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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
PROGRAMA DE MESTRADO
CESARE BECCARIA E AS SOMBRAS DO ILUMINISMO: DIREITO
PENAL E ABSOLUTISMO ESCLARECIDO NA LOMBARDIA
AUSTRÍACA.
Dissertação apresentada junto ao Curso
de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal de Santa Catarina,
sob a Orientação do Professor Arno Dal
Ri Júnior, como requisito para a
obtenção do Título de Mestre em Direito.
Mestrando: Alexsander Rodrigues de Castro.
Orientador: Prof. Dr. Arno Dal Ri Júnior.
Florianópolis, abril de 2008.
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“Se os homens soubessem como são feitas as salsichas e as leis, não comeriam as
primeiras e não obedeceriam as segundas.”
Otto von Bismarck
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CESARE BECCARIA E AS SOMBRAS DO ILUMINISMO: DIREITO
PENAL E ABSOLUTISMO ESCLARECIDO NA LOMBARDIA
AUSTRÍACA.
Esta dissertação foi julgada adequada para obtenção do título de Mestre em
Direito e aprovada em sua forma final pela coordenação do Curso de Pós-
Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, na área de
Teoria e Filosofia do Direito.
Banca examinadora:
Presidente: Professor Doutor Arno Dal Ri Júnior (UFSC)
Membro: Professor Doutor Massimo Meccarelli (Università degli studi di Macerata)
Membro: Professora Doutora Giorgia Alessi (Università degli studi di Napoli)
Coordenador: Professor Doutor Antônio Carlos Wolkmer (UFSC)
Florianópolis, abril de 2008
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AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer a todos os colegas da minha turma (a turma 2006-2007) no curso de mestrado
em direito da Universidade Federal de Santa Catarina pelo maravilhoso clima de companherismo
que foi tão importante para suportar estes dois anos de laborioso estudo.
Agradeço também ao pessoal da secretaria da pós-graduação pelo auxílio e pela atenção que nunca
faltaram.
Agradeço a todos os colegas do Grupo de Pesquisas em História do Cultura Jurídica da UFSC pela
cooperação intelectual que foi tão fundamental para os destinos da minha pesquisa.
Agradeço sobretudo ao colega e amigo Ricardo Sontag pelas inúmeras e preciosíssimas
contribuições teóricas que constribuíram de forma decisiva para a pesquisa que agora apresento.
Agradeço muitíssimo aos grandes amigos que conheci nesse período de minha vida, especialmente
Fernando Perazzolli, Nestor, Adam, Maurício, Paulo Cézar (“capitão caverna”), Daniel, Adriano e
Cristiano pelo divertidos momentos e pela inestimável amizade que certamente será para a vida
toda.
Agradeço ao Prof. Edmundo de Lima Arruda Júnior pela amizade, pelos momentos de divertimento,
por tudo que me ensinou e pela oportunidade de ministrar com ele, por dois semestres consecutivos,
a disciplina de Sociologia do Direito no curso de graduação da UFSC.
Ringrazio anche Anna Fracchiolla, Anna Palma e José Nascimento, i miei tre insegnanti di italiano.
Agradeço muitíssimo aos professores Dr. Paolo Grossi, Dr. Paolo Cappelini, Dr. Pietro Costa e Dr.
Federigo Bambi e a todos os funcionários do Dipartimento di Giurisprudenza e da Biblioteca da
Università degli studi di Firenze pela atenção e pela calorosa receptividade em meu soggiorno
fiorentino.
Agradeço ao Lucas pela amizade, pela colaboração e pelas divertidas conversas na sala 313 do CCJ.
Agradeço muitíssimo ao Prof. Dr. Airton Cerqueira-Leite Seelaender pela amizade, pelas divertidas
conversas que compartilhamos e pelas fudamentais lições de história do direito que o tornaram
praticamente um co-orientador informal da minha dissertação.
Agradeço muitíssimo ao meu orientador, o Prof. Dr. Arno Dal Ri Júnior, uma das pessoas mais
iluminidas e luminosas que já conheci, pela amizade, pelos momentos de descontração, por todas as
oportunidades que me proporcionou, por tudo aquilo que me ensinou (não apenas em história do
direito) e pelos dois extraordinários anos de trabalho que pudemos compartilhar nesse período de
mestrado, que me levaram a uma enorme evolução intelectual e cujos frutos já começamos a colher
e colheremos durante muitos anos ainda.
Por fim, agradeço à minha mãe.
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RESUMO: O Iluminismo milanês do Circulo do Caffè desenvolveu-se em um contexto em que
faltava, da parte da sociedade civil, qualquer iniciativa contundente em benefício da causa da
modernização institucional. Ao contrário, a Lombardia, naqueles anos, era palco de um potente
programa reformista e modernizador levado a cabo dentro do projeto autocrático do absolutismo
habsbúrgico. Dentro desse contexto a identificação dos jovens intelectuais com a causa da
modernização absolutista foi praticamente inevitável. Os intelectuais iluministas da Società dei
Pugni são assim absorvidos dentro desse processo de modernização conservadora e passam a
integram os quadros funcionais submetidos à coroa austríaca e a seus representantes lombardos.
Algumas conseqüências, desde logo, são importantes. A primeira, é uma espécie de abertura de
horizontes sofrida pela proposta absolutista, em função da influência daqueles intelectuais, essencial
para se formar o fenômeno do absolutismo esclarecido. A segunda, é o progressivo abandono das
idéias republicanas e democráticas que faziam parte do espírito original da filosofia das Luzes. As
capacidades intelectuais dos jovens filósofos, ante ao abandono relativamente forçado dos ideais
humanistas que justificavam o projeto da modernidade, acaba levando a que a racionalidade
iluminista por eles representada seja progressivamente reduzida ao seu mero aspecto instrumental e
que fique, assim, à disposição tão-somente da lógica de acumulo do poder. Cesare Beccaria, graças
à publicação de Dei Delitti e delle Pene, transformou-se no iluminista italiano mais conhecido, tanto
em sua época quando nos correntes dias. Graças a ela, o partido dos philosophes da França,
comandado por Voltaire, passou a acompanhar com curiosidade e atenção os progressos que fazia,
em nome da razão, a École de Milan. Sua obra até hoje é louvada, por criminalistas de todo o
mundo, como aquela que ajudou a fundar o direito penal moderno, instaurando na esfera criminal os
princípios humanistas, fundados na idéia iluminista de dignidade da pessoa humana. Mas esse
momento tão brilhante e luminoso do Iluminismo milanês talvez guarde algo daquilo que levaria
suas sombras a avolumarem-se cada vez mais até levá-lo a seu triste crepúsculo dentro das
entranhas do absolutismo habsbúrgico. O papel exercido pela teoria utilitarista, voltada sobretudo
para fornecer ao soberano os métodos indicados para a subordinação da sociedade civil, mais ou
menos como fazia a Ciência de Polícia e a Cameralística, e o implícito desapreço pela autonomia
do sujeito que ela implica eram as sombras que pairavam à margem dos entusiasmados ideais
republicanos de Dei Delitti e delle Pene.
PALAVRAS-CHAVE: Beccaria; direito penal; absolutismo esclarecido; Iluminismo.
6
RIASSUNTO: L’illuminismo milanese del circolo del Caffè si sviluppò in un contesto nel quale
mancava, da parte della società civile, qualunque iniziativa contundente in beneficio della causa di
modernizzazione istituzionale. All’contrario, la Lombardia in quei anni fungeva da palcoscenico per
un potente programma riformista e modernizzatore portato a capo dentro al progetto autocratico
dell’assolutismo asburgico. Dentro questo contesto l’identificazione dei giovani intellettuali con la
causa della modernizzazione assolutista fu praticamente inevitabile. Gli’intellettuali illuministi della
Società Dei Pugni sono così assorbiti dentro questo processo di modernizzazione conservatore e
passano a integrare i quadri funzionali sottomessi alla corona austriaca e ai suoi rappresentanti
lombardi. Da questo momento in poi sono importanti alcune conseguenze. La prima é una specie di
apertura di orizzonti sofferta dalla proposta assolutista in funzione dell’influenza di quei
intellettuali, essenziale per formare il fenomeno assolutismo illuminato. La seconda é il progressivo
abbandono delle idee repubblicane e democratiche che facevano parte dello spirito originale della
filosofia dei Lumi. Le capacità intellettuali dei giovani filosofi, dinanzi all’abbandono relativamente
forzato dagli ideali umanisti che giustificavano il progetto di modernità, porta la razionalità
illuminista da loro rappresentata a essere progressivamente ridotta al suo mero aspetto strumentale e
che stia, quindi, solamente a disposizione della logica di accumulo di potere. Cesare Beccaria,
grazie alla pubblicazione di Dei Delitti delle Pene, si trasformò nell’illuminista italiano più
conosciuto, tanto nella sua epoca quanto nei giorni correnti. Grazie a essa il partito dei philosophes
della Francia, comandato da Voltaire, passò ad accompagnare con curiosità ed attenzione i progressi
l’École de Milan faceva in nome della ragione. Ancora oggi la sua opera é lodata, dai criminalisti di
tutto il mondo, come quella che aiutò a fondare il diritto penale moderno, instaurando nella sfera
criminale i principi umanisti fondati nell’idea illuminista di dignità della persona umana. Ma questo
momento brillante e luminoso dell’illuminismo milanese forse custodisce qualcosa di quello che
avrebbe portato le sue ombre a acquisire sempre più volume fino a portarlo ad un triste crepuscolo
dentro alle viscere dell’ assolutismo asburgico. Il ruolo esercitato dalla teoria utilitaristica, volta
sopratutto a fornire al sovrano i metodi indicati per la subordinazione della società civile, più o
meno come faceva la Scienza della Polizia e la Cameralistica, e l’implicito disprezzo per
l’autonomia del soggetto che essa implica, erano le ombre che minacciavano il margine degli
entusiasti ideali repubblicani Dei Delitti e delle Pene.
PAROLE-CHIAVI: Beccaria; diritto penale; assolutismo illuminato; Illuminismo.
7
INTRODUÇÃO......................................................................................................................8
PARTE 1 – ABSOLUTISMO E ILUMINISMO................................................................14
CAPÍTULO 1 – DIREITO E ILUMINISMO NO ABSOLUTISMO TARDIO DO SÉCULO
XVIII............................................................................................................................................15
SEÇÃO I – Iluminismo e Absolutismo: centralização jurídica e o uso instrumental do direito............. 15
SEÇÃO II – Economia e administração: o papel do Iluminismo na formação estatal da segunda metado
do século XVIII. ..................................................................................................................................... 44
CAPÍTULO 2 – ILUMINISMO E ABSOLUTISMO NA LOMBARDIA AUSTRÍACA .... 70
SEÇÃO I – A formação do reformismo habsbúrgico na Lombardia e o surgimento do Il Caffè............ 70
SEÇÃO II – A formação do absolutismo esclarecido na Lombardia: a luta contra o patriciado e a
coalizão entre os filósofos e a dinastia habsbúrgica................................................................................ 87
PARTE 2 – A FILOSOFIA POLÍTICA EM DEI DELITTI E DELLE PENE..............113
CAPÍTULO 1 – A PASSAGEM DO CONTRATUALISMO AO UTILITARISMO NO
ILUMINISMO FRANCÊS.......................................................................................................114
SEÇÃO I – Cesare Beccaria e a teoria contratualista ............................................................................114
SEÇÃO II – Beccaria e Helvétius entre contratualismo e utilitarismo..................................................127
SEÇÃO III – O aprofundamento psicológico de Condillac e a formação do hedonismo iluminista.....141
CAPÍTULO 2 – UTILITARISMO E ABSOLUTISMO ESCLARECIDO EM HELVÉTIUS
E BECCARIA ...........................................................................................................................155
SEÇÃO I – Helvétius e o Legislador.....................................................................................................155
SEÇÃO II – O utilitarismo de Helvétius em Dei Delitti e delle Pene ...................................................176
SEÇÃO III – O utilitarismo em Cesare Beccaria: racionalidade e eficiência do sistema penal no Estado
absolutista..............................................................................................................................................198
CONCLUSÃO....................................................................................................................207
BIBLIOGRAFIA PRIMÁRIA ..........................................................................................220
BIBLIOGRAFIA SECUNDÁRIA ....................................................................................229
8
INTRODUÇÃO
A entrada definitiva do Ocidente na chamada modernidade foi, sob certo
aspecto, um produto da Revolução Industrial e da Revolução Francesa. Os enormes
problemas que desde então a humanidade teve de enfrentar e que até os dias de hoje
permanecem sem solução deram margem para que, ao longo do século XX, a modernidade
e seus pilares básicos começassem a ser questionados. Com a ascensão da cultura dita pós-
moderna esse processo chega ao seu cume; afirma-se, assim, o próprio fim da modernidade,
a sua derrocada, o fracasso de suas promessas e a ascensão de uma nova época. Dentro do
clima geral de revisão da época moderna o Iluminismo, a filosofia que proclamou
sistematicamente os principais lemas da modernidade, não poderia, é claro, ser esquecido
pela crítica filosófica. A Escola de Frankfurt foi um dos pontos altos do questionamento ao
Iluminismo (ou ao Esclarecimento, se se preferir) e, ao mesmo tempo, a fonte para muito
do que viria na seqüência. As suas análises sobre a dialética iluminismo-mitologia e
emancipação-dominação (que, diga-se de passagem, muito deviam a Weber e a Lukács),
produzidas sob o impacto da segunda guerra mundial, onde a suposta decadência dos
valores humanistas que estaria acompanhando a marcha do desenvolvimento tecnológico
ter-se-ia mostrado em sua faceta mais destrutiva, exerceriam uma profunda influência em
muito do que se escreveria na segunda metade do século XX. A humanidade parecia estar
entrando em mais um de seus ricorsi, para evocarmos um pensador tão apropriado a um
estudo sobre história do direito como é Giambattista Vico.
9
Foi justamente Habermas, um autor formado na filosofia dos autores
frankfurtianos, que se transformaria na voz dissonante dentro da chamada pós-
modernidade. Comparando a modernidade efetiva com o projeto do Esclarecimento ele
pode concluir que as promessas não cumpridas da modernidade poderiam ser resgatadas se
um de seus pilares, aquele que apontava para emancipação, recuperasse sua autonomia e
fosse, assim, posto em ação. O Esclarecimento e aquela sua manifestação entusiasmada que
encontramos no século XVIII poderia, portanto, descansar de tantos ataques.
Todas essas querelas filosóficas em torno do Esclarecimento provam
acima de tudo a importância que ele tem para a definição e análise do fenômeno da
modernidade e de tudo aquilo que ele significa para a humanidade. Apesar da enorme
quantidade de bibliografia filosófica sobre as relações entre os postulados do
Esclarecimento, o poder político e a sociedade em geral, pouco parece ter-se avançado nas
pesquisas empíricas, nas diversas áreas do conhecimento em ciências sociais, sobre o
assunto. No âmbito da história, entretanto, alguns importantes passos já foram dados, como
as instigantes investigações de Robert Darnton sobre a circulação de idéias no Iluminismo
francês. Na Itália, em parte graças ao empenho prático-reformador que caracterizou seu
Iluminismo, desde Franco Venturi muito já se avançou na investigação das relações
concretas entre as idéias do Iluminismo, a sociedade e as instituições. Na história do direito,
podemos citar Paolo Grossi e sua escola, além de outros como Raffaele Ajello.
O objetivo do presente trabalho é contribuir um pouco para a evolução
desse tipo de pesquisas, para que a crítica ou a exaltação ao Esclarecimento e ao
Iluminismo possam ter um terreno mais firme em que se apoiar. Escolhemos, para tanto,
estudar as relações estabelecidas na Lombardia austríaca entre o Iluminismo, representado
em Milão pela Società dei Pugni e pelo periódico Il Caffè, e o absolutismo habsbúrgico, no
decorrer das reformas implementadas pela dinastia austríaca em seu domínio italiano a
partir da década de sessenta do século XVIII. Para sermos mais específicos, procuraremos
analisar e compreender a inserção da obra Dei Delitti e delle Pene do jurista e filósofo
milanês Cesare Beccaria no contexto de aproximação entre os intelectuais iluministas e a
coroa austríaca, a formação do chamado absolutismo esclarecido e as conseqüências desse
fenômeno para o próprio desenvolvimento do absolutismo e, principalmente, para o
Iluminismo.
10
O problema que nos propomos investigar neste estudo são as
conseqüências que a adesão dos intelectuais iluministas de Milão a um projeto político de
modernização institucional autocrática, como o da monarquia austríaca, trouxe para os
ideais iluministas emancipatórios que, reivindicando a autonomia fundada na racionalidade
individual, seriam a base para a formulação de projetos políticos liberais, democráticos e
republicanos. A hipótese com que trabalhamos é que a aliança da intelectualidade
iluminista com a monarquia habsbúrgica em seu programa de agressiva racionalização
social, voltado sobretudo para o fortalecimento de seu domínio político (no plano interno e
no plano externo), baseada na esperança de que a coroa viesse a implementasse políticas
que não apenas significassem uma modernização técnico-intrumental da administração e da
economia, mas que atendessem também àqueles ideais mais nobres relativos à emancipação
humana que justificavam o projeto da modernidade, cede lugar à acomodação nas
estruturas do poder e provoca uma gradativa redução da racionalidade iluminista a uma
racionalidade tecnocrática. Ao invés de uma aliança do Iluminismo com o absolutismo
teríamos uma subordinação do primeiro ao segundo.
Escolhemos estudar Cesare Beccaria e, em especial, a obra Dei Delitti e
delle Pene por uma série de motivos conexos. Cesare Beccaria foi, em seu tempo, o autor
mais conhecido, no exterior, do Iluminismo lombardo e italiano em geral e podemos dizer
que, sem sombra de dúvidas, mantém esse posto até os dias de hoje. A razão disso radica-se
sobretudo no impacto causado pela obra Dei Delitti e delle Pene sobre a cultura iluminista e
reformadora do século XVIII, um impacto que provocou ecos até mesmo na América
Latina. Graças a isso, na medida em que o Iluminismo foi afirmando-se na esfera do direito
penal a obra do marquês foi ganhando cada vez mais importância para a história dessa
disciplina até afirmar-se definitivamente como um de seus principais clássicos. Hoje, raros
são os criminalistas, ao menos na América Latina, que não o apresentam como o fundador
do direito penal moderno. Assim podemos dizer que não há estudante de direito no Brasil e
na América Latina em geral que não tenha sido apresentado a Cesare Beccaria e à sua
principal obra. Podemos acrescentar, por fim, que graças à importância que ele adquiriu
para o direito penal ele é, nesta parte do globo, não só o mais conhecido iluminista italiano,
mas, para a grande massa acadêmica, o único conhecido.
11
Entretanto, apesar da enorme importância que ele adquiriu para os olhos
da cultura jurídica nacional falta completamente qualquer bibliografia monográfica em
língua portuguesa sobre ele e sequer há, tanto no Brasil quanto em Portugal, uma boa e
fidedigna tradução, para o português, de Dei Delitti e delle Pene. Acreditamos, aliás, que
para a América hispânica não se passa coisa muito diferente. Conseqüência, em parte,
dessas circunstâncias é a enorme quantidade de equívocos crassos que se encontram nas
poucas páginas, geralmente contidas em manuais de direito penal, que, no Brasil e na
América Latina, tratam de nosso autor. Podemos dizer, portanto, que o presente trabalho
visa, modestamente, em primeiro lugar, saciar um pouco da necessidade de oferecer algo ao
leitor brasileiro sobre um tal clássico do direito penal e do Iluminismo italiano e, em
segundo lugar, saciar um pouco da necessidade de corrigir esses erros e apresentar ao
público de língua portuguesa um retrato mais fiel de Cesare Beccaria e de sua principal
obra.
1
Desenvolveremos o nosso trabalho em duas grandes partes, por sua
vez subdivididas em dois capítulos cada uma. A primeira parte corresponde à analise do
Iluminismo e do absolutismo e das relações que se estabelecem entre ambos, com enfoque
especial para o caso da Lombardia austríaca. A segunda parte é dedicada ao estudo da obra
Dei Delitti e delle Pene, das influências que recebeu e das matrizes teóricas que a
comporam, com enfoque especial para as relações que nela se estabeleceram entre a teoria
política contratualista e o utilitarismo helvetiano. A primeira parte divide-se em dois
capítulos. No primeiro, estudaremos algumas características gerais do processo de
1
Mencionamos, a título de exemplo, um caso ilustre, mais exatamente o do criminalista argentino
Eugenio Raul Zaffaroni, certamente um dos maiores juristas da América Latina e um dos mais
profundos criminalistas do mundo. Em uma obra didática dedicada ao direito penal brasileiro
(escrita em parceria com o colega brasileiro José Henrique Pierangeli), ele apresenta nosso autor
com as seguintes palavras: “Beccaria nasceu em Milão, em 1738, e morreu na mesma cidade, em
1794. Pode ser considerado como o autor a quem coube a fortuna de lançar as bases do direito penal
contemporâneo, posto que é em função de sua crítica, que a legislação penal européia começa a
limpar-se, um pouco, de seu banho constante de sangue e tortura.” Depois de fixar assim a
importância de Beccaria para a história do direito penal, ele afirma o seguinte: “Seu pensamento
pertence mais ao pensamento revolucionário que ao despotismo ilustrado, visto que pertencia ao
círculo revolucionário, em que sobressaíam os irmãos Verri, em Milão.” (ZAFFARONI, Eugenio
Raul e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. Volume 1: parte geral. 6
ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 234.). Acreditamos ser mais do que urgente
apagarmos tanto esse Beccaria jacobino quanto outros muitos que pululam nas páginas dos livros
latino-americanos.
12
racionalização reivindicado pelo Iluminismo, o papel representado pelo absolutismo dentro
do desenvolvimento institucional moderno e as relações que se estabeleceram entre
Iluminismo e absolutismo. No segundo enfocaremos, mais especificamente, as relações
entre absolutismo e Iluminismo na Lombardia austríaca, analisando a participação dos
filósofos do grupo do Il Caffè nos programas de reformas implementados na Lombardia
pelos representantes da dinastia habsbúrgica.
A segunda parte também é dividida em dois capítulos. No primeiro
capítulo, trataremos do debate sobre as influências presentes na obra Dei Delitti e delle
Pene, enfocando sobretudo a papel exercido pelo filósofo francês Helvétius na definição da
natureza das idéias utilitaristas e contratualistas que iriam marcar nosso autor. No segundo
capítulo analisaremos detidamente a presença de idéias helvetianas no corpo do texto de
Beccaria, a relação que nele se estabelece entre essas duas matrizes teóricas consideradas
por muitos como absolutamente incompatíveis e, principalmente, os vínculos que as opções
teóricas de Beccaria que apareciam em Dei Delitti e delle Pene têm com o papel que o
Iluminismo lombardo exerceu em relação ao absolutismo habsbúrgico na Lombardia. No
final desse último capítulo procuraremos entender o significado da obra Dei Delitti e delle
Pene, e das opções teóricas nela contidas, no tratamento da questão penal em relação aos
dilemas históricos apresentados pelo chamado absolutismo esclarecido.
Como se pode perceber pela síntese acima apresentada, as fontes eleitas
para o estudo que aqui apresentamos foram os escritos teóricos dos iluministas lombardos,
sobretudo aqueles de Cesare Beccaria, e dos autores que o influenciaram ou que, segundo a
bibliografia, teriam influenciado-o, e algumas correspondências que consideramos úteis
para esclarecer alguns pontos de seus posicionamentos teóricos e políticos. O estado
avançado em que se encontra a publicação dessas fontes facilitou enormemente a coleta,
que de resto só foi dificultada pela distância atlântica que separa a sede da pós-graduação
em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina das bibliotecas italianas. A pesquisa
valeu, ainda, da ajuda de farta bibliografia complementar, devidamente registrada nas notas
de rodapé, procurando assim acompanhar um pouco do que de mais importante se escreveu
até aqui sobre história do direito, sobre o absolutismo e o desenvolvimento do Estado
moderno, sobre o Iluminismo, enquanto fenômeno histórico, sobre o Iluminismo lombardo,
em especial, e sobre Cesare Beccaria e a obra Dei Delitti e delle Pene.
13
Com relação à metodologia utilizada, a formação teórica deste autor,
baseada na leitura de alguns clássicos das ciências sociais dos séculos XIX e XX, como
Marx, Weber, Lukács, Gramsci, Goldman, Manheimm e a Escola de Frankfurt, incluindo
Habermas, nos levou a seguir aquela metodologia de origem historicista, que marca a obra
de muitos desses autores, com algumas pitadas de materialismo histórico que nos ajudaram
a compreender o significado das formulações teóricas mais abstratas dentro dos embates
político-econômicos que marcam a participação dos intelectuais iluministas na formação
das instituições políticas do século XVIII. Todavia, para ser fiel ao projeto de pesquisa
apresentado junto à pós-graduação em Direito da UFSC, procuramos nos orientar
principalmente pelas lições aprendidas no clássico Ensaio sobre a “objetividade” do
conhecimento nas ciências sociais de Max Weber. Assim, com o fim de colocar sob
controle os valores que porventura influíram na pesquisa, ajudaram a ordenar racionalmente
a parcela da infinita realidade histórica que recortamos e a atribuir um sentido a ela,
assumimos, desde já, a perspectiva que orientou a seleção do objeto da pesquisa e a seleção
dos aspectos a serem ressaltados nesse objeto. É a perspectiva de alguém que se incomoda
com a decadência dos valores humanistas na escolha dos caminhos da sociedade ocidental e
com o conseqüente predomínio de uma racionalidade técnica tão visível, por exemplo, nas
faculdades de direito brasileiras.
Com relação ao problema do marco teórico, renunciamos a qualquer
filiação exclusiva a algum dos muitos autores que poderiam oferecer esquemas
interpretativos sobre os fenômenos tratados e preferimos manter uma abertura que
permitiria, seguindo a lógica da própria investigação científica, que nos apropriássemos de
todas as contribuições que porventura pudessem contribuir com a elucidação dos problemas
tratados. Contra a acusação de ecletismo que poderia ser feita, afirmamos que não está em
questão uma justaposição de idéias, mas a incorporação de contribuições teóricas que se
mostrarem úteis e válidas na medida em que o próprio resultado da pesquisa for conduzindo
a um discurso coerente, articulado e, principalmente, em conformidade com as fontes
eleitas.
14
PARTE 1 – ABSOLUTISMO E ILUMINISMO
15
CAPÍTULO 1 – DIREITO E ILUMINISMO NO ABSOLUTISMO TARDIO DO
SÉCULO XVIII
SEÇÃO I – Iluminismo e Absolutismo: centralização jurídica e o uso instrumental do
direito.
O Iluminismo do século XVIII é apresentado geralmente como a
filosofia que preparou a Revolução Francesa e a tomada do poder pela burguesia. De tal
forma, o Iluminismo teria um estreito vínculo com o Liberalismo e, portanto, estaria, por
princípio, oposto ao absolutismo monárquico. Não obstante a evidência dos vínculos entre a
filosofia do Iluminismo e a Revolução Francesa e, portanto, entre o discurso iluminista e o
discurso do liberalismo, este esquema está longe de constituir um modelo de interpretação
válido universalmente. E se mesmo na França, onde o específico desenvolvimento
econômico e institucional pôde colocar Liberalismo e Iluminismo lado a lado, as relações
entre o absolutismo e o discurso iluminista apresentam sinuosidades ao longo do
desenvolvimento de todo o processo, muito mais complexa é a relação da Filosofia das
Luzes e seus portadores com os monarcas absolutistas nos Estados onde o atraso
econômico e institucional tornava anacrônica a recepção das idéias liberais.
2
2
Sobre as relações entre absolutismo, Iluminismo e liberalismo Astuti observou: “O racionalismo
iluminista, nas suas correntes liberais e democráticas, não se limita naturalmente a mostrar aos
monarcas a via das reformas, mas depressa assume posições críticas frente ao absolutismo, que
combate da forma mais aberta, ilustrando o fundamento contratualista e os limites precisos do poder
soberano, e proclamando os direitos do homem e do cidadão frente ao Estado. O movimento liberal
contra o despotismo desenvolve-se, antes de tudo, em Inglaterra, com as doutrinas políticas de
Halifax e de Locke, florescidas no âmbito ideal da “glorious revolution” de 1688; exactamente no
momento em que, nos Estados do continente europeu, o absolutismo monárquico atinge as suas
expressões máximas e quando as condições da ordem política, fundada nas fortes autocracias
pessoais e burocráticas, não favorecem decerto o desenvolvimento de doutrinas políticas e sociais
de inspiração liberal, as quais apenas mais tarde se estabelecem, nomeadamente em França, em
relação directa com a decadência do governo absoluto após o fracasso dos grandes desígnios
16
O discurso iluminista do século XVIII tem como sua marca principal a
defesa da causa da emancipação humana pelo uso da razão. A fórmula célebre de Kant
sapere aude (ousai saber), o apelo à autonomia do sujeito a partir das suas potencialidades
racionais e o uso da ciência na dissolução da imagem mística e encantada do mundo são o
que melhor caracteriza o pensamento das Luzes. No plano político, a reivindicação da
emancipação pela razão faz com que o Iluminismo se caracterize como uma razão negativa
de tonalidade fortemente crítica que, em suas formas extremadas, assumiu um caráter
contestatório altamente subversivo em relação aos poderes constituídos. E quanto mais nos
aproximamos dos grandes centros econômicos europeus, onde as pressões dos interessados
em uma economia racional de mercado se confrontavam de forma cada vez mais irresolúvel
com instituições burocráticas arcaicas, maiores eram os radicalismos conseqüentes do
Iluminismo em seu combate contra o Antigo Regime. Ao contrário, onde o quadro político-
social não se caracterizava por uma tensão tão acirrada colocada sobre estas bases a pressão
por mudanças institucionais pôde tomar o caminho de uma conciliação de interesses e se
transformar em um moderado discurso reformista.
De outro lado, este discurso reformista teve seus caminhos facilitados na
medida em que a reforma institucional era, para os Estados economicamente periféricos da
Europa da metade do século XVIII, como Prússia, Áustria e Portugal, uma necessidade
impostergável. Assim, paralelo àquele discurso reformista de origem filosófica, houve uma
tendência à racionalização instrumental das instituições administrativas que se guiava
hegemónicos de Luís XIV.” (ASTUTI, Guido. O Absolutismo Esclarecido em Itália e o Estado de
Polícia. Tradução de António Manuel Hespanha. In HESPANHA, António Manuel (org.). Poder e
Instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p. 254.).
Astuti percebe, nesta passagem, que a afinidade entre Iluminismo e liberalismo não é inflexível e
deve necessariamente ser revista em determinadas circunstâncias. Todavia, cabem algumas
considerações. Em primeiro lugar, situar o auge do absolutismo europeu continental na segunda
metade do século XVII parece um tanto apressado. Na verdade, a maior parte dos Estados da
Europa continental ocidental alcançariam seus graus máximos de desenvolvimento absolutista
apenas na segunda metade do século XVIII, justamente na época da recepção das idéias iluministas.
Somente a França estabiliza seu processo de centralização do poder na época apontada, no governo
de Luís XIV. E comparando-se os grandes monarcas absolutos dos fins do século XVIII com Luís
XIV, dificilmente se poderia sustentar a superioridade deste. Em segundo lugar, responsabilizar “as
fortes autocracias pessoais e burocráticas” (colocando a ênfase apenas na sua força), que de fato
nem existiam, salvo no caso francês, pela ausência de idéias liberais no continente durante o fim do
século XVII parece um tanto simplista. Ao contrário, parece-nos que o atraso na recepção das idéias
liberais deve-se ao fato de que o modelo absolutista (mesmo no caso da França) ainda conseguiria,
por algum tempo a partir dos últimos anos do século XVII, oferecer resposta às demandas dos
setores sociais (nomeadamente a alta burguesia) que mais se interessariam pelo liberalismo.
17
exclusivamente por considerações pragmáticas. Ambas as pressões por racionalização
caminharam para uma confluência e o discurso filosófico reformador do Iluminismo se
conciliou com as pretensões de monarcas absolutistas no sentido de uma centralização e
modernização funcional no plano político-institucional. É desta forma que podemos falar de
um absolutismo esclarecido nestes Estados europeus.
3
Dentro deste quadro em que o
projeto iluminista vai sendo absorvido por este programa de modernização conservadora o
discurso do esclarecimento vai perdendo gradativamente seu apelo emancipatório que se
orientava por valores políticos tais como igualdade e liberdade e a racionalidade que lhe
serve de base se transforma em uma racionalidade instrumental de meios e fins cuja
principal tarefa é tornar mais eficiente a administração do Estado.
Na França, o absolutismo monárquico encontra-se consolidado já na
segunda metade do século XVII, em um processo iniciado com o governo de Richelieu e
relativamente estabilizado com Luis XIV. Este absolutismo não implicava a eliminação
completa do conjunto dos poderes intermediários da nobreza que, inclusive, constituiriam,
no século seguinte, um dos pilares da teoria política de Montesquieu.
4
Mas o
3
Para o caso de Áustria veja-se, entre outros: VALSECCHI, F. L’assolutismo illuminato in Europa.
L’opera riformatrice di Maria Teresa e di Giuseppe II. Milano: Cooperativa Editoriale
Universitaria Milanese, 1951-1952.
4
Vale ressaltar que os poderes intermediários do Antigo Regime não se resumem, evidentemente,
aos poderes senhoriais nobiliárquicos. Junto a eles somam-se os poderes da jurisdição eclesiástica, o
poder das corporações, o poder dos conselhos urbanos (os dois últimos inclusive ligados geralmente
a camadas burguesas) e o poder da autonomia familiar. Ressaltando o complexo e contraditório
papel da burguesia no desenvolvimento deste processo, Oestreich afirmou: “Neste contexto, a
burguesia não se manifestou, de forma alguma, como uma força no sentido do prosseguimento
duma política favorável ao Estado; pelo contrário, as comunidades urbanas pertencem, tanto como
os senhorios da nobreza, àqueles pouvoirs intermédiairies que Montesquieu, por volta de 1750,
descreveu como os protagonistas dos podres intermediários de qualquer monarquia absoluta.
Ambos os poderes locais, nobreza e conselhos urbanos, se ergueram contra a administração estadual
do absolutismo quando estavam em causa os direitos provinciais ou locais; tendo freqüentemente
combatido essa administração mesmo quanto o principado absoluto pretendia pôr em conflito os
interesses divergentes da cidade e do campo. No entanto, nem assim estes poderes locais puderam
travar o processo geral de progressiva estatalização.” (OESTREICH, G. Problemas Estruturais do
Absolutismo Europeu. Tradução de António Manuel Hespanha. In HESPANHA, António Manuel
(org.). Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1984, p.187.). Evidentemente, quando sua própria autonomia é ameaçada pelas pretensões
centralizadoras, a burguesia reagiria defendendo a autonomia das corporações e dos conselhos
urbanos. Entretanto, três constatações nos permitem questionar a validade da regra geral segundo a
qual a burguesia, como um todo, não teria contribuído com o processo de centralização monárquica:
1- a burguesia, enquanto classe social, não é absolutamente homogênea, assim o fato de haver
setores burgueses interessados na autonomia dos governos urbanos locais e das corporações não
18
desenvolvimento econômico conseguido pela França com o comércio e com as manufaturas
gerava os recursos necessários para que se sustentasse o exército e a estrutura
administrativa da coroa e possibilitava que o Estado francês se estabelecesse como potência
dentro do cenário político internacional, mesmo sem alcançar um grau maior de
centralização administrativa. De tal forma, a eliminação destes poderes intermediários,
embora fosse um desejo contínuo da coroa, não era, entretanto, uma necessidade tão
proeminente. O discurso iluminista francês não deixara de fazer críticas ao poder político
da nobreza, mas a insensibilidade ou inaptidão da coroa francesa para atender a
determinadas demandas e a existência de uma alta burguesia com poder político e social,
somadas ao exemplo da Inglaterra, de onde vinha boa parte dos modelos filosóficos dos
intelectuais franceses, fez com que o Iluminismo francês fosse perdendo a sua fé no
absolutismo e começasse a caminhar em direção a valores liberais que preparariam a
Revolução de 1789.
5
descarta a existência de uma alta burguesia detentora de privilégios comerciais dependentes do
poder central e, portanto, interessada em seu fortalecimento; 2- O desenvolvimento das atividades
comerciais levadas a cabo pela burguesia propicia (pelo aumento da arrecadação) e torna necessária
(em função das necessidades de regulação devidas a vário motivos) o desenvolvimento de uma
burocracia centralizada nas mãos da coroa, fazendo com a burguesia contribua com o processo
mesmo não intencionalmente. 3- a burguesia serviu conscientemente como força política em favor
da centralização ao menos quando estava em causa a destruição dos poderes senhoriais que
dificultavam a extensão das suas atividades econômicas, o que já é, por si só, extremamente
significativo.
5
Vejamos o que diz, sobre isso, Guido Astuti: “Justamente em França, o centro mais vivo e activo
do pensamento político continental, onde já na época de Luís XIV a reacção dos espíritos mais
conscientes perante os funestos efeitos de um mau governo tinha determinado críticas abertas ao
regime autocrático (basta recordar, entre todas, a célebre carta de Fénelon ao soberano, exemplo
admirável e elevadíssimo de coragem política e cívica), faltou durante o reinado de Luís XV
qualquer orientação reformadora, ainda que só programática e tendencial. As doutrinas que, por
todo o lado, se difundiram em França, representavam, no seu radicalismo dogmático, uma antítese
demasiado nítida com os princípios e métodos do governo despótico, centralizado e burocrático, de
modo a tornar praticamente impossível uma sua qualquer efectivação; elas não podiam, por isso,
promover em França uma acção iluminada reformadora da monarquia, preparando antes a
revolução.[...] Mais tarde, demasiado tarde, sob o débil governo de Luís XVI, não faltaram os
programas, as propostas e as tentativas concretas de uma política reformadora: mas a obra de um
Turgot ou de um Necker era tão impotente para resolver os problemas que urgiam em todos os
campos, como para travar a desordem financeira e para estancar a crescente maré revolucionária. A
convocação dos Estados Gerais, que deveria ter conduzido a nação francesa a concluir um novo
contrato com a monarquia, desencadeou, pelo contrário, a revolução.”(ASTUTI, Guido. O
Absolutismo Esclarecido em Itália e o Estado de Polícia. Tradução de António Manuel Hespanha.
In HESPANHA, António Manuel (org.). Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, pp. 260-1.). O fato de as pretensões sociais representadas
pelas elucubrações iluministas não terem sido absorvidas pela Monarquia em uma atividade
19
Em Portugal, na Prússia e na Áustria, por exemplo, onde o
desenvolvimento econômico era menor, os monarcas sentirão a necessidade de impor à
sociedade a disciplina social necessária à promoção de uma política de potência, o que
evidentemente implicava no incentivo e mesmo no impulso a atividades econômicas
internas de onde se retirariam recursos para a organização da burocracia centralizada e do
exército profissional permanente.
6
Nestes países, o absolutismo começa a se aproximar do
seu auge mais ou menos a partir da segunda metade do século XVIII, portanto com certo
atraso em relação à França e em concomitância à recepção das idéias do Iluminismo. Essa
circunstância parece ter imposto um significado diverso ao absolutismo e à sua relação com
o Iluminismo. A eliminação do conjunto dos poderes intermediários autônomos em favor
da construção de meios administrativos que possibilitem ao monarca a consecução das suas
tarefas de reforma e modernização será desejada por ele e por todos os interessados no
desenvolvimento das atividades econômicas.
7
Assim, a racionalização da administração
pública e o bem-estar social produzido por este processo (identificado geralmente com a
produção de bens materiais) permitirão ao discurso iluminista se conciliar com esta
demanda que vem do trono, mas também de setores sociais politicamente inferiores do
Antigo Regime. Nesses casos, o Iluminismo se concilia com o absolutismo e os ideais
reformadora profunda certamente fez com que a radicalização restasse como caminho necessário
para elas. Entretanto, não estamos dispostos a concordar com Astuti no diagnóstico das causas que
impediram o desenvolvimento da atividade reformadora em França no século XVIII. Alegar a
incompatibilidade entre as idéias iluministas e “os princípios e métodos do governo despótico,
centralizado e burocrático” nos parece superficial e equivocado na medida em que um governo
central forte era justamente o pressuposto para o desenvolvimento de uma atividade reformadora.
6
Para o caso de Áustria veja-se: KLINGENSTEIN, Grete. Riforma e crisi: la monarchia austriaca
sotto Maria Teresa e Giuseppe II fra XVII e XVIII secolo. In SCHIERA, Pierangelo. La dinâmica
statale austríaca nel XVIII e XIX secolo. Bologna: Società editrice il Mulino, 1981; ou ainda:
VALSECCHI, F. L’assolutismo illuminato...; para o caso da Prússia: SCHIERA, Pierangelo.
Dall’arte di governo alle scienze dello Stato: Il cameralismo e l’assolutismo tedesco. Milano:
Antonino Giuffrè, 1968, p. 268; para Portugal: SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. Polizei,
ökonomie und gesetzgebungslehre. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2003.
7
“È l´economia, infatti, il punto d´approdo di gran parte della riflessione civile italiana del primo
Settecento, così come l´economia, declinata nei diversi ambiti finanziario, fiscale e produttivo,
rappresenta il nuovo oggetto di cura e di attenzione da parte delle dissanguate monarchie europee.
Ed è proprio su questo terreno, all´inizio, che si realizza una proficua confluenza fra le attese delle
forze sociali in ascesa e i proggetti di riassetto e di ammodernamento finanziario delle dinastie.”
(FRIGO, Daniela. Principe, Giudici, Giustizia: Mutamenti Dottrinali e Vicende Istituzionali fra Sei
e Settecento. In COLAO, F. e BERLINGER, L. (org.). Iluminismo e Dottrine Penali. Milano:
Giuffrè, 1990, p. 18.).
20
liberais que tanta afinidade tinham com o discurso iluminista da autonomia individual
fundada na racionalidade acabam por ficar para segundo plano.
A situação de fragilidade institucional do poder central e o baixo grau de
desenvolvimento das atividades econômicas internas em Portugal, na Prússia e na Áustria
fizeram, por um lado, com que os próprios monarcas sentissem a necessidade de fomentar o
incremento da atividade econômica (com vistas ao fortalecimento institucional de seus
domínios) e, por outro, impediram a existência, tal como na França, de uma classe de
interessados em uma economia racional de mercado, autônoma e relativamente
independente de favores estatais, que pudesse encarar precisamente o Estado absoluto como
um entrave (ao menos na medida em que as dinastias se recusassem a proceder às reformas)
e tivesse a pretensão de tomar o poder político, realizando por si própria as tarefas
institucionais desejadas. As esperanças de burgueses e setores intelectuais relativas à
implementação de reformas acabam recaindo sobre a figura do príncipe e este, por sua vez,
começa a perceber nesse apoio uma base importante para a consolidação e extensão de seu
domínio no plano interno (dissolvendo os poderes intermediários que o obstaculizavam) e
para o desenvolvimento de reformas destinadas a promover o fortalecimento institucional
do Estado com relação a seus concorrentes externos. Neste contexto, o príncipe deve quase
que necessariamente aparecer como o sujeito das reformas institucionais a quem incumbe
reorganizar a sociedade de forma racional, orientando-a para a consecução do bem-estar
dos súditos.
8
É precisamente assim que a literatura política começa a encará-lo.
Como os setores sociais interessados no fortalecimento da figura do
príncipe têm a esperança de que este último use o seu poder na realização das reformas
necessárias à promoção do bem-estar social, o discurso político começa a colocar como
função do soberano a promoção desse bem-estar dos súditos até a um ponto em que a base
de legitimidade que sustentará as pretensões de concentração de poder em suas mãos passa
8
“Il sovrano è in tal modo chiamato a farsi carico delle nuove attese dei sudditi, così da imprimere
ai mutamenti sociali una direzione comunemente accettata; al vecchio equilibrio fra i ceti e i corpi
sociali si deve sostituire, attraverso l´azione dello Stato amministrativo, uma rappresentanza
generale degli interessi in grado di incanalarli in direzione della “felicità pubblica”. Una formula,
quest´ultima, di cui i sovrani si approprieranno ben presto, e che si rivelerà assai fruttuosa ai fini
della tenuta dell´edificio monarchico e della crescita di consenso attorno ai progetti di riforma degli
stessi sovrani.”(FRIGO, Daniela. Principe, Giudici, Giustizia: Mutamenti Dottrinali e Vicende
Istituzionali fra Sei e Settecento. In COLAO, F. e BERLINGER, L. (org.). Iluminismo e Dottrine
Penali. Milano: Giuffrè, 1990, p. 20.).
21
a ser, aos poucos, justamente a promoção desse bem-estar. Ou seja, o fato de que é
necessário dar ao monarca o poder necessário para que a sociedade seja reorganizada de
forma a produzir esse bem-estar esperado será, dentro dessa perspectiva, o fator de
legitimação da concentração de poder em suas mãos. A conciliação entre os interesses dos
setores sociais politicamente inferiores e do soberano começa a aparecer como uma
conciliação teórica entre o interesse social e o interesse do próprio monarca. Essas novas
funções dadas ao soberano fazem com que a imagem do príncipe, em meados do século
XVIII, começa a mudar: a antiga imagem, correspondente à estrutura das monarquias
medievais, de um soberano que deve apenas zelar pela manutenção da ordem social, de
uma ordem sagrada dada de antemão a qual ele não pode, de maneira alguma, mudar, a
imagem de um príncipe que, estando no topo da ordem social, deve limitar-se apenas a
zelar pela harmonia das ordens de poder inferiores sem, no entanto, interferir em suas
autonomias,
9
passa a dar lugar à imagem de um príncipe que deve agir sobre a sociedade
governando-a efetivamente, administrando-a, mudando-a quando necessário, criando leis
para ela e em tudo a submetendo aos desígnios utilitaristas.
10
9
António Manuel Hespanha nos esclarece sobre os fundamentos sociais dessa representação da
sociedade como uma ordem natural constituída por uma articulação de poderes autônomos na qual
se insere a imagem do príncipe como um árbitro entre elas cuja principal função é a conservação da
ordem pré-estabelecida: “A questão dos objectivos do poder central e do seu âmbito de acção
encontra-se dominada por linhas de força já nossas conhecidas. Desde logo, a representação do
sistema político como uma articulação (hierarquizada) de múltiplos círculos autónomos de poder
(corpora, communitates) – as famílias, as cidades, as corporações [artesanais e culturais], os
senhorios, os reinos, o Império. Esta articulação dos poderes autónomos dos corpos fazia-se de
acordo com os mecanismos espontâneos (decalcados sobre as relações sociais de poder, i. e., sobre
o poder efectivo de cada esfera para impôr às outras o seu reconhecimento). Numa sociedade
estabilizada (pelo menos, segundo os critérios de hoje) como a medieval, esta espontaneidade dos
equilíbrios sociais criou a imagem da existência de uma ordem natural na qual estivesse pre-
disposta a hierarquia e as funções de cada corpo (concepção corporativa ou pluralista da sociedade).
Esta ordem natural era tida como indisponível, na melhor das hipóteses apenas disponível com o
consentimento dos interessado e, portanto, a esfera de direitos de cada corpo era tida como
adquirida ou radicada.” (HESPANHA, António Manuel. Para uma teoria da história institucional
do Antigo Regime. In: HESPANHA, António Manuel. (org.) Poder e instituições na Europa do
Antigo Regime. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p. 66.). Conseqüentemente, “a
administração régia esgotava-se na resolução dos conflitos que lhe eram postos, tendo em vista,
única e exclusivamente, a reconstituição a ordem perturbada (administração passiva).” (idem,
ibidem.).
10
A passagem dessa imagem de um príncipe que é o guardião de uma ordem social pré-existente
para a outra em que ele é o artífice e motor das mudanças na estrutura da sociedade é descrita por
Daniela Frigo. (Cf. FRIGO, Daniela. op. cit.). Esse fenômeno é observado por Seelaender em
Portugal, no período do reinado de D. José I, sobretudo após 1755 quando Marques de Pombal (no
22
Este esquema político em que, dada a situação de atraso econômico e
institucional, as esperanças de reforma e modernização são depositados sobre o soberano e
em que ele, assim, se transforma no agente do aperfeiçoamento social, encontra seu auge
justamente na cultura iluminística. O Iluminismo dará um novo impulso a esta idéia de que
o monarca, concentrado em suas mãos o poder, deve usá-lo na realização das mudanças que
promovam o bem-estar geral. Não é difícil de entender as razões disso. O culto às
capacidades racionais do ser humano e, portanto, à capacidade humana de, pela razão,
melhorar suas condições de vida e o culto ao progresso, que daí advém, são características
centrais do Iluminismo. É nítida, assim, a afinidade entre o Iluminismo e essa nova imagem
do monarca que estava formando-se. Mas o Iluminismo não era apenas um culto genérico
da razão e do progresso; juntamente com esse culto, e em conexão com ele, o Iluminismo
defendia o aperfeiçoamento intelectual pela educação dos cidadãos e pelo desenvolvimento
das ciências e, estendendo-se por uma grande diversidade de áreas, como a Economia, o
Direito, a Psicologia, a Educação, a Moral, apresentava um rol de preferências daquilo que
considerava mais “racional” e conforme aos interesses humanos, em detrimento daquilo
que seria “irracional”, fruto da ignorância, do preconceito e da superstição. Todos os
elementos e preferências teóricas que compunham o Iluminismo iriam, uns menos e outros
mais, influenciar a formação desta imagem de um soberano que, tendo o poder concentrado
em suas mãos, usa-o para aperfeiçoar a sociedade. Portanto, na versão iluminista, o
monarca, além de satisfazer aquelas demandas ligadas diretamente à produção de riquezas
governo desde 1750) adquire do rei maiores poderes em conseqüência do terremoto de Lisboa: “Na
verdade, no período pré-pombalino era costume não só reconhecer, mas também louvar a inclinação
do rei-legislador para a passividade. Até meados do século XVIII vieram à luz diversas obras que
divulgavam a imagem ideal do soberano como um juiz justo e contido. Não se desejava, em última
análise, um Legislador muito criativo e dinâmico. Para autores como Diogo Guerreiro C. de Aboyn
(1663-1709), o rei era essencialmente ‘um astro benigno’, que distribuía graça e justiça,
‘desfazendo toda a nuvem de pleitos’. Sua função consistia em conservar e defender a ordem
jurídica, não em promover sua reforma, transformação ou reorganização. Até porque as leis
preexistentes seriam – como salientava o Desembargador João Pinto Ribeyro (+1649) –
‘santíssimas, puríssimas, justíssimas’. Sendo as leis tanto ‘mais puras’ quanto ‘mais antigas’, a
inovação era em princípio indesejável – bons reis eram na verdade, os ‘mais sossegados, e quietos
na execução de seu poder’. Opiniões dessa natureza devem ter soado cada vez menos convincentes
após 1750. A inflação normativa do reinado de D. José I exigia do pensamento jurídico português
uma radical revisão das concepções tradicionais sobre o papel da Coroa. Nesse contexto, a imagem
do ‘Rei-Legislador’ veio a ganhar cada vez maior relevo – fato que facilmente se verifica nas obras
jurídicas da época.” (SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. A Polícia e o Rei-Legislador. In
História do Direito Brasileiro: Leituras da Ordem Jurídica Nacional. São Paulo: Editora Atlas,
2003, p. 97-8.).
23
(como o aprimoramento da máquina burocrática, que afeta diretamente várias atividades
econômicas), deveria também ser o promotor de um aperfeiçoamento geral da sociedade, de
um progresso que não atingisse apenas a economia, mas que se estendesse para o domínio
moral, político, científico, artístico, etc.. De tal forma, partindo daquele núcleo original de
problemas relativos ao domínio econômico, o Iluminismo acabou estendendo bastante o
âmbito sobre o qual deveriam recair as preocupações do príncipe. Assim a elaboração
teórica, realizada pelos intelectuais iluministas, dessas novas demandas que chegavam ao
trono e que eram oriundas de amplas áreas da sociedade é um dos fatores componentes da
formação do mencionado absolutismo esclarecido.
11
Evidentemente, a este fator se somaria
a disposição dos próprios monarcas de proceder à realização das reformas reivindicadas.
Esta disposição, quando efetivamente existiu, não foi nunca o produto de um mero
altruísmo filosófico, mas surgiu sempre, primordialmente, de considerações práticas dos
monarcas relativas ao fortalecimento institucional de seu Estado (nos níveis financeiro,
burocrático, militar, etc.) e ao seu próprio fortalecimento frente aos concorrentes internos e
externos; considerações essas que acabavam não apenas se coordenando com o desejo de
melhorar a vida dos súditos, mas também o subordinando.
11
Em um volume dedicado à analise das relações entre absolutismo monárquico e codificação,
Giovanni Tarello percebe que o atraso econômico e institucional da Prússia e da Áustria acaba
alterando as relações que se estabelecem, no âmbito destes Estados, entre o Iluminismo e o
absolutismo. Assim, embora não aborde alguns importantes aspectos da questão, o autor deixa claro
que naquele contexto oferecem-se as condições para uma coordenação entre absolutismo e
Iluminismo e para a conseqüente formação de uma versão específica de absolutismo que é
exatamente o absolutismo esclarecido: “Anzitutto la situazione germanica pare in ritardo di
cent’anni rispetto alla situazione francese sotto il profilo della concentrazione del potere e
dell’organizzazione assolutistica dello Stato. I principi territoriali sono deboli, gli Stati territoriali
piccoli, l’organizzazione cetuale mantiene gli Stati territoriali in una situazione organizzativa che in
Francia era obsoleta almeno sino dai tempi di Richelieu. Anche sotto il profilo economico il ritardo
era immenso. Il movimento per la concentrazione del potere, e verso l’assolutismo monarchico, che
in Francia si è arrestato nei fatti durante il secolo XVIII, nell’area germanica invece si deve
svolgere (non essendosi svolto prima) proprio nel secolo XVIII. Ma proprio questa sfasatura, dal
punto di vista dell’organizzazione giuridica, e proprio la dimensione piú piccola degli Stati
territoriali germanici, rendono questa situazione assai favorevole alla riorganizzazione istituzionale:
su scala meno vasta, e con gli strumenti culturali elaborati durante il secolo XVIII, l’assolutismo
monarchico potrà assumere nell’area germanica una nuova veste, che sarà con Federico II di Prussia
e Giuseppe II d’Austria (e sia pur con tutte le differenze tra le due situazioni, prussiana ed austriaca)
la veste dell’assolutismo ‘illuminato’.” (TARELLO, Giovanni. Storia della cultura giuridica
moderna: assolutismo e codificazione del diritto. Bologna: Società editrice il Mulino, 1999, p. 92.).
Veja-se também:
VALSECCHI, F. L’assolutismo illuminato in Europa...
24
Ao longo desse processo em que o soberano se transformará no artífice
da reorganização social, assumindo a tarefa de implementar as mudanças desejadas, o
direito será um de seus mais importantes instrumentos. Este uso do direito como caminho
para se afetar a sociedade chegará ao seu auge no fim do século XVIII, justamente com o
auge do próprio processo em que o soberano passa a interferir diretamente sobre a
organização social. Para se chegar a essa fase em que o direito era instrumento do soberano
para moldar a sociedade, houve necessidade, primeiramente, de colocá-lo em suas mãos.
Assim a política de centralização do absolutismo monárquico que, por todo o lado, se
insurgia contra o particularismo jurídico foi um pressuposto indispensável para que essa
instrumentalização do direito fosse possível. Este particularismo jurídico
12
era a situação
de fragmentariedade, de desuniformidade, de ausência de unidade e de sistematicidade da
estrutura jurídica dos Estados europeus continentais; características essas que se
articulavam tanto no âmbito das fontes do direito quanto no âmbito de sua aplicação
jurisdicional.
Para termos uma idéia mais exata do que era esse particularismo jurídico
contra o qual o absolutismo se insurgiria e quais as suas conseqüências sociais, talvez seja
interessante analisarmos mais detidamente alguns casos. Começaremos pela França, onde o
mais vigoroso absolutismo monárquico do século XVII convivia com uma das mais
fragmentadas e desuniformes estruturas jurídicas da Europa ocidental de então.
12
Tarello nos esclarece sobre o nascimento, o sentido e a aplicação ao século XVIII da expressão
particularismo jurídico: “L’espressione ‘particolarismo giuridico’ è stata inventata e fatta circolare
dai giuristi positivisti dall’Ottocento, proprio al fine di contraporre la felice situazione del diritto
codificato a quella, infelice, che la precedeva; e, in fatto, è circolata con maggiore frequenza nella
letteratura storico-giuridica francese e italiana che non in quella germanica, in cui la concomitanza
di tendenze storicistiche e di tendenze corporativistiche, mentre ostacolava nella prima metà del
secolo XIX il processo di codificazione, dissuadeva dall’adozione di uno schema di interpretazione
storiografica fondato sulla contrapposizione tra diritto frantumato in sistemi particolari e diritto
unificato da una codificazione uniforme. Come che sia, la locuzione ‘particolarismo giuridico’ è
utile perché compendiosa, e possiamo usarla per brevità e sia pure con cautela. Per ‘particolarismo
giuridico’ si intende la mancanza di unitarietà e di coerenza dell’insieme delle leggi vigenti in una
data sfera spazio-temporale, individuata in seguito ad un giudizio di valore secondo il quale in
quella stessa sfera vi ‘dovrebbe’ essere, o ‘ci si aspetterebbe’ vi fosse, unità e coerenza di leggi.
Come è chiaro, valutazioni e aspettazioni siffatte si possono rinvenire sia nella cultura
contemporanea al fenomeno qualificato, sia nella cultura e nella mentalità dello storico futuro; nel
nostro caso, mentre l’uso dell’espressione ‘particolarismo’ è proprio dello storico ottocentesco, una
certa strada sull’individuazione di sfere che dovrebbero essere giuridicamente unificate è
rinvenibile proprio nella cultura settecentesca, che da simili individuazioni prende le mosse per i
frequenti suoi programmi di riforma.” (TARELLO, Giovanni. Storia... p. 28-9.).
