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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (MESTRADO)
ADRIANA PAULA DOS SANTOS SILVA
AMORAS SEM ESPINHOS: A RECEPÇÃO DE
FÁBULAS (1922), DE MONTEIRO LOBATO, POR
CRIANÇAS DO ENSINO FUNDAMENTAL
Maringá - PR
2008
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1
ADRIANA PAULA DOS SANTOS SILVA
AMORAS SEM ESPINHOS: A RECEPÇÃO DE
FÁBULAS (1922), DE MONTEIRO LOBATO, POR
CRIANÇAS DO ENSINO FUNDAMENTAL
Dissertação apresentada à Universidade
Estadual de Maringá, como requisito
parcial para a obtenção do grau de Mestre
em Letras, área de concentração: Estudos
Literários.
Orientador: Profª. Drª. Vera Helena
Gomes Wielewicki.
Maringá
2008
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Catalogação na publicação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da Biblioteca
Central da Universidade Estadual de Londrina.
Dados Internacionais de Catalogão-na-Publicação (CIP)
S586a Silva, Adriana Paula dos Santos.
Amora sem espinhos: a recepção de Fábulas (1922), de Monteiro Lobato, por
crianças do ensino fundamental / Adriana Paula dos Santos Silva. – Maringá,
2008.
272f. : il.
Orientador: Vera Helena Gomes Wielewicki.
Dissertação (Mestrado em Letras) Universidade Estadual de Maringá, 2008.
Bibliografia: f. 197-201.
1. Lobato, Monteiro, 1882-1948 – Crítica e interpretação – Teses. 2. Literatura
infanto-juvenil brasileira – Teses. 3. Fábulas – Teses. 4. Tradução e interpretação
– Teses. 5. Literatura – Estética – Teses. I. Wielewick, Vera Helena Gomes. II.
Universidade Estadual de Maringá. III. Título.
CDU 869.0(81)-93.09
3
ADRIANA PAULA DOS SANTOS SILVA
AMORAS SEM ESPINHOS: A RECEPÇÃO DE
FÁBULAS (1922), DE MONTEIRO LOBATO, POR
CRIANÇAS DO ENSINO FUNDAMENTAL
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras (Mestrado), da
Universidade Estadual de Maringá, como
requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Letras, área de concentração:
Estudos Literários.
Aprovado em 03 de setembro de 2008.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________
Profª Drª Vera Helena Gomes Wielewicki
Universidade Estadual de Maringá – UEM
- Presidente –
___________________________________________________________________
Profª Drª Alice Áurea Penteado Martha
Universidade Estadual de Maringá – UEM
___________________________________________________________________
Profª Drª Lourdes Kaminski Alves
Universidade Estadual do Oeste do Para– Unioeste/Cascavel - Pr
4
AGRADECIMENTOS
Aos familiares e amigos pelo suporte afetivo e pela compreensão nas horas
roubadas por este estudo.
À Professora Drª Vera Helena Gomes Wielewicki pela valorosa e paciente
orientação em todo o desenvolvimento da pesquisa.
Ao corpo docente e funcionários do Programa de Pós-Graduação, Mestrado em
Letras, da Universidade Estadual de Maringá, pela amizade e orientação no decorrer
do curso.
Aos colegas do Curso de Mestrado em Letras turma 2006 pela solidariedade
brindada em todos os momentos.
Aos professores Drª. Alice Áurea Penteado Martha e Dr. João Luís C. T. Ceccantini
pelas valorosas sugestões durante a banca de qualificação.
À professora Drª Lourdes Kaminski Alves pelas contribuições durante a defesa.
À escola – direção, coordenação, professores e alunos pela cordial acolhida.
Às crianças, sujeitos e principal razão desta dissertação...
5
“Haverá alguma coisa no mundo que não se gestasse
por esse processo,
primeiro o sonho, depois a realização.”
Monteiro Lobato.
6
SILVA, Adriana Paula dos Santos. Amoras sem Espinhos: A Recepção de
Fábulas (1922), de Monteiro Lobato, por Crianças do Ensino Fundamental. 2008.
Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual de Maringá.
Resumo:
Esta dissertação relata resultados obtidos a partir da análise da recepção de textos
literários por crianças pertencentes ao primeiro ciclo do Ensino Fundamental, de
uma escola privada da cidade de Maringá Paraná. Os textos analisados são vinte
e duas bulas, retiradas do livro homônimo, do escritor brasileiro Monteiro Lobato
(1882 1948). Desta forma, a primeira parte do trabalho aborda os recursos de
adaptação e tradução literias e paródia como instrumentos utilizados na reescrita
lobatiana, verificando a influência destes recursos na constituição do texto narrativo.
Nesta perspectiva, a teoria da Estética da Recepção é abordada enquanto
direcionamento teórico que identifica a participação do leitor na recepção do texto
literário. No acompanhamento do universo de leitura resgatou-se, como sustentação
teórica, a estrutura e a história do gênero fabular, como forma de entender as
leituras apresentadas pelos leitores de Monteiro Lobato, na atividade de leitura em
sala de aula.
Palavras-chave: Literatura e Ensino, Fábulas, Monteiro Lobato, Recepção.
7
SILVA, Adriana Paula dos Santos. Blackberries with no thorns: The Reception of
Fábulas (1922), by Monteiro Lobato, by students from Primary School. 2008.
Dissertation (Master’s Postgraduate Program in Literature) Maringá State
University.
Abstract:
This dissertation relates results from the analysis of the reception of literary texts by
students that belong to the first cycle of a private primary school, situated in the city
of Maringá-Paraná. The analyzed texts are twenty-two fables, from the homonym
book, by the Brazilian writer Monteiro Lobato (1992-1948 ?). Thus, the first part of the
research deals with the resources of literary adaptation, translation and parody as
tools used in the lobatiana rewriting, verifying their influence in the constitution of the
narrative text. In relation to the reading universe, it was read and used as theoretical
support, the structure and history of fable genre, in order to understand the readings
presented by the readers of Monteiro Lobato, in the reading activity in the classroom.
Keywords: Literature and Teaching, Fábulas, Monteiro Lobato, Reception.
8
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS.....................................................................................10
1 TRADUÇÃO, ADAPTAÇÃO E PARÓDIA: O PROCESSO CRIATIVO
LOBATIANO.......................................................................................................... ....20
1.1 Lobato e as Traduções.................................................................................... ....20
1.2 Lobato e as Adaptações.................................................................................. ....35
1.3 A Paródia: Uma Forma de Adaptar................................................................. ....42
2 O CAMINHO DAS FÁBULAS................................................................................59
2.1 Estética da Recepção...................................................................................... ....59
2.1 O Gênero Fabular: História e Estrutura...............................................................76
3 LEITORES E LEITURAS DE FÁBULAS, DE MONTEIRO LOBATO....................87
3.1 A Situação de Leitura: Descrição Metodológica.............................................. ....87
3.2 Análise dos Textos: A Recepção da Fábula Lobatiana em Sala de Aula....... ....97
3.2.1 A Assembléia dos Ratos............................................................................... ....98
3.2.2 A Coruja e a Águia..........................................................................................104
3.2.3 A Formiga Boa................................................................................................ 107
3.2.4 A Formiga Má..................................................................................................111
3.2.5 A Galinha dos Ovos de Ouro.......................................................................... 115
3.2.6 A Garça Velha.................................................................................................125
3.2.7 A Gralha Enfeitada com Penas de Pavão...................................................... 123
3.2.8 A Menina do Leite............................................................................................127
3.2.8 A Rã e o Boi....................................................................................................133
3.2.10 A Raposa e as Uvas......................................................................................137
3.2.11 O Burro Juiz…………………………………………………………………….. ..140
3.2.12 O Burro na Pele de Leão………………………………………………………...142
3.2.13 O Cão e o Lobo…………………………………………………………………. .146
3.2.14 O Corvo e o Pavão…………………………………………………………….....148
3.2.15 O Galo que Logrou a Raposa………………………………………………… ..151
3.2.16 O Leão e o Ratinho……………………………………………………………. ..152
3.2.17 O Macaco e o Gato……………………………………………………………....157
9
3.2.18 O Ratinho, o Gato e o Galo……………………………………………………..159
3.2.19 O Rato da Cidade e o Rato do Campo………………………………………. .160
3.2.20 O Reformador do Mundo……………………………………………………….163
3.2.21 O Sabiá na Gaiola……………………………………………………………… 165
3.2.22 O Velho, o Menino e a Mulinha……………………………………………….. 168
3.3 Ilustrações: Esboços de Leitura………………………………………………….. 171
3.3 Reflexões sobre a Leitura de Fábulas…………………………………………… 180
CONSIDERAÇÕES FINAIS…………………………………………………………191
BIBLIOGRAFIA………………………………………………………………………… 194
ANEXOS………………………………………………………………………………… 199
Anexo A: Folder………………………………………………………………………… 200
Anexo B: Capa das produções das Crianças……………………………………….. 203
Anexo C: Entrevista com a Docente…………………………………………………. 205
Anexo D: Fábulas Reescritas: Fábulas escolhidas………………………………… 209
Anexo E: Ilustrações - Esboços de Leitura…………………………………………. 220
APÊNDICE……………………………………………………………………………... 271
Apêndice A: Entrevista………………………………………………………………… 272
10
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A obra infantil lobatiana
1
é fruto da insatisfação de seu autor quanto
às obras literárias disponíveis às crianças. Portanto, para constituir sua obra, Lobato
retoma a literatura universal, infantil e adulta, fatos históricos, mitológicos e outros
que o traduzidos, adaptados e recriados, ão em que o autor harmoniza
elementos culturais diversos com o objetivo de torná-los acessíveis aoblico
infantil. Assim, para entender o processo arstico de Lobato é necessário observar o
processo histórico da própria literatura infantil, que motivou o escritor em sua escrita.
A literatura infantil teve sua origem na Novelística Medieval e
atravessou inúmeras mudanças até chegar ao perfil atual, passando por idealismos
extremados, pela representação de mundos de magia e de maravilhas, estranhas à
vida real e até a produções, cujo único intuito era difundir conceitos moralizantes. No
universo de influências sofridas, diversas manifestações foram identificadas e dentre
elas as fontes orientais, primeiro descobertas em documentos egípcios que se
somaram, a posteriori, a outras culturas.
No Ocidente Europeu, duas fontes literias se distinguem: uma
popular e outra culta, sendo a primeira, segundo Coelho (1987), composta pela
prosa narrativa exemplar, derivada das antigas fontes orientais ou gregas, enquanto
que a última, a de origem culta, é a prosa de aventura das novelas de cavalaria, de
inspiração ocidental (COELHO, 1987, p 189). Nesse momento, as produções
populares e cssicas se constituem paralelamente vindo a unirem-se na seqüência.
Somente na segunda metade do século XVII, inicia-se uma maior
preocupação com a literatura infantil e juvenil. Destacam-se, então, As fábulas de La
Fontaine e Contos da mãe Gansa de Charles Perrault, pioneiros nessa linha. Essa
literatura valoriza a fantasia e a imaginação e se constrói
a partir de textos da Antiguidade Clássica ou de narrativas que
viviam oralmente entre o povo. Tal ‘tradição’, popularizante ou
erudita, redescoberta ou recriada por escritores cultos, contrasta
vivamente com a alta literatura clássica produzida nesse momento
(COELHO, 1987, p 226, aspas da autora).
1
O adjetivo “infantil” aqui empregado não é classificador do substantivo “literatura”, conceito infinitamente
simplista mediante tudo o que o gênero abarca. O substantivo se refere a uma obra com todas as características
próprias do gênero, como o valor estético, o trabalho com a palavra, a emoção, a plurissignificação. Portanto, o
adjetivo aqui não qualifica, mas indica a que público essa vertente se destina, ou seja, pressupõe um
destinatário, um indivíduo ainda em formação.
11
A seguir, Charles Perrault transforma-se em um dos maiores
sucessos da literatura para a infância, pois promoveu o início da escrita direcionada
propriamente para o público infantil. Os Contos da Mãe Gansa, concebidos em um
viés moderno para a época, dão espaço a novas produções que assumem um perfil
mais agradável para as crianças e tamm para os adultos, pois ao abandonar o
sistema em versos, passa a redigir em prosa, em uma linguagem mais direta, clara,
desembaraçada e acessível. A escrita de Perrault inicia um estilo apropriado para a
faixa etária, vindo a refletir na grande aceitação que suas obras tiveram na época e
na permanência canônica como obra de referência.
Contemporâneo a Perrault, Jean de La Fontaine foi o responsável
pela remodelação da fábula, matéria literária que visa o comportamento social do
homem, com vestígios de surgimento na Grécia e em Roma, nas literaturas orientais
e na Idade Média.
Em sua origem, a fábula não foi concebida para o público infantil,
sendo estendida a esse grupo devido à carência de material específico para as
crianças. Consistia em um produto pouco acessível aos pequenos, cuja escrita em
versos poderia agir como um empecilho na compreensão do texto.
A produção desses escritores, La Fontaine e Perrault, é vista como
divisor de águas e marca o culo XVII como o período no qual a literatura e a
educação das crianças e jovens começam a tomar forma e a serem divulgadas e
prestigiadas com maior intensidade. Segundo Coelho (1987), essa propagação é
uma ão de longo prazo e contínua, que toma maior fôlego durante o
Romantismo e o Realismo, estendendo-se aa modernidade, momento em que as
questões de literatura infantil e formação do leitor são preocupações das pesquisas
acadêmicas, meios educacionais, sociais, políticos e familiares.
Tamanha inquietação, iniciada a partir do século XVIII, período em
que a criança deixa de ser vista como um adulto em miniatura e passa a ser vista
como um ser em estágio de desenvolvimento, diferente do adulto, marca o início de
seu processo de valorização, disseminado por Rousseau.
Contudo, é o século seguinte o ponto decisivo no qual uma
consciente preocupação se volta para a produção literária destinada às crianças.
Assim, essa fase da vida passa a ser vista como um período que necessita de um
cuidado especial para a formação da criança.
12
As discussões sobre a criança, em pauta nos campos teóricos,
influíram diretamente na constituição da literatura infantil. A produção literária dos
irmãos Grimm busca primeiramente descobrir as origens da realidade histórica
“nacional” (alemã) e reúne em seu texto literio a fantasia, o fantástico, o mítico, o
que traz para a Literatura Infantil um universo que surge para encantar crianças do
mundo todo (COELHO, 1987, p 292).
Os irmãos Grimm, pesquisadores da linha filológica e folclórica,
fizeram um longo estudo, no qual buscaram levantar elementos lingüísticos, estudos
filológicos e textos folclóricos alemães, numa tentativa de expandir o espírito
germânico, a partir de forte ligação com a Tradição clássica, que neste trabalho será
denominada cânone.
Entretanto, esse recolhimento abarcou elementos de outras culturas
incorporados à cultura alemã, tanto que muitas das expressões utilizadas haviam
aparecido na obra de Perrault, marcando o caráter cíclico presente na literatura.
Mesmo fazendo referência a textos retratados por Perrault, os
irmãos Grimm representam um período marcadamente menos violento, influência da
mudança da própria concepção de homem, promovendo, como demonstra Coelho
(1987), uma concepção mais humanitária, das histórias recolhidas por Perrault, a
partir da qual aspectos negativos cedem lugar à esperança e à confiança na vida.
O dinamarquês Hans Christian Andersen, outro nome de destaque
na constituição da literatura infantil, tamm se entrega à descoberta de valores
ancestrais com o objetivo de revelar o caráter da raça. Em sua produção se destaca
o maravilhoso dentre a realidade concreta do cotidiano, no qual o autor vai se
revelando uma das vozes mais puras do espírito simples.
Lewis Carroll, escritor inglês, inicia o realismo maravilhoso dentro da
literatura infantil moderna com a escrita de Alice no país das maravilhas, sua obra
mais conhecida. Outro ings de destaque, James M. Barrie, ao escrever Peter Pan
consagra, na literatura, o mito da eterna infância.
No Brasil a o início do século XX, a grande maioria das obras
literárias infantis era escrita em francês ou consistia em traduções portuguesas de
obras francesas ou espanholas, apresentadas, em geral, em encadernões
bonitas. A importação de cunho literário perdurou até o icio da produção nacional,
que, tímida a princípio, baseava-se principalmente no conto folclórico, versões
13
abrasileiradas de textos de Perrault, Grimm e Andersen e na difusão de uma
literatura de cunho patriótico, os famosos contos pátrios.
Nesse universo, destaca-se, segundo Lajolo e Zilberman (1991), o
movimento de adaptação para a realidade lingüística brasileira do acervo infantil
europeu(p 18), movimento esse que representou uma tentativa de nacionalização
da literatura infantil brasileira, em seus momentos iniciais.
Desse modo, a literatura infantil passa a ser instrumento de difusão
das imagens de grandeza e modernidade do país, pois formuladas pelas classes
dominantes, tinha o intuito de passar para as classes médias e baixas noções de
culto cívico e de patriotismo. Essa missão patriótica assume a exaltação da natureza
brasileira, a unidade e grandezas nacionais, modelos de língua nacional, visões
idealizadas de pobreza e regras de comportamento.
Tal posicionamento somente coma a se modificar com as
transformões iniciadas por José Bento Monteiro Lobato, autor que proporcionou o
resgate da herança do passado no presente, o rompimento com o racionalismo
tradicional e a abertura para outras temáticas.
Monteiro Lobato e sua obra m sido objeto de estudo de diversos
pesquisadores de diferentes áreas, cujos trabalhos, alguns citados na p. 14,
presentes no banco de dados da Capes e do Cnpq, abrangem diversas áreas do
conhecimento. Assim, dentre mais de novecentos trabalhos, em níveis de
especialização, mestrado e doutorado, cujas temáticas alçam desde saúde, direito,
traduções e adaptações do autor, história e formação editorial brasileira e os estudos
literários propriamente ditos, que abarcam tanto a produção denominada adulta
quanto a infantil, destacam-se alguns que dialogam, especificamente, com a
dissertação desenvolvida.
Ao realizar um recorte que privilegiasse as pesquisas cujo enfoque
se volta para o estudo da obra infantil de Lobato, conta-se com um universo de
aproximadamente duzentas dissertações e vinte teses no banco de dados da Capes.
Os estudos versam sobre as seguintes temáticas: a presença do humor na obra
lobatiana, estudos comparativos entre as personagens, a apresentação e/ou
discussão de questões sociais dentro dos contextos literários, concepções
educacionais e políticas contidas nos textos, a presença do mito e da fábula na
entidade textual, a intertextualidade presente na obra e possíveis inter-relações com
suas fontes, a recepção dos textos e sua contribuição para a formação do leitor
14
infantil, e por fim, a importância da obra e de seu autor para a história literária
brasileira.
Dentre todas essas abordagens, alguns trabalhos se destacam, em
especial, por terem fomentado a discussão desta pesquisa, sendo eles: Magda
Dezotti. O professor e a mediação de leitura: uma experiência com Monteiro Lobato,
(UEM, 2004), trabalho que analisa a relação entre o público infantil e a produção
lobatiana, normalmente tachada de escrita difícil, mas que, independente da época,
dialoga com o universo das crianças, pulverizando conceitos, idéias e conhecimento,
por meio da constituição da própria obra.
A pesquisa de Cristina Aquati Perrone, Do mito a fábula: releituras
de Lobato (USP, 1999) despertou interesse especial, uma vez que aborda uma
preocupação direta da dissertação desenvolvida: a presença do mito e da fábula nos
textos de Monteiro Lobato.
O trabalho de ide Nascimento de Souza (Unesp Assis, 2004) O
Processo Estético de Reescritura de Fábulas por Monteiro Lobato resgata a história
da bula, partindo de seus precursores até chegar às fábulas lobatianas, trabalho
que forneceu subdios para entender o processo estilístico na reescrita dos textos
fabulares por Monteiro Lobato.
Grassielly Lopes em bulas (1921) de Monteiro Lobato: um
percurso fabuloso (UNESP Assis, 2006) faz um levantamento sobre as diferentes
edições da obra bulas de Monteiro Lobato, dando destaque para as modificações
e percepções do autor sobre o gênero.
Outros estudos, como as pesquisas de Maria Celeste Consolin
Dezotti A Fábula Esópica Anônima: uma contribuição ao estudo dos “atos de fábula”
(Unesp – Araraquara, 1988), que abrangem desde discussões sobre o gênero fábula
até estudos sobre a fábula lobatiana, propriamente dita, foram importantes para o
direcionamento da pesquisa realizada.
Do mesmo modo, a dissertação sobre a recepção de textos
selecionados da obra Fábulas (1922) contribui para pesquisas posteriores a partir de
duas diretrizes: o olhar dado aos recursos de construção da obra infantil lobatiana
(adaptação, tradução e paródia) e sua influência na situação de leitura e as
discussões sobre a medião de leitura, recepção e formação do leitor.
O primeiro deles, pautado principalmente em rever os recursos
utilizados pelo autor na constituição de sua obra literária, analisa como o fazer
15
literário influi na recepção textual, por meio do contato entre texto e leitor, durante a
recepção. Já no último item, analisa-se a situação de leitura em sala de aula e,
dessa forma, com bases na Teoria da Estética da Recepção, busca provocar
reflexões no ambiente de formação de leitores, de modo a refletir sobre o papel dos
recursos de escrita literária, os protocolos de leitura e as influências externas, como
as sociais, por exemplo. Na resposta obtida por cada leitor, na situação de leitura,
eso técnicas que podem ser observadas, desenvolvidas e aplicadas pelos
mediadores de leitura no trabalho com a obra literária.
A escolha pela obra de Monteiro Lobato para o desenvolvimento da
dissertação antecede ao ingresso no curso de Pós-Graduação e se deve ao trabalho
como educadora realizado já a alguns anos. Sempre foi surpreendente a aceitação e
encanto que a obra infantil lobatiana desperta nos pequenos leitores e em todos que
têm a oportunidade de -la, o que faz de crianças e adultos participantes da Saga
do Picapau Amarelo, aventura que ultrapassa questões temporais, sociais e de outra
ordem.
A riqueza da obra lobatiana é fruto da personalidade ímpar de seu
autor. José Bento Monteiro Lobato é um dos nomes que representam a história
editorial brasileira, cuja carreira nesse segmento iniciada em 1918, com a compra da
Revista do Brasil, faz dele um dos responsáveis pelo impulso significativo do
desenvolvimento editorial do país, fato que o liga diretamente à história do livro,
transformando o escritor Monteiro Lobato em escritor-editor.
Escritor preocupado com a materialidade de todas as produções de
sua editora, investiu na qualidade gráfica, marcada pela constante modernização
dos volumes por ele editados, além de ter buscado acompanhar seus lançamentos
com debates críticos na imprensa. Entre a fundação e a falência de sua editora,
Lobato iniciou uma nova empreita: a produção de sua obra infantil.
O autor do ciclo do Sítio do Picapau Amarelo envolveu-se em
diversas causas e contribuiu em diferentes áreas: foi tradutor, adaptador, contista,
romancista, crítico de arte, impulsionou o desenvolvimento da editora brasileira e
participou efetivamente de campanhas de utilidade pública - saneamento, voto
secreto, melhoria da indústria do aço e exploração de petróleo.
A obra lobatiana, destinada ao público infanto-juvenil, é constituída
por textos originais, traduções e adaptações, na qual o autor mostrou o maravilhoso
como possível de ser vivido por qualquer um, nos três casos, o autor se voltou para
16
a necessidade de se levar o conhecimento da bagagem cultural para os leitores
infantis.
O movimento de reunir elementos da cultura canônica é um traço da
modernidade, iniciado desde o movimento de recolhimento dos referenciais, que
reúne os elementos desejados e os adapta harmoniosamente. Dessa maneira, os
textos eleitos por Lobato da cultura universal, popular e canônica, passam a
constituir, junto com a reescrita do novo texto, um movimento maior - a totalidade.
Segundo Nunes (1998), somente uma personalidade rica, ímpar,
com total domínio sobre a língua e sobre a arte literária seria capaz de fazer
referência a problemas nacionais em um ambiente de magia e entretenimento, em
que se resgata a cultura grega, conhecimentos científicos, expressões culturais e
folclóricas diversos.
Para a crítica literária, a constituição das obras do Sítio do Picapau
Amarelo corresponde à inauguração da literatura infantil brasileira, na qual a obra
infantil do autor estende-se por muitos títulos sempre mencionando outros livros,
próprios ou alheios, onde uma história faz referência a outra, sublinhando com isso o
caráter circular de sua obra” (LAJOLO, 2000, p 63).
Importante ressaltar que a menção de textos, feita pelo autor, é
fundamental para a constituição do perfil de toda sua obra, pois desde o primeiro
livro infantil, A menina do narizinho arrebitado, publicado em 1920, inicia-se uma
série que tem como eixo organizacional um constante diálogo entre as temáticas,
personagens e enredos.
O texto Fábulas (1922), foco do estudo, reúne setenta e quatro
fábulas adaptadas do cânone literário de maneira a permitir a acessibilidade do texto
para os leitores e tamm apresenta textos criados pelo próprio autor.
O nero fábula é uma narrativa alegórica em que as personagens
o geralmente animais. Em sua concepção, não era direcionada ao público infantil,
e sim ao adulto, pois seu desenlace, que reflete uma lição moral, tinha um objetivo
doutrinário. Coelho (1987) reforça que a bula é a primeira forma narrativa
registrada pela História, cuja temática é variada e contempla picos que têm por
função explorar qualidades e ações humanas como a viria da fraqueza sobre a
força, da bondade sobre a astúcia e a derrota de presunçosos.
Nas bulas lobatianas, encontra-se o autor que, ao revisitar o
original, resgata o cânone literário e acrescenta valores modernos, promovendo,
17
com esse recurso, o debate entre a cultura tradicional e a possibilidade de ruptura
que promove o surgimento do novo: uma obra com características modernas, como
o modo de narrar adotado.
Embora o texto renovado se assemelhe às fontes, ele contém um
diferencial merecedor de destaque por seu viés moderno, como dito a pouco, pois as
fábulas, escritas em prosa, têm a narração atribuída à Dona Benta, seguida do
comentário dos ouvintes: Narizinho, Pedrinho, Emília, Visconde de Sabugosa e tia
Nastácia, que discutem os textos a partir das concepções de sua época.
No entanto, o resgate propiciado pelos Antigos, segundo Coelho
(1987), foi marcado pela criatividade em transformar esse material em uma produção
moderna para sua época. O traslado permitiu que o binômio cânone x ruptura se
amalgamasse, e, graças a essa junção foi possível que o cânone se tornasse
acessível a diferentes tempos, culturas, classes sociais e grupos.
Com a discussão apresentada, perpassou-se um quadro em que a
reunião de diferentes elementos culturais e recursos de produção do texto literário
se fundiram em uma produção, tornando-se fundamentais para o entendimento do
próprio texto literário. Analisando tais recursos busca-se compreender os elementos
de construção da obra que interferem na recepção do texto literário pelo leitor em
formação.
Assim, a presente dissertação discute a recepção, por criaas da
segunda série do Ensino Fundamental, das fábulas escritas pelo escritor brasileiro
José Bento Monteiro Lobato (1882 1948), pertencentes à obra de mesmo nome,
editada em 1922, a partir de uma situação de leitura vivenciada em sala de aula.
Optou-se por analisar a recepção de alguns textos de Fábulas por
uma das turmas de segunda série, que reproduziriam os textos canônicos em
atividade de produção textual. Escolha esta que se deve ao conhecimento do fato,
ainda no início do curso de mestrado, de que a escola em questão desenvolveria um
trabalho de leitura da obra lobatiana por um semestre.
A instituição de Ensino Fundamental, pertencente à rede particular
da cidade de Marin Paraná, foi escolhida, como dito anteriormente, por realizar,
durante o primeiro semestre letivo de 2006, um estudo interdisciplinar com a obra,
infantil e adulta, de Monteiro Lobato.
O trabalho com duração de um trimestre, o segundo do ano de 2006,
abordou, em uma turma de segunda série, vinte e duas fábulas, previamente
18
selecionadas pela professora regente, submetidas à leitura dos alunos. À prática de
leitura se seguiu uma proposta de reescrita de seis, das vinte e duas
disponibilizadas, retiradas do livro Fábulas de Lobato, que conta com setenta e
quatro no total. Ao trabalho de escrita era acrescido uma ilustração feita pelos
alunos, vindo a completar o conjunto que será, como dito anteriormente, analisado à
luz da Estética da Recepção.
Dessa forma, no primeiro capítulo da dissertação Tradução,
Adaptação e Paródia: O Processso Criativo Lobatiano são pontuados, em linhas
gerais, os recursos de adaptação, tradução e paródia como ferramentas utilizadas
por Monteiro Lobato na constituição de sua obra, antecipando a participação destes
instrumentos na leitura da narrativa.
O segundo capítulo, O Caminho das bulas, apresenta o eixo de
sustentação teórica da discussão empreendida, realizada a partir da apresentação
da teoria da Estética da Recepção de Hans Robert Jauss (1994) e buscou analisar a
permanência do texto original na reescrita realizada pela criança e também a
inseão da perspectiva do leitor na leitura do texto canônico. Também de caráter
teórico é a apresentação da história e estrutura do gênero fabular, dados que
permitem entender a manutenção de estruturas e fórmulas neste gênero narrativo.
Para entender in loco a participação da adaptação, da tradução e
da paródia no campo literário propriamente dito, foi feita no terceiro capítulo, Leitores
e Leituras de bulas, de Monteiro Lobato, uma retomada do gênero literário em
dois movimentos; o primeiro, procura revisar as fontes, por meio da retomada dos
precursores da fábula: Esopo, Fedro e La Fontaine, e outros; e o último, em buscar
as marcas dos textos-fontes no texto lobatiano, que retoma com os recursos de
tradução e adaptação, os originais, marcando, essencialmente, as diferenças e
atualizações a que são submetidas as entidades textuais no decorrer do tempo,
atualização que também se verificará na leitura dos alunos.
O trabalho de análise partiu da hipótese de que a história literária,
fruto do contato entre leitor e obra, é solidificada, desconstruída e reconstruída no
experienciar dinâmico da entidade textual. Portanto, as respostas obtidas pelo
receptor resultam de sua formação e vivência.
O levantamento realizado revelou que a literatura é uma realidade
cíclica, que, constantemente, retoma, readapta e reconta contextos e realidades,
19
atualizando-os de forma a torná-los representativos do momento histórico a que
passam a pertencer, a partir de sua recriação.
Nas Considerações Finais faz-se uma reflexão respondendo aos
principais questionamentos norteadores da pesquisa que confirmaram a tese de que
o quadro esperado se desdobrou, no que insere no processo de reescrita, os
conhecimentos do leitor, como será verificado na dissertação.
20
1 TRADUÇÃO, ADAPTÃO E PARÓDIA: O PROCESSO CRIATIVO
LOBATIANO
A tradução é minha pinga.
Traduzo como o bêbado bebe: para esquecer, para atordoar.
Monteiro Lobato
A tradução e a adaptação são presenças constantes na obra literária
de Monteiro Lobato, assim como a paródia que surge, hora ou outra, para prestigiar
textos e autores ou simplesmente trazer à luz expressões literárias inacessíveis por
disncias cronológicas, lingüísticas e geográficas. A retomada de narrativas pré-
existentes por Lobato acontece de forma peculiar, como é característico do escritor,
acostumado a polemizar, teorizar e a vivenciar em sua produção as idéias em que
acreditava, posicionamentos que serão discutidos a seguir, primeiramente, no que
tange a relação e concepção de Monteiro Lobato a respeito das traduções.
1.1 Lobato e as Traduções
A tradução, especialmente a literária, esteve ligada à produção e à
vida de Monteiro Lobato como forma de subsistência, o que faz do ato tradutório um
instrumento importante para a constituição de sua obra, daí a necessidade de se
rever este instrumento como forma de entender aspectos da obra do autor.
Como afirmado na introdução deste trabalho, os recursos de
adaptação e tradução são ferramentas que tornam acessível o referencial da cultura
universal. Nesse campo, inclui-se a literatura, que por diferenças de idiomas e
normas sociais torna-se, muitas vezes, inacessível.
Desse modo, a diferença de idiomas importa para diferentes linhas
de estudo, mas na literatura, em especial, levantam-se vários questionamentos, uma
vez que envolvem a própria circulação do produto literário. Portanto, para entender o
papel da tradução no contexto literário, torna-se fundamental entender o próprio
conceito que embasa a tradução dos referenciais literários.
O desconhecimento da ngua estrangeira motiva a busca por
adaptações e/ou traduções, movimento esse que faz com que tais recursos se
tornem necessários para a circulação dos bens culturais da humanidade. É
21
necessário que haja um cuidado especial com esses instrumentos, caso contrário,
textos e outras expressões culturais e artísticas tornam-se inacessíveis.
Não um conceito definido e fechado sobre traduções. A princípio,
a reescrita de um texto consistia em uma escie de apropriação do texto-fonte,
pois, segundo Nietzsche (1962
2
), a transposição de uma obra para outra língua era
uma prática apropriativa, uma vez que, ao se realizar a tradução, o tradutor
substituía o nome do autor pelo seu próprio. Essa prática contribuía com a não
preservação do passado e, conseqüentemente, da própria história. Isso mostra que
a concepção de tradução não é algo imutável. A mudança dessa visão permite
avaliar de modo diferente a tradução.
O ato de traduzir é por alguns criticado e por outros valorizado.
Juízos de valor à parte, é um recurso útil, por razão dos seres humanos falarem
línguas diferentes, pois permite uma maior aproximação entre povos e a
recontextualização de narrativas.
Benjamin (1923
3
), em seu ensaio sobre A Tarefa Renúncia do
Tradutor, questiona ações do ato tradutório, pautado, principalmente, na
comparação entre texto-fonte e texto traduzido, e afirma que a tradução não
consegue oferecer um campo de significação perante o texto original. O crítico
valoriza os textos originais e vê a tradução como gênero menor e temporário, que
atende às necessidades do público em determinado espaço temporal.
A tradução envolve, segundo discute Derrida (1987
4
), em Torres de
Babel, uma dívida entre a obra original e sua versão traduzida, contraída pela
necessidade da última em representar as verdades contidas na primeira. Muitos
teóricos afirmam que a verdadeira tradução deve transmitir o significado exato do
original. Contudo, é preciso considerar que a própria concepção de tradução se
depara com a difícil tarefa de demarcação de seus próprios limites.
Cada tradução de uma obra representa, a partir de um determinado
período da história, a língua nela retratada, recebendo também influências sofridas
pelo tradutor do meio no qual ele está inserido. Por ser fruto do momento de sua
concepção, não deve servir de base para outras traduções, buscando ter sempre o
original como fonte para a realização de novas traduções.
2
A edição brasileira utilizada foi publicada em 2001.
3
A edição brasileira utilizada foi publicada em 2001.
4
A edição brasileira utilizada foi publicada em 2002.
22
Para Benjamin, a tradução não afeta o texto original, senão para
atribuir-lhe prestígio. Campos (1991), ao discutir os apontamentos de Benjamin
sobre a tradução, atesta que, apesar da crítica feita pelo teórico, a tradução permite
o reviver do texto original. Amorim (2005), discutindo conceitos de tradução e
adaptação, descreve a tradução como uma ão dinâmica, na qual ocorre a
interação entre a fonte e o texto traduzido, o que permite a interação entre os textos,
uma vez que para o pesquisador o ato tradutório permite a reconstextualizão da
narrativa a partir da realidade na qual é percebida.
Sendo a tradução um instrumento de acesso ao referencial literário
de outras línguas, torna-se fundamental voltar o olhar para o sujeito desse produto: o
tradutor.
Benjamin, em seu texto A Tarefa Rencia do Tradutor, descreve
o tradutor como o responsável em liberar na língua materna a pura língua retratada
na língua estrangeira, por meio do ato criativo. Assim, Benjamin delega ao tradutor a
libertação da língua de partida na de chegada.
Coulthard (1991) descreve o tradutor como a pessoa que tenta
tornar acessível a um certo grupo de leitores interessados, um texto
até então inacessível. Desta forma, o tradutor começa com o texto
ou, mais literalmente, com a mensagem derivada do texto (cuja
exatidão dependerá, naturalmente, do grau de proximidade do
tradutor em relação ao leitor ideal) e tenta re-escrevê-lo, ou melhor,
re-textualizá-lo para um leitor ideal (COULTHARD, 1991, p. 3, grifo
do autor)
Desse modo, o tradutor é visto como o mediador entre a obra
estrangeira e o leitor.
Para Steiner (1998
5
), o papel do tradutor é retratado como uma
prática difícil, mas necessária. Essa fala mostra a dificuldade do ato de traduzir, por
não ter, claramente definido, um caminho a ser seguido.
Aubert (1993) discute a ideologia do ato tradutório, que atinge
tamm seu agente executor, sendo visto, segundo ele, como submetido a diversas
servidões:
Escravo do texto e/ou do autor do original e atrelado às restrições
impostas pelas diversidades lingüísticas e culturais, o tradutor
5
A edição brasileira utilizada foi publicada em 2005.
23
deveria, na medida do possível e do impossível, abstrair o seu
próprio ser, tornar-se um mero canal, livre de ‘ruídos’ ou outras
obstruções à passagem plena’ do texto original à sua nova
configuração lingüística (AUBERT, 1993, p. 7, aspas do autor).
Para Campos (1991), a função do tradutor é liberar a essência da
obra estrangeira, remodelando significados para outro contexto, pois torna o texto
acessível para um público distinto do qual foi pensado a princípio:
O tradutor constrói paralelamente (paramorficamente) ao original o
texto de sua ‘transcriação’, depois de ‘desconstruir esse original num
primeiro momento o metalingüístico. A tradução opera, portanto,
graças a uma deslocação reconfiguradora, a projetada
reconvergência das divergências, ao ‘extraditar’ o ‘intracódigo’ de
uma para outra língua, como se na perseguição harmonizadora de
um mesmo telos (CAMPOS, 1991, p. 18, aspas do autor).
Campos amplia a discussão ao conceber a tradução como a
reconstrução paralela do texto original. Tal concepção dialoga particularmente com a
prática tradutora de Monteiro Lobato, autor estudado na pesquisa.
O autor de Fábulas (1922) tem uma relação muito próxima com a
tradução em seu fazer literário, pois preocupou-se em atender às necessidades do
público-alvo. Ainda buscou, segundo a definição de tradutor de Coulthard,
acessibilizar referencial aos leitores, que o dispunham até aquele momento,
como do século XX, de opções de tulos e muitas vezes tamm de materiais de
qualidade, tanto no que diz respeito à qualidade da tradução, quanto à própria
apresentação do material impresso.
Lobato construiu renome como adaptador e tradutor ao disponibilizar
para leitores brasileiros mais de vinte e cinco mil páginas traduzidas, por ele, de
textos pertencentes ao none literário. Com o autor, rompeu-se o preconceito
existente, até aquele momento, de que escritores conhecidos o traduzissem, pois
os que o faziam escondiam-se atrás de pseudônimos.
Considerado função menor, o ato tradutório esbarrava tanto no
preconceito quanto nas baixas remunerações, o que mantinha distante dos leitores o
repertório da cultura européia canônica. A população da época, que não conhecia
outros idiomas, estava restrita às produções aportuguesadas de obras francesas e
espanholas, ignorando outras expressões literárias.
Mesmo sendo a única forma de disponibilizar a literatura estrangeira,
24
a tradução ainda se encontra envolta por opiniões divergentes. Pesquisadores
afirmam que o ato tradutório pode optar pela adequação do texto original a uma
poética vigente como também se opor a ela, introduzindo elementos inovadores que
lhe seriam estranhos ao texto primeiro. Com base neste pensamento, Amorim (2005)
exe a ação de traduzir como um fazer que apresenta opções de escolha, ou seja,
seu executor pode optar por atender ou não às exigências que consistem, muitas
vezes, na escolha entre manter-se fiel ao original ou inová-lo.
As escolhas do tradutor refletem diretamente na resposta do leitor,
habituado a reclamar a dita fidelidade da tradução, embora não tenha definido
claramente o que abarca realmente a fidelidade ao original.
A fidelidade tão reclamada por teóricos, críticos e leitores, é nada
mais do que uma das estratégias do ato tradutório, que, em realidade, não é um
caminho preciso e nem único a ser seguido pelo tradutor durante a transposição de
um texto de uma língua estrangeira para a língua materna.
Contudo, mesmo não representando uma obrigatoriedade, ao se
discutir a questão da tradução, o senso-comum aponta para a idéia de fidelidade,
cobrada pelos leitores que buscam no texto traduzido uma reprodução, o mais
próxima possível, do original. Assim, apesar da diferença lingüística e cultural
existente entre texto-fonte e realidade alvo, para a qual será transposto o texto, os
teóricos e críticos mais conservadores acreditam que o tradutor deva manter, de
maneira fiel, a forma e o conteúdo do texto primeiro.
Mesmo com a circulação de tal ideologia, a possibilidade de
tamanha neutralidade é questionável, porque o tradutor é antes de tudo, tamm,
um leitor, e transpõe, involuntariamente ou não, traços de sua recepção para o texto
traduzido, fruto de sua própria leitura. O tradutor é, inevitavelmente, um leitor que
traz consigo um repertório de conhecimentos e vivências que influenciam a
tradução.
Assim, é necessário desvincular a idéia de que o fiel é,
obrigatoriamente, de qualidade, e que o quesito não deve ser encarado como um
tributo a ser pago para que o texto traduzido seja valorizado. Isso porque o tradutor
pode lançar mão de outros recursos em seu trabalho, ter objetivos e públicos para
os quais a fidelidade incondicional não seja a melhor escolha na realização da
tradução.
Benjamin (1923) aponta caminhos para o texto traduzido:
25
A tradução deve, ao invés de procurar assemelhar-se ao sentido
original, ir reconfigurando em sua própria língua, amorosamente,
chegando até aos mínimos detalhes, o modo de designar do original,
fazendo assim com que ambos sejam reconhecidos como
fragmentos de uma língua maior, como cacos são fragmentos de um
vaso (BENJAMIN, 2001, p.208).
Campos (1991), também, vê o original como a fonte primeira e a
tradução como a disseminação da vitalidade da obra. O texto traduzido é a
concretizão de uma obra pelo tradutor. Nesse ponto, o autor usa avaliações
distintas das de Benjamin, destacando a diferença existente entre a recepção de
uma obra entre leitores e críticos em ambiente estrangeiro, por se tratar de normas
distintas.
Ao pensar na diversidade cultural, cai por terra a própria cobrança
por uma fidelidade incondicional, que pode vir a ser impraticável ou distanciar o
texto, distorcendo o conteúdo real da obra literária. A ânsia por uma fidelidade total
pode dificultar o ingresso ao texto e até torná-lo inacessível. Um exemplo desse
quadro é resgatado por Travassos (1974), que apresenta uma curiosa falha de
tradução, retirada de uma versão argentina de um texto lobatiano:
- Hijo mio, hay dos espécies de literatura, una com cuernos y outra
sin cuernos. A mi me gusta ésta y detesto aquélla. La literatura sin
cuernos es la de los grandes libros; y la literatura com cuernos es la
de los libros que no valen nada. Si yo digo: Era uma linda mañana
de cielo azul’, hago literatura sin cuernos, de la buena. Pero si digo:
Era uma gloriosa mañana de cielo americanamente azul’, hago
‘literatura’ cornupeta, de la que merece palos (TRAVASSOS, 1974, p.
126, aspas do autor).
- Meu filho, duas espécies de literatura, uma entre aspas e outra
sem aspas. Eu gosto desta e detesto aquela. A literatura sem aspas
é a dos grandes livros; e a com aspas é a dos livros que não valem
nada. Se eu digo: Estava fazendo uma linda manha de céu azul’,
estou fazendo literatura sem aspas, da boa. Mas se eu digo: estava
uma gloriosa manhã de céu americanamente azul’, eu faço ‘literatura’
da aspada da que merece pau (LOBATO, 1973 b, p. 20, aspas do
autor).
O livro Fábulas (1922) recebeu, na tradução argentina
6
contemporânea a Lobato, o tulo de Viejas Fábulas. A contação da fábula A
assembléia dos ratos desencadeia uma discussão sobre o fazer literário, no qual
6
O nome do tradutor não é citado pelo teórico, portanto, o próprio teórico será colocado na referência.
26
Dona Benta apresenta às crianças dois tipos de literatura: uma floreada, descrita por
ela como a que contém aspas, e outra direta, ou seja, sem aspas, estilo valorizado
pela personagem. A tradução hispânica realiza uma tradão literal ao adotar o
correspondente sugerido pelo falso cognato, pois a palavra aspas”, também
existente na língua espanhola, corresponde ao substantivo chifre” em português,
opção que foge totalmente da idéia disseminada pela obra.
O resgate dos excertos pretende ressaltar a importância da escolha
do tradutor. No exemplo apresentado por Travassos, embora se destaque uma
tradução bastante literal do texto lobatiano, no qual se percebe a manutenção da
mesma estrutura textual do original, o apego à fidelidade desencadeia a fuga à
mensagem textual. Isso porque a escolha do tradutor em traduzir a palavra “aspas”
pelo sinônimo hispânico “chifres” representa uma verdadeira agressão ao conteúdo
real do texto original, que “literatura com aspas” não corresponde em significado a
“literatura com chifres”.
A tradução literal vai de encontro às idéias difundidas por Lobato,
que reflete teoricamente sobre a tradução e assume, de forma prática,
posicionamento distinto, ao defender a difusão das idéias por meio da tradução:
A tradução de fidelidade literal, isto é, de fidelidade à forma literária
dentro da sua língua, o autor expressou o seu pensamento, trai e
mata a obra traduzida. O bom tradutor deve dizer exatamente a
mesma coisa que o autor diz, mas dentro da sua língua, dentro da
sua forma literária; só assim estará traduzindo o que importa: a idéia,
o pensamento do autor. Quem procura traduzir a forma do autor não
faz tradução faz uma horrível coisa chamada transliteração, e
torna-se ininteligível (LOBATO, 1959, v 2, p. 147).
Por desejar uma maior difusão da cultura, por meio da abertura das
fronteiras a outras expressões da arte literária à população, Lobato vê o processo de
tradução como uma ão que deveria ser livre de rebuscamentos de linguagem e
construção, para ser mais acessível. Ao examinar contos de Grimm, publicados pela
Garnier, desabafa com o amigo Rangel, com quem se corresponde durante sua
vida: “pobres crianças brasileiras! Que traduções galegais! Temos que refazer tudo
isso – abrasileirar a linguagem” (LOBATO, 1968 b, v 2, p. 275).
A fala de Monteiro Lobato aponta para uma postura divergente da
difundida no discurso benjaminiano, apegado à manutenção da forma original. O
escritor de Taubaté discute teoricamente e também pratica o desapego rigoroso ao
27
original, a liberdade e a adequação da tradução atrelados ao objetivo. Assim, o autor
entende o ato tradutório como uma ação que deve estar de acordo com o público a
quem será direcionado o texto, o que para Lobato destaca o leitor como uma
entidade que deve ser levada em consideração, uma vez que é o motivo e o destino
do texto.
A manutenção ou não do texto original ao máximo apresenta
opiniões distintas: se Benjamin apregoa a fidelidade ao original, Lobato se volta para
o campo das idéias ao invés de privilegiar exclusivamente a forma. Já Venuti
(1998
7
), pesquisador que se dedica a essa problemática, busca um equilíbrio ao
apontar duas possibilidades para a questão: primeiramente, apregoa o respeito à
forma original da obra como maneira de respeitar a cultura de origem e em
contraponto, se preocupa com a fidelidade levada ao extremo, o que pode tornar o
texto inacessível ao leitor - devido à própria diversidade cultural.
Ao citar que várias formas de recepção do estrangeiro, Venuti
abre espaço para outras formas de acesso ao conteúdo literário, que não se
restrinjam apenas às reproduções “fiéis” dos textos originais. Ao apontar para outras
possibilidades, o autor apresenta a idéia de domesticação presente no ato tradutório,
ão que consiste na inserção, no novo texto, de conceitos, estruturas e demais
valores da realidade cultural para as quais a obra será transposta. Para o
pesquisador, a “tradução efetivamente decreta um grau de subordinação em
qualquer língua-alvo ao construir a representação do texto estrangeiro que é inscrito
com valores culturais domésticos” (VENUTI, 2002, p. 182).
O criador do Sítio do Picapau Amarelo adotou, em algumas de suas
traduções, a perspectiva da domesticação em sua prática tradutória, defendendo a
idéia de aproximar a obra ao seu público. A idéia da adaptação pode ser percebida
na inclusão, no texto lobatiano, de características da cultura nacional por meio da
agregação de valores, costumes e acontecimentos particulares dessa realidade. Em
outras situações, Lobato se limitou em reproduzir, na linguagem padrão da norma
culta, o conteúdo da obra original.
O direcionamento da obra ao público, ão praticada por Lobato, é
criticado por Benjamin (1923) em seu ensaio sobre a tradução. O crítico condena o
conceito de receptor “ideal” alegando que nenhuma produção artística é criada a
7
A edição utilizada foi publicada em 2002.
28
certo homem específico e sim, à exisncia humana em geral. Com essa idéia, o
teórico questiona se uma tradução pode ser dirigida a leitores que não
compreendam o texto-fonte
8
.
Como dito anteriormente, Monteiro Lobato antecipou, tanto em
suas traduções quanto nas adaptações que fez, um cuidado em prepará-las de
modo a serem compreensíveis a determinados grupos de leitores, o que diminuiu a
disncia entre texto e leitor
9
. Tal postura deparou-se com duas situações que levam
a um mesmo resultado, seja por desconhecimento da variedade lingüística utilizada,
ou pela “pretensão” em se igualar os registros orais às normas cultas da língua,
ignora-se as particularidades da construção literária. Tem-se, nesse caso, a
motivação em que se apóiam os guardiões da fidelidade tradutória, que rejeitam a
tradução lobatiana por não representar, em algumas obras traduzidas, a forma da
obra original.
O escritor-tradutor não resgatava expressões coloquiais e realizava
uma escie de padronização da linguagem utilizada, na tentativa de torná-la
acessível aos leitores, como o próprio Lobato discute em sua correspondência com
literatos. Era sua miso transmitir o conteúdo da obra literária, idéia contrária a
apregoada por Benjamin (1923), ação que, para ele, não obrigava a manutenção da
linguagem adotada pelo original. Tanto acredita Lobato nesse princípio, que chega a
compartilhar tais concepções com o amigo Godofredo Rangel, com quem vivencia a
experiência do ato tradutório, afirmando que a tradução literal destrói a
inteligibilidade do texto (LOBATO, 1968 b, v. 2).
8
Se o leitor não tem domínio da língua estrangeira não irá, conseqüentemente, entender o texto-fonte. Nesse
caso, leituras que atualmente estão disponíveis, inclusive para o público infantil, como a Odisséia e outros
clássicos da Literatura Universal seriam inacessíveis.
9
No caso da tradução de obras adultas, a preocupação de Lobato esbarrou em críticas às suas traduções,
geradas por insatisfações promovidas por causa da “infidelidade” do autor ao texto-fonte. A caracterização da
linguagem, privilegiada por Lobato em suas traduções, é um dos principais focos de críticas, pois o autor-tradutor
ao realizar as escolhas, optou por modificar a linguagem do texto original. Nessa alteração, Lobato não insere
valores locais, como descreve Venuti (1998) no quadro da domesticação da tradução, mas se preocupa em
alterar a linguagem adotada por outra, com o intuito de se aproximar de uma linguagem de caráter padronizado e
de acordo com a linguagem culta.
Ao pensar por tal viés, volta-se ao questionamento, se tal peripécia é realmente possível, uma vez que diante de
diferentes leitores seria difícil chegar-se a uma representação da linguagem que atendesse a todos. Cassal
(2002), ao discutir essa questão, retoma dois teóricos, John Milton e Irene Hirsch, que apontam para motivações
diferentes para a não reconstituição do texto-fonte na íntegra. A este respeito Milton atesta que a não-reprodução
da linguagem dialetal de algumas obras estrangeiras se deve, tradicionalmente, a uma ausência de registros
orais em nossa literatura. Até o período pré-modernista a literatura brasileira não conhecia o registro oral de
expressões lingüísticas que fugissem da norma padrão.Irene Hirsch aponta para outro agravante: a tradição,
que segundo ela, mantinha-se “na prática tradutória brasileira, de se elevar o registro lingüístico” (HIRSH, apud
CASSAL, 2002, p. 176).
