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MARTA LORENTZ
SÓ PODIA SER MULHER -
as relações de gênero no trânsito
Ijuí RS
2008
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MARTA LORENTZ
SÓ PODIA SER MULHER -
as relações de gênero no trânsito
Dissertação de Mestrado apresentada
para banca de defesa final para a
obtenção do título de mestra na
Universidade do Noroeste do Estado do
Rio Grande do Sul UNIJUI,
Departamento de Pedagogia - Mestrado
em Educação nas Ciências.
Orientadora: Ana Maria Colling
Ijuí RS
2008
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Dedico este trabalho para meus pais, Willy e
Meieli, pelo carinho, amor, apoio e educação!
Eles me deram raízes para suportar com
leveza os fortes ventos da vida, e asas e
coragem para voar e descobrir novos
horizontes!
Para o Antonio e a Alexandra, pelo amor,
paciência, carinho e incentivo nas muitas horas
em que precisei ficar ausente para poder me
dedicar a esse trabalho!
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora professora Doutora Ana Maria Colling, pelo apoio, pelas
valiosas orientações, por ter me encantado com a temática gênero, pelo empréstimo
de livros e materiais que me auxiliaram ao longo da pesquisa. Enfim, por ter me
guiado com dedicação, firmeza e carinho nessa caminhada.
À professora Doutora Anna Santiago e ao professor Doutor Celso Martinazzo
por terem aceito fazer parte da banca de avaliação e pelas excelentes contribuições
que muito auxiliaram no aperfeiçoamento desse trabalho.
Á professora Doutora Sandra Vidal Nogueira, pela pronta disponibilidade em
fazer parte da banca de avaliação.
À minha família, pelo carinho e incentivo constantes.
Às minhas amigas Astrid, Anabel, Adriane, Simone, Dieine e Marli que, de
uma forma muito particular e além mar, me ajudaram a suportar a distância, me
socorreram em momentos de crise, me apoiaram nas muitas horas em que precisei
de um ombro amigo.
À todos os professores e funcionários do Mestrado em Educação nas
Ciências da Unijuí.
Aos colegas do Mestrado, em especial a Cláudia, a Cris e ao Oswaldo, pela
amizade, pela solidariedade em momentos que precisei de mãos amigas.
A todas as pessoas que, de uma forma ou outra, me auxiliaram nessa
caminhada através de palavras amigas, apoio, solidariedade, compreensão.
RESUMO
Nesse trabalho, abordamos as relações de gênero sob o prisma do trânsito.
Investigamos, então, o que o trânsito pode nos revelar sobre as formas como as
relações de gênero estão estruturadas. Nesse sentido, podemos observar que, nas
últimas décadas, houve um avanço da mulher em áreas que foram, por muito tempo,
consideradas exclusivamente masculinas. Tecemos uma reflexão sobre se o fato de
as mulheres terem conquistado mais espaço, na vida pública, implica em uma
mudança de base das relações de gênero ou se é somente uma nova forma de
manter a dominação masculina. O trânsito oferece, nesse sentido, um amplo espaço
para analisarmos essas relações, onde elas acontecem diariamente, na expressão
de nossos comportamentos. Para realizarmos tal abordagem analítica, apoiamo-nos
em uma metodologia qualitativa de revisão bibliográfica, embasada em diversos
materiais, como livros, pesquisas, jornais e revistas.
Para podermos dar conta do referencial teórico necessário a essa discussão,
exploramos vários conceitos essenciais ao entendimento das questões teóricas.
Situamos devidamente nossa abordagem no tempo e no espaço em relação ao
conceito gênero. Abordamos, de forma central, os vários discursos que, de maneira
decisiva, contribuíram para moldar o masculino e o feminino da forma como hoje o
vemos e vivenciamos, bem como o percurso de construção ao longo da história da
humanidade. Traçamos um perfil de homens e mulheres, na atualidade, e refletimos
sobre a questão do lugar simbólico que o automóvel ocupa na vida simbólica dos
mesmos. Nesse sentido, nosso estudo pretende contribuir para ampliar a reflexão
sobre os papéis masculinos e femininos na nossa sociedade.
O trabalho demonstra que, no trânsito, ocorre uma radicalização das relações
de gênero. Apesar do avanço das mulheres, em áreas antes exclusivamente
masculinas, as fronteiras entre o que é “do masculino” e o que é “do feminino”,
nesse espaço simbólico, ainda se encontram bem delimitadas.
Palavras-chave: gênero, discurso, trânsito.
ABSTRACT
In this piece of work we approach the gender relations in regard to the traffic.
Therefore we investigate what the traffic can reveal us about the ways the gender
relations are structured. In this sense we can observe that in the last decades there
has been woman advances in areas which were considered exclusively masculine for
a long time. In this research, we reflect on if the fact women have conquered more
space in public life implies a change of the base of the gender relations, or it is only a
new way of keeping men’s domination. In this sense, the traffic offers a wide ground
for us to analyze these relations, for they happen there in a daily basis and are
expressed by our behaviors. For an analytical approach, we have relied on a
qualitative methodology of bibliographic review based on various materials, such as
books, researches, newspapers and magazines. For the necessary theoretical
reference to this discussion, we analyzed many essential concepts needed for the
understanding of the theoretical issues. Our approach was situated in time and space
regarding to the concept of gender. We mainly discussed the various discourses
which contributed decisively to shape the masculine and feminine definitions in the
way we live and see them nowadays, and how these concepts were historically built.
We described the present women’s and men’s profiles and reflected on the symbolic
place the car occupies in their symbolic lives. Our study aims to contribute to broaden
the reflection on the male and female roles in our society. The study demonstrates
that there is a radicalization of the gender relations in the traffic. In spite of the
women’s conquests in many areas that were once exclusively masculine , the
frontiers of what is “masculine” and what is “feminine” are still more strictly delimited
in the symbolic space which is the traffic.
Key words: gender, discourse, traffic.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
....................................................................................................
07
1
A
HISTÓRIA DO MASCULINO E DO FEMININO
.................................................
1
3
1.1
A
Representação e
a
Identidade
.......
........................................................
2
0
1.2
O Poder nas Relações de Gênero
.............................................................
3
1
2
TEMPOS DIFERENTES, DISCURSOS IGUAIS
.............................................
46
2.
1 As Influências do Discurso Greco
-
Romano
.............................................
47
2.2 As Influências do Discurso Religioso
......................................................
5
4
2.3 Os Discursos Atuais
.........................................
.........................................
.
6
3
3
OS HOMENS E AS MULHERES NO ESPAÇO
PÚBLICO E PRIVADO
...
7
2
3.1 A Questão da “Propriedade”
....................................................................
77
3.2 O Espaço Público do Trânsito
......
.............................................................
88
3.3 Mulheres e homens no trânsito: discursos atuais
..................................
97
CONSIDERAÇÕES FINAIS
..............................................................................
.
11
3
REFERÊNCIAS
..................................................................................................
12
1
ANEXOS
.............................................................................................................
12
5
7
INTRODUÇÃO
Neste trabalho, abordamos as relações de gênero e trânsito, no sentido de
refletir o que elas querem nos falar (o que nos falam) sobre a forma como essas
relações ainda hoje acontecem. O trânsito será uma ferramenta, por nós utilizada,
para nos questionarmos sobre quais são os discursos que estão implicados nas
questões relativas ao gênero.
Nesse sentido, levantamos questões como: O preconceito em relação às
mulheres no trânsito existe realmente? Por parte de quem? E o que ele (preconceito)
nos comunica no interior do intrincado jogo de relações masculino/feminino, que
sempre ocupou a mente da humanidade? Basta que as mulheres saiam de suas
casas, dirigindo seus carros, para que cessem os preconceitos e as piadas em
relação a ela? Ou será que teremos que desconstruir essa história e, ainda assim,
perceber que, na verdade, a forma que essas relações tomam é simplesmente
reflexo do que elas significam para toda humanidade?
Em nosso trabalho, pretendemos também refletir sobre se o avanço das
mulheres, na vida pública, implica uma mudança de base das relações de gênero ou
se tal avanço é somente uma nova forma de manter a dominação masculina. O que
revela o fato de as mulheres assumirem mais freqüentemente a direção de um
8
carro? Houve alguma mudança na relação entre homens ou mulheres? Alterou a
identidade do gênero no sentido de mudar “o sentimento de ser homem” e “o
sentimento de ser mulher”? É possível identificar o que mudou e em que medida se
dá essa mudança?
Consideramos oportuno salientar que a idéia deste trabalho surgiu a partir da
prática do nosso trabalho como Psicóloga Perita, examinadora de Trânsito,
credenciada ao Detran-RS, nas cidades de Cândido Godói e Santa Rosa, entre os
anos de 1997 e 2007. Com o trabalho diário, observamos que as mulheres
manifestavam mais dificuldades na realização das provas práticas do que os
homens; já, nas provas teóricas, percebemos poucas diferenças em relação ao
desempenho apresentado entre homens e mulheres. Nesses anos de trabalho junto
ao Detran-RS, todos os casos de fobia de dirigir que nos foram encaminhados foram
com mulheres. Conforme Corassa
1
(2000: 30), “as pessoas que têm fobia de dirigir
são em sua maioria mulheres [...]. E quase todas têm vida profissional definida.
Socialmente são vitoriosas”. De fato, a maioria das mulheres atendidas era de
mulheres adaptadas pessoal e socialmente, que sentiam muita dificuldade em
aprender a dirigir. Instalava-se um verdadeiro pavor, fazendo-as sentirem-se
incapazes e ansiosas. Não raro, tinham a percepção de grande cobrança exterior e
o sentimento de desajuste por não conseguirem “fazer uma tarefa que a maioria das
pessoas aprende sem dificuldades” (idem). Eram freqüentes os relatos de que elas
se tornavam motivo de piadas e “chacotas” entre familiares e colegas, sendo que,
muitas vezes, sua dificuldade era associada ao fato de serem mulheres. Algumas
desistiam de dirigir, alegando que, como o pai ou esposo sabia dirigir, não havia
1
CORASSA, Neuza. Vença o medo de dirigir. São Paulo: Gente, 2000.
9
necessidade de fazê-lo em uma compreensão de que, afinal, o fato de não o
fazerem não era de todo ruim.
Diante dessas observações, desnudou-se, para nós, a necessidade de
investigar o que ocorria com essas mulheres. O que acontece com homens e
mulheres no espaço público do trânsito? Seriam simples coincidências ou, no
anonimato da vida quotidiana, esses fatos, relacionados às percepções femininas,
nos falam sem disfarces de como se estrutura a vida de homens e mulheres
atualmente? Que papel assume a educação formal na criação e perpetuação desses
papéis sociais? Considerando tais comportamentos como sintomas da condição
feminina, perguntamos: o que eles querem nos comunicar na sociedade
contemporânea? Acreditamos que as questões de gênero que são discutidas
atualmente, tais como o avanço das mulheres em espaços antes
predominantemente masculinos, a diferença entre os sexos, sofram uma
radicalização no espaço do trânsito. Os lugares sociais dos sexos voltam a ter seus
limites definidos, pois crescemos aprendendo que “carrinho” é brinquedo de menino
e “boneca” brinquedo de menina. Atualmente os limites dos espaços públicos e
privados estão apagados, tornando as identidades plurais e flexíveis, mas, no
espaço do trânsito, estes limites voltam a ficar mais definidos tanto que, quando
vemos uma motorista de caminhão, ainda nos surpreendemos. E, se nos
surpreendemos, é porque ainda achamos que ela (mulher) ocupa um espaço que
não foi feito pra ela”, e assim parece que ela está ultrapassando seus limites.
Salientamos que nossa pretensão é apresentar uma abordagem analítica de
como se dão as relações de gênero no trânsito. Esta abordagem vem ao encontro
da pertinente, atual e necessária reflexão sobre as conquistas femininas de espaços
sociais, o que justifica sua relevância.
10
Acreditamos que, apesar dos avanços que a mulher obteve, em praticamente
todos os setores da sociedade, ainda existem brechas, sulcos, lacunas, nos quais
percebemos a dificuldade de transpor preconceitos e vemos um predomínio
claramente masculino. Tais sulcos, quando analisados de forma mais detalhada,
revelam-nos a força que atividades aparentemente quotidianas trazem consigo, pois
sabemos que são esses exercícios da vida diária quando simplesmente somos
que cristalizam, eternizam, reforçam e criam comportamentos. Ao criar
comportamentos, criam regras que, por sua vez, legitimam sua permanência e
importância na coletividade. O trânsito oferece um vasto meio para podermos
analisar as relações de gênero no lugar em que elas acontecem diariamente: nas
ocupações e relações sociais.
Podemos dizer ainda que a relevância do nosso trabalho de pesquisa se dá
em função de a sexualidade ter assumido um papel central nas sociedades
ocidentais modernas, em que quotidianamente as pessoas são apresentadas e
representadas a partir de sua identidade de gênero e identidade sexual. É, pois,
sendo homens ou mulheres, que apreendemos o universo que nos cerca, que nos
colocamos em relação com as outras pessoas; enfim, que existimos.
Para tornar viável a presente pesquisa, apoiamo-nos em uma metodologia
qualitativa de revisão bibliográfica embasada em diversos materiais de autores
nacionais e internacionais, como livros, artigos de periódicos, legislações e
pesquisas. Utilizamo-nos também da pesquisa em via eletrônica (internet), visto que
a internet é usada cada vez mais, na atualidade, como instrumento de propagação
de pensamentos e concepções através de artigos e resenhas acadêmicas, de envio
de mensagens, piadas e imagens relacionadas às questões de gênero. Além disso,
reunimos materiais coletados em jornais, revistas, placas de caminhões.
11
Utilizamos também uma pesquisa relativa aos resultados de provas práticas e
teóricas, coletadas em local de trabalho, a partir da qual é possível analisar o
desempenho de homens e mulheres, nestas provas, e traçar um paralelo entre as
diferentes provas. A partir da observação do conjunto dos dados coletados e tendo
por apoio os pilares metodológicos previstos, temos condições de realizar um
qualificado trabalho de análise e de formular conclusões acerca das relações de
gênero emergentes no trânsito.
Relativamente ao Referencial Teórico necessário para sustentar a discussão
a que nos propomos fazer, vamos explorar, ao longo de nosso trabalho, conceitos
essenciais ao entendimento das questões teóricas, como: poder, discursos,
identidade, representação e biopoder.
A presente dissertação, que elege a abordagem sobre as relações de gênero
no trânsito, apresenta-se dividida em três capítulos. No primeiro, pretendemos
desenvolver toda a estrutura conceitual da dissertação, ou seja, damos “corpo” ao
trabalho, situando-nos no espaço e no tempo em relação ao conceito gênero.
Elegemos a questão da identidade, da representação e do poder nas relações de
gênero, como conceitos-chave a serem desenvolvidos.
No segundo capítulo, abordamos os discursos que, de forma decisiva,
contribuíram para moldar o masculino e o feminino da forma como os vemos e os
vivenciamos. Vamos examinar, de maneira mais detalhada, as influências do
Discurso Greco-Romano e do Discurso Religioso. Procuramos também refletir sobre
qual é os discurso que hoje em dia ancoram as relações de gênero, o que ele nos
transmite sobre os papéis sociais de homens e mulheres. Através de cartuns,
piadas e frases em pára-choques de caminhões, vamos nos ater a investigar quais
são os discursos que, hoje em dia, norteiam as relações sociais e as de gênero. E
12
quais são os discursos que permeiam as relações de gênero primeiramente, na
sociedade como um todo e, especificamente, no trânsito? O que eles (estes
discursos) nos falam sobre como se configuram as relações entre homens e
mulheres na atualidade?
No terceiro capítulo, focamos nosso estudo nos espaços públicos e privados,
observando o significado que cada um possui na constituição das relações de
gênero. Também vamos investigar o valor simbólico do espaço trânsito, um espaço
público caracteristicamente masculino.
Nas considerações finais, procuramos confrontar nossa análise de dados com
os questionamentos inicialmente apresentados no presente trabalho. De forma
alguma, pretendemos fazer aqui um estudo conclusivo sobre como se dão as
relações de gênero no trânsito. Nosso estudo pretende contribuir para ampliar a
reflexão sobre os papéis masculinos e femininos, sob o prisma do trânsito, visto que
quase não encontramos referências sobre estudos desse espaço tão significativo
simbolicamente para a sociedade atual em que vivemos.
13
1 A HISTÓRIA DO MASCULINO E DO FEMININO
A importância de analisarmos a categoria gênero reside justamente no
questionamento dos papéis sexuais que sempre foram destinados distintamente aos
homens e às mulheres. Cabe registrar aqui que o questionamento é em relação aos
papéis que homens e mulheres personificam quando estão dirigindo ou se
encontram em trânsito. A noção trânsito, segundo Ferreira
2
(1988: 645), pode ser
definida como: “movimento, circulação, afluência de pessoas ou de veículos;
trafego.
As relações entre masculino/feminino são tão antigas quanto a própria
humanidade. Precisamos, então, fazer uma viagem no tempo, buscando
compreender os conceitos que estão implicados quando falamos em relações de
gênero, no sentido de sabermos exatamente o que essa noção nos quer comunicar.
Segundo Scott
3
(1995: 88), “estabelecidos como um conjunto objetivo de
referências, os conceitos de gênero estruturam a percepção e a organização
concreta e simbólica de toda a vida social”. Assim, estudar gênero implica
adentrarmos na sua significação histórica, social e simbólica, contemplar o aspecto
relacional entre homens e mulheres, entremeado por relações de poder, não sendo
possível a compreensão de nenhum dos dois em um estudo que os considere
totalmente separados. Gênero é um conjunto de expressões sobre aquilo que se
pensa do masculino e do feminino. Há, pois, uma série de fatores que, combinados,
constroem um homem ou uma mulher. Em outras palavras, a sociedade constrói
2
FERREIRA, Elze e Org. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1988.
3
SCOTT, Joan. Gênero: Uma categoria Útil de análise Histórica. In: Educação & Realidade. Gênero
e Educação. Porto Alegre: UFRGS, 1995.
14
significados, símbolos, características, para definir cada um dos sexos, no decorrer
dos séculos, que fazem a sua história. Não podemos esquecer o biológico como um
fator importante, mas devemos sempre levar em conta que o corpo biológico se
encontra inserido num contexto sócio-histórico.
Nesse sentido, é fundamental perguntar: o que queremos comunicar quando
utilizamos o termo gênero? A denominação de gênero, com o significado que lhe
atribuímos hoje em dia, como categoria de análise histórica, surge, no último século,
com o sentido de sexo na cultura em oposição ao sexo biológico. De acordo com
Steffen
4
(2006: 12,13), “em 1968, o Psicólogo Robert J. Stoller utilizou pela primeira
vez o termo gênero, tendo outro significado do que aquele gramatical: para
diferenciar a identidade sexual biológica da social”. O uso do termo gênero e de sua
rápida expansão marcam o início dos estudos de gênero e o fim do dualismo, que
reduzia a mulher ao eterno Outro da vida do homem. Para Colling
5
(2006: 39), “falar
em gênero, em vez de falar em sexo, indica que a condição das mulheres não está
determinada pela natureza, pela biologia ou pelo sexo, mas é o resultado de uma
invenção social e política”.
No presente trabalho, utilizamos o conceito de gênero, trazido por Scott
(1995: 14), segundo o qual “gênero é um elemento constitutivo de relações sociais
fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro
modo de dar significado às relações de poder”. A partir dessa concepção, a relação
entre os sexos não se coloca como algo natural, dado pela natureza, mas sim como
uma relação socialmente construída e constantemente renovada. Quando pensamos
4
STEFFEN, Therese Frey. Gender. Reclam Verlag Leipzig, 2006
Aqui é no original: 1968 verwendete der Psychologe Robert J. Stoller den Begrif gender erstmals in
einem anderen als grammatischen Sinne: zur Differenzierung sozialer und biologischer
Geschlechtsidentitäat.
5
COLLING, Ana Maria. Gênero e História, Um diálogo Possível? In: Contexto e Educação. Gênero
e Educação-Um diálogo necessário-Ano XIX, n 71/72-janeiro/dezembro 2004. Impresso em 2006.
Ijuí: Unijuí, 2006.
15
em renovação dessas relações, estamos querendo dizer que essas relações estão
em constante movimento. A questão é se tal movimento significa que houve efetiva
mudança ou apenas essas relações adquiriram novas formas de manifestar o velho.
Considerando as reflexões de Strey
6
(1999: 11), observamos que ela pondera que
“as mudanças podem ser simplesmente novas maneiras de inviabilizar a
discriminação, permanecendo o núcleo e a base das relações inalteradas.
Cada época da história existiu com seus paradigmas. Podemos observar que
os papéis do masculino e do feminino são também moldados em conformidade com
esses paradigmas. Nisso temos que é de fundamental importância a análise cultural
e histórica da categoria gênero, pois, como nos lembra Colling (2006), a
representação da diferença sexual se deve muito pouco à ciência e quase tudo à
política e à cultura.
Para compreendermos como começa essa longa história, devemos nos
reportar aos antigos, quando começamos, como humanidade, a pensar e registrar a
nossa história, primeiro através de desenhos e depois através da escrita. Perrot
7
(2007: 16) chama a atenção para o fato de que essa história da qual falamos é uma
história de homens narrada para homens, pois “as mulheres ficaram muito tempo
fora desse relato, como se, destinadas à obscuridade de uma inenarrável
reprodução, estivessem fora do tempo, ou, pelo menos, fora do acontecimento.
Confinadas no silêncio de um mar abissal”.
É importante que façamos uma desconstrução da história do masculino e do
feminino, no sentido de demonstrar como esses conceitos foram produzidos e
construídos, ao longo da história da humanidade. Tal desconstrução auxiliar-nos-á
6
STREY, Marlene Neves (Org). Gênero por escrito: Saúde, Identidade e Trabalho. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1999.
7
PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. São Paulo. Contexto, 2007.
16
na tarefa de refletir sobre quanto do comportamento masculino e feminino, em
nossos dias, ainda está associado a épocas antigas, sem que, ao menos, nos
demos conta disso. Pensemos em quantos dos comportamentos que, atualmente,
repetimos e temos por natural já eram, em outras épocas, esperados dos sujeitos
masculinos ou femininos. Inclusive Bourdieu
8
(2002) manifesta sua surpresa ao
perceber como as relações de dominação ainda se perpetuam tão facilmente e são
vistas, de forma permanente, como naturais e aceitáveis. Apesar dos movimentos
contrários, a tendência de manter a estrutura que está dada se mantém com toda
sua força e sutileza.
Nos primórdios da humanidade, quando os homens ainda não tinham
descoberto o vínculo entre sexo e procriação, havia um culto à figura feminina, na
imagem da Deusa-Mãe. Em Lins
9
(1997), temos que a Deusa-Mãe reinou absoluta
desde o fim do período paleolítico até o início da Idade de Bronze. Isso está
diretamente ligado ao desenvolvimento da agricultura. Observando os animais, os
homens começaram a se dar conta que havia uma ligação entre sexo e procriação, e
passaram a sentir seu papel como fundamental na fecundação.
À medida que a agricultura se desenvolve, cada vez mais, o homem assume
o papel principal na relação homem/mulher. Quanto mais filhos um homem tivesse,
mais pessoas ele teria para auxiliá-lo no trabalho. Dessa forma, a mulher passa a
ser desejada e vista como fornecedora de filhos para os homens. O papel da Deusa
perde importância, ao passo que o papel do herói-guerreiro ganha espaço. Para
garantir que os filhos fossem seus, a mulher teria que manter relações sexuais só
com um homem. Logo, a mulher passa a ser considerada propriedade do homem.
8
BOURDIEU, Pierre. A dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
9
LINS, Regina Navarro. A Cama na Varanda Arejando Nossas Idéias a respeito de Amor e
Sexo. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1997.
17
A natureza sempre esteve associada à figura feminina, aos ciclos de
plantação e colheita, às estações do ano. Com a agricultura, o homem percebeu que
podia dominar a natureza, que podia guardar grãos, que podia acumular riquezas
aumentando seu patrimônio. Trata-se também de uma diferença essencial que
perdura até hoje entre homens e mulheres: enquanto o homem procura dominar a
natureza, a mulher, pela maternidade, ainda está amarrada ao biológico. Em
Beauvoir
10
encontramos que:
A fêmea é mais do que presa ao macho da espécie; a humanidade sempre
procurou evadir-se de seu destino específico; pela invenção da ferramenta,
a manutenção da vida torrnou-se para o homem atividade e projeto, ao
passo que, na maternidade, a mulher continua amarrada a seu corpo, como
o animal. É porque a humanidade se põe em questão em seu ser, isto é,
prefere razões de viver a vida, que perante a mulher o homem se pôs como
senhor, o projeto do homem não é de se repetir no tempo, é de reinar sobre
o instante e construir o futuro. (1960: 86)
Os nômades se fixam ao solo e surgem as instituições e o direito. Este viria
garantir a propriedade e preservá-la para a posteridade. Voltaremos a abordar mais
especificamente o tema direito ao tratarmos do Discurso Romano.
A mitologia grega sempre destacou as Deusas, como: Atena, Afrodite,
Artemis, Pandora, Gaia, Minerva, Deméter. Mesmo sendo a inteligência e o
pensamento representados pela Deusa Minerva, é interessante percebermos que
ela não nasce do corpo de sua mãe, mas da cabeça de seu pai, Zeus.
A primeira mulher, segundo a mitologia grega, é Pandora. Em artigo sobre
esse mito, Chassot
11
faz a seguinte referência:
10
BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo - Fatos e Mitos. Edições da Difusão Européia do Livro.
São Paulo, SP, 1960.
11
CHASSOT, Attico. A Ciência é Masculina? É sim senhora!... In: Contexto e Educação. Gênero e
Educação-Um diálogo necessário-Ano XIX, n 71/72-janeiro/dezembro 2004. Ijuí: Unijuí. 2006
18
No princípio, os mortais (os humanos) conviviam com os imortais (os
deuses nascidos da Terra e do Céu), divididos em linhagens paralelas e
algumas vezes se estabeleciam conflitos entre os deuses e os humanos.