25
Analisaremos, na seqüência, os casos do Sacro Império Romano-Germânico e da Itália. Ao
final, teremos condições de estender para a análise do direito a diferenciação, que já
iniciamos, entre o absolutismo francês e aqueles absolutismos tardios surgidos no século
XVIII.
Na França, em uma aproximação inicial, pode-se ver, no norte, a
vigência, como direito comum, de um direito consuetudinário de origem germânica,
enquanto no sul vigorava, também como direito comum, o direito romano constituído por
um particular uso do Corpus Iuris Civili de Justiniano e do Codex Theodosianus. Mas o
fato de que tanto o direito consuetudinário do norte quanto o direito romano do sul
funcionavam, em suas áreas correspondentes, apenas enquanto direito comum significava
que ambos sofriam derrogações por parte das disposições jurídicas locais, pois o um dos
princípios básicos da estrutura jurídica do antigo regime, contra o qual a política de
centralização monárquica terá de se confrontar, é o que se expressa na fórmula lex specialis
derogat legi generali.
13
Assim àquela diferença básica entre o sul e o norte somavam-se as
diferenças existentes entre as diversas províncias. De fato, esses direitos comuns sofriam
derrogações por parte dos usos e estatutos locais, além daquelas que vinham do direito das
corporações, do direito mercantil, do direito feudal e do direito canônico. Esses dois
últimos direitos que, funcionando como direitos particulares, estendiam-se por todo o
território francês, eram um fator de diferenciação dos regimes jurídicos de pessoas e coisas.
O direito canônico atuava como fator de diferenciação preponderantemente sobre as
pessoas, criando um regime jurídico específico para a família (regulando o matrimônio e as
relações entre os cônjuges), agindo sobre a capacidade jurídica das pessoas, criando uma
jurisdição particular, com seus procedimentos diversos, interferindo no direito penal e
subtraindo o clero da jurisdição comum. O direito feudal, ao contrário, atuava
preponderantemente na diferenciação do regime jurídico dos bens imóveis, afetando o seu
13
“Non si trattava solo di vincere resistenze dirette e palesi dei giuristi ad accogliere le dottrine
giuridiche elaborate al servizio dell’accentramento monarchico; si trattava di imporre queste
dottrine, oltreché nei libri di dottrina giuridica e nei trattati di diritto naturale, anche nella prassi
delle decisioni giudiziarie. Le resistenze si esprimevano attraverso i vecchi principi del
particolarismo, tra cui il criterio (distruttore di ogni unificazione giuridica sostanziale) di soluzione
di conflitti tra norme espresso dalla formula ‘lex specialis derogat legi generali’; e, per rendere
coerente e non antinomico il sistema giuridico generale, sarebbe occorso imporre ai tribunali
un’univoca scelta di un criterio di prevalenza tra i due menzionati criteri di soluzione dei conflitti
tra norme.” (TARELLO, Giovanni. Storia... p. 52.).
26
usufruto e a sua circulação, prevendo privilégios e direitos pessoais e reais gravados sobre a
terra.
14
O direito mercantil, por sua vez, era um direito especial que se aplicava aos
comerciantes através de jurisdição especial, constituindo, assim, um outro fator de distinção
subjetiva e de conflito jurisdicional.
15
Nos territórios que compreendiam o Sacro Império Romano-Germânico
a situação do sistema jurídico em sua relação com aquilo que seria o poder central, isto é, o
poder imperial, ganha um outro elemento, com relação ao que vemos na França, ante ao
fato de que, depois da Guerra dos Trinta Anos e do Tratado de Westphalen, o Império
acaba entrando em decadência enquanto força política (isto é, enquanto poder político
central) e perdendo o protagonismo do processo de centralização absolutista para os
grandes domínios territoriais das famílias da alta nobreza, sendo que os próprios
Habsburgs, a família que se manteve à frente do Império, quase ininterruptamente, durante
mais de trezentos anos, se preocupará, no século XVIII, muito mais em consolidar e
ampliar seus domínios territoriais austríacos.
16
Além do caso austríaco, podemos lembrar
também outros domínios territórios nobiliárquicos, como a Prússia da casa de Hohenzollern
e a Baviera da casa de Wittelsbach, em que o processo de centralização absolutista também
será posto em marcha.
De qualquer forma, no âmbito do que então correspondia ao Sacro
Império Romano-Germânico vigorava o direito romano recebido. Este direito romano
vigorava enquanto direito comum (na medida em que era considerado direito comum do
império) e funcionava, assim, como direito supletivo em relação aos direitos territoriais
particulares. O conjunto destes direitos territoriais particulares era chamado de Landrechte.
14
TARELLO, Giovanni. Storia... p. 74-5.
15
“Il diritto mercantile francese agli inizi del secolo XVIII e sino alla Rivoluzione va visto nel
contesto di un sistema complesso, in cui esso assumeva il ruolo di diritto speciale applicabile da una
giurisdizione speciale ad una speciale classe di persone, cioè i commercianti.” (TARELLO,
Giovanni. Storia... p. 82.).
16
No Sacro Império Romano-Germânico o imperador era escolhido mediante uma eleição realizada
em um conselho de príncipes. A partir de 1438 até à dissolução do Império, em 1806, com a
invasão de Napoleão, os Habsburgs serão eleitos em quase todas as oportunidades, excetuando-se o
período de 1742 a 1745, em que foi eleito Carlos VII da casa de Wittelsbach. O período seguinte de
1745 a 1765, em que foi eleito Francisco I da casa de Lorena, não representa qualquer abalo na
hegemonia dos Habsburgs pois ele era marido de Maria Teresa, descendente dos Habsburgs
austríacos e imperatriz da Áustria, e fundou com a ela o ramo Habsburg-Lorena. Os imperadores
que se seguiram a Francisco I foram José II, Leopoldo II e Francisco II que eram, simultaneamente,
imperadores da Áustria.
27
Os Landrechte diziam respeito à relação entre os príncipes territoriais e os senhores
feudatários organizados enquanto estamento, regulamentando suas obrigações recíprocas e
distribuindo as áreas sob as quais recaíam seus domínios. Land, que em alemão significa
terra ou território, referia-se, naquele contexto, não apenas à terra propriamente dita mas
também à população que nela habitava e ao conjunto constituído pelo príncipe territorial e
pelos estamentos e, podemos dizer, à organização geral de todos esses elementos. Assim,
Landrecht denominava a organização jurídica intrínseca à terra.
17
Na estrutura dos Landrechte não havia um centro de produção
normativa. Havia, ao contrário, um conjunto de fontes coexistentes, dentre as quais
podemos nomear os senhores feudais, as corporações citadinas e, é claro, os próprios
príncipes territoriais. Nos territórios católicos, a situação do sistema jurídico se complicava
ainda um pouco mais, pois neles, além da já complexa estrutura interna dos Landrechte,
havia ainda o direito canônico que regulamentava as questões relativas ao matrimônio e, em
parte, as relativas à família. Na medida em que o direito romano relacionava-se com os
Landrechte como direito supletivo, não havia, entre eles, um conflito. Todavia, a simples
existência de duas ordens paralelas de direito que deveriam relacionar-se, ainda que através
de uma simples suplementariedade de uma delas em relação à outra, era já um fator a mais
para aumentar a complexidade do sistema jurídico dos territórios que compunham o
Império. Assim, o fato de os Landrechte terem de se relacionar, externamente, com o
direito romano e com o direito canônico contribuiu para complicar um pouco mais a
estrutura jurídica das regiões germânicas. Essa extrema pluralidade de fontes, tanto as que
estavam incorporadas aos Landrechte quanto as que estavam fora deles, determinava,
portanto, a enorme complexidade dessa estrutura jurídica. Dentre as fontes que a
compunham, além das já mencionadas, podemos lembrar ainda as abundantes normas
consuetudinárias locais, as igualmente abundantes legislações estatutárias citadinas e a
estrutura corporativa das profissões com suas respectivas normatizações.
18
17
TARELLO, Giovanni. Storia... p. 85-7. “Agli inizi del secolo XVIII, nei paesi germanici in cui
non si era ancora sviluppata una cultura giuridica statocentrica, e in cui la concezione
imperativistica del diritto (che faceva capo all’insegnamento del Pufendorf) era in corso di
diffusione solo nella scuola e presso i dotti legati a politiche accentratrici, ‘Land’ entrava facilmente
in contesti liguistici correnti come punto di riferimento del ‘diritto’, e ‘Landrecht’ si usava come
nome dell’organizzazione giuridica intrinseca alla terra.” (TARELLO, Giovanni. Storia... p. 86-7.).
18
TARELLO, Giovanni. Storia... p. 89-90.
28
Nos área italiana a situação era um tanto diversa daquelas que
encontramos na França e no Sacro Império Romano-Germânico. Em especial, quando
fazemos a comparação com essas duas áreas, era menor, no interior de cada um de seus
Estados, o grau de fragmentação da estrutura jurídica. Em todos estes estados, com exceção
do Estado pontifício, havia uma distinção básica entre o direito comum, que tinha caráter
supletivo, e o direito particular de cada Estado. Os direitos particulares eram compostos
pelos seus usos e costumes e pela sua legislação. Além do problema das relações que se
estabeleciam entre o direito comum e os direitos particulares, há ainda as questões relativas
ao direito canônico, ao direito mercantil e às derrogações que eram impostas pelos
costumes locais e por direitos especiais fundados em privilégios. O direito canônico, além
de regulamentar por inteiro o matrimônio, causava conflitos relativos ao regime jurídico
diferenciado do clero, sobretudo em matéria penal.
19
Essa situação que vemos no século XVII e no princípio do século XVIII
configurava uma estrutura jurídica extremamente complicada, tanto com relação ao direito
material quanto com relação à jurisdição e à tutela dos direitos. Essa complexidade,
obviamente, era causa de enormes inconvenientes para os interessados no direito. As
freqüentes dúvidas sobre quais leis regulavam as diversas relações, os conflitos objetivos de
competência entre os diversos sistemas de normas, as incertezas sobre a jurisdição,
causadas principalmente pelos conflitos entre as várias jurisdições, e todos os problemas
inerentes a uma estrutura jurídica à qual faltava sistematicidade, uniformidade e coerência,
colocavam as relações jurídicas em uma situação de extrema incerteza e criava enormes
dificuldades para se ver tutelados e protegidos os direitos e as expectativas. Em uma
economia agrária como a da Europa continental de então, essas dificuldades refletiam-se
19
Tarello refere-se à situação especial do clero nos Estados italianos, ressaltando a tendência, nos
Estados não-pontifícios, de os soberanos tentarem controlá-lo através da regulamentação e, por
vezes, limitação de seus privilégios: “Anzitutto, una posizione soggettiva particolare hanno
ovunque gli appartenenti al clero. I presupposti dell’apartenenza giuridica al clero sono stabiliti dal
diritto canonico; ciò vale ovviamente per lo Stato pontificio, ma vale anche per tutti gli altri Stati il
cui sistema giuridico contiene il diritto canonico come diritto particolare a cui spetta sempre la
determinazione delle condizioni di appartenenza al clero. I privilegi e le capacità particolari di chi
appartiene al clero sono pure stabiliti dal diritto canonico; ma mentre il diritto canonico vige
direttamente, anche sotto questo profilo, nello Stato pontificio, invece negli altri Stati i privilegi e le
capacità particolari del clero sono di solito regolati da leggi e statuti particolari, di solito espressione
di una poltica al contempo volta alla limitazione dei privilegi di diritto canonico come tali ed alla
concessione degli stessi o di altri privilegi in forme atte ad assicurare al sovrano qualche controllo
sul clero e sulle istituzioni ecclesiastiche.” (TARELLO, Giovanni. Storia... p. 94.).
29
com conseqüências bastante significativas sobre os bens fundiários, pois todas as novas
situações de direito real ficavam enormemente ameaçadas de litigiosidade ante às
características da estrutura jurídica, o que acabava dificultando sensivelmente a circulação
dos direitos sobre a terra; circulação, diga-se, já bastante complicada em função das
instituições de direito feudal que ainda restavam por toda a parte. Isso seria uma questão
bastante importante, sobretudo na França, onde uma forte burguesia, possuidora de
suficientes meios econômicos, desejaria entrar na posse das terras através de instrumentos
de direito privado.
20
O processo de centralização absolutista do poder político e do direito
objetivava, evidentemente, fortalecer o monarca frente às ordens de poder concorrentes,
sobretudo as nobiliárquicas. Essa centralização política e jurídica, na medida em que
precisava de uma burocracia central minimamente eficiente, implicava em uma
reorganização da estrutura jurídica que lhe tolhesse as contradições e incoerências, que lhe
simplificasse e aumentasse a sistematicidade, que, em uma palavra, lhe aumentasse a
racionalidade.
21
Tudo isso, evidentemente, favorecia muito os empreendimentos de
20
Além dessas mencionadas dificuldades relativas à circulação das terras, podem ser enumeradas
outras que diziam respeito à situação da burguesia na questão fundiária, como, por exemplo, a
ausência de cadastro de bens imobiliários (como na França) e a enorme quantidade de títulos
jurídicos sobre os bens fundiários. Referindo-se à situação francesa, Tarello as resume nesse trecho:
“Anzitutto la difficile circolazione delle terre, sia per ragioni quantitative, come la manomorta
ecclesiastica e i fedecommessi, sia per ragioni struturali, cioè la difficoltà di entrare in una
posizione di godimento della terra in situazioni di estrema divisione dei titoli giuridici sui fondi,
caratterizzate per di più da vincoli personali e da diritti di riscatto per i feudatari o i direttari. Oltre
alle difficoltà di accesso a posizioni giuridiche reali, stava poi il pericolo di litigiosità in cui si
trovavano tutte le posizioni nuove a causa della mancanza di catasti o della particolare situazione
giudiziaria. Oltre a questo la pressione dei canoni, e soprattutto la pressione fiscale, gravante sugli
utilisti in massima parte, rendeva estremamente onerosa la posizione di godimento della terra e
perciò sfavoriva le classi borghesi, dei grossi e medi utilisti (molti storici dell’economia usano la
parola ‘fittavoli’, che non è del tutto esatta in senso giuridico).” (TARELLO, Giovanni. Storia... p.
84.).
21
O fator racionalizador implícito na centralização jurídica levada a cabo pelo absolutismo é
percebido por Tarello, mas é tido por ele como impotente, por si só, para levar a uma verdadeira
unificação e racionalização do direito. Vejamos as suas palavras: “I sistemi giuridici che il secolo
XVII lasciava in eredità erano, parlando in generale, complessi a causa della concorrenza di una
pluralità di fonti; complicati, a causa dell’estrema varietà delle discipline dei soggetti e dei beni;
antinomici e incoerenti, a causa dei frequenti conflitti di norme e di giurisdizioni; incerti, a causa di
tutto ciò. [...] Orbene, in questi ‘sistemi’ giuridici, complessi complicati incoerenti incerti quanto si
vuole, e caratterizzati da una struttura a cerchi concentraci dalle norme comuni e generali alle
norme particolari e speciali, è presente un fattore di unificazione e di razionalizzazione. Questo
fatore, quantunque si sia rivelato impotente per se stesso a compiere una vera unificazione e
30
natureza capitalista, pois, ao tornar a atividade jurisdicional mais sujeita a previsões,
simplificava e aumentava a exatidão do cálculo das expectativas e, assim, diminuía custos e
riscos. Conseqüentemente, a centralização monárquica do absolutismo tenderia a favorecer
enormemente o desenvolvimento da economia capitalista. Isso era percebido e desejado
pelos monarcas e seus assessores, na medida em que coincidia com seus desígnios
patrimonialistas de fortalecimento do Estado e do poder central. De tal forma, o fato de essa
centralização absolutista do poder ocorrer em meio ao desenvolvimento de uma economia
capitalista, em geral, cada vez mais dinâmica lhe imprimiria profundas marcas. Além disso,
como se pode notar, esse processo de centralização do direito nas mãos do soberano, por
afetar tão consideravelmente a dinâmica social, é já uma forma de instrumentalização do
direito, por parte dele, como meio de se agir sobre a sociedade. Mas, como veremos, o auge
da instrumentalização absolutista do direito, que ocorrerá apenas nos absolutismos tardios
do século XVIII, não se dará apenas como um simples e puro reflexo da centralização
jurídica. Na verdade, o que ocorrerá é um uso do direito, pela coroa, enquanto instrumento
de controle, intervenção e direcionamento da sociedade.
Quando a instrumentalização do direito como método de se intervir na
sociedade a partir do poder monárquico chega ao seu auge, na segunda metade do século
XVIII, a teorização do direito enquanto expressão da vontade do soberano por parte dos
teóricos do absolutismo, como Hobbes, era já de longa data no desenvolvimento cultural
europeu e o Iluminismo francês, por sua vez, começava, mais ou menos na mesma época, a
desenvolver a idéia de que o direito, ou, mais exatamente, a legislação, é um instrumento
capaz de moldar a sociedade e os cidadãos da forma que se desejar e que, portanto, poderia
razionalizzazione, è importantissimo ai nostri scopi di studio: infatti ad esso si ricollegano i primi
impulsi, e ad esso si rivolgano le prime speranze dei contemporanei, di una ‘codificazione’ del
diritto, intesa appunto come unificazione e razionalizzazione del diritto. Questo fattore è
l’assolutismo monarchico, che svolge una politica che ben può chiamarsi di accentramento
giuridico.” (TARELLO, Giovanni. Storia... p. 49-50.). Evidentemente, se se elege como modelo de
racionalização jurídica aquela que vemos nas codificações modernas, então a política de
centralização do absolutismo do século XVII realmente poderia pouco. Todavia, quando pensamos
nos absolutismos que ser formam no século XVIII, sobretudo, em sua segunda metade, então
podemos ver uma maior capacidade de centralização e racionalização jurídica. De qualquer forma,
o que deve, aqui, ficar registrado é a existência de uma tendência dentro do absolutismo que aponta
para a racionalização da estrutura jurídica; uma tendência que existe mesmo quando a pressão das
forças contrárias consegue ser mais forte.
31
ser usado como meio para aperfeiçoá-los.
22
É interessante, assim, observar que justamente
na França, onde o absolutismo monárquico formou-se já em meados do século XVII e
permaneceu, por muito tempo como o mais exuberante de todos, a ponto de Luís XIV
entrar para o imaginário histórico como seu principal símbolo, e onde o Iluminismo
começou a dar seus primeiros passos, a estrutura jurídica permaneceu, até à revolução de
1789, como uma das mais fragmentadas e desuniformes da Europa ocidental.
23
Conforme já
havíamos dito, o absolutismo francês, que se estabiliza na época de Luís XIV, não
representou uma eliminação completa (ou que se aproximasse disso) dos poderes
intermediários que limitavam o poder central. Assim a pluralidade de fontes de direito e de
poderes jurisdicionais que encontramos na estrutura jurídica francesa e que significava,
evidentemente, um obstáculo ao poder real é apenas mais uma face dessa ausência de uma
centralização mais completa.
Essa centralização mais completa teve lugar, ao contrário, nos
absolutismos tardios formados no século XVIII, sobretudo nos casos da Prússia e da
Áustria. Assim o processo de intervenção por parte do poder monárquico teria aí lugar para
se desenvolver com muito mais liberdade. Nesse processo, conforme já foi aqui trabalhado,
22
No Iluminismo francês, a principal expressão dessa tese foi Helvétius, conforme veremos mais à
frente.
23
As dualidades da realidade francesa e a complexidade que ela oferece para seus analistas são bem
resumidas por Tarello neste trecho: “Sotto il profilo di una storia delle istituzioni e della cultura
giuridica, la Francia nel periodo che intercorre tra l’inizio del secolo XVIII e gli anni che precedono
la grande rivoluzione appare come un’entità estremamente contradditoria: tanto da resistere
vittoriosamente ai rinnovati tentativi di rzionalizzazione interpretativa cui si dedicano gli storici,
anche quando questi ultimi praticano spericolatamente l’arte della periodizzazione e quella della
unilateralità specialistica. Da una parte, la Francia ci si presenta come l’unico grande stato nazionale
del continente ad amminstrazione e giurisdizione relativamente accentrata; dall’altra presenta una
profonda frattura dal punto di vista della unitarietà del diritto (che oggi chiamaremmo) privato e
penale, quella tra il sud di diritto romano ed il nord di diritto consuetudinario, che non trova
riscontro in Spagna, negli Stati germanici, negli Stati italiani. Da na parte, la Francia esibisce alcuni
tentativi tra i piú organici di una unificazione descritiva del diritto e di razionalizzazione dei
concetti giuridici; e, dall’altra parte, presenta la maggiore impermeabilità della pratica a questi
tentativi di unificazione descrittiva ad opera della scuola. [...] Da una parte in Francia si verificano
frequentemente tentativi, ufficiali o privati, di riforma del diritto privato e addirittura di
codificazione, in qualche senso della parola, del medesimo; dall’altra parte, la Francia è forse
l’unico paese europeo dove questi tentativi (prima della Rivoluzione) falliscono quasi
integralmente. [...] Da una parte in Francia si era manifestata in modo macroscopio la fondazione
teorica e la concreta incidenza dell’assolutismo monarchico; dall’altra parte sono presenti durante il
secolo XVIII, in modo altrettanto macroscopico, le dottrine storicistico-feudali e le tendenze
centrifughe e particolaristiche che a quelle dottrine corrispondono sul piano storico-strutturale.”
(TARELLO, Giovanni. Storia... p. 70-1.).
32
os desenvolvimentos culturais iluministas tiveram papel importante, a ponto de podermos
falar em um absolutismo esclarecido. De tal forma, nesse contexto temos a fusão prática
do absolutismo, cujas teorias faziam da lei a expressão da vontade do monarca, com o
Iluminismo, no seio do qual o direito começa a ser visto como um meio de se moldar a
sociedade. Cria-se, então, o cenário propício para que o direito, ou, mais precisamente, a
legislação, passe a ser encarado como instrumento do soberano para aperfeiçoar a
sociedade e introduzir o progresso. O processo de formação do absolutismo foi, em toda a
parte, um fator de modernização institucional. Assim onde o absolutismo ainda não tinha se
desenvolvido e onde, portanto, os poderes nobiliárquicos conservadores ainda eram fortes,
havia o pressuposto necessário para que os autores iluministas sentissem a necessidade de
apoiá-lo. Na própria França a aliança entre a coroa e os autores iluministas foi desejada por
esses últimos, na medida em que a permanência de poderes intermediários, sobretudo
nobiliárquicos, deixava, ainda, aos seus olhos, algumas tarefas para o absolutismo realizar.
O que parece ter determinado a grande diferença entre o absolutismo
francês e os absolutismos tardios do século XVIII é que estes surgiram em meio ao
desenvolvimento de uma economia capitalista, em nível continental, já bastante
desenvolvida e cada vez mais dinâmica. Isso é importante, pois cada vez ficava mais clara a
conexão entre o fortalecimento institucional de um Estado e o desenvolvimento de sua
economia. Assim o fato de a França ter, já no princípio do século XVIII, uma economia
bastante desenvolvida em relação aos outros Estados do continente (produto, entre outras
coisas, da política de incentivo às manufaturas de Colbert, ministro de Luís XIV) a
colocava em uma situação relativamente confortável no cenário da política internacional, na
medida em que contribuía para a manutenção de sua condição de principal potência
mundial, ao lado da Inglaterra. De tal forma, durante as crises políticas de meados do
século XVIII, a coroa francesa sentiria uma necessidade menor de se posicionar em favor
das reformas modernizadoras, juntando forças com seus partidários (o que significaria uma
radicalização ideológica da postura política), e assim atacar com maior violência as
estruturas nobiliárquicas de poder.
A situação é inteiramente diversa quando falamos dos absolutismos
tardios do século XVIII. A desconfortável situação de fraqueza institucional dentro do
cenário político europeu e o conseqüente desejo de fortalecimento levavam os monarcas a
33
sentirem com maior força a necessidade de implementar reformas modernizadoras que
atacassem de forma mais implacável os poderes intermediários. A razão disso é que,
enquanto na França as reformas desejadas tinham como finalidade, do ponto de vista
econômico, apenas criar condições para que as forças econômicas já existentes se
desenvolvessem mais livremente, naqueles outros Estados tratava-se, ao contrário, de criar
as forças econômicas. As reformas, assim, objetivavam fornecer ao poder monárquico os
instrumentos necessários para impor ao conjunto social o dinamismo econômico necessário
para a política de fortalecimento institucional. De tal forma, nesse contexto o nível de ação
do poder central da coroa sobre a sociedade deveria ser muito maior e, para tanto, muito
maior deveria ser a concentração de poder nas mãos do monarca. Na esfera jurídica, isso se
reflete em um uso muito mais acentuado do direito, sob a forma de legislação, como
instrumento para se controlar e direcionar a sociedade.
24
24
O crescimento da atividade legislativa da Coroa em Portugal, na época do absolutismo
pombalino, é observado por Airton Seelaender: “Do início do século XVIII até a queda de Pombal
(1777) verifica-se uma intensificação da atividade legislativa da Coroa. O exame das coletâneas de
leis referentes ao período confirma tal tendência, que parece atingir seu ponto culminante em 1757.”
(SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. A Polícia... p. 97.) O autor também deixa claro o fato de
que esse aumento da atividade legislativa da coroa portuguesa surge em um contexto em que se
sentia a necessidade de ela assumir um papel mais ativo frente à sociedade (e à economia, em
específico) a fim de sanar uma situação de atraso e letargia econômica e promover, assim, o
fortalecimento institucional: “Desde a era da expansão ultramarina os tributos e demais receitas
vinculadas direta ou indiretamente à exploração do império lusitano haviam viabilizado e
estimulado o surgimento de um imponente complexo de órgãos da administração central, com
amplas atribuições em matéria financeiras e coloniais. A importância de tais receitas no conjunto
das rendas da Coroa tendia em contrapartida a reduzir o interesse desta pelo aproveitamento do
potencial econômico interno e pelo desenvolvimento de uma máquina administrativa mais eficiente
e ramificada no interior do país. Isso também explica em parte o relativo atraso com que surgiram,
em Portugal, os primeiros espaços institucionais destinados à análise das técnicas de fomento
econômico e de estímulo ao crescimento populacional. [...] É fato, porém, que o interesse da Coroa
pelo desenvolvimento econômico interno, pelo estímulo ao crescimento populacional e pelo
aperfeiçoamento da administração do reino aumentou consideravelmente já no reinado de D. José I
(1750-1777). Em meio à queda da produção brasileira de açúcar, ouro e diamantes, à escassez de
meios de pagamentos, aos problemas resultantes do terremoto de 1755 e à ameaça de ataques
espanhóis, o governo passou a dar maior atenção àqueles assuntos, preocupando-se mais com aquilo
que os teóricos da polícia acreditavam ser as verdadeiras fontes do ‘poderio interno do Estado’.”
(SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. A Polícia... p. 95-6.). Esse uso da legislação dentro de um
contexto de intervenção, controle e dirigismo por parte da coroa sobre o conjunto social dá a ela
uma enorme afinidade com a então chamada ciência da polícia, que, na segunda metade do século
XVIII, se transforma em uma ciência do governo interno do Estado voltada para o dirigismo
econômico e social. (Voltaremos a falar, mais detidamente, sobre a ciência da polícia) O texto
citado põe à mostra essa afinidade na medida em que trata justamente da legislação real portuguesa
relativa às chamadas “matérias de polícia”. (SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. A Polícia... p.
34
Como já dissemos, esse projeto da coroa encontraria inúmeros adeptos
entre os interessados no desenvolvimento da economia e entre os interessados em cargos na
nova burocracia centralizada.
25
Na medida em que as necessidades econômicas em meio às
quais esse absolutismo tardio do século XVIII se desenvolve forçam-no a organizar-se
racionalmente para ter eficiência no objetivo de produzir o desenvolvimento econômico
almejado, há, já de início, um princípio de afinidade entre ele o movimento intelectual
iluminista, cuja marca mais característica era justamente o louvor da racionalidade e do
progresso. Essa afinidade tenderia a aumentar já que o pensamento iluminista nos países
desse absolutismo era, em geral, a expressão filosófica justamente daqueles setores que
muito teriam a ganhar com a modernização absolutista. Evidentemente, aquelas teorias
iluministas (presentes já no Iluminismo francês) que faziam da legislação um instrumento
de racionalização social, através do qual se poderia moldar e aperfeiçoar a sociedade,
teriam um cenário extremamente favorável nessa identificação do Iluminismo com
governos centralizados que utilizavam a legislação para impor determinados caminhos ao
91.). Ante a tudo isso, fica claro que o direito passa a ter um caráter instrumental. Nas palavras do
autor: “Verificou-se, assim, uma intensificação da atividade legislativa da Coroa, inclusive em áreas
em que esta última não fora até então muito atuante. A lei também passou, à época, a ser mais
utilizada para transformar a realidade, introduzir inovações ou promover crescimento e expansão.
Estas novas finalidades, por sua vez, tendiam a dar destaque ao caráter instrumental da lei,
indiretamente evidenciando a natureza mutável e contingente do direito.” (SEELAENDER, Airton
Cerqueira-Leite. A Polícia... p. 105.).
25
A fusão dos interesses da coroa, em sua empreitada absolutista, com os interesses dos setores que
se beneficiariam com o desenvolvimento da economia (como os comerciantes) e com os interesses
dos setores que se beneficiariam com cargos na administração centralizada (como o patriciado
urbano) é atestada no caso de Portugal, na época do governo do Marquês de Pombal, pela existência
de certas políticas reais que, para cumprir com os desígnios de fortalecimento do poder central da
coroa dentro do Estado e do próprio Estado em relação aos concorrentes externos, visavam
dinamizar a economia e criar quadros para a administração régia. Essas políticas são analisadas por
Seelaender no trecho que segue: “Visando fortalecer o setor mercantil lusitano, foram criadas novas
companhias de comércio, bem como instituições destinadas ao aprimoramento técnico dos
comerciantes e à supervisão de suas atividades. Buscou-se eliminar o estigma que recaía, na ordem
social tradicional, sobre a figura do comerciante e sobre grupos étnicos historicamente associados à
atividade mercantil; mecanismos de nobilitação e privilégios próprios do Antigo Regime foram
utilizados à larga para recompensar a alta burguesia, conferir-lhe maior prestígio social e
arregimentá-la para colaborar com os projetos de interesse da Coroa. Assim como via nos
comerciantes ‘instrumentos’ para a realização dos bons planos dos ‘ministros de Estado e políticos’,
o pombalismo também buscava submeter os demais segmentos da sociedade à condição de
instrumentos da Coroa. Verificou-se, assim, um processo de ‘refuncionalização da nobreza’:
abandonando-se o arcaico ideal da ‘nobreza guerreira’, estimulou-se a participação de nobres em
empreendimentos comerciais, bem como seu preparo intelectual para atuar na administração.”
(SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. A Polícia... pp. 99-100.).
35
conjunto social. Essa teoria, na sua origem francesa, era parte de uma polêmica contra a
teoria dos climas de Montesquieu, pois apresentava as leis como verdadeira causa dos
vícios e das virtudes humanas, pondo de lado as determinações climáticas.
Assim, se a
legislação é que é a responsável pela formação dos cidadãos, bem como de toda a dinâmica
social, então o legislador se transforma no artífice da sociedade, sobre quem recai a
responsabilidade de aperfeiçoá-la. E como essas teses são acompanhadas da defesa da
supremacia do poder monárquico sobre os poderes intermediários, esse legislador sobre
quem se depositam as esperanças de modernização acaba sendo o próprio monarca. Temos
aí, então, a formação da imagem de um rei-legislador a quem incumbe a tarefa de
racionalizar a organização social e promover o progresso e o aperfeiçoamento da
sociedade.
26
Mas se essa imagem do monarca absoluto enquanto rei-legislador aparece já
nos projetos do Iluminismo francês (sobretudo na obra de Helvétius) será apenas naqueles
absolutismos tardios do século XVIII, dentro daquele contexto de tentativa de
26
Daniela Frigo refere-se à formação da imagem de um “príncipe-legislador”. (Cf. FRIGO, Daniela.
op. cit., p. 7.). No Iluminismo francês, essa imagem do rei-legislador encontrará sua expressão mais
forte na obra de Helvétius, como veremos mais à frente. Todavia, podemos encontrar em Voltaire
alguns elementos que apontam para ela. Ao tecer suas críticas à obra Do Espírito das Leis, de
Montesquieu, ele também criticaria a teoria dos climas para colocar em seu lugar a influência do
governo, da religião e da educação. Em seus Comentários sobre algumas máximas principais de “O
Espírito das Leis” ele afirmou: “Convenhamos pois em que, se o clima faz os homens loiros ou
morenos, é o governo que lhes faz as virtudes e os vícios. Confessemos que um rei verdadeiramente
bom é o mais belo presente que o céu pode oferecer à terra.” (VOLTAIRE, François-Marie.
Comentários sobre algumas máximas principais de “O Espírito das Leis”. In Comentários
Políticos. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 81.) E mais à frente: “Montesquieu, para explicar o
poder do clima, nos diz que ele fez gelar uma língua de carneiro e que as papilas nervosas dessa
língua se manifestaram visivelmente quando ela foi descongelada. Mas uma língua de carneiro
jamais explicará por que a querela do Império e do sacerdócio escandalizou e ensangüentou a
Europa durante mais de seiscentos anos. Ela não explicará os horrores da rosa vermelha e da rosa
branca, nem dessa multidão de cabeças coroadas que na Inglaterra tombaram sobre o cadafalso. O
governo, a religião, a educação produzem tudo entre os infelizes mortais que rastejam, sofrem e
raciocinam neste globo.” (VOLTAIRE, François-Marie. Comentários... p. 82.). Falta, nos trechos
citados, uma referência expressa à legislação. Todavia, o que está em questão aqui, como também
na obra de Helvétius, é a substituição de um esquema de determinação natural (vinda dos climas)
por uma outra em que os fatos humanos são conseqüências de determinações sociais e, portanto, da
organização social. A referência, no final do primeiro trecho, ao “rei verdadeiramente bom”, feita
depois de Voltaire dizer que as virtudes e os vícios são produtos do governo, nos permite ver
claramente que papel ele esperava que fosse cumprido pelo monarca.
36
fortalecimento estatal em uma situação de atraso econômico e institucional, que
encontraremos os espécimes que mais se aproximarão desse modelo teórico.
27
A potencialização desse uso instrumental do direito por parte dos
monarcas absolutistas implicava em impor as leis da coroa, senão como a única, pelo
menos como a principal das fontes do direito, à qual todas as outras deveriam submeter-se.
Para se fazer isso seria necessário vencer as resistências da categoria dos juristas práticos,
em especial dos juízes.
28
A situação de particularismo jurídico, da qual já falamos antes,
era uma situação de pluralidade de fontes do direito, das quais emanavam normas
freqüentemente conflitantes entre si, e de jurisdições. Seu sustentáculo eram os diversos
interesses que se beneficiavam dela, como, por exemplo, os beneficiados por privilégio de
jurisdição. Mas uma outra categoria de beneficiados eram justamente aqueles que tinham
cargos no corpo burocrático dessas jurisdições independentes do poder real. Devemos
lembrar, também, que muitas das instituições judiciárias do antigo regime europeu
constituíam centros de poder nobiliárquico. Essas instituições, dentre as quais podemos
27
A imagem do rei-legislador é identificada em Portugal, no período do governo do Marquês de
Pombal, por Seelaender (Cf. SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. A Polícia e o Rei-
Legislador... ). O contexto em que o aumento da atividade legislativa se deu em Portugal é marcado
por uma situação de letargia e crise econômicas. Em face dessa situação, era imperioso que a coroa
assumisse uma função mais ativa para viabilizar a superação das adversidades. A conseqüência é
que ela acaba, através da legislação, assumindo um papel diretivo em face da sociedade, buscando
organizá-la de um modo que leve a produzir a prosperidade e o fortalecimento do reino. Nas
palavras do autor: “Na segunda metade do século XVIII verificou-se uma conjunção de ameaças
externas com desequilíbrios na balança comercial, enquanto graves crises afetavam setores-chave
da economia (ouro, vinhos, produtos coloniais). Tal que por sua vez demandava novas soluções.
Nesse contexto precisava a Coroa não só enfrentar de forma decidida as adversidades, mas também
aturar de modo distinto do usual, impondo-se novas tarefas ou utilizando de modo mais intenso os
mecanismos preexistentes de controle e intervenção na vida social. Tais metas e tarefas eram
numerosas e variadas. Observando o princípio – então largamente aceito – da interdependência
entre o tamanho da população, o progresso das atividades econômicas, o grau de prosperidade do
país e seu poderio como partícipe do jogo político internacional, o governo português preocupou-se
em remover obstáculos ao crescimento populacional, passando também a fomentar mais a
agricultura e as manufaturas.” (SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. A Polícia... p. 99.). E mais
à frente: “Papel de relevo coube aqui à legislação real, que claramente assumiu à época uma função
diretiva: através de mais e mais normas tentou-se guiar e determinar o comportamento dos
indivíduos, instituições e grupos sociais, fazendo-os contribuir de forma mais efetiva para a
prosperidade e fortalecimento do reino.” (SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. A Polícia... p.
104.).
28
Nas palavras de Tarello: “La prevalenza di um particolare gruppo di norme, cioè quelle volute e
create direttamente dal monarca, su tutte le altre, passava invece non solo per l’accentramento della
giurisdizione, ma anche per un saldo dominio del monarca sulla corporazione dei giudici.”
(TARELLO, Giovanni. Storia... p. 57.).
37
lembrar os Parlements da França, eram compostas por cargos que eram suscetíveis de
apropriação privada e que portanto faziam parte dos privilégios comprados ou herdados.
Assim elas possuíam autonomia em face do poder central e, conseqüentemente, acabariam
sendo forças centrífugas que atuariam contrariamente ao processo de centralização
institucional do absolutismo.
29
Um caso importante e singular de resistência da categoria dos juristas
práticos é o da Inglaterra. Nesse país a categoria dos juristas, organizando-se sob a forma
de corporação, teve forças não apenas para bloquear as pretensões absolutistas de domínio
sobre as estruturas judiciárias, como também a recepção do direito romano. A estrutura de
corporação em que se organizavam os juristas ingleses lhes dava o monopólio do ensino
29
Sobre os Parlements, Tarello teceu as seguintes observações: “La situazione giudiziaria francese,
come si avrà occasione di accennare, è estramamente complessa. I grandi tribunali territoriali,
chiamati Parlements cioè Parlamenti, non erano, in origine, di creazione regia e non erano affatto
suscettibili di facile e semplice subordinazione da parte del monarca, né potevano con facilità essere
sottordinati a un tribunale centrale dato che, ciascuno, giudicava in base a diritto sostanziale diverso
(le diverse coutumes). I secoli XVII e XVIII videro tentativi del monarca di subordinare i
Parlements, e un’accanita resistenza dei Parlements che molte volte si sarebbe tradotta, nel secolo
XVIII, nella disapplicazione o nella ritardata applicazione della legislazione generale nuova.
L’accentramento della giurisdizione, generalmente parlando, non avvenne perciò tanto a favore di
un tribunale centrale (il Parlement di Parigi), quanto a favore dei diversi Parlements, che erosero le
altre giurisdizioni con competenza territoriale, e divennero autorevolissimi, ciascuno nella sua sfera:
autorevolezza cui corrispose una remora all’unificazione del diritto anche se, formalmente, tutti i
Parlements erano ritenuti giudicare nel nome del sovrano. Si trattò sempre di un accentramento
molto relativo; le vecchie giurisdizioni restarono, sia pure talvolta con competenza piú limitata e
gerarchicamente subordinata; e i conflitti continuarono.” (TARELLO, Giovanni. Storia... p. 57.).
Na tentativa de bloqueio do voluntarismo legislativo real, um expediente extremamente útil foi o
recurso à doutrina das leis fundamentais. O Parlement de Paris, o principal tribunal francês do
antigo regime, utilizou-se da lei sálica (tida então como a lei fundamental do reino francês) para se
insurgir contra atos legislativos da coroa francesa. A situação é mencionada por Seelaender:
“Veiculando a idéia de que o poder real tinha por fundamento uma lei positiva que simultaneamente
o limitava, o conceito de loi fondamentale logo foi assimilado pela linguagem técnica dos juristas,
em um período no qual membros do principal tribunal francês – o Parlement de Paris – estavam
preocupados em fixar definitivamente as regras de transmissão da Coroa e quais leis eram imutáveis
ou passíveis de alteração pela vontade real. Em 1583, o Parlement já lastreava nas leis
fundamentais sua recusa em registrar um edito real; após a morte de Henrique III (1589), fazia o
mesmo para declarar ‘nulos’ todos os ‘tratados feitos ou por fazer [...] para o restabelecimento’
como monarca ‘de um príncipe ou de uma princesa estrangeira’.” (SEELAENDER, Airton
Cerqueira-Leite. Notas sobre a constituição do direito público na idade moderna: a doutrina das
leis fundamentais. In: Seqüência: estudos jurídicos e políticos. Florianópolis: Fundação Boiteux,
1980 – Semestral, p. 200.). Como lembra o autor, muito embora o recurso à leis fundamentais tenha
sido um útil instrumento para interesses nobiliárquicos, ele não deixou de assumir também uma
veste pró-absolutista. De qualquer forma, o discurso iluminista não deixaria de atacar esse que foi,
muitas vezes, um óbice à execução das tarefas modernizadoras e racionalizadoras do trono.
38
jurídico e, obviamente, o monopólio do exercício profissional. Isso significava que para
participar das profissões jurídicas era necessário aprender a profissão na corporação. Assim
a instituição de cursos universitários de direito à maneira daqueles existentes no continente,
onde o ensino era baseado no direito romano, representaria um perigo para os interesses da
categoria dos juristas ingleses de então, pois quebraria seu monopólio de ensino e, logo
após, seu monopólio de exercício profissional. O intento monárquico de subordinar o
exercício jurisdicional representava, por sua vez, uma afronta à autonomia e ao poder
corporativos. A vitória dos interesses corporativos dos juristas ingleses sobre os interesses
absolutistas da coroa deu origem a uma marcante singularidade jurídica dentro do direito
ocidental. O ensino jurídico, na estrutura corporativa, era feito inteira ou
predominantemente na prática (variando conforme a época). Dessa circunstância, derivou
um raciocínio jurídico empírico de pouca propensão à sistematização e à generalização
conceitual, ao contrário do que aconteceu no caso do pensamento romanista continental. A
estrutura de precedentes da Common Law tem nisso a sua origem. Pode-se ver, portanto, a
importância das conseqüências da vitória dos juristas ingleses sobre o direito romano e
sobre as pretensões absolutistas da coroa britânica.
30
A realização das tarefas relativas ao fortalecimento do reino, que
implicava em uma política de desenvolvimento econômico e centralização burocrática,
tocaria necessariamente nos interesses de setores tradicionais. Na obstrução das pretensões
monárquicas relativas ao domínio sobre a estrutura judiciária havia uma rede de interesses
de composição variegada, mas que contava evidentemente com todos aqueles que,
exercendo profissionalmente alguma atividade jurídica, tinham na autonomia das
instituições às quais eram vinculados uma fonte de poder político e econômico. Deve-se
lembrar ainda que entre a estrutura judiciária autônoma e o poder nobiliárquico havia uma
íntima relação, embora não se possa falar em uma identificação absoluta entre ambos, em
função da existência de tribunais eclesiásticos e comerciais. Essa estreita relação baseava-
30
Tarello resume essas questões nessas palavras: “Lo Stato nel quale, dopo una precoce tendenza
all’accentramento, questa si era bloccata in una situazione di equilibrio ‘costituzionale’ dei poteri
tradizionali e di quelli che esprimevano interessi nuovi, cioè l’Inghilterra, aveva anche visto
consolidarsi la magistratura meno dipendente dal monarca e piú proclive a perpetuare quelle
struture giuridiche formali che cosituivano il lascito storico della elaborazione di un diritto
consuetudinario da parte dei pratici, e che sono il principale fattore della complessità del diritto
inglese.” (TARELLO, Giovanni. Storia... p. 56.).
39
se, em primeiro lugar, no fato de que essa estrutura judiciária era parte orgânica e, portanto,
sustentáculo da estrutura de poderes intermediários na qual os principais beneficiados eram
os membros da nobreza, em especial os da alta nobreza. Em segundo lugar, embora nem
todos os membros dessa estrutura judiciária fossem nobres, o ingresso em seus cargos
(salvo em alguns casos de jurisdições especializadas, como a eclesiástica) acabava
nobilitando.
31
Mas ainda que se negue esses dois pontos da relação entre o poder da
nobreza e o poder da categoria dos juristas práticos, os interesses evidentes destes últimos
na preservação de seu poder e de suas fontes de renda já bastaria para justificar sua
oposição à política centralizadora dos soberanos.
Os juristas práticos cuja resistência foi ressaltada até agora são aqueles
ligados diretamente às atividades forenses, como juízes, advogados e notários. A razão
disso é que no campo jurídico podemos perceber uma ruptura que coloca, de um lado, esses
juristas práticos e, de outro, os juristas teóricos e aqueles juristas que compunham os
setores mais altos do quadro de funcionários da coroa.
32
Enquanto aqueles primeiros foram
31
As estreitas relações entre a categoria dos juristas e os estamentos nobiliárquicos são percebidas
por Daniela Frigo no trecho que segue: “Fra modelli interni alla scienza giuridica e modelli
elaborati dalla cultura aristocrática viene a stabilirsi uma circolarità che risulta tanto più
significativa ove si consideri lo stretto intreccio fra ceti nobiliari e ceti giuridici caratteristico di
tutta la prima età moderna, quando il potere di intermediazione fra principe e sudditi, in assenza di
una burocrazia con tratti moderni, era completamenta nelle mani di patriziati, élites politiche,
magistrature.” (Cf. FRIGO, Daniela. op. cit., p. 24.). Um pouco mais à frente, a autora ressalta que,
na literatura política anterior ao século XVIII, a função de guardião de uma ordem social pré-
existente, na qual estavam implícitas concepções estamentalistas, que, como apontamos, compunha
a imagem do príncipe, também era parte da imagem do juiz: “Le ‘virtù’ politiche celebrate dalla
pubblicistica dei secoli avanti il Settecento, e in parte anche in questo, sono dunque sostanzialmente
simili per il pirncipe e per il giudice, poiché assai simile è il loro ruolo nell’assetto del potere:
tutelare e mediare i diversi interessi contrapposti, assicurare la tenuta dell’edificio civile,
salvaguardare i cardini ideologici sui quali tutto il sistema si regge. Prudenza, sapienza, solennità,
sono tutte connotazioni che rinviano alla capacità dell’élite politica, sia essa composta di nobili, di
giuristi o, più probabilmente, della giusta combinazione fra i due ceti, di leggere, interpretare e
tutelare quell’‘ordine naturale’ delle cose che rappresenta la costituzione materiale, il codice non
scritto, dell’antico regime. [...] Una situazione in cui política e giurisprudenza, pur accogliendo
ciascuna princìpi diversi ed elaborando soluzioni tecniche specifiche, rappresentano la
manifestazine della stessa convinzione radicata sull’immutabilità dell’ordine sociale. ‘Conservare’ è
dunque la finalità ultima perseguita tanto dal dominio politico quanto dalla pratica giuridica: ad
ambedue sono allora indicate quelle virtù classiche e cristiane che si ispirano a regole di equilibrio,
di mediazione, di sapiente cacitura di rapporti e di situazioni in un assetto omogeneo.” (Cf. FRIGO,
Daniela. op. cit., p. 26-7.).
32
Esse esquema não é válido, evidentemente, para a França, onde a existência de uma forte
burguesia levaria muitos advogados a comungarem de suas concepções ideológicas e, portanto, a se
colocarem a favor da racionalização da estrutura jurídica. Essa oposição que mencionamos entre
40
uma força contrária ao processo de sistematização e unificação jurídicas estes últimos,
principalmente os funcionários, serviram ao trabalho das reformas que intentavam
simplificar a estrutura jurídica do antigo regime, racionalizá-la e, por fim, colocá-la nas
mãos do soberano. Quanto aos teóricos, sua propensão natural, dada a natureza de sua
atividade, para a racionalização e sistematização do material jurídico
33
(aliada ao fato de
não estarem ligados às atividades práticas que lhes ofereceriam um conjunto de interesses
divergentes) acabou levando-os para o lado do processo de centralização jurídica. Havendo,
portanto, dois grupos divergentes no desenvolvimento da cultura jurídica do século XVIII,
uma posicionando-se favoravelmente às reformas e a outra, contrariamente, fica descartada
aquela interpretação que coloca, de um lado, uma cultura jurídica conservadora e, de outro,
uma cultura não-jurídica reformadora, atenta aos problemas sociais, institucionais e
econômicos, que deveria culminar com os reformadores iluministas.
34
Essa nova cultura jurídica reformadora começou, na segunda metade do
século XVIII, a se nutrir dos novos ares filosóficos que sopravam da França e passou,
progressivamente, a se misturar com a filosofia iluminista até, praticamente, se unificar
com ela. Assim, valendo-se de todo o instrumental teórico do Iluminismo, ela terá seu
potencial de crítica e de elaboração consideravelmente aumentado. Portanto, sem deixar de
pertencer ao campo jurídico, essa tendência que pedirá a reforma da estrutura jurídica pela
ação centralizadora do soberano será também uma expressão do reformismo filosófico
dois setores dentro do campo jurídico é bem percebida por Tarello que, em sua descrição, ressalta a
importância que a não existência de uma classe burguesa (pelo menos, de uma classe burguesa
forte) tem para a definição do posicionamento dos práticos jurídicos: “In particolare durante la
prima metà del secolo XVIII, e segnatamente nei luoghi in cui no si era ancora formata una
borghesia ed i giuristi pratici sono perciò al servizio della nobiltà feudale e non di una classe nuova
(esempi tipici il Regno di Napoli e gli Stati germanici agricoli e poveri), ogni tentativo di riforma
giuridica semplificatrice naufraga anche per l’opposizione del ceto forense e notarile. Al contrario
la scuola, di solito e particolarmente dove è mono legata o addirittura in conflitto con la pratica,
tende alla razionalizzazione del sistema; e i riformatori settecenteschi, pressoché tutti di educazione
giuridica, saranno in genere o uomini di scuola o funzionari di sovrani accentratori in conflitto con i
titolari di privilegi feudali o, ancora, uomini dediti allo studio teorico dell’economia e del diritto (e
di solito, in quel secolo, anche a studi meccanici e matematici), favoriti da beni di fortuna, o da
pensioni, prebende e sinecure.” (TARELLO, Giovanni. Storia... p. 34.).
33
Esta propensão é apontada por Max Weber, segundo o qual as necessidades do intelectualismo de
dar sistematicidade e coerência ao material jurídico levá-os ao caminha da racionalização do direito
e pode muitas vezes colocá-los em confronto com interesses práticos.
34
Essa interpretação é que encontramos na obra clássica de Franco Venturi. Veja-se: VENTURI,
Franco. Settecento riformatore. Volume I: Da Muratori a Beccaria (1730-1764). Torino: Einaudi,
1987.
41
iluminista que via no monarca um fator de racionalização social. Esse movimento pela
reforma da estrutura jurídica chega, assim, ao seu cume apenas no seio dos reformadores
iluministas, em conjugação com o absolutismo esclarecido.
A razão de ter havido tendências reformadoras anteriores ao advento do
Iluminismo é que as demandas sociais que as determinavam eram já suficientemente fortes
para serem percebidas mesmo antes que a filosofia das Luzes viesse a oferecer seus
instrumentos teóricos de interpretação da realidade. A ulterior comunhão de ideais e a
conseqüente fusão entre o reformismo que partia do campo jurídico e o reformismo
iluminista se baseia no fato de que a cultura jurídica reformadora pré-iluminista
preocupava-se já com as mesmas questões sociais que incomodariam, alguns anos depois,
os teóricos da filosofia das Luzes e, portanto, acabaria percebendo a relação entre as
questões jurídicas e esses problemas, dando-se conta, assim, das conseqüências socialmente
danosas da fragmentação da estrutura jurídica do antigo regime. Também as soluções
pensadas no âmbito desta cultura jurídica reformadora pré-iluminista já caminhavam para o
mesmo sentido das reivindicações que viriam caracterizar o reformismo iluminista.
De tal maneira, na primeira metade do século XVIII, Ludovico Antonio
Muratori, um autor que, embora seja francamente reformador, dificilmente se poderia
classificar como iluminista em função de alguns instrumentos teóricos que utiliza, como a
referência aos evangelhos e à moral cristã, pôde, no entanto, antecipar muitas posições que
seriam posteriormente a marca do reformismo iluminista, às quais a filosofia das Luzes
daria, é claro, uma outra fundamentação mais de acordo com seus ideais racionalistas. Não
devemos esquecer, entretanto, que a obra de Muratori é marcada por um racionalismo
metodológico
35
. Todavia, esse racionalismo metodológico dividia espaço com seu
35
Stuart J. Woolf assim descreve a origem do método racionalista de Muratori: “Nonostante la
presenza del cerbero gesuita (che, tuttavia, al principio del Settecento, era ormai un animale
abbastanza tranquillo in confronto al passato), nuove idee cominiciarono a penetrare in Italia. Al di
là dei confini, l’analisi critica dei testi ecclesiastici condotta dalla congregazione di Saint-Maur
aveva cominciato a gettare qualche dubbio, anche all’interno della Chiesa, sulle tradizioni accettate
e aveva suscitato nuovi interessi per lo studio dei primi secoli di storia della Chiesa e del mondo
classico. Se Montfaucon non riuscí a stimolare la curisosità degli italiani per il mondo greco e se
l’interesse di Mabillon per la patristica no mise radici in Italia, una ‘scuola di Mabillon’ si sviluppò
nella penisola dopo la visita del grande benedettino nel 1685, una scuola che ebbe a capo il
benedettino Benedetto Bacchini, il quale entusiasticamente appoggiato dal bibliotecario Antonio
Magliabechi, si dedicò all’insegnamento del nuovo metodo critico, filologico, comparativo,
consistente nell’aplicazione della ragione alle ricerche erudite. I più grandi discepoli del Bacchini
42
catolicismo e não se converteria, assim, em um esquema onicompreensivo capaz de
afrontar as bases mais profundas de sua sociedade, nem em uma bandeira ideológica para
os confrontos sociais, como na época do Iluminismo. Mas, de qualquer forma, ele era
suficiente para garantir a seus escritos um caráter crítico com relação aos valores da
tradição, uma abertura para as inovações teóricas que vinham do exterior e, principalmente,
uma disposição para apontar a necessidade de mudanças, ainda que pequenas, como
solução para os problemas de sua época.
36
Atento aos inconvenientes causados por uma estrutura jurídica
fragmentada e confusa, Muratori encontrou no soberano a força necessária para dar alguma
organização e certeza ao direito. A análise das conseqüências socialmente danosas da
estrutura jurídica de sua época (que atesta sua abertura para a consideração de problemas
sócio-econômicos) e o recurso à ação reformadora do soberano levaram-no, para além de
um discurso meramente jurídico, a formar aquela imagem do príncipe, que se tornaria
dominante na segunda metade do século XVIII, segunda a qual ele deve assumir um papel
de reorganizador social, guiando sua ação segundo os ditames do interesse geral.
37
O título
furono Scipione Maffei e Ludovico Antonio Muratori, i quali mostrarono – nei loro studi eruditi ed
enciclopedici – come la nuova metodologia fosse applicabile non solo alla storia ecclesiastica (ivi
compreso il divertimento di dimostrare l’inesistenza di molti santi), ma anche alla storia civile, al
diritto e ad altri rami del sapere.” (WOOLF, Stuart J.; CARACCIOLO, Alberto; BADALONI,
Nicola e VENTURI, Franco. Storia d’Italia. Vol. 3. Dal primo Settecento all’Unità. Torino: Giulio
Einaudi editore, 1978, p. 59-60.).
36
“Nessuno meglio del Muratori impersonò queste nuove tendenze culturali. All’aprirsi del secolo i
suoi interesse erano già tipicamente enciclopedici: voleva pubblicare una rivista bibliografica che
attirasse l’attenzione degli italiani sui nuovi libri stranieri; defendeva la letteratura ‘moderna’ contro
gli ‘antichi’; era deciso a pubblicare una raccolta di fonti della storia d’Italia, come già ne
esistevano in altri paesi. Col passare dei decenni, il Muratori – profondamente colpito dalle amare
esperienze delle guerre – si rese conto in modo sempre piú chiaro delle anomalie e dei contrasti
esistenti fra gli Stati italiani, ma si convinse anche dei progressi compiuti dalla civiltà europea,
caratterizzati specialmente dall’uso della ragione ‘scientifica’ e dell’esperienza, contro l’astratta
logica tradizionale e la filosofia deduttiva degli scolastici. Profondamente religioso, timoroso delle
conseguenze che sarebbero derivate da un affidamento troppo assoluto nella ragione umana, il
Muratori oscillò tra una fiducia quasi fatalistica nella carità come unica risposta alle miserie di
questo mondo e la fede nelle riforme per il bene comune, in una classe dirigente piú colta, e
sopratutto in un principe consapevole delle sue responsabilità nei confronti del popolo.” (WOOLF,
Stuart J.; CARACCIOLO, Alberto; BADALONI, Nicola e VENTURI, Franco. op. cit., p. 61.).
37
Segundo Tarello, a ideologia reformadora representada por Muratori era apenas, digamos,
intrajurídica, pois não estava inserida em um projeto maior de renovamento social. Vejamos suas
palavras: “In Italia, nel decennio dopo il 1740, si ebbero due tentativi ufficiali di codificazione – a
Napoli ed in Toscana – e la la più nitida espressione della ideologia della codificazione tipica del
primo Settecento, e cioè l’opera del Muratori, sui Difetti della giurisprudenza. Dopo aver esaminato
43
das suas duas principais obras serve para atestar o quanto Muratori, em meio à sua piedade
cristã, estava consciente das necessidades sociais e dos mecanismos institucionais aptos a
dar a elas alguma resposta: Della pubblica felicità desenvolve o tema da felicidade pública
cuja promoção seria, a partir de então, apresentado pelo discurso político como a principal
tarefa do príncipe
38
; e Dei Difetti della Giurisprudenza constitui uma crítica ao sistema
jurídico do ius commune (o sistema jurídico do Antigo Regime), notadamente, à sua
quei tentativi e quello scritto avremo un’idea compiuta dell’ideologia della codificazione nella
prima metà del secolo; cioè di quell’ideologia che nell’introduzione si è designata come esigenza di
‘una qualunque codificazione’, o di una codificazione non funzionale a una riforma o rinnovamento
politico generale, ma limitata a una visione di mero rinnovamento giuridico. Si tratta cioè di un
tentativo che si svolge tutto a un livello per cosí dire sovrastrutturale , e il cui fallimento si riduce al
fallimento non tanto de una politica, quanto de una dottrina giuridica.” (TARELLO, Giovanni.