29
A prática lobatiana antecipa questões de mercado e blico. No
entanto, esbarra na expectativa dos leitores que rejeitam os textos que não se
enquadram no perfil idealizado pelo senso-comum para o texto traduzido: fidelidade
incondicional ao texto-fonte.
Ao sugerir uma pedagogia da literatura traduzida, Venuti (1998)
ultrapassa a verificão de diferenças entre o texto estrangeiro e texto traduzido,
fidelidade ou não às fontes, mas atinge a própria tradução, que, para o teórico, deve
ser realizada
focalizando o resíduo, os efeitos textuais que operam somente na
língua-alvo, as formas lingüísticas domésticas que são
acrescentadas ao texto estrangeiro no processo de tradução e que
o contra o esforço do tradutor para comunicar aquele texto
(VENUTI, 2002, p. 183).
Com essa preocupação, Venuti amplia o campo de visão para os
quesitos que compõem o traslado na sua transgressão ao original, descrevendo
itens acrescidos ao texto, oriundos da cultura para a qual o texto está sendo
transplantado, como elementos necessários para a concretização da tradução.
Assim, Venuti permite que a discussão ultrapasse as meras
situações restritas ao ato tradutório e atinja outras como: custo da obra, significado
cultural, tanto da cultura de origem quanto da cultura que terá acesso àquele
referencial, e também a função social desempenhada pelo material traduzido, que
abarca, principalmente, as questões de circulação dos textos literários e as ações
desencadeadas com esse movimento, ou seja, lazer, disseminação de
conhecimento e outros do gênero.
Lobato preocupou-se com as questões de mercado, uma vez que o
desempenho das funções de escritor, adaptador e tradutor influenciou a composição
dos textos, o que veio a resultar em apresentações agradáveis, tanto nos aspectos
de linguagem quanto da própria materialidade, aos leitores. A experiência de editor
permitiu um olhar mercadológico sobre todo o processo editorial, por meio da
modernização das produções e direcionamentos das obras aos leitores da época.
A tradução realizada por Lobato no decorrer de sua vida privilegiou
diversos autores, conseguindo recuperar a estima pública para o gênero, estilo de
produção intelectual até o momento desprestigiada e pouco praticada. Com isso,
30
recebeu, no Brasil, atenção da crítica e circulação entre os leitores, graças ao
cuidado e à materialidade com que eram produzidas as traduções lobatianas.
Monteiro Lobato discute métodos de tradução em sua
correspondência, sistemas esses contrários à teoria benjaminiana da tradução,
como é perceptível no trecho a seguir, no qual sugere ao amigo Godofredo Rangel:
“Vai traduzindo (...) em linguagem bem simples, sempre na ordem direta e com toda
a liberdade. o te amarres ao original em matéria de forma só em matéria de
fundo” (LOBATO, 1968 b, 2 v, p. 232).
todos esses que são repetidos em diversos momentos e
aprovados ou o, garantiram sucesso ao escritor-tradutor também nesse filão do
mercado:
Traduzas em linguagem bem singela (...). traduzirás uns três, à
escolha, e mos mandarás com o original; quero aproveitar as
gravuras. Estilo água de pote, hein? E ficas com liberdade de
melhorar o original onde entenderes. (LOBATO, 1968 b, 2 v, p. 275).
Desse modo, o escritor deixa transparecer suas concepções acerca
do ato tradutório, prática que consistia, na realidade, em uma readaptação do
conteúdo primeiro, transportado para a língua do tradutor. Tal idéia transparece em
sua correspondência ao amigo tamm tradutor, na qual exprime sua satisfação na
ão: “Gosto de traduzir certos autores. (...) Que delícia remodelar uma obra d’arte
em outra língua!(LOBATO, 1968 b, 2 v, p. 246).
A remodelagem de que o escritor-tradutor fala não é algo
descompromissado, porque exige do realizador conhecimento da língua estrangeira
e da materna para o ato de transposição. Procedimento delicado, pois a tradução de
determinados estilos pode não reproduzir a obra original e retratar medianamente o
contexto:
se a tradução é literal, o sentido chega a desaparecer; a obra torna-
se ininteligível e asnática, sem pé nem cabeça (...).
A tradução tem que ser um transplante. O tradutor necessita
compreender a fundo a obra e o autor, e re-escrevê-la em português
como quem ouve uma história e depois a conta com palavras suas.
Ora isto exige que o tradutor seja também escritor decente. Mas os
escritores decentes, que realmente são escritores, isto é, que
possuem o senso inato das proporções, esses preferem e têm mais
vantagens em escrever obras originais do que transplantar para o
português obras alheias (LOBATO, 1950, p. 127-128).
31
Portanto, apreciar os arredores da tradução permite considerar o
papel desempenhado pela obra traduzida no intercâmbio de idéias que corroboram
na formação cultural. Isso porque a literatura traduzida continua a ser um meio para
a divulgação da cultura, tanto das culturas de chegada quanto das de partida.
Desse modo, a integração cultural consiste num veículo
interpretativo, uma vez que agrega ao texto as marcas de leitura do tradutor-leitor, o
que faz com que tal prática seja vista com reserva pela crítica que qualifica a
tradução de acordo com a invisibilidade do tradutor, ou seja, o texto traduzido deve
ser muito próximo ao texto original. No entanto, a própria invisibilidade não pode ser
tida como total, pois o tradutor, enquanto leitor, está sempre promovendo
intervenções, motivadas por sua própria leitura.
Lobato esteve diretamente ligado ao movimento tradutório no país,
promoveu mudanças na própria concepção vigente de tradução e deixou nos textos
marcas de sua leitura e ideologia. Entretanto, o volume de textos traduzidos por ele
levanta questionamentos, como apresenta Azevedo (1997). A volumosa quantidade
de traduções lançadas por Lobato promove a desconfiança quanto à autenticidade
da autoria dessas produções, pois muitos acreditavam que o autor somente
assinasse as traduções, atribuindo-lhes o prestígio de seu nome.
A questão é tratada pelo próprio Lobato com a seguinte resposta:
“Posso ensinar meu método [de tradução] (...). A questão toda é ir para a máquina
de escrever logo que chega o leiteiro e não parar até a hora do almoço. Eles que
experimentem” (LOBATO, apud AZEVEDO, 1997, p. 355 356). Travassos (1974)
enxerga certa procedência na polêmica, ao comparar o volume da criação do autor,
que produziu pouco para os adultos, muito para as crianças e traduziu muito mais
que os dois sistemas de criação anteriores. Isso se deve, segundo Travassos
(1974), ao menor grau de dificuldade que o ofício da tradução oferece, além do
prestígio que seu renome de escritor agregava às traduções que realizava.
Facilidades ou não que o ato tradutório possa oferecer, é perceptível
na própria vida do autor-tradutor que a tradução esteve diretamente ligada à
subsistência do escritor, cuja irregularidade financeira foi amparada pelos recursos
oriundos de seu ofício como tradutor.
A desvalorização do trabalho como tradutor é discutida por Lobato,
que enfrentou diversos empecilhos, críticas e a a falta de retorno pecuniário
adequado, quadro retratado pelo próprio autor, pois, segundo ele:
32
Os editores pagam menos (pela tradução) e o público não lhes
reconhece o mérito. Daí o impasse. (...). Nos países civilizados a
função de tradutor está equiparada à de escritor. Vemos Baudelaire
receber em França tantos aplausos pelas suas traduções de Edgard
Poe como pelos seus versos (LOBATO, 1950, p. 128).
Assim, abre-se margem para mais um impedimento para a prática
tradutória, que além de esbarrar nas problemáticas lingüísticas ainda possui outro
agravante que desmotiva a prática da tradução: a má remunerão dos tradutores.
Além de ser uma atividade complexa e de requerer, de seu executor, uma variada
gama de conhecimentos, depara-se ainda com a falta de reconhecimento, atribuída
apenas aos escritores, devido à marca de originalidade embutida, que não se
estende para os que se dedicam em acessibilizar obras alheias.
Mesmo assim, a tradução esteve vinculada diretamente à vida
pessoal de Monteiro Lobato, servindo de forma de sustento em meio às crises
financeiras por ele enfrentadas no decorrer de sua vida. Além da questão pecuniária,
o autor de bulas (1922) mergulhou no ofício de tradutor como recurso de
relaxamento ou entorpecimento. Tal idéia fica evidente na fala, de 15 de abril de
1940, extraída de um estudo teórico, que abre o presente capítulo na qualidade de
epígrafe, e alude ao ato tradutório o poder de esquecer os problemas
10
enfrentados
pelo autor.
Mesmo com a crítica ressaltando a importância do papel do tradutor
Lobato para a história da literatura brasileira, por meio da ampliação do acesso de
culturas, até eno desconhecidas, o prestígio do autor pode produzir dois efeitos na
recepção de suas traduções. O primeiro deles, apontado por Travassos (1974), seria
o de emprestar, graças a sua influência literária, mérito à tradução realizada. o
outro efeito, de caráter contrário, consiste em atribuir muitas expectativas quanto ao
conteúdo esperado, sem levar em consideração o momento histórico-literário, o
próprio pioneirismo do escritor-tradutor e as expectativas do leitor que podem não
coincidir com os objetivos da tradução da obra literária.
Ao deixar as questões pessoais e vislumbrar o todo, é claramente
perceptível que a popularizão da tradução lobatiana impulsiona a literatura
brasileira positivamente, permitindo que importantes influências passem a fazer
10
Continuo traduzindo. A tradução é minha pinga. Traduzo como o bêbado bebe: para esquecer, para atordoar.
Enquanto traduzo, não penso na sabotagem do petróleo”. AZEVEDO, Carmem Lúcia, et al. Monteiro Lobato:
Furacão na Botocúndia. São Paulo: Senac, 1997, p. 355.
33
parte do repertório literário e cultural do país. Disponibilizar para os leitores tal
universo é uma tarefa necessária, o que faz do papel do tradutor uma ão
benemérita. Isso porque:
a literatura dos povos constitue o maior tesouro da humanidade, e
povo rico em tradutores faz-se realmente opulento, porque acresce a
riqueza de origem local com a riqueza importada. Povo que não
possui tradutores torna-se povo fechado, pobre indigente, visto como
pode contar com a produção literária local (LOBATO, 1950, p.
128).
Lobato é categórico ao constatar que a delicada questão da
tradução tem dois caminhos possíveis: quando construída com materiais de
qualidade, que cumpram com o propósito de divulgar a obra de arte literária além
das fronteiras do país de origem; ou quando essa postura não é respeitada, fazendo
circular materiais de qualidade que não representam o texto-fonte e pulverizam
idéias errôneas sobre o mesmo.
Com tal visão, Lobato destaca que “os tradutores são os maiores
beneméritos que existem, quando bons; e os maiores infames, quando maus. Os
bons servem à cultura humana, dilatando o raio de alcance das grandes obras
(LOBATO, 1950, p. 128), marcando claramente a existência dos dois perfis
possíveis.
Este mesmo autor coloca nas mãos dos editores a responsabilidade
pela qualidade das traduções. A idéia de qualidade, difundida por Lobato, tanto nos
discursos teóricos quanto no ficcional, difere do posicionamento adotado por outros
escritores e teóricos.
Debus (2004) retoma, na relação entre Lobato e o livro, a figura do
Lobato leitor, período que antecede ao escritor e também ao editor Monteiro
Lobato. Isso porque, segundo a pesquisadora, fica claro na própria vida do escritor
que os ofícios assumidos são reflexos da partilha e a comunhão entre quem lê e o
objeto lido, [ação que marcou] (...) muito do que ele realizou como homem das letras
e emprerio do livro” (DEBUS, 2004, p. 27).
A formação alçada graças às condições sociais favoráveis e à
ligação com a produção de livros é incompatível com a realidade socioeconômica
brasileira, que possuía altos índices de analfabetismo, por volta de quase oitenta por
cento e não contava com um público leitor formado. A esse quadro somava-se o
34
culto à cultura estrangeira, principalmente a francesa, prática que limitava ainda
mais a consolidação e valorização da cultura nacional.
O escritor tem a sensibilidade de tentar acessibilizar sua produção
aos dois grupos que representavam o público leitor da época: a elite e o povo.
Desse modo, Lobato motiva a valorização do material impresso, enquanto objeto
portador de histórias de leitura, quadro que liga as funções de autor, tradutor e
adaptador às funções de editor. Assim, para o escritor o referencial escrito
transcende seu papel de promotor da circulação de um determinado material, mas
alça à posição de agente histórico, tanto para a entidade do leitor quanto para a
catarse promovida em tal contato.
O escritor de Taubaté extrapola as questões de âmbito meramente
literário e atinge questões sociais ao ter se notabilizado por suas atrações de caráter
variado, mostrando sua preocupação com problemas sociais que viriam a se
destacar em meados do século XX e início do XXI.
A preocupação com a qualidade da literatura que circularia
ultrapassa a própria obra e atinge também as alheias. Quanto à tradução, em
Miscelânea (1950), bendiz e maldiz os editores conforme suas posturas perante o
ato de traduzir, pois segundo ele “benditos sejam os editores inteligentes que
descobrem bons tradutores, e malditos sejam os que entregam obras-primas da
humanidade ao massacre dos infames ‘tradittores’” (LOBATO, 1950, p. 130, aspas
do autor).
Para Lobato (1950), cabia ao tradutor a tarefa de realizar um bom
trabalho e, ao editor, fiscalizar e garantir para que a qualidade das traduções e
adaptações fosse mantida. Com isso, assegurava-se o cumprimento do papel da
tradução: de acessibilizar a obra literária estrangeira ao leitor.
A necessidade de tornar dispovel o referencial teórico, por meio da
tradução de um texto para outro idioma, abre margem para duas possibilidades:
preservar o estrangeirismo da obra ou torná-la acessível ao leitor fazendo uso da
submissão do texto às influências da realidade, por meio do processo de
domesticação.
Compartilhar a concepção de que a fuga dos referenciais de base é
uma ão inerente à própria arte tradutória, que não permite que o material reescrito
em outro idioma seja aceito como tradução, gerou outras denominações e
35
classificações, originando termos como a adaptação, item a ser discutido na
seqüência.
Retomar as questões que envolvem a teoria sobre a tradução e
tamm a concepção de Lobato sobre a prática tradutória demonstra que se trata de
um procedimento complexo, polêmico e necessário. A retomada, por Lobato, de
textos a partir do recurso da tradução demonstra isso e atesta também outra
questão importante: o caráter cíclico da literatura, que, mesmo sofrendo atualizões
e modificações, durante o ato tradutório, cumpre a missão de propagar o conteúdo
literário, ato também perceptível na adaptação, como se discutirá na seqüência.
1.2 Lobato e as Adaptações
Assim como a tradução, a adaptação retoma textos pré-existentes
com finalidades e públicos específicos. Como discutido anteriormente, os dois
processos, tradução e adaptação, se confundem, uma vez que esse último, visto
como uma forma de transgressão ou domesticação, não possui distinções claras
quando se pretende distingui-lo do primeiro.
Mesmo tendo a transgressão ou domesticação como parâmetro de
distinção entre o adaptar e o traduzir, é difícil separar totalmente os dois recursos
em categorias distintas. Durante o debate aqui empreendido, as ações de adaptação
e tradução são descritas como recursos diferentes, embora Amorim (2005)
reconha uma marcante aproximação entre os dois conceitos.
O processo descrito é muito importante, pois aproxima as produções
do público, ão descrita pelo fisofo Michel Foucault, que diz que a reescrita de
um texto
remete à perda de casualidade dos grandes textos transformados ao
longo do tempo. O desnível entre o texto primeiro e texto segundo
representa dois papéis que são solidários. De um lado, ele permite
construir (e indefinidamente) discursos novos: o desalinhamento do
texto primeiro, sua permanência, seu status de discurso sempre
reatualizável, o sentido múltiplo ou escondido do qual passa a ser
detentor, a reticência e a riqueza essenciais que lhe emprestamos,
tudo isso representa uma possibilidade aberta de falar. (...) O novo
não está no que está dito, mas no acontecimento de seu retorno
(FOUCAULT, 1995, p. 12, grifo do autor).
36
Para o filósofo, a reescrita de um texto é uma ação importante, uma
vez que permite a retomada de um referencial literário, podendo assumir a ótica de
um novo discurso.
A retomada de um texto, sob o processo da adaptação, não deve
diminuir a qualificação do referencial, embora o ato de adaptar seja marcado por
preconceitos. Mesmo a palavra adaptação estando atrelada à consciência de que o
material apresenta modificações, não poda a possibilidade de fidelidade à fonte. Tais
considerações são lidas, uma vez que reforçam a hipótese de que adaptar
determinado referencial não desqualifica a apresentação do novo perante o original.
Partindo do posicionamento adotado pelo filósofo, a adaptação
assume uma qualificação positiva, pois permite que a cultura ultrapasse as fronteiras
de língua, cultura, faixa etária e outras que possam obstruir a circulação dos
referenciais literários. Tornar possível o acesso à arte literária além fronteiras é uma
prática que permite a atualização do referencial, ato que torna possível que a obra
possa dialogar com públicos distintos e em diferentes momentos históricos.
Tanto os recursos de adaptação quanto os de tradução são
construções realizadas a partir dos textos-fontes e apresentam desvios quanto aos
originais. Mesmo assim, é necessário que tenham uma relação com o texto de
partida. Nesse caso, é necessário atentar às questões de fidelidade que, segundo
Amorim, influenciam o texto, que cada um dos recursos de forma diferente a
questão da fidelidade. Na tradução, é cobrada a
fidelidade tanto à forma quanto ao conteúdo, ao passo que, na
adaptação, ocorreria fidelidade apenas ao conteúdo. Em vista disso,
adaptação seria mais “criativa” que a tradução, uma vez que esta
envolveria maior proximidade ou “aderência” em relação aos originais
(AMORIM, 2005, p.78-79, aspas do autor).
Desse modo, é perceptível que a adaptação é mais maleável a
mudanças de acordo com o objetivo pretendido, fazendo que redução, condensação
e enxugamento sejam opções do processo adaptativo. A adaptação seria mais
flexível para modificações. É uma prática, segundo Amorim (2005), envolta em
preconceitos por estar atribuída a violação da integridade do texto original,
característica não necessariamente ligada à adaptação, mas que difundiu uma
relação entre o recurso e os desvios que não se enquadrariam em uma tradução
“fiel”.
37
Definir categoricamente a tradução como uma leitura “fiel” do original
e a adaptação como uma forma “desapegada” do texto-fonte é perigoso, que se
tratam de termos dependentes de seu contexto e variáveis de acordo com ele.
Desse modo, é necessário considerar que os “conceitos de tradução e de adaptação
o concebidos com base em uma instância institucional mais ampla, que influencia
as próprias opções investidas numa reescritura” (AMORIM, 2005, p. 44).
A divulgação, comumente feita das obras quanto à terminologia de
tradução ou adaptação, é carregada de valores e intenções, que abrangem desde
o conceito de tradução e adaptação vigentes em uma determinada
época; a articulação entre a figura do tradutor ou adaptador
responsável pelo texto e os paratextos ou prefácios que enfocam o
resultado do seu trabalho; o lugar que ocupa a obra traduzida entre
os valores da literatura local; e o próprio objetivo mercadológico da
editora (AMORIM, 2005, p. 47).
Isso mostra que a qualificação apresentada pelas instituições o é
uma avaliação cíclica, porque os conceitos sobre ambos o flexíveis e variáveis de
acordo com a instância e o interesse dos responsáveis pela circulação. Tal quadro
se deve à própria nomenclatura de tradução ou de adaptação que pode influir
diretamente no movimento da obra no meio mercadológico. Questão importante,
pois a sobrevida do material literário também depende de sua propagação.
Desse modo, percebe-se que o ato tradutório e o adaptativo e as
relações com o mercado estão intimamente ligadas, enlace que pode tanto, como
mencionado anteriormente, atribuir valor ao texto, como em um segundo momento
causar a depreciação do material. Isso pode ocorrer se o leitor não reconhecer o
material literário como tradução ou adaptação, conforme sua expectativa. Os dois
recursos, segundo Amorim, promovem modificações no texto-fonte, de acordo com
objetivos interpretativos e editoriais, que podem estar em desacordo com os anseios
do leitor.
A discussão sobre o mercado editorial abre caminho para a questão
dos direitos autorais que, inexistentes na tradução, por se tratar de uma reprodução
do original, pode ocorrer na adaptação, pois segundo o autor em foco
os adaptadores tenderiam a receber os direitos autorais das obras
que adaptam sob o argumento de que teriam maior liberdade para
efetuar modificações em suas adaptações, o que justificaria o
38
reconhecimento, pelas editoras, de seu papel autoral (AMORIM,
2005, p. 48-49).
O adaptador se faria mais visível que o tradutor por estar
direcionado a um resultado determinado, que a adaptação opta por determinados
caminhos, eleitos pelo seu realizador. Assim, poderia se pautar nesse argumento
para o reconhecimento de um papel autoral, atribuído de forma relativa ao
adaptador-autor devido às
transformações ou modificações a que os adaptadores teriam direito
ou à permissão de empreender ao adaptarem uma obra estrangeira.
Ao adaptador seria, assim, concedida maior “liberdade” para se
modificar, de acordo com seu ponto de vista e sensibilidade estética,
o texto original, levando-se em consideração o público receptor. A
tradução, por sua vez, por ser mais freqüentemente associada à
condição de uma prática que se aproximaria do literal, não tornaria
possível a inscrição do tradutor, de suas concepções estéticas ou de
uma escrita “pessoal”, naquilo que traduz (AMORIM, 2005, p. 49,
aspas do autor).
A adaptação associada à idéia de liberdade abre caminho para
possibilidades pouco usadas na tradução “fiel”. Como mostra o trecho citado, o
adaptador pode, de acordo com o objetivo, trabalhar o texto original sem a
necessidade de se prender literalmente a ele.
Repensar a teoria discutida a o momento de forma prática é
possível ao direcionar o olhar para a própria literatura. Em seu artigo As Adaptações
dos Clássicos e a voz do Senhor, o escritor Carlos Heitor Cony (2002) descreve o
escritor Monteiro Lobato como pioneiro na arte em adaptar clássicos. Prática que
tornou acessível obras fundamentais para formação humana e literária do
acadêmico, textos esses que são, até os dias atuais, publicados e editados.
O trabalho de adaptação de Lobato foi intenso. Ele resgata inúmeras
referências da cultura ocidental com sensibilidade ao direcioná-las ao blico
específico, valorizando a materialidade, a recepção e a própria relação entre obra e
leitor.
O escritor-adaptador transporta para a realidade nacional os textos
por ele adaptados, pela translação parcial ou total do texto-fonte para o universo de
sua narrativa. A adaptação parcial, marcada, essencialmente, pela própria mudança
lingüística, de forma intencional ou não, agrega valores domésticos ao texto de
39
origem; enquanto a modificação intensa do texto original é vista, nesse estudo, como
a inserção do texto base no universo literário criado pelo autor.
Nesse caso, em especial, tem-se o ciclo do Sítio do Picapau
Amarelo, um conjunto de obras pertencentes à literatura infantil, no qual se
verificam, comumente, a adaptação de obras literárias que se desenvolvem
concomitantemente ao texto de Lobato.
Tal ocorrência é identificada em quase todos os livros da série, ação
desencadeada em diferentes intensidades. Desde o início da saga do Picapau
Amarelo, o livro estreante A menina do Narizinho Arrebitado (1920), mais tarde
rebatizado como Reinações de Narizinho (1920), apresentou inúmeros elementos
resgatados e enfeixados por meio da adaptação.
Assim, elementos do cinema americano, que exerceram fascínios e
influências sobre o autor, como o Gato lix; personagens dos clássicos infantis
como Cinderela, Branca de Neve, o Pequeno Polegar, Barba Azul, Pinocchio, dentre
outros, participam da narrativa lobatiana. Também os fabulistas grego e francês,
Esopo e Jean de La Fontaine, com suas fábulas A cigarra e a formiga e Os animais
e a peste estão na obra inaugural. A reunião dessas personagens e o resgate de
seus contextos são, muitas vezes, questionados no Picapau Amarelo, o que faz que
a adaptação ultrapasse a mera retomada dos elementos existentes, por meio do
questionamento dos valores que representam. Desse modo, as personagens
clássicas, históricas, mitológicas, folclóricas e os enredos dos quais fazem parte são
desconstruídos para, em seguida, serem reorganizados e constituírem uma nova
narrativa.
O estudo desenvolvido privilegiou a adaptação utilizada na reescrita
de Fábulas (1922), livro do qual se retiraram os textos para o trabalho em sala de
aula. As fábulas utilizadas por Lobato são recolhidas, principalmente, de Esopo,
fabulista grego, que viveu no século VI a.C. e Jean de La Fontaine, escritor francês
do século XVII. Essas reescritas consistem na aclimatação das fábulas tradicionais,
ou seja, é uma ão de transposição de elementos nacionais aos textos infantis,
com o intuito de construir uma literatura nacional de qualidade para as crianças. O
desejo de elaborar textos acessíveis e agradáveis para o público infantil é verificável
no seguinte trecho da correspondência de Lobato:
40
As bulas em português que conheço, em geral traduções de La
Fontaine, são pequenas moitas de amora no mato espinhentas e
impenetráveis. Que é que nossas crianças podem ler? Não vejo
nada. Fábulas assim seriam um começo da literatura que nos falta.
Como tenho um certo jeito para impingir gato por lebre, isto é
habilidade por talento, ando com idéia de iniciar a coisa. É de tal
pobreza e tão besta a nossa literatura infantil, que nada acho para a
iniciação de meus filhos (LOBATO, 1968 b, 2 v, p. 104).
A partir de tal concepção, Lobato inicia a reformulação de fábulas,
recolhidas da cultura erudita e popular, que resultaria na sua obra Fábulas, livro no
qual o autor reúne setenta e quatro fábulas, traduzidas e adaptadas e outras escritas
por ele próprio. Embora o texto lobatiano retome os textos originais em matéria de
conteúdo, um diferencial merecedor de destaque e que promove seu viés
moderno. As fábulas, reescritas em prosa, nasceram de fontes construídas
inicialmente em versos. Outra mudança significativa é a alteração do narrador que
deixa de ser onisciente para dar lugar a um narrador que participa da narrativa, no
caso em questão, a narração é atribuída a Dona Benta, seguida do comentário dos
ouvintes. Narizinho, Pedrinho, Emília, Visconde de Sabugosa e tia Nastácia
discutem os textos a partir das concepções de sua época, ora concordando e ora
questionando o conteúdo e a própria ideologia disseminada pelas narrativas.
A adaptação das fábulas lobatianas permite a reflexão acerca do
próprio ato de reescrever, uma vez que, ao modificar os gêneros, de verso para a
prosa, o autor adequou a linguagem de forma a torná-la acessível ao leitor. Além
disso, Monteiro Lobato tamm direcionou as discussões de forma a abranger o
universo infantil, encurtando as distâncias entre obra e leitor.
A modificação de gênero, de verso para prosa, pode ser
acompanhada no seguinte trecho:
Saiu da toca aturdido
Daninho pequeno rato,
E foi cair insensato
Entre as garras de um leão (LA FONTAINE, 2006, p. 65).
Ao sair do buraco viu-se um ratinho entre as patas do leão. Estacou,
de pêlos em pé, paralisado pelo terror (LOBATO, 1973 b, p.49).
Amorim destaca, em seu estudo, uma espécie de transposição
interlingual, ou seja, transposição de um texto escrito em uma língua para outra,
41
estendendo-se até para a transposição de um gênero para outros” (AMORIM, 2005,
p. 78), como a prosa, nero adotado por Lobato. No trecho literário destacado,
nota-se a ocorrência desse tipo de transposição, que o texto, escrito
originariamente em língua francesa, é transposto para a língua portuguesa, utilizada
no Brasil. O exemplo também comporta a transposão de gênero, já que a obra, em
verso, é reescrita em prosa, em sua versão adaptada.
A substituição da leitura do livro pela narração oral, sistema eleito
por Dona Benta, tamm é uma forma de adaptar, por aproximar, por meio da
linguagem, o conteúdo literário. Desse modo, o autor conta com recursos especiais
para acessibilizar o cânone literário. Dona Benta, a vovó do Sítio do Picapau
Amarelo, é um dos instrumentos utilizados, que à semelhança de Lobato,
desempenha o papel de fazer o elo de mediação entre os saberes pulverizados pelo
texto literário e seu receptor, responsável pelo processo de compreensão a ser
concretizado na leitura.
A Dona Benta cabe a missão de mediar o saber para a criaa, por
meio de uma espécie de adaptação, ão notável no seguinte trecho:
– Meus filhos, disse Dona Benta, esta obra está escrita em alto estilo,
rico de todas as perfeições e sutilezas de forma, razão pela qual se
tornou clássica. Mas como vocês ainda não tem a necessária cultura
para compreender as belezas da forma literária, em vez de ler vou
contar a história (LOBATO, 1973 a, p 12).
A personagem tomando para si o papel de mediadora, torna
acessível a arte literária. Nessa tarefa, conta com a ajuda das demais personagens,
que por meio de indagações e questionamentos fornecem à interlocutora os
instrumentos necessários para a explanação dos assuntos abordados.
- Que quer dizer “senão”, vovó?
- Aqui nessa frase quer dizer defeito.
- E por que senão é defeito?
- Porque o modo de botar um defeito nalguém ou nalguma coisa era
sempre por meio de senão” e por fim essa palavra ficou sinônima
de defeito (LOBATO, 1973 b, p.31).
O exemplo citado representa uma peculiaridade da obra lobatiana,
que aborda tanto o literário quanto o pedagógico. Por conseguinte, o se deve
esquecer que, com isso, Monteiro Lobato trabalhou uma de suas grandes
42
preocupações: propiciar referenciais a seus leitores mirins, não se limitando somente
em informar, mas também em formar as crianças por meio de mecanismos que
dialogassem com seu universo.
Devido a essas condições, o amadurecimento da leitura da obra de
Monteiro Lobato nos círculos de educação e de iniciação de leitores merece atenção
especial por representar, como se discutirá nos capítulos subseqüentes, uma
continuidade, que representa o campo significativo responsável pela formação da
hisria literária, como atesta a Teoria da Estética da Recepção, acerca da obra lida.
Portanto, torna-se necessário analisar como a retomada, por meio
da adaptação e/ou tradução, de elementos culturais pré-existentes pode influenciar
na ação real de leitura, questão norteadora da pesquisa empreendida, que parte da
análise, neste primeiro capítulo, dos quesitos responsáveis pela modelação e
reformulação do texto literário.
1.3 A Paródia: uma Forma de Adaptar
Na busca de meios para elaborar uma tradução ou adaptação,
outros recursos surgem como ferramentas de construção do texto literário. Desse
modo, a paródia é um instrumento que pode ser utilizado na prática adaptativa, pois
a recorrência a textos clássicos, folclóricos, mitológicos e históricos, usada na
constituição da obra lobatiana, é construída, diversas vezes, por meio desse
recurso.
Para tentar entender esse elemento, adota-se, nesse trabalho, como
perspectiva crítica, a obra teórica Uma Teoria da Paródia (1985) de Linda Hutcheon.
A escolha da obra da autora justifica-se, uma vez que se mostra proveitosa para
empregar a respectiva teoria e realizar a análise, objetivo da dissertão, a ser
apresentada no terceiro capítulo.
Alguns teóricos preferem outro recurso, a intertextualidade, teoria
discutida principalmente por Julia Kristeva
11
; outros tratam a paródia e a
intertextualidade como sinônimos. Contudo, a presente dissertação privilegia a
definição de Hutcheon que distingue os dois conceitos e não concebe a
11
A intertextualidade é a relação discursiva que os rios textos entretecem com um novo texto, através de
citações, alusões, comentários, ou afinidades temático-ideológicas e ou formais. PAZ, Olegário; MONIZ, Antonio.
Dicionário Breve de Termos Literários. Lisboa: Editorial Presença, 1997, p. 119.
43
intertextualidade como sinonímia de paródia, definindo a primeira como um elemento
de descodificação do texto, enquanto a última, estaria ligada ao processo de
constituição, propriamente dito, do texto (HUTCHEON, 1985, p. 35).
Seja na concepção de uma obra literária ou no contato entre texto e
leitor, a tentativa de retomada de uma realidade pré-existente é uma prática comum.
Segundo filósofos da escola francesa, como Foucault e Derrida, é imprescindível
observar-se que o texto é uma prodão em movimento, que existe relação entre as
diversas escritas:
as fronteiras de um livro nunca ficam bem definidas: por trás do título,
das primeiras linhas, do último ponto final, por trás de sua
configuração interna e de sua forma autônoma, ele fica preso num
sistema de referências a outros livros, outros textos, outras frases: é
um dentro de uma rede (FOUCAULT, apud HUTCHEON, 1991, p.
165).
Desse modo, percebe-se que os textos estão ligados, pois
participam de um processo de construção histórica, uma vez que a produção é fruto
da própria circulação dos referenciais literários. Assim, os textos são retomados,
recriados e recontados no decorrer do tempo, fazendo com que a literatura seja um
processo dinâmico e ultrapasse fronteiras, barreiras de idade, cultura e ngua por
meio de um procedimento que adapte, traduza e reconte.
Kristeva também afirma que toda a narrativa “se constrói como
mosaico de citações, todo o texto é absorção de um outro texto(KRISTEVA, 1974,
p 64). Portanto, toda a obra possui uma ligação, ao influenciar a constituição da
literatura, e essa, por sua vez, direciona a produção literária, seja por meio da
propagão do cânone literário ou da ruptura e formação do novo.
Sant’anna (1991), por sua vez, afirma que o texto é:
(...)algo sempre em movimento, que há uma correlação entre as
diversas escritas, e que a única maneira de se aproximar o quanto
possível de uma certa verdade é estar preparado para ler todos os
artifícios que os textos nos preparam (SANT’ANNA, 1991, p. 72).
Para que essa aproximação se concretize, muitos instrumentos de
produção textual surgiram no decorrer do tempo, sendo de interesse do presente
estudo, como já foi dito, a paródia. Para entender a ocorrência e o alcance desse
instrumento de aproximão e ao mesmo tempo de criação observar-se-á como ela
44
acontece na obra literária e também como pode influenciar a interação do leitor com
o texto.
Desse modo, o debate aqui suscitado discute uma vertente dessa
temática ao trazer à tona a questão da paródia presente na obra infantil do escritor
Monteiro Lobato e, assim, observar como o uso desse recurso pode interferir na
situação de leitura propriamente dita, no processo de recepção do texto literário.
A paródia foi e é utilizada por escritores, mas continua sendo
criticada por um grupo de críticos e escritores desde o início até os dias atuais, fatos
que atribuem ao recurso constantes juízos de valor. No entanto, é a sua existência
no decorrer do tempo e, principalmente, sua utilidade na promoção do ressurgimento
de textos do passado, que fomenta o caráter cíclico da arte literária, que embora se
renove constantemente, busca nos textos consagrados, e tamm na cultura
popular, temas e motivos para sua composição.
Ao acompanhar a literatura sobre o desenvolvimento da paródia, em
diferentes épocas e lugares, é perceptível que o seu sentido mudou, adaptando-se
às exigências de cada momento histórico. No início, o sentido primitivo da paródia
estava ligado diretamente a poemas narrativos de extensão moderada, que utilizam
metro e linguagem épicos, mas fundamentados em um tema trivial.
No século XIX, o interesse era por uma paródia específica e
ocasional aos poemas e novelas do Romantismo tardio que forneceu uma fonte de
opinião contemporânea sobre o referencial literário. Nesse momento, a união de
elogio e censura faz da paródia uma ação de reavaliação e acomodão. A paródia
abrangia a tipos variados de textos, depositando crédito na bagagem cultural de
seus leitores.
O crítico literário Gerard Gennette (apud HUTCHEON, 1985) tentou
limitar a paródia a textos curtos como poemas, provérbios, trocadilhos e títulos, mas
a paródia moderna não fez caso desta limitação, como não o faz da definição restrita
de Genette da paródia como transformão mínima de um texto, embora seja óbvio
que partes de uma obra podem ser paródicas sem que todo seu texto seja rotulado
dessa maneira.
No século seguinte, a credibilidade na figura do leitor cede lugar a
uma desconfiança no conhecimento dos leitores, ação que os obrigava a trabalhar
no sentido de readquirir a herança literária ocidental, fazendo do gênero um dos
45
modos de construção formal de textos, com implicações de caráter cultural e
ideológica.
A paródia utiliza a ironia e o humor como formas de resgate dos
textos. Ao se acentuar, por meio do cômico, as particularidades do texto-fonte
realçam-se também as semelhanças e diferenças entre os dois, texto primeiro e
versão paródica.
Contudo, o alcance do significado, que pode se atingido ao se reaver
o texto de partida, depende da realização de sua interpretação. Esse,
principalmente, quando se trata das paródias modernas, envolve elementos que
ultrapassam o texto em si (o texto como entidade semântica e sintática) para chegar
à descodificação da intenção irônica do agente codificador. Ou seja, é necessário
que o leitor entenda a ironia para que ela concretize a intenção disseminada por seu
uso, muitas vezes inacessíveis para o leitor mais jovem, parte do público leitor de
Lobato.
O contraste entre o que é afirmado e o que é significado o reside
na única função da ironia. O seu outro papel de importância maior a nível
pragmático freqüentemente vem sendo tratado como se fosse demasiado óbvio
para justificar uma discuso: a ironia julga, pois sua função pragmática consiste em
sinalizar uma avaliação, muito comumente de natureza pejorativa.
Na obra infantil de Lobato, pode-se observar a ironia como presença
marcante, pois é, muitas vezes, a forma de questionar valores disseminados pelas
obras originais. na versão lobatiana esses valores são questionados e, em
diversos momentos, têm suas verdades desconstruídas e reconstituídas.
O recurso é um dos meios utilizados pelo parodista na propagação
de suas intenções e mensagens, pois para entendê-la o leitor tem que desvendar a
intenção codificada no texto. Portanto, a padia é igualmente um gênero sofisticado
nas exigências feitas aos seus praticantes e intérpretes. O codificador e, depois, o
receptor, têm de efetuar uma sobreposição estrutural de textos que incorpore o
antigo no novo, constituindo um texto de difícil acesso para o leitor em formação.
A necessidade básica de competência lingüística é indispensável
para a recepção textual, principalmente onde a ironia está envolvida, pois cabe ao
leitor entender o que es implícito, bem como aquilo que é realmente afirmado.
Dessa maneira, sendo a ironia um mecanismo retórico utilizado pela paródia, o leitor
necessita ter competência, bem como conhecimentos das normas retóricas e
46
literárias que permitam o reconhecimento do desvio dessas normas constituintes do
none - a herança constitucionalizada da língua e da literatura.
Para Hutcheon (1985) a não descodificação, por parte do leitor,
prejudica a acessibilidade à intenção dos textos, ou seja,
se o leitor não consegue reconhecer uma paródia como padia (já
por si uma convenção estética canônica) e como uma paródia a uma
certa obra ou conjunto de normas (no todo ou em parte), então falta-
lhe competência. Talvez seja por esta razão que a parodia é um
gênero que, como vimos, parece florescer essencialmente em
sociedades democráticas culturalmente sofisticadas (HUTCHEON,
1985, p. 119, grifo da autora).
Por isso, constata-se que para a compreensão da paródia e da
ironia, esta última, desencadeada como mecanismo interpretativo, faz-se necessário
um conjunto de valores institucionalizados de alcance estético, ou seja, genéricos,
ou sociais, portanto de alcance ideológico e inadequados ao leitor mais jovem que
apresenta dificuldade para lidar com um campo significativo o complexo. Esses
requisitos são necessários para a compreensão dos recursos e deles também
dependem sua existência, uma vez que o domínio dos protocolos de codificação e
compreensão garante a formão do texto e a acessibilidade a ele.
A ironia pode ser o principal mecanismo retórico para despertar a
consciência do leitor para o texto, já que participa no discurso paródico como uma
estratégia para o alcance real do significado almejado pelo parodista, sendo uma
forma sofisticada de expressão. Diante do exposto, pode-se, então, ressaltar a ironia
como um recurso estistico de grande importância, o qual os escritores podem
lançar mão para elucidar situações e, conseqüentemente, suas narrativas.
É difícil separar estratégias pragmáticas de estruturas formais,
quando se fala da ironia ou da paródia, pois uma implica a outra. Por outras
palavras, uma análise puramente formal da paródia, enquanto relacionamento de
textos, não fará justiça à complexidade destes fenômenos; o mesmo acontecerá
com uma análise puramente hermenêutica que, na sua forma mais extrema, vê a
paródia como criada por “leitores e críticos, e não pelos textos literários em si”
(HUTCHEON, 1985, p. 50).
Tanto a ironia quanto a paródia operam em dois níveis um,
superficial ou primeiro plano; e outro, denominado plano de fundo. Mas desse último,
47
em ambos os casos, deriva o seu sentido do contexto no qual se encontra. Assim, o
sentido final da ironia ou da paródia reside na sobreposição desses níveis e este
caráter duplo, tanto da forma como do efeito pragmático, faz da paródia, segundo
Hutcheon, um modo importante de moderna auto-reflexividade na literatura.
Um exemplo disso é a obra Reinações de Narizinho (1920) que faz
referência a diversos textos e figuras como os clássicos infantis, os fabulistas Esopo
e Jean de La Fontaine e algumas de suas fábulas entre outros exemplos. Contudo,
os usos feitos pelo autoro representam uma paródia completa das fontes citadas,
mas ajudam a construir o mosaico que será o texto lobatiano.
O trecho apresentado a seguir traz trechos paródicos que retomam
narrativas pré-existentes. Ele destaca a visita das crianças, Pedrinho e Narizinho,
que acompanhados de Emília e Visconde e guiados por Peninha, o menino invisível,
observam o desenrolar de um texto fabular, A cigarra e a formiga, e conversam com
os autores, La Fontaine e Esopo, chegando a interferir no desenvolvimento da
narrativa. A paródia, nesse caso, é marcada pela reconstrução do texto primeiro, a
saber, a fábula A cigarra e a formiga:
(...)” Cantou enquanto era môça e sadia? Pois dance agora que
está velha e doente, sua vagabunda!”
E – Plaft! Deu-lhe com a porta no nariz.
A triste cigarra, com o nariz esborrachado, ia pendendo para trás
para morrer quando Emília a susteve.
-Não morra, boba! Não esse gosto para aquela malvada. (...) Em
vez de morrer, feito uma idiota, ajude-me a preparar uma boa forra
contra a formiga. (LOBATO, 1973 e, p. 139)
A fábula retratada não representa toda a obra Reinações de
Narizinho (1920), mas mostra que o autor usa elementos, no caso citado as
personagens fabulares, a cigarra e a formiga, para construir, a partir da párodia, uma
parte da história, embora o objetivo não seja parodiar a fábula em sua totalidade,
mas sim buscar elementos que auxiliem a construção do novo texto.
Outras obras do escritor, no entanto, representam totalmente as
fontes a que fazem referência. Fábulas (1922) é um exemplo disso, pois retoma
textos que são, muitas vezes, reconstruídos e, em alguns momentos, parodiados na
íntegra, como acontece com esta mesma fábula.
A cigarra e a formiga é a primeira fábula do livro citado. Nessa obra,
o texto é ampliado, recebe o título de A cigarra e as formigas, mostrando por meio
48
da flexão de grau a presença de uma terceira personagem, a segunda formiga. A
nova versão, desmembrada em duas partes, apresenta, como indica cada título,
desfechos distintos.
A primeira delas, A formiga boa, foge do original à medida que a
caracterização da carrasca, a formiga, responsável pela morte da cigarra, é
construída de maneira humanizadora, pois a mesma acolhe a cigarra no mau tempo,
ão que desencadeia, por meio da paródia, um outro final para a narrativa. “A
cigarra entrou, sarou da tosse e voltou a ser a alegre cantora dos dias de sol”
(LOBATO, 1973 b, p. 11).
A segunda parte, intitulada A formiga , reproduz, à semelhança
do original, o enredo do texto primeiro. Entretanto, o autor insere elementos que
particularizam a reescrita: “Mas a formiga era uma usurária sem entranhas. Além
disso, invejosa. Como não soubesse cantar, tinha ódio à cigarra por vê-la querida de
todos os seres” (LOBATO, 1973 b, p. 11). Nessa caracterização há a presença da
ironia na descrição da formiga: “usurária sem entranhas” e “invejosa”.
Mesmo servindo de auxílio na constituição de novos textos, como
demonstrou o exemplo apresentado, Hutcheon (1985) discute a idéia negativa sobre
o gênero apresentada por parte da crítica literária a o período romântico, que
difundia, constantemente, a idéia de que esse recurso era parasitário, derivativo e
prejudicava a originalidade e a constituição do novo texto. No entanto, a própria
autora rebate tal afirmação, por acreditar ser provável que a rejeição romântica das
formas paródicas, como parasitária, refletisse uma ética capitalista emergente por
fazer da literatura uma mercadoria que se imaginava propriedade de um indivíduo,
seu autor.
Nesse contexto, as leis de direito de autoria promoveram processos
de difamão contra parodistas, temendo prejuízos econômicos promovidos pelo
texto paródico em detrimento do original. Lobato reconstrói os textos que parodia e
não se limita às fronteiras do texto de origem como na reescrita de bulas.
Portanto, é necessário afirmar que a paródia é um importante elo de
aproximão com a herança do passado. Isso porque
os artistas modernos parecem ter reconhecido que a mudança
implica continuidade e oferecem-nos um modelo para o processo de
transferência e reorganização desse passado. As suas formas
paródicas, cheias de duplicidades, jogam com as tensões criadas
pela consciência histórica. Assinalam menos um reconhecimento da
49
insuficiência das formas definíveis dos seus precursores que o seu
próprio desejo de pôr a ‘refugiar’ essas formas, de acordo com as
suas próprias necessidades (MARTIN, apud HUTCHEON, 1985 p.
14-15, aspas do autor).
Como assinala a definição moderna de paródia, apresentada por
Hutcheon (1985), o gênero é uma forma de repetição que inclui diferença, imitação
com distância crítica, cuja ironia pode beneficiar e prejudicar ao mesmo tempo. Tal
definição mostra o recurso paródico não como simples apropriação de um texto, e
sim como a construção de um novo, rebatendo as críticas que a acusam de
parasitária.
Fábulas (1922), de Lobato, é um exemplo de reconstrução, permitido
pela paródia, de um novo texto que, embora fruto da herança cultural, reconstrói um
novo enredo, a partir de elementos do texto-fonte.
Desse modo, ressalta-se que a padia é uma importante forma da
moderna auto-reflexividade, por ser um discurso interartístico que age como
integradora de diferentes expressões de arte e cultura.
A paródia é, pois, tanto um acto pessoal de suplantação, como uma
inscrição de continuidade histórico literária. Daí surgiu a teoria dos
formalistas acerca da teoria da paródia na evolução ou mudanças
das formas literárias. A paródia era vista como uma substituição
dialética de elementos formais cujas funções se tornaram
mecanizadas ou automáticas. (...) Uma nova forma desenvolve-se a
partir da antiga, sem na realidade a destruir; apenas a função é
alterada. A paródia torna-se, pois, um princípio construtivo na história
literária (HUTCHEON, 1985, p. 52).
É fundamental perceber que a paródia não é apenas aquela imitação
ridicularizadora, mencionada nas definições dos dicionários populares. Superar esta
limitação do seu sentido original é um desafio essencial para que se descubra uma
teoria adequada à realidade do recurso no circuito das produções literárias.
Assim, é uma forma de imitação caracterizada por uma inversão
irônica, nem sempre à custa do texto parodiado, pois essa é uma característica de
toda a paródia. Do mesmo modo, a crítica não tem de estar presente na forma do
riso ridicularizador, como na fábula A formiga boa, para que a paródia seja
apontada.
A paródia em termos semióticos pode ser definida como uma forma
de representação de uma realidade original. Geralmente, a representação é de
50
caráter cômico e expõe os mecanismos e convenções do modelo. A similitude com o
original divide a crítica no tocante à qualificação do recurso, pois, para alguns, a
paródia faz o original perder em poder ou parecer menos dominante; para outros,
a paródia é a forma superior, porque faz tudo o que o original faz – e mais ainda.
Para a autora
a pressuposição quer de uma lei, quer da sua transgressão, bifurca a
pulsão da paródia: ela pode ser normativa e conservadora, como
pode ser provocadora e revolucionária. A paródia é normativa na sua
identificação com o outro, mas é contestatória na sua necessidade
edipiana de distinguir-se do anterior (HUTCHEON, 1985, p. 98).
Esse recurso, dependendo da criatividade do escritor, possibilita
apontar a literariedade no texto, pois pode originar uma outra narrativa contra a qual
a nova criação deve ser, implícita e simultaneamente, medida e entendida.
No caso de Lobato, pode-se retomar como exemplo o texto
Reinações de Narizinho (1920), no qual o encontro entre as personagens do sítio e
as pertencentes ao universo das fábulas acontece por iniciativa das crianças, que se
deslocam até o país das Fábulas. Nesse ambiente, a realidade ficcia mescla-se ao
universo das próprias narrativas. Nessa narração é perceptível uma história
totalmente nova que surgiu dos textos de base.
Para que tal construção seja entendida pelo leitor, a paródia exige
que ele construa um segundo sentido, fazendo uso de inferências sobre afirmações
superficiais e complemente o primeiro plano (a história lobatiana), com
conhecimento e reconhecimento de um contexto existente ao fundo (as fábulas
clássicas).
Com tal manejo o autor buscou levar
às crianças o conhecimento da Tradição, o conhecimento do acervo
herdado e que lhes caberá transformar; e também questionar, com
elas, as verdades feitas, os valores e não valores que o Tempo
cristalizou e que cabe ao Presente redescobrir ou renovar (COELHO,
1987, p 358).
Tal qual um ourives, o autor do Sítio do Picapau Amarelo trabalha os
mitos, a partir de outros textos, seja sob a forma de resgatar personagens,
situações, mitos e outros aspectos, tal fator permite que elementos de outros
espaços e culturas contracenem em uma nova narrativa.
51
A prática clássica de citar grandes obras do passado visava tomar de
empréstimo parte de seu prestígio e autoridade, mas, para que isso
acontecesse, partia igualmente do princípio de que o leitor
reconheceria modelos literários interiorizados e colaboraria no
complementar do circuito da comunicação – de uma memória erudita
para outra (HUTCHEON, 1985, p. 118).
Textos como o clássico Dom Quixote de la Mancha, de Miguel
Cervantes, que conseguem libertar-se do texto de fundo o suficiente para criarem
um texto independente sugerem que a paródia, como síntese, poderia ser um
protótipo do esgio de transição nesse processo de desenvolvimento das formas
literárias. Assim, Dom Quixote é o exemplo que aponta, segundo Foucault (1970,
apud HUTCHEON, 1985), a separação entre o epistema moderno e o renascentista
porque o romance parodia as novelas de cavalaria do Renascimento, dando-lhe uma
visão moderna.
Esse tipo de paródia realizado por Cervantes é retomado por Lobato,
por meio de uma adaptação da obra espanhola, como é notável na reescrita de Dom
Quixote das crianças (1936). Ao retomar o clássico da literatura universal, o autor
reconta, por meio da narração de Dona Benta, as famosas aventuras do cavaleiro
andante - Dom Quixote - e de seu fiel escudeiro - Sancho Pança. Na versão
lobatiana, Emília entusiasmada resolve imitar o herói, e depois de realizar atitudes
inconvenientes acaba sendo aprisionada por tia Nastácia em uma gaiola, à
semelhança do herói de Cervantes, vitimado pela loucura. Nessa ocorrência
destaca-se a paródia ao texto espanhol, que na versão brasileira retoma a loucura
vivenciada pela personagem, Dom Quixote, cujo resultado é a morte, e Emília, que
sofre, como castigo, o cárcere. A reclusão da Marquesa de Rabicó abandona o viés
trágico adotado por Cervantes e é retratada com extremo humor, peculiaridade do
texto paródico, pois a boneca é aprisionada em uma gaiola de aves.
Portanto, desde o título percebem-se as intenções do escritor de
Taubaté em aproximar o clássico dos leitores infantis, ação concretizada por meio
da adaptação e essa, por sua vez, fazendo uso da paródia. As mudanças entre as
duas obras são percebidas desde o título, que nonone literário universal é
constituído pela locução adjetiva de la Mancha, elemento de informação no texto de
Cervantes, pois aponta as origens da personagem. Na versão brasileira, a
construção é trocada pelo adjunto adnominal das crianças, deixando clara sua
52
intenção de reescrita, adequando o conteúdo canônico de forma que o publico
infantil também pudesse usufruir dessa obra.