Esses diferentes gêneros de seres-mortais e imortais - formavam uma
sociedade homogênea em que reinava felicidade. Um dia, porém, ocorre um
grave conflito. Prometeu, filho de Titão, zombou de Zeus quando da partilha
de um boi destinado a um banquete. As disputas sucedem-se. Prometeu
rouba o fogo do Olimpo e o presenteia aos humanos. Depois de sucessivas
lutas, Zeus resolve dar um castigo àqueles que estavam felizes com o
presente de Prometeu: -lhes a mulher. Esta se chama Pandora e traz
consigo uma caixa fechada, de onde deixará escapar todos os males que
afligiriam os homens. (2006: 16)
A mulher passa, então, a ser vista como aquela que traz a desgraça para a
vida dos homens; logo, é perigosa. Esta é uma concepção que repercute até hoje
em nossas vidas, visto que a relação dos gregos com seus deuses organizou uma
versão mítica acerca de muitas coisas do nosso cotidiano. A origem mítica grega
relacionada à origem das mulheres também faz parte de conceitos míticos fundantes
da nossa sociedade, que continuam a vigorar, mesmo que de forma velada ou
modificada.
Discursos de efeito negativo sempre acompanharam a figura feminina: de
irracional, imperfeita, incapaz de guardar segredos, curiosa como Pandora. A idéia
de que a figura feminina tem menos valor acompanha o pensamento dominante há
muito tempo, desde a antiga Grécia até os dias atuais. Podemos dizer que esses
discursos, que colocaram a mulher como inferior, passaram ao status de discursos
de verdade. De acordo com Foucault
12
,
Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua política geral de verdade:
isto é, os tipos de discurso que aceita como verdadeiros; os mecanismos e
instâncias que permitem distinguir entre sentenças verdadeiras e falsas, os
meios pelos quais cada um deles é sancionado; as técnicas e
procedimentos valorizados na aquisição da verdade; o status daqueles que
estão encarregados de dizer o que conta como verdadeiro. (2004: 131)
12
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 2004.
19
A mulher também sempre foi associada ao lado obscuro da vida, exemplo
disso são as noções da morte e da noite, pensadas no feminino. Beauvoir nos
coloca que:
Tem, assim, a Mulher-Mãe um rosto de trevas: ela é o caos de que tudo
saiu e ao qual tudo deve voltar um dia; ela é o nada. Dentro da noite
confundem-se os múltiplos aspectos do mundo que o dia revela: noite do
espírito encerrada na generalidade e na opacidade da matéria, noite do
sono e do nada. No Fundo do mar impera a noite: a mulher é o Mare
tenebrarum temido dos antigos navegadores; a noite impera nas entranhas
da terra. Essa noite pela qual o homem receia ser tragado e que é o inverso
da fecundidade, apavora-o. Ele aspira ao céu, à luz, aos picos ensolarados,
ao frio puro e cristalino do azul; e, a seus pés, há um abismo úmido e
quente, obscuro, pronto para abocanhá-lo; numerosas lendas mostram-nos
o herói que se perde para sempre recaindo nas trevas maternas: caverna,
abismo, inferno. (1960: 187)
A aliança da mulher com a morte traduz-se também na associação da morte
como ceifadeira de vidas, que é a figura invertida da fecundidade. A mulher, então,
traz em si a simbologia do início e do fim da vida, o que a liga simbolicamente aos
ciclos da vida, início e fim, confirmando irremediavelmente seu laço com a natureza.
O homem sempre tentou dominar a natureza, numa tentativa de também dominar a
morte. A mulher, por sua vez, o lembra incessantemente que os ciclos da natureza,
de vida e de morte, se confirmam, não precisando de sua aprovação. Podemos
entender o domínio masculino como uma busca desenfreada de estancar essa
angústia que a nossa natureza animal carrega: a de que por mais humanos que nos
tornemos, não podemos controlar totalmente a natureza. Dessa forma, controlando a
mulher, o homem sente simbolicamente como se controlasse também os ciclos de
vida e morte.
Precisamos também analisar de que forma as diferenças anatômicas entre os
sexos passaram a simbolizar a diferenciação social, no sentido de que se um sujeito
nasce com órgãos sexuais masculinos, deve se comportar então como homem;
20
sendo os órgãos sexuais femininos, espera-se que tenha comportamentos
femininos. Bourdieu
13
(1995) nos coloca que os órgãos sexuais, por condensarem a
diferença, passam a ser um símbolo dela. E por serem símbolos privilegiados,
encerram em si significações e valores que estão de acordo com a cultura
falocêntrica que os criou e legitimou. Para Bourdieu,
Não é o falo (ou sua ausência) que é o princípio gerador dessa visão do
mundo, mas é essa visão do mundo que, estando organizada (por razões
sociais que será necessário descobrir) segundo a divisão em gêneros
relacionais, masculino e feminino, pode instituir o falo- construído em
símbolo de virilidade, do nif (ponto ou questão de honra, NT) propriamente
masculino- em princípio da diferença entre os sexos (no sentido de
gêneros), e basear na objetividade de uma diferença natural entre os corpos
biológicos a diferença social entre duas essências hierarquizadas. (1995:
149)
Considerando este fragmento de Bourdieu, a diferença entre os sexos se
manifesta não só nos signos hierárquicos, mas também nos detalhes aparentemente
insignificantes do dia-a-dia, tais como roupa, atitudes, penteados, trejeitos.
Para realizarmos um movimento de desconstrução de concepções
estruturantes que contribuíram para a permanência e perpetuação do domínio
masculino, trabalhamos, nesta pesquisa, em primeiro lugar, com os conceitos que
pensamos que sejam essenciais para a compreensão do nosso estudo:
representação, identidade e poder.
1.1 Representação e Identidade
Consideramos importante nos atermos ao conceito de representação e suas
implicações para esse estudo, porque devemos entender como acontece a
13
BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. In: Educação e Realidade. Gênero e Educação.
Porto Alegre: UFRGS, 1995.
21
representação de gênero. A representação nos fala de que forma as coisas são
trazidas à nossa lembrança: Quando falamos “mulher”, o que isso evoca em cada
pessoa? Quando falamos “homem”, o que nos lembra tal palavra?
Nesse sentido, quando temos uma representação, ela serve para diferenciar
uma coisa das outras. Quando falamos “mulher”, lembramos sexo feminino,
lembramos mãe, lembramos seio, lembramos batom. Já, quando falamos “homem”
lembramos de sexo masculino, virilidade, pai. A representação serve para evocar
uma diferença, para classificar. O nosso modo de pensar se organiza por esquemas
de pensamento, nos quais agrupamos todas as coisas por categorias, diferenciando
uma coisa de outra. Por exemplo, quando falamos “mesa”, sabemos que mesa é
diferente de cadeira. Logo, as cadeiras são excluídas do nosso pensamento.
Contudo, a representação cria modelos, generaliza. Por isso, se faz necessário
vermos de que forma o masculino e o feminino encontram-se representados em
nossa sociedade.
Relativamente à noção de representação, encontramos em Silva
14
a seguinte
afirmação:
A representação é um sistema de significação. Utilizando os termos da
lingüística estruturalista, isto quer dizer: na representação está envolvida
uma relação entre um significado (conceito, idéia) e um significante (uma
inscrição, uma marca material: som, letra, imagem, sinais manuais). Nessa
formulação não é necessário remeter-se à existência de um referente (a
“coisa” em si): as coisas só entram num sistema de significação no
momento em que lhes é atribuído um significado - nesse exato momento já
não são simplesmente “coisas em si”. (2003: 35)
O processo de significação é, fundamentalmente, social. Isso quer dizer que a
representação é um significante que nos evoca a realidade concreta. A cada “coisa”
14
SILVA, Tomaz Tadeu. O Currículo Como Fetiche - A Poética e a Política do Texto Curricular.
Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
22
conferimos um significado social. Não existe uma convenção natural, por exemplo,
na palavra “árvore”, que ligue seu significante ao seu significado. Um signo
(significante + significado) só adquire seu significado num processo de
diferenciação. Silva (2003) cita os estudos lingüísticos de Saussure
15
quando nos
fala que o signo lingüístico é arbitrário, visto que a língua, para ele, é a expressão do
pensamento. Esta expressão do pensamento é mediada pela língua, que é um
sistema de signos. É na relação que se estabelece no sistema social, em que os
signos adquirem valor, que eles significam. A língua é uma rede de signos que, ao
mesmo tempo, se relacionam e se significam nessa relação.
Para o nosso estudo, tal pensamento é importante porque, quando falamos
que um signo adquire significado na relação com outro signo, percebemos que essa
relação também é uma relação de oposição. É nela que um signo adquire valor pelo
significado negativo de outro signo. Por exemplo, quando usamos o signo “frio”, o
significamos no nosso mundo social em oposição ao signo “quente”. Dizer que “a
água está fria” significa que “a água não está quente”. Ocorre, então, um processo
de diferenciação. Assim, quando falamos “mulher”, estamos falando de uma pessoa
do sexo feminino e que, portanto, não faz parte do sexo masculino um homem.
Um signo só fica claro nessa rede de diferenças. Sua identidade é sempre
dependente da diferença. Segundo Silva (2003), ampliando a teoria de Sausurre,
existem signos nos quais a relação entre significado e significante não é totalmente
arbitrária, mas o importante é termos em conta que os signos são o que são e
15
Saussure é considerado o pai da Lingüística, visto que suas aulas sobre lingüística geral,
ministradas entre 1906 e 1911, marcam o início do estruturalismo. A autoria do “Curso de Lingüística
Geral” (1916) é atribuída a Saussure, ainda que tenha sido publicado três anos após sua morte
(1913), a partir das anotações de um de seus alunos.
23
significam o que significam, porque nós os fizemos assim. Considerando as
reflexões teóricas de Silva, encontramos a seguinte afirmação:
Em primeiro lugar, a representação é compreendida, aqui, sempre, como
marca material, como inscrição, como traço. A representação aqui referida
não é, nunca, representação mental. Em segundo lugar, se o significado,
isto é, aquilo que é supostamente representado, não está nunca
plenamente presente no significante, a representação - como processo e
como produto- não é nunca fixa estável, determinada. (...) a representação
só adquire sentido por sua inserção numa cadeia diferencial de
significantes. (2003: 41)
Nessa ótica, para designar masculino, precisamos do feminino (e vice-versa),
criando uma cadeia de significantes, em que um depende do outro para ter sentido.
Para a episteme moderna, essa relação entre os significantes é mais importante do
que a identidade e a diferença. E aqui entra Michel Foucault
16
(1995), com sua
teoria, quando nos fala da importância dos discursos, na representação, de
conhecer de que forma os objetos de análise são construídos discursiva e
lingüisticamente. Conforme Silva (2003), as práticas discursivas se tornam, então, o
centro de análise.
Os discursos não se limitam a nomear as coisas, mas eles também as criam.
Os signos criam sentidos. Por “parecerem reais” é que esses signos têm efeito de
verdade, ou seja, se tornam discursos. Quando afirmamos, por exemplo, que
meninas brincam de boneca, estamos cristalizando um discurso que acreditamos ser
verdadeiro: que meninas que são meninas brincam de boneca. Se as meninas
brincam de bonecas, os meninos brincam de jogar bola. E isso se transforma em
discursos. Entre as relações de poder, que se definem o que eles dizem e como
dizem; e é nos efeitos de poder que eles movimentam, que se situam os discursos
16
FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. Uma trajetória filosófica para além do estruturalismo
e da hermenêutica. (Org.) Dreyfus, H; Rabinow. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
24
de verdade. Para Silva (2003), Foucault (1995) centra suas investigações na
questão da representação, uma vez que se afastou da análise fenomenológica para
centrar-se na forma pela qual os objetos são construídos por meio de sistemas de
significação.
A identidade cultural ou social, de acordo com Silva (idem), é:
O conjunto daquelas características pelas quais os grupos sociais se
definem como grupo: aquilo que eles são. Aquilo que eles são, entretanto é
inseparável daquilo que eles não são, daquelas características que os
fazem diferentes de outros grupos. Identidade e diferença são, pois,
processos inseparáveis. (2003:46)
Essa definição de identidade nos fala do sujeito moderno, que tinha uma
identidade bem definida e localizada no mundo social. As identidades, que por muito
tempo foram sólidas localizações, nas quais os sujeitos se encaixavam socialmente,
hoje se encontram com fronteiras indefinidas que provocam crises de identidade. As
identidades modernas estão sendo “descentradas”, no sentido de que as
transformações no mundo social (transformações tecnológicas, industriais,
econômicas e culturais) provocam um deslocamento do sujeito no mundo social.
Nisso temos que a identidade que entrou em crise é a do sujeito soberano, universal
e não a da mulher.
Stuart Hall
17
(1999) defende a idéia de que as identidades modernas estão
sendo deslocadas, que esse deslocamento ocorre através de várias rupturas nos
discursos do conhecimento moderno. Ele aborda cinco formas de descentramento
do sujeito. O primeiro descentramento ocorre, conforme as tradições do pensamento
marxista, principalmente pela reinterpretação, na década de 60 do século XX, da
frase “homens fazem história, mas sob condições que lhe são dadas”. O segundo, é
17
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 3ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.
25
a descoberta do inconsciente por Freud. Essa teoria, ao nos mostrar que as
identidades, a sexualidade e a estrutura são constituídas “com base em processos
psíquicos e simbólicos do inconsciente, que funciona de acordo com uma “lógica”
muito diferente daquela da Razão” (Hall: 1999, p.27), abala o conceito de sujeito
racional de identidade fixa. O terceiro descentramento é, conforme a lingüística
estrutural de Saussure, aquele que coloca os sujeitos não como autores das
afirmações que fazem e nem dos significados expressos na língua. Já o quarto
descentramento da identidade do sujeito ocorre no trabalho de Michel Foucault
(1995), com o poder disciplinar que vigia e disciplina as populações modernas
(quartéis, fábricas, escolas, hospitais, prisões) e que busca produzir, através de
mecanismos disciplinares, sujeitos com corpos dóceis. E o último descentramento é
a influência do movimento feminista. Esse movimento contribuiu para o
descentramento da identidade do sujeito cartesiano
18
, na medida em que
contestou/contesta a organização social e política da sociedade que discriminava e
ainda discrimina o ser feminino.
Hall (1999: 27) defende que atualmente se vive uma época caracterizada pela
diferença, “as sociedades são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos
sociais que produzem uma variedade de diferentes posições do sujeito e diferentes
identidades”. Enfatizamos que para compreendermos essas múltiplas identidades,
não podemos separá-las da história e da política. Não podemos esquecer que a
identidade é uma construção social e que é nomeada no contexto de uma cultura.
18
O filósofo René Descartes (1596-1650) é considerado como o pai da Filosofia Moderna. Ele
abordou o sujeito individual como sendo constituído pela sua capacidade de pensar e raciocinar. Daí
a máxima: “Penso, logo existo”. A partir deste filósofo, a concepção do sujeito racional pensante e
consciente, situado no centro do conhecimento, passa a ser conhecida como “o sujeito cartesiano”.
26
A nossa identidade só faz sentido em uma cadeia discursiva de significantes,
marcada pela diferença. Então, quando estudamos as relações de gênero, no
trânsito, precisamos levar em conta que o sujeito do qual falamos foi criado dentro
dos moldes de uma identidade fixa, certa e imutável e que passa atualmente pelo
descentramento de sua identidade. Nisso temos que o sujeito do qual falamos sofre
o apagamento dos limites do que caracteriza comportamentos tipicamente
masculinos e femininos, que anteriormente eram dados como estáveis. Esse
descentramento, ao mesmo tempo em que permite que o sujeito se mova entre
várias instâncias da vida social, questionando estereótipos, também o empurra para
uma crise. Sabemos que há a busca por uma uniformização da identidade, visto que
ela nos transmite a certeza de pertencemos a um grupo e de quem somos dentro
desse grupo.
Para Barberá
19
, a identidade de gênero é um processo no qual cada um se
sente pertencente a um grupo sexual, o que exclui o outro grupo. A identidade e a
diferença são construídas nas e pelas representações, através das sensações,
percepções e pensamentos. O que une uma pessoa a outra é a identidade. Para nos
sentirmos identificados com um grupo, temos que criar símbolos, imagens,
narrativas, mitos, que nos unem aos outros, dando uma idéia de pertencimento entre
“iguais”. Esse processo não é um processo homogêneo, ele é atravessado pelas
relações de poder que conferem à identidade, produzida na e pela representação,
seu caráter produtivo. Podemos pensar que o poder está representado na
representação, porque as relações de poder criam discursos de verdade e, a partir
daí, surgem as representações. O poder define como a representação vai se
19
BARBERÁ, Ester. Psicologia del Género. Barcelona: Editorial Ariel S.A., 1998.
27
processar e a representação, por sua vez, tem efeitos específicos sobre a produção
das identidades culturais, que acabam por reforçar as relações de poder.
Nesse movimento, nessa intrincada teia de relações de poder, a identidade
que regula esse processo é sempre a identidade dominante. Assim, as identidades
subordinadas reivindicam não só o acesso a uma representação como também o
direito de controlar essa representação. A identidade dominante se torna a norma
invisível que regula todas as identidades. Para Louro
20
, esse é um motivo por que
podemos afirmar que as identidades sociais e culturais são políticas. As formas
como elas se apresentam, os significados que atribuem às suas experiências e
práticas são sempre marcados por relações de poder. Tomemos novamente as
reflexões de Silva:
Homem, branco, heterossexual (ou todas essas coisas juntas): identidades
que, por funcionarem como norma, não aparecem como tal. É o outro que é
étnico. É o outro como homossexual, que aparece como identidade inteira e
exclusivamente definida pela sexualidade. A identidade feminina é marcada
por falta em relação à do homem. A identidade subordinada é sempre um
problema: um desvio da normalidade. (2003:49 )
As pessoas que pertencem aos grupos subordinados carregam sempre
consigo a marca da sua representação. Como identidade marcada, ela representa
sempre inteiramente aquela identidade, carregando assim todo o peso da
representação.
Para adentrarmos na questão de como homens e mulheres representam a si
mesmos e ao outro, devemos ainda entender a questão dos estereótipos. Segundo
Barberá (1998), o estereótipo é uma imagem mental de alta elaboração cognitiva, no
sentido de que é um conjunto organizado de idéias que se acoplam entre si.
20
LOURO, Guacira Lopes (Org). O Corpo Educado: Pedagogias da Sexualidade. Belo Horizonte,
MG. Autêntica, 2001.
28
Saffioti
21
acrescenta que, por serem demarcadas em um campo social, as categorias
sexuais são formadoras de estereótipos sociais.
Um estereótipo nos fala de como certos grupos culturais e sociais são
descritos. Assim, cada sociedade atribui determinados papéis a homens e mulheres
e, freqüentemente, tais papéis se ajustam a idéias fixas e pré-concebidas de como
cada um deles deve se comportar. Por se tornarem fixos, eles limitam a capacidade
de desenvolvimento pessoal ou grupal. Em Silva, temos que:
O estereótipo tal como a representação em geral, é uma forma de
conhecimento. No processo pelo qual buscamos conhecer o outro, o
estereótipo funciona como um dispositivo de economia semiótica. No
estereótipo a complexidade do outro é reduzida a um conjunto mínimo de
signos: apenas o mínimo necessário para lidar com a presença do outro
sem ter de se envolver com o custoso e doloroso processo de lidar com as
nuances, as sutilezas e as profundidades de alteridade. (2003: 50, 51)
Em outras palavras, ao entrarmos em relação com outras pessoas, passamos
por um movimento para poder conhecê-las. No estereótipo, o outro, como nosso
objeto de conhecimento, se torna estático, congelado. Podemos falar que lançar
mão de estereótipos é um movimento salvador, na medida em que procuramos
organizar todo montante de novas informações, que recebemos ao conhecermos
algo novo, naquela figura de linguagem. Achamos que, dessa forma, conseguimos
manter-nos em segurança frente a novas informações, uma vez que, lançando mão
dos estereótipos, achamos que já sabemos de antemão o que esperar da nova
situação ou do outro que nos parece ameaçador.
O outro, no estereótipo, é representado por meio de uma forma especial de
condensação, na qual entram processos de simplificação, de generalização e de
homogeneização. Um estereótipo é eficaz justamente por causa desses processos,
21
SAFFIOTI, H.I.B. O Poder do Macho. São Paulo: Moderna, 1987
29
que nos fazem lidar com algo que reconhecemos como real e, nesse movimento,
tem seu efeito de realidade ampliado.
A representação é ativa, sendo produzida mais de um sentido. Ela produz os
objetos de que fala, ela produz sujeitos. A força da representação é justamente o
fato de que ela é uma representação consentida. Foucault
22
nos fala em resistência
ao poder. Para ele, onde há poder há resistência. Mas ela não se encontra em
posição de exterioridade em relação ao poder, porque as resistências estão
presentes em toda rede de poder. Tomemos, então, as palavras de Foucault:
As correlações de poder não poderiam existir senão em função de uma
multiplicidade de pontos de resistência que representam, nas relações de
poder, o papel de adversário, de alvo, de apoio, de saliência que permite a
preensão. Esses pontos de resistência estão presentes em toda rede de
poder. Portanto não existe, com respeito ao poder, um lugar de grande
Recusa- alma de revolta, foco de todas as rebeliões, lei pura do
revolucionário. (1998: 91)
Nas relações de gênero, que são nosso objeto de estudo, a identidade
feminina assume o peso da representação, sendo a identidade subordinada. Esse
fato assume uma importância primordial na análise que iremos fazer, pois se trata de
um dos fios condutores do nosso trabalho: Como a mulher se representa? Como o
homem se representa?
Perrot (2007) afirma que, por muito tempo, as mulheres foram sempre
narradas, lembradas, representadas pelos homens, através do olhar masculino. E
elas, por um longo período, estiveram na sombra da história. Assim, na mitologia, a
mulher sempre foi a desqualificada. O princípio masculino, além de ser o princípio da
ordem, é o que põe ordem no feminino. Da mesma forma, nas religiões monoteístas,
22
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1998.
30
também a mulher aparece como a figura desqualificada, aquela que foi criada para
fazer companhia ao homem, para lhe servir.
Com o aumento da importância da família, na sociedade, e com o crescente
interesse das Ciências, em que o corpo da mulher também passa a ser objeto de
interesse de estudos, a história da mulher foi sendo resgatada das sombras, embora
essa Ciência venha a reafirmar a inferioridade feminina.
À mulher sempre coube o papel do lado escuro e inferior: o receptáculo.
Representante do espaço privado, “rainha do lar”, mãe dedicada e esposa submissa.
Essas representações atravessaram os tempos e estabeleceram o pensamento
simbólico da diferença entre os sexos.
Através dos discursos da família, da escola, da Igreja, do Estado, da vida em
sociedade, aconteceu um movimento de eternização das estruturas da divisão
sexual. Essa divisão nos remete à história continuada da criação das estruturas
objetivas e subjetivas da dominação masculina, de forma tão silenciosa, poderosa e
permanente, que nos parece natural, como se sempre estivesse aí, desde que
existem homens e mulheres. De acordo com Bourdieu,
O verdadeiro objeto de uma história das relações entre os sexos é, portanto,
a história das combinações sucessivas de mecanismos estruturais e de
estratégias que, por meio das instituições e dos agentes singulares,
perpetuaram, no curso de uma história bastante longa, e por vezes à custa
de mudanças reais ou aparentes, a estrutura das relações de dominação
entre os sexos. (2002: 101, 102)
Nesse sentido, dizemos que todas essas práticas e linguagens constituíam e
constituem sujeitos femininos e masculinos; foram e são produtoras de marcas. Elas
marcam os sujeitos, de forma articulada, confirmando identidades e práticas. Tal
processo é plural e permanente, e os sujeitos que dele participam são sujeitos
31
ativos, no sentido de que sempre existe um investimento continuado e produtivo do
sujeito.
De forma mais detalhada, iremos examinar alguns discursos que, através de
sua visão, suas práticas e suas leis levaram as próprias mulheres a consentirem na
representação dominante da diferença entre os sexos.
1.2 O Poder nas Relações de Gênero
A utilização do termo poder remete, de modo geral, à idéia de dominância de
uns sobre os outros. Então, perguntamos: qual é a origem dessa forma de afluências
de interesses? Para encontrar respostas a esta pergunta, buscamos em Nietzsche
23
(1998), em sua Genealogia da Moral, a questão da valoração crítica e da genealogia
da moral. Ele procura investigar a evolução dos conceitos morais. Sobre a questão
do bem e do mal, procurando entender a origem desses valores, Nietzsche (1998)
coloca que precisamos nos perguntar a quem e por quem o valor bom era atribuído,
e qual seu propósito. Vamos às suas palavras:
Para mim é claro, antes de tudo, que essa teoria busca e estabelece a fonte
do conceito bom no lugar errado: o juízo bom não provém daqueles aos
quais se faz o bem! Foram os bons mesmos, isto é, os nobres, poderosos,
superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si a
e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo
que era baixo, de pensamento baixo e vulgar e plebeu. (1998: 19)
Foram, então, a consciência da superioridade, o sentimento geral, fundante e
constante de uma espécie superior e dominadora, em oposição a uma espécie
inferior e baixa, que determinaram a origem da oposição entre o “bom” e o “mau”. O
23
Nietzsche, Friedrich. Genealogia da Moral-uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras,1998.
32
conceito masculino também se opõe ao feminino, ao assumir um papel dominante,
ficando claro que essa relação entre masculino e feminino é uma relação de poder.
Enfatizamos que, para falar em relações de poder, é preciso que fique claro o
que se entende por poder e a que poder nos referimos quando pensamos em
gênero. Na visão tradicional, o poder, similarmente a uma mercadoria, pode ser
possuído por algum soberano (um indivíduo ou o Estado) e aqueles sobre os quais é
exercido esse poder, que são considerados seres inferiores. O poder proíbe e é
praticado, manifestado através de coerção física ou psicológica. Ele é exercido de
cima para baixo, de forma vertical, o que o torna um poder repressivo.
