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Carolina Junqueira dos Santos
A ORDEM SECRETA DAS COISAS:
René Magritte e o jogo do visível
Belo Horizonte
Junho de 2006
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Carolina Junqueira dos Santos
A ORDEM SECRETA DAS COISAS:
René Magritte e o jogo do visível
Dissertação apresentada ao Curso
de Mestrado em Artes da Escola
de Belas Artes da Universidade
Federal de Minas Gerais, como
requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Artes.
Área de concentração: Arte e
Tecnologia da Imagem
Orientadora: Profª Dra. Maria
Angélica Melendi
Belo Horizonte
Junho de 2006
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3
à memória do meu pai,
porque era preciso continuar
4
AGRADECIMENTOS
À Maria Angélica Melendi, pela atenção, pelo cuidado, pela palavra.
Às professoras Daisy Turrer e Maria Esther Maciel, por terem aceito,
gentilmente, o convite para a banca de avaliação desta dissertação.
Aos amigos do mestrado, por esses passos dados ao lado.
Aos amigos do Grupo de Estudos, pelas fervorosas discussões em
meio às conversas sobre tudo.
À Giovanna Martins, pelas palavras errantes.
À Patricia Franca, pelo afeto.
À Consuelo, pela primeira leitura e a cuidadosa revisão.
Ao Wellington, pela língua francesa.
Ao paulo de andrade, pelo silêncio dividido.
Ao Bruno Reinhardt, pelo primeiro olhar em Magritte.
Ao Daniel Ribão, pelo caminho.
À Thula Kawasaki, pelo lugar protegido.
A todos os amigos que aqui nem cabe dizer, pelo carinho.
Ao Leo, amor.
À minha mãe e ao meu irmão, por tudo.
Ao meu pai (in memoriam), pelo que ficou.
À Zina e aos funcionários da Secretaria de Pós-graduação da EBA,
pela atenção.
À CAPES, pelo auxílio financeiro para a realização desta pesquisa.
5
Mas talvez a inconsistência não esteja somente na
linguagem e nas imagens: está no próprio mundo.
Italo Calvino
(...) se continuarmos utilizando a linguagem no seu
significado corrente, com as suas finalidades
correntes, morreremos sem ter sabido o verdadeiro
nome do dia.
Julio Cortázar
As palavras nunca são loucas (no máximo perversas).
Roland Barthes
6
RESUMO
A obra de René Magritte, longe dos holofotes do Surrealismo, é uma obra
silenciosa. Uma pintura voltada para o pensamento, para a análise das
imagens, da linguagem e da representação. Magritte dedicou a maior parte de
sua vida a essa pesquisa incansável e, o tempo inteiro, a duas perguntas: qual
o lugar da imagem? Qual o lugar da palavra? Neste texto, adoto a estratégia
de me aproximar de sua obra por uma via tortuosa e incerta. Assim, faço
recuar a um tempo mítico, a questão que subjaz à sua produção, colocando-me
em cena como a portadora das lembranças de uma gênese perdida no tempo e
na memória. Escrevo através de lembranças. As outras vozes surgem com os
fios da escrita. Enquanto escrevo, ouço essas vozes, posso mesmo dialogar
com elas. Posso tecer o texto à medida do meu desejo. Lembro-me de palavras
distantes, das imagens encontradas em livros. Lembro-me da literatura. A
ordem que se estabelece entre as coisas, a ordem silenciosa de que falaria
Foucault, é o viés por onde o texto caminha em direção à obra de Magritte.
Por vezes, alguns escritores, alguns artistas, são chamados ao texto para um
diálogo. Para tentar localizar esse ponto em que acontece a vertigem da
imagem, da palavra, a vertigem da lógica e da ordem das coisas. Como
participante do jogo de olhares e espelhos que se instaura na obra de
Magritte, meu lugar nesta escrita é incerto. Alterna-se. Ora mantém um
distanciamento propício à explicitação de suas regras, ora se deixa precipitar
no abismo a que imagens e palavras conduzem. Por isso, as abordagens
críticas são as aproximações e as possíveis fugas à beira da armadilha que
Magritte monta para nós.
RÉSUMÉ
L’oeuvre de René Magritte, loin des projecteurs du Surréalisme, est une
oeuvre silencieuse. Une peinture tournée vers la pensée, vers l’analyse des
images, du langage et de la représentation. Magritte a dédié la plupart de sa
vie à cette recherche infatigable et, tout le temps, à deux questions: quelle est
la place de l’image? Quelle est la place du mot? Dans ce texte, j’adopte la
stratégie de m’approcher de son oeuvre par une voie tortueuse et incertaine.
Ainsi, je fais reculer à un temps mythique la question sous-jacente à sa
production, en me présentant comme la détentrice des souvenirs d’une genèse
perdue dans le temps et dans la mémoire. J’écris par des souvenirs. Les autres
voix surgissent avec les fils de l’écriture. Pendant que j’écris, j’entends ces
voix, je peux même dialoguer avec elles. Je peux tisser le texte à la mesure de
mon désir. Je me souviens des mots distants, des images trouvées dans des
livres. Je me souviens de la littérature. L’ordre qui s’établit entre le choses,
l’ordre silencieux dont aura parlé Foucault, c’est le biais par où marche le
texte vers l’oeuvre de Magritte. Parfois, certains écrivains, certains artistes
sont, dans le texte, appelés au dialogue. C’est la tentative de situer ce point
où se donne le vertige de l’image, du mot, le vertige de la logique et de
l’ordre des choses. Je participe au jeu de regards et miroirs qui se met en
place chez Magritte et mon rôle dans cette écriture est incertain, alternant.
Soit il mantient l’écart propice à l’explicite de ses règles, soit il se laisse
précipiter dans l’abîme où mènent les images et les mots. Ainsi, les approches
critiques sont les approximations et les fuites possibles autour du piège que
nous tend Magritte.
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LISTA DE IMAGENS
Pág. 21 René Magritte L’avenir des voix 1927
Óleo sobre tela, 50 x 65 cm – Turin, Coleção Particular
Pág. 22 René Magritte Le point de vue 1927
Óleo sobre tela, 54 x 73 – Desaparecida
Pág. 30 René Magritte La clef des songes 1930
Óleo sobre tela, 81 x 60 cm – Coleção Particular
Pág. 31 René Magritte Les mots et les images 1929
[citação do artigo para a revista Révolution Surréaliste]
Pág. 31 René Magritte La clef des songes 1927
Óleo sobre tela, 38 x 53 cm – NY, Sidney Janis Gallery
Pág. 32 René Magritte The interpretation of dreams 1935
Óleo sobre tela, 41 x 27 cm – NY, Coleção Jasper Johns
Pág. 33 René Magritte Le bon exemple 1953
Óleo sobre tela, 46,5 x 35,5 cm – Centre Georges Pompidou, Paris,
Musée national d’Art moderne / Centre de Création industrielle
Pág. 37 René Magritte Les mots et les images 1929
[Artigo para a revista Révolution Surréaliste]
Pág. 41 René Magritte La cascade 1961
Óleo sobre tela, 81 x 100 cm – Suiça, Coleção Particular
Pág. 43 René Magritte La condition humaine 1933
Óleo sobre tela, 100 x 81 cm. Washington DC, National Gallery of Art
Pág. 45 René Magritte L’appel des cimes 1942
Óleo sobre tela, 66 x 56 cm – Coleção Particular
René Magritte La clef des champs 1936
Óleo sobre tela, 80 x 60 cm – Coleção Thyssen- Bornemisza, Madrid
Pág. 46 René Magritte La belle captive 1931
Óleo sobre tela, 38 x 55 cm – Sydney, Hogarth Galleries
Pág. 47 René Magritte Le bon sens 1945
Óleo sobre tela, 48 x 78,5 cm – Coleção Particular
Pág. 48 René Magritte Ceci est un morceau de fromage 1936/37
Objeto, 30 x 34 cm – Houston, Cortesia The Menil Foundation
Pág. 50 René Magritte L’au-delà 1938
Óleo sobre tela, 73 x 51 cm – Coleção Particular
9
Pág. 56 René Magritte La trahison des images 1929
Óleo sobre tela, 62,2 x 81 cm – Los Angeles, Los Angeles County
Museum of Art
Pág. 58 René Magritte La trahison des images 1952
Nanquin sobre papel, 19 x 27 cm – Coleção Particular
Pág. 58 René Magritte Les deux mystères 1966
Óleo sobre tela, 65 x 80 cm – Bruxelas, Cortesia Galerie Isy Brachot
Pág. 60 René Magritte Le monde perdu 1928
Óleo sobre tela, 81 x 116 cm – Coleção Particular
Pág. 60 René Magritte Le monde perdu 1928
Óleo sobre tela, 54 x 73 cm – Kunstmuseum Winterthur
Pág. 62 René Magritte Personnage marchant vers l’horizon 1928
Óleo sobre tela, 81 x 116 cm – Staatsgalerie Stuttgart
Pág. 68 René Magritte Le miroir magique 1929
Óleo sobre tela, 73 x 54 cm – Edinburgo, Scottish National Gallery of
Modern Art
Pág. 70 René Magritte Le miroir vivant 1928/29
Óleo sobre tela, 54,2 x 73,5 cm – Coleção Particular
Pág. 71 René Magritte Le faux miroir 1928/29
Óleo sobre tela, 54 x 81 cm – NY, MoMA
Pág. 71 René Magritte Le faux miroir 1935
Óleo sobre tela, 19 x 27 cm – Coleção Particular
Pág. 73 René Magritte La reproduction interdite (Portrait d’Edward James) 1937
Óleo sobre tela, 79 x 65,5 cm – Roterdam, Museum Boymans-van
Beuningen
Pág. 74 René Magritte Les liaisons dangereuses 1935
Óleo sobre tela, 73 x 54 cm – Coleção Particular
Pág. 80 Alec Soth [do projeto] Sleeping by the Mississippi 2002
Fotografia
René Magritte [cadeira] instalação 1945 – Destruída
Pág. 82 Brassaï [O armário espelhado] 1932
Fotografia
René Magritte En hommage à Mack Sennett 1937
Óleo sobre tela, 73 x 54 cm – La Louvière, Coleção da cidade de Louvière
Pág. 84 Ernst Haas 1951
Fotografia
René Magritte Le paysage isolé 1928
Óleo sobre tela, 54 x 73 cm – Destruída
10
Pág. 86 Eva Rubistein 1933
Fotografia
René Magritte L’amour désarmé 1935
Óleo sobre tela, 72 x 54 cm – Coleção Particular
Pág. 88 Florence Henri Auto-retrato 1928
Fotografia
René Magritte La condition humaine 1935
Óleo sobre tela, 100 x 81 cm – Genebra, Coleção Simon Spierer
Pág. 90 Jeanloup Sieff Nude with a dressing-table 1976
Fotografia
René Magritte Le sens propre IV 1929
Óleo sobre tela, 73 x 54 cm – Coleção Robert Rauschenberg Foundation
Pág. 92 Leonilson Ninguém 1992
Bordado sobre travesseiro, 24 x 47,5 cm – Coleção Isa Pini, São Paulo
René Magritte Le jeu de mourre 1966
Óleo sobre tela, 30 x 40 cm – Coleção Particular
Pág. 94 Manuel Alvarez Bravo Retrato de lo eterno 1935
Fotografia
René Magritte L’usage de la parole 1928
Óleo sobre tela, 54,5 x 75 cm – Bruxelas, Coleção Mis
Pág. 96 Manuel Alvarez Bravo Paisaje y galope 1932
Fotografia
René Magritte Confiture de cheval 1937
Pote de vidro com rótulo pintado em gouache – Coleção Particular
Pág. 98 Manuel Alvarez Bravo Día de todos los muertos 1933
Fotografia
Rosângela Rennó Cicatriz 1996
Fotografia
René Magritte L’art de la conversation 1950
Óleo sobre tela, 50 x 60 cm – Coleção particular
Pág. 100 Marcel Duchamp Fresh Widow 1920
Janela em miniatura: madeira pintada de azul e oito retângulos de couro
polido, 77,5 x 45 cm, sobre uma placa de madeira, 1,9 x 53,3 x 10,2 cm
NY, MoMA
René Magritte La lunette d’approche 1963
Óleo sobre tela, 175,5 x 116 cm – Houston, Coleção Menil
11
Pág. 102 Paul Strand Blind 1916
Fotografia
René Magritte Le paysage fantôme 1928
Óleo sobre tela, 73 x 54 cm – Coleção Particular
Pág. 104 Robert Frank 1958
Fotografia
René Magritte L’usage de la parole 1928
Óleo sobre tela, 73 x 54 cm – Coleção Anne-Marie Martin
Pág. 108 Andy Warhol Brillo – Caixa de Cartão 1964
Serigrafia sobre madeira, 44 x 43 x 35,5 cm – Bruxelas, Coleção
Particular
Pág. 111 Arman Accumulation 1973
Carimbos de borracha e serigrafia em caixa de madeira e vidro de plástico
46 x 30 x 5 cm – Tiragem: 100 exemplares de 1 a 100
Pág. 113 Arthur Bispo do Rosario 434 como é que eu devo fazer um muro no fundo
da minha casa – s/ data – cimento, madeira, vidro, 12 x 50 x 6 cm
Pág. 114 Chema Madoz Sem título [Porta-queijo] s/ data
Fotografia
Chema Madoz Sem título [Fósforo] 1994
Fotografia
Chema Madoz Sem título [Chave] 1990
Fotografia
Chema Madoz Sem título [Faca] s/ data
Fotografia
Pág. 115 Chema Madoz Sem título [Cachimbo] 1999
Fotografia
Chema Madoz Sem título [Chapéu] 1998
Fotografia
Pág. 116 Cildo Meireles Dados 1970/96
Estojo com 6,5 x 6,5 x 3 cm, dados, placas de bronze
Pág. 117 Felix Gonzalez-Torres Untitled (Portrait of Marcel Brient) [detalhe] 1992
Balas individualmente enroladas, 198 ½ lbs., dimensões variáveis –
Cortesia da Galerie Jennifer Flay, coleção de Marcel Brient, Paris
Pág. 119 Hélio Oiticica Bólide-caixa 22 1966/67
Caixa d’água e texto
Pág. 120 Joseph Kosuth One and three tables 1965
Mesa de madeira, fotografia e texto impresso, 120 x 310 x 58 cm
(instalação) – Mervyn Horton Bequest Fund
12
Pág. 121 René Magritte Les mots et les images 1929
[citação do artigo para a revista Révolution Surréaliste]
Pág. 122 Liliana Porter Serie Magritte: La luna, 1977. La condición humana I,
1976. La postal, 1975. La puerta, 1977. El principio del placer, 1977. El
mago, 1977. Fotogravura, 59 x 46 cm
Pág. 124 Luis Camnitzer Fragment of a cloud 1968
Stencil s/ lã de algodão, 14 x 20 cm – Ed. de 100 Pratt Graphics Center
Pág. 125 Lygia Pape Isto não é uma nuvem 1997
Madeira, nylon, texto, 19 x 17 x 13 cm
Pág. 126 Marcel Broodthaers Les animaux de la ferme 1974
Litografia, 81,9 x 60, 3 cm
Pág. 129 René Magritte Le bouchon d’épouvante 1966
Objeto, 24,3 x 33 x 39 cm – Bruxelas-Paris, Cortesia Isy Brachot Galerie
13
S
UMÁRIO
Do olhar primeiro .......................................................................................14
I
DA LINGUAGEM, DA REPRESENTAÇÃO E DOS ESPELHOS ........................ 20
Das arbitrariedades, ou uma pequena coleção de palavras .............................. 23
Como atravessar de um lugar a outro sem deixar rastros
de passagem: Magritte e os jogos de representação ....................................... 38
Atlas do impossível: os jogos construídos na obra de
Magritte através de uma possível leitura de Foucault .................................... 52
Dos espelhos e imagens errantes ................................................................. 64
II
MAGRITTE E OS OUTROS ......................................................................... 77
Os outros e ele .......................................................................................... 78
Das ressonâncias da voz – as homenagens, os ecos ...................................... 106
III POR FIM, O JOGO, A PALAVRA ......................................................... 128
Referências bibliográficas ........................................................................ 133
Artistas e fotógrafos citados ..................................................................... 138
14
D
O OLHAR PRIMEIRO
15
Ele foi um homem comum, ele com o seu chapéu-coco. Tinha paixão
pelo cinema e pelas imagens de mistério, gostava dos jogos enigmáticos. Ele
nasceu na Bélgica em 1898, perdeu a mãe, ainda criança, nas águas de um rio.
Viu, uma vez, um homem a pintar num cemitério. Sabia que era da ordem do
mistério o que via. Da ordem das coisas inexplicáveis.
René Magritte foi um artista da imagem e da palavra, dos jogos, do
cotidiano interrompido pela surpresa, da banalidade dos objetos e da
arbitrariedade da linguagem. Alguns insistem em chamá-lo surrealista. Eu
prefiro não colocá-lo em lugar algum. Ele não estava muito preocupado com
as questões do Surrealismo de André Breton. Não se importava com a
psicanálise, não se importava com o automatismo. Por um curto tempo
conviveu com os surrealistas de Paris, três anos apenas. Magritte estava na
borda das vanguardas. Desenvolveu sua obra independente de grupos e
escolas, ele reinventou a maneira de olhar os objetos, ele desmascarou a
traição dos sistemas de representação e subverteu a noção habitual da cartilha
escolar.
Naqueles anos pós-dadaístas, eis que se ergue das estruturas do próprio
Dada, o Surrealismo. Este não foi um movimento que veio depois de Dada,
mas ele criou lá suas raízes. O Surrealismo, menos niilista, herdou alguns
artistas do Dada. Breton bebeu nas águas deste para gerar as primeiras idéias
do Surrealismo. O primeiro manifesto, de sua autoria, data de 1924. O
Surrealismo surge com muita euforia, tanto na literatura quanto nas artes
plásticas. Naquele momento os olhares estavam voltados ao inconsciente, às
técnicas de automatismos, ao uso máximo do potencial de cada artista. Os
sonhos, a psicanálise, a junção de objetos desconexos levando ao pé da letra o
16
que se tornou a máxima dos surrealistas, segundo uma frase de Lautréamont:
Tão belo quanto o encontro fortuito de uma máquina de costura e de um
guarda-chuva sobre uma mesa anatômica. Nisto é fácil reconhecer as imagens
de Magritte. Mas ainda assim ele estava distante. À margem.
Seria mais conveniente, neste texto, pensar num certo espírito
surrealista que rondava por aqueles tempos. Mais do que uma estrutura de leis
e regras, que faziam parte das vanguardas – mais do que isso, aquele momento
refletia o espírito de uma época, o homem moderno a todo vapor, sua
produção em meio às negações dadaístas e o novo otimismo surrealista, as
idéias de Freud misturadas à arte e à literatura, o sonho elevado a um grau de
importância nunca visto. Imagens de cenas de mistério e absurdo, o
imaginário infantil, o da loucura, imagens obscuras e oníricas. E no meio
disso, Magritte, um artista que estava preocupado com questões muito além
dos ideais surrealistas e encaixado ali, pela história, por uma simples
cronologia.
Antes ele pintou paisagens. Depois vieram as figuras humanas, as
manchas de tinta, as pinceladas pesadas e bem marcadas na tela. Ele chegou
em alguns momentos à abstração, às imagens cubistas, uma obra ainda sem
identidade, sem lugar próprio. Alguns anos depois ele conheceu a obra de
Giorgio de Chirico, os cenários arquitetônicos, as estátuas clássicas, a
solidão. Ele se encantou, e sua obra tomou outros rumos. As imagens
tornaram-se mais enigmáticas, misteriosas. As pinturas eram escuras. Alguns
elementos começaram a se repetir: nuvens, olhos, colunas. Os espaços
improváveis. Cabeças independentes dos corpos, cortinas, estátuas. Em 1927
apareceu em sua obra a palavra. Nos três anos seguintes, ele desenvolveu toda
17
uma discussão sobre as questões da linguagem. Vivendo na França, em
contato com os surrealistas, ele pintou palavras escritas, pintou espelhos,
cachimbos, paisagens nomeadas, molduras vazias. Depois voltou para casa.
Desvinculou-se de vez do grupo francês, com o qual discordava em diversos
pontos, e voltou para a Bélgica. Então trabalhou com pintura dentro de
pintura, com objetos, refez algumas obras com os textos em língua inglesa.
Fez retratos em que quase sempre o retratado estava refletido num espelho.
Ele jogava o tempo inteiro com a representação. Na década de 40, duas fases
diferentes: a primeira, a fase Renoir, trouxe um aspecto impressionista para
as suas imagens. A segunda, no fim da década, a fase Vache, nome atribuído,
numa paródia a Fauve, às obras com imagens mais coloridas e selvagens. Ele
continuava com o seu tom irônico, misterioso e lúdico. Depois volta para a
sua técnica habitual, impelido pelas circunstâncias e desejos alheios. Na
década de 50, ele retomou em diversas pinturas seu questionamento da
linguagem e da representação. Pintou homens de chapéu-coco, objetos
gigantes dentro de um quarto, enunciados que não coincidiam com a imagem,
e palavras inscritas em pedras. Na década de 60, a última, ele ainda produziu
uma série de pinturas e objetos, questionando os nomes, as funções e a
representação. Em 1966, propôs, ainda, mais alguma discussão sobre o seu
famoso cachimbo. Era a última. Em 1967, ele morreu.
