
possibilidade de uma conciliação entre os direitos, procurando demonstrar que a
resistência, apesar de problemática, não opera uma contradição na lógica da ciência civil
hobbesiana.
A construção da filosofia política de Hobbes se dá de tal modo, que comporta no
seu interior dois planos bem definidos de direitos: os direitos do soberano e o direito à
resistência. Hobbes constrói argumentos que concedem uma sustentação para ambos os
direitos.
O direito à resistência está fundamentado sobre duas noções básicas da filosofia
hobbesiana: o direito natural e o contrato. Os direitos do soberano, por sua vez, estão
fundados no contrato e na necessidade de meios para realizar o objetivo do contrato.
Partimos então do pressuposto de que ambos os direitos possuem um argumento
racional que os justifique. Portanto, ambos estão dispostos de tal modo que consistem
numa necessidade lógica para que o sistema hobbesiano opere com eficácia a
substituição das relações de poder pelas relações de direito. No momento em que a
razão do homem anuncia que a melhor alternativa para a preservação da vida é o Estado
em detrimento de um estado de guerra, a autorização se torna a forma pela qual a
soberania é instituída. A autorização é necessária para a manutenção da paz, e confere
poderes irresistíveis ao soberano. Entretanto, se o contrato tem como objetivo a
preservação da vida, de forma alguma ele pode cancelar a possibilidade do uso do
poder, mesmo no Estado, para a sua defesa. O raciocínio de Hobbes é construído de tal
129
modo que os direitos do soberano e o direito à resistência se tornem necessários ao
sistema político.
A partir desta justificação para direitos do soberano e direito à resistência nos
deparamos com o problema da conciliação entre os dois direitos. A conciliação se
coloca como um problema tendo em vista o fato de que aparentemente esses direitos
parecem antagônicos. Há uma dificuldade bem nítida em conciliar a coexistência desses
dois direitos no Estado. Por que, a princípio, eles parecem mutuamente excludentes.
Resumidamente poderia se colocar a questão da seguinte forma: como pode Hobbes
dizer que o soberano não pode ser resistido, e que esta é uma obrigação do súdito, e ao
mesmo tempo dizer que o súdito pode resistir em alguns casos? Dois caminhos são
possíveis para a questão: pensar que há uma contradição insolúvel no pensamento de
Hobbes, ou buscar uma conciliação através da demonstração de que os direitos, por
mais que sejam conflitantes, não coloquem em risco a lógica da argumentação
hobbesiana. Neste último caso, o qual representa a nossa escolha, não se pretende negar
a existência de uma tensão, mas demonstrar que ela não compromete a lógica da
estrutura política de Hobbes, mas, ao contrário, faz parte da própria forma como Hobbes
concebe a política.
A tensão se faz sentir de maneira clara ao analisarmos o problema do direito à
resistência em Hobbes, mas, ela não representa uma contradição lógica no sistema da
ciência Hobbesiana. A tensão é posta justamente de acordo com um argumento lógico
que a transforma numa conclusão das premissas filosóficas de Hobbes. Partindo dos
pressupostos a respeito da natureza e da razão assumidos por Hobbes, somos levados,
através da demonstração, a constatar que a tensão é inerente ao Estado. Mas não se trata
de uma contradição. Isto por que direitos do soberano e direito à resistência operam em
planos diferentes no Estado. Os direitos do soberano estão no plano puramente jurídico,
o que quer dizer que são direitos positivos, e, portanto, estariam no plano de uma
constituição propriamente dita. Já o direito à resistência, apesar de inserido na lógica
jurídica, não se caracteriza por ser um direito positivo, mas um resquício do direito
natural, o qual não pode ser completamente alienado através do contrato. O direito de
resistência é uma liberdade de resistir, a verdadeira liberdade dos súditos, de acordo
com Hobbes. De acordo com a lógica do contrato, a resistência seria aquele resquício do
direito natural intransferível, o qual não pode ser cancelado pela estrutura jurídica do
Estado, e sobre o qual essa estrutura jurídica não pode operar. Ou seja, o Estado e toda a
sua malha jurídica não pode cancelar o direito à resistência, porque neste caso sim
130
haveria uma contradição. Entretanto, mesmo não podendo cancelar o direito à
resistência, o poder soberano do Estado pode opor a ele o seu poder. Este é
fundamentalmente também um direito do Estado. Opor-se a qualquer forma de
desobediência, seja ela justa (resistência) ou injusta (rebelião). Este é o âmbito da tensão
posta pelo direito à resistência. Tensão provocada pelos direitos, mas que se efetiva na
ação, na luta entre dois poderes devidamente estribados por direitos.