O exercício do poder não se dá só no nível das idéias e das instituições, mas
também no plano comportamental, nos gestos e modos de proceder. O poder, na
perspectiva foucaultiana, não possui somente o aspecto negativo; possui também o
lado positivo, transformador e produtivo. O poder produz discursos de verdade,
conforme Foucault
24
, que afirma:
O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente
que ele não pesa só como força que diz não, mas que de fato ele permeia,
produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discursos. Deve-se
considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo campo social
muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir.
(1979: 8).
Assim temos que é, na dinâmica das relações de poder, que se produzem os
saberes e se estruturam os campos possíveis de ação dos sujeitos humanos.
Quando, em nosso trabalho de pesquisa, nos referimos às relações de poder, o
fizemos nessa ótica, isto é, de que o poder se manifesta como resultado da vontade
24
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Grall, 1979
33
que cada um tem de atuar sobre a ação alheia, de modo a organizar o campo
possível da ação dos outros.
Scott (1995), ao definir o conceito de gênero, nos coloca que o gênero é o
primeiro modo de dar significado às relações de poder, pois elas possibilitam
compreender a constituição das redes de significações que se edificam e se
relacionam em todos os âmbitos da vida cotidiana dos sujeitos. Tal definição
significa que, quando nomeamos alguém como homem ou como mulher, mesmo que
não reconheçamos isso, nós já estamos trazendo à tona a classificação do
forte/fraco, viril/frágil. Nessa medida, precisamos pensar que a questão de gênero é
tão importante para as pessoas, na sua vida diária, que situam os outros, na
sociedade, a partir da identidade de gênero.
Assim, quando falamos em gênero, não estamos pensando nas relações
homens versus mulheres, mas nos domínios estruturais, ideológicos, sociais e
históricos que estas relações englobam e seus significados dentro de cada uma das
organizações. Então, ao procurarmos compreender de que forma as relações de
gênero estão constituídas no mundo contemporâneo, é necessário analisarmos as
relações de poder implicadas nessa questão.
Com o advento de métodos contraceptivos mais eficientes, principalmente da
pílula anticoncepcional, a mulher passou a gozar de uma liberdade de
comportamento crescente. Dessa forma, ela passou a ter um controle maior sobre
seu corpo e, conseqüentemente, sobre sua vida. O efeito mais sentido é que a
maternidade pode não só ser planejada, mas adiada. Por efeito, atualmente a
mulher avança no mercado de trabalho e na sociedade como um todo, conquistando
posições inimagináveis há anos atrás. Apesar de todas essas mudanças, a nossa
sociedade ainda vive sob predomínio masculino, pois, caracteristicamente, a parte
34
dominante está sempre pronta a reconhecer sua maneira particular como universal.
Assim, temos que o domínio masculino ainda é percebido como natural e o avanço
da mulher, no mercado de trabalho e no controle de sua vida, vai contra essas
tendências tomadas como naturais.
Na nossa pesquisa, utilizamos a teoria de Foucault para nos auxiliar a pensar
o poder fortemente presente nas relações de gênero. Foucault é amplamente citado
no que concerne às relações de gênero, porque, segundo Perrot
25
,
Por sua crítica do essencialismo e do universalismo, Michel Foucault
oferece, inicialmente, à historia das mulheres, uma base conceitual e armas
para seu trabalho de desconstrução das palavras e das coisas. Não há
objetos naturais, não há sexo fundado na natureza. O homem está morto? A
mulher também. A mulher não existe, dizia Lacan, visando particularmente
a psicanálise à qual Foucault recusava igualmente a pretensão de afirmar a
eternidade de uma sexualidade feminina, ao contrário, inscrita nos
meandros do Tempo. A historicidade governa as relações entre os sexos,
construção social, que evoca o gênero. (2005: 501)
Foucault nos apresenta a teoria para a desconstrução das palavras e das
coisas, no sentido de podermos desconstruir historicamente as relações
masculino/feminino, compreendendo por que e como elas se constituem dessa
forma. Para Perrot (2005), Foucault rompe com a maneira de ver, na mulher, o
eterno feminino; a mulher alienada na sua condição biológica de ser mãe, cujos
discursos sobre ela reforçaram, durante muito tempo, a sujeição das mulheres ao
seu corpo e a seu sexo. A narrativa histórica que Foucault nos traz rompe com essa
visão antropológica, possibilitando, dessa forma, a desconstrução da mulher e da
sua sexualidade. E, quando falamos de mulheres, através delas falamos de filhos,
maridos, lares; falamos da sociedade como um todo, visto que as relações sempre
se dão de forma entrelaçada. Não podemos falar de um, sem abordarmos o outro.
25
PERROT, Michelle. As mulheres e os silêncios da História. Bauru, São Paulo: Edusc, 2005.
35
Assim, a história de cada mulher, é a nossa história, revelando as tensões cotidianas
e os jogos de poder, nos quais estamos todos inseridos.
Quando Scott (1995) nos traz sua definição de gênero, ela pondera que,
através do gênero, experenciamos uma relação de poder. Desde que podemos
descobrir o sexo dos bebês, ainda durante a gestação, através da ultra-sonografia,
já inscrevemos a criança, que ainda está por nascer, dentro de uma categoria. Isso
significa que já estamos predeterminando quais comportamentos serão adequados e
quais não serão tão bem-vindos à categoria a qual a inscrevemos. Na verdade, por
toda a vida da criança, essa categoria estará presente em sua vida. Mesmo que ela
não tenha consciência disso ou pense estar agindo de forma livre, sempre haverá a
predeterminação da categoria gênero na condução de sua vida. O reconhecimento
do Outro é sempre realizado a partir do lugar social que ocupamos, na sociedade, e
uma das primeiras coisas que as pessoas realizam é categorizar esse Outro,
inscrevendo-o em categorias de identificação e diferenciação. Ao agirmos dessa
forma, já estamos ordenando, criando uma hierarquia e, portanto, estamos usando
de poder.
Bourdieu (2002) se refere ao olhar do Outro como tendo um grande valor
simbólico, pois o poder e a eficácia desse olhar dependem da posição relativa
daquele que percebe e daquele que é percebido; e do grau em que os esquemas de
percepção e de apreciação postos em ação são conhecidos e reconhecidos por
aquele a quem se aplicam. Em outras palavras, em qualquer relação social da qual
fazemos parte, existe essa troca “invisível de poder, em que o modo como iremos
nos comportar depende se somos homens ou mulheres, da mesma maneira como
depende se o nosso interlocutor é masculino ou feminino. O olhar dominante tem o
poder de impor sua visão de si mesmo, como algo tão objetivo e coletivo, que acaba
36
por conduzir nossos esquemas de ação e pensamento. Essa modulação no nosso
comportamento se encontra tão cristalizada e naturalizada, que nós não nos damos
conta de exercer/sofrer tal poder em nossas relações sociais. Dessa forma, fecham-
se e perpetuam-se nossos comportamentos, guiados pelo esquema dominador /
dominado, masculino / feminino.
Louro (2001) acrescenta que as identidades de gênero e as identidades
sexuais são sempre moldadas pelas redes de poder de uma sociedade e que a
inscrição do gênero nos corpos traz sempre traços e marcas da cultura. Portanto, a
nossa cultura e seus paradigmas se enraízam em nós de tal forma que os
vivenciamos da forma dada, como certos e naturais. Através da identificação,
respondemos afirmativamente a um determinado grupo e passamos a estabelecer
um sentimento de pertencimento a ele.
De acordo com Perrot (1991), foi através desse viés da identificação, do
pertencimento à categoria feminina, que as mulheres foram introduzidas no
diagrama de forças que constituem as disciplinas, aqui entendidas como bio-poder.
O poder não é considerado como algo que um indivíduo delega a alguém,
mas como uma relação de forças. O poder está em toda parte: o indivíduo sofre
poder e exerce poder. Segundo Foucault (1998: 89), “o poder está em toda parte;
não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os lugares”. Também
devemos lembrar que, como o diagrama de forças do poder se retroalimenta, o
próprio dominante sofre poder. Nesse sentido, observamos que a parte masculina /
dominante também sente os efeitos do poder em forma de pressão para que
corresponda ao que é esperado dele enquanto dominante, ou seja, manter essa
posição de dominação. Além disso, é freqüente ouvirmos falar que um homem
chorou “feito uma mulherzinha”, assinalando que o comportamento masculino
37
esperado é o da ausência de manifestação de afetos. A manutenção do
comportamento masculino esperado exige do homem uma demanda, um
investimento. Nessa dinâmica, ele (homem) sofre a pressão de ser o que esperam
dele. Por isso, diz-se do poder que ele está em toda parte. Relativamente a essa
questão, entendemos que Louro consegue, de uma forma muito clara, nos trazer
como os sujeitos masculinos e femininos são produtores de marcas, vejamos:
Para que se efetivem essas marcas, um investimento significativo é posto
em ação: família, escola, mídia, igreja, lei participam dessa produção. Todas
essas instâncias realizam uma pedagogia, fazem um investimento que
freqüentemente, aparece de forma articulada, reiterando identidades e
práticas; outras vezes, contudo, essas instâncias disponibilizam
representações divergentes, alternativas, contraditórias. A produção dos
sujeitos é um processo plural e também permanente. Esse não é, no
entanto, um processo do qual os sujeitos participem como meros
receptadores, atingidos por instâncias externas e manipulados por
estratégias alheias. Ao invés disso os sujeitos estão implicados e são
participantes ativos na construção de suas identidades. (2001: 25)
Podemos depreender, a partir do fragmento acima, que o poder perpassa
toda a sociedade. Mesmo não sendo uma instituição ou estrutura, ele coexiste nas
situações estratégicas e diárias de uma sociedade, envolvendo toda a comunidade.
Esse processo ocorre na constituição de homens e mulheres, mesmo que de forma
não consciente e evidente. Cada sujeito investe, de forma permanente e ativa, na
determinação de suas formas de ser e agir, de viver sua sexualidade e seu gênero.
A forma de poder a qual nos referimos é, para Foucault, a que
aplica-se à vida cotidiana imediata, que categoriza o indivíduo, marca-o com
sua própria individualidade, ligando-o à sua própria identidade, impõem-lhe
uma lei de verdade, que devemos reconhecer nele. É uma forma de poder
que faz dos indivíduos sujeitos. (1995: 235)
Esse poder coloca em jogo as relações entre indivíduos ou grupos, que se
dão através da produção e troca de signos. As relações de poder não são, de forma
alguma, simétricas, uniformes ou constantes. Elas se encontram sob várias formas e
38
nos mais variados contextos. A escola também é um dos pilares da perpetuação da
reprodução da dominação masculina. Apesar de não estar mais presa totalmente à
tutela da Igreja, ainda transmite os modelos patriarcais da representação da divisão
dos sexos. De modo ainda arcaico, transmite modelos, seja através de sua
hierarquia, seja na transmissão do conhecimento. As disciplinas escolares e, mais
tarde, as profissões ainda são divididas como mais ou menos adequadas a cada
sexo. Na escola, não só se começa a encaminhar o futuro social de cada criança,
mas também representa um espaço privilegiado, em que a criança poderá ver a si
mesma em relação a outras crianças e também em relação ao próprio contexto em
que vive.
O exercício de poder, segundo Foucault,
É um efeito de ações sobre ações possíveis; ele opera sobre o campo de
possibilidade onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; ele
incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou impede
absolutamente, mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários
sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir. Uma ação
sobre ações. (1995: 243)
Logo, o poder pode ser entendido como uma possibilidade de conduta, pois,
para Foucault (idem), o poder só se exerce sobre “sujeitos livres”, no sentido de que
existem possibilidades de conduta, reações e comportamentos. É isso que faz o
poder se tornar tão eficiente, visto que a liberdade é uma condição da existência do
poder. Da mesma forma, nas relações de gênero, existem possibilidades de
conduta, mas a sociedade na qual vivemos tem um código de ações e
comportamentos pré-estabelecidos. Assim, se nascemos meninas, aprendemos que
não devemos andar sem camisa na rua e esse comportamento se torna
“naturalmente” o esperado no código de ações femininas. Esse é o poder ao qual
39
Foucault se refere do dia-a-dia, das atitudes e dos comportamentos diários da vida
de qualquer pessoa.
Se as relações de gênero são construções sociais, é imprescindível que,
entendamos de que forma e em que contextos históricos a sexualidade é produzida.
Nesse sentido, precisamos compreender o papel e o conceito das disciplinas e do
dispositivo da sexualidade nesse contexto histórico.
As disciplinas são operações através das quais uma população confusa
transforma-se em uma organização que caminha na mesma direção, aceita as
mesmas regras, vive sob o mesmo paradigma. Entende-se, aqui, que as disciplinas
permitem um ajuste mais controlado entre as atividades produtivas, as redes de
comunicação e as relações de poder.
Segundo Foucault (1998: 131), “as disciplinas do corpo e as regulações da
população constituem os dois pólos em torno dos quais se desenvolve a
organização do poder sobre a vida”. A instalação das disciplinas, durante a época
clássica, passa a caracterizar um poder cujo maior objetivo já não é mais matar,
aniquilar, mas, ao contrário, cuidar, investir na vida e promover a saúde.
A partir desse momento, ainda durante a época clássica (séc. XVII e XVIII),
ocorre um rápido desenvolvimento econômico: surgem escolas, casernas e muitas
técnicas, das mais diversas formas, que tinham como objetivo obter a sujeição dos
corpos e o controle das populações. Surge, assim, a era do “biopoder e, pela
primeira vez, na história, o biológico reflete-se no político. Para Foucault (1998), o
biopoder tornou-se um elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo.
O poder disciplinar produz efeitos individualizantes, esquadrinha o corpo do sujeito,
buscando torná-lo útil e dócil ao mesmo tempo. O biopoder não exclui o poder
disciplinar, porque atua em outro nível e é auxiliado por instrumentos diferentes.
40
Essa tecnologia de poder, de acordo com Foucault
26
, “não é centrada no corpo, mas
na vida; uma tecnologia que agrupa os efeitos de massas, próprios de uma
população que procura controlar a série de eventos fortuitos que podem ocorrer
numa massa viva” (1999: 297).
O biopoder aparece em duas direções: do lado das disciplinas, as instituições
como as escolas e o exército; e do lado das regulações de população, a demografia
que faz o controle entre a quantidade de habitantes e os recursos disponíveis, ou
seja, que calcula a riqueza que essa população pode gerar. A articulação entre as
disciplinas e suas regulações constitui a grande tecnologia do poder no século XIX:
o “Dispositivo da Sexualidade”.
Tomando Revel
27
, que se ancora em Foucault, encontramos o seguinte:
um dispositivo é um conjunto decididamente heterogêneo que engloba
discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões
regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos,
proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma: o dito e o não-dito.
[...] O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos.
(2005: 40)
Podemos dizer, portanto, que o dispositivo é essa rede que organiza a vida de
todas as pessoas, em sociedade, abrangendo tanto o que está dito e escrito, quanto
as convenções paradigmáticas que aceitamos e vivenciamos como naturais. De
acordo com Foucault (1998: 101), “o dispositivo da sexualidade tem, como razão de
ser, não o reproduzir, mas o proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar nos corpos
de maneira cada vez mais detalhada e controlar as populações de modo cada vez
mais global”.
26
FOUCAULT, Michel. Em defesa de uma sociedade: curso no Collège de France(1975-1976).
São Paulo: Martins Fontes, 1999.
27
REVEL, Judith. Foucault - conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005.
41
A sexualidade é constitutiva da subjetividade, ela leva as pessoas a
associarem a sua identidade de forma subjetiva. Sendo um instrumento de
subjetivação, a sexualidade é uma ferramenta do poder que se manifesta nas
práticas, nos discursos da religião, da ciência, da moral, da política, da economia.
Ainda nas palavras de Foucault (1979: 246), encontramos a seguinte reflexão:
“O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre,
no entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem, mas que
igualmente o condicionam”. A família nuclear surge com o capitalismo e passa a ser
um elemento essencial para a manutenção do dispositivo da sexualidade. Foi, na
família, que, inicialmente, se problematizou a sexualidade das crianças e dos
adolescentes. Nesse momento histórico, também o papel das crianças sofre
mudanças. As crianças deixam de ser adultos em miniatura e passam a ser o centro
das atenções e cuidados dentro da família, com voz ativa, isto é, elas ajudam na
tomada de decisões da família. A vida familiar passa a se organizar em torno das
crianças, sendo cuidados primordiais dispensados a elas, à sua saúde e à sua
educação escolar. Nessa nova configuração familiar, à mulher cabe o papel de
exercer um maior poder disciplinador.
Assim sendo, a mulher assume um papel primordial de disciplinadora dessa
nova família nuclear. A medicalização da família, através do controle da saúde, do
cuidado com as crianças, foi, para Foucault, uma das formas de intervenção do
Estado, para moralizar e domesticar indivíduos. Instaura-se a concepção de que a
mulher é a responsável por preservar e cuidar do presente e do futuro da força
produtiva da sociedade burguesa, através do marido e dos seus filhos. Através da
apresentação exemplificativa dessa nova dinâmica é que Foucault (1979) apresenta
sua reflexão sobre o micropoder. Este se faz presente diretamente em cada célula
42
de cada sociedade, ou seja, em cada indivíduo na sua vida diária, em seus hábitos,
costumes e comportamentos.
Segundo Foucault,
A personagem investida em primeiro lugar pelo dispositivo da sexualidade,
uma das primeiras a ser sexualizada foi, não devemos esquecer, a mulher
ociosa, nos limites do mundo-onde sempre deveria figurar como valor-e
da família, onde lhe atribuíram novo rol de obrigações conjugais e parentais:
assim nasceu a mulher nervosa, sofrendo de vapores; foi aí que a
histerização das mulheres encontrou seu ponto de fixação. (1988: 114)
Partindo da compreensão do autor, lembramos que, em Perrot (2005),
encontramos que a família é o ponto nodal da articulação entre os espaços público e
privado, dos pais e dos filhos, dos indivíduos e do Estado. A família também assume
o papel principal na reprodução da dominação masculina, visto que é, em seu
núcleo, que acontecem as experiências precoces da divisão sexual do trabalho e da
representação legítima dessa divisão, garantida pelo direito e inscrita na linguagem.
Nisso temos que a mulher torna-se responsável pelos cuidados da saúde de
seus filhos, da solidez da família e da salvação da sociedade. À mulher coube cuidar
do privado, dos assuntos da higiene, da alimentação, enfim, do cuidado ao outro.
Na concepção de Perrot, observamos que
A análise foucaultiana dos poderes é também adequada à pesquisa sobre
as mulheres e as relações entre os sexos. Ela observa os micropoderes,
suas ramificações, a organização dos tempos e dos espaços, as estratégias
minúsculas que percorrem uma cidade ou uma casa, as formas de
consentimento e de resistência, formais e informais. Ela se ocupa não
somente de repressão, mas de produção dos comportamentos. Considerar
como as mulheres são produzidas na definição variável de sua feminilidade
renova o olhar lançado sobre os sistemas educativos, seus princípios e suas
práticas. (2005: 502)
Assim, ao analisarmos a construção histórica dos sujeitos, podemos
compreender que o gênero é uma primeira forma de articular poder. Sendo assim,
43
não existe o poder de uns sobre os outros, mas relações de poder, em que os
indivíduos sofrem poder e, ao mesmo tempo, exercem o poder. Os homens e as
mulheres não são construídos apenas através de mecanismos de repressão ou
censura. Eles se fazem através de práticas, gestos, modos de ser e de estar no
mundo, formas de falar e agir, condutas e posturas. Os gêneros se produzem nas e
pelas relações de poder.
A mulher, atualmente, procura um espaço para exercer seu poder. Podemos
afirmar que a mulher está conquistando espaços que, há alguns anos atrás, eram
exclusivamente masculinos. Ela procura se infiltrar nos domínios masculinos,
afirmando suas qualidades e capacidades, buscando o empoderamento.
O empoderamento é a vontade de aumentar o poder e o controle sobre as
decisões e problemáticas que determinam a vida. No caso das mulheres, refere-se
ao poder de defesa das suas especificidades, da sua luta pela igualdade de direitos
com os homens, na igualdade de acesso a todos os espaços, tanto da vida pública
como na vida privada. Nessa ótica, encontramos em Lagarde
28
que afirma que:
O empoderamento das mulheres implica o desaparecimento dos
mecanismos de poder patriarcais fundidos na opressão das mulheres e
necessita mudar normas, crenças, mentalidades, usos e costumes, práticas
sociais e construir direitos das mulheres hoje inexistentes. (1996: 112)
Esse termo (empoderamento) é utilizado pelas feministas para indicar o
processo pelo qual as mulheres, através da conscientização de seu papel e de sua
força na sociedade, lutam contra as estruturas sociais e culturais que marcaram sua
28
LAGARDE, Marcela. Género y Feminismo: desarrollo humano y democracia. Madri: Horas &
Horas, 1996.
44
submissão, buscando alcançar a igualdade de direitos em relação aos homens. Já
para Colling
29
, o empoderamento,
Derivado da palavra inglesa empowerment que significa dar poder, habilitar,
o termo tem sido usado numa perspectiva de gênero como o processo pelo
qual as mulheres incrementam sua capacidade de configurar suas próprias
vidas. É uma evolução na conscientização das mulheres sobre si mesmas,
sobre sua posição na sociedade. (...) O empoderamento deve capacitar as
mulheres para assumir o poder levando em conta as relações de poder
entre homem e mulher, hierarquicamente construídas. (2004: 35)
Temos, então, que as mulheres buscam conquistar um espaço nesse mundo
ainda tão masculinizado. Sua presença em profissões e espaços masculinos ainda é
sentida como subversão e continua gerando curiosidade. Os movimentos feministas
lutam por igualdades de direitos. O direito tornou-se a bandeira da democratização
entre os sexos.
No entanto, entre as novas conquistas femininas e a real mudança parece
existir ainda um grande abismo que precisará, sem dúvida, de muita luta das
próprias mulheres e mudanças sociais, em todos os aspectos. Diante de cada
conquista feminina, podemos falar que existe também um avanço do poder
masculino, pois, na realidade, a distância entre os sexos se mantém inalterada.
Nesse sentido, vale a pena ver o que Bourdieu (2002), falando sobre os
dualismos, acrescenta. Vejamos a seguinte passagem:
Estes, profundamente enraizados nas coisas (as estruturas) e nos corpos,
não nasceram de um simples feito de nominação verbal e não podem ser
abolidos com um ato de magia performática- os gêneros, longe de serem
simples “papéis” com que se poderia jogar à vontade, estão inscritos nos
corpos e em todo universo do qual extraem sua força. (2002: 122)
29
COLLING, Ana Maria. A Construção Histórica do Feminino e do Masculino. In: Gênero e Cultura:
Questões Contemporâneas. Org: Strey, Marlene; Cabeda, Sônia; Prehm, Denise. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004.
45
Nisso temos que, na verdade, a ponderação de Bourdieu é relativa à questão
do gênero que é uma questão mais profunda, arraigada na nossa cultura, que se
retroalimenta, que luta para manter a sua hegemonia, que busca, nos espaços mais
rotineiros, como o trânsito, o espaço ideal para criar tentáculos que possam servir
para mostrar sua força e seu poder. E sua força reside justamente no fato de que ele
nos parece tão natural que não nos damos conta disso.
46
2 TEMPOS DIFERENTES, DISCURSOS IGUAIS
No presente capítulo, detemo-nos nos principais discursos que levaram a
história a ser escrita da forma como a conhecemos. Para compreendermos por que
as mulheres consentiram, nas representações dominantes da diferença entre os
sexos, precisamos estudar os discursos e as práticas que, ao longo da história,
foram incansavelmente repetidas, e, conseqüentemente, passaram a inscrever-se
nos pensamentos e comportamentos de homens e mulheres.
Entendemos que, por isso, faz-se necessária uma breve explicação sobre a
noção discurso que estamos utilizando em nossa pesquisa. Fizemo-lo segundo a
concepção foucaultiana
30
. Nesse sentido, é pertinente aqui transcrever sua
formulação:
[...] Gostaria de mostrar que o discurso não é uma estrita superfície de
contato ou de confronto, entre uma realidade e uma língua, o intrincamento
entre um léxico e uma experiência; gostaria de mostrar, por meio de
exemplos precisos, que, analisando os próprios discursos, vemos se
desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as
coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva.
[...] Não mais tratar os discursos como um conjunto de signos (elementos
significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como
práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente
os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar
esses signos para designar coisas. É esse mais que os tornam irredutíveis à
língua e ao ato da fala. É esse mais que é preciso fazer aparecer e que é
preciso descrever. (1986:56)
Para Foucault (1986), o discurso não é apenas uma teoria, ele conforma
sujeitos. Nesse sentido, a investigação não deve ser sobre “o que está por trás” dos
textos e documentos, nem “o que se queria dizer” com aquilo, mas a descrever quais
30
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense, 1986.
47
são as condições de existência de um determinado discurso, enunciado ou conjunto
de enunciados. O enunciado é aqui entendido, sempre, como um acontecimento,
que nem a língua, nem o sentido podem esgotar inteiramente; “é uma função que
cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que estas
apareçam com conteúdos concretos, no tempo e no espaço” (Idem, p.99).
Propomo-nos a examinar, neste capítulo, o discurso Greco-Romano, o
discurso Religioso e ainda discursos existentes sobre a condição feminina que
perpassam a história até a atualidade.
2.1 As Influências do Discurso Greco-Romano
No discurso grego, a figura feminina aparece predominantemente como
objeto e, muito raramente, como sujeito. Ao ser associada com o conhecimento, é
que a figura feminina aparece como sujeito. É oportuno salientarmos que Sócrates
foi o primeiro a utilizar a ligação entre o parto e o conhecimento. Segundo Cortella
31
,
para o aluno dar a luz ao conhecimento, devia ser praticado a maiêutica, que era o
nome que Platão dava ao método socrático de fazer perguntas ao aluno e assim, o
levar a desvelar a verdade.