Este texto pretende abordar a obra de Magritte através de um olhar
particular, através dos meus olhos e do meu desejo de leitora. Penso que
somente assim podem ser lidas as obras de arte, a literatura e o próprio
mundo, através do desejo de quem lê. Mesmo os estudos sobre real,
representação e linguagem, são feitos e escritos em meio a palavras soltas, é
18
um texto que deseja o leitor. Cada palavra não tem um sentido absoluto, as
significações pouco importam. O conjunto da obra foi selecionado de acordo
com o interesse desta pesquisa: as palavras, os espelhos, as ficções e o
cotidiano.
A primeira parte deste texto, Da linguagem, da representação e dos
espelhos, trata da análise de diversas obras de Magritte, tomando como pontos
principais as divagações sobre as primeiras nomeações, os nomes das coisas,
o ato humano de organizar, nomear e colecionar, para se chegar à linguagem
como jogo arbitrário. Logo depois, há uma discussão sobre as relações entre
texto e imagem, entre real
e representação, real e ficção. A partir de um
diálogo com outras vozes, de Calvino, de Blanchot, de Foucault ou de tantas
outras, o texto deseja penetrar nas pequenas brechas do real, da ficção, dos
olhares cotidianos: penetrar na ordem secreta das coisas. Por fim, os espelhos.
Percorremos, através do texto, algumas imagens de Magritte para refletir
acerca destes espaços dúbios, dentro do espaço virtual, chamando Alice para
o texto, chamando Borges. É preciso entender de que real se sai e em que real
se entra, entender os espaços de multiplicação. Entender a representação
como um jogo do olhar e o real como mero ponto de vista.
A segunda parte, Magritte e os outros, é um texto sobre imagens. Ao
lado de Magritte, outros artistas e fotógrafos são convidados à cena do texto.
Em um momento, são colocadas lado a lado a obra de um artista escolhido e a
obra de Magritte. Então, em poucas palavras, faço uma leitura delas, falo do
meu modo de olhar, somente. Tantas leituras sempre podem ser feitas, para
Neste texto, a palavra real é utilizada no sentido dicionarizado. Real. [Do b.–lat. reale
< lat. res, rei, ‘coisa, coisas’.] Adj. 2 g. 1. Que existe de fato; verdadeiro. 2. Filos. Diz-se
daquilo que é uma coisa, ou que diz respeito a coisas. [Opõe-se a aparente, fictício, ideal,
ilusório, possível, potencial, etc.] In: FERREIRA. Novo dicionário da língua portuguesa.
p. 1202.
19
cada olhar que passa são possíveis palavras novas. Aqui, as minhas. Em outro
momento, escolhi obras de outros artistas em que vejo, além da influência
direta em alguns casos, uma ressonância da voz de Magritte, os ecos da sua
obra, embora, talvez, eles nem tenham um conhecimento preciso da obra do
artista belga. Não importa. O que vemos é o que faz sentido entre as coisas.
Poderia mesmo escolher obras desconexas e fazer do meu olhar um ponto de
encontro entre elas. Basta ler com cuidado cada imagem e cada palavra que
sobre as mãos pousarem.
A terceira parte é o fim do texto. Escolho uma última obra de Magritte
para falar dos jogos e da palavra escrita. Para falar, uma vez mais, que é
preciso saber olhar e percorrer a imagem.
O texto está aberto e cada palavra é um convite. Mais do que estudar a
obra de um artista, este texto quer ser lido, quer ser colocado às mãos,
tocado. Ele quer o leitor que possa se perder, aqui não é um lugar de palavras
precisas. Mas é um lugar de palavras.
20
I
DA LINGUAGEM, DA REPRESENTAÇÃO E DOS ESPELHOS
21
E antes das palavras escritas, antes da mão a desenhar linhas de texto,
eis que veio a voz. E antes da voz, antes da boca a gemer um ruído, tentando
pronunciar o nome inventado das coisas, antes era somente a coisa, o objeto
vivo, os sentimentos entrelaçados sem nome, sem especificações. Objetos
assim soltos, perdidos no espaço de todas as coisas, de todos os nomes ainda
não existentes, um amontoado de funções sem palavras.
E de repente cada objeto pede um nome, pede uma voz. Não poderiam
continuar soltos pelo espaço de todas as coisas. Eles são, também, frágeis,
precisam de exatidão, precisam de um nome, de uma função, precisam de uma
voz que os pronuncie. Uma voz grave a princípio, uma voz que faça ecoar o
nome por todos os séculos e em cada canto do mundo. Todos eles precisam de
um nome, sim, como nós. Como precisamos das palavras para estabelecer as
relações e funções entre todas as coisas. Precisamos nomear, organizar,
classificar. Por vezes precisamos colecionar, criar outros espaços dentro do
espaço geral, criar micro-lugares para a existência dos objetos, criar outros
nomes e outras funções, precisamos da voz, da palavra escrita nas etiquetas
das caixas de papelão, precisamos colecionar coisas e fazê-las nossas, no
nosso mundo inventado e nomeado no fundo de uma gaveta.
Distante, nessa paisagem
inventada pela pintura, quatro
objetos flutuam no céu, ou somente
diante da imagem que vemos. Os
objetos não estão expostos de
acordo com suas funções, nem de
acordo com seus nomes. Não, ainda
22
não existem os nomes. De repente percebemos que estamos diante de um lugar
imaginário, um lugar perdido na lembrança dos homens, naquele tempo em
que tudo podia existir independente das palavras. É Magritte quem nos diz:
L’avenir des voix. Na imagem estão alguns objetos que o próprio artista viria,
depois, representar, classificar, nomear, subverter. Ali, em 1927, ele começa
a história dos objetos, antes do nome, antes da voz. Ele traz à paisagem cada
objeto como a futura voz que o pronuncia. Como esta, a minha, uma voz já
distante para falar cada nome que existe escondido naquela pintura.
E antes mesmo da voz, o
olhar. E através do olhar, as
diversas paisagens que poderiam
existir diante dos olhos, das mãos.
Nesta outra pintura de Magritte, Le
point de vue, de 1927, vemos
quatro paisagens repetidas. Talvez
a incidência do sol sobre cada paisagem seja um pouco diferente, como nas
diferentes horas do dia. São quatro recortes da mesma paisagem, vistos por
um ângulo muito parecido, embora sempre diferente. Cada recorte se faz de
uma forma. Por vezes podemos ver um pouco mais do mato no chão, por vezes
um pouco mais do céu. Nenhuma paisagem se repete. Não poderia jamais se
repetir. O lugar de onde você olha não se confunde com o meu. Esse lugar
mesmo, de onde você lê, não é o mesmo lugar de onde escrevo. Nunca cada
um dos nossos olhares poder-se-iam misturar, confundir-se, não seria jamais
possível olharmos a mesma coisa, tal como uma voz nunca se repete em outra
boca.
23
DAS ARBITRARIEDADES, OU UMA PEQUENA COLEÇÃO DE PALAVRAS
24
DA COLEÇÃO DE PALAVRAS
Procuro por aqui o lugar vazio que as palavras ocupam. Posso escrever
cada uma delas como se as tivesse na palma da minha mão. E me faço uma
pergunta: como tocá-las? Como trazê-las à luz de um discurso sem que
sejamos nós os delatores da sua função comunicadora? Não é mais comunicar:
é procurar formas de tradução, a comunicação falha porque a palavra recria
outro lugar em relação ao que a produz. A palavra ocupa o papel.
O texto, o livro, a cidade – uma ou várias coleções. As palavras estão
fora, nós podemos percebê-las pelo olhar. As palavras estão dentro, nosso
pensamento se dá por meio da linguagem e seus códigos. Lembro-me de
Calvino e o relato de Qfwfq, o herói indescritível das Cosmicômicas, sobre a
primeira marcação de um sinal no espaço. Em um momento, ele percebe que
está a pensar, e isto só era já possível depois da marcação de um sinal – o
primeiro código que assinalava um ponto do espaço:
(...) pensar em algo jamais havia sido possível, primeiro porque
faltavam coisas em que se pudesse pensar, e segundo porque
faltavam os sinais para pensá-las, mas, do momento em que havia o
sinal, decorria a possibilidade de que ao pensar pensava-se num
sinal, e portanto naquele, no sentido de que o sinal era a coisa em
que se podia pensar e também o sinal da coisa pensada, ou seja, de
si mesmo.
1
Sim, pensamos através dos sinais marcados nas coisas, pontos quaisquer
do espaço. Estamos mais afogados em palavras (e em números) do que nos é
permitido perceber. As coisas do mundo possuem etiquetas invisíveis com
seus nomes e funções. Em Macondo, cidade em que vivi meus cem anos de
1
CALVINO. As cosmicômicas. p. 37.
25
solidão através das palavras de um escritor, houve a doença da insônia. Nela,
o esquecimento. Os nomes agora precisavam de etiquetas visíveis. Os nomes e
as funções das coisas:
Com um pincel cheio de tinta, marcou cada coisa com o seu nome:
mesa, cadeira, relógio, porta, parede, cama, panela. Foi ao curral e
marcou os animais e as plantas: vaca, cabrito, porco, galinha,
aipim, taioba, bananeira. Pouco a pouco, estudando as infinitas
possibilidades do esquecimento, percebeu que podia chegar um dia
em que se reconhecessem as coisas pelas suas inscrições, mas não
se recordasse a sua utilidade. Então foi mais explícito. O letreiro
que pendurou no cachaço da vaca era uma amostra exemplar da
forma pela qual os habitantes de Macondo estavam dispostos a lutar
contra o esquecimento: Esta é a vaca, tem-se que ordenhá-la todas
as manhãs para que produza o leite e o leite é preciso ferver para
misturá-lo com o café e fazer café com leite. Assim, continuaram
vivendo numa realidade escorregadia, momentaneamente capturada
pelas palavras, mas que haveria de fugir sem remédio quando
esquecessem os valores da letra escrita.
2
Depois, houve a cura da doença. E para aqueles habitantes, que
voltaram a se lembrar de tudo, um certo envergonhamento com tantos objetos
marcados pela casa, marcados pela cidade, as funções, o nome do lugar, e
ainda uma frase, para que ninguém se esquecesse: Deus existe
3
.
E quem é o velho Qfwfq, esse personagem a quem não podemos atribuir
a identidade humana, nem outra qualquer, esse sujeito sem nome
pronunciável? E o que é alguma coisa cujo nome não se pode falar? O que é
uma coisa cuja palavra não existe? Blanchot diz que de um objeto sem nome
não sabemos o que fazer
4
. Por vezes penso que essa coisa não pode existir,
nem o que não se pode pronunciar. Somos calcados nas coisas que existem, e
pensamos que o que existe deve ter necessariamente um nome. E então,
2
MÁRQUEZ. Cem anos de solidão. p. 50-51.
3
MÁRQUEZ. Cem anos de solidão. p. 51.
4
BLANCHOT. A parte do fogo. p. 310.
26
mesmo com um nome escrito, como chamar à nossa direção o velho Qfwfq?
Não sei, melhor continuar apenas com as suas histórias contadas e as
primeiras marcações no espaço. Talvez possamos, então, roubar o conto de
Calvino e tentar reconstruir uma das origens possíveis da primeira nomeação.
Num ponto qualquer um sinal é marcado. Com o tempo todo o espaço se enche
de sinais, não é possível reconhecer o primeiro, o mundo está repleto de
informações de todas as espécies. É o velho Qfwfq quem relata:
(...) no espaço acumulavam-se sinais que vinham de todos os
mundos, pois quem quer que tivesse agora a possibilidade não
deixava de marcar seu traço no espaço de um modo ou de outro, e o
nosso mundo, cada vez que retornava a ele, encontrava-o cada vez
mais repleto, tanto que o mundo e o espaço pareciam ser o espelho
um do outro, um e outro minuciosamente historiados de hieróglifos
e ideogramas, cada qual podendo ser um sinal ou não ser (...) No
universo já não havia um continente e um conteúdo, mas apenas
uma espessura geral de sinais sobrepostos e aglutinados que
ocupava todo o volume do espaço, um salpicado contínuo,
extremamente minucioso, uma retícula de linhas, arranhões, relevos
e incisões; o universo estava garatujado em todas as suas partes e
em todas as suas dimensões.
5
Assim via o universo Qfwfq. Assim o vemos nós, agora, saturado de
coisas e dos nomes das coisas, das funções, tantas palavras marcadas no
espaço, como essa quantidade de imagens, quantidade de tudo. E cada um
destes nomes surgiu por algum motivo, por alguma voz que o pronunciou, por
uma mão que o marcou no espaço.
E mais uma vez, a constatação: o sinal nasceu de forma arbitrária – os
nomes, os sistemas, as catalogações são todos, da mesma forma, arbitrários,
servem-nos para identificar as coisas no mundo. Mas o fato é que as palavras
escapuliram dessa função meramente identificadora e comunicadora para cair
5
CALVINO. As cosmicômicas. p. 43-44.
27
na armadilha da literatura. Capturada a palavra, ela não se comportaria mais
da mesma forma. E surgiram os escritores, surgiram os poetas e os artistas.
Surgiram os homens que recriariam as palavras e as levariam daqui para outro
lugar.
DA ARBITRARIEDADE DA LINGUAGEM
No princípio era o verbo.
Quase nada sei sobre esta frase. Apenas reconheço nela o seu poder de
começar coisas. Coisas escritas. Mas mesmo não conhecendo seu lugar exato
– apenas alguma lembrança fugidia de Bíblias ou igrejas ou vozes que a
repetiram – ainda assim teimo em ser uma destas vozes que agora mais uma
vez pronuncia: no princípio era o verbo.
Não, no princípio era a coisa. Não havia nem mesmo o pensamento
sobre a coisa, ela era vazia. Um homem, ou talvez tenha sido uma mulher –
alguém, em algum dia perdido para sempre num tempo em que não havia a
história, não havia mesmo a palavra homem ou a palavra mulher – neste dia
pode ter acontecido o primeiro momento da palavra, mesmo que tenha sido
apenas um balbucio, algo quase-nada, um sopro de voz que fez um objeto ser
identificado. Um barulho saído da boca pode ter dado ao primeiro objeto um
nome. Talvez não tenha sido assim. Não importa a origem do que está perdido
para sempre. Podemos apenas criar algumas narrativas possíveis, afinal não
foi a própria palavra, aquela capturada pela literatura, que nos ensinou isso?
A mim, sim, e faço deste espaço um lugar para tudo o que eu quiser. Quero
pensar num homem ou numa mulher que deu o primeiro nome a alguma coisa.
28
Calvino quis pensar num senhor Qfwfq, que nem sequer possui características
viáveis para ser um homem. Este senhor alega ter sido o primeiro a marcar um
sinal num ponto do espaço. Posso também acreditar nessa hipótese.
Agora leio as páginas iniciais da Bíblia, de quando Deus estava a criar
as coisas. Sim, as coisas, das menores à maiores, inclusive o homem, através
do qual se criou a mulher. Já no primeiro dia, Deus chamou à luz, dia, e às
trevas, noite. No segundo dia, ele chamou ao firmamento, céu. E foi Adão
quem deu o nome à Eva, por significar “vivente”. Ali também há uma possível
origem dos nomes, é uma história, é uma possibilidade das palavras. Deus
criou-os homem e mulher, e os abençoou, e deu-lhes o nome de homem no dia
em que os criou
6
.
Independente de como surgiu a primeira forma de identificação, de
marcação e de sinalização de uma coisa no mundo, o que nos resta
compreender é que, inevitavelmente, ela surge arbitrária. Uma coisa recebe
um nome ou uma marca para que se faça identificar após um tempo de
repetição desta informação. Uma criança ou um animal recebe um nome
próprio e eles se reconhecerão neste nome através da escuta repetida dele.
Assim, provavelmente, construiu-se toda a linguagem: primeiros nomes,
funções especificadas, sistemas inteiros de classificações das coisas do
mundo, inventários, agrupamentos, coleções. E é Blanchot quem nos diz: o
nome não saiu da coisa, ele é o seu dentro, posto perigosamente às claras e,
contudo, sendo ainda a intimidade oculta da coisa
7
. Não importa de onde vem
o nome, a palavra, a voz. As coisas estão nomeadas, vivemos em meio aos
jogos da linguagem.
6
BÍBLIA SAGRADA. Gênese 5, 2.
7
BLANCHOT. A parte do fogo. p. 310.
29
Sabemos que o homem sempre teve a necessidade de ordenar o mundo.
Essa necessidade é nele inata. E manifesta-se arbitrária. Todas as
classificações são possíveis, e elas assim se fizeram pela história. O homem
encontrou diversos meios de agrupar as coisas e aprendeu a criar enormes
sistemas de identificação. Com a cientifização destes sistemas, a
arbitrariedade vai dando lugar a mecanismos mais exatos, a lógicas diversas e
passíveis de compreensão. Já não poderíamos falar que agora as classificações
são arbitrárias, mas o cerne delas é. Qualquer sistema de classificação nasce
arbitrário porque a linguagem nasce arbitrária. E se uma classificação se
esgota, na realidade estamos a falar do esgotamento da própria linguagem.
Como num caso clássico dessa dificuldade das palavras: o ornitorrinco
8
não é
inclassificável, ele apenas não encontrou um nome além dos já existentes. Há,
ainda, muitas palavras por existir.
Pensando nisso, lembro-me de Borges e sua enciclopédia chinesa
9
. Há
uma divisão dos animais, a começar por a) pertencentes ao imperador. Na
letra l, lê-se: et cetera. Depois, até a letra n, continua a classificação dos
animais. Et cetera: tantas discussões sobre o ornitorrinco, e a enciclopédia
chinesa conseguiria classificá-lo muito bem. Podemos perceber, assim, que as
classificações são linguagem pura, e elas se dão somente através desta. E
percebemos, também, que sempre haverá uma improbabilidade de a linguagem
dar conta de todas as possibilidades de classificação. Resta, para isso, uma
lição borgeana: et cetera.
8
A descoberta do ornitorrinco, supostamente em 1797 na Austrália, desconcertou todas as
noções de sistemas e classificações naturalistas existentes. Ele era um híbrido, mistura de
mamífero e ovíparo. Até hoje não há uma categoria específica em que ele se encaixe.
9
BORGES. O idioma analítico de John Wilkins. In: Obras completas. v. 2. p. 92-95.
30
A CHAVE DOS SONHOS OU SEIS PASSEIOS PELOS BOSQUES DA LINGUAGEM
Poderia ser uma janela com alguns
objetos à vista: um ovo, um sapato de
mulher, um chapéu-coco, uma vela, um
copo e um martelo. Poderia ser uma ou
seis pequenas janelas. Poderia ser uma
cartilha escolar: um objeto desenhado e,
abaixo, o nome correspondente. Poderia
ser, até mesmo, uma lição num quadro-
negro e, neste momento, lembro-me de
Foucault
10
.
Mas se olharmos bem, logo percebemos: isto não é uma janela, isto não
é uma cartilha. Aliás, estamos perdidos. Os nomes e as coisas não se
correspondem. O observador é obrigado a se confrontar com a natureza
arbitrária dos nossos sinais e códigos
11
. Sob o ovo: a acácia. Sob o sapato: a
lua. Sob o chapéu-coco: a neve. Sob a vela: o teto. Sob o copo: a tempestade.
Sob o martelo: o deserto.
Magritte propõe outros nomes às coisas. Não é apenas uma estratégia
para criar leituras possíveis aos objetos pintados. Em um artigo escrito em
1929
12
, é o próprio artista quem diz:
10
FOUCAULT. Isto não é um cachimbo. “(...) tudo isso faz pensar no quadro-negro de
uma sala de aula: talvez uma esfregadela de pano logo apagará o desenho e o texto; talvez,
ainda, apagará um ou outro apenas para corrigir o ‘erro’(...)”. p. 12.
11
PAQUET. Magritte. p. 75.
12
Artigo publicado na revista La Révolution Surréaliste.
31
Sim, um objeto pode ter um outro nome que lhe seja mais conveniente.
O nome original é tão arbitrário quanto a troca posterior das palavras.
Partindo deste princípio da arbitrariedade, percebemos que um objeto poderia
ter qualquer nome e que o gesto de Magritte consiste apenas em refazer um
suposto gesto anterior de marcações (e retomo o pensamento em Qfwfq).
Mas, de repente, folheando
outros livros, encontro o que
talvez tenha sido a primeira
versão de La clef des songes. É
1927. A pintura é menor, poderia
mesmo ser uma espécie de estudo
para a de 1930. E no momento em
que estou quase a sair da imagem, alguma coisa não me permite: l’éponge.
Sim, de repente estou diante de um objeto e do nome que o nomeia. Entre três
objetos com os nomes trocados, o que nos faz pensar na arbitrariedade das
nomeações, entre três objetos renomeados, três relações quase perversas,
novas, possíveis – neste mesmo lugar encontro um nome que se refere à
imagem. Num primeiro momento penso em Magritte e me pergunto que jogo
ele quis propor desta vez. Não sei responder. Mas sei que, atribuindo a um
objeto o seu próprio nome, ou seja, estando, ao menos uma vez, de acordo
32
com as convenções, ele confere credibilidade às outras conexões, que a
princípio nos pareceriam equivocadas. No último quadrinho de uma pintura
dividida em quatro, ele acerta. E nos confunde.