Nas obras do século XX, é perceptível que nem sempre o texto de
origem é o alvo da paródia, pois criticá-lo não é o foco do exemplo citado. Muitos
textos parodiados por Lobato são, durante o processo de resgate, homenageados
pelo autor que os ressuscita para o público. Outra mudança no enfoque da paródia é
o fato de que nem sempre ela conduz à ironia da obra parodiada. Dom Quixote de
Cervantes ironiza os romances de cavalaria, no entanto, a narrativa lobatiana retoma
a visão propagada pelo autor espanhol, não sendo a obra de Cervantes alvo da
ironia de Lobato, pelo contrário, a obra é constantemente elogiada:
- Este livro disse ela é um dos mais famosos do mundo inteiro.
Foi escrito pelo grande Miguel Cervantes Saavedra... (...)
Esta edição foi feita em Portugal muitos anos. Nela aparece a
obra de Cervantes traduzida pelo famoso Visconde de Castilho e
pelo Visconde de Azevedo. (...)
- O Visconde de Castilho foi dos maiores escritores da ngua
portuguesa. É considerado um dos melhores clássicos, isto é, um
dos que escreveram em estilo mais perfeito. Quem quiser saber o
português a fundo, deve lê-lo – e também Herculano, Camilo e outros
(LOBATO, 1973 a, p. 10).
Elogios à parte, Lobato mostra em seu discurso que embora a obra
de Cervantes deva ser valorizada, ela é muitas vezes inacessível, devido à distância
temporal, geográfica e lingüística. Assim, a adaptação, permitida por meio da
paródia, rompe as barreiras do tempo, distância e língua.
A paródia moderna nos faz ver a existência de mais motivos para
citar do que as definições do gênero estão dispostas a considerar. Tanto que muitos
não acreditam na paródia que não ridiculariza o texto de origem, idéia que vai de
encontro a toda a tradição de paródia.
Theodor Verweyen (1979) aponta dois tipos de paródia:
a primeira seria aquela que se define graças a sua natureza cômica e
a outra estaria ligada à acentuação da função crítica. Nos dois casos
se ressalta o conceito de ridículo definido como subgênero do
mico, a paródia torna o seu modelo caricato: esta é uma tradição.
Mas mesmo como departamento de crítica pura a paródia exerce
uma função conservadora, e -lo através do ridículo, mais uma vez.
A padia também age como crítica artística séria, embora sua
acutilância continue a ser conseguida através do ridículo.
Reconhecidamente, como forma de crítica, a paródia tem a
vantagem de ser simultaneamente uma recriação e uma criação,
53
fazendo da crítica uma espécie de exploração activa da forma. Ao
contrário da maior parte da crítica, a paródia é mais sintética que
analítica na sua transcontextualização econômica do material que lhe
serve de fundo (apud HUTCHEON, 1985, p.70).
A definição de Verweyen enquadra-se em dois exemplos retirados
da produção de Lobato. Dessa maneira, Lobato deixa transparecer a natureza
mica presente no texto, ao resgatar uma passagem da obra O Picapau Amarelo
(1939) em que Dom Quixote monta o burro Conselheiro ao invés de seu cavalo
Rocinante e pensa que o engano seria obra de um feiticeiro. O acontecimento,
resgatado sob a forma de memória, é base para a exemplificação da moral de uma
das fábulas do livro de 1922.
(...) É o que ainda acaba acontecendo para Emília. Vai dizendo as
verdades mais duras na cara de toda a gente e um dia estrepa-se.
Lembra-se vovó, do que ela disse para D. Quixote, naquela vez em
que o herói montou no Conselheiro por engano e ao perceber isso
pôs-se a insultar o nosso burro? E se D. Quixote a espetasse com a
lança?
- Emília sabe o que faz observou D. Benta. A esperteza chegou ali
e parou. Ela sabia muito bem que o cavalheiro da Mancha era
incapaz de ofender uma “dama” e por isso abusou...
Emília rebolou-se toda ao ouvir-se classificada de dama... (LOBATO,
1973 b, p. 22, aspas do autor).
O texto citado consiste em retomar, à semelhança do texto clássico,
a personagem espanhola, enredos e situações, em uma nova aventura. Mesmo
sendo um texto escrito no século XX, encarrega-se de resgatar a cultura clássica de
modo a preservá-la e propagá-la.
No exemplo citado, a padia está construída no resgate feito ao se
retomar a personagem Dom Quixote, inserindo-a no texto infantil. No caso
apresentado, a retomada do clássico ultrapassa a mera adaptão do texto, pois
ocorre a construção de um novo, no qual se retomam fatos e personagens em um
novo enredo.
Constata-se, então, que o resgate do cânone, propiciado por
Monteiro Lobato em seus textos, é fundamental para a circulação de informões
culturais. Assim, como afirma Lajolo, a cultura:
(...) sobrevive, e não nos objetos e textos que nos legou.
Sobrevive também na herança cultural que permeia nosso hoje e, de
forma talvez mais viva, nas sucessivas re-interpretações que seu
54
modo de vida inspirou, e parece continuar inspirando (LAJOLO,
2001, p. 50).
No entanto, o resgate cultural é marcado pelo humor, como mostra o
trecho destacado de Fábulas, que apresenta o texto canônico como uma maneira de
aproximão com a herança do passado, a partir de um processo de transferência e
reorganização desse passado.
O outro tipo de paródia, segundo Verweyen (apud HUTCHEON,
1985), paródia enquanto crítica ao texto parodiado, também pode ser observada
com abundância no livro Fábulas. No entanto, ao recontar as fábulas, o autor as
adapta à realidade do momento, situação que acaba por criticar o contexto e as
idéias propagadas pela narrativa, como também criticar a realidade vivenciada. A
crítica ao contexto da fábula pode acontecer de duas formas distintas: crítica ao
conteúdo propriamente dito ou reforço da crítica propagada pelo texto.
O primeiro caso pode ser verificado na reescrita da bula A e o
boi, história que narra a conversa entre uma e uma saracura, que tomavam sol à
beira de um bebedouro. Com a aproximação de um boi, a afirma para a
interlocutora que pode ficar do tamanho do animal que observam. Ela se enche de
ar até estourar, o que fornece motivo para a moral, pronunciada pelo boi que
observava a cena: - Quem nasce para dez réis não chega a vintém (LOBATO,
1973 b, p. 13).
A crítica é feita após a narração da fábula por Dona Benta, por meio
da contestação da boneca Emília: - Não concordo! – berrou Emília. Eu nasci
boneca de pano, muda e feia, e hoje sou até ex-marquesa. Subi muito. Cheguei a
muito mais que vintém. Cheguei a tostão...” (LOBATO, 1973 b, p. 13). Nesse caso,
se a fábula propaga o conformismo ao sugerir, tanto no enredo quanto na
moralidade, a impossibilidade de mudança do indivíduo, Lobato, na discussão que
sucede a contação narrativa, desconsti tal idéia, por meio da contestação
apresentada por Emília.
Na fábula O velho, o menino e a mulinha encontra-se a crítica feita
aos costumes da época, reforçando os questionamentos levantados na narrativa,
pois neste texto pai e filho colocam-se a caminho da cidade com a intenção de
vender um animal de sua propriedade. No caminho acatam os comentários dos
transeuntes e descobrem ser impossível agradar ao mundo, decidindo, a partir de
55
então, seguir os próprios desejos. A crítica nesse caso é alcançada com a aceitação
da moral do texto, reforçada, como se pode observar, no diálogo que segue a
narração:
- Isto é bem certo – disse Dona Benta. Quem quer contentar o
mundo, não contenta ninguém. Sobre todas as coisas sempre
opiniões contrárias. Um acha que é assim, outro acha que é assado.
- E como então a gente deve fazer? – perguntou a menina.
- Devemos fazer o que nos parece mais certo, mais justo, mais
conveniente. E para os guiar temos a nossa razão e a nossa
consciência. (...) A primeira parte dum verso de Shakespeare: “E isto
acima de tudo: sê fiel a ti mesmo. Bonito, não?’ (LOBATO, 1973 b, p.
16, aspas do autor).
Para que o texto acima seja entendido como paródico existe a
necessidade de se compartilhar os digos da paródia. Nesse exemplo, as
referências são múltiplas, pois é feito o resgate da fábula clássica, da qual é
acrescido um verso de Shakespeare para reforço da moralidade da fábula, que
serão compreendidos, caso o leitor conheça as referências citadas.
A presença do recurso paródico na obra lobatiana influencia sua
recepção, questão de interesse para os estudos modernos. Lobato retoma
personagens e situações que fazem parte do conhecimento do universo infantil e
quando não, como no caso dos elementos mitológicos e históricos, o autor oferece
mecanismos para que a criança construa sentido em sua leitura. Isso porque ele
coloca, na boca das personagens, as indagações que as crianças poderiam vir a ter
durante o momento de leitura e por meio dos esclarecimentos prestados pelas
próprias personagens o conhecimento é construído.
A paródia é um gênero sofisticado nas exigências que faz aos seus
praticantes e intérpretes. O narrador e, depois, o receptor, têm de efetuar uma
sobreposição estrutural de textos que incorpore o antigo no novo, como é
perceptível no exemplo a seguir:
- Bem feito! – exclamou Emília. Essa raposa merece um doce. E com
certeza o tal lobo era aquele que comeu a avó de Capinha Vermelha.
Boba! Aquele foi morto a machadadas pelo lenhador disse
Narizinho.
- Eu sei tornou Emília mas nas histórias a matança nunca é
completa. Nunca o morto fica bem matado e volta a si outra vez.
Você viu no caso do Capitão Gancho. Quantas vezes Peter Pan deu
cabo dele? E o Capitão Gancho continua cada vez mais gordo e
ganchudo (LOBATO, 1973 b, p. 29)
56
Exemplos como o trecho retirado de bulas (1922) exigem que o
leitor construa um segundo sentido, por meio de inferências acerca de afirmões
superficiais e complemente o primeiro plano com conhecimento e reconhecimento
de um contexto em fundo.
Assim, é importante que o leitor compreenda a inserção de
elementos dos cssicos infantis, como os utilizados no livro, para entender seu uso.
Desse modo, Capinha Vermelha, ou Chapeuzinho Vermelho como é mais
conhecida, Capitão Gancho e Peter Pan permitem dois avanços: tanto o resgate do
clássico quanto o aprimoramento do instrumento de escrita moderna ao reescrever o
passado, dando-lhe novo contexto e sentido.
Isso reforça a hipótese levantada anteriormente de que a obra
lobatiana represente um desfile de personagens do cânone literário, sejam de
origem mitológica, clássica, histórica ou folclórica, resgatadas, muitas vezes, pelo
processo da paródia. As obras lobatianas, em especial a obra analisada pela
pesquisa em questão, Fábulas, retoma fatos e personagens. No entanto, essa
retomada é marcada pela diferença propiciada pela nova produção. Esse exemplo
demonstra
uma via importante para que os artistas modernos cheguem a acordo
com o passado através da recodificação irônica, ou, segundo o
meu bizarro neologismo descritivo, “transcontextualizem”. Os seus
antecedentes históricos são as práticas clássicas e renascentistas da
imitação, se bem que com maior ênfase na diferença e na distância
do texto original ou conjunto de convenções. Dado que defini a
paródia como repetição com diferença (HUTCHEON, 1985, p.128,
aspas da autora).
A obra Fábulas marca bem a repetição, mas com diferença, uma vez
que ao retomar as personagens clássicas o autor cria uma nova fábula, marcando a
diferença na repetição dos clássicos.
É essencial ter em mente que quando se classifica um texto como
paródia, se postula alguma intenção codificadora. Todavia, o texto pode implicar o
que lhe aprouver, e o leitor pode não apanhar, mesmo assim, a implicação. Por esta
razão, talvez seja mais verdadeiro para a experiência de leitura da paródia falar do
codificador inferido e do processo de codificação. Mas essa manobra de desvio não
isenta ainda de ter de tratar do produtor textual da paródia, ainda que inferido como
leitores.
57
A paródia é uma das técnicas de auto-referencialidade por meio das
quais a arte revela a sua consciência da natureza do sentido como
dependente do contexto, da importância da significação das
circunstâncias que rodeiam qualquer elocução. Mas qualquer
situação discursiva, e não apenas uma situação paródica, inclui um
emissor enunciador e codificador, bem como um receptor do texto.
(...) No meio de um destronar geral da autoridade pela
descentralização de tudo, desde o cogito transcendente à economia
e aos instintos, a paródia mostra-nos que necessidade de voltar a
olhar para os poderes interactivos envolvidos na produção e
recepção de textos (HUTCHEON, 1985, p.109).
Desse modo, a paródia é frequentemente unida a vozes narrativas
manipuladoras, abertamente dirigidas a um receptor inscrito, ou manobrando
disfaadamente o leitor para uma posição desejada, a partir da qual o sentido
pretendido pode aparecer. Na obra lobatiana a reconstrução textual por meio da
paródia é manipuladora na medida em que colabora na desconstrução de conceitos
moralizantes, disseminado pelas narrativas fabulares. O interessante nesse
processo é que essa autoconsciência, quase didática, acerca do ato total de
enunciação (a produção e recepção de um texto) levou apenas, em grande parte da
crítica corrente, à valorizão do leitor.
Ao parodiar um texto, os produtores devem pressupor tanto um
conjunto de códigos cultural e lingüístico comum, como a familiaridade do leitor com
o texto parodiado. Assim, o leitor compreende a significação literal (não alusiva ou
não paródica) daquilo que ela designa por indicador da alusão, reconhece-o, então,
como um eco de uma fonte passada (intratextual ou intertextual), apercebe-se de
que é necessária a construção e recorda-se, assim, de aspectos da compreensão do
texto-fonte que possam depois ser relacionados com o texto alusivo - ou paródico
de modo a completar o sentido do indicador.
No caso do leitor em formação, que geralmente o tem
conhecimentos acerca do texto de origem, Lobato fornece elementos úteis para sua
recepção, por meio das indagações feitas pelas personagens, possibilitando a
compreensão de suas narrativas a partir da construção conjunta de sentido. Isso é
reflexo de modos pós-modernistas particulares que fazem da literatura um produto
mais eclético, igualitário e acessível. Contudo, a paródia não deixa de exigir do
parodista (real e inferido) perícia, saber, entendimento ctico sobre o texto para que
se estabeleça uma sintonia entre leitor e texto, para que o primeiro desvende as
intenções contidas no último e assim consiga chegar até seu leitor.
58
A apresentação do conceito de paródia, nesse capítulo, teve por
objetivo oferecer ferramentas necessárias para o entendimento dos capítulos
seguintes, cujo trajeto tenta reconstituir o caminho seguido pelas bulas no
decorrer de sua submissão ao tempo e aos processos de adaptação e tradução e
tamm a análise do corpus, cujo intuito é acompanhar a recepção dos textos
fabulares por crianças do primeiro Ciclo do Ensino Fundamental.
Assim, partindo-se do princípio de que os instrumentos de
composição do texto podem dizer muito sobre as próprias narrativas, na medida em
que têm sua parcela de participação em sua constituição, atribuindo significado ao
texto em si, acompanhar-se-á, de maneira sucinta, a trajetória das vinte e duas
fábulas selecionadas pela professora regente, para a atividade de leitura e reescrita.
59
2 O CAMINHO DAS FÁBULAS
Fábulas assim seriam um começo da literatura que nos falta.
Monteiro Lobato
O capítulo anterior esteve pautado na preocupação em discutir os
mecanismos de resgate do texto literário. Desse modo, tanto os recursos de
tradução e adaptação quanto a paródia são instrumentos que tornam possíveis a
retomada de textos já existentes e permitem seu reviver. Com a tradução e a
adaptação, distâncias históricas, geográficas e lingüísticas são superadas, enquanto
que a paródia torna possível o ressurgimento de uma obra, apresentada com nova
roupagem. A partir da teoria discutida anteriormente, o capítulo percorre o
caminho das fábulas, desde os temas e motivos utilizados por Monteiro Lobato, ação
que tem por intento observar as influencias dos temas e motivos literários no
decorrer do tempo.
Assim, este capítulo fornece ferramentas para a análise
desenvolvida no próximo, a partir de duas frentes: a teoria da Estética da Recepção
e o histórico e as concepções sobre o gênero fabular. Ambas as discussões se
pautam na necessidade de se entender a obra de arte literária como elemento
hisrico e como forma de interpretar histórias de leitura que, segundo a Estética da
Recepção, define a obra literária como uma sucessão de ações sobre o
entendimento de um receptor.
2.1 Estética da Recepção
A teoria da Estética da Recepção foi escolhida como fundamentação
teórica da análise desenvolvida na dissertação por ser uma corrente teórica que
privilegia a figura do leitor, enquanto elemento central na recepção de um texto
literário. Portanto, as bulas lobatianas, reescritas pelos alunos do Ensino
Fundamental, serão analisadas à luz da Estética da Recepção. Essa corrente teórica
é uma escola de teoria literária, identificada na era pós-estruturalista, a partir dos
finais da década de 1960, em primeiro lugar na Alemanha e, mais tarde, nos
Estados Unidos e possui como bandeira a defesa da soberania do leitor na recepção
crítica da obra de arte literária.
60
Na origem, foi pensada por um grupo de críticos que comou a
divulgar as suas teses por meio de revistas. Nesse período, Hans Robert Jauss
proferiu em 1967 uma palestra na Universidade de Constança, na Alemanha, com o
objetivo de reabilitar a história da literatura. Em seu texto crítico, A História Literária
como Provocação à Teoria da Literatura, procurou ultrapassar os dogmas marxistas
e formalistas que não privilegiam o leitor no ato interpretativo do texto literário.
A discussão toma forma graças à discordância de Jauss que não
compartilha dos ideários das escolas idealista ou positivista para a construção de
uma história literária, pois essas escolas ignoram a convergência entre o aspecto
hisrico e o estético, propiciando, com isso, um vazio entre a literatura e a história.
Tal postura é foco gerador do problema reclamado por Jauss, pois segundo o
teórico, se destinava excessiva atenção às obras e a seus autores, em detrimento
do terceiro elemento do circuito literário, os leitores.
Partindo dessas indagações, o pesquisador resgata pressupostos
teóricos com os quais aponta para métodos de ensino ultrapassados,
desinteressantes e decadentes e propõe que a história e a teoria da literatura se
reúnam e levem em conta a recepção do texto, que sem avaliar a maneira como o
texto literário foi lido nada se sabe sobre os motivos de sua permanência entre os
leitores.
Jauss critica a postura adotada pelo marxismo, preocupado em
identificar a posição social do leitor, enquanto elemento da estratificação da
sociedade, e a do formalismo russo, onde o sujeito é responsável pela percepção,
alcançada por meio das indicações presentes no próprio texto literário. Assim,
segundo o crítico, tanto o marxismo quanto o formalismo ignoram “o leitor em seu
papel genuíno, imprescindível tanto para o conhecimento estético quanto para o
hisrico: o papel do destinatário a quem, primordialmente, a obra literária visa”
(JAUSS, 1994, p. 23). Jauss reclama sempre o status negligenciado da entidade
responsável pela ação da leitura propriamente dita: o leitor.
As duas teorias, marxismo e formalismo, são importantes para o
desenvolvimento da literatura como elemento histórico, embora tenham ignorado o
leitor enquanto elemento participante do fazer literário.
A teoria da Estética da Recepção muda o foco conhecido até
então, que destacava apenas o autor e a obra e coloca o leitor como parte
importante do processo o que faz d’A história da literatura como provocação à Teoria
61
Literária uma reação contra a limitação da soberania do leitor na estética marxista.
Nessa corrente, o leitor está circunscrito de acordo com a posição social que se lhe
determina e as questões políticas que o envolvem. Jauss tamm critica a tirania
formalista, que apenas necessita do leitor como sujeito da percepção, pois enfatiza o
caráter arstico da literatura como caminho de compreensão, como é verificável no
trecho a seguir:
A Estética da Recepção apresenta-se como uma teoria em que a
investigação muda de foco: do texto enquanto estrutura imutável, ele
passa para o leitor, o “Terceiro Estado”, conforme Jauss o designa,
seguidamente marginalizado, porém não menos importante, já que é
condição da vitalidade da literatura enquanto instituição social
(ZILBERMAN, 1989, p. 10-11, aspas da autora).
A teoria da recepção destaca a participação do leitor como figura
importante na tríade literária, cuja mudança de foco e conseqüente valorização do
leitor consistem em uma ão de caráter histórico, impulsionado pela mudança do
próprio sujeito da história. A deflagração da teoria estética coincide com o estopim
revoluciorio, que teve nos meios estudantis campo fecundo para as discussões.
Desse modo, a palestra proferida por Jauss, cujo intuito de “provocar” reflexões
sobre os métodos tradicionais e desinteressantes do ensino da história da literatura
teve, no seio universitário, o cenário frutífero para a pulverização de denúncias
contra o tradicionalismo e, principalmente, o ponto de partida para a discussão de
propostas para a reavaliação das abordagens disseminadas até o momento.
Discussão atual, a proposta lançada por Jauss para uma Estética da
Recepção da obra de arte pretende ultrapassar o mero estudo das condições de
produção de uma obra literária e de seu autor, pois,
se olhar a História da literatura no horizonte do diálogo entre obra e
público, diálogo responsável pela construção de uma continuidade,
deixará de existir uma oposição entre aspectos históricos e aspectos
estéticos, e pode restabelecer-se a ligação entre as obras do
passado e a experiência literária de hoje que o historicismo rompeu
(JAUSS, 1994, p. 57-58).
Os críticos da escola concordam que, na figura do leitor, está a
determinação do sentido de um texto, ao contrário da organização cronológica do
62
none, que toma o texto como uma entidade que recolhe já na sua natureza o seu
próprio sentido, deixando para o leitor crítico a tarefa de identificá-lo.
Partindo de tal pressuposição, Jauss defende que qualquer obra de
arte literária só será efetiva ou concretizada quando o leitor a legitimar como tal,
relegando para plano secundário o trabalho do autor e o próprio texto criado. Assim,
por meio do processo de leitura ou dos mecanismos e atividades que ela agrega, se
desenvolve uma importante veia de recepção do texto literário e, conseqüentemente,
de compreensão da literatura e da história na qual está inserida.
Para isso, é necessário descobrir qual o horizonte de expectativas”
que envolve essa obra, pois todos os leitores investem certas expectativas nos
textos que lêem em virtude de estarem condicionados por outras leituras
realizadas, sobretudo se pertencerem ao mesmo gênero literário.
Isso ocorre porque Jauss vê a história da literatura como um
processo que envolve a recepção e a produção estética na atualizão dos textos.
Assim, são imprescindíveis as figuras do leitor, receptor do produto literário, o
escritor, produtor literário, e do crítico, encarregado da reflexão desencadeada sobre
o material escrito.
Para defender e legitimar o papel do leitor, Jauss (1994) apresenta,
na teoria discutida em sua palestra, sete teses, nas quais o pesquisador busca
fundamentar e reescrever a história da literatura, apresentando nas quatro primeiras
as diretrizes teóricas fundamentais para o desenvolvimento metodológico das três
últimas. Com isso, o processo de fundamentação histórica deveria deixar a mera
exposição de fatos cronológicos e acompanhar uma estética que privilegiasse a
recepção e o efeito e assim favorecer a experimentação, de maneira dinâmica, do
texto literário pelo seu leitor.
Na primeira tese, o autor apresenta a preocupação com a recepção
pautada no princípio de que a obra não é um ser atemporal, sendo um reflexo de
cada época em seus observadores, pois “ela é, antes, como uma partitura voltada
para a ressonância sempre renovada da leitura, libertando o texto da matéria das
palavras e conferindo-lhe existência atual” (JAUSS, 1994, p. 25).
Como se vê, o autor propõe a fuga da mera caracterização de um
determinado período literário para se buscar a relação construída entre leitor e texto,
ão que permitiria a constituição histórica da literatura por meio da recepção e
efeito do texto literário.
63
A constante atualização da obra, permitida com o contato com os
leitores no decorrer do tempo é, segundo Zilberman, prova de que ela esviva.
Portanto, a autora destaca que, como “as leituras diferem a cada época, a obra
mostra-se mutável, contrária à sua fixação numa essência sempre igual e alheia ao
tempo” (ZILBERMAN, 1989, p.33).
O caráter de acontecimento que fundamenta a primeira tese de
Jauss é essencial para a atualização do conteúdo literário, procedimento realizado
pelo leitor, entidade subjetiva e variável de acordo com sua experiência de vida.
Exemplo disso é a própria obra lobatiana, fonte de análise da
presente dissertação, que recebeu diferentes recepções no decorrer de sua história.
Textos do autor foram, em sua publicação, ora adorados e ora repudiados pelas
insncias de qualificação literária como críticos e órgãos governamentais,
qualificação realizada tamm por leitores comuns.
Algumas obras conheceram a glória instantânea, chegando a ser
adotadas como material didático em escolas blicas, como é o caso de A menina
do narizinho arrebitado, publicada em 1920, e que inicia uma série de pequenos
livros editados ao longo da cada, enfeixados com uma nova feição, tiveram, a
início, uma recepção muito positiva, valorização que levou a adoção das obras como
livros didáticos.
Peter Pan (1930), texto adaptado do escritor inglês John Barrie em
1930, conheceu em seu lançamento o lado avesso da glória, pois acabou
censurado, recolhido nas instituições de ensino e, posteriormente, destruído. O texto
em questão é prova da instabilidade da recepção literária, uma vez que a obra que
fora outrora condenada recebeu, tempos depois, avaliação positiva, vindo a
desfrutar do prestígio que as demais obras do autor possuem na atualidade.
Observando a trajetória recepcional da obra de Monteiro Lobato, fica
evidente a atualização permitida pelo tempo, possibilitada pela relação entre obra e
leitor, transcendendo aos eventos literários delimitados pela caracterização
sistematizada.
Jauss muda o foco de análise que se encontrava estagnada no
padrão fechado de esquematização em períodos literários, apontando para o leitor
como entidade pertinente para a atualização do texto literário. A literatura não
poderia, segundo ele, estar sujeita a uma qualificação inflexível, uma vez que o
sujeito que a reconstrói continuamente não é imutável. No entanto, mesmo com
64
quarenta anos de discussão, a literatura e sua hisria aindao vistas, ensinadas e
aprendidas como um circuito cíclico, no qual o indivíduo responsável pelo processo
de recepção, o leitor, é tido como ser uno e estável.
A história da obra lobatiana é um exemplo claro e pertinente de que
a história recepcional depende de diversos fatores e pode ser mantida ou reescrita
pelos leitores, responsáveis pela manutenção e/ou atualizão do objeto literário,
como será discutido na análise a ser desenvolvida.
A segunda tese busca descrever a recepção e o efeito de uma obra,
a partir da experiência do leitor. Ele parte de discussões de estudiosos como Wellek
e Richards sobre a teoria que apontava para a impossibilidade de uma análise do
efeito obter significação necessária sobre uma obra literária, alegando ser
impossível realizar, por meio de métodos empíricos, a determinação de um estado
de consciência, seja ele individual ou coletivo.
Para Wellek, o estado de consciência individual, de caráter pessoal,
é peculiarmente momentâneo e assim de difícil registro, uma vez que apresenta
perfil instável, ao contrário do coletivo, visto por Mukarovsky (apud Jauss, 1994, p.
27) como ideologia coletiva.
Esta última funcionaria como um sistema de normas que existiria,
para cada obra literária, na qualidade de langue, e que seria atualizado pelo receptor
como parole quadro composto de maneira imperfeita e jamais em sua totalidade.
Essa teoria, embora limite o subjetivismo do efeito, apresenta um conjunto de
normas nas quais se pode analisar o suposto efeito que determinada obra causa em
determinado público.
Jauss destaca que até uma obra desconhecida encontra no leitor
uma gama de conhecimentos prévios que tendem a direcioná-lo, processo
denominado de sistema histórico de referência por sua peculiaridade de induzir o
processo de leitura.
Isso acontece porque mesmo um novo texto não representa uma
novidade absoluta num espaço vazio, mas sim um produto que por meio de “avisos,
sinais visíveis e invisíveis, traços familiares ou indicações implícitas, predispõe seu
público para recebê-la de maneira bastante definida” (JAUSS, 1994, p. 28). A obra,
ainda que desconhecida, leva o leitor a resgatar, por meio de lembranças, sua
bagagem de leituras, induzindo-o a alcançar a significação de determinado universo
65
emocional. Tal possibilidade permite a materialização de um horizonte, definido por
Jauss como horizonte geral de compreensão.
Apontar que obras, desconhecidas, trazem consigo um possível
repertório interpretativo ou, como denomina Jauss, sistema histórico de referência,
tamm apresenta exceções. Exemplo disso, como mostra o próprio teórico, tem-se
Dom Quixote de Cervantes, que resultado dos clássicos de cavalaria, quebra com a
expectativa do leitor ao parodiar, de forma irônica, o contexto dos populares
romances.
Essa ocorrência é perceptível tamm em Monteiro Lobato, devido a
preocupação constante do autor em retomar elementos da cultura cssica em sua
própria obra. No entanto, assim como Cervantes quebra as expectativas de seu
leitor ao renovar seu texto, o autor do sítio do Picapau Amarelo, ao revisitar os textos
clássicos, resgata o cânone literário e acrescenta valores modernos, promovendo
com esse recurso o debate entre o cânone e a possibilidade de ruptura que promove
o surgimento do novo: o moderno, tanto nas inovações ideológicas quanto nas
estéticas. Não se pode ignorar que, ao inovar, Lobato quebra, por meio do debate
suscitado com as personagens, as expectativas do leitor e o faz abandonar as
referências ideológicas, estéticas e culturais a que está preso.
Em Lobato, tem-se um horizonte de expectativas que se apresenta a
partir do universo cultural de que o autor lança mão para a constituição de sua obra.
Como destaca a teoria da Estética da Recepção, a referência histórica retomada
para a receão do texto não atende em completude, pois a retomada lobatiana
um novo sentido às referências utilizadas. Entretanto, o resgate feito pelo leitor não
é um trabalho em vão, uma vez que ele prepara o processo de leitura, dando-lhe
elementos que agem positivamente em sua realizão, acrescentando informações
que podem ser discutidas pelo simples contraste, de modo a promover possíveis
diálogos entre as referências históricas e o novo texto.
Em obras em que o perfil histórico aparece de maneira menos
evidente, também é possível a ocorrência de objetivação do horizonte de
expectativas, que acontece devido a três fatores:
Em primeiro lugar, a partir de normas conhecidas ou da poética
imanente do gênero; em segundo, da relação implícita com obras
conhecidas do contexto hisrico-literário; e, em terceiro lugar, da
oposição entre ficção e realidade, entre função poética e a função
prática da linguagem, oposição esta que, para o leitor que reflete,
66
faz-se sempre presente durante a leitura, como possibilidade de
comparação. Esse terceiro fator inclui ainda a possibilidade de o
leitor perceber uma nova obra tanto a partir do horizonte mais restrito
de sua expectativa literária, quanto do horizonte mais amplo de sua
experiência de vida (JAUSS, 1994, p. 29-30).
Portanto, além do perfil histórico, outras características, segundo
Jauss, podem delinear o horizonte de expectativas, conhecimentos esses que
podem estar no interior do saber pvio do indivíduo, resultado da experiência
literária e/ou de vida de cada ser humano, ou ainda ser fruto da própria obra, que se
encarrega de deixar pistas para serem utilizadas no processo de compreensão e
que servem de orientação, mas que podem ser, segundo Jauss (1994), alteradas,
corrigidas, transformadas ou apenas reproduzidas pelo leitor.
A terceira tese é voltada para a reconstrução do horizonte de
expectativas que acontece por meio do confronto entre as diferenças levantadas na
compreensão passada de uma obra literária e a compreensão presente, ou seja, é a
medida entre os efeitos provocados pelo texto no momento de sua aparição e os
efeitos provocados depois de um intervalo de tempo, ão que caracteriza o efeito
de uma obra em determinado público.
Outra idéia que surge a partir da convergência entre passado e
presente é a de distância estética, situação em que ocorre o intermédio entre o
horizonte de expectativas preexistente e a aparição de uma nova obra. A recepção
dessa obra pode acarretar a negação dessas expectativas construídas ou abrir para
a constituição de novas possibilidades, ão que promove a mudança do horizonte
de expectativas primeiro.
Portanto, a relação primeira da obra com seu público é, segundo
Jauss, um importante determinante de seu valor estético. Isso porque
a distância entre o horizonte de expectativa e a obra, entre o
conhecido da estética anterior e a ‘mudança de horizonte’ exigida
pela acolhida à nova obra, determina, do ponto de vista da estética
da recepção, o caráter artístico de uma obra literária (JAUSS, 1994,
p. 31, aspas do autor).
Conforme ocorre a diminuição da distância entre o horizonte de
expectativa e a obra, essa última perde seu valor literário. Quando o texto literário
não alcança mudanças no horizonte de expectativas de seu leitor e atende
67
simplesmente às questões de gosto, deixa-se de vislumbrar o horizonte de
expectativas, por tratar-se, nesse caso, de uma obra ligeira e sem valor estético.
Ao contrário, se é possível avaliar o caráter artístico de uma obra
pela distância estética que se opõe à expectativa de seu público inicial e essa
experimentação mudar para públicos posteriores, chega-se a uma obra-prima, de
caráter artístico indiscutível.
Tem-se, nesse caso, um elemento perigoso, pois perante um
material literário renomado é difícil, em diversas situações, fugir dos moldes de
leitura atribuídos no decorrer do tempo e voltar a vislumbrar seu caráter artístico.
Ao discutir a relação entre literatura e público, Jauss afirma que,
para solucionar os questionamentos que envolvem essa problemática, não adianta
que os ícones formadores, autor, obra e público, possuam características filosóficas,
hisricas e sociológicas similares, pois a arte literária não é uma produção instável e
imutável. Mesmo textos que, em seu surgimento não se aproximam de seus leitores
de modo a dialogar com seus horizontes de expectativas, têm a formação de seu
público aos poucos constituída.
Como citado anteriormente, Peter Pan (1930) de Lobato pertence
a classe das obras que sofrem modificação em seu processo de recepção no
decorrer do tempo. Logo em seu lançamento foi, por uma parcela da classe crítica,
censurado, recebendo entre seus leitores um triste fim: trocado por notas escolares,
acabou alimentando fogueiras. Passado o período de repressão, o texto recebeu
uma nova acolhida entre a crítica, tanto que seu autor é figura reconhecida no Brasil
e no exterior, tornando-se cânone literário na literatura adulta e infantil. As hisrias
do ciclo do Picapau Amarelo foram e ainda são uma referência da literatura nacional
e um importante divisor de águas na história da literatura infantil brasileira.
Com isso, nota-se que a história literária e os instrumentos que
auxiliam sua escritura são elementos que sofrem influência do meio, ou seja, do
público leitor, seja ele adulto ou infantil. Vozes outrora, como parte da crítica
contemporânea a Lobato e instâncias educacionais, condenaram a adaptação
lobatiana que, na voz de Dona Benta, tornou acessível, para as personagens do
Sítio e as crianças em geral, a história do menino que não queria crescer. No
entanto, já em outros tempos, a proposta de Lobato conseguiu chegar a seus
leitores que, desse modo, puderam ter acesso por meio de seu livro a elementos
68
culturais de outro ps por meio da situão de leitura e, assim, cumprir o papel da
arte literária: de facilitar a circulação dos referenciais literários.
Com a quarta tese, Jauss encerra os pressupostos teóricos e afirma
que a Estética da Recepção é um importante instrumento de interpretação da
literatura do passado, pois quando não se m informações sobre o universo no qual
estavam inseridos autor, obra e leitor do texto em questão, torna-se fundamental
reconstituir o
horizonte de expectativa sob o qual uma obra foi criada e recebida no
passado (que) possibilita, por um lado, que se apresentem as
questões para as quais o texto constituiu uma resposta e se
descortine, assim, a maneira pela qual o leitor de outrora terá
encarado e compreendido a obra (JAUSS, 1994, p. 35).
Tal postura tende a equilibrar as normas de compreensão, sejam
elas libertas das análises voltadas a linhas de época, contraste o entendimento
passado e presente das obras, analisando a história de sua recepção. A
investigação, realizada de forma indireta, tem o viés filológico na tentativa de
entendê-lo sob a perspectiva de sua própria época, uma vez que o significado se
encontra acessível ao leitor.
Assim, fica claro que a reconstituição do horizonte de expectativas
possibilita duas descobertas: apresenta os primeiros contatos entre obra e público e
ainda permite a realizão da recepção do texto literário.
Jauss retoma Gadamer, a partir de seu texto Verdade e Método, no
qual o autor critica o objetivismo histórico e descreve o princípio da história do efeito
“- que busca evidenciar a realidade da história no próprio ato da compreensão
(JAUSS, 1994, p. 37). Tal linha de interpretação consistiria em um sistema de
perguntas e respostas à tradição histórica, na qual a compreensão sobre um texto
deveria abranger a pergunta para a qual ele constitui uma resposta.
Gadamer afirma que “a pergunta reconstruída não pode mais inserir-
se em seu horizonte original, pois esse horizonte histórico é sempre abarcado por
aquele de nosso presente” (apud JAUSS, 1994, p. 37), o que faz da ação de
compreensão um processo de junção dos horizontes de expectativa, passado e
presente.
O autor das teses se apóia também nas discussões teóricas de
René Wellek, para quem tal quadro apresenta uma importante preocupação, pois
69
restringir a avaliação de uma obra literária somente às percepções do passado,
poderia oferecer uma leitura empobrecida, enquanto que a preferência dada apenas
a uma visão do presente poderia privilegiar textos modernos em detrimento ao
none de época.
Assim, ao se discutir o dualismo entre as obras do passado e do
presente é essencial o conceito de juízo dos séculos” de uma obra literária, que é,
em essência,
um juízo acumulado de outros leitores, críticos, espectadores e a
mesmo professores, ele é o desdobramento de um potencial de
sentido virtualmente presente na obra, historicamente atualizado em
sua recepção e concretizado na história do efeito, potencial este que
se descortina ao juízo que compreende na medida em que, no
encontro com a tradição, ele realize a “fusão dos horizontes” de
forma controlada (JAUSS, 1994, p. 37, aspas do autor).
Jauss afirma que sua tentativa de criar uma história da literatura, a
partir da Estética da Recepção, concorda com o princípio do efeito de Gadamer até
o ponto em que o teórico busca elevar “o conceito do clássico à condição de
protótipo de toda mediação histórica entre passado e presente” (JAUSS, 1994, p.
38).
Gadamer, contrariamente à posição adotada por seu discípulo, se
apóia em um conceito de arte insustentável fora de sua época de origem, o
Humanismo, pautado no conceito de mimesis, no qual a arte é fonte de
reconhecimento para o ser humano.
Mesmo deixando de estar vinculada à função cssica do
reconhecimento, a arte literária não perdeu sua importância, pois apesar de não
estar restrita ao esquema platônico, ela transmite conhecimentos que não estão
presos à experiência possível e presente.
Nas três últimas teses, Jauss apresenta seu plano metodológico, no
qual se propõe analisar a historicidade da literatura a partir de três linhas de
observação: diacnico, analisando a recepção do texto literário; sincrônico, que
relaciona obras de uma mesma época e sua conseqüente sucessão; e, por último, a
ligação entre a literatura e questões que envolvem o indivíduo, a sociedade e outros
aspectos históricos e sociais.
A quinta tese problematiza a importância de se conhecer a posição
e significado histórico [de uma obra literária] no contexto de experiência da literatura”
70
(JAUSS, 1994, p. 40). Isso porque a teoria da Estética da Recepção não es
voltada apenas para a apreensão do sentido e forma da obra literária no
desdobramento histórico de sua compreensão, uma vez que ela demanda também
que se insira a obra isolada em sua série literária”, a fim de se realizar a
experimentação dinâmica do elemento literário, levando em consideração o meio
que a propiciou.
Para Jauss interessa, em especial, resgatar a obra literária relegada
ao isolamento e presa à seriação cronológica da história literária e compreender
essa expressão artística novamente como acontecimento.
Para tal, o teórico retoma o princípio da evolução literária, defendido
pela escola formalista, na qual a obra surgiria de um contexto formado pelas obras
anteriores ou contemporâneas até atingir o auge e decair, sucessivamente,
perdendo a novidade e se estabelecendo como gênero ultrapassado. Desse modo,
os textos encaixotados em séries correriam o sério risco de não corresponder ao
quadro histórico – literário e o que seria ainda pior, não estabeleceriam relações com
outros textos e perderiam a interação evolutiva das funções e das formas e se
restringiriam a uma autogeração dialética de novas formas.
Nesta tentativa do formalismo russo, o que importa em realidade é a
manutenção das velhas formas, que após o auge se deslocam para o segundo
plano. Essa mudança perdura até que um novo momento da evolução volte a torná-
los novamente em evidência. Desse modo, o formalismo vê a história da literatura
como evolução e reduz o caráter histórico de um texto literário a seu sistema
artístico.
Embora Jauss valorize a tentativa formalista de teorização da
“evolução literária destacando a definição de renovação da história da literatura por
ela motivada, a teoria, presa à idéia da canonização unifacetada, não conseguiu
atender a questões importantes, pois, segundo o teórico, a
variação estética não bastaria para explicar o desenvolvimento da
literatura; a questão acerca do sentido tomado teria permanecido
irrespondida; a inovação, por si só, não teria, por sua simples
negação, abolido a relação entre evolução literária e mudança social
(JAUSS, 1994, p. 43).
Como solução para os problemas elencados acima, o autor aponta
para a necessidade de se levar a teoria descritiva, da corrente formalista, para a
71
dimensão da experiência histórica, enquanto que a última problematização, que
discute as questões sociais, é retomada e discutida na sétima tese.
O termo “evolução literária” sempre grafado pelo teórico em
destaque, é visto por ele como a pressuposição, “no processo histórico de recepção
e produção estética, como condição da mediação de todas as oposições formais ou
‘qualidades diferenciais’” (JAUSS, 1994, p. 43, aspas do autor).
Jauss acredita que a teoria da Estética da Recepção direciona a
“evolução literária”, além de possibilitar a análise sobre a disncia temporal, ão
que apresenta a distância entre o significado atual e o significado virtual de uma
obra. Portanto, deixa-se a perspectiva formalista em que o caráter de arte de uma
obra só é visto como inovação no momento de sua publicação, para uma análise
que observe a distância entre a percepção atual, do momento da publicação e a de
outros momentos. A análise desse espaço temporal pode ser tão distinta a ponto de
renovar completamente a recepção primeira, permitindo que se encontre o que
antes não era possível ver.
Assim, torna-se fundamental a compreensão do novo que, para
Jauss,
não é uma categoria estica. Ele não se resolve nos fatores
inovação, surpresa, superação, reagrupamento, estranhamento,
fatores estes aos quais (...) a teoria formalista atribui importância. O
novo torna-se categoria histórica quando se conduz a análise
diacrônica da literatura até a questão acerca de quais são,
efetivamente, os momentos históricos que fazem do novo; de em que
medida esse novo é já perceptível no momento histórico de seu
aparecimento; de que distância, caminho ou atalho a compreensão
teve de percorrer para alcançar-lhe o conteúdo e, por fim, a questão
de se o momento de sua atualização plena foi tão poderoso em seu
efeito que logrou modificar a maneira de ver o velho e, assim, a
canonização do passado literário (JAUSS, 1994, p. 45, grifo do
autor).
O novo muitas vezes é vivenciado pelo resgate de expressões
esquecidas, como acontece com freqüência na obra lobatiana. A retomada do
none encontrada em obras de Monteiro Lobato como O Minotauro (1939) e Os
doze trabalhos de Hércules (l944), cujo enfoque se voltou à mitologia grega, e
Fábulas (1922) são alguns exemplos da retomada de formas que, ora esquecidas e
ora fora do acesso por causa das distâncias cronológicas, geográficas, culturais e/ou
lingüísticas, ressurgem por meio da atualização de formas existentes.
72
O anseio em acessibilizar textos inacessíveis ou esquecidos,
propiciando assim uma nova apresentação de referenciais, é um dos destaques do
escritor de Taubaté que resgatou elementos já existentes, como fontes históricas,
mitológicas e folclóricas a partir de um novo vs, originando com isso o novo
descrito por Jauss.
A sexta tese discute questões que envolvem o sincronismo e, a
partir das idéias de Kracauer, contesta a contemplação puramente diacrônica da
hisria literária, sugerindo que seja possível realizar cortes sincrônicos na história
literária e, com isso, alcançar um sistema de relações na literatura de um
determinado momento histórico. Tal procedimento, realizado por meio da
observação do processo de articulação das mudanças estruturais que ocorrem na
literatura, principalmente ao analisar os momentos de formação e de quebra do
estilo, mostram que é importante destacar que a análise de tais textos promove os
efeitos, devendo ser estudadas desde a perspectiva de sua recepção.
Partindo da compreensão de história de Kracauer que pressupõe
“que tudo o que acontece simultaneamente se encontraria também marcado pelo
momento, ocultando assim a factual não-simultaneidade do simultâneo” (JAUSS,
1994, p. 47), e apontaria para a diversidade dos acontecimentos de um momento
hisrico. Visto pelo historiador como momento uno, é uma realidade cujas curvas se
apresentam bastante diversificadas e que influenciam a constituição da história
literária.
Importa para o presente estudo o reflexo de tais idéias no que se
refere à esfera literária, pois Kracauer ao perceber a “coexistência do simultâneo e
do não-simultâneo” traz à tona a necessidade de se apresentar, por meio de cortes
sincrônicos, a história literária.
Esse quadro assim se compõe porque o sistema unicamente
diacrônico
somente alcança a dimensão histórica quando rompe o cânone
morfológico, quando confronta a obra importante do ponto de vista da
história das formas com os exemplos historicamente falidos,
convencionais, do gênero e, além disso, não deixa de considerar a
relação dessa obra com o contexto literário no qual ela, ao lado de
outras obras de outros gêneros, teve de se impor (JAUSS, 1994, p.
49).
73
A historicidade da literatura irá se impor nos pontos de intersecção
entre diacronia e sincronia, tornando possível verificar duas situações: a primeira
consistiria em permitir que o horizonte literário seja recebido diacronicamente a partir
de relações de não-simultaneidade, mesmo sendo formadas por sistemas
sincrônicos, enquanto a última se voltaria para a percepção atual ou ultrapassada do
texto literário, visão que se constituiria a partir de contrastes entre as épocas
literárias.
Assim, como os sistemas sincrônicos possuem passado e futuro,
para a análise de determinado momento histórico, o corte sincrônico necessita
tamm de cortes nas partes que antecedem e sucedem a diacronia.
Desse modo, a literatura é definida como
uma espécie de gramática ou sintaxe, apresentando relações mais
ou menos fixas: o conjunto dos gêneros, estilos e figuras tradicionais
e dos não-canonizados, ao qual se contrapõe uma esfera semântica
mais variável a dos temas, motivos e imagens literárias (JAUSS,
1994, p. 48-49).
A mudança estrutural na evolução literária não precisa ser vista de
forma substancialista, pautada, de maneira mecânica, na “transformaçãode formas
e conteúdos literários, mas apresentar um perfil funcional, como “reocupação” de
posições no horizonte de perguntas e respostas, ação esta que pode ser
“condicionada e provocada a partir tanto do interior isto é, da lei imanente de um
desenvolvimento do gênero -, quanto do exterior ou seja, por estímulos e pressões
advindas da situação histórico-social” (JAUSS, 1994, p. 49, grifo do autor).
Para Jauss, ao seguir tais pressupostos, poderia ser construído um
sistema no qual se exporia a história da literatura de forma a realizar em todos os
textos as ações de descrição e articulação histórica, segundo um cânone
convencional das obras.
Para a mudança histórica da produção literária basta que a leitura da
“mudança diacrônica na continuidade dos acontecimentos, a partir do resultado
hisrico (...) seja descortinada no corte transversal plenamente analisável do
sistema literário sincrônico e seja perseguida em novos cortes (JAUSS, 1994, p.
49). Para cumprir sua missão, tal análise deve resgatar “os pontos de interseção que
articulem historicamente o caráter processual da ‘evolução literária’, em suas
censuras entre uma época e outra” (JAUSS, 1994, p. 49, aspas do autor).
74
A última tese analisa a literatura dentro da sociedade e assim critica
o marxismo por ver a literatura como mera imitação, pois o autor defende o caráter
formador da literatura.
Portanto, destaca-se a importância da literatura
como história particular, em sua relação própria com a história geral.
Tal relação não se esgota no fato de podermos encontrar na
literatura de todas as épocas um quadro tipificado, idealizado,
satírico ou utópico da vida social. A função social somente se
manifesta na plenitude de suas possibilidades quando a experiência
literária do leitor adentra o horizonte de expectativa de sua vida
prática, pré-formando seu entendimento do mundo e, assim,
retroagindo sobre seu comportamento social (JAUSS, 1994, p.50).
Partindo de uma visão em que a literatura seria a representação de
uma realidade predeterminada, ligada diretamente a uma época específica,
passando pelo próprio estruturalismo, que via essa representação como
“espelhamento” ou “tipificação”, passa a se reduzir a existência histórica, ignorando
a função social e acarretando um grave problema ao não se estabelecer um vínculo
entre a história da literatura e a sociologia.
De acordo com o conceito de horizonte de expectativa, também
utilizado por Popper, Jauss busca discutir a observação como base de comparação,
no processo geral de construção da experiência e na delimitação da contribuição
específica da literatura no processo geral da experiência, o que faz necessário
delimitar essa contribuição com relação a outras formas de comportamento social.
Isso ocorre porque antes da leitura o levantadas expectativas em
torno do processo a ser desenvolvido, ocorrendo então a frustração das
expectativas, um dos momentos mais importantes, graças à quebra das hipóteses
levantadas toma-se contato efetivo com a realidade. Tal prática é permitida, segundo
Jauss, pela importância de sua ação, uma vez que os equívocos das suposições
conceituem experiências positivas retiradas da realidade. Essa situação é descrita
no trecho a seguir:
O horizonte de expectativa da literatura distingue-se daquele da
práxis histórica pelo fato de não apenas conservar as experiências
vividas, mas também antecipar possibilidades não concretizadas,
expandir o espaço limitado do comportamento social rumo a novos
desejos, pretensões e objetivos, abrindo, assim, novos caminhos
para a experiência futura (JAUSS, 1994, p.52).
75
Assim, como constatam as discussões realizadas, a relação que
surge “entre literatura e leitor pode atualizar-se tanto na esfera sensorial, como
pressão para a percepção estética, quanto tamm na esfera ética, como desafio à
reflexão moral” (JAUSS, 1994, p.53). Situação percebida também no contato dos
leitores com a obra infantil de Monteiro Lobato, pois o autor constantemente
preocupado em propiciar referenciais a seus leitores mirins, não se limitou somente
em informar, mas também em formar as crianças por meio de mecanismos que
dialogassem com seu universo.
Desse modo, o texto literário é recebido, analisado e julgado
tanto em seu contraste com o pano de fundo oferecido por outras
formas artísticas, quanto contra o pano de fundo da experiência
cotidiana de vida. Na esfera ética, sua função social deve ser
apreendida, do ponto de vista estético -recepcional, também segundo
as modalidades de pergunta e resposta, problema e solução,
modalidades sob cujo signo a obra adentra o horizonte de seu efeito
(JAUSS, 1994, p.53).
Variações assim é que permitem a movimentação das expressões
literárias no decorrer do tempo, atualizadas sempre por seus leitores, quadro que se
constitui como no exemplo citado pelo teórico, no qual ele discute a mutabilidade da
apreciação feita da obra de Flaubert, que, criticado anteriormente, desfruta da
consagração que sua produção alcançou.
Também a prodão literária do autor do Sítio do Picapau Amarelo
sofreu mudanças recepcionais no decorrer da história. Como se observou
anteriormente, o próprio leitor é uma entidade em processo de mudança e transporta
para a leitura tanto as marcas do período histórico vivido, ideologias de seu meio
social e da sociedade em geral quanto as próprias subjetividades.
Assim, o autor das teses conclui que
uma obra literária, pode, pois mediante uma forma estética inabitual,
romper as expectativas de seus leitores e, ao mesmo tempo, coloca-
los diante de uma questão cuja solução a moral sancionada pela
religião ou pelo Estado ficou lhes devendo (JAUSS, 1994, p.56).