Storia... p. 207-8.). Assim, segundo ele, não haveria na obra de Muratori aquela abertura para os
problemas sócio-econômicos de que falamos. Na seqüência, ele afirma: “[...] quanto all’‘apertura
ai problemi ‘economico-sociali’ del partito rinnovatore sul piano giuridico, se può esservi qualcosa
di questo genere nel caso di Pompeo neri esperto di problemi agricoli e grande progettatore di
catasti, no si può certo vedere nulla di tutto ciò nel codino, o quantomeno prudentissimo, Muratori
[...]” (TARELLO, Giovanni. Storia... p. 208.). As opiniões de Daniel Frigo, das quais nos
aproximamos bastante, divergem muito do que afirma Tarello. Ela reconhece o caráter não apenas
jurídico, mas também social da atividade reformadora que o príncipe tem na obra de Muratori e
ainda liga-a às novas expectativas da sociedade civil, tratadas, na literatura política de então, pelo
nome de “bem-estar”. Segundo a autora: “Nello scritto del Muratori il principe si presenta nella sua
veste di ‘legislatore’, di soggetto politico cui è demandato il compito di ridisegnare la mappa del
vivere civile in accordo con le nuove attese dei sudditi e con le pressanti esigenze delle dinastie. Ma
si pone, soprattutto, come l’interprete esclusivo, assieme al filosofo che lo deve guidare in direzione
dei ‘lumi’, di quella ‘pubblica felicitá”, richiamata fin dal titolo, che è l’efficace sintesi delle nuove
finalità degli Stati. Il principe è ora un ‘principe-amministratore’, colui che governa l’interno assetto
sociale in funzione di un ‘benessere’ generale di cui sa farsi interprete, depositario e custode.”
(FRIGO, Daniela. op. cit., p. 19.). Assim a obra de Muratori seria, segundo Daniela Frigo, um
exemplo da substituição da velha imagem do príncipe enquanto o mediador e conservador de uma
ordem pré-existente (uma ordem estamental, é claro) para aquela outra em que ele é o artífice das
mudanças sociais. Vejamos as suas palavras: “Dall´immagine del principe “mediatore” degli
equilibri civili e dei rapporti di forza fra i ceti, siamo così pervenuti, con il Muratori, al modello di
un sovrano attivamente coinvolto nei meccanismi di governo della società, artefice dei mutamenti
istituzionali, creatore delle leggi, garante delle nuove finalità utilitaristiche ed economicistiche dello
Stato. Ciò che non muta, da um secolo all´altro, è la centralità della figura del principe in quanto
raffigurazione concreta dell´unità del corpo sociale.” (FRIGO, Daniela. op. cit., p. 20.).
38
“Il Della pubblica felicità del Muratori è un documento significativo dei temi e delle proposte
elaborate dalla cultura giuspolitica del tempo, annunciatore al tempo stesso di quelle che saranno le
idealità e i progetti che nel secondo Settecento confluiranno nel mito dell´‘assolutismo illuminato’.”
(FRIGO, Daniela. Principe, Giudici, Giustizia: Mutamenti Dottrinali e Vicende Istituzionali fra Sei
e Settecento. In COLAO, F. e BERLINGER, L. (org.). Iluminismo e Dottrine Penali. Milano:
Giuffrè, 1990, p. 18.).
44
incerteza, tal como farão os reformadores iluministas, limitando-se, ao contrário destes (que
pedirão a sua completa substituição), a propor apenas a sua correção.
39
SEÇÃO II – Economia e administração: o papel do Iluminismo na formação estatal da
segunda metado do século XVIII.
De tal forma, quando o Iluminismo chegou, por volta da metade do
século XVIII, em lugares como a península itálica, a Prússia, a Áustria, a Rússia, Portugal e
Espanha, haveria já os pressupostos e, em alguns casos (como no da Lombardia de
Muratori), os precursores da realização de uma aliança, ainda que tácita, entre os príncipes
e os setores sociais ascendentes que se interessavam por uma modernização funcional na
estrutura jurídica e, evidentemente, na estrutura burocrática em geral. A instalação da
filosofia das Luzes em todos esses lugares ofereceu os instrumentos intelectuais em que
essa aliança seria pensada. Na medida em que, como já dissemos, o processo de
centralização jurídica e administrativa implicaria em uma melhoria das condições de
investimento para os setores interessados em desenvolver atividades econômicas; na
medida em que essa centralização atendia, por si só, aos interesses autocráticos dos
príncipes; na medida em que o incremento da atividade econômica, propiciado por esse
processo de centralização absolutista, renderia conseqüências positivas para a própria
política de fortalecimento do soberano, tanto em relação ao plano interno quanto em relação
39
“Le accuse sempre più pressanti che vengono indirizzate alla scienza giuridica, spesso
provenienti dal suo interno, trovano una prima efficace sintesi nell´opera del Muratori: nonostante
non rappresenti um attacco all´intero sistema del diritto comune, ma solo ai suoi aspetti più incerti
ed arbitrari, e nonostante proponga più una correzione del sistema che um suo radicale
rovesciamento, Dei difetti della giurisprudenza suscita al suo apparire immediate reazioni in difesa
della scienza giuridica qui posta sotto accusa, reazioni che ben documentano della difficoltà di
scalfire il potere e il prestigio del sistema di diritto vigente, senza intaccare al tempo stesso quella
strutura sociale complessa ed articolata che ne costituiva la base d´appoggio.” (FRIGO, Daniela.
Principe, Giudici, Giustizia: Mutamenti Dottrinali e Vicende Istituzionali fra Sei e Settecento. In
COLAO, F. e BERLINGER, L. (org.). Iluminismo e Dottrine Penali. Milano: Giuffrè, 1990, p. 27.).
45
ao plano externo; na medida em que o desenvolvimento de uma burocracia principesca
centralizada demandaria um quadro funcional novo, recrutado entre o patriciado urbano e
as camadas burguesas desses Estados; na medida em que, em sua empreitada pelo
fortalecimento político, o príncipe precisaria contar com o apoio daqueles grupos sociais
interessados na sua proposta e precisaria formar um quadro administrativo (que seria
retirado desses grupos) para formar sua burocracia,
40
teríamos as bases para a realização de
uma coalizão social em torno da proposta absolutista. O desenvolvimento de uma economia
capitalista altamente fortalecida ao longo dos séculos precedentes, que culminaria, no
século XVIII, em uma enorme expansão de mercados e nos primeiros passos da revolução
industrial e a evidente conexão entre a pujança econômica e o poderio político-militar de
um Estado no instável e belicoso cenário internacional europeu de então são os fatores
centrais na determinação dos rumos das mudanças institucionais nos territórios
mencionados. A percepção, por parte dos soberanos, de que seus desígnios autocráticos
dependeriam do fortalecimento econômico interno e a percepção, por parte daqueles súditos
interessados no desenvolvimento das atividades econômicas, que qualquer salto econômico
mais ousado não poderia dispensar a ajuda de um poder político suficientemente forte,
como seria o de um monarca absoluto, puderam encaixar-se um no outro e, assim,
forneceram a base política sobre a qual se desenvolveria o fortalecimento absolutista dos
príncipes e o programa modernizador que o acompanhava.
A cultura iluminista começa a se desenvolver, na França, na primeira
metade do século XVIII e, durante a década de cinqüenta desse século, já tem formadas e
40
A vinculação do quadro administrativo aos interesses do poder dominante, tão essencial à sua
manutenção, conforme ressaltou Weber em suas teorias sobre os tipos ideais de dominação
legítima, é atestada para a época do absolutismo esclarecido em Portugal, por Hespanha: “Este
progressivo engrossamento do aparelho político-administrativo central faz aumentar os quadros do
funcionalismo estadual. Sejam quais forem as origens sociais deste funcionalismo e sejam quais
forem as ligações que ele continua a manter com os mecanismos clássicos de apropriação da renda
feudal (estes são os pontos tradicionais de abordagem da questão da burocracia, mas não os mais
fecundos), o que é certo é que a sua existência e alargamento faz crescer o número daqueles cuja
fonte de subsistência económica principal é este Estado em gestação. E que, se se coloca a questão
do fortalecimento (ou mais dramaticamente da solvência) financeiro do aparelho a que pertencem
não deixarão de sacrificar os interesses gerais do bloco feudal aos interesses particulares e
autónomos do Estado. É desta massa que se fazem homens como Tomé Pinheiro da Veiga,
Francisco de Lucena, o Conde de Castelo Melhor, o Marquês de Pombal e D. Rodrigo de Sousa
Coutinho; mas também, em ponto menor, centenas e centenas de burocratas e letrados.”
(HESPANHA, António Manuel. Para uma teoria da história institucional..., p. 55-6.).
46
definidas as suas principais bases. A partir de então, ela começa a se disseminar para outras
partes da Europa e do ocidente. Falamos em cultura iluminista porque em sua origem o
Iluminismo propunha-se a ser, e efetivamente foi, muito mais do que uma corrente ou
escola filosófica no sentido tradicional (e porque não dizer, no sentido que voltou a ter
hoje?). A penetração social e a amplitude que o Iluminismo ganhou na França do século
XVIII faziam dele um movimento cultural sem paralelos na história da filosofia.
41
Na
41
Essa amplitude social do Iluminismo respeitaria, evidentemente os limites impostos pelo
analfabetismo e estaria mais ou menos restrita à população urbana num contexto em que a maioria
das pessoas ainda vivia no campo. Um dos elementos mais importantes dessa difusão da cultura
iluminista para o tecido social foi emergência daquilo que Robert Darnton chama de público leitor:
“No século XVIII emergiu, na França, o que se poderia chamar de público leitor; a opinião pública
ganhou força; e o descontentamento ideológico jorrou, juntamente com outras correntes, para
produzir a primeira grande revolução dos tempos modernos.” (DARNTON, Robert. Boemia
literária e revolução: o submundo das letras no antigo regime. Tradução de Luís Carlos Borges.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 11.). Essa propensão a se espalhar por todo o conjunto
social deve ser bem compreendida. Não significa, de forma alguma, que todos os homens se
tornariam intelectuais como um Voltaire, um Holbach, mas que o clima de crítica se disseminaria
pelo tecido social (urbano, evidentemente). Segundo Darnton, depois da geração dos grandes
iluministas como Voltaire e D’Alembert uma onda de jovens escritores desejosos de entrar nos altos
círculos literários e, assim, fazer fama e fortuna, assolou Paris. Destes, poucos conseguiriam entrar
no seleto grupo daqueles que se favoreceriam do sistema de relações pessoais que compunha o
mundo das letras do antigo regime, mundo esse que, como quase tudo naquela época, era
organizado sob a base do sistema de privilégios. Assim quando o Iluminismo finalmente se
estabelecia entre a elite parisiense, graças ao trabalho da geração anterior, uma horda de literatos
excluídos dos altos círculos iluministas (esses já mais ou menos cooptados pelo antigo regime) se
dedicaria, para viver, a uma subliteratura popularesca altamente agressiva aos poderes constituídos
e de nível muitas vezes até pornográfico, através da qual eles dariam vazão ao rancor que tinham
pelo mundo das altas elites que os havia renegado e que os abandonava às situações sociais mais
humilhantes. Essa literatura, que se propagava sob a forma de libelos, foi um importantíssimo
elemento na formação cultural das classes mais baixas, e cumpriu a tarefa de predispô-las para
participar dos eventos revolucionários que colocariam fim ao antigo regime. “Para além da corte, e
abaixo dos pináculos da sociedade do salon, o ‘público geral’ vivia de rumores; o ‘leitor comum’
via a política como um esporte seleto e fechado, disputado por vilões e heróis mas desprovido de
temas – exceto talvez o de uma tosca luta entre o bem e o mal, ou entre a França e a Áustria.
Provavelmente lia os libelles como seu equivalente moderno vê televisão ou lê histórias em
quadrinhos ou revistas de fofocas, só que o francês do século XVIII não os punha de lado depois de
dar boas risadas; os vilões e heróis eram reais para ele. Lutavam pelo controle da França. A política
era folclore vivo. Assim, após se deleitar com os excitantes relatos de La gazette noire de doenças
venéreas, sodomia, adultério, ilegitimidade e impotência nas camadas superiores da sociedade
francesa, podia ficar ultrajado com a descrição de Mme. Du Barry, ‘passando direto do bordel para
o trono’. Propaganda desse tipo era mais perigosa que o Contrait social – rompia o senso de
decência que unia o público a seus governantes. Seu dissimulado caráter moralizante opunha a ética
do povo miúdo à de les grands: nesse sentido, apesar de suas obscenidades, os libelles eram
intensamente moralistas. Talvez até houvessem propagado a moral burguesa que veio a se impor
durante a Revolução. ‘Bourgeois’ pode não ser o termo apropriado, mas os petits que se insurgiram
contra os gros no ano II correspondiam a uma espécie de puritanismo gálico que se desenvolvera
47
medida em que, para os autores iluministas, a filosofia, identificada com a própria idéia de
razão, tinha por principal função iluminar as trevas em se encontrava o homem emerso da
Idade Média, dissipando assim todos os grilhões da ignorância e do preconceito, ela deveria
sair dos altos círculos intelectuais em que era cultivada com exclusividade e, assim, ganhar
as massas. Todavia, na importação do pensamento iluminista para outras partes da Europa
esse caráter de movimento cultural com propensão a se disseminar para todo o conjunto
social acaba sendo fortemente abalada. Na Itália, na Prússia, em Portugal o Iluminismo será
patrimônio de uma elite cultural materializada em acadêmicos, literatos, funcionários da
administração real, sobretudo aqueles dos altos escalões, e alguns burgueses ilustrados. A
razão disso está em que, na França, o Iluminismo, embora não possa ser reduzido a uma
mera expressão ideológica da burguesia, acabou tendo uma afinidade com essa classe a
ponto de ter se tornado, sob certo aspecto, uma bandeira ideológica para ela nos conflitos
contra os estamentos privilegiados. Esse processo, que se aprofundaria gradativamente ao
longo do século XVIII até chegar ao seu auge na revolução de 1789, radicar-se-ia nas
circunstâncias particulares da classe burguesa francesa, cada vez mais autônoma e cada vez
identificando-se menos com a situação política de sua nação. Assim a extrema importância
assumida pela burguesia na França do século XVIII deu ao Iluminismo um amplo espaço
social para se desenvolver. Ao contrário, naqueles Estados que não contavam com uma
classe burguesa com a mesma força e autonomia em relação ao conjunto da sociedade não
haveria o mesmo espaço social para que o Iluminismo se difundisse.
Na França, a existência de poderes intermediários nobiliárquicos que
incomodavam tanto a coroa quanto a burguesia colocou-os lado a lado na polêmica
antinobiliárquica setecentista. Alguns intelectuais iluministas franceses, como Voltaire e
Helvétius, se posicionariam a favor do fortalecimento do poder monárquico com a
esperança de que ele exercesse um papel modernizador, solapando os estamentos
privilegiados. A insensibilidade da coroa francesa para se posicionar a favor das reformas,
conciliando-as com seus desígnios absolutistas, motivada talvez por uma situação
relativamente cômoda experimentada nos anos precedentes (quando o Estado francês, ao
lado da Inglaterra, sustentava o status de principal potência européia) que aparentemente
bem antes de 1789. Crédulos acerca das tramas e dos expurgos do Terror, também haviam
candidamente assimilado as lendas dos antigos libelles.” (DARNTON, Robert. op. cit., p. 203-4.).
48
continuava a exercer seus efeitos sobre a mente do rei e de seus principais conselheiros
mesmo depois de ser abalada pela derrota na guerra dos sete anos e pelas crises das
finanças públicas dos anos do governo de Luis XVI, faria com a burguesia francesa (de
longe a mais forte e autônoma do continente Europeu) abandonasse as esperanças outrora
depositadas no absolutismo e resolvesse fazer ela própria as mudanças desejadas.
42
O
Iluminismo, evidentemente, acompanharia esse movimento e converter-se-ia na filosofia
que prepararia a revolução. Nos outros Estados do continente europeu, ao contrário, a
situação de atraso econômico, que poderia comprometer seriamente os projetos de
fortalecimento político das dinastias, faria com que elas se posicionassem mais
decididamente a favor das reformas.
43
Essa situação de atraso econômico ainda possui um outro aspecto
relevante. Enquanto na França, do ponto de vista econômico, as reformas reivindicadas
tinham por finalidade apenas abrir o caminho para o desenvolvimento de forças econômicas
já existentes, naqueles outros países, ao contrário, seria necessário que o Estado criasse, a
partir de cima, as forças econômicas. Em outras palavras, o próprio Estado deveria agir
sobre a sociedade civil, intervindo nela, regulando-a e impondo, do alto, o dinamismo
econômico necessário para a produção de riquezas. Assim, diferentemente do que
aconteceu na França, nesse contexto o fortalecimento do poder monárquico e a sua
participação no processo de desenvolvimento econômico eram indispensáveis. Qualquer
programa de eficiência econômica implica em um programa de racionalização
instrumental, entendendo por razão instrumental aquela que articula meios segundo fins. O
desenvolvimento do capitalismo impunha por si só, através da coação exercida pela
competição no mercado, uma racionalização de tal tipo, na medida em que tornava
necessário produzir com menor custo (o que implica em maior eficiência) para, assim,
42
O grau de vinculação da coroa francesa à nobreza e o fato de que essa nobreza ainda detinha
enorme poder político e social, o que faria com a coroa enfrentasse duras batalhas caso viesse a
deflagrar um enfretamento mais radical contra ela, são certamente a causa dessa mencionada
insensibilidade.
43
VALSECCHI, F. L’assolutismo illuminato in Europa... ; KLINGENSTEIN, Grete. Riforma e crisi: la
monarchia austriaca sotto Maria Teresa e Giuseppe II fra XVII e XVIII secolo. In SCHIERA,
Pierangelo. La dinâmica statale austríaca nel XVIII e XIX secolo. Bologna: Società editrice il
Mulino, 1981.
49
poder oferecer produtos a um preço menor.
44
Na França do século XVIII uma economia
capitalista cada vez mais desenvolvida tentava impor à estrutura do Estado, especialmente
no que dizia respeito à sua administração financeira, um grau de racionalização que
correspondesse à suas necessidades. É evidente que a situação seria diferente em lugares
que não haviam alcançado o mesmo nível de desenvolvimento econômico. Assim enquanto
na França temos uma economia racionalizada que tenta impor uma racionalização à
burocracia estatal, na Prússia, na Áustria, em Portugal temos uma burocracia que se
racionaliza para impor à economia um grau de racionalização necessário para garantir a
eficiência na produção de riquezas. De tal forma, a política de desenvolvimento econômico
que deveria necessariamente acompanhar o desejado fortalecimento institucional no âmbito
dos projetos absolutistas da segunda metade do século XVIII obrigava a uma racionalização
que partia do alto, do Estado e de sua burocracia, e atingisse a sociedade.
45
Podemos dizer,
44
Max Weber ressaltava o poderoso efeito racionalizador que o mercado exercia sobre o
desenvolvimento social.
45
Referindo-se ao absolutismo português, António Manuel Hespanha põe em relevo a sua “política
de estímulo económico interno” e a conseqüente racionalização tanto da “actividade social” quanto
do “aparelho de poder”. Vejamos a suas palavras: “Depois, a sua política de estímulo económico
interno (sobretudo quando os reditos da expansão declinavam) – correntemente invocada sob a
designação de ‘mercantilismo’; com efeito, tal política não era, como muitos parece suportem, uma
política desenvolvimentista no sentido contemporâneo – ou seja, uma política em que a riqueza dos
súbditos fosse um objectivo em si – mas uma política dirigida ao objectivo fiscal e político do
aumento da base tributária. Claro que esta política também tinha consequências contraditórias com
o sistema social feudal: muitos dos incentivos económicos consistiam em isenções ou privilégios
que rompiam, quer as malhas dos mecanismos de cobrança periférica da renda, quer as hierarquias
da pirâmide social feudal e da ideologia correspondente; e, num período final, não se hesitou
mesmo em sacrificar aos objectivos fiscais financeiros da corôa elementos centrais dos mecanismos
de cobrança da renda feudal – v.g., as propostas do Antigo Regime setecentistas e oitocentistas no
sentido do alívio ou mesmo extinção dos forais. São ainda sobretudo objectivos desta natureza que
comandam os esforços de racionalização da actividade social e de racionalização do próprio
aparelho de poder que ocorrem durante os sécs. XVII e XVIII, segundo ciclos mais ou menos
decalcados nos ciclos de expansão ou de contração das receitas públicas.” (HESPANHA, António
Manuel. Para uma teoria da história institucional..., p. 54.). Nessa passagem Hespanha ressalta que
a política de fomento ao desenvolvimento econômico não tinha no aumento da riqueza dos súditos
um objetivo em si. Isso está perfeitamente correto quando partimos, evidentemente, do ponto de
vista da própria coroa e de seus funcionários. Entretanto, se pensarmos do ponto de vista dos
próprios súditos interessados no desenvolvimento de atividades econômicas a coisa se inverte, pois
para eles o fortalecimento da coroa é que não era um objetivo em si, mas apenas um meio
necessário para que fossem criadas as condições imprescindíveis para a expansão econômica que
possibilitaria o aumento da riqueza pessoal de cada um deles. Temos então uma coalizão de
interesses em que o monarca implementa políticas que favorecem o desenvolvimento econômico de
certas parcelas de seus súditos para poder aumentar a arrecadação e financiar seus projetos de
fortalecimento institucional e em que os súditos favorecidos apóiam esses projetos de
50
portanto, que esse processo de racionalização que era imposto a partir do governo central é
uma característica inerente às condições históricas em que se desenvolveu o absolutismo
nesses países que, na segunda metade do século XVIII, disputavam espaços entre si e com
as potências mais avançadas da Europa.
O fato de o projeto absolutista nesses países conter esse programa de
agressiva racionalização social deu oportunidade para que o Iluminismo, com seu ideal de
racionalidade, se identificasse com ele. Além disso, a constatação de que, na ausência de
uma burguesia forte e autônoma como a francesa, a coroa era a única força realmente capaz
de implementar reformas que propiciassem algum progresso social acabava não deixando
alternativas a qualquer um que se identificasse com os ideais iluministas. O fato de, dadas
as condições sócio-econômicas, muitos dos intelectuais iluministas desses Estados serem
membros de um patriciado ilustrado de onde se recrutariam os membros para compor o
quadro administrativo que funcionaria em dependência direta da coroa, em substituição à
antiga administração estamental, era evidentemente um outro fator de identificação desses
intelectuais com o projeto absolutista. Assim os iluministas desses países colocarão seus
serviços à disposição da elaboração do projeto absolutista, seja na condição de puros
intelectuais seja na condição de funcionários do quadro administrativo régio. Por outro
lado, a implementação desse ousado projeto político de modernização autocrática
demandava, necessariamente, a colaboração de pessoas com qualificação suficiente para
pensar suas estratégias e para compor o quadro administrativo de uma burocracia que
funcionasse com a eficiência desejada. De tal forma, a colaboração dessas camadas
intelectuais no projeto absolutista era, para os monarcas, indispensável. Assim na
implementação desse projeto político, podemos dizer que temos uma espécie de coalizão
entre os setores intelectuais, dentre os quais se destacam aqueles que se inspiravam na
filosofia das Luzes, e os monarcas. É isso que nos permite falar em um absolutismo
esclarecido.
fortalecimento institucional na medida em que estão sendo favorecidos pelas políticas econômicas
nos quais ele se baseia. O fato de essas políticas econômicas acabarem prejudicando certos setores
sociais, como parte da nobreza (como mostra Hespanha), não impediu que, no plano teórico, esse
processo fosse apresentado como uma coalizão dos interesses da coroa não apenas com os
interesses de certos setores da sociedade (ainda que majoritários), mas com os interesses do próprio
conjunto da sociedade. Assim na literatura política da época a promoção da felicidade pública e do
bem-estar dos súditos começam a ser apresentados como funções do soberano, como tarefas que
cabia a ele realizar. Voltaremos a falar disso mais adiante.
51
Podemos dizer, assim, que o absolutismo esclarecido é a fusão de
interesses entre os setores intelectuais iluministas e os monarcas absolutistas e, portanto,
entre a filosofia iluminista e a proposta absolutista. Evidentemente, quando se fala em
absolutismo esclarecido não devemos pensar em príncipes que, puramente inspirados pelo
espírito de altruísmo filosófico e pelo humanismo que resplandecia na filosofia das Luzes,
resolviam governar conforme a razão, implantando, a partir do trono, medidas que
tendessem a proteger e engrandecer a dignidade humana de seus súditos com o único
intuito de assim fazer.
46
A afinidade entre os filósofos iluministas e o projeto do
absolutismo monárquico baseava-se no fato de que ambos estavam interessados em um
programa de racionalização social. Mas enquanto a demanda por racionalização que partia
dos intelectuais iluministas tinha origem em idéias filosóficas importadas da França e,
evidentemente, na elaboração de suas necessidades locais feita com esses instrumentais
teóricos, a demanda por racionalização que partia das dinastias de cada Estado ancorava-se,
sobretudo, em necessidades bem práticas, referidas à luta pelo poder tanto no cenário
interno quanto no externo.
É claro que a idéia de monarcas pessoalmente ilustrados e esclarecidos
não deve ser descarta totalmente. Quase todos os monarcas que, na segunda metade do
século XVIII, implementariam o processo de centralização do poder político em suas mãos
possuíam uma sólida formação intelectual e um contato profundo com a literatura
iluminista. Catarina II da Rússia e Frederico II do Prússia são dois excelentes exemplos,
pois além de terem lido os autores do iluminismo francês, acabaram tendo sólidas relações
com alguns deles. O vínculo pessoal desses soberanos com o Iluminismo, no entanto, deve
ser bem analisado. Em primeiro lugar, a filosofia iluminista, com seu caráter racionalista
radical e com a denúncia do prejuízo que as superstições e os preconceitos podem trazer,
46
Mario Cattaneo caracteriza desta forma o absolutismo esclarecido: “Secondo la dottrina
dell’assolutismo illuminato il monarca pone il proprio potere, che ha sempre carattere assoluto, e la
cui assolutezza è anzi necessaria per raggiungere direttamente il proprio fine, al servizio della
felicità e del benessere di sudditi; il potere sovrano non è più, quindi, fine a se stesso, ma ha uno
scopo di utilità comune ed è vòlto all’attuazione di riforme. In un simile ordine di idee Federico II
considerava il sovrano (e quindi se stesso) come ‘il primo servitore dello Stato’.” (CATTANEO,
Mario. La filosofia della pena nei secoli XVII e XVIII. Ferrara: De Salvia Editore, 1974, p. 93.).
Essa caracterização está certa quando falamos da forma como a fusão entre os ideais iluministas
com a proposta absolutista era pensada e apresentada pelos autores do século XVIII. É bastante
superficial, entretanto, quando tentamos entender o que realmente aconteceu nesse processo de
colaboração entre a filosofia iluminista e a proposta absolutista.
52
pareceria extremamente apropriado para qualquer um que intentasse governar um Estado de
forma mais eficiente, eliminando os contratempos provocados por irracionalidades de
todas as espécies (que poderiam obscurecer as verdadeiras relações entre meios e fins); em
segundo lugar, os avanços teóricos conseguidos no interior do pensamento iluminista,
como, por exemplo, aqueles da ciência econômica dos fisiocratas, poderiam conter algo de
útil para o governo de um Estado; em terceiro lugar, o caráter anticlerical do Iluminismo
parecia conveniente numa situação em que o poder político da Igreja católica tanto poderia
atrapalhar os desígnios absolutistas do monarca; em quarto lugar, a imagem de um monarca
esclarecido possui um enorme apelo carismático o que, pensando em termos weberianos,
pode lhe garantir uma legitimação para sua pretensão de acúmulo de poder, sobretudo em
face daqueles setores intelectuais cuja colaboração para seus projetos políticos seria
indispensável. Não analisaremos aqui os componentes pessoais que poderiam levar tal ou
qual monarca a se interessar pelo desenvolvimento intelectual. O fato de o Iluminismo se
apresentar politicamente dócil em relação à coroa
47
e de apresentar tantas características
que poderiam favorecer um projeto político de modernização autocrática, como o desses
absolutismos da segunda metade do século XVIII, eram motivos suficientes para levar os
monarcas interessados, ao menos os que tivessem sensibilidade e disposição pessoal para
tanto, a ser aproximar da cultura iluminista. Assim na construção de uma hegemonia social
pró-absolutista a assimilação pessoal de elementos que compunham a filosofia iluminista
por parte do monarca acaba servindo como um meio de reforçar seus laços de identificação
com os setores cuja colaboração lhe seria preciosa.
A profunda relação estabelecida entre a burguesia e o Iluminismo em
função das condições sociais da França (e que tende a diminuir na medida em que nos
afastamos desse seu país de origem) fazia com que a racionalidade da filosofia das Luzes
fosse influenciada pelo modelo de racionalidade da organização capitalista dos
empreendimentos econômicos. É claro que, por sua vez, os esquemas burgueses de
pensamento vão também sofrer influência das elaborações intelectuais da filosofia
iluminista que, evidentemente, possuíam diversas fontes e, portanto, não pode ser reduzida
47
Isso é, em geral, válido também para a França, onde o Iluminismo como um todo só tomaria
aquele caráter politicamente mais radical e subversivo apenas nas vésperas da revolução de 1789,
quando a indisposição da coroa para proceder às reformas reivindicadas não deixaria alternativa à
burguesia senão tomar ela própria o poder político. É certo, entretanto, que tendências mais radicais
se manifestavam no seio do Iluminismo francês desde bem antes.
53
a uma mera expressão da consciência de classe da burguesia, ainda que tenha sido isto
também. O modelo de racionalidade dos empreendimentos capitalistas, que Weber
chamaria de racionalidade formal, é a racionalidade calculatória que articula os meios
adequados para os fins pré-estabelecidos mas que é incapaz de estabelecer um critério para
se julgar a conveniência dos fins propostos.
48
Essa seria, talvez, a origem daquele elemento
instrumentalista da racionalidade iluminista, tão enfatizado pela crítica filosófica do século
XX, sobretudo a da Escola de Frankfurt. Podemos dizer, portanto, que aquela racionalidade
de meios e fins que vinha se desenvolvendo desde o início da modernidade encontrava sua
expressão mais desenvolvida tanto na racionalidade iluminista, onde o elemento lógico-
matemático do cartesianismo era combinado com a observação e a experimentação
apregoadas pelo empirismo, quanto na racionalidade calculatória dos empreendimentos
capitalistas.
Entretanto, o Iluminismo não se reduzia apenas a uma racionalidade
instrumental que estaria a serviço do planejamento da dominação. Ao lado desse
componente, o Iluminismo possuía um marcante apelo emancipatório que se fundamentava
na idéia de que a racionalidade (individual) era fonte de uma autonomia que deveria ser
respeitada. Esse aspecto emancipatório do Iluminismo dizia respeito ao jugo das
superstições, das tradições inquestionáveis, dos dogmas, da ignorância, mas manifestava-se
também sob a forma de ideais democráticos e liberais, tais como tolerância, igualdade,
soberania popular, além de estar na origem do discurso sobre os direitos humanos. As
relações entre esses dois aspectos da racionalidade iluminista são bastante complexas.
Parece-nos que, segundo os parâmetros e pressupostos a partir dos quais eram trabalhados
pelos autores setecentistas, ora eram paralelas, ora complementares e ora estavam em
conflito. A revisão habermasiana das teses originais da Escola de Frankfurt leva a uma
interessante interpretação sobre essas relações. Na visão de Habermas, há uma
48
A racionalidade formal, em Weber, é a racionalidade com relação a fins, opondo-se assim à
racionalidade material, que se caracteriza como uma racionalidade com relação a valores.
Segundo Weber, haveria um eterno conflito entre elas na medida em que uma não pode se resolver
na outra. Com o processo de desencantamento do mundo e a respectiva dissolução da
universalidade dos valores (o fenômeno que Weber chamava de politeísmo dos valores) a
racionalidade formal vai progressivamente ganhando maior espaço até se tornar a marca principal
da modernidade ocidental. O progresso desenfreado da racionalização formal dá origem ao
fenômeno da jaula de ferro da burocratização, tido por Weber como um destino praticamente
inafastável do mundo moderno.
54
sobrepujação da esfera emancipatório-comunicativa pela esfera operacional-
instrumentalista (ou, nas palavras de Habermas, uma colonização do mundo da vida pelo
sistema). Em sua filosofia, Habermas procurou, através do conceito de razão comunicativa,
resgatar esse aspecto emancipatório da modernidade, que teria restado como uma mera
promessa não cumprida. A tese de Habermas segundo a qual o aspecto emancipatório ficou
para segundo plano em relação ao aspecto instrumental da racionalidade moderna é uma
constatação óbvia. Habermas, entretanto, não dedica muito à análise das razões que
levaram isso a acontecer.
Não faz parte dos objetivos do presente trabalho entender quais as razões
que levaram a esse fenômeno. Todavia, há uma constatação interessante que, quanto a isso,
devemos fazer. A adesão dos intelectuais iluministas ao processo de desenvolvimento
daquele absolutismo monárquico da segunda metade do século XVIII colocou aquele
componente instrumentalista da racionalidade iluminista a serviço da solução de seus
problemas econômicos e institucionais. Isso significa que aquele aspecto instrumentalista
forjado em parte sob a inspiração do modo de produção capitalista e, portanto, sob
inspiração da racionalidade do indiduo burguês, caracterizada por uma apropriação
teórica da realidade meramente calculatória de meios e fins, estaria sendo posto em
funcionamento em lugares em que a burguesia não exercia um papel político preponderante
e nem assumia a vanguarda do desenvolvimento econômico. Assim a participação de
pensadores inspirados em parâmetros iluministas na elaboração das políticas de
reestruturação institucional e de desenvolvimento econômico garantiria que algo daquela
racionalidade burguesa estivesse presente nos projetos absolutistas da segunda metade do
século XVIII. Os funcionários da burocracia centralizada cumpririam o papel de
planejamento que a burguesia cumpria nos locais onde a sociedade civil possuía mais força
e mais autonomia em face do Estado. Mas o compromisso com o projeto absolutista fez
com que o Iluminismo, ao contrário do que aconteceu na França, tivesse que deixar seus
ideais liberais e democráticos para segundo plano. A necessidade de contar com o poder
monárquico como força modernizadora e como agente do desenvolvimento econômico
provocou, no caso de países como Prússia, Áustria, Portugal, etc., a negligência com o
55
aspecto emancipatório do Iluminismo. Nesse contexto, os sonhos democráticos e liberais do
Iluminismo teriam de ficar postergados.
49
Esse tema da presença de uma racionalidade instrumental de origem
burguesa no funcionamento da burocracia dos países do absolutismo tardio do século XVIII
constitui um interessante tema de sociologia do conhecimento. Alguns autores apontam um
espírito burguês na burocracia do Estado absolutista já no século XVII. A base para essa
afirmação é a tese segundo a qual a estruturação administrativa do absolutismo do século
XVII contou com o recrutamento de quadros no seio da burguesia. Outros autores,
entretanto, contrapõem a essa hipótese de um espírito burguês na burocracia seicentista a
afirmação de que a inserção nos quadros funcionais do Estado era um mecanismo de
nobilitação. Assim o ideal de vida e, podemos acrescentar, a visão de mundo desses
membros da burguesia que penetram no corpo burocrático passaria a incorporar os
elementos da mentalidade nobiliárquica e, assim, o papel deles nos acontecimentos
49
As afirmações de Mario Cattaneo sobre essa questão são bastante problemáticas. Diz ele o
seguinte: “Dal punto di vista storico l’assolutismo illuminato si è retto su un equilibrio piuttosto
precario, poichè ha potuto sussistere finchè è durata l’alleanza fra i sovrani riformatori e la filosofia
dei lumi; tale concezione e tale modo di governo non potevano, evidentemente, costituire un punto
di arrivo, ma hanno rappresentato un’interessante fase di passaggio tra l’assolutismo e il
liberalismo, che ha espresso uno dei momenti politici dell’iluminismo.” (CATTANEO, Mario. op.
cit. , p. 93-4.). Uma análise detida das fontes literárias nos permite ver que, em geral, nos lugares
em que o absolutismo conseguiu absorver as reivindicações econômicas das classes ascendentes e
dos setores intelectuais que as representavam, nomeadamente os intelectuais iluministas, as idéias
liberais e democráticas, muito embora continuem agindo nas entrelinhas desses escritores, deixam
de aparecer como reivindicações até à dissolução completa da filosofia iluminista. De tal maneira, a
aliança entre os autores iluministas e o absolutismo perdurou até que a filosofia iluminista deixasse
de existir. Parece-nos, quando analisamos as obras dos iluministas que produziram no contexto
político do absolutismo esclarecido, que eles realmente esperavam que o absolutismo, nessa versão
iluminística, fosse uma passagem para as formas políticas que estavam mais de acordo com seus
princípios filosóficos. Entretanto, quando olhamos com maior cuidado o desenvolvimento histórico,
podemos ver que essa esperança naufragou. Instituições políticas liberais demorariam muitos e
muitos anos para se implantar nas regiões onde, no século XVIII, o fenômeno do absolutismo
esclarecido se verificou. Evidentemente, o programa de modernização econômica do absolutismo e
o estabelecimento de estruturas burocráticas estatais sobre uma base nacional permitiu que, mais à
frente, o liberalismo democrático viesse a se instituir. Mas isso é verdade tanto para os absolutismos
ditos esclarecidos quanto para aqueles que não se encaixam nessa categoria. Além do mais, não
temos aí, de maneira alguma, uma simples continuidade. Ao contrário, há uma profunda ruptura,
mesmo no caso do absolutismo esclarecido. O caso da Prússia é bastante exemplificativo. O
absolutismo esclarecido prussiano, que esteve entre os mais eficientes, deixou uma herança política
antiliberal que perduraria durante todo o século XIX e só seria sobrepujado graças à derrota ale
na primeira guerra mundial.
56
institucionais da época acabaria sendo conservador.
50
Estas observações críticas feitas à
teoria do espírito burguês na burocracia do século XVII parecem não ter a mesma força
quando analisamos o absolutismo tardio do século XVIII. Uma importante diferença entre
os dois casos é que a penetração de membros da burguesia nas estruturas burocráticas
estatais dava-se, no século XVII, sobretudo pela compra de ofícios, o que reproduzia no
âmbito da máquina estatal a divisão estamental da organização política, enquanto que no
processo de construção da estrutura administrativa absolutista do século XVIII o
recrutamento dos funcionários da coroa é feito sob a forma do comissariado, no qual o
burocrata mantém-se em dependência pessoal com relação ao príncipe. Além disso, a
diferença do sistema político global que há entre o absolutismo do século XVII e o
absolutismo tardio do século XVIII criaria um ambiente muito mais favorável à
disseminação de elementos ideológicos burgueses na estrutura burocrática.
51
O absolutismo
50
Essa é a posição de J. Vicens Vives: “Em todo o caso, as situações históricas concretas permitem
iluminar uma temática que não se aprende de forma exacta com a afirmação precedente. Em
primeiro lugar, será necessário definir de que tipo de burguesia urbana já muito avançada, cujo
máximo incentivo consiste na sua fusão com os núcleos aristocráticos pelo sangue ou pelo
património. Neste caso, o sentido do privilégio e da preeminência – derivado do mundo feudal –
penetra no seio da administração, contribuindo para dar-lhes um aspecto feudal, de que já falamos.
O mais provável é que a burguesia que detém esses cargos e se vincula a eles tenha sido
precedentemente assimilada pela classe nobiliária, pelo menos quanto aos ideais de vida. Sobre
estes particulares seria interessante desenvolver uma investigação sociológica comum a vários
países. Os resultados dos estudos empreendidos até hoje parecem demonstrar que a burguesia,
quanto à origem do pessoal burocrático, não teve a força revolucionária que se lhe atribui. O exame
detalhado das grandes crises do Estado nos países do Ocidente europeu entre 1640 e 1660 parece
demonstrar que o pessoal administrativo de origem burguesa se limitou a servir prudentemente a
causa reacionária dos grandes proprietários aristocráticos. É muito provável que esta afirmação
tenha ecos diversos segundo os países em que nos situamos. Neste sentido, estamos de acordo com
Mousnier, na sua polémica com Porshnev, quando afirma que não se pode aplicar à França do séc.
XVII o modelo único que o historiador russo propugna quando qualifica o Estado feudal-
absolutista; mas não acreditamos que possa aplicar-se a todos os países a sua hipótese de trabalho
com o predomínio do espírito burguês na burocracia do séc. XVII.” (VICENS VIVES, J.. A
estrutura administrativa estadual nos séculos XVI e XVII. Tradução de António Manuel Hespanha.
In HESPANHA, António Manuel (org.). Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p. 222-3.).
51
António Manuel Hespanha ressaltou a importância da permeabilidade do sistema de poder para
que os interesses sociais originais de seus membros pudessem exercem algum papel relevante:
“Claro que a presença maciça de indivíduos de origem burguesa – com a sua visão dos fenómenos
sociais e com a sua consciência dos fenómenos políticos – pode contribuir para uma mais forte
presença das perspectivas e dos interesses burgueses nos corredores do poder. Só que isto não basta
para que estes pontos de vista se tornem politicamente eficazes; para que isto aconteça é preciso que
o sistema de poder seja permeável a essas perspectivas e a esses interesses.” (HESPANHA, António
Manuel. Para uma teoria da história institucional..., p. 80-1.).
57
tardio do século XVIII, na medida em que teve de desenvolver uma política de
racionalização instrumental da máquina administrativa para adquirir a eficiência necessária
para poder enfrentar os problemas relativos ao atraso econômico, que demandavam uma
política de intervenção e direcionamento, criaria um ambiente favorável para que os
membros oriundos de vários setores sociais, entre eles o patriciado urbano, mas que tinham
sido educados na cultura do Iluminismo, pudessem dar vazão a alguns dos elementos de sua
formação ideológica quando adentrassem no quadro administrativo estatal. Por um outro
lado, a forma de recrutamento destes funcionários os colocava em dependência pessoal em
relação ao príncipe e, assim, não apenas se diminuía o impacto de motivos nobiliárquicos
em sua atuação, mas também se estimulava o desenvolvimento daquele aspecto racional-
instrumental da cultura iluminista em que tinham sido formados. Assim podemos falar em
uma deterioração ideológica dos ideais iluministas no processo de absorção dos
representantes da filosofia das Luzes nos quadros administrativos absolutistas, mas esta se
refere tão-somente aos ideais liberais e democráticos.
52
Como já dissemos, a política de modernização econômica implementada
pelos projetos políticos absolutistas como parte central de seu desenvolvimento autocrático
além de cumprir o objetivo de produzir as riquezas que, por intermédio da tributação,
sustentariam o fortalecimento institucional do Estado ainda servia como forma de angariar
apoios políticos internos na medida em que beneficiaria os interessados no
desenvolvimento de atividades econômicas. Mas o fato de a modernização econômica
causar, de certa forma e sob certa perspectiva, um benefício geral para a sociedade (e não
apenas para aqueles grupos diretamente interessados) fez com que a idéia de “felicidade
pública” surgisse no discurso político pró-absolutista. Assim o “bem-estar” social
(identificado naquele contexto com a abundância de bens materiais) produzido pela
52
Tarello ressalta a importância do fato de que os iluministas alemães eram em geral funcionários
do soberano absolutista: “In particolare, ocorre tener conto del fatto che la cultura giuridica che
viene detta ‘illuministica’, in una particolare area culturale, quella germanica, è (quanto meno nei
grandi Stati) la cultura giuridica dei sovrani e dei loro funzionari, e si pone al servizio di
un’operazione di riorganizzazione politica ad opera di chi detiene, e conserva, o, piú stesso,
incrementa il potere: in modi assai diversi, per la verità, nei due paesi in cui si verificano le grandi
codificazioni, cioè la Prussia e l’Austria; qui la cultura ‘illuministica’ non si diversifica, nei suoi
maggiori rappresentanti, dalla cultura giuridica tecnica. In particolare, con la fortuna della scuola
wolffiana, nell’area germanica i ‘lumi’ e la ‘ragione’ si identificano con le ragioni dell’assolutismo,
e l’illuminismo o ‘rischiarimento’ (Aufklärung) si manifesta come ideologia dei (e da) funzionari:
sono i funzionari della classe dei lumi.” (TARELLO, Giovanni. Storia... p. 226.).
58
dinamização da economia seria agora o fator de legitimação do poder absoluto do príncipe
e o seu interesse começaria a ser apresentado como idêntico ao interesse da própria
sociedade.
53
Essa fusão entre os interesses dos súditos com o dos soberanos foi apresentada,
por exemplo, por Frederico II da Prússia em sua obra intitulada O Anti-Maquiavel.
As questões econômicas eram o ponto de partida central dos setores
sociais que reivindicavam reformas. Entretanto, a participação do Iluminismo na elaboração
teórica das necessidades locais fazia com que o rol de reformas esperadas do soberano,
partindo das questões econômicas, se expandisse em direção a áreas que tinham uma
relação menos direta ou, no mínimo, menos evidente com o domínio econômico, mas que
estavam de acordo com os princípios da filosofia iluminista. Muitas dessas reformas que
não atingiam diretamente o domínio econômico acabariam conquistando a simpatia dos
soberanos na medida em que demonstravam a sua utilidade, que muitas vezes era até
mesmo de ordem econômica, ainda que em uma relação menos imediata. A instrução
pública, instituída por Maria Teresa da Áustria, é um excelente exemplo. Um outro bom
exemplo, de particular interesse para nós, e a reforma do sistema penal, em especial, a
mitigação das penas. A filosofia iluminista tratou com atenção o problema jurídico-penal,
fazendo severas críticas aos elementos característicos do direito penal do antigo regime e
propondo uma série de medidas tendentes a racionalizá-lo. Mesmo tendo uma relação
menos forte e imediata com as questões econômicas, as reformas penais foram levadas a
cabo, por exemplo, na Prússia, na Áustria e na Toscana. Se excluirmos a participação dos
intelectuais iluministas, a pressão dos setores sociais interessados em uma modernização
econômica dificilmente teria levado, por si só, a uma reforma do sistema penal tal como
verificamos. Para que isto tivesse lugar, foi necessário que as idéias filosóficas cumprissem
seu papel. Evidentemente, a voz dos filósofos só se fez ouvir porque estava conectada com
as forças sociais nas quais o soberano se apoiaria em sua marcha pela ampliação de seu
poder político.
Mencionamos à cima que a situação de relativo atraso econômico em
que se desenvolveram os absolutismos da segunda metade do século XVIII, além de todas
aquelas implicações que já apontamos, ainda significava que o Estado deveria agir na
dinamização da economia interna para que ela pudesse produzir as riquezas necessárias à
53
FRIGO, Daniela. op. cit..; ASTUTI, Guido. O Absolutismo Esclarecido em Itália...
59
sustentação de seus projetos de fortalecimento institucional. Isso implicava necessariamente
em uma política de intervenção e dirigismo por parte da estrutura burocrática estatal sobre o
corpo da sociedade.
54
Diferentemente do que aconteceu na França e na Inglaterra, onde o
dinamismo econômico interno já vinha sendo produzido ao longo de muitos anos de
desenvolvimento da economia capitalista em um processo em que o Estado teria um papel
relevante, mas não o assumiria como uma de suas tarefas principais, naqueles outros
Estados, tais como Prússia, Áustria e Portugal era preciso, ao contrário, que o Estado
atuasse de forma mais enfática e decida para que esse dinamismo econômico surgisse.
55
De
tal maneira, tornava-se necessário que a burocracia se racionalizasse para atingir a
54
Devemos lembrar aqui o caráter problemático da aplicação da distinção entre sociedade civil e
Estado no antigo regime europeu. Vejamos, sobre essa questão, António Manuel Hespanha:
Carácter globalizante dos mecanismos do poder ou, utilizando uma forma mais tradicional,
confusão entre autoridade e propriedade, pluralismo político e, consequentemente, indistinção entre
‘Estado’ e ‘sociedade civil’ são, deste modo, os traços estruturais do sistema político e institucional
pré-revolucionário, traços cuja consideração a nível sociológico, historiográfico e, até, político, é
importante a vários títulos.” (HESPANHA, António Manuel. Para uma teoria da história
institucional..., p. 36.). Uma plena distinção entre sociedade civil e Estado só vai existir no Estado
liberal, assim como uma plena indistinção entre ambos só existiu nos períodos mais arcaicos do
desenvolvimento do Estado moderno. Entre esses dois pólos há, evidentemente, um período
intermediário. O processo de separação entre sociedade civil e Estado baseia-se na progressiva
expropriação, realizada por parte da coroa, dos meios administrativos que pertenciam às ordens de
poder intermediárias, sobretudo a nobreza, e na progressiva constituição, impulsionada pela
economia capitalista, de uma zona diferenciada (a sociedade civil) que criava pouco a pouco uma
lógica própria de funcionamento e que ansiaria, assim, cada vez mais por um espaço de autonomia
interna, ainda que em um contexto geral de subordinação ao poder político unificado. No período
analisado, embora esse processo não se tenha completado, ele já tinha avançado consideravelmente,
criando duas áreas onde se pode ver, distintos um do outro, em uma o Estado e em outra a
sociedade civil, ainda que permanecesse entre essas duas áreas uma extensa zona de
indiferenciação. Assim é possível e útil aplicar a distinção para o período em tela, ainda que essa
aplicação requeira alguns cuidados. Ademais, o próprio Hespanha não deixa de ressaltar o quanto já
estava avançada a separação do Estado em relação à sociedade civil no período do que ele aqui
chama de “despotismo iluminado”: “Em todo o caso, a adopção deste critério de periodização do
político não deixa de causar certas perplexidades, nomeadamente quanto à arrumação da fase final
do Antigo Regime, o ‘despotismo iluminado’. Tal perplexidade deve-se ao facto de que, como foi
notado ultimamente por N. Poulantzas, se verificarem já neste período sinais bastantes do
aparecimento do Estado separado – no domínio ideológico, aparecimento do tópico do ‘interesse
público’; no domínio institucional, intensificação da expropriação política dos corpos periféricos e
afirmação do carácter ‘absoluto’ (i.e., não partilhado) do poder político da corôa; no domínio
jurídico, primado da legislação geral e movimento da codificação, substituindo o ‘privilégio’ pelo
‘direito igual’.” (HESPANHA, António Manuel. Para uma teoria da história institucional..., p.
43.).
55
SCHIERA, Pierangelo. Dall’arte di governo alle..., p. 228; SEELAENDER, Airton Cerqueira-
Leite. A Polícia e o Rei-Legislador... ; SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. Polizei, ökonomie
und...;
KLINGENSTEIN, Grete. Riforma e crisi: la monarchia austríaca...
60
eficiência necessária para impor, pelo alto, a disciplina econômica que garantiria que
fossem criados os recursos necessários à manutenção e ao fortalecimento dos órgãos sobre
os quais se sustentaria o poder político central, como a própria burocracia e o exército.
Podemos concluir, portanto, que a situação econômica daqueles Estados obrigava, para que
o próprio absolutismo, enquanto projeto político, fosse possível, a um programa de
racionalização sócio-econômica que partia do alto e atingia a sociedade. Dentro desse
contexto em que o poder político central assume a tarefa de impor a racionalização social
surge a necessidade de desenvolver os instrumentos através dos quais ela seria cumprida.
Assim um novo ramo do conhecimento vem assessorar os articuladores dessa obra, uma
nova ciência cujo objetivo era justamente a maximização do poder de controle por parte do
soberano sobre o conjunto da sociedade: a ciência de polícia.
A ciência da polícia surge no século XVII na Alemanha, mais
precisamente na Prússia, onde começa a dar seus primeiros passos com Seckendorff em
meio à reflexão cameralística (cameralistik) ou ciência cameral (cameralwissenschaft) e,
já no século XVIII, encontra suas maiores expressões com Justi e Sonnenfels.
56
O termo
polícia provavelmente vem do termo grego politeia que, pela mediação das línguas
neolatinas, sobretudo o borgonhês, desenvolveu-se até encontrar um novo sentido no
alemão polizei (ou policey, segundo sua versão arcaica), onde passaria a se relacionar com
as novas tarefas e os novos objetivos que progressivamente o poder central foi assumindo.
57
A idéia de polícia esteve sempre mais ou menos associada à idéia de bom governo. Desta
forma, de início, antes da superação daquela imagem do príncipe segundo a qual ele deveria
ser o responsável pela conservação de uma ordem social natural, pré-determinada, zelando
pela convivência harmoniosa das várias ordens de poder autônomas, a polícia designava
justamente a função que cabia a ele enquanto conservador desta ordem que não deveria ser
56
A cameralística ou ciência cameral é a ciência das câmeras controladas pelo príncipe. Na medida
em que vai perdendo conteúdo com a emancipação da economia política e da própria ciência de
polícia, acaba ficando reduzida ao estudo das finanças do Estado (Finanzwissenschaft). Foi
justamente Justi que teorizou a emancipação e autonomia da ciência da polícia em relação à
cameralística.
57
“A linguagem jurídico-política regista este surgir de novas tarefas e novos objectivos para o poder
central através do aparecimento de um vocábulo específico – a ‘polícia’, provindo da palavra grega
‘politeia’ – que designava a ordenação (natural) da cidade – e, através da mediação do latim e das
línguas novi-latinas (sobretudo do dialecto borgonhês), fixado com o novo sentido, no alemão
(‘gute Polycei’, Polizeiordnungen, Polizeistaat).” (HESPANHA, António Manuel. Para uma teoria
da história institucional..., p. 67-8.).
61
alterada. O conceito de polícia que surge na reflexão alemã, ao contrário, relaciona-se com
a imagem do príncipe que viria a substituir esta última.
58
De tal maneira, quando o príncipe
assume a tarefa de intervir sobre o tecido social, não apenas para preservá-lo, mas para
reorganizá-lo de forma a atender às novas necessidades, a idéia de bom governo muda e o
conceito de polícia passa a ser resignificado de acordo com o progressivo aumento do
poder monárquico que seria o pressuposto para que suas novas tarefas pudessem ser
realizadas.
59
A polícia assim redefinida mostra, portanto, sua afinidade com o absolutismo.
Sob a denominação de polícia aglutinam-se todas as atividades de regulamentação e de
intervenção do príncipe. A história do desenvolvimento do Estado absolutista na Prússia foi
também a história da ampliação das matérias submetidas ao poder de polícia do príncipe.
Assim a legislação de polícia (as Polizeiordnungen) começa a ser usada como veículo para
que o soberano direcione a sociedade segundo os objetivos de fortalecimento
institucional.
60
58
A concomitância da formulação do novo sentido para o conceito de polícia com o processo de
dissolução dos poderes intermediários que barravam uma ação mais abrangente do poder central e
que eram o sustentáculo daquela imagem do príncipe enquanto um mero árbitro dos conflitos entre
poderes autônomos e guardião da conservação da ordem tradicional é atestada por Pierangelo
Schiera no trecho seguinte: “Il momento risolutore di tale concezione è sicuramente rappresentato
da quel rovesciamento dei termini plitici tradizioneli che consiste nall’attestarsi dello ‘Stato’ come
aspirante monopolizzatore dell’intera realtá pubblica, mediante il soffocamento o l’eliminazione
della miriade di poteri intermedi, di autonomie locali, che avevano caratterizzato l’‘antica società
per Ceti’ e di cui l’inefficiente struttura organizzativa del Sacro Romano Impero Germanico
rappresentava, ancora nel XVII secolo, l’esempio storico più probante.” (SCHIERA, Pierangelo.
Dall’arte di governo alle scienze dello Stato: Il cameralismo e l’assolutismo tedesco... p. 268.).
59
“A ‘polícia’ representa o novo desígnio ordenador do poder em relação a uma sociedade que já
não é considerada como reflectindo uma ordem natural, mas que carece de ser organizada em
função do aumento do poder do rei. Estes desígnios são levados a cabo por uma actividade
administrativa interventora e que toma ela própria a iniciativa (administração activa); pois a sua
finalidade não é mais a salvaguarda do existente, mas a criação de algo de novo; não só, como
refere Krüger, defender os povos do mal (v.g. da fome), mas proporcionar-lhes um bem estar
suplementar.” (HESPANHA, António Manuel. Para uma teoria da história institucional..., p. 68.).