Poderíamos pensar: ele começou por dar, ao menos, um nome certo aos
objetos dispostos. Depois, em 1930, já não restava na pintura seguinte,
qualquer nomeação previsível, a “correta”. Mas, depois, encontro uma outra
versão de La clef des songes: The interpretation of dreams. O ano é 1935.
Desta vez, ele volta à estrutura anterior de 4 partes. As três primeiras
participam do jogo de renomeação do artista. A última, como na pintura de
1927, grita seu lugar errado. Sim, errado. Há uma mala pintada e, sob ela, o
nome: a mala.
Fico um tanto perplexa diante desta
constatação possivelmente falha, possivelmente
correta: os objetos podem ter qualquer nome.
Outros ou o mesmo. Não é preciso trocar o
nome do objeto para que se constate o mesmo
espanto diante de algo nomeado. Sempre há esse
abismo, esse lugar intransponível entre palavra
e coisa. Jamais elas se tocam. Talvez se
esbarrem no jogo do discurso, da linguagem,
mesmo da literatura. Mas não se tocam, não podem jamais chegar tão perto
uma da outra. Mesmo o que nos parece correto, o que aprendemos tão
facilmente no cotidiano das coisas, mesmo o que nos torna menos analfabetos,
isso tudo não serve para compreendermos a dimensão da distância que há
entre a palavra e a imagem.
33
E escrevendo cada uma destas palavras, sei que há algo naquelas
pinturas que ainda não consigo entender. Falamos de coisas e nomes, objetos
e suas funções. Falamos como se estivéssemos a falar do mundo dito real.
Mas de fato estamos a falar de pinturas, ou, de uma forma mais crua, de meras
representações deste mundo real. A imagem de uma mala com a palavra mala
abaixo pode estar tão equivocada quanto o nome diferente sob a coisa.
Aquilo, de fato, não é uma mala, senão a representação de uma mala.
E agora, diante de tantos nomes alterados e confundidos, diante do real
que se apresenta, no lugar das não significações, dos nomes improváveis,
impossíveis, neste lugar das coisas soltas da linguagem, ou da linguagem
independente dos objetos nomeáveis – neste lugar, posso, então, perceber a
distância das palavras e da função dada à linguagem. Não, ela não serve para
nomear, mas sim para criar outros espaços.
EM MEIO AO REAL, A FICÇÃO
E o que faz ali parado aquele homem,
de pé, se a legenda da imagem diz outra
coisa? Se bem que, ao olhar novamente,
percebo o que, de fato, ela me diz:
personagem sentado. O que vejo é um homem,
de pé, chapéu, casaco e guarda-chuva. O que
vejo são imagem e texto que possuem uma
estranha vizinhança, que se tocam levemente
sem muito contato.
34
A princípio penso que o texto está enganado. Ou estaria a imagem. Mas
me perco. Sei que estou no lugar-comum quando assim penso. Esse Le bon
exemple de Magritte me diz o quê? Aonde ele quer chegar ao levar o
pensamento até a dúvida? Não sei, mas descobri que Magritte trabalha com
essa dúvida, algo que alguns de seus estudiosos chamariam de “a dúvida
fundamental”. Um lugar a que chegamos e do qual não podemos mais sair.
Somos capturados pela imagem, ou pelo texto, ou pela suposta falta de
conexão entre ambos. Somos enganados e presos na vertigem.
Mais uma vez olhamos essa cartilha inventada por Magritte. E mais uma
vez somos presas fáceis dessa armadilha da linguagem. Por que haveríamos de
pensar que há que se ter uma relação precisa entre as coisas? Talvez a frase
esteja a anunciar o futuro da imagem daquele homem. Talvez esteja a falar de
outra coisa, de um personagem, de algo que acontece fora da imagem. Ou de
algo que não acontece. E ao escrever a palavra personagem, talvez Magritte
queira nos falar da ficção, desses jogos que rondam o real, este real que é
mero ponto de vista. Se escrevesse homem sentado poderíamos falar de um
engano. Mas assim não, o personagem instaura a ficção, instaura uma espécie
de atuação que pode ser da própria imagem. Ou do texto. As palavras fazem o
que querem. Ali, no meio de um lugar neutro, sem chão, no meio de uma
página, a imagem e o texto. Só isso podemos ver precisamente. De resto nada
se sabe, mas ainda se pode sonhar em meio à linguagem.
35
AS PALAVRAS E AS IMAGENS
Em 1929 Magritte escreve um artigo para a revista Révolution
Surréaliste em que propõe uma discussão sobre as relações entre palavra e
imagem, real e representação. Nesse artigo, Magritte acaba por justificar
várias pinturas suas, como aquelas em que ele trabalha com formas vagas,
com a palavra no lugar da imagem, e com nomes trocados entre os objetos.
Esse artigo, de alguma forma pouco conhecido na sua obra, é de grande
importância para que se possa compreender suas preocupações em torno do
tema e para que se possa verificar porque, décadas mais tarde, Magritte seria
considerado um dos precursores da arte conceitual.
Alguns tópicos do artigo são
uma espécie de pequenos ensaios de
pinturas do artista. No texto, ele
demonstra todo seu interesse pelo
estudo das relações entre imagem e palavra, por vezes trabalhando à beira da
obviedade, este lugar tão comum a Magritte e um dos elementos mais
fascinantes em sua obra. Por exemplo, na figura acima, em que Magritte
escreve: Uma palavra pode tomar o lugar de um objeto na realidade. Este é
um procedimento muito simples, colocar a palavra no lugar do objeto, no
entanto, a simplicidade do gesto não demonstra o que é alterado na realidade.
No lugar, agora, do objeto, há a palavra e a ausência dele, questão que será
abordada mais adiante através da voz de Blanchot.
Em outro momento do Les mots et les images, é possível sentir um certo
tom irônico de Magritte ao falar da representação. Segundo ele: Tudo leva a
36
pensar que existe alguma relação
entre um objeto e o que o
representa. A seguir ele desenha
duas casas e escreve sob a primeira:
objeto real, e sob a segunda: objeto representado. Nada mais ele nos fala
disso. Joga questões abertas no ar, para que alguém resolva, para que o nosso
olhar confirme de alguma forma suas proposições.
Num outro instante, trabalha
só com as palavras escritas, quando
diz: As palavras que servem para
designar dois objetos diferentes
não mostram o que pode separar
estes objetos um do outro. As palavras são as mesmas diversas vezes, embora
queiram falar de coisas diferentes, embora os contextos sejam outros. É puro
engano pensar que as palavras se comportam sempre de uma forma específica,
elas são matéria-viva, e nada
podem mostrar das suas diferenças,
só o olhar atento pode encontrar o
que difere uma da outra. Logo
depois, Magritte afirma: Num quadro, as palavras são da mesma substância
que as imagens. Isso quer dizer que, numa pintura, mesmo ali não se pode
saber o que diferencia a palavra e a imagem. Estamos sempre perdidos no
mundo das visibilidades.
37
Eis a reprodução integral do artigo mencionado:
38
COMO ATRAVESSAR DE UM LUGAR A OUTRO
SEM DEIXAR RASTROS DE PASSAGEM:
MAGRITTE E OS JOGOS DE REPRESENTAÇÃO
39
Do objeto à imagem, um percurso por se fazer. Dois lugares tão
próximos ligados por um abismo. A passagem entre os espaços é o que nos
pode fazer aproximar um pouco mais do jogo travado entre o objeto e sua
representação, entre o objeto e seu espelhamento. Nada fica depois desta
passagem, não há rastros, não há pegadas na areia branca do invisível entre o
real e o outro lugar. Lugar a que poderíamos chamar de ficção, ou de mera
ilusão do olhar. Mas, aqui, o nome é preciso: os lugares outros. Aqueles
lugares em que não podemos, de fato, penetrar; onde acontecem jogos ainda
desconhecidos para nós, meros olhares passantes em labirintos de espelhos.
Sem rastros de passagem: o lugar do corpo é sempre fora, fora de todos
os espaços, fora do real, da passagem, fora do espelho. Nunca se pode
precisar o lugar exato em que o olho se coloca. O espectador é um jogador de
espaços embaralhados. De repente, a lembrança de Italo Calvino e de seu
castelo dos destinos cruzados
13
: cada pessoa criava uma história a partir das
cartas dispostas sobre a mesa. Não importava a veracidade dos fatos narrados
mas, apenas, a possibilidade de se construir histórias infinitas.
As histórias são livres. O olhar também.
DOS LUGARES REAIS
É de Blanchot a leitura da distância. Do distanciamento que não é a
simples mudança de lugar
14
. Pensar o espaço do real não é um exercício
simples, porque ele se apresenta também em forma de jogo. A que real se
refere um enunciado? A que instância precisa do real em que vivemos, o real
13
CALVINO. O castelo dos destinos cruzados.
14
BLANCHOT. O espaço literário. p. 257.
40
que tocamos, o real pleno de coisas e objetos e situações palpáveis? Não, não
sei de que real se fala. Posso apenas tentar cercá-lo deixando espaços livres,
espaços de passagem, de contato, com aquilo que não seria da ordem do real.
Vejo objetos ao alcance das minhas mãos e chamo a eles de real, posso tocá-
los, sei que são objetos pertencentes ao mundo, utilizáveis, seja para
quaisquer fins. Começo a questionar, então, as palavras. Elas que me levam a
definir como real ou não as coisas dispostas pelo mundo. Qual a função da
linguagem senão a de delatar as coisas, senão a de reconstruí-las a partir de
seus próprios caprichos? A linguagem é quem define o real.
DOS LUGARES DE PASSAGEM
Do real à sua representação, algum caminho se deve percorrer. Por
vezes, com os pés atados, outras vezes em puro silêncio. Tento levar o meu
olhar para esse lugar entre dois espaços, intocável, impreciso. Lugar onde, de
fato, alguns movimentos determinantes acontecem: a passagem e a
transformação da linguagem.
A passagem precisa de distâncias. Nada do objeto pode restar na
imagem representada, refletida. Há uma forma similar sim, poderíamos,
mesmo, chamá-la de idêntica. Mas não nos enganemos por tão pouco: o que se
altera é definitivo e nada mais pode se repetir. E, novamente, a lembrança de
Blanchot: o reflexo não parece sempre mais espiritual do que o objeto
refletido?
15
Sim. Blanchot falaria sobre a presença liberta da existência, a
15
BLANCHOT. O espaço literário. p. 257.
41
forma sem matéria
16
. Eu falo de uma impossibilidade, falo do que se perde na
passagem e não mais se alcança. A matéria se altera, o lugar é outro. A
passagem é o lugar onde acontecem as trocas. Nesse espaço mínimo de chão e
tempo entre o objeto e seu reflexo. Entre o objeto e a sua imagem.
Blanchot me diz que a imagem pede a neutralidade e a supressão do
mundo
17
. Magritte pinta um quadro com plantas que está sendo absorvido
pelas próprias plantas. Sim,
essas plantas também não são
reais para nós, viventes do
mundo real. Mas dentro do jogo
da pintura, elas são a realidade
que engole, com folhas e
galhos, o próprio quadro. Na
pintura de Magritte, La cascade,
a distância entre real e representação não se dá em distância espacial. O real
tenta absorver a sua representação, transformar o que fora pintado em matéria
viva de folhas. Em algum momento a representação desaparece e a pintura de
dentro da pintura volta a ser matéria orgânica. Não para nós, do outro mundo
real. Para nós, tudo é um jogo das representações.
DOS LUGARES OUTROS
Depois da passagem percorrida, chega-se, então, ao lugar da
representação. Que lugar é esse, onde as imagens brincam distraídas dos seus
16
BLANCHOT. O espaço literário. p. 257.
17
BLANCHOT. O espaço literário. p. 255.
42
objetos? Blanchot falaria da morte, falaria de algumas possíveis relações
cadavéricas, de semelhanças, de estar aqui e em vários lugares. Há, em um de
seus textos
18
, algumas palavras sobre os restos mortais, os quais muito se
aproximam da imagem representada: algo está aí diante de nós, que não é
bem o vivo em pessoa, nem uma realidade qualquer, nem o mesmo que o que
era em vida, nem um outro, nem outra coisa
19
. Penso que depois do instante
de passagem, quando o objeto já não é mais feito de sua matéria anterior,
quando se transforma em imagem, quando altera até seu próprio nome –
penso, então, que é outro o lugar da sua presença. Nada mais pode se
procurar, nele, do objeto anterior. Tudo se alterou. Blanchot fala da morte que
suspende a relação com o lugar. Talvez seja a suspensão mesma do objeto
refletido numa cópia. Não é muito fácil trazer ao lado da representação a
idéia de morte, mas é possível entrever algumas semelhanças reais entre as
suspensões espaço-temporais que as duas impõem aos objetos.
A representação altera a natureza da coisa representada, assim como a
palavra não é a coisa que ela nomeia. A palavra está no lugar da ausência do
objeto, assim como a representação. Blanchot traça toda uma relação entre a
morte e a linguagem no texto A literatura e o direito à morte
20
. Ele começa
analisando a palavra pronunciada, com o aniquilamento da existência da
coisa, e o que acontece no instante da voz: quando digo “essa mulher”, a
morte real é anunciada e já está presente na minha linguagem
21
. Ao
pronunciar o nome, a coisa nomeada se desfaz, vira a ausência dela mesma. A
palavra está no lugar desta coisa, ocupa o espaço vazio.
18
BLANCHOT. As duas versões do imaginário. In: O espaço literário. p. 255-265.
19
BLANCHOT. O espaço literário. p. 258.
20
BLANCHOT. A parte do fogo. p. 289-330.
21
BLANCHOT. A parte do fogo. p. 311.
43
A palavra me dá o que ela significa, mas primeiro o suprime. Para
que eu possa dizer: essa mulher, é preciso que de uma maneira ou
de outra eu lhe retire sua realidade de carne e osso, que a torne
ausente e a aniquile. A palavra me dá o ser, mas ele me chegará
privado de ser. Ela é a ausência desse ser, seu nada, o que resta
dele quando perdeu o ser, isto é, o único fato que ele não é.
22
Retirar a realidade das coisas e transformá-las em palavras, jogar com o
abismo que existe entre ambas, contornar linhas, riscar muros de pedra,
transformar toda a linguagem em matéria viva. Existe um lugar de passagem
entre a coisa e a palavra. É um lugar neutro, arenoso, um lugar onde alguma
coisa se perde, onde a própria linguagem se perde. E, aqui, este lugar depois
da passagem: a palavra, a imagem representada, os jogos da ficção – onde nos
perdemos cada um de nós.
DA CONDIÇÃO HUMANA
La condition humaine
23
é o nome de uma
série de pinturas de René Magritte a partir
de um mesmo tema: o real e a
representação. Para tanto, o artista
dispunha de um mesmo procedimento: a
inserção de um cavalete e um quadro com a
continuação da imagem do “real” da
pintura. Pergunto-me, aos poucos, sobre o
título dessas obras: a condição humana.
22
BLANCHOT. A parte do fogo. p. 310-311.
23
La condition humaine também é o título de um livro de André Malraux, de 1933, mesmo
ano desta pintura de Magritte.
44
Por vezes, tenho a impressão de que ele fala do nosso olhar, da nossa
percepção possível ao alcance do que está a acontecer na imagem. Qual a
nossa condição para perceber de que real se fala? Todos os reais possíveis
estão embaralhados, e entre eles também as representações e as ilusões da
imagem. É um jogo.
Nessa versão de 1933, como nas outras, a pintura se propõe a refletir o
que está por trás da representação, se há, ali, o mundo dito real, ou se é
apenas um truque para nos fazer crer que as coisas, de fato, se repetem. O que
está na pintura dentro da pintura, suspensa num cavalete, pode não
representar o que há atrás dele. Poderia haver ali um buraco, uma quebra na
paisagem. Acreditamos por um momento que estamos a ver com exatidão a
continuação do que o cavalete nos impede de olhar. Mas tantas outras coisas
podem estar a acontecer ali, atrás daquele quadro, atrás daquela janela. A
própria representação é um jogo, é um mistério. Nunca se pode confiar numa
imagem representada. Não se pode saber o que ela quer falar e quais os seus
artifícios.
Volto o pensamento à condição humana. E me questiono sobre o que
essa condição trata, se é possível que se fale do olhar perdido entre tantas
formas de representação, ou se é da percepção que se fala, da capacidade um
pouco inexata que temos, de perceber os jogos de imagem, os reflexos no
espelho, as pinturas em meio ao real. Este real sem definições, real em que
vivo, real como cotidiano palpável, mas também o real de além da imagem do
espelho. Por vezes é preciso olhar e nada tentar compreender. Talvez seja
essa a única condição.
45
Poder-se-ia falar também de duas outras pinturas para se pensar a
representação. Na primeira, intitulada L’appel des cimes, de 1943, há
presumivelmente uma montanha de gelo. Há um cavalete, há a continuação
representada da imagem. Sim, Magritte já havia feito isso em outras pinturas,
mas o fato é que se olharmos bem, de repente percebemos o cavalete sobre um
palco. Há uma cortina. Pensamos em uma encenação. Mais uma vez, o pintor
brinca com a nossa capacidade de percepção. Mais um real é posto à prova
agora. O real do lugar de onde se produz um quadro. O real daquele palco
com aquelas cortinas pintados por Magritte.
Na segunda pintura, La clef des champs, de 1933, algo diferente
acontece na imagem. A janela se parte. A janela através da qual se via o real.
Ao se partirem, os cacos de vidro levam, junto a eles, pedaços do real
representado. Nada se perde do que se vê através da janela, mas a imagem
fica impressa nos vidros partidos. A imagem representada é autônoma e
distante do real. É feita de outra matéria. O real que se parte não é o mesmo
que fica para além do olhar.
46
Uma paisagem dentro
de outra paisagem, La belle
captive. Basta um instante
mínimo para o olhar, e
percebemos que as paisagens
se repetem, embora não
possamos ver a repetição.
Dentro de um quadro, um outro quadro é pintado. Se pensarmos no pintor
Magritte diante da paisagem real, entrevemos um jogo de espelhos, em que
detalhes da imagem maior vão se repetindo infinitamente. O procedimento
utilizado por Magritte é muito simples: apenas algumas linhas definem a
presença de um cavalete na imagem pintada. Mas o que há de simples no
procedimento da pintura, talvez não haja na compreensão da importância do
tema trazido à tona pelo artista. De repente, estamos diante, não mais de uma
pintura convencional, de uma paisagem retratada. Estamos, sim, dentro de um
jogo de imagens superpostas, de imagens enganosas, de representações
múltiplas. Estamos diante de um abismo. Nosso olhar acostumado a entender
a representação e seus caprichos, cai numa rede montada por Magritte e por
um simples cavalete pintado numa paisagem. De que representação se fala?
pergunta o espectador perdido nas tramas da imagem. Nada se pode saber.
Perguntamo-nos o que há por trás do quadro montado no cavalete. Nós
queremos acreditar que a imagem real seria a da pintura, mas nunca se sabe.
A representação é, também, um jogo de mentiras.
47
DO BOM SENSO
Sobre um quadro está
disposta a natureza-morta.
Morta sobre ele, estática, a
natureza-viva em objetos reais,
em objetos pintados acima do
quadro. O tema dessa pintura
se enquadra no que há de mais tradicional na história da arte: um arranjo com
frutas suculentas e um vaso; a disposição bem arranjada, o verde, o vermelho
e o amarelo que constroem um outro e novo olhar sobre a representação de
cada alimento. O quadro emoldurado, perfeito para a natureza-morta, perfeito
para compor a história desse gênero de pintura.
Mas o quadro está em branco, emoldurado, sem que imagem alguma
tenha sido pintada nele. O quadro está sobre uma mesa e não dependurado na
parede, à altura convencional do olhar. E sobre esse mesmo quadro, por cima,
por fora, a natureza-morta, as frutas compostas para a pintura. Diante do que
seria a mais convencional das imagens, uma pergunta: o que aconteceu?
Magritte nos responde com Le bon sens: as frutas e o vaso nada mais
são do que uma representação, e agora eles estão sobre o quadro que
reproduziria suas imagens. Não é mais, portanto, representação, ali estão
como objetos reais. Entretanto olhamos esta cena de fora de outra pintura.
Não compartilhamos o mesmo espaço que a mesa, o quadro emoldurado e os
outros objetos. As frutas retiradas de dentro do quadro emoldurado não são
reais para nós. Há, portanto, alguns jogos de representação dentro da pintura
48
de Magritte. Os objetos foram retirados do espaço da representação (as frutas
e o vaso), porém tornados novamente representação a partir de um outro ponto
de vista.
O que dizer então desses espaços relativos da representação? As frutas
estão representadas para nós, mas da imagem que se vê dentro do quadro, em
especial em relação àquele quadro que está sobre a mesa, elas poderiam ser
consideradas reais. Creio que nos perdemos em meio a tudo isso, quase chego
a crer também que a representação é um jogo de pontos de vista. Tudo se
altera à medida que caminhamos pela imagem, este entrar e sair, o mergulho
do olhar, deste corpo fictício que também criamos para penetrar nas brechas
do real.