Desse modo, é compreensível porque os pareceres e julgamentos
de Emília, personagem ficcional de Lobato, difundidos por meio da realização de
crítica literária, reconstituição de situações históricas ou apresentação de conteúdos
76
didáticos, falem tão diretamente a seus leitores. Protegidos pelo disfarce de
“asneirinhas” dialogam com problemáticas, carências e preocupações dos leitores,
de forma a debater questões polêmicas e permitir a reflexão e a circulação de idéias
acerca dos mais variados assuntos.
A Teoria da Estética da Recepção é o eixo de sustentação da
análise apresentada no terceiro capítulo, que visa identificar a participação do leitor
no processo de recepção do texto e, consequentemente, de formador da história
literária.
2.2 O Gênero Fabular: História e Estrutura
Para entender a transformão do nero fabular nas reproduções
infantis é necessário tentar reconstituir o percurso da fábula, ação que se iniciará
tanto na história quanto no seu próprio conceito e também em seus principais
divulgadores.
Textos sumerianos, datados do século XVIII a.C., difundiam
narrativas, cujas personagens, animais antropomorfizados parecidos com as fábulas
gregas e indianas, contrariam a origem da fábula, enquanto expressão originária da
Grécia ou da Índia, como é comumente apresentada. O gênero, exposto em uma
definição ampla, é visto como “um modo universal de construção discursiva”
(DEZOTTI, 2003, p. 21).
No entanto, grande parte da bibliografia aponta para os vesgios de
surgimento na Grécia e em Roma, nas literaturas orientais e na Idade Média. Para
Sosa, a origem das fábulas
remonta, como a de toda expressão que tende a transmitir um
conhecimento, ou uma lição, a tempos muito antigos e provêm da
necessidade natural que o homem sente de expressar seus
pensamentos por meio de imagens, emblemas, ou símbolos. Diz-se
que a fábula deve ser considerada como uma das formas simbólicas
aparecidas naturalmente, conseqüência do desenvolvimento histórico
da idéia de arte, sendo o oriente seu berço, como o foi do conto e do
mito (SOSA, 1993, p. 144).
O significado da palavra fábula também apresenta divergências.
Segundo Dezotti (2003), a necessidade de abranger a diversidade de textos que
77
o classificados como fábula, o que a faz classificar o gênero comoum ato de fala
que se realiza por meio de uma narrativa” (DEZOTTI, 2003, p. 22).
Desse modo, a fábula, vocábulo latino que pertence ao mesmo
radical de falar (fabulare), é uma narração breve, de natureza simbólica, cujos
personagens, geralmente, são animais que pensam, agem e sentem como os seres
humanos.
A fábula pode ter surgido junto com a necessidade de vencer a
censura e questionar as injustiças. Antes de ser considerada um gênero, passou
dispersa na boca do povo até ser acolhida por escritores que a consagraram
enquanto gênero literário. Chegou, no século V a.C., a se tornar modismo, ao estar
presente na comunicação cotidiana, alçando com isso, popularidade entre os
gregos.
Segundo Carvalho (1989), a bula consiste em uma pequena
narração de acontecimentos fictícios. É, portanto, uma “pequena composição que
encerra sempre grande filosofia. Pode ser em prosa e em verso, escondendo
sempre uma verdade moral, nas tramas de fatos alegóricos” (CARVALHO, 1989, p.
42). Portanto, um dos objetivos do gênero é a transmissão de uma lição de moral.
Para Coelho (1987), a fábula é a primeira forma narrativa registrada
pela História e consiste em uma narrativa alegórica em que as personagens são
geralmente animais e cujo desenlace reflete uma lição moral.
La Fontaine, em precio de sua obra, afirma que as fábulas
não o simplesmente morais; proporcionam ainda outros
conhecimentos: as qualidades dos animais e os seus caracteres
diversos ali estão expressos; por conseguinte, os nossos também,
pois nada mais somos que o resumo do que de bom e de mau
nas criaturas irracionais (LA FONTAINE, s/d, p. 24).
O fabulista, ao discutir a matéria literária que visa representar ao
comportamento social do homem, expande seu caráter moralizador ao atribuir aos
seres humanos características encontradas nos animais aos seres humanos. Isso
porque a temática é variada e contempla tópicos que têm por função explorar
qualidades e ações humanas como a vitória da fraqueza sobre a força, da bondade
sobre a astúcia e a derrota de presunçosos.
Coelho (1987) esclarece que somente a partir do século XIX são
determinados os limites entre a fábula e as demais formas metafóricas e simbólicas,
78
restringindo o nero aos textos que têm, exclusivamente, animais como
personagens. Com caráter crítico, a fábula transmite conhecimentos, experiências e
lições sem, no entanto, determinar tempo, espaço e também personagens com
precisão. A esse respeito, Martha (1999) atesta que
as personagens, em número reduzido, caracterizam-se sempre como
estáticas ou planas, pois não crescem aos olhos do leitor, não
passam por um aprendizado. São preferencialmente animais porque,
entre outras razões, as ações estabelecidas entre o comportamento
humano e o animal são mais facilmente reconhecidas como, por
exemplo, a astúcia da raposa e a ingenuidade do cordeiro (MARTHA,
1999, p. 74).
Portella (1983) não reconhece tal distinção assim como as
coletâneas de fábulas, prática verificável, inclusive, na obra lobatiana, que reúne, em
sua seleção, textos nos quais as personagens tamm o plantas ou pessoas.
Isso também se comprova na leitura da fábula grega que
nunca se limitou a trabalhar apenas com 1histórias de animais que
falam’, como veiculam nossos manuais. Notamos que qualquer ser
podia constituir-se personagem de fábulas: ao lado dos animais,
encontramos deuses, heróis, homens, plantas, objetos, diferentes
partes de um mesmo corpo e até entidades abstratas (DEZOTTI,
2003, p. 27, aspas da autora).
O gênero fábula possui, segundo Martha, um “esquema geral que se
resume em ão/reação ou discurso/contra-discurso, ou ainda um mais amplo como
situação-ação/reação-resultado(MARTHA, 1999, p. 74).
Ao tratar da linguagem, Martha afirma que:
No que se refere à linguagem, a fábula deve primar pela objetividade,
o que explica a ausência da descrição, com o predomínio do diálogo,
seja direto, indireto ou misto, podendo, inclusive, ocorrer o monólogo.
A importância do narrador deve ser ressaltada, uma vez que tanto a
situação quanto o resultado são apresentados por ele, ficando a ação
e a reação por conta das personagens, por meio do diálogo
(MARTHA, 1999, p.74).
Quanto a temática:
Os temas tradicionais das Fábulas foram tratados nas escolas dos
sofistas gregos como assuntos de exercícios literários de redação;
eram os loci communes, também adotados nas escolas de Roma,
cujos cadernos, achados no fim da Idade Média vieram a constituir
79
as Fábulas de Fedro, outra entidade sem existência real, formada do
epíteto da rocha phoedrica, da qual tinha sido, segundo a lenda,
precipitado Esopo (BRAGA, apud La Fontaine, s/d, p. 86).
Quanto à forma, os textos gregos arcaicos eram escritos em versos.
Segundo Dezotti (2003), tal prática poderia remeter a um gênero formalizado em
esquemas métricos. Entretanto, a pesquisadora destaca justamente o contrário,
sendo a fábula um gênero prosaico, representativa da fala cotidiana, que se ajustou,
momentaneamente “às características formais do gênero literário que a acolhe,
como é o caso da épica, da poesia didática, da comédia” (DEZOTTI, 2003, p. 26).
A popularização da prosa, enquanto expressão literária, já no século
VI a. C., está associada a chegada de Esopo na Grécia. Embora difundida entre
os assírios e babilônios, foi com o grego Esopo que o gênero foi consagrado. Esopo
e Jean de La Fontaine são os nomes citados por Monteiro Lobato, tanto em sua obra
literária quanto em seus textos teóricos, quando o assunto é fábula. Tanto que o
autor de Taubaté os homenageou, inserindo-os em sua obra literária infanto-juvenil,
na qualidade de personagens, na qual os autores contracenam com as crianças do
Sítio do Picapau Amarelo, durante a viagem das personagens ao País das Fábulas.
Emília é a primeira, em um misto de humor e informação, a promover a
apresentação de Esopo:
- Quem será o bicho careta? Com certeza algum homem que estava
tomando banho e perdeu as roupas berrou Emília. Vem
embrulhado na toalha.
O senhor de La Fontaine explicou quem era.
- Estás enganada, bonequinha. Aquele homem é um famoso
fabulista grego. Não vem embrulhado em nenhuma toalha, mas sim
vestido à moda dos antigos gregos. Chama-se Esopo. Foi o primeiro
que teve a idéia de escrever fábulas (LOBATO, 1973 e, p. 141).
Também é a marquesa de Rabicó a responsável pela descrição do
fabulista francês:
Estava ela [Emília] muito admirada das roupas do fabulista. Homem
de gola e punhos de renda, onde já se viu isso? E aquela cabeleira
de cachos feito mulher! Quem sabe se o coitado não tinha tesoura?
pensou a boneca.
O senhor La Fontaine conversou com todos amavelmente, dizendo
que era aquele o lugar de que mais gostava. Ouvia os animais
falarem, aprendia muita coisa e depois punha em verso as histórias
(LOBATO, 1973 e, p. 137).
80
As vestimentas de ambos são a primeira referência às
personalidades históricas, servindo de apresentação e aproximão entre os
autores-personagens e às personagens propriamente ditas.
Seguindo as pistas deixadas pelo autor do Sítio do Picapau Amarelo,
Esopo
12
torna-se a primeira referência. As fábulas a ele atribuídas obedecem ao
mesmo padrão, veiculando uma norma de conduta sob a analogia clara de atos de
animais, homens, deuses ou coisas inanimadas.
Mesmo com a existência não confirmada, Esopo é uma
personalidade lendária, tendo recebido de Platão menção honrosa em sua
República, ao contrário dos demais intelectuais, que teriam sido expulsos. Para
Platão (apud LA FONTAINE, 2006) é desevel que as crianças suguem as bulas
com o leite; o fabulista ainda recomenda às amas que as ensine, pois nunca é cedo
para se acostumar com a sabedoria e a virtude.
A virtude citada por Platão, enraizada desde as origens do texto, no
qual se amálgama o popular e o espírito realista e irônico, geralmente, age como
reforço das qualidades e lições a serem difundidas. Isso porque os textos são curtos,
bem humorados e suas mensagens e ensinamentos estão relacionados com os
fatos do cotidiano, “com conselhos sobre lealdade, generosidade e as virtudes do
trabalho. Em geral a moral é acrescentada como um pensamento a posteriori, nem
sempre diretamente relacionado à narrativa que o antecede” (ASH; HIGTON, 1999,
p. 6).
Rousseau (1968) critica o caráter moralizante da fábula que,
segundo ele, pode atingir aos homens, mas seria um conteúdo demasiadamente
complexo para o espírito infantil. Martha (1999) reforça tal hipótese, pois segundo a
pesquisadora “sua estrutura peculiar justifica a dificuldade de propor, hoje, a leitura
desse tipo de narrativa para a criança e para o adolescente” (MARTHA, 1999, p.74).
As questões pedagógicas e didáticas serão refletidas e discutidas
durante a análise das reescritas das fábulas, embora durante a pesquisa se
12
Não se sabe se Esopo existiu realmente, embora várias lendas falem de um escravo chamado Esopo, fabulista
grego que se acredita ter vivido no século VI a. C., mais ou menos de 620 a 560. Não provas históricas de
que ele tenha existido, embora ninguém negue a existência de mais de 300 fábulas, com características
semelhantes, que podem ter sido escritas ou reescritas e divulgadas por ele. De espírito engenhoso e sutil,
homem de muita cultura e criatividade, foi o maior contador de fábulas e o primeiro compilador dessas famosas
histórias. Seu nome era familiar a Aristófanes e Platão. Foi escravo em Samos e morreu em Delfos, Grécia -
local onde sua coletânea de textos recolhida fora da Grécia, nas regiões da Ásia Menor, foi amplamente
divulgada e prestigiada pelos atenienses. Na verdade, todos os dados referentes a Esopo são discuveis e se
trata mais de um personagem legendário do que histórico. (DEZOTTI, 2003, p. 22 – 32).
81
perceba, a partir das respostas obtidas no decorrer de todo o trabalho desenvolvido
em sala de aula, que a criança faz descobertas e marca, por meio de sua recepção,
a compreensão que alcançou em seu contato com o texto, que varia de acordo com
o tipo de mediação que o leitor em formação tem à disposição. Isso porque a
recepção crítica do gênero fabular pelo público infantil depende de um trabalho
intensificado e que conte com recursos e materiais atrativos que atraiam o leitor e
facilitem seu contato com o texto narrativo.
Nesse caso, a crítica de Rousseau ao falso cientificismo, o
desapego aos conceitos de verdade e léxico impróprio é retomado e discutido por
Sosa (1993), que também acredita que a falta de compromisso com a veracidade,
que há nasbulas, pode ser prejudicial para a constituição do conhecimento infantil.
Sem tomar partido nos debates, quanto ao conceito de verdade
presente nos textos fabulares, não se pode negar o valor cultural e histórico de tais
escritos, que ultrapassam o tempo e resgatam valores que permanecem, em muitas
situações, intactos às marcas do tempo.
Exemplo disso é a figura do pprio Esopo, que resgatou fábulas
nascidas no Oriente, adaptando-as com marcas dramáticas e filosóficas, com o
intuito de aconselhar e persuadir. A ele são atribuídos 359 textos escritos em prosa
e presos à língua falada. Nos textos de Esopo os animais falam, cometem erros, são
bios ou tolos, maus ou bons, exatamente como os homens, pois a intenção em
suas narrativas é mostrar como os homens podem agir.
As bulas esópicas organizam-se, comumente, em dois parágrafos,
sendo o primeiro o que comporta a narrativa propriamente dita, enquanto o segundo,
denominado de epimítio, por estar após a narrativa, divide-se em duas partes, uma
que apresenta uma interpretação da narrativa e uma outra que mostra a ação, que o
próprio enunciador da fábula, realiza em seu ato de fala. Essa divisão pode ser vista
na seguinte narrativa:
Um asno coberto com uma pele de leão fazia que todo mundo
pensasse que ele era um leão, pondo em fuga tanto homens como
rebanhos. Mas assim que soprou uma rajada de vento, a pele se
despegou e o asno ficou nu. Todos então acorreram e o espancaram
com paus e porretes.
[A bula mostra] Que você, que é pobre e gente comum, não deve
imitar as atitudes dos ricos, para não ser alvo de caçoadas nem
82
correr riscos, pois o que é alheio, é impróprio (DEZOTTI, 2003, p.
35)
13
.
Em seus textos, nota-se, segundo Dezotti (2003), a apresentação de
parte das informações, sendo deixado para o receptor a tarefa de preencher as
lacunas presentes no texto. Havia então uma confiabilidade no repertório cultural do
leitor, que é substituída, no decorrer do tempo, principalmente se o leitor em questão
for uma criança, pela oportunização de condições para a recepção do texto, seja na
inseão de informações ou uso de abordagens específicas, como a atribuição da
voz narrativa a uma das personagens e no cuidado com a construção conjunta das
informações, que atendam e auxiliem a tarefa de interpretação textual.
As fábulas esópicas foram contadas e readaptadas por seus
continuadores, como Fedro, La Fontaine e outros, e acabaram tornando-se parte da
linguagem diária.
Fedro
14
(15.a.C. 50.a.C), responsável por recontar as fábulas de
Esopo em forma de poesia, mostra, por meio de suas histórias, marcadas com
tira, sua revolta contra as injustiças e o crime. A fábula, por ser uma pequena
narrativa, serve para ilustrar algum vício ou alguma virtude e termina,
invariavelmente, com uma lição de moral. A grande maioria das fábulas retrata
personagens como animais ou criaturas imaginárias (criaturas fabulosas), que
representam, de forma alegórica, os traços de caráter (negativos e positivos), de
seres humanos.
Coube a Fedro, escravo alforriado do Imperador Augusto, enriquecer
estilisticamente muitas fábulas de Esopo, que não haviam sido escritas e eram
transmitidas oralmente, embora servissem de aprendizagem, fixação e memorização
dos valores morais do grupo social. Deste modo, Fedro, como introdutor da fábula
na literatura latina, redigia suas produções, normalmente sérias ou satíricas,
tratando das injustiças, dos males sociais e políticos, expressando as atitudes dos
fortes e oprimidos, mas de maneira breve e divertida.
As fábulas escritas, por Fedro, em versos foram utilizadas para
denunciar injustiças, ato que desencadeou conseqüências para o fabulista. Sua obra
13
As traduções das fábulas realizadas por Dezotti (2003) dialogam com o debate almejado pela discussão
empreendida, por isso a constante recorrência a elas.
14
Poeta, filho de escravos, nasceu num país de língua grega, a Trácia. Foi o introdutor do nero fábula na
literatura romana. Viveu no séc. I d.C., provavelmente alforriado pelo imperador Augusto e perseguido pelo
ministro de Tibério, Sejano (DEZOTTI, 2003, p. 73).
83
é composta por mais de cem fábulas, organizadas em cinco livros. O próprio
fabulista, a exemplo do que faz Lobato, faz referência a suas fontes, o que realiza no
prefácio de seu primeiro livro, no qual apresenta a forma, Versos Senários, e a
intenção de sua produção, mover o conteúdo. As transcrições das fábulas esópicas,
segundo Fedro, objetivaram entreter e aconselhar, como demonstra o trecho
traduzido por José Dejalma Dezotti:
Esopo, minha fonte, inventou esta matéria
Que eu burilei em Versos Senários.
Duplo é o propósito deste livrinho: mover o riso
E guiar a vida com prudentes conselhos.
Se alguém, porém, quiser criticar,
Porque até as árvores falam, e não só os bichos,
Lembre-se de que nos divertimos com histórias fictícias (FEDRO,
apud DEZOTTI, 2003, p. 74).
Também é necessário voltar a atenção para a tradição indiana da
fábula, uma vez que também essa linha foi utilizada na adaptação lobatiana. A
fábula indiana coma por volta do século I, com textos sânscritos da coleção
Pañcatantra, que se desdobrará, no século VIII, na versão árabe Calila e Dimma, do
qual se seguiram inúmeras versões, chegando até La Fontaine.
Nesses textos é evidente a intencionalidade do emissor, cujos
objetivos são, claramente, apresentados ao leitor/ouvinte. Para Dezotti (2003), a
organizão discursiva dasbulas
é marca essencial da oralidade e da intertextualidade e certamente
consiste numa das principais razões da permanência dessas
histórias, algumas das quais chegam a Monteiro Lobato, por meio de
La Fontaine: A menina do leite, Os animais e a peste, A gaa velha
(DEZOTTI, 2003, p. 114).
As fábulas indianas possuem algumas características que as
particularizam, como a marcante presença da violência como punição das falhas
apontadas nas personagens e a inserção de comentários em vários momentos da
narrativa. Tais mudanças direcionam o leitor, desde o início do texto, para uma
determinada interpretação.
Os textos são retomados posteriormente por outros escritores, mas
conforme aponta a história da fábula, é no século XVII, na França, que nasce o mais
importante fabulista da era moderna: Jean de La Fontaine (1621-1695), escritor que
84
imprimiu à fábula grande refinamento e acabou sendo imortalizado como o pai da
fábula moderna, pois esteve diretamente ligado à constituição deste gênero literário.
A ele coube a missão de elevar esse tipo de escrita à condição de relevo literário,
assumindo, posteriormente, um destaqueo vivenciado em seu tempo.
De origem burguesa, La Fontaine freqüentava a corte do Rei Sol
Luís XIV, de onde extraiu informões para sua crítica social. A publicação da
primeira coletânea de fábulas data de 1668, em cujo precio deixa bem claro suas
intenções na constituição dos textos, pois afirma servir-se de animais para instruir os
homens.
Nesse período, as fábulas ganham um sentido mais moderno, pois,
como participante da corte francesa, ele criticava a sociedade por meio de suas
produções. Em sua obra-prima Fábulas, ele mostra a vaidade e estupidez das
pessoas, atribuindo tais características aos animais. A principal peculiaridade do seu
modo de escrever eram as rimas, o que facilitava a memorização das histórias.
Por fim, como destaca o bibliófilo Teófilo Braga, em artigo que abre a
edição de Fábulas de La Fontaine, as fábulas do autor,
nascidas neste campo comum da tradição universal, também tiveram
o mesmo destino que as fábulas esópicas e fédricas, entraram nas
escolas, e serviram de leitura e para transuntos caligráfos. A grande
obra de arte, assim vulgarizada, decaiu da sua imponente majestade,
a que a crítica a restitui, pondo em evidência o lado individual, a
forma pitoresca, a exclusiva idealização de La Fontaine (TEÓFILO
BRAGA, s/d, p. 87).
Além de compor suas próprias fábulas, também reescreveu, em
versos franceses, muitas das fábulas antigas de Esopo e de Fedro e com isso
conseguiu elevar a fábula ao nível da alta poesia. Privilegiou tanto a obra dos
escritores Antigos como a dos Modernos, mantendo uma estrutura escrita que
consistia na exposição de uma situação e encerrava-se em uma moralidade,
marcada pela brevidade de relatos que divertiam e instruíam.
No entanto, esse resgate do none, foi marcado pela criatividade
em transformar esse material em uma produção moderna para sua época. O
translado permitiu que o binômio Tradição x ruptura se fundisse, graças a essa
junção foi possível que o Clássico se tornasse acessível a diferentes tempos,
culturas, classes sociais e grupos.
85
As fábulas, recontadas e recriadas no decorrer dos tempos, encontra
no Brasil, na segunda década do século XX, um país que vivenciava a grande
guerra que eclodia na Europa. A Primeira Guerra Mundial (1914 -1918) trouxe idéias
nacionalistas ao mundo e, no Brasil, Lobato, no intuito de criar uma literatura
brasileira, especialmente voltada para as crianças e aos jovens, se interessou pelo
gênero fábula para dar uma identidade cultural ao indivíduo, principalmente ao
jovem leitor em formação.
A retomada do cânone literário, realizada por Lobato na reescrita
das fábulas, busca textos que são recolhidos dos fabulistas do passado e adaptados
à realidade do momento e também adequadas ao público, nesse caso, os pequenos
leitores. Portanto, os textos reescritos consistem na aclimatação das bulas
tradicionais, ou seja, ocorre a ão de transposão de elementos nacionais para os
textos infantis, com a intenção de construir uma literatura nacional e de qualidade
para o público infantil. Tal ideário aparece em carta ao amigo Godofredo Rangel, na
qual Lobato afirma:
Ando com várias idéias. Uma: vestir à nacional as velhas fábulas de
Esopo e La Fontaine, tudo em prosa e mexendo nas moralidades.
Coisa para crianças. Veio-me da atenção curiosa com que meus
pequenos ouvem as fábulas que Purezinha lhes conta. Guardam-nas
de memória e vão recontá-las aos amigos sem, entretanto,
prestarem nenhuma atenção à moralidade, como é natural. A
moralidade nos fica no subconsciente para ir-se revelando mais
tarde, à medida que progredimos em compreensão. Ora, um
fabulário nosso, com bichos daqui em vez dos exóticos, se for feito
com arte e talento dará coisa preciosa (LOBATO, 1968 b, p. 245 -
46).
Dessa discussão surgem associações e comentários sobre o próprio
conteúdo literário, os assuntos das bulas e sua atualização. Ao discutir a
moralidade das narrativas, o autor brasileiro possibilita uma (re) leitura desses
textos, de acordo com os costumes de seu tempo, promovendo a reflexão e a
atualização das temáticas e vocábulos.
Transparece, em tal contato, a valorização do gênero por Lobato.
Isso porque o autor do Sítio do Picapau Amarelo ao mesmo tempo em que ressalta
o valor pedagógico e cultural da fábula, atualiza-a, por meio do debate entre as
mudanças de valor, existentes entre a realidade representada nos textos originais e
seu reflexo naquele momento histórico específico.
86
Martha (1999) destaca a importância da interferência de Dona Benta
na adaptação das fábulas, uma vez que na prática de contação de histórias, as
demais personagens têm oportunidade de participar da construção do
conhecimento, que no Sítio do Picapau Amarelo conta com a aulio de todos. Isso
porque:
justamente nessa recepção crítica, reside o fator de maior
responsabilidade pelo cater emancipador da narrativa lobatiana.
Desse modo, tanto a intromissão de Emília, de Narizinho ou de
Pedrinho quanto o ponto de vista do narrador, no caso a avó das
crianças, podem ser considerados aspectos inovadores na fábula
lobatiana (MARTHA, 1999, p. 77).
A fábula lobatiana possui muitos aspectos inovadores. Além do
narrador, outros instrumentos como a desconstrução e reconstrução das narrativas,
o utilizados na retomada de influências e na constituição do texto. Assim como a
paródia, discutida no capítulo anterior, reescrita textual que retoma textos e saberes
pré-existentes, que ressurgem com a finalidade de reapresentar uma mensagem.
Nesse movimento, o texto é submetido a uma atualização, na qual agrega ao texto
reescrito marcas da nova leitura.
Tal procedimento será analisado no estudo desenvolvido a partir da
pesquisa empírica realizada. Os textos de Monteiro Lobato, discutidos na seqüência,
selecionados pela professora regente para a atividade de reescrita das fábulas
lobatianas, são, em sua grande maioria, retomados de outras fontes e adaptados
pelo autor brasileiro. Analisar o processo de transposição adotado por Lobato é uma
maneira de entender o processo de recepção, seja retratado a partir da recepção de
autores consagrados ou pelo quadro constituído pelo leitor comum, como no caso a
ser estudado no próximo capítulo.
87
3 LEITORES E LEITURAS DE FÁBULAS, DE MONTEIRO LOBATO
A sabedoria que há nas fábulas é a mesma sabedoria do povo,
adquirida à força de experiências .
Monteiro Lobato
No movimento de leitura do gênero fabular, diversos leitores estarão
envolvidos: desde os divulgadores orais dasbulas, os primeiros autores, que
tiveram a missão de registrá-las, outros que as reescreveram, grupo no qual se inclui
o próprio Lobato, a professora regente da escola observada, leitora que selecionou
os textos lobatianos para o trabalho de leitura em sala de aula e, por fim, os alunos,
que dentro de um espaço literário delimitado, realizaram suas escolhas e, desse
modo, moldaram a recepção das fábulas. Todos os demaisforam discutidos nesta
dissertação, cabe agora analisar a seleção textual realizada pela professora e as
respostas obtidas dos alunos a partir dos textos selecionados, dados que serão
discutidos a seguir, a partir do quadro de leitura realizado no ambiente escolar.
3.1 A Situação de Leitura: Descrição Metodológica
Os capítulos anteriores abordaram a influência da tradução,
adaptação e padia na reescrita de textos do cânone literário; a formação histórica
do gênero fábula; e buscaram uma vertente teórica, a saber, a Estética da
Recepção, como embasamento teórico de sustentação da análise. Este capítulo
retoma uma situação real de leitura, vivenciada em ambiente escolar, no qual se
objetivou identificar as marcas, impingidas pelo leitor infantil, nos textos reescritos a
partir dos textos lobatianos.
Ao reescrevê-los e, assim, atualizá-los, o leitor informa-se e chega a
formar os textos, que passam, a partir de tal movimento, a representar uma leitura
única. Além disso, representam o público pelo qual foi criado ao sintetizar valores
por meio de sua interpretação ali retratada.
A situação de leitura em sala de aula parte da análise da recepção
do texto de Monteiro Lobato por crianças, temática eleita antes do ingresso, como
aluna, no curso de Pós-Graduação. Isso porque, tendo escolhido desenvolver uma
pesquisa sobre a recepção do texto lobatiano, chegou ao conhecimento que uma
escola da cidade de Maringá desenvolveria um extenso trabalho sobre o autor. Após
88
os contatos com a instituição e autorização por parte da entidade, que abriu espaço
para conversas, acompanhamento das aulas, visitas à biblioteca da escola e
aplicão de questionários, surgiram algumas inquietações que resultaram nos
questionamentos norteadores da dissertação.
Assim, a pesquisa emrica privilegiou um grupo de alunos
pertencentes a uma turma de segunda série, do Ensino Fundamental, da faixa etária
de oito anos. Como dito anteriormente, nas Considerações Iniciais desta
dissertação, a escolha se deu por concretizar-se, nesse meio educacional, um
projeto cultural sobre o autor. O projeto, de abrangência de toda a escola, foi
desenvolvido em uma instituição de Ensino Fundamental, séries iniciais, pertencente
à rede particular da cidade de Maringá, Estado do Paraná. O trabalho, realizado
durante o segundo trimestre letivo de 2006, acabou por estender-se pelo semestre
seguinte, dado o interesse dos envolvidos, e consistiu em um estudo interdisciplinar
com a obra, infantil e adulta, de Monteiro Lobato.
O projeto cultural interativo, cujo tema “De Emília ao Saci, Monteiro
Lobato passou por aqui”, justificou-se, segundo seus idealizadores, pela pluralidade
temática que envolve a vida e a obra do escritor brasileiro, a partir da qual se pode
discutir “aspectos sociais, políticos e culturais da época em que viveu e suas
contribuições para o enriquecimento da cultura brasileira, principalmente na
literatura” (folder A 1). Assim, a realização do projeto objetivou destacar a influência
cultural propiciada tanto pela produção literária quanto pela própria personalidade de
Lobato.
Antes, no entanto, de analisar as ações desencadeadas pela
proposta de trabalho, é valido acompanhar seu nascimento. A escola realiza
anualmente dois projetos culturais: um voltado para a literatura e o outro para as
artes em geral. A escolha dos temas é, segundo a equipe pedagógica, uma opção
do grupo, equipe pedagógica e professoras, eleita após a exposição de diversos
temas que são votados e da qual se decide por uma das temáticas candidatas. A
temática do primeiro semestre é eleita no término do ano letivo anterior, ação que
pretende deixar um tempo para que os profissionais reflitam sobre o mesmo. Já o
tema do segundo semestre é escolhido antes do recesso escolar de julho pelo
mesmo motivo.
89
Desse modo, a escolha de Monteiro Lobato aconteceu por sugestão
de uma das professoras
15
, que havia lido recentemente algo sobre o escritor. Com o
tema selecionado, o grupo se dedicou a pesquisar como poderia se desdobrar o
trabalho, com o autor e suas obras, no ambiente escolar.
A aplicação de um questionário (Apêndice 1) a essa equipe de
professoras procurou identificar o universo de saberes e expectativas que as
envolveram antes e após a realização do projeto, uma vez que à educadora cabe a
preparação da aula, que se desenvolveria em torno da ação de leitura e demais
atividades realizadas a partir dela e também a própria leitura, intrínseca aos
trabalhos de cunho literário.
A primeira preocupação pautou-se na identificação do conhecimento
prévio das nove professoras envolvidas. Ao serem questionadas, a grande maioria
afirmou conhecer pelo menos parte da obra de Monteiro Lobato e apenas uma,
entre as nove participantes da pesquisa, disse conhecer apenas o conteúdo
veiculado pela televisão, pautado principalmente na história transmitida pelo seriado
da Tv Globo, Sítio do Picapau Amarelo
16
.
A professora que afirmou não ser leitora de Monteiro Lobato e
conhecer apenas o conteúdo televisivo teve as produções textuais de seus alunos
analisadas (Anexo C 1). Embora diga desconhecer a obra lobatiana, nota-se, a partir
das escolhas realizadas para o trabalho em sala de aula, que a professora opta por
trabalhar obras mais conhecidas, o que demonstra que o cânone literário influencia
mesmo aqueles que “pensam não conhecê-lo. Tal quadro se formará também nas
escolhas do alunado, que mesmo sem, muitas vezes, conhecer o material impresso,
esexposto a seus conteúdos, seja por meio de adaptações, materiais didáticos,
programas televisivos e outros do gênero.
As oito professoras restantes afirmaram conhecer os textos do autor
em questão, no entanto, geralmente as leituras das docentes estão ligadas a
trabalhos anteriores, realizados em sala de aula; apenas uma professora alegou
conhecer outros textos de Lobato e, mesmo assim, por ter formação na área de
15
Os sujeitos descritos serão designados no feminino: professora, educadora e etc, por se tratar de um grupo
formado, em sua totalidade, por mulheres.
16
A adaptação da obra lobatiana pelos programas televisivos e sua representação dos textos do autor são
algumas das questões discutidas por Sérgio Caparelli (1983).
90
Letras
17
. Tal ocorrência demonstra que o professor está muito preso à leitura
utilitária em sua prática docente e se o trabalho docente não exigir uma gama de
leitura diversificada, pode representar a limitação do professor enquanto leitor
18
.
As professoras que já conheciam a obra, e mesmo aquela que
afirmou nada conhecer, possuíam algum conhecimento sobre o autor, mesmo
aquele adquirido por outros vculos, como a televisão, deve ser considerado, por se
tratar de uma espécie de acesso ao conteúdo literário. Desse modo, é perceptível
que se partiu de conhecimentos pré-existentes, que foram ampliados e/ou
desconstruídos com o aprofundamento de leituras, pesquisas e o próprio trabalho
em sala de aula.
As pesquisas, debates por parte de todos os envolvidos,
disseminaram as seguintes discussões, apresentadas por rie: vida e obra de
Monteiro Lobato, tema abordado por uma das turmas de terceira série, enquanto a
outra se deteve na produção jornalística e literária de Lobato, resgatando a história
de vida do autor e contextualizando-a nos dias atuais, realizada por meio da
construção de uma linha do tempo, cujo objetivo pautou-se em representar tamm,
de maneira interdisciplinar, a história do meio de comunicação jornal impresso. O
trabalho contou com uma visita a um jornal da cidade e o acompanhamento do
processo de produção desse veículo de comunicação.
A única quarta rie da escola deteve-se em pesquisar a relação de
Lobato com a situação política e econômica do Brasil, por meio da polêmica do
petróleo. Além dessa problemática, a turma investigou, ainda, na disciplina de
Ciências, o Avc, Acidente Vascular Cerebral, que vitimou Lobato em julho de 1948.
As turmas de primeira série detiveram-se em estudar as obras do
Sítio do Picapau Amarelo, identificando e reescrevendo os elementos culturais ali
pulverizados, como culinária, costumes, personagens, dando destaque àquelas que
o resgatadas, na obra, por meio dos processos de adaptação, paródia e relações
intertextuais como as personagens dos clássicos infantis.
17
Sim, sou formada em Letras e as estudei em Literatura(Resposta retirada de questionário aplicado ao grupo
de docentes em 19 de junho de 2006, questão respondida pela professora regente de uma das turmas de
primeira série).
18
2) Já conhecia a obra de Monteiro Lobato antes do início do projeto interativo?
conhecia e a alguns anos trabalhei com alguns personagens (Resposta retirada de questiorio aplicado ao
grupo de docentes em 19 de junho de 2006, questão respondida pela professora regente de uma das turmas de
segunda série).
91
As três turmas de segunda série dedicaram-se a estudar as bulas
lobatianas. Uma das turmas de segunda série, entretanto, iniciou seu trabalho a
partir do livro de contos Urupês, marco na produção do escritor, por ser a primeira
obra, dando seguimento ao estudo de Jeca Tatu, personagem que simbolizou a
crítica e, posteriormente, a redenção do caboclo brasileiro, e encerrou com uma
proposta de reescrita de vinte e duas fábulas, retiradas do livro Fábulas (1922).
Ao indagar, por meio dos questionários, sobre o motivo de escolha
do eixo temático adotado para o trabalho em sala de aula, obtiveram-se explicações
diferentes, de acordo com a temática abordada. A regente de quarta série justificou
que a biografia do autor, seu engajamento enquanto jornalista e também sua obra
desdobraram-se em diversos assuntos, por meio de um trabalho interdisciplinar,
assim tamm como a discussão sobre o petróleo.
A preferência pelo Sítio do Picapau Amarelo foi associada ao
interesse da faixa etária, por volta de sete anos, e as possíveis associações que
podem ser traçadas entre texto literário e o trabalho lúdico, desenvolvido na primeira
série.
A professora da turma de segunda série, observada durante a
pesquisa, destacou em sua resposta que a abordagem de Urupês e a personagem
Jeca Tatu pautou-se em registrar o como da produção literária do autor e uma das
personagens mais conhecidas e ao mesmo tempo representativa para o Brasil, por
tratar-se de uma personagem tipo.
As fábulas, segundo as docentes de segunda série, foram retratadas
por serem um veículo capaz de educar e, ao mesmo tempo, encantar as crianças.
o trabalho de reescrita de fragmentos de textos de Lobato permitiu, segundo as
educadoras, um desdobrar simultâneo da produção textual e do contato com
referenciais literários. Destaca-se que a abordagem dos textos fabulares, organizada
pela professora, exclui os comentários apresentados após as narrativas canônicas,
nos quais as personagens debatem o conteúdo dos textos, representando a crítica
que desconstrói os conceitos moralizantes disseminados pelos textos fabulares.
Com tal atitude é silenciada a voz lobatiana no texto fabular, voz que
debate e motiva a construção do pensamento pela criança, questão essa que será
retomada no decorrer da análise propriamente dita e nas Considerações Finais.
Ao serem questionadas enquanto leitoras sobre o que teria chamado
a atenção na obra literária lobatiana, as professoras responderam: a atualidade da
92
obra; o reconhecimento que as crianças realizam em seu contato entre a obra e
leitor; mundo de fantasia criado; intertextualidade; simplicidade de linguagem
adotada pelo escritor; a diversidade do trabalho do autor e a dedicação à literatura;
envolvimento com as causas sociais e nacionais; luta pela consolidação da
imprensa; a imaginação desencadeada pelas histórias; criação de um universo
genuinamente nacional; como cenário para o desenvolvimento das narrativas. Com
as respostas percebe-se que, nesse caso, a leitora não se desvincula de sua função
de professora, uma vez que as respostas refletem, geralmente, o trabalho realizado
em sala de aula.
As linhas de estudo foram divididas por série e acompanhadas em
sua totalidade, embora para a dissertação o interesse esteja direcionado, como
afirmado anteriormente, para a abordagem realizada em uma das turmas de
segunda série, cuja preocupação pautou-se no processo de reescritura das fábulas
lobatianas.
Desse modo, faz-se fundamental voltar a atenção à situação de
leitura propriamente dita, para refletir como dialogam, no processo de recepção, os
conhecimentos propiciados pela adaptação e/ou tradução de textos já culturalmente
conhecidos e se esse quadro influencia a recepção da obra literária.
Para entender a pretensão em analisar o universo de saberes do
none, diluídos no conhecimento popular, deve-se retomar o próprio processo de
reescrita das fábulas que, como já explanado no capítulo anterior, retoma textos que
circulariam, oralmente, a mais de oito séculos.
Além disso, como destaca uma das professoras em questionário
19
,
muitas crianças possuíam em bibliotecas familiares as obras de Lobato e, também,
outras utilizadas por ele em seu fazer literário, o que facilita o entendimento da obra
em questão, por meio do estabelecimento de possíveis inter-relações. Em
contraponto, outra docente encarou, em seu universo de sala de aula, como
problema a seleção do material, destacando diversos empecilhos, desencadeados
19
7- a) Disponibilidade do material impresso ( material em quantidade no mercado, em
bibliotecas)?
É um material facilmente encontrado em livrarias e sebos, muitos alunos tinham as obras em casa
(Resposta retirada de questionário aplicado ao grupo de docentes em 19 de junho de 2006, questão
respondida pela professora regente de uma das turmas de primeira série).
93
pelos entraves judiciais travados entre a família e a editora, detentora dos direitos
autorais
20
.
No entanto, não se pode deixar de ressaltar que essa é uma
peculiaridade do meio social ao qual pertence o grupo de leitores, classe média e
média alta, pois tanto a aquisição de livros quanto a disponibilidade de obras em
bibliotecas particulares indicam o perfil de um leitor inserido em um meio letrado,
peculiaridade que influencia o tipo de leitura a ser alcançada a partir desta realidade.
A classe econômica não é um determinante exclusivamente positivo
ou negativo quando se trata de leitura, embora Jauss (1994) associe a recepção da
obra de arte literária ao horizonte de expectativas do leitor, que não deixa de ser
constituído de acordo com as referências de que o leitor é fruto. A fim de se
compreender o processo de produção recepção da obra literária infantil e juvenil,
tendo como referência o leitor, e com base nos conceitos selecionados da Estética
da Recepção, é possível delinear o horizonte de expectativas das crianças e
adolescentes de diferentes classes sociais.
Assim, o horizonte pode estar materializado em normas literárias e
concepções de mundo, presentes nas narrativas infantis e juvenis, reproduzidas no
texto literário selecionado pelo alunado, uma vez que uma das tarefas da teoria
recepcional, de acordo com Zilberman (1989) é a reconstrução desse horizonte,
objetivando explicitar a relação da obra literária com seu público.
O texto lobatiano, construído a partir de textos do cânone literário, é
fruto da leitura e percepção de um leitor, no caso, o próprio Lobato, que realizou a
seleção de referencial, adaptando textos de Esopo, Fedro e La Fontaine, sendo a
primeira seleção que importa para a dissertação. Contudo, não se pode ignorar que
o gênero passou, como visto no presente estudo, por outras seleções, como as
realizadas tamm pelos autores pesquisados por Lobato.
A professora regente assumiu também o papel de leitora, ao
selecionar, dos textos presentes em Fábulas, vinte e dois textos, sendo os
escolhidos: A assembléia dos ratos; A formiga boa; A formiga má; A coruja e a
águia; A galinha dos ovos de ouro; A garça velha; A gralha enfeitada com penas de
pavão; A menina do leite; A e o boi; A raposa e as uvas; O burro juiz; O burro na
20
Não a quantidade de material necessário no mercado e o pouco que existe é muito caro, com edições
antigas. Nossa escola demorou alguns meses para conseguir uma coleção que pudéssemos adotar. (Resposta
retirada de questionário aplicado ao grupo de docentes em 19 de junho de 2006, questão respondida pela
professora regente de uma das turmas de segunda série).
94
pele de leão; O cão e o lobo; O corvo e o pavão; O galo que logrou a raposa; O leão
e o ratinho; O macaco e o gato; O ratinho, o galo e o gato; O rato da cidade e o rato
do campo; O reformador do mundo; O sabiá na gaiola e O velho, o menino e a
mulinha.
Quatro dessas fábulas foram disponibilizadas em duas cópias,
totalizando vinte e seis matrizes. Os textos repetidos foram A formiga má; A gralha
enfeitada com penas de pavão; O reformador do mundo e O sabiá na gaiola.
Segundo a professora, o acréscimo buscou aumentar a quantidade de fontes
disponíveis, totalizando duas matrizes por aluno e não atendeu nenhum quesito
especial na escolha do texto a ser duplicado.
As narrativas foram digitadas em fonte Arial 12 e apresentavam a
medida da folha de sulfite A4, 29,7 cm por 21 cm. Após o término da digitação as
pias foram afixadas em folhas de cartolina colorida, com medidas de 31,5 cm por
23 cm. As páginas foram montadas de maneira a que o papel colorido formasse uma
moldura ao texto digitado. As cores foram escolhidas aleatoriamente, reaproveitando
sobras de material que a professora dispunha nas colorações: azul, branca, laranja,
marrom, preta e vermelha, como indica a tabela a seguir;
bula Cor da Moldura
1 A assembléia dos ratos preta
2 A coruja e a águia vermelha
3 A coruja e a águia laranja
4 A formiga boa branca
5 A formiga má azul
6 A formiga má azul
7 A galinha dos ovos de ouro laranja
8 A garça velha branca
9 A gralha enfeitada com penas de pavão preta
10 A gralha enfeitada com penas de pavão vermelho
11 A menina do leite preta
12 A rã e o boi vermelha
13 A raposa e as uvas preta
14 O burro juiz marrom
15 O burro na pele do leão laranja
16 O cão e o lobo azul
17 O corvo e o pavão laranja
18 O galo que logrou a raposa branca
19 O leão e o ratinho marrom
20 O macaco e o gato azul
95
21 O ratinho, o gato e o galo laranja
22 O reformador do mundo marrom
23 O rato da cidade e o rato do campo marrom
24 O sabiá na gaiola preta
25 O sabiá na gaiola marrom
26 O velho, o menino e a mulinha azul
Tabela 1: As fábulas e as respectivas cores das molduras.
A possível influência das cores na escolha dos alunos será discutida
após a análise de todos os textos, debatendo os dados obtidos. Após a confecção,
os textos foram acondicionados em uma caixa, esta intitulada de “Caixinha de
Fábulas de Lobato”. Os treze alunos da sala dirigiam-se até a caixa para selecionar
um dos textos para leitura. Terminada a leitura, os alunos optavam pela manutenção
ou não do texto lido, que podiam trocar de acordo com o interesse. Eleita a fábula,
os alunos recebiam uma folha, cuja atividade propunha reescrever, utilizando
palavras próprias, a narrativa escolhida, finalizando com a realizão de uma
ilustração sobre o texto narrado, como mostra a transcrição da proposta de trabalho,
apresentada a seguir:
Reescrevendo fábulas de Monteiro Lobato
Nesta pasta você deverá escrever com suas palavras, a fábula que
você escolheu da “Caixinha de Fábulas de Lobato”.
Atrás da página que você escolheu, faça a ilustração. (ANEXO E 37)
Para a realização da reescrita os alunos contavam com dicionários e
a intervenção da professora para o esclarecimento das dúvidas, como é relatado no
questionário da docente, resposta 5 (Anexo C 1). Outra professora também afirma
ter sanado dúvidas de vocabulário, no entanto, tamm não ultrapassa as barreiras
do texto e não motiva os alunos a questionarem a intenção lobatiana de reescrever,
a partir de seus comentários, os valores difundidos pela fábula
21
.
A atividade, realizada semanalmente, teve a duração de seis
semanas e culminou com a montagem de um livro de fábulas com as produções das
próprias crianças. Ao término da confecção do livro, os alunos fizeram uma nova
seleção, elegendo entre as reescritas contidas nas próprias produções um texto para
compor um trabalho final sobre o autor.
21
5) Os meus alunos mostraram certa dificuldade no entendimento das bulas, sendo preciso a minha constante
intervenção para a explicação de alguns termos e para a moral em si. (Resposta retirada de questionário
aplicado ao grupo de docentes em 19 de junho de 2006, questão respondida pela professora regente de uma
das turmas de segunda série).
96
Destaca-se no trabalho da professora, regente de segunda série,
que preocupada em motivar os conhecimentos prévios das crianças sempre
realizava uma espécie de sondagem para verificar os saberes pvios que poderiam
ser acionados durante a leitura. Tal ação acontecia por meio de conversas, a
realização de desenhos, jogos ou a atividade de produção textual, seguido, a
posteriori, pelo trabalho da temática discutida, que desenvolvida, de maneira a
privilegiar uma abordagem interdisciplinar, partia para os textos discutidos. Como
discutido, era necessária, segundo uma das docentes, a explanação sobre
determinados vocábulos e sobre as moralidades para que as crianças conseguissem
construir sentido em suas leituras. Tal intervenção é um diferencial positivo no
processo de recepção do texto.
Chamou a atenção a quantidade de atividades lúdicas desenvolvidas
na retomada textual, na qual se incluíram filmes, culinária e jogos diversos,
instrumentos com os quais as professoras e, em especial, a regente da segunda
série observada, procuraram provocar o diálogo entre a obra literária e a recepção
realizada pela criança. A recepção primeira, realizada pela criança com a reescrita
textual, sem a interferência da educadora marca, genuinamente, o entendimento do
leitor e em contato com a leitura da própria docente, que por se tratar de uma leitora
proficiente, apresentou versão distinta daquelas apresentadas pelas crianças,
promovendo assim o debate de idéias, como demonstra o diálogo presente na
produção textual de um dos alunos (Anexo D 3).
Ressalta-se, no entanto, a mudança de postura dos alunos diante o
texto literário e tamm perante a própria atividade de reescrita
22
, uma vez que após
o aprofundamento das discussões sobre o autor, seu estilo, suas narrativas e o
gênero fabular as crianças foram se apropriando das informações e experiências de
leitura, quadro que se refletiu na relação entre criança e texto.
Com o fim da atividade surgem questionamentos sobre a preferência
por determinados textos em decorrência de outros, pouco escolhidos, fatos que
serão discutidos posteriormente, na continuidade.
22
A atividade de reescrita das fabulas foi desenvolvida nos meses de maio, junho e julho de 2006, culminando
com a Mostra Interativa no dia 07 de julho de 2006.
97
3.2 Análise dos Textos: A Recepção da Fábula Lobatiana em Sala de Aula
O resgate histórico apresentado na dissertação objetivou demonstrar
que a literatura tem um caráter cíclico, ao permitir a constante retomada de
elementos existentes, que embora recebam nova roupagem, transmitem, em
essência, os conteúdos que o, constantemente, desconstruídos, reconstruídos,
adaptados e parodiados.
Com a comparação textual, conclui-se que La Fontaine e Esopo são
as grandes fontes de Lobato, como o próprio autor assinala, ao homenageá-los em
sua obra infantil e discutir teoricamente sobre os autores em seus textos críticos e
correspondência.
O caráter circular das referências adotadas aparece também na
situação de leitura vivenciada. O trabalho desenvolvido em sala de aula, nos meses
de maio, junho e julho culminou na confecção de um trabalho, cujo título
Reescrevendo Fábulas com Monteiro Lobato, transmite a idéia, graças à conjunção
com, de parceria entre leitor (o aluno em questão) e o autor (Lobato), o que não
deixa de representar o que seria o quadro ideal: parceria entre autor e leitor para a
recepção do texto literário. Isso porque a leitura é um ato social, entre dois sujeitos
leitor e autor que interagem entre si, obedecendo a objetivos e necessidades
socialmente determinados. Ao autor cabe ser informativo, claro e relevante. Deve
deixar pistas no texto para possibilitar ao leitor a reconstrução do caminho
percorrido. Ao leitor cabe a credibilidade no autor, quanto à relevância do que vai ser
dito no texto. Ele deve tentar resolver as obscuridades que surgirem.
Na faixa etária e escolar em que se encontram as crianças do grupo
observado, elas ainda não dominam os protocolos de leitura necessários para a
realização de uma leitura proficiente.
Como afirma Kleiman (1997), ao analisar uma situação de leitura em
um grupo de crianças, percebe-se que o leitor
em fase de alfabetização lê vagarosamente, mas o que ela está
fazendo é decodificar, um processo muito diferente da leitura,
embora as habilidades necessárias para a decodificação
(conhecimento da correspondência entre o som e a letra) sejam
necessárias para a leitura. O leitor adulto não decodifica; ele percebe
as palavras globalmente e adivinha muitas outras, guiado pelo seu
conhecimento prévio e por suas hipóteses de leitura (KLEIMAN,
1997, p. 36 37, grifo da autora).
98
O aluno pertencente ao primeiro Ciclo do Ensino Fundamental é um
leitor que, pautado principalmente no texto escrito, encontra certa dificuldade em
levantar hipóteses e buscar suas comprovações ou negações, entretanto, lança mão
do conhecimento de mundo que o rodeia, impingindo ao texto particularidades de
sua bagagem cultural, com a qual estabelece o diálogo com a narrativa.
Kleiman (1997) acredita ser dicil para a criança analisar elementos
formais do texto
enquanto elementos que contribuem à significação total através da
leitura amorfa, sem expectativas nem hipóteses que sugiram
caminhos. Pelo contrário, é através da formulação de predições que
a tarefa de análise se torna viável, pois ela é extremamente difícil
para quem está acostumado a considerar as palavras do texto como
elementos discretos na sentença. A tarefa converte-se, mediante o
engajamento do leitor, numa tarefa de verificação de hipóteses, uma
tarefa mais limitada, e portanto mais acessível, retendo, contudo, o
caráter global que permitirá a síntese posteriormente (p. 41).
Uma espécie de síntese se verificou em grande parte das análises,
que, organizadas por títulos, serão apresentadas após um breve resgate dos textos
iniciais. Esta breve história da fábula em questão, mostra que o texto es sujeito às
marcas do tempo, registradas por seus leitores, sejam eles escritores consagrados,
professores ou alunos.
À semelhança do que se percebeu na análise das adaptações
infantis, apresentadas a seguir, a entidade textual está suscetível às atualizações
temporais, que incluem as de caráter vocabular, estrutural e a inserção de valores,
transformões necessárias no percurso do texto no decorrer do tempo.