60
“In tale nuovo ambito, la politica si presentava come l’attivitá sostanzialmente rivolta al
rafforzamento dello Stato verso l’esterno e del suo Signore all’interno: l’antica ‘Polizei’ copriva
appunto l’intero settore della politica interna e più precisamente, per usare le stesse parole di
Brunner, ‘l’intero ordinamento interno e di consegueza l’apparato di potere destinato a garantire
quest’ultimo’. Tale definizione ha bisogno tuttavia, per risultare del tutto chiara, di due ulteriori
precisazioni: in primo luogo essa va riferita al contesto storico in cui la formazione dello Stato
sovrano, unitario ed accentrato, si venne compiendo in Germania. Quel processo – di ordine
sostanzialmente costituzionale – si venne svolgendo gradualmente mediante la progressiva
intromissione del Principe nei settori concretamente più urgenti della compagine statale,
improvvisamente trovatasi a far fronte a problemi per la maggior parte dei quali le strutture
62
Conforme havíamos visto, no contexto de atraso econômico em que o
absolutismo se desenvolveu na Prússia e na Áustria era necessário que o poder político
central inserisse dentro de seu projeto de fortalecimento autocrático um programa de
incentivo ao desenvolvimento de atividades econômicas. A necessidade de arcar, por um
lado, com os custos da burocracia centralizada, que era essencial para consolidar a
supremacia política da coroa no âmbito interno do Estado, pois possibilitava colocar de
lado a administração estamental, e, por outro lado, com os custos do aparato militar,
essencial, por sua vez, para consolidar a supremacia política da coroa no âmbito externo do
Estado, na medida em que permitia a proteção dos territórios já possuídos e a anexação de
novos territórios, tornava necessário um volume de recursos maior do que aquilo que era
fornecido pelas vias tradicionais de sustento da coroa. A pressão da concorrência com
potências como a França, onde a situação institucional era, por volta do início do século
XVIII, mais favorável ao poder central da coroa e onde o desenvolvimento econômico já
dava conta de fornecer uma base mais ampla para a tributação, agravava a situação e
despertava o ânimo das coroas dos Estados periféricos para agir não apenas através de uma
pura e simples política de centralização administrativa, mas também através de uma política
de desenvolvimento econômico. Assim a polícia dos soberanos desses Estados estaria
voltada principalmente para a dinamização econômica da sociedade, objetivando expandir
as bases para ação tributária da coroa.
Tentemos, então, entender melhor essa vinculação da polícia à economia
e, mais especificamente, ao desenvolvimento econômico. Como o interesse principal da
atividade de polícia era o fortalecimento do poder da coroa, as suas medidas se relacionarão
com os setores estrategicamente importantes segundo esse objetivo. Evidentemente, não é
apenas o desenvolvimento econômico puro e simples a única coisa importante para a
política de fortalecimento autocrático do monarca. O incentivo a determinados setores
econômicos específicos relacionados com a produção daquilo que era essencial, por
exemplo, ao exército real foi um objeto recorrente da legislação de polícia. Mas na medida
em que crescia a percepção da importância do incremento da atividade econômica enquanto
tal para os desígnios políticos principescos crescia também a ação de polícia voltada para
organizzatorie tradizionali rivelavano la loro inadeguatezza.” (SCHIERA, Pierangelo. Dall’arte di
governo alle..., p. 264.).
63
promover o desenvolvimento econômico geral do Estado.
61
Assim a polícia apresenta
inicialmente uma vinculação ao que dizia respeito de forma mais imediata ao
fortalecimento real (como o exército e a marinha) e, gradativamente, começou a voltar-se
para questões relativas à própria dinamização econômica interna do Estado. De tal forma,
ao longo do tempo a polícia, sem nunca abandonar o objetivo derradeiro de fortalecer o
poder principesco, passará a voltar-se para a criação de forças produtivas e para o
desenvolvimento econômico em geral.
62
A preponderância que as matérias econômicas
adquirem na atividade de polícia não excluem, evidentemente, outros domínios que diziam
respeito igualmente ao bom governo, como o sanitarismo e o urbanismo.
A fato de que a atividade interventora e dirigista do Estado e do poder
central no âmbito econômico foram exercidas através da atividade de polícia (ainda que não
exclusivamente) traria conseqüências importantes para as expressões teóricas que esta
última tomaria. Conforme havíamos dito, na medida em que a política de desenvolvimento
econômico era componente essencial do absolutismo tardio, a literatura política passou a
afirmar uma suposta identidade de interesses entre o soberano e o conjunto da sociedade e,
também, a colocar a promoção do bem-estar (sobretudo material) dos súditos entre as
incumbências do soberano. Como a atividade de polícia era uma via privilegiada de
promover o desenvolvimento econômico através do qual o soberano estaria cumprindo a
sua função de promotor do bem-estar público, a teorizações que se construíram sobre ela e
61
No trecho a seguir, Hespanha percebe a vinculação inicial da polícia ao que correspondia direta e
imediatamente ao fortalecimento real (como o exército e a marinha) e a posterior vinculação ao
desenvolvimento de setores econômicos da agricultura e da indústria, onde, em muitos casos, o
benefício ao monarca dar-se-á apenas pela via da tributação: “Os sectores de intervenção primordial
da ‘polícia’ são aqueles mais directamente relacionados com o incremento do poder do rei. Desde
logo, os sectores de interesse estratégico – criação de cavalos, fabrico do salitre e da pólvora,
fabrico de armas (metalurgia), fabrico de panos e de cordame (para a marinha), fabrico do biscoito
(para aprovisionar os navios). Depois, progressivamente, todos os sectores que podiam constituir
bases importantes de incidência fiscal, nomeadamente a indústria e a agricultura.” (HESPANHA,
António Manuel. Para uma teoria da história institucional..., p. 68.).
62
A vinculação primordial da atividade de polícia ao campo econômico é percebido no caso de
Portugal por Hespanha: “O peso e os resultados da actividade de polícia – que, repita-se, incide
normalmente sobre o campo económico, mas que tem objectivos eminentemente políticos – podem
ser detectados através do estudo da estrutura dos orçamentos estaduais. Nos capítulos das despesas,
elas aparecerão como rubricas votadas àquilo a que hoje chamaríamos ‘actividade de fomento’; no
capítulo das receitas, elas originarão um aumento das receitas fiscais provenientes, sobretudo, da
indústria (já que a fiscalidade estadual sobre a agricultura se desenvolve de forma muito mais lenta,
dado o seu carácter conflitual com a fiscalidade senhorial).” (HESPANHA, António Manuel. Para
uma teoria da história institucional..., p. 69.).
64
que ganhariam o nome de Ciência da Polícia (Polizeiwissenschaft) iriam apresentá-la como
a atividade voltada para a consecução do bem-estar público. A polícia transforma-se, assim,
na atividade do soberano para ordenar racionalmente a sociedade de forma a levá-la a
produzir esse bem-estar público.
63
De tal maneira, entre o absolutismo esclarecido e a ciência de polícia
passa a haver uma marcante afinidade. Se o absolutismo esclarecido é apresentado por seus
defensores como uma forma política em que o soberano usa seu poder absoluto para
racionalizar a sociedade, isto é, para reorganizá-la segundo parâmetros estipulados pela
razão e promover, assim, uma melhora geral nas condições de vida de seus súditos, então a
polícia, assim definida por seus teóricos como a atividade do soberano voltada para o
governo racional do âmbito interno do Estado através do qual ele aumentaria o bem-estar
de seus súditos, teria muito a lhe oferecer.
64
Mas para além dos aspectos meramente
63
Seguimos aqui as idéias de Schiera segundo o qual a ciência de polícia era, na mão de seus
teóricos, a síntese entre ordem e bem-estar. Com relação ao aspecto do bem-estar, o mesmo autor
percebeu muito bem a importância que tem, para a constituição desse conceito (no contexto da
ciência de polícia, evidentemente) as relações entre a formação do absolutismo e as questões
econômicas: “Quanto invece all’aspetto del ‘benessere’, a sua volta caratterisitco del concetto di
‘Polizei’ e complementare al primo, dell’‘ordine’, vanno chiariti due momenti diversi della sua
presenza e fortuna. Dall’inizio esso costituì – nei termini in cui era stato codificato nella dottrina
politica risultante dalla confluenza della tradizione aristotleica con la Riforma – il naturale punto di
riferimento per ogni attività del Principe avente ad oggetto un intervento nella sfera politica. In tal
senso esso svolse tuttavia un ruolo prevalentemente giustificativo, sprovvisto, sul piano concreto
dell’effettualità politica, di valore autonomo. Per una duplice strada invece esso si venne lentamente
qualificando, fino ad assumere, nella fase culminante dell’attività di polizia, e della corrispondente
‘Polizeiwissenschaft’, un’importanza decisiva ai fini stess dell’esatta comprensione e definizione di
queste ultime. Ciò accadde in primo luogo per via dello stretto collegamento che fu possibile
instaurare – sopra tutto grazie alle dottrine mercantilistiche – fra il benessere dello Stato e quello dei
sudditi. La politica di ordine e di forza perseguita dallo Stato in formazione richiedeva importanti
mezzi finanziari che, oltre tutto, dovevono derivare in misura sempre crescente direttamente dalla
popolazione, senza il tramite dei Ceti, contro i quali appunto il nuovo Stato si andava attestando. Il
mantenimento dell’esercito e della burocrazia, insieme alla diminuzione dei contributi dei Ceti,
redeva indispensabile il ricorso ad un tipo moderno di tassazione: questo a sua volta poteva
giustificarsi come fonte principale e sufficiente di entrate dello Stato solo nella misura in cui la
situazione economico-finanziaria del paese fosse favorevole. Da qui il richiamo costante compiuto
dagli amministratori e dai teorici dell’amministrazione all’equazione: benessere dei sudditi =
benessere dello Stato. Nell’instaurazione di tale equazione il ruolo cruciale fu comprensibilmente
assolto dalla ‘Polizei’, intesa come attività amministrativa e finanziaria esercitata dalle Camere per
il mantenimento ed il rafforzamento dello Stato.” (SCHIERA, Pierangelo. Dall’arte di governo
alle..., p. 270-1.).
64
Essa afinidade entre o absolutismo esclarecido e a ciência da polícia levou alguns analistas do
período ao equívoco de apresentar os representantes desta última como iluministas. Um bom
exemplo é Astuti: “De facto, os teóricos do Estado de polícia são iluministas e mesmo
65
ideológicos, o fato é que tanto a teoria do absolutismo esclarecido quanto a ciência de
polícia foram desenvolvidas para dar resposta ao conjunto de circunstâncias sócio-políticas
em que se desenvolveu o absolutismo tardio. Tanto os teóricos iluministas que enxergavam
no soberano a única força capaz de vencer a resistência dos estamentos privilegiados e
introduzir a razão na sociedade quanto os teóricos da ciência da polícia que buscavam
desenvolver instrumentos para maximizar o poder de intervenção real tinham que enfrentar
o mesmo conjunto de problemas sociais, políticos, ideológicos e, principalmente, o mesmo
conjunto de problemas econômicos advindos da situação particular em que se encontravam
os Estados onde eles estavam.
65
Como já havíamos dito, a ciência da polícia surge originalmente dentro
da reflexão cameralística, que igualmente relaciona-se com o avanço do absolutismo. Ao
longo do século XVIII, entretanto, ela foi progressivamente destacando-se até ganhar
autonomia e independência.
66
A evolução da ciência de polícia, assim como a do conjunto
reformadores, sobretudo no campo económico; e, no seu pensamento, é patente a influência directa
das ideias eudemonísticas e filantrópicas dominantes do séc. XVIII. Um exemplo típico é oferecido
por Von Justi, cuja concepção teórica se funda na afirmação de que a ‘comunidade é o fim do
Estado’ e que, portanto, o interesse do príncipe é inseparável do do seu povo, estando
necessariamente ligado ao bem comum (bonum commune), entendido daqui para o futuro como o
bem estar em geral dos súbditos (gemeine Wohlfahrt).” (ASTUTI, Guido. O Absolutismo
Esclarecido em Itália e o Estado de Polícia... p. 266.).
65
Em um texto destinado a estudar, no caso italiano, as relações entre absolutismo esclarecido e o
chamado Estado de polícia, caracterizado como o Estado em que as atividades de polícia alcançam
enorme proeminência, Astuti observou o seguinte: “No título deste capítulo recordamos
conjuntamente, como aspectos fundamentais e característicos da evolução dos Estados no séc.
XVIII, o absolutismo iluminista e o Estado ‘de polícia’: dois aspectos estreitamente conexos e
interdependentes, a ponto de um não poder ser estudado e compreendido separadamente do outro. O
absolutismo monárquico desenvolve-se e adequa-se, embora de modo limitado, ao novo ambiente
sob influência das idéias iluministas do séc. XVIII, determinando uma evolução dos ordenamentos
políticos e jurídicos de grande importância para a formação do Estado moderno. Nasce uma nova
teoria e prática do governo, que encontra a sua expressão típica na qualificação do Estado como
Estado ‘de polícia’. Paralelamente, desenvolve-se o movimento reformador, a partir dos primeiros
anos do séc. XVIII, ainda que a chamada época das ‘reformas dos príncipes’ coincida com a
segunda metade deste século.” (ASTUTI, Guido. O Absolutismo Esclarecido em Itália..., p. 251.).
66
Sobre o processo de autonomização da ciência da polícia, Schiera afirmou: “Individuato il ruolo
storico della ‘Polizei’ nella costruzione stessa del moderno Stato, in quanto monopolista dell’intera
realtà politica, e sulla base delle conclusioni appena raggiunte sul carattere ‘amministrativo’ che
quel processo assunse dal suo inizio e mantenne fino al termine, non è difficile risalire ai contenuti
di cui la ‘Polizei’ potè appropriarsi, e ai risultati concreti cui la sua esplicazione diede di fatto
luogo. A tal fine può essere di aiuto decisivo – oltre che particolarmente pertinente agli scopi della
presente indagine – il richiamo ad una speciale proiezione che la ‘Polizei’ assunse, fin dall’inizio,
sul piano letterario-scientifico: la disciplina appunto che, nel corso del XVII e XVIII secolo, si
venne sviluppando in Germania sotto il nome di ‘Polizeiwissenschat’. Attraverso fasi successive,
66
da reflexão cameralista, acompanhou o desenvolvimento do Estado territorial prussiano
através do processo de afirmação do poder absoluto do príncipe em detrimento do poder
dos estamentos. Nesse contexto, a ciência de polícia e o cameralismo em geral serviram
para construir os métodos que não apenas propiciariam o aumento do poder principesco,
mas que também tornariam mais eficiente o seu exercício em relação às novas demandas,
sobretudo de ordem econômica, que se teria de enfrentar no processo de construção do
Estado unitário e centralizado submetido ao príncipe.
67
As vantagens trazidas pelo
cameralismo e pela ciência de polícia para o poderio do Estado prussiano foram sentidas na
pele pela Áustria na ocasião da disputa pela Silésia.
68
A necessidade de racionalizar a
caraterrizate da una sempre più spiccata tendenza all’autonomia nei confronti delle discipline affini,
essa si mantenne dalla nascita in poi, per lungo tempo, all’interno della speculazione cameralistica,
ed acquisitò dignità di scienza a sè stante in perfetta corrisponenza con la fase conclusiva di
formazione dello Stato assoluto, dando peraltro luogo, pressochè senza soluzione di continuità , ad
una spaccatura del suo oggetto di ricerca in una serie di rivoli da alcuni dei quali si sarebbero più
tardi alimentate le stesse moderne scienze sociali ottocentesche.” (SCHIERA, Pierangelo. Dall’arte
di governo alle..., p. 268.).
67
Schiera percebe a importância da questão da eficiência administrativa na construção do Estado
absolutista prussiano, mas situa-a especificamente na época de Frederico II: “Al contrario si deve
qui ribadire quanto è già stato affermato nella seconda Parte, a proposito dell’aprirsi , con Federico
il Grande, di una nuova fase costituzionale dello Stato prussiano, caratterizzata – nello spirito di
fondo – dallo spostamento dell’interesse dal problema della costruzione di uno Stato unitario e
accentrato nelle mani del sovrano, a quello del suo funzionamento migliore, della sua efficienza nei
diversi rami dell’amministrazione che si andavano presentando in modo sempre più differenziato ed
autonomo; [...]” (SCHIERA, Pierangelo. Dall’arte di governo alle..., p. 435.).
68
Schiera explica magistralmente bem a questão da disputa pela Silésia: “Tutto ciò fa seriamente
pensare al tipo di rapporti che fra le due esperienze dovettero intercorrere e suggerisce quasi subito
l’impressione che proprio dalla Prussia l’Austria abbia ricevuto le indicazioni più proficue per
iniziare e condurre in porto tanto felicemente la sua esperienza. Tale impressione trova facile
conferma nei fatti, sopra tutto per quel che riguarda il vero protagonista della ‘riforma’ austriaca, il
conte di Haugwitz. Prescindendo per il momento dall’influsso che su di lui svolse, in modo esplicito
e perentorio, e d’alta parte ampiamente riconosciuto, il pensiero di Wilhelm von Schröder, che offrì
il quadro teorico entro il quale si svolse l’attività ‘riformistica’ austríaca, non sussistono dubbi
sull’importanza che per Haugwitz rivestì l’esempio prussiano. Il momento mediano di quel
processo è rappresentato dalle vicende della Slesia, caduta nel 1742 nelle mani di Federico il
Grande e rimasta poi sempre territorio prussiano, nonostante le aspre lotte sostenute fino al 1763,
attraverso la II guerra di Slesia e la guerra dei Sette anni. Proprio nel periodo dal 1742 al 1763 la
situazione era tale che, da una parte Federico il Grande impiantava nel territorio appena conquistato
la sua poderosa amministrazione, mentre dall’altra Maria Teresa, ed il suo consigliere Haugwitz,
confidavano in una rapida riconquista dell’antica provincia e nel contempo ne studiavano da vicino
gli sviluppi politico-amministrativi in corso. In particolare, Haugwitz ricoprì l’ufficio di Presidente
del ‘Königlichen Amtes’ di Troppau (una delle poche città della Slesia rimaste in mano austriaca),
ed ebbe modo di compiere una ricca esperienza studiando quello che avveniva nella Slesia
prussiana. Se si aggiunge che lo scopo di ciò era di iniziare nella Slesia austriaca l’attività di riforme
che si sarebbe poi dovuta concludere a livello centrale, si ha una precisa idea di quel che
67
administração estatal para fazer frente aos concorrentes internacionais levou a coroa
austríaca, pelas mãos de Maria Teresa, a introduzir em seus domínios os princípios do
cameralismo e da ciência de polícia. Os resultados da experiência austríaca causariam
fortíssima impressão em Sebastião José de Carvalho e Melo, então embaixador português
em Viena e, com o título de Marquês de Pombal, futuro primeiro-ministro do governo de
José I. Assim o cameralismo e a polícia encontrariam, pelas suas mãos, oportunidade de
contribuir na consolidação do absolutismo português e na política de reformas que o
acompanharia nessa fase.
69
As condições econômicas em que o absolutismo tardio se desenvolveu,
na medida em que o obrigavam a implementar uma política de fortalecimento econômico
interno, acabava dando margem para que se criasse a imagem de uma unidade de interesses
entre o conjunto social e o soberano e para que o Estado e o soberano fossem considerados
responsáveis pela promoção do bem-estar dos súditos. Esse bem-estar, evidentemente, era
compreendido em termos econômicos, ou seja, identificava-se com o aumento das
riquezas.
70
Essa imagem do soberano enquanto promotor do bem-estar social era comum
tanto à literatura iluminista daqueles países do absolutismo tardio quanto à sua literatura da
ciência da polícia. Essa centralidade da questão econômica em meio ao processo de
fortalecimento institucional absolutista dá origem a uma espécie de utilitarismo político-
econômico. Paralelamente ao desenvolvimento desse utilitarismo político-econômico
começa a ser elaborado, no seio da filosofia iluminista, um outro conjunto de teorias que,
l’esperienza prussiana abbia significato per Haugwitz.” (SCHIERA, Pierangelo. Dall’arte di
governo alle..., p. 228.).
69
Sobre a polícia em Portugal, veja-se a obra já citada SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. A
Polícia e o Rei-Legislador. In História do Direito Brasileiro: Leituras da Ordem Jurídica Nacional.
São Paulo: Editora Atlas, 2003. Veja-se, ainda, do mesmo autor a obra Polizei, ökonomie und
gesetzgebungslehre. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2003.
70
A função estatal de promover o bem-estar dos súditos que aparece nessa literatura do século
XVIII não se confunde com aquela do Estado de Bem-Estar Social (Welfare State) do século XX.
Neste último a idéia de bem-estar social relaciona-se com a atividade prestacional do Estado,
realizada através de serviços públicos nas áreas de saúde, habitação, seguridade social, etc. e se
apresenta, no campo político, como uma revisão da idéia do Estado mínimo do liberalismo e, no
campo jurídico, como uma revisão do exclusivismo dos direitos individuais, cuja conseqüência é a
inserção da questão da igualdade material, superando, assim, a mera igualdade formal. Ao
contrário, no século XVIII a função do Estado enquanto promotor do bem-estar público, ainda que
incluísse, em alguns casos, essa dimensão prestacional (nunca é claro, como conseqüência de
qualquer direito social subjetivo pertencente aos súditos), tinha como cerne a idéia de que ele
deveria promover o desenvolvimento econômico que propiciaria o enriquecimento da população e,
conseqüentemente, uma melhora em nível de vida.
68
partindo das análises do empirismo de John Locke, aprofunda e amplia a análise
psicológica e forma uma imagem hedonista de ser humano, segundo a qual ele é movido
mecanicamente pela busca do prazer sensível, e onde a ética, passando a ser elaborada
segundo essa imagem, começa a identificar o “bem” com o “útil” e este, evidentemente,
com o “prazer”. Esse utilitarismo filosófico, que encontra no francês Helvétius um de seus
principais expoentes, estende-se para a teoria política e passa a misturar-se com aquele
utilitarismo político-econômico. Assim o utilitarismo político-econômico, produto da
constatação de necessidades práticas bastante evidentes, começa a ser elaborado juntamente
com esse utilitarismo filosófico mais sofisticado e, assim, vai adquirindo uma
complexidade maior. Esse utilitarismo político-econômico é um componente
importantíssimo da ciência da polícia, onde o Estado é apresentado como uma máquina
administrativa controlada pelo soberano. Assim na medida em que a ciência da polícia vai
ganhando importância acaba passando para o organismo político aquela imagem
mecanicista de ser humano que encontramos na corrente iluminista onde as teorias
utilitaristas de que falamos foram construídas. Portanto, se La Metrie (um filósofo dessa
corrente iluminista) havia falado em um Homem-Máquina, então é perfeitamente possível
falarmos em um Estado-Máquina.
71
Existe um outro elemento importante na participação do mencionado
utilitarismo filosófico na construção teórica do absolutismo tardio do século XIX. Para que
este conseguisse alcançar seus objetivos era necessário construir instrumentos teóricos que
possibilitassem realizar a intervenção e o direcionamento social necessários ao
fortalecimento econômico desejado. A ciência da polícia e o cameralismo em geral
orientavam-se nesse sentido. O utilitarismo filosófico elaborado dentro do Iluminismo, com
seu aprofundamento psicológico e sua teoria da motivação baseada em concepções
hedonistas que buscavam descobrir quais eram os princípios que guiavam a conduta
humana e, conseqüentemente, o próprio funcionamento da sociedade, também teria, por sua
vez, muito a contribuir na construção dos métodos que permitiriam ao soberano direcionar
o organismo social de acordo com seus desígnios. Na formação do Estado-Máquina era
essencial que os indivíduos que o compunham funcionassem, como boas peças, do jeito
71
Sobre o Estado-Máquina, veja-se BATTISTA, A. M.. “Stato macchina” e crisi della morale
comunitaria. In CARACCIOLO, A.. La formazione dello Stato moderno. Bologna: Zanichelli,
1970.
69
desejado. A teoria do comportamento e da motivação do utilitarismo filosófico serviria para
demonstrar como se podem moldar as peças da forma necessária ao bom funcionamento da
máquina. Esse utilitarismo filosófico poderia constituir, por exemplo, um fundamento para
um bom uso instrumental do direito que seria tão caro àqueles reis-legisladores do século
XVIII.
70
CAPÍTULO 2 – ILUMINISMO E ABSOLUTISMO NA LOMBARDIA AUSTRÍACA
SEÇÃO I – A formação do reformismo habsbúrgico na Lombardia e o surgimento do Il
Caffè
A dinâmica estatal do absolutismo tardio, trabalhada genericamente no
capítulo precedente, permite-nos traçar um esquema de interpretação que pode ser útil para
a análise dos fenômenos envolvidos no desenvolvimento do absolutismo austríaco na
Lombardia. Esse esquema não tem, é claro, a pretênção de ser uma regra geral que seja
válida universalmente e que dê conta de explicar todos os elementos do fenômeno
institucional europeu da última metade do século XVIII. Dissemos que os países que
desenvolveram tardiamente a estrutura absolutista de poder político tiveram que enfrentar,
para que o próprio projeto absolutista fosse possível, os problemas relativos ao atraso
econômico e tentar dinamizar a economia interna para criar os recursos que, por intermédio
da tributação, sustentariam o fortalecimento institucional da coroa em relação aos
adversários internos e externos.
72
Na medida em que isso demandava esforços em direção a
um programa de racionalização administrativa e social guiada por critérios de eficiência o
projeto absolutista desses países acabaria apresentando uma afinidade com os novos ideais
iluministas que, forjados na França, adentravam na periferia econômica e institucional da
Europa de então.
73
O absolutismo europeu foi, de uma forma geral, um fator de
modernização política e social, na medida em que representava a saída das estruturas
políticas medievais.
74
O absolutismo tardio representava um projeto de modernização social
72
SCHIERA, Pierangelo. Dall’arte di governo alle..., p. 228; SEELAENDER, Airton Cerqueira-
Leite. A Polícia e o Rei-Legislador... ; SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. Polizei, ökonomie...
HESPANHA, António Manuel. Para uma teoria da história institucional...
73
FRIGO, Daniela. op. cit.; VENTURI, Franco. Settecento riformatore. Volume V: L’Italia dei
lumi (1764-1790). Torino: Einaudi, 1987; VALSECCHI, F. L’assolutismo illuminato in Europa...
74
Lembremos, aqui, que essa é uma questão polêmica. Veja-se: HESPANHA, António Manuel. Para
uma teoria da história institucional... ; ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado...
71
ainda mais agressivo já que se voltava para vencer uma situação em que o grande poder
político dos estamentos era completado por um atraso econômico que impedia a existência
de uma classe burguesa que pudesse funcionar como um contrapeso a ele. A ausência de
qualquer alternativa viável para vencer a resistência das forças tradicionais cujos interesses
estavam na contramão dos anseios dos setores sociais insurgentes interessados em
desenvolver atividades econômicas levou-os a apoiar o projeto de modernização pela via
absolutística.
75
Igualmente, defender a modernização absolutística era, na perspectiva das
camadas letradas que receberam a filosofia iluminista, a única opção que trazia
possibilidades reais de concretização dos ideais oriundos de suas influências filosóficas.
76
Este projeto político de modernização pelo alto demandaria funcionários
que, além de fiéis, fossem também competentes o suficiente para servir ao soberano em tão
ousada empreitada.
77
Em face à escassez de recursos humanos com a competência
necessária para as tarefas, o soberano não pôde desprezar esse apoio das camadas
intelectuais iluministas. Assim elas acabaram constituindo uma fonte de recursos humanos
para a composição do quadro administrativo real. De tal forma, além da mera afinidade
teórica, os membros dessas camadas intelectuais teriam um forte interesse prático-pessoal
para se posicionar em favor do absolutismo. Essa circunstância leva a uma coalizão de
interesses entre o soberano e os intelectuais iluministas. Graças a esse fato o Iluminismo
passa a constituir um elemento cultural importante na elaboração teórica do absolutismo
tardio do século XVIII.
78
A fusão dos ideais iluministas com a proposta absolutista leva a
duas conseqüências importantes. A primeira é que graças à influência exercida pela
filosofia das Luzes, a proposta absolutista tem seus horizontes abertos e passa a incorporar
uma série de outros elementos além daqueles que estavam ligados de forma evidente e
imediata com o fortalecimento monárquico. Assim além das questões relativas à
modernização econômica e ao aumento da eficiência do aparato administrativo o programa
de reformas do soberano começa a atingir também outras áreas, como, por exemplo, o
sistema penal e a instrução, e, na medida em que demonstram uma relação (ainda que
menos imediata) com os interesses da centralização e do fortalecimento estatal, acabam
75
FRIGO, Daniela. op. cit.
76
VALSECCHI, F. L’assolutismo illuminato in Europa...
77
HESPANHA, António Manuel. Para uma teoria da história institucional... ; VICENS VIVES, J..
A estrutura administrativa estadual...
78
VALSECCHI, F. L’assolutismo illuminato in Europa...
72
sendo incorporadas ao conjunto do reformismo absolutista. Podemos dizer que, graças ao
Iluminismo, o reformismo absolutista é ampliado e acaba absorvendo uma série de
conteúdos que ultrapassam o imediatamente necessário à viabilização da proposta
absolutista e reforçam o seu caráter modernizante.
79
A segunda conseqüência importante da fusão entre a proposta absolutista
e a filosofia iluminista é que os ideais democráticos e liberais desta última acabam sendo
atrofiados. A dedicação à causa da emancipação humana é um componente essencial do
Iluminismo. Essa emancipação, que pode aparecer sob várias formas (como, por exemplo,
emancipação das forças da natureza, do jugo de tradições irracionais ou da própria
ignorância), assume, na esfera política, a forma de ideais democráticos, republicanos e
liberais. A idéia de que a racionalidade individual é fonte de uma autonomia igualmente
individual possui evidentes conexões com essas tendências políticas. Mas na fusão entre
Iluminismo e absolutismo elas terão de ficar para segundo plano. Ante à necessidade de
apoiar o poder monárquico absolutístico para conseguir um avanço em relação ao poder
tradicional dos estamentos, os representantes do Iluminismo daqueles Estados onde se
desenvolveu o absolutismo tardio do século XVIII acabarão deixando de lado as
propensões políticas que, sob a marcante influência de Locke, apareciam na reflexão
política francesa do século XVIII. Na medida em que boa parte desses intelectuais acabou
indo compor os quadros administrativos da coroa e servindo aos projetos de reestruturação
institucional absolutística o Iluminismo deles, além de ter negligenciado os aspectos
políticos emancipatórios presentes na reflexão francesa, desenvolveu fortemente aquele
aspecto instrumental da racionalidade moderna referente à articulação de meios segundo
fins pré-determinados que é tão essencial ao aperfeiçoamento de processos técnicos. O
Iluminismo que se desenvolve no contexto do absolutismo tardio constitui certamente um
projeto de modernização, mas de uma modernização autocrática que possui um
considerável descuido com aqueles valores humanistas que justificariam o projeto da
modernidade. As condições históricas específicas a que nos referimos deram espaço para
que o aspecto instrumental da filosofia das Luzes se desenvolvesse sem a contraposição
daqueles valores que faziam do ser humano uma finalidade em si mesmo e, assim,
acabaram criando uma versão sombria do Iluminismo. É interessante notarmos que
79
VENTURI, Franco. Settecento riformatore. Volume V: L’Italia dei lumi...
73
justamente a Áustria, onde o absolutismo absorveu com mais vigor as tendências
reformadoras e exerceu, mais que em qualquer outro lugar, um papel modernizador, iria, no
século XIX, liderar a Santa Aliança e, assim, colocar toda a sua maquinaria burocrática e
militar na defesa dos ideais tradicionais e reacionários que tinham sido tão combatidos pelo
Iluminismo.
A tarefa de modernização institucional começou a ser executada pelo
absolutismo austríaco depois da guerra de sucessão austríaca (1740-1744), já no reinado de
Maria Teresa, graças ao mencionado impacto da questão da disputa pela Silésia. A
Lombardia, que era uma possessão da Áustria desde a guerra de sucessão espanhola(1702-
1714), começaria a passar, a partir de então, por um programa de reformas. A primeira
etapa do reformismo lombardo transcorreu entre os anos de 1749 e 1760 e foi levada a
cabo, inicialmente, por Gian Luca Pallavicini e, depois, por Beltrame Cristiani e Pompeo
Neri.
80
Essa etapa se encerraria, entretanto, no ano de 1757 com a partida de Neri para a
Toscana. Com as atenções de Viena concentradas na guerra dos sete anos (1756-63) o
empenho reformador na Lombardia sofrerá uma interrupção. A segunda fase do reformismo
lombardo começa em 1760, depois da chegada, no ano anterior, do conde Carlo di Firmian,
o novo plenipotenciário dos habsburgs. Findada a guerra o ministro Kaunitz pôde voltar
novamente suas atenções para o programa de reformas. A partir de então, seguindo cada
vez mais os desígnios centralizadores de Viena, o novo plenipotenciário da monarquia
80
Stuart J. Woolf resume assim o papel de Cristiani e de Neri nas reformas da Lombardia austríaca
impulsionadas pela monarquia habsburga: “Negli anni fral il 1750 e il 1760 (che erano stati a
Napoli anni di inazione), una serie di decisive riforme erano state introdotte in lombardia, sotto
l’impulso dei successori del Pallavicino, Beltrame Cristiani e Pompeo Neri, energicamente
incoraggiati dal principe di Kaunitz. Il controllo della corte di Vienna fu rafforzato con l’abolizione
dell’último simbolo dell’influenza spagnola, il Consiglio d’Italia (1757), e con la fiducia accordata
al conte Cristiani, plenipotenziario degli Asburgo a Milano. Genovese di nascita, abile uomo di
legge e diplomatico, responsabile dei riusciti negoziati che regolarono le questioni di frontiera col
Piemonte (1751), lo Stato pontificio (1756) e il ducato di Modena (1758), architetto del Concordato
(1757), il Cristiani ebbe una parte di primo piano nelle prncipali riforme delle amministrazioni
comunali e provinciali (1755-58). Il toscano Pompeo Neri dette impulso al censimento (1757),
giovandosi del miglioramento delle finanze governative dovuto alla creazione della ‘ferma’ e
all’istituzione del Monte di Santa Teresa. Fu sopratutto il censimento, con le sue potenzialità
innovative come stimolo al progresso dell’agricoltura, che ottenne l’approvazione degli intellettuali.
La Relazione dello stato in cui si trova l’opera del censimento universale, presentata dal Neri nel
1750, sollevò appassionate discussioni e procurò al ministro appoggi che lo aiutarono a superare, in
gran parte, quell’opposizione degli interessi locali che aveva sconfitto, in quegli stessi anni,
Machault in Francia e La Ensenada in Spagna.” (WOOLF, Stuart J.; CARACCIOLO, Alberto;
BADALONI, Nicola e VENTURI, Franco. op. cit., p. 85-6.).
74
austríaca seria o encarregado de levar a cabo a tarefa de modernizar a administração na
Lombardia.
O início do reformismo habsbúrgico em Milão foi comandada por Gian
Luca Pallavicini. Genovês de nascimento, ele foi nomeado por Maria Teresa, em 1743,
delegado da economia militar para os domínios italianos e, portanto, encarregado de
coordenar o provimento, o transporte e o alojamento das tropas que lá atuavam. A
experiência com os problemas financeiros e econômicos postos à mostra pela guerra deram
a Pallavicini a oportunidade de perceber com clareza a ineficiência e a corrupção de muitas
das instituições administrativas e, portanto, a necessidade de reformá-las. Assim já em 1744
Pallavicini apresenta a Maria Teresa um plano geral de reformas que contém as linhas
gerais de tudo o que seria realizado nos próximos anos e, em 1747, torna a apresentar um
outro plano de reformas, agora bem mais detalhado, que novamente anteciparia as
realizações do reformismo habsbúrgico em Milão. Enfrentando a oposição de diversos
grupos locais, Pallavicini conseguiu, entretanto, impor a realização dos primeiros passos do
seu plano de reformas.
81
Desde logo, já no governo de Ferdinand von Harrach, são
proibidas as vendas de ofícios e são tabeladas as tarifas cobradas pelos atos de ofício. Essas
duas medidas possuíam um impacto significativo sobre a estrutura administrativa,
representado um enfraquecimento do sentido privatista da posse dos cargos e aumentando,
assim, o controle dela por parte da administração central. Em 1750 Pallavicini é nomeado
governador por Maria Teresa e pôde, assim, aplicar pessoalmente seus programas de
reformas. Dentre as suas realizações mais significativas está a instituição da Ferma
generale e do Banco de Santa Teresa. A Ferma generale, um órgão que concentrava as
concessões de recolhimento de todos os principais impostos devidos ao Estado, em função
da maior organização que implicava, levou a um aumento do total da arrecadação do
81
“Nel 1747, dopo un breve offuscamento del suo prestigio politico, Pallavicini consegnò a Maria
Teresa un più dettagliato piano di riforma che, rispetto al precedente, ne costituiva un ampliamento
in direzione dell’unificazione della Ferma, del sostegno pubblico alle manifatture e dell’intervento
assistenziale. Appogiato inizialmente con prudenza da Vienna e ostacolato a Milano da diversi
gruppi, Pallavicini riusci tuttavia a far approvare il suo progetto quasi integralmente.”
(CARPANETTO, Dino e RICUPERATI, Giuseppe. op. cit., p. 198.).
75
Estado e ainda trouxe a vantagem de possibilitar a obtenção de adiantamentos dos impostos
junto aos fermieri.
82
Em 1749 Pompeo Neri é chamado a Milão para presidir a Junta
responsável pela conclusão do cadastro. Graças a ele essa primeira onda de reformas
iniciadas com Pallavicini iria se aprofundar. O cadastro era um projeto de longa data na
história da Lombardia. Desde a dominação espanhola já se contam tentativas de levá-lo
adiante, todas devidamente combatidas pelos poderes locais. De 1718 a 1733 o trabalho
evoluiu muito, ainda que lentamente, mas interrompeu-se em função, em grande medida,
das numerosas resistências locais. Neri deveria, agora, tratar de vencer as resistências e
finalizar os trabalhos.
83
A importância do cadastro se pode mensurar pelo fato de ele ser o
ponto de partida para a formulação de boa parte das políticas de reformas que seriam postas
em marcha a partir de então.
84
Como fruto direto dos trabalhos do cadastramento pode-se
82
A Ferma generale teve, entretanto, um papel contraditório no desenvolvimento do reformismo
habsbúrgico em Milão. Se por um lado ela representou um avanço em relação à situação
precedente, na medida em que permitia uma administração fazendária mais racional, por outro ela
seria o ponto de partida para a formação de um novo pólo de poder autônomo, constituído pelos
fermieri, com força suficiente para pretender, através do poder econômico, impor cada vez mais sua
vontade ao Estado. O exemplo da vizinha França, onde os férmiérs transformam-se em um dos
principais símbolos do parasitismo nobiliárquico conservador, certamente deixaria em alerta os
reformadores milaneses. De tal forma, com o aprofundamento das tendências reformadoras em
Milão a Ferma generale passou a ser cada vez mais questionada. Dino Carpanetto e Giuseppe
Ricuperati perceberam bem o caráter contraditório dessa instituição: “I vantaggi per lo Stato non
erano irrilevanti: possibilitá di ottenere dai fermieri gli anticipi sulle tasse, aumento complessivo del
prelievo fiscale effettuato attraverso le gabelle, facilità nelle aperture di credito da parte dei
fermieri. Il rischio era quello di far nascere nella Lombardia un gruppo finanziario così forte da
essere al di sopra di ogni controllo, da costituirsi come forza condizionante dei rapporti politici e
sociali. [...] Il caso della Francia era lì a confermare quale blocco di potere si potesse coagulare
intorno alla Ferma generale, qualora il rapporto tra creditore e debitore si sbilanciasse sempre più a
favore del primo, mettendo lo Stato in balìa dei fermieri. Anche a Milano questa situazione si
profilò assai presto: nel 1757 la richiesta ai fermieri di un nuovo prestito fu accolta in cambio del
rinnovo anticipato del contratto di appalto.” (CARPANETTO, Dino e RICUPERATI, Giuseppe. op.
cit., p. 200-1.).
83
Uma depois de sua chegada, Neri conclui um relatório sobre o estado dos trabalhos do cadastro.
NERI, Pompeo. Relazione dello stato in cui si trova l’opera del censimento universale del ducato di
Milano nel mese di maggio dell’ano 1750. In VENTURI, Franco. Illuministi Italiani. Tomo III
Riformatori Lombardi, Piemontesi e Toscani. Milano: Riccardo Riccardi Editori.
84
“Neri era consapevole, come scrisse in un’importante Relazione del 1750 con la quale chiariva a
sé e ai suoi collaboratori gli obiettivi e i mezzi del lavoro, di quali fossero gli ostacoli da superare
per abbattere la selva di privilegi e di abusi che ceti sociali, città e province avevano fatto
prosperare per ricavarne vantaggi individuali o settoriali, lasciando così che recenti disordini si
aggiungessero agli antichi in una materia delicata e complessa quale era il censo. Ad essi Neri
opponeva i princìpi di giustizia fiscale e di razionalità amministrativa che dovevano affermarsi con
76
mencionar a vinculação dos impostos fundiários não mais aos rendimentos da terra, mas à
própria terra, o que levaria a um aumento da produção, na medida em que a desonerava.
Além disso, graças ao cadastro foi tirada das administrações locais a distribuição e a
cobrança de impostos, fonte tradicional de arbitrariedade e uma das bases do poder patrício
sobre a sociedade. Em 1755 a Junta para o censo faz uma proposta de reforma de enorme
importância e sem quaisquer precedentes na história de Milão. Consistia ela na mudança
dos critérios para a composição da administração municipal que, a partir de então, deixaria
de ser baseada somente sobre o grau de nobilitação da família e passaria a ser determinada
também pela propriedade.
85
Esse foi o primeiro passo na modernização institucional
municipal. De tal maneira, nos anos posteriores, a administração citadina passaria a contar
cada vez mais com uma classe dirigente que não seria composta exclusivamente pelos
membros das famílias patrícias.
86
Em 1753 Beltrame Cristiani substitui Pallavicini no cargo de governador
de Milão. Muitas das principais reformas efetuadas lá, nessa primeira fase do reformismo
habsbúrgico, foram realizadas, por obra de Neri, sob seu governo. Cristiani tinha,
entretanto, uma pré-disposição a uma política menos ousada e mais favorável ao
acomodamento de interesses. Assim quando as tendências conservadoras iniciaram uma
contra-ofensiva em 1757, o reformismo comandado por Neri, sem o apoio de Cristiani,
perde força e se exaure. A Junta do censo é dissolvida e Neri, conseqüentemente, é
destituído de seu cargo. Termina, dessa maneira, a primeira fase das reformas habsbúrgicas
la nuova rilavazione catastale, punto d’appoggio oggettivo di una più equa ripartizione dei carichi.
Egli era convinto, al pari di altri riformatori ed intellettuali europei, che si dovesse abolire
qualunque imposta che non fosse quella fondiaria e fare piazza pulita di ogni esenzione
particolaristica. Non fu possibile, però, portare il censo a queste conclusioni che dovevano essere
giudicate troppo avanzate.” (CARPANETTO, Dino e RICUPERATI, Giuseppe. op. cit., p. 203.).
85
CAPRA, Carlo. Lo sviluppo delle riforme asburgiche nello Stato di Milano. In SCHIERA,
Pierangelo. La dinâmica statale austríaca nel XVIII e XIX secolo. Bologna: Società editrice il
Mulino, 1981.
86
Comentando o impacto da reforma nos critérios de composição da administração municipal
efetuadas pela Giunta per il censimento, Carpanetto e Ricuperati afirmaram o seguinte: “In questo
modo nelle maglie di una società ancora di fatto caratterizzata dall’egemonia feudale nelle
campagne e patrizia nelle cità, si aprivano i primi varchi per l’ascesa politica di un ceto fatto di
benestanti, possidenti terrieri di origine borghese, ricchi professionisti e mercanti.”
(CARPANETTO, Dino e RICUPERATI, Giuseppe. op. cit., p. 202-3.). Veja-se também:
SCHOBER, Richard. Gli effetti delle riforme di Maria Teresa sulla Lombardia. In MADDALENA,
Aldo De; ROTELLI, Ettore; BARBARISI, Gennaro. (org.) Economia, istituzioni, cultura in
Lombardia nell’età di Maria Teresa. Volume secondo: Cultura e Società. Bologna: Società editrice
il Mulino, 1982
77
em Milão. Abre-se, então, um período de retrocessos na política milanesa que perdurará até
1760, no qual os poderes tradicionais conseguirão impor muitas de suas reivindicações à
administração habsbúrgica.
Com a morte de Cristiani em 1758 um novo plenipotenciário será
escolhido pela administração vienense para representar em Milão os interesses do
absolutismo reformista habsbúrgico: o conde Carlo di Firmian.
87
Abre-se, assim, a segunda
fase do reformismo habsbúrgico na Lombardia. Firmian chegou a Milão em 1759 e
imediatamente retomou a realização do cadastro, conseguindo concluí-lo em 1761. Em
janeiro de 1760 fez aprovar a nova lei fiscal da Lombardia. As atenções de Viena,
entretanto, estavam voltadas para a guerra dos sete anos, deflagrada em 1756. Assim apesar
dos esforços locais de Firmian o reformismo habsbúrgico, até o fim da guerra, passaria por
uma fase de relativa letargia. Mas com fim do conflito, em 1763, o ministro Kaunitz pôde
retomar com toda a força o projeto reformista e acompanhar mais atentamente os
acontecimentos políticos da Lombardia. Aliás, uma característica fundamental que
diferencia esta segunda fase do reformismo habsbúrgico na Lombardia daquela primeira é
justamente a maior atenção que lhe será dedicada por Viena, a maior colaboração que
ocorrerá entre o plenipotenciário milanês e os altos funcionários da capital do império.
88
Quando, a partir de 1763, Carlo de Firmian e Kaunitz resolveram, por
fim, acelerar o reformismo habsbúrgico na Lombardia, reanimando-o do abalo sofrido pela
87
Sobre circunstâncias e as razões da escolha de Firmian, veja: CORNIDES, Elisabeth Garms. La
destinazione del conte Firmian a Milano: analisi di una scelta. In MADDALENA, Aldo De;
ROTELLI, Ettore; BARBARISI, Gennaro. (org.) Economia, istituzioni, cultura in Lombardia
nell’età di Maria Teresa. Volume secondo: Cultura e Società. Bologna: Società editrice il Mulino,
1982
88
Carpanetto e Ricuperati percebem com clareza esse fato e chamam a atenção, ainda, para a
importância da atuação do Dipartamento d’Italia e de seu responsável, o abade Luigi Ciusti: “Da
Vienna, infine, si seguivano con maggior attenzione le vicende dei territori lombardi, segno questo
di un accresciuto inserimento delle province italiane nella struttura politica dell’Impero. Tra Milano
e Vienna all’inizio degli anni Sessanta si stabili un asse di collaborazione che diede grandi risultati:
le pedine centrali di questo rapporto furono a Milano il Firmian, a Vienna il potente ministro per gli
affari esteri, Kaunitz, e il referendario presso il Dipartimento d’Italia, che fu fino al 1766 l’abate
veneziano Luigi Ciusti, il quale ebbe una parte di primo piano nella scelta degli uomini e nella
determinazione dell’indirizzo politico.” (CARPANETTO, Dino e RICUPERATI, Giuseppe. op. cit.,
p. 204-5.). Veja-se também: DIAZ, Furio. Toscana e Lombardia nell’età di Maria Teresa: modelli
di sviluppo del riformismo asburgico in Italia. In MADDALENA, Aldo De; ROTELLI, Ettore;
BARBARISI, Gennaro. (org.) Economia, istituzioni, cultura in Lombardia nell’età di Maria
Teresa. Volume secondo: Cultura e Società. Bologna: Società editrice il Mulino, 1982
78
guerra dos sete anos e pela contra-ofensiva patrícia e eclesiástica que marcou seu período
de adormecimento, Milão já contava com um novo círculo de intelectuais que se
candidatava ao protagonismo cultural dos próximos anos. Esse novo grupo de intelectuais
reunia-se em torno de Pietro Verri e era composto por jovens, quase todos patrícios, dentre
os quais podemos lembrar Alessandro Verri (irmão de Pietro Verri), Alfonso Longo,
Giambattista Biffi, Pietro Secco Comneno, Giuseppe Visconti, Sebastiano Franci, Luigi
Lambertenghi e Paolo Frisi. É nesse grupo que se encontra também Cesare Beccaria. Sob a
liderança de Pietro Verri, esses jovens formaram a chamada Società dei Pugni destinada a
ser uma associação para o livre pensamento e a livre discussão, sem estatuto ou mesmo um
programa definido, e voltada a combater o atraso e o imobilismo da sociedade.
89
O novo
grupo de jovens intelectuais inspirava-se entusiasticamente nas idéias do Iluminismo
francês e, assim, acompanhando o espírito dessa filosofia, reivindicavam reformas que
modernizassem a sociedade, que rompessem com as estruturas tradicionais que impediam o
progresso e que, ao contrário, o fomentassem, que reorganizassem, por fim, o conjunto
social segundo os parâmetros da razão. Em substituição à improvisação reformadora que
orientou o reformismo precedente, os jovens filósofos, graças à vinculação à articulada
ideologia constituída pela filosofia das Luzes e ao uso dos instrumentos intelectuais
recebidos dela, puderam apresentar projetos mais ou menos sistemáticos de reforma e
reorganização social.
90
89
No trecho a segui, Domenico Consoli, referindo-se ao retorno de Pietro Verri a Milão depois de
sua aventura militar na guerra do sete anos e de passar um tempo em Viena, elenca algumas das
características da Società dei Pugni: “Tornato a Milano, dopo un periodo di studi febbrili, con un
gruppo di amici, fra i quali primeggiava il Beccaria, dette vita all’Accademia dei Pugni (1761-
1762), un’accademia, per cosí dire, antiaccademica, senza statuti e programmi precisi, centro di
libere discussioni e coraggiose iniziative, posto sotto un segno di lucida aristocrazia intellettuale e
pure fermo nell’impegno antipatriziesco, nella lotta contro l’immobilismo, le arretratezze sociali, il
faticoso ozio dei grandi.” (CONSOLI, Domenico. Dall’arcadia all’illuminismo. Bologna:
Universale Cappelli, 1972, p. 126.).
90
Stuart J. Woolf percebe bem o significado da ascensão desses novos reformadores e ressalta
exatamente a diferença entre eles e o reformismo precedente: “Intanto era emerso a Milano un
nuovo gruppo di nobili, giovani ed impazienti, portatori di precise ed organiche proposte di riforma,
basate su una filosofia generale, che avrebbero dovuto superare quelle che, a loro avviso, erano le
semplici intuizioni e improvvisazioni empiriche dei Pallavicino, e dei Neri. Al centro di questo
gruppo stava la figura di Pietro Verri, ritornato a Milano dopo aver cercato l’avventura nell’esercito
austriaco e una sistemazione a Vienna, imbevuto delle nuove idee filosofiche e convinto della
necessità di scuotere la troppo soddisfatta società milanese. I giovani patrizi che si raccolsero
intorno al Verri, fra il 1762 e il 1766, nella Società dei Pugni (Beccaria, Longo, Biffi, Secco
Comneno, Visconti, Lambertenghi, Alessandro Verri, fratello di Pietro, e, poco dopo, Frisi)
79
Nos anos sessenta do século XVIII temos, portanto, na Lombardia
austríaca a insurgência de duas tendências reformadoras que buscavam a racionalização das
instituições e da sociedade. A primeira partia da dinastia da Áustria, a casa de Habsburg, e
era representada em Milão por Carlo di Firmian. O contexto de nascimento do reformismo
austríaco, produto da inspiração do modelo prussiano (conforme já tratamos ao falarmos da
ciência da polícia), nos permite ver claramente os objetivos a que visava. A racionalização
social e institucional deveria servir sobretudo para o fortalecimento do poder real, para a
consolidação do absolutismo e para o acúmulo de forças que garantissem uma posição
vantajosa em relação aos conflitos externos. Por um outro lado, na vizinha França a década
de 50 tinha consolidado de uma vez por todas a nova filosofia das Luzes. Basta lembrar que
é nela que começa a ser publicada a Enciclopédia, que é nela que Rousseau começa a
publicar suas primeiras obras, que ela é o cenário para infindáveis discussões sobre O
Espírito das Leis de Montesquieu (publicado em 1748). Podemos dizer, portanto, que a
década de 50 marca definitivamente a ascensão dos philosophes na França. Teríamos então
um novo grupo social cada vez mais influente que acreditava poder reavaliar todas as
crenças e todas as condições da vida humana a partir da razão, remover aquilo que
atrapalhava a realização das potencialidades humanas e, assim, promover o progresso. A
força das idéias francesas garantiria a sua difusão para toda a Europa e, na década de 60,
elas já se faziam presentes em grande parte dela. A instauração definitiva da filosofia das
Luzes na Lombardia com o grupo de jovens filósofos da Società dei Pugni traria consigo
uma outra tendência que, ao lado daquela que partia da dinastia austríaca, apontaria para as
reformas sociais e para a racionalização.
Em 1764 os jovens filósofos reunidos em torno de Pietro Verri criaram o
periódico Il Caffè, destinado a ser um veículo de manifestação do anseio filosófico pelas
rifiutavano l’erudizione formale delle accademie e i superstizionsi riti delle logge massoniche e
preferivano gli incontri semicasuali, animati da spirito egualitario. ‘Nous ne formons pas une
société établie sur un plan fixe et déterminé, mais une coterie’, scriveva il Beccaria. L’accettazione
entusiastica delle idee dell’Encyclopédie permeava tutti i loro scritti, dalle Considerazioni sul
commercio dello stato di Milano (1763) del Verri alle Meditazioni sulla felicità (1763) dello stesso
autore, dall’opera del Beccaria Dei delitti e delle pene (1764) alla multiforme critica del ‘Caffè’
(1764-66).” (WOOLF, Stuart J.; CARACCIOLO, Alberto; BADALONI, Nicola e VENTURI,
Franco. op. cit., p. 86-7.).
80
reformas.
91
O periódico durou até 1766 e teve, indubitavelmente, em Pietro Verri, além de
seu principal articulador, também o seu autor mais entusiasmado.
92
O periódico não tinha
um tema pré-definido, nem mesmo uma área de estudos determinada. Era composto, ao
contrário, por artigos que versavam sobre tudo, desde teatro
93
até questões sobre o
comércio e a economia em geral, passando pelas ciências exatas e naturais, pelo direito e
por questões da moda como a polêmica setecentista sobre o luxo. O que ligava todos os
91
O caráter reformador de Il Caffè e a influência recebida do iluminismo francês é observado por
Franco Venturi: “Suscitare ed alimentare lo spirito di riforma sarebbe stato il compito suo e dei suoi
amici, nella loro rivista, senza pretendere di inluenzare e risolvere situazioni specifiche. Si misero
per questa strada, mezzo obligati dalle pressioni esteriori, tutt’altro che piccole, dalla censura ecc., e
mezzo volontari, proprio perché questa maggiore genericità avrebbe permesso loro di discutere e di
affrontare quei problemi di civiltà, di morale, di diritto, di filosofia che essi negli ultimi loro anni
erano andati scoprendo dentro di sé e sui libri degli illuministi francesi.” (VENTURI, Franco.
Settecento riformatore. Volume I: Da Muratori a Beccaria (1730-1764). Torino: Einaudi, 1987, p.
720.). Pietro Verri e seus colaboradores inspiraram-se no periódico inglês Spectator para criar Il
Caffè. Seu nome atesta a intenção reformadora que estava por trás. O café é uma bebida de
propriedades estimulantes que se toma para despertar-se. Despertar os compatriotas para fazê-los
enxergar os caminhos equivocados que a sociedade estava trilhando e a conseqüente necessidade de
mudanças era precisamente o que Il Caffè objetivava. Carlo Capra refere-se também à idéia de criar
um ambiente imaginário no qual ambientar as contribuições do vários autores: “Il modelo dichiarato
del ‘Caffè’, come già dei giornali di Gasparo Gozzi e della ‘Frusta letteraria’ del Baretti, era lo
‘Spectator’ di Addison e Steele, uscito fra il 1711 e il 1714 e noto ai soci dei Pugni attraverso una
traduzione francese. Dallo ‘Spectator’ deriva l’idea di un luogo immaginario in cui ambientare i
contributi dei vari autori, come se si tratasse della registrazione di discorsi tenuti da coloro che lo
frequentano. La scelta di una bottega di caffè per tale cornice è dovuta non soltanto all’effettiva
crescente popolarità dei caffè come luoghi di ritrovo e di lettura dei giornali, ma anche alla
possibilità di giocare sulla ‘virtù risvegliativa’di questa bevanda [...]” (CAPRA, Carlo. I progressi
della ragione. Vita di Pietro Verri. Bologna: Società editrice il Mulino, 2002, p. 219-20.).
92
Segundo Carlo Capra: “Del ‘Caffè’ Pietro Verri fu non solo l’ideatore, ma anche l’animatore e il
direttore, come risulta confermato senza ombra di dubbio dalla recente edizione Francioni-
Romagnoli. Era lui a progettare e ‘impaginare’ i numeri, a tenere i contatti con lo stampatore e
l’amministratore, a decidere la pubblicazione o l’esclusione dei saggi proposti dagli amici, a
effettuare tagli o modifiche suggeriti dalla dichiarata preoccupazione di ‘serbare un perfetto silenzio
su i soggetti sacri’ e di non venir meno al ‘rispetto che merita ogni principe, ogni governo ed ogni
nazione’ (Al lettore, p. 5).” (CAPRA, Carlo. I progressi... p. 220.). O mesmo Carlo Capra fez um
levantamento que permite mensurar a participação de cada autor na elaboração do periódico: “La
paternità degli scritti pubblicati sulla rivista può essere quasi sempre attribuita con certezza grazie
alle sigle che contraddistinguono i diversi autori. Pietro e Alessandro Verri (44 e 31 articoli
rispettivamente) scrissero tra di loro più di metà delle 576 pagine del ‘Caffè’. Al confronto, assai
più sporadica è la collaborazione di Cesare Beccaria (sette articoli in tutto), di Sebastiano Franci e
Giuseppe Visconti (sei a testa), di Pietro Secchi (cinque contributi), di Alfonso Longo, Luigi
Lambertenghi e Paolo Frisi (due a testa), per non parlare delle collaborazioni ‘straordinarie’ di
Baillou, Boscovich, Carli, Colpani.” (CAPRA, Carlo. I progressi... p. 221.).
93
Sobre o Teatro em Il Caffè, veja-se: ROMAGNOLI, Sergio. Il teatro e “Il Caffè”. In
MADDALENA, Aldo De; ROTELLI, Ettore; BARBARISI, Gennaro. (org.) Economia, istituzioni,
cultura in Lombardia nell’età di Maria Teresa. Volume secondo: Cultura e Società. Bologna:
Società editrice il Mulino, 1982
81
textos entre si e dava alguma unidade ao conjunto era a batalha pelo esclarecimento, a
tentativa de despertar as pessoas da letargia intelectual e convidar todos a uma avaliação do
estado das coisas a partir de critérios racionais que aniquilasse a subserviência passiva à
tradição.