Fazendo uma analogia da mulher com a alma, entendia-se que, tanto uma
como outra, se deixavam fertilizar. A mulher dava luz a uma criança e a alma dava
luz a um conhecimento. Esse pensamento ainda existe em nossos dias quando
utilizamos a expressão “tive uma luz”, para expressarmos o fato de termos tido uma
nova idéia.
31
CORTELLA, Mário Sérgio. A escola e o conhecimento: fundamentos epistemológicos e
políticos. São Paulo: Cortez, 2006.
48
Simone de Beauvoir (1960) afirma que o mundo sempre pertenceu aos
homens. Entretanto, salientamos que isso não foi sempre assim. Quando os homens
começaram a viver, na Polis, tanto homens como mulheres eram vistos como aptos
a realizar todo tipo de atividade. Com o passar do tempo, surgiu a necessidade de
dividi-los para uma melhor organização da comunidade. Foram, então, divididos
segundo suas peculiaridades: homens realizavam certas atividades e mulheres,
outras.
Ainda em Beauvoir (1960), encontramos que foi Sócrates quem diferenciou a
Polis da realidade biológica. A política surge como um terreno que é governado por
regras autônomas. Até então, só no terreno da procriação, existia a diferenciação de
atividades entre homens e mulheres: a mulher dá a luz, o homem a fertiliza. Os
homens e as mulheres eram tidos como aptos a exercer qualquer tipo de atividade,
até que os homens superaram as mulheres.
Portanto, na Polis, na vida social, não fazia diferença ser homem ou mulher.
Na vida política, no entanto, a existência da oposição entre homens e mulheres
passou a vigorar. A partir daí, os homens e as mulheres faziam as mesmas
atividades, mas os homens eram conhecidos por um suposto melhor desempenho.
Sócrates, para difamar as atividades que as mulheres exerciam bem, passou a fazer
troça das qualidades femininas. A arte de cozinhar, de tricotar, ficou a cargo das
mulheres e era tida como de pouco valor. Para os gregos, a mulher era excluída do
mundo do pensamento e do conhecimento, que era tão valorizado por eles.
Segundo Sissa
32
,
32
SISSA, Giulia. Filosofias do gênero: Platão, Aristóteles e a diferença dos sexos. In: História das
Mulheres no Ocidente. v. 1. Porto: Edições Afrontamento, 1990.
49
O gênero humano passa a ser homogêneo do ponto de vista da cidade e
das funções sociais que a constituem, mas no seu seio subsiste a oposição
masculino/feminino, reduzida doravante à diferença entre uma maneira
melhor que têm os homens e uma maneira menos boa que têm as mulheres
de realizar cada uma das tarefas comuns entre os sexos. (1990: 95)
Para Sócrates, segundo Sissa (1990), é o sujeito então, que valoriza, de um
ponto de vista social, o saber por ele praticado. Assim, o trabalho da mulher de fiar e
de cozinhar é desvalorizado, fazendo parte das atividades rotineiras da vida diária.
Pensando em tempos atuais, temos que, quando o homem assume essas tarefas
ditas femininas, é comum ocupar um lugar de destaque, como os grandes estilistas e
chefes de cozinha internacionais.
Para Lins (1997), na Grécia, Aristóteles transformou em ciência a visão bíblica
da mulher como inferior ao homem. Para ele, a semente masculina é o agente ativo
que gerará meninos e a semente feminina só produzirá meninas. Aristóteles
afirmava que os homens possuíam pênis e as mulheres tinham útero. Eles
fertilizavam e elas se deixavam fertilizar. Assim, a mulher passou a ser conhecida
por certas características, que mostram uma natureza fraca e incompleta. Ela é um
homem mal-acabado, um ser incompleto, uma forma mal cozida. Segundo Beauvoir
(1960), Aristóteles exprime a opinião comum da época, segundo a qual a mulher, em
virtude de sua deficiência, deve permanecer em casa e subordinada ao homem.
Para os gregos, a mulher também possuía um cérebro menor do que o
homem, refletindo na sua capacidade de pensamento e na realização diminuída. O
corpo da mulher era comparado ao de uma criança: incompleto. Para Sissa,
Aristóteles diria que o corpo feminino se diferencia do corpo masculino pelo
critério do mais ou do menos. Esse caminho quantitativo, que mede a
desigualdade dos sexos, não pode ser subestimado. Porque essa diferença
de mais ou menos é para Aristóteles uma categoria distinta, aquela que
diferencia um pássaro de um pássaro [....] a diferença entre os animais que
pertencem a um mesmo génos. (2006: 87, 88)
50
Nesse sentido, podemos pensar que, apesar de existirem dois sexos
biológicos, existe apenas uma forma. O corpo da mulher, por se apresentar
geralmente menor, mais fraco, com uma voz mais fina, acabou sendo representado
como o corpo menos capaz. Para Aristóteles, também a menstruação era um sinal
da frieza e fraqueza feminina. Ele entendia ainda que a concepção só era
completada com a contribuição do esperma masculino. O papel da mulher era o de
ser um receptáculo, e a maternidade era um processo que dependia essencialmente
do homem.
O mecanismo da ovulação somente foi descoberto no século XVIII e, somente
no início do século XIX, que se reconheceu a importância da mulher na fecundação.
Até então era o pai que transmitia a alma e as características perfeitas ao embrião; a
mulher apenas contribuía com a matéria. Quando havia alguma imperfeição na nova
criança, a culpada era a mulher que, de certa forma, não alimentara adequadamente
a nova vida depositada em seu ventre pelo homem. Considerando as ponderações
de Chassot
33
, podemos observar que:
Se da semente masculina nascesse uma fêmea, isso se devia a uma
impotência de seu pai, que então gera um ser impotente: uma fêmea.
Assim, a mulher é ela própria um defeito. Reduzir o dimorfismo sexual a
desvios mensuráveis é uma operação vantajosa para a lógica do sistema
aristotélico e do ponto de vista macroscópico mensurável nas comparações
das aparências entre machos e fêmeas. Dessa forma, nas mulheres são
imperfeições: a ausência de pênis, os músculos peitorais flácidos e porosos
onde há leite, o sangue menstrual, menos voz, ser frágil, são alguns dos
exemplos para mostrar um corpo naturalmente mutilado. (2006: 17)
Sob essa ótica da cultura grega, a mulher era tida essencialmente como
inferior ao homem. Esta cultura deixou de legado, para a humanidade, sua mitologia,
33
CHASSOT, Attico. A Ciência é Masculina? É sim senhora!... In: Contexto e Educação. Gênero e
Educação-Um diálogo necessário Ano XIX, n 71/72-janeiro/dezembro 2004. Impresso em 2006.
Ijuí: Unijuí. 2006
51
segundo a qual as mulheres eram encaradas como seres lascivos, pervertidos e
curiosos, através dos quais o mal e o pecado entraram no mundo dos homens. Com
filósofos gregos, como Aristóteles e Platão, também ficou evidente a marcada
inferioridade feminina. Tal legado grego se perpetua através dos séculos e culturas,
pois foi fundante da nossa humanidade.
É importante também seguindo o pensamento grego, que possamos nos
debruçar sobre a época helenística e sua transição ao período romano da nossa
história.
O período helenístico é o período da história grega entre 323 a.C. e 147 a.C.
O helenismo foi a concretização de um ideal de Alexandre III: o de difundir a cultura
grega aos territórios conquistados. Nessa época, as ciências particulares tiveram
seu primeiro e grande desenvolvimento. O helenismo marcou um período de
transição para o domínio e apogeu de Roma.
Nossa abordagem busca refletir cuidadosamente sobre como o papel da
mulher foi vivenciado, nessa época, em que o direito era uma área central da vida
em sociedade. A importância de nos reportarmos a essa época encontra alicerce no
fato de que, ainda hoje, em muitas sociedades ocidentais, o papel e o direito da
mulher são guiados por essas diretrizes romanas. Para Beauvoir (1960), é o conflito
entre a família e o Estado que define a história da mulher romana. Trata-se de um
período em que o direito patriarcal se afirma, ao mesmo tempo, em que a família é a
célula da sociedade.
Através de seu código legal os romanos legitimaram a discriminação da
mulher. Através da instituição jurídica do paterfamílias, que atribuía ao homem
poderes sobre a mulher, os filhos, servos e escravos. Para Colling (2004), na
civilização romana, o Direito assume o papel de perpetuar essas diferenças,
52
legitimando-as. O código romano coloca as mulheres sob tutela e, dessa forma,
declara a sua “imbecilidade”, no sentido de que elas não podem responder por si
mesmas, elas precisam da tutela permanente de um homem.
Tudo que foi dito e escrito sobre os direitos da mulher nos fala da
desigualdade das mulheres. O ponto nodal, com certeza, é a exclusão das mulheres
de tudo que se referia à vida publica, ao poder de decisão em nome de outras
pessoas, em nome da sua “incapacidade”. A mulher, portanto, ficou excluída de
qualquer participação na vida pública e política.
A divisão dos sexos era um regulamento, uma arbitrariedade. Embora
homens e mulheres fossem separados, teriam que se unir de outra forma. Esta outra
forma de união era o casamento, cujos traços característicos podem ser encontrados
na percepção, no entendimento dele que ainda hoje é comum.
O casamento era a forma de manter e renovar infinitamente a estrutura,
através de uma organização que também seguraria a reprodução da sociedade, na
medida em que fazia de homens e mulheres, pais e mães, respectivamente. A
separação e o encontro dos sexos era uma parte fundamental para a manutenção
da ordem.
De acordo com as reflexões de Thomas
34
Cícero associava todo o desenvolvimento social a esse momento primordial
de conjunção dos sexos. Era esta união que produzia, em primeiro lugar, a
descendência, prolongada por várias gerações, até a primeira cisão das
unidades constituídas em torno do casal originário; era ele, em seguida que,
em círculos progressivamente alargados, multiplicava as relações da
sociedade através da aliança, da cidadania, da nacionalidade. (1990: 130)
34
THOMAS, Yan. A diferença dos sexos no direito romano. In: História das Mulheres no Ocidente.
v. 1 . Edições Afrontamento. Porto. 1990.
53
Observamos que a obrigatória separação dos sexos fica a serviço de uma
definição formal de seus papéis e, tudo isso, em um sistema que acaba dando
pouco espaço para a parte biológica. Cabe salientar que a educação continua
proibida para as romanas.
Homem e mulher ficam assim denominados: pai de família (paterfamilias) e
mãe de família (materfamilias). E fica subentendido que é função da mulher era
presentear seu marido com filhos legítimos. Assim, ela garantia também o direito de
ser denominada uma mãe de família. Na verdade, o casamento foi mais uma idéia a
serviço do homem: (a) a garantia de que a prole, gerada com sua esposa, era
legítima; (b) a garantia da sucessão e continuidade de sua família e de seus bens.
Aqui está colocada também a preocupação com o direito de herança. A
mulher entrava no casamento pelo regime marital e podia ser então considerada, em
termos de sucessão, como irmã de seus filhos, visto que estavam eles na
dependência da esfera jurídica de um mesmo chefe de família. Segundo Thomas
(1990: 143), “de modo que, no seu conjunto, a ordem sucessória agnática ordem
que excluía completamente a filiação materna era uma construção jurídica cujo
cerne constituído pela unidade e continuidade do poder”.
Mesmo quando a mulher deixava, em seu testamento, bens para algum
herdeiro, essa transação dependia da aprovação de um tutor, o que deixava a
situação novamente na mão de um homem. Em suma, a situação de herança era
desproporcionalmente favorável aos homens.
Tal status é, na verdade, resultado de vários acontecimentos. Não podemos,
portanto, nos atermos a um só. Uma das coisas que mais chamam a atenção é que
a mulher não era considerada capaz de cuidar de seus direitos. Para o direito
romano, que imperava na Idade Média, a mulher era a eterna menor. Ela era
54
considerada incapaz de cuidar dos direitos de outras pessoas e de seus próprios
interesses. Esse sistema permaneceu na corrente de desenvolvimento da sociedade
como um todo e acabou se perpetuando e dando a origem da idéia de que a mulher
é a responsável pela casa, ao passo que o homem é o responsável pela vida
pública, pela política. Nessa linha de pensamento, consideremos as palavras que
Simone de Beauvoir nos coloca:
A mulher será estritamente escravizada ao patrimônio e, destarte, ao grupo
familial: as leis privam-na mesmo de todas garantias que eram reconhecidas
às mulheres gregas; a mulher passa a existência na incapacidade e na
servidão . Bem entendido, está excluída dos negócios públicos, todo oficio
viril é-lhe rigorosamente proibido; e, em sua vida civil, é ela uma eterna
menor. (1960: 113)
Dessa forma, criou-se a convenção de que a mulher passava da mão do pai
para a do esposo e, em casos especiais, para as mãos de um tutor. Sob o pretexto
de cuidar dela, a mulher era criada como uma incapaz de cuidar de si mesma e, por
conseqüência, de qualquer coisa que dissesse respeito à vida pública.
2.2 As Influências do Discurso Religioso
A Igreja e seus discursos, entre outras instâncias, são considerados
importantes pilares de sustentação, ao longo de boa parte da história da
humanidade, da dominação sobre as mulheres. Ela dita normas e costumes,
determina comportamentos e faz uma clara divisão entre o bem e o mal, entre o
certo e o errado. Embora, muitas vezes, inconsciente, é ela que nos dita valores
morais e nos faz lidar com a idéia de sermos pecadores. Seu poder é tão grande
que, mesmo as pessoas que confessadamente não são religiosas, vivem conforme
os preceitos dessa cultura judaico-cristã.
55
O discurso religioso influenciou, de maneira decisiva, o modo como a mulher
é vista na sociedade ocidental. É um discurso poderoso, assim como outros que
ditaram normas e regras na/para a sociedade, e seus efeitos sobre a imagem da
mulher são devastadores e muito potentes. Tais efeitos fazem-se sentir até os dias
atuais, em que ainda se procura “doutrinar” as mulheres. Mesmo que muitas normas
e regras foram abolidas, subjetivamente, elas continuam a se perpetuar, alimentadas
pela tradição, passadas de geração a geração. Relativamente a essa questão,
Bourdieu afirma que:
Quanto à Igreja, marcada pelo antifeminismo profundo de um clero pronto a
condenar todas as faltas femininas à decência, sobretudo em matéria de
trajes, e a reproduzir, do alto de sua sabedoria, uma visão pessimista das
mulheres e da feminilidade, ela inculca explicitamente uma moral
familiarista, completamente dominada pelos valores patriarcais e
principalmente pelo dogma da inata inferioridade das mulheres. Ela age,
além disso, de maneira mais indireta, sobre as estruturas históricas do
inconsciente, por meio, sobretudo da simbologia dos textos sagrados, da
liturgia e até do espaço e do tempo religioso(marcado pela correspondência
entre a estrutura do ano litúrgico e a do ano agrário). (2002: 103)
Nas grandes religiões monoteístas, a simbologia e os dogmas utilizados
assumem a desigualdade dos sexos, sendo o masculino o pólo positivo, superior.
Deus, mesmo não tendo sexo, é pensado como sendo do gênero masculino. No
Gênesis, o homem surge primeiro e a mulher veio depois, para fazer companhia ao
homem. Na verdade, o cristianismo atribui uma alma para a mulher, mas sempre
subjugada ao homem.
Esta subjugação das mulheres aos homens sofre diretamente a influência do
poderoso discurso da Igreja. Se os homens, sempre na sua figura masculina,
representaram o poder, devemos isso ao fato de o direito sexual ou conjugal
56
preceder o direito de paternidade. Para que Adão fosse pai, era necessário que Eva
se tornasse mãe. Em Pateman
35
encontramos o seguinte:
Flimer deixa claro que o direito político de Adão está originalmente
estabelecido no seu direito de marido sobre Eva: Deus deu a Adão (...)a
autoridade sobre a mulher e, citando o Gênesis 3:16, Deus estabeleceu
que Adão dominará sua mulher, e os desejos dela estarão submetidos aos
dele. (1993: 133)
O direito político originário não era, portanto, o paterno, mas sim o conjugal. A
explicação para o fato de Adão dominar sua mulher é a de que o homem é a parte
mais importante na procriação. O pai (Adão) fica assim representado como detentor
originário do governo, representando o pai de toda humanidade. Se Adão é pai de
toda humanidade, também é pai de Eva, pois ela foi criada depois de Adão.
Pateman (1988) nos fala que, na teoria patriarcal, o pai não é somente um dos pais:
ele é o pai, o ser capaz de gerar direito político. Aqui percebemos como os discursos
se entrelaçam, ao longo da história, guiando a humanidade através da política, da
religião, da cultura, da educação. As pessoas, ao circularem por esses espaços
legítimos da nossa sociedade, ao mesmo tempo em que reproduzem os discursos,
os legitimam e os naturalizam.
No Cristianismo, a figura da mulher passa a ser extremamente perigosa,
lembrando sempre o pecado original, o pecado da carne. Beauvoir nos coloca que:
Todos os padres da Igreja insistem no fato de que ela conduziu Adão ao
pecado. Cumpre citar de novo as palavras de Tertuliano: Mulher! És a porta
do diabo. Persuadiste aquele que o diabo não ousava atacar de frente. Foi
por tua causa que o filho de Deus teve de morrer. Deverias andar sempre
vestida de luto e de andrajos. Toda a literatura Cristã se esforça por
exacerbar a repugnância que o homem pode sentir pela mulher. (1960: 210,
211)
35
PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
57
Quando usamos a metáfora do “pecado da carne”, não podemos deixar de
assinalar um aspecto muito importante: que, a partir daqui, a sexualidade, enquanto
pecado, passa a ser associada com o mal. O sexo, enquanto atividade que nos
proporciona prazer, fica associado ao pecado. Para a igreja, o sexo possível é
aquele com uma clara intenção de procriação. A maternidade é a única forma de a
mulher expressar e vivenciar sua sexualidade. A sexualidade da mulher fica
atrelada, então, por duas condições: a mulher deve se subordinar ao homem e dar à
luz na dor.
Reiteramos que a mulher é sempre lembrada como aquela que cometeu o
pecado original; portanto, ela é a origem do mal e do pecado na terra. De acordo
com Colling,
No relato mítico do Éden a mulher retirou a humanidade do paraíso, por isso
terá como castigo parir seus filhos com dor e ser dominada pelo marido, o
que se revelará numa constante vigilância sobre seus costumes e um
rigoroso confinamento doméstico. O mito da criação inaugura os espaços
público e privado, a sujeição inerente ao seu próprio ser e o matrimônio e
maternidade como as únicas vocações femininas. (2006: 33, 34)
O cristianismo, opondo-se ao pecado da carne, respeita a virgem consagrada.
A salvação da mulher encontra-se no casamento, pois através da obediência ao seu
esposo e da submissão à ordem estabelecida na sociedade, é que ela se purifica de
todo pecado original. Resgatada pelo Salvador, ela renega o pecado da carne e,
portanto, pode também ser uma humana e se colocar ao lado do homem. Casando,
homem e mulher assumem os votos matrimoniais. Sendo o casamento uma
instituição sagrada, o sexo é visto como sagrado, com o objetivo da procriação. Pelo
casamento, a mulher continua anexada ao homem, o que é conveniente, pois, se
tornando dócil ao homem, ela assume a imagem de santa, mãe protetora, aquela
que guarda pelo bem-estar de sua família.
58
No Cristianismo, a virgindade é um valor supremo para as mulheres e
principalmente para as moças. A Virgem Maria é seu exemplo, seu modelo e sua
protetora. A Virgem concebe pela “graça do Espírito Santo”, permanecendo
imaculada. Ela é a mãe em toda sua plenitude, o protótipo de mãe perfeita que
alimenta, carrega o filho, o acompanha mas ela é somente mãe. A virgindade
antes do casamento passa a ser um capital precioso e esperado; e o corpo das
mulheres passa a estar em perigo.
Através de Eva, o homem passa a possuir a natureza. Segundo as escrituras
sagradas, ela foi feita para ser a companheira do homem, para ele não se sentir só.
Ao homem cabe dominar a mulher e fecundá-la como faz com a terra. Dessa forma,
o homem consegue dominar toda natureza. Ter uma mulher não implica só no ato
sexual; implica em manter a tradição das leis de Manu, citadas por Beauvoir (1960),
em que a mulher é comparada ao campo e o homem é a semente que fertiliza.
Nessa ótica, a mulher, mais uma vez, é o receptáculo, o vaso, o útero passivo que
acolhe, que se deixa dominar e fertilizar. Através da mulher, o homem alcança a
transcendência, ou seja, domina a natureza e volta a ela na forma de preservar seus
genes. A mulher garante ao homem a continuidade da vida, por isso ele precisa
dela.
Logo no início do Cristianismo, as mulheres testemunhavam junto com os
homens, porém não participavam do culto de forma ativa, mas sim de forma
secundária. As mulheres eram excluídas do uso da palavra e do sacerdócio. Só aos
clérigos, era reservado o ofício de pregar e, por isso, só eles eram instruídos para
exerceram tal função. As mulheres são sua platéia muda, são aquelas para quem é
voltada a pregação.
59
Atualmente, já encontramos muitas mulheres que pregam, o que se tornou
mais popular com o advento do protestantismo. Mas, a Igreja tradicional Romana
ainda muito hierárquica preserva a função de pregar, como exclusividade masculina.
Perrot
36
assinala que:
Há aí cortes profundos, que se explicam pela história, pela idéia do pecado
e da impureza feminina, pela angústia da carne, que atormenta
principalmente o pensamento dos Padres da Igreja. Também pela idéia da
transcendência do sagrado, que passa justamente pela recusa da carne, da
sexualidade e das mulheres. Essas mulheres que é preciso conter, manter
no privado, cujo corpo é preciso esconder e velar os cabelos, senão o rosto.
Essas mulheres cujo ideal seria a virgindade. (1998: 139)
A partir desta passagem, podemos perceber o quanto o homem se sentia
ameaçado pela mulher, pela sua sexualidade. A única forma de controlar sua
natureza mítica e selvagem era lhe reservando o espaço privado, no qual, longe do
olhar externo, o homem acreditava poder lhe dominar a natureza. Através dessa
dominação, a mulher passava a ter o lado sagrado valorizado, assumindo papel de
cuidadora, aquela que faz a ligação do homem com a natureza.
Aqui já percebemos qual era o papel designado às mulheres, qual seja: cuidar
de doente, socorrer os indigentes, assegurar a paz e harmonia familiar, preservando
os preceitos morais e os bons costumes. Os homens são os defensores das leis, da
razão e das necessidades; ao passo que as mulheres conhecem as necessidades
humanas e, como as santas, elas têm a doçura da caridade. Nesse sentido,
Beauvoir afirma que:
A partir de Gregório VI , quando o celibato é imposto aos padres, o caráter
perigoso da mulher é severamente sublinhado: todos os padres da Igreja
lhe proclamam a abjeção. Santo Tomás será fiel a essa tradição ao declarar
que a mulher é um ser ocasional e incompleto, uma espécie de homem
36
PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.
60
falhado. O homem é a cabeça da mulher, assim como o cristo é a cabeça
do homem, escreve. É constante que a mulher se destine a viver sob o
domínio do homem e não tenha por si mesma nenhuma autoridade. (1960:
119)
Era importante, para os homens, que as mulheres se mantivessem dóceis e
submissas. Nesse meio, surge a figura da Virgem Maria, que era mulher, mas santa.
A igreja faz da figura da Virgem um ícone da mãe sofredora, sacrificada, passiva e
escrava do filho. A Virgem Maria é a figura invertida de Eva: enquanto a primeira é a
mediadora da salvação, a segunda mediou o pecado do homem. Com Maria, mãe
de Cristo, a maternidade atinge o status sagrado. Nisso temos que a maternidade é
uma das formas de subjugar e dominar as mulheres, lembrando-lhe sempre de seus
deveres como mãe. Segundo o Cristianismo, ser mãe implica ser santa, obedecer e
cuidar para que se cumpram as leis divinas. Nesse sentido, a mãe é a própria
encarnação do Bem, a guardiã da moral e aquela que conduzirá seus filhos pelos
caminhos traçados. Ela é a alma da casa, do lar, da família.
As cidades, províncias e nações também são figuras femininas. Aquela que
irá esperar o homem com um abraço reconfortante, aquela em que ele irá recompor
as forças da batalha. A mulher encarna, dessa forma, um refúgio com efeito
regenerador. Em sua presença, o homem pode sentir-se novamente tranqüilo, reunir
forças, pode deixar-se levar pela natureza, pode ser ele mesmo. Para Beauvoir
(1960), glorificar a mãe é aceitar os ciclos da natureza, a vida e a morte em sua
forma animal e social, aceitando a harmonia da natureza e da sociedade. Importante
ressaltarmos que a mulher é glorificada no espaço privado, dentro dos lares, em que
ela é tida como “a rainha do lar”.
Reconhecendo-se representado na mulher, o homem pode também
reconhecer sua ligação com a natureza, com o Cosmos. A alma do homem é
61
representada por uma mulher: Psiquê. A alma é o transcendente; e a mulher torna-
se o corpo glorioso; venerada, ela simboliza a figura sensível da alteridade.
Assim, a mulher passa a representar o bem, através da imagem da Santa, da
Mãe virginal e o mal através da pecadora, daquela que aprecia os pecados da
carne. O homem procura essas duas mulheres. E, muito comumente, tinha uma
mulher dentro de casa que encarnava a Santa e outra fora que era a pecadora.
Dessa forma, sentia-se completo e viril. Beauvoir (1960) chama a atenção de que o
maniqueísmo se introduz na vida feminina.
O maniqueísmo é uma filosofia religiosa dualista, que divide o mundo em dois
pólos: o Bem e o Mal. No pensamento dualista ou binário, as oposições sustentam
sempre uma hierarquia ou economia de valor que opera sempre pela subordinação
de um dos termos da oposição binária ao outro. A mulher encarna o Bem e o Mal.