A análise dos textos, apresentada na seqüência, foi organizada de
forma alfabética e está separada em tópicos, com o objetivo de quantificar as
escolhas e buscar entendê-las. Já os textos que simplesmente copiaram o texto-
fonte forão descartados, por não representarem a recepção textual.
3.2.1 A Assembléia dos Ratos
O primeiro texto eleito pela professora regente, A assembléia dos
ratos, é registrado pela primeira vez por La Fontaine sob o nome de Conselho feito
pelos ratos, sendo retomado, a posteriori, por Monteiro Lobato. O texto, em uma
99
tradução de La Fontaine, realizada por Curvo Semedo, apresenta formato em
versos. Embora a narrativa se assemelhe ao texto lobatiano, alguns dados são
distintos entre os dois textos:
Havia um gato maltês,
Honra e flor dos outros gatos;
Rodilardo era o seu nome,
Sua alcunha – Esgana-ratos (LA FONTAINE, 2006, p. 58).
Na versão lobatiana, um gato, cujo nome passa para Faro-Fino, es
acabando com os ratos de uma velha casa, o que motiva uma reunião para discutir o
problema. Na discussão surge a idéia de colocar um guizo ao pescoço do gato, para
anunciar a aproximação do animal. A idéia aprovada por todos foi rejeitada por um
rato casmurro, que na narrativa lafonteana, recebe a designação de deão
23
,
personagem responsável pelo questionamento do plano, ao indagar quem colocaria
o guizo no pescoço do gato. Nas duas versões, a assembléia dissolve-se por falta
de candidatos.
Décimo quarto texto do livro Fábulas, a narrativa foi reproduzida três
vezes em um universo de oitenta e sete textos. A primeira reescrita, realizada pelo
aluno A3, esteve, em diversos momentos, presa ao texto original. Isso é notável
na manutenção do título e da moral da fonte, que, nesse caso específico, é a do
próprio texto lobatiano.
O enredo é o mesmo, embora a versão da criança seja mais enxuta,
pois como aponta Kleiman (1997), uma predominância da prática do resumo nas
produções textuais de crianças. É importante observar que o ato de resumir resultou,
no caso analisado, na supressão de informações que alteraram tanto o conteúdo
quanto o significado do texto, como mostra o contraste entre os dois trechos:
Um gato de nome Faro-Fino deu de fazer tal destroço na rataria
duma casa velha, que os sobreviventes, sem ânimo de sair das
tocas, estavam a ponto de morrer de fome (LOBATO, 1973 b, p. 20).
Um gato chamado Faro-Fino gostava de fazer bagunça na frente da
toca dos ratos, que estavam morrendo de fome. (A3, 2006, Texto 1).
23
Segundo o dicionário Aurélio a palavra deão significa “dignitário Eclesiástico, o que preside ao cabido”.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa. 3 ed.
Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1999 p. 219.
100
Como é perceptível na comparação dos excertos destacados, a
produção textual realizada pela criança é marcada por escolhas, que no exemplo
destacado, altera o próprio sentido do texto, uma vez que o significado de fazer
destroço é distinto do de bagunça
24
. A troca de vocábulos faz parte da interpretação
do discente, que aparece em diversos momentos da reescrita textual, a partir da
atualização dos termos utilizados por Lobato, por outros comuns ao vocabulário
infantil. Tamm, pode ter sido motivada pelas possibilidades lingüísticas da criança
que, embora não seja um leitor proficiente, aciona estratégias de leitura, lançando
mão dos termos conhecidos para representar sua interpretação.
Isso porque, independente do grau de formação se o leitor conseguir
formular hipóteses de leitura, esta leitura passa a ter caráter de verificação de
hipóteses, para confirmação ou refutação e revisão, num processo menos
estruturado que aquele inicialmente modelado pelo adulto, mas que envolve, tal
como o outro processo, uma atividade consciente, autocontrolada pelo leitor, bem
como umarie de estratégias necessárias à compreensão.
A seguir, o perigo surgido impulsiona uma atitude e os ratos, no
texto lobatiano, “resolveram reunir-se para o estudo da questão” (LOBATO, 1973 b,
p. 20). No texto do aluno, a ação descrita nesse momento é distinta, pois a reunião
de planejamento já é uma reunião para a execução da idéia.
(...) todos os ratos fizeram uma reunião para inforcar o Faro-Fino”
(A3, 2006, Texto 1, grifo nosso).
Nota-se na comparação de informões que, de posse dos dados, a
criança, conscientemente ou não, suprime elementos, como ocorreu com a reunião,
e modifica outras, como a decisão de enforcar o gato. Isso porque no texto-fonte a
solução de colocar um guizo
25
, passa, no texto do aluno, para o ato de enforcar
26
.
Como é visível, o processo de reescrita do texto modifica seu
conteúdo, uma vez que a prevenção descrita no texto-fonte assume uma atitude
mais radical. Tal posicionamento, assumido por uma criança de oito anos, pode ser
24
Segundo o diciorio Aurélio, destroçar significa “pôr em debandada, debandar, dispersar”, enquanto que
bagunçar promover bagunça ou desordem” FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século
XXI: o Dicionário da Língua Portuguesa. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1999 p. 608 e 254.
25
Instrumento metálico constituído por “uma esfera oca de metal que, ao ser agitada, produz som” (FERREIRA,
1999, p. 1022)
26
Dar a morte a alguém na forçar por meio de “supliciar na forca, suspender pelo pescoço em lugar alto,
asfixiando” (FERREIRA, 1999, p. 757)
101
fruto da atual situação de insegurança que assola todo o país, o que faz da violência
um ato normal, devido à banalização da violência em si. Também os desenhos,
filmes e a mídia em geral expõem as crianças a situações constantes de violência,
quadro que influencia a formação do indivíduo e o formata de maneira a acreditar
que o constrangimento físico e/ou moral pode ser solucionado com a devolução do
mesmo tipo de tratamento.
Outra leitura possível faz referência a uma importante peculiaridade
da fantasia infantil, que o vê a morte como violência, abordagem perceptível na
retomada do tema nos contos de fadas. Nesta perspectiva, a colocação do guizo no
pescoço pode ter sido compreendida pela criança como enforcamento.
Tudo isso é fruto do diálogo entre texto e contexto, que a
compreensão de um texto é um processo que se caracteriza pela utilização do
conhecimento prévio: o leitor utiliza na leitura o que ele já sabe, o conhecimento
adquirido ao longo de sua vida, inclusive a fantasia e a morte na literatura. É
mediante a interação de diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento
lingüístico, o textual, o conhecimento de mundo, que o leitor consegue construir o
sentido do texto. Como o leitor utiliza diversos níveis de conhecimento que
interagem entre si, a leitura é considerada um processo interativo. Pode-se dizer
com segurança que, sem o engajamento do conhecimento prévio do leitor, não
haveria compreensão dos significados textuais.
Outro fato importante, sob o viés sociológico e cultural, consiste na
recorrência a inserção de valores sociais na fábula. Tal questão, observada na
cadeia alimentar, eixo gerador da narrativa, é responsável pelo desencadeamento
do conflito, uma vez que os ratos são impedidos de comer pela ameaça do gato que
por sua vez se alimenta dos ratos.
Em uma visão antropomorfa, em que os animais são semelhantes
ao homem, a criança transporta para o texto peculiaridades humanas como
necessidade de registrar nominalmente a personagem. Tal movimento é
possibilitado por meio da alteração do adjetivo casmurro que assume a função de
substantivo próprio, graças ao emprego de letra maiúscula. Vê-se aí a necessidade
de identificar os seres por meio do nome próprio, obedecendo às normas de
identificação, na qual a sociedade se organiza.
A prática de resumo também é utilizada pela reescrita seguinte, que
se ocupa em reorganizar compactamente o enredo da narrativa, realizando em sua
102
reescrita a atualização vocabular. Nessa reorganização os diálogos são substituídos
pelo discurso indireto, com o qual cabe ao narrador apresentar o enredo, ação que
realiza a partir da sua percepção.
A leitura é um processo de interação, que segundo Kleiman (1997),
pesquisadora da abordagem cognitivo-processual da leitura, antecipa certa
dificuldade, geralmente apontada, para a compreensão do material impresso, pois “o
objeto a ser compreendido é complexo, (...) porque o objeto parece indistinto, com
tantas e variadas dimensões que não sabemos por onde começar a apreendê-lo
(KLEIMAN, 1997, p 10).
Portanto, para a compreensão do texto é necessário, como dito
anteriormente, a utilizão de conhecimentos do leitor, denominado pela Estética da
Recepção de repertório, fazendo da leitura um processo interativo, no qual a
reprodução textual surge dos elementos que as crianças m em mãos, por ser o
texto uma unidade semântica onde vários elementos de significação são
materializados por meio de categorias lexicais, sintáticas, semânticas e estruturais.
No cenário de leitura, o leitor é guiado por princípios apresentados por autores que
discutem a psicolingüística
27
.
O primeiro deles, o princípio de parcimônia, é o princípio de
economia, no qual o leitor tende a reduzir ao mínimo o número de personagens,
objetos, processos, eventos desse quadro mental que ele vai construindo a medida
que vai lendo. O princípio de economia determina várias regras: a primeira, regra de
recorrência, consiste no uso de repetições, substituições, pronominalizações, uso de
dêiticos e de frases definidas. a segunda, regra da continuidade temática, regula
os comportamentos automáticos, inconscientes do leitor na procura de ligações no
texto. O segundo princípio, o de canonicidade, agrupa vários princípios sobre as
nossas expectativas em relação à ordem natural no mundo, e sobre como essa
ordem se reflete na linguagem. O terceiro, princípio de distância mínima, trata-se de
uma regra perceptual que diz que quando mais de um possível antecedente de
um pronome ou de um dêitico, aquele mais próximo será interpretado como o
antecedente. O princípio de coerência diz que quando interpretações conflitantes
devemos escolher aquela que torne o texto coerente. O quinto prinpio, o da
27
As idéias aqui discutidas estão pautadas nas obras de Mary Kato (1995) e Ângela Kleiman (1997).
103
relevância, determina que em caso de informações conflitantes deve-se escolher
aquela mais relevante ao entendimento do tema.
Os princípios utilizados na compreensão da leitura foram resgatados
para demonstrar que as ocorrências encontradas nos textos do grupo analisado são
práticas comuns na situação de leitura, principalmente, no caso específico, o
princípio de parcimônia, que, comumente, as crianças reduzem o conteúdo textual
durante o processo de interpretação, como fica registrado por meio das reescritas.
O texto produzido por A5, embora bastante preso ao conteúdo,
promove alterações em sua organização, perceptível desde o início do texto:
Uma noite um grupo de ratos se uniram para fazer uma reunião
contra o gato Faro-Fino, que estava destruindo o clube dos ratos
(...)(A5, 2006, Texto 2).
O contraste entre o texto da criança e o texto de Monteiro Lobato
mostra que o parágrafo inicial de Lobato, responsável por apresentar as
personagens, é, na reconstrução do aluno, já a apresentação do conflito.
A opção em modificar a fonte oportuniza, na interação entre obra
primeira e versão reescrita, a criação de outras imagens por meio da
recontextualização do texto original. Amorim (2005) chama a atenção em suas
discussões para a configuração de uma realidade percebida nesse caso, pode-se
associar a reconfiguração textual ao trabalho executado pelo aluno, responsável
pela nova elaboração da bula. Na remodelagem deste texto, pode estar embutido
o principio de relevância, que consiste na apresentação dos dados mais importantes
para a constituição textual.
Prosseguindo com a verificação sobre as alterações, no texto
produzido pelo discente ocorre a troca de discurso direto pelo indireto, ação
constante em grande parte das reescrituras:
- Acho disse um deles que o meio de nos defendermos de Faro-
Fino é lhe atarmos um guizo ao pescoço. Assim que ele se aproxime,
o guizo o denuncia, e pomo-nos ao fresco a tempo (LOBATO, 1973
b, p. 20).
Um dos ratos falou que o meio de defendermos do gato era colocar
um guizo em seu pescoço, assim ouviríamos o gato quando ele
estivesse chegando (A5, 2006, Texto 2).
104
Na versão do aluno, como em grande parte das produções textuais
analisadas nesse estudo, é, notadamente, perceptível a ocorrência de uma
atualização vocabular, quadro discutido na regra de recorrência. A atualização de
vocábulos, promovida pela substituição de termos desconhecidos por outros mais
comuns, representam um campo mais significativo tanto para o aluno quanto para o
grupo no qual ele está inserido.
Nos trechos destacados acima, ocorrem as substituições dos termos
atarmos por colocar, o guizo o denuncia por ouviríamos o gato quando ele estivesse
chegando; fazendo sonetos à lua que é substituído por fazendo músicas à lua. Já a
expreso pomo-nos a fresco é omitida na reescrita.
Ao contrário da produção textual analisada anteriormente, essa
criança atualiza a moral, reescrevendo-a de forma mais coloquial ao substituir Dizer
é fácil; fazer é que são elas por Falar é tão fácil... Mas fazer ninguém faz.
A moral das bulas também foi preocupação para La Fontaine, que
em seu precio para suas fábulas discute essa questão:
No tempo de Esopo, a fábula era simplesmente narrada; a moral
estava sempre separada e vinha sempre depois. Fedro não se
sujeitou a tal ordem: embelece a narração, e coloca às vezes a moral
no princípio. Só desobedeço a esse preceito para observar outro que
não é menos importante (...). Foi o que fiz com algumas morais de
cujo êxito duvidei (LA FONTAINE, s/d, p. 24-25).
Os textos reescritos por La Fontaine rompem com as fontes quando
o autor opta em fugir dos modelos pré-estabelecidos. Tal prática, seguida por Lobato
e também pelas crianças, é uma forma de reescrever a história literária. Para a
Estética da Recepção está, na dimensão da leitura e do efeito, o “experienciar
dinâmico da obra literária por parte de seus leitores (JAUSS, 1994, p.25), sejam
eles Fedro, La Fontaine, Monteiro Lobato ou crianças de oito anos de uma cidade de
médio porte, do Estado do Paraná.
3.2.2 A Coruja e a Águia
À semelhaa de A assembléia dos ratos, a fábula A coruja e a
águia aparece pela primeira vez em La Fontaine, sendo retomada, posteriormente,
por Lobato. A recriação textual permitiu o resgate de A coruja e a águia, terceira
105
narrativa da obra lobatiana, que aparece nas Fábulas de La Fontaine, tradão de
Jaime Pietor, como A águia e o mocho, espécie de coruja, ou simplesmente, A águia
e a coruja, dependendo do tradutor.
Um mesmo texto muda significativamente de acordo com o tradutor,
entidade que age diretamente no texto original, impingindo marcas de sua recepção,
como discutido no primeiro capítulo desse estudo.
De La Fontaine para Lobato ocorre a inversão de sintagmas no título
do texto, uma vez que a águia que aparece primeiro no texto francês cede lugar à
coruja, na versão brasileira. As duas versões retratam as duas aves que, cansadas
de brigar, resolvem fazer as pazes. No tratado de paz assentam que não comerão
os filhos uma da outra. Para que a águia reconheça os filhotes da coruja, essa última
descreve os filhos como animais muito bonitos. Dias depois, a águia encontra um
ninho com três filhotes que ela acha feios. Como a descrição não coincide com o
retrato descrito pela coruja, ela os devora. Tanto na versão francesa quanto na
nacional, os animais devorados eram os filhos da coruja e a mãe procura a águia
para reclamar a quebra do acordo. Ouve, no entanto, que os filhotes descritos pela
mãe em nada se pareciam com os animais que ela havia devorado.
O segundo texto lobatiano, selecionado pela professora, foi
escolhido por três crianças. Todas mantiveram o título do original. A primeira delas,
A5, manteve a mesma estrutura do texto-fonte, alterando alguns termos de forma a
tamm realizar uma atualização vocabular, além de lançar mão também do
princípio de parcimônia, como verificável no contraste de trechos:
- Basta de guerra disse a coruja. O mundo é tão grande, e tolice
maior que o mundo é andarmos a comer os filhotes uma da outra.
(LOBATO, 1973 b, p. 12).
- Chega de guerra! Disse a coruja. (A5, 2006, Texto 4).
Campos (1991) concebe um tipo de reconstituição do texto, que se
desenvolveria paralelamente ao texto original, por meio da transcriação, que se
segue à desconstrução da obra primeira. Na reconstrução apresentada, além da
atualização vocabular, é notável a redução a que o adaptador submete o original,
pois embora seja fiel ao texto base, o aluno reduz significativamente sua extensão.
Tal ação pode ocorrer, motivada por duas possibilidades: tentativa de se desprender
106
da fonte, pois não reproduzi-la na íntegra pode ser uma maneira de não pagar o
tributo devido ao texto de base; outra possibilidade, de caráter escolar, pode ser
simplesmente a redução da atividade de reescrita, proposta pela instituição escolar.
A dívida pendente entre original e adaptação, amplamente discutida
pela crítica, consiste, segundo Derrida (2005), na representação, pela versão, das
verdades contidas na obra original. No entanto, o ato de adaptar não significa
renunciar às verdades contidas no texto primeiro.
O segundo texto escrito, também preso ao original, apresenta,
entretanto, modificações que, aparentemente, extrapolam a vontade do discente em
termos de significação. Tal quadro é construído porque a criança, em fase de
apropriação e normatização da língua portuguesa, transporta para sua reescrita
sinais dessa fase de aprendizagem da linguagem escrita, como marca o primeiro
parágrafo do texto:
- Cançados de brigar as duas fiseram as pases. (A11, 2006, Texto 5,
grifo nosso).
As palavras destacadas no excerto mostram as incorreções da
língua presentes no texto, que se mantiveram mesmo tendo o texto base disponível
para o aluno. Além da grafia das palavras, há, nesse parágrafo, problemas de
coerência, uma vez que não foi feita a apresentação das personagens e nada, além
do título, mostra a quem se refere o verbo, cansados. Apenas se sabe que se trata
de mais de uma personagem porque o verbo está flexionado no plural.
O texto consiste em uma redução de informações, embora a criança
mantenha alguns termos e atualize outros, como faz com a moral da fábula,
apresentada a seguir:
Para retrato de filho ninguém acredite em pintor pai. diz o ditado:
quem o feio ama, bonito lhe parece. (LOBATO, 1973 b, p. 12).
Quem ama o feio lhe acha bonito (A11, 2006, Texto 5).
Isso acontece porque, segundo Kato (1995), a leitura de uma palavra
por um leitor proficiente é feita de maneira ideográfica. para um leitor iniciante,
como os participantes do grupo analisado, cujo vocabulário ainda é muito limitado,
(...) o processo de leitura envolve pouco reconhecimento visual instantâneo. Desse
107
modo, a leitura passa a constituir operações de análise e síntese, sendo a
apreensão do significado mediada quase sempre pela decodificação em palavras
auditivamente familiares.
Para a Estética da Recepção, as alterações mostram que a história
de vida do ser humano pode influir na compreensão que o mesmo faz do discurso,
fato esse que se comprovou na obtenção de resultados distintos em uma mesma
atividade, o que atesta, empiricamente, o fator pessoal na interpretação do texto
literário devido ao horizonte de expectativas que muda de indivíduo para indivíduo.
A última reescrita, assim como a analisada anteriormente, apresenta
problemas de grafia, pontuação e concordância verbo-nominal, como mostra o
excerto:
Quando a coruja voutou persebel que seu filhos não estavam lá no
nhinhe e emtão ela ficou desesperada e foi tirar satisfasão com a
águia. (A9, 2006, Texto 6).
A moral é uma reprodução exata daquela apresentada no texto de
Lobato. A fidelidade incondicional é um dos caminhos possíveis, embora não seja o
único, é uma das opções a serem utilizadas na atividade de reescrita e pode ser
reflexo tanto da fidelidade ao texto original como a não-compreensão dele, levando o
leitor a optar, nesse caso, por reproduzir o texto canônico.
3.2.3 A Formiga Boa
Com raízes gregas, A cigarra e as formigas aparece em Esopo, com
o substantivo flexionado no plural, que a voz que censura a cigarra é a voz da
coletividade, que condena os preguiçosos.
O poeta romano Bábrio, que teria vivido aproximadamente no século
I d.C., retoma o texto esópico, metrificando–o em versos. Nessa versão, as
personagens são apenas duas, como atesta o título A cigarra e a formiga. Outros
detalhes que particularizam o texto são incluídos, como a descriminação detalhada
do trabalho da formiga: No inverno uma formiga arrastava de dentro da toca o trigo
para arejar, que ela havia estocado no verão” (BÁBRIO, apud DEZOTTI, 2003, p.
98).
108
Ainda no singular, o texto é retomado por La Fontaine, que reproduz
o conteúdo difundido por seus antecessores. Na tradução, realizada por Bocage,
construída em versos, mantém-se o conteúdo e privilegia-se a forma métrica. O
conteúdo difundido pelos escritores em nada se assemelha ao conteúdo de A
formiga boa, criação de Lobato a partir da fábula base.
O trabalho do autor de Taubaté explora amplamente a fábula, que
aparece na obra Reinações de Narizinho (1920) e também em bulas (1922).
Desse modo, a fábula chega até Lobato e o título, A cigarra e a formiga, em uma
versão genuinamente parodiada, muda de nome e passa para A cigarra e as
formigas, recebendo, pelas mãos do escritor, uma divisão na qual se descortina, na
primeira parte, uma nova versão e, na segunda parte, a manutenção da narrativa
original.
Em A formiga boa, primeira parte da fábula, ocorre a redenção da
formiga, que valoriza a arte e acolhe a cigarra durante o mau tempo. A paródia,
nesse caso, não é caracterizada pela ironia e humor acentuados, que transparecem,
de forma sutil, apenas na apresentação das personagens. A narrativa é marcada,
essencialmente, pela diferença entre a fonte e a adaptação, uma vez que mantém
poucos elementos do texto base, alcançando, inclusive, desfecho distinto do
divulgado pelas primeiras versões. Segundo Hutcheon (1985), o duplicar textual da
paródia tem por objetivo marcar a diferença entre os textos. Com isso, a paródia
permite o surgimento de uma nova narrativa, cujo contraste com a obra primeira,
pode mediar o entendimento desta última.
Na primeira parte da fábula, A formiga boa, o autor muda os fatos,
transformando o texto, por meio da mudança de atitude da formiga, que ao socorrer
a cigarra, altera também todo o contexto da fábula. Esse texto, em especial,
representa a retomada de elementos tradicionais na literatura, no caso, a fábula A
cigarra e a formiga, quebra com a expectativa do leitor, que, ao esperar o desfecho
original, se depara com uma paródia, com a qual Lobato rompe as expectativas do
leitor e o faz abandonar as referências de base.
A ruptura citada pode ter sido o motivo para o pequeno número de
escolhas para essa fábula, reescrita por duas crianças apenas. A primeira delas se
manteve presa ao texto-fonte, como demonstram os excertos a seguir:
109
Houve uma jovem cigarra que tinha o costume de chiar ao dum
formigueiro. Só parava quando cansadinha; e seu divertimento então
era observar as formigas na eterna faina de abastecer as tulhas
(LOBATO, 1973 b, p. 11).
O texto da criança é escrito da seguinte forma:
Uma jovem cigarra gostava muito de cantar em frente de um
formigueiro que parava quando se cansava e o seu divertimento
era ver as formigas trabalharem (A5, 2006, Texto 7).
Outros termos são atualizados, inclusive a onomatopéia que
representa a batida na porta. Em Lobato é “Bateu tique, tique, tique...” (LOBATO,
1973 b, p. 11). Já na versão da criança a passagem aparece como “Batendo na
porta toc, toc, toc...” (A5, 2006, Texto 7), que além de alterar o som em si, inclui o
uso do verbo, flexionado no gerúndio, uso comum na modalidade oral da linguagem.
Uma prática do aluno, questionada pela professora por meio de um
recado na própria produção, marca a importância das escolhas feitas pelo
responsável pela reescrita. A professora orienta o aluno a colocar as falas da
personagem com parágrafo, travessão e letra maiúscula, como mostra o anexo D 3.
Pautada na versão de Lobato, a professora cobra a forma contida no original, que
segue o seguinte padrão:
- Que quer? perguntou, examinado a triste mendiga suja de lama e a
tossir.
- Venho em busca de agasalho. O mau tempo não cessa e eu...
A formiga olhou de alto a baixo.
- E o que fez durante o bom tempo, que não construiu sua casa?
(LOBATO, 1973 b, p. 11).
A versão da criança, construída na forma indireta, diferente da
estrutura eleita na versão lobatiana, é defendida pela criança, que responde no
próprio texto a observação feita pela professora: “Não é fala é o narrador falando” e
mantém a maneira escolhida por ela, a responsável pela reescrita, que nesse caso
fez a opção. Segundo Amorim (2005), cabe ao responsável pela reorganização do
texto realizar as escolhas para a construção do novo texto. Nesse caso, em
específico, mesmo não sendo um adaptador, a criança opta por alterar a ordem da
escrita e mantém sua preferência, construindo sua versão na forma indireta, apesar
do questionamento da professora, como destaca o trecho apresentado a seguir:
110
E ela [a formiga] falou para a cigarra o que queria, e a cigarra disse
que estava precisando de agasalho.
A formiga olhou e perguntou a ela o que fez no tempo bom que não
construiu uma casa, ela respondeu que cantava para as formigas
trabalharem (A5, 2006, texto 7).
As opções da criança quanto à nova roupagem conferida à
estruturação da fala da personagem incomodaram a professora; logo, os
pressupostos de que até mesmo os docentes estão atrelados à noção de fidelidade
ao original, mesmo que a proposta de atividade consista em reescrevê-lo, se
confirmam (anexo D 3). Dessa forma, ocorre uma desconsideração em relação à
liberdade da atividade de reescrita ao se apresentar um texto canônico para a
interpretação individual, já que, ao reorganizá-lo, o discente constrói um novo texto e
é cobrado pela fuga do original.
O leitor, nesse caso, representado pela figura da professora, sem ter
claramente definido o que seja a fidelidade, eshabituado a reclamá-la, ão que
limita as opções do aluno e as possibilidades de inovação do texto primeiro.
A criança assina o trabalho como autora e ilustradora e com esse
gesto, assume sua participação na constituição de seu texto, como aparece no
anexo E 5. No desenho de sua autoria, retrata a cigarra entre folhas. Encerrando o
diálogo entre professora e aluno, a educadora, em um ato de possível
apaziguamento, elogia a ilustração ao escrever “adorei!”.
A última adaptação dessa fábula realiza um compacto das
informações, reunindo as idéias principais do texto, como mostra a reprodução do
primeiro parágrafo:
Existia uma cigarra que cantava perto de um formigueiro enquanto as
formigas trabalhavam (A7, 2006, Texto 8).
A criança substitui construções mais complexas, que tendem a levar
o leitor a construir o próprio significado, por uma escrita que apresenta o conteúdo
de forma declarada, no qual estão embutidos a interpretação e os resultados
interpretativos por ela alcançados:
- Pois entre, amiguinha! Nunca poderemos esquecer as boas horas
que sua cantoria nos proporcionou, aquele chiado nos distraia e
aliviava do trabalho. Dizíamos sempre: que felicidade ter como
111
vizinha tão gentil cantora! Entre, amiga, que aqui te cama e mesa
durante todo o mau tempo.
A cigarra entrou, sarou da tosse e voltou a ser a alegre cantora dos
dias de sol (LOBATO, 1973 b, p. 11).
A formiga foi boa deixando a ficar em sua casa até passar o tempo
da chuva, a cigarra voltou a cantar (A7, 2006, Texto 8).
Como demonstra a comparação entre os trechos, o diálogo
construído por Lobato, que mostra o reconhecimento da formiga pelos dons
artísticos da cigarra, é substituído, no texto discente, pela constatação de que a
formiga foi boa ao permitir a permanência da cigarra em sua casa durante o mau
tempo. Assim, o discente deixa de lado os recursos discursivos e opta por
apresentar simplesmente as conclusões alcançadas em sua leitura que, segundo
Orlandi, “é o momento crítico da produção da unidade textual da sua realidade
significante” (ORLANDI, 1988, p. 9-10), ou seja, relação entre materialidade e o
resultado alcançado na relação entre texto e leitor. Até a escolha por parte do aluno
é algo questionável, pois, em alguns momentos, principalmente por causa da fase
de amadurecimento e escolarização, é o patamar possível a ser alcaado na
construção discursiva textual. Isso porque
uma criança recém-alfabetizada depende de pistas contextuais e
gráficas de estímulo. Portanto, a velocidade e a precisão com que
uma palavra é lida e percebida depende de a palavra estar registrada
no léxico visual e quantas vezes o leitor foi exposto a ela; do
conhecimento de regras e imposições fonotático-ortográficas,
sintáticas, semântico-pragmáticas, colocacionais e estilísticas a que
a palavra está sujeita e do uso adequado e suficiente dessas
restrições para predizer e confirmar sua forma e conteúdo; da
capacidade de raciocínio inferencial do leitor, que lhe permite
antecipar itens ainda não vistos (KATO, 1995, p. 39).
Tal fala vai ao encontro das discussões aqui empreendidas, por
confirmar que o quadro construído na produção textual do aluno reflete as
possibilidades lingüísticas e interpretativas da faixa etária.
3.2.4 A Formiga Má
Na segunda parte da narrativa, embora presa ao contexto e ao
desfecho preconizados pelos fabulistas anteriores, o narrador lobatiano adota um
112
perfil de aproximão, no qual destaca as dificuldades da cigarra e a maldade da
formiga. Em seguida, ao retomar o texto canônico “Já houve, entretanto, uma
formiga má” (LOBATO, 1973 b, p.11), ação na qual, situa a história no continente
Europeu, adota um perfil de distanciamento, marcado, principalmente, pela
localização geogfica.
Nessa versão, a cigarra recorre à formiga e, à semelhança dos
textos originais, não é atendida. O texto termina com uma metáfora: “Os artistas
poetas, pintores, músicos - são as cigarras da humanidade” (LOBATO, 1973 b,
p.12). Martha chama a atenção para a semelhança entre texto original e versão
adaptada:
Assim, embora o resultado desta narrativa de Lobato seja
semelhante ao da fábula de La Fontaine, uma vez que a pobre
cigarra tem o mesmo fim trágico, há entre essas narrativas uma
profunda diferença no modo de narrar. Isto porque a focalização do
narrador, francamente crítica em relação às atitudes da formiga,
acaba formando a opinião do leitor, levando-o a refletir sobre as
relações humanas representadas na narrativa e adotando uma
atitude simpática à cigarra (MARTHA, 1999, p. 76)
Em Reinações de Narizinho (1920) aparece, sob forma de paródia, a
mesma temática, na qual a ironia e o humor, marcas da reescrita paródica,
transparecem nas seguintes passagens:
Em vez de sentir piedade, a formiga fechou ainda mais a carranca e
disse:
- Errou de porta, minha cara. Isto aqui não é asilo de inválidos. Se
está doente, vá para a casa de seu sogro. (...)
A cigarra sorriu, certa de que a lembrança das suas passadas
cantorias tinha amolecido o coração da formiga. Ah, ela não
imaginava o que era o coração duma formiga coroca de mais de mil
anos! (LOBATO, 1973 e, p. 139)
Os excertos apresentados, retirados da obra Reinações de Narizinho
(1920), retomam a bula A cigarra e a formiga. Nessa versão, a presença de
elementos de humor, propiciados pela paródia, como a recomendação de que a
cigarra procure a casa do sogro, que aponta também para uma visão machista ao
alegar a dependência feminina. Tamm é com humor que Lobato alude, como
atesta Martha (2001), à antiguidade da bula ao destacar a idade da formiga: mais
de dois mil anos.
113
Esta segunda parte da fábula foi eleita pelo dobro de crianças. A
primeira versão da fábula, das seis escritas no total, foi construída na forma indireta
e realiza um compacto das informações apresentadas no texto original. Os dados
o reunidos em um único parágrafo, que usa abundantemente a conjunção e para
sobrepor os períodos:
A formiga má no inverno não tinha dado comida e abrigo pra a
cigarra porque ela ficou cantando o inverno inteiro e chegou a
primavera e a cigarra tinha morrido (A4, 2006, Texto 9, grifo nosso).
A ruptura com o texto lobatiano é perceptível no desprendimento em
relação a ele e na forma singular com que a criança escreve e, assim, particulariza
sua produção textual.
Como afirma Aubert (1993), em citação no primeiro capítulo,
ideologicamente, o executor da transposição textual está sujeito a inúmeras
servidões, sejam de respeito para com o autor ou o próprio texto; mas tamm es
sujeito a diversidades culturais e lingüísticas e também temporais, devendo manter-
se livre para poder configurar seu texto e trazê-lo para a realidade em que es
sendo lido. Outro ponto a ser retomado, nesse caso, é o princípio da parcimônia que
consiste na redução do quadro narrativo, constituído no momento da leitura.
Também fazendo uso do princípio de redução, a segunda reescrita,
mesmo mais presa ao original, realiza um enxugamento das informações do texto
primeiro. Para Umberto Eco (1994):
Qualquer narrativa de ficção é necessária e fatalmente rápida
porque, ao construir um mundo que inclui multiplicidades de
acontecimentos e de personagens, não pode dizer tudo sobre esse
mundo (ECO, 1994, p. 9)
Se o texto canônico não costuma apresentar todos os dados,
deixando para o leitor a miso de preencher as lacunas durante a leitura, também o
texto reescrito pela criança, em sua grande maioria, o apresenta todas as
informações dominadas pelo autor. Tal movimento é claro nos dois trechos, o
lobatiano e sua reprodução textual, apresentados a seguir:
houve, entretanto, uma formiga má que não soube compreender a
cigarra e com dureza a repeliu de sua porta. (LOBATO, 1973 b, p.
12).
114
houve uma formiga má. No inverno uma cigarra bateu à sua porta
mas a formiga má bateu a porta na cara da cigarra. (A7, 2006, Texto
10).
Como mostram os excertos, a criança antecipa informações que, no
texto original aparecerão a posteriori, como a informação da estação do inverno,
por exemplo, que aparece no período seguinte. Tal antecipação revela que o
aluno, detentor das informações, reorganiza-as, conforme sua própria percepção do
texto, liberando-se, em diversos momentos, de sua influência.
O quadro descrito abre margem para um importante aspecto
discutido na primeira parte da dissertação, que retoma a participação do aluno, na
questão que debate a invisibilidade do realizador da transposição textual. A
invisibilidade, como mostram os textos produzidos pelos alunos apresentados,
dificilmente pode ser tida como total, uma vez que o adaptador, primeiro leitor,
realiza intervenções no texto, desencadeadas pela sua própria leitura.
O texto seguinte insere na adaptação suas próprias percepções,
ão que chega a modificar seu contexto:
A formiga tinha raiva da sigarra ela vivia feliz deixando os outros
felizes cantando suas canções no inverno a cigarra não tinha o que
comer e a formiga bateu a porta nela e a sigarra morreu (A11,
2006, Texto 11).
O aluno resumiu em um único período toda a narrativa. A inserção
de informações acontece nas afirmões “a formiga tinha raiva da cigarra” e “a
cigarra vivia feliz deixando os outros felizesque, não declaradas no texto original,
surgem da recepção do leitor, sendo transplantadas para o texto adaptado, resultado
que marca o leitor como o “ingrediente fundamental não só do processo de contar
uma história, como também da própria história” (ECO, 1994, p. 7).
O último texto, referente a essa bula, ficou preso ao original.
Realizou pequenas supressões, que, no entanto, alteraram significativamente o
sentido da fábula:
houve uma formiga que não soube compreende a cigarra que
já arrancou sua porta (A12, 2006, Texto 12).
115
Como é perceptível, pelo excerto apresentado, que se assemelha ao
texto completo, a criança, na tentativa de se desprender do texto de base, e assim
promover um diferencial entre eles, retirou e também inseriu, no texto, informações
que alteraram seu significado final. A alterão principal se refere ao dado, não
existente na versão lobatiana, de que a cigarra tenha arrancado a porta da formiga.
Tal inserção destaca que “ao tentar falar demais, um autor pode se tornar mais
engraçado que suas personagens” (ECO, 1994, p. 10).
O conhecimento lingüístico é um dos protocolos necessários durante
o processo de leitura, por desempenhar um importante papel no que tange o
processamento do texto, uma vez que agrupa as palavras em unidades maiores.
São os agrupamentos em unidades constituintes de frase que iniciam a construção
de significados
28
. Desse modo, a motivação para as incongruências se deve ao
desconhecimento, por parte do discente, da língua escrita, principalmente, no que se
refere ao domínio de sinonímias que, na substituição, reproduza, com coerência, o
sentido do texto primeiro.
3.2.5 A Galinha dos Ovos de Ouro
À semelhança de A cigarra e a formiga, o texto A galinha dos ovos
de ouro, aparece na obra de Esopo, brio e La Fontaine, de onde,
possivelmente, Lobato a recolheu. Nas três primeiras versões o antagonista, o dono
da galinha, é um sujeito indeterminado, assumindo determinação somente na
adaptação brasileira, em que o dono, João Impaciente, é uma figura determinada. O
conteúdo varia apenas na forma de apresentação das informações, prosa e verso, e
no trabalho estilístico dessas informões.
Esopo comumente insere adjetivos, recurso que busca intensificar
as informões apresentadas: uma bela galinha, pequeno lucro, desejo insaciável.
Tal quadro se repete tamm nas fábulas de Bábrio.
28
Segundo Kato (1995) três tipos de conhecimento são indispensáveis no processo de leitura: conhecimento
lingüístico: conhecimento implícito, não verbalizado, próprio aos falantes nativos da língua; conhecimento prévio:
saberes que o leitor possui e o conhecimento parcial: estruturas de assuntos, situações, eventos que, guardados
na memória, formam esquemas, que determinam as expectativas do leitor (p 13 – 30).
116
O texto de La Fontaine mantém o enredo disseminado por seus
antecessores, no qual acresce comentários acerca de seu conteúdo, falas que
servem como introdução e conclusão para a narrativa:
A avareza tudo perde ao querer tudo ganhar.
Como testemunho disso quero
Apenas o daquele cuja galinha, conforme diz a Fábula, (...)
E após a evolução dos acontecimentos da narrativa:
Bonita lição para as pessoas avaras!
Nesses últimos tempos, quantas temos visto
Tornarem-se pobres da noite para o dia,
Por desejarem enriquecer muito depressa? (LA FONTAINE, 1957 b,
p. 627).
A fábula brasileira retrata a ânsia de João Impaciente, personagem
determinada que, ao descobrir no quintal uma galinha que bota semanalmente um
ovo de ouro, não consegue controlar a ganância. João mata a galinha pensando
poder ter os ovos de uma vez e, por não esperar, fica, depois da morte da ave, sem
os ovos de ouro. Desse modo, o texto atesta que “quem não sabe esperar, pobre
de ficar” (LOBATO, 1973 b, p.48).
Este texto foi um dos mais escolhidos para o exercício de reescrita,
selecionado por oito crianças, num universo de oitenta e sete textos, número que
representa um total de aproximadamente 9, 1%. Tal predileção pode estar atrelada
ao uso que a mídia e até a literatura faz do conteúdo desta narrativa, seja sob a
forma de desenhos animados, adaptações em livros e em materiais didáticos e até
referências paródicas divulgadas em filmes e outras expressões artísticas do
gênero: desenhos e dramatizações que mostram que a linguagem escrita e a
realidade são instâncias que se ligam dinamicamente.
No texto da criança é perceptível a necessidade de apresentação da
situação, seguindo os moldes escolares da produção textual, como se pode
observar no contraste de passagens:
João Impaciente descobriu no quintal uma galinha que punha ovos
de ouro (LOBATO, 1973 b, p. 48).
117
Um dia um homem chamado João descobriu que uma galinha botava
ovos de ouro (A 6, 2006, Texto 13).
A simplificação ocorre também pela remodelagem das frases, ão
que promove simultaneamente uma atualizão dos vocábulos utilizados, que foram,
nessa tentativa, ora trocados e ora suprimidos.
(...) Mato-a e fico o mandão aqui das redondezas (LOBATO, 1973 b,
p. 48).
- Vou matá-la. Disse ele (A 6, 2006, Texto 13).
Como demonstra a citação apresentada, a adaptação permite a
atualização do referencial, ação que torna possível que a obra possa dialogar com
públicos distintos e em diferentes momentos históricos. Isso porque o “processo de
‘atualização’ de textos exige, inicialmente, considerar que suas significações são
dependentes das formas pelas quais eles são recebidos e apropriados por seus
leitores” (CHARTIER, 1999, p. 13, aspas do autor).
A segunda reprodução é uma espécie de resumo das idéias
principais do texto-fonte, como discutido nas fábulas anteriores, realiza um
compacto dos dados, apresentados em um único parágrafo, como demonstra o
excerto a seguir:
A fábula conta de um homem chamado João Impaciente. Ele não
tinha paciência para esperar as coisas a contecerem. Ele por não
esperar a galinha botar 1 ovo por semana ele a-matou. Por isso ele
não ganhou o dinheiro e morreu pobre (A 7, 2006, Texto 14)
29
.
A terceira produção, também bastante fiel ao texto original, reproduz
o enredo do primeiro, realizando suaves alterações, com o intuito de atualizar o
conteúdo do texto-fonte. No desfecho da narrativa, em que João mata a galinha,
esse quadro fica bastante evidente:
29
As divergências gramaticais com a norma culta, frutos da não – normatização das regras gramaticais,
previsíveis no grupo escolar dessa faixa etária, não desqualificam a apresentação do novo material perante o
texto original, fruto de determinado grupo, tempo e situação específica. Essa ocorrência, discutida anteriormente,
acontece com freqüência nas análises realizadas e será apenas citada nos textos seqüenciais.
118
Dentro dela só havia tripas, como nas galinhas comuns, e João
Impaciente, logrado, continuou a marcar passo a vida inteira,
morrendo sem vintém (LOBATO, 1973 b, p. 48).
Não havia nada somente seu corpo. Saindo deprimido dali sem um
centavo (A 8, 2006, Texto 15).
Além da redução de informões, ocorre a atualização de alguns
termos como vintém que muda para centavo, atualização do sistema monetário
nacional
30
e a inserção de outros como o adjetivo deprimido, termo corriqueiro na
atualidade, em que problemas emocionais e de ordem psicológica são situações
debatidas e presentes no cotidiano.
A reescrita seguinte realiza uma síntese do conteúdo do texto-fonte,
transplantando para sua escrita o conteúdo primeiro. O diferencial deste texto é a
marca que a criança coloca no desfecho de sua produção, no qual sobressai
claramente o final da bula com o uso da palavra resultado, cuja função de
destaque corrobora na divulgação das conseqüências sofridas pela personagem, por
conta de sua ação:
Resultado: João matou a galinha e não encontrou o tesouro, apenas
tripas igual as outras galinhas (A 9, 2006, Texto 16).
Assim a palavra resultado é uma marca clara para a apresentação
do desfecho, que a criança faz questão de ressaltar.
A quinta reestruturação textual ora insere elementos estranhos ao
texto primeiro ora suprime outros pertencentes à narrativa. A inseão se destaca
na apresentação inicial do texto:
Um belo dia um menino chamado João morava num sítio, tinha
galinhas e o João muito impaciente descobriu uma galinha que
botava ovos de ouro (A 10, 2006, Texto 17).
O autor do novo texto insere dados no texto base, ão que
transforma o conteúdo do mesmo, fato que pode ser visto desde a determinação
temporal de Um belo dia, e espacial, que especifica o local de moradia de João, o
30
Era a 20ª parte do cruzado. Antiga moeda de cobre, de Portugal e Brasil, equivalente a 20 réis. Deixou de ter
curso legal em 1942 com o advento do Cruzeiro. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século
XXI: o dicionário da Língua Portuguesa. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1999 p. 132.
119
sítio. Ademais, o substantivo que era próprio no texto lobatiano, Impaciente, assume
a função de adjetivo no texto do discente, impaciente. A inserção e reorganização
dos elementos suavizam a narrativa, amenizando também o tratamento dado ao
protagonista, visto com maior simpatia pelo narrador na narrativa discente do que
aquele da narrativa lobatiana.
A sexta produção inova na apresentação da narrativa, como se nota
na utilização de expressões coloquiais:
João um cara muito enpaciente encontrou uma galinha que bota
ovos de ouro. Só um ovo por semana (A11, 2006, Texto 18).
A criança que inicia o texto rompendo as servidões com a fonte, com
o uso da gíria um cara, uso pouco freente nesse grupo, se liga a ela logo em
seguida, reproduzindo com extrema fidelidade o texto lobatiano. A fidelidade, como
mostra a grafia da palavra impaciente, é quebrada, devido a incorreções de ordem
ortográfica, que se repetem, com outros vocábulos, no decorrer do texto.
A penúltima produção faz pequenas alterações no texto-fonte:
João Impaciente descobriu no quintal uma galinha que punha ovos
de ouro. Mas um por semana apenas. Louco de alegria disse à
mulher:
- Estamos ricos! Esta galinha traz um tesouro no ovário (LOBATO,
1973 b, p. 48).
João Impaciente descobriu uma galinha que botava ovos de ouro.
Mas apenas um por semana. Muito alegre disse a mulher:
- Estamos ricos!!! Essa galinha traz ovos de ouro (A 12, 2006, Texto
19).
O contraste entre os dois excertos mostra que ocorrem, no processo
de reprodução textual, pequenas alterações, como a inversão estrutural de
sintagmas na frase e a atualização vocabular
31
. Desse modo, pode-se pensar que,
na tentativa de fugir do texto-fonte ou apenas na representação do significado
alcançado em sua recepção, registrada a partir da forma que a criança domina, ela
altera a ordem do texto escrito, ao suprimir e inserir poucas informões,
construindo algo um pouco diferente. Alguns dos termos suprimidos podem ser
frutos do desconhecimento da criança sobre seu significado, como é o caso do
31
Casos, como a atualização vocabular, identificados nas análises anteriores, serão apenas citados.
120
substantivo ovário, omitido na versão do aluno. Como destaca Amorim (2005), a
reescrita “recontextualiza a obra original, gerando outras imagens reinscrevendo-a
numa outra realidade na qual é percebida” (AMORIM, 2005, p. 29), transposição que
agrega valores subjetivos à obra literária.
A oitava e última reprodão sintetiza a idéia geradora contida na
fábula lobatiana. A escrita se desprende da fonte no intuito de transmitir a idéia,
prática que transcorre de forma muito clara.
Era uma vez um rapaz chamado João Impaciente que era muito
pobre. Ele tinha uma galinha importante que botava ovos de ouro. 1
por semana! (...) ele não tinha paciência de esperar um ovo de ouro
por semana.
João matou a galinha e não encontrou nada. Ele ficou sem galinha e
sem ouro (A 13, 2006, Texto 20).
O trecho mostra que o aluno inseriu padrões, valores e até fórmulas
discursivas aos quais as crianças estão constantemente expostas. Exemplo disso é
a clássica abertura da narrativa eleita: Era uma vez, referência à marcante presença
dos clássicos infantis na constituição de saberes representativos ao conhecimento
infantil, uma vez que é uma das primeiras formas narrativas que a criança trava
contato, seja em sua forma escrita ou oral. A esse respeito Bordini e Aguiar (1993)
afirmam que a criança entre os 5 e 9 anos de idade se encontra na fase do conto de
fadas, o que significa que
de posse de uma mentalidade mágica, o leitor vai buscar, nos contos
de fadas, lendas, mitos e fábulas, a simbologia necessária à
elaboração de suas vivências. Através da fantasia, resolve seus
conflitos e adapta-se melhor no mundo (BORDINI e AGUIAR, 1993,
p. 19).
A adjetivação presente no texto reforça as características que a
criança pretende destacar: muito pobre, galinha importante. Como o domina a
retórica e as técnicas de argumentação, recorre ao uso indiscriminado dos adjetivos
na tentativa de ressaltar as idéias que pretende descrever.
Além disso, a criança insere dados estranhos ao texto original como
a classificação etária do protagonista, marcado em sua denominação por meio do
substantivo rapaz.
121
A conclusão da narrativa é muito clara, pois a criança abandona o
discurso de que Lobato lança mão para que o leitor chegue a sua própria conclusão.
Nessa reescrita, a criança apresenta a sua conclusão a partir da constatação de que
“ele ficou sem galinha e sem ouro” (A 13, 2006, Texto 20).
3.2.6 A Garça Velha
A fábula A garça velha, surgida na vertente indiana da fábula, sob o
título de A garça e o caranguejo, retrata as maquinações de um animal, a garça,
frente aos problemas de uma iminente falta de alimentação. O caranguejo, nessa
versão, assume um papel de destaque, por ser o responsável pela difusão da
informação, apresentada pela garça e ser tamm o responsável pela aplicação do
castigo à protagonista. O texto indiano foge da estrutura sintética apresentada pelos
demais autores. Além disso, insere, no texto, comentários que funcionam como
lições de moral. Também o desfecho é distinto, pois a protagonista, não satisfeita
em se alimentar apenas dos peixes, tenta dar semelhante destino ao caranguejo,
que suspeitando da gaa, corta-lhe o pescoço, matando-a. Nos textos posteriores, o
caranguejo assume posição de coadjuvante na narrativa, sendo responsável apenas
em divulgar a falsa informão e assim, colocar em prática o plano da garça.
Na versão francesa, Os peixes e o alcatraz, que em algumas
traduções recebe a denominão de corvo marinho, o animal enfrenta dificuldades
para pescar por causa da idade. Como sempre sobrevivera às margens de uma
lagoa de águas turvas, para continuar vivo, teve a idéia de espalhar o boato de que
o lago estava condenado. Os peixes aterrorizados pediram-lhe conselho e a garça
sugeriu que todos se mudassem para um poço. O impasse da mudança foi resolvido
pela própria ave que transportou todos os peixes em seu bico. O poço era pequeno
e de águas límpidas e assim a garça garantiu alimento até o fim de sua vida. A moral
da fábula afirma que não se pode confiar em conselhos de inimigo.
Assim, como se verificará na reescrita realizada por um dos alunos,
analisada a seguir, ocorre entre o texto de La Fontaine e sua adaptação, no caso, o
texto de Monteiro Lobato, uma espécie de atualização vocabular, comum na
reescrita de textos separados por uma distância temporal, como aponta a seleção a
seguir:
122
Ergue-se grande celeuma;
Correm, fazem reuniões;
Todos ao corvo marinho enviam depurações:
“Quem vos deu, senhor (perguntam)
Tão tristes informações? (LA FONTAINE, 2006, p. 248).
Grande rebuliço. Graúdos e pequeninos, todos começaram a
pererecar às tontas, sem saberem como agir. E vieram para a beira
dágua.
- Senhora do bico longo, dê-nos um conselho, por favor, que nos livre
da grande calamidade (LOBATO, 1973 b, p 49).
A paródia textual entre os textos é marcada por humor, como
destaca a troca de tratamento para com a garça que, tratada por senhor no texto
francês, pronome de tratamento que confere um tom respeitoso, passa para senhora
do bico longo. A preservação do pronome de tratamento, desta vez, flexionado no
feminino, não mantém o tom respeitoso, graças ao acréscimo de uma locução
adjetiva, que agrega humor, marca da paródia, ao texto base.
Além da distância temporal, também os públicos a que as obras são
dirigidas influenciam sua forma. O texto francês destinava-se ao público adulto, pois
a produção literária ainda não se dirigia, até aquele momento histórico, às crianças,
embora as fábulas, devido ao seu viés moralizante, fossem utilizadas como um
instrumento doutrinário na educação. Já a adaptação brasileira nasceu direcionada
aos leitores infantis, predestinação que lhe moldou tanto a forma quanto o conteúdo,
atendendo aos objetivos de mercado e público.
A fábula A garça velha foi escolhida por apenas um aluno, que
assume o papel de contador da história. Tal escolha, segundo a teoria discutida por
Amorim (2005), divide-se entre manter-se fiel ao texto-fonte ou inová-lo, e a criança
acaba se desprendendo do original, como mostra a primeira modificação que
consiste na passagem do texto para a ordem indireta:
(...) lhe ocorreu uma idéia.
- Caranguejo, venha cá!disse ela a um caranguejo que tomava sol
à porta do seu buraco.
- As ordens. Que deseja?
- Avisar você de uma coisa muito séria. A nossa lagoa está
condenada. O dono das terras anda a convidar os vizinhos para
assistirem ao seu esvaziamento e o ajudarem a apanhar a peixaria
toda. Veja que desgraça! o vai escapar nem um miserável guaru
(LOBATO, 1973 b, p. 48).
123
Teve a idéia de avisar aos peixes que o dono do lago iria secar o
lago e todos os peixes morreriam (A13, 2006, texto 21).