94
A enorme quantidade de temas tratados no Il Caffè e esse objetivo de despertar
os concidadãos para o uso da razão permitem-nos traçar uma semelhança com a obra que
constituiu justamente uma das principais inspirações para a renovação intelectual levada a
cabo pela Società dei Pugni, isto é, a Encyclopédie dos iluministas franceses.
95
De qualquer forma, é possível elencar algumas características gerais
presentes em Il Caffè que resumem a posição de seus autores com relação aos problemas de
seu tempo. Podemos citar, em primeiro lugar, o elogio do espírito crítico e do
desenvolvimento científico e intelectual em geral. Esse elogio era complementado pela
crítica aos estudos antiquados e infrutíferos, pouco voltados a capacitar os jovens para a
solução de problemas práticos, que constituíam a base da formação intelectual de então.
Um outro traço importantíssimo do periódico foi a luta pela modernização financeira do
Estado e pela dinamização econômica da sociedade, à qual se deve a crítica à proibição de
exercer atividades de comércio feita aos nobres. A crítica à legislação caótica e obscura
também foi realizada, acompanhada da ridicularização daquela veneração que lhe era feita
e que é inspirada pela habitual pomposidade e afetação do direito. Mas uma outra
interessante batalha caracteriza os escritos de Il Caffè. Tratava-se da luta contra o
autoritarismo familiar devido ao enorme poder paterno sobre os filhos.
96
Esse empenho
94
A unidade do conjunto de Il Caffè, consistente na intenção esclarecedora de seus artigos (no
sentido iluminista da palavra, evidentemente), é percebida também por Carlo Capra: “A conferire
uma unità di fondo ai materiali disparati che confluiscono nel ‘Caffè’ è questo comune impegno in
una ‘guerra continua e incessante contro la stolidità’ che pervade i fogli, quale che sia l’argomento
trattato, questa rivolta contro le pastoie della tradizione, contro la pedanteria e la cieca osservanza
delle regole, in tutti i campi dello scibile e in tutti i settori della vita associata.” (CAPRA, Carlo. I
progressi... p. 222.). Para uma análise de Il Caffè em relação ao tema do cosmopolitismo veja-se:
JONARD, Norbert. Cosmopolitismo e patriotismo nel “Caffè”. In MADDALENA, Aldo De;
ROTELLI, Ettore; BARBARISI, Gennaro. (org.) Economia, istituzioni, cultura in Lombardia
nell’età di Maria Teresa. Volume secondo: Cultura e Società. Bologna: Società editrice il Mulino,
1982.
95
Depois de observar o caráter enciclopédico que a pluralidade de temas dava a Il Caffè, Carlo
Capra acrescenta: “Un’enciclopedia, naturalmente, intesa nel senso dell’Encyclopédie di Diderot e
d’Alambert, come strumento per lo svecchiamento della cultura e il progresso della società, per una
battaglia latamente politica.” (CAPRA, Carlo. I progressi... p. 222.).
96
Ida Cappiello resume assim as características do reformismo da Società dei Pugni veiculadas em
Il Caffè: “Nel 1762, ‘una scelta compagnia di giovani di talento’, come la definí Pietro Verri, dette
82
possui duas fontes diferentes, mas complementares. Os jovens membros da Società dei
Pugni, ostentando uma relativa rebeldia que ofendia boa parte das estruturas sociais nas
quais se apoiavam as famílias a que pertenciam, certamente tinham muito que reclamar da
instituição familiar de então. Particularmente, Pietro Verri e Cesare Beccaria tinham
acabado de sair de experiências de dolorosos conflitos familiares.
97
Mas além desses fortes
motivos pessoais, o poder pátrio sobre os filhos tinha uma importante conseqüência
econômica, pois, na medida em que cerceava a autonomia, limitava a iniciativa econômica
vita all’Academia dei Pugni, e più tardi, dal giugno 1764 al maggio 1766, al giornale ‘Il Caffè’: si
trattava di giovani nobili, per lo più, imbevuti di idee nuove, lettori accaniti dei contemporanei
inglesi e francesi, in polemica aspra e violenta verso la famiglia, verso gli studi antiquati, verso la
condenna alla sola carriera burocratica (o al sacerdozio o alle armi) per i giovani nobili. Il dibattito
dell’Accademia e gli articoli de ‘Il Caffè’ si incentrarono sulla polemica contro l’autoritarismo della
famiglia, fondato sul potere dei padri, garantito dall’istituto dei fidecommessi, che ‘rende infelici i
cadetti, per caricare di richezza colui che ha avuto la sorte di nascere primo’, e dal coesistente
divieto, per i nobili, di darsi alla mercatura o ad attività produttive. Ne derivava la critica
all’‘ammasso di leggi, monumento di una grande opera mal eseguita’ ed alla stolta venerazione che
ad esso si tributava, e, nello stesso tempo, l’elogio delle scienze, dello spirito critico, dei progressi
che i buoni studi apportano alla società.” (CAPPIELLO, Ida. L’idea di stato nell’illuminismo
lombardo. In MADDALENA, Aldo De; ROTELLI, Ettore; BARBARISI, Gennaro. (org.)
Economia, istituzioni, cultura in Lombardia nell’età di Maria Teresa. Volume secondo: Cultura e
Società. Bologna: Società editrice il Mulino, 1982, p. 971-2.).
97
É bastante conhecido o conflito entre Beccaria e sua família motivada pelo seu casamento,
desautorizado por seu pai, com a jovem Teresa Blasco. Os problemas de Pietro Verri com sua
família também foram consideráveis. Sua partida para a guerra dos sete anos em parte já fora
motivado por eles. De volta a Milão, os problemas continuaram. A superficialidade e a estupidez de
seu pai e seu tio e as constantes críticas recebidas de ambos por conta de suas atividades,
consideradas por eles como inúteis e despropositadas, eram causa de enormes descontentamentos
experimentados por Pietro Verri. Carlo Capra relata o descontentamento de Pietro Verri com sua
família: “Tornato a casa, come si è visto, a metà gennaio 1761, Pietro Verri era ripiombato in mezzo
alle ‘noiosissime seccature domestiche’. Non solo il padre, che ‘in faccia dei domestici [...]
qualificava le sue occupazioni di bei studi d’ornamento, sogni ecc.’, anche lo zio monsignore ora
mostrava di fare poca stima di lui, dopo i denari spesi inutilmente a Vienna. Alle ristrettezze
finanziarie in cui era tenuto (‘mes finances sont si bornées qu’il faut que je me retranche une bonne
portion des plaisirs’, scriveva sempre al Biffi) si aggiungeva la pretesa, sempre più intollerabile, di
sindacare le sue opinioni e i suoi comportamenti in fatto di religione e di morale. Esasperato
dall’atmosfera autoritaria e bigotta che era costretto a respirare in famiglia, il non più giovanissimo
patrizio giunse a sfogarsi compilando tra il 1762 e il 1763 una sorta di sciocchezzaio domestico, un
elenco delle balordaggini pronunciate con aria di superiorità dallo zio e dal padre: ‘Nessuna
religione ha mai tolerato il concubinato’; ‘Sarebbe un bene che fossero arsi tutti i documenti del
censimento; ‘É un bene che si abbrugi la Venere dei Medici come scandaloza’; ‘Il padre può fare
imprigionare il figlio dal giudice senza allegare al giudice il motivo’; ‘Si fa ridicolo chi ha amici
non ricchi’; ‘Chiunque non crede che sia un’azione pia e meritoria abrugiare un eretico non è
catolico’; ‘Bengala è in America’; ‘Il governo spagnolo era ottimo per la Lombardia. Il Senato non
può peccare lasciando dilatare la giustizia ecclesiastica sulla regia’; e via discorrendo.” (CAPRA,
Carlo. I progressi... p. 177-8.).
83
pessoal dos filhos submetidos ao poder patriarcal e, assim, prejudicava a dinamização e o
incremento das atividades econômicas.
98
A questão econômica é o ponto central do interesse dos jovens filósofos.
Antes do início da publicação de Il Caffè o grupo da Società dei Pugni já havia debutado no
mundo das letras intervindo na questão da moeda de Milão.
99
Depois das intervenções
nessa discussão os temas econômicos reapareceriam em inúmeras outras obras, como nas
Considerazioni sul commercio dello stato di Milano, nas Riflessioni sulle leggi vincolanti
principalmente nel comercio dei grani ou ainda nas Meditazioni sulla economia politica,
todas de Pietro Verri,
100
nas Osservazioni sui fedecommessi ou nas Instituzioni economico
politiche, ambas de Alfonso Longo, ou em Alcune riflessi sull’opinione che il commercio
deroghi alla nobiltà de Alessandro Verri ou, ainda, nos Elementi di Economia Pubblica de
Beccaria. O acelerado desenvolvimento econômico que marcava o centro do capitalismo
europeu, onde estavam a França e, sobretudo, a Inglaterra, inspirava fortemente o clima
cultural em que se desenvolveu o Iluminismo francês. Assim na medida em que fortalecia a
idéia de que o ser humano poderia melhorar cada vez mais as suas condições de existência,
na medida em que fortalecia, com o exemplo da revolução industrial, a idéia de que a
98
As observações sobre os fideicomissos, de Alfonso Longo, deixam bem claro o significado
econômico que a questão tinha para os autores do Il Caffè: LONGO, Alfonso. Osservazioni su i
fedecommessi. In VENTURI, Franco. Illuministi Italiani. Tomo III Riformatori Lombardi,
Piemontesi e Toscani. Milano: Riccardo Riccardi Editori.
99
Segundo Carlo Capra: “La ‘battaglia’ monetaria si può considerare la prima uscita in pubblico del
gruppo di giovani ribelli che frequentava le stanze di Pietro Verri al pianterreno del palazzo di
Contrada del Monte. (CAPRA, Carlo. I progressi... p. 186.). A primeira intervenção do grupo na
questão deu-se com a obra de Beccaria Del disordine e de’ rimedi delle monete escrita sob a
supervisão de Pietro Verri.( BECCARIA, Cesare. Del disordine e de’ rimedi delle monete. In
BECCARIA, Cesare. Opere. A cura di Sergio Romagnoli. Firenze: Sansoni, 1958.) O próprio Pietro
Verri interviria pessoalmente com a obra Dialogo fra Fronimo e Simplicio. A questão tomou ares de
verdadeira polêmica quando o Marquês Carpani, que já havia tomado parte nela com a obra
Risposta ad um amico sopra le monete, divulgou um panfleto apontando um erro crasso no ponto de
partida dos cálculos que Beccaria fez para estabelecer suas tabelas de equivalências entre as várias
moedas em circulação. Os filósofos dei pugni contra-atacaram com um outro panfleto acusando-o
de plagiar, na Risposta, as obras de Cantillon e de Carli. Carpani, por sua vez, voltou ao combate
com a segunda edição da Risposta na qual reiterava as críticas a Beccaria e mais ou menos tentava
justificar o plágio. Alessandro Verri responde pelo partido dos pugni com a obra Riflessioni in
punto di ragione, uma sátira na qual, utilizando os argumentos mais estúpidos até então levantados
sobre a questão da moeda, fingia atacar Beccaria. A obra foi assinada com a sigla P.P.I.C. (que
significava Pascolo per i coglioni) e confundiu muita gente. (CAPRA, Carlo. I progressi... p. 184-
6.).
100
Não devemos esquecer ainda o caráter econômico das discussões sobre a questão do luxo, tratada
por Pietro Verri nas Considerazioni sulla proposizione di restringere il lusso nello Stato di Milano.
84
racionalidade, por meio da ciência, poderia contribuir para isso, na medida em que
fortalecia os valores liberais e igualitários, com exemplo dos benefícios gerais advindos da
abolição dos privilégios e da liberalização do mercado, esse desenvolvimento capitalista
deixaria marcas profundas nos escritos dos intelectuais franceses que clamavam pela
modernização institucional de seu país. Por algum motivo, os jovens patrícios de Milão,
leitores contumazes da literatura iluminista francesa, foram profundamente tocados pela
idéia dos benefícios que se poderia conseguir com a modernização econômica da sociedade
e resolveram dedicar boa quantidade de tinta ao assunto.
Uma outra característica interessante dos escritos dos jovens membros
da Società dei Pugni é a postura antinobiliárquica. Quando aparecia nos textos de Il Caffè e
em outros escritos, ela vinha geralmente associada à questão econômica. A razão disso é
que as concepções econômicas que caracterizavam as idéias dos Pugni entravam em
contradição com alguns dos fundamentos do modo de existência social da aristocracia. Mas
a aversão à aristocracia possui ainda um outro motivo importante. A questão nobiliárquica
constituiu uma parte importante dos debates políticos franceses do século XVIII. O
empenho contra os estamentos privilegiados foi uma marca das obras de Voltaire e de
Helvétius. A razão disso é que o processo de construção do absolutismo foi um processo de
expropriação de poder político levada a cabo pelo monarca contra a nobreza. Assim,
considerando o papel conservador que esta exercia no contexto político de então, o
absolutismo acabou tendo um caráter modernizador. Tudo isso levaria os autores
iluministas franceses a defenderem o fortalecimento do monarca em face dos estamentos
privilegiados com a esperança de que o papel modernizador exercido pelo absolutismo ao
longo da modernidade pudesse também se aprofundar. Assim como acontecia no caso dos
iluministas franceses, a postura antinobiliárquica dos filósofos do Il Caffè era parte da
defesa do caráter absoluto do poder do monarca. Essa postura pró-absolutista que, como
afirmamos, esteve presente até mesmo no Iluminismo francês, de longe o mais ousado
politicamente, teria muito mais razão para existir nos Iluminismos daqueles lugares em que
o atraso econômico e institucional ressaltava ainda mais o caráter modernizador do
desenvolvimento absolutista.
Para podermos entender melhor a postura antinobiliárquica dos jovens
filósofos da Società dei Pugni um breve aprofundamento na situação política da Lombardia
85
e de Milão, em especial, pode ser-nos útil. No ducado de Milão (e na Lombardia, em geral)
os estamentos dominantes eram constituídos pelo um patriciado urbano e não pela
aristocracia fundiária. Esse patriciado urbano conseguiu manter em suas mãos o controle
das atividades políticas e administrativas desde o período comunal até mais ou menos a
metade do século XVIII, passando, assim, pela dominação espanhola e pelos primeiros
anos da dominação austríaca. Sob a liderança política patrícia havia, podemos dizer, uma
espécie de equilíbrio entre patriciado urbano, aristocracia feudatária, alta burocracia e alta
burguesia. Os governadores representantes dos Estados dominantes, a Espanha primeiro e,
depois, a Áustria, não exerciam influência decisiva sobre a dinâmica do patriciado milanês
que, por sua vez, atuava decisivamente na perpetuação de seu domínio estabelecendo regras
rígidas para que uma família pudesse vir a fazer parte dele. Assim para se entrar no
patriciado milanês era necessário pertencer a uma antiga nobreza e fazer parte de uma
família que residisse a pelo menos um século em Milão e que não exercesse o comércio ou
qualquer outra profissão considerada vil.
101
Com a ascensão de Maria Teresa depois da
guerra de sucessão austríaca inicia-se, entretanto, uma época de progressivos conflitos entre
a coroa austríaca e os estamentos dominantes do ducado de Milão, que consistiam
basicamente nas resistências dos estratos privilegiados ao processo e centralização
administrativa do absolutismo habsbúrgico.
102
As tentativas de modernização institucional
do centralismo austríaco, iniciadas já em 1749 com o então plenipotenciário Ferdinand von
101
Carpanetto e Ricuperati, analisando os requisitos impostos pela dominação patrícia em Milão
para permitir que uma nova família nobiliárquica viesse a fazer parte dos estratos dominantes do
ducado, colocam em relevo o papel conservador que exerciam, ao garantirem a perpetuação de uma
homogeneidade no grupo dominante. Vejamos o que dizem os autores: “Anche per entrare a far
parte del patriziato milanese bisognava poter vantare requisiti altrettanto selettivi di quelli che erano
richiesti per ascendere al decurionato, quali la residenza da almeno un secolo della famiglia in
Milano, l’appartenenza ad un’antica nobiltà e la rigorosa esclusione della famiglia dal commercio e
da altre professioni considerate vili. Si richiedeva, in questo modo, che i nuovi aggiunti al patriziato
fossero già in qualche misura omogenei per posizione sociale e per ideologia al patriziato stesso.”
(CARPANETTO, Dino e RICUPERATI, Giuseppe. L’Italia del settecento: crisi, trasformazioni,
lumi. Roma-Bari: Editori Laterza, 1994, p. 77-8.). Um dos principais órgãos do poder patrício era o
Senado de Milão. Sobre ele, veja-se: MASSETTO, Gian Paolo. Osservazioni sull’attività
giudiziaria del senato milanese nell’età del Beccaria. In MADDALENA, Aldo De; ROTELLI,
Ettore; BARBARISI, Gennaro. (org.) Economia, istituzioni, cultura in Lombardia nell’età di Maria
Teresa. Volume secondo: Cultura e Società. Bologna: Società editrice il Mulino, 1982.
102
ARESE, Franco. La matricola del patriziato milanese di Maria Teresa. In MADDALENA, Aldo
De; ROTELLI, Ettore; BARBARISI, Gennaro. (org.) Economia, istituzioni, cultura in Lombardia
nell’età di Maria Teresa. Volume secondo: Cultura e Società. Bologna: Società editrice il Mulino,
1982.
86
Harrach, sob a influência de Pallavicini, serviram para dar uma prévia da luta que se
desenrolará, sobretudo a partir da década de 60, pelo estabelecimento de um Estado
burocrático centralizado e administrativamente eficiente, formado por funcionários
dependentes da coroa e portadores de novos valores cívicos que serão contrapostos, pela
administração central austríaca, à velha hegemonia patrícia e à estrutura institucional por
ela mantida.
103
Em função da distância territorial com relação à capital do império
austríaco e da sua incorporação mais ou menos recente a ele, a Lombardia era uma das
regiões politicamente menos integradas no complexo imperial habsbúrgico. Nessa distância
em relação ao centro do império a forte autonomia política milanesa, fundada sob a
liderança patrícia, encontraria bastante espaço para se consolidar. Assim, quando se abriu, a
partir da guerra de sucessão austríaca, o período reformador da dinastia habsbúrgica, a
política para a Lombardia teve que enfrentar justamente o problema da autonomia político-
administrativa milanesa e buscar aumentar a capacidade diretiva de Viena sob esse seu
domínio italiano. A competência de Viena e de seus plenipotenciários para a Lombardia na
realização dessa tarefa pode ser mensurada pela análise do sucesso alcançado pelos
programas de reformas institucionais: a distância do centro do império não levou a qualquer
atraso no desenvolvimento do reformismo da casa da Áustria em Milão. Ao contrário,
pode-se verificar não apenas um direcionamento vienense no processo de reformas lá
103
CAPRA, Carlo. Lo sviluppo delle riforme asburgiche nello Stato di Milano...; Dino Carpanetto e
Giuseppe Ricuperati resumem bem as características que, desde a tentativa reformadora de 1749,
irão marcar a luta monárquica pelo estabelecimento de uma burocracia centralizada e eficiente
baseada em uma renovação do quadro administrativo contra o poder aristocrático e a sua respectiva
estrutura administrativa. Vejamos o que dizem os dois autores: “Le riforme del 1749, volute dal
governatore Ferdinand von Harrach, ebbero una grande importanza in quanto per la prima volta in
modo coerente ed organico vennero formulati i princìpi fondamentali dello Stato burocratico –
accentramento, dipendenza gerarchica e impersonalità delle cariche pubbliche, separazione
funzionale delle competenze –, in contrasto con l’esistente edificio istituzionale che era invece
basato sulla separazione e sull’intreccio di poteri tra diversi organismi amministrativi, sulla gestione
privata delle cariche pubbliche, sull’assenza di scale gerarchiche. In altre parole, nel 1749 apparvero
in nuce tutti gli elementi della battaglia riformatrice che in Lombardia si svilupperà a pieno a partire
dagli anni Sessenta, e che tenterà di opporre alla frantumazione istituzionale e all’egemonia
aristocratica una forte direzione politica dello Stato, delimitando i poteri della nobiltà e opponendo
a questa un ceto di funzionari formatosi su nuovi valori civili e fornito di nuove competenze
amministrative.” (CARPANETTO, Dino e RICUPERATI, Giuseppe. op. cit., p. 80.). Veja-se,
também: SCHOBER, Richard. Gli effetti delle riforme di Maria Teresa sulla Lombardia.
87
desenvolvido,
104
como também uma sincronicidade entre o que se realizava nas regiões
submetidas diretamente à administração vienense e aquilo que se fazia em seu domínio
lombardo.
105
A competência com que Viena conseguiu impor à Lombardia seu programa
reformador não deixam dúvidas sobre o êxito obtido na tentativa de subordinação de sua
elite política. Um dos fatores determinantes na vitória do reformismo da coroa austríaca
contra as tendências conservadoras representadas pelo patriciado milanês foi sua
capacidade de encontrar, na própria região, aliados que pudessem servir de base para a luta
contra seus adversários.
SEÇÃO II – A formação do absolutismo esclarecido na Lombardia: a luta contra o
patriciado e a coalizão entre os filósofos e a dinastia habsbúrgica.
Conforme havíamos observado, a questão nobiliárquica aparecia, em Il
Caffè, conectada à questão econômica. Já analisamos também o que representava para o
projeto absolutista o poder político da nobreza, bem como a postura pró-absolutista que
geralmente era tomada pelo Iluminismo, em meio aos conflitos entre nobreza e coroa. O
caso da Lombardia, a despeito de suas singularidades, como o fato de o absolutismo que lá
atuava ser estrangeiro, representava um característico exemplo das lutas políticas que
marcavam a relação entre nobreza, coroa e Iluminismo em boa parte da Europa. Além
disso, aquela rebeldia contra a família que marcou a biografia de Cesare Beccaria e
104
“È vero, però, che le vicende politiche che si dipanano a Milano non si possono comprendere se
le si isolano dal più generale movimento riformatore asburgico e dalle scelte adottate nelle
segreterie e negli uffici di Vienna. Da qui partono gli impulsi generali, che poi si adattano alle
diverse situazioni locali che sono chiamate a recepirli e interpretarli.” (CARPANETTO, Dino e
RICUPERATI, Giuseppe. op. cit., p. 197.).
105
“Non appare neppure del tutto esatto affermare, come spesso si è fatto, che il Milanese si mosse
in ritardo rispetto ad altre regioni asburgiche o che arrivò ultimo all’appuntamento delle riforme;
balza evidente, al contrario, un sincronismo di fondo tra i progetti e le realizzazioni del centro e
quelle enunciate e praticate nella periferia italiana. Grosso modo l’orologio delle riforme girava con
la stessa velocità a Vienna, come a Praga e come a Milano. Una prima conferma è fornita dalla
periodizzazione.” (CARPANETTO, Dino e RICUPERATI, Giuseppe. op. cit., p. 198.).
88
sobretudo a de Pietro Verri ganha, agora, novos contornos. A par das significativas
questões pessoais, ela poderia representar uma rebeldia contra o que significava, dentro do
contexto político da época, o patriciado milanês.
106
Mas uma outra coisa nos chama a
atenção: além de Beccaria e os irmãos Verri, todos os jovens membros da Società dei
Pugni, com a exceção de Paolo Frisi, eram patrícios, isto é, eram membros justamente
daquelas famílias cujos interesses eram atingidos pelas páginas de Il Caffè. O que poderia
significar esse estranho fato? Para podermos resolver esse emaranhado de problemas
devemos apreciar agora o significado político da questão econômica nas relações entre o
absolutismo austríaco e o patriciado de Milão e a importância que teve, nela, a participação
dos jovens filósofos do Il Caffè.
Na verdade, a questão econômica, a defesa do absolutismo e a postura
antinobiliárquica possuem uma profunda conexão. Não devemos nos esquecer que os
filósofos milaneses escreviam em um lugar no qual o reformismo régio já havia começado
havia alguns anos e que justamente na época em que as principais obras deles começavam a
vir a lume esse reformismo era retomado para iniciar sua fase mais frutífera. O papel
modernizador que se esperava poder ser realizado pelo monarca absoluto era, na Lombardia
austríaca, uma realidade efetiva. Justamente a modernização das finanças públicas e a
modernização econômica, tão caras aos jovens intelectuais da Società dei Pugni, já vinham
sendo postas em prática pelo plenipotenciário Carlo di Firmian. Podemos dizer, assim, que,
na abertura da década de 60 do século XVIII, as duas tendências que apontavam para a
modernização e a racionalização sociais começavam a conviver e se entender bem. Uma
106
É precisamente esta a opinião de Carpanetto e Ricuperati que, no trecho a seguir, comparam as
posturas políticas de Pietro Verri com as de seu pai: “Gabriele Verri, il padre, non privo di
intelligenza e cultura letteraria, membro di quel Senato che aveva percepito con malessere la
volontà accentratrice di Vienna, era un tipico campione di quella resistenza e di quel
conservatorismo patrizio che contrastava ogni proposta del riformismo asburgico. Il malessere e la
diversità di Pietro, il figlio maggiore, fin dagli anni della formazione scolastica, si accentuarono
quando gli fu imposto di laurearsi in legge. Ci fu allora la breve avventura militare, all’interno della
guerra dei Sette anni, e poi la ricerca di un proprio rapporto con quel potere che il padre, come
senatore, tendeva a combattere e a frenare. La riflessione di Pietro Verri non poteva non partire dal
censimento e dalla constatazione che esso non solo era stato un’operazione positiva, ma era stato
reso possibile dalla forza esterna dell’Impero. I dati a disposizione parlavano chiaro: la Lombardia
era una terra potenzialmente molto più ricca di quanto non mostrassero gli indici di produzione
agricola e industriale. [...] In realtà, i primi atteggiamenti riformatori di Pietro Verri sembravano
anticipare soltanto quelle esigenze di accentramento e di razionalità che gli Asburgo avevano
cominciato a progettare per i loro spazi, magari sotto la spinta delle necessità militari.”
(CARPANETTO, Dino e RICUPERATI, Giuseppe. op. cit., p. 324.).
89
que partia do trono austríaco e que atendia, sobretudo, às exigências da luta pelo poder e
outra que vinha da filosofia que, na França, difundia a idéia de que, usando a razão, o ser
humano poderia melhorar suas condições de vida. De um lado temos, então, a tendência à
modernização social e institucional que vinha de Viena, da política de Maria Teresa e de
seu ministro Kaunitz, que se inspirava no modelo prussiano, retirava lições da ciência da
polícia e buscava fundamentalmente o fortalecimento do trono em face de seus
concorrentes no plano interno, isto é, os nobres, e de seus concorrentes no plano externo,
isto é, as outras potências européias. De outro lado temos a racionalização e a
modernização reivindicadas pelos ilustrados redatores de Il Caffè que tinham como objetivo
promover a melhora nas condições de vida dos cidadãos e o aperfeiçoamento moral da
sociedade. As relações entre essas duas tendências racionalizadoras presentes na sociedade
lombarda tiveram na questão econômica um importante ponto de apoio.
Desde o início, nos princípios da década de quarenta, as tendências
reformistas que partiam da dinastia de habsburg foram impulsionadas por motivos de
ordem econômico-financeira.
107
Como já havíamos visto, o projeto absolutista, em toda
parte, demandava recursos para viabilizar a reestruturação da burocracia central e o
fortalecimento do exército.
108
A situação das finanças reais, entretanto, eram muito ruins,
sobretudo, devido às despesas com a guerra de sucessão austríaca. A necessidade de sanar o
107
Mesmo antes das manifestações mais fortes e, progressivamente, mais sistemáticas de
reformismos que vão surgir, aos poucos, na década de quarenta, a preocupação econômico-
financeira, geralmente conectada a questão bélica, era já uma constante na dinâmica política da
coroa austríaca. Richard Schober nos confirma isso no trecho seguinte: “In seguito alla costosa
guerra di sucessione spagnola, prima preoccupazione del governo fu, necessariamente, quella di
ricostituire una certa prosperità economica, mediante un rilevamento accurato delle imposte da
parte dello Stato.” (SCHOBER, Richard. Gli effetti delle riforme di Maria Teresa sulla Lombardia.
In MADDALENA, Aldo De; ROTELLI, Ettore; BARBARISI, Gennaro. (org.) Economia,
istituzioni, cultura in Lombardia nell’età di Maria Teresa. Volume secondo: Cultura e Società.
Bologna: Società editrice il Mulino, 1982, p. 202.).
108
A preocupação com o fortalecimento militar foi uma constante nos acontecimentos políticos da
formação do absolutismo tardio do século XVIII. As tensões que marcavam as relações
internacionais da Áustria com a vizinha Prússia, que em parte está também na origem do impulso
reformista da década de quarenta, faria do fortalecimento militar um dos objetivos centrais do
governo de Maria Teresa, sobretudo em seus primeiros anos. Carpanetto e Ricuperati analisam a
preocupação vienense com a questão militar: “L’altra grande preoccupazione presente ai politici
viennesi negli anni Quaranta e Cinquanta fu quella militare. Nel potenziamento dell’esercito si
preferì demandare ai singoli paesi, facenti parte della Monarchia, la responsabilità di reclutare e
mantenere armate ‘nazionali’, le quali potevano meglio rispondere alle esigenze offensive e
difensive di un dominio dai confini molto estesi.” (CARPANETTO, Dino e RICUPERATI,
Giuseppe. op. cit., p. 199.).
90
déficit resultante da guerra e de criar uma base fiscal que garantisse uma arrecadação
corrente para fazer frente às futuras e constantes despesas que adviriam dos projetos reais
foram, então, o ponto de partida das reformas que, de Viena, atingiriam a Lombardia.
Desde logo, duas coisas eram importantes: a primeira era aumentar a capacidade do fisco
real, ou seja, aumentar a eficiência da coleta de impostos; a segunda era fomentar, a partir
do Estado, o desenvolvimento econômico a partir do qual se extrairia os recursos que
sustentariam o fortalecimento institucional monárquico. Na medida em que a concepção
estritamente mercantilista, dominante nos primeiros anos da fase reformadora, vai sendo
superada crescia a tendência a dirigir o intervencionismo estatal para o desenvolvimento
econômico interno, para o crescimento das atividades produtivas, para um uso mais
racional da terra, para a implantação de manufaturas, etc..
109
De qualquer forma, para que
tudo isso fosse possível era necessário desenvolver métodos administrativos mais racionais
e eficientes e, principalmente, centralizados, isto é, que estivessem sob o controle do poder
político central. O resultado político mais significativo do processo de centralização
administrativa e modernização institucional instrumental foi o enfraquecimento do poder
político aristocrático em geral, mas principalmente do poder do patriciado urbano. As
reformas na área econômica perdurarão durante todo o governo de Maria Teresa e de José
II. As duas grandes medidas de Firmian na década de 60, a época de ascensão do
Iluminismo lombardo, foram a reforma da Ferma generale e a instituição do Supremo
Consiglio di Economia.
110
109
Já com Neri a necessidade de prover às despesas reais através da arrecadação deu lugar para o
surgimento de uma política econômica destinada a favorecer as atividades produtivas, incluindo as
de natureza manufatureira e industrial. Uma das conseqüências políticas mais significativas disso é
o fortalecimento da burguesia em detrimento do poder e do prestígio dos velhos estamentos
privilegiados, especialmente o patriciado milanês. Sobre isso, vejamos Richard Schober: “Seppure
il Neri stesso non riuscí a risolvere completamente il problema della esenzione dalle imposte di cui
godeva la Chiesa [...] la sua opera costituí la base per il felice sviluppo della vita economica
lombarda nella seconda metà del XVIII secolo. L’esenzione dalle imposte di artigiani e industriali
rappresentò un impulso particolarmente positivo per la industrializzazione, appena nata,
dell’economia lombarda e favorirí, contemporaneamente, lo sviluppo sociale della borghesia a
spese dei vecchi ceti privilegiati.” (SCHOBER, Richard. Gli effetti delle riforme di Maria Teresa
sulla Lombardia. In MADDALENA, Aldo De; ROTELLI, Ettore; BARBARISI, Gennaro. (org.)
Economia, istituzioni, cultura in Lombardia nell’età di Maria Teresa. Volume secondo: Cultura e
Società. Bologna: Società editrice il Mulino, 1982, p. 202-3.).
110
Como havíamos alertado, a instituição da Ferma generale, na época de Pallavicini, representava,
para o momento, um avanço institucional na administração fazendária, mas poderia se transformar,
no futuro, em um grande óbice para as políticas de modernização absolutística. Tal como acontecia
91
Em princípio, as idéias econômicas dos filósofos da Società dei Pugni
favoreciam os setores produtores emergentes, como os proprietários de terras que tentavam
aproveitá-las utilizando métodos modernos voltados à produção para o mercado e os
empreendedores que, naquela mesma época, já haviam instalado as primeira manufaturas
da Lombardia. Inspirando-se na literatura iluminista fisiocrática, que na década de 60 já
havia alcançado enorme popularidade, eles reivindicariam a eliminação dos vínculos
feudais sobre a terra que impediam seu uso econômico mais racional e eficiente, a
eliminação das corporações que impediam a existência do livre-mercado, o
aperfeiçoamento do sistema fiscal e administrativo em geral e a eliminação da proibição de
exercício do comércio para os nobres. Como já dissemos, a questão econômica era também
importantíssima para a política de fortalecimento do poder real. A óbvia relação entre a
situação financeira de um Estado e a sua condição na política internacional faria com que a
monarquia austríaca buscasse por todas as formas aumentar suas fontes de renda. A
dinamização da economia, portanto, deveria necessariamente fazer parte da política de
fortalecimento do poder monárquico, pois permitiria que se extraísse, pela tributação, os
recursos necessários ao fortalecimento tanto da burocracia quanto do exército real. Essa
dinamização econômica seria feita com o estímulo à produção e ao comércio interno e,
assim, favorecia justamente aqueles setores produtores emergentes, sufocados pelas
estruturas feudais e corporativas. Assim as reformas executadas na Lombardia pela coroa
na França, os fermieri transformaram-se em uma poderosa e conservadora elite financeira. A
instituição da comissão para reforma da Ferma generale é narrada, no trecho a seguir, por
Carpanetto e Ricuperati: “Ben diverso fu il rapporto tra Vienna e i poteri locali quando si trattò di
rivedere i contratti stipulati con i fermieri. Questi avevano perso molti appoggi a corte, a motivo sia
dell’esosità dei prestiti che concedevano allo Stato, sia delle vessazioni a cui sottoponevano le
popolazioni della Lombardia. Dazi aumentati, controlli più estesi, nuove imposizioni di tasse erano i
risultati dello strapotere che il gruppo dei fermieri stava accumulando in virtù della sua forza non
solo finanziaria, ma anche militare, dal momento che disponevano di un proprio braccio armato. Le
voci di questo malessere giugevano a Vienna attraverso le consulte del Magistrato Camerale di
Milano, che spesso riferivano delle tristi condizioni che si pativano in Lombardia a causa dei
numerosi controlli fatti dagli sbirri della Ferma. Contro i soprusi dei fermieri e contro il loro potere
finanziario vi fu la convergenza della Magistratura Camerale di Milano, che manifestava
l’avversione dei patrizi milanesi verso una compagnia composta di stranieri come era la Ferma di
Greppi, con la Cancelleria viennese, ispirata dal referendario Luigi Giusti, così che nel 1764 fu
affidata ad una commissione dipendente dal Magistrato Camerale l’incombenza di preparare un
progetto di riforma della Ferma.” (CARPANETTO, Dino e RICUPERATI, Giuseppe. op. cit., p.
207.). Posteriormente, em 1770 a Ferma generale seria definitivamente extinta e o Estado passaria a
se ocupar diretamente do recolhimento dos impostos, livrando-se assim das pressões financeiras dos
antigos fermieri.
92
austríaca estariam, em boa medida, de acordo com aquilo que era proposto pelo círculo dos
intelectuais que escreviam no Caffè.
A questão nobiliárquica pode agora ser apreciada com mais propriedade.
A característica luta dos monarcas contra os estamentos ganha um novo componente: agora
eles não são apenas os rivais da coroa na luta pelo poder dentro do Estado; eles são também
aqueles que impedem a aplicação de uma política mais racional, voltada para o
desenvolvimento econômico e para o conseqüente fortalecimento institucional, o que afeta
também a luta política em face dos concorrentes externos. O poder político e os privilégios
nobiliárquicos, especialmente patrícios, que caracterizavam a estrutura política milanesa
eram óbices para o programa econômico modernizador e dinamizador que necessariamente
deveria fazer parte do projeto absolutista da monarquia austríaca e, assim, o avanço do
reformismo habsbúrgico na esfera econômica implicaria necessariamente o declínio do
patriciado milanês.
111
Além do declínio do poder político patrício, as reformas econômicas
ainda promoviam a ascensão de novos grupos sociais. Podemos dizer, assim, que a questão
econômica não muda apenas o sentido da luta interna pelo poder político entre o monarca e
os estamentos, ela também altera a sua dinâmica, pois o papel negativo que a aristocracia
acabaria adquirindo em relação ao desenvolvimento econômico (que, é claro, não
interessava apenas à coroa, mas ao próprio conjunto social, de uma forma geral)
contribuiria decisivamente para eliminar a hegemonia social da aristocracia. Além disso, o
111
A situação econômica desfavorável que teve de ser enfrentada pela monarquia austríaca, a
conseqüente política de modernização econômica (e institucional) que essa situação demandava e as
conseqüências políticas desfavoráveis à autonomia estamental lombarda que o sucesso das
intenções reformadoras implicaram, foram postas em evidência por Carpanetto e Ricuperati no
trecho que segue: “Lo spunto iniziale da cui mossero i dirigenti viennesi e che si ritrova identico nei
riformatore che agivano in Lombardia, fu fornito dalla precaria situazione in cui versavano le
finanze pubbliche, dissestate dalle ingenti spese di guerra. Per ripianare un deficit di proporzioni
inconsuete e per tener attivo un flusso fiscale in grado di coprire le future spese, i tradizionali
strumenti amministrativi risultavano del tutto inadeguati. Crebbe la consapevolezza che bisognasse
mettere in atto forme nuove di prelievo, più razionali, più efficienti, più estese, ma soprattuto più
controllate dalla burocrazia pubblica. Su questo terreno si perfezionarono gli strumenti della
fiscalità di Stato e si andò anvanti nella centralizzazione amministrativa: processi, questi, che
ebbero come risultato la riduzione delle autonomie dei ceti e delle istituzioni di carattere
‘nazionale’, pur se per tutto il periodo teresiano tali prerrogative furono nella sostanza rispettate e
mantenute.” (CARPANETTO, Dino e RICUPERATI, Giuseppe. op. cit., p. 198.). Em princípio, ao
contrário do que aconteceu com o patriciado urbano, a aristocracia feudatária não foi
significativamente afrontada pelas primeiras ondas de reformas. Somente nos anos oitenta, sob o
governo de José II, a questão feudal se tornará um ponto central dos conflitos políticos envolvendo
a pretensão centralizadora e racionalizadora da monarquia austríaca.
93
sucesso das reformas econômicas, ao promover a ascensão de novos grupos sociais, criaria
uma enorme base social de apoio ao monarca.
112
Ante aos benefícios sociais mais ou menos
gerais advindos da política de fortalecimento econômico a nobreza, e o patriciado em
particular, cairá em um progressivo e crescente descrédito em face do conjunto social. A
partir de então, dificilmente ela conseguirá mobilizar as massas, sejam urbanas ou
camponesas, em rebeliões contra o poder real, tal como aquelas que marcaram, por toda a
Europa, o século XVII.
A percepção por parte dos jovens filósofos de que o monarca era a única
força que, naquele contexto, realmente poderia realizar as reformas necessárias e
implementar um processo de desenvolvimento econômico nos termos propostos levou-os
definitivamente para o lado do absolutismo. A questão econômica, ou mais exatamente, a
mesma posição em relação aos problemas econômicos propiciava a aproximação entre os
filósofos do círculo do Il Caffè e o absolutismo austríaco. Assim a vinculação dos filósofos
da Società dei Pugni com a proposta absolutista da coroa austríaca, que estava em luta
contra os estamentos, acabava fortalecendo as tendências antinobiliárquicas que os
caracterizava. Na medida em que os estamentos, com seus privilégios, impediam o
desenvolvimento econômico e a implementação de reformas de interesse geral, nos escritos
dos jovens iluministas lombardos eles apareceriam como sendo o verdadeiro poder
despótico contra o qual dever-se-ia lutar e contra o qual o soberano já estava efetivamente
lutando.
113
Podemos dizer, assim, que a identificação dos jovens filósofos iluministas da
112
A ascensão da burguesia milanesa, propiciada pelas políticas de incentivo ao desenvolvimento
econômico, abalariam, por si só, fortemente as estruturas de dominação patrícias e criaria um grupo
social fortemente interessado na continuidade e no aprofundamento das reformas conduzidas pelos
representantes da monarquia habsbúrgica. Richard Schober nos diz alguma coisa sobre o papel
político da burguesia emergente de Milão: “La nuova borghesia emergente stringeva d’assedio il
potere dei patrizi e dei nobili che comandavano nel Senato, faceva vacillare le strutture tradizionali
dello Stato e restringeva l’influenza della Chiesa. Dopo un periodo di incubazione durato diversi
decenni questi cambiamenti sociali, unitamente alla volontà di riforma dello stato illuminato –
tuttavia anche grazie a una loro reciproca influenza – condussero, a partire dalla metà del XVIII
secolo, a importanti iniziative.” (SCHOBER, Richard. Gli effetti delle riforme di Maria Teresa sulla
Lombardia. In MADDALENA, Aldo De; ROTELLI, Ettore; BARBARISI, Gennaro. (org.)
Economia, istituzioni, cultura in Lombardia nell’età di Maria Teresa. Volume secondo: Cultura e
Società. Bologna: Società editrice il Mulino, 1982, p. 201-2.).
113
Essa postura manifesta-se claramente na obra O verdadeiro despotismo de Gorani: GORANI,
Giuseppe. Il vero dispotismo. In VENTURI, Franco. Illuministi Italiani. Tomo III Riformatori
Lombardi, Piemontesi e Toscani. Milano: Riccardo Riccardi Editori. Partindo igualmente da
questão econômica, Ida Cappiello traça um esquema de interpretação em que os filósofos do Il
94
Lombardia com o absolutismo baseava-se, ao menos em princípio, na posição comum em
relação à questão econômica e na postura antinobiliárquica.
A progressiva identificação entre a filosofia iluminista e o reformismo
régio começa a levar a uma mudança da imagem que se tinha do príncipe. Ele passa a ser
apresentado como aquele que dissolve os despóticos poderes intermediários daqueles que
oprimem, com seus privilégios, o conjunto social e impõe a esta uma organização mais
racional e, ao mesmo tempo, mais justa. Quanta diferença não encontramos aqui em relação
àquela outra imagem de “tirano” que se fazia do príncipe toda vez que ele ameaçava a
autonomia dos poderes intermediários, o apenas nobiliárquicos, mas também
eclesiásticos, citadinos e corporativos, e que servia, sobretudo no século anterior (o século
XVII), para arrebanhar as massas em rebeliões contra as tentativas de centralização
monárquica! Os escritos dos jovens da Società dei Pugni contribuíram, na Lombardia,
justamente para afirmar aquela nova imagem benéfica e valorosa do soberano em sua
empreitada centralizadora, em detrimento desta velha.
114
É desse modo que as duas
Caffè conciliava sua tendência antinobiliárquica coma tentativa de buscar base social na burguesia
emergente. Esta, por sua vez, encontrava-se com a atividade reformadora da coroa austríaca que,
por necessidades financeira, atacava o poder dos estamentos. Assim a “batalha cultural do ‘Caffè’”
acabava respondendo às exigências de centralização absolutista e modernização econômica.
Vejamos a suas palavras: “Con apparente moderazione, – ‘noi viviamo in moderati governi,
scrivevano i compilatori de ‘Il Caffè’, nei quali ciò che dobbiamo aborrire sono le sole rivoluzioni’
– con accettazione del dispotismo, o meglio dell’assolutismo che si preparava ad abbattere
strumenti di dispotismo sostanziale di corpi e ceti privilegiati, i giovani illuministi coniugarono la
tradizione antifeudale cittadina con l’intelligente tentativo di trovare alleati nelle forze borghesi,
ancora fragili, ma non piú trascurabili. Per la ‘borguesia’ emergente era vitale che si eliminassero
gli ostacoli rappresentati dai vincoli feudali sulla terra, dal pessimo sistema fiscale, dalla presenza
delle corporazioni, che determinavano la rigidità del mercato di lavoro ed il persistere di metodi
superati nella produzione e nella organizzazione aziendale. Come le esigenze ‘borghesi’ si
incontrava la volontà riformatrice austriaca, che nasceva da necessità finanziarie, ma proprio per
questo era indotta a muoversi in direzione antifeudale, che aveva di mira l’accentramento e si
volgeva perciò alla demolizione dei corpi intermedi. Alle stesse esigenze rispondeva la battaglia
culturale del ‘Caffè’, che si propose di pubblicare ‘cose varie, cose disparatissime, cose inedite,
cose fatte da diversi Autori, cose tutte dirette alla pubblica utilità’, e, sucessivamente, l’opera degli
illuministi impegnati personalmente in posti di grande responsabilità, per il quali ‘la filosofia (che)
era stata legislatrice nei giureconsulti romani (...) sedeva amministratrice di finanze e d’annona e
d’aziende comunali’.” (CAPPIELLO, Ida. L’idea di stato... p. 972-3.).
114
Nem todos estão de acordo com esta interpretação. Domenico Consoli, por exemplo, afirma o
seguinte: “Bisogna allontanare il sospetto che il Caffè sia stato nella sostanza, un organo del
dispotismo illuminato. In realtà, sotto la spinta di un vigoroso spirito europeistico, e accettando, sí,
una struttura politica che si riteneva improduttivo cambiare, esso si mise al servizio di un altro
dispotismo (se cosí possiamo chiamarlo), quello delle buone leggi, della buona amministrazione
dello stato, del progresso e del benessere del popolo, senza grettezze e municipalismi, mantenendosi
95
tendências que apontavam para a racionalização social e institucional, a que partia do trono
austríaco e a que vinha da filosofia iluminista recebida na Lombardia pelos jovens
membros da Società dei Pugni, começam a se conciliar. O absolutismo esclarecido é
justamente a fusão dessas duas tendências que apontavam para a racionalização social; é a
fusão, em uma só tendência reformista, desse reformismo que vinha da filosofia iluminista
com o reformismo régio. Podemos dizer, assim, que os primeiros passos da formação do
absolutismo esclarecido foram dados com a progressiva suplantação, feita pelos intelectuais
iluministas, da imagem maléfica e desfavorável que se fazia do monarca, quando ele
concentrava poderes em suas mãos e assumia uma posição ativa frente à dinâmica social,
por aquela outra, benéfica e elogiosa.
115
Podemos dizer também que a confluência entre as
duas tendências modernizadoras e racionalizadoras, e assim o próprio absolutismo
esclarecido, baseava-se, ao menos em princípio, na posição comum em relação à questão
econômica, ou seja, na racionalização da economia, e na postura antinobiliárquica que, em
parte, era sua conseqüência.
A coalizão entre os intelectuais iluministas e o projeto absolutista é
representada pela simbólica obra de Paolo Frisi, o Elogio de Maria Teresa Imperatriz.
Escrita em 1783 como uma homenagem póstuma à imperatriz, morta em 1780, ela se
tornou uma arma de combate na luta pela continuidade das reformas que haviam
caracterizado o seu reinado. A morte de Maria Teresa havia motivado, como era de se
esperar, uma série de manifestações públicas que, direta ou indiretamente, acabavam
fedele, con raro buon senso, a una sana concezione italiana della civiltà, sia che trattasse dei
fedecommessi, o del lusso, o del commercio (dichiarato non incompatibile con la nobiltà), o di
conquiste scientifiche, o di agricoltura o di una migliore distribuizione del reddito pubblico, o di
nuovi principi letterari e linguistici.” (CONSOLI, Domenico. Dall’arcadia... p. 127-8.).
Descordamos produndamente da posição desse autor. É interessante notarmos, aliás, que as idéias
de boas leis, boa administração, progresso e bem-estar do povo (apontadas pelo autor como os
verdadeiros objetos de interesse dos redatores de Il Caffè) eram toda ligadas, nos escritos dos
filósofos milaneses, à atividade reformadora do príncipe. Isso nos permite afirmar que a
mencionada aceitação de una struttura politica che si riteneva improduttivo cambiare (ou seja, o
absolutismo) feita a serviço, como afirma o próprio autor, das boas leis, da boa administração, do
progresso e do bem-estar do povo, caracteriza, portanto, o chamamos de absolutismo esclarecido.
115
Não queremos dizer com isso que os autores iluministas foram os únicos a agir nessa mudança
da imagem do monarca absoluto, nem que foram os primeiros. Ao contrário, apenas queremos
enfatizar que participaram desse processo e que a sua participação se recobre de especial
significação para os propósitos da presente pesquisa, pois estabelece uma conexão entre a proposta
absolutista e as idéias da filosofia das Luzes e, assim, relaciona-se com a formação do absolutismo
esclarecido.
96
posicionando-se em relação ao significado de seu governo e de suas reformas. Uma delas
foi a oração fúnebre à imperatriz pronunciada, em Milão, pelo abade e ex-jesuíta Anton
Siro Vanini perante toda a classe dirigente milanesa. Nessa oração, o abate, ressaltando a
piedade religiosa de Maria Teresa, pintava uma imperatriz agente de tendências
conservadoras e antimodernistas, fazia referência ao avanço da incredulidade do século e
reprovava os entusiastas do progresso da espécie humana.
116
Paolo Frisi, intelectual dedicado sobretudo às ciências exatas
117
e ex-
participante do grupo dos jovens da Società dei Pugni, já havia se consagrado como escritor
daquele gênero literário. Basta lembrar, quanto a isso, o Elogio de Gabriello Manfredi, o
Elogio de Galileu, o Elogio de Cavalieri, o Elogio de Newton e o Elogio de Pomponio
Attico, textos estes que foram escritos por ele antes da morte de Maria Teresa e que foram
muito elogiados pela crítica.
118
O Elogio di Maria Teresa Imperatrice foi publicado
anonimamente em Pisa apenas em 1783. Apesar do demora para que a homenagem viesse à
tona, motivado pela oração do abade Vanini, Frisi já havia manifestado a intenção de
escrevê-lo logo após o enterro da soberana. A obra de Frisi foi uma resposta à leitura
distorcida do governo de Maria Teresa feita pelo abade Vanini.
119
Seu objetivo era, ao
116
A oração de Vanini foi publicada posteriormente com o nome de Orazioni fúnebre per le Reali
esequie celebrate allá sacra cesarea apostolica Maestà di Maria Teresa Imperatrice Regina
recitata in Milano dall’abate Anton Siro Vanini. Sobre a oração de Vanini, Gennaro Barbarisi
afirmou o seguinte: “Di segno diametralmente opposto l’orazione recitata dall’abate Vanini durante
le solenni esequie in San Fedele, presenti l’arciduca e l’arciduchessa: Pietro Verri la definí ‘una
gelata orazione’, una grande occasione – facile e per l’oggetto e per l’universale disponibilità –
assolutamente sprecata. Ma, per la verità, in quell’orazione mediocre e compassata il calore in
qualche punto non faceva difetto, ed era tutto rivolto ad ammonire con accenti quasi di scomunica
contro i mali del secolo, strumentalizzando grossolamente la proverbiale pietà religiosa della
sovrana in funzione anti-modernista; un segno evidente della tensione presente in certi strati della
società milanese e del tentativo operato sopratutto da parte di ex-gesuiti di fare delle esequie un
momento di riaffermazione del ruolo del clero e di corretivo del giuseppinismo [...]” (BARBARISI,
Gennaro. L’elogio di Maria Teresa di Paolo Frisi. In MADDALENA, Aldo De; ROTELLI, Ettore;
BARBARISI, Gennaro. (org.) Economia, istituzioni, cultura in Lombardia nell’età di Maria
Teresa. Volume secondo: Cultura e Società. Bologna: Società editrice il Mulino, 1982, p. 322.).
117
Sobre Paolo Frisi e suas atividades como cientista, veja-se: CASINI, Paolo. Paolo Frisi, le
riforme teresiane e il ruolo dell’intellettuale scientifico. In In MADDALENA, Aldo De; ROTELLI,
Ettore; BARBARISI, Gennaro. (org.) Economia, istituzioni, cultura in Lombardia nell’età di Maria
Teresa. Volume secondo: Cultura e Società. Bologna: Società editrice il Mulino, 1982.
118
Posteriormente ao Elogio de Maria Teresa Imperatriz, Frisi ainda escreveria o Elogio de Perelli e
o Elogio de D’Alambert.
119
Alguns historiados apontam a rivalidade com Giuseppe Parini como motivação para o intuito de
Frisi de escrever o Elogio. Parini havia sido encarregado pela Società Patriotica di Milano, da qual
Frisi fazia parte, de escrever uma homenagem póstuma à soberana (tarefa da qual se exonerou
97
contrário do que havia feito o ex-jesuíta, ressaltar os enormes progressos conseguidos
graças à sua atividade reformadora e, assim, apresentar a falecida imperatriz como uma
legítima representante daquele tipo de soberano ilustrado que governa com a razão sobre o
qual o Iluminismo (principalmente o Iluminismo italiano) havia depositado tantas
esperanças.
120
O Elogio di Maria Teresa Imperatrice acaba, assim, superando o esquema
tradicional de seu gênero literário e ganhando um caráter de balanço do governo de Maria
Teresa, de sua atividade como reformadora e, principalmente, dos resultados dessa primeira
etapa do reformismo habsbúrgico.
121
Dentro do resultado desse balanço pode-se contar, em
termos gerais, a constatação da modernização dos domínios submetidos ao seu governo e
da construção de um império forte e importante no contexto internacional, promotor da paz,
dos princípios humanitários e das ciências;
122
em síntese, o governo de Maria Teresa,
posteriormente, alegando motivos de saúde). Antes da renúncia, entretanto, a nomeação de Parini
teria levado Frisi, ressentido por não ter sido escolhido e já à época seu rival, a planejar a sua
própria homenagem à falecida imperatriz. Gennaro Barbarisi, entretanto, coloca de lado essa
questão e ressalta a intenção de Frisi, conhecido por seu antijesuitismo, de responder à oração
fúnebre do abade Vanini: “Se all’origine del proposito del Frisi esistesse anche un motivo di rivalità
col Parini, non è dato stabilire; quel che è certo, e che a noi piú importa, è che il Frisi appena svolta
la cerimonia funebre pensò subito a un elogio della sovrana, che terminò piú tardi rispetto alla data
indicata dal De Necchi e che pubblicò nel 1783, anonimo, a Pisa, presso l’editore Jacopo Grazioli,
con un ritardo tale da perdere ogni carattere di celebrazione occasionale.” (BARBARISI, Gennaro.
op. cit., p. 330.).
120
O Elogio de Frisi procura assim conciliar a formula tradicional desse gênero literário com o
propósito político de seu autor. Assim as características pessoais de Maria Teresa são todas
ressaltadas em função da formação da sua imagem como monarca esclarecida. Gennaro Barbarisi
afirma mais ou menos a mesma idéia no seguinte trecho: “Naturalmente, l’elogio non rinuncia a
qualche concessione oleografica, con l’obiettivo, tuttavia, di concentrare nel ritratto di Maria Teresa
quelle che si ritengono dover essere le virtú private e politiche di un principe, di tanto piú degne di
ammirazione in quanto presenti in una sovrana, capace di dominare col proprio equilibrio la vita
domestica cosí come la vita della sua nazione e addirittura dell’Europa, grazie alla felice ed
eccezionale combinazione di intelligenza, cultura, serenità, generosità, affabilità, sensibilità, e via
dicendo, quasi rappresentasse l’incarnazione appunto dell’idea di principe, elaborata dal pensiero
illuministico [...]”(BARBARISI, Gennaro. op. cit., p. 343.).
121
Gennaro Barbarisi também ressalta a superação, pelo Elogio de Frisi, dos esquemas tradicionais
desse gênero literário. Vejamos suas palavras: “Nonostante i tagli da lui operati, l’elogio di Maria
Teresa del Frisi risulta di dimensioni superiori a quelle abituali nel genere, che viene per cosí dire
alterato e assimilato al saggio vero e proprio, anche perché dal panegirico si passa all’analisi storica,
al giudizio politico su una moltitudine di eventi che egli intende ricondurre razionalmente a una
spiegazione logica.” (BARBARISI, Gennaro. op. cit., p. 341.).
122
O papel modernizador exercido pelo governo de Maria Teresa na ótica de Frisi é posto em relevo
por Gennaro Barbarisi no trecho que segue: “A questi principi umanitari appunto il Frisi riconduce
tutto l’operato di Maria Teresa, che nel corso del suo regno ha saputo trasformare alle radici un
grande stato (e, di passata, egli osserva che viene cosí smentita la teoria di Montesquieu
sull’inevitabile degenerazione della monarchia estesa a un territorio troppo vasto), prima disunito e
98
graças a sua política deliberada de reformas, foi, na avaliação de Frisi, uma época de
ouro.
123
Essa época de ouro deve, certamente, possuir algum fundamento, alguma
razão de ser, alguma causa. Para Paolo Frisi, o progresso e a felicidade alcançados na época
de Maria Teresa é conseqüência justamente da colaboração entre o poder político e a
filosofia. Segundo ele, a filosofia saiu dos gabinetes privados onde os solitários filósofos
cultivavam a razão e alcançou, não tanto a massa, as pessoas comuns, conforme diz a
imagem mais tradicional que temos do Iluminismo, mas o trono, o poder. A filosofia chega
ao trono e assume o poder e, através dos soberanos e de seus ministros, participa da
elaboração das leis, dos julgamentos e do governo. Através do poder político a filosofia
pode agora corrigir todos os erros e abusos que foram produzidos nos séculos obscuros em
que a ignorância reinou soberana. Maria Teresa era, para Paolo Frisi, um perfeito exemplo
da aliança entre a filosofia e o trono, da colaboração que se estabelecera nos anos passados
entre a razão e o poder.