Para domar o Mal, o homem domina a mulher, subjugando-a, como se, dessa forma
pudesse exorcizar o Mal pela vitória do Bem. Nesse processo, o papel do Discurso
Religioso é fundamental, pois cria normas e regras que devem ser seguidas pelas
“mulheres de bem”. E toda “mulher de bem” casava com um homem que também
seguisse o modelo cristão. Para Bresciani
37
, esse homem é agora um novo homem
que deve voltar seus interesses para o trabalho e a vida piedosa, participar de
sociedades de temperança, com a crença renovada. Juntos, esse casal, através da
formação de uma família, forma os legítimos representantes do que Michel Foucault
(1998) chamou de “Dispositivo da Sexualidade, e que podemos entender como uma
rede heterogênea de discursos, de práticas, de instituições, de leis, que têm, na
37
BRESCIANI, Maria Stella M.. A Mulher e o Espaço Público. In: BRESCIANI, M. S. M. (Org.);
SAMARA, E. (Org.); LEWKOWICZ, I. (Org.). Jogos da Política. Imagens, representações e
práticas. 1. ed. São Paulo: ANPUH - Marco Zero - FAPESP, 1992.
62
sexualidade, o fio condutor de suas ações e expressões. Considerando as reflexões
de Bresciani, observamos que:
A intensificação do peso sentimental conferido à casa (o lar)como lugar da
religião doméstica centrada na influência moral da esposa e da mãe,
reforçou o viés moralizante da noção de virtude do modelo cristão . Marca
ainda uma nítida diferença em relação à virtude do pensamento ilustrado,
fruto da razão e da capacidade de formar opinião própria. (1982: 81)
A partir do século XVII, houve um crescimento do sentimento maternal. Ser
mãe era o que de mais importante podia acontecer na vida de uma mulher. A
maternidade ocupava tanto a vida prática como a vida simbólica da mulher. Na vida
prática, ela se via envolvida com os afazeres domésticos, garantindo alimentação,
saúde e higiene para seus filhos. No plano simbólico, tornar-se mãe era a glória
máxima para uma mulher, uma fonte de identidade, um acontecimento que a situava
na vida da sociedade. Nos escritos de Lins
38
(1997), encontramos que a Igreja,
utilizando-se da proibição sexual, passou a exercer a confissão auditiva, através da
qual podia realizar um minucioso controle sobre a vida e a sexualidades das
pessoas. Vejamos o seguinte fragmento textual de Lins:
Encarregando-se do controle da sexualidade e traçando-lhe limites estreitos,
o cristianismo faz de todo homem um pecador, tendo-o à sua mercê, pois
somente a Igreja, através do sacramento da penitência, possui a chave da
Redenção. E esse método é tão eficaz que o pecador reincidirá, quase que
inelutavelmente. (1997: 57)
Sendo a função materna um pilar da sociedade, ela torna-se um fato social. A
política investe no corpo e na saúde; conseqüentemente, o controle da natalidade
entra em evidência. Este controle, que aparece nas sociedades ocidentais, a partir
38
LINS, Regina Navarro. A Cama na Varanda Arejando Nossas Idéias a respeito de Amor e
Sexo. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1997.
63
do Renascimento, vai gerar uma série de mudanças. A mais importante mudança é
que, com o advento de métodos de contracepção, a mulher passa a poder escolher
quando e se terá filhos. Ela passa a dispor de seu corpo com uma autonomia que
ainda não era conhecida. O aborto e a contracepção entram na pauta da discussão
da sociedade.
A Igreja Católica, ainda nos dias de hoje, é totalmente contrária a um controle
da natalidade. Ela tem uma política que valoriza as famílias numerosas e as
mulheres que não trabalham fora. Com uma grande família, torna-se praticamente
inviável para a mulher trabalhar fora de casa. A Igreja, portanto, mantém-se
favorável ao patriarcalismo, ao paternalismo e à submissão das mulheres.
Teólogos e médicos se apoiaram nesse Discurso Religioso para explicar a
dependência e a fragilidade da mulher. Na verdade, esses discursos se apóiam
mutuamente e se entrelaçam, ditando normas e comportamentos, criando sujeitos. O
Discurso Religioso, sem dúvida, é um dos pilares de formação da nossa cultura
ocidental. Beauvoir (1960) acrescenta que todos os códigos europeus são redigidos
segundo códigos que desvalorizam a mulher. Todos os países conhecem a
propriedade privada e a família, e submetem-se a essas instituições. Uma das
conseqüências dessa submissão feminina ao “lar” é a franca existência da
prostituição.
2.3 Os Discursos na Sociedade Atual
Até agora nos ativemos a examinar alguns discursos que, ao longo da história
da humanidade, contribuíram para que as relações de gênero atingissem a
64
configuração atual. Cabe a pergunte, então: como se encontram configurados os
papéis masculinos e femininos, na sociedade atual?
Para podermos refletir sobre isso, vamos buscar indícios em estatísticas, em
mensagens enviadas via internet e em piadas que circulam por todos os lares,
constituindo ferramentas para podermos desenvolver tal reflexão. Foucault (1998)
nos fala que o poder está em toda parte. Importante frisarmos isso, pois devemos
nos dar conta de que a produção dos discursos ocorre em toda parte, por todos os
sujeitos. O que falamos e/ou contamos exerce um poder sobre as pessoas que
convivem conosco e assim as teias discursivas vão sendo tecidas.
Nas palavras de Foucault, encontramos:
Que as relações de poder são, ao mesmo tempo, intencionais e não
subjetivas. Se de fato, são inteligíveis, não é porque sejam efeito, em
termos de causalidade, de uma outra instância que as explique, mas porque
atravessadas de fora a fora por um cálculo: não há poder que se exerça
sem uma série de miras e objetivos. Mas isso não quer dizer que resulte da
escolha ou da decisão de um sujeito, individualmente; não busquemos a
equipe que preside sua racionalidade; nem a casta que governa, nem os
grupos que controlam os aparelhos do Estado, nem aqueles que tomam as
decisões econômicas mais importantes, gerem o conjunto da rede de
poderes que funciona em uma sociedade (a faz funcionar); a racionalidade
do poder é a das táticas muitas vezes explícitas no nível limitado em que se
inscrevem cinismo local do poder que encadeando-se entre si,
invocando-se e se propagando, encontrando em outra parte apoio e
condição, esboçam finalmente dispositivos de conjunto: lá, a lógica ainda é
perfeitamente clara, as miras decifráveis e, contudo, acontece não haver
mias ninguém para tê-las concebido e poucos para formulá-las: caráter
implícito das grandes estratégias anônimas, quase mudas, que coordenam
táticas loquazes, cujos inventores ou responsáveis quase nunca são
hipócritas. (1998: 90,91)
Nisso temos que o poder, através dos discursos, produz sujeitos, ao mesmo
tempo em que é produzido. Primeiro, refletimos sobre como estão configurados os
espaços masculinos e femininos em geral e, depois, analisamos o espaço do
65
trânsito. Para isso, usamos alguns dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE)
39
.
Tanto nos cenários nacionais e internacionais, as mulheres têm ampliado,
cada vez mais, seu espaço nas esferas social, política e econômica. Segundo o
IBGE, o ano de 2007 é, no âmbito familiar, o que apresenta maiores mudanças. Os
fatores que mais contribuem para um novo perfil da mulher brasileira foram: a
redução no número de filhos por mulher, a crescente participação das mulheres no
mercado de trabalho, a contribuição feminina no rendimento familiar, o aumento do
número de mulheres como referência familiar e no comando da família, entre outros.
Associados a esses fatores, figuram vários movimentos a favor da libertação
feminina, pautados não só por mulheres. O conjunto dos elementos acima
mencionados acaba promovendo mudanças nas relações entre homens e mulheres.
Para Pisano
40
, o fato de a mulher ter acesso a certos espaços de poder não significa
que ela consiga de fato tocar o ápice de cultura ainda masculina. Nisso temos então,
que precisamos analisar que tipo de espaço a mulher conseguiu conquistar e o que
significam esses espaços para a sociedade.
Cabe esclarecermos que nossa reflexão está voltada para a observação e
análise de que tipos de mudanças acontecem e se elas efetivamente representam
alguma alteração na base das relações sociais.
Em relação à questão da maternidade, vimos que houve redução no número
de filhos por mulher. Considerando os dados do IBGE, podemos observar que, em
2006, das 32,7 milhões de mulheres com filhos: 30,9% tinham um filho; 33,3%, dois
39
IBGE- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de Indicadores Sociais-Uma Análise
das condições de Vida da População Brasileira. Rio de Janeiro, 2007.
40
PISANO, Margarita. El Triunfo de la Masculinidad. Fem-e-livros. PDF, 2004.
66
filhos; e 35,8%, três filhos. Comparativamente a estes números, dez anos antes, ou
seja, em 1996, os percentuais eram, respectivamente: 25,0%; 30,1%; e 44,9%.
Quanto ao item fecundidade, constatamos também uma sensível redução,
uma vez que a proporção de mulheres brasileiras com três filhos ou mais, passou de
63,2% para 48,6%. Isso representa 14,6%: uma redução de mais (bem mais) de um
décimo (1/10) em dez anos ou, ainda, uma redução média de 1,46% ao ano. Com
métodos contraceptivos cada vez mais eficientes, a mulher passa a ter um controle
cada vez maior sobre uma possível gravidez. Isso permite que ela também possa se
inserir, com mais dedicação, no mercado de trabalho. A família nuclear se torna
cada vez menor.
Simultaneamente a esses índices, percebemos que o nível de ocupação das
mulheres aumentou quase 5 p.p., ao passo que para os homens ocorreu uma
redução de cerca de 1 p.p.
41
.
A maior participação das mulheres, no mercado de trabalho, tem se
concentrado em quatro grandes categorias ocupacionais que, juntas, compreendem
cerca de 70% da mão-de-obra feminina, quais sejam: serviços em geral (30,7%);
trabalho agrícola (15%); serviços administrativos (11,8%).
Para as mulheres ocupadas com maior nível de escolaridade, em uma média
de 12 anos de estudo ou mais, a inserção no mercado de trabalho é mais intensa
nas atividades de educação, saúde e serviços sociais, totalizando um índice de
44,5%. Salientamos que, não raro, essas áreas de trabalho são consideradas
femininas, já que há uma sutil às vezes, nem tão sutil assim associação as
atividades do privado: família, filhos, etc.
41
A referência 5 p.p. e 1p.p. significa, respectivamente, cinco e um pontos percentuais.
67
Para a Organização Internacional do Trabalho (OIT), são 51,7% das mulheres
que têm empregos vulneráveis, ou seja, trabalham por conta própria ou são
trabalhadoras auxiliares ou familiares. Isso significa que as mulheres estão entrando
no mercado de trabalho nos setores mais precários, o que significa também menores
salários.
No caso da população masculina mais qualificada, a inserção no mercado de
trabalho é, em geral, mais diversificada e em atividades melhor remuneradas, o que,
de certa forma, explica parte da desigualdade entre homens e mulheres no que se
refere ao rendimento. Observamos ainda que 23,6% deles estão em outras
atividades; 16,7%, na indústria; 15,9%, nos setores de educação, saúde e serviço
social; 14,7%, no comércio e reparação; e 13,3%, na administração pública.
Analisando os dados trazidos até aqui sobre a ocupação de homens e
mulheres, podemos perceber que o que Pisano (2004) nos coloca sobre isso
encontra eco na prática. Para ela, os lugares que as mulheres ocupam são
simbolicamente inferiores aos ocupados pelos homens, e esses espaços que ela
ocupa, são essenciais para o funcionamento do sistema; assim, vemos a grande
maioria das mulheres empregadas, em serviços gerais, e em atividades ligadas à
saúde e à educação. Os cargos mais bem remunerados e de chefia, ainda são
ocupados por homens.
A qualificação feminina tem se intensificado, nos últimos anos, e tende a ser
cada vez maior. Por exemplo, em 1996, o número de estudantes femininos, em nível
superior, era de 55,3% do total dos estudantes; já, em 2006, este número passou
para 57,5% mais de 2% em dez anos. A mulher tem buscado cada vez mais
conseguir um lugar de destaque no mercado de trabalho. Percebemos, assim, que
68
as mulheres procuram estar cada vez mais qualificadas, fazendo cursos e investindo
na carreira.
Outro aspecto interessante, que pode ser encontrado nos dados do IBGE, é o
número de mulheres que são indicadas como a pessoa de referência da família, cujo
aumento é considerável. Em uma década, quase duplicou: passou de 10,3 milhões,
em 1996, para 18,5 milhões, em 2006. Em números percentuais, a proporção de
mulheres, na condição de pessoa de referência, de 51% passou para 54%. Esses
números associados aos índices de escolaridade e à inserção no mercado de
trabalho nos permitem pensar que um dos aspectos que determina a nomeação
pelos membros da família, especificamente da mulher como a pessoa de referência,
está relacionado com uma condição crescente de independência feminina, tendo em
vista fundamentalmente a maior participação das mulheres no mercado de trabalho
e, conseqüentemente, uma maior contribuição no rendimento da família.
Precisamos, por outro lado, considerar que, em relação à jornada média
semanal despendida em afazeres domésticos, as mulheres trabalham mais do que o
dobro dos homens nessas atividades, chegando a 24,8 horas de trabalho doméstico
feminino.
Isso nos leva a concluir que, apesar de todas as mudanças pelas quais as
mulheres estão passando em vários âmbitos, nas relações sociais, a realização dos
afazeres domésticos continua predominantemente sob a responsabilidade da
mulher. Somente metade dos homens realiza afazeres domésticos
especificamente 51,4% , enquanto que nove (9) de cada dez (10) mulheres,
tem/tinham essa atribuição, o que representa cerca de 90%. Esse dado nos permite
afirmar que, nos lares brasileiros, ainda não existe uma significativa divisão das
tarefas domésticas e que, portanto, a mulher cumpre geralmente duas jornadas de
69
trabalho: em casa e fora dela. Eis que aqui se desnuda uma prova latente da
desigualdade entre homens e mulheres, uma face perversa das atuais relações de
gênero. O trabalho da mulher ainda é visto como complementar ao do homem, nisso
temos que o homem ainda é tratado na família como “o provedor”, aquele que
merece o descanso depois de buscar o sustento da família. Ao homem, como
percebemos no cartum colocado como Anexo 01
42
, são conferidas as qualidades
positivas de inteligência, lógica e capacidade de dirigir. A mulher, para atingir o
espaço masculino, deve se tornar “um homem de saias”, ou seja, incorporar atitudes
e comportamentos masculinizados. Aqui se percebe mais uma vez que é a mulher
que, invade o dito espaço masculino, o homem não possui a pretensão de invadir o
espaço feminino.
Os dados apontados pelo IBGE (2007) nos dão indícios de como funciona a
vida na maioria dos lares brasileiros. Apesar das conquistas da mulher, no mercado
brasileiro, percebemos que o cuidado com a casa, com a família, com os filhos,
ainda são tarefas atribuídas como exclusividade feminina. Isso acaba levando a
mulher a ter uma dupla e até, tripla jornada de trabalho. Sobre isso, Pisano
(2004) pondera que os avanços conquistados pelas mulheres foram absorvidos sem,
no entanto, provocar uma nova proposta civilizatória e cultural. A igualdade entre
homens e mulheres não está ao alcance da mão, e não será com poucas mudanças
que essa história terá um novo rumo.
Temos aqui dois pontos de análise que merecem nossa atenção. O primeiro é
para o fato do consentimento feminino na perpetuação da dominação masculina.
Segundo Bourdieu (2002), essa realidade de as mulheres ainda se encarregarem
das tarefas domésticas está longe de ser um ato intelectual, consciente, livre; mas é
42
Vide Anexo 01.
70
o resultado de um poder inscrito ao longo de milênios nos corpos das mulheres, que
acabam por naturalizar esse comportamento. O segundo ponto é que o trabalho
doméstico está inscrito na esfera feminina. Pateman
43
(1993) faz essa distinção ao
explicar que o trabalho doméstico, legitimizado pelo casamento, é da esfera
feminina, ao passo que o trabalho “fora de casa” é da esfera masculina. Para
Lagrave
44
(1991), os homens fazem carreira, as mulheres abandonam o lar.
Atualmente, a mulher avança no espaço masculino, ao passo que o homem não
está realizando o mesmo movimento. Nisso temos que ela, ao trabalhar fora, divide
com o homem o espaço masculino; já o espaço feminino não é dividido, ele ainda é
essencialmente feminino.
Podemos observar facilmente que, em geral, no trabalho, as mulheres
recebem salários inferiores aos dos homens, além de suas ocupações normalmente
estarem associadas a atividades que tenham a ver com o cuidado de outros
(professoras, enfermeiras, assistentes sociais, psicólogas), ou integram o
contingente de atividades entendidas depreciativamente como mão-de-obra barata
em grandes indústrias, comércios e serviços. Quanto às mulheres que ocupam
cargos de chefia e direção, elas são minoria. Pisano (2004) faz uma interessante
contribuição quando acrescenta que os avanços da mulher nos fazem crer em
grandes mudanças, mas, na verdade, esses avanços, mesmo em áreas da política,
da cultura e da economia, estão sempre focalizados e envolvidos com espaços
românticos e amorosos, que estão a serviço da masculinidade. Assim, a mulher
sempre acaba retornando ao papel tradicional feminino, de estar a serviço do
43
PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
44
LAGRAVE, Rose-Marie. Uma emancipação sob tutela. Educação e trabalho das mulheres no
século XX. História das Mulheres no Ocidente - O século XX. (Org.) Duby, G. e Perrot, M. Porto:
Edições Afrontamento, 1991.
71
homem. Podemos observar nas piadas e nas frases que se apresentam no decorrer
do trabalho e nos anexos, o quanto a mulher ainda está presa ao estereótipo de
mulher-objeto, que tem sua existência atrelada a satisfazer as necessidades
masculinas: “(...) as mulheres só podem aí ser vistas como objetos, ou melhor, como
símbolos cujo sentido se constitui fora delas e cuja função é contribuir para a
perpetuação ou o aumento do capital simbólico em poder dos homens(BOURDIEU,
2002: 55).
Relativamente ao trânsito, oportunidade em que se insere nosso objeto de
estudo, e às relações de gênero, perguntamos: como se encontra o perfil de homens
e mulheres? Questão esta que iremos desenvolver no próximo capítulo.
72
3 OS HOMENS E AS MULHERES NO ESPAÇO PÚBLICO E PRIVADO
Para podermos construir uma reflexão sobre como homens e mulheres
circulam pelas ruas de cidades e por estradas, constituindo, dessa forma o que
denominamos de trânsito, devemos de maneira mais peculiar nos ater em analisar
que espaço é esse que é tomado pelo trânsito, pela afluência e movimento de
pessoas e automóveis.
O movimento que nos interessa analisar, no presente estudo, acontece em
um espaço público. As pessoas que, dirigindo seus carros, pretendem se
movimentar de um ponto a outro da cidade, do Estado ou do País, utilizam as vias,
que são, por excelência, espaços públicos. Podemos afirmar, então, que o trânsito
ocorre no espaço público. Homens e mulheres circulam nesse espaço. Enfim, nossa
investigação tem por foco os espaços públicos e privados, bem como homens e
mulheres, ao longo da história, se utilizaram desses espaços para se locomover,
para viver, para construir sua subjetividade. Além disso, precisamos pensar em qual
é o significado desses espaços para a legitimação de seus papéis na sociedade;
qual a importância e relevância desses espaços para construir o “sentimento de ser
mulher” e o “sentimento de ser homem”.
Nesse sentido, consideramos oportuno trazer a seguinte passagem de Colling
para nossa reflexão:
Mais do que a separação dos sexos entre as duas esferas, a hierarquização
e a valoração direcionada a cada um dos espaços é objeto de estudo. Ao
feminino caracterizado como natureza, emoção, amor, intuição, é destinado
o espaço privado; ao masculino, cultura, política, razão, justiça, poder, o
espaço público. (2006: 38)
73
O homem público sempre teve sua importância reconhecida, pela participação
de forma ativa nas decisões de poder, organizando e direcionando a estrutura de
poder e governo da sociedade. A mulher pública, ao contrário, é conhecida como
aquela que não tem um dono, um senhor, portanto serve aos homens em geral.
Podemos dizer que é uma mulher comum, da vida, pois não se preocupa em
direcionar sua vida, conforme as regras ditadas pela sociedade.
Precisamos aqui desconstruir o caminho que nos levou, de forma
aparentemente natural, a ter o espaço público como masculino e o privado como
feminino. Para compreendermos a questão do público e do privado, temos que nos
debruçar também sobre como se constituiu a dominação masculina ao longo dos
tempos. Houve um movimento de dominação masculina sobre o feminino, de forma
que o espaço público ficou caracterizado como masculino e o espaço privado, como
feminino. Há de termos presente que essa divisão não nasceu com a humanidade;
portanto, foi se constituindo ao longo do desenvolvimento dela.
O espaço público, segundo Perrot,
tem aqui dois sentidos que parcialmente se recobrem. A “esfera pública”,
por oposição à esfera privada, designa o conjunto, jurídico ou
consuetudinário, dos direitos e dos deveres que delineiam uma cidadania;
mas também os laços que tecem e que fazem a opinião pública. (1998: 82)
Para os homens, o espaço público e o político se tornaram uma espécie de
santuário: eles (homens), no seu poder, tomam conta e governam tanto a família
como o Estado, estabelecendo e organizando as leis. Às mulheres fica reservado o
espaço privado, a casa: elas são responsáveis pelos cuidados da família, dos filhos,
da alimentação. Perrot (1998) cita Pitágoras que afirma que “uma mulher em público
está sempre deslocada”.
74
A mulher sempre foi associada ao mítico, ao selvagem, ao invisível. Uma
feiticeira que conhece os mistérios da vida e que, através dessa ligação com a
natureza, com o incontrolável, pode tornar-se extremamente perigosa, pode
manipular o bem e o mal. Ela pensa com o coração, com a emoção, ameaçando as
decisões que o homem toma pautadas pela razão. Portanto, a melhor forma
encontrada pelo homem para dominar esse espírito da natureza é dominando-a,
delimitando seu espaço de atuação.
Bourdieu (2002) faz um interessante estudo sobre esse processo que ele
denomina “Dominação Masculina”. Esse estudo o levou a tecer interessantes
considerações sobre esse tema. A nossa constituição da sexualidade nos faz ignorar
o fato de que cada movimento nosso, do nosso corpo, cada expressão do dia-a-dia
provoca deslocamentos que estão imediatamente revestidos de significação social.
Todas as nossas atividades bem como os objetos que nos cercam estão, de
forma isolada, divididos na oposição masculino/masculino que, por sua vez,
correspondem ao sistema de oposições homólogas, como alto/baixo, claro/escuro,
quente/frio. Essas oposições se sustentam e se complementam mutuamente,
desencadeando um jogo interminável de transferências práticas e de metáforas.
Essas oposições de palavras e de metáforas desencadeiam esquemas de
pensamento. Para Bourdieu,
Esses esquemas de pensamento, de aplicação universal, registram como
que diferenças de natureza, inscritas na objetividade, das variações e dos
traços distintivos (por exemplo, em matéria corporal) que eles contribuem
para fazer existir, ao mesmo tempo que as “naturalizam”, inscrevendo-as
em um sistema de diferenças, todas igualmente naturais em aparência ; de
modo que as previsões que elas engendram são incessantemente
confirmadas pelo curso do mundo, sobretudo por todos ciclos biológicos e
cósmicos. (...). O sistema mítico-ritual desempenha aqui um papel
equivalente ao que incumbe ao campo jurídico nas sociedades
diferenciadas: na medida em que os princípios de visão e de divisão que ele
propõe estão objetivamente ajustados às divisões pré-existentes, ele
75
consagra a ordem estabelecida, trazendo-a à existência conhecida e
reconhecida, oficial. (2002: 16)
Através dos nossos esquemas de pensamento, organizados segundo essas
divisões (alto/baixo, quente/frio, úmido/ seco), acabamos caindo em um sistema
circular, em que nosso pensamento encerra a evidência de relações de dominação
inscritas tanto na objetividade, sob a forma de divisões objetivas, como na
subjetividade, sob a forma de esquemas cognitivos que organizam as percepções
das divisões objetivas. A definição social dos órgãos sexuais acontece, então,
através de escolhas orientadas, que acentuam ou apagam certas diferenças. Assim,
o masculino passa a ser a medida de todas as coisas, visto que é o olhar masculino
que legitima toda a cadeia de ações e pensamentos, inscrevendo-os em uma
natureza biológica, que é, por sua vez, uma construção social naturalizada.
Dessa forma, os papéis masculino e feminino, desempenhados na sociedade,
seguem o esquema sinóptico das oposições pertinentes. O oficial, o religioso e o
público ficam naturalizados como pertinentes ao masculino. Ao feminino cabe o
oficioso, o mágico, o ordinário e o privado.
Perguntamo-nos: como esses papéis foram se desenvolvendo na história do
contrato social? Como homens e mulheres foram ocupando seus espaços nessa
nova forma de direito civil e político? Diante disso, pensemos no contrato original,
que deu origem a nova sociedade civil, como sendo uma ordem social patriarcal.
Esse contrato, na verdade, é um contrato sexual-social, embora a parte da história
do contrato sexual tenha sido sufocada. Relativamente a essa questão, em Pateman
encontramos que:
O contrato social é uma história de liberdade; o contrato sexual é uma
história de sujeição. O contrato original cria ambas, a liberdade e a
dominação. A liberdade do homem e a sujeição da mulher derivam do
76
contrato original e o sentido da liberdade civil não pode ser compreendido
sem a metade perdida da história, que revela como o direito patriarcal dos
homens sobre as mulheres é criado. (1993: 16, 17)
A sociedade civil é criada pelo contrato, de forma que o contrato e o
patriarcado pareçam pertencer a forças contrárias. Na verdade, o contrato é o meio
pelo qual se constitui o patriarcado moderno. Patriarcado não pode ser entendido
somente como regime paterno, pois o poder de um homem enquanto pai é posterior
ao seu direito de homem (marido) sobre uma mulher (esposa). Então, a sociedade
civil moderna está estruturada no fato de as mulheres serem subordinadas aos
homens enquanto homens. Homens esses, que pertencem a uma espécie de
fraternidade.