DOS PEDAÇOS DA IMAGEM
E alguns anos depois de afirmar
que aquilo não era um cachimbo,
Magritte nos surpreende com outra
afirmação: Ceci est un morceau de
fromage. Agora é um objeto o que ele
constrói, com uma pequena pintura de
um pedaço de queijo que ele coloca,
emoldurada, dentro de um recipiente próprio para o alimento representado. O
artifício é simples, um jogo de deslocamentos e cópias. Ele pinta o pedaço de
queijo, não é nem mesmo um objeto construído no formato do queijo, é uma
pintura e ele confirma isso ao colocar a moldura nela. Hora nenhuma Magritte
49
quer tirar os valores de pintura daquele pequeno quadro. Pois bem, então
temos uma pintura. Mas o lugar onde ela se coloca nos é estranho. Não está
dependurada à parede, à altura do nosso olhar, como seria convencional, como
era exposta cada pintura do artista. Não, agora a pintura tomou o lugar do
objeto real que ela representa. Se ela é a cópia do queijo que deveria estar no
lugar dela, então me pergunto onde estará o objeto real. E sendo somente uma
pintura, aquele pequeno quadro, por que colocá-la sob uma redoma de vidro?
Por que fazer da pintura um lugar reservado, fechado, intacto, e longe do
mundo real?
Alguma coisa muito significativa acontece quando a pintura toma,
enfim, o lugar do objeto que representa. Ela se impõe como pintura, não quer
parecer outra coisa, está emoldurada, ali, envolta por uma margem que a
distancia ainda mais do real, do recipiente de vidro que a contém, que a
guarda, talvez para que esteja ainda mais distante das nossas mãos. E é
Magritte quem afirma: Isto é um pedaço de queijo.
Sim, não sabemos a que ele remete exatamente quando diz a palavra
queijo. Poderia estar a falar da imagem de um queijo, ou do próprio alimento,
ou ainda de algo desconexo que é a própria linguagem, esta que jamais pode
se assemelhar à coisa nomeada. Sim, isto é um pedaço de queijo. Poderia
mesmo estar a falar que aquele jogo de representações e deslocamentos é um
pedaço que sobra do real, do alimento que originou a obra, isto é um pedaço
da imagem inicial, do objeto, é um pedaço da representação e dos jogos.
50
DOS LUGARES DE DEPOIS
E depois da representação, o que
acontece ao objeto que já se tornara imagem?
Nada se pode saber. Levo de volta o
pensamento a Blanchot e a seus mortos.
Depois da imagem cadavérica, depois do
enterro desta imagem, o que fica para além
das recordações da existência de um objeto ou
de alguém? Há uma passagem de escrita em
Blanchot:
O querido desaparecido é, portanto, transportado para um outro
lugar e, sem dúvida, é um local que só simbolicamente está
afastado, que é certamente situável, mas também é verdade,
entretanto, que o aqui do “aqui jaz”, repleto de nomes, de
construções sólidas, de afirmações de identidade, é o lugar anônimo
e impessoal por excelência, como se, nos limites que lhe foram
traçados e sob a aparência vã de uma pretensão capaz de sobreviver
a tudo, a monotonia de uma desagregação infinita agisse para
apagar a verdade viva própria de todo o lugar e para torná-la igual
à neutralidade absoluta da morte.
24
De que lugar anônimo aqui se fala, senão do lugar de depois? Um lugar
para além da imagem. Há uma pintura de Magritte chamada L’au delà. Nela
há um céu extenso e um túmulo. Neste túmulo, não há inscrição alguma. O
lugar é árido, possivelmente um deserto. Parece vazio, parece distante. É o
lugar, eleito por mim, para a morte das imagens. Ali, não há o aqui do “aqui
jaz”, ali não há linguagem. A lápide sem inscrição parece à espera de um
24
BLANCHOT. O espaço literário. p. 261.
51
nome, à espera de uma função silenciosa. Lembro-me novamente de Blanchot
e da morte ao lado da palavra pronunciada. São palavras dele: Para falar,
devemos ver a morte, vê-la atrás de nós. Quando falamos, nós nos apoiamos
num túmulo, e esse vazio do túmulo é o que faz a verdade da linguagem (...)
25
.
Para falar, é preciso estar diante da morte, ou de costas para ela. É preciso
que morra alguma coisa. E ali, a lápide vazia. Na palavra, morre o que dá
vida à palavra; (...) algo estava ali e não está mais. A ausência, a
constatação: algo desapareceu
26
.
A imagem de Magritte também poderia ser um pedestal, o lugar onde se
ergue alguma coisa. E ali não há nada. O que pensar, então, de um pedestal
que se ergue vazio? Que função agora pode exercer sem nenhum objeto por
ele sustentado? Será que o além de que fala Magritte não quer dizer deste
lugar de ausência de uma imagem erguida e mesmo sacralizada pelo pedestal?
Agora está lá, vazio, só, num meio árido, sem que nada mais possa sustentar.
Vazio, sem inscrições ou objetos. Em lugar nenhum.
Não sei quais são os lugares de depois da imagem. Posso contornar,
apenas, suas distâncias e seus jogos de representação. Posso ser um jogador.
Nada mais. Não basta saber olhar a repetição e reconhecer o que se
representa. É preciso percorrer as distâncias e chegar aos outros lugares. No
depois. Além de todas as imagens.
25
BLANCHOT. A parte do fogo. p. 323.
26
BLANCHOT. A parte do fogo. p. 314-315.
52
ATLAS DO IMPOSSÍVEL:
OS JOGOS CONSTRUÍDOS NA OBRA DE MAGRITTE
ATRAVÉS DE UMA POSSÍVEL LEITURA DE FOUCAULT
53
SOBRE PALAVRAS E ILUSÕES VAZIAS
Do impossível, sim, das impossibilidades construídas à beira de nada.
Pego pelas mãos o atlas de Foucault e entro, com ele, no jogo de Magritte.
Somos três. As palavras se constroem sozinhas, elas nada dizem além do
corpo gráfico que carregam. Listas, enciclopédias, poemas rasgados. Imagens
possíveis e distantes do real que vemos a olhos nus. Vejo cada imagem
representada com os olhos abertos e precisos, sei que ali acontece alguma
coisa que mal posso notar. É uma ilusão.
A ORDEM SECRETA DAS COISAS
Também uma certa ordem muda, diria Foucault. A ordem desconhecida
e realizada todos os dias pelos homens. A necessidade – desde os primórdios
de uma civilização qualquer – a necessidade de se fazer classificar cada
objeto encontrado. Saber os lugares a que pertencem, a matéria de
constituição, as funções. A ordem é silenciosa, sim, nada sabemos da ordem
das coisas. Não somos parte delas para entender os sistemas que as explicam,
as denominam e as selecionam. Sim, somos nós os classificadores. Mas de
repente nos perdemos em meio a nomes e funções. Por que um objeto tem tal
nome e não outro? Sim, a arbitrariedade dos signos. A arbitrariedade de cada
escolha feita. Nada podemos saber, nós, do que um nome altera no objeto. Se
foi Adão quem primeiro definiu os nomes, então estaremos ainda mais
distantes de entender os motivos. Não, não há motivos. Os nomes pertencem
às coisas sem que nada alterem nelas. Ou será que alteram? Nunca saberemos
54
nós, acostumados a viver em meio a tantas conexões, a tantas explicações e
ordenações de um mundo construído à beira do caos. À beira do cais. Um
porto sempre por chegar. Nada sabemos, ainda.
A ordem é ao mesmo tempo aquilo que se oferece nas coisas como
sua lei interior, a rede secreta segundo a qual elas se olham de
algum modo umas às outras e aquilo que só existe através do crivo
de um olhar, de uma atenção, de uma linguagem.
27
A rede secreta – também a mudez dos sistemas classificatórios, o
silêncio da ordem, dos objetos, das coisas dispostas pelo mundo. Somente
através de um olhar que escolhe e define, de uma atenção para essa escolha e
do uso da linguagem, pode-se então ordenar o mundo. E somos nós, pobres
portadores da voz, da escrita, somos nós os ordenadores do caos, das coisas
soltas e perdidas. Somos nós os ordenadores da linguagem no papel, do
discurso vivo, das palavras nomeadoras. Escolhemos e definimos as funções,
as letras, os lugares a que pertence cada objeto no mundo.
FOUCAULT E MAGRITTE, AS CARTAS
Em meados da década de 60, logo após ler Les mots et les choses, de
Foucault, Magritte inicia com ele uma troca de correspondências, que duraria
pouco tempo, já que Magritte morreria um ano após. No entanto, elas são
muito significativas e Foucault resolveu colocá-las anexas à edição de 1973
do seu texto Ceci n’est pas une pipe. A primeira edição foi em 1968, ainda
sem as cartas e sem alguns desenhos de Magritte.
27
FOUCAULT. As palavras e as coisas. p. XVI.
55
Na primeira carta, datada de 23 de maio de 1966, Magritte argumenta,
estimulado pela leitura de Les mots et les choses, não existir semelhanças
entre as coisas, mas sim similitudes. Ele diz que só ao pensamento é dado ser
semelhante. Também traz à discussão um de seus temas favoritos: o visível e
o invisível, discutindo Las meninas, ao dizer que esta pintura é a imagem
visível do pensamento invisível de Vélazquez
28
. Ele insiste em afirmar, como
já havia feito ao longo da sua vida, que a pintura nada esconde, que tudo está
à beira da visibilidade. Em 1960, Magritte afirma:
Questões como “o que esse quadro significa, o que ele representa?”
são possíveis apenas se não se é capaz de ver um quadro em toda a
sua verdade, apenas se automaticamente se entende que uma
imagem precisa não mostra precisamente o que ela é. É como
acreditar que o sentido implícito (se há algum) tem mais valor do
que o sentido evidente. Não há sentido implícito nas minhas
pinturas, a despeito da confusão que atribui significado simbólico à
minha pintura. Como alguém pode gostar de interpretar símbolos?
Eles são substitutos úteis tão-somente para uma mente incapaz de
conhecer as coisas elas mesmas. Um devoto da interpretação não
pode ver um pássaro; ele o vê apenas como um símbolo.
29
Ainda na carta a Foucault, Magritte conclui: Não cabe conferir ao
invisível mais importância do que ao visível, ou inversamente
30
. E diz que, de
fato, não falta importância para o mistério que os dois evocam. Magritte
sempre fora contra as interpretações de qualquer espécie. Sua preocupação era
tornar o pensamento visível e fazer da pintura um lugar de pura visibilidade.
O que você vê é o que você vê, o mistério das coisas está na própria imagem
cotidiana delas, no que vemos todos os dias e nunca nos damos conta do que
ali acontece.
28
MAGRITTE. In: FOUCAULT. Isto não é um cachimbo. p. 82.
29
MAGRITTE. In: SYLVESTER. Magritte. p. 77.
30
MAGRITTE. In: FOUCAULT. Isto não é um cachimbo. p. 83.
56
A QUE SE REFERE A FRASE ESCRITA NO QUADRO?
É Foucault quem se faz a pergunta, em palavras trêmulas, diante do
enigma magritteano. A que se refere cada palavra colocada sob as coisas? Em
La clef des songes, Magritte nos propõe nomes diferentes para os objetos e
com isso nos diz: qualquer um basta. Percebemos, então, os jogos arbitrários
da linguagem, das primeiras nomeações. Percebemos, mesmo, que de qualquer
forma tudo está fora do lugar, os objetos são mera representação do mundo
real e os nomes corretos em nada conectar-se-iam com as imagens pintadas.
E agora, diante dos nossos
olhos perdidos, um cachimbo. Diria
Foucault: Nada mais fácil de
reconhecer do que um cachimbo
desenhado como aquele
31
. Foucault
também fala sobre a simplicidade
da imagem, de como ela se parece
uma página tomada de um manual de botânica: uma figura e o texto que a
nomeia
32
. Mas se olharmos bem, toda a estrutura didática cai, em um instante
apenas: Ceci n’est pas une pipe. Depois disso nada mais pode ser reconhecido
tão facilmente. É o artista quem nos alerta: La trahison des images. A traição
dos sistemas de representação.
Magritte tira do cachimbo a possibilidade de ser um cachimbo. Logo
nos confrontamos com a seguinte conclusão: isto não é, de fato, um cachimbo,
senão uma representação dele. Resposta óbvia e imediata. E assim, nos
31
FOUCAULT. Isto não é um cachimbo. p. 19.
32
FOUCAULT. Isto não é um cachimbo. p. 19.
57
sentimos livres de um problema a se pensar. Para Foucault não há tréguas.
Nada pode ser tão simples quanto à primeira conclusão tirada. Isto não é um
cachimbo, sim, mas a que se refere o pronome demonstrativo? Isto o quê?
Não poderia haver contradição a não ser entre dois
enunciados, ou no interior de um único e mesmo
enunciado. Ora, vejo bem aqui que há apenas um, e que
ele não poderia ser contraditório, pois o sujeito da
proposição é um simples demonstrativo.
33
Foucault nos propõe algumas respostas possíveis. Isto poderia se referir
ao próprio enunciado: Eu (esse conjunto de palavras que você está lendo) não
sou um cachimbo
34
. Ou então o Isto poderia se referir, de fato, ao desenho: a
imagem de um cachimbo não é um cachimbo. Também poderíamos ler assim:
o desenho de um cachimbo não é a palavra cachimbo. Bom, desenvolvendo o
raciocínio um pouco mais, Foucault propõe: Isto, o enunciado Isto não é um
cachimbo, não é um cachimbo (objeto real ou desenho).
É preciso, portanto, admitir entre a figura e o texto toda uma série
de cruzamentos; ou, antes, de um ao outro, ataques lançados,
flechas atiradas contra o alvo adverso, trabalhos que solapam e
destroem, golpes de lança e feridas, uma batalha. Por exemplo:
“isto” (este desenho que vocês estão vendo, cuja forma sem dúvida
reconhecem e do qual acabo de desatar os liames caligráficos) “não
é” (não é substancialmente ligado a..., não é constituído por..., não
recobre a mesma matéria que...) “um cachimbo” (quer dizer, essa
palavra pertencente à sua linguagem, feita de sonoridades que você
pode pronunciar e cujas letras que você lê neste momento
traduzem).
35
Uma batalha. Assim é possível se aproximar um pouco mais de uma
definição do que seria o encontro de texto e imagem. É um jogo que acontece
na região incerta que separa os dois, neste espaço branco e arenoso, em que
33
FOUCAULT. Isto não é um cachimbo. p. 20.
34
FOUCAULT. Isto não é um cachimbo. p. 29.
35
FOUCAULT. Isto não é um cachimbo. p. 29.
58
Foucault supõe o apagar do “lugar-comum” entre os signos da escrita e as
linhas da imagem
36
. Tantas voltas da linguagem para que, ao fim, ele chegue
à conclusão: Em nenhum lugar há cachimbo
37
.
Em 1952, Magritte, com um sorriso de canto de boca, insiste: Isto
continua a não ser um cachimbo. Isto
o quê, Foucault? – perguntamo-nos
quase impacientemente. O quadro,
cada uma das palavras, o enunciado?
Ficamos um pouco em silêncio a
esperar alguma resposta.
Anos mais tarde Magritte pintaria novamente o cachimbo. A mesma
imagem, a mesma inscrição sob o objeto representado. Mas desta vez o que
seria seu primeiro quadro de 1929 está dentro da pintura. Les deux mystères:
o primeiro deles talvez se refira ao
quadro dentro do quadro, algo bastante
discutido por Magritte e sua obra ao
longo da vida. O segundo mistério
talvez diga respeito ao objeto que
sobrevoa a pintura dentro da pintura,
aquela forma flutuante de um
cachimbo.
Foucault pensa naquela pintura dentro da pintura como uma espécie de
quadro-negro. Como se, ali, escrita a frase, desenhada a imagem, restasse um
erro:
36
FOUCAULT. Isto não é um cachimbo. p. 33.
37
FOUCAULT. Isto não é um cachimbo. p. 34.
59
(...) talvez, uma esfregadela de pano logo apagará o desenho e o
texto; talvez, ainda, apagará um ou outro apenas para corrigir o
“erro” (desenhar alguma coisa que não será realmente um
cachimbo, ou escrever uma frase afirmando que se trata mesmo de
um cachimbo). Malfeito provisório (um “mal-escrito”, como quem
diria um mal-entendido) que um gesto vai dissipar numa poeira
branca?
38
Um erro, talvez, mas não importa: sabemos bem o que vemos e
conhecemos o homem que propôs a questão. Magritte trouxe um novo
problema a ser discutido pouco antes da sua morte. Toda a sua obra foi,
afinal, um mesmo questionamento: a que se refere a frase escrita no
quadro?
39
De que cachimbo, agora, se fala? Do objeto representado no quadro
preso ao cavalete, ou do cachimbo flutuante no céu da imagem? E afinal o que
é este objeto, essa forma opaca em que reconhecemos um cachimbo apesar das
proporções estranhas e do lugar sem lugar em que ele repousa?
Foucault se perde nas incertezas da pintura. Chega mesmo a questionar
se aquela forma de cachimbo na parte de cima do quadro não seria a fumaça
solta pelo cachimbo de dentro da pintura onde há o enunciado. Ele se perde
entre a flutuação de um cachimbo diante da estabilidade do outro. Foucault
não está seguro nem das próprias incertezas. Nem eu. Sei que nesta pintura,
mais do que reafirmar algum jogo entre imagem e linguagem que já havia
desenvolvido, aqui Magritte quer fechar, de maneira sutil e complexa, a
questão iniciada em 1929 quando pintou La trahison des images. Não,
engano-me, ele não quer fechar, mas ainda colocar à prova suas teorias sobre
representação. Teorias que ele desenvolveu com imagens ao longo da sua
obra. Magritte foi um artista que se utilizou da própria representação, da
38
FOUCAULT. Isto não é um cachimbo. p. 12.
39
FOUCAULT. Isto não é um cachimbo. p. 13.
60
pintura, para promover todo um questionamento do mundo das imagens
representadas. Pouco trabalhou com textos teóricos ou objetos. De dentro da
própria pintura ele encontrou o lugar mais potente para discutir esta questão
que foi, e ainda é, uma das mais caras à arte: a representação e seus jogos.
DA PAISAGEM COMPOSTA EM PALAVRAS
Nas duas pinturas, uma mesma cena: um personagem perdendo a
memória e um corpo de mulher. Le monde perdu. Criamos a imagem através
das palavras escritas sobre formas opacas, conectadas por traços também
informes. De um lado está quem perde a memória, sustentado talvez pelo
corpo de mulher. Ou o contrário, nada podemos saber da imagem além das
palavras que nos são dadas. Foucault perguntaria à imagem: mas a que as
palavras se referem? Alguma coisa torna essas imagens-palavras estranhas.
Um corpo de mulher e ao lado um personagem perdendo a memória. Ele não é
real, este personagem? Será apenas uma representação de alguém a perder a
memória? Ou, será que o corpo de mulher participa de alguma atuação na
imagem, junto ao personagem? As palavras são claras, mas imprecisas. Temos
61
uma imagem sem que nada possamos saber dela. Do lado de cá da imagem,
onde estamos, poderia estar escrito: personagem perdido.
Mas nas duas pinturas ainda acontece algo diferente. Na primeira delas,
vemos as imagens do personagem e do corpo de mulher de frente, temos uma
paisagem ao fundo, parece o alto de uma montanha, com uma vegetação em
torno. Na segunda pintura, existem outros elementos presentes, nomeados. Já
não estamos mais diante de uma paisagem, isso parece ser um mapa, a planta
de um lugar. Há duas novas palavras: paisagem e cavalo. Ali, no canto,
delimitado por um círculo negro está ele, o cavalo. A paisagem está por toda
a parte. A forma que sustenta o personagem perdendo a memória e o corpo de
mulher é a mesma nas duas pinturas, parece apenas que se coloca em cenários
diferentes. Ou talvez seja o mesmo, visto de ângulos distintos. Assim
diferentes a ponto de podermos ver um cavalo que não víamos na outra
pintura. Mas de que cavalo se fala se não podemos identificá-lo com o olhar?
De que paisagem, de que personagem e de que mulher se fala? Nada podemos
ver, novamente as certezas e as próprias incertezas estão embaralhadas.
Mesmo que ali víssemos as formas e contornos exatos que as palavras
propõem, ainda assim elas estariam enganadas. Porque jamais um nome está
no lugar de uma imagem, ou uma imagem representada é igual ao objeto, sem
que todo um processo já tenha alterado a natureza do real. A palavra entra no
lugar das coisas e as modifica. Inevitavelmente. É preciso que nada reste do
objeto para que ele se torne palavra pura. Talvez nada daquilo exista, o
personagem, a memória, a mulher, o cavalo. Talvez jamais tenham existido.
Sabemos os nomes, as palavras que designam a cena, a imagem que pensamos
ver, que construímos com nosso senso comum. As palavras não estão erradas,
62
elas simplesmente pertencem a uma outra natureza e podem, também, criar
tudo o que quiserem.