124
E isso não apenas por ela própria ser pessoalmente ilustrada, mas
con situazioni economiche, amministrative, sociali, addirittura medievali, in uno stato moderno,
efficiente e dotato di alto prestigio, come ebbe a sottolineare anche Joseph von Sonnenfels nel suo
necrologio della sovrana, come aveva già illustrato Pietro Verri nel discorso del ’78, come,
riprendendo queste impostazioni, piú ampiamente avrebbe poi dimostrato Carlo Cattaneo nelle
Notizie naturali e civili su la Lombardia.” (BARBARISI, Gennaro. op. cit., p. 346.).
123
Nesse sentido, Gennaro Barbarisi: “Era quindi quella prosa l’omaggio di un intellettuale
milanese agli anni d’oro dell’età di Maria Teresa, alla nuova concezione della cultura che allora era
nata e si era affermata, alla pari con i movimenti piú avanzati della cultura europea.” (BARBARISI,
Gennaro. op. cit., p. 353.).
124
No trecho a seguir, Frisi, refutando as idéias de Rousseau (o “cínico de Genebra”) expostas no
Discurso sobre as ciências e as artes, fala da melhora geral da sociedade e das condições dos
indivíduos que resultaram dos progressos das ciências e das letras e ressalta, ao final, que em seus
dias a força dos “bons estudos” se amplia graças à chegada da filosofia ao trono. Graças ao auxílio
dessa filosofia, Maria Teresa pode dissipar os abusos produzidos pela ignorância dos “séculos mais
obscuros”. Vejamos as suas palavras: “La storia non lascia luogo di disputare se le scienze e le
lettere abbiano fatto o più bene o più male alla società. Ai paradossi ingegnosi del cinico di Ginevra
si possono contrapporre i vantaggi che le società più colte hanno sempre avuto in confronto di
quelle che restavano ancora barbare e rozze. Basta considerare la diversa constituizione di Roma nei
tempi di Mario e di Augusto, basta paragonare tra loro il florido stato di Firenze sotto Lorenzo il
Magnifico colle turbolenze antecedenti, il sistema presente d’Italia con quello del governo feudale:
basta la semplice ricognizione dei fatti per vedere che tra i maggiori progressi delle lettere e delle
scienze si è migliorata sempre la forma generale della società e la condizione particolare degli
individui, e gettando uno sguardo sopra gli orrori e le barbarie dei secoli passati, non può vedersi
senza un trasporto di compiacenza che, essendosi adesso tanto piú estese le umane cognizioni,
anche gli uomini generalmente sono divenuti più buoni, sono più rispettati i nostri lari, non sono più
tinte di sangue le nostre strade, il silenzio della notte non è più interroto dallo strepito degli assassini
e dal gemito degli esangui. Ai giorni nostri si è più particolarmente veduta l’immediata influenza
99
por ter-se feito protetora e promotora das ciências e das artes e de seus cultores e por ter
usado a contribuição que lhe era oferecida pelos avanços da filosofia e da ciência de seus
protegidos para realizar a reformas que desalojaram os erros do passado, engrandeceram
seu império e melhoraram a vida de seus súditos.
125
O absolutismo esclarecido é a fusão da tendência modernizadora e
racionalizadora que vinha da filosofia iluminista com aquela outra tendência, também
modernizadora e racionalizadora, que partia das dinastias reinantes em cada Estado. A
articulação entre essas duas propostas reformadoras e a formação, a partir delas, de uma
única tendência reformista que articulava os desígnios centralizadores dos monarcas, em
che i buoni studi hanno su i pubblici vantaggi. I buoni studi non sono adesso più limitati ad alcuni
filosofi solitari: sono divenuti comuni anche ai ministri, lo spirito della filosofia è arrivato insino al
trono, vi è arrivato a dirigere la suprema facoltà di giudicare e di moderare le leggi umane, e di
correggere tanti abusi generalmente radicati coll’ignoranza dei secoli più oscuri. Maria Teresa
ritrovò appunto degli abusi e generali e particolari che esigevano la superiorità delle sue cognizioni,
e sino nelle popolari opinioni ritrovò degli oggetti importantissimi che esigevano da lei medesima
delle provvidenze immediate.” (FRISI, Paolo. L’elogio di Maria Teresa Imperatrice. In VENTURI,
Franco. Illuministi italiani. Tomo III Riformatori lombardi, piemontesi e toscani. Milano-Napoli:
Riccardo Ricciardi Editore, 1958, p. 347.).
125
No trecho que segue, vemos Frisi falar da estima de Maria Teresa pelas ciências e por aqueles
que as cultivam e da sua consciência de sua utilidade para o Estado. Depois ele ainda apresenta um
breve relatório das ações da soberana destinadas a promover a cultura e as ciências. Vejamos as
suas palavras: “Maria Teresa dagli studi che avea potuto fare, non avea ricavato solamente
l’eleganza di parlare e di scrivere, l’erudizione, l’intelligenza dei diritti sovrani, ne avea ricavato
una vera stima per le scienze, per le lettere, per le belle arti, e per quelli che le coltivavano, ne avea
sentita l’importanza e l’utilità per lo stato, ne avea presa una stabile, uniforme e benefica
protezione. Essa ha trattato con Metastasio, con Maupertuis, con Vanswieten, con Winkelmann, con
tanti altri uomini celebri, come Zenobia solea trattar con Longino, Amalassunta con Cassiodoro,
Cristina con Cartesio e con Grozio. Essa sin dal principio del suo regno, ancora tra lo strepito della
guerra, e molto più nella tranquillità della pace non ha risparmiato né provvidenza, né generosità, né
attenzione, perché in tutti i suoi stati di Germania, d’Italia e delle Fiandre si accrescessero i mezzi e
gli aiuti della pubblica educazione, venissero dotate, moltiplicate, dirette le scuole pubbliche, le
accademie, i collegi, fossero assistiti e promossi i nazionali che dassero qualche saggio lodevole dei
loro studi, generosamente inviati gli esteri di maggiore celebrità. In Lombardia i comodi e lo
splendore, in cui la benefica imperadrice collocò le arti e gli artisti, le lettere e i letterati, superò
quello degli altri luoghi e il conte di Firmian fu il mecenate che diresse le auguste beneficenze. [...]
In Milano fu instituita una publica scuola per gl’ingegneri e per gli architetti, riunita una società per
promovere l’agricoltura e le manifatture, aperta un’accademia di scultura e di pittura, incominciato
un museo di storia naturale, accresciuta la Biblioteca, compito l’Osservatorio e provveduto delle
migliori macchine che abbiano finora servito alle più grandi e più delicate osservazioni. Fu
sistemata in Pavia l’università, e senza alcun risparmio di spesa fu arricchita di ogni supellettile
peregrina la fisica sperimentale, la storia naturale, l’anatomia, la chimica, la botanica. E in Milano e
in Pavia furono stabiliti, onorati, provvisti dei celebri professori. Non erano più dotate e corredate le
scienze, quando la gloria letteraria d’Italia arrivò a pareggiare ed a sorpassar quella delle altre
nazioni.” (FRISI, Paolo. op. cit., p. 356-7.).
100
sua luta pelo poder contra adversários internos e externos, com o anseio filosófico por
reformas que melhorassem as condições de vida e promovessem o progresso humano
implicava necessariamente a articulação entre os portadores dessa filosofia, os filósofos
iluministas, e o projeto político absolutista em uma espécie de aliança, ainda que tácita,
entre eles e a coroa. Em seu Elogio di Maria Teresa Imperatrice, Paolo Frisi exaltava muito
mais do que a falecida soberana; ele exaltava, conforme havíamos visto, a chegada da
filosofia ao trono, o governo da razão e das Luzes, a colaboração entre a filosofia e o poder
político e os gloriosos tempos em que, graças a Maria Teresa, seus ministros e os filósofos,
o progresso marcou a história da Lombardia. Para que isso tenha sido possível era
necessário que os próprios sujeitos da filosofia iluminista tivessem aderido ao projeto
absolutista da casa da Áustria e que sua colaboração tenha sido aceita, isto é, que tenham
exercido alguma influência sobre os caminhos trilhados pela coroa em sua luta pela
centralização política e no que feito por ela com o poder assim concentrado em suas
mãos.
126
Como havíamos visto, os filósofos da Società dei Pugni contribuíram
decisivamente, com sua defesa da necessidade de reformas que modernizassem a
Lombardia, para reformular a imagem do monarca em sua empreitada absolutista. Mas para
que a fusão da filosofia iluminista com a proposta absolutista realmente se realizasse, isto é,
para que as duas tendências que buscavam, por motivos próprios, a racionalização
institucional e social convergissem e formassem uma só tendência reformadora era
necessário que os filósofos fossem incorporados, de alguma forma, dentro do projeto
político monárquico e passassem a exercer, com suas idéias, alguma influência importante.
As características singularizadoras do contexto em que esse absolutismo tardio se
desenvolvia determinavam suas necessidades que, antes de qualquer coisa, diziam respeito
ao aumento de eficiência da máquina burocrática e ao desenvolvimento econômico
necessário para o fortalecimento institucional. Por um lado, isso demandava, de Viena, uma
126
Segundo a interpretação de Barbarisi, o Elogio di Maria Teresa Imperatrice é um testemunho
precisamente das transformações sociais que foram produzidas por essa articulação entre
intelectuais (iluministas) e poder (monárquico). Analisando o estilo de Frisi, ele afirma que o ponto
alto do texto é justamente a “celebração do feliz encontro entre intelectuais e poder”. Vejamos suas
palavras: “Questo stile, a un tempo ‘geometrico’ e appasionato, viene particolarmente animandosi
via via che si procede verso la parte culminante dell’elogio, la celebrazione del felice incontro fra
intellettuali e potere, dal quale era nata la radicale trasformazione delle struttura economiche in
Lombardia [...]”(BARBARISI, Gennaro. op. cit., p. 352.).
101
política reformadora que se dirigisse para a modernização institucional e para a
racionalização burocrática das instituições. Por outro, era necessário implementar políticas
que rompessem com os entraves à dinamização da economia. Tudo isso determinaria o tipo
de colaboração e de colaboradores que eram demandados por Viena. Para que um tal
projeto fosse viável, era necessário, sobretudo, possuir um quadro administrativo que além
de ser fiel à coroa fosse suficientemente competente para realizar as tarefas necessárias. A
identificação entre a proposta absolutista e as reivindicações dos jovens filósofos do Il
Caffè, baseadas sobretudo na questão econômica, isto é, na idêntica postura pró-
desenvolvimentista, e na questão nobiliárquica, isto é, na postura antinobiliárquica e,
principalmente, antipatrícia e a notória capacidade intelectual daqueles jovens polemistas
que, com seu jornal e com suas obras individuais, opinavam sobre todas as questões
importantes da política e da economia milanesas não permitiria que fossem ignorados por
muito tempo pelos representantes da coroa austríaca.
A absorção dos iluministas milaneses nos quadros funcionais da coroa
em sua empreitada absolutista completa o processo de formação do absolutismo esclarecido
na Lombardia austríaca.
127
Os benefícios que a efervescência cultural racionalista
127
A forma como definimos o absolutismo esclarecido, isto é, como um encontro entre duas
tendências que apontavam para a racionalização e modernização da sociedade e das instituições,
representadas pela filosofia iluminista e pelo absolutismo tardio do século XVIII, efetuada pela
articulação dos filósofos iluministas com o projeto reformador do absolutismo, é bastante
semelhante à maneira como Ida Cappiello, interpretando o Elogio di Maria Teresa Imperatrice de
Frisi, trata os acontecimentos históricos da Lombardia na época dos filósofos do Il Caffè. Da mesma
forma que nós, Cappiello vê no progresso de absorção desses intelectuais nos quadros
administrativos régios, que lhes faria participar pessoalmente das reformas, convertendo-os em
administradores, o passo derradeiro na formação do absolutismo esclarecido na Lombardia e a fonte
de seu vigor. Vejamos as palavras da autora: “L’elogio di Maria Teresa, nelle parole di Paolo Frisi,
è anche elogio dello ‘spirito della filosofia’, che fu in Lombardia ‘spirito di riforma’, e permise la
covergenza tra iniziative della sovrana, e dei suoi accorti ministri, e le proposte degli illuministi,
nell’incontro di ‘due forze che sanno di doversi incrontrare, si cercano e convengono, sapendo
mantenere una intelligente distinzione di linguaggio e di compiti’. Il nesso tra l’attività riformatrice
dei sovrani e l’attività degli illuministi, che avevano assunto dall’illuminismo europeo i temi di una
filosofia intesa come strumento per modificare la società e lo Stato, è ben noto. L’efficiente governo
di Vienna e gli intellettuali progressisti lombardi, pur da diverse posizioni, ritennero non
procrastinabili ritocchi e modifiche all’assetto economico, politico e sociale, e gli intellettuali si
ineserirono di persona nell’opera di riforma. All’opera di razionalizzazione dei propri domini,
voluta da Maria Teresa, gli illuministi fornirono non solo ideologie e suggerimenti, ma anche la loro
capacità di amministratori, e la loro opera negli uffici e nei ruoli a cui Vienna li chiamò. Proprio
questo nesso, però, e la ‘moderazione’ che sembrava caratterizzare la collaborazione dei ‘filosofi’
lombardi col potere, hanno attirato per molto tempo l’attenzione sugli aspetti di tale collaborazione,
e gli illuministi lombardi sono stati visti come ‘tecnici’.” (CAPPIELLO, Ida. L’idea di stato
102
propiciada pela filosofia das Luzes poderia trazer aos negócios públicos foram desde cedo
percebidos pela coroa austríaca, como provam o relativo clima de tolerância criado pela
instituição da censura civil, que tolhia a competência da censura eclesiástica, e a abolição
da Santa Inquisição, na Lombardia. O Iluminismo domesticado e fiel à dinastia austríaca
poderia contribuir muito na solução dos problemas políticos e econômicos que se
apresentavam ao seu projeto absolutista.
128
Mas além disso, a nova cultura racionalista
propugnada pela filosofia das Luzes funcionava como uma espécie de amálgama cultural,
ou ideológico se se preferir, para este bloco histórico que se formava sob a liderança real e
que unia, além da própria coroa e dos intelectuais iluministas, aqueles setores sociais
interessados na dinamização econômica. A hegemonia social do projeto reformador
liderado pela coroa dependia da capacidade de se apresentá-lo para o conjunto da sociedade
como o melhor caminho para a sociedade, como aquele caminho que melhor poderia levá-
la ao progresso e à melhoria das condições de vida de seus membros. Não é à toa, afinal,
que os temas do bem-estar e da felicidade pública eram recorrentes na literatura pró-
absolutista. A filosofia das Luzes contribuía justamente para esse fortalecimento ideológico
da proposta absolutista.
A presença de intelectuais iluministas na formação da hegemonia social
em torno do monarca não poderia deixar, portanto, de marcar o projeto político absolutista.
O fato de que as necessidades do processo de modernização econômica e institucional que
dele fazia parte terem sido elaboradas teoricamente por pensadores que se inspiravam na
nell’illuminismo lombardo. In MADDALENA, Aldo De; ROTELLI, Ettore; BARBARISI,
Gennaro. (org.) Economia, istituzioni, cultura in Lombardia nell’età di Maria Teresa. Volume
secondo: Cultura e Società. Bologna: Società editrice il Mulino, 1982, p. 969.).
128
A instituição, na Lombardia, da censura civil controlada pela coroa austríaca, em detrimento da
censura efetuada pela Inquisição e pelo Senado milanês, teve como objetivo permitir, em certa
medida, uma liberdade de pensamento adequada à discussão dos problemas que a administração
austríaca teria de enfrentar. Carpanetto e Ricuperati narram assim o episódio: “Con l’importante
editto del 30 dicembre 1768 la censura venne tolta dalle mani dell’Inquisizione e del Senato
milanese, per essere affidata ad una Giunta agli studi, composta da persone preparate, che godevano
della fiducia dei dirigenti statali. Di essa facevano parte anche revisori ecclesiastici, i quali
dovevano limitarsi ad esprimere un parere sui libri di contenuto religioso. Inutili furono le proteste
indirizzate da Clemente XIII a Maria Teresa. Dall’introduzione della censura civile derivò una
maggiore libertà di pensiero e di stampa: nel dispaccio di Maria Teresa che accompagnava l’editto
sopra citato, si consigliava ai revisori di non usare rigore nell’esame dei testi di politica e di
economia, ma di garatire piuttosto ‘una discreta libertà di poter trattare e scrivere su tali argomenti’,
nella convinzione che una più libera discussione potesse ‘servire d’istruzione alla nazione e di
stimolo agl’ingegni’.” (CARPANETTO, Dino e RICUPERATI, Giuseppe. op. cit., p. 206.).
103
riquíssima filosofia que vinha da França não poderia deixar de marcá-lo de alguma forma.
Podemos dizer que a participação dos intelectuais iluministas na formulação do projeto
político absolutista garantiu a ele uma ampliação de horizontes. O racionalismo do
absolutismo tardio que, inicialmente, dizia respeito apenas à esfera econômica, ou seja, à
necessidade de gerir a economia de forma mais eficiente e, portanto, racional e aos
instrumentos administrativos necessários para isso, acaba assim se ampliando graças à
presença da filosofia das Luzes e de seus portadores, os intelectuais iluministas. De tal
maneira, a tendência à modernização inerente à proposta absolutista acaba se ampliando
enormemente, atingindo esferas que, em princípio, não estavam entre as preocupações
centrais do reformismo régio, como a questão penal, por exemplo. Os frutos positivos, para
os próprios interesses monárquicos, dessa ampliação da tendência reformista e reformadora
do absolutismo viriam, evidentemente, reforçar a aliança entre o monarca e os intelectuais
iluministas.
Agora estamos, também, em condições de responder àquela pergunta
sobre o significado da revolta dos jovens patrícios do grupo do Caffè contra a dominação
patrícia em Milão. A luta contra as estruturas de poder que tanto poderia beneficiá-los
poderia parecer algo extremamente irracional e sem sentido do ponto de vista dos interesses
pessoais, fruto talvez de alguma abnegação idealista. Entretanto, o que nos parece é que os
jovens filósofos da Società dei Pugni perceberam a declínio inevitável do poder patrício e
os prejuízos que poderia trazer ao conjunto da sociedade o prolongamento de sua decadente
dominação e preferiram atrelar os destinos pessoais deles ao sucesso do projeto absolutista
na Lombardia.
129
Assim, afora aqueles motivos pessoais originados nos fatos que marcaram
129
Uma interpretação mais ou menos semelhante do significado da participação dos jovens patrícios
milaneses na tendência histórica que destruiria a hegemonia patrícia em Milão nos é oferecida por
Richard Schober no trecho que segue: “Con il tirolese Sperges quale capo del Dipartimento d’Italia
(aveva sciolto il Consiglio d’Italia dal 1753) e Kaunitz, dalla cui cancelleria di Stato dipendeva il
Dipartimento, l’universo politico della Lombardia fu dotato di una triade di cevelli decisiva per la
riforma di Maria Teresa nei due decenni successivi. Partners non meno importanti in questa felice
attività di riforma furono i riformatori locali, i quali, profondamente legati all’illuminismo,
collaborarono al fondamentale cambiamento di assetto delle struture amministrative e politiche.
Poiché la prima fase delle riforme aveva tolto ai patrizi la base del potere, la seconda ebbe la
possibilità di andare verso la propria completa realizzazione. Nel frattempo tuttavia, perfino tra le
fila dei vecchi ceti privilegiati, e soprattuto nelle generazioni piú giovani, si era formata la
convinzione che un migliramento delle condizioni sarebbe stato possibile soltanto con
l’eliminazione delle struture ormai invecchiate. Solo cosí è possibile spiegare il fatto che le persone
a capo dei gruppi di studiosi locali della riforma, che si riunivano nella Accademia degli (sic) Pugni
104
a biografia de Pietro Verri e de Cesare Beccaria, que certamente não devem ser
menosprezados, o que nos parece é que o projeto de vida de cada um deles (e não só de
Verri e Beccaria), em função provavelmente de formação intelectual que se
proporcionaram, se conectava com a esperança de ver as luzes da razão finalmente
brilharem no topo do poder político da Lombardia e, de lá, iluminarem toda a sociedade. A
crença na competência individual e no projeto político do absolutismo esclarecido criava
naqueles jovens a expectativa de fazer carreira nas estruturas do poder real, o que, de certa
forma, lhes permitiria também continuar a fazer parte da república cosmopolita das letras.
Uma característica marcante de todo o conjunto da filosofia iluminista é
o seu empenho prático. A filosofia das Luzes, sob a crença de que a razão habilitava o ser
humano a progredir e a assenhorear-se do mundo, tinha como objetivo justamente
desenvolver essas capacidades. Podemos dizer que o Iluminismo estava voltado, em
primeiro lugar, para desenvolver as capacidades humanas e, em segundo lugar, para levar o
ser humano ao domínio sobre a sua realidade circundante. Um terceiro aspecto ainda deve
ser lembrado: a difusão da racionalidade (ou do uso da razão, se se preferir) deveria levar a
uma atitude crítica perante aquilo que fosse irracional, isto é, que atrapalhasse o
aperfeiçoamento e o progresso humanos; naquele contexto histórico, essa atitude crítica
deveria servir como ponto de partida para a derrocada de tudo aquilo que era herdado da
Idade Média (a idade das trevas, segunda a imagem que dela fazia o iluminismo), como os
dogmas religiosos ou as relações feudais. Esse empenho prático que marca o Iluminismo
ganha uma nova tonalidade no contexto específico da Lombardia austríaca. Se realizarmos
um levantamento bibliográfico da alta literatura iluminista francesa veremos que boa parte
dela refere-se a temas como teoria do conhecimento, onde podemos citar a Carta sobre os
Cegos de Diderot ou A Linguagem dos Cálculos de Condillac, ou política, mas em uma
e attorno al loro organo, il ‘Caffè’, provenivano ancora in larga misura dai patrizi e dai nobili. Basta
ricordare i nomi del conte Verri, del marchese Beccaria, del marchese Longo e dei conti Biffi,
Lambertenghi e Visconti. Se anche recentemente si è tentato di mettere in dubbio la partecipazione
di queste giovani forze patrizie alla riforma, non può negarsi l’influenza di questi uomini sull’opera
di riforma, anche se non può essere contestato il ruolo sicuramente importante di una ‘nuova classe
di governo’, che si differenziava dai vecchi ceti tradizionali nati dal pensiero umanistico-giuridico.
SCHOBER, Richard. Gli effetti delle riforme di Maria Teresa sulla Lombardia. In MADDALENA,
Aldo De; ROTELLI, Ettore; BARBARISI, Gennaro. (org.) Economia, istituzioni, cultura in
Lombardia nell’età di Maria Teresa. Volume secondo: Cultura e Società. Bologna: Società editrice
il Mulino, 1982, p. 206.).
105
abordagem geral, próxima do que seria uma teoria do Estado, como o que encontramos em
O Espírito das Leis de Montesquieu ou no Contrato Social de Rousseau. Mesmo na
economia, um tema geralmente bastante afim com questões imediatas, a abordagem
francesa acabou ganhando algumas vezes um tratamento abstracionista e genérico, como no
caso do Quadro Econômico de Quesnay. Ao contrário, a atividade intelectual dos filósofos
milaneses será caracterizada por uma propensão ao tratamento específico de questões
práticas imediatas. Não faltaram, é verdade, obras com pretensões teóricas mais
universalistas, tais como o próprio Dei Delitti e delle Pene de Beccaria ou as Meditazioni
sulla Felicità de Pietro Verri. No entanto, uma parte considerável dos escritos dos filósofos
da Società dei Pugni era destinada a opinar sobre questões práticas específicas e imediatas,
com a quais os cidadãos milaneses confrontavam-se todos os dias, em uma abordagem que
não tinha a pretensão de criar teorias gerais, mas que buscava, ao contrário, apenas aplicar
as gloriosas teorias aprendidas, em geral, nos livros franceses.
130
Essas questões práticas
imediatas eram, na maioria das vezes, de natureza econômica, mas também tratavam de
questões administrativas, jurídicas e políticas. Assim as intervenções dos filósofos do
círculo do Caffè resultavam em propostas específicas de reforma que, fundando-se no
discurso filosófico iluminista, apontava o caminho a ser seguido por quem quisesse resolver
os problemas cotidianos e, assim, progressivamente ir tornando mais racional seja a
administração, seja a economia, seja o direito.
131
130
O empenho prático dos iluministas da Lombardia austríaca, que de certa forma foi um elemento
importante para a confluência que lá se verificou entre filosofia e absolutismo, já foi amplamente
reconhecido pela bibliografia especializada. Entre todos, cite-se Stuart J. Woolf: “A differenza dai
loro mentori francesi, essi si interessarono poco anche di problemi religiosi, perché la loro prima
preoccupazione fu quella di essere pratici, di esercitare subito un’influenza sulla società. Oscillando
tra la fiducia nel principe e la convinzione dell’importanza dell’opinione pubblica (che, a loro
giudizio, avrebbe dovuto essere guidata dai filosofi), tra l’esempio di l’esempio di Pietro il Grande e
quello (altrettanto frequentemente citato) dell’abate di Saint-Pierre, Verri e i suoi amici erano
soprattutto ansiosi di partecipare ai compiti pratici delle riforme.” (WOOLF, Stuart J.;
CARACCIOLO, Alberto; BADALONI, Nicola e VENTURI, Franco. op. cit., p. 87.).
131
O caráter político-prático do Iluminismo lombardo é sublinhado por Richard Schober, no trecho
a seguir, ao mesmo tempo em que é conectado com o sucesso das reformas no ducado de Milão e
com a formação, lá, do fenômeno do absolutismo esclarecido: “Nel corso del XVIII secolo il
‘riformismo asburgico’ nei principati e nei ducati dell’Italia del Nord rappresentò una felice
confluenza fra illuminismo austriaco e illuminismo italiano, che, a differenza di quello francese,
ebbe un carattere meno filosofico e piú politico-pratico. Risultato di tale concordanza di idee fu una
ampia riforma delle strutture amministrative dello Stato di Milano, realizzata al momento giusto,
quando il vecchio stato medioevale del patriziato milanese stava per crollare e le nuove idee
‘nazionalistiche’ non si erano ancora affermate. Lo Stato di Milano si trasformò in pocchi decenni
106
Esse específico empenho prático dos filósofos milaneses, voltado para a
resolução de problemas imediatos e relativamente urgentes, garantiria que, gradativamente,
eles começassem a ser ouvidos e conseguissem, assim, se impor frente a todos os outros
grupos que, de alguma maneira, buscavam influenciar a direção seguida pelos negócios
públicos. A competência com que tomavam parte na discussão das questões do momento e
a qualidade das idéias apresentadas por eles provavam a utilidade dos jovens patrícios para
o projeto político do absolutismo habsbúrgico. Graças a tudo isso era impossível para os
agentes do reformismo habsbúrgico ignorarem a colaboração que ofereciam os jovens
filósofos do círculo do Caffè. Assim os representantes da nova filosofia das Luzes na
Lombardia ganhariam cargos na administração régia e seriam incorporados, como
funcionários, ao projeto reformador do absolutismo austríaco.
O início da vitória dos membros da Società dei Pugni na luta para serem
incorporados pelo projeto político do absolutismo habsbúrgico deu-se com a obra de Pietro
Verri Considerazioni sul commercio dello Stato di Milano.
132
A impressão positiva causada
por ela em Kaunitz rendeu a Pietro Verri uma nomeação oficial. Verri integraria a comissão
que trataria da importantíssima questão da reforma da Ferma generale, uma das questões
centrais da política fazendária da administração habsbúrgica em Milão. Outro passo
importante da afirmação do grupo do Caffè foi a criação do Supremo Consiglio di
Economia, cuja presidência seria ocupada por Gianrinaldo Carli. Carli era natural de
Capodistria e circulou por vários locais da Itália, como Padova e Torino, prestando seus
serviços de professor e de administrador. Era de uma geração anterior à dos jovens da
Società dei Pugni e possuía uma formação intelectual ainda pré-iluminista, ligada ao
da un ordinamento dominato da una oligarchia, in un esempio qualificato di assolutismo illuminato,
in grado, con pieno diritto, di affiancarsi alla Toscana.” (SCHOBER, Richard. Gli effetti delle
riforme di Maria Teresa sulla Lombardia. In MADDALENA, Aldo De; ROTELLI, Ettore;
BARBARISI, Gennaro. (org.) Economia, istituzioni, cultura in Lombardia nell’età di Maria
Teresa. Volume secondo: Cultura e Società. Bologna: Società editrice il Mulino, 1982, p. 201.).
Discordamos tão-somente da contraposição feita pelo autor entre o caráter político-prático e o
caráter filosófico. Na verdade, quando investigamos o sentido e o uso da expressão “filosófico” no
século XVIII vemos que não há oposição alguma entre as duas coisas. Graças à noção de filosofia
fixada pela Ilustração, o adjetivo “filosófico” possuia, naquele período, um sentido muito mais
amplo do que possui hoje (abarcando áreas alheias ao que tradicionalmente se entendia por
filosofia) e muito mais conectado às idéias de razão, de crítica, de mudança, de progresso e, assim,
de ação e de prática.
132
VERRI, Pietro. Considerazioni sul commercio dello Stato di Milano. Milano: Università Luigi
Bocconi, 1939.
107
eruditismo que caracterizava a cultura italiana da primeira metade do século XVIII. Seus
modelos inspiradores eram Maffei e Muratori. Todavia, desde a década de cinqüenta já
travava relações com a intelectualidade reformadora milanesa, tendo conhecido, nessa
época, Pompeo Neri, Paolo Frisi e Pietro Verri. De longe, mantém relações com o círculo
de intelectuais da Società dei Pugni e chega, inclusive, a contribui com um artigo para Il
Caffè. Carli é encarregado por Kaunitz da presidência do novo Consiglio e, algum tempo
depois, consegue um cargo para Beccaria como professor nas Scuole Palatine. A partir daí,
seguem-se sucessivas nomeações que irão inserir todos os principais colaboradores do Il
Caffè nas estruturas da administração habsbúrgica de Milão. A aliança entre os intelectuais
iluministas e o absolutismo finalmente se completava na Lombardia austríaca.
133
A fusão das duas tendências modernizadoras, aquela representada pela
filosofia iluminista e a do absolutismo tardio, não era entretanto um encontro perfeito. As
urgentes necessidades que atingiam com toda a força o projeto de poder daquelas dinastias
133
Stuart J. Woolf nos fornece um excelente resumo do processo de afirmação política do círculo do
Caffè que, apesar da extensão, é interessante transcrever: “Non v’è dubbio che il gruppo dei
riformatori riuscí ad imporre le proprie idee all’attenzione del governo. Se il Firmian ignorò il
saggio dedicato dal Verri alla tassa sul sale (1761), il Kaunitz rimase abbastanza colpito dall’analisi
che lo stesso autore condusse sulla decadenza del commercio lombardo e sulla necessità di
rianimarlo con riforme legislative, con l’istaurazione della libertà di commercio all’interno dello
Stato e con l’abolizione della ‘ferma’, tanto da includere il Verri medesimo nella Giunta incaricata
di svolgere un’indagine sulla ‘ferma’ (1764). Quando poi il Verri, nello stesso anno, approfittò del
suo incarico ufficiale per pubblicare le cifre del bilancio del 1752, al fine di dimostrare l’esistenza
di un deficit e di guadagnare, in tal modo, maggiori consensi alle proprie idee, Kaunitz, nonostante
l’incitazione suscitatagli da questo gesto, incaricò proprio a lui di preparare un nuovo e piú accurato
bilancio (pur mettendogli alle costole, per moderarne l’impetuosità, un uomo di legge di fiducia del
governo). Nel 1765 la posizione conquistata dai giovani filosofi fu ufficialmente riconosciuta con la
creazione del Supremo Consiglio di Economia, incaricato di fare ricerche e suggerire proposte di
riforme sui seguenti problemi: i monopoli, l’annona, il censimento, la ferma, il codice di
commercio, la moneta, le scuole tecniche e i metodi per accrescere la produzione. Verri entrò a far
parte del nuovo organismo, anche se a presiederlo fu chiamato il piú ortodosso Carli. Tre anni dopo,
secondo il piano del Carli, Beccaria ebbe la catedra di economia politica alle Scuole Palatine, con
l’incarico di ‘ricercare proporzionatamente alla situazione, qualità, prodotti e costumi delle nazioni,
il modo piú sicuro e piú facile onde i maggiori beni possibili si estendano sopra il maggior possibile
numero di uomini’. Gli anni seguenti videro il conferimento ad Alfonso Longo della cattedra di
diritto ecclesiastico e, successivamente, la sua nomina a censore e a sucessore del Beccaria, nonché
l’utilizzazione di Paolo Frisi, già professore a Milano, come esperto di varia competenza sulle
riforme in corso di attuazione (irrigazione, scuole tecniche, rapporti fra Stato e Chiesa), come
censore e commemoratore ufficiale di Maria Teresa. Persino Giambattista Biffi, che conduceva a
Cremona una malincolica vita di provincia, ebbe incarichi come amministratore locale dell’annona,
delle scuole e della censura. ‘Il Caffè’ cessò le pubblicazioni e la Società dei Pugni si sciolse,
perché i suoi componenti furono assorbiti nella macchina di governo.” (WOOLF, Stuart J.;
CARACCIOLO, Alberto; BADALONI, Nicola e VENTURI, Franco. op. cit., p. 87-8.).
108
que se confrontavam, de tempos em tempos, no cenário político internacional e que, em
meio a uma economia capitalista cada vez mais desenvolvida, miravam-se no exemplo de
potências como a França e a Inglaterra obrigavam-nas a um agressivo programa de
racionalização social que deveria tornar mais eficiente a administração do Estado,
fomentar o desenvolvimento econômico e submeter os estamentos e os poderes políticos
autônomos. O Iluminismo, por um outro lado, era uma corrente filosófica que fundava na
racionalidade humana um projeto de emancipação; uma emancipação da tradição, dos
dogmas religiosos, das forças da natureza, mas uma emancipação também do poder político
ilegítimo, assim considerado aquele que não se fundava na autonomia humana individual,
inerente à idéia de que cada ser humano é um ser racional. A poderosa influência do liberal
John Locke na formação do ideário iluminista, tão perceptível quando se vasculham os
textos da filosofia francesa do século XVIII, não poderia não ter deixado marcas profundas.
Portanto, se bem analisarmos, apesar da convergência verificada entre os dois, podemos ver
que Iluminismo e absolutismo possuíam interesses específicos, quando consideramos um
em relação ao outro.
A identificação entre a filosofia das Luzes e o projeto político absolutista
baseava-se em alguns elementos em comum e, principalmente, em uma específica
conjuntura histórica que os colocava lado a lado no combate contra a herança política
medieval. A determinação das dinastias reinantes naqueles Estados do absolutismo tardio
em vencer a situação de atraso econômico e institucional levava-as a uma abertura maior
em relação às novas tendências culturais. Por outro lado, a necessidade de se valer de um
tal poder político como o do monarca para se poder vencer a resistência daqueles interesses
que estavam na contra-mão das idéias racionalistas e modernizadoras da filosofia iluminista
fazia com que seus portadores se julgassem na necessidade de apoiar o projeto político
absolutista, onde se radicavam as mais conseqüentes e plausíveis tendências modernizantes.
Entretanto, nesse compromisso entre o absolutismo e a filosofia iluminista o lugar central, o
lugar de comando caberia certamente ao absolutismo. A racionalidade das Luzes ficava, de
certa forma, subordinada à racionalidade do acumulo de poder. É claro que algo do espírito
original do Iluminismo deveria se perder.
A filosofia do século XX nos ensina que o projeto da modernidade, do
qual o Iluminismo é o principal representante, ancorava-se em uma racionalidade
109
instrumental, que apontava para a dominação, e em uma racionalidade comunicativa, que
apontava para a emancipação, ou em um pilar regulatório e um outro emancipatório, se se
preferir.
134
Quando olhamos para as idéias que fervilhavam nas obras dos autores do século
XVIII vemos que as duas coisas, dominação e emancipação, estavam profundamente
imbricadas. Segundo a critica filosófica contemporânea, os problemas da modernidade
teriam começado quando o aspecto instrumental colonizou o comunicativo-emancipatório.
O fato de os ideais democráticos e republicanos do Iluminismo terem sido relegados a um
segundo plano, na sua fusão com o absolutismo, talvez seja um indício de que
efetivamente, na aliança da filosofia das Luzes com aquelas formas políticas autocráticas,
aquele elemento instrumental de sua racionalidade tenha sido isolado e alçado ao primeiro
plano.
A absorção dos intelectuais do iluminismo lombardo no projeto político
do absolutismo habsbúrgico, na condição de funcionários da coroa, colocou a capacidade
intelectual daqueles jovens intelectuais a serviço do planejamento das estratégias da
ascensão da autocracia régia contra a pluralidade de poderes políticos que caracterizava a
sociedade do antigo regime. Nesse processo, o intelectual iluminista, assim absorvido e
transformado em funcionário administrativo da coroa, tem seu papel redefinido: agora ele
não é mais o conselheiro do rei que pensa globalmente a sociedade, não apenas ajudando-o
a alcançar as metas estipuladas, mas interferindo também na definição das próprias metas;
agora ele é o técnico em problemas jurídicos, econômicos ou cameralísticos que articula os
meios necessários para alcançar os fins determinados pelo monarca e por seus altos
ministros.
135
É claro que aquela imagem de conselheiro do rei, ao menos na Lombardia,
nunca correspondeu propriamente à realidade. Mas era, entretanto, a maneira como os
134
Estamos nos referindo aqui, evidentemente, às idéias de Jürgen Habermas e Boaventura de Sousa
Santos, respectivamente.
135
“Non si tratta, è bene precisarlo, di un divieto di pensare con la propria testa o di proporre
soluzioni originali ai problemi che via via si ponevano nell’attuazione delle direttive superiori, ché
anzi la responsabilizzazione dei singoli funzionari è uno dei tratti caratteristici del modello
giuseppino, come poi di quello napolionico. Giustamente afferma Silvia Cuccia che
‘nell’applicazione pratica delle direttive giuseppine, nello sforzo di adeguarle alla realtà senza
troppo deformarle, di tradurle in prassi concrete, precise, particolareggiate, la burocrazia di Milano
e di Vienna svolse un lavoro essenziale’. Era però esclusa una partecipazione di quest’ultima alla
determinazione dei fini oltreché dei mezzi, era ormai improponibile quella funzione di consigliere e
ispiratore dei sovrani cui tendevano naturalmente i philosophes.” (CAPRA, Carlo. Il gruppo del
“Caffè” e le riforme. In FERRONE, Vincenzo e FRANCIONI, Gianni. (org.). Cesare Beccaria: La
pratica dei lumi. Atti del Convegno.Firenze: Leo S. Olschki Editore, 2000, p. 66.).
110
iluministas lombardos compreendiam, em princípio, o seu papel dentro do projeto
modernizador e reformador do absolutismo habsbúrgico. A subordinação do intelectual
iluminista ao projeto autocrático do absolutismo tardio é a subordinação do próprio
Iluminismo aos desígnios da pura acumulação do poder, à lógica de uma espécie de nova
razão de Estado. Podemos nos perguntar, certamente, se isso ainda tem alguma coisa a ver
com Iluminismo, ou se estamos em uma zona na qual o que se vê é apenas a projeção das
sombras criadas por suas Luzes. Esse talvez seja, entretanto, um falso problema, pois, de
qualquer maneira, a sombra sempre tem alguma coisa a ver com a luz que a tornou
possível.
A redução a funcionários públicos e, portanto, a encarregados de realizar
as tarefas técnicas essenciais à implementação do projeto absolutista da coroa austríaca em
Milão exerceu um profundo impacto nas biografias e na produção teórica de Cesare
Beccaria e Pietro Verri, os dois grandes nomes do Iluminismo lombardo. O auge da
produção teórica desses dois patrícios milaneses ocorreu justamente na época do Il Caffè,
quando a vinculação oficial com aquele poder político que mostrava, mais do que qualquer
outro, a sua afinidade com as exigências da nova cultura iluminista, isto é, o absolutismo
habsbúrgico, era ainda procurada com ardor pelos então jovens filósofos que sonhavam em
influenciar, com suas idéias, o destino de sua terra e, ao mesmo tempo, encontrar um lugar
dentro das estruturas do aparato estatal, a partir do qual poderiam continuar a brilhar na
república das letras. Quando o objetivo de encontrar junto à administração austríaca uma
carreira que lhes garantissem um lugar de proeminência na sociedade milanesa e que lhes
propiciasse, ao mesmo tempo, uma saída gloriosa das tão desprezadas estruturas patrícias
das quais provinham foi finalmente alcançado o que se viu, entretanto, foi um considerável
declínio da produção teórica dos nossos dois filósofos. Seria cômodo e superficial pensar
que a razão desse fenômeno foi apenas a falta de tempo causada pela ocupação com os
afazeres profissionais.
136
O processo de adaptação dos jovens intelectuais ao papel que lhes
era reservado dentro do projeto político absolutista da dinastia habsbúrgica talvez explique
136
Até porque, se bem analisarmos, podemos ver que, sobretudo no caso de Pietro Verri, sequer há
uma perfeita coincidência entre o ingresso no serviço de Estado e o declínio da produção
intelectual.
111
melhor a apatia filosófica e o predomínio da racionalidade técnico-instrumental que
marcará os escritos dos dois intelectuais milaneses a partir da década de setenta.
137
Pietro Verri e Cesare Beccaria foram os dois mais atingidos pelo
fenômeno que descrevemos acima, mas pode-se dizer que, de certa forma, ele marcou
quase todos os intelectuais da antiga Società dei Pugni. De qualquer maneira, acima de
Verri, foi Beccaria o caso mais extremo.
138
Parece-nos, assim, que o processo de adaptação
de Beccaria ao papel de técnico-administrador a serviço do absolutismo habsbúrgico foi
muito mais intenso e tranqüilo do que o de Verri. Pietro Verri era sobretudo muito mais
vaidoso e inquieto do que Beccaria, como demonstra a sua correspondência com o irmão
Alessandro. Essas características criariam para ele, durante toda a sua vida, enormes
problemas para conseguir se adaptar ao que queria dele a administração habsbúrgica.
A história do Iluminismo lombardo guarda, entretanto, um momento de
singular brilhantismo para a cultura italiana do século XVIII. Um momento em que, em
Paris, a capital mundial da filosofia das Luzes, falava-se com curiosidade e entusiasmo dos
progressos da École di Milan. O ponto chave desse momento, o seu fato propulsor foi a
137
E precisamente nisso que aposta Carlo Capra: “Allora perché dopo i saggi giovanili questi
uomini non scrissero più nulla per il pubblico, se si eccettuano le citate note di Longo ai Devoirs? Il
carico di lavoro connesso alle loro funzioni non è una risposta sufficiente. La produttività
intellettuale di Pietro Verri, lo vedremo, non fu mai così elevata come fra il 1764 e il 1770, quando
pure il suo impegno nei pubblici affari raggiunse un’intensità non più toccata in seguito. E la
gravosa carica di presidente del Supremo Consiglio di economia e poi del Magistrato Camerale non
impedì a Gian Rinaldo Carli di pubblicare alcune tra le sue opere più importanti tra il 1765 e il
1780. Piuttosto, conviene pensare a un adeguamento, consapevole o inconsapevole, al modello di
funzionario che il processo di accentramento e di burocratizzazione degli anni Settanta e Ottanta
veniva sempre più chiaramente imponendo ai servitori della monarchia asburgica.” (CAPRA, Carlo.
Il gruppo del “Caffè” e le riforme. In FERRONE, Vincenzo e FRANCIONI, Gianni. (org.). Cesare
Beccaria: La pratica dei lumi. Atti del Convegno.Firenze: Leo S. Olschki Editore, 2000, p. 66.).
138
Capra descreve a apatia intelectual de Beccaria contrastando-o com Verri: “Lasciando stare il
Verri, non è senza significato il fascino che Beccaria esercitava, ancora nel 1771-72, sui suoi allievi
delle Palatine, un fascino di cui si incontrano diverse testimonianze scorrendo il secondo volume
del Carteggio da poco pubblicato nel quadro dell’Edizione Nazionale delle Opere. Tuttavia questo
stesso carteggio offre una dimostrazione sicura della verticale caduta d’interesse, in lui, per i grandi
temi della filosofia e della politica, del suo progressivo assorbimento nelle questioni familiari e
patrimoniali, de suo adagiarsi nella routine del lavoro d’ufficio; nessuna traccia visibile, in
Beccaria, di quella ‘vigile attenzione per ogni momento della storia e del pensiero europei’ che non
manca mai di accompagnare la carriera di Pietro Verri, secondo la felice formulazione del
compianto Sergio Romagnoli, e che è in ogni tempo il contrasegno dell’intellettuale.” (CAPRA,
Carlo. Il gruppo del “Caffè” e le riforme. In FERRONE, Vincenzo e FRANCIONI, Gianni. (org.).
Cesare Beccaria: La pratica dei lumi. Atti del Convegno.Firenze: Leo S. Olschki Editore, 2000, p.
68.). Veja-se, sobre isso, ainda: ZORZI, Renzo. Cesare Beccaria. Il Drama della Giustizia. Milano:
Bollati Borighieri editori, 1996, p. 321 e segs..
112
publicação da obra Dei Delitti e delle Pene de Cesare Beccaria. Graças a essa obra, a
cosmopolita república das letras da Europa tomou conhecimento da existência dos jovens
patrícios milaneses. A partir de então, Beccaria seria, perante a Europa, a figura central do
Iluminismo na Lombardia, o grande representante das Luzes em Milão, o que lhe renderia
uma enorme inveja e um profundo rancor da parte de Pietro Verri. Veremos então Beccaria
trocar correspondência com alguns ilustres nomes da Ilustração francesa, ser recebido em
Paris pelo círculo dos philosophes como celebridade, ser convidado por Catarina II, a
soberana da Rússia, para escrever o código penal de seu império. Veremos também
Voltaire, o arrogante líder do partido dos philosophes franceses, que era bajulado por uma
infinidade de jovens escritores que acorriam a Paris buscando fazer carreira no mundo
intelectual, pedir humildemente a Beccaria alguns conselhos jurídicos referentes aos
célebres processos em que se envolveu nas décadas de sessenta e setenta.
139
Nesse momento de brilhantismo do Iluminismo lombardo,
protagonizado justamente por Beccaria, aquele que mais do que qualquer outro simbolizaria
o seu declínio, não haveria nada que pudesse nos indicar os destinos da cultura iluminista
em Milão? Não haveria nada que nos antecipasse a triste decadência dos valores liberais,
republicanos e democráticos, tão profundamente ligados ao código genético do Iluminismo,
e a ascensão exclusivista de uma racionalidade instrumental soberana e autocrática? É
precisamente as essas perguntas que tentaremos resolver nos próximos capítulos,
analisando a obra Dei Delitti e delle Pene e suas fontes teóricas.
139
Veja-se a esse respeito a carta de Voltaire a Beccaria contida no seguinte volume: VOLTAIRE.
Comentários políticos. Tradução de Antonio de Pádua Danesi; revisão da tradução Cláudia
Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
113
PARTE 2 – A FILOSOFIA POLÍTICA EM DEI DELITTI E DELLE
PENE
114
CAPÍTULO 1 – A PASSAGEM DO CONTRATUALISMO AO UTILITARISMO NO
ILUMINISMO FRANCÊS
SEÇÃO I – Cesare Beccaria e a teoria contratualista
A filiação de Beccaria à teoria contratualista é flagrante logo que se lê as
primeiras páginas de Dos Delitos e das Penas. Trataremos, agora de algumas generalidades
do Contratualismo, centrando nossas atenções naqueles aspectos que, para nós, garantem
uma profunda afinidade entre ele e o Iluminismo. Posteriormente, analisaremos a presença
das idéias contratualista em Dos Delitos e das Penas.
Conforme vimos, a forma de Estado predominante na modernidade
européia é a monarquia absolutista. Esta, apesar de ser conseqüência do desenvolvimento
de formas mercantilistas do capitalismo renascentista e até mesmo condição para o
desenvolvimento e aprofundamento destas relações econômicas, passou a ser vista, por
parte da intelectualidade já na Inglaterra do século XVII e, sobretudo, na França a partir da
segunda metade do século XVIII, como representante dos resquícios medievais próprios do
Antigo Regime, portadora e guardiã de privilégios e monopólios injustificáveis e
incompatíveis com a funcionalidade econômica. Assim, se por um lado a Monarquia
absolutista exerceu um papel modernizador, na medida em que representou, na área
política, a saída da Europa da Idade Média, por outro os elementos não tão modernos que
ela ainda carregava consigo seriam rapidamente questionados naqueles lugares onde o
desenvolvimento capitalista colocava as bases para a reivindicação de novas formas de
poder político. Dentre os agentes dessa lenta, mas progressiva crise de legitimidade da
monarquia absolutista, encontram-se as novas formas de compreensão da política surgidas
115
na modernidade, dentro de um processo maior de destruição dos fundamentos teóricos do
Antigo Regime, acelerado a partir do século XVII.
Essa nova filosofia política além de elaborar uma crítica das formas em
que se davam as relações políticas, também criou uma nova forma de pensar estas relações
inaugurando uma abordagem que se pretendia fundamentada em um conjunto de métodos
científicos pretensamente rigorosos e justificados. Essa atitude que estava em formação
desde o baixo medievo tornar-se-á, no apogeu da Idade Moderna, um lugar comum entre a
vanguarda intelectual européia. Os principais pensadores da política da época possuirão,
entre si, significativas divergências, porém estarão ferreamente unidos pela perspectiva que
se acreditava científica com que abordarão os fenômenos da política.
Durante o período da história do pensamento político compreendido entre
os séculos XVII e XVIII, o molde básico que orientou o estudo da política consistiu na
idéia do Contrato Social fundado na idéia de Direito Natural
140
. Inúmeros autores, dentro
140
“No pensamento do século XVIII têm ainda pleno valor os conceitos-base da filosofia
jusnaturalista, tais como o estado de natureza, a lei natural (concebida como um complexo de
normas que se coloca ao lado – ou melhor, acima – do ordenamento positivo), o contrato social. No
contexto da realidade do Estado ainda domina o direito natural. O Estado, realmente, se constitui
com base no estado de natureza, como conseqüência do contrato social, e mesmo na organização do
Estado os homens conservam ainda certos direitos naturais fundamentais.” (BOBBIO, Norberto. O
Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito. Tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bini,
Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.pp. 45). Por certo que a modernidade européia não
produziu apenas esta forma de estudar a política. Paralelo ao contratualismo político, autores tais
como Montesquieu, Vico e Burke procuraram compreender o Estado concentrando-se sobre o
particular e o específico e indagando mais sobre o ser do que sobre o dever ser. Buscavam entender
a origem das formações políticas através de suas raízes históricas, vendo os Estados, em cada caso
particular, como uma construção que se dá a partir de situações sociais específicas e que atende a
necessidades sociais e determinações culturais também específicas. Conseqüentemente, esta
perspectiva expressa a tentativa de se fundamentar cientificamente o estudo da política de um modo
diverso, que não se limita ao método dedutivo que constrói hipóteses e deduz suas conseqüências
lógicas e que constitui o cerne das construções baseadas no modelo do Contrato Social. Esta forma
de pensar encontrou sua posição mais extremada no historicismo do século XIX, em especial no
historicismo alemão, onde a ênfase no ser e no particular se converte em defesa das instituições do
Antigo Regime e das idiossincrasias nacionais contra a racionalidade modernizadora e cosmopolita
do iluminismo. Fazendo parte da onda de reação romântica ao desenvolvimento da modernidade
capitalista, o historicismo critica o método racionalista de fundo cartesiano que está na base das
construções fundadas no contrato social para enfatizar a forma inconsciente e irracional que
caracteriza o surgimento das instituições sociais e políticas próprias de cada nação e, desta forma,
rejeitar, também, a racionalidade modernizadora própria do capitalismo do qual o Iluminismo é
representante. Neste sentido, Norberto Bobbio afirmou: “Para que o direito natural perca terreno é
necessário um outro passo, é preciso que a filosofia jusnaturalista seja criticada a fundo e que as
concepções ou, ainda, os ‘mitos’ jusnaturalistas (estado de natureza, lei natural, contrato social...)
desapareçam da consciência dos doutos. Esses mitos estavam ligados a uma concepção filosófica
116
da Filosofia Política da Europa moderna se inserem dentro desta perspectiva do pensamento
político Contratualista, podendo-se destacar, sobretudo, os nomes de Thomas Hobbes, John
Locke, Jean-Jacques Rousseau, Immanuel Kant, Christian Thomasius, Samuel von
Pufendorf e Hugo Grotius.
O Contratualismo político possui inúmeras versões. Todavia, para os fins
deste trabalho importa-nos, sobretudo, o modelo hobbesiano-lockeano, cuja idéia básica
consiste na suposição de que os homens vivem em sociedade através de um pacto (tácito ou
expresso) que serve de fundamento legitimador das suas instituições políticas e que, sem
este vínculo, nenhum compromisso social liga os homens entre si, podendo eles usufruir,
nos limites da razão, da forma que quiserem de sua liberdade natural. A ausência ou a
ruptura do pacto deixaria, portanto, os homens no chamado estado de natureza, onde o uso
racional de todos os seus poderes inerentes à sua autonomia individual seriam seus direitos
naturais. Através do pacto, os indivíduos constituem a sociedade política e as instituições a
ela inerentes e, em benefício destas, renunciam reciprocamente a uma parcela de seu direito
natural ou a todo ele. Assim, este pacto tem por função apenas preservar e garantir de forma
mais eficiente a parcela dos direitos naturais de cada indivíduo que não foi objeto da
renúncia, estabelecendo, para tanto, o respeito mútuo entre eles, por meia da criação de um
poder comum, através da associação política.
A idéia do Contratualismo expressa, entretanto, algo mais profundo pois,
na empreitada de cientificização do estudo da política, ele representa a tentativa de se criar
uma abordagem científica dos problemas morais e políticos aplicando, a eles, o método das
ciências matemáticas. Levar a geometria cartesiana para a política e criar, para esta, uma
verdadeira ciência (na acepção moderna deste termo) é o que fazia com que aqueles
diversos autores recorressem à idéia do Contrato Social
141
.
racionalista (a filosofia iluminista, cuja matriz se encontrava no pensamento cartesiano). Ora, foi
precisamente no quadro geral da polêmica anti-racionalista, conduzida na primeira metade do
século XIX pelo historicismo ... que acontece a ‘dessacralização’ do direito natural.” (BOBBIO,
Norberto. op. cit., p. 45). Para estudar os caminhos e sentidos da Filosofia Política Moderna, veja-se
BOBBIO, Norberto e BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna.
Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 2 ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
141
Nas palavras de Bobbio: “Se há um fio vermelho que mantém unidos os jusnaturalistas e permite
captar uma certa unidade de inspiração em autores diferentes sob muitos aspectos, é precisamente a
idéia de que é possível uma ‘verdadeira’ ciência da moral, entendendo-se por ciências verdadeiras
as que haviam começado a aplicar com sucesso o método matemático.” (BOBBIO, Norberto e
BOVERO, Michelangelo. op. cit., p. 18.)
117
Dentro desta perspectiva, no discurso político da modernidade, Estado e
Direito passam a ser compreendidos como expressão direta e consciente da vontade
humana e produto de seu livre-arbítrio e de sua racionalidade. A base do discurso
jusnaturalista moderno é a concepção de que o homem é um ser naturalmente racional e
que, graças a essa racionalidade, é também um ser naturalmente livre que, justamente por
isso, tem direitos inatos, igualmente naturais, cuja eficácia na garantia é o parâmetro para se
medir a racionalidade do Estado e das leis. Nessa preocupação metodológica do
jusnaturalismo de fundar tudo na racionalidade humana está implícita a idéia de que o ser
humano constitui um fim em si mesmo. De tal maneira, ele é transformado no parâmetro
para todas as coisas e na finalidade última de toda a sua própria atividade.
Esta espécie de antropocentrismo da teoria do contrato social já foi
interpretado como conseqüência do renascimento comercial e, assim, do desenvolvimento
das relações econômicas mercantilistas de capitalismo. Seria, portanto, expressão do
deslocamento do interesse humano das transcendências religiosas e metafísicas para a
satisfação de interesses individualistas materiais muito bem localizados no mundo dos
homens. Nesta perspectiva, o renascimento e o antropocentrismo teriam a marca indelével
do capitalismo mercantil e da nascente sociedade burguesa. No âmbito da teoria política,
um bom representante desta atitude é C. B. Macpherson que, em sua obra A Teoria Política
do Individualismo Possessivo de Hobbes a Locke, na tentativa de “inscrever a política na
história”
142
interpreta todo o discurso político inglês do século XVII como tendo um ponto
de partida na visão de mundo própria da sociedade civil burguesa, em que os indivíduos
aparecem atomizados, dissociados, independentes e travando relações mercantis de troca
com o objetivo de se satisfazer individualmente. Os autores deste período seriam, portanto,
partidários de um individualismo burguês, ao menos metodológico. Assim, até mesmo
Hobbes, um autor anti-liberal, não escaparia a esta vinculação
143
.