Além da modificação da ordem do discurso o discente concentra as
informões do texto primeiro, prática observada em outras produções, por meio
do principio da parcimônia, ação que promove versões mais enxutas.
3.2.7 A Gralha Enfeitada com Penas de Pavão
A fábula A gralha enfeitada com penas de pavão recebeu três títulos
diferentes, na obra atribuída a Esopo: A gralha e os corvos, A gralha e as aves, A
gralha e as pombas, mudanças que alteram, em alguns aspectos, o conteúdo, mas
reproduzem a mensagem. Em A gralha e os corvos aparece a figura mitológica de
Zeus que escolheria a rainha das aves. Disfarçada com penas de outras aves, a
gralha, prestes a ser eleita, é desmascarada, sendo, em seguida, recriminada. Em A
gralha e as aves, novamente a gralha, personagem que rejeita seu grupo social, ao
ser menosprezada pela outra espécie, recebe o desprezo de seus semelhantes. Na
fábula A gralha e as pombas repete-se o conflito: tentativa de mudança de grupo e o
desfecho tamm conduz a rejeição da gralha por ambos os grupos.
Em Bábrio retomam-se as figuras mitológicas e um concurso de
beleza é a motivação para o disfarce da gralha. Fedro, em sua versão, faz referência
a sua fonte, Esopo, como origem da narrativa a ser descrita na seqüência, na qual
o mantidas, à semelhança dos demais autores, a motivação, temática e desfecho
narrativo.
Na raiz indiana dessa fábula, a gralha cede lugar, segundo princípios
da domesticação, por meio da agregação de valores da língua de chegada, a um
chacal, que caindo em uma tina de tinta azul, julga-se superior devido a sua
diferença física. O orgulho, à semelhança dos demais textos, é a causa de seu final
trágico que, no texto indiano, é representado pela morte do animal orgulhoso.
No texto francês, traduzido pelo Barão de Piratininga, as difereas,
de caráter vocabular, iniciam-se ainda no tulo: O gaio que se revestiu das penas do
pavão.
A fábula lobatiana conta que uma gralha teve a idéia de aproveitar
as penas caídas de pavão e disfarçar-se de pavão. Após enfeitar-se, segue para o
124
terreiro das gralhas, sendo enxotada. A ave procurou, então, o terreiro dos pavões
que tamm perceberam o engano, o que lhe acarretou nova humilhação,
conseguindo com isso o ódio das primeiras e o desprezo das últimas. A moral “lé
com lé e c com cré” (LOBATO, 1973 b, p.15) quer dizer que cada um deve
reconhecer seu lugar.
A reescrita do texto lobatiano se enquadra em um dos tipos de
paródia: a que ressalta a função crítica do texto literário. Isso acontece na retomada
da crítica propagada por La Fontaine, por meio da fábula, e nas considerações que
se seguem a ela que, na voz de Emília, apresentam exemplos comuns ao universo
do Sítio e parafraseiam o conteúdo original.
A primeira reprodução textual dessa narrativa, realizada por uma das
crianças, não apresenta título. Salvo essa omissão, está muito preso ao original.
Fidelidade que esbarra em barreiras como a não consolidação da língua portuguesa,
na modalidade escrita, como pode ser visto no excerto a seguir:
Como os pavões andamssem em época de muda, uma gralha teve a
idéia de aproveitar as penas caídas.
(...) Mau cauculo (A2, 2006, texto 23, grifo nosso).
As palavras destacadas mostram que, mesmo presas ao texto, as
crianças podem se desviar das fontes
32
.
A produção a seguir foi a primeira do grupo a apresentar inovações
em comparão ao texto-fonte. Nela ocorre a mudança temporal, que passa do
pretérito para o presente, numa marcante atualização temporal:
(...) os pavões andassem em época de muda (LOBATO, 1973 b, p.
15)
Os pavões andam em época de muda (A2, 2006, texto 24).
Além da atualizão temporal dos verbos, também os vocábulos são
submetidos à transposição para o presente. O verbo pavoneando, utilizado por
Lobato, é trocado pelo verbo voando, alteração que muda significativamente o
conteúdo narrativo, pois se o uso de pavonear traz a idéia de exibição, o verbo voar
32
Nesse caso, o desvio foi promovido pela não apropriação da linguagem escrita, uma vez que tendo o modelo
em mãos, o mesmo não foi seguido totalmente pelo discente, ato que ocasionou as incorreções gramaticais.
125
nada tem a ver com tal sentido. A escolha da criaa deve estar ligada às
associações sonoras que podem estar embutidas nas duas palavras, uma vez que,
ao desconhecer o significado da palavra, o aluno se ateve apenas em levantar
associações com seu significante. Ocorrência similar, mais ajustada, entretanto,
quanto às relações de significado e significante, é perceptível no seguinte período:
As gralhas perceberam o embuste, riram-se dela e enxotaram-na à
força de bicadas (LOBATO, 1973 b, p. 15).
As gralhas acharam ela horrível (A2, 2006, texto 24).
A construção lobatiana reorganiza o contexto de forma a levar o
leitor a induzir a não aceitação da gralha, na narrativa, pelas outras aves. A criaa,
por meio do uso do adjetivo horrível, declara o conteúdo abertamente, não deixando
espaço para as construções interpretativas de seu receptor. O quadro descrito
favorece, segundo os princípios discutidos por Jauss na corrente da Estética da
Recepção, a experimentação do texto pelo leitor.
Assim, o aluno marca o texto com sua própria recepção, agregando
a ele significados de sua leitura particular. Exemplo disso é a moral que traz, além
do trecho original “lé com lé, cré com cré”, uma frase similar, sinônimo ideológico
presente no senso comum: cada um no seu lugar, fala que apresenta a idéia que
pode ser associada às segregações, sejam elas sociais, raciais ou de outra ordem.
Faz falta uma discussão por parte da docente, tanto nesta quanto em outras fábulas,
sobre o caráter moralizante do texto fabular, objetivando com tal debate uma revisão
crítica das idéias aí difundidas, à semelhança do que fez Lobato ao final de cada
fábula. Tais discuses, retiradas da abordagem em sala de aula, impede a reflexão
sobre idéias e conceitos moralizantes e doutrinários, que pertinente, poderia
corroborar para uma possível desconstrução de juízos preconceituosos.
Na última produção ocorre a inserção de elementos estranhos à
narrativa original, que se inicia já na localização temporal:
Um dia os pavões estavam em época de mudas, passou por ali uma
gralha e ela teve a idéia de (...) (A10, 2006, texto 25, grifo nosso).
Além da determinação de tempo, outros elementos são agregados,
durante a constituição textual, à fábula. O trecho destacado, passou por ali uma
126
gralha, substitui uma gralha, alteração que mostra a necessidade da criança em
fornecer explicações completas, sanando, com isso, dificuldades interpretativas que
ela pode ter enfrentado em seu contato com o material impresso.
Outra motivação para essa ocorrência se deve ao fato dos alunos do
Ensino Fundamental, em situações de avaliação, como é o caso de uma produção
de texto escolar, procurarem fornecer todas as informações possíveis, na tentativa
de transmitir o sentido necessário para seu leitor, no caso específico, o professor.
Em outros momentos, o discente troca a inserção de informações
pela supressão de dados:
(...) dirigiu-se ao terreiro dos pavões pensando consigo (LOBATO,
1973 b, p. 15).
A gralha correu para o terreiro dos pavões e pensou (A10, 2006,
texto 25).
A construção pensando lá consigo foi trocada simplesmente por
pensou. A forma sintética é mais acessível nas práticas de recepção, o que mostra
tanto a possível preocupação do discente em facilitar a acessibilidade ao novo texto
quanto simplesmente um reflexo das dificuldades de interpretação por ele
enfrentadas, que são evitadas durante a constituição da sua versão para o texto.
Em outras situações, a criança apenas suprime partes da frase:
E a pobre tola, bicada e esfolada, ficou sozinha no mundo.
(LOBATO, 1973 b, p. 15).
A pobre tola ficou sozinha no mundo (A10, 2006, texto 25)
Nos trechos apresentados, a criança retirou da caracterização da
gralha os adjetivos que definiam sua condição, eliminando o aposto existente na
frase. A transposição textual, defendida teoricamente por Monteiro Lobato, como
uma ação de reescrita que deveria ser livre de rebuscamentos de linguagem e
construção, encontra reflexo também na produção infantil, que se concretiza na
retirada ou troca de expressões que não construíram sentido ou estavam fora do
campo significativo da criança.
127
3.2.8 A Menina do Leite
A próxima narrativa, um dos textos mais conhecidos dentre as
fábulas lobatianas, A menina do leite, possui raízes na cultura indiana, sob o título
original de O brâmane e o pote de farinha, pertencente ao volume A ão
inconsiderada. Nesse texto, a personagem ganha, de esmola, um pote de farinha de
arroz. Pensa em vender as sobras e começa a idealizar a multiplicação do recurso
oriundo com a venda. Os devaneios são interrompidos com a quebra do pote.
Dezotti (2003) ressalta que na transcrição de La Fontaine ocorrem
algumas substituições nas quais o brâmane cede lugar a uma mulher, Perrete, que
segue para vender leite carregando em uma vasilha sobre a caba. Com a queda
do recipiente, a personagem teme ser castigada pelo marido.
O enredo dessa bula aparece também em outras expressões
literárias, em textos educativos e ana obra de Gil Vicente e nos contos de Grimm
(DEZOTTI, 2003). Baseando-se em La Fontaine, Lobato cria sua versão para a
Fábula, na qual a mulher cede lugar a uma menina, Laurinha, que se dirige à cidade
para vender o primeiro leite de sua vaquinha. A protagonista faz planos para o
dinheiro que vai conseguir e, em meio a suas divagações, tropeça e o leite,
juntamente com seus sonhos, serem embebidos pela terra seca.
A segunda fábula mais escolhida entre as crianças foi, em um
universo de oitenta e sete reproduções, reescrita sete vezes, totalizando mais de 8%
do total de textos. O elevado índice de escolhas rompeu com uma das hipóteses
iniciais, de que textos mais extensos seriam pouco escolhidos, por representar um
maior trabalho, uma vez que uma proposta de reescrita deveria ser desenvolvida. O
fato de ser um texto conhecido e constantemente parodiado, reescrito e retomado
pelos mais diferentes veículos de comunicação e informão, constitui o motivo do
número de escolhas que conquistou, interesse que driblou, inclusive, a falta de
matrizes à disposição.
A primeira adaptação dessa fábula apresenta o formato de resumo,
recorrência identificada já em outros textos:
Essa história conta sobre uma menina que se arrumou toda para ir
no mercado vender leite (A3, 2006, Texto 26).
128
Mesmo alterando significativamente a forma e simplificando o
conteúdo do texto, o aluno se prende a alguns itens da fonte, como no caso do título,
que reproduz o ostentado pelo texto original.
Um fato curioso diz respeito às partes da fábula, pois o texto
apresentado pela professora não possuía uma moral, marca registrada nesse tipo de
texto. Somente no comentário que se segue ao texto, no livro bulas (1922),
desenvolvido pelas personagens do Sítio após a situação de contação, é que Dona
Benta apresenta uma possível moral, por meio de uma conversa pedagógica com as
demais personagens: não devemos contar com uma coisa antes de a termos
conseguido. Presas ao molde de que a moral deve suceder o texto narrado, todas as
crianças que reproduziram essa fábula, a apresentaram na íntegra ou em versões
com variantes desta idéia norteadora.
A presença/ausência da moralidade nos textos fabulares era
discutida por La Fontaine. Segundo ele, nem Esopo nem Fedro, seus antecessores,
a dispensavam, sendo que, enquanto o primeiro a mantinha separada do corpo do
texto, sempre ao final da narrativa, o último o se sujeitou a tal ordem, colocando-a
no início do texto em algumas ocasiões. Já La Fontaine afirma omiti-la quando não a
considera necessária. Como já discutido no capítulo anterior, cujo intuito se pautou
em discutir o gênero fábula, La Fontaine afirma preterir a moralidade, deixando, em
alguns textos, ao leitor a tarefa de deduzi-la. Para o fabulista, a omissão é uma
forma de construção textual, que ele defende, afirmando que “se o fiz algumas vezes
foi em lugares onde ela não caberia com graça, e onde é fácil ao leitor deduzi-la”
(LA FONTAINE, s/d, p. 24).
Isso também acontece no texto lobatiano, que se não declara, no
caso dessa narrativa especificamente, sua moralidade, faz do debate entre as
personagens do Sítio do Picapau Amarelo a motivação para uma ampla discussão,
que ultrapassa a mera apresentação da moral e alça reflexão minuciosa sobre o
conteúdo da mesma.
Inclusive nas questões de forma, como na inserção e/ou exclusão da
moralidade, a recepção da obra de arte literária depende do leitor. Quando se trata
de um leitor proficiente
33
, leitor denominado pela nomenclatura de descendente
34
ou
33
Aquele que faz mais uso de seu conhecimento prévio do que da informação efetivamente dada pelo texto.
KATO, Mary. O aprendizado da leitura. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995.p 51.
34
Abordagem não linear, (top down) que faz uso intensivo e dedutivo de informações não visuais e cuja direção
é da macro para a microestrutura e da função para a forma. KATO, op cit, p 50.
129
top-down, a situação não deve apresentar maiores problemas, pois é considerado
capaz de fazer inferências e utilizar discernimento crítico e conhecimento prévio para
a decodificão e compreensão do material a ser lido. o leitor que utiliza uma
metodologia de leitura ascendente
35
ou botton-up, como as crianças do primeiro
Ciclo do Ensino Fundamental, que tem no material impresso o principal elemento de
compreensão e o tiram conclusões apressadas, o que atribui certa vagarosidade,
pouca fluência e dificuldade de sintetizar as idéias (KATO, 1995, p 51), necessita de
clareza para que aconteça a relação de
interação entre autor – obra e leitor, porque o autor se propõe a fazer
algo, e quando essa intenção está materialmente presente no texto,
através de marcas formais, o leitor se propõe a escutar,
momentaneamente, o autor, para depois aceitar, julgar, rejeitar
(KLEIMAN, 1997, p19).
No caso apresentado, a criança imprime ao referencial escrito sua
leitura, marcada pelas influências do indivíduo. Para Orlandi (1999), cada indivíduo é
fruto das influências ideológicas as quais está exposto e dessa formação depende o
posicionamento dele perante o material de leitura.
O segundo texto, bastante preso ao original, apresenta poucas
diferenciações, que se devem, muitas vezes, às práticas de escrita que a criança
domina, como recorrente em outros casos já citados, o que a leva a suprimir e inserir
informações ao texto base:
Laurinha, no seu vestido novo de pintinhas vermelhas, chinelos de
bezerro, treque, treque, treque, lá ia para o mercado com uma lata de
leite à cabeça o primeiro leite de sua vaquinha mocha (LOBATO,
1973 b, p. 22).
Laurinha no seu vestido que tinha pintinhas vermelhas e ela estava
de chinelo de bezerro e ela estava indo para o mercado com uma
lata de leite na cabeça (A4, 2006, Texto 27).
O contraste entre os excertos mostra que a criança ora insere e ora
suprime elementos textuais na transposição, para as próprias palavras, do texto
canônico. Nesta espécie de atualização da obra literária, Zilberman (1989) atesta
que, por meio das constantes leituras a que é submetida a entidade textual, ocorrem
35
É um processamento linear (bottom-up) [que] faz uso linear e indutivo das informações visuais, lingüísticas, e
sua abordagem é composicional, (...) isto é, constrói o significado com base nos dados do texto, fazendo pouca
leitura nas entrelinhas. KATO, op. cit., p 51.
130
modificações nos novos registros textuais, prova de que o texto é, em essência, algo
mutável, que se submete a diferentes leituras, no decorrer do tempo.
Desse modo, a supreso de elementos, assim como a inserção,
o modificações impingidas aos referenciais, pautadas no vel das dificuldades,
inerentes ao processo de síntese e leitura. O corte de elementos é notável na
retirada de adjetivos como no caso de novo, das onomatopéias treque e até a
omissão de informações, como a procedência do leite. Além disso, a criança muda a
construção dos períodos, alterando termos, que a princípio estariam subentendidos,
inserindo-os no texto: que tinha; e ela estava; e ela estava indo para o, além de
outros que aparecem no decorrer da narrativa. Tais intervenções nos textos,
realizadas pelos alunos, estão pautadas no vel das dificuldades inerentes ao
processo de domínio da síntese e da leitura.
Somam-se às informações de construção narrativa as conclusões do
leitor, ação que extrapola a imparcialidade do responsável pela escrita:
(...) ela sonhou com coisas muito difícil de acontecer se ela tinha
uma lata de leite para vender (A4, 2006, Texto 27).
Parte da crítica, como Benjamin (1923), condena quando se tratam
de reescritas profissionais (tradução e/ou adaptação), voltadas para o mercado, a
inseão de valores estranhos ao texto original, como acontece com a inclusão de
juízos de valor. Outros, a exemplo do próprio Monteiro Lobato, reconhecem a
participação do autor, que é, em realidade, o primeiro leitor, cujo repertório de
conhecimentos prévios pode, voluntária ou involuntariamente, influenciar o texto
final, prática que acontece na transposição do texto canônico pela criança, tanto no
vel estrutural quanto no ideológico.
O texto seguinte altera um item quase sagrado para o adaptador
mirim: o título. Poucas reescritas alteraram o nome da bula. As produções desse
grupo tiveram duas ocorrências. No caso em questão, o título original recebeu um
acréscimo, o que alterou A menina do leite para A menina do pote de leite. O
acréscimo do substantivo simples, que assume a fuão de núcleo do predicado,
antecipa o motivo do conflito, uma vez que a queda do pote é o gerador do
problema, responsável pela não concretização das ilusões da personagem.
A reprodução textual é muito parecida com a obra original, pois
como ocorre com outras produções, acontece uma espécie de mediação lingüística,
131
na qual a criança registra a linguagem que domina, como mostra o confronto dos
trechos apresentados a seguir:
- Vendo o leite – dizia – e compro uma dúzia de ovos. Choco os ovos
e antes de um mês já tenho uma dúzia de pintos. Morrem... dois, que
sejam, e crescem dez cinco frangas e cinco frangos (LOBATO,
1973b, p. 22).
Ela vende o leite e dizia que com o dinheiro que receber iria comprar
uma dúzia de ovos, com esses ovos iria chocar e antes de um mês
iria nascer seus pintinhos, mesmo morrendo dois teria cinco frangos
e cinco frangas (A5, 2006, Texto 28).
A reescrita seguinte tamm altera o título original para A menininha
do leite. A flexão do substantivo para o grau diminutivo pode ter sido escolhida,
consciente ou inconscientemente, de forma a direcionar a interpretação, por meio de
uma antecipação dos fatos a serem desenvolvidos na seqüência. Tal fato se
comprova se for adotada a perspectiva que a perda do leite pode ser conseqüência
da inaptidão para o transporte, realizado por uma criança ainda pequena, como
aponta a flexão de grau do substantivo menina.
A quinta reescrita sintetiza, a exemplo de outros textos, o conteúdo
primeiro. Os devaneios de Laurinha são substituídos por:
Pelo caminho ela ia fazendo varias contas em trocas de animais (A8,
2006, Texto 29).
Mesmo reduzindo o conteúdo do texto original, o discente insere
novas informações, adjetivos, em sua grande maioria, que podem agir como reforço
dos dados apresentados:
(...) ia feliz até o mercado com uma lata de leite na cabeça (A8, 2006,
Texto 29).
A penúltima produção sintetiza as idéias do texto original, chegando
a alterar o significado primeiro:
- Vendo o leite e eu compro muitos ovos, choco até virarem galinha,
vendo e compro porcos para comer! (A12, 2006, Texto 31).
132
Na fábula lobatiana os porcos, que Laurinha deseja adquirir, não são
para alimentação, mas sim para reprodução e criação, como atesta o trecho, não é o
que o aluno faz. A reescrita do conteúdo primeiro, conforme defende Monteiro
Lobato, é uma ão delicada, uma vez que pode alterar o significado, ao retratar
medianamente o contexto da obra literária. O discente não realiza um processo
consistente de criação textual, mas sim uma tarefa de escrita.
Outra alteração que modifica o sentido consiste na alternância de
significados, uma vez que no texto lobatiano, após a queda, Laurinha esfola o joelho
e no texto do aluno o joelho recebe outra função:
Chorouse de joelhos, agora não vai mais comprar as galinhas e os
porcos apenas na imaginação (A12, 2006, Texto 31).
O excerto apresentado mostra a alteração de sentido, que passa de
joelho machucado (parte do corpo ferida) para chorar de joelhos (forma de lamentar-
se). no campo da idéias também ocorre uma mudança significativa de sentido, a
partir da afirmação, por parte do narrador, que as pretensões da protagonista ficarão
restritas à imaginação de Laurinha, fala que difunde uma idéia limitadora acerca da
personagem.
A inserção de elementos estranhos ao texto, definido por Venutti
(1998) como transgressão, consiste, como observado no texto analisado, na
inseão de itens não-presentes no conteúdo primeiro, mas que, no entanto,
representa mecanismos que podem significar a recepção do autor/leitor como
tamm ser importante para a recepção do leitor.
A alteração de palavras e até a pontuação podem modificar
totalmente o sentido da escrita. Esse fato é perceptível também na reprodução da
moral, que devido à supressão de um conectivo, assume outro campo significativo:
Não devemos contar [com] as coisas antes de termos conseguido
(A12, 2006, Texto 31, grifo nosso).
Com a ausência da conjuão com, o verbo contar assume o
significado de determinar o número, enquanto que, com a inserção do conectivo
passa a significar a relação de contato, situação difundida pelo texto original.
133
A última adaptação sintetiza o conteúdo primeiro, prática bastante
corriqueira na análise textual deste grupo, como destaca o trecho seguinte:
Enquanto andava Laurinha planejava o que fazia com o dinheiro do
leite vendido. Fazia contas e sem querer tropessou e derramou todo
o leite (A13, 2006, Texto 32)
36
.
Como grande parte das produções realizadas, também esta recorre
a princípios de redução, sintetizando o conteúdo literário. Em tal prática o leitor
imprime na obra literária seu olhar e, consequentemente, todo o campo de
informações de que é fruto.
3.2.9 A Rã e o Boi
O nono texto selecionado, A e o boi, em Esopo traz uma
apresentação diferente, na qual outras protagonistas o nome ao texto, que passa
para A raposa e a serpente. A bula trata de uma raposa que quer se assemelhar
em tamanho ao de uma serpente e, ao tentar, o animal arrebenta.
Bábrio, à semelhança de Esopo, traz à cena animais estranhos ao
texto lobatiano, um lagarto e uma cobra, sendo o primeiro o que aspira alcançar o
tamanho do outro, no texto intitulado O lagarto e a cobra.
Fedro, em seu texto A arrebentada e o boi, apresenta as
personagens difundidas por Lobato, a rã e o boi, e segue a temática de seus
antecessores.
La Fontaine, em A rã que quis ficar tão grande quanto o boi, repete o
enredo dos demais autores. Monteiro Lobato, à moda do fabulista francês, traz em A
e o boi uma saracura e uma que tomavam sol à beira de um brejo quando
chega um boi ao bebedouro. A diz poder ficar do tamanho do boi, afirmão
contestada pela interlocutora. A começa a estufar-se até explodir. O boi, que
acompanha a cena, afirma que “quem nasce para dez réis não chega a vintém
(LOBATO, 1973 b, p.13), moral da fábula.
36
A criança apresenta uma versão resumida, na qual os fatos principais são descritos com palavras próprias, o
que inclui erros ortográficos, comuns na fase de aquisição da linguagem escrita.
134
Adaptada por seis crianças, a primeira versão de A e o boi,
embora bastante ligada ao texto lobatiano, realiza algumas alterações significativas.
A primeira delas é a reorganização da ordem dos sintagmas dentro da frase, que
deixa a forma indireta, adotada por Lobato, e assume, na vero infantil, a forma
direta, recorrência bastante comum nas reescritas infantis. Tal movimento de
reorganização da narrativa se deve à simplificação que isso promove, ação que
influencia diretamente o processo de recepção propriamente dito, uma vez que a
ordem direta é mais simples para a leitura, principalmente para as crianças,
facilitando, conseqüentemente, a interpretação textual.
Tomavam sol a beira dum brejo uma e uma saracura. Nisto
chegou um boi, que vinha para o bebedouro (LOBATO, 1973 b, p.
13).
Uma e uma saracura estavam tomando sol na beira da lagoa,
assim apareceu um boi (A3, 2006, Texto 33).
Segundo Foucault (1995), a prática de reescrever permite a
reconstrução de novos discursos, como foi feito pela criança na reescrita dessa
fábula, por meio da atualização do referencial, ação que permite o diálogo com
públicos e momentos históricos distintos.
A segunda reescrita, bastante fiel ao original, difere deste apenas
por supressões de algumas informações, possivelmente na tentativa de diferenciar o
texto pela alteração da ordem de escrita:
Uma e uma saracura tomavam sol. Depois chegou um boi para
beber água (A6, 2006, Texto 34).
Nota-se que, em grande parte das produções analisadas, a
simplificação faz parte do processo de transposição da leitura para a escrita do texto
literário, sendo constantemente utilizada:
O boi, que tinha acabado de beber, lançou um olhar filósofo sobre a
rã moribunda e disse: (LOBATO, 1973 b, p. 13)
O boi disse a rã (A6, 2006, Texto 34).
135
No caso apresentado, a simples comparação da extensão entre os
trechos chama a atenção, uma vez que o texto do aluno é menor, por ele se ater
às ocorrências centrais.
A terceira produção modifica, a seu modo, o conteúdo textual, como
mostra o trecho a seguir:
A beira de um lago duas rãs conversavam e de repente um boi
chegou para beber água (A7, 2006, Texto 35).
Aqui ocorre a mudança de uma das personagens, pois a saracura,
ave que habita locais alagadiços e margens de lagos, sendo uma espécie pouco
conhecida, cede lugar a outra rã, animal comum tanto nos meios rurais quanto nos
meio urbanos. Como citado durante a explanação sobre a Estética da Recepção,
a langue, vista como conjunto de normas de cada obra literária, é transcrita como
parole, sistema de domínio de cada leitor, particularidade que promove as
peculiaridades de cada reprodução textual. Nesse caso, em especial, o significante
desconhecido cede lugar a outro cujo significado é conhecido para o leitor. Na
reescrita desta fábula por Esopo, Bábrio, Fedro e La Fontaine é perceptível esse tipo
de atualização, na qual o autor traz à cena animais comuns a seu tempo e espaço,
ocorrência que se repetiu também nas reescritas infantis, principalmente nas
reescritas deste grupo.
Um diferencial desse texto é a clara inserção da opinião do
narrador
37
:
Ela (a rã) nunca seria do tamanho do boi (A7, 2006, Texto 35).
À semelhança da anterior, a próxima narrativa altera algumas
informações, possivelmente como resultado da busca de termos significativos para a
criança. Desse modo, o discente troca a personagem saracura por um passarinho
indeterminado. Lobato, ao adaptar os textos à realidade brasileira, teve o cuidado de
substituir situações e personagens que fossem mais conhecidos para o público. Tal
movimento se repete nas alterações realizadas pelas crianças, que também
representam realidades de seu momento. Outra amostra da mudança de
informações está na moral, que foi transcrita da seguinte forma:
37
Exemplo de ocorrência similar foi apresentado na análise da fábula A menina do leite (p. 132).
136
Quem nasse para dez réis não chega a vinte (A11, 2006, Texto 36).
Possivelmente, por desconhecimento do sistema monetário
38
em
desuso, a criança altera os valores, igualando vintém e vinte, alteração na qual
substitui a moeda, propriamente dita, por um valor. Ao tentar fornecer as
informações necessárias, o autor provoca um quadro de humor, promovido pela
incoerência dos dados fornecidos.
A troca acontece pela necessidade de construção de sentido para o
leitor. Para Jauss (1994), inúmeras características servem de orientação e podem
influenciar a leitura, por meio da alteração, correção, transformão ou
simplesmente reprodução das informações. O caso em destaque alterou a
informação, situação que pode ter sido desencadeada pela não contemplação desse
tipo de informação pelo saber prévio da criança.
A penúltima narrativa é uma cópia fiel da fonte, ação que cumpre, na
manutenção até das aspas, o retrato do texto, salvo uma única exceção,
merecedora de destaque. O texto todo é uma reprodução do texto primeiro. No
entanto, logo após a onomatopéia, que representa a explosão da, a criança
interrompe o texto, deixando-o sem final. Não se sabe, entretanto, se a reprodução
do texto-base consiste na não-ruptura com o original ou se resume em uma mera
pia da bula lobatiana. A interrupção, sofrida pela versão, ignora a fala do boi,
que representa a moral da fábula. Não se sabe se o corte na narrativa obedeceu a
questões de extensão ou se o aluno entendeu e escolheu a explosão como
desfecho para sua fábula. Eco (1994) mostra que as opções a que está submetido o
leitor existe[m] amesmo no vel da frase individual” (p. 12), regulando aceitação
e/ou omissão de dados textuais.
A última produção apresenta uma versão sintetizada do conteúdo,
escrita com as palavras da criança:
A rã fez tanto esforço engolindo ar e estufando que explodiu.
O boi disse:
- Quem nasce para 10 réis não chega a vintém (A13, 2006, Texto38).
38
Outros textos que retratam questões pecuniárias são apresentados nas análises referentes às fábulas A
galinha dos ovos de ouro (p. 119) e nas ilustrações desta fábula e d’ A menina do leite (Anexos E 9 e E 15).
137
Desta reprodução destacam-se peculiaridades textuais da faixa
etária, como o uso de numerais no texto escrito, prática que representa a falta de
domínio da modalidade escrita da linguagem padrão e uso dos recursos que o
discente domina.
3.2.10 A Raposa e as Uvas
A fábula seguinte, sob o título de A raposa e as uvas, é adaptada por
Esopo, brio, Fedro e La Fontaine achegar a Lobato. Salvo poucas diferenças
de construção de forma, entre as quais se nota inserção de adjetivos, os textos são
muito parecidos. Retratam uma raposa com fome que encontrou uma parreira
carregada de cachos de uvas maduros. Como não conseguiu alcançá-los, murmurou
que estavam verdes e só serviriam para cachorros. Ao afastar-se do local, uma folha
caiu e a raposa, ouvindo o barulho, voltou depressa farejando. A moralidade,
bastante conhecida, atesta que, “quem desdenha quer comprar” (LOBATO, 1973 b,
p. 47).
A narrativa, reescrita por seis alunos, recebeu, na primeira versão,
escrita idêntica ao original, mantendo o mesmo conteúdo e construção. A única
divergência foi a supressão, no texto infantil, da moralidade da fábula, questão
discutida anteriormente, a partir das discussões de La Fontaine a esse respeito.
A segunda produção realiza uma atualização vocabular significativa,
ao alterar palavras do texto lobatiano por outras comuns ao universo da criança,
vocábulos esses tamm familiares ao grupo social e etário, quadro retratado nos
excertos a seguir:
Certa raposa esfaimada encontrou uma parreira carregadinha de
lindos cachos maduros, coisa de fazer vir água à boca. Mas tão altos
que nem pulando.
O matreiro bicho torceu o focinho (LOBATO, 1973 b, p. 47).
Um dia, uma raposa faminta viu um de uma uva mas não
conseguiu pegar nenhuma uva pulando (A3, 2006, Texto 40).
Além de inserir a determinação temporal, por meio do adjunto
adverbial um dia, o adaptador seleciona, para seu texto, palavras utilizadas
comumente na atualidade. Essa troca acontece na substituição do adjetivo
138
esfaimada por faminta, do substantivo parreira por pé de uva, esse mesmo termo
aparece em outro momento do texto como árvore de uva, também o verbo farejar é
substituído por cheirando. Outras terminologias são simplesmente suprimidas ou
tem seu conteúdo diluído no contexto.
Algumas ocorrências, não presentes no texto original, aparecem na
reescrita. Exemplo disso é a passagem E foi-se” (LOBATO, 1973 b, p. 47), que
recebe, na versão da criança, um complemento que faz, em seu desenvolvimento,
alusão à moradia da raposa:
(...) depois ela voltou a sua toca (A3, 2006, Texto 40).
Se o texto lobatiano não faz referência à moradia da protagonista e
nem atesta um longo deslocamento do animal, que retorna à cena ao ouvir o barulho
da queda de uma folha, na versão da criança, a personagem iria até sua toca, sem
atentar que seria difícil ouvir o ruído a longa distância. Mesmo não fazendo
referência à possível distância da toca, para a criança tais questões não influenciam
a verossimilhança do texto literário.
O texto a seguir, à semelhança do anterior, traz para o presente
construções e expressões, como mostram os termos destacados:
Uma raposa com muita fome viu um pé de uva carregadinho, a
raposa ficou com água na boca (A6, 2006, Texto 41, grifo nosso).
As palavras destacadas substituíram, na seqüência, as palavras
certa, esfaimada, parreira, fazer vir água à boca, movimento que permite a
transformão, a qual estão sujeitas as palavras no decorrer do tempo.
Na produção analisada ocorre uma falha de coerência, pois a
criança o apresenta a tentativa frustrada da raposa de tentar alcançar as uvas. A
omissão deixa a trama sem sentido, já que se a personagem soubesse que a fruta
se encontrava imprópria para o consumo não teria motivos para retornar até a
parreira, atraída pelo barulho.
A quarta adaptação é, em parte, inovadora, por alterar
significativamente o conteúdo do texto original. Modificação que aparece em sua
abertura presente, também no início de seu texto, por meio da inserção de fórmulas
estruturais comuns às histórias infantis:
139
Era uma vez uma raposa que viu uma parreira que tinha muitas uvas
(A6, 2006, Texto 41, grifo nosso).
A criança também passa, para a ordem indireta, a fala da raposa,
usada como consolo, na não concretização do desejo de alcançar as frutas:
O matreiro bicho torceu o nariz.
- Estão verdes murmurou. Uvas verdes, para cachorro
(LOBATO, 1973 b, p. 47).
A raposa torceu o focinho e disse que uva verde era para
cachorro (A7, 2006, Texto 42).
O desfecho da narrativa altera o divulgado pelo texto original, uma
vez que substitui a busca frustrada da raposa, ocasionada pela queda da folha, pelo
retorno do animal, que, segundo o discente “voltou para matar a fome” (A7, 2006,
Texto 42), alusão que contraria a idéia da fábula lobatiana. Por um lado, tal ruptura é
uma ação permitida, porque conforme discute Amorim (2005), a reescrita de um
texto recontextualiza a obra original, a partir da realidade na qual é percebida e por
outro, pode representar, segundo Kato (1995), na dificuldade da criança em
apreender a idéia central da narrativa, situação que parece ter evidência apenas no
vel metacognitivo
39
.
Essa afirmação revela que a criança tem estragias cognitivas
textuais, mas grande parte do blico infantil não consegue ainda fazer afirmações
ou desempenhar atividades que exijam dela capacidade metacognitiva no nível
textual. Um trabalho que a faça perceber os motivos que a levaram a deixar certos
trechos de um texto em sua rememoração podedar-lhe gradativamente a noção
consciente de que algumas idéias são mais importantes do que outras.
A narrativa seguinte sintetiza o conteúdo original, reduzindo-o às
idéias principais. Nesse movimento, o aluno reescreve o material de forma a realizar
a atualização do conteúdo primeiro, a partir do princípio da parcimônia, como mostra
o trecho seguinte:
Ela disse:
- Ah! Estão verde eu não quero – e foi embora (A7, 2006, Texto 42).
39
Estratégias cognitivas em leitura são os princípios que regem o comportamento automático e inconsciente do
leitor, enquanto que estratégias metacognitivas em leitura designarão os princípios que regulam a
desautomatização consciente das estratégias cognitivas (KATO, 1995, p. 109).
140
A última produção insere ou altera alguns elementos na narrativa,
sem mudá-la significativamente:
Um belo dia pareceu uma raposa que estava com muita fome e viu
uma parreira carregada de cachos de uva bem maduros (A7, 2006,
Texto 42, grifo nosso).
Além do acréscimo de Um belo dia, os termos em destaque estão
substituindo esfaimada e lindos cachos de uva. A inserção de advérbios e adjetivos
é a forma de atualizar e reescrever o texto de maneira diferente, transformando a
retórica lobatiana do século XX, em linguagem acessível ao universo infantil no
século XXI.
3.2.11 O Burro Juiz
A fábula O burro juiz não encontrada em outros escritores é,
possivelmente, uma criação do próprio Lobato, que afirma ter criado algumas das
fábulas que reuniu em seu livro.
O texto conta as peripécias de uma gralha e um sabiá que discutiam
quem era melhor cantor. Diante do impasse a gralha afirma que um burro, que se
encontrava nas proximidades, deveria ser o juiz, devido ao tamanho de suas
orelhas. O burro aceita o encargo e se e a escutar os competidores. Ao final das
apresentações afirma ser a gralha melhor cantora que o sabiá. A moralidade do
texto afirma “quem burro nasce, togado ou não, burro morre(LOBATO, 1973 b,
p.19).
A fábula, escolhida por três alunos, recebeu, em sua primeira
versão, uma apresentação compacta. No processo de reestruturação das idéias, o
discente organizou uma espécie de resumo, no qual diluiu as falas diretas dos
diálogos, no corpo do texto, por meio do discurso indireto, prática corriqueira em
grande parte dos textos, como mostra o exemplo a seguir:
- (...) Topam?
- Topamos! piaram as aves. Mas quem servirá de juiz? (LOBATO,
1973 b, p. 18).
141
A gralha perguntou se eles topavam e eles toparam (A4, 2006, Texto
45).
A criança, desde muito cedo, começa a monitorar seu
comportamento como leitor. A diferença entre criaas menos experientes e mais
experientes reside no nível lingüístico. Como no exemplo apresentado acima,
crianças menos experientes começam monitorando a nível da palavra,
reorganizando as estruturas apresentadas na leitura, para progressivamente
passarem a monitorar a vel de sintagmas, orações e unidades maiores que o
período.
Isso tamm é perceptível na segunda produção, que muda alguns
termos, movimento que promove o diferencial entre os dois textos, como
demonstram os excertos:
A gralha começou a disputar com o sabiá afirmando que sua voz
valia mais que a dele. Como as outras aves se rissem daquela
pretensão, a barulhenta matraca de penas gralhou furiosa (LOBATO,
1973 b, p. 18).
A dona gralha começou a briga com o sabiá, dizendo que sua voz no
canto, era melhor, que a do sabiá. Como todas as aves que estavam
ali riam, a gralha gritou (A8, 2006, Texto 46).
A criança insere um pronome de tratamento para se referir à gralha,
o que confere certa austeridade na caracterização da antagonista
40
. O discente
reproduz a moral da fábula, acrescendo ao seu final uma conclusão que sintetiza
sua idéia “Um burro é burro”, frase que pode explorar o duplo sentido da palavra
burro, primeiro na posição de substantivo e, depois, assumindo a posição de
adjetivo.
A última escrita realiza um compacto das informações, ao apresentá-
las sob forma de resumo, no qual também ocorre a transposição das falas para a
forma indireta:
A gralha estava disputando com o sabiá, quem cantava melhor.
Chamaram um burro para ser o juiz pelo tamanho das orelhas. O
burro aceitou e começou a disputa (A9, 2006, Texto 47).
40
Além do que foi elencado sobre a fábula, a criança realiza, no decorrer do texto, a atualização vocabular, como
a troca do verbo disputar por brigar e gralhou por gritou. Também modifica a apresentação das falas sob a forma
direta para o discurso indireto, como em grande parte das reproduções realizadas pelos alunos.
142
Para Jauss (1994), analisar a forma como o texto foi lido é uma
maneira de entender sua permanência. No caso da pesquisa, entender a escolha de
determinados textos em detrimento de outros e como o texto selecionado é
interpretado é uma forma de compreender sua recepção. No ato de interpretar, o
retrato do quadro de competição entre as personagens pode ter motivado a
predileção por esse texto.
3.2.12 O Burro na Pele de Leão
A fábula O burro na pele de leão é privilegiada por Esopo, Bábrio, a
vertente indiana da fábula e La Fontaine. Esopo trabalha a temática em dois textos:
O asno que se julgava leão e O asno vestido com pele de leão e a raposa. No
primeiro texto, o asno, disfarçado com a pele de leão, é desmascarado por um
elemento da natureza, uma rajada de vento que lhe tira a pele, entregando-o ao
castigo, aplicado por um caçador. Na segunda fábula, o asno continua assustando
os animais, denominados de irracionais, apenas uma raposa percebe o engano ao
ouvir seu zurro. A contraposição dos dois textos mostra que o propagado na
seqüência é, em realidade, a mescla dos dois enredos.
Em Bábrio, o asno assusta, graças a sua pele, pessoas e animais.
Nessa adaptação também é o vento o responsável pelo reconhecimento do disfarce.
O castigo, aplicado por uma pessoa que presencia a identificação do animal, divulga
a moralidade que afirma que não se deve imitar o que não é.
Na tradição indiana, O burro na pele de tigre retrata um burro, que,
prestes a morrer, é abandonado por seu dono à beira do caminho, coberto por uma
pele de tigre. O burro se recupera e passa a assustar as pessoas, até ser
descoberto, devido ao seu zurro, e ser morto. Como discutido anteriormente, as
fábulas indianas, geralmente, apresentam finais trágicos, nos quais a vida é o preço
a ser pago pelo erro de conduta.
La Fontaine, adaptando o enredo à realidade política vivida,
apresenta o conteúdo no qual o burro veste-se com a pele e passa a assustar a
todos. Um lavrador, que descobre a farsa, ganha fama por enfrentar o falso leão. A
contextualizão aparece na comparação entre os fatos narrados e a vida social na
corte, como fica claro na moralidade do texto, traduzido por Maria Letícia Guedes
Alcoforado:
143
Muitas pessoas adquirem fama na França;
Por elas este conto tornou-se familiar.
Um equipamento nobre
Faz os três quartos de sua bravura (LA FONTAINE, apud DEZOTTI,
2003, p. 140)
O texto chega ao autor do tio do Picapau Amarelo e retrata um
burro que, cansado de ser burro, decidiu ser leão. Para tal, vestiu uma pele de leão
e resolveu assustar o dono. O animal solta um zurro. O dono, desconfiado, observou
com atenção, viu as orelhas do burro e percebeu que se tratava de seu animal.
Agarrou-o, retirou-lhe a pele de leão e o castigou no caminho de retorno para casa.
A moral lobatiana diz que “quem vestir pele de leão, nem zurre nem deixe as orelhas
de fora(LOBATO, 1973 b, p.27).
O burro na pele do leão, privilegiada em quatro produções, recebeu,
em sua primeira versão, uma concepção diferente da difundida no texto original,
perceptível desde o início da reescrita:
Certo burro de idéias, cansado de ser burro, deliberou fazer-se leão
(LOBATO, 1973 b, p. 27).
Um dia o burro estava cansado de ser burro e teve a idéia de colocar
uma pele de leão (A3, 2006, Texto 48).
A criança segue os moldes das produções textuais escolares e abre
o texto com a marcação temporal um dia. Além disso, ocorre a atualização de
vocábulos, realizada, como no exemplo, destacado pela troca de deliberou por teve
a idéia.
Outro fato curioso, observado em grande parte das produções
infantis, é a antecipação dos fatos dentro da própria narrativa. Notável no trecho
selecionado, que enquanto o texto lobatiano apresenta apenas a resolução do burro,
o texto discente antecipa o meio a ser utilizado para se colocar em prática a idéia
primeira, ou seja, ultrapassa a idéia de ser leão e atinge o recurso utilizado: colocar
a pele. Aqui tamm as falas são diluídas no discurso indireto.
A segunda produção textual insere, à semelhança de outras, a
abertura tradicional das narrativas clássicas infantis, como mostra o trecho em
destaque:
144
Era uma vez um burro que pensava que tinha grandes idéias (A7,
2006, Texto 49).
Era uma vez, abertura de praxe das narrativas infantis, é um dos
recursos de que a criança lança o para escrever seu texto, movimento no qual
traz para a nova narrativa elementos conhecidos, presentes no conhecimento
popular.
Nesse texto, o narrador não é imparcial, uma vez que deixa
transparecer em seu discurso seu parecer perante as ações da personagem. Tal
ocorrência é percebida na construção: que pensava que tinha grandes idéias. Ao
apresentar seu pré-julgamento, o narrador mostra posicionamentos de sua própria
interpretação e ainda oferece elementos que podem direcionar o leitor para a um
entendimento pré-determinado.
Este texto tamm foge ao original em outras situações,
principalmente, ao construir uma nova narrativa por meio da supressão e/ou
inseão de fatos e personagens.
Uma das idéias foi se passar de leão. Para isto, ele vestiu uma pele
de leão, pensando que poderia enganar os outros animais da
floresta. Mas não consegue porque tinha características de um burro:
suas orelhas e o som do zurro (A7, 2006, Texto 49).
O excerto destacado mostra que a criança não retirou do texto a
personagem que representava o castigo, o dono do animal, como o substituiu pelos
animais da floresta que, mais brandos, não castigam o impostor. A reescrita abre
espaço para a remodelagem textual, que suaviza os acontecimentos literários e o
próprio desfecho do texto. Isso acontece porque processos mentais subjacentes
permitem ver a leitura como um processo de reconstrução do planejamento do
discurso por parte do escritor (Kato, 1995).
Graças à reprodução, a fábula, mais amena, não traz nem a
conspiração da primeira, assustar o dono, como é suavizada, e passa a ser apenas
uma brincadeira entre animais. Assim, como abranda o contexto, por conseqüência,
o desfecho da narrativa, a criança também o faz com a moral, que é substituída por:
devemos ser e gostarmos do que somos, fala doutrinária e um pouco limitadora,
uma vez que prega, veladamente, o conformismo. A manutenção dos preceitos
doutrinários das fábulas, presentes em parte das reescritas realizadas pelo grupo,
145
pode ter sido motivada pela ausência dos comentários de Monteiro Lobato que se
seguiam aos textos fabulares, omitidos, pela docente, na situação de leitura. Isso
porque o autor, por meio do debate suscitado pelas personagens, revisava
criticamente os textos e desconstruia as idéias de resignação neles presentes,
posicionamento que poderia ter motivado a reflexão dos discentes sobre a questão
e, quiçá, incentivar uma postura crítica perante o texto literário.
Na produção seguinte tamm ocorre, na transposição do enredo,
uma amenizão das conseqüências desencadeadas pela ão do protagonista o
burro, que ao invés de ser duramente castigado, é apenas reconduzido para casa:
O dono agarrou o burro tirou a pele de leão e montou nele levando-o
para a casa (A9, 2006, Texto 50).
Tanto o abrandamento quanto o agravamento das situações de
violência podem ser reflexo da atual situação que envolve a questão, uma vez que a
suavização dos atos violentos pode representar um repúdio à violência em si,
enquanto que, por sua vez, a exaltação de tais fatores pode ser reflexo da
calamidade social a qual todos, inclusive as crianças, vivem expostos.
Outra substituição é a mudança da moralidade final, alterada para
“quem não gosta de ser o que é não pode ser o que não é”. A troca mostra que as
crianças dessa faixa eria, constantemente expostas a lições de moral, acabam por
reproduzir idéias desse teor. Isso é entendido por Jauss (1994) que destaca, na
relação entre leitor e literatura, a atualização que pode se estender à reflexão moral.
A última reprodução desta narrativa se desprende do texto base.
Entretanto, o desprendimento resulta, em algumas ocasiões, em incorreções
ortográficas, como a grafia das palavras vestil, foresta e desconfio e até mudanças
de conteúdo, como mostra a citação a seguir, que marca o momento posterior ao
reconhecimento do animal pelo dono:
O burro tirou a pele de leão (A11, 2006, Texto 51).
No original não é o burro e sim seu proprietário quem retira a pele.
Também nesse texto, ocorre uma amenização do desfecho original, substituindo o
castigo cruel pelo mero reconhecimento do embuste.
146
3.2.13 O Cão e o Lobo
O texto, O cão e o lobo, é retratado por Esopo, Bábrio, Fedro e La
Fontaine como O lobo e o cão. O primeiro deles, Esopo, mostra o cão preso em uma
coleira e com farta comida à disposição. O lobo questiona a condição e rejeita a
situação de clausura do canino.
Bábrio estende a narrativa, ampliação observada em grande parte
das fábulas que m, com o passar do tempo, a inclusão de novas informações. Tal
ocorrência também é percepvel no texto de Fedro, que apresenta um maior número
de dados que auxiliam na composição do quadro, além de direcionar a recepção do
leitor, uma vez que expõe, claramente, as opiniões do narrador sobre a questão.
La Fontaine altera a fala indireta, substituindo-a pela forma direta,
intensificando a presença do diálogo, o esmiuçar das informões, como tamm
insere traços de humor, presença marcante na bula lobatiana, como demonstra o
desfecho de sua narrativa:
Lôbo
“Tanto val’que dos vossos banquetes
Nada aceito, nem quero saber,
Por tal preço não quero um tesouro”.
Disse – e corre; e inda vai a correr (LA FONTAINE, 1957 a, p. 33).
A tradução desta passagem recebe versão mais atual na reescrita,
realizada por Maria Letícia Guedes Alcoforado, retirada da obra organizada por
Dezotti (2003):
- Amarrado! Disse o Lobo. Então você não corre
Por onde quer? – Nem sempre! Mas que importa?
- Importa tanto que todas as suas refeições
Não quero de maneira nenhuma.
E não desejaria, a esse preço, um tesouro.
Dito isso, o senhor Lobo fugiu, e está correndo até hoje (p. 162)
Em Lobato, um lobo, magro e faminto, encontra um cão forte e bem
tratado. Os dois conversam e o lobo percebe vantagens na vida do cachorro, como
alimentação e carinhos, e desvantagens, como a falta de liberdade, optando, ao
final, em continuar a viver em liberdade.
147
A primeira bula reescrita inicia-se, trocando os adjetivos magro e
faminto por triste, ação que realiza uma leitura da condição do animal, associando
penúria física ao estado de espírito.
Em alguns momentos sintetiza as informações oferecidas:
Espicaçado pela fome, o lobo teve ímpeto de atirar-se a ele. A
prudência, entretanto, cochichou-lhe ao ouvido: - “Cuidado! Quem se
mete a lutar com um cão desses sai perdendo.” (LOBATO, 1973 b, p.
30).
O lobo quis avançar no cão, mas foi cauteloso. O lobo se aproximou
do cachorro e conversou com ele (A9, 2006, Texto 52).
Aqui, também os diálogos são reconstruídos fazendo uso do
discurso indireto:
- (...) Mas, amigo lobo, suponho que você pode levar a mesma vida
boa que levo (LOBATO, 1973 b, p. 30).
O cão disse que ele podia ter os mesmos cuidados se quisesse, mas
em troca deveria favorecer ao seu dono (A9, 2006, Texto 52).
A última produção se desprende do texto original, quanto à forma e
em alguns momentos tamm quanto ao conteúdo, ação que se inicia já no título da
narrativa
41
, substituído por A magresa e a liberdade, grafada com a letra s ao invés
da z, como seria ortograficamente correto. Tal ão, entendida a partir da visão de
que quem reescreve tem direito de efetuar modificações, de acordo com sua
sensibilidade, grafando, com suas concepções, aquilo que es reconstruindo,
inclusive o título, apesar dos erros ortogficos, que são reflexos das possibilidades
lingüísticas da criança.
O aluno substitui informações por meio, como repetidamente dito, da
realização da atualizão vocabular, ao trocar os adjetivos magro e faminto por
pele e ossos, atualizando a construção narrativa lobatiana, por uma construção
coloquial. Já o discurso metafórico de Lobato sobre a liberdade, questão recorrente
em toda sua obra, recebe, nas mãos do discente, uma versão simplificada, como
demonstra o contraste dos excertos:
41
Na reescrita da fábula A menina do leite estão outras duas ocorrências de troca do título original (p. 130 e
131).
148
- Sabe do que mais? Até logo! Prefiro viver magro e faminto, porém
livre e dono do meu focinho, a viver gordo e liso como você, mas de
coleira ao pescoço. Fique-se lá com a sua gordura de escravo que
eu me contento com a minha magreza de lobo livre (LOBATO, 1973
b, p. 30 -31).
O lobo desistiu e preferiu viver livre e ser dono de seu nariz (A5,
2006, Texto 53).