A
PERTURBAÇÃO DO LUGAR-COMUM
Um homem diante de uma
paisagem. Ele está sozinho. Se
olharmos bem, parecer-nos-á um
pouco insólito o fato de haver
uma poltrona ao lado de um
cavalo. Ali, o horizonte. O céu
com alguma nuvem e um fuzil
ao lado esquerdo do homem. Uma mera paisagem.
No lugar das coisas, uma mancha. Sobre cada mancha, a palavra. A que
se refere cada significante escrito sobre os buracos de cor? Buracos que
projetam sombra na paisagem. Talvez Magritte esteja apenas a nomear as
coisas – as imagens exatas são substituídas pelo nome. Mas qual nome? Por
que nuvem ao invés de céu? Ao invés de chão? Por que poltrona ao invés de
espelho, ao invés de mulher? Magritte fez algumas escolhas, escreveu
palavras que quase nada dizem a respeito da paisagem diante daquele homem.
Poderia ser qualquer palavra. Todas. Nenhuma. Poderia mesmo ter um homem
escrito. Magritte faz um homem-imagem aparecer diante da paisagem isolada.
Ele não é palavra. Personnage marchant vers l’horizon. Ele é quem caminha
entre as palavras escritas.
63
Segundo Foucault, nesta pintura as palavras não se ligam diretamente
aos outros elementos picturais, são apenas inscrições sobre manchas e
formas
40
. As palavras talvez nada queiram dizer a respeito das formas sobre as
quais estão inscritas. Foucault nos diz que, embora cada elemento nomeado
esteja onde deveria estar, a nuvem ao alto, o horizonte ao longe – ele nos diz
que nesse lugar familiar as palavras não substituem os objetos ausentes: não
ocupam ocos ou lugares vazios
41
. Essas manchas, segundo ele, são apenas
massas espessas, volumosas, espécie de pedras ou menires cuja sombra
projetada se alonga sobre o solo ao lado da do homem
42
. Por que haveríamos
de relacionar nomes e manchas? Talvez as palavras só estejam a jogar com o
espectador, fazendo-o acreditar que os objetos se distribuem pela escrita
numa paisagem qualquer. Foucault chama as manchas de “porta-palavras”,
algo que segura um significante sem que, com isso, tenha a disposição de ser
a imagem.
Mas, se a linguagem não mais se assemelha imediatamente às coisas
que ela nomeia, não está por isso separada do mundo; continua, sob
uma outra forma, a ser o lugar das revelações e a fazer parte do
espaço onde a verdade, ao mesmo tempo, se manifesta e se enuncia.
43
Todo o tempo, vemos um certo jogo insólito entre o visível e o
invisível, entre o legível e o que não se pode ler. Mal podemos, nós, caminhar
sobre a superfície frágil das palavras em suspensão. Não sabemos qual o lugar
delas nem a que se referem. São manchas. Cada palavra cria um buraco na
coisa que nomeia.
40
FOUCAULT. Isto não é um cachimbo. p. 51.
41
FOUCAULT. Isto não é um cachimbo. p. 52.
42
FOUCAULT. Isto não é um cachimbo. p. 52.
43
FOUCAULT. As palavras e as coisas. p. 50.
64
DOS ESPELHOS E IMAGENS ERRANTES
65
Como se fosse possível não ver: para o passante, um jogo infinito de
reflexos. Mesmo ausente o sujeito, há uma imagem a ser repetida. Através das
possibilidades de ocupação, momentâneas ou também infinitas, uma marca se
imprime no espelho. Rastro de passagem, já invisível após o tempo da
repetição. Instantes recortados em um mínimo olhar: partilhar o lugar da
imagem. Percorrer, através dos espelhos, os espaços faltantes, beber o leite,
andar pelo corredor e descobrir o que é diferente nessa partilha – os caminhos
de Alice. Imagens errantes e partilhadas num labirinto de reflexos.
Como se fosse possível imaginar o espelho sem a própria imagem – sem
o sujeito que o espreita. Sem relações prováveis entre a virtualidade e o real
que do lado de fora respira. Imaginar um espelho sem luz, sem cores a serem
repetidas. Sem os objetos que se tornam infinitos através daquela luz.
Espelho de Borges – lugar monstruoso de repetição. Tal como a cópula:
tudo o que multiplica o número dos seres humanos é, de alguma forma,
monstruoso. O espelho duplica infinitamente as imagens, mesmo no escuro,
mesmo que ninguém esteja diante dele. Se ele se partisse no chão, ainda assim
continuaria a multiplicar o que está diante dele. A imagem do espelho não
corresponde ao objeto que diante dele se coloca, é um outro, nada mais fica
do objeto real. É um atravessamento, Alice sabia bem. É preciso percorrer os
corredores da imagem, percorrer as inversões, é preciso não voltar.
66
CALVINO, CARROLL E BORGES: TRÊS INSTÂNCIAS DO DUPLO
A cidade é Valdrada, construída à beira de um lago. O viajante, ao
chegar, vê sempre duas cidades: uma delas de cabeça para baixo. Tudo o que
acontece a uma das cidades, acontecerá à outra. Refletida no espelho da água,
Valdrada repete cada movimento de forma invertida. E a preocupação dos que
nela vivem não é quanto ao gesto consumado, mas à sua imagem especular. A
cidade repete não somente a fachada das casas que facilmente é refletida no
lago, mas cada armário e cada objeto que dentro delas se encontram.
As duas cidades gêmeas não são iguais, porque nada do que
acontece em Valdrada é simétrico: para cada face ou gesto, há uma
face ou gesto correspondente invertido ponto por ponto no espelho.
As duas Valdradas vivem uma para a outra, olhando-se nos olhos
continuamente, mas sem se amar.
44
A menina é Alice. Ela está meio sonolenta, a falar sozinha, sentada
numa poltrona. Conversa com a sua gatinha, que acabara de fazer
traquinagens. Durante a conversa, segura o bichinho diante do espelho e o
ameaça contra a própria imagem. Diz: e se não consertar essa cara já, eu lhe
faço atravessar para a Casa do Espelho. O que acharia disso?
45
. Então ela
conta as suas idéias sobre a Casa do Espelho. Conta para Kitty, a gatinha, que
as coisas trocam de lado e que nos livros as palavras estão ao contrário. Alice
também fica a se perguntar como seria o corredor refletido além do que se vê
e pensa que ele poderia ser completamente diferente. O leite do Espelho pode
não ser gostoso. Mas apesar de tantas perguntas, Alice atravessa: de repente,
o espelho ficou macio. E num outro instante, Alice já estava além dele. Tudo
44
CALVINO. As cidades invisíveis. p. 54.
45
CARROLL. Alice através do espelho. p. 137.
67
era muito parecido, mas um pouco mais desarrumado, com peças de xadrez
espalhadas pelo chão. Começara o jogo.
Em seguida começou a olhar em volta e notou que o que podia ser
visto da sala anterior era bastante banal e desinteressante, mas todo
o resto era tão diferente quanto possível. Por exemplo, os quadros
na parede perto da lareira pareciam todos vivos, e o próprio relógio
sobre o console (você sabe que só pode ver o fundo dele no
espelho) tinha o rosto de um velhinho, e sorria para ela.
46
O homem é Jorge Luis Borges, escritor da biblioteca infinita. Passa por
labirintos e espelhos como quem fizesse um caminho inevitável. Através da
escrita, do uso das palavras, Borges recria espaços virtuais. Ele torna o real
cheio de dúvidas e utiliza as informações para criar mecanismos de
especularizações em forma de complexos labirintos. O homem dos livros tem
medo do espelho. Pensa que há algo de monstruoso naquela superfície polida,
porque ela multiplica e divulga o ser humano. E qualquer outro objeto.
Mesmo os gestos escondidos nas casas – Valdrada, uma cidade invisível,
prova-nos isso. A cegueira não impedira Borges de ainda assim se relacionar
com o espelho, com a imagem duplicada, neste caso, apenas como uma idéia:
Me buscas e é inútil estar cego
47
. E mesmo a morte não impediria: Quando eu
estiver morto, copiarás outro / E depois outro, e outro, e outro, e outro... É
ele quem nos fala de uma suposta biblioteca e seus espelhos:
No vestíbulo há um espelho, que fielmente duplica as aparências.
Os homens costumam inferir desse espelho que a Biblioteca não é
infinita (se o fosse realmente, para que essa duplicação ilusória?);
prefiro sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o
infinito...
48
46
CARROLL. Alice através do espelho. p. 139.
47
BORGES. A rosa profunda. In: Obras completas. v. 3. p. 122.
48
BORGES. Ficções. In: Obras completas. v. 1. p. 516.
68
O espelho, embora um mero objeto cotidiano, cria através da sua
potencialidade um enorme labirinto de informações invertidas. Informações
desarrumadas. Alice, ao atravessar para o virtual, depara-se com peças de
xadrez no chão: o jogo, na realidade, já havia começado desde o momento em
que ela se olhara no espelho. Desde a duplicação da sua imagem e do espaço
da casa. Desde a possibilidade do atravessamento.
As duas Valdradas não se atravessam, permanecem à margem uma da
outra. Segundo Calvino, elas se olham nos olhos continuamente – e sem se
amar. Isso talvez signifique que, de fato, elas não se tocam. Apenas se
repetem. Caso se tocassem, virariam uma flor efêmera, tal como Narciso após
a morte. Alice, ao penetrar o espelho, não se toca. Ela se transforma numa
virtualidade. Não haveria, pois, o risco de também tornar-se flor. Ela
atravessa o real para atingir o outro. E na volta, a pergunta: Quem você pensa
que sonhou?
49
LE MIROIR MAGIQUE
Um espelho de mão cuja função é servir
como pequeno aparato ao olhar: próprio para
visualizar o rosto. Ou alguma outra parte do
corpo. Mas o que o espelho reflete é a escrita do
corpo pensado. Ele não nos permite ver qual
corpo exato se duplica na imagem, apenas remete
à palavra a informação de que há algo a ser
49
CARROLL. Alice através do espelho. p. 265.
69
refletido, embora as palavras não estejam invertidas. A dimensão do espelho
original, um objeto de mão, não corresponde à do espelho de Magritte. As
dimensões deste são de um corpo inteiro, tendo em vista os ladrilhos de um
possível banheiro cujo chão sustenta o objeto.
A idéia original do espelho que duplicaria fidedignamente uma imagem,
apesar da inversão especular, detalhe por detalhe, desta vez nos engana e nos
dá uma vaga promessa do objeto que ele refletiria. Magritte cria um jogo de
informações, entre palavra e objeto, subvertendo a noção primária de
espelhamento. Não se pode negar que há uma verdade neste espelho, embora
ele nos possibilite da imagem apenas seu nome, que não necessariamente se
liga a ela. Um nome que poderia se referir a qualquer corpo – um espelho sem
especificações, uma reflexão sem inversão da imagem.
É preciso não se enganar: num espaço em que cada elemento parece
obedecer ao único princípio da representação plástica e da
semelhança, os sinais lingüísticos, que pareciam excluídos, que
rondavam de longe à volta da imagem, e que o arbitrário do título
parecia ter afastado para sempre, se aproximaram sub-
repticiamente: introduziram na solidez da imagem, em sua
meticulosa semelhança, uma desordem – uma ordem que só lhes
pertence. Fizeram fugir o objeto, que revela a finura de sua
película.
50
O corpo refletido no espelho poderia ser o nosso. Poderia ser o
imaginado. Poderia ser o de uma figura no extra-campo da imagem pintada.
Lembro-me de Foucault ao falar sobre As meninas, de Velázquez: o quadro
como um todo olha a cena para a qual ele é, por sua vez, uma cena
51
.
Estamos, talvez, diante de nós mesmos ao olhar o espelho mágico pintado.
Mas, ainda assim, nunca teremos a certeza. Magritte faz questão de sempre
50
FOUCAULT. Isto não é um cachimbo. p. 54.
51
FOUCAULT. As palavras e as coisas. p. 17.
70
tirá-la do seu espectador mais sedento. Ainda é a voz de Foucault, diante de
Velázquez, que nos diz, aproximando de uma leitura do espelho de Magritte:
O espetáculo (...) é, portanto, duas vezes invisível: uma vez que
não é representado no espaço do quadro e uma vez que se situa
precisamente nesse ponto cego, nesse esconderijo essencial onde
nosso olhar se furta a nós mesmos no momento em que olhamos. E,
no entanto, como poderíamos deixar de ver essa invisibilidade, que
está aí sob nossos olhos, já que ela tem no próprio quadro seu
sensível equivalente, sua figura selada?
52
Como deixar de ver o que está ausente à imagem? Como não procurar
em torno do quadro, no chão da pintura, como não procurar o corpo humano?
Como não olhar para os lados à procura do invisível cego? O que não posso
ver está diante dos meus olhos.
LE MIROIR VIVANT
Fazer da linguagem um
lugar vivo de palavras: criar jogos
especulares entre as diversas faces
do real e possibilitar à palavra um
espaço de sentidos alteráveis.
Magritte se apropria de manchas
sem forma para identificar algumas
imagens. As palavras, cada uma delas, cria no leitor um reflexo de imagem: a
linguagem é um espelho vivo. E ao falar do espelho, não pensamos mais em
52
FOUCAULT. As palavras e as coisas. p. 4.
71
uma mera representação: a linguagem se altera e se transforma em fluxo de
imagem: reflexos instantâneos de um objeto.
As palavras no lugar das coisas poderiam corresponder às imagens no
lugar das coisas. A palavra é uma das formas possíveis de criar uma
duplicação do objeto. E não nos enganemos: duplicar envolve toda uma
subversão da condição original. O espelho vivo de Magritte nos faz pensar
naqueles que decretam a morte da palavra ao ser escrita. Para ele, a palavra
acaba por gerar um campo de potência para a discussão da imagem, das
representações e mesmo dos espelhamentos. Isto seria uma maneira
interessante de se pensar a relação entre texto e imagem – o espelho – onde
acontece, de fato, uma grande alteração, desde a visualidade até a ordem de
leitura. Mas sendo um espelho, haverá sempre uma distorção e com isso,
espaços não visíveis num primeiro olhar.
LE FAUX MIROIR
Um olho que reflete o que vê: espelho do real. A imagem vista não está
fora: como Alice, também atravessou o espaço que a reproduzia. Por que um
72
espelho falso? O olho pode se enganar? Talvez a ilusão venha do modo de
olhar e não da imagem duplicada.
O céu no olho do sujeito que o olha. Tradicional janela para o mundo, o
olho é um guardador de imagens instantâneas. Ele guarda e altera, faz da
imagem do céu, um pequeno espaço com nuvens. O olho percebe a imagem e a
deforma de acordo com a própria forma. O céu não está mais fora. A partir do
instante em que é percebido pela visão, rapidamente já se altera. O espelho é
um jogador que faz as coisas parecerem iguais. Um espelho é sempre falso.
Na primeira pintura (1928/29), uma particularidade: as nuvens não
passam diante da pupila. É como se a cor dos olhos registrasse o céu, como se
não fosse o céu diante do olhar, mas dentro. Na segunda versão (1935), o céu
está refletido, de fato, nos olhos. As nuvens passam diante da pupila, há ali
um céu em movimento e o olhar provavelmente se altera de acordo com o
movimento do que está fora, o próprio céu. Na obra de 28/29 o movimento é
estático, parece uma pintura sobre os olhos. Na de 1935, o céu é vivo nos
olhos, o movimento é visto e não se torna estático pelo olhar. Seis ou sete
anos passados entre uma imagem e outra e me pergunto se teria Magritte
escolhido esse novo movimento das nuvens por perceber que elas nunca
poderiam ficar paradas dentro dos olhos, ou se pretendia falar da
impossibilidade de o olhar apreender uma imagem viva por muito tempo.
Podemos olhar o mundo com os olhos atentos, porém sempre as imagens nos
escapam. Assim, como nuvens.
73
LA REPRODUCTION INTERDITE
De repente vem Magritte a nos dizer:
está tudo errado. Um homem olha e nada
acontece. A duplicação nada inverte. Há uma
repetição sem que qualidade alguma do objeto
real se altere. Não estamos mais a falar de um
espelho. Mas Magritte insiste: isto é um
espelho. Apenas foi negado a ele exercer sua
única função prática. O olhar não é devolvido.
Mas há uma imagem e ela é impossível.
Que faz parado aquele homem a contemplar uma imagem insólita?
Talvez esteja a participar do jogo do espelho. Se é proibida a reprodução, que
ao menos não se esmague a falsa cópia. Há sempre uma diferença, mesmo
ínfima, de espaço e tempo, que altera qualquer repetição. Que faz parado
aquele homem? Talvez já não esteja ali, estamos dentro de um jogo infinito de
reflexos e precisamos saber viver em meio à vertigem.
O livro está espelhado. O homem não. Ele tem a sua identidade negada.
Ali, não há um homem, apenas uma imagem pintada. Magritte novamente joga
seu jogo invisível, esfrega os enigmas da representação na nossa cara, desfaz
qualquer expectativa em torno da semelhança, da ilusão da cópia. No quadro,
o homem é espectador de si mesmo, ele vê a imagem que nós vemos. Uma
pessoa nunca pode olhar a si mesma senão numa representação. Num espelho.
Não há a possibilidade do olhar direto. Precisamos, enfim, de qualquer ilusão
do real para olharmos o próprio corpo.
74
LES LIAISONS DANGEREUSES
Voltado ao espectador, o espelho não
reflete o que está à sua frente. Ao contrário, ele
mostra o que está atrás dele, com ângulos
duvidosos, mas ainda é o corpo que o segura.
Poderia não ser uma única mulher, não sabemos,
de fato, se há outra pessoa diante do espelho
que a primeira segura. Mas se fosse, ainda
assim teríamos um espelhamento evidente,
temos dois corpos que se parecem e que se ligam na junção das imagens real e
virtual.
Mas o espelho não reflete somente o que ele esconde, o corpo. Ele
reflete uma parte deste corpo, que, de qualquer forma, não seria visível no
lugar onde o espectador está. A mulher utiliza o espelho para se esconder –
um paradoxo se pensarmos na função duplicadora do espelho. E a imagem que
o espelho nos devolve é uma outra postura da mulher, também a esconder o
próprio corpo. A imagem real e a virtual não se correspondem, mas o
movimento delas sim: esconder-se.
A imagem é notavelmente menor do que a própria mulher, indicando
assim, entre o espelho e o que ele reflete, uma certa distância que a
atitude da mulher contesta, ou é por ela contestada, apertando o
espelho contra seu próprio corpo para melhor escondê-lo.
53
53
FOUCAULT. Isto não é um cachimbo. p. 71.
75
A mulher vira-se de lado na imagem refletida. Poderiam ser duas
mulheres a se esconder uma da outra. Rosto baixo, uma delicadeza em se
mostrar. Na pintura, tudo se esconde num certo jogo de revelações. É quase
uma impossibilidade: ao se esconder, outra face é revelada. O espelho não
permite que nos escondamos por inteiro. Da sua duplicação, embora duvidosa,
não há como escapar. Do lado de cá, um espectador que passa diante da jovem
nua, procura entender o que está a acontecer com aquele corpo. A mulher se
esconde atrás de um espelho sem saber que, ali, também se esconde um
espaço infinito de duplicações.
E neste espaço das repetições, a sombra. A cabeça da mulher, as bordas
do espelho e as pernas têm as sombras projetadas na parede. Mas não a mão,
falta a sombra dela, da mão que segura o espelho. É Foucault quem diz:
[a forma da mão] faz falta como se, nessa sombra projetada, o
espelho não fosse carregado por ninguém. Entre a parede e o
espelho, o corpo escondido foi eliminado; no pequeno espaço que
separa a superfície lisa do espelho, que capta reflexos, e a
superfície opaca da parede, que recebe apenas sombras, não há
nada
54
.
Como se aquela sombra se ligasse a outro corpo, como se entre o corpo
no espelho, o que o segura e a sua sombra, nada se correspondesse. Ou talvez
seja mais um dos jogos da representação a dizer: não se engane, a repetição é
sempre diferente. Na sombra, nada mais resta do corpo original, tal como não
resta na imagem do espelho. Sim, entre a parede e o espelho, o corpo foi
eliminado. Alguma coisa sempre desaparece no instante da sua representação.
54
FOUCAULT. Isto não é um cachimbo. p. 71.
76
OS ESPAÇOS PARTILHADOS
Numa outra cidade invisível, Cecília
55
, há um encontro entre viajantes:
um reconhece a cidade, o outro só reconhece o que está fora. A cidade, para
este, é o que separa os pastos, para aquele, os lugares desabitados nada
dizem. Cecília é uma cidade contínua, atravessada por espaços diferentes,
reconhecíveis ora por uns olhos, ora por outros. Cada viajante se relaciona de
forma distinta com o espaço percorrido. Os espaços se misturaram – disse o
pastor. A certeza dos lugares começa a desaparecer ao longo do caminho.
Como os espelhos. Atravessamos continuamente os seus espaços.
Entramos e saímos das imagens sem notar as alterações sofridas: estamos
acostumados. Não conseguimos mais exclamar como o pastor: os espaços se
misturaram. Estamos dentro deles e tudo é potência.
Partilhar: os viajantes de Cecília nos ensinaram que os espaços
precisam ser percorridos. Não basta saber os nomes, é preciso perder-se.