Desta forma, a existência de direitos aparentemente opostos não abala o sistema
jurídico proposto por Hobbes, que dá conta de resolver o problema sem colocar em
risco a sua construção jurídica. O mundo jurídico, o mundo construído pela razão,
permanece isento de riscos ao se admitir a coexistência entre direito de resistência e
direitos do soberano.
Insistimos em nosso texto na tese de que o contrato hobbesiano tem como
objetivo substituir as relações de puro poder no estado de natureza por relações de
direito no Estado civil. Para Hobbes, somente o contrato, artifício construído a partir de
um cálculo lingüístico, pode dar conta de uma transformação desse nível. A disputa de
poder incessante no estado natural seria substituída por um mundo ordenado, no qual as
relações entre os homens tornar-se-iam puramente jurídicas. A força cede espaço ao
direito. Efetivamente é isto que ocorre a partir da instituição do Estado como entidade
reguladora de conflitos. Ocorre, porém, que ao nos concentrarmos no problema da
resistência, as coisas não funcionam exatamente dessa maneira. A relação entre súdito e
soberano deve ser pautada, é claro, pelo direito. A malha jurídica serve de sustentação
para essa relação, e isso é conseqüência direta do contrato. Porém, no caso da
resistência, esta relação deixa de ser de direito e torna-se uma relação de poder. Apesar
de que no Estado as relações entre súdito e soberano sejam relações de direito,
ordenadas pelo contrato, a própria lógica jurídica, em caso de resistência, abre margem
para uma nova relação de poder entre os dois. Todo o sistema hobbesiano funciona no
sentido de fazer submergir as relações de poder à estrutura jurídica, exceto nos casos de
resistência. Há uma impossibilidade de se tratar a resistência sem apelar para uma
disputa de poder. Somente assim ela não se torna uma incoerência no pensamento
hobbesiano. Juridicamente não há problema porque o direito à resistência se encontra
em um plano distinto daquele dos direitos do soberano. Logo não há contradição
jurídica envolvida. Mas há uma tensão entre direitos que se transforma em disputa de
poder. Justamente o que Hobbes sempre quis evitar.
131
Dado que existem fundamentos para o direito de resistência e para os direitos do
soberano, o sistema de Hobbes abre espaço para uma tensão entre os direitos que, apesar
de não abalar o sistema jurídico, se apresenta de maneira bastante forte no plano da
positividade, ou seja, no plano do próprio poder. Desta forma, percebe-se que toda a
estrutura jurídica construída por Hobbes a fim de dar conta do problema do conflito de
poder existente no estado de natureza, em última instância, no momento do conflito
entre os direitos, abre margem para um novo conflito de poder, no campo da
positividade.
O conflito é evidente por que o súdito tem direito à resistência e o soberano tem
direitos que lhe conferem um caráter irresistível. Quando o soberano impõe uma ordem
que ameaça a vida do súdito este tem direito de resistir. No plano jurídico há um
fundamento para o direito do súdito e para o soberano. O que ocorre então é que ambos
fazem valer o seu direito e se dá então o conflito no âmbito da prática. Neste momento
volta-se às relações de poder, e, de certa maneira, impera novamente a mesma lei do
mais forte, válida no estado de natureza. Este plano de conflito é o das relações de
poder, mas, é importante frisar, é a própria estrutura jurídica de Hobbes que abre espaço
para o conflito, visto que o filósofo fundamenta tanto os direitos do soberano quanto o
direito à resistência.
Se o conflito ocorre no plano da positividade, significa que a tensão apontada
entre direito à resistência e direito do soberano de forma alguma abala a estrutura
jurídica do Estado. Não há uma incoerência lógica, ao se pensar a coexistência de
direitos aparentemente contrários. Estes direitos são contrários no plano dos fatos. Ao
ser ameaçado, o súdito tem direito de resistir ao soberano. Mas, é uma exigência da
própria lógica jurídica de Hobbes o fato de que tanto o soberano tem direito de ameaçar
o súdito, quanto o súdito tem direito de se defender. Toda a argumentação de Hobbes a
respeito reforça esta conclusão. O Estado seria inviável se não houvesse os direitos do
soberano. E também o seria se não houvesse o direito à resistência.
132
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