O contrato sexual tem sido também esquecido porque, como a sociedade civil
está dividida em duas esferas (pública e privada), acaba por se dar uma relevância
maior à esfera pública, da liberdade civil. A esfera privada não é tida como relevante,
logo o casamento e o contrato matrimonial tornam-se irrelevantes.
Contudo, ao ignorar a esfera privada, ignora-se também uma parte importante
do contrato original. Para Pateman (1993), a esfera pública não pode ser
compreendida sem a esfera privada, assim como o contrato original é desvirtuado
sem as duas partes da história. A liberdade civil depende do direito patriarcal.
Esses fatos são importantes para o nosso estudo, na medida em que deve
ficar claro de que modo ocorre e se legitima a dominação masculina e, para isso,
temos que nos concentrar no contrato social-sexual. Quando pensamos em contrato,
logo pensamos que um contrato é um acordo entre duas partes sobre bens, serviços
ou outras coisas materiais, mas esquecemos que a propriedade mais importante que
cada um de nós possui é a propriedade sobre si mesmo. Especificamente é desta
última propriedade que vamos tratar.
77
3.1 Uma Questão de “Propriedade”
A princípio, um acordo ocorre com algo que chamamos de livre arbítrio. Em
outras palavras, o sujeito é livre para participar ou não de determinado acordo. Essa
é uma premissa do contrato social. A leitura do contrato sexual, que
estrategicamente ficou esquecida, nos fala que, aqui, a mulher não participa do
contrato em igualdade. Ela não participa, pois ainda não é vista como um indivíduo.
Se ela não é um indivíduo, ela não pode participar em igualdade de condições com o
homem no contrato sexual, que chamamos de casamento. Sendo assim,
questionam-nos: como acontece o contrato sexual e por que via?
Enfatizamos que o contrato sexual acontece pela via da dominação das
mulheres pelos homens. Para isso, tomemos as palavras de Pateman que são as
seguintes:
A diferença sexual é uma diferença política; a diferença sexual é a diferença
entre liberdade e sujeição. As mulheres não participam do contrato original
através do qual os homens transformam sua liberdade natural na segurança
da liberdade civil. As mulheres são o objeto do contrato. O contrato sexual é
o meio pelo qual os homens transformam seu direito natural sobre as
mulheres na segurança do direito patriarcal civil. (1993: 21)
A dicotomia que se instala quando se introduz o contrato, passa a ser entre as
duas esferas que o constituem: a esfera pública, civil e a esfera privada. E essa
dicotomia reflete a ordem da divisão sexual, por isso a diferença sexual é também
uma diferença política. A antinomia público/privado corresponde à divisão
natural/civil e entre homens/mulheres. Apesar de contrárias, as esferas pública e
privada só adquirem significado uma a partir da outra, pois só podemos ter o sentido
da liberdade civil quando ele é contraposto à sujeição natural que caracteriza o
domínio privado.
78
Os homens circulam de um lado a outro, entre a esfera pública e a privada, e
o mandato da lei do direito sexual masculino rege os dois domínios, lembrando que
o direito conjugal não é direito paterno e sim parte do direito sexual masculino que
os homens exercem, enquanto homens e não enquanto pais. Sobre isso, Pateman
(1993) esclarece que a necessidade dos homens de exercerem poder sobre as
mulheres advém do fato de que era necessário ao homem garantir a paternidade de
sua prole. Para que ele pudesse garanti-la, era preciso inventar mecanismos que lhe
assegurassem a propriedade dos filhos. Assim, os homens originam a vida política e
social. E a forma que os homens acharam para garantir seus direitos foi subjugando
as mulheres. O casamento, nessa ótica, foi a forma contratual criada para assegurar
esse pacto de submissão.
Um contrato existe para assegurar a legítima defesa, ou seja, para assegurar
que os direitos de propriedade de cada um dos indivíduos que participam desse
contrato não sejam violados. Diante disso, como a mulher acaba participando desse
contrato, no qual ela não é reconhecida como indivíduo?
A princípio, o que se conhece é que, para proteger a sua vida e de seus
filhos, a mulher participa de um contrato de sujeição. Assim, ela se torna a serva do
homem em troca de proteção e subsistência. Mas, no estado natural, não existe o
domínio de uns sobre os outros, por isso é necessário, no estado civil, legitimar esse
contrato de submissão através do casamento. Dessa forma, também surge a criação
da família como primeira célula social e civil. O contrato sexual, então, garante ao
homem o direito de exercer poder sobre as mulheres, por isso que, com o
casamento, o homem não precisa mais subjugar a mulher, na medida em que isso
está subentendido no contrato. Logicamente, foram criados mecanismos que
“naturalizaram” esse contrato. Assim, quando uma mulher passa a fazer parte de um
79
contrato sexual, subentende-se que ela consente que esse contrato é um contrato
de submissão. Quando casa, a mulher passa automaticamente a ser posse do
marido, mesmo que nunca tenha ouvido falar disso. Ela consente em participar com
sua submissão da convenção social criada para esse fim: o casamento. Nesse
sentido, lembramos Foucault ao ponderar que o consentimento feminino fortalece o
poder masculino.
Entretanto, precisamos ainda analisar por que as mulheres entram nesse
contrato de submissão e em troca de quê. Um contrato supõe que as partes
envolvidas se reconheçam como pessoas e proprietárias. Pateman (1993) afirma
que, para Hobbes, todo contrato é uma transferência mútua ou troca de direito. Toda
troca é eqüitativa, ou seja, deve ser vantajosa para ambas as partes. Contudo,
quanto ao contrato sexual, podemos perguntar: o que efetivamente acontece? O que
é trocado?
Devemos lembrar que a troca nos contratos envolve propriedade. Esta não
diz respeito somente a bens materiais, mas à propriedade, no sentido singular de
propriedade, que as pessoas têm em relação a si mesmas, o que implica a troca de
obediência permanente por proteção. É importante atentarmos para a questão do
tempo de duração do contrato. Quando falamos em contrato sexual, a duração
estabelecida é ilimitada. Isso, na realidade, se transforma no fato de que uma das
partes no caso, o homem tem o direito de determinar como a outra parte a
mulher cumprirá o que lhe cabe (com a sua parte na troca).
Para a pergunta “por que a mulher não pode ser incorporada à sociedade
civil, devendo assim ser submissa aos homens?, podemos pensar que é porque a
suposta superioridade masculina cunhou uma base “natural” para a fragilidade
feminina.
80
As feministas têm argumentado que toda essa diferença pode ser creditada à
educação, que faz com que as mulheres pareçam menos capazes e habilidosas do
que os homens. Para Pateman (1993), as mulheres têm que assumir essa condição
de submissão, porque elas são naturalmente subversivas à ordem política
masculina. E, então, as mulheres seriam perigosas e por quê? Elas, com seu desejo,
com seu sexo, com sua fecundidade, representam o perigo, a força da natureza.
Dessa forma, para que a ordem prevaleça é necessário que essa mulher-natureza
seja excluída da vida política. A esse raciocínio, é pertinente acrescentar a seguinte
reflexão de Perrot:
O corpo das mulheres, seu sexo, esse poço sem fundo, apavora. E, deste
ponto de vista, as ciências naturais e biológicas, em pleno florescimento a
partir do século XVIII, nada resolvem. Ancoram um pouco mais a
feminilidade no sexo e as mulheres em seus corpos, escrutados pelos
médicos. Estes as descrevem como doentes perpétuas, histéricas, à beira
da loucura, nervosas, incapazes de fazer abstração, de criar e, acima de
tudo, de governar. Elas inquietam os organizadores da cidade, que vêem
nas multidões, onde elas estão tão presentes, o supremo perigo. Os
psicólogos das multidões atribuem a elas os excessos da Revolução.
Autoras dos massacres de setembro de 1972, incendiárias da Comuna,
capazes de qualquer excesso, são as megeras e as fúrias de todas as
insurreições. (1998: 8, 9)
Para domar essa mulher , esse desejo insaciável que cada mulher possui, é
preciso a interferência do homem e de sua razão. Podemos ler “razão” como o
direito patriarcal. Temos, então, que, segundo Pateman (idem, p.146), o
desenvolvimento inter-relacionado da razão, da língua e das relações sociais é
simultâneo ao desenvolvimento da diferença sexual; uma diferença que implica a
dependência e a submissão das mulheres aos homens. Assim, dizemos que a
impossibilidade das mulheres de desenvolverem a moralidade política necessária
para participarem da vida política acabou sendo a “base natural” para o direito
masculino. A mulher e sua própria identificação assumem o papel oposto da
81
instituição legal. No contrato original, a paixão e a parcialidade femininas podem ser
controladas pela razão masculina.
Tal operação é que permite a constituição das famílias, que vem a ser a base
natural sobre a qual os vínculos comuns se formam. E, então, para ter uma boa
família e filhos bem cuidados, o homem necessita de uma “boa” mulher, no sentido
de que ela não tenha interesse maior do que promover o bom andamento da vida
privada do homem. Para que ela se torne uma “boa esposa”, fica implícito que ela
deve estar sempre disponível para servir ao marido, por isso o contrato sexual não
apresenta tempo definido. Ele é permanente. Assim, uma vez casada, uma mulher é
24 horas por dia disponível para cuidar de seu esposo e de seus interesses
privados, leia-se família. Cabe observar que essa família surgiu não por amor, mas
pela necessidade ou vontade de maior desenvolvimento econômico. Por outro lado,
tornar-se esposa ainda hoje em dia é o principal meio pelo qual a maioria das
mulheres obtém uma identidade social reconhecida. Em outras palavras, é através
do casamento que a mulher é incluída na sociedade.
O trabalho doméstico, portanto, não é reconhecido como trabalho. O trabalho
na vida pública, no mundo capitalista é para homens, pois é um “ganha-pão”. Tanto
isso é verdade que o trabalho de dona de casa não é incluído como índice de
produtividade. Conseqüentemente, o homem adquiriu o status de produzir valores,
gerar e manter a vida política.
O contrato sexual exige que as mulheres sejam incorporadas à sociedade civil
em base diferente da dos homens. Enquanto eles circulam nas esferas pública e
privada, a mulher deve ficar na esfera privada. Para Pateman,
Esse contrato singular é a gênese de uma esfera privada que salienta a
masculinidade a fraternidade -, a liberdade e a igualdade do mundo
público; a família fornece o exemplo de sujeição natural (da mulher) da qual
82
depende o significado da sociedade civil/Estado, enquanto uma esfera da
liberdade. (1993: 267)
Depreendemos daí que o domínio sexual é também o principal meio de os
homens afirmarem a sua masculinidade. É através do contrato sexual que fica
acordado que às mulheres cabe o espaço privado. Faz-se necessário ponderarmos
que, hoje em dia, as mulheres conseguiram avançar muito no espaço público.
Pensemos em como elas conseguiram, aos poucos, participar cada vez mais da
esfera pública?
Perrot (2005) nos coloca que a presença e a fala feminina, na vida pública, é
uma inovação do século XIX. Não que as mulheres antes desse tempo não tivessem
nenhuma participação na vida fora de suas casas, mas a sua participação sempre foi
velada, escondida e pouco registrada. A história oficial sempre nos foi contada a
partir dos registros feitos pelos homens. Mas, precisamos levar em conta que a
história também apresenta brechas, lacunas, nas quais constatamos que a vida das
mulheres acontecia, apesar do silêncio a que elas eram presas. O silêncio acaba por
fazer parte da sua natureza ele era esperado. A mulher devia mais ouvir do que
falar, guardando as palavras para si. Era preciso (era melhor, inclusive) aceitar,
conformar-se, submeter-se e calar-se. Perrot (2005) enfatiza que eram essas as
posturas esperadas da mulher.
A mulher acaba, dessa forma, sendo destituída da expressão do seu
pensamento. Logicamente, elas não são as únicas a sofrer desse silêncio, mas ele
pesa mais sobre elas por causa da desigualdade dos sexos. As mulheres apareciam
menos no espaço público, não se falava nelas e, quando se falava, era sob a visão
masculina, como uma imagem, que era mais idealizada e imaginada do que real.
Isso tem relação com o que as mulheres sentiam e pensavam: ainda era preciso
descobrir. Interessante observarmos que os pesquisadores do assunto, ao
83
buscarem, em relíquias da Antigüidade, respostas para essas perguntas,
confrontaram-se com a adesão das mulheres a esse olhar masculino, pois seu olhar
não existia, apesar de sua existência.
Ao longo da história, o interesse crescente na vida familiar, na vida privada,
acabou por colocar a mulher em evidência. Anteriormente ao fato da literatura e da
escrita se tornarem mais populares, a mulher se reunia com as outras mulheres da
casa e juntas costumavam praticar o que chamamos de história oral, momentos em
que relatavam para as outras mulheres, casos, histórias e mitos. Com a
popularização da escrita e da literatura, as mulheres instituíram o hábito de escrever
diários, nos quais contavam seu quotidiano e expressavam seus pensamentos. O
acesso à literatura também ampliava o espaço da expressão feminina. Para Perrot,
A literatura, essa epopéia do coração e da família, é, felizmente,
infinitamente mais rica. Ela nos fala do cotidiano e dos estados da mulher,
inclusive pelas mulheres que nela se intrometeram. Pois o direito das
palavras de mulher depende de seu acesso aos meios de expressão: o
gesto, a fala, a escrita. Inicialmente isoladas na escrita privada e familiar,
autorizadas a formas específicas de escrita pública, elas se apropriaram
progressivamente de todos os campos da comunicação e da criação: poesia
e romance, sobretudo; história, às vezes; ciência e filosofia, mais
dificilmente. (2005: 13)
O silêncio começou a ser rompido por fatores científicos, políticos e
sociológicos. Concomitantemente com a crise dos grandes paradigmas, a
reconstituição da história colocava as famílias e as mulheres no centro do interesse
da investigação. Esse movimento criou uma demanda de investigação de novos
objetos: a criança, a loucura, a sexualidade, a vida privada. A evidência da mulher
cresceu. Também passou a ocorrer a feminização dos espaços como a
universidade. Ali, a mulher encontrou brechas para refletir sobre si, para encontrar
novas expectativas e novos questionamentos. Assim, surgiram os movimentos
84
feministas de grande expressão que, com a chegada da esquerda ao poder,
atingiram uma relativa institucionalização.
O feminismo é um movimento social que defende a igualdade de direito e de
status entre homens e mulheres em todos os campos. O objetivo principal desse
movimento é fazer da mulher sujeito de sua própria história. Um marco para o início
do movimento das mulheres foi a Revolução Francesa, em 1789. A revolução trouxe
muitas mudanças políticas. As mulheres passaram, a partir de então, a denunciar
sua sujeição. Segundo Toscano e Goldenberg
45
(1992), foi Olympe de Gouges que
instaurou, de certa forma, o feminismo como movimento, quando, em 1791, propôs a
aprovação da Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã.
Ao longo do século XIX, o feminismo se estruturou como movimento, na
medida em que as diferenças de tratamento entre homens e mulheres ficavam cada
vez mais claras e evidentes. Entre essas diferenças destacamos a diferença de
salários recebidos por homens e mulheres, a discriminação das mulheres no
trabalho, a dupla jornada de trabalho. O direito ao voto também foi uma das
bandeiras desse movimento.
Com a Primeira Guerra Mundial, a mulher foi convocada a assumir o trabalho
masculino, porém, assim que termina a guerra, elas foram novamente “chamadas ao
lar”. De acordo com as reflexões de Toscano e Goldenberg,
A Revolução de 1917 introduziu uma nova visão quanto à necessidade de
transformações profundas na estrutura de poder e, principalmente, nas
relações de produção, como condição para mudar a situação da mulher. Daí
porque, a partir dos anos 20, principalmente na Europa, o movimento
feminista vai se apresentar cindido em duas linhas principais: de um lado
agrupam-se as mulheres que fazem de sua luta uma questão isolada do
conjunto da sociedade e que tomam como bandeira principal a luta pelo
45
TOSCANO, Moema. GOLDENBERG, Mirian (ORG.). A Revolução das Mulheres - Um balanço
do Feminismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1992.
85
voto e pela presença mais significativa da mulher em outras instâncias que
não o lar, de outro lado, as socialistas, que partem do pressuposto de que
somente uma revolução, que transformasse radicalmente a sociedade,
abriria espaço para uma mudança mais significativa no estatuto social da
mulher. (1992: 22)
Não queremos adentrar aqui na questão das linhas do feminismo, visto que
este não figura entre os objetivos de nossa pesquisa. Registramos, todavia, sua
pertinência para o estudo na medida em que permite pensar de que forma esse
movimento contribuiu para que a mulher avançasse em muitos espaços antes
considerados estritamente masculinos.
A crise econômica mundial dos anos 30(século XX) e a Segunda Guerra
Mundial marcam uma fase em que o feminismo esteve mais “parado”, ou seja,
entrou num processo de relativa paralisia. O fascismo e as grandes alianças dos
países que se punham ao Eixo, por exemplo, ocuparam, nesse momento, as
atenções do mundo. Enfatizamos que o feminismo estava somente adormecido e, no
período de pós-guerra, voltou a se fortificar enquanto movimento, com força total.
No Brasil, o feminismo só aparece como movimento organizado na segunda
década do século XX e sua maior bandeira era a luta pelo direito ao voto. A
conquista deste veio em 1932, já no período conhecido com Estado Novo. Neste
mesmo ano, passou a vigorar a legislação trabalhista de proteção ao trabalho
feminino, sendo que, em 1943, aconteceu a consolidação das leis trabalhistas.
Foi Simone de Beauvoir, nos anos 60 do século XX, com o lançamento do
livro “O Segundo Sexo”, que acabou impulsionando uma verdadeira renovação no
movimento feminista no mundo inteiro, ao afirmar que: “Não se nasce mulher, torna-
se mulher“.
As mudanças do pós-guerra, a guerra fria, as crises econômicas e políticas na
América do Sul, dentre outros motivos, acabaram por desencadear um clima geral
86
de insatisfação e abrir espaços para a discussão de novas idéias, dentre elas a
condição de inferioridade da mulher, no plano político, sua falta de
representabilidade (ou pouca), as desigualdades na educação e no trabalho,
impulsionaram uma ação política mais organizada.
Na fase da repressão política brasileira, que se iniciou em 1964, houve uma
crescente conscientização a respeito da situação da mulher na sociedade. Algumas
mulheres se organizaram contra a ditadura militar e despontaram como militantes
ativas. Em 1975, a Organização das Nações Unidas (ONU) promulgou o Ano
Internacional da Mulher, auxiliando a derrubar muitas resistências na luta contra o
feminismo. Começaram a surgir os primeiros estudos sobre a mulher, o que acabou
por atrair a atenção de mulheres que estavam dispostas a discutir e a estudar a
condição feminina. Assim, a condição da mulher, na sociedade, obteve cada vez
mais espaço para ser discutida e questionada. Por conseqüência, o exercício da
discussão e questionamento trouxe algumas mudanças reais à vida cotidiana das
mulheres, como o reconhecimento da sexualidade feminina, ampliação de número
de creches, possibilidade de falar sobre a violência doméstica que era até então
muito mais velada. A mulher começou a transpor barreiras de espaços que antes
eram considerados exclusivamente espaços públicos masculinos. A fronteira que
dividia o espaço público masculino, do espaço privado feminino, com o tempo
tornou-se progressivamente mais permeável. Essa movimentação só foi possível,
em função da existência e identificação de lacunas históricas a serem preenchidas.
Para Perrot, essa movimentação entre espaços:
Supõem complexas interações em que as mulheres desempenharam seu
papel, ora individualmente, na obscuridade de gestos desconhecidos, de
vidas anônimas; ora coletivamente, através de irrupções espontâneas -
revoltas de subsistência, greves... ou de ações mais organizadas;
surgimento, pela caridade e pela filantropia, de uma cidadania social que
87
torna ainda mais berrante a deficiência do político, feminismos de todo tipo
que, em sua intermitente continuidade, denunciam as injustiças e as
contradições da democracia. (1998: 93)
O principal legado do feminismo é possibilitar um espaço para pensar o
masculino e o feminino. O feminismo propõe uma revolução nas estruturas sociais
existentes que, historicamente, estiveram alicerçadas na dominação masculina,
possibilitando à mulher uma mudança de vida a partir de suas escolhas profissionais
e pessoais. Desvinculando a sexualidade da maternidade, a mulher tem a
possibilidade de escutar seus desejos, seus próprios interesses e de desfrutar de
uma relação amorosa prazerosa, que não tenha como fim primordial a reprodução.
As mulheres, na luta pela igualdade com os homens no acesso a direitos e espaços,
é conhecida como empoderamento, conforme já vimos anteriormente neste texto.
Para podermos compreender melhor as relações de gênero, precisamos nos ater às
relações de poder implicadas entre homens e mulheres.
Temos, então, que as mulheres buscam conquistar um espaço nesse mundo
ainda tão masculinizado. Sua presença em profissões e espaços masculinos ainda é
sentida como subversão e continua gerando curiosidade. Os movimentos feministas
lutam por igualdades de direitos. O direito tornou-se a bandeira da democratização
entre os sexos.
No entanto, entre as novas conquistas femininas e a real mudança parece
existir ainda um grande abismo que precisará, sem dúvida, de muita luta das
próprias mulheres e mudanças sociais, em todos os aspectos. Diante de cada
conquista feminina, podemos falar que existe também um avanço do poder
masculino, pois, na realidade, a distância entre os sexos se mantém inalterada.
Nesse sentido, vale a pena ver o que Bourdieu, falando sobre os dualismos,
acrescenta. Vejamos a seguinte passagem:
88
Estes, profundamente enraizados nas coisas (as estruturas) e nos corpos,
não nasceram de um simples feito de nominação verbal e não podem ser
abolidos com um ato de magia performática- os gêneros, longe de serem
simples papéis com que se poderia jogar à vontade, estão inscritos nos
corpos e em todo universo do qual extraem sua força. (2002: 122)
Nesta fala de Bourdieu, na verdade, temos que a questão do gênero é uma
questão profundamente arraigada na nossa cultura, que se retroalimenta, que luta
para manter a sua hegemonia, que busca, nos espaços mais rotineiros como o
trânsito , o espaço ideal para criar tentáculos que possam servir para mostrar sua
força e seu poder. Tal força se constitui, justamente, no fato de que ele nos parece
tão natural que não nos damos conta disso.
3.2 O Espaço Público do Trânsito
Como a nossa pesquisa enfoca as relações de gênero no espaço trânsito,
buscamos compreender o porquê de o trânsito e de o automóvel possuir um espaço
simbólico privilegiado na nossa sociedade. O automóvel é um meio utilizado para
nos locomovermos. Ele é uma invenção recente da nossa história. Em 1908, foi
montado o primeiro automóvel, no Brasil, e, a partir daí, a montagem automobilística
foi crescendo. Muitas montadoras acabaram por se instalar no país, revolucionado
modos, costumes e comportamentos.
Com o aumento significativo do número de automóveis, foi necessária a
criação de leis que regulamentassem a sua circulação. Foi, a partir de conflitos entre
o crescente número de usuários, que o Estado se viu na obrigação de criar leis que
ordenassem o sistema de trânsito. No nosso país, ao conjunto dessas leis dá-se o
nome de Código Nacional do Trânsito.
89
Observamos que, desde a sua criação, o automóvel foi um objeto de desejo.
No início, era algo que só a burguesia podia adquirir, ficando seu valor simbólico
associado ao poder, à nobreza. Mesmo com a popularização do automóvel, ele
ainda é um objeto que significa prestígio, potência, valores que a sociedade
capitalista enaltece e incentiva através do consumismo.
Na nossa sociedade capitalista, os produtos assumem um valor simbólico,
que é o que lhe agrega valor e prestígio. A compra de um objeto com certo valor
simbólico significa algo semelhante a como se a pessoa, na verdade, adquirisse
aquele valor simbólico. É importante que ponderemos que tais valores mudam de
sociedade para sociedade. Podemos falar, por exemplo, que o automóvel é um
ícone do consumismo, pois em quase todas as sociedades ele é considerado um
“signo” de grande valor, representando a potência, o poder e riqueza, tanto para
homens como para mulheres. Dessa forma, o automóvel ocupa um lugar privilegiado
no imaginário da nossa sociedade. Para tanto, basta prestarmos atenção nas
propagandas que estimulam o consumo desse produto: facilmente, percebemos que
ele é um ícone do consumismo moderno. Uma vez possuindo um bom automóvel, as
pessoas sonham em um dia trocá-lo por um mais veloz, mais potente, mais luxuoso
e, assim, sucessivamente. Pelos salões de automóveis, que se realizam em todo o
mundo, temos a impressão de que quase não existem limites para a imaginação,
para o desejo de possuir um exemplar exclusivo.
Na verdade, os automóveis tiveram um grande valor simbólico, desde o seu
surgimento na Europa, no século XIX, quando eram vistos como objetos de luxo e
ícones de poder, liberdade e emoção. Somente a aristocracia possuía automóvel.
Com isso criou-se uma associação entre riqueza e poder, entre possuir ou não
automóvel. Ser visto com um automóvel passou a significar nobreza, poder e status.
90
Este que, em linhas gerais, diferenciava um possuidor de automóvel de um não
possuidor. Aquele que o possuía passava a imagem de ser uma pessoa bem
sucedida, que prezava a liberdade com estilo, aliada a um bom poder aquisitivo. Até
nos dias atuais, ainda podemos “medir” o status social de uma pessoa pelo tipo de
automóvel com o qual circula. Quase que automaticamente, um dos primeiros itens
de compra obrigatório para a pessoa em ascensão social é um automóvel melhor,
mais potente e luxuoso.