55
CALVINO. As cidades invisíveis. p. 138, 139.
77
II
MAGRITTE E OS OUTROS
78
OS OUTROS E ELE
79
E agora também os outros, as obras postas lado a lado. Escolho uma de
Magritte e uma de um outro, um artista ou fotógrafo, moderno ou
contemporâneo. As imagens foram escolhidas por alguma semelhança que eu
via, fosse de tema ou de composição, talvez tenha sido apenas meu desejo de
encontrar essa semelhança e fazê-las próximas.
São textos breves. Um simples olhar para cada imagem. As palavras são
poucas e falam somente do que vejo. Outras leituras podem ser feitas, tantas
quantas palavras houver. Aqui, falo de mim.
E falo dele, de Magritte, falo através das palavras que conheci nele.
Não poderia mais levar meu olhar para longe, não saber de quem falo. Estas
leituras são o eco da imersão em sua obra. Deixo, agora, o texto livre para
chegar onde for.
80
Alec Soth . [Do projeto] Sleeping by the Mississippi . 2002
René Magritte . [cadeira] . instalação . 1945
Uma cadeira num canto qualquer. O lugar está vazio, é uma casa velha
talvez. A poeira no chão, escondida atrás da porta, traz-me a sensação de um
lugar deixado, abandonado, mas ainda vivo. A luz está acesa, há uma imagem
de mulher na parede. Ela é silenciosa e fria. Cabelos arrumados, imagem
posada, aquela mulher é a única presença na casa. Mas logo revejo a cadeira.
Ali, um pouco ressabiada, escondida de mim, do meu olhar aflito por uma
presença efetiva. Ela é estática, mas percebo, de repente, que a sua presença é
mais intensa que a da mulher na imagem. Esta é uma mera representação de
um corpo de mulher. A cadeira parece se colocar, num movimento, no lugar
onde está, parece fazer parte da casa, parece ser ela quem mantém a luz acesa.
Ela traz a presença de um corpo que talvez tenha se ausentado um instante. E
81
a poeira no canto da porta talvez seja apenas para dar a falsa impressão dessa
ausência.
Uma cadeira num canto qualquer. Deixada no meio das coisas,
desabitada. A cadeira subiu as paredes. Não poderia mais exercer sua função
estática de espera, de acolhimento, de presença silenciosa. Agora ela grita,
ela se mostra acima das outras coisas, subiu, subiu as paredes e está no teto
da galeria. Uma mostra de arte, quadros dependurados tradicionalmente nas
paredes, e uma cadeira no lugar errado. Talvez o nome daquele objeto não
seja cadeira. Segundo, talvez, o próprio Magritte, poderíamos chamá-la de
lustre, e então o objeto estaria no lugar adequado. Basta trocar os nomes e as
funções. Basta manter a linguagem e os seu objetos num lugar vivo, onde cada
coisa perde seu nome e função o tempo inteiro. Outros possíveis usos teria
aquele objeto pendurado no teto. Ou nenhum, talvez seja apenas uma imagem
do deslocamento de função. Pouco importa. Ao olhar para aquele objeto, meu
senso de visão, meu senso de lugar, tudo se altera de repente. E sei, logo
depois, que todos os objetos são livres e independentes das funções que, um
dia, lhes atribuímos.
E ao olhar para as duas imagens, para as duas cadeiras desabitadas das
suas funções originais, duas cadeiras que mais se parecem um corpo vivo, em
movimento, ora no canto da parede, ora junto ao teto, sinto-me como se
estivesse a olhar uma narrativa dela, criada por ela, a história de um objeto.
Dali do canto, escondida, ela mal pode olhar a casa. Dali de cima, ela mantém
o controle de todo o espaço da galeria. Não posso olhá-las sem sentir um leve
desconforto. O mundo dos objetos nos é impossível.
82
Brassaï . [O armário espelhado]. 1932
René Magritte . En hommage à Mack Sennett . 1937
O armário espelhado e nele um corpo de mulher. Não podemos ver o seu
rosto, apenas o corpo e sua carne, as dobras, a cabeça baixa. O corpo da
mulher não está no lugar onde o vemos. Está fora. É um corpo refletido, não é
real, a carne não pode ser tocada. Um homem olha a mulher. Está de braços
cruzados diante da imagem do corpo dela. Se virasse as costas, veria o corpo
real, a mulher próxima, tocável, sentiria mesmo o cheiro, tão perto ela está do
corpo dele. Mas, assim como nós, que olhamos através da distância da
reprodução, o homem a vê. No recorte do espelho há um corpo inteiro. A
nudez é ainda maior porque estamos na condição de voyeur, como aquele
homem. Nós a olhamos sem que ela possa saber, entretida que está a colocar
83
seu sapato, talvez. Estamos de braços cruzados diante da nudez de uma
mulher.
O armário espelhado e nele um corpo de mulher. A porta está aberta,
não é mais o reflexo do espelho do lado de fora. Há também uma porta
fechada, e através dela vemos que há um quarto vazio. Não há ninguém, não
há outros objetos. A porta está aberta. Há um corpo. Ainda mais possível em
forma de linguagem do que na imagem que carrega. É uma camisola, guardada
sozinha no armário, pendurada em um cabide como se estivesse exposta a
qualquer olhar passante. A porta não está semi-aberta, não foi um
esquecimento do último que ali passou. A camisola está à mostra, o
espectador não é mais um voyeur. Ele foi capturado propositalmente pela
imagem. E, na camisola, um par de seios. A nudez revelada pelo que deveria
escondê-la, guardá-la. Tudo nesta pintura é uma exposição. Um jogo de
esconde e mostra, a porta do armário aberta, o corpo aberto em meio à roupa.
A intimidade de mentira construída por um homem de fora da pintura.
E em cada porta de armário, em cada lugar que se possa mostrar ou
esconder alguma coisa, nos espelhos velados, a nudez. A nudez que tanto faz
parte deste jogo do esconder. Para que nada mais se veja, antes é preciso o
olhar. A nudez precisa ser tocada para que depois nada reste dela. Para que
nada mais se possa ver.
84
Ernst Haas . 1951
René Magritte . Le paysage isolé . 1928
O homem tem uma paisagem diante dos olhos. Uma paisagem que está
recortada em pequenos espelhos. O homem está sozinho nesta imagem em que
uma multidão se reflete em pequenos quadros. Nada é muito real diante dos
espelhos dependurados: o movimento de ir e vir, o movimento dos diversos
corpos que habitam o lugar atrás do homem. E, de repente, ele se vira para o
real da imagem espelhada. Ele, então, olha diretamente, agora não mais de
forma fragmentada, a multidão. O olhar nos parece uma tentativa de
confirmação: ele olha para trás e percebe que aqueles corpos são reais, eles
estão em movimento, e o tamanho menor que ocupam nos espelhos é apenas
decorrente de um jogo da imagem refletida. Ou, então, ele olha para trás e nos
vê, meros espectadores, nesse lugar que ocupamos a olhar.
O homem tem uma paisagem diante dos olhos. Há uma casa, há um
bosque, pedras, talvez um horizonte composto por montanhas, nuvens, o céu.
Diante desta paisagem, o homem, sozinho, diz: eu não vejo nada em torno da
85
paisagem
56
. Desta vez, o homem não se vira. Nada tem a confirmar em relação
ao que acontece atrás do seu corpo. Ele nada vê em torno da paisagem. Ele
nada vê de nós, espectadores, que procuramos alguma coisa que não se possa,
também, ver. Queremos saber do que se fala, do que não se pode ver. Não
podemos ver nem mesmo o rosto daquele homem, o homem que nada vê. Ele
não sabe que estamos atrás, não sabe que além da sua própria solidão, além da
linguagem que pode falar do que não é visto, além disso, existimos nós.
Existem muitos olhares em torno da paisagem.
E diante de qualquer uma delas, diante do olhar que lançamos à
multidão ou a um certo nada que, por sua vez, pode ser somente uma palavra
– através dos nossos olhos perdidos, das imagens encontradas, podemos
construir qualquer paisagem. Ela se refaz a cada novo olhar, os ângulos de
visão não se repetem, os reflexos, a paisagem vazia, a casa, os espelhos. Um
homem se vira. O outro talvez tenha fechado os olhos. O que podemos saber
de um homem quando não vemos o seu rosto? O que saber dos seus olhos, da
expressão? Talvez, sim, estivesse de olhos fechados e então nada veria. Nem
a paisagem, nem o próprio corpo. Talvez só existisse, ali, a linguagem, seu
discurso sozinho, as palavras feito pedras, palavras soltas da sua boca muda,
do seu olhar cego. O outro homem, diante dos espelhos e da multidão, usa
óculos. Ele vê. Ele busca a imagem. Ele se vira, olha para frente, para trás,
mantém seu corpo diante da imagem, também é imagem. Ele faz parte da
multidão que olha. O outro, olhos fechados, está em lugar nenhum.
56
Je ne vois rien autour du paysage.
86
Eva Rubistein . 1933
René Magritte . L’amour désarmé . 1935
Um pequeno espelho junto à parede. Ele pode me mostrar apenas um
canto do lugar onde está. De onde estou posso ver uma cama, vazia, uma cama
ainda quente, de onde um corpo acaba de sair. Algumas manchas na parede, a
luz que vem da rua – esse lugar parece abandonado à própria sorte. Como
talvez estivesse o corpo naquela cama, abandonado. Sabemos que há alguém
ali. Uma fotografia precisa do dedo do fotógrafo, mais do que do olhar, numa
lembrança de Barthes
57
. Talvez seja o corpo ausente quem se coloca diante da
imagem distante do espelho. O corpo talvez esteja de costas para a cama
vazia. Ele se ausenta dela, vê somente o seu reflexo em um pedaço de
espelho, que nada pode mostrar além de um lençol revirado sobre o lugar
vazio.
57
BARTHES. A câmara clara. p. 30.
87
Um pequeno espelho junto à parede. Ele me mostra um pequeno pedaço
da imagem que vejo logo abaixo. Essa mesma imagem que vejo representada e
que, por isso, já se encontra, para mim, fora do mundo real. Longe das coisas
tocáveis. A imagem é insólita, um par de sapatos e longos fios de cabelo que
se derramam sobre eles. Talvez se eu não visse esses objetos, se tivesse
somente a imagem refletida do espelho, num canto de parede, talvez pensasse
se tratar de um corpo de mulher. Ela que estaria abaixo da altura do espelho,
talvez de saída, talvez quase a se olhar. Ou deitada numa cama invisível à
imagem. Nada poderia saber daquela mulher e, embora ela não exista, ela
possui uma história. Os sapatos, os cabelos derramados, a história de uma
mulher que não está em parte alguma. Não temos certeza da imagem que
vemos, podemos acreditar no espelho, se quisermos, como o criador de uma
história possível. Tudo é um jogo de representação.
E junto à parede, sempre um espelho. Ele que toma apenas os pedaços,
que nunca pode refletir o espaço inteiro, nada pode saber do que acontece. Ele
que está sempre quieto, silencioso a produzir imagens, a repetir, a inverter, a
dissolver a realidade no seu vidro de sonho. Alguma coisa fica gravada nele,
por mais que tudo se perca no instante seguinte, no momento em que ele se
parte ou quando as luzes se apagam. Ele continua a repetir sua falsa cópia.
88
Florence Henri . Auto-retrato . 1928
René Magritte . La condition humaine . 1935
Um pequeno espaço e talvez o mar. Uma pessoa sobre o cais de madeira
refletida num espelho. Os espaços estão misturados. Olhamos a imagem e nos
perdemos nela. Vemos aquele espelho mas vemos a pessoa na distância virtual
dele, não podemos contemplá-la aqui, deste lado de cá, no plano real da
imagem. Talvez sejam aquelas bolas no chão o que nos dá a dimensão de um
espelhamento. A imagem não nos permite tocá-la inteira, temos alguma coisa,
vemos partes da imagem, estamos num cais. O porto. Não podemos identificar
quase nada, a não ser que se trata de um corpo fotografado, e no entanto não
sabemos de quem é esse corpo. É um auto-retrato, embora isso não nos
permita uma certeza do que vemos. A pessoa está espelhada nesse retrato, não
podemos ter uma dimensão de nada. A imagem me perde.
89
Um pequeno espaço e talvez o mar. E aqui estamos no plano da
representação, dos jogos de imagem. A porta, a bola ao chão, o mar. E, aqui
dentro, neste cavalete, a continuação da imagem pintada. Não sabemos, na
realidade, se ali, atrás, há a imagem do quadro, mas assim acreditamos. Aqui
não há o retrato de alguém, talvez o retrato do mar. Não há espelhos, mas há
uma cópia que, por sua vez, também é sempre invertida, outra, falsa. Ela
esbarra no real e volta. Não pode tomar o lugar dele. Esta pintura também me
faz perdida, ela me confunde, ela joga com os seus espaços e já não sei onde
me colocar nela. Sim, estou de fora, mas sou imediatamente capturada.
E o que me toca, o que me faz trazer as duas imagens lado a lado, é
essa composição repetida, essa estranheza da semelhança. Sinto, ao olhar as
imagens, que alguma coisa se comunica fortemente entre elas, sem que eu
possa compreender, aqui, de fora. Alguém me falou uma vez sobre a memória
das imagens, sobre as composições ou temas que se repetem, que de alguma
forma fazem parte de um imaginário coletivo. A memória das imagens. Não
preciso de muitas explicações. Me encanta pensar nisso. E então me calo
diante dos espaços em que não sei onde me colocar, diante da memória das
coisas que não me pertencem.
90
Jeanloup Sieff . Nude with a dressing-table . 1976
René Magritte . Le sens propre IV . 1929
Um corpo de mulher. Podemos ver apenas a sua imagem nua refletida
no espelho. O movimento do corpo é bruto, é doloroso. Ela se contorce sobre
a cama, diante do olhar passivo da penteadeira, do lugar de embelezamento,
onde estão dispostos alguns objetos pessoais. O espelho vê a mulher nua na
cama, percebe a dor singela, as meias nas pernas, a mão a segurar o lençol.
Nada podemos saber da veracidade da mulher, da dor, estamos diante de um
espelho, de um espaço inventado, invertido, de um espaço outro que não o da
imagem que se reflete. Há uma mulher, que podemos reconhecer apenas pelo
formato do corpo, das dobras, da curvatura sutil da dor que pode sentir. A
linguagem que se encarregue da história daquela mulher, e da nossa, para que
as palavras possam ocupar o espaço das coisas que não podemos saber.
91
Um corpo de mulher. Ela é triste. Podemos apenas margear sua dor,
tocar delicadamente a sua história desconhecida. Encostada numa parede
qualquer, sob um corrimão de madeira, sozinha em meio às palavras. Em meio
à linguagem que a inventa e a torna triste. Não podemos reconhecê-la pela
forma do corpo, pelas dobras. Mas temos outras curvas, outras reentrâncias,
tão femininas quanto o seu corpo escondido em linguagem. As palavras, sim,
as palavras. Tão delicadas na forma, escritas a punho cuidadoso. O que torna
aquela mulher invisível, o que torna aquilo uma mulher, triste, ali, sozinha?
Como pode a linguagem, somente duas palavras, construírem a história dela?
A história contada em quase nada. As palavras, que por vezes podem tão
pouco, e agora são a narrativa que se tem de um corpo e da tristeza de uma
mulher.
E, colocados um diante do outro, o corpo refletido através do espelho e
as palavras que tornam um corpo triste. Sei que o que traz a nudez silenciosa
da mulher é a sua distância. Seja através de um reflexo ou através da
linguagem, ela está sempre ali, distante e intocável, protegida pelos artifícios
possíveis. Não podemos nos aproximar, sentir o corpo quente. Não podemos
acreditar que a dor seja real, que ela esteja no movimento do corpo, no
cuidado das palavras escritas. As duas imagens se tocam delicadamente sem
nada poderem dizer uma à outra.
92
Leonilson . Ninguém . 1992
René Magritte . Le jeu de mourre . 1966
Uma palavra ali escrita. Sobre o travesseiro, a ausência de alguém.
Ausência costurada no tecido, bordada letra a letra, com agulha e linha, com a
espera. E essa espera sabe que o outro não volta. É a imagem, por excelência,
da saudade. Não essa saudade cotidiana, mas a saudade verdadeira, essa que
não se importa mais com a fome, essa que entende em definitivo a ausência do
outro. Como na morte – essa ausência que só agora posso entender. Ali, no
travesseiro rosa, cheio de detalhes em flor, em linhas delicadamente
costuradas, uma palavra negra, mal escrita, brusca. Como um grito. Mas a voz
está sufocada, a voz está com a cabeça no travesseiro, o grito abafado, como
sempre esse grito da saudade absoluta. Ali, no canto, bem no canto, a palavra
não toma muito espaço, ela não pede muito. A ausência de todos os corpos
está inscrita numa só palavra.
Uma outra palavra ali escrita. Numa maçã, na representação de uma
maçã, a fruta por excelência. A fruta das paixões e da história que envolve o
pecado original. Duas palavras, uma despedida. Uma outra saudade também
impressa em forma de palavra sobre um objeto, embora só tenhamos agora a
93
imagem representada dele. Pouco importa, a despedida está lá. Os olhos
distantes, o corpo num movimento contrário ao meu, os passos do outro para
um lugar que desconheço: vejo tudo escrito na escrita da palavra, desenhada
letra a letra pelas mãos, cuidadosamente, uma despedida dita com a voz
silenciosa.
E em cada objeto que olharmos talvez possamos ver uma palavra
escrita. Uma palavra de saudade. Os objetos, além do nome e das funções que
carregam, também possuem uma história. Essa história que quase nunca é
contada, que se torna palavras invisíveis para nós que os olhamos. Se de
repente olho para as roupas de uma pessoa que não está mais aqui, ou para um
par de sapatos na porta da sala, se olho para o lugar vazio na cama, ou para as
chaves sobre a mesa, vejo ali uma palavra. Um nome, algo para sempre
perdido. Uma palavra que pode contar sozinha uma história inteira.
94
Manuel Alvarez Bravo . Retrato de lo eterno . 1935
René Magritte . L’usage de la parole . 1928
Eterna é a imagem refletida no espelho. E eterno é o corpo que
permanece invisível nas suas margens. Sentada num canto de parede, com
pouca luz vinda de fora, através da janela que não podemos ver, uma mulher
arruma o cabelo com cuidado. Seu rosto parece refletir a calma do gesto, o
mesmo de todos os dias, a repetição eterna de um gesto feminino. Pouco do
seu corpo pode ser visto, nem os olhos, nem os dedos que delicadamente
pousam sobre seu longo cabelo. O espelho, na outra mão, é pequeno, e pouco
pode mostrar do seu corpo inteiro. Não sabemos que imagem ela vê encostada
na palma da mão. A luz que incide no quarto, no corpo, é só o que pode nos
revelar alguma parte da mulher e do seu gesto cotidiano. Nada sabemos do
espelho, que talvez não exista nesta imagem fechada em sombras.
95
Eterna é a imagem refletida no espelho. Mesmo que nada possamos ver
de reconhecível. Não há o corpo de uma mulher, não há espelho algum. Há
linguagem pura, palavras soltas e perdidas num amontoado de espaço quase
vazio. Uma mulher se olha, refletida. Mas não há mulher. Algumas palavras
se olham, distantes, elas se olham e encontram um sentido. É uma imagem. É
um encontro. As duas formas nem sequer são iguais, nem o espelho é capaz de
repetir uma imagem sem que ela seja invertida. Nada se sabe do olhar desta
mulher, se está diante do espelho ou se lhe dá as costas. Da mesma forma, não
sabemos se o espelho está diante dela ou de nós. Podemos inventar uma
história qualquer para as palavras.
E eterno é o jogo da linguagem, das histórias inventadas, o jogo da
escrita. Também o jogo das imagens, dos reflexos e dos espelhos ao infinito.
Uma mulher pode se olhar em forma de corpo ou palavra. Dos espelhos nada
se pode ver. O retrato que cada uma faz de si é o eterno envolvido pela
linguagem.
96
Manuel Alvarez Bravo . Paisaje y galope . 1932
René Magritte . Confiture de cheval . 1937
Na imagem do cavalo, a solidão. Essa solidão que vem dos seus
contornos desenhados, do movimento contido numa pintura de parede. O olhar
parece um tanto assustado, o enorme corpo num gesto de medo e aquele
animal está preso entre quatro cantos, numa moldura desenhada. Em torno da
imagem, uma paisagem qualquer: uma casa, a porta, uma árvore, a rua, a
calçada, o pedaço de uma placa onde há uma palavra partida. Na outra palavra
que se cria pelas letras que lemos, uma negação. Como se, feita essa negação,
voltássemos então nosso olhar para o cavalo e entendêssemos que dali ele não
poderá jamais sair. Sua representação está confinada num pedaço de parede. E
agora também numa fotografia. Justo este animal, tantas vezes símbolo de
liberdade, de campos abertos, ironicamente ele está ali, preso, partida sua
condição no momento em que é representado pela pintura. Por vezes tenho
uma sensação de que ele percebe a negação do movimento em que está e tenta
97
escapar dessa condição inutilmente. Ele tornou-se estático e seu movimento é
pura ficção.