142
“Em suma, quando as proclamações de Hobbes são reduzidas a uma medida histórica, não há
necessidade de divorciar sua teoria sobre a natureza humana da sua teoria política a fim de resgatar
esta última; vê-se que ambas as teorias têm uma validade histórica específica e são coerentes uma
com a outra.” (MACPHERSON, C. B. A Teoria Política do Individualismo Possessivo de Hobbes
até Locke. Trad. Nelson Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p.25)
143
Chegamos à tese, portanto, de que Hobbes foi mudando, desde seus postulados fisiológicos
originais até a conclusão de que todos os indivíduos, inevitavelmente, procuram cada vez mais
poder sobre os demais, introduzindo suposições que são válidas somente para as sociedades de
mercado possessivo. E só depois de haver chegado à sua conclusão de que todos os homens em
118
Se por um lado esta redução do contratualismo a um mero pensamento
burguês tenha já recebido inúmeras e contundente críticas
144
, por outro lado, é inegável que
a ascensão desta forma de compreender a política tenha estreitas conexões com as formas
de relacionamento sócio-econômico capitalistas que começam a se desenvolver,
progressivamente, nos fins da Idade Média até à modernidade. Nos termos da sociologia
compreensiva, as formas tradicionalistas e carismáticas de dominação legítima que
preponderam na dominação do senhor feudal e do monarca absoluto são criticadas em favor
de um modelo racional-legal de dominação cuja configuração típico-ideal possível é aquela
em que indivíduos autônomos e independentes concordam, por meio de um contrato (uma
figura jurídica), em se submeter mutuamente a um poder político comum com o único
objetivo de possibilitar ou maximizar algum bem ou vantagem para si próprios
145
. Nessa
sociedade buscam necessariamente cada vez mais poder sobre os demais, ele apresentou seu estado
hipotético de natureza, partindo do qual, por sua vez, deduziu a necessidade do estado soberano.
(MACPHERSON, C. B. op. cit. p. 79.).
144
Cite-se, por exemplo, Renato Janine Ribeiro: “Este Hobbes, dividido em dois tempos,
culminando em fracasso, não convence: pois, se a burguesia o repele, é justamente por ele enunciar
um individualismo radical. Partindo do direito à vida, não à propriedade, Hobbes já define o
indivíduo segundo potencialidades que não são as do homem burguês. Não é ele um pensador
burguês pela metade, míope que, na frase de Macpherson, teria visto apenas uma parte desta
realidade que teria por nome a História. Não se trata de apartar o filósofo da história – como pensar
separados o pensamento, a cultura, o social? – mas de recusar uma história pobre, que se satisfaz
identificando individualismo e burguesia.” (RIBEIRO, Renato Janine. Ao leitor sem medo: Hobbes
escrevendo contra o seu tempo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. pp. 213-214.)
145
“Para começar, em princípio, há três justificações interiores, e portanto legitimações, básicas do
domínio. Primeira, a autoridade do “ontem eterno”, isto é, dos mores santificados pelo
reconhecimento inimaginavelmente antigo e de orientação habitual para o conformismo. É o
domínio “tradicional” exercido pelo patriarca e pelo príncipe patrimonial de outrora. Há a
autoridade do dom da graça (carisma) extraordinário e pessoal, a dedicação absolutamente pessoal
e a confiança pessoal na revelação, heroísmo ou outras qualidades da liderança individual. É o
domínio “carismático”, exercido pelo profeta ou, no campo da política, pelo senhor de guerra eleito,
pelo governante plebiscitário, o grande demagogo ou o líder do partido político. Finalmente, há o
domínio em virtude da “legalidade”, em virtude da fé na validade do estatuto legal e da
“competência” funcional, baseada em regras racionalmente criadas. Nesse caso, espera-se
obediência no cumprimento das obrigações estatutárias. É o domínio exercido pelo moderno
“servidor do Estado” e por todos os portadores do poder que, sob esse aspecto, a ele se assemelham.
(WEBER, Max. A Política como Vocação. In: Ensaios de Sociologia. Trad. Waltensir Dutra. Rio de
Janeiro: LTC Editora, 2002. p.56.). Sabemos, evidentemente, que a forma mais bem acabada de
dominação racional-legal é, para Weber, a burocracia. Esta aparece, em suas obras, como a
manifestação institucional da racionalidade formal típica da modernidade. Da mesma forma, no
discurso político do contratualismo, o Estado, como produto de um contrato (uma forma jurídica), é
uma determinação de uma racionalidade instrumental com relação a finalidades consideradas úteis
aos sujeitos. Em Hobbes, por exemplo, esta racionalidade que equaciona meios segundo fins diz
que o uso do direito natural de fazer tudo para conservar a própria vida entra em contradição com a
119
abordagem, as relações econômicas mercantis capitalistas, ao engendrarem, por suas
próprias necessidades internas, um processo de racionalização
146
calculista das relações
sociais, quebraram de tal forma a aura de sacralidade destas relações até torná-las
incompatíveis com qualquer fundamentação da autoridade política, tais como a tradição e o
carisma, que não fosse chancelada pelas exigências de uma racionalidade com referência a
fins. Em outras palavras, podemos dizer que o cálculo econômico da vida desencantou
147
a
autoridade política, anulando a santidade das normas antiqüíssimas e os dons da graça
mágicos e pessoais. De qualquer maneira, o que cumpre fixar aqui é que a racionalidade
que orienta as formulações da teoria do contrato social, especialmente em sua versão
hobbesiano-lockeana é uma racionalidade que poderíamos chamar de instrumental, ou seja,
uma racionalidade de meios e fins e que esta racionalidade está conectada com a satisfação
individualista de inclinações ou necessidades. Em outras palavras, na teoria do contrato
social os sujeitos racionais que são pressupostos do sistema político agem racionalmente
calculando vantagens e desvantagens do estado natural e do estado social e construindo o
segundo, através do pacto, com a ajuda de sua racionalidade com referência a fins, para
usarmos a expressão de Weber.
sua própria finalidade (conservar a vida) porque leva à guerra de todos contra todos (a maior
ameaça à vida). Assim, a renúncia a este direito em favor de um poder absoluto comum (o Leviatã)
é um imperativo da própria razão instrumental ou formal. Portanto, podemos sustentar,
tranqüilamente, que os esquemas do contrato social são formas do tipo-ideal racional-legal de
dominação, ainda que não sejam as mais perfeitas. Segundo Katie Argüello: “Vale a pena assinalar
ainda que, sob este aspecto, Weber reatualiza Hobbes – o primeiro autor a apresentar a razão como
cálculo utilitário das conseqüências”, quando demonstra que a razão foi, infelizmente, reduzida a
esta fórmula.”
146
Analisando Weber, Katie Argüello assevera: “A racionalização é vista como fenômeno não
exclusivo, mas predominante na época moderna. Ela está vinculada ao desenvolvimento cumulativo
das civilizações, na medida em que, com o tempo, estas conseguem dominar com maior habilidade
e técnica. É a submissão do homem ao previsível, ao calculável, ao cognoscível, passando a
dominar a realidade, a partir da própria razão, num enfretamento com a mistificação religiosa, com
o mágico” (ARGÛELLO, Katie Silene Cáceres. O Ícaro da modernidade. São Paulo: Editora
Acadêmica, 1997, p.147)
147
“A crescente intelectualização e racionalização não indicam, portanto, um conhecimento maior e
geral das condições sob as quais vivemos. Significa mais alguma coisa, ou seja, o conhecimento ou
crença em que, se quiséssemos, poderíamos ter esse conhecimento a qualquer momento. Significa
principalmente, portanto, que não há forças misteriosas incalculáveis, mas que podemos, em
princípio, dominar todas as coisas pelo cálculo. Isto significa que o mundo foi desencantado. Já não
precisamos recorrer aos meios mágicos para dominar ou implorar aos espíritos, como fazia o
selvagem, para quem esses poderes misteriosos existiam. Os meios técnicos e os cálculos realizam o
serviço.”(WEBER, Max. A Ciência como Vocação. In: Ensaios de Sociologia. Trad. Waltensir
Dutra. Rio de Janeiro: LTC Editora, 2002. p. 97.)
120
Um bom exemplo desta oposição entre um discurso da dominação
tradicional e um discurso da dominação racional-legal no desenvolvimento teórico-político
europeu é-nos dado pelo debate filosófico inglês do século XVII envolvendo Robert Filmer
e John Locke. Locke, antes de expor os princípios do estado liberal, no Segundo Tratado
sobre o Governo, irá, no Primeiro Tratado sobre o Governo, dedicar-se à refutação de seu
rival, sir Robert Filmer, que era, naquela época, o grande defensor da monarquia absolutista
inglesa
148
. Hobbes, ao contrário, se defendeu o absolutismo, o fez fundamentando-o
racionalmente (na perspectiva de uma razão instrumental), através dos novos pressupostos
metodológicos do estudo da política, o que certamente lhe garantiu a antipatia dos próprios
beneficiados por suas teorias e fez com que sua obra fosse recebida com frieza por eles.
148
Segundo a tipologia da dominação legítima, as monarquias absolutistas seriam mais bem
classificadas como uma dominação carismático-hereditária, uma categoria apresentada por Weber
como subespécie da dominação carismática, mas que apresenta as características de um tipo misto
entre a dominação tradicional e a carismática. Nela “A crença não é então diretamente na pessoa
como tal, mas no herdeiro legítimo da dinastia. O caráter puramente atual e extracotidiano do
carisma transforma-se numa via acentuadamente tradicional...”(WEBER, Max. Os três tipos puros
de dominação legítima in Textos Escolhidos. 7 ed. Trad. Amélia Cohn e Gabriel Cohn. São Paulo:
Ática, 1999, p. 139.) A referência às leis fundamentais (p.ex., Lei Sálica na França, Carta Magna
na Inglaterra) como fundamento de legitimidade nas monarquias absolutistas européias parece
indicar, em princípio, um traço de dominação racional-legal para estas formações políticas.
Todavia, se bem analisarmos estes documentos veremos que eles próprios retiram sua legitimidade
da tradição. De tal forma, por vezes as discussões político-jurídicas que tinham como referência as
leis fundamentais chegavam ao argumento cabal segundo o qual determinada conformação do poder
era a única legítima porque existiria desde que o próprio Estado em questão se formou. Neste
sentido, Seelaender: “No campo do direito público, autores da segunda metade do século XVIII –
como Sousa e S. Paio – destacavam que as leis fundamentais portuguesas não teriam resultado de
um pacto de forças políticas, mas sim de uma generosa concessão espontânea da monarquia
absoluta, que supostamente existiria desde o surgimento do reino.” (SEELAENDER, Airton
Cerqueira-Leite. Notas sobre a constituição do direito público na idade moderna: a doutrina das
leis fundamentais.in Seqüência: estudos políticos e jurídicos. n° 53, Ano XXVI, Florianópolis:
Fundação Boiteux, 1980 – semestral, p.203) De toda forma, assim como os “mores santificados”
transmitidos consuetudinariamente, as leis fundamentais são, ao mesmo tempo, fundamentos da
legitimidade do detentor do poder e limites do seu arbítrio e tem como uma de suas principais
características o ideal de perenidade e o suposto vínculo com uma tradição longamente constituída.
Ainda segundo Seelaender: “A defesa das ‘antigas e venerandas leis fundamentais’ contra a
‘tirânica Constituição’ demolidora das instituições tradicionais seria parte importante do discurso
pró-absolutista na era das revoluções liberais.”(SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. op. cit.
p.217).. Portanto, mesmo nos casos em que as leis fundamentais revestem a forma legal, na medida
em que se encontram reduzidas a termo (no mais das vezes, muito precariamente), vemos que não
há, na sua dinâmica, qualquer papel importante atribuído à racionalidade. É apenas tardiamente, ao
sofrer a influência do racionalismo das modernas teorias do Direito Natural, na ocasião da formação
do ius publicum universalis, que o tema das leis fundamentais adquirirá o binômio racionalidade-
legalidade que caracteriza o tipo ideal racional-legal de dominação legítima.
121
Filmer, ao contrário, baseará o poder dos reis na teoria do direito divino, segundo a qual os
monarcas, recebendo, como sucessores ou delegados, os direitos de Adão (o primeiro pai e
o primeiro rei), têm naturalmente um poder político absoluto assim como os homens,
enquanto pais, tem naturalmente, dentro da família, o pátrio poder. A principal obra de
Robert Filmer tem o revelador título de Patriarca ou o Poder Natural dos Reis
149
. Bobbio
afirma que “Para Filmer, a única forma de governo legítima é a monarquia, porque o
fundamento de todo o poder é o direito que tem um pai de comandar os filhos; e os reis são
ou originariamente os próprios pais, ou, no decorrer do tempo, os descendentes dos pais ou
os seus delegados.
150
Dentro da concepção de Filmer, existe uma supremacia natural dos
monarcas em relação aos seus súditos. Considerando em que estado os homens se
encontram naturalmente, Hobbes, ao contrário, constatará que se trata de um estado de
igualdade
151
, ou seja, os homens são naturalmente iguais e, desenvolvendo seu raciocínio,
será com base nesta igualdade que ele desenvolverá, como conseqüência lógica, portanto
149
Nela, encontra-se a seguinte afirmação: “Se se comparam os direitos naturais de um pai com os
de um rei, não perceberemos outra diferença além da amplitude e da extensão: como o pai de uma
família, assim o rei estende sobre muitas famílias a sua preocupação para conservar, nutrir, vestir,
instruir e defender toda a comunidade” (FILMER, Robert. Patriarcha or the Natural Power of
Kings apud BOBBIO, Norberto e BOVERO, Michelangelo. op. cit., p. 47)
150
Idem, ibidem, p. 47.
151
“A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito, que, embora
por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do
que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro
homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar
qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele. Porque quanto à força
corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação,
quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo.” (HOBBES, Thomas.
O Leviatã. 2ª ed. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Editora
Abril Cultural, 1979. p. 74.) O modelo do qual Filmer parte é o velho modelo aristotélico que
concebe o homem como um politikon zoon, ou seja, um animal que vive naturalmente em
sociedade. A partir desta idéia da igualdade natural entre os homens Hobbes chegará a uma tese
contrária: a do homo homini lupus (homem lobo do homem): “Da igualdade quanto à capacidade
deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos nossos fins. Portanto se dois homens desejam a
mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos.
E no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes apenas seu
deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro.[...]E contra essa desconfiança de uns
em relação aos outros, nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como a antecipação; isto é,
pela força ou pela astúcia, subjugar as pessoas de todos os homens que puder, durante o tempo
necessário para chegar ao momento em que não veja qualquer outro poder suficientemente grande
para ameaçá-lo.”(Idem, ibidem, p. 74.) Desta situação, Hobbes deduzirá a guerra generalizada e a
necessidade do Estado Leviatã para extirpá-la.
122
racional, o poder político. Todo o discurso de refutação de Locke em relação a Filmer será
baseado na diferenciação entre o poder político e o poder que um pai tem em relação aos
filhos, enfatizado a base consensual-racional do primeiro. O que devemos reter aqui é que o
indivíduo do pressuposto do esquema do contrato social é um indivíduo que usa sua razão
(instrumental) para refletir sobre suas condições e fundamentar, através dela, uma nova
ordem política. Sobretudo em Locke, essa ação legitimadora da racionalidade possui um
reverso: ela, da mesma forma que dá legitimidade às formações políticas que estiverem de
acordo com sua lógica, retira qualquer legitimidade aparente daquelas que, ao contrário,
não se adequam a seus critérios. Tanto em Hobbes quanto em Locke tudo (tradição,
circunstâncias históricas, geográficas, sociais) é posto de lado e a estrutura política é
avaliada apenas pela razão. A racionalidade leva, na teoria do contrato social, à idéia de
autonomia individual, que em Locke conduz necessariamente ao direito de resistência
contra poderes ilegítimos e, assim, a uma postura profundamente emancipatória.
Nas páginas de Dos Delitos e Das Penas, Beccaria nitidamente assume a
perspectiva do Contratualismo político e, por conseqüência, os parâmetros metodológicos
matematicistas que constituem os fundamentos desta abordagem. Assim afirma ele que:
A primeira conseqüência destes princípios é que só as leis podem
decretar as penas dos delitos, e esta autoridade não pode residir senão na
pessoa do legislador, que representa toda a sociedade unida por um
contrato social.
152
E para não deixar quaisquer dúvidas, Beccaria tratar as relações políticas
entre o indivíduo e a sociedade em termos de obrigação contratual:
152
“La prima conseguenza di questi principii è che le sole leggi possono decretar le pene su i delitti,
e quest’autorità non può risedere che presso il legislatore, che rappresenta tutta la società unita per
un contratto sociale;” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti e delle Pene. Itália: Garzanti Editore, 1987,
p.13.). E, confirmando a sua perspectiva teórica, ao expor a metodologia com a qual vai tratar os
problemas referentes aos fundamentos políticos do Direito Penal, Beccaria adere ao racionalismo
que orientava as formulações do Contratualismo e que tinha, como modelo, os desenvolvimentos
das ciências matemáticas, sobretudo da geometria, afirmando o seguinte: “Ma quali saranno le pene
convenienti a questi delitti? La morte è ella una pena veramente utile e necessaria per la sicurezza e
pel buon ordine della società? La tortura e i tormenti sono eglino giusti, e ottengon eglino il fine che
si propongono le leggi? Qual é la miglior maniera di prevenire i delitti? Le medesime pene sono
elleno egualmente utili in tutt’i tempi? Qual influenza hanno esse su i costumi? Questi problemi
meritano di essere sciolti con quella precisione geometrica a cui la nebbia dei sofismi, la seduttrice
eloquenza ed il timido dubbio non posson resistere.” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 28.).
123
A segunda conseqüência é que se cada membro em particular está ligado
à sociedade, essa sociedade está igualmente ligada a cada um de seus
membros por um contrato que, por sua natureza, obriga as duas partes.
153
Se compararmos os diversos autores do Contratualismo político, como,
por exemplo, Hobbes com Locke, veremos que as suas diferentes idéias sobre o estado
político são conseqüência das diferentes formas de conceber o contrato social e que estas,
por sua vez, decorrem das diversas maneiras de se caracterizar o estado de natureza. A idéia
do estado de natureza é, portanto, ponto fundamental na definição do modelo político
dentro da teoria do contrato social. Beccaria, como já comprovamos, assente na idéia de
que a sociedade se constitui através de um Contrato Social. Resta vermos de que maneira
ele concebe o estado de natureza. Assim, em Dos Delitos e Das Penas nosso autor também
nos apresenta uma concepção sobre o assim chamado estado de natureza. Vejamos o que
ele afirma:
As leis são condições sob as quais homens independentes e isolados se
uniram em sociedade, cansados de viver em contínuo estado de guerra e
de gozar de uma liberdade inútil pela incerteza de sua conservação.
Assim, sacrificam uma parte desta liberdade para usufruir do restante
com segurança e tranqüilidade. A soma de todas essas porções de
liberdade sacrificadas ao bem de todos forma a soberania da nação[...]
154
153
“La seconda conseguenza è che se ogni membro particolare è legato alla società, questa è
parimente legata con ogni membro particolare per un contratto che di sua natura obbliga le due
parti.” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 13.).
154
“Le leggi sono le condizioni, colle quali uomini indipendenti ed isolati si unirono in società,
stanchi di vivere in un continuo stato di guerra e di godere una libertà resa inutile dall’incertezza di
conservala. Essi ne sacrificarono una parte per goderne il restante con sicurezza e tranquillità. La
somma di tutte queste porzioni di ligertà sacrificate al bene di ciascheduno forma la sovranità di una
nazione [...]” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti e delle Pene... p.10.). Esta afirmação nos leva a crer
que Beccaria entende que o estado de natureza caracteriza-se por um estado de guerra,
concordando, assim, com Hobbes. Entretanto, nesta mesma obra, encontramos a seguinte
afirmação: “Sarebbe un errore a chi, parlando di stato di guerra prima dello stato di società, lo
prendesse nel senso hobbesiano, cioè di nessun dovere e di nessuna obbligazione anteriore, in vece
di prederlo per un fatto nato dalla corruzione della natura umana e dalla mancanza di una sanzione
espressa. Sarebbe un errore l’imputare a delitto ad uno scrittore, che considera le emanazioni del
patto sociali, di non ammetterle prima del patto istesso.” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti...
p.5.).Fica evidente, então, que Beccaria não supõe para os homens do estado de natureza uma
ausência de obrigações morais em relação a seus semelhantes, situação esta que está na base da
guerra de todos contra todos de Hobbes. Antes, ele supõe, sim, obrigações morais para o homem do
estado de natureza. Mas, sendo assim, de onde vem a guerra entre eles? A chave para
124
Ou ainda:
A multiplicação do gênero humano, pequena por si mesma, mas muito
superior aos meios que a natureza estéril e abandonada para satisfazer as
necessidades que cada vez mais se entrecruzavam, foi o que reuniu os
primeiros selvagens. As primeiras uniões formaram necessariamente
outras para resistir àquelas e, assim, o estado de guerra se transferiu do
indivíduo para as nações. [grifo nosso].
155
Entretanto, ao contrário de Locke, Beccaria pouco se importará com o
estado de natureza enquanto um modelo ideal e não lhe conferirá o status de idéia
reguladora do pacto social, conforme fez Locke. Para ele, o que importa é o estado fático de
guerra entre os homens, tanto que, em sua obra, é apenas a este que ele faz menção. A
conseqüência mais importante disto é que mesmo que haja uma lei da razão a reger o estado
de natureza não é nela que se deve procurar os parâmetros que governam o estado civil.
Dessa forma, procurando definir a natureza do seu objeto de estudos, Beccaria afirmará que
os preceitos da moral e da política, as espécies de vício e virtude, emanam de três fontes: a
solucionarmos esta aparente contradição está em entendermos que o estado de natureza “puro” – no
qual as leis naturais de respeito mútuo são cumpridas à risca – é apenas hipotético. O que de fato
vigora entre os homens que não estão submetidos a qualquer pacto social é o estado de guerra. E é
deste estado fático de guerra que nasce a necessidade do pacto social. Beccaria, no que diz respeito
exclusivamente a este ponto, aproxima-se muito mais, assim, do modelo jusnaturalista de Locke, no
qual são supostas obrigações para o homem no estado natural e, portanto, direitos correspondentes a
estas obrigações, mas não é suposta, evidentemente, nenhuma garantia a eles enquanto perdura este
estado natural. De resto, cumpre observar que esta distinção entre o fático e hipotético já existe no
próprio Locke. Sobre o estado de natureza em Locke, Norberto Bobbio afirma: “Mas, enquanto
estado de paz universal, é tão hipotético quanto o estado universal de guerra de que fala Hobbes.
Hipotético no sentido de que seria um estado de paz se os homens fossem todos e sempre racionais:
só o homem racional obedece às leis naturais sem necessidade de ser a isso coagido. Mas, já que os
homens não são todos racionais, as leis naturais podem ser violadas; e, visto que de uma violação
nasce outra, pela ausência no estado de natureza de um juiz super partes, o estado de natureza
apresenta continuamente o risco de degenerar num estado de guerra, ou melhor, ‘o estado de guerra,
uma vez iniciado, prossegue’. Assim, o estado de natureza é hipoteticamente um estado de paz, mas
se torna de fato um estado de guerra: é supérfluo acrescentar que não do estado hipotético, mas do
estado de fato é que nasce a exigência da sociedade civil” (BOBBIO, Norberto e BOVERO,
Michelangelo. op. cit., p. 55).
155
“La moltiplicazione del genere umano, piccola per se stessa, ma di troppo superiori ai mezzi che
la sterile ed abbandonata natura offriva per soddisfare ai bisogni che sempre più s’incrocicchiavano
tra di loro, riunì i primi selvaggi. Le prime unioni formarono necessariamente le altre per resistere
alle prime, e così lo stato di guerra trasportossi dall’individuo alle nazioni” (BECCARIA, Cesare.
Dei Delitti... p.12.).
125
revelação (ou religião), a lei natural e as convenções sociais
156
. O objeto a que ele se propõe
a estudar pertence ao âmbito das convenções sociais.
Nem tudo o que exige a revelação o exige a lei natural, nem tudo o que
exige esta o exige a pura lei social: mas é importantíssimo distinguir o
que resulta dessas convenções, isto é, dos pactos expressos ou tácitos que
os homens fizeram entre eles, porque tal é o limite daquela força que
pode legitimamente exercer-se nas relações entre homem e homem sem
uma especial missão do Ser Supremo.
157
Com isso Beccaria procura deixar bem claro que o que lhe interessa são
as relações sociais, ou seja, as relações que os homens, livremente, estabelecem entre si e
que, portanto, são responsabilidade apenas deles e não de Deus. O que Beccaria se propõe a
examinar são, portanto, as leis produzidas pela convenção social, um produto de
responsabilidade apenas humana, pois encerra em si a idéia de sujeitos livres, racionais e
autodetermináveis. Este é o ponto nodal do modelo do contrato social. Nessa perspectiva, a
sociedade e o Estado são frutos de um contrato pois, se o homem é livre em seu status
naturae, só ele mesmo pode se obrigar a alguma coisa. Mas, se não há qualquer lei natural
que determine ou que sirva de parâmetro para este pacto social, dê onde ele surgirá?
Como o estado de natureza fático de Beccaria tem como característica
uma guerra mais ou menos generalizada, o pacto social surge como a condição necessária
para o exercício pacífico da liberdade e é só com esse fim que os indivíduos sacrificam,
cada um, uma parcela da sua própria. No estado de natureza real, onde não tem eficácia
qualquer compromisso entre os homens, estes possuem, de fato ainda que não de direito,
uma liberdade irrestrita, a liberdade natural, que lhes permite, inclusive, usurpar a liberdade
alheia. Decorre daí que os indivíduos viveriam num permanente estado de guerra, ou, pelo
menos, num permanente estado de temor e de suspeita em relação aos seus semelhantes.
156
“Tre sono le sorgenti delle quali derivano i principii morali e politici regolatori degli uomini. La
rivelazione, la legge naturale, le convinzioni fattizie della società.” ( BECCARIA, Cesare. Dei
Delitti... p. 4.).
157
“Non tutto cio che esige la rivelazione lo esige la legge naturale, né tutto ciò che esige questa lo
esige la pura legge sociale: ma egli è importantissimo di separare ciò che risulta da questa
convenzione, cioè dagli espressi o taciti patti degli uomini, perché tale è il limite di quella forza che
può legittimamente esercitarsi tra uomo e uomo senza una speciale missione dell’Essere supremo.”
(BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 5.).
126
O escopo do pacto é a proteção da liberdade humana. Assim, os
indivíduos, ao adentrarem ao pacto social, sacrificam apenas uma parcela de sua liberdade,
a que é necessária para a manutenção da paz pública. Nas palavras do marquês:
As leis são as condições sob as quais os homens independentes e isolados
se uniram em sociedade, cansados de viver em um contínuo estado de
guerra e de gozar uma liberdade que restava inútil pela incerteza de a
conservar. Assim, lhe sacrificam uma parte para gozarem do restante
com segurança e tranqüilidade.
158
Está claro, de qualquer, maneira que Beccaria, ainda que parta da idéia de
um estado de guerra original, não apresenta um modelo contratualista de tipo hobbesiano,
como alguns ousaram afirmas. O contrato social visa sacrificar uma parcela da liberdade
para proteger o restante. Temos muito mais um esquema de pensamento de índole liberal,
ainda que dois obstáculos nos impeçam de traçar um paralelo perfeito entre nosso autor e
Locke: o primeiro é que, em Locke, não há propriamente uma contradição entre a liberdade
do Estado de natureza e a do estado social, pois o que se concede é apenas o direito de
aplicar as sanções às violações do direito natural; o segundo é as críticas que Beccaria faz
ao direito de propriedade que, em Locke, são o fundamento de toda a arquitetura política. A
afirmação, muito já repetida, de que Beccaria partiria do contratualismo de Rousseau é
completamente desprovida de fundamento por uma série de motivos que aqui nos
absteremos de analisar. Beccaria adere claramente ao modelo do contrato social, mas cria,
em certa medida, uma versão que aparentemente parece própria. A análise da outra
tendência teórica presente em Dos Delitos e das Penas talvez nos ajude a entender um
pouco melhor as origens do Contratualismo de Beccaria e a sua função.
158
“Le leggi sono le condizioni, colle qualli uomini indipendenti ed isolati si unirono in società,
stanchi di vivere in un continuo stato di guerra e di godere una libertà resa inutile dall’incertezza di
conservala. Essi ne sacrificarono una parte per goderne il restante con sicurezza e tranquillità.”
(BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 10.).
127
SEÇÃO II – Beccaria e Helvétius entre contratualismo e utilitarismo
A separação tão rigorosa feita por Beccaria entre as convenções sociais e
a lei natural pode parecer estranha considerando a vinculação de nosso autor com os
teóricos do Direito Natural. Nestes, como se procurou demonstrar, as convenções sociais,
os termos do pacto social, são deduções ou derivações lógicas das condições do estado de
natureza. Em outras palavras, cada teórico deriva os termos do contrato social de acordo
com a forma com que caracterizou o estado de natureza e as leis (naturais) que o governam.
E como o estado social é instituído e governado pelo contrato que lhe deu origem, temos
entre a lei natural, as convenções sociais e o próprio estado social, por trás da ruptura, uma
continuidade lógica. Podemos dizer, por fim, que o estado político ou visa dar plena
vigência à lei natural, como em Locke, ou derivando logicamente dele e, sendo a base do
pacto, continua a subsistir como idéia reguladora das relações políticas.
A contraposição feita por Beccaria entre a lei natural e as convenções
sociais pode ser atribuída a outra referência teórica fundamental presente em Dos Delitos e
das Penas. Trata-se de Claude-Adrien Helvétius e sua obra Do Espírito
159
. Analisando a
159
O impacto desta obra de Helvétius sobre o marquês de Beccaria nos é atestado por um trecho da
famosa carta dele a Morellet, em que diz: “A segunda obra que terminou a revolução do meu ânimo
foi a do Sr. Helvétius. Ele lançou-me com força no caminho da verdade e foi o que primeiro
despertou minha atenção para a cegueira e as desventuras da humanidade. Devo à leitura do
“Espírito” uma grande parcela de minhas idéias” (BECCARIA, Cesare. Carta de Beccaria a
Morellet. Dos Delitos e das Penas. 11ª ed. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Editora
Hemus, 1996, p.159). Gianni Francioni não deixou de notar a importância que as idéias de
Helvétius têm em Beccaria, a par das influências contratualistas: “Il ‘sistema’ teorico di Dei delitti e
delle pene è frutto della combinazione di precisi blochi concettuali della cultura sei-settecentesca:
assunta da Montesquieu la tematica di fondo dell’opera (lo scopo de Beccaria potrebbbe dirsi quello
di comporre uma sorta di ‘Spirito delle leggi criminalli’ mutuato dall”Esprit des lois, prelevando
altresì da Montesquieu diverse soluzioni di problemi specifici via via affrontati nei Delitti), l’autore
connete questa tematica ad un contrattualismo fondamentalmente lockiano, anche se reso spesso
tramite suggestioni e immagini che provengono da Grozio, Hobbes e Rousseau. Il quadro filosofico
di fondo – la filosofia che propriamente circola nel fortunato pamphlet – è costituito dalla teoria
utilitarista di Helvétius.” (FRANCIONI, Gianni. Beccaria filosofo utilitarista in Cesare Beccaria
tra Milano e l’Europa: convegno di studi per il 250º anniversario della nascita. Milano: Cariplo-
Laterza, 1990, p. 69.). Analisando a citada carta a Morellet, Francioni ressalta, ainda, o destaque
especial que é dado ao nome de Helvétius: “La centralità di Helvétius tra le fonti di Beccaria viene
esplicitamente dichiarata nella nota lettera ad André Morellet del 26 genaio 1766, vera e propria
128
presença das idéias de Helvétius em Beccaria poderemos entender o papel secundário
atribuído por Beccaria à idéia de direito natural.
A obra de Helvétius, que constitui um sistema de psicologia política,
fundada sobre uma ética hedonista e pródiga em adágios anti-clericais e anti-nobiliárquicos,
se insere, juntamente com as de autores como Julien-Offroy de la Mettrie, Holbach e
Étienne Bonnot de Condillac, dentro de uma corrente de pensamento, desenvolvida no
século XVIII, no seio do Iluminismo, que podemos chamar de materialismo radical
francês. O Iluminismo francês é preponderantemente materialista, enquanto isto signifique
empirismo. No entanto, o materialismo radical francês do século XVIII se diferencia dentro
do Iluminismo por anular qualquer possibilidade de uma perspectiva metafísica com
relação à idéia de alma
160
, à qual mesmo autores como Voltaire e Diderot não estavam
dispostos a renunciar, ainda que criticassem as formulações metafísicas. Nestes autores, em
geral, a alma é vista como um resultado mecânico da interação dos processos biológicos
(seppur rapidissima) autobiografia intellettuale del nostro autore: qui Beccaria dedica al philosophe
una particolare menzione, nominandolo subito dopo l’‘immortale Presidente di Montesquieu’,
autore di quelle Lettres persanes che cinque anni prima avevano provocato la conversione alla
filosofia del giovane milanese. Seguono, nell’ordine, i nomi di Buffon, Diderot, Hume, d’Alambert
e Condillac, ciascuno dei quali à accompagnato da generiche frasi di stima e di elogio (e manca,
significativamente, il nome di Rousseau: ma non bisogna dimenticare che il destinatario della lettera
appartiene al gruppo di philosophes col quale il ginevrino aveva rotto ogni rapporto). Nessuno di
essi riceve un giudizio così enfatico e circostanziato come Helvétius: dopo le Lettres persanes,
afferma Beccaria, il libro che ha prodotto una vera e propria rivoluzione nella sua mente è appunto
l’Esprit: ‘c’est lui qui m’a poussé avec force dans le chemin de la vérité et qui a le premier réveillé
mon attention sur l’aveuglement et les malheurs de l’humanité. Je dois à la lecture de L’esprit une
grande partie de mes idées’. Dichiarazione da prendersi allá lettera, come si può provare com una
attenta disamina del testo dei Delitti; nel quale, pure, come è noto, il nome de Helvétius non è mai
menzionato.”(FRANCIONI, Gianni. Beccaria filosofo utilitarista... p. 71.). Da mesma forma,
Gianmarco Gaspari, valendo da mencionada carta, ressalta a importância de Helvétius para a obra
de Beccaria: “Quanto a Helvétius, la sua presenza nell’area terminale della speculazione beccariana
non può a sua volta non ricondurci nuovamente al principio di quella, e non soltanto per considerare
il ruolo prioritario assunto dalle tesi utilitaristiche dell’Esprit nel tessuto dei Delitti, ma anche
perché senza equivoci sia chiara la portata dell’afermazione che s’incontra nella celebre lettera a
Morellet del gennaio 1766 [...].” (GASPARI, Gianmarco. Beccaria e la crisi del sensismo. In
Cesare Beccaria tra Milano e l’Europa: convegno di studi per il 250º anniversario della nascita.
Milano: Cariplo-Laterza, 1990, p. 110.).
160
Não significa isto que estes autores abandonem, propriamente, a idéia de alma, mas tão-somente
que esta não será mais considerada a partir de uma perspectiva metafísica. Ao contrário, a alma,
para estes autores, é uma conseqüência do desenvolvimento das formas orgânicas da matéria. Deve-
se fazer uma pequena ressalva com relação a Condillac, autor no qual uma teimosa tendência a
reafirmar, isoladamente, teses espiritualistas parece contrastar com o conjunto de seu pensamento
onde todo o modus operandi da alma vai depender de sua interação com as sensações primárias.
129
com o seu meio ambiente. Em outras palavras, o sujeito se transforma em um epifenômeno
da objetividade. No campo da psicologia e da teoria do conhecimento, o Iluminismo, de
uma forma geral, dá continuidade ao projeto empirista de Locke, enquanto que estes
materialistas radicais à influência de Locke somam a de Newton e buscam, explicitamente,
encontrar, para as ciências morais, um princípio análogo ao da gravitação universal que o
cientista havia encontrado para a Física. Não é aqui o lugar para dissertarmos sobre a
importância do impacto da obra do físico inglês sobre o conjunto do Iluminismo francês,
que vai muito além dos temas ligados à física e aos astros celestes. De uma certa maneira,
pode-se dizer que o espírito de alguns pensadores do século XVIII estava animado pela
intenção de criar uma “física” das coisas humanas assim como Newton fez em relação às da
natureza. Essa é a razão da busca de um princípio motor para o mundo humano equivalente
ao da gravitação universal, que Newton encontrou para o mundo natural. De Holbach e La
Metrie a Condillac e Helvétius este projeto aparece.
161
Entretanto, o que gostaríamos de ressaltar é que este conjunto de teses
desenvolvidas em meio ao iluminismo francês, e de alguma forma um tanto olvidadas pelos
historiadores das idéias filosóficas e políticas, constitui justamente as origens remotas de
uma outra grande corrente da filosofia, que marcaria de forma indelével inúmeros campos
do conhecimento como a ética, a política, a psicologia e a economia: a saber, o utilitarismo.
161
Luiz Roberto Monzani descreve o impacto das idéias do físico inglês sobre os filósofos
setecentistas de maneira bastante precisa: “A obra de Newton fornecia o exemplo mais sólido e
acabado de como o verdadeiro conhecimento se constitui e quais os seus limites: a partir da
experiência e, única e exclusivamente, para dar conta dos fenômenos, sendo a pesquisa sobre as
substâncias e essências das coisas interditada ao espírito humano. Isso fornece a chave para se
entender o pensamento do século XVIII nas suas linhas principais. O empirismo ganha um
inusitado valor através da obra de Newton. Mas o admirável na obra desse gênio foi, através desses
princípios, conseguir a façanha de reduzir o sistema do mundo físico a um único princípio, o da
gravitação. Pela primeira vez na história um conjunto à primeira vista heteróclito de fenômenos era
explicado através de um único princípio e, através disso, tornou-se possível a constituição de um
verdadeiro sistema do mundo físico. O século XVIII viverá sob o fascínio dessa síntese admirável e
partindo do princípio de que se há leis em algum domínio deve haver em toda parte, sua grande
obsessão foi encontrar para o domínio espiritual (moral, como se dizia na época) algo similar ao
papel exercido pela gravitação, isto é, um princípio unitário que desse conta dessa massa complexa
de fenômenos que denominamos humanos. Faltava um Newton das ciências humanas, para falar
anacronicamente. E as tentativas não faltaram. Hume, por exemplo, subintitula sua obra principal de
Ensaio para Introduzir o Método Experimental na Matérias Morais. Mas ele é apenas um exemplo
de uma longa série daqueles que procuram obstinadamente atingir tal objetivo.” (MONZANI, Luiz
Roberto. O empirismo na radicalidade: introdução à leitura do Tratado das Sensações. In
CONDILLAC, Étienne de. Tratado das sensações. Tradução de Denise Bottman. Campinas:
Editora da UNICAMP, 1993, p. 8.).
130
O utilitarismo, que em solo inglês transformou-se em movimento filosófico e encontrou,
em Jeremy Bentham, seu nome mais ilustre e uma de suas primeiras grandes (talvez a
maior) elaborações sistemáticas, seria, em seu desenvolvimento mais rigoroso, francamente
incompatível com a perspectiva contratualista e jusnaturalista. A presença destas idéias de
índole utilitarista, oriundas deste materialismo francês, na obra de Beccaria parece colocar
alguns obstáculos para o desenvolvimento mais rigoroso e, digamos, mais clássico das teses
contratualistas. As relações estabelecidas entre as duas correntes no interior da obra do
marquês e a função que é cumprida por cada uma delas merecem uma análise mais
detida.
162
Igualmente, o significados políticos e jurídicos mais amplos destas duas teorias
políticas, no contexto do século XVIII, merecem ser analisado e talvez possa nos levar a
algumas conclusões sobre a posição de Beccaria com relação às questões políticas de seu
tempo.
163
Concentremos, assim, nossa atenção, por um momento, justamente nas
relações entre contratualismo e utilitarismo no interior da obra de Beccaria. Como
dissemos, o sistema teórico do utilitarismo apresenta determinados princípios que, quando
levados a todas as suas conseqüências, se mostram incompatíveis com os esquemas
políticos contratualistas. Esta circunstância levou, algumas vezes à observação crítica
segundo a qual Beccaria perdeu-se na confusão de duas correntes não só distintas, mas
contraditórias entre si.
164
Uma outra postura relata, ao contrário, que as duas correntes
teóricas contrapostas se apresentam, no interior da obra de Beccaria, em um “difícil
equilíbrio”, como se nosso autor, estando ou não cônscio da contradição entre ambas, de
certa forma procurasse sustentar um singular ecletismo filosófico, relutando a abandonar
162
Gianni Francioni percebeu bem a importância desta questão: “È rimasto tuttavia al centro della
discussione un problema non secondario: ci si continua a chiedere in quali termini possa avvenire,
nel pensiero di Beccaria, la conciliazione di contrattualismo e utilitarismo. Molti critici (il
Mondolfo fra questi) hanno rilevato nei Delitti una confusione di due correnti teoriche distinte e di
fatto incompatibili.” (FRANCIONI, Gianni. Beccaria filosofo utilitarista... p. 69.).
163
ZARONE, Giuseppe. Etica e politica nell’utilitarismo di Cesare Beccaria. Napoli: Istituto
Italiano per gli studi storici, 1971.
164
Além do caso de Mondolfo (conforme a nota 54), também Riccardo Campa, que, em prefácio a
uma edição brasileira de Dos Delitos e das Penas, talvez influenciado pelo próprio Mondolfo,
afirma: “Beccaria talvez não perceba a contradição existente entre o utilitarismo e o contratualismo
[...]”. (CAMPA, Riccardo. Prefácio in Dos Delitos e das Penas. Tradução de Lucia Guidicini e
Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 13.).
131
duas ordens de argumentação tão sedutoras e de capacidades persuasivas tão fortes.
165
Esta
postura (representada por Franco Venturi) é, por Gianni Francioni, transformada em uma
característica não só de Beccaria, mas de toda uma época do desenvolvimento da teoria
utilitarista. Na opinião desse autor, o equilíbrio entre essas duas correntes teóricas é o que
caracteriza, não apenas Beccaria, mas grande parte do utilitarismo deste período, que por
ele é representado.
166
Francioni sustenta sua tese na observação de que as críticas dirigidas
à postura eclética de Beccaria em um tom que apontaria para um equívoco insustentável do
marquês estariam fundadas em uma leitura anacrônica de seu utilitarismo, mais
precisamente em uma retroprojeção do utilitarismo de Bentham no jurista italiano. Assim,
estas acusações são possíveis apenas se se parte dos princípios utilitaristas de Bentham,
estes sim franca e explicitamente inconciliáveis com o contratualismo. Mas isso, é claro,
constituiria um grave erro, pois significaria procurar em Beccaria princípios benthamianos,
reprovando-o, depois, por ele não os possuir.
167
De tal forma, na opinião de Francioni, diversamente do que acontece no
utilitarismo de Bentham (e no utilitarismo pós-benthamiano, em geral), onde se rechaça
cabalmente o contrato social e o direito natural, no utilitarismo dos século XVII e XVIII o
princípio da utilidade e a idéia de contrato vão aparecer conjugados. Já em Helvétius, e não
apenas em Beccaria, este fenômeno é observável.
168
Essa afirmação é acompanhada pela
165
VENTURI, Franco. Introduzione. In BECCARIA, Cesare. Dei Delitti e delle Pene. Com uma
raccolta di lettere e documenti relativi alla nascita dell’opera e alla sua fortuna nell’Europa del
Settecento. A cura di Franco Venturi. Torino: Einaudi, 1958.
166
“In modo più pertinente, rispetto a precedenti interpreti, Franco Venturi ha segnalato il “difficile
equilibrio” in cui le due tendenze filosofiche in questione si presentano nella pagina di Beccaria. Io
vorrei cercare di andare più in là, e mostrare come l’equilibrio fra le due componenti del pensiero di
Beccaria sia quello che caratterizza gran parte dell’utilitarismo settecentesco.”(FRANCIONI,
Gianni. Beccaria filosofo utilitarista... p. 70.).
167
Referindo-se às tais críticas, Francioni reage nas seguintes palavras: “Ma si tratta di un’accusa
formulabili solo assumendo come pienamente rappresentativa dell’utilitarismo la concezione di
Bentham, cioè la teoria che – peraltro prendendo le mosse proprio da Helvétius e Beccaria – viene a
collocarsi come capostipite di una scuola di pensiero che avrà fortuna e svilluppi ottocenteschi
(nonché una ripresa dai tratti molteplici e complessi nel dibattito filosofico odierno). Sarebbe errato
ricercare nel nostro autore dei caratteri che l’utilitarismo presenterà solo da Bentham in poi, per poi
magari segnalare come una lacuna la non-presenza in Beccaria di principi che sono esclusivamente
benthamiani.” (FRANCIONI, Gianni. Beccaria filosofo utilitarista... p. 70.).
168
“Infatti, se (coerentemente ad una presa di posizione che, per il pensiero britannico, risale a
Hume) in Bentham, e nell’utilitarismo da Bentham in poi, l’idea del contratto sociale e di un diritto
naturale precedente il diritto positivo è esplicitamente rifiutata, diversa è la situazione per quel
filone utilitaristico che percorre la filosofia sei-settecentesca, dove principio di utilità e idea del
132
observação de que o pensamento jusnaturalista e contratualista, ao longo dos séculos XVII
e XVIII, era geralmente acompanhado de uma certa “moderna idéia de utilidade”, cujos
“pais fundadores” teriam sido, justamente, Hobbes e Locke. Assim, de certa forma, o
utilitarismo teria nascido dentro da perspectiva contratualista e jusnaturalista. De tal
maneira, desenvolvendo-se dentro destes quadrantes, o utilitarismo demoraria ainda algum
tempo até poder se emancipar das suas origens jusnaturalista e, principalmente,
contratualista. A conjugação do utilitarismo com uma perspectiva contratualista seria,
portanto, uma conseqüência, de certa forma, natural de seu desenvolvimento e não o
produto de um incompetente ecletismo filosófico. Seria, aliás, justamente com Helvétius
que o utilitarismo começaria a desvencilhar-se do jusnaturalismo, transformando-se em um
sistema filosófico, até atingir o nível encontrado na cultura anglo-saxônica com Bentham e
Mill.
169
Observa, ainda, Francioni, que, no século XVIII, uma importante diferença a
separar o utilitarismo inglês e escocês do continental é justamente o fato de, neste, a
perspectiva utilitarista não ser nunca o núcleo central das doutrinas filosóficas dos
pensadores que o utilizam. Precisamente Helvétius constituiria uma exceção.
Evidentemente, isto significaria um importante ponto de inflexão na teoria utilitarista
continental, marcando o momento em que ela adquiriria centralidade e proeminência em
relação ao contratualismo.
As idéias de Francioni ressaltam alguns pontos importantes e avançam
muito na análise das relações entre contratualismo e utilitarismo. De fato, como vimos na
parte destinada à teoria do contrato social, há um raciocínio utilitário no âmbito do
contratto sono compresenti, anche se diversamente coniugati. In questo quadro Helvétius – che pure
è al di fuori del giusnaturalismo, anche se non è infrequente nelle sue pagine il riferimento a leggi e
diritti naturali – rappresenta, prima di Beccaria, l’ultimo grande tentativo di coniugare l’utilitarismo,
che si sta costituendo come teoria morale e politica, con la problematica del contratto sociale.”
(FRANCIONI, Gianni. Beccaria filosofo utilitarista... p. 70.).
169
“Qualsiasi analisi dell’utilitarismo beccariano deve partire dunque da una presa d’atto della netta
differenza che intercorre fra utilitarismo sei-settecentesco e successive trasformazioni della dottrina.
Hobbes e Locke possono essere individuati come i “padri fondatori” di una moderna idea di utilità
che caratterizza nettamente il pensiero europeo dei secoli XVII e XVIII, affiancandosi al motivo
giusnaturalistico, anzi intersecandosi con esso. Tuttavia solo con Helvétius l’utilitarismo diventa un
vero e proprio sistema filosofico. E si potrebbe sostenere, come da alcuni è stato fatto, che proprio
nella seconda metà del Settecento (e proprio con Helvétius) l’utilitarismo comincia a soppiantare
progressivamente la teoria giusnaturalistica, per divenire sempre più ciò che sarà in modo organico
solo nella cultura anglosassone, principalmente per opera di Bentham e Mill [...]”(FRANCIONI,
Gianni. Beccaria filosofo utilitarista... p. 70.).
133
contratualismo, pelo menos do contratualismo hobbesiano-lockeano. Esse certo utilitarismo
se traduz na circunstância de que o estado social ou político nasce de um imperativo da
razão instrumental relativo ao cálculo utilitário das conseqüências, onde ele (o estado
social) é sempre o mais adequado à consecução de determinadas finalidades consideradas
úteis. Em outras palavras, o estado social é um produto racional e, de certa forma,
intencional de um ser humano movido por um certo egoísmo utilitário. Pode-se dizer que,
no esquema hobbesiano-lockeano, o estado social é um produto da composição de
interesses egoístico-utilitários e não, propriamente, de uma finalidade moral que o homem é
chamado a cumprir (como seria, por exemplo, o caso do contratualismo kantiano). Em
Hobbes, esta racionalidade utilitária aponta para a conservação da vida, enquanto que em
Locke, para a conservação da propriedade (o que significa, simultaneamente, a conservação
da liberdade). Assim, por motivos que ficam claros, podemos dizer que no interior do
contratualismo inglês há um utilitarismo racionalista, isto é, um utilitarismo onde os
sujeitos agentes buscam racionalmente a consecução de objetivos considerados úteis.
O que de certa forma vai marcar a passagem deste utilitarismo que
orientava o contratualismo inglês para o utilitarismo de Helvétius, Beccaria e Bentham é
um deslocamento das atenções da racionalidade dos agentes para a sua passionalidade.
Enquanto no primeiro utilitarismo nós temos uma ênfase na calculabilidade racional-
consciente, no segundo a ênfase é no condicionamento passional-inconsciente, onde o
determinante será a associação de idéias baseada no natural hedonismo humano. Enquanto
no esquema contratualista o cálculo das conseqüências é (supostamente) feito pelos sujeitos
agentes e leva, por um raciocínio lógico (de inspiração matemática
170
), a um determinado
tipo de sociabilidade considerada aquela que atende de forma mais eficaz aos objetivos
almejados
171
, no utilitarismo moderno o cálculo das conseqüências (segundo o princípio da
utilidade, que aponta para um critério hedonista de felicidade) é feito pelo sujeito que
arquiteta a sociedade e é usado como base para planejá-la da forma que direcione a ação
170
Mais precisamente, inspirado nos desenvolvimentos da geometria, conforme vimos.
171
Não é necessário recordar cada um dos passos do esquema hobbesiano-lockeano de contrato
social. O que queremos lembrar é que neste esquema, os indivíduos, considerados como portadores
de uma racionalidade instrumental que articula meios segundo fins, são levados por força desta
própria racionalidade, a partir de um de um desenvolvimento lógico de conseqüências, a se
organizar socialmente segundo regras fundadas nesta própria racionalidade, num caminho que vai
do estado de natureza ao estado social.
134
dos cidadãos no sentido que se deseja. Em outras palavras, a partir de uma visão hedonista
da psicologia humana, planeja-se a estrutura social de forma que o prazer esteja vinculado
à ação que se deseja que os sujeitos desenvolvam. Evidentemente, as ações consideradas
desejáveis são escolhidas elas próprias a partir do princípio da utilidade. Estas questões
serão melhor analisadas mais adiante.
172
O ponto de inflexão, em nosso entender, acontece justamente em
Helvétius e em Beccaria, sob a influência de toda a reflexão do materialismo iluminista, do
qual Helvétius fazia parte. O fato de Beccaria estar situado no momento em que se passa de
um tipo de utilitarismo absolutamente compatível com o contratualismo para um outro que
o refutaria explicita e enfaticamente pode explicar muita coisa sobre a sua dualidade.
Assim, em nosso entender, está correta a tese de Francioni sobre o fato de Beccaria e
Helvétius se situarem em um processo de desenvolvimento do moderno utilitarismo, que
culminaria em Bentham e Mill, encontrando apenas nestes sua versão mais desenvolvida.
Entretanto, o que não parece estar correta nas teses de Francioni é a conseqüência extraída
disto. O que separa Bentham dos nossos dois filósofos é o fato de que nele aquele
utilitarismo do condicionamento humano é levado às suas últimas conseqüências, sendo
elaborado de forma extremamente rigorosa e sistemática. Assim, em Bentham, a
incompatibilidade das premissas deste utilitarismo condicionalista com o contratualismo
ganham uma nitidez que antes não possuíam, tornando-se cabalmente evidente. Todavia,
isto não significa que ela não existia antes. O fato de tanto Helvétius quanto Beccaria não
desenvolverem este utilitarismo com o mesmo rigor e sistematicidade que Bentham, apenas
fazia com que a contradição fosse menos visível. Na verdade, com a passagem, efetuada já
em Helvétius, daquele utilitarismo onde a ênfase recai sobre a ão racional instrumental do
sujeito no cálculo da conseqüências para este utilitarismo condicionalista (onde o cálculo
das conseqüências, evidentemente, não é abandonado, mas aparece sob uma outra forma) a
incompatibilidade já passa a existir, na medida em que a noção de utilidade não estará mais
172
ZARONE, Giuseppe. Etica e politica nell’utilitarismo di Cesare Beccaria. Napoli: Istituto
Italiano per gli studi storici, 1971. Devemos alertar, entretanto, que não se está falando aqui de um
total abandono, no âmbito do utilitarismo pós-helvetiano, da dimensão racional-calculatória
(consciente) do ser humano, mas apenas, como fica claro no texto, de um mudança de ênfase. Deve-
se ressaltar, também, que em Bentham a referência a esta dimensão racional-calculatória volta a ter
um relevo maior, considerado em relação a Helvétius e Beccaria, mas ainda diverso do sentido em
que tinha no contratualismo.
135
ligada com aquilo que constituía a fonte das imutáveis condições naturais do homem a
partir das quais se celebrava o pacto social e a instauração da sociedade política: a razão.
No sistema de Beccaria, os desenvolvimentos do princípio da utilidade já garantem uma
suficiente e gritante visibilidade, muito embora em nível menor do que na obra de
Bentham, da sua contradição com o contratualismo. Assim, em nossa opinião, naufraga a
tese de Francioni segundo a qual apenas o utilitarismo de Bentham seria incompatível com
o contratualismo e que, portanto, seria equivocado reprovar Helvétius e Beccaria pela
fracassada tentativa de conciliá-los.
A tese de Francioni segundo a qual a marca do utilitarismo anglo-saxão
era o fato de ele ser o núcleo central em seus sistemas filosóficos, o que não se verificaria
no caso do utilitarismo continental, salvo justamente os casos de Helvétius e Beccaria
173
,
merece ser lida sob uma ótica não geográfica, como ele a apresenta, mas cronológica. Na
verdade, a diferença não é tanto entre o continente e a ilha, mas entre uma fase de
desenvolvimento do raciocínio utilitarista e outra, pois além da haver uma ligeira
precedência cronológica de Helvétius e Beccaria em relação a Bentham, há principalmente
uma relação de continuidade em que este assimilou lições daqueles dois. De qualquer
forma, Francioni observa corretamente que em Helvétius e Beccaria o princípio utilitarista
adquire centralidade na reflexão e passa a constituir o núcleo do sistema filosófico. Assim o
contratualismo passa a ser claramente um quadrante teórico na substância já superado, mas
que permanece figurando na argumentação como um atavismo oriundo da pré-história do
utilitarismo, causando impasses e confusões a olhares mais atentos. Portanto, em nossa
perspectiva, não há em Helvétius e em Beccaria, como diz Francioni, uma deliberada
tentativa de construir um amálgama para duas teorias das quais se sabia que estavam
iniciando caminhos opostos
174
. Muito mais grave, havia uma inconsciência do fato de que
173
Há de se pensar se, talvez, La Metrie, Holbach e Condillac não possam ser considerados,
também, exceções. Não analisaremos este ponto aqui, mas sem dúvida o radical materialismo
exposto na obra desses autores, culminando em teses onde a sensibilidade e a busca do prazer são as
guias do desenvolvimento psicológico do homem e onde a ética adquire, por conseqüência, uma
perspectiva hedonista, nos faz pensar que, seguramente, eles ao menos estavam neste caminho. A
comparação é dificultada pelo fato de que estes autores defenderam teses de enormes implicações
políticas, mas, contentando-se apenas em esboçá-las, se privaram, de uma maneira geral, de
desenvolvê-las de forma mais sistemática, ao contrário do que fez, por exemplo, Helvétius.
174
Vale a pena repetir a citação: “In questo quadro Helvétius – che pure è al di fuori del
giusnaturalismo, anche se non è infrequente nelle sue pagine il riferimento a leggi e diritti naturali –
rappresenta, prima di Beccaria, l’ultimo grande tentativo di coniugare l’utilitarismo, che si sta
136
elas agora já não se encaixam tão naturalmente, de que, para se seguir o caminho
utilitarista, deve-se estar disposto a abandonar, como quem deixa para trás um peso inútil, o
contratualismo.
Começamos esta parte indagando por que Beccaria faz uma
contraposição entre a lei natural e as convenções sociais, afastando-se, assim, do esquema
clássico da teoria contratualista, onde há (ou ao menos deve haver) uma relação de
complementaridade entre ambas. Além de traçar esta ruptura, Beccaria ainda afirma que
sua atenção está voltada justamente para a análise das convenções sociais, deixando de lado
portanto a lei natural, o que o afasta ainda mais dos esquemas contratualistas (e
jusnaturalistas) clássicos. A hipótese de que isto se deve à influência de Helvétius parece
ser, então, confirmada. A vinculação ao utilitarismo helvetiano fez com que, no âmbito do
contratualismo, as atenções de Beccaria se voltassem para aquele aspecto que mais se
aproximava das teorias do autor francês, ou seja, justamente ao aspecto do cálculo utilitário
das conseqüências que caracterizava a ação do indivíduo do contratualismo, bem como os
pactos que ele celebrava. Assim fazendo, Beccaria pôde colocar caprichosamente a idéia de
lei natural de lado, sem se preocupar com o fato de que, no contratualismo, ela constituía o
avesso da moeda da sua forma característica de trabalhar com o cálculo de utilidades.