Para Lygia Rocha
46
, a partir da década de 30, os automóveis mudaram o
conceito de símbolo de elegância e passaram a representar a manifestação material
de desigualdades sociais, sendo vistos, muitas vezes, como os símbolos da
exploração do proletariado pela burguesia. Mais tarde também eles modificaram o
contexto familiar já que muitas famílias transformaram os seus veículos em
membros da família , e o contexto social pois organizavam diferentes formas de
sociabilidade e simbologia na cultura dominante.
Aos poucos, os automóveis foram trazendo muitas transformações culturais e
sociais, pois de objetos de luxo passaram a se tornar um objeto utilitário do cotidiano
das pessoas. No início, eram inacessíveis ao grande público, assegurando a
sensação de pertencimento a um grupo restrito e privilegiado, e sendo associados
ao consumo da elite, na medida em que ofereciam status aos seus proprietários. A
transformação se deu, principalmente, em áreas como distribuição da população,
moradia, valores e linguagem, o que gerou uma transformação de comportamentos.
Pela mobilidade que permitem, os automóveis modificaram também o ritmo de vida
das pessoas, tornando-se uma exigência do mundo moderno. Em suma, além de
46
Lygia Rocha, In: www.segs.com.br . Acesso em 13.02.2008.
91
úteis, os automóveis são meios que servem para economizar tempo, encurtar
distâncias e proporcionar independência e prestígio aos seus proprietários.
Os automóveis também influenciaram o traçado das cidades, mexendo assim,
de forma intensa, com o espaço público. A construção de novos traçados deve
permitir o aumento do tráfego nas ruas e também criar novos desenhos urbanos,
uma vez que a fácil locomoção permite a criação de bairros mais afastados. Na
medida em que representam a pessoa em movimento, o automóvel confere um
indicador simbólico de velocidade e glamour ao seu proprietário.
Na economia e administração, os automóveis apresentam um grande valor de
mercado, pois o evento da fabricação em série fez com que fossem desenvolvidas
novas formas de produção, como a automatização. Mas também foram abertos
novos postos de trabalho. Segundo Lygia Rocha (www.segs.com.br), até foi criado o
termo “Fordismo” para designar um novo conceito de trabalho, no qual a produção
era agilizada ao especializar tarefas, hierarquizar atividades e consolidar a linha de
montagem, padronizando peças, integrando verticalmente a produção e
automatizando as fábricas.
O automóvel acabou gerando uma mudança de comportamento social no
sentido de que se transformou em um objeto de culto e em um suporte de
individualismo moderno, estando associado à representação do “eu” na vida social.
Lygia Rocha (idem) fala que o automóvel assume um papel de totem, na sociedade
moderna, através do qual os indivíduos procuram ostentar poder e se diferenciar dos
demais. Interessante assinalarmos, embora todos saibam, que os automóveis, com
exceção dos de luxo e de série limitada, são produtos em série. Ele tem o poder de
conferir ao consumidor a ilusão da individualização e da exclusividade, funcionando
92
como expressão de estilo e como símbolo de hierarquia e prestígio; por isso, o
automóvel faz parte do desejo coletivo.
Os automóveis sempre foram vistos como símbolo de masculinidade e poder.
Estes símbolos são facilmente associados à velocidade e à potência dos
automóveis. Quando um motorista dirige seu carro, experimenta uma sensação de
poder, como se isso pudesse lhe outorgar maior poder. O automóvel é, por
excelência, um símbolo de masculinidade, potência, vigor. Refletindo sobre esse
fato, temos que dirigir é um espaço “duplamente” masculino, pois o espaço público é
considerado masculino e dirigir um automóvel também é considerado tarefa
masculina. Quando a mulher começa a dirigir, o homem sente que ela estava
“invadindo” um espaço masculino. Em troca dessa invasão, as mulheres que dirigem
escutam, ainda hoje, piadas depreciativas da condição feminina e, freqüentemente,
são motivos de chacota. O ataque é sempre uma provocação quanto à capacidade
da mulher de dirigir de forma adequada e segura, com o intuito claro de desmotivá-
la, deixá-la insegura e também de demonstrar o quanto desagrada aos homens essa
“invasão” de espaço. Se nos reportarmos ao início desse trabalho, veremos que,
na época de Platão, os homens desvalorizam os afazeres femininos, tudo que era
realizado pelas mulheres sofria um sentido pejorativo de inferioridade. Então, não
nos surpreende se ainda hoje nos deparamos com a desvalorização dos afazeres
femininos. Elas obtêm a autorização para penetrar no campo masculino, mas devem
consentir que o fazem de forma inferior.
Interessante observarmos que, há alguns anos, depois de passar a dirigir, a
mulher, geralmente, escolhia automóveis de porte pequeno, porque estes seriam
fáceis de dirigir e estacionar, além de apresentarem, em geral, formas arredondadas,
o que pode ser considerado certa alusão ao corpo feminino. Atualmente, a escolha
93
do modelo é feita pela praticidade. Entretanto, quando uma família possui dois
automóveis, geralmente o modelo menor, de menor potência e de formas mais
arredondadas, acaba sendo dirigido pela mulher. Afinal, fica subentendido que ela
irá utilizar, especialmente, o automóvel para facilitar suas tarefas domésticas: buscar
e levar filhos, fazer as compras da casa, percorrer pequenos trajetos.
Diante dessas reflexões, perguntamos: afinal, que tipo de automóvel deseja
uma mulher? Para Cátia Luz
47
, a mulher deseja um lugar para pendurar a bolsa;
deseja mais segurança para as crianças, espaço para as compras e porta-trecos
para organizar as coisas dentro do carro. A mulher influencia 80% das decisões de
compra e isso faz com que se torne um alvo de investimento de marketing.
Muitas montadoras, pensando no consumo da mulher moderna, investem
pesado no mercado feminino. Segundo Cátia Luz, uma montadora pensou em
detalhes diferentes para automóveis dirigidos às mulheres: assento capaz de
aproximar do motorista o banco de trás, especialmente projetados para crianças
bancos completamente reguláveis , maior espaço entre o volante e os joelhos para
tornar o uso de saltos mais confortáveis, marchas leves e pedais com mais precisão,
espelhos no quebra-sol e boa acústica para ouvir os passageiros dos bancos
traseiros. Nesse sentido, o argumento utilizado é que os automóveis devem respeitar
as diferenças físicas entre homens e mulheres. No entanto, se observarmos tudo
isso atentamente, podemos pensar se há e em que medida há um retorno do eterno
feminino. Perguntamos: design de automóveis arredondados são ligados a um ideal
de beleza? São automóveis feitos para mães e mulheres-objeto, que devem estar
sempre lindas e arrumadas? Mais uma vez, concluímos que, de modo geral,
automóveis são para homens! Para as mulheres, é necessário um modelo que
47
Cátia Luz, Revista Época. In: www.revistaepoca.com.br . Acesso em 13.02.2008.
94
enalteça suas qualidades e seus ícones de identificação: mãe e mulher-objeto ou,
conforme Pisano (2004), a inserção da mulher nos espaços privilegiados da
masculinidade ainda ocorre pelo viés romântico, do cuidado com o outro.
Bourdieu (2002) coloca que, para adentrar no espaço masculino, a mulher
precisa do consentimento masculino, precisa se colocar em outra posição. Assim, a
mulher passa a ter a “permissão” para dirigir, desde que seja num automóvel que
lembre ela própria e a todos de seu papel primordial de mãe e mulher-objeto.
O aumento do investimento em carros próprios para mulheres é o avanço do
grupo de mulheres independentes e com renda própria. Segundo a revista Época
48
no Brasil, as mulheres respondem por 99% das compras de produtos de higiene e
limpeza, 90% das compras de alimentos e 70% de todas as aquisições domésticas.
Portanto, a mulher tornou-se uma consumidora que está no alvo das campanhas
publicitárias.
A mesma revista traz ainda a informação de que, no mercado de automóveis,
segundo um estudo da Wolkswagen, a participação feminina dobrou nos últimos 20
anos. Em 1980, elas respondiam por 18% das compras, ao passo que hoje
arrematam 40% do 1, 3 milhão de automóveis comercializados no país anualmente.
As mulheres também estão ocupando, cada vez mais, cargos nas montadoras.
Muitas empresas têm contratado mulheres como piloto de provas, pois perceberam
que elas se preocupam mais com o conforto e segurança dos outros passageiros.
Em suma, para as mulheres: carros funcionais, práticos e seguros; para os homens:
carros potentes, velozes e que transmitem poder e status.
Pensando na forma como se dá a escolha de um automóvel, percebemos que
o maior peso da escolha recai sobre o valor simbólico que ele confere a cada
48
Artigo disponível em www.epoca.com.br. Acesso em 13.02.2008.
95
consumidor, superando o valor utilitário. Por isso, o automóvel é um produto que
recebe muito investimento em propagandas.
O proprietário ou condutor de um veículo é responsável pelo prejuízo que este
possa causar e, em caso de acidente, pode incorrer em graves responsabilidades,
face às indenizações que lhe poderão ser exigidas. Por outro lado, existe o seguro
que procura acautelar os direitos das pessoas lesionadas. Neste sentido,
institucionalizou-se a obrigatoriedade de um contrato de seguro de responsabilidade
civil para os veículos terrestres. A falta de seguro pode gerar, em caso de acidente,
grandes problemas para a vida das pessoas, tanto para o responsável pelo acidente
quanta para a pessoa que sofreu lesões corporais ou materiais.
Elaine Medaber de Araújo
49
, que trabalha na área de seguros, há muitos
anos, publicou um artigo, em meio virtual, em que anuncia que as companhias de
seguros concluíram que as mulheres são suas melhores clientes. As mulheres são
mais cautelosas e tem um comportamento muito mais regrado no trânsito, batem
menos e, quando o fazem, geralmente os danos são bem inferiores aos causados
por acidentes com homens conforme já vimos na tabela, apresentada na página
106, nesta dissertação, sobre infrações de homens e mulheres cometidas no
trânsito. Nesse caso, os danos causados pelas mulheres ficam, de modo geral,
dentro ou próximo da franquia contratada, o que torna esse negócio rentável para as
seguradoras.
Podemos observar que o número de mulheres, no trânsito, ainda hoje, é
inferior ao dos homens. As pesquisas apontam que 53% da população é
constituídas por mulheres; no entanto, apenas 29% das mulheres possuem carteira
nacional de habilitação.
49
Eliane Medaber de Araújo. In: www.clubedasluluzinhas.com.br . Acesso em 13.02.2008.
96
Considerando os acidentes fatais, que acontecem em estradas e nas cidades,
vemos que os homens são responsáveis por mais de 90%, sendo a participação da
mulher menor que 10%. Dessa forma, as Seguradoras do Mercado Brasileiro,
concluíram que, se os riscos são menores com as condutoras, nada mais justo que
um plano com custos menores para o seguro de automóvel das mulheres. Em
alguns casos, os descontos podem chegar até a 30% no preço do seguro.
Quanto aos serviços de assistência 24 horas, oferecidos pelas companhias de
seguro, são mais utilizados pelos homens do que pelas mulheres. Para Eliane
Medaber de Araújo (idem), os benefícios mais utilizados pelas mulheres são os
descontos em casas noturnas, salões de beleza e academias de ginástica.
Na média, as mulheres pagam cerca de 15% menos pelo seu seguro em
relação aos homens com o mesmo perfil, idade e tempo de habilitação. Tanto
quando são incluídas como principal condutor, como quando são condutores
secundários.
As seguradoras já perceberam que vale investir massivamente em produtos
voltados à mulher, por dois bons motivos: primeiro, é que, cada vez mais, são elas
quem ditam as regras do consumo; e, segundo, porque a mulher se protege mais de
acidentes. Isso acaba por gerar maior rentabilidade para as seguradoras.
Como esse trabalho pretende ser um espaço de reflexão sobre as relações de
gênero, questionamos até que ponto as seguradoras, de forma velada (ou não?),
também acabam por reforçar o status passivo das mulheres, quando a
recompensam financeiramente com descontos pelo comportamento de serem o que
é esperado das “boas meninas”: atenciosas, cuidadosas, passivas.
97
Percebemos, assim, que o trânsito é um espaço simbólico muito rico para
podermos analisar de que forma as relações de gênero estão estruturadas na nossa
sociedade.
98
3.3 Mulheres e homens no trânsito: discursos atuais
Optamos por organizar a presente subseção para pensar sobre os discursos
que, concretamente, permeiam as relações de gênero no trânsito. Nesse sentido,
convidamos o leitor para observar a seguinte figura e o enunciado nela apresentado:
Figura 1: “Ela só queria estacionar”
Nesta figura, aparece um acidente automobilístico, junto com a fotografia de
uma mulher e do enunciado “Ela só queria estacionar”. Isso não deixa dúvidas de
que o acidente foi causado por uma mulher (ela) que apenas tinha a intenção
estacionar. Há uma ironia. A palavra “só” aqui caracteriza que ela apenas queria
estacionar, colocando o ato de estacionar como uma tarefa extremamente fácil e
corriqueira. Apesar dessa tarefa fácil, a mulher não consegue realizá-la. Ela é
colocada como incapaz.
99
Considerando as duas figuras seguintes que representam os cérebros
masculino e feminino, podemos observar que estão divididos de acordo com suas
capacidades bastante distintas. Vejamos as figuras:
Figura 2: Habilidades Femininas
Figura 3: Habilidades Masculinas
100
Podemos observar que as capacidades da mulher estão divididas em
atividades pejorativas, como comprar demais, falar demais, ser atraídas por coisas
brilhosas, ter capacidade mínima para dirigir um automóvel. Já a capacidade
masculina mais enfatizada é a sexual, seguida das capacidades de analisar
mulheres e de dirigir automóveis. São formas de apresentar visões e discursos que
vão tecendo suas redes de sentidos, moldando sujeitos.
Quando surgiram os primeiros automóveis, dirigir era uma função reservada
exclusivamente para os homens. As mulheres assumiram a direção de um
automóvel somente anos depois. Por muito tempo, elas foram conduzidas por
cocheiros e, mais tarde, por motoristas. Para o homem, dirigir é algo absolutamente
natural e necessário. O primeiro brinquedo que os meninos ganham, ao lado de uma
bola, geralmente é um carrinho. As meninas, por sua vez, ganham uma boneca. O
brinquedo, conforme Lebovici & Diatkine
50
(1988), é uma expressão da cultura,
característico de toda estrutura social. As crianças brincam e, de forma “não séria”,
assimilam normas, regras e comportamentos de sua cultura. Brincando, elas podem
experimentar papéis sociais e introjetar regras e disciplina. Brincando, aprendem o
que significa ser menino e ser menina, quais são os comportamentos que a
sociedade espera de meninos e de meninas. As crianças brincam, e brincando se
constituem sujeitos. Dessa forma, os meninos logo percebem que carros é “coisa de
menino” e que demonstrar seu gosto por carrinhos é algo bem visto socialmente. E,
se é bem visto, isso quer dizer que seu brinquedo será aprovado e estimulado pela
cultura. Como somos movidos pela aceitação, no nosso grupo, em busca da
identificação, do pertencimento, acreditamos, desde cedo, que bonecas são para
50
LEBOVICI, S. & DIATKINE, R. Significado e função do brinquedo na criança. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1988.
101
meninas e carrinhos para meninos. Assim temos que as noções de feminilidade e
masculinidade, a idéia de gênero em si, são construções sociais, e as crianças são
socializadas dentro desses arranjos de gênero já existentes. É essa socialização,
essa cultura, que vai nos orientar a perceber como natural os comportamentos tidos
como tipicamente masculinos ou femininos. Para Heilborn
51
(1999:40): “a cultura é a
responsável pela transformação dos corpos em entidades sexuadas e socializadas,
por intermédio de redes de significados que abarcam categorizações de gênero, de
orientação sexual, de escolha de parceiro.” Nisso temos que falar de relações de
gênero é falar das características atribuídas a cada um dos sexos pela sociedade e
sua cultura.
Embora a educação escolar não seja o nosso foco, não podemos esquecer o
papel formador que as escolas exercem sobre a noção da feminilidade e
masculinidade. A identidade de gênero embora seja uma construção subjetiva, é
realizada na relação com o outro, estabelecida e difundida pela cultura nas suas
mais variadas esferas, entre elas a educação formal. A escola ainda reforça
expectativas e aspirações quanto ao que é ser “menino” e o que é ser “menina”, é
um espaço em que circulam discursos e práticas que reforçam uma cultura sexista.
Ainda hoje, se observarmos o movimento de automóveis nas ruas e estradas
do mundo inteiro, veremos que, havendo um homem no automóvel, muito
provavelmente será ele quem ocupa o lugar do motorista. A mulher dirige hoje em
dia com muita naturalidade, mas o faz geralmente quando está sozinha ou
realizando tarefas que tenham a ver com o lar, tais como levar e buscar filhos na
escola, comprar mantimentos para a casa. Podemos observar, com freqüência, que,
51
HEILBORN, Maria L. Construção de Sim, Gênero e Sexualidade. In: O Olhar das Ciências
Sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
102
quando as esposas buscam os maridos, de automóvel, em seus trabalhos, ao
avistarem os maridos, elas imediatamente passam a direção para eles. Comumente
ouvimos também que, quando a família precisa se deslocar por grandes distâncias
o que, no nosso país, é muito comum também cabe ao homem vencer esse trajeto
ao volante, em nome de as estradas serem “muito perigosas”. Isso explica, em parte,
por que uma grande quantidade de maridos que, impossibilitados de gozarem de
férias com a família, em determinado período, se deslocam por muitos quilômetros
simplesmente para deixarem a “família em segurança”, no local das férias,
retornando logo após aos seus trabalhos. Essas práticas cotidianas são mais uma
demonstração do quanto a cultura masculina ainda é a predominante. E são essas
as atitudes que criam o que Bourdieu chama de habitus: o agir, sentir e pensar de
forma determinada, que acaba nos guiando por ações com intenções estratégicas,
mesmo que não nos demos conta disso no momento. Tais ações acabam se
cristalizando e formando modelos para o comportamento de homens e mulheres.
São esses modelos de comportamento introjetados pela educação que faz com que
a mulher acabe por perceber como natural o fato de passar a direção do automóvel
ao marido, sem questionamentos. Esse comportamento não gera questionamentos
na maioria das mulheres simplesmente porque é assim, porque temos a nítida
impressão de que sempre foi assim, e será assim, que é natural.
Trata-se de um modelo que assume um papel tão importante na realização de
nossas atividades mais corriqueiras que, ao analisarmos os dados estatísticos do
DETRAN, nos damos conta do quanto esse discurso é verdadeiro e poderoso, pois
está em todos os lugares e atinge igualmente toda população. Nisso temos que o
discurso é tão real que podemos, através das estatísticas, visualizá-lo.
Observemos a seguinte tabela das habilitações no Estado do RS:
103
Quadro 01: Representação do Total de Habilitações e os Gêneros
Fonte: (DETRAN, 2005).
A maioria das habilitações é feita por homens, conforme podemos constatar,
na tabela acima. Estes são dados colhidos no site do DETRAN (www.detran.gov.br),
que são relativos ao ano de 2005.
Passemos ao gráfico abaixo:
0
100.000
200.000
300.000
400.000
500.000
Porto
Alegre
Santo
Ângelo
Santa
Rosa
Pelotas
Homens
Mulheres
Total de Habilitações
Gráfico 01: Demonstrativo da Representação do Total de Habilitações e os Gêneros
Fonte: (DETRAN, 2005).
Local/RS Homens Mulheres Total de habilitações
Porto Alegre
309.582
171.242
480.824
Santo Ângelo
17.038
7.181
24. 219
Santa Rosa
15.941
6.319
22.260
Pelotas
32.332
10.867
43.199
104
Convertendo estes índices em números percentuais, podemos afirmar que os
condutores habilitados por gênero, no RS, em 2005, encontram-se distribuídos
dessa forma: os homens representam 73%, ao passo que as mulheres representam
27%. Isso revela estatisticamente que a percepção de que existem mais homens
dirigindo é verdadeira.
Se considerarmos, dentre essas habilitações, as categorias ditas profissionais
(“D” e “E”), constatamos que, em sua grande maioria, são requisitadas por homens.
Quadro 02: Representação das Categorias Profissionais “D” e “E”
Fonte: (DETRAN, 2005).
Observemos a tabela acima que apresenta alguns dados fornecidos pela
Assessoria de Estatística do DETRAN-RS, referentes a essa e outras situações no
ano de 2005.
Podemos pensar que o espaço público do trânsito ainda é
predominantemente masculino e, como afirma Bourdieu (2002), a mulher ainda
ocupa espaço através de um representante.
Categorias Profissionais “D” e “E”
“D” Masculino
104.934
“D” Feminino
3.003
“E” M
asculino
38.570
“E” Feminino
242
Número de Condutores por Gêneros envolvidos em acidentes nas
Rodovias Gaúchas 2005*
Homens
94%
Mulheres
06%
Percentuais de Infrações cometidas
-
2005*
Homens
80.5 %
Mulheres
19.5%
105
Tais dados tornam-se pertinentes na ilustração desses fatores, pois a
esmagadora maioria dos profissionais que utilizam veículos profissionalmente são
homens. Já vemos mulheres que são motoristas de táxi, de ônibus, de caminhão e
até de carros do automobilismo (de corridas), mas elas ainda são exceções e
despertam a atenção e curiosidade das pessoas. Entendemos que o fato de
despertarem a curiosidade de outras pessoas é um indicativo de que elas não estão
nos lugares comuns e esperados para mulheres. Freqüentemente, nesses espaços,
elas são alvo de discriminação e chacota. Não raro observamos que as próprias
mulheres vêem tais motoristas profissionais com desdém. O grande rei da estrada
ainda é o caminhoneiro, aquele que dirige por longas distâncias, abastecendo e
aquecendo a economia do país. Ele, que vive nas estradas, tendo, muitas vezes, o
próprio caminhão por casa. Por muito tempo, os pára-choques de caminhões eram
os estandartes do pensamento masculino, visto que, geralmente, ostentavam frases
que faziam menção à mulher. Nesse trabalho, existem alguns exemplos dessas
frases, que foram transcritas de pára-choques de caminhão e apresentadas em
anexo. Salta-nos a pergunta: qual é a imagem de mulher que vemos ali
representada? E logo, concluímos que se trata da mulher objeto, aquela que existe
para servir aos homens, para ficar em casa, para ser bela, para dar prazer ao
homem, aquela que existe na sociedade sob tutela. Enfim, é aquele corpo do bio-
poder, citado por Foucault (1998), o corpo que é uma realidade biopolítica,
disciplinado para ser um corpo dócil. Segundo Bourdieu (2002), as mulheres ficam,
então, reduzidas à condição de instrumentos de produção e de reprodução do
capital simbólico e social. Sendo assim, elas se constituem como objeto da
perpetuação do capital simbólico em poder dos homens.
106
Atualmente observamos que já existem menos frases mencionando as
mulheres nos pára-choques de caminhões. Poderíamos dizer que isso significa que
o preconceito e a discriminação contra as mulheres estão diminuindo? Ou seria
precipitado fazer tal afirmação? Entendemos que não se trata de recuo do
preconceito e da discriminação relativamente às mulheres. Nessa linha de
pensamento, pensemos em Pisano (2004) ao dizer que, quando um sistema
necessita ser renovado e, ao mesmo tempo, quer manter sua ideologia, ele abre
questões para debate, como no caso a luta feminina, para poder reinstalar-se,
modificar-se e renovar-se. O que aconteceu no caso da luta feminina foi que as
piadas e a discriminação mudaram de lugar. Agora elas acontecem virtualmente.
Não é considerado de bom tom para uma empresa carregar, em seu caminhão, a
bandeira da discriminação feminina. Assim, o exercício da discriminação não
desapareceu, ele simplesmente migrou do pára-choque de caminhão para a
internet
52
. Envoltas por um suposto anonimato, na internet, hoje circulam piadas o
tempo todo; são comuns os e-mails desvalorizando a figura feminina. As piadas
contadas em roda de amigos ainda continuam acontecendo e continuam sendo
discriminatórias. Existem, inclusive, sites especializados em piadas que
desvalorizam a figura feminina e enaltecem a masculina.
Essas mensagens e piadas são discursos objetivados, que penetram em
todas camadas sociais, em todos lares, que cristalizam pensamentos e direcionam
comportamentos.
52
Vide anexos 01 e 02.
107
Consideramos a observação também de dados, fornecidos pela Assessoria
de Estatística do Detran-RS
53
, que mostram os números de condutores, por gênero,
envolvidos em acidentes de trânsito, com vítimas fatais, nas rodovias gaúchas, no
ano de 2005, também ilustrados na tabela abaixo.
Em números de pessoas vítimas fatais por acidente de trânsito, segundo a
Assessoria de Estatística do Detran-RS, no ano de 2005, a distribuição é a seguinte:
são 232 homens e 55 mulheres.
Outro aspecto em que há distinção gritante, no que se refere ao gênero, é
quanto aos percentuais de tipos infracionais por gênero
54
, também no ano de 2005 e
segundo a Assessoria de Estatística do Detran-RS, que apresenta os seguintes
números: (a) quanto ao número de condutores envolvidos em acidentes, nas
rodovias gaúchas, em 2005, temos 94% de homens e 06% de mulheres; (b) quanto
aos percentuais de infrações cometidas, temos 80,5% por homens e 19,5% por
mulheres.
Podemos depreender desses dados que os homens se envolvem mais em
acidentes de trânsito e cometem mais infrações do que as mulheres, e também que
as mulheres, quando se envolvem em acidentes, geram menos danos.
Se olharmos para além desses dados objetivos, perguntamos: considerando
que as mulheres se envolvem em menos acidentes fatais e cometem menos
infrações, deve-se isso ao fato de que elas dirigem menos? Elas seriam realmente
mais cuidadosas? Se pensarmos em tudo que até aqui foi escrito, podemos
entender esses fatos como uma construção social. Se as mulheres, como nos coloca
Bourdieu (2002), estão submetidas a um trabalho de socialização que tende a
53
Observamos que os dados referem-se às rodovias Federais e foram fornecidos pela Polícia
Rodoviária Federal ao DETRAN-RS.
54
Vide Quadro 02.