Na imagem do cavalo, a solidão. Essa solidão constituída pela falta de
lugar, pela função alterada, pela imagem e palavra que ocupam lugares
estranhos. O pote de vidro vazio, essa rolha para impedir o contato com ar, a
etiqueta onde se lê conserva de cavalo
58
. Aquele pequeno desenho da cabeça
do animal, sem expressão, poucas linhas que contornam a idéia de que aquilo
é um cavalo. Mas então o que dizer desta espécie de conserva onde o produto
principal é um cavalo? Assim, dentro de um recipiente sem contato com o ar,
para prolongar a duração. O que é aquela etiqueta explicativa, aquele
desenho, se dentro do vidro nada reconhecemos? O vidro está vazio. Talvez
essa seja a resposta. Da conserva feita do cavalo, nada poderia ser visto. Não
é mais um cavalo, este sempre estaria em movimento. Quando conservado
torna-se de outra natureza. E não mais podemos vê-lo.
A pintura na parede, a fotografia, a conserva, a falta de contato com o
ar. De alguma forma, fala-se da mesma coisa: da natureza que se altera
quando algo é representado, quando é guardado longe das suas funções
habituais, a negação do movimento, a negação do real. Naqueles dois cavalos
vejo quase a mesma coisa: duas imagens confinadas, perdidas, presas entre
paredes e vidros. Só resta ali a memória do movimento. A memória distante
do real.
58
A palavra francesa confiture geralmente é traduzida por geléia, mas optei por traduzi-la
como conserva, por achar esta palavra mais pertinente em relação à obra de Magritte.
98
Manuel Alvarez Bravo . Día de todos los muertos . 1933
Rosângela Rennó . Cicatriz . 1996
René Magritte . L’art de la conversation . 1950
O amor. Ali escrito em continhas brancas sobre os contornos de um
crânio. Ali nas mãos de uma mulher, ela que segura cuidadosamente o objeto
com a palavra escrita. Segura na palma das mãos, abertas, estas mãos que
delicadamente seguram o amor. E a morte. O crânio está enfeitado, sabemos
que naquele país há uma tradição. O que me encanta na fotografia, ao mesmo
tempo em que me fere, é aquela palavra escrita, estampada, etiquetada no
crânio, que talvez seja de brinquedo, talvez seja de açúcar. Aquela palavra
amor, palavra sem lugar, solta, sozinha, uma palavra escolhida por algum
motivo que desconheço e que me fere. No dia de todos os mortos, ali, o amor.
O amor. Ali inscrito no corpo de um homem. Palavra escrita com agulha
e tinta, com dor. Quisera saber porque aquele homem escolheu esta palavra,
porque então a escreveu sobre o seu peito, as letras maiúsculas, capitulares. O
que, na verdade, quer dizer cada uma daquelas letras ali impressas? De que
palavra amor se fala? A que se refere isto, o amor? As mãos segurando a
99
camisa aberta, aquelas mãos através da qual posso entender silenciosamente a
escolha da palavra, estas mãos que se tornam eróticas, que se tornam carne,
que me tocam a pele sem que eu perceba, as mãos daquele homem que exibe a
palavra no peito. Palavra impressa no corpo. O amor escrito com agulha e
tinta. Escrito, agora, no meu desejo pela imagem.
O amor. Palavra escrita no ar, nas águas, palavra escrita no seu lugar
invisível. Na paisagem azul, no lago, nas casas um pouco distantes. O amor,
esta palavra que nada diz, palavra pequena, preenchida por águas, contornada
pela vida ao fundo. Aqui, deste lado, posso ver: o lago é delimitado pela
palavra, nada pode ir além dela. Nem a paisagem. Nem talvez o sentido que
possa existir nas suas formas arredondadas. Ali, de repente, percebo: a
palavra é o que recorta a paisagem, o amor, ele é quem divide os espaços da
pintura, divide com a delicadeza das letras manuscritas, das letras
caprichadas, das mãos amorosas. O amor, esta palavra no meio das águas.
E em cada língua dita, de cada boca que a pronuncia, a palavra é viva.
É carne. A palavra amor me toca o corpo. Assim, escrita e manuseada,
impressa na pele, nas águas, impressa num dia santo, num dia morto. A
palavra amor pertence às mãos que a escrevem.
100
Marcel Duchamp . Fresh Widow . 1920
René Magritte . La lunette d’approche . 1963
Uma janela através da qual não se pode ver. Ela está cerrada, tem couro
a cobrir seus vidros delicados, é uma janela em miniatura, típica francesa,
mas através da qual não se pode ver. A parte escura, o couro que recobre os
vidros, impede a entrada de luz. E as palavras, o jogo: fresh widow, french
window. O escuro, a janela, a viúva. Uma viúva de negro, através da qual não
se pode ver. Nada, nem um feixe de luz, o couro é matéria rígida, não deixa
passar nem um instante de imagem. É uma janela sozinha, fora de contexto,
fora de lugar. E nada se pode ver através dela. Mesmo sabendo, talvez, o que
existe por trás, há alguma coisa ali a acontecer que nos é impedido saber.
Uma janela através da qual não se pode ver. Ela está semi-aberta,
poderíamos entrever o que está além dela, mas não conseguimos, está escuro.
Nada se pode ver. Os vidros estão recobertos pelo céu. Olho mais um pouco e
101
percebo que este céu – que a princípio me enganou, fazendo pensar que era a
imagem vista pela janela – ele é o que impede a visão do que há além dela. Os
espaços de dentro e de fora se misturam, não sabemos mais se estamos no
interior de uma casa ou se estamos fora, se o céu está refletido no vidro e,
dentro, a escuridão, ou se o fora é que é escuro e o céu é apenas uma miragem
do olhar, este olhar tão acostumado às imagens prontas, fáceis. Estamos
novamente perdidos em meio a uma imagem.
E, nós, diante de duas janelas através das quais nada se pode ver. Uma
está coberta por couro e a outra por céu. E as duas impossibilitam a visão da
mesma forma. É irônico porque o couro impede a visão do claro, do céu, ele é
a parte escura da imagem, ele veda a luz. Já na pintura, o céu impede a
imagem da escuridão por trás da janela, a luz veda o escuro, não nos permite
vê-lo. Isso me leva a pensar que talvez todas as janelas impeçam a nossa
visão de alguma forma, elas não precisam estar vedadas com pano escuro, ou
pintadas, ou cercadas, muradas. Qualquer janela altera nosso campo de visão,
transforma a composição da imagem, não nos deixa tocar diretamente as
coisas e as transforma em pura distância.
102
Paul Strand . Blind . 1916
René Magritte . Le paysage fantôme . 1928
Diante do corpo doente, do corpo sozinho, diante da mulher na rua,
dependurada, presa à sua condição, a placa. Nela está definida a mulher. Nada
mais é, ela, senão uma mulher cega. Uma mulher que nada pode ver, que nem
mesmo poderia entender as letras na placa que carrega junto ao corpo. E, ali,
diante da multidão de passantes, ela nada mais é que a própria cegueira, ela
não é somente cega. A cegueira transfigurada num corpo de mulher. Carrega
seu corpo e a palavra como se estivesse a carregar a sua própria condição.
Aquela palavra pertence ao corpo, ela o explica. A mulher tem um olhar triste
e distante. Mas ele não existe.
Diante do corpo retratado, do corpo posado para a imagem, para a
pintura, ali, diante dele, uma palavra. Escrita à mão, não podemos saber a que
ela se refere. Montanha. A mulher nos olha, através do olhar do pintor, um
103
pouco sem direção, como se o seu olhar apenas estivesse perdido no nosso.
Perdido como aquela palavra solta em meio à pintura. Perdido como qualquer
relação que se poderia estabelecer entre seu corpo parado e a palavra que
carrega. Se, ali, estivesse escrita a palavra mulher, ainda assim nada
poderíamos saber. Nunca se pode. O olhar, um pouco frio e assustado, este
olhar sobre o qual nada se pode saber. Ou talvez a mulher esteja a olhar uma
montanha e, impressa, no seu rosto, a palavra que designa a direção do seu
olho. Como se, a cada vez que olhássemos um objeto, o nome dele se fixasse
no nosso rosto, como se a palavra escrita fosse o reflexo do objeto diante do
nosso olhar. E aquela mulher está sozinha na linguagem, em meio a uma
paisagem fantasma.
E em meio à linguagem estamos, cada um de nós, perdidos. As palavras
são carregadas pelo corpo, estampadas, somos várias explicações de nós
mesmos, como, nas coisas, estão etiquetados os seus nomes e as suas funções.
As palavras, sejam quais forem, são coisas que pronunciamos e tornamo-las
parte da nossa imagem. Algumas explicam. Outras nada podem dizer de nós,
ou mesmo do lugar a que pertencem, das suas funções. Sobre o que não se
pode ver, sobre o que não se pode falar, sobre o silêncio de um olhar cego,
podemos apenas nos calar. E ler, em voz baixa, sem nada pronunciar. O olhar
cego é também o olhar da mulher que tem uma montanha sobre o rosto.
104
Robert Frank . NY . 1958
René Magritte . L’usage de la parole . 1928
Como saber, então, fazer uso da palavra. As mãos em movimento, o
gesto da fala, cabeça levemente para trás, o olhar atento. Os dedos, aqueles
dedos através dos quais pode-se compreender o tom das palavras ditas, a
exatidão com que aquele homem fala, embora não se saiba sobre o quê. Pela
direção do olhar e por algum reflexo que podemos ver no espelho, sabemos
que as palavras não são para o menino. Mas este menino também não sabemos
o que faz, se ele sopra a comida quente nas suas mãos, ou se pronuncia uma
palavra em tom fechado. Ele está atento, olha em direção à boca do homem,
não olha para as mãos, nem para os olhos. As palavras são parte da boca. Ao
olhar a imagem logo tenho a sensação de ouvir este homem falar, tal é o
movimento preciso do seu corpo para o diálogo, para a fala. Quisera saber a
105
palavra exata que ele pronuncia no instante da imagem capturada. A palavra
que faz o gesto da sua mão se tornar o centro da fotografia.
Como saber, então, fazer uso da palavra. Numa imagem recortada, sob o
céu claro, dois homens e um diálogo. Eles estão estáticos, as palavras são o
movimento. Um homem diz: o piano. O outro responde: a violeta. Ou talvez
seja o contrário. Ou ainda possa ser que as palavras sejam pronunciadas ao
mesmo tempo. Nada podemos compreender deste diálogo, destas palavras
soltas, compreender as bocas semiabertas, porém imóveis, como se a palavra
não dependesse mais do movimento, como se elas pudessem existir
independentemente da articulação da língua. É dia sobre as palavras
pronunciadas. Não importa o que é dito.
E embora se saiba a palavra que é dita na imagem, ainda assim a fala é
perdida. Duas palavras não são capazes de nos fazer compreender o diálogo. E
pouco importa esta compreensão. O movimento do corpo, o gesto, a boca,
tudo faz parte do imaginário da palavra dita, esta palavra viva, que ressoa
com a voz e depois deixa apenas um ruído na memória.
106
DAS RESSONÂNCIAS DA VOZ – AS HOMENAGENS, OS ECOS
107
E agora os outros através de cujas vozes ouço o ruído de Magritte. Não
importa se houve de fato alguma aproximação, provavelmente em muitos
casos não. Mas é possível voltar o olhar para esses outros artistas e perceber
um caminho continuado, embora muitas vezes distante.
Escolhi alguns artistas quase por acaso. Poderia ter escolhido outros, ou
mais, poderia ter escolhido somente um. Porém fiz algumas opções e aqui elas
estão. Alguns artistas trabalharam com referência direta a Magritte, como
homenagens e influências. Outros talvez não o tenham conhecido.
O que importa, neste texto, é a leitura que se tem de algumas obras
depois de Magritte. É perceber que ali, na obra dele, nosso olhar foi, de fato,
modificado e, agora, a lembrança dele está presente em cada jogo de
representação e de linguagem.
O que importa é olhar.
108
1. ANDY WARHOL
Uma caixa de sabão, dessas que
vemos todos os dias nas prateleiras dos
supermercados. Uma marca mais que
conhecida, as informações na caixa, as cores
habituais. Estamos no mercado de consumo.
Andy Warhol trabalhou diversas vezes com
esse imaginário dos objetos cotidianos,
como nesta caixa de sabão, ou nas caixas de alimento, ou nas famosas latas de
sopa. Ele percebeu que esse lugar-comum dos objetos de consumo era um
grande potencial de imagem e de questionamento dos valores da sociedade.
Mas ele não somente reproduziu as marcas comerciais, não refez a caixa de
sabão, simplesmente. Ele tornou ainda mais grave o jogo entre o objeto real e
o objeto representado, levando até mais adiante os valores de consumo.
Esta caixa de sabão não é uma caixa de sabão. E logo a lembrança de
Magritte. É um cubo de madeira. O rótulo da suposta embalagem foi feito com
serigrafia. A proporção é bem maior do que a da caixa de sabão das
prateleiras do supermercado, esta que vemos todos os dias. Warhol cria uma
simulação da caixa de sabão. Ele transforma a imagem do consumo diário de
produtos necessários (alimentação, limpeza) numa imagem do consumo da
arte. Nunca um produto deixa de ser consumível, ele apenas altera seu lugar
e, conseqüentemente, seu valor.
O que me interessa olhar nesta obra, aqui, é o efeito da representação e
alteração de uma imagem. Pela reprodução em fotografia vemos exatamente
109
uma caixa de sabão, não sabemos, a princípio, que se trata de uma simulação.
As palavras e o texto são utilizados como senso-comum para a verificação de
uma imagem cotidiana. E no meio da banalidade das coisas, essa potência da
imagem, e o lugar de questionamento dos seus próprios valores.
Arthur C. Danto, professor de filosofia e crítica de arte americano,
escreveu alguns ensaios sobre esta obra de Warhol. Segundo Danto, foram as
Brillo Box que o acordaram para um novo acontecimento na arte. Em 1964, na
Stable Gallery, em NY, Danto conhece as caixas de sabão, empilhadas ou
enfileiradas, com as proporções maiores que as caixas convencionais dos
supermercados. Esse evento ficaria marcado por muito tempo em seu
imaginário, e, daí, ele elaboraria toda uma nova concepção da arte e do fim da
arte. Quanto às caixas, ele afirma: Sua reivindicação parece ser ao mesmo
tempo revolucionária e risível: ela não deseja subverter a sociedade das
obras de arte, mas ser admitida nela, ocupando o mesmo lugar dos objetos
sublimes
59
. Para Danto, as Brillo Box mudaram a maneira da arte ser feita,
pensada e exposta a partir de então, colocando em questão o pluralismo no
meio artístico. Já não haveria mais a narrativa convencional da arte e sua
história, agora estava a se falar de uma filosofia da arte, e esta só poderia ser
elaborada e compreendida através de meios filosóficos e conceituais. A
pergunta fundamental que se faz Danto é quanto ao mundo real e ao mundo da
arte, e quanto às suas diferenças. Por que as caixas de sabão de Warhol são
arte e as caixas dos supermercados, enfileiradas nas prateleiras, não o são?
Qual é a precisão desta fronteira entre arte e real? A diferença, ele afirma em
algum momento, não é quanto ao material, que de fato é diferente. Não é essa
59
DANTO. A transfiguração do lugar-comum. p. 296.
110
a resposta. A diferença é conceitual, e então esbarra-se num terreno perigoso,
onde o discurso, o uso da linguagem e a intenção do artista interferem. Danto
não quis dizer exatamente que chegara o fim da arte com as Brillo Box. Ele
afirma que, na realidade, suas primeiras idéias sobre a arte como filosofia
surgiram dessa experiência com a obra de Warhol. Em 1992, ele escreve o
livro de ensaios Beyond the Brillo Box: The visual arts in Post-Historical
Perspective, em que novamente traz à tona algumas discussões sobre a obra
de Warhol e as questões provenientes dela. Outros livros e ensaios seus
abordariam sempre a obra de Warhol. Ela foi realmente um ponto crucial na
visão de Danto na história e na narrativa da arte. Ele fala que essa
transfiguração de um objeto banal não transforma coisa alguma no mundo da
arte, mas que ela simplesmente traz à luz da consciência as estruturas da arte
(...)
60
. Através das Brillo Box de Warhol e das caixas dos supermercados,
pode-se, enfim, questionar e talvez explicar toda a diferença entre realidade e
arte. Mesmo que não se explique, foi lançada a questão e depois dela nada
seria visto da mesma forma.
60
DANTO. A transfiguração do lugar-comum. p. 297.
111
2. ARMAN
Os carimbos, estes objetos sujeitos à
eterna multiplicação da informação que
carregam. Não interessa o tempo útil deles,
mas a potência deste tempo, o eterno.
Nesta obra de Arman, Accumulation,
depois de um primeiro olhar, a sensação se
torna quase sufocante. Acumulação,
acumulação, acumulação, acumulação. Esse
gesto que se repete, esse gesto que não
pode parar. Em cada carimbo, a palavra. E
em cada palavra, a possibilidade de multiplicação eterna.
Neste acúmulo de palavras, de repente a descoberta: a palavra e a ação
são os mesmos – acumulação. A palavra coincide exatamente com o nome do
gesto que acumula a quantidade de palavras repetidas. Damos voltas e voltas
nelas, naqueles carimbos, na tinta impressa deles, no próprio título da obra,
accumulation, ficamos por um instante sem ar, diante deste gesto definitivo.
É como se nenhuma outra palavra pudesse existir além desta: acumulação. As
palavras seriam sempre a mesma e de número infinito. No entanto, os
carimbos são vários para a mesma palavra. A acumulação não é, então, apenas
de palavras e gestos de carimbar, mas, também, do instrumento que a instaura.
A coincidência entre palavra e ação é o que me encanta nesta obra. Tal
como me encanta a palavra palavra. Ela é a única coisa que existe em que o
nome e a coisa nomeada se encontram num mesmo lugar. Palavra. Gostaria de
112
ter um carimbo com ela escrita e, assim, poder multiplicar indefinidamente
essa palavra, palavra. Poder criar uma acumulação de palavras, acumulação
de acúmulos de coisas, sufocar o olho que lê.
113
3. ARTHUR BISPO DO ROSARIO
Um homem que fazia
coleção de palavras, além de
todas as outras coisas que
existem. Para apresentar o
mundo depois do juízo final,
ele catou objetos e palavras no ar e na rua, em cada canto de uma vida isolada
por uma única palavra: loucura. Ele inventariou o mundo, criou novas
disposições para os objetos, reorganizou todas as coisas que o tempo lhe
permitiu fazer. Copiou as imagens do mundo em pequenos objetos para que
ninguém se confundisse depois do juízo final, na hora da reconstrução.
Como é o caso desta obra, entre tantas outras. Como é que eu devo fazer
um muro no fundo da minha casa. Uns pedaços de madeira, cimento e cacos
de vidro para a proteção da casa, assim se faz um muro. Ele observou na rua
como era pra ser feito e criou seu pequeno protótipo, este que sobreviveria a
tudo e serviria de modelo depois. Bispo embalou objetos para conservá-los
melhor, escreveu os nomes nestes objetos para não se esquecer. Para que
ninguém jamais esquecesse. De repente a lembrança de Macondo e a epidemia
do esquecimento. Era o que fazia Bispo: lutar contra o esquecimento. Ele
olhava o mundo, o funcionamento das coisas, e reproduzia isso em seu
laboratório de sonho, para que tudo se conservasse de alguma forma, mais
tarde. Mais do que um objeto que imita o real, este muro é a explicação do
muro, de como fazê-lo, visto o cuidado de Bispo para reproduzi-lo, vista a
inscrição nele. É mais que um lembrete, é uma maneira de não se esquecer.
114
4. CHEMA MADOZ
Chema Madoz é um fotógrafo espanhol
contemporâneo, e é impressionante a
lembrança que nos traz de Magritte. Cada
imagem dele parece dialogar com outra do
artista belga, é uma sucessão de
semelhanças, de uma voz silenciosa que
ressoa de um para o outro. Como na imagem
deste porta-queijo, numa lembrança do Ceci est un morceau de fromage, neste
caso com o próprio objeto se recortando num pedaço do queijo imaginário.
Ou, então, a lembrança de Magritte vem nessas imagens em que uma matéria
se mistura com outra e cria relações entre objetos a princípio estranhos entre
si, como é o caso do fósforo e a madeira. É um procedimento que Magritte
realizou diversas vezes em sua pintura, trazendo à mesma vizinhança objetos
sem conexão para que, de repente, eles se tornem parte de uma mesma
imagem.
Num outro momento, Madoz desfaz esse procedimento e vai no caminho
inverso, como se vê na fotografia da chave que contém, em si mesma, a
fechadura. Neste caso um mesmo objeto toma a forma de dois. E então se
115
torna um objeto cuja função é impossível. Como é o caso da régua no gume da
faca, não é possível utilizá-la. A função está perdida.
É interessante, e
uma surpresa ainda
maior, descobrir alguns
elementos do universo de
Magritte nas fotografias
de Madoz. O cachimbo,
que agora se transforma
num instrumento musical, e o chapéu-coco, que está todo fincado por agulhas.