Presa aos moldes da bula, a criança insere uma moralidade ao
final do texto: “é melhor viver solto do que viver por um prato de comida”, que, bem-
humorada, reflete a opinião da criaa sobre a leitura efetuada.
3.2.14 O Corvo e o Pavão
A fábula O corvo e o pavão aparece como O abeto
42
e o cardo
43
em
Esopo e Bábrio. Embora haja a mudança das personagens, pois os animais
retratados por Lobato são antecedidos, nas fábulas de Esopo e Bábrio, por plantas,
como demonstra o significado dos verbetes, a troca das personagens não altera o
sentido original da narrativa, que critica o orgulho. Tais mudanças, mostras da
atualização a que os textos são submetidos no decorrer do tempo, permitem o
movimento que torna possível o diálogo entre texto e leitor em diferentes momentos.
Lobato privilegia, em sua narrativa, um pavão e um corvo, animais
comuns ao público leitor brasileiro, o primeiro deles, o pavão, se engrandecia
dizendo que era a mais formosa e perfeita das aves. O corvo, que ouve tudo,
discorda, dizendo que embora o pavão seja uma bela ave, possui pés feios. Ao
contemplar os próprios pés o pavão sai sem replicar. O texto é fechado com a
moralidade que afirma que “não há beleza sem senão” (LOBATO, 1973 b, p. 31).
Nos antecessores, Esopo e Bábrio, a motivação para o
reconhecimento por parte do abeto não está ligada à questão estética, e sim à
própria sobrevivência, pois o cardo lembra o abeto que esse último não vive em
segurança, por ser devastado facilmente pelo homem.
42
Designação comum às espécies do gênero Abies da família das pináceas, plantas perenes, da América do
Norte e da Europa, algumas das quais são cultivadas no Brasil, nas regiões mais temperadas, e cuja madeira é
importante na fabricação de papel. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o
dicionário da Língua Portuguesa. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1999 p. 87.
43
Planta da família das compostas (Centaurea Melitensis), considerada praga da lavoura, de flores amarelas,
folhas com espinhos, acinzentadas e caule ereto, revestido de pêlos. (FERREIRA, ob. cit, p. 408).
149
Reescrita cinco vezes, O corvo e o pavão, em sua primeira versão,
foi mantida exatamente igual ao texto lobatiano, tendo apenas duas palavras
diferenciadas:
Tinha razão o corvo: não há beleza sem senão (LOBATO, 1973 b, p.
31).
Tinha razão o corvo: não a beleza sem defeito (A1, 2006, Texto 54).
A primeira palavra substituída é a troca do verbo haver pela artigo a
que pode tanto ser uma associação sonora, desenvolvida durante a leitura, ou
simplesmente ignorância do significado do verbo haver. Já o vocábulo senão é
trocado pelo adjetivo defeito, significado alternativo, apresentado pela personagem
Dona Benta ao término da contação, durante os comentários sobre a fábula,
apresentados na seqüência do texto. O domínio desse tipo de informação comprova
o acesso do leitor ao livro, já que o material ofertado pela docente continha apenas a
fábula e não o debate que se seguia a ela.
A segunda versão se desprende da fábula original, reescrevendo o
conteúdo primeiro, com as palavras comuns ao vocabulário da faixa etária do autor
mirim:
Um pavão, com a cauda aberta dizia ao corvo:
- Olhe como sou bonito, olhe a minha cauda, sou a ave mais bonita,
em? (A6, 2006, Texto 55).
No desprendimento do texto, a criança faz mudanças significativas,
que chegam a alterar o significado. Exemplo disso é a mudança da interjeição hein
pela conjunção em, prática em que a leitura liberta o texto e lhe confere, segundo a
teoria da Estética da Recepção, existência atual, situação construída com mudanças
como essa, que atualizam o conteúdo literário, mas que incorrem, contudo, em
incoerências gramaticais.
Nas diferenças que se seguem, o aluno suprime a fala em que o
corvo contesta a perfeição do pavão, ação que deixa o texto sem sentido. O final da
hisria não contempla o reconhecimento por parte do pavão de sua própria
imperfeição e termina com a fala do corvo sobre as patas do outro animal. O
processamento do texto pelo leitor resulta na convergência do sentido que, segundo
150
Cosson (2006), é alçado pelo que está no texto e aquilo que uma comunidade de
leitores julga como próprio da leitura (p. 41).
Também nesse texto ocorre a atualizão da palavra senão, que se
apropria da explicação da personagem Dona Benta sobre o verbete, substituindo-o
por defeito.
A reprodução textual seguinte reescreve, à sua maneira, o texto, o
que promove o resgate de termos comuns à faixa etária como o adjetivo emburrado.
O pavão olhou para seus pés e seguiu seu caminho emburrado (A8,
2006, Texto 56).
No texto seguinte, como faz em outras reescritas suas, o discente
compacta todas as informações textuais em uma espécie de resumo (princípio da
parcimônia), passando o discurso para a ordem indireta:
O pavão conversava com o corvo se achando a mais bela e perfeita
das aves.
O corvo disse que suas patas eram feias.
O pavão nunca tinha reparado que suas patas eram mesmo
horrorosas (A9, 2006, Texto 57).
No último texto ocorre a inserção de gíria, uso pouco freqüente nos
textos analisados, embora a gíria sirva como meio de comunicação e identificão
que grupos, especialmente entre os mais jovens
44
:
O pavão, de rabo aberto e formato de leque, dizia ao corvo se
achando (A12, 2006, Texto 58).
Embora mantenha a mesma construção da utilizada por Lobato, o
emprego da gíria “se achar”, que significa se auto-valorizar, em substituição a
desprezo para com o outro, altera o significado, pois uma divergência entre os
dois vocábulos. Tais rupturas promovem o diferencial entre os textos, marcando a
influência do leitor na recepção do texto primeiro, transposta para o processo de
reescrita.
44
A outra gíria utilizada, a construção um cara, foi usada na reescrita da fábula A galinha dos ovos de ouro, p.
119.
151
A constatação do pavão, que em Lobato é mais velada, ao deixar
para o leitor a tarefa de interpretar, é, no texto infantil, direta, pois aponta as
conclusões alcançadas, como mostra o excerto a seguir:
O pavão que nunca tinha reparado nos próprios s, abaixou-se e
contemplou-os longamente. E, desapontado, foi andando o seu
caminho sem replicar coisa nenhuma (LOBATO, 1973 b, p. 31).
O pavão olhou para baixo e viu que seu pé era horrível mesmo (A12,
2006, Texto 58).
Como demonstra o excerto, as reduções, atualizões e outras
ões similares estão presentes na grande maioria dos textos reescritos, pois
representam as ferramentas que o grupo possui para execução da tarefa proposta,
de reescrever as fábulas lobatianas. Kato (1995) aponta para uma falha no ensino
de leitura, geralmente desenvolvido na escola: a falta de objetivos claros para a
leitura. Se a criança enfrenta o texto sem nenhum objetivo prévio, ela dificilmente
poderá monitorar sua compreensão tendo em vista esse objetivo. Sua monitoração,
quando muito, poderá se dar apenas a nível de uma compreensão vaga e geral. Ou
ainda, ela poderá ler o texto, tendo em mente apenas o tipo de perguntas que a
escola está acostumada a lhe fazer. Sua compreensão, nesse caso, será
monitorada apenas para atender à expectativa da escola e não dela mesma.
Nesse âmbito do debate, cabe destacar a necessidade do
desenvolvimento de estratégias metacognitivas na escola, uma vez que a criança
que esfazendo uma leitura sem um objetivo específico e pode vir a ter falhas em
sua compreensão, mas não detectá-las como problemas, situação essa que não
ativa suas estratégias metacognitivas. No caso da reescrita das fábulas pelos
alunos, uma maior motivação para a descontrução do caráter moralizante das
fábulas poderia ser um objetivo que guiaria a interpretação textual.
3.2.15 O Galo que Logrou a Raposa
O décimo quinto texto, O cão, o galo e a raposa, escrito por Esopo,
inclui, como demonstra o título, um terceiro personagem, que mero coadjuvante na
narrativa lobatiana, tem um papel mais participativo na narrativa epica. Nesse
152
texto, o cão serve de distração para a raposa que é punida fisicamente pelo próprio
galo.
Em La Fontaine, o enredo se assemelha ao conteúdo reorganizado
por Monteiro Lobato. Ambos os textos mostram um galo, que ao perceber a
aproximão da raposa, sobe em uma árvore. Para enganá-lo a raposa fala para o
galo que foi declarado o fim da guerra entre os animais e pede que o galo desça
para se confraternizarem. O galo antecipando as intenções da raposa diz que
espera a chegada de três cães que estão nas proximidades para completar a
confraternizão. Ao ouvir isso a raposa desiste do plano e diz que não pode
esperar a chegada dos demais animais. A moral diz que nada vence a esperteza.
Escolhida por apenas uma criança, a fábula O galo que logrou a
raposa recebeu, no processo de reescrita, uma reprodução fidessima do texto-
fonte, se não fossem alguns erros ortográficos. A criança repete, com total exatidão,
o texto lobatiano, não representando campo significativo para observação do
processo de recepção.
3.2.16 O Leão e o Ratinho
A fábula O leão e o ratinho aparece como O leão e o rato
agradecido, na produção esópica, versão na qual o rato provoca o conflito com o
leão, ao passear sobre seu corpo. Ao pedir clemência, o rato antecipa o desfecho da
narrativa, alegando poder ajudar ao rei dos animais em apuros futuros. Já em O leão
e o ratinho de Bábrio o leão se ocupa em caçar o rato que suplica misericórdia e, à
semelhança do texto anterior, o roedor o salva a posteriori.
O leão e o rato de La Fontaine aparece justaposta a outra fábula que
trata do mesmo assunto, A pomba e a formiga, texto que também retrata o valor da
gratidão.
Tanto nos quesitos de forma quanto de conteúdo a narrativa
francesa e também a brasileira descrevem um ratinho, prisioneiro de um leão, que
decide não lhe fazer mal. Dias depois o leão cai em uma armadilha, o ratinho ouve
os urros do leão, rói as cordas e o liberta da armadilha. A ação atesta que “mais vale
paciência pequenina do que os arrancos de leão” (LOBATO, 1973 b, p. 49).
153
Seguindo um fato recorrente, as escolhas das diferentes crianças
recaíram, em sua grande maioria, em textos mais populares como é o caso de O
ratinho e o leão. O conteúdo da fábula é familiar às crianças, por estar presentes em
diversos materiais didáticos e fazer parte do conhecimento popular, por meio da
divulgação da moral nela contida. Esse movimento é promovido pela circulação dos
referenciais culturais. Tal idéia pode ser entendida a luz da sociologia da leitura que
busca “estudar o público enquanto fator ativo do processo literário, que as
mudanças de gosto e preferências interferem não apenas na circulação, e, portanto
na fama, dos textos, mas também em sua produção” (ZILBERMAN, 1989, p. 17).
Mas esse não foi o único fator que influenciou a escolha dos textos
na situação de leitura observada, pois é possível que questões como extensão da
narrativa também tenham sido levadas em consideração pelos alunos. Como sabiam
que teriam de realizar uma atividade de produção textual, alguns preferiram os
textos menores, cogitando assim um menor esforço. Isso pode explicar porque entre
um universo de oitenta e sete produções textuais, textos tenham sido mais
escolhidos do que outros, embora tal pressuposto não tenha se concretizado em
narrativas extensas, como é o caso de A menina do leite, que recebeu um alto índice
de escolha. Isso demonstra que a escolha está ligada ao repertório de cada
indivíduo.
A narrativa O leão e o ratinho trata de acontecimentos que envolvem
dois animais. Essa narrativa, mesmo possuindo um único exemplar à disposição, foi
escolhida por oito crianças, fato que driblou a escassez do texto e buscou outras
alternativas, como a leitura da fábula no próprio livro. Cabe evidenciar que a falta de
recurso não foi, em nenhum momento, empecilho para o desenvolvimento das
atividades, pois pertencentes a um meio social abastado, as crianças adquiriram os
livros, quando não já os possuíam em casa. Portanto, a análise
da experiência literária do leitor escapa ao psicologismo que a
ameaça quando descreve a recepção e o efeito de uma obra a partir
do sistema de referências que se pode construir em função das
expectativas que, no momento histórico do aparecimento de cada
obra, resultam do conhecimento prévio do gênero, da forma e da
temática de obras já conhecidas (JAUSS, 1994, p. 27).
Na releitura e reescrita da nova fábula, percebeu-se que as crianças
se prenderam ao texto original, sendo fiéis à reprodução da mesma estrutura
154
existente nele. Contudo, a fidelidade é rompida com a inserção de dados que não
faziam parte do texto primeiro, isso ocorreu porque:
o texto guia e constrange, mas é também aberto, exigindo a
contribuição do leitor. Este deve recorrer seletivamente à sua
experiência e sensibilidade para obter os símbolos verbais a partir
dos sinais do texto e dar substância a esses símbolos, organizando-
os num sentido que é visto como correspondendo ao texto
(ROSENBLAT apud ZILBERMAN, 1989, p. 26).
Como afirma Rosenblat (apud ZILBERMAN, 1989), o texto
apresenta um modelo que constrange uma vez que tende a guiar a compreensão do
leitor, no entanto, ele possui um viés libertador, ao propiciar lacunas que são
preenchidas de acordo com as experiências de leitura daquele que efetua a leitura.
Conseqüentemente, na reconstituição da fábula, observa-se, no
primeiro texto, a fidelidade à fábula de Lobato, desde a construção das frases que se
assemelham ao original, salvo as incorreções ortográficas, próprias das crianças em
fase de aquisição da linguagem escrita, como mostram os trechos a seguir:
Ao sair do buraco viu-se um ratinho entre as patas do leão. Estacou,
de pêlos em pé, paralisado pelo terror. O leão, porém, não lhe fez
mal nenhum (LOBATO, 1973 b, p. 49).
Ao sair do buraco viu-se um ratinho entre as pátas do leão.
Estacou, de pêlos em pé, paralisado pelo terror. O leão, porem, não
lhe fez mal nenhum (A1, 2006, Texto 62).
O aluno desmembrou em dois o primeiro parágrafo da narrativa
lobatiana, guiado possivelmente pela sua extensão, pois, na matriz, em fonte
digitada, a primeira parte ocupa duas linhas. O restante da produção mantém a
fidelidade ao original, repetindo, com exceção dos erros ortográficos, até as mesmas
palavras.
A segunda bula reescrita, pautada no texto base, desprende-se
dele nas alternâncias de vocábulos:
- Segue em pás, não tenha medo de teu rei (A2, 2006, Texto 61)
A criança insere, ainda, no texto conclusões e interpretações
particulares, como no exemplo destacado:
155
(...) o ratinho roeu a rede e os dois ficaram amigos (A2, 2006, Texto
61).
Como demonstra a fábula lobatiana, não é clara a idéia de que os
animais tenham se tornado amigos. O dado inserido na reescrita é fruto da
interpretação, que ocorre com o preenchimento dos vazios textuais, com o
conhecimento do leitor. A nível textual, (KATO, 1995), algumas crianças cometem
erros tentando preencher lacunas com itens que ocorreram em outro lugar no texto
(antes e depois da lacuna), o que evidencia uma busca de coencia temática
bastante consciente.
A terceira produção retrata, de maneira fiel, o texto original,
realizando pequenas alterações lexicais em seu desenvolvimento.
Dias depois o leão caiu numa rede. Urrou desesperadamente,
debateu-se, mas quanto mais se agitava mais preso no laço ficava
(LOBATO, 1973 b, p. 49).
Vários dias depois o leão caiu numa rede. Gritou desesperadamente,
bateu-se no chão, mas quando mais se debatia mais preso ficava
(A6, 2006, Texto 62).
Desse modo, palavras como dias depois, urrou, debateu-se, e
agitava dão lugar a vários dias depois, gritou, bateu-se, debatia. A alteração mostra
que o aluno opta, no processo de transposição, por palavras que dialoguem com seu
universo.
O próximo texto apresenta o enredo de forma bastante resumida, no
qual se retratam os acontecimentos principais descritos com estruturas semelhantes
aos do texto original. Uma importante inserção nessa produção se refere à moral
que é retomada e acrescida de uma outra, produzida pelo aluno:
Mais vale a paciência pequenina do que os arrancos de leão. Ser
bom não custa nada (A8, 2006, Texto 63).
A produção seguinte, embora mantenha o eixo da narrativa de
origem, constrói uma versão mais resumida (princípio de parcimônia), não se
prendendo a detalhes discursivos.
156
Um dia um ratinho ficou de pêlos em porque o leão prendeu
debaixo de sua pata mais o leão deixou que o ratinho saísse sem
machucá-lo (A9, 2006, Texto 64)
Na libertação da fábula original, o leitor consegue reproduzir a
narrativa com estilo e linguagem própria, mostrando, em essência, o que
compreendeu da leitura efetuada. As únicas ocorrências idênticas ao texto de
Lobato são o título e a moral que se reproduz à semelhança da fonte.
Na prodão seguinte, a reescrita atribui ao texto sua própria leitura
desde o princípio, que se inicia com a marcação temporal - “Um dia” - tendo em seu
desenvolvimento outra parecida: “num belo dia”. Da primeira marcação se segue um
possível diálogo entre o ratinho e o leão, conversa essa transmitida pelo narrador,
ão que passa para as mãos dessa entidade discursiva, a interpretação dos
acontecimentos.
(...) o leão ia come-lo mas o ratinho pediu que se o leão não o
comece, ele iria recompensálo quando o leão estivesse em apuros
(A10, 2006, Texto 65).
Assim, nessa conversa intermediada pelo narrador, entende-se que
o leonino tinha intenção de devorar o rato e esse, por sua vez, implora misericórdia,
prometendo salvá-lo de apuros futuros; portanto, o acréscimo inserido pela criança
antecipa os acontecimentos, uma vez que na narração de Lobato não se cogita que
o rato pudesse ser, no futuro, o salvador do leão. Tendo o conhecimento do
desfecho, a criança já apresenta, no início da narrativa, elementos indicativos do
término da trama.
Dessa forma, o leitor acrescenta ainda a caracterização do modo
como o roedor libertou o rei dos animais: “roendo a corda com seus dentes”,
detalhes que não aparecem na fábula original. Outra inserção interessante, diz
respeito à citação da promessa, mencionada pelo narrador no início da narrativa que
é retomada ao final, servindo tamm como mais uma moral para o texto: E assim
os dois aprenderam que não se deve quebrar a promessa” A moral original é
mantida à semelhança do texto lobatiano.
A sétima produção é bastante fiel ao texto original, reproduzindo seu
enredo. Alguns erros ortográficos e a supressão da moral o as diferenças entre os
dois textos, recorrência comum em diversas reproduções:
157
Ao sair do buraco viu um rato entre os pés do leão. Estacol, de pêlos
em pé, parado de medo. O leão fez mal nenhum (A11, 2006, Texto
66).
A reescrita seguinte tamm se prende ao texto lobatiano,
reproduzindo com precisão os fatos nele descritos. No entanto, o aluno tem o
cuidado de acrescentar, à narrativa, elementos discursivos, como: um dia. Além
disso, tamm grafa alguns termos incorretamente: nenhum mau, mechia, istante, o
que promove a diferenciação entre a narrativa canônica e o texto reescrito.
A última produção desta fábula também apresenta a estrutura da
narrativa lobatiana em uma versão resumida (princípio de parcimônia), inserindo no
início a marcação temporal “Um dia”. O clímax e o desfecho seguem amparados no
modelo original. No entanto, uma surpresa dessa produção foi a alteração da moral,
substituída por uma das falas do texto original: Amor com amor se paga”,
transformada em moralidade.
Assim, com a descrição dos resultados alcançados com a atividade
proposta percebeu-se que:
cada leitor pode reagir individualmente a um texto, mas a recepção é
um fato social uma medida comum localizada entre as reações
particulares, este é o horizonte que marca os limites dentro dos quais
uma obra é compreendida em seu tempo e que, sendo ‘trans-
subjetivo’, condiciona a ação do texto’ (ZILBERMAN, 1989, p. 34,
aspas da autora).
Pautado em tal afirmão, entende-se porque a recepção de uma
obra obtém resultados tão distintos, entre indivíduos submetidos à mesma atividade
educacional, caso observado nos textos produzidos pelos alunos desta escola. Isso
ocorre mesmo com leitores pertencentes a um nível social parecido, mas que trazem
consigo um repertório distinto, ocorrência que reforça a hipótese de que cada ser é
uno, portanto, a reação à atividade proposta também pode ser única, embora em
diversos momentos elas tenham pontos comuns.
3.2.17 O Macaco e o Gato
O texto O macaco e o gato, de Monteiro Lobato, aparece em Esopo
como O leão, o urso e a raposa, história na qual os dois primeiros brigam por uma
158
presa, um filhote de veado. Após brigarem a a exaustão, ambos caem
desfalecidos e uma raposa, que passava pelas proximidades, apropria-se da presa.
Lobato retrata, no enredo, animais comuns do cotidiano brasileiro,
relatando a hisria do macaco Simão e do gato Bichano, moradores da mesma
casa, local em que aprontam muitas estripulias. Embora ajam juntos, sempre é o
macaco quem sai ganhando. Certo dia, a cozinheira colocou castanhas para assar e
enquanto se ausentou o macaco pediu que o gato as retirasse do fogo. O gato as
retirava, mas era o macaco quem as engolia. Com o retorno da cozinheira ambos
o expulsos da cozinha, e o gato constata que, embora ele tenha ficado com os
riscos, somente o macaco desfrutou das castanhas. A moralidade afirma que “o
bom-bocado não é para quem o faz, é para quem o come” (LOBATO, 1973b, p. 33).
A fábula foi escolhida por duas crianças. A primeira delas fez poucas
alterações no texto primeiro, modificou construções e atualizou vocábulos,
imprimindo na reescrita marcas de sua recepção, apresentando uma versão
compacta:
Simão, o macaco, e Bichano, o gato, moram juntos na mesma casa.
E pintam o sete. Um furta coisas, remexe gavetas, esconde
tesourinhas, atormenta o papagaio; outro arranha os tapetes, esfiapa
as almofadas e bebe o leite das crianças (LOBATO, 1973 b, p. 33).
O Simão que era o macaco e o Bichano era o gato, os dois roubava
as coisas, faziam muitas malandragens (A4, 206, Texto 69).
O contraste entre os trechos mostra que, ao realizar a transposição
textual, a criança reduz significativamente o conteúdo, trocando descrições por
palavras que sintetizam seu significado.
A reescrita seguinte modifica o texto base, moldando-o aos padrões
de produção textual desenvolvida pela faixa etária:
Numa casa moravam 2 animais o gato que se chamava Bichano e o
macaco que se chamava Simão, eles fazem bagua
45
(...)(A10, 206,
Texto 70).
45
Como aponta o excerto apresentado, a não solidificação das normas gramaticais da linguagem-padrão
ocasiona incongruências que entram em choque com as normas e, em alguns momentos, até com o conteúdo da
própria narrativa.
159
No processo de readequação textual, a criança insere informações
estranhas ao texto original, fruto, possivelmente, de seu conhecimento de mundo e
do entorno social que a rodeia. Vivendo em meios que condenam práticas ilícitas, a
criança reproduz as recriminações que lhe sensatas:
E o gato foi pegar as castanhas mas bem na hora a cozinheira
chegou e deu um puxão de orelha no gato e no macaco. E eles
aprenderam a nunca + robar (A10, 2006, Texto 70)
Aparecem, nos dois trechos citados e também em outras partes da
narrativa, números e símbolos, como no caso do número 2 e do sinal de +,
representando a linguagem escrita. Isso acontece porque a criança ainda não tem
solidificada as normas da linguagem escrita e com isso mistura linguagem verbal e
não-verbal.
3.2.18 O Ratinho, o Galo e o Gato
O texto O ratinho, o gato e o galo é, possivelmente, uma das
criões de Lobato. Tal hipótese se ancora no fato de textos similares não terem
sido encontrados entre os principais divulgadores do gênero fábular.
O texto conta as peripécias de um ratinho em sua primeira saída do
buraco onde morava, para conhecer o mundo. Encontra um gato dormindo e se
encanta com sua aparência, pensando que se tratava do galo, amigo dos ratos. Em
seguida, depara-se com um galo. O animal canta e o ratinho se assusta imaginando
que ele seja o gato que tanto mal faz a sua gente. Foge para casa e ao descrever
suas aventuras à sua mãe descobre que estava equivocado e que as aparências
enganam. A moral atesta que “quem cara o coração” (LOBATO, 1973 b,
p.36).
O texto foi retomado por apenas uma criança, que alterou o título
adotado por Lobato para O rato, o gato e o galo
46
. A criança muda, suprime e insere
termos, o que marca suas escolhas:
46
Outras ocorrências de mudança de título foram identificadas na reescrita de A menina do leite (p. 130 e 131) e
O cão e o lobo (p.149).
160
Certa manhã um ratinho saiu do buraco pela primeira vez. Queria
conhecer o mundo e travar relações com tanta coisa bonita de que
falavam seus amigos (LOBATO, 1973 b, p. 33).
Um dia, um ratinho saiu de casa pela primeira vez, ficou surpreso
com tudo e viu 2 animais (A3, 2006, Texto 71).
Ao transcrever o texto, o discente também opta por alterar os
diálogos, existentes na fábula primeira pelo discurso indireto, ocorrência similar em
diversas reproduções, como já citado anteriormente:
contou à sua mamãe as aventuras do passeio.
- Observei muita coisa interessante disse ele mas nada me
impressionou tanto como dois animais que vi no terreiro (LOBATO,
1973 b, p. 33).
O rato se assustou e contou toda a aventura para a mãe (A3, 2006,
Texto 71).
Ao concentrar a voz narrativa nas mãos do narrador, a criança
realiza a mediação entre a fábula e leitor e marca, por meio do posicionamento
adotado pelo narrador, seus pontos de vista. Lobato, crítico, acredita numa
transposição textual que marque a idéia, sem preocupações extremadas com a
forma.
3.2.19 O Rato da Cidade e o Rato do Campo
O texto O rato da cidade e o rato do campo, privilegiado por Esopo,
Bábrio e La Fontaine que retratam, em síntese, conteúdo similar ao conteúdo
lobatiano. A fábula narra as peripécias de um ratinho que convida seu compadre da
roça para visitá-lo. O rato da roça fica admirado com o luxo do local em que o amigo
vive. Entretanto, durante a farta refeição, ouvem um barulho e o rato do campo foge
imediatamente, deixando o visitante espantado. Como não era nada, o rato retornou,
fugindo logo em seguida ao ouvir novo barulho. O rato do campo resolve voltar para
a roça e não degustar a refeição, mas fugir dos sobressaltos.
Com quatro reproduções, o texto O rato da cidade e o rato do campo
tem, na primeira escrita, uma versão que foge dos moldes da fonte. O aluno insere
termos comuns da produção textual escolar, registra, freqüentemente, incorreções
161
ortográficas, como também utiliza termos usuais da linguagem oral, como mostra o
trecho a seguir:
Um dia um belo ratinho da cidade resolveu chamar seu cumpadre
para jantar (...) derrepente um barulinho na porta o rato da cidade
correu se esconder um tempo depois outro barulinho na porta
denovo o rato da cidade foi se esconder (A10, 2006, Texto 74).
Esse trecho, em Lobato, possui o seguinte formato:
Certo ratinho da cidade resolveu banquetear um compadre que
morava no mato. E convidou-o para o festim, marcando lugar e hora.
(...) no melhor da festa, porém, ouviu-se um rumor na porta.
Incontinenti o rato da cidade fugiu para o seu buraco (1973 b, p. 15).
A atualização vocabular também é percebida, como mostram as
falas a seguir:
- Até logo! (LOBATO, 1973 b, p. 15).
- Tchau!! (A10, 2006, Texto 74).
O texto, que não possui moralidade, recebe, na escrita da criança,
uma, na tentativa de inserir esse desfecho específico na fábula
47
. A moralidade
inserida pelo discente é resultado de discussões das personagens do Sítio após a
leitura, realizada por dona Benta, da fábula A gralha enfeitada com penas de pavão,
texto que na obra Fábulas (1922) antecede o texto O rato da cidade e o rato do
campo, analisado no momento:
A verdadeira riqueza não é a do bolso mas sim é a da cabeça (A10,
2006, Texto 74).
A moralidade ao final do texto parece ser parte obrigatória desse tipo
de narrativa pois, nessa fábula em especial, todas as crianças inseriram uma ao
final, contrariando o próprio enredo. Tal ação mostra que o modelo narrativo pode
ser mais influente, para o leitor, do que o texto propriamente dito. Como discutido
no início desta análise, a moralidade, segundo La Fontaine (s/d) é uma questão
importante. O fabulista, entretanto, admite usá-la apenas quando sua presença se
47
Conforme discussões pautadas em La Fontaine (s/d) a moralidade é parte do texto fabular, não sendo
obrigatória. No entanto, alguns fabulistas, como tamm alguns alunos, o abrem mão deste desfecho
narrativo. A presença/ausência de moralidade é discutida na análise da fábula A menina do leite (p.128).
162
faz realmente necessária. As crianças parecem ter absorvido o modelo por
inserirem, mesmo à revelia do texto, a moralidade ao final. Outro ponto interessante
comprova o acesso das crianças ao livro Fábulas por recorrer, na necessidade de
preencher a lacuna deixada pela ausência da moralidade, nas discussões
disseminadas pelo texto anterior.
A produção seguinte reorganiza as idéias apresentadas por Lobato
desde o início da narrativa:
O rato da cidade chamou o rato do campo para jantar (A7, 2006,
Texto 75).
Todo o texto realiza um compacto das idéias principais
48
, no qual a
criança se desprende da fonte. Com tal desprendimento e devido a não-solidificação
das normas gramaticais, próprio do ciclo de alfabetização, o aluno apresenta em sua
escrita incorreções ortográficas, como atesta a grafia dos vocábulos: impresionado,
asustava e sinples e também falhas de concordância aparecem:
A verdadeira riqueza não é [a] do bolso [mas a] da cabeça (A7, 2006,
Texto 75).
Os termos entre chaves são sugestões que poderiam normalizar a
coerência da frase citada, que, a exemplo do texto anterior, é inserida para suprir a
ausência da moral do texto.
A terceira reescrita reproduz, com exceção de pequenas supressões
e a alteração de poucos vocábulos, uma cópia do texto lobatiano:
O compadre da roça franziu o nariz.
- Sabe do que mais? Vou-me embora. Isto por aqui é muito bom e
bonito mas não me serve. Muito melhor roer o meu grão de milho no
sossego da minha toca do que fartar de gulodices caras com o
coração aos pinotes. Até logo.
E foi-se (LOBATO, 1973 b, p. 15).
O compadre do campo muito nervoso disse:
- Vou-me embora, prefiro comer meu go de milho na minha roça do
que me fartar de doces e salgados caros e o meu coração a ponto de
me dar enfarte. Até logo (A5, 2006, Texto 76).
48
O princípio de parcimônia, discutido pela Psicolingüística, consiste, como dito anteriormente, em uma forma de
economia, no qual o leitor tende a reduzir ao mínimo o quadro narrativo (KLEIMAN, 1997) (KATO, 1995).
163
Termos são atualizados na substituição de franziu por nervoso; roer
por comer; gulodices por doces e salgados caros; coração aos pinotes por coração a
ponto de me dar enfarte. Os termos adotados pela criança o palavras familiares
no vocabulário atual. Também nessa versão é acrescentada uma moralidade ao
texto primeiro, que sintetiza a valorização lobatiana do conhecimento “mas vale a
riqueza espiritual do que um grande baú de tesouro”.
Na última reescrita ocorre um desapego das bases, pois a narrativa
é elaborada com as palavras da criança:
Um rato da cidade queria chamar o rato que morava no mato para
festa e o rato da roça veio e ele achou um luxo o lugar onde era a
festa (A4, 2006, Texto 77).
O aluno insere elementos estranhos à narrativa primeira, como é o
caso da festa citada. Já outros termos são trocados, como a substituição da locução
adjetiva do campo por da roça. Além disso, o autor também apresenta claramente
conclusões próprias, inseridas na fala do animal:
O rato da roça foi embora, além de ser muito luxuoso, ele preferia a
roça porque ele tinha sossego (A4, 2006, Texto 77).
A moralidade aqui, inspirada nas discussões entre as personagens
do Sítio, é transcrita como “a verdadeira riqueza não é a do bolso é a da cabeça”.
3.2.20 O Reformador do Mundo
Sob o título de A bolota e a abóbora, La Fontaine narra a façanha de
um camponês que pensava que as coisas estavam em lugares errados e, para
comprovar tal hipótese, analisa a disposição das abóboras e das bolotas.
Lobato determina a personagem e, em sua fábula é Américo Pisca-
Pisca quem acha o mundo errado. O protagonista tinha a pretensão de que poderia
melhorar a organização da natureza. Assim, pensa que a jabuticabeira e a
aboboreira deveriam estar em lugares trocados, já que a primeira era uma árvore
grande e produzia frutas pequenas, enquanto a última, mesmo tendo ramos
pequenos, produzia frutos maiores do que a jabuticabeira. Após a divagação, a
personagem vai descansar embaixo da árvore e acaba, à semelhança do texto La
164
Fontaine, despertando com uma jabuticaba que lhe cai no nariz. Percebe seu erro,
uma vez que, se o mundo tivesse sofrido as alterações imaginadas, ele teria sido a
primeira vítima.
A fábula foi escolhida por duas crianças. A primeira delas iniciou sua
reestruturação textual, inserindo a abertura padrão dos clássicos infantis Era uma
vez, molde que atinge toda a apresentação inicial do texto.
Américo Pisca-Pisca tinha o hábito de r defeito em todas as
coisas. O mundo para ele estava errado e a natureza fazia
asneiras (LOBATO, 1973 b, p. 14).
Era uma vez, um homem chamado Américo e que achava que o
mundo deveria ser diferente (A8, 2006, Texto 72).
A criança segue presa ao texto, embora realize, à semelhança de
outros textos, pequenas simplificações em seu conteúdo:
(...) Aqui mesmo, neste pomar, você tem uma prova disso. Ali está
uma jabuticabeira enorme sustendo frutas pequeninas, e adiante
vejo colossal abóbora presa ao caule duma planta rasteira. Não era
lógico que fosse justamente o contrário? (LOBATO, 1973 b, p. 14).
- Aqui temos a prova. Ali esuma enorme jabuticabeira que está
sustentando lindas e pequeninas jabuticabas e ao lado uma enorme
abóbora no chão. Devia ser o contrário – disse ele Não tenho
razão? (A8, 2006, Texto 72).
A reescrita seguinte é bastante presa às fontes, como é perceptível
no trecho a seguir, cuja mudança mais significativa é a troca da ordem do discurso:
- Mas o melhor concluiu é não pensar nisto e tirar uma soneca à
sombra destas árvores, não acha? (LOBATO, 1973 b, p. 14).
E Américo estava pensando em modificar todo o mundo. Américo foi
dormir e sonhou que o mundo estava modificado por ele (...) (A4,
2006, Texto 73).
A criança, no entanto, reduz as informações contidas no texto
lobatiano, pois em sua reescrita encerra a narrativa logo as a constatação do
engano por parte de Américo, e deixa de apresentar as divagações a que Lobato
165
submete sua personagem, em suas reflexões sobre os enganos e conseqüências
das trocas idealizadas por ela.
3.2.21 O Sabiá na Gaiola
O texto O sabiá na gaiola aparece somente em Esopo como A
novilha e o boi, que narra a história de uma novilha que lastima o exaustivo trabalho
executado por um boi. O reverso acontece com a chegada de uma festa religiosa,
quando o boi é libertado e a novilha, sacrificada para as comemorações, dando
motivação para a moralidade que afirma que o perigo ronda o desocupado.
Lobato retrata um sabiá que se lamenta em viver em cativeiro e
relembra os tempos de liberdade. A lamentação cessa quando a ave depara-se com
o caçador que chega em casa com pássaros mortos e percebe que “antes penar que
morrer” (LOBATO, 1973b, p.29), moral da fábula.
O sabiá na gaiola, reescrito oito vezes, traz, em sua primeira versão,
um recado da professora que elogia a reescrita da criança, interação com o blico
que funciona como reforço positivo para o aluno. Além disso, o texto apresenta uma
marca interessante: traços da oralidade, como é notado no uso do verbo tinha,
instrumento que promove a marcante presença de hisria oral:
Tinha um sabiá velho que vivia reclamando porque estava preso em
uma gaiola (A3, 2006, Texto 79, grifo nosso).
O monólogo com que o pássaro apresenta seu drama é
apresentado pelo narrador, figura que assume a voz na narrativa:
Lembrava quando ele era livre, até que um dia, o caçador prendeu
ele em uma gaiola (A3, 2006, Texto 79).
A criança reorganiza a idéia, compactando-a de forma a apresentar
apenas os conceitos centrais da narrativa:
Nisto abre-se a porta da sala e entra o caçador, de espingarda ao
ombro e uma fieira de pássaros na mão.
166
Ante o espetáculo das míseras avezinhas estraçalhadas a tiro,
gotejantes de sangue, algumas ainda, em agonia, o sabiá
estremeceu (LOBATO, 1973 b, p. 29).
Um dia o caçador trouxe vários pássaros mortos depois de um dia de
caça.
Os pássaros estavam cheios de sangue e ao ver isso, o sabiá
perceber não ser tão infeliz (...) (A3, 2006, Texto 79).
Normalmente, como verificado no decorrer deste trabalho, o aluno
opta por reduzir o contdo textual e em poucas situações amplia o contexto da
narrativa primeira. A reescrita em análise não fugiu a regra, como é novel a pela
extensão do texto, já que são apresentadas somente as informões nucleares.
Tais dados também recebem uma nova roupagem, por meio daão
de atualização vocabular:
Refletiu sobre o caso e murmurou consigo: (LOBATO, 1973 b, p. 29,
grifo nosso).
(...) chegou a conclusão que: (A3, 2006, Texto 79, grifo nosso).
As palavras destacadas mostram a substituição utilizada, parte do
próprio processo de recepção. O verbo refletiu é substituído por chegou a conclusão,
prática que levanta a seguinte constatação: embora o discente reduza a extensão do
texto durante a reescrita, ele amplia o mero de vocábulos utilizados na explicação
de determinadas palavras. A escolha do aluno mostra, no entanto, que ele
conseguiu apreender o significado e transformar em vocabulário mais significativo
para sua compreensão.
A segunda adaptação reconstrói com palavras próprias o texto
lobatiano:
Um dia, traiçoeiro visgo me ligou os pés. Esvoacei, debati-me em vão
e vim acabar nesta gaiola horrível, onde saudoso choro o tempo da
liberdade. Que triste destino o meu! Haverá no mundo maior
desgraça? (LOBATO, 1973 b, p. 29).
A passagem destacada é transcrita da seguinte forma:
Um dia eu fui preso numa gaiola. Haverá no mundo maior desgraça?
(A4, 2006, Texto 80).
167
O próximo texto reescrito insere diversos elementos estranhos à
narrativa original: verbos, choramingava; advérbios de intensidade, muito, locuções
adverbais, certo dia, neste momento; e, também, algumas incorreções ortográficas,
como é o caso de convida (com vida). Ocorre, nesse texto, a primeira modificão
da moralidade deste grupo, que passa a ser antes presa que morrer”, fala que
muda o sentido da frase, uma vez que o adjetivo presao exprime o significado do
verbo penar.
A próxima adaptação também insere elementos textuais comuns nas
produções textuais infantis, como: um dia, até que um dia, de repente, entre outros,
que delineiam o perfil da reescrita:
De repente, o caçador entrou em casa com vários passarinho na
mão e uma espingarda no ombro (A9, 2006, Texto 82).
Outra inovação é a inserção do conteúdo da moralidade no corpo da
narrativa:
Vendo aquilo o sabiá achou que era melhor estar preso na gaiola
com vida do que lá fora morto (A9, 2006, Texto 82).
A reescrita seguinte assume um viés explicativo desde seu início:
Um dia um caçador pegou um passarinho, mas não o matou, o
colocou dentro de uma gaiola (A10, 2006, Texto 83).
Como demonstra o excerto apresentado, a produção textual
organiza as idéias de forma bastante didática, esmiuçando os dados presentes na
narrativa.
O sabiá se comparou com os pássaros que haviam morrido, e
persebeu que sua vida não era a mais triste mas sim as dos
pássaros (A10, 2006, Texto 83).
A moralidade é modificada com a inserção de uma preposição que
alterou significativamente seu conteúdo: “Antes de penar, morrer”. Se na versão
original a moralidade coloca o sofrimento como algo melhor do que a morte, a
criança coloca o penar como o resultado da própria morte, construindo uma
afirmão incoerente.
168
A penúltima produção apresenta problemas de concordância verbal,
nominal, coerência e coesão, ocorrências que motivaram um comentário da
professora, orientando o aluno a ler sempre seu texto antes de entregá-lo (anexo D
7), motivando o discente a refletir sobre a escrita. No entanto, as orientações se
referem à forma, já que não acontecem intervenções relacionadas ao conteúdo,
apresentado pelos discentes:
Antes o espetáculo das mizerias estraçalhada ao tiro, pingando de
sangue, a sabiá tremeu (A12, 2006, Texto 84).
Tais mudanças são significativas no que tange ao resultado obtido
pela reescrita, pois, ao alterar o sentido, também o conteúdo da narrativa pode
acompanhar as alterações e obter resultados opostos ao esperado.
A última fábula resume o enredo, sintetizando seu conteúdo ao
representar as ocorrências principais:
O velho sabiá reclamava porque estava preso na gaiola. (...) De
repente viu o caçador, seu dono entrar com a espingarda no ombro e
um cordão de pássaros sangrando e em agonia (A13, 2006, Texto
85).
A moral é integrada ao texto e assume o pensamento da ave da
seguinte forma “que era melhor estar preso mais vivo do que morto em agonia”.
3.2.22 O Velho, o Menino e a Mulinha
A última fábula selecionada, O velho, o menino e a mulinha é
encontrada como O moleiro, o filho e o burro em La Fontaine. Monteiro Lobato
descreve um velho que pede para o filho que busque a égua e a prepare para irem
até a cidade para vendê-la. O menino a traz e os dois se colocam a caminho a pé,
levando o animal. No percurso, um viajante sugere que o velho monte o animal
devido a sua idade. Acatam a sugestão e o menino puxa as rédeas, enquanto o
velho segue montado. Em seguida, encontram um grupo de lavadeiras que recrimina
o homem por deixar o filho a pé. O velho pede que o menino tamm monte o
animal e seguem. Deparam-se com um funcionário do correio que afirmou que o
excesso de peso cansaria o animal e dificultaria a venda, o que faz o homem
169
desmontar e puxar as rédeas, levando apenas o filho no animal. Novo encontro, e
um sujeito chama o menino de príncipe, e o velho, de lacaio, por estar a criança
montada e o velho, puxando as rédeas do animal. Passam a carregar o animal nas
costas e o novamente criticados por um grupo de rapazes. O velho constata a
impossibilidade de agradar a todos.
O texto O velho, o menino e a mulinha foi escolhido por duas
crianças apenas. A primeira delas modificou o texto original, ao inserir elementos
textuais diversos:
Um dia o pai chamou o filho (...)(A4, 2006, Texto 73, grifo nosso).
A marcação temporal em destaque não aparece no texto lobatiano,
que difere da reprodução da criança pela apresentação das falas das personagens,
que são passadas para a forma indireta:
(...) chamou o filho e falou para ir ao pasto pegar a mula (A4, 2006,
Texto 73).
No texto original, essa passagem é construída da seguinte forma:
O velho chamou o filho e disse:
- Vá ao pasto, pegue a bestinha ruana e apronte-se para irmos à
cidade, que quero vendê-la (LOBATO, 1973 b, p. 16).
Algumas falas, entretanto, são mantidas na forma direta, aquelas em
que a participação de personagens passageiras na narrativa, ou seja, que
participam apenas para motivar o desenrolar do conflito.
Logo passou um grupo de meninos e os vaiou dizendo:
- Qual dos três é mais burro? (A4, 2006, Texto 73).
A moral é ressaltada pela criança, destacando a importância que as
partes do texto têm para as crianças.
A segunda reescrita não se liberta da influência da fábula original,
ão perceptível na semelhança entre os textos, salvo as incorreções ortográficas,
que aparecem na produção:
170
O velho chamou o filho e disse:
- ao pasto, pegue a bestinha ruana e prepare para irmos a cidade
vendela (A2, 2006, Texto 73, grifo nosso).
O termo destacado mostra que, mesmo pagando a dívida para com
o texto original, a fidelidade esbarra, em alguns momentos, na não apropriação da
linguagem escrita como, no caso, do uso de pronome, ainda não dominado por
alunos do primeiro ciclo do Ensino Fundamental.
Em outros momentos o discente grafa filio (filho), poça (boca), pasar
(passar), grasa (graça), disem (dizem), prosizamos (prossigamos), amostras de que,
mesmo pautado no texto lobatiano, a criança encontra dificuldade em registrar o que
e entende. Isso porque a compreensão de textos envolve processos cognitivos
múltiplos, que reúne o conjunto de processos, atividades, recursos e estratégias
mentais próprios do ato de compreender.
Para tanto, o domínio básico de competência lingüística é
indispensável para a leitura e entendimento do texto narrativo, que cabe ao leitor
entender o que está implícito, bem como aquilo que é realmente afirmado. Devido às
divergências entre o escrito e o reproduzido, posteriormente, pelo aluno, fica difícil
quantificar e até qualificar o entendimento do texto, uma vez que a mensagem
reconstituída pode apresentar conteúdo distinto do texto original.
A teoria discutida sobre adaptação, tradução, paródia, assim como a
trajetória das fábulas lobatianas no tempo, apoiadas na teoria da Estica da
Recepção, consistiu no eixo organizacional no qual se apoiou a análise desenvolvida
neste capítulo. O intuito principal consistiu em analisar as marcas da recepção do
texto literário em um grupo específico, crianças pertencentes ao primeiro ciclo do
Ensino Fundamental.
Com o trabalho percebeu-se que, conforme se discutirá mais
profundamente nas reflexões sobre a leitura e nas Considerações Finais, a recepção
da obra literária é fruto do tempo e do meio no qual seu leitor esinserido. No
entanto, mesmo tendo o tempo como característica marcante, nota-se que o
processo de reescrita consiste em uma constante tentativa, por parte de seu
realizador, de tornar acessível a entidade textual.
171
3.3 Ilustrações: Esboços de Leitura
Mesmo a análise das ilustrações não sendo o foco do presente
estudo, algumas situações chamam a atenção e corroboram na interpretação da
situação de leitura realizada pela criança. Isso porque é na ilustração que a criança
atualiza informões, resgata valores e libera seu ponto de vista, além de destacar o
que mais lhe chamou a atenção na narrativa. Algumas recorrências observadas se
repetem, como a humanização dos animais e a atualização dos quadros descritos
por Lobato, no qual as crianças, a partir de suas releituras, inserem dados e
situações comuns de sua realidade.
O antropomorfismo é uma constante em grande parte dos desenhos.
Neles, os animais são retratados como bípedes e com expressões faciais humanas,
situação que pode ter raízes na história da bula, cuja função esteve pautada na
doutrinação do ser humano por meio do uso de animais.
O desenhista e caricaturista Jean Ignace Isidore Gerard Grandville
(1803 – 1847), responsável pela ilustração das fábulas de La Fontaine, já reproduzia
os animais descritos nos textos com traços e vestimentas humanas, caracterização
que pode ser observada na reprodução de uma de suas gravuras. Ao desenhar a
cigarra e a formiga, de texto homônimo, as reproduz com vestimentas femininas da
época, como pode ser observado no anexo E 49. Edições posteriores trazem
ilustrações de Gustavo Doré, pintor do século XIX, que humaniza as fábulas de La
Fontaine, ao reproduzir não só as vestimentas como também seres humanos nas
cenas em que o poeta descreve animais (anexo E 50).
Desse modo, a atribuição de traços, vestimentas e a de seres
humanos quando o quadro descrito faz referência a animais é uma prática antiga,
que se repete, nas ilustrações realizadas pelo grupo infantil, como é perceptível na
análise que se segue. Na primeira ilustração analisada, efetuada pela criança A3
para retratar a fábula A Assembléia dos Ratos, o discente caracteriza os animais da
fábula com perfil humanizado, o que acontece por meio do processo de
antropomorfismo. No retrato dos animais, um felino e dois roedores, os mesmos são
bípedes e a distinção entre os dois grupos é possível pela diferença de tamanho,
que o gato é maior do que os roedores (anexo E 1).
Na segunda ilustração desta bula, os ratos também o retratados
como bípedes. A ilustração mostra um diálogo entre os roedores, no qual ninguém
172
quer assumir a missão de colocar o guizo em Faro-Fino. O desenho possui um título:
Clube dos Ratos, atualizão do título da narrativa Assembléia dos ratos, como
demonstra o anexo E 2. Nesta ilustração há um diálogo entre a professora e o aluno,
no qual o último indaga se o desenho está bonito, recebendo da docente a
confirmação. Tal inquietação mostra que o aluno se preocupa em direcionar sua
produção para seu leitor, no caso em questão, a própria professora. Amorim (2005)
resgata a importância das instâncias de avaliação, que para escritores e
adaptadores tradicionais têm nas editoras, mercado, crítica, entre outros, os
responsáveis pela regulamentação do ato criativo. Nesse caso, em especial, longe
dos objetivos de publicação, o aluno busca a aprovação da entidade avaliadora ao
qual está submetido – a professora.
A ilustração seguinte retrata os ratos de forma próxima à realidade,
quanto a sua forma de locomoção, somente o gato es retratado como bípede,
característica que pode ser entendida como traços do antropomorfismo. Assemelhar
o felino ao homem pode ser uma maneira de aproximá-lo também em características
psicológicas, destacando-o como o vilão da narrativa. No entanto, ainda que de
maneira mais discreta, é inserido um traço humanizador no retrato nos ratos, uma
vez que há uma fala a eles atribuída, por meio de um balão, semelhante ao utilizado
nas histórias em quadrinhos: - Vamos!!, como aponta a ilustração presente no anexo
E 3.
Na fábula A águia e a coruja novamente acontece o diálogo entre
docente e discente, pois no trabalho artístico ocorre um registro, por parte da
docente, direcionado ao aluno. A primeira escreve um elogio por meio de uma
palavra em inglês, Beautiful, seguida pela sua tradução entre parêntesis
maravilhoso, ão que traz novamente a qualificação da instância avaliadora,
representada pela professora regente. Além disso, a gravura do anexo E 4 registra o
momento em que a águia chega ao ninho da coruja, que resulta no clímax narrativo:
a morte dos filhos da coruja.
A narrativa A cigarra e a formigas, em sua primeira parte A formiga
boa, possui dois desenhos, ambos curiosos. No primeiro, a criança assina o trabalho
como autora e ilustradora e com esse gesto, assume sua participação na
constituição de seu texto (anexo E 5). No desenho de sua autoria, retrata a cigarra
entre folhas. O diálogo entre professora e aluno, iniciado, como discutido
anteriormente, com a sugestão da educadora em direcionar a atividade de reescrita,
173
não aceito pela criança, é substituído, em um ato de possível apaziguamento, por
um elogio na ilustração, na qual aparece o verbo “adorei!”. Já a ilustração seguinte
sobre a fábula, anexo E 6, mostra a motivação para a narrativa, uma vez que retrata
a cigarra cantando em um galho e a formiga trabalhando próxima ao formigueiro.
O primeiro desenho sobre a fábula A formiga mostra o momento
em que a cigarra bate à porta da formiga, como é perceptível no anexo E 7. Além
das personagens da narrativa, faz parte do desenho um boneco de neve, referência
à estação climática. Tal inserção mostra também o conhecimento de mundo desse
leitor, que associa à palavra inverno símbolos dessa estação do ano, que mesmo
estranhas à realidade tropical brasileira, fazem parte do universo de conhecimentos
desse leitor. O horizonte de expectativas, apresentado por Jauss, consiste nas
expectativas investidas durante a leitura, por meio da bagagem de conhecimentos
prévios, fruto tanto de leituras realizadas anteriormente como do conhecimento de
mundo do indivíduo. Outra ilustração desta bula, anexo E 8, retrata os dois
insetos,a cigarra cantando e a formiga trabalhando, motivação para o conflito.