108
diminuí-las, a negá-las, os homens também são prisioneiros e vítimas dessa
representação dominante. Assim, ser homem implica em ter coragem, em ter uma
postura, uma atitude, um comportamento que “salve sua honra”, que afirme sua
superioridade. Todo um trabalho de socialização e de inculcação também é
realizado com os meninos, a fim de que ele possa “agir como homem”, defendendo
a sua honra e a de sua família. Em Bourdieu (2002) encontramos o seguinte
fragmento:
Em oposição à mulher, cuja honra, essencialmente negativa, só pode ser
defendida ou perdida, sua virtude sendo sucessivamente a virgindade e a
fidelidade, o homem “verdadeiramente homem” é aquele que se sente
obrigado a estar à altura da possibilidade que lhe é oferecida de fazer
crescer sua honra buscando a glória e a distinção na esfera pública. A
exaltação dos valores masculinos tem sua contrapartida tenebrosa nos
medos e nas angústias que a feminilidade suscita: fracas e princípios de
fraqueza enquanto encarnações da vulnerabilidade de honra, da h”urma(o
sagrado esquerdo feminino, oposto ao sagrado direito, masculino), sempre
expostas à ofensa , as mulheres são também fortes em tudo que representa
as armas da fraqueza, como a astúcia diabólica, thah”raymith e a magia.
Tudo concorre, assim para fazer do ideal impossível de virilidade o princípio
de uma enorme vulnerabilidade. É esta que leva, paradoxalmente, ao
investimento, obrigatório por vezes, em todos os jogos de violência
masculinos, tais como em nossas sociedades os esportes, e mais
especialmente os que são mais adequados a produzir os signos visíveis da
masculinidade e para manifestar, bem como testar, as qualidades ditas viris,
como os esportes de luta. (2002:65)
Se transportarmos esse fragmento de Bourdieu para o trânsito, somos
levados a pensar que o trânsito pode ser entendido como uma “guerra urbana”, em
que os gladiadores modernos lutam com suas ferramentas atuais no caso, com os
automóveis. Já falamos que o automóvel é um objeto masculino que significa
potência, força, poder. Quando dirigimos o automóvel, é como se ele fosse uma
extensão de nós mesmos. Para os homens em especial, o automóvel se transforma
na possibilidade concreta de demonstrar sua força, virilidade e potência. Mas, para
essa masculinidade ser legitimada, ela precisa ser validada pelos outros, “em sua
verdade de violência real ou potencial, e atestada pelo reconhecimento de fazer
109
parte de um grupo de “verdadeiros homens” segundo Bourdieu (2002:65). As
mulheres, pelo contrário, ocupam esse espaço por tutela e também o fazem de
forma passiva, no sentido de não sentirem a necessidade de competir e demonstrar
sua força e potência para outros motoristas.
Entre junho de 2005 e fevereiro de 2006, foram colhidas informações junto
aos candidatos a Carteira Nacional de Habilitação, no que diz respeito à aprovação
nos exames teóricos e práticos necessários para a obtenção da mesma, em relação
ao gênero. Coletamos esses dados, nos CFC (Centro de Formação de Condutores),
em que atuamos nos municípios de Santa Rosa e Cândido Godói, na região
Noroeste do RS , tendo em vista que desempenhamos no referido período, o papel
de Psicóloga Perita Examinadora de Trânsito. Registrarmos nosso respeito ao sigilo
de identidade dos candidatos, utilizando dados de aprovação ou reprovação e o tipo
de exame prestado, se teórico ou prático. O intuito era comprovar, em números, se
realmente a mulher apresentava melhor desempenho em exames teóricos e se os
homens se saíam melhor nos exames práticos. Os dados que coletamos referentes
aos exames práticos e teóricos, são os seguintes:
Exames Práticos
Homens
Mulheres
Aprovados
704
(74.34%)
321
(48.78 %)
Reprovados
243
(25.66
)
337
(51.22 %)
Total 947 658
Exames Teóricos
Aprovados
572
(76.47 %)
388
(88.18 %)
Reprovados
176
(22.53 %)
52
(11.82 %)
Total 748 440
Quadro 03: Representação do Total de Habilitações e os Gêneros
Fonte: (DETRAN, 2005).
110
A partir da observação desses dados, podemos perceber uma tendência das
mulheres em apresentarem um desempenho menor que os homens nas provas
práticas, enquanto que não observamos essa tendência nas provas teóricas. No
caso dos homens, há uma estabilidade nos quesitos “aprovado” e “reprovado”, em
ambas as provas cerca de ¾ para ¼ respectivamente. Já, no caso das mulheres,
os números indicam claramente uma queda acentuada no rendimento prático
correlativamente aos rendimentos teóricos das mulheres.
Diante desses números e, lembrando dos outros números que trouxemos
anteriormente para nossa discussão (número de acidentes, grau de danos, tipos de
infrações, etc.), precisamos conduzir cuidadosamente nossas reflexões acerca das
relações de gênero no trânsito, para que possamos chegar a uma real compreensão
do significado dessas estatísticas. Com o objetivo de nortear nosso raciocínio,
elaboramos algumas questões, que são as seguintes: (a) O que esse fato pode nos
indicar? (b) Que as mulheres são realmente menos capazes quando se trata de
prova prática? (c) Há uma tendência natural de maior capacidade teórica? (d) Trata-
se de maior ou menor grau de esforço? (e) Como explica a diferença entre o
desempenho na prova prática das mulheres e sua prática cotidiana que revela uma
condução com menor número de infrações e de acidentes com vítimas fatais? (f) É
possível associar desempenhos a uma suposta condição de fragilidade feminina? g)
Esses dados refletem uma realidade regional, estadual, nacional, e/ou internacional?
(h) Enfim, o que revelam esses indicadores?
Como sabemos que biologicamente a mulher apresenta as mesmas
capacidades que os homens para dirigir, podemos refletir que as diferenças nos
escores são produzidas culturalmente. Para Pisano (2004), a resposta se encontra
nas próprias mulheres, em seu interior, em que se encontram profundamente
111
instalada a submissão-colaboração à masculinidade, à sua cultura e às suas
estruturas de poder. É como se a mulher não tivesse o direito de invadir o espaço
público masculino e, quando o faz, se coloca sempre numa posição inferior ao
homem. No caso do trânsito, ela também dirige, invade o espaço público, que é
masculino, por excelência; mas, como é mulher, o faz de uma forma inferior, não
usufruindo plenamente de todos os espaços, não usufruindo toda potência dos
automóveis. Ela está ali para servir, para levar as crianças para a escola, para ir ao
supermercado, não para usufruir desse objeto que representa potência, poder,
prestígio. Esse prazer da fruição ainda é masculino. O homem, também no espaço
do trânsito, deve ocupar seu lugar de dominador. Ele usufrui do prazer de dirigir, da
liberdade, do poder que o automóvel lhe confere. Bourdieu (2002) faz interessantes
colocações a esse respeito, quando afirma que a virilidade, entendida como
capacidade reprodutiva, sexual e social, é uma carga para os homens, pois eles são
constantemente chamados a provar, perante os demais, a sua virilidade. Essa
necessidade de provar que são “homens de verdade”, os fazem buscar a
possibilidade de fazer crescer sua honra, encontrando a glória e a distinção na
esfera pública. A virilidade precisa ainda ser validada pelos outros homens; por isso,
não podemos nos surpreender com o grande número de jovens do sexo masculino
que morrem ao participarem de “rachas”.Muitas vezes o jovem que se envolve em
acidentes fatais não possui nem CNH (Carteira Nacional de Habilitação), o que
reforça a questão cultural a que nos referíamos no início do trabalho, quando
trazíamos a questão de que nas relações de trânsito a questão de gênero se
radicaliza, pois o automóvel é uma extensão do “carrinho” que o menino brincava
quando criança. O fato de o adolescente dirigir sem habilitação não é visto como
uma transgressão grave e é comum haver o incentivo de familiares para que esse
112
jovem assuma a direção. Nas adolescentes, esse fato é menos comum, e
geralmente ela espera o consentimento formal para assumir a direção de um
automóvel. Estes são uma tentativa clara de, no grupo de iguais, medirem poder,
potência, velocidade, símbolos da masculinidade. Já sobre a mulher, Bourdieu
(2002: 76 ,77) nos coloca que: “através das esperanças subjetivas que elas impõem,
as “expectativas coletivas”, positivas ou negativas, tendem a se inscrever nos corpos
sob formas de disposições permanentes”. Assim as mulheres acabam por consentir
sua inferioridade e acabam elas próprias, reforçando sua dependência, favorecendo
o aparecimento de uma impotência aprendida. Esses discursos estão tão inscritos
nos corpos das mulheres, que elas, diante de uma prova prática para obter sua
CNH, experimentam dificuldades em se livrar das inscrições que a marcaram como
incapaz, como inferior e acabam ocupando o lugar destinando às mulheres: o lugar
da incompetência para comportamentos legitimados como masculinos.
Em relação à realização dos exames práticos e teóricos, percebemos que a
maioria dos examinadores, tanto teóricos quanto práticos, são homens. Em relação
aos instrutores nos CFC, também podemos observar a existência de um número
parecido de profissionais masculinos que se sobrepõe aos femininos. É interessante,
todavia, observar que a maioria das mulheres solicita que o instrutor das aulas
práticas seja uma mulher. O motivo mencionado é que as mulheres têm mais
paciência para ensinar. Ao homem cabe formatar, ditar o comportamento, aprovar,
reprovar, e segundo Bourdieu (2002:78): “É característico dos dominantes estarem
prontos a fazer reconhecer sua maneira de ser particular como universal. A definição
de excelência está, em todos os aspectos, carregada de implicações masculinas,
que têm a particularidade de não se mostrarem como tais”.
113
Portanto, ao analisarmos as relações de gênero no trânsito, nos defrontamos
com os mesmos modelos e padrões de qualquer comportamento que reflete o
histórico sistema de domínio masculino.
114
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, analisamos as relações de gênero no trânsito, refletindo sobre
as origens dos diferentes comportamentos que se mostram entre homens e
mulheres. Ainda que já venham sendo estudadas, há muito tempo, as relações que
se estabelecem historicamente entre homens e mulheres continuam despertando o
interesse de pesquisadores inscritos em diferentes áreas das ciências. Geralmente,
a intersecção que se faz, quando se pesquisa gênero, é dele com algo que tem
existência de longa data, como ocorre com o trabalho, a maternidade/a paternidade,
a educação. É comum, então, se fazer um estudo cronológico, resgatando e
relacionando fatos históricos.
No entanto, não podemos esquecer que a questão do trânsito é
contemporânea, é do nosso tempo. Apesar de a mobilidade ter sempre ocupado o
homem, o automóvel é uma invenção muito recente. Assim, pensamos que
investigar como ocorrem as relações de gênero no trânsito esse elemento novo
que foi recentemente introduzido na vida da sociedade seria muito interessante. Aí
nos perguntamos: embora o “trânsito” tenha uma história recente, a atividade de
dirigir já apresenta algumas mudanças que representam conquistas femininas no
que tange à igualdade de direitos? Ou será que, mesmo sendo recente o trânsito,
115
ele carrega os esquemas de comportamentos de uma sociedade
predominantemente masculina? O que, então, o trânsito pode nos comunicar sob o
ponto de vista da organização das relações entre homens e mulheres?
Às mulheres sempre foi reservado o espaço da casa, o privado. Nessa ótica,
consideremos as seguintes palavras de Perrot:
A sedentariedade é uma virtude feminina, um dever das mulheres ligadas à
terra, à família, ao lar. Penélope, as vestais, figuram seus antigos modelos,
as que esperam e velam. Para Kant, a mulher é a casa. O direito doméstico
assegura o triunfo da razão; ele enraíza e disciplina a mulher, abolindo toda
vontade de fuga. Pois a mulher é uma rebelde em potencial, uma chama
dançante, que é preciso capturar, impedir de escapar. (2007: 135)
Por muito tempo, manter a mulher confinada no espaço privado também foi
garantia de diminuir a mobilidade da mulher. Se ela, por sua natureza, era rebelde,
em movimento, no espaço público, seria um perigo em potencial. Deparamo-nos,
hoje em dia, com o ditado muito popular que fala: “Mulher ao volante, perigo
constante”. Podemos pensar que o perigo, na verdade, se dirige ao fato de a mulher
estar em movimento, de se deslocar. Em outras palavras: mulher em movimento
ameaça constantemente a hegemonia masculina.
A forma que os homens encontraram para dissimular essa ameaça foi colocar
a mulher em movimento, no espaço público, de forma pejorativa, tirando-lhe o brilho,
o poder, a inteligência, a capacidade. Tanto se confirma isso, por exemplo, que
existe até um e-mail que circula pela internet, segundo o qual: “Homem da vida é um
homem letrado pela sabedoria adquirida ao longo da vida. Mulher da vida é uma
puta. Aventureiro é um homem que arrisca, viajante, desbravador. Mulher
aventureira é uma puta”. Esses são alguns dos inúmeros exemplos em que aparece,
de forma evidente, a desvalorização da mulher que se lança na vida pública. Para
Perrot (2007), a mulher sempre viajou, em todas as épocas e por diversos motivos.
116
Mas o fez, certamente, de maneira menos aventureira, menos gratuita que os
homens, pois sempre esteve atrelada ao consentimento, ao apoio de outras
pessoas.
Nessa linha de raciocínio, é imprescindível que destaquemos a linguagem
sexista que aparece claramente nesses ditados populares. A desvalorização da
mulher é evidente. O poder da linguagem é muito amplo, é ilimitado; ele contribui, de
forma permanente, para a representação da ausência feminina. A linguagem é uma
criação humana, uma convenção, e, como tal, serve aos interesses daqueles que
dominam, ou seja, dos homens. Ela é um poderoso recurso utilizado para marcar,
assinalar, segregar, de forma silenciosa e praticamente imperceptível no limbo do
dia-a-dia. Quando menos percebemos e esperamos, lá aparece a linguagem para
demarcar os campos masculino e feminino, embrenhada na nossa vida cotidiana.
Temos consciência de uma experiência quando a conseguimos nomear e
exprimir através da linguagem. Dessa forma, a linguagem é um poderoso meio de
perpetuar o poder da classe dominante. Ao nomearmos a mulher de forma
pejorativa, estamos, na realidade, propagando essa idéia para toda a sociedade.
Assim, quando a mulher vai realizar o processo para obtenção da Carteira Nacional
de Habilitação, ela já vai com a idéia de que ocupar, de forma autônoma, esse
espaço público, destinado aos homens, não é o mais adequado. As piadas, os
ditados e os e-mails
55
, que circulam por aí, tratam de propagar o pensamento
dominante, evidenciando uma machista concepção de “incapacidade” feminina.
Obviamente que as próprias mulheres, de diversas formas, reforçam esse
pensamento dominante. Para Bourdieu (2002: 46), as estruturas de dominação são
“produto de um trabalho incessante de reprodução para o qual contribuem agentes
55
Vide os anexos 01 e 02.
117
específicos (entre os quais os homens, com suas armas como a violência física e a
violência simbólica) e instituições, famílias, Igreja, Escola, Estado”. Por isso, para
entendermos de que forma ocorre a dominação masculina, temos que percorrer os
discursos que a apóiam. Consideramos lamentável que a mulher aprenda, desde
tenra idade, a ver essa dominação como natural, reproduzindo esquemas que
reforçam seu papel de dominada.
No trânsito, percebemos vários sinais que reforçam essa dominação, mesmo
que, de forma dissimulada (sutil) atendam aos apelos de consumo da “mulher
moderna e liberada”, que atualmente possui um poder de compra e que participa de
forma decisiva no consumo de produtos. As propagandas procuram criar o desejo de
consumo nas mulheres, na medida em que seus produtos facilitam a vida da “mulher
moderna que não quer perder a feminilidade”. Percebemos aqui a ambivalência que
caracterizam os avanços femininos: a mulher, ao mesmo tempo em que quer se
emancipar, ainda está presa ao ideal feminino de passividade e maternidade. O fato
de hoje existirem carros feito especialmente para mulheres confirma que não é todo
carro que é adequado para mulher, ou seja, a mulher, ser frágil, precisa de algo
adequado às suas necessidades. Essas necessidades são aquelas que o plano
dominante cria e que as mulheres aceitam como suas. O carro de mulher é
arredondado, lembrando as formas femininas, lembra, em última instância, o útero.
Seria um retorno ao eterno feminino? As propagandas de carros também reforçam o
lado feminino, como a importância dispensada aos espaços e distribuição internas:
lugar para guardar a bolsa; segurança reforçada para crianças; porta-malas grande
para guardar compras, carrinhos de bebês e bicicletas; espelhos para retocar a
maquiagem; detalhes arredondados para não desfiar as meias, etc. A mulher é
envolvida por esses “jogos”, desses detalhes “tão femininos” que mal se dá conta
118
que, ao atender a esse discurso, continua subordinada às manipulações masculinas.
Então, qual é o ideal de mulher que a propaganda reforça aqui? Imediatamente
pensamos na mulher-mãe, que pode até trabalhar fora, se cuidar, mas que sempre
coloca, em primeiro lugar, a maternidade, o cuidado da casa e da família. Segundo
Perrot,
A sociedade ocidental promove assunção da maternidade. Ela é “aureolada”
de amor, “o amor a mais”, segundo expressão de Elisabeth Badinter, que
descreve o crescimento do amor maternal a partir do século XVII e o da
figura da mãe, tanto nas práticas quanto nas simbólicas. (2007: 69)
Nisso temos a politização da maternidade e a importância de que a mulher
continue a exercer o papel materno como vem fazendo historicamente: que a
maternidade seja um ícone de identidade feminina.
Dizer que as mulheres cometem menos acidentes e menos danos no trânsito
implica afirmar que a mulher dirige de forma menos agressiva, mais defensiva. Ora,
ao afirmarmos isso, não estamos reforçando novamente às qualidades ditas
femininas de proteção e cuidado aos outros, de doçura, de paciência? Devemos
lembrar que a diferença entre os sexos se manifesta não somente nos signos
hierárquicos, mas também em detalhes aparentemente insignificantes do dia-a-dia,
abafados e escondidos sob a insignificância da rotina e da repetição. Os gestos e
comportamentos cotidianos nos mostram a sua força e a sua importância, marcando
corpos e moldando vidas.
Novamente retornamos ao eterno feminino de doação e cuidado aos outros.
Estatisticamente é comprovado que os homens cometem mais acidentes e com mais
danos do que as mulheres no trânsito. Infelizmente, ainda não temos dados para
comparar a porcentagem de homens e mulheres que dirigem nas grandes rodovias
de nosso país, mas uma observação atenta nos permite verificar que a grande
119
maioria dos motoristas em rodovias é formada por homens. E é fato que a maioria
da população que possui Carteira Nacional de Habilitação (CNH) é formada por
homens. As mulheres, normalmente, só tomam a direção quando não estão
acompanhadas por uma figura masculina. Isso confirma, mais uma vez, que as
mulheres são educadas para participar da vida pública por uma sutil procuração, ou
seja, assumem quase sempre uma posição exterior e subordinada. Sendo excluídas
desse jogo de poder, elas (mulheres) têm o aval deles (homens) para participar do
jogo, desde que seja através de seu intermédio e de sua proteção, ou seja, a
participação feminina se dá por tutela.
Recentemente, surgiram, no mercado, bonecos masculinos para fazerem
companhia às mulheres que dirigem desacompanhadas pelas grandes cidades. Eis
que, ao aceitar a “companhia” de um boneco, no carro, a própria mulher acaba
reforçando o seu consentimento ao predomínio masculino. Ainda que tenhamos
ciência de que a onda de violência está cada vez maior e mais grave, insistimos em
nos atermos à reflexão ancorada no simbolismo desse comportamento. Nesse
sentido, é como se a mulher, ao ter uma presença masculina, mesmo na forma de
um boneco, ao seu lado, garantisse sua proteção. O que demonstra que, em um
senso comum, a presença masculina ainda significa proteção e segurança para a
mulher.
Devemos também analisar o que a mulher e os automóveis significam para os
homens. O automóvel é um símbolo incontestável de poder e virilidade. Muito
sabiamente, as propagandas de automóveis dirigidas ao público masculino aliam
automóveis e mulheres. Assim como as mulheres, os automóveis são objetos de
desejo masculino. E as propagandas reforçam a figura da mulher-objeto, aquela que
está aí para saciar o homem, para servi-lo. Ela deve ser bela e sedutora. Um homem
120
que possui um bom automóvel e uma bela e sedutora mulher é visto como símbolo
de status e de prestígio. Socialmente, esse homem é um homem vencedor. Ele faz
questão de mostrar para a sociedade seus troféus por seu sucesso: uma bela
mulher e um carro potente. Exibindo esses troféus, é como se apresentasse para os
demais um comprovante de sua potência e virilidade. Esse significado é muito bem
explorado pelas agências de propagandas e, uma vez no mercado, elas acabam
reforçando cada vez mais o domínio masculino.
Constantemente somos bombardeados com mensagens que apresentam as
mulheres como aquelas que não sabem dirigir, que não sabem estacionar, que são
frágeis e inseguras. Não raramente, vemos estudos sendo realizados à procura das
causas de tal condição, sem falar que até respostas ancoradas na biologia humana
são apontadas, como explicações para a suposta “inabilidade” da mulher e por que
não dizer “inferioridade feminina”.
Observamos que, apesar das mobilizações feministas, da crescente
participação das mulheres no mercado de trabalho, da possibilidade que existe de
uma mulher “fazer carreira”, os discursos que moldam nossa representação do que é
“ser menino ou ser “uma menina”, em sua base, não sofreram alterações que
permitissem mudar essa percepção. Existe sim um descentramento do sujeito, um
questionamento de identidade, de papéis, porém as fronteiras entre o que “é
masculino” e o que “é feminino” estão apagadas. No espaço público do trânsito, que
é predominantemente masculino, existe uma radicalização das relações de gênero.
As fronteiras, nesse espaço masculinizado, estão ainda bem delimitadas, o que nos
mostra que as mulheres ainda têm uma visão colonizada de si mesmas e que as
relações de gênero ainda sofrem grande influência dos discursos que teceram e
tecem a nossa constituição subjetiva enquanto homens e mulheres. A força desses
121
discursos, que encontra seus pilares de sustentação na Igreja, no Estado, nas
famílias e nas escolas, é tão sutil e silenciosa que pensamos que estamos nos
encaminhando para um movimento de transformações, quando, na verdade,
estamos todos indo para o caminho da perpetuação e cristalização dessas
diferenças. Em poucas palavras, dizemos que, ainda que indícios de transformação
nas relações de gênero, no trânsito, possam ser encontrados, são predominantes os
traços de reprodução de concepções relacionadas às desigualdades entre os
gêneros.
122
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<www.humornanet.com> Acessado em 13 Fev 2008.
<www.segs.com.br> Acessado em 13 Fev 2008.
<www.recadosonline.com> Acessado em 13 Fev 2008.
<www.revistaepoca.com.br> Acessado em 13 Fev 2008.
<www.transportes.gov.br> Acessado em 13 Fev 2008.
<www.v8ecia.com.br/artigos/a_historia_do_automovel.htm> Acessado em 13 Fev
2008.
126
ANEXOS
127
ANEXO 01
PIADAS
PIADA (CARTUM) QUE CIRCULOU NA INTERNET:
Fonte: (www.recadosonline.com)
Como escolher a mulher ideal?
Para saber, basta compará-la (a mulher ideal) a um automóvel.
Ao fazer o Check-list, em baixo, você encontrará logo a resposta.
1. Verifique o design;
2. Verifique o ano;
3. É boa de curvas e de retas?
128
4. É macia?
5. Possui Air-bag duplo frontal de grande volume?
6. É econômica?
7. Faz pouco barulho?
8. Esquenta rápido? E quando esquenta, aí sim: tem que fazer barulho.
9. Leve para um Test-drive. Se a mulher passou em todos estes testes,
lembre-se de fazer um leasing, porque, nesse meio tempo, pode surgir um
modelo melhor e mais novo.
Fonte: (www.humornanet.com, intitulada “Carro x Mulher Ideal”)
129
ANEXO 02
FRASES DE PÁRA-CHOQUE DE CAMINHÕES
Mulher não vale nada, até pobre tem.
Mulher é igual à cerveja, nunca pode deixar ela parada.
Mulher é o único sócio que não entra com nada e, quando sai, leva pelo
menos metade do que o homem tem.
O dia que chover mulher, quero uma goteira na minha cama.
Mulher bonita é igual à melancia: você nunca consegue comer sozinho.
Mulher é igual à abelha: dá mel ou dá ferroada.
A única mulher que andou na linha o trem pegou.
Estrada é que nem mulher: quanto mais curvas, mais perigosa.
As mulheres perdidas são as mais procuradas.
Mulher é que nem moeda: ou é cara de sustentar, ou é coroa.
Mulher feia é igual a vento forte: só quebra galho.
Para casar, quero a mulher certa; enquanto isso vou ficando com as erradas.
Namorada é igual a ônibus: você perde um e mais tarde passa outro.
Passado de mulher é como cozinha: se você conhecer, não come.
Mulher bonita e parafuso comigo é no aperto.
Mulher chora na saída, caminhão velho na subida.
Mulher de amigo meu é que nem muro alto: demora, mas acabo trepando.
Estepe e mulher é sempre bom ter de reserva.
Nas próximas eleições, vamos votar nas putas, porque nos filhos não deu
certo.
Como o peixe precisa de água pra sobreviver, a mulher precisa de um
machão para o seu real prazer.
Dê um fogão novo para sua mulher. Você não sabe do que é capaz uma
mulher agradecida.
130
O espelho reflete sem falar; a mulher fala sem refletir.
Algumas mulheres você conquista com um beijo; para todas as outras, existe
Master Card.
Esse bicho mulher é perigoso. Deixa o rico pobre e o pobre sem vergonha.
Mulher feia é como trator: só presta para trabalhar, para sair não dá.
Amor, só de mãe.
Quem dá aos pobres cria os filhos sozinha.
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