Ambos objetos com as suas funções alteradas. Isso era um ponto de grande
interesse de Magritte, reconstruir a imagem dos objetos até que eles
perdessem a função, ou trocar as funções através do nome, ou mesmo criar
objetos e seres híbridos, em metamorfose. Magritte quis penetrar nesses
pequenos mistérios que existem entre as coisas, ele tocou diretamente cada
uma delas e fez desse encontro a sua pintura.
116
5. CILDO MEIRELES
Uma pequena caixinha,
do lado de fora as
informações do que há
dentro: Dados: 1- Dado, 2-
Título. Ao abrir a caixinha, a
surpresa: o objeto e o seu
nome – dado. A etiqueta com o nome está abaixo do objeto, guardados como
preciosidades. O nome facilmente nos remete ao objeto, já que o conhecemos
perfeitamente. Mas embora seja assim, embora saibamos olhar e ler, a
obviedade destas informações nos incomodam.
A primeira palavra que lemos é Dados, assim, como uma forma verbal.
Depois a palavra aparece no singular, como substantivo. Percebemos de
repente como funcionam os jogos da linguagem, uma mesma palavra pode ter
funções distintas. E nos perdemos, então, em meio ao que nos parecia tão
óbvio a princípio.
Olhamos de novo para a caixinha aberta: Dado. Esse nome que cabia
tão bem no seu lugar etiquetado sob o objeto dado, de repente pode se
transformar numa forma verbal, e já não mais nomeia o objeto. É outra coisa,
outra palavra. O que era claro, ao olhar a imagem, mergulha agora na
incerteza. Há, ainda, a possibilidade de lermos a informação da tampa da
caixa pelo viés de Kosuth: temos aqui dados, um: o objeto, outro: o nome dele
– dado. Já não podemos afirmar do que se trata a palavra. Nem sobre do que
se trata o objeto. Aliás, estamos novamente perdidos.
117
6. FELIX GONZALEZ-TORRES
Muitas vezes ele desenhou tapetes
com balas no chão. As balas são
consumidas pelo público, elas são
devoradas, os papéis jogados fora, e a
obra continua no seu tapete sem fim. Ele
também fez cantos de doces, chocolates.
Ele fez pilhas de papéis para que o
visitante levasse um consigo. As balas,
os doces, os papéis, eram repostos no fim
do dia, nunca o tapete ou os cantos ou as
pilhas se desfaziam, permaneciam
constantes. Felix quis fazer obras sem fim. Silenciosamente, ele ia se
despedaçando.
Nesta obra, criada por Felix como o retrato de alguém, vê-se um monte
de balas enroladas em papel azul. Neste papel, uma única palavra: passion.
Paixão. Como se o que o visitante levasse consigo, na boca, nos bolsos, nas
mãos, não fosse somente uma bala, mas também a palavra. Como se a palavra
escrita fosse a etiqueta com o nome do objeto envolvido no papel, como se o
tapete de balas se transformasse, por um instante, num tapete de paixões.
Azuis, ali dispostas para o grande público, para quem se atrever a viver em
meio à loucura das paixões, para a mão que alcançá-la. É, também, um aviso:
passion. Dentro, a bala, doce, açúcar. E o aviso do lado de fora, como quem
diz: não se engane.
118
Ele era um homem a falar de amor, mas também das perversões
delicadas, da sutileza dos desencontros, da política, da doença. Nesta obra,
em que sinto um certo tom de crueldade, vejo milhares de pessoas colocando
a palavra paixão dentro da boca, vejo essas pessoas sorrirem, vejo o papel
jogado no chão. Elas não percebem o aviso. Não se engane, não é doce.
119
7. HÉLIO OITICICA
Uma caixa d’água, a água e as
palavras ao fundo, como se elas
quisessem dizer algo sobre o objeto.
Mergulho do corpo. Mas de que corpo
se fala? Do meu, deste que olha? De um
corpo qualquer? Do corpo do artista?
Ou, pensando ainda mais, não seria da palavra, que se fala? A palavra corpo.
Porque, de fato, a única coisa que se tem, ali mergulhada, são as palavras.
Nada mais.
Ou o artista estaria a falar do olhar? Deste olhar que mergulha na
imagem, com o corpo inteiro. Qual seria este momento, em que somos
tomados pela imagem, mergulhados à força por ela, pela leitura, pelas
palavras? Olhar é mergulhar, é a entrega do corpo, inteiro.
Mas se olho a frase como uma função do objeto, assim: aquele lugar
serve para o mergulho do corpo – então me pergunto ainda mais: a frase supõe
o mergulho ou o prevê? Talvez a caixa deseje o corpo, deseje o mergulho do
corpo e as palavras ao fundo são apenas o espelho deste desejo. Porém, volto
ao que já fora dito anteriormente: a palavra corpo é a única coisa que está
mergulhada naquela água. Nada mais. Nem mesmo o desejo, os nomes, as
funções das coisas. Somente a palavra.
120
8. JOSEPH KOSUTH
Kosuth é o grande
nome da arte conceitual
americana. Ele desenvolveu
numerosos trabalhos a
discutir o uso da linguagem,
a tautologia, os jogos da
imagem. Admirador da obra de Magritte, ele o considera o precursor da arte
conceitual. Talvez tenham sido dele mesmo, no início do século ao lado de
Duchamp, as primeiras grandes discussões da linguagem dentro das artes
plásticas. Fosse inserindo texto na pintura, fosse criando objetos sugestivos
ou mesmo colocando balão de quadrinhos em algumas de suas obras, Magritte
trouxe à tona a palavra.
A obra escolhida de Kosuth poderia ser esta como tantas outras do
mesmo estilo: uma e três mesas, uma e três cadeiras, um e três serrotes.
Escolhi uma delas por acaso, pois a questão a se discutir é a mesma. Ele toma
o objeto real, a fotografia deste objeto e a definição de dicionário do nome do
objeto. Este é o procedimento básico. A questão que é lançada é a seguinte:
qual a diferença entre o objeto real, sua representação e seu nome? Cada qual
se comporta de uma forma no meio de todas as coisas. As funções se alteram
de um para o outro. Retomando uma lembrança de Blanchot, ao dizer a
palavra mesa, fala-se também da ausência desta mesa. Posso dizer que, da
mesma forma, a fotografia de uma mesa, é, em essência, a fotografia da
ausência dessa mesa. É interessante observar isso: sempre que se fala de um
121
objeto, seja em imagem representada ou em palavra, ele nunca está presente.
Só é presença enquanto é objeto puro, objeto independente do nome e da
imagem.
Magritte, em seu artigo Les mots et les images para a revista Révolution
Surréaliste, em 1929, já previa alguma coisa em torno dessa discussão. Para
tanto ele escreveu e desenhou esse pequeno trecho:
Nele está escrito: um objeto não tem jamais o mesma função que seu
nome ou que sua imagem. E no desenho, um procedimento muito parecido
com o de Kosuth: um cavalo, a representação (numa tela) de um cavalo e um
homem que pronuncia a palavra cavalo. É interessante observar como
acontece a mesma linha de raciocínio entre os dois artistas, porém foi Kosuth
que transformou isso em diversas obras, até se esgotar a questão.
O fato é que há uma diferença real entre cada tipo de manifestação de
um objeto, seja ele real ou sua representação ou seu nome. É preciso estar
atento e não se deixar enganar. Entender a ausência no instante da palavra
pronunciada, a ausência que também aparece com a representação, com a
fotografia. Kosuth continua nos passos de Magritte. E nós, silenciosos, a
tentar compreender as diferenças.
122
9. LILIANA PORTER
Ela pegou o que
quis da obra dele. Liliana
Porter se apropriou das
imagens de um livro sobre
Magritte e as recriou. É
como se o procedimento
fosse retomar a obra para
apontar coisas nela. Sim,
é um apontamento, é
mostrar de novo, por vezes corrigir, mas, de fato, entrar no trabalho de
Magritte. E, lá, ela penetra, faz das imagens o que bem quer, sonha com elas.
A técnica era a seguinte: fotografar páginas de um livro com sua
intervenção. Depois ela fazia fotogravura com as imagens fotografadas. Algo
como a agregação de camadas de reprodução, sendo que desde o livro há uma,
em que a própria obra é reproduzida. Assim, ela desenvolve uma certa história
da imagem, passando por suportes diferentes, técnicas diversas, até chegar à
nova imagem que ela cria.
No caso dessa série, Liliana escolheu algumas pinturas de Magritte e as
tomou para si. Na primeira imagem da série, La luna, ela trabalha num recorte
da pintura La clef des songes, de Magritte, em que ele pinta um sapato sobre a
palavra lua, e Liliana conserta. Sim, ela, então, cria a imagem de uma lua,
iluminada sobre o sapato de Magritte. Em outras obras da série, ela faz uma
espécie de reafirmação do que é “dito” por Magritte. Por exemplo, quando
123
coloca uma maçã real sobre a imagem de uma maçã pintada num quadro.
Porém, depois de sua fotogravura pronta, a maçã real também já se
transformou numa maçã representada, e então tem-se mais uma camada de
reprodução. Em outra obra, ela toma a pintura The interpretation of dreams e
o pequeno retângulo em que Magritte pinta um cavalo e escreve em baixo,
porta. Ela recorta o pequeno retângulo a modo de fazer dele uma porta, uma
pequena abertura, como se estivesse, ainda, a consertar a imagem.
Liliana repete a pintura de Magritte, agora com outro procedimento
técnico, mesmo que depois a “conserte” ou a reafirme de outra forma. É uma
maneira de “fazer de novo” a mesma cena, como se quisesse confirmar o que
lá acontece. Assim, por vezes trabalhando literalmente no sentido da imagem,
por vezes criando um jogo, um diálogo com Magritte, Liliana faz da obra dele
um lugar para os seus próprios sonhos.
124
10. LUIS CAMNITZER
Sobre um pedaço de algodão, a
escrita: fragmento de uma nuvem.
Logo ouvimos a voz distante de
Magritte. Camnitzer desenvolveu uma
série de trabalhos que lidavam com o
uso da palavra, revelando a influência
da obra de Magritte. Aqui, temos a mesma questão que apareceu
anteriormente: a que se refere a frase? Acreditamos, a princípio, que a palavra
se refere à superfície em que está inscrita, em casos como este. Então, vemos
essa superfície que parece macia, é branca, tem, de fato, aspecto de nuvem.
Mas sabemos que a nuvem não é uma coisa que se pega com as mãos. Ela é
fugidia, jamais poderia ser tomada e nomeada como está nesta obra. Sim, é a
representação de uma nuvem. E volta-se para aquela velha questão da cartilha
escolar: a imagem e o nome da imagem, fragmento de uma nuvem.
Mas se pensarmos bem, o que é uma nuvem? É também ar. Começo a
pensar: se esta obra tivesse no alto de uma montanha, onde normalmente se
tem uma neblina forte, se estivesse ali, com nuvens a envolvendo, a que,
então, referir-se-ia a frase? À superfície do texto ou ao que está diante dele?
As palavras não possuem função e uso fixos. São assim, soltas, elas podem se
comportar sempre de maneiras diferentes, seja no mundo das imagens ou do
próprio texto. Seja no real ou na ficção que elas ajudam a criar.
125
11. LYGIA PAPE
E nesta obra, outra nuvem. Agora é a
própria artista quem diz: Isto não é uma nuvem.
Não, é apenas nylon, uma matéria qualquer, que
por um momento lembra a imagem do branco no
céu. O procedimento dela é o mesmo de
Magritte ao falar do cachimbo. E a pergunta
que agora faço é a mesma de Foucault: Isto se
refere a que? A velha questão do pronome
demonstrativo. Isto pode se referir tanto à imagem imitada de uma nuvem,
quanto ao próprio enunciado. Sim, sabemos bem disso.
Mas o que torna essa obra diferente da de Magritte, ao meu ver, é esse
enunciado partido ao meio. A frase que lemos poderia ser dois fragmentos de
frases? Não sei, mas como tudo na linguagem é um jogo, leio agora pensando
em toda e qualquer possibilidade de leitura. Procuro passagens secretas em
meio às coisas, como se em algum lugar da imagem estivesse a chave que a
solucionaria definitivamente. Mas aprendi com Magritte, a solução não está
no invisível que insistimos em procurar nas coisas. Está no que é visto,
embora nossos olhos tão acostumados a ver não percebam mais o que está
diante do olhar.
126
12. MARCEL BROODTHAERS
Broodthaers era belga, como Magritte, e foi muito influenciado pela
obra dele. Falar no seu nome é evocar, de alguma forma, o nome de Magritte
e, também, evocar as questões lançadas por este, os jogos de linguagem e de
representação. Como no caso desta obra: Les animaux de la ferme (tableau A /
tableau B). Broodthaers cria uma espécie de cartilha, posso imaginá-la num
livro escolar ou na parede de uma loja especializada em produtos agrícolas. É
didático: acima, o título Os animais da fazenda, abaixo, a representação dos
animais e, sob eles, os respectivos nomes. Essa estruturação da imagem em
forma de cartilha ou manual remete imediatamente à obra de Magritte, em
especial, à pintura La clef des songes. E, aqui, o que acontece não é diferente.
Os animais, bem desenhados, claros, didáticos. Sob eles, os nomes. Mas
eles não se correspondem. Ao olharmos melhor, percebemos: os nomes não
são de animais e sim de carros. Fiat, Jeep, Cadillac, entre tantos outros. A
princípio dizemos: mas os nomes não se referem às imagens! Logo depois,
127
entendemos: as imagens não são os animais, senão a representação deles. As
palavras não são os carros, senão os nomes deles. Como havemos de ter tanta
certeza ao dizer que imagem e nome não coincidem? O que sabemos nós do
nome da imagem representada e da palavra longe do objeto que ela nomeia?
Broodthaers era fascinado pela maneira com a qual Magritte utilizava
as palavras para contradizer as imagens. E aqui, embora não contradiga, ele
faz seu próprio jogo, este jogo das não-coincidências. Com isso, ele levanta,
mais uma vez, algumas questões cruciais para a linguagem, como: a que se
refere a palavra escrita? Questão esta que foi desenvolvida por Foucault em
seu texto sobre Magritte, Isto não é um cachimbo. Um manual didático, os
animais desenhados, as palavras bem legíveis e continuamos na incerteza,
continuamos no lugar dessa ordem misteriosa que rege todas as coisas.
128
III POR FIM, O JOGO, A PALAVRA
129
Numa primeira passagem do
olhar, percebemos a brincadeira de
Magritte. No segundo momento em
que olhamos, somos completamente
confundidos. Novamente estamos
diante de um jogo. Esse jogo do qual
nem sempre conseguimos participar,
com regras enigmáticas, com um
tabuleiro irreal onde coisas, nomes e funções se misturam a ponto de nos
percebermos como jogadores improváveis. Para jogar é preciso entender as
regras. E supomos sempre que podemos ganhar ou perder a partida. Porém no
jogo de Magritte não há a possibilidade de vencedores ou derrotados, apenas
de participantes. Ou entramos e nos perdemos nas regras moventes ou ficamos
sempre de fora. O tempo não é estático, assim como as regras, ou como as
peças do jogo. Os sentidos se alteram a cada rodada. Pensamos estar fora,
pensamos ser apenas mais alguns observadores distantes, mas é impossível.
No momento em que se olha, o jogo começa. Não há a possibilidade da
desistência. Tentamos entender o ponto em que há o encontro entre a palavra
e o objeto, mas ele nos escapa. E, quando nos é revelado o caminho real deste
jogo, não há mais aquela ironia que se pode perceber ao começar. Tudo cai na
incerteza da leitura. Somos impelidos a ler de uma forma que, de repente, se
quebra. E então somos obrigados a retroceder e começar de novo.
Le bouchon d’épouvante: uma redoma e um pequeno pedestal vermelho.
Um chapéu e uma placa dourada com sua função escrita: uso externo. Função
esta que se quebra rapidamente ao primeiro olhar. O objeto agora está
130
obedecendo a outras regras funcionais que não mais a original. Agora há uma
imobilidade que o cerca e que o impede de exercer a função escrita na placa
dourada. E o que lá está escrito aparece como uma verdade: letras grandes,
aviso simples e objetivo. É uma verdade e ela é impossível. Depois nos
perguntamos: de quem é o erro então? Não conseguimos atribuir nem ao texto
nem à imagem. Nem mesmo à redoma que cerca o chapéu. Só posso pensar no
erro proveniente do nosso sistema de leitura. O uso externo é de quê? Pelo
fato de estar etiquetado no chapéu, deveria ser atribuído, necessariamente, a
ele? Ou será que a placa dourada não remete à sua própria função de objeto,
ou apenas à sua função de coisa escrita? Por que não pensamos quase nunca
que a palavra pode somente remeter à própria palavra? Sua condição de coisa
viva nos permitiria isso. Mas fomos criados com a linguagem para
identificarmos as coisas e os nomes por um sistema de etiquetas. O que está
junto ao objeto serve para nomeá-lo ou defini-lo. Mas o que Magritte nos
propõe em várias obras é um outro pensamento. Ele nos fala das
arbitrariedades, das escolhas dos nomes e das funções e ele pretende
demonstrar as aleatoriedades destas escolhas. Como talvez tenha surgido o
primeiro nome, em um tempo que se perde na nossa incapacidade de entender
o passado das coisas.
Perco-me novamente na imagem, na imobilidade do chapéu diante de
sua função impressa, no congestionamento das informações. Perco-me no
texto que supõe uma função que não é atendida pelo objeto. Talvez Magritte
estivesse falando da própria condição de um objeto de arte. Imóvel. Talvez
ele estivesse falando dessa alteração sempre presente que sofre um objeto ao
deslocar-se do mundo real para o mundo dos objetos estáticos da arte. Mas
131
isso não quer dizer que eles percam todas as funções possíveis. Agora uma
outra é adquirida, a função de imagem.
Olhamos para as coisas e sabemos automaticamente os nomes e para
que servem. É como se estivessem escritos nelas, os nomes e as funções.
Como no chapéu. Só que o que Magritte faz é tornar real a placa (a etiqueta)
que vemos sempre colada às coisas, de forma invisível. E com esse pequeno
gesto, quase banal, ele nos revela uma prática viciada e nos desconcerta.
Porque nunca estaremos acostumados a ver reveladas as nossas leituras
cotidianas. Olhar para várias obras de Magritte nos soa a princípio quase
banal. Mas depois percebemos que o que ele faz é um gesto muito difícil para
nós, que percorremos um chão tortuoso: ele nos traz a obviedade da leitura,
ele transforma a linguagem no que ela de fato é, arbitrária. E só através de um
uso que nos parece óbvio, é possível questionar as bases que sustentam a
linguagem. Porque ela é tão arbitrária como qualquer escolha. E por isso ela
não está errada.
E de repente compreendo: não, não era apenas uma cartilha. Ele
reinventou a enciclopédia, trocou os nomes das coisas, criou novos objetos,
transformou as funções, ele tocou diretamente o mundo e a sua ordem
misteriosa. É de Calvino a lembrança:
Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de
objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser
continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras
possíveis.
61
61
CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio. p. 138.
132
Magritte sabia disso. E cuidou das coisas do mundo com outro olhar,
com os olhos de quem soube que era preciso reorganizar. Eis então a sua
enciclopédia aberta, um espaço de reordenação das coisas, da linguagem, dos
objetos comuns. Magritte desenvolveu sua obra até a vertigem, penetrou os
pequenos mistérios cotidianos e fez da pintura um espaço para o pensamento.
PEQUENA NOTA SEM CONCLUSÃO: DAS ILUSÕES PERDIDAS
Sim, perdidas. E encontradas a cada volta da imagem. Olho para todos
os lados e não encontro o reflexo invisível do meu próprio olhar. Foi Magritte
quem me disse: jogue, olhe para as palavras novamente, olhe para o espelho,
para cada imagem em que você acredita. Nada mais será igual depois de
alguns instantes.
133
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138
A
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Andy Warhol (1928-1987) – Artista norte-americano
Arman (1928-2005) – Artista francês
Arthur Bispo do Rosario (1911-1989) – Artista brasileiro
Brassaï (1899-1984) – Fotógrafo francês, de origem húngara
Chema Madoz (1958) – Fotógrafo espanhol
Cildo Meireles (1948) – Artista brasileiro
Ernst Haas (1921-1986) – Fotógrafo austríaco
Eva Rubinstein (1933) – Fotógrafa francesa, nascida na Argentina
Felix Gonzalez-Torres (1957-1996) – Artista cubano, radicado nos EUA
Florence Henri (1893-1982) – Fotógrafa americana, de origem francesa
Hélio Oiticica (1937-1980) – Artista brasileiro
Jeanloup Sieff (1933-2000) – Fotógrafo francês, filho de poloneses
José Leonilson (1957-1993) – Artista brasileiro
Joseph Kosuth (1945) – Artista norte-americano
Liliana Porter (1941) – Artista argentina
Luis Camnitzer (1937) – Artista uruguaio
Lygia Pape (1929-2004) – Artista brasileira
Manuel Alvarez Bravo (1902-2002) – Fotógrafo mexicano
Marcel Broodthaers (1924-1976) – Poeta e artista belga
Marcel Duchamp (1887-1968) – Artista francês
Paul Strand (1890-1976) – Fotógrafo norte-americano
Robert Frank (1924) – Fotógrafo suíço
Rosângela Rennó (1962) – Artista brasileira
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