O texto A galinha dos ovos de ouro, em sua primeira ilustração,
mostra a personagem principal, João, segurando o ovo de ouro nas mãos. De sua
cabeça sai um balão onde estão desenhadas notas de dinheiro, um carro e uma
casa, representações dos possíveis sonhos da personagem, materializados a partir
do imaginário infantil. Na narrativa lobatiana, as aspirações de João se resumem a
ficar rico rapidamente, enquanto que a leitura da criança insere valores e ambições
comuns de seu tempo, representação que destaca símbolos do consumismo do
século XXI, como mostra o anexo E 9.
A ilustração seguinte, anexo E 10, mostra João que, apontando para
a galinha, grita, informando a mulher, que tem a função de interlocutora, que os ovos
o de ouro. O diálogo, cuja representação se desenvolve à semelhança das
hisrias em quadrinhos
49
, uma vez que a fala aparece represada em um balão,
aponta para a recepção do texto, cuja mescla de linguagem verbal e linguagem não
verbal é um elemento que corrobora o processo de interpretação textual. O texto,
então, utiliza-se de outra influência escrita, nesse caso, das histórias em quadrinhos,
instrumento que coopera na expressão do processo de escritura e recepção do texto
49
Nota-se tanto na análise das produções textuais quanto na das ilustrações a influência das histórias em
quadrinhos, marca do acesso do grupo a esse tipo de literatura. No caso das ilustrações, em especial, a fala em
balões é a forma de inserir comentários, opiniões e até ressaltar detalhes das narrativas nas ilustrações.
174
original e de sua reescrita. A leitura é um processo de escolha, no qual o leitor é
obrigado a escolher o tempo todo e, em suas escolhas, traz para o universo textual
os elementos e instrumentos utilizados nessa ação, nesse caso, as histórias em
quadrinhos.
A ilustração seguinte, anexo E 11, mostra a interpretação do aluno e
apresenta a galinha em seu ninho, que contém dois ovos de ouro. Tal quadro vai de
encontro às informões divulgadas na história original, que apenas um ovo era
colocado por semana e, logo após, era recolhido pelo proprietário da ave.
O último desenho desta narrativa, por meio da representação da
parte pelo todo, mostra uma mão retirando um ovo do ninho da galinha,
indeterminando a personagem que realiza a ação. Tamm nesta ilustração há
comentários da professora (anexo E 12).
A única ilustração a privilegiar a fábula A garça velha retrata a
protagonista, a garça, com o bico cheio de peixes, pximo ao poço, quadro que
simboliza aão central da narrativa (anexo E 13).
No trabalho realizado como docente há alguns anos é fato o prazer
com que a criança nesta faixa etária costuma encarar as atividades arsticas,
relacionadas ao desenho, o que chamou a atenção a omissão da ilustração de uma
das produções. A exclusão ocorreu em uma única produção que trata da narrativa O
pavão enfeitado com penas de pavão. Tal omiso pode indicar o não-
conhecimento do conteúdo textual ou de seus elementos, no caso em especial, dos
animais descritos na narrativa, pouco comuns às crianças do meio urbano.
A fábula A menina do leite reúne ilustrações curiosas, nas quais se
destaca, principalmente, a atualizão de significados da narrativa, que são
reescritas com dados comuns ao campo significativo do aluno. O primeiro desenho
retrata a menina caída no chão em frente ao “mercado”. No entanto, ressalta-se a
diferença existente entre a idéia de mercado, representado na época da narrativa
lobatiana, local semelhante a um armazém, onde havia a exposição dos mais
diferentes gêneros, e o mercado do século XXI, apresentado no desenho da criança
como um recinto fechado, que embora mantenha sua tradição de comercializão
de produtos variados, apresenta, nos dias atuais, disposição e organização distinta
da representada na fábula canônica. Isso porque o mercado desenhado pela
criança, cuja fachada ostenta o nome do estabelecimento comercial, é uma das mais
importantes redes do segmento na cidade, como demonstra o anexo E 14. Ao
175
representar o mercado da narrativa com o slogan de uma conhecida rede de
supermercados, a criança marca sua leitura com as influências a que ela está
exposta.
Jauss (1994) chama a atenção para a importância do diálogo entre
obra e público, movimento que promove, segundo o teórico, um debate que
impulsiona a construção de significados sobre a obra literária. Assim, desaparece a
“oposição entre aspectos históricos e aspectos estéticos, e poderá restabelecer-se a
ligação entre as obras do passado e a experiência literária de hoje” (JAUSS, 1994,
p. 57-58), situação que permite a inclusão de elementos da atualidade nos textos
escritos em época distinta a da leitura, como é o caso do supermercado, retratado
na recepção da criança.
Outro desenho mostra Laurinha em meio a seus devaneios. A
criança caminha com o pote de leite na cabeça e ao lado dela está um balão, no
qual estão representados todos os sonhos da menina: ovos, pintinhos, frangos,
suínos e cédulas de dinheiro. Esse último item apresenta a atualização de forma
bastante clara, pois se na história o autor faz referência ao cruzeiro, moeda de
circulação na época, a criança desenha cédulas de real, atual moeda brasileira,
inserindo inclusive detalhes das notas como o nome do Banco do Brasil e os
símbolos de cada exemplar, como demonstra o anexo E 15, dando destaque para os
animais que simbolizam as cédulas. Aqui, o conteúdo literário é atualizado pelo
próprio leitor, entidade, segundo Jauss, variável de acordo com sua experiência de
vida. Nesse caso, talvez crianças de meios econômicos desfavorecidos não
representassem, com tanta riqueza de detalhes, a materialização do dinheiro.
A terceira ilustração sobre a fábula mostra a protagonista Laurinha,
que contempla o pote de leite caído. Nessa figura, tamm há a avaliação da
professora que escreve “maravilhoso”, marcando o diálogo existente entre o
responsável pela reescrita e seu leitor, a professora (anexo E 16).
O desenho seguinte mostra Larinha, após a queda, constatando, por
meio de uma fala represada em um balão, a perda: “- Perdi tudo!”, novamente com
clara referência ao universo dos quadrinhos, como aponta o anexo E 17.
A última ilustração desta fábula, em uma visão atualizada e
moderna, mostra, como é possível ver no anexo E 18, uma caixa de leite,
possivelmente longa-vida, sendo derramada. O interessante é a inflncia da
atualidade na leitura da criança, pois nada no texto faz referência ao recipiente de
176
comercializão do produto, somente ao pote, meio de transporte até o mercado.
Nessa convivência entre o contexto canônico do início do século XIX e um produto,
leite longa-vida, surgido em meados deste mesmo século, a criança reflete e traz
para a narrativa, elementos que permitem a comparação contextual, ação que
corrobora para a constituição do horizonte de expectativas e também de como a
narrativa é recebida pelo leitor em formação. Tal citação demonstra a participação
do horizonte de expectativas da criança em seu processo de recepção e divulgação
da própria interpretação. Compõem o quadro ainda, na parte superior do desenho,
lágrimas e a representação da lamentação da protagonista por meio da onomatopéia
“- Buá!”, representação gráfica do choro.
A atualização da narrativa, percebida tanto nas reescritas quanto
nas ilustrações, não é explorada em sala de aula, como uma forma de real releitura
dos textos clássicos, como afirma a professora regente ser a idéia norteadora do
trabalho (anexo C 1
50
). Isso porque não debate dos resultados obtidos pelos
alunos e nem discussão sobre o porquê de tais resultados, atualização que começou
a ser ignorada com a exclusão da voz crítica lobatiana, que apresenta a atualização
dos clássicos por meio dos comentários ponderados de Dona Benta e dos discursos
bem-humorados de Emília.
A fábula A e o boi traz três ilustrações que interessam. Na
primeira, anexo E 20, à semelhança da conclusão textual, é desenhada a rã que
almeja ficar do tamanho do boi, motivação para a evolução do conflito. Já as duas
outras representam a explosão, possivelmente a que vitimou a rã. No anexo E 21 a
onomatopéia que representa o estouro é Plaft!, a mesma difundida pelo texto
lobatiano, que também faz uso faz uso deste recurso. Já no anexo E 22, a
onomatopéia é atualizada para Ploft, variante utilizada na transcrição da linguagem
não-verbal.
A fábula A raposa e as uvas apresenta, nas diferentes reescritas e
ilustrações, detalhes que se repetem, reflexos do conhecimento de mundo da
50
Monteiro Lobato faz uso de diversos recursos em sua composição como adaptação de textos já existentes,
utilização de elementos intertextuais e outros. Como tais recursos influenciam a recepção do texto lobatiano?
(Conhecer personagens dos clássicos como Chapeuzinho Vermelho e outros favorece a compreensão dos
textos do autor?)
“A idéia de reescrever clássicos foi muito positiva, pois percebemos em Lobato uma escrita ligada as
características do povo brasileiro que se reconhece nelas”. (Resposta retirada de questionário aplicado ao grupo
de docentes em 19 de junho de 2006, questão respondida pela professora regente da turma de segunda série
observada).
177
criança, como é o caso do retrato da parreira, planta que se desenvolve em ramas,
reproduzida em forma de árvore, com copa e tronco em parte dos desenhos, como
demonstram os anexos E 23 e E 24. Tal interpretação aparece também no texto
escrito, por meio da locução nominal: árvore de uva. Já os anexos E 25 e E 26
trazem desenhos que representam as parreiras em ramas, demonstrando que esses
leitores conhecem a disposição deste tipo de planta.
Ainda a ilustração do anexo E 26 traz outro traço interessante,
discutido anteriormente, a humanização da raposa, desenhada, nesta
representação, com traços humanos e ostentando vestimentas masculinas. É um
retrato que acompanha a própria história da fábula, como dito anteriormente,
prática de ilustradores como Grandeville e Doré. Tal uso pode estar associado à
caracterização, realizada no texto literário, da composição dos animais com
peculiaridades humanas, na composição psicológica das personagens.
O quadro também se repete na ilustração da fábula O burro juiz, no
qual o burro é retratado como bípede. A forma de locomoção do animal é uma
maneira de humanizá-lo e, desse modo, aproximá-lo, por características físicas, aos
seres humanos. O som emitido pelas aves é representado por símbolos musicais,
represados por meio de balões. A professora coloca no desenho uma qualificão:
“adorei!”, marcando, como dito anteriormente, a aceitação do leitor, que no caso é a
própria docente (anexo E 27). Semelhante é a ilustração seguinte, como demonstra
o anexo E 28.
A ilustração seguinte, anexo E 29, mostra a gralha com o troféu no
qual se primeiro lugar. O objeto, símbolo de uma conquista e comum em jogos e
em situações de competição, é uma inserção de elementos que, estranhos ao texto
primeiro, constituem o universo de saberes, pulverizados nos meios sociais e
culturais nos quais a criança esinserida.
A narrativa O burro na pele do leão traz, em sua primeira ilustração,
anexo E 30, a apresentação do resultado do disfarce do animal, que castigado é
reconduzido pelo dono e chicoteado durante o trajeto. Já a figura seguinte, anexo E
31, desenhada pela criança, mostra por meio de uma visão aérea, o burro
observando a pele do leão, que se encontra estendida no chão, em meio a um
cenário de mato, situão um tanto inverossímil. Em torno do burro são desenhados
vários pontos de interrogação que sugerem a possível divagação do animal ao
arquitetar o plano. O cenário faz jus à descrição narrativa da criança: coqueiros,
178
árvores e um rio ornamentam a floresta citada pelo autor no texto, o que aponta o
desprendimento da criança com as realidades possíveis, pois ela não se restringe
apenas ao que é verossímil na exposição dos fatos.
Em O o e o lobo, a primeira ilustração destaca apenas o cão,
figura na qual é ressaltada a coleira, motivo de discussão nesse texto, por estar
associada à idéia de cerceamento da liberdade, como mostra o anexo E 32. Na
ilustração seguinte, anexo E 33, a criança retrata o o, quadrúpede e de coleira,
enquanto o lobo sofre o processo de humanização, pois é retratado como bípede,
possivelmente, graças ao status ostentado por esse último, de representante de
valores humanos, no caso em questão, da liberdade.
A ilustração da fábula O corvo e o pavão chama a atenção por
apontar, na primeira ilustração, anexo E 36, o desconhecimento do autor sobre as
aves participantes da narrativa, o corvo e o pavão. No desenho, o discente retratou
apenas um animal, esse por sua vez, sem penas, bico, asas ou outro elemento que
caracterize uma ave. O animal, desenhado à semelhança de um inseto, teve
ressaltado o par de antenas, retrato que, segundo a Estética da Recepção, é muito
significativo, uma vez que representa o alcance da obra e o universo significativo
alçado por meio da leitura. Outras duas ilustrações, anexos E 34 e E 35, trazem
duas aves, a primeira, o pavão, aparece no centro da cena, enquanto a gralha está
localizada às margens da ilustração, lugar que reforça a posição marginalizada que
a ave ocupa na temática descrita na narrativa.
Em O lo e o ratinho a leitura da primeira ilustração confeccionada
pela criança retrata a cena entre as personagens da narrativa, esboçada entre
cortinas, possivelmente semelhantes às de um teatro, o que mostra a idéia de
representação que a criança pode ter desenvolvido durante a leitura, como
demonstra o anexo E 37. Tal peculiaridade, própria do meio social do indivíduo,
retrata seu universo, pois pessoas que não têm acesso ao teatro não ligariam o texto
impresso a uma representação teatral. Outra leitura possível é a reprodução da
vinheta, exibida pelo canal pago Discovery Kids, que tem, inclusive, um episódio que
retoma o enredo d’O leão e o ratinho. Caso seja essa a fonte de inspiração para a
representação realizada pelo discente tamm ela representa um grupo econômico
esvel, uma vez que o acesso aos canais pagos de televisão é mais comum nos
meios sociais estáveis. Outras duas ilustrações retratam partes da narrativa, a
179
primeira, conforme mostra o anexo E 38, o momento pós-libertação do leonino, e a
última, a interação entre as personagens (anexo E 39).
A ilustração do texto O ratinho, o gato e o galo apresenta o momento
de constatação do engano da protagonista, marcado pelo diálogo entre mãe e filho,
no qual o ratinho afirma estar errado. A mãe concorda com ele, confirmando -“ É
mesmo!”. O diálogo entre os dois acontece à semelhança das histórias em
quadrinhos, verificável no anexo E 40.
Na primeira ilustração da fábula O rato da cidade e o rato do campo,
o desenho do discente apresenta os dois ratinhos conversando sobre um bolo. A
conversa, também apresentada em balões, traz onomatopéias, comuns nas histórias
em quadrinhos, como representantes de conversa: - Blá, blá, blá... O balão da fala,
como apresenta o anexo E 41, está direcionado para o rato do campo, identificado
com um chapéu, no qual está escrito a palavra caipira, enquanto o interlocutor usa
um no qual se lê a palavra cawtri, palavra em inglês que é utilizada em uma provável
tentativa de reproduzir a palavra country, que significa campo, idéia contrária
daquela esperada. A caracterização das personagens e o uso de palavras de origem
inglesa, que corroboram com a individualização das ilustrações, mostram que a
relação entre literatura e receptor são, como demonstra Jauss, passíveis de
atualização, “tanto na esfera sensorial, como pressão para a percepção estética,
quanto na esfera ética” (JAUSS, 1994, p. 53) e tamm social, como demonstram as
relações traçadas com a cultura estrangeira, por meio do uso dos verbetes em
inglês.
As ilustrações E 42 e E 43, à semelhança da anterior, trazem os
animais humanizados, que se locomovem, se vestem e ainda apresentam
expreses faciais semelhantes às dos humanos, recorrência ao antropomorfismo
utilizado em outras narrativas.o último desenho analisado desta fábula mostra as
duas personagens em um possível diálogo. O que particulariza os ratos, como nos
dois casos anteriores, são suas vestimentas, características de sua origem, pois o
rato da cidade veste terno e gravata, enquanto o do campo usa camisa listrada,
inseão que marca a presença das experiências cotidianas da vida, como a
vestimenta ostentada tanto nos meios urbanos quanto nos rurais, na recepção
textual (anexo E 44).
Em O reformador do mundo, Américo Pisca - Pisca é retratado
embaixo da jabuticabeira. Em um balão aparece a representação do sonho de
180
Américo, no qual o protagonista sofre as conseqüências das trocas por ele
idealizadas, como apresenta o anexo E 45. A ilustração seguinte, anexo E 46,
retrata o momento de descanso de Américo embaixo da árvore.
Em O sabiá na gaiola a contraposição de duas situações: a real,
na qual a ave vive situação de clausura, e a desejada, na qual o pássaro está em
liberdade. (anexo E 47). Já a última ilustração apresentada, representante da fábula
O velho, o menino e a mulinha, traz de novo a inserção de elementos da atualidade
como a vestimenta do menino que ostenta uma camisa com a numeração 10 na
parte frontal, numa possível referência ao universo esportivo que faz uso de
numerações nas vestimentas para identificar os esportistas (anexo E 48).
Outros desenhos compõem a seleção de textos analisados no
corpus desta dissertação, no entanto, o objetivo desta discussão foi ressaltar as
principais recorrências na apresentação dos elementos textuais na recepção do
texto, nas qual se inclui a ilustração, pelas crianças. Nesse caso, o desenho é um
dos campos de análise que pode ser encarado na recepção dos universos de leitura,
uma vez que, ao desenhar, o discente marca a produção com o entendimento
alçado em sua recepção do texto literário.
3.4 Reflees sobre a Leitura de Fábulas
Para entender as respostas obtidas no processo de reescrita do
texto canônico, vários campos do conhecimento fizeram parte do eixo teórico,
resgatado na presente dissertação, como as discussões sobre a tradução e
adaptação literárias e tamm a paródia, instrumentos de retomada do texto literário;
a estrutura e história do gênero fabular, como embasamentos que permitem
entender a circulação do referencial literário e a Estética da Recepção, corrente
teórica que analisa o papel do leitor na formão da história literária. Todas as
vertentes abordadas apontam para a importância do leitor, tanto no que tange a sua
participação propriamente dita, quanto à fuão de elemento motivador de
propagão e elaboração da entidade textual.
Na recepção do texto literário, objeto de análise deste estudo,
diversas situações entram em cena para compor o cenário de recepção, dentre os
quais se destaca o universo social do leitor. Como afirmado por Stierle (1979) o meio
181
social do qual o leitor faz parte é muito importante, pois o texto, então, torna-se
acontecimento literário, quando o leitor promove o diálogo entre as obras anteriores,
que debatem com a atual, pulverizando, em seu meio, conhecimentos que servem
de parâmetro para a recepção do texto.
Por isso, a Estética da Receão tornou-se o embasamento teórico
adequado para fundamentar, a partir dos conceitos de recepção, horizontes de
expectativas e distância estética a análise das narrativas infantis, que constituíram o
corpus do estudo aqui empreendido, a fim de se compreender o processo de
produção/recepção das fábulas trabalhadas em sala de aula, tendo, como referência
principal, a recepção por parte do leitor. Assim sendo, com base em conceitos
selecionados da Estética da Recepção, foi possível delinear o horizonte de
expectativas de crianças pertencentes à mesma classe social em contexto escolar,
materializado em normas literárias e concepções de mundo, presentes nas
narrativas infantis reproduzidas a partir das fábulas de Monteiro Lobato.
O trabalho buscou investigar como se forma, no ambiente escolar, a
recepção do objeto literário, observação que impulsionou diversos questionamentos,
uma vez que uma das tarefas da teoria recepcional, em conformidade com
Zilberman (1989), é a reconstrução desse horizonte, cujo objetivo é explicitar a
relação da obra literária com o seu público.
O primeiro deles chama a atenção para a importância do material
oferecido ao leitor que, nesse caso em especial, necessita ser pensado e planejado
e é, comumente, influenciado pela materialidade textual. Tal afirmão parte do
princípio que a materialidade da obra literária esligada, diretamente, à leitura e
aos resultados que poderão ser obtidos durante o processo.
Portanto, analisar como questões materiais influenciam as situações
de leitura é um problema que tem atraído discussões no âmbito atual da educação.
Isso abrange também o propósito da dissertação que, além de observar o papel do
material no ato da leitura, buscou, ainda, chamar a atenção para uma outra questão:
a necessidade de despertar uma posição crítica no leitor e nos mediadores de leitura
quanto à escolha do material a ser privilegiado nas atividades de leitura.
A situação de leitura é única para cada indivíduo e, por ser uma
ão subjetiva, depende, diretamente, do conhecimento prévio de cada leitor.
Também a escolha do material a ser utilizado pode variar de acordo com o indivíduo
ao qual o material será exposto.
182
No caso analisado, o referencial literário encontrou uma situação
singular, isso porque não enfrentou a escassez de recursos que a obra lobatiana
enfrenta, comumente, nos meios educacionais, principalmente quando se trata de
escolas públicas, como é o caso de instituições que contam com um mero
reduzido de exemplares de cada título da coleção infantil de Lobato. A essa
dificuldade é acrescida a falta de recursos dos alunos, que não contam com meios
financeiros adequados para adquirir um exemplar e, assim, ter acesso ao texto
literário na íntegra.
A escola observada contava com três coleções completas da obra,
organizadas especialmente na biblioteca, de forma a melhorar o acesso dos livros
aos leitores. Os exemplares, que seriam insuficientes para atender toda a escola,
não foram muito requisitados, uma vez que os alunos adquiriram os próprios livros,
quando já não os possuíam em casa.
Tal peculiaridade, presente em meios letrados, influi diretamente na
situação de leitura, ao apresentar um leitor que, ao conviver em um universo de
exposição e fácil acesso à literatura, adquire uma bagagem diferenciada. Essa
situação pode agir, diretamente, na relação entre leitor e sua recepção da obra de
arte literária.
Entretanto, mesmo estando inseridos em meios social e cultural
favoráveis, o grupo analisado o escapou ao registro de exemplos de recepção que
surpreenderam com o resultado obtido. Um exemplo disso pode ser mostrado com o
retrato, feito pelos alunos, da personagem Jeca Tatu, personagem-tipo do caboclo
brasileiro, em sondagem feita pela professora regente. Antes de discutir a temática,
a professora solicitou que os alunos desenhassem quem imaginavam ser o Jeca
Tatu. Os desenhos representam o quadro clássico do conhecimento prévio do
alunado, que, em sua grande maioria, retratou o caipira, imagem difundida pela
figura criada por Monteiro Lobato. Três casos interessam para constituição da idéia:
o primeiro desenhou um menino comum, o segundo um jogador de futebol e o
último, o próprio animal, o tatu. As ilustrações mostram um ato natural: quando
desconhece o conteúdo, o leitor traça associações e interpretações a partir da
palavra. Desse modo, associar a personagem a um menino ou jogador de futebol
o leituras contemporâneas que relacionam figuras atuais para o nome a ser
interpretado. Já o animal desenhado por uma das crianças aponta, na necessidade
183
de criar sentido para o questionamento, para a interpretação literal da palavra,
resultando no retrato do mamífero propriamente dito.
A recepção da obra lobatiana nesse universo específico de leitura
aponta para uma ocorrência: a disponibilidade de referenciais literários influencia a
recepção destes materiais literários. Isso porque o acesso ao livro permitiu um
resultado diferente do que seria alcançado em situação adversa, uma vez que não
conseguindo o texto de sua preferência, disponibilizado pela professora, o aluno, em
diversos momentos, driblou a escassez do referencial, consultando o próprio livro
para ter acesso à fábula desejada. Nesse caso, o social está diretamente ligado ao
resultado obtido com a prática da leitura, que tal possibilidade pôde ampliar o
leque de possibilidades e caminhos a serem percorridos durante a leitura.
Isso porque o trabalho pensado pela regente previa, que cada
criança teria duas matrizes disponíveis a cada rodada de leitura, a obtenção de um
resultado equilibrado quanto às escolhas das fábulas. No entanto, não foi o que
aconteceu. A consulta ao próprio livro, opção adotada por parte das crianças,
permitiu a construção de um novo quadro, rompendo o equilíbrio que a atividade
proposta poderia alcançar. Ter acesso a todos os textos, por meio da coletânea
lobatiana, permitiu o alcance de outro resultado, com bulas eleitas com mais de
10% dos leitores, em detrimento de outras que obtiveram apenas uma escolha, em
um universo de oitenta e sete reescritas.
Como discutido no terceiro capítulo, mesmo dispondo de recursos
próprios, o material disponibilizado pela professora regente, nas cartolinas coloridas,
pode ter influenciado na escolha realizada pelas crianças, como discutido no
como do capítulo 3, embora a profissional não tenha refletido sobre essa questão
no ato da elaboração, uma vez que a determinação das cores das matrizes
obedeceu, segundo ela, apenas a um reaproveitamento de sobras de material. Em
situação de leitura adversa, na qual o material literário fosse escasso, tanto o
resultado de escolha poderia ser distinto, por falta de opções, quanto ter esbarrado
ainda na falta de atratividade do material literário.
Tal quadro, observado informalmente em outras instituições
escolares, mostra que o ato de ler ultrapassa a mera decodificação do texto literário
e esbarra em questões físicas, financeiras e humanas, raciocínio que corrobora na
afirmão sobre densidade e diversidade de itens que envolvem o ato de ler.
184
O papel da materialidade no ato da leitura encontra reflexo na
abordagem sócio-política da leitura que Silva (1993), ao discutir o desenvolvimento
de interesses de leitura, apresenta, sob forma de sugeses de trabalho, maneiras
que motivam e transformam o contato com o material impresso, em uma atividade
prazerosa para a criança.
Tal preocupação se pauta na necessidade de permitir que os leitores
se sintam mais à vontade em seu contato com o veículo de comunicação, podendo
construir conhecimento, formar-se e informar-se. Assim, o pesquisador conclui que:
a literatura, enquanto expressão da vida, tem a capacidade de
redimensionar as percepções que o sujeito possui de suas
experiências e de seu mundo. Por isso mesmo, a leitura da literatura,
pela sua natureza e pela sua foa estética, colabora
significativamente para com a formação da pessoa, influindo nas
suas formas de pensar e encarar a vida (SILVA, 1993, p 89).
Desse modo, a cor do papel, no qual se encontrava fixado o texto,
pode ter levado a criança a selecioná-lo, embora tal item o seja a garantia de que,
após a leitura, a criança mantivesse a escolha.
Entretanto, taxar as questões referentes à materialidade como
ferramentas de perdição ou salvação torna-se irrelevante nesse âmbito de debate,
pois o essencial nesse sentido é despertar um olhar crítico do profissional envolvido,
a ponto de que o mesmo consiga direcionar o processo de leitura de modo a refletir
essas questões e ultrapassá-las, permitindo que não ajam como ações limítrofes no
ato de ler.
Assim, torna-se fundamental chamar a atenção para dois pontos
importantes: o papel do mediador de leitura e a condão do discente ao lugar de
sujeito da leitura. O mediador é fundamental, uma vez que ele pode provocar o
aluno a extrapolar as barreiras da obra, promovendo leituras e atualizões no texto
lido. Nesse ponto, questiona-se a exclusão, por parte da docente, da atualização das
fábulas, realizadas por Lobato e apresentadas após a contação de Dona Benta, na
qual o autor atualiza os textos canônicos, postura com que a professora não
contribui como mediadora, para a atualização crítica’ das fábulas pelas crianças.
Outro ponto crucial é a atribuição ao aluno de sua posição de agente do processo de
leitura, que não deve se basear, unicamente, na reprodução de fórmulas pré-
estabelecidas de interpretação textual.
185
A análise apresenta, condensando o que já se destaca em todo o
trabalho, a dedicão da instituição, de seu corpo docente, e, em especial, da
professora regente em motivar e explorar o contato do aluno com a obra literária,
ão que revela à expectativa da docente de que os alunos representem, em sua
recepção, certas fórmulas. Para ilustrar, resgate-se a cobrança da professora, que
recomenda à aluna a disposição textual semelhante à ostentada por Lobato (anexo
D 3). A aluna defende sua opção, argumentando racionalmente a sua visão, tanto no
que diz respeito à forma quanto ao conteúdo, marcando seu posicionamento como
sujeito do processo de leitura.
Tal problema é vista por Orlandi (1999) como uma questão que
reflete a formação de cada indivíduo, uma vez que cada ser é fruto das influências
ideológicas às quais está exposto e, dessa formação, depende seu posicionamento
perante o material de leitura. O grupo, formado por elementos críticos, conseguiu,
em sua maioria, ultrapassar as barreiras impostas pelo texto e inserir nele as marcas
sociais, culturais e ideológicas de que, enquanto leitor,é fruto.
De acordo com a autora, a história de vida do ser humano influi na
compreensão que faz do discurso, fato que se comprovou na realização do estudo.
Mesmo em um grupo pequeno, como o observado, um único texto alcançou as mais
distintas leituras, movimento que atesta, empiricamente, a singularização da
interpretação do texto literário na situão real de leitura.
A individualidade de cada aluno tamm é verificável na diversidade
de preferências. No entanto, ressalta-se a importância da materialidade nas opções,
uma vez que as cores fortes apresentam maior índice de escolhas. Isso se
comprova no alto índice de predileção pelos textos cuja moldura ostentava cores
vibrantes como preta, vermelha, laranja e marrom, enquanto que a cor branca, de
tonalidade neutra, acarretou apenas uma escolha em duas das três fábulas que
emoldurou.
Também se questionou, por se tratar de uma situação de produção
textual, os textos mais extensos seriam rejeitados. A esse respeito conclui-se que o
conhecimento prévio do alunado influiu nesse quesito, uma vez que textos menos
conhecidos, como O reformador do mundo, foram pouco escolhidos, ao contrário de
outros, que a exemplo da fábula A menina do leite, alçou um dos maiores índices de
escolha.
186
O conhecimento do cânone, presente nas hipóteses norteadoras
da pesquisa empírica, questionava se textos mais conhecidos seriam mais
escolhidos em detrimento dos que apresentassem conteúdos inéditos, para as
crianças. Tal quadro se comprova no fato que textos mais comumente conhecidos
obterem maior índice de aceitação, reflexo do número de reproduções.
Possivelmente até a primeira leitora, nesse caso, a professora
regente, também selecionou os textos a serem disponibilizados a seus alunos
apoiada em seu conhecimento prévio. Isso se comprova pela predileção por textos
mais conhecidos, que deixou de fora alguns textos muito conhecidos como Os
animais e a peste, O rato e a rã e Liga das nações. Tal peculiaridade mostra a
individualidade do leitor, cujo repertório de conhecimentos pode excluir o que é
conhecido para outro indivíduo ou apara o grupo do qual faz parte. Seguindo tal
pista, nota-se que, inconscientemente, a professora, responsável pela primeira
seleção do material, optou, na necessidade de aumentar os referenciais literários a
serem disponibilizados na atividade de leitura, por selecionar enredos mais
conhecidos, como A coruja e a águia, A formiga , A gralha enfeitada com penas
de pavão e O sabiá na gaiola.
Privilegiando, geralmente, textos mais conhecidos, a seleção da
docente se repetiu na escolha realizada pelos alunos que, guiados pelos
conhecimentos pulverizados no ideário popular, elegeram, em sua maioria, os textos
mais experimentados. Analisando as bulas A formiga boa e A formiga não se
pode deixar de observar a predileção pela última, que reprisa o conteúdo literário
tradicional. Entretanto, o se pode ignorar o fato que desta versão ter sido ofertada
em duas matrizes, duplicidade que pode ser um dos motivos que a fez alcançar o
dobro de escolhas do que a primeira.
Os diálogos textuais o responsáveis pela circulação de conteúdos
literários que por meio de adaptações, tradões e/ou paródias são diluídos nos
conhecimentos prévios e, geralmente, reprisados em materiais didáticos e veículos
comunicativos, fazendo-os mais conhecidos.
Conhecer previamente o contexto pode ser uma situação conforvel
na reescrita textual, podendo representar, para o leitor em formação, o domínio de
uma maior gama de conhecimentos, permitidas pela relação entre texto e a ação do
tempo sobre a entidade textual, por meio das sucessivas leituras a que o mesmo é
exposto e que o leitor pode dispor para formar sua própria leitura.
187
Na ação de adaptação, o conteúdo das fábulas foi atualizado na
versão lobatiana, ação que promoveu, por meio do debate personificado pelas
personagens do Sítio, especialmente de Emília, a manutenção, inserção e/ou
modificação dos valores difundidos pelos textos primeiros.
A exemplo do ato realizado por Monteiro Lobato, também as crianças
inseriram em suas reproduções marcas de seu tempo como a banalização ou
valorização da violência e inserção ou personificação de elementos da modernidade.
O primeiro, a banalização da violência, como apontado no decorrer
do capítulo de análise, consiste no reforço ou amenização dos atos de violência,
frutos, possivelmente, do momento de insegurança vivenciado. Tanto o aumento
quanto a diminuição podem ser a tentativa de reproduzir o quadro atual como
tamm servir, no caso de sua suavização, como fuga de uma situação que assusta,
constrange ou incomoda a criança. Tal repertório de leitura também é influencia
evidente dos contos de fadas que apresentam essas situações nas narrativas.
Por outro lado, a inserção de elementos atuais, como o retrato, por
meio da ilustração, de uma conhecida rede de supermercados da cidade de Maringá
(anexo E 14), aponta para uma ocorrência comum em grande parte das reescritas: o
movimento de atualizão a que é submetido o texto literário durante o processo de
reescrita.
Tal prática, comum desde os primórdios do gênero fabular, é uma
necessidade, uma vez que o tempo e as mudanças lingüísticas que o acompanham
o empecilhos de relacionamento entre a literatura e o público. Desde Esopo até
seus sucessores, grupo no qual se inclui o próprio Lobato, ocorre, na retomada de
um texto, a inserção, domesticação, ou simplesmente a atualização, seja linística
ou estrutural, do texto original. As atualizações deixam de ser uma alternativa e
assumem o viés de necessidade a partir do momento em que a distância temporal
se torna uma barreira para o leitor.
Exemplos como os apresentados durante o Capítulo 3 mostram que
a recepção textual é uma ação singular e, ao mesmo tempo, complexa. Exige de seu
leitor uma série de saberes e varia de acordo com as reações encontradas nele.
Nesse caso se enquadra a paródia, nero sofisticado nas exigências feitas aos
seus praticantes e intérpretes como discutidos no primeiro capítulo. Ao leitor cabe a
missão de desvendar a sobreposição estrutural de textos e o diálogo existente entre
o antigo e o novo.
188
O leitor em formação, não detentor dos protocolos de leitura e com
um repertório que não sustenta as inferências que seriam necessárias para a
recepção da paródia, não dá conta, em diversas situações, de atentar para o
significado embutido no texto.
Desse modo, a paródia é, para o leitor infantil, um mecanismo
inacessível no que tange à interpretação textual, pois como discutido anteriormente,
o leitor necessita ter competência, bem como conhecimentos das normas retóricas e
literárias que permitam o reconhecimento.
Hutcheon (1985) afirma que quando o leitor o entende a paródia,
o gênero perde a acessibilidade e a função. Tal afirmação pode ser analisada a
partir da recepção da fábula A formiga boa, texto paródico que, baseado em A
cigarra e a formiga, reescreve o texto original. Não entender a intencionalidade do
autor, codificada na nova produção, pode ser o motivo de sua rejeição, como se
comprova com o baixo índice de escolhas do texto por parte dos alunos. Desse
modo, a não decodificação do digo paródico pode representar o não entendimento
do texto parodiado e das intenções existentes por trás dele, fazendo do gênero
narrativo algo inacessível.
Dezotti (2003) chama a atenção para o diálogo existente entre o
texto lobatiano e as produções dos Antigos. Para a pesquisadora, a reescrita do
texto se classificaria como paráfrase, embora, com o desenvolvimento do trabalho, e
pautado, principalmente, nos conceitos difundidos por Hutcheon (1985), transpareça
traços da paródia que, se não acontece na íntegra, como em outras obras do
mesmo autor, auxiliam na construção do texto, principalmente nos traços de humor
apresentados na versão de Lobato.
Sabendo dos obstáculos que podem surgir entre leitor e fábula,
indaga-se a conveniência de se propor a leitura das fábulas para crianças e
adolescentes. Martha (1999) levanta esse questionamento em artigo que trata do
assunto, no qual ressalta a dificuldade que o leitor, ainda em formação, pode
encontrar na leitura desse tipo de texto, envolto em uma estrutura peculiar
51
[que]
justifica a dificuldade de propor, hoje, a leitura desse tipo de narrativa para a criança
e para o adolescente” (MARTHA, 1999, p. 74).
51
Esta observação pauta-se, sobretudo nas fábulas tradicionais, em razão das moralidades.
189
Em conformidade com Martha, a fábula é um gênero que apresenta,
comumente, um grau de dificuldade para o leitor, como se comprovou no decorrer
da análise. Entretanto, não se pode deixar de observar que, na realidade analisada,
dificuldades esperadas foram, em diversos momentos, amenizadas e até superadas.
Mesmo constatando-se extrema dificuldade no trato com o texto, foram buscadas
alternativas que procuraram driblar as dificuldades eventuais, tais como o uso,
principalmente, de recursos lúdicos, como filmagens, culinária e jogos diversos.
A dinâmica adotada em sala de aula partia do levantamento dos
conhecimentos prévios do aluno, por meio de sondagem, a partir da qual se iniciava
o trabalho com o texto literário. As temáticas se desdobravam em trabalhos
intertextuais e interdisciplinares, que envolviam toda a instituição. A obra de arte
literária abriu margem para visitas a um jornal da cidade, realização da culinária
prestigiada na obra, apreciação de filmes, realizão de trabalhos artísticos e
culturais, pesquisas e trabalhos interdisciplinares.
O uso de tais recursos comprova a existência de certos mecanismos
que levam à compreensão plena de um determinado texto e, para entendê-lo, a
necessidade de se desprender das palavras e frases, e considerar a entidade em
sua totalidade. As palavras em si não possuem um significado real, mas estão,
intrinsecamente, ligadas a um todo significativo, cujo contexto situacional imprime a
elas sentido exato em determinado momento enunciativo. Isso porque a leitura é um
jogo psicolingüístico de adivinhação, o envolve apenas o imput visual, mas
tamm informões não-visuais, do universo cognitivo do leitor. É esta interação
das pistas visuais com o conhecimento armazenado na memória do leitor que lhe
possibilita antever, ou predizer, o que ele irá encontrar no texto (KATO, 1995).
A descrição suscitada objetivou mostrar que o recebimento do texto
literário, na realidade de sala de aula, es ligado ao trabalho desenvolvido, que
pode tanto atrair quanto repelir o leitor. No caso em questão, foi possível identificar
uma recepção positiva do texto lobatiano que, apesar da distância temporal e das
dificuldades lingüísticas que apresenta para o público infantil, alçou, graças ao
trabalho desenvolvido, uma aceitação favorável e, ao mesmo tempo, agradável.
Como atesta Martha, a leitura do nero fabular, do qual se pode
agregar também a produção de Monteiro Lobato, consiste no contato com entidades
textuais complexas para o leitor em formação. No entanto, tal dificuldade pode ser
driblada com uma mediação que antecipe as dificuldades e sirva de elo de mediação
190
entre o leitor e os saberes difundidos pela obra literária e não se restrinja, como
aconteceu em sala de aula, a uma intervenção lingüística, sanando problemas de
vocabulário, e direcionadora dos fatos, motivando uma interpretação determinada ao
invés de motivar a reflexão sobre a leitura.
Pode-se concluir, com o desenvolvimento da pesquisa, nesse
ambiente escolar, como também nas observações informais, obtidas por meio do
trabalho como professora, em instituições de características distintas da observada
nessa escola, que as fábulas de Lobato representam, independente da classe social
do receptor envolvido, um material riquíssimo para a construção coletiva do
conhecimento.
Embora seja evidente que a recepção do texto literário, como atesta
Jauss (1994), retrata o leitor que, por sua vez, espelha seu universo, a obra infantil
lobatiana reflete, depois de mais de oitenta anos, os conceitos que permitem a
presença do leitor, envolvendo-o, instigando-o a participar do mundo ficcional. Com
tal comunhão, é estabelecida uma interação comunicativa com o texto, constituindo-
se na “experiência estética”, resultado do processo dialógico e do caráter
emancipador dos textos literários produzidos por esse excepcional escritor.
191
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise da recepção das fábulas lobatianas por crianças do Ensino
Fundamental, no universo de sala de aula, partiu de um eixo gerador, a recepção do
texto literário e é, segundo atesta a teoria da Estética da Recepção, fruto das
experiências do leitor. A afirmação se comprova, não nas leituras das reescritas,
como também nas adaptações realizadas no decorrer do tempo, prática que tornou
possível o resgate das produções e as marcou com traços históricos, estéticos e
estruturais, que representam o momento de seu ressurgimento.
Como discutido em toda a dissertação e sintetizado nas
considerações finais, a hipótese de que a história literária depende de seu leitor,
para ser construída, corrobora com a tese de que o processo de leitura em si é
marcado pelos conhecimentos prévios do leitor, que determinará, a posteriori, a
hisria literária.
O eixo de sustentação do trabalho desdobrou-se em três primícias
investigativas durante a realização e análise da pesquisa empírica: textos mais
difundidos pelo none literário o, conseqüentemente, mais escolhidos em
oposição aos que não pertencem a esse grupo; textos mais longos seriam rejeitados
na situação de reprodução textual e, por fim, a influência do material sobre as
escolhas da criança por determinados textos, levando em consideração a situação
desenvolvida no ambiente de leitura escolar.
O primeiro questionamento abarca, em diversas situações, os outros
dois, pois não dúvida de que conhecer o contexto narrativo foi um dos principais
atrativos para as crianças nas escolhas das fábulas, tanto que textos mais longos
alçaram altos índices de predileção, graças ao reconhecimento de seus conteúdos,
que agiram como atrativos para os leitores. Do mesmo modo, textos mais extensos e
tamm pouco conhecidos por aquele grupo foram, como imaginado a princípio,
rejeitados na seleção infantil.
Ao responder os questionamentos norteadores da pesquisa,
observa-se a constatação da tese de que o quadro esperado se desdobrou e
confirmou a importância do meio no qual o leitor está inserido na situação real de
leitura, em dois movimentos. O primeiro está pautado na influência que a bagagem
de leitura e de conhecimentos prévios na seleção das crianças, uma vez que é o
saber delas que direciona, consciente ou inconscientemente, suas escolhas.
192
Geralmente, nota-se que o discente é atraído pelo enredo mais conhecido, opção
que pode estar atrelado a um conforto maior na atividade de reescrita, por
representar um domínio maior de informações.
O segundo, apresentado por meio dos exemplos discutidos no
terceiro capítulo, mostra, como destacava a Teoria da Estética da Recepção, a
participação de elementos reais e atuais da vida do leitor no texto, inserções que
acabam servindo de instrumento de recepção e construção de sentido. Além dos
fatores elencados, o diálogo entre texto e realidade atual serve de ferramenta de
atualização, que permite ao texto uma nova roupagem.
Como sugerido na introdução do trabalho e confirmado após as
discussões teóricas e análise empírica, não existe nenhuma verdade fechada e
inflexível quando se trata da recepção do texto literário. Tamm, vale ressaltar que
nenhuma determinante é inflexível no que diz respeito à recepção do texto literário,
pois barreiras sociais, etárias, lingüísticas podem ser ultrapassadas, como mostra a
discussão levantada pelo trabalho, pela mediação realizada entre obra e leitor, que
pode estar presente em diversas frentes: educadores e no próprio material literário.
No primeiro caso, a docente realizou uma mediação que atendeu as carências
lingüísticas e de orientação da atividade proposta, sem, no entanto, mediar uma
recepção que realizasse uma atualização crítica das bulas. No segundo caso, a
mediação se materializa a partir dos recursos estilísticos de que lança mão o autor,
como a mediação executada por Dona Benta; do material impresso; das instâncias
reguladoras; da instituição escolar; família; grupo social e, principalmente, do leitor,
por meio dos recursos que utiliza na busca de construir sentido para o texto.
Tal afirmação se pauta na idéia de que as possíveis dificuldades de
leitura podem ser amenizadas, e até resolvidas, por meio da mediação de leitura,
que acontece, principalmente, de duas maneiras: disponibilizada por meio do
profissional envolvido no processo de ensino, na situação de leitura escolar e,
tamm, como no caso singular de Monteiro Lobato, na mediação textual, utilizada
pelo autor, que se preocupou em preparar seu texto para o leitor em formão,
formando-o e informando-o ao mesmo tempo. O leitor, na situação analisada,
aproveitou as duas mediações oferecidas, dando vida ao texto escrito por meio de
inseões e diálogos promovidos entre a obra literária e o mundo que a rodeia,
situação que desencadeou, na ação do leitor, na fusão entre os textos reproduzidos
e readaptados.
193
Nesse caso, a intenção de José Bento Monteiro Lobato, em 1922, de
retirar os espinhos do texto e acessibilizá-lo a quem é de direito, concretizou-se e
repetiu-se por outras mãozinhas, uma vez que as crianças, por questões temporais
e de outras ordens, repetem os passos do mestre e seguem, a cada nova leitura,
retirando os espinhos das amoras do mato e degustando-as. De tal apreciação
brotam novas leituras, que representam os olhos do leitor em formação do século
XXI, que desmistifica as dificuldades atribdas aos textos lobatianos, que seguem,
despertando encanto, deleite, conhecimento e prazer.
194
BIBLIOGRAFIA
AGUIAR, Vera Teixeira; BORDINI, Maria da Glória. Literatura: a Formação do
Leitor: Alternativas Metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.
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199
ANEXOS
200
ANEXO A:
Folder
201
ANEXO A1: FOLDER 1
202
ANEXO A2: FOLDER 2
203
ANEXO B:
Capa das Produções
das Crianças
204
ANEXO B1: CAPA DAS PRODUÇÕES DAS CRIANÇAS
205
ANEXO C:
Entrevista com a
Docente
206
ANEXO C 1: ENTREVISTA COM A PROFESSORA
207
208
209
ANEXO D:
Fábulas Reescritas -
Fábulas Escolhidas
210
ANEXO D1: A3, 2006, TEXTO 26
211
ANEXO D2: A4, 2006: TEXTO 72
212
ANEXO D3, A5, 2006
ANEXO D 3, A 5, 2006: TEXTO 7
212
ANEXO D 3, A 5, 2006: TEXTO 7
213
ANEXO D4: A8, 2006, TEXTO 46
214
ANEXO D 5: A 2, 2006, TEXTO 61
215
ANEXO D 6: A 5, 2006, TEXTO 28
216
ANEXO D 7: A 12, 2006, TEXTO 84
217
ANEXO D 8: A6, 2006, TEXTO 25
218
ANEXO D 9: A3, 2006, TEXTO 71
219
ANEXO D 10: A4, 2006, TEXTO 73
220
ANEXO E:
Ilustrações -
Esboços de Leitura
221
ANEXO E 1: A 3, 2006, ILUSTRAÇÃO 1
222
ANEXO E 2: A 3, 2006, ILUSTRAÇÃO 2
223
ANEXO E 3: A 9, 2006, ILUSTRAÇÃO 3
224
ANEXO E 4: A 5, 2006, ILUSTRAÇÃO 4
225
ANEXO E 5: A3, 2006, ILUSTRAÇÃO 7
226
ANEXO E 6: A 7, 2006, ILUSTRAÇÃO 8
227
ANEXO E 7: A 7, 2006, ILUSTRAÇÃO 10
228
ANEXO E 8: A7, 206, ILUSTRAÇÃO 14
229
ANEXO E 9: A 12, 2006, ILUSTRAÇÃO 12
230
ANEXO E 10: A 8, 006, ILUSTRAÇÃO 15
231
ANEXO E 11: A 10, 2006, ILUSTRAÇÃO 17
232
ANEXO E 12, A 12, 2006, ILUSTRAÇÃO 19
233
ANEXO E 13: A 13, 2006, ILUSTRAÇÃO 20
234
ANEXO E 14: A 3, 2006, ILUSTRAÇÃO 26
235
ANEXO E 15: A 5, 2006, ILUSTRAÇÃO 28
236
ANEXO E 16: A 8, 2006, ILUSTRAÇÃO 29
237
ANEXO E 17: A 11, 2006, ILUSTRAÇÃO 30
238
ANEXO E 18: A 12, 2006, ILUSTRAÇÃO 31
239
ANEXO E 19: A 4, 2006, ILUSTRAÇÃO 27
240
ANEXO E 20: A 7, 2006, ILUSTRAÇÃO 35
241
ANEXO E 21: A 3, 2006, ILUSTRAÇÃO 33
242
ANEXO E 22: A 11, 2006, ILUSTRAÇÃO 36
243
ANEXO E 23: A 3, 2006, ILUSTRAÇÃO 40
244
ANEXO E 24: A 1, 2006, ILUSTRAÇÃO 46
245
ANEXO E 25: A 6, 2006, ILUSTRAÇÃO 25
246
ANEXO E 26: A 7, 2006, ILUSTRAÇÃO 42
247
ANEXO E 27: A 8, 2006, ILUSTRAÇÃO 46
248
ANEXO E 28: A10, 2006, ILUSTRAÇÃO 47
249
ANEXO 29: A 9, 2006, ILUSTRAÇÃO 48
250
ANEXO E 30: A 7, 2006, ILUSTRAÇÃO 49
251
ANEXO E 31: A 3, 2006, ILUSTRAÇÃO 48
252
ANEXO E 32: A 9, 2006, ILUSTRAÇÃO 52
253
ANEXO E 33: A 5, 2006,ILUSTRAÇÃO 32
254
ANEXO E 34: A 6, 2006, ILUSTRAÇÃO 55
255
ANEXO E 35: A 8, 2006, ILUSTRAÇÃO 56
256
ANEXO E 36: A 12, 2006, ILUSTRAÇÃO 58
257
ANEXO E 37: A 5, 2006, ILUSTRAÇÃO 61
258
ANEXO 38: A 12, 2006, ILUSTRAÇÃO 67
259
ANEXO E 39: A 6, 2006, ILUSTRAÇÃO 62
260
ANEXO E 40: A 3, 2006, ILUSTRAÇÃO 71
261
ANEXO E 41: A 10, 2006, ILUSTRAÇÃO 74
262
ANEXO E 42: A 5, 2006, ILUSTRAÇÃO 41
263
ANEXO E 43: A 7, 2006, ILUSTRAÇÃO 40
264
ANEXO E 44: A 4, 2006, ILUSTRAÇÃO 72
265
ANEXO E 45: A 8, 2006, ILUSTRAÇÃO 72
266
ANEXO E 46: A 4, 2006, ILUSTRAÇÃO 73
267
Aaa,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,, ,,,,,,,,,,,,,,,
268
ANEXO E 48: A 4, 2006, ILUSTRAÇÃO 85
269
ANEXO 49: ILUSTRAÇÂO - A CIGARRA E AS FORMIGAS - ILUSTRAÇÃO DE
JEAN IGNACE I. GERARD GRANDIRLLE
270
ANEXO 50: ILUSTRAÇÃO - A CIGARRA E AS FORMIGAS - ILUSTRAÇÃO DE
GUSTAVO DORÉ
271
APÊNDICE
272
APÊNDICE 1: ENTREVISTA
Questionário:
1) Identificação (opcional).
2) Já conhecia a oba de Monteiro Lobato antes do início do projeto interativo?
3) Qual o enfoque privilegiado por você em seu trabalho em sala de aula? Qual
o motivo de tal escolha?
4) O que lhe chamou a atenção na obra lobatiana?
5) A seu ver os textos foram de fácil leitura ou apresentaram dificuldades para
o leitor em formação?
6) Como você descreveria a relação entre a criança e a obra literária em
questão?
7) Quanto à materialidade do texto literário:
a) Disponibilidade do material impresso (há material em quantidade no
mercado, em bibliotecas)
b) Qualidade desse produto (é um material adequado para crianças,
atrativo, de fácil manuseio).
c) Relação criança e livro (como aconteceu a interação entre leitor e o
próprio livro).
d) Algumas coleções, considerando questões de extensão,
reorganizaram a ordenação dos textos dentro da obra completa,
alterando a ordem da narrativa. Para o leitor isso pode ser um
obstáculo na situação de leitura?
8) Monteiro Lobato faz uso de diversos recursos em sua composição como
adaptação de textos existentes, utilização de elementos intertextuais e
outros. Como tais recursos influenciam a recepção do texto lobatiano?
(Conhecer personagens dos cssicos como Chapeuzinho Vermelho e
outros favorece a compreensão dos textos do autor?)
9) Como você avaliaria o trabalho com a obra infantil lobatiana, considerando
aceitabilidade, possíveis graus de dificuldade e outros elementos.
10) Como você enquanto leitor avalia a obra em questão?
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