Tentar enxergar um gérmen de utilitarismo nas teorias do contrato social,
conforme faz Francioni, pode parecer um tanto estranho ao leitor habituado com as críticas
de Bentham a esta matriz teórica. Evidentemente, isto não deve ser interpretado como se
houvesse uma continuidade linear de autores que, refletindo sobre um conjunto de questões,
apenas se limitassem a ir aparando arestas e aperfeiçoando uma teoria que, no fundo, foi
sempre a mesma. Na verdade, como ficou demonstrado, há uma ruptura drástica na qual
uma linha de desenvolvimento é abandonada em benefício de outra possibilidade teórica. O
que se quer ressaltar é que as características do contratualismo inglês, no qual o indivíduo
do estado de natureza, calculando as conseqüências úteis, realiza a passagem ao estado
social, levou a um hábito de pensamento que, ao ser aprofundado em sua interpretação
psicológica, de certa forma, forneceu alguns elementos importantes para o utilitarismo. Este
indivíduo do contrato social de tradição inglesa é (sobretudo, na versão hobbesiana)
costituendo come teoria morale e politica, con la problematica del contratto sociale.”
(FRANCIONI, Gianni. Beccaria filosofo utilitarista... p. 70.).
137
movido por um hedonismo egoístico (Macpherson diria, por um individualismo possessivo)
que o leva, a partir da lógica que orienta a ação humana (ou seja, a partir da lei natural), a
desenvolver, através do pacto celebrado com os outros indivíduos, o tipo de associação
política que melhor corresponda, segundo seu cálculo, aos seus interesses egoísticos.
Podemos dizer, tranqüilamente, que Helvétius define o ser humano em termos bem
parecidos.
175
É interessante notarmos que, em Helvétius, este indivíduo que age movido
fundamentalmente pelo interesse egoístico acaba, assim como em Hobbes (ou Locke),
sendo levado a entrecruzar seu interesse egoístico com o de outros e, por esse meio, a
celebrar o pacto social. Vejamos as suas palavras:
Quando os homens, ao multiplicar-se, começaram a estender-se
pela superfície da terra e, como as ondas do oceano que invadem
terra adentro suas margens para deitar-se imediatamente em seu
seio, várias gerações apareceram sobre a terra para deitar-se no
abismo no qual os seres se destruíam; quando as famílias estiveram
mais perto umas das outras, então, o desejo de todos de possuir as
mesmas coisas, tais como os frutos de uma certa árvore ou os
favores de certa mulher, geraria disputas e combates entre eles:
assim nasceram a cólera e a vingança. Quando, fartos de sangue e
175
José Manuel Bermudo analisa em termos interessantes as idéias de Hobbes e Helvétius, tentando
traçar semelhanças e diferenças entre eles e elaborando uma distinção entre a componente utilitária
e a componente narcisística do amor de si: “El principio hobbesiano del “amor de sí”, que durante
todo el siglo XVIII se considera como principio natural, es reforzado con el recurso a ejemplos
históricos. La única, pero importante, diferencia entre la formulación hobbesiana y la helvetiana es
que para éste el amor de sí no tiene sólo la componente utilitaria (deseo de sobrevivencia y de todo
aquello que la garantiza, es decir, de toda forma de poder); o, mejor, pues podría argumentarse que
en Hobbes se encuentra también, aunque atenuada, la otra componente; la diferencia entre ambos es
que en Helvétius la componente utilitaria está al menos equilibrada, si no subordinada, a la
componete narcisista. […] En la componente utilitaria del amor de sí Helvétius es tan radical como
Hobbes, si bien éste generaliza las pasiones y uniformiza más los objetos de las pasiones que
Helvétius, quien por su relativización histórica da más variedad a unas y otros.” (BERMUDO, José
Manuel. Introducción. In HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu. Tradução José Manuel
Bermudo. Madrid: Editora Nacional, 1984, p.31-2). Embora se possa separar conceitualmente estas
componentes utilitária e narcisística, em ambos os autores elas se encontram (mais do que em uma
relação de equiparação ou subordinação, como admite Bermudo para o caso de Helvétius)
imiscuídas uma na outra. No caso de Hobbes, todos lembramos o importante papel exercido pela
vontade, do indivíduo, de obter honra. Com relação à tal componente narcisística, Bermudo,
entretanto, prefere concentrar suas atenções em Helvétius. “El halago es útil, sin duda alguna. Quien
reconoce nuestras perfecciones reconoce nuestro poder, y eso ya es seguridad. Pero, además, para
Helvétius el halago es en sí placentero. Helvétius radicaliza, y está obligado a hacerlo, esta
componente nacisista. Ambas forman parte del interés egoísta: aquélla es pasión de ser, de vivir;
ésta es pasión de ser sujeto, de ser reconocido como sujeto.” (BERMUDO, José Manuel. op. cit.,
p.32.).
138
cansados de viver continuamente atemorizados, consentiram em
perder um pouco da liberdade que possuíam no estado natural e
que os prejudicava, fariam pactos. Esses pactos serão suas
primeiras leis, e feitas as leis, era necessário encarregar alguns
homens de sua execução: já temos os primeiros magistrados.
176
Fica clara, nesta passagem, a presença do esquema contratualista em
Helvétius. Esta passagem acima se encontra em um capítulo de Do Espírito intitulado Da
origem das paixões, onde o autor procura demonstrar como todos estes motores das ações
humanas são sempre derivações das sensações físicas básicas de prazer e dor. O
contratualismo de Helvétius está, assim, envolto naquela linha teórica que, desenvolvendo-
se por todo o livro, definirá a posição utilitarista de nosso autor,
177
conforme veremos mais
176
“Cuando los hombres, al multiplicarse, empezaron a extenderse por la superficie de la tierra y,
como las olas del océano que invaden tierra adentro sus orillas para replegarse inmediatamente en
su seno, varias generaciones hubieron aparecido sobre la tierra para replegarse en el abismo en el
que los seres se destruyen; cuando las familias estuvieron más cerca las unas de las otras, entonces,
el deseo de todos de poseer las mismas cosas, tales como los frutos de un cierto árbol o los favores
de cierta mujer, generaría disputas y combates entre ellos: así nacerían la cólera y la venganza.
Cuando, hartos de sangre y cansados de vivir continuamente atemorizados, consintieron en perder
un poco de la libertad que poseían en el estado natural y que les perjudicaba, pactarían convenios.
Estos convenios serán sus primeras leyes, y hechas las leyes, era necesario encargar a algunos
hombres de su ejecución: ya tenemos a los primeros magistrados.” (HELVÉTIUS, Claude-Adrien.
Del espiritu. Tradução José Manuel Bermudo. Madrid: Editora Nacional, 1984, p.334-5.). O leitor
certamente deve ter notado o quão semelhantes são estas palavras com as de Beccaria, que aqui
recordaremos: “Le leggi sono le condizioni, colle quali uomini indipendenti ed isolati si unirono in
società, stanchi di vivere in un continuo stato di guerra e di godere una libertà resa inutile
dall’incertezza di conservala. Essi ne sacrificarono una parte per goderne il restante con sicurezza e
tranquillità. La somma di tutte queste porzioni di ligertà sacrificate al bene di ciascheduno forma la
sovranità di una nazione [...]” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti e delle Pene... p.10.). E mais
adiante: “La moltiplicazione del genere umano, piccola per se stessa, ma di troppo superiori ai
mezzi che la sterile ed abbandonata natura offriva per soddisfare ai bisogni che sempre più
s’incrocicchiavano tra di loro, riunì i primi selvaggi. Le prime unioni formarono necessariamente le
altre per resistere alle prime, e così lo stato di guerra trasportossi dall’individuo alle nazioni. Fu
dunque la necessità che costrinse gli uomini a cedere parte della propria libertà: egli è adunque certo
che ciascuno non ne vuol mettere nal pubblico deposito che la minima porzion possibile, quella sola
che basti a indurre gli altri a difenderlo. L’aggregato di queste minime porzioni possibili forma il
diritto di punire; tutto il di più è abuso e non giustizia, è fatto, ma non già diritto.” (BECCARIA,
Cesare. Dei Delitti... p.12.). Também fica claro pelo trecho citado que, apesar da referência a um
estado de guerra entre os indivíduos, Helvétius, assim como Beccaria, se aproxima do modelo
lockeano de contrato social ao falar da cessão de apenas uma parte da liberdade.
177
Podemos dizer que o mesmo acontece com Beccaria. Assim, logo após o trecho em que fala da
formação da soberania pela cessão de uma pequena parcela de liberdade de cada um ele dirá que,
para proteger este depósito das liberdades de cada um, se faz necessários motivos sensíveis, e
acrescenta: “Dico motivi sensibili, perché la sperienza ha fatto vedere che la moltitudine non adotta
stabili principii di condotta, né si allontana da quel principio universale di dissoluzione, che
139
adiante. Fica claro, também, como afirmamos, que as teorias utilitaristas nascem, de certa
forma, do desenvolvimento da idéia de utilidade dos esquemas do contrato social e da
concepção de ser humano que vinha junto com ela. Um aprofundamento psicológico nesta
antropologia contratualista que, deixando de isolar e enfatizar as capacidades racionais do
ser humano, procure sondar a dinâmica das paixões e compor uma visão global da
motivação humana, é o que faltaria para por este hedonismo egoístico no caminho do
utilitarismo. Além disso, temos aqui a pista para entendermos as raízes do contratualismo
de Beccaria. Muito embora a circulação das idéias contratualistas entre a elite ilustrada
européia tenha sido tal que nada nos permite excluir a influência direta de Locke ou mesmo
Hobbes, Beccaria insere sua teoria contratualista em meio a um emaranhado de teses
utilitaristas, da mesma forma que fez Helvétius, o que nos permite afirmar que o seu
modelo contratualista é o que ele aprendeu com o filósofo francês.
178
Hobbes e Locke, aqueles a quem Francioni chamou de os “pais
fundadores” de uma “moderna idéia de utilidade”,
179
além de serem dois clássicos do
pensamento político, são, também, dois clássicos da teoria do conhecimento, mais
especialmente, dois clássicos da teoria empirista do conhecimento. Pode-se dizer que a
teoria empirista do conhecimento dirige sua atenção para os mecanismos psicológicos da
produção das idéias a partir da experiência, ou seja, para os mecanismos pelos quais, a
partir do estímulo fornecido pela experiência, se formam as idéias que preenchem a mente
humana.
180
Talvez pudéssemos afirmar que o fato de Hobbes e Locke, a par de suas teorias
políticas, desenvolverem, também, reflexões de tal índole, lhes conferisse uma certa
nell’universo fisico e morale si osserva, se non con motivi che immediatamente percuotono i sensi e
che di continuo si affacciano alla mente per contrabilanciare le forti impressioni delle passioni
parziali che si oppongono al bene universale: né l’eloquenza, né le declamazioni, nemmeno le p
sublimi verità sono bastate a frenare per lungo tempo le passioni eccitate dalle vive percosse degli
oggetti presenti.” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 11.).
178
Sobre a circulação das idéias hedonistas na lombardia na época de Beccaria, veja-se: PARENTI,
Roberto. Sensismo e edonismo nella cultura lombarda dell’età teresiana. In MADDALENA, Aldo
De; ROTELLI, Ettore; BARBARISI, Gennaro. (org.) Economia, istituzioni, cultura in Lombardia
nell’età di Maria Teresa. Volume secondo: Cultura e Società. Bologna: Società editrice il Mulino,
1982.
179
FRANCIONI, Gianni. Beccaria filosofo utilitarista... p. 70.
180
Referindo-se ao empirismo, Luiz Roberto Monzani ressalta a abordagem psicológica que o
caracteriza, afirmando o seguinte: “A teoria do conhecimento passará a ser um departamento da
psicologia e seu método próprio será o genético. Se a experiência é a origem de todo conhecimento,
é necessário rastrear, partindo das percepções elementares, a origem de todo esse aparato
denominado saber.” (MONZANI, Luiz Roberto. op. cit., p. 10.).
140
sensibilidade psicológica que seria a responsável por suas leituras da natureza humana nas
quais é ressaltada, com bastante preponderância, uma tendência para a satisfação de
necessidades individuais e egoísticas. Isto, talvez, nos autorizasse a dizer que, dentro do
utilitarismo racionalista dos contratualismos de Hobbes e Locke, já dormitava uma
tendência que apontaria para a mudança verificada só em Helvétius e Beccaria. Mas o fato
incontestável é que foi justamente a partir do empirismo inglês, principalmente do
empirismo de Locke, que se operou aquele aprofundamento psicológico na obra dos
materialistas do iluminismo francês a partir do qual surgiram as teses utilitaristas de
Helvétius e Beccaria. O aspecto psicologicista da teoria empirista do conhecimento que,
evidentemente, estava circunscrito ao âmbito da análise do conhecimento humano, passa, a
partir deste foco inicial, mas sem abandoná-lo, a se desenvolver, nas mãos destes autores
setecentistas, rumo a outras direções da psiquê humana, principalmente aquelas que diziam
respeito mais de perto aos problemas da ética e da política.
181
Na seqüência, analisaremos o desenvolvimento das idéias que, a partir
do empirismo inglês, deram origem ao sensualismo de Condillac para, por fim,
entendermos a psicologia política de Helvétius e as teorias político-jurídicas de Beccaria.
181
ZARONE, Giuseppe. Etica e politica nell’utilitarismo di Cesare Beccaria. Napoli: Istituto
Italiano per gli studi storici, 1971.
141
SEÇÃO III – O aprofundamento psicológico de Condillac e a formação do hedonismo
iluminista
Conforme vimos, na caracterização hedonista de ser humano que
permeia as teorias contratualista da tradição inglesa já dormitava uma tendência que,
posteriormente, viria a ser desenvolvida pelos teóricos utilitaristas. Esta tendência a ver o
sujeito como produto das sensações de prazer e de dor seria desenvolvida pelo iluminismo
francês, principalmente por aqueles autores que, aqui, havíamos chamado de materialistas
radicais. Condillac e Helvétius são autores fundamentais deste materialismo radical. Suas
teorias, conforme adiantamos, sofreram influência de um conjunto de teses que, talvez não
por coincidência, foram desenvolvidas pelos mesmos autores do contratualismo inglês do
século XVII: falamos aqui da teoria empirista do conhecimento. A teoria empirista do
conhecimento, com sua tese segundo a qual todo o conteúdo da mente vem da experiência,
se caracterizaria pela análise psicológica onde se busca descrever como a mente, partindo
da experiência, é preenchida com idéias. A extensão desta análise psicológica para outros
domínios além do cognitivo feita dentro do iluminismo a partir desta base de raciocínio
fornecida pelo empirismo inglês, principalmente na versão de Locke, faria com que
surgisse uma psicologia sensualista, na qual, como o nome indica, as sensações primárias
são a base da formação de toda a subjetividade. Foi justamente este o caso da filosofia
desenvolvida por Condillac. E a extensão deste conjunto de idéias para a política e a ética,
na obra de Helvétius, deu origem a uma espécie de teoria social de fundo psicológico, uma
psicologia política, que, entendendo a sociedade como uma união de sujeitos que agem em
função de suas tendências naturais de base hedonista, procurará demonstrar de que forma a
legislação pode agir sobre os cidadãos, para, assim, torná-los virtuosos e promover o
progresso social.
182
Chegamos, finalmente, em Beccaria, onde a teoria helvetiana, com sua
crítica à “irracionalidade” das instituições do Antigo Regime e sua opção por uma
sociedade baseada em ideais republicanos de igualdade, é o fundamento da crítica ao
182
ZARONE, Giuseppe. Etica e politica...
142
sistema penal de então e da elaboração dos princípios de um novo sistema penal.
183
Para
estarmos aptos a analisar a maneira como Beccaria aproveita as idéias de Helvétius em suas
reflexões jurídico-penais talvez fosse interessante estudarmos alguns pontos deste caminho
que começa com o teoria empirista do conhecimento.
O Empirismo tem suas origens remotas na Inglaterra, no baixo medievo,
com Robert Grosseteste, Roger Bacon e Guilherme de Ockham. Ainda na Inglaterra, sua
formulação moderna aparece, no século XVII, nas obras de Francis Bacon, Thomas Hobbes
e John Locke. Locke, teórico da revolução burguesa na Inglaterra, tornou-se, graças a
Voltaire, uma das principais referências dos intelectuais franceses do século das luzes.
Após as Cartas Inglesas
184
, seu pensamento epistemológico alcançou enorme difusão entre
os autores iluministas e passou a marcar todo o debate sobre os problemas relativos à teoria
183
ZARONE, Giuseppe. Etica e politica.... Francioni conseguiu resumir mundo bem a importância
para a obra de Beccaria desta linha teórica que começa com o empirismo inglês e encontra em
Condillac e Helvétius dois de seus principais expoentes: “Ma più in generale, Helvétius offriva a
Beccaria un’analisi della società (in un passagio continuo dal piano dell’indagine psicológica
all’antropologia, dalla sociologia al diritto, dalla morale alla politica) condotta per il tramite di
un’attenta e dettagliata descrizione dell’individuo, cioè dell’elemento semplice in cui l’insieme
complesso della società può essere scomposto e successivamente ricomposto. Riprendendo la teoria
della conoscenza di Locke, e favorendone l’intreccio col sensismo di Condillac (una linea, quella
che colega Locke a Condillac, destinata, com’è noto, ad esercitare un’egemonia culturale fino agli
idéologues e oltre), Helvétius faceva derivare dalla sensibilità umana ogni possibilità di conoscenza
e di azione.” (FRANCIONI, Gianni. Beccaria filosofo utilitarista... p. 76.).
184
As Cartas Inglesas, posteriormente denominadas Cartas Filosóficas, são uma obra de Voltaire
na qual ele, após uma temporada de exílio na Inglaterra, divulga entre seus compatriotas os
desenvolvimentos culturais ingleses. Abarcando diversos assuntos tais como artes, física, filosofia e
economia, Voltaire ressalta os avanços que os ingleses conseguiram em todas estas áreas e tenta
demonstrar que a razão deste progresso (ou, ao menos, parte dela) está no desenvolvimento das
liberdades inerentes ao seu governo. Nesta obra, Voltaire faz entusiásticas referências a Locke,
expõe sucintamente seu pensamento e declara-se seu discípulo. As Cartas Inglesas despertaram
entre os franceses um enorme interesse pela obra de Locke. Luiz Roberto Monzani, percebendo
bem este fato no caso de Condillac (autor que, logo à frente, analisaremos), afirmou o seguinte:
“Seus pontos de partida não são muito difíceis de serem detectados. Estão em Voltaire e Locke,
provavelmente lidos nessa ordem. Através deles assimilou algumas certezas básicas que constituíam
o horizonte do pensamento iluminista: a crítica radical à teoria racionalista das idéias inatas
(desenvolvida longamente por Locke) e sua contrapartida, isto é, a tese de que todas nossas idéias se
originam a partir da experiência.” (MONZANI, Luiz Roberto. op. cit., p. 7-8.). Voltaire escreveria
ainda outras obras que solidificariam seu papel de divulgador de idéias inglesas na França. Além de
Locke, Newton também deve a ele sua inserção nos debates filosóficos dos enciclopedistas.
Monzani, mais uma vez, ressalta bem este fato: “É sobretudo a Voltaire que se deve a difusão das
idéias de Newton e Locke em três textos capitais: as Cartas Inglesas (1734), o Tratado de
Metafísica (1734) e os Elementos da Filosofia de Newton (1738), este último injustamente
esquecido atualmente. Nestas três obras Voltaire delineia claramente o novo ideário de saber e
conhecimento que se impunha no século XVIII.” (MONZANI, Luiz Roberto. op. cit., p. 9.).
143
do conhecimento travados entre eles.
185
A partir de então, sua obra Ensaio sobre o
Entendimento Humano se converteu no texto de referência para todos os iluministas que se
aventurarem nestes assuntos
186
.
Segundo o empirismo lockeano, o ser humano não possui idéias inatas,
sejam elas de qualquer tipo. Todo o conhecimento provém da experiência. O homem, ao
nascer, seria uma tábula rasa, onde as experiências deixariam sua marca. Em seu Ensaio,
Locke afirma
Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um papel
branco, desprovida de todos os caracteres, sem quaisquer idéias;
como ela será suprimida? De onde lhe provém este vasto estoque,
que a ativa e que a ilimitada fantasia do homem pintou nela com
uma variedade quase infinita? De onde apreende todos os materiais
da razão e do conhecimento? A isso respondo, numa palavra, da
experiência.
187
Locke entendia por experiência duas coisas: a sensação, que se refere à
experiência das coisas externas ao homem; e o sentido interno, que se refere à experiência
das operações de nossa própria mente, ao ocupar-se de idéias que já lhe pertencem.
Parece-me que o entendimento não tem o menor vislumbre de
quaisquer idéias se não as receber de uma das duas fontes. Os
objetos externos suprem a mente com as idéias das qualidades
sensíveis, que são todas as diferentes percepções produzidas em
nós, e a mente supre o entendimento com idéias através de suas
próprias operações.
188
185
Sobre a circulação das idéias de Locke no Iluminismo lombardo, veja-se: SINA, Mario. Locke e
la filosofia dell’Illuminismo lombardo. In MADDALENA, Aldo De; ROTELLI, Ettore;
BARBARISI, Gennaro. (org.) Economia, istituzioni, cultura in Lombardia nell’età di Maria
Teresa. Volume secondo: Cultura e Società. Bologna: Società editrice il Mulino, 1982
186
Sobre isso, afirmou, certa vez, o poeta alemão Heinrich Heine: “Os filósofos franceses elegeram
John Locke como mestre. Foi o redentor de que precisavam. O Essay on Human Understanding era
o seu evangelho, no qual acreditavam cegamente.” (HEINE, Heinrich. Contribuição à História da
Religião e Filosofia na Alemanha. Tradução de Márcio Suzuki. São Paulo: Editora Iluminuras,
1991, pp. 56.).
187
LOCKE, John. Ensaio Acerca do Entendimento Humano. 2 ed. São Paulo: Editora Abril
Cultural, 1978, p. 27.
188
LOCKE, John. Ensaio... p. 28.
144
As idéias provenientes do sentido interno, ou seja, da percepção das
operações da própria mente do sujeito, também dependem em última instância, de certa
forma, da experiência sensível, pois as operações da nossa mente trabalham com os
conteúdos oriundos da sensibilidade, ainda que mediada pela memória. Assim, os próprios
princípios da lógica, como os da identidade e da não-contradição seriam provenientes da
análise das idéias que se formam na mente a partir da sensibilidade. No empirismo de
Locke fica claro que todo o conteúdo da mente, incluindo as idéias mais abstratas, teriam a
sua origem última, na experiência sensível, ou seja, nas impressões causadas no sujeito pelo
mundo objetivo. Porém, podemos enxergar um certo dualismo em Locke, pois se, por um
lado, todo o conteúdo da mente provém da experiência, por outro, fica pressuposta uma
certa capacidade inata, no ser humano, para realizar suas operações com aqueles dados. O
empirismo, de uma certa forma, acaba tendendo a suprimir a subjetividade na produção do
conhecimento, pois ela termina sendo reduzida à condição de registradora das informações
que lhe são impressas pelo mundo objetivo. Mas em Locke esta tendência é severamente
atenuada ante à admissão daquelas capacidades mentais que não são derivadas da
experiência e que, portanto, permanecem, na teoria, inatas.
189
A extensão da tese central do empirismo do âmbito do conteúdo do
espírito para a própria constituição deste (um passo que, como vimos, não foi dado por
Locke) poderia revelar uma das possíveis conseqüências de seus princípios. Segundo esta
doutrina, toda uma dimensão do sujeito, digamos assim, o que está dentro dele, o seu
conteúdo, é constituído a partir de suas relações com o meio, nas quais as determinações da
objetividade, da realidade exterior, acabam preponderando totalmente. O próximo passo
seria ampliar o domínio da experiência também para a estruturação formal do sujeito,
tentando derivar dela a própria maneira como ele trabalha com os conteúdos fornecidos
pela experiência. Isso, de alguma maneira, seria levar os princípios do empirismo até às
suas últimas conseqüências, o que é sempre uma forma de averiguar possíveis defeitos em
uma teoria. Não é difícil imaginarmos que a radicalização destas idéias empiristas acabaria
189
Monzani, percebendo este dualismo, descreve-o sob a forma de uma divergência de tratamento
quanto às questões de forma e conteúdo: “Com relação ao conteúdo, Locke praticamente havia dito
o essencial. Mas, na forma, seu pensamento permanece preso ao dualismo. Ele admitia como
natural, de um lado, o dado originário (a sensação), e, de outro, uma certa capacidade inata do
espírito para realizar suas operações sobre esse dado, como julgar, refletir etc.” (MONZANI, Luiz
Roberto. op. cit., p. 12-13.).
145
levando à concepção de um ser humano que responde mecanicamente aos estímulos
exteriores.
Como mencionamos acima, o empirismo tem por base a rejeição da
teoria das idéias inatas, de longa genealogia na história da filosofia. Mas, como vimos, no
empirismo de Locke restava intacto um certo inatismo. No seio do Iluminismo francês, a
crítica ao inatismo foi recebida e radicalizada por Étienne Bonnot de Condillac.
190
Condillac, assim como o conjunto dos iluministas que trataram das questões relativas à
teoria do conhecimento, parte das teorias de Locke. A sua primeira obra sobre o tema se
chama, certamente não por mera coincidência, Ensaio sobre a Origem dos Conhecimentos
Humanos, e foi publicada em 1746. A semelhança entre o título do Ensaio de Condillac
com o de Locke é acompanhada pela semelhança das idéias dos autores, orientadas ambas
pela finalidade de demonstrar que a origem dos conhecimentos humanos é a experiência. O
vulto de Locke, um dos pilares que sustentaram as aventuras da filosofia francesa do século
XVIII, permitindo a ela construir seus próprios alicerces, começaria a dar, pela obra de
Condillac, alguns de seus frutos mais interessantes. As idéias do Ensaio encontram um
desenvolvimento mais maduro em outra obra fundamental para a teoria do conhecimento, e
para o desenvolvimento da teoria empirista em particular, produzida por Condillac e que
veio a lume em 1754: trata-se da obra Tratado das Sensações.
Evidentemente, não obstante o fato de Condillac se apropriar dos
progressos lockeanos no empirismo, ele, nestas e em outras obras que escreveria sobre o
tema da teoria do conhecimento, não se limita a uma simples reprodução das idéias de
Locke. Segundo alguns analistas, já no Ensaio podemos perceber algumas importantes
diferenças entre as teses de Locke e as de Condillac. Uma delas nós já adiantamos aqui:
trata-se da radicalização sensualista operada pelo filósofo francês. A outra se refere a uma
análise do papel da linguagem na constituição do conhecimento.
191
Esta última questão,
190
Sobre a circulação das idéias de Condillac na Lombardia, veja-se: PARENTI, Roberto. Sensismo
e edonismo nella cultura lombarda...; Sobre a influência de Condillac em Beccaria, veja-se:
ZARONE, Giuseppe. Etica e politica nell’utilitarismo...
191
Monzani resume bem a questão das semelhanças e diferentes entre Condillac e Locke: “O
Ensaio, como já notaram vários analistas, segue de perto o texto central de Locke. Mas não se
resume em repeti-lo. Condillac tem perfeita consciência de sua originalidade. Ela esta baseada
essencialmente me dois pontos: uma radicalização do sensualismo e uma análise do papel da
linguagem na constituição do conhecimento.” Muito embora Monzani aqui esteja se referindo
146
embora secundária para os nossos propósitos, merece, de qualquer forma, algumas
observações. Condillac lhe dedicou uma boa quantidade de páginas. Além do que já havia
sido esboçado no Ensaio e no Tratado das Sensações, ele ainda escreveria mais duas obras
onde desenvolveria mais detidamente o tema: a Lógica e, sobretudo, a Língua dos
Cálculos. Partindo do pressuposto de que toda língua é um método analítico e, por sua vez,
todo método analítico é uma língua,
192
Condillac chega à conclusão de que a linguagem
cotidiana utilizada pelas pessoas para se comunicarem não constitui um sistema adequado
para lidar com formas mais complexas de conhecimento como as das ciências, pois nela
não haveria, por exemplo, uma correspondência unívoca entre signos e significados. Assim,
para que a ciência seja possível, seria necessária, antes de qualquer coisa, a construção de
um sistema lingüístico que pudesse dar conta de sua tarefa analítica, tendo, portanto,
determinados atributos como simplicidade e exatidão. Na verdade, Condillac chega mesmo
a dizer que “uma ciência bem tratada não é senão uma língua bem feita”
193
. E é nas
matemáticas, mais precisamente na linguagem das matemáticas, que Condillac encontrará o
modelo para se construir este sistema lingüístico que garantiria a exatidão das ciências.
194
195
somente ao Ensaio, podemos dizer que esta duas diferenças com relação a Locke estão por toda a
obra de Condillac. (MONZANI, Luiz Roberto. op. cit., p. 12.).
192
Condillac diz expressamente na abertura de A Língua dos Cálculos: “Toda língua é um método
analítico, e todo método analítico é uma língua.” (CONDILLAC, Étienne Bonnot de. A língua dos
cálculos. In CONDILLAC, Étienne Bonnot de, HELVÉTIUS, Claude-Adrien, DEGÉRANDO,
Joseph-Marie. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz Roberto Monzani et al.. 2 ed.. São Paulo: Abril
Cultural, 1979, p. 137.).
193
CONDILLAC, Étienne Bonnot de. A língua... p. 139.
194
Vejamos as palavras de Condillac: “As matemáticas são uma ciência bem tratada cuja língua é a
álgebra. Vejamos, portanto, como a analogia nos obriga a falar nesta ciência e saberemos como
deve obrigar-nos a falar nas outras. Eis o que me proponho. Assim, as matemáticas, das quais
tratarei, são nesta obra um objeto subordinado a um objeto bem maior. Trata-se de mostrar como se
pode dar a todas as ciências esta exatidão que se julga ser o dote exclusivo das matemáticas.”
(CONDILLAC, Étienne Bonnot de. A língua... p. 139.).
195
Os estudiosos da filosofia da ciência devem ter notado a espantosa semelhança destas idéias de
Condillac sobre o papel da linguagem no conhecimento científico com as do Círculo de Viena,
particularmente com as de Moritz Schlick, desenvolvidas, no começo do século XX, a partir da
inspiração do Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein. Tal qual aconteceria com
Wittgenstein, Condillac influenciou significativamente um grupo de intelectuais, mais precisamente
a Escola dos Ideólogos, fundada, no fim do século XVIII, por Destutt de Tracy (e que contava
também com Cabanis, Degérando e Biran), onde estas idéias sobre as relações entre linguagem e
ciência exerceram, assim como no caso dos vienenses, um papel central. Todavia, as teses de
Condillac sobre esta questão, após serem assimiladas pelo grupo dos ideólogos, sofreriam uma
avassaladora crítica, no interior do próprio movimento, pelas mãos de Joseph-Marie Degérando (na
147
Deixemos, aqui, de lado esta importantíssima questão da análise do
papel da linguagem na construção do conhecimento, que, como dissemos, é secundária para
o propósito do presente trabalho. Passemos a analisar a outra diferença fundamental entre
Locke e Condillac, ou seja, a radicalização sensualista realizada por este último. Vimos que
em Locke permanecia um dualismo na medida em que, para ele, o conteúdo da mente
provinha da experiência, mas as operações dela sobre este conteúdo continuavam, de certa
forma, inatas.
196
Condillac procurará superar o que resta de inatismo em Locke fazendo
derivar também da experiência as faculdades da alma. Este projeto aparece já no Ensaio e
recebe sua melhor versão no Tratado das Sensações.
197
É precisamente nisto que se traduz
a mencionada radicalização sensualista operada por Condillac na teoria empirista, ou seja,
na tentativa de derivar também da experiência sensível não apenas o conteúdo dos sentidos,
mas também a maneira destes atuarem. Nas palavras do próprio autor:
O principal objetivo desta obra é mostrar como todos os nossos
conhecimentos e todas as nossas faculdades vêm dos sentidos, ou
para falar mais exatamente, das sensações: porque, na verdade, os
sentidos não são senão causa ocasional. Eles não sentem, só a alma
sente ocasionada pelos órgãos; e é das sensações que a modificam
que ela tira todos os seus conhecimentos e todas as suas
faculdades.
198
obra, Dos signos e da Arte de Pensar em suas Mútuas Relações). É interessante notar que um
século depois os membros do Círculo de Viena, sem qualquer constrangimento, voltariam a levantar
aquelas teorias como se Degérando jamais tivesse escrito suas críticas tão pertinentes.
196
O próprio Condillac percebe este fato com toda a clareza. Referindo-se a Locke, ele afirmou:
“Igualmente, este filósofo se contenta em reconhecer que a alma percebe, pensa, duvida, crê,
raciocina, conhece, quer, reflete: que estamos convencidos da existência destas operações, porque
as encontramos em nós mesmos, e elas contribuem para o progresso de nossos conhecimentos: mas
ele não havia sentido a necessidade de descobrir o princípio e a geração delas, não havia suspeitado
que poderiam ser não mais do que hábitos adquiridos; parece tê-las olhado como qualquer coisa
inata e diz somente que elas se aperfeiçoam pelo exercício.” (CONDILLAC, Étienne Bonnot de.
Resumo selecionado do tratado das sensações. In CONDILLAC, Étienne Bonnot de, HELVÉTIUS,
Claude-Adrien, DEGÉRANDO, Joseph-Marie. op. cit., p. 48.).
197
Da mesma forma entende Monzani: “O Ensaio é essa tentativa de “apresentar a geração das
faculdades da alma”, que no Extrait Condillac reconhece que foi realizada de forma um pouco
confusa. De qualquer maneira, desde o início, em nome de uma estrita coerência, Condillac se vê
obrigado a explicar a gênese das faculdades do espírito e não supô-las. O Tratado das Sensações vai
levar este radicalismo ainda mais longe.” (MONZANI, Luiz Roberto. op. cit., p. 13.).
198
MONZANI, Luiz Roberto. op. cit., p. 45.
148
Esta radicalização sensualista tem importantes desdobramentos. A
primeira diz respeito, ainda, à origem das idéias. Em Locke, verificamos que são duas as
fontes do conhecimento humano. A primeira é a experiência sensível, ou o sentido externo,
por onde captamos as informações que vem do exterior; a segunda é a reflexão, ou o
sentido interno, através da qual percebemos os processos internos. Fazendo derivar os
processos da mente da experiência sensível, Condillac transforma a própria reflexão em
uma transformação da sensação. Assim, na realidade seria apenas uma a fonte de nossas
idéias, ou seja, a sensação, o sentido externo.
199
Há outra conseqüência importante do radicalismo sensualista de
Condillac, essa de importância central para nós. Diz respeito à questão da motivação.
Condillac inicia o tratamento dessa questão já no Ensaio, porém é apenas no Tratado que
nós iremos encontrar a versão mais desenvolvida de suas idéias quanto a esta questão.
Assim, para a adequada compreensão do tratamento que Condillac dá a este problema,
convém falarmos um pouco desta obra.
Na obra Tratado das Sensações, Condillac descreve o desenvolvimento
da subjetividade, partindo das sensações mais elementares até às funções superiores da
mente. Isto é feito a partir de uma ficção metodológica
200
construída por Condillac, a ficção
da estátua de mármore. Esta estátua de mármore estaria estruturada internamente
exatamente como nós, mas internamente estaria totalmente revestida de mármore. Assim,
ela seria dotada de uma alma, mas não teria qualquer contato sensível com o mundo, e seus
sentidos seriam, um a um, despertados magicamente por alguém. Acompanhando passo a
passo a gradativa imersão da estátua na realidade sensível, nosso autor procura demonstrar
199
Vejamos as palavras de Condillac quanto a isto: “Locke distingue duas fontes de nossas idéias,
os sentidos e a reflexão. Seria mais exato não reconhecer senão uma, seja porque a reflexão em seu
princípio não é mais do que a própria sensação, seja porque ela é menos a fonte das idéias do que o
canal pelo qual elas emanam dos sentidos.” (CONDILLAC, Étienne Bonnot de. Resumo
selecionado... p. 48.). Sobre esta questão, pronuncia-se de forma precisa Monzani: “Aqui
[referindo-se ao Tratado das Sensações], mais que no Essai, Condillac atinge verdadeiramente seu
objetivo. Mostra claramente que todas as operações psíquicas não comportam nada de
verdadeiramente novo que não esteja em germe no dado inicial. São sensações transformadas.
Transformada em reminiscência, por exemplo, quando a sensação grava-se no espírito e é evocada.
Em imagem sensível quando reatualiza com menor intensidade a percepção original. Em atenção
quando, por algum motivo (veremos logo qual é), dentre as diferentes impressões, uma delas se
ressalta etc. etc.” (MONZANI, Luiz Roberto. op. cit., p. 17.).
200
Esta expressão é de Monzani. (MONZANI, Luiz Roberto. op. cit., p. 16.).
149
de que maneira se formam, a partir desta imersão, todas as propriedades da subjetividade
humana.
201
O primeiro sentido da estátua a ser despertado é o olfato, que é entendido
por Condillac como o mais limitado de todos. Este sentido sequer levaria a estátua a
concluir da exterioridade dos objetos.
202
Na seqüência, seriam abertos, um a um, os outros
sentidos (audição, gosto, visão, tato). Condillac analisa cada sentido de forma isolada e,
depois, em combinação com os outros, para demonstrar como o sujeito, à medida que vai se
constituindo, constitui, para si, também o mundo. Já nas primeiras sensações fornecidas
pelo olfato o sujeito adquire a capacidade de atenção que, segundo Condillac, é a
concentração em uma determinada sensação. Esta capacidade de se deter frente a uma
sensação em meio a outras permite à estátua fazer associações entre as diversas sensações
que experimenta. Como conseqüência, formam-se múltiplas séries associativas, onde cada
elo pode dar origem a uma nova linha, levando, assim, ao desenvolvimento de cadeias
associativas. Assim, se a partir de cada um dos pontos das linhas associativas, várias outras
são possíveis, porque o sujeito escolhe seguir uma delas e não outra? Porque, considerando
um ponto associativo qualquer, a partir do qual múltiplas linhas seriam possíveis, a
associação se desenvolve em uma direção específica, desencadeando uma dentre as várias
séries possíveis? Certamente a um motivo para que isso aconteça.
Havíamos visto que, no radicalismo sensualista de Condillac, não apenas
o conteúdo das idéias, mas também as operações que o espírito faz com ela derivam das
sensações. Assim, este motivo que guia o encadeamento associativo também deve estar, de
alguma forma, presente nelas. Voltemos para a nossa estátua e para o gradual despertar de
seus sentidos. Voltemos, mais exatamente, para o olfato, como vimos, o primeiro dos
201
Vejamos as palavras com as quais Condillac introduz a ficção da estátua: “Para cumprir esse
objetivo, imaginamos uma estátua organizada interiormente como nós, e animada de um espírito
privado de qualquer espécie de idéias. Supusemos ainda que seu exterior, inteiramente de mármore,
não lhe permitiria o uso de nenhum de seus sentidos, e reservamo-nos a liberdade de abri-los a
nosso alvitre às diferentes impressões de que são suscetíveis.” (CONDILLAC, Étienne Bonnot de.
Tratado das Sensações. Tradução de Denise Bottman. Campinas: Editora da Unicamp, 1993, p.
56.).
202
Há, ao longo do século XVIII, um importante debate, originado nas polêmicas sobre as idéias de
George Berkeley, sobre o problema da exterioridade dos objetos. No Tratado, Condillac toma parte
dele e intenta, entre outras coisas, esclarecer alguns maus entendidos, originados no Ensaio, sobre
sua posição quanto a esta questão. Monzani fornece alguns esclarecimentos sobre o problema da
exterioridade dos objetos na obra de Condillac. (MONZANI, Luiz Roberto. op. cit., p. 15-7.).
150
sentidos a serem despertados. À primeira sensação o mundo psíquico da estátua permanece
inerte, sem formular desejos. Com a primeira sensação a estátua ganharia apenas a sensação
de si.
203
A sensação produzida na estátua pelo odor seria agradável ou desagradável,
causaria gozo ou sofrimento, prazer ou dor, embora ela só possa saber disso depois de
experimentar sensações contrastantes. Ao sucederem-se as sensações, no entanto, a estátua
terá oportunidade de realizar esta comparação. Através da memória a estátua pode
comparar os diversos tipos de sensação que experimentou. A partir de agora ela irá desejar
retornar à situação mais agradável. Surge, então, o desejo. Será ele o guia de todas as
operações da alma, direcionando desde as mais simples associações até os mais complexos
processos. Mas se analisarmos o desejo, veremos que ele não é nada além de uma
implicação das sensações de prazer e dor inerentes a qualquer sensação. Como o prazer e a
dor estão presentes em qualquer sensação e, portanto, desde o começo, em todas elas, a
estruturação de todas as operações da alma, tais como recordar, imaginar, comparar, julgar,
é feita segundo a orientação deles. Assim, podemos dizer que, na filosofia de Condillac, a
motivação está baseada no princípio do prazer/dor. Vejamos as palavras de Condillac:
Quando ela [a estátua] tiver notado que pode deixar de ser o que é
para voltar a ser o que foi, veremos seus desejos nascerem de um
estado de dor, que ela irá comparar a um estado de prazer que a
memória lhe lembrará. É por esse artifício que o prazer e a dor são
o único princípio que, determinando todas as operações de sua
alma, deve elevá-la gradualmente a todos os conhecimentos de que
é capaz;
204
203
Vejamos, exatamente, o que diz Condillac: “Mas a estátua que, no primeiro instante, sente a si
mesmo apenas pela propriedade do que experimenta, ignora se pode deixar de ser para se tornar
outra coisa, ou simplesmente não ser, não tem ainda nenhuma idéia de mudança, de sucessão, nem
de duração. Ela existe, portanto, sem poder formar desejos.” (CONDILLAC, Étienne Bonnot de.
Tratado das Sensações... p. 65.).
204
CONDILLAC, Étienne Bonnot de. Tratado das Sensações... p. 65. Sobre estas teorias de
Condillac, Monzani diz o seguinte: “Chegamos aqui à expressão desenvolvida de uma das teses
mais originais – e mais espinhosas – do pensamento moderno: a do papel constituinte exercido pelo
prazer na estruturação e constituição do sujeito. É exatamente essa tese – a do papel constituinte do
prazer – que faz do Tratado das Sensações uma das obras mais importantes e originais de sua
época.” (MONZANI, Luiz Roberto. op. cit., p. 15.). Os leitores de Freud podem, certamente, notar a
semelhança entre estas idéias aqui expostas e as teorias do pai da psicanálise sobre o chamado
princípio de prazer. As semelhanças entre Freud e Condillac, no que toca à atuação do princípio de
prazer e à formação da consciência (ego), é muito maior do que poderíamos demonstrar nestas
linhas. Além disso, o conjunto da metapsicologia de Freud, tal como exposta em Para além do
princípio de prazer, encontra nas teses biologicistas e fisiologicistas de alguns autores iluministas,
151
Já podemos vislumbrar a importância da compreensão desta teoria da
motivação para o desvelamento das origens do utilitarismo. Uma teoria como o utilitarismo,
com sua visão de ser humano marcada por um incisivo hedonismo psicológico, poderia,
como parece óbvio, retirar inúmeras lições de uma teoria da motivação como a de
Condillac, que faz remontar tudo às sensações, que são sempre, entre outras coisas,
sensações de prazer e dor experimentadas pelo sujeito. Como vimos esta teoria da
motivação nasce da ampliação da perspectiva psicologista da teoria empirista do
conhecimento para outras áreas além da cognitiva. Há, como havíamos adiantado, um
aprofundamento psicológico possibilitado pelo desenvolvimento da teoria empirista no
âmbito do materialismo radical iluminista. Na medida em que apresenta enormes afinidades
com aquele hedonismo já presente no contratualismo da tradição inglesa, este
aprofundamento psicológico oferece a ele enormes oportunidades de desenvolvimento.
Assim, parece estar se confirmando a nossa afirmação segundo a qual o surgimento do
moderno utilitarismo seria devido, justamente, ao desenvolvimento, possibilitado por esse
aprofundamento psicológico empirista, da concepção hedonista da natureza humana,
inscrita na teoria contratualista (ao menos na de Hobbes e Locke). Porém, para que esta
hipótese se confirme, precisamos ver se de fato há uma continuidade que venha, por um
lado, do contratualismo e, por outro, destes autores do materialismo radical francês. A
análise das obras de Helvétius e de Beccaria poderá nos oferecer uma resposta.
Entretanto, o utilitarismo significa algo mais do que simplesmente dizer
que o ser humano funciona segundo o princípio da busca pelo prazer e fuga da dor. Ele
possui, também, desdobramentos de ordem filosófica mais complexa e profunda. O
utilitarismo significa também igualar o “bem” ao “útil” e o “útil” ao que causa “prazer”,
mais exatamente, “prazer sensível”. Com relação a esta face do problema, o que
poderíamos encontrar em Condillac? Podemos dizer que estes desdobramentos relativos ao
conceito de “bem” são conseqüência da postura antimetafísica implícita na radicalização do
empirismo operada ao longo do século XVIII. Esta radicalização, que inicia submetendo
todo o domínio psíquico do ser humano aos ditames da experiência sensível, se expande
como la Metrie e Holbach, uma interessante proximidade, pelo menos no que diz respeito ao
espírito que orienta as pesquisas e reflexões.
152
caminhando para abarcar tudo aquilo que tradicionalmente pertencia à metafísica. Na
medida em que é negada qualquer possibilidade de conhecimento sobre realidades que
estão além da realidade física (salvo no caso das relações de identidade da matemática e da
lógica), nada resta senão tentar encontrar uma base empírica para tudo aquilo que antes era
pensado metafisicamente. De tal forma, o “bem” agora deve ser compreendido
empiricamente. Evidentemente, se não se pode dizer o que é o “bem” em si mesmo, à
maneira da metafísica, então, neste empirismo transformado em psicologia onde o ser
humano busca incansavelmente o tempo todo o prazer, o “bem” só pode ser definido como
aquilo que causa o maior prazer possível, evidentemente, ao maior número de pessoas
possível. O prazer, portanto, parece ser o único solo suficientemente firme para se construir
o edifício da ética. De tal forma, podemos dizer que as teorias de Condillac levam a uma
importante inversão no âmbito do pensamento filosófico. Até então, predominava na
filosofia uma concepção segundo a qual, existindo o objeto, com todas as suas qualidades,
independentemente do sujeito, ele seria “bom” ou “mau” em si mesmo. Ao contrário, na
filosofia de Condillac, onde o princípio prazer/dor comanda toda a vida espiritual, é porque
o objeto causa prazer que ele é “bom”.
205
Havíamos dito que os autores setecentistas, influenciados por Newton,
buscavam reestruturar os domínios das hoje chamadas ciências humanas a partir do modelo
da física criada por ele. Assim, na construção dessa “física moral” a tarefa primordial seria
encontrar, para ela, um princípio análogo ao da gravitação universal que, segundo Newton,
opera no mundo físico. O princípio prazer/dor vem cumprir precisamente esta tarefa.
Através dele se deriva da experiência sensível e, portanto, da realidade externa não apenas
os conteúdos da subjetividade, mas também a própria subjetividade. Em outras palavras, as
próprias faculdades mentais que operam com os dados fornecidos pela realidade externa
seriam, no sistema de Condillac, moldadas pela influência exercida por essa realidade. Na
filosofia de Condillac aparece já as bases para uma teoria determinista sobre o ser humano,
205
No mesmo sentido, afirma Monzani: “A filosofia clássica estava baseada, nesse campo, em
alguns pressupostos fundamentais. Um deles supõe a preexistência do objeto sobre o qual o sujeito
tende ou se afasta naturalmente. Esse objeto é, desse ponto de vista, o bem (ou mal) do qual o
sujeito se aproxima (ou afasta). O objeto é, por ele mesmo, apetecível (ou não). São suas qualidades
intrínsecas que o tornam tal ou qual. [...] Ora, quando abrimos o Tratado das Sensações essa idéia
está totalmente modificada. É todo o domínio da vida espiritual que está subordinado ao princípio
prazer/dor. Agora, é porque o objeto causa prazer que é apetecível.” (MONZANI, Luiz Roberto. op.
cit., p. 21-2.).
153
um determinismo ambiental em que o sujeito é o produto do meio (do ambiente) em que se
desenvolveu. Mas a atenção de Condillac acaba se voltando, exclusivamente, para a
cognição e da cognição para a epistemologia, e os problemas mais amplos relativos à
educação, à ética e à política são, assim, abandonados. No entanto, esta crítica radical ao
inatismo, desenvolvida na base de um sensualismo que faz remontar a integralidade do
sujeito às determinações do mundo objetivo, aparece também na obra de Helvétius e será
desenvolvida por ele em direção a um rigoroso sistema de determinismo ambiental a partir
do qual ele construirá sua teoria política. A mesma teoria da motivação das ações segundo o
desejo e o princípio prazer/dor que vemos em Condillac irá aparecer em Helvétius,
206
onde
é desenvolvida de forma a conduzir a uma imagem mecanicista de ser humano na qual este,
206
Sobre a importância de Condillac para sua época, Bermudo assim se pronuncia: “La Historia de
la Filosofía aún debe a Condillac un estudio en el que se clasifique su importante papel en el
movimiento de ideas de la época. Silenciosamente, sin asustar a sus superiores, este abate
enciclopedista tejía una filosofía que era totalmente asumida en los círculos materialistas. El que
Helvétius no lo cite no debe entenderse como un ardid deshonesto; Condillac apenas es citado por
ninguno. Parece un silencio cómplice, de protección al clérigo prudente en su acción y audaz en su
pensamiento.” (BERMUDO, José Manuel. op. cit., p. 49.). Não é nosso objetivo e não convém ao
tema deste trabalho desenvolver uma análise minuciosa da influência de Condillac sobre a obra de
Helvétius. Evidentemente, a tese segundo a qual a teoria do desejo e do princípio prazer/dor foi
inserida por Helvétius em seus trabalhos por inspiração oferecida por Condillac poderia ser
questionado de inúmeras formas. Desconhecemos o que poderia solucionar, de forma cabal e
definitiva, este problema. De qualquer forma, dada a enorme circulação de idéias no seio do
iluminismo francês, a posição central que Condillac ocuparia à época e o impacto que suas idéias
causaram, não temos motivos para supor que Helvétius não teria entrado em contato com suas
teorias. Mas basta para nós que fique explícito o desenvolvimento de um conjunto de idéias que vai
do empirismo a uma psicologia baseada em um sensismo que, como veremos, terá enormes
repercussões no campo da ética e da política (e, é claro, do direito). Para Heinrich Heine, os
materialistas franceses do século XVIII buscavam se distinguir uns dos outros, o que nos parece um
tanto incompatível com o que diz Bermudo sobre a onipresença de Condillac nesses autores.
Entretanto, por baixo das divergências, Heine não deixa ressaltar sua origem comum (isto é, em
Locke) e, principalmente, a visão mecanicista de ser humano que todos eles herdaram do filósofo
inglês: “John Locke cursou a escola de Descartes e com ele aprendeu tudo aquilo que um inglês
pode aprender: mecânica, química, combinar, construir, calcular. Apenas uma coisa não pôde
entender: as idéias inatas. Por isso, aperfeiçoou a doutrina segundo a qual obtemos nossos
conhecimentos, por meio da experiência, a partir do dado externo. Fez do espírito humano uma
espécie de caixa de cálculos e todo o homem se tornou uma máquina inglesa. Isso também vale para
o homem construído pelos discípulos de Locke, ainda que queiram se distinguir uns dos outros com
diferentes denominações. Todos eles têm medo das últimas conseqüências de seu supremo
princípio, e o partidário de Condillac fica aterrorizado quando o põem na mesma classe que um
Helvetius, um Holbach ou talvez até um La Mettrie; e, no entanto, é forçoso que isso ocorra e
posso, pois, caracterizar sem nenhuma exceção como materialistas todos os filósofos franceses do
século XVIII e seus atuais seguidores. L’Homme Machine é o livro mais conseqüente da filosofia
francesa, e o título já evidencia a última palavra sobre toda a sua visão de mundo.” (HEINE,
Heinrich. op. cit., p. 56-7.).
154
como um autômato, responde mecanicamente aos estímulos externos.
207
Reconstruído um
pouco do aprofundamento psicológico que tanto contribuiria para o aperfeiçoamento da
idéia de utilidade, surgida no contratualismo, podemos voltar à teoria política para tentar
demonstrar como esta idéia de utilidade, assim aprofundada e adensada, colocaria aos
poucos o contratualismo de lado. Analisaremos agora a obra de Helvétius, o autor a quem
Beccaria tributa uma grande parte de suas idéias para, por fim, mergulharmos na trama de
Dos Delitos e das Penas.
207
Apontamos já algumas semelhanças entre as idéias de Condillac e a psicanálise, que residem
sobretudo na forma como ele caracteriza o papel do princípio prazer/dor na estruturação das funções
psicológicas e de como, em sua filosofia, o sujeito, a partir da ação deste princípio, vai se
constituindo enquanto tal na medida em que entra em contato com o mundo e aperfeiçoa sua
representação dele. Todavia, a tentativa de derivar toda a subjetividade das sensações e, portanto, da
influência da realidade externa abre a possibilidade de se desenvolver a filosofia de Condillac em
um sentido que a aproxime de uma outra corrente da psicologia moderna, uma corrente, aliás, rival
da psicanálise: o behaviorismo. Em Condillac, entretanto, podemos dizer que isso permanece
apenas uma possibilidade, muito embora em uma leitura atenta se vislumbre tal ou qual elemento de
semelhança. A proximidade com o behaviorismo, ao contrário, pode ser enxergada com toda a
nitidez em Helvétius, que, em seu sensualismo, acentua sobremaneira o papel da influência do meio
sobre a constituição do sujeito.
155
CAPÍTULO 2 – UTILITARISMO E ABSOLUTISMO ESCLARECIDO EM HELVÉTIUS
E BECCARIA
SEÇÃO I – Helvétius e o Legislador
Chegamos finalmente em Helvétius, o autor cuja obra, a se acreditar nas
palavras do próprio Beccaria, constitui os pilares daquele que é considerado por muitos o
texto fundante do direito penal moderno. A principal obra de Claude-Adrien Helvétius é Do
Espírito, justamente aquela mencionada por Beccaria na famosa carta a Morellet. Do
Espírito, publicado em 1758, veio à luz em um péssimo momento para as idéias
inovadoras. O acirramento das tensões sociais e um atentado contra o rei Luís XV ocorrido
um ano antes, em 1757, dariam vez a um período de grande repressão a idéias consideradas
subversivas. A obra estaria, portanto, destinada a provocar enorme escândalo por suas
idéias heréticas.
208
Assim, depois de publicada, veio efetivamente a ser condenada pelas
autoridades políticas e religiosas, chegando a ser queimada em praça pública – o mesmo
destino de tantas obras fundamentais do iluminismo francês, como o Emílio de Rousseau.
208
Bermudo caracteriza assim o significado de Do Espírito para a sua época: “El De l´Esprit,
obviando a veces su contenido concreto, ignorándolo o bien ocultando conscientemente las
diferencias, pasó a ser el símbolo, la condensación del ‘esprit nouveau’, del espíritu de los filósofos,
del partido de las reformas sociales y políticas, de la lucha contra la Monarquía, el Clero y el orden
feudal de privilegios. La ya larga confrontación ideológica – pues aún eran las armas de la crítica, y
no la crítica de las armas, las que sostenían el combate, aunque el poder eclesiástico y político no
vacilaran en recurrir al apoyo de la horca, de la pira, de la galeras y las prisiones para seguir
adelante – ahora se radicalizaba, forzaba a tomar posición, a aumentar la violencia. El De l’Esprit,
sin duda un libro audaz, sin duda peligroso para el conservadorismo, sin duda crítico, con esa crítica
eficaz por estar hecha sin violencia, pero con fina ironía, con elegancia y amenidad, con la sonrisa
de quien se siente seguro, pasó a ser un libro revolucionario, un peligro par el Rey, el Papa, la
Nobleza, y el Clero, es decir, para el orden del poder hegemónico. Jesuitas y jansenistas, guardianes
de la conciencia social, supieran ver al enemigo común por encima de las luchas entre ellos: lo
declararan enemigo de la religión y, como es enemigo del príncipe el enemigo de la religión del
príncipe, también enemigo del Rey.” (BERMUDO, José Manuel. op. cit., p. 16.).
156
Mas além da antipatia dos setores conservadores, Do Espírito também desagradaria
profundamente alguns grandes nomes do iluminismo francês, como Rousseau e Voltaire,
que, muito embora partilhando do espírito de renovação, discordariam das idéias de
Helvétius e, algumas vezes, viriam nela superficialidades, contradições e lugares-
comuns.
209
Do Espírito foi também a última obra publicada em vida por Helvétius.
Os enormes problemas que trouxeram a Helvétius a sua publicação retiraram-lhe muito de
seu entusiasmo em geral e, principalmente, de seu ânimo de voltar a publicar seus escritos.
Escreveria, ainda, a obra Do Homem, que foi publicada postumamente e onde são
reafirmadas as teses de Do Espírito. Mas na bibliografia de Helvétius a, ainda, uma outra
obra, escrita antes de Do Espírito, cujo título revela aquilo que seria uma das questões
centrais de todo o seu pensamento: trata-se do poema A Felicidade. Efetivamente, a questão
da felicidade humana, compreendida dentro do hedonismo que, como vimos, marca a
concepção de ser humano dessa tradição teórica que se ancora na noção de utilidade, é
posta, por Helvétius, como a grande meta da organização social, o valor segundo o qual se
deve julgar todas as instituições políticas. Como se pode perceber, estamos, ainda, em
desdobramento daquela radicalização sensualista do empirismo. O “útil”, enquanto aquilo
que causa “prazer”, igualado ao “bem” e, portanto, transformado em finalidade moral agora
se converte em princípio orientador da organização social.
210
209
Em face das extremas perseguições às quais Do Espírito foi submetido, houve uma espécie de
solidariedade entre os ilustrados que, ao menos em um primeiro momento, procuraram não criticar
publicamente o livro. No entanto, as discordâncias e descontentamento eram grandes. “Ahora bien,
no es menos significativo – al menos en el entorno concreto de este trabajo – que todos aplazaran la
crítica. Pues ello quiere decir que el libro fue recibido con inquietud, con preocupación, con
incomodidad, en la mayor parte de los sectores ilustrados. Rousseau, por ejemplo, no puede aceptar
la tesis sensualista de reducir el juicio a sensación. Menos aún puede aceptar que el interés sea el
fundamento de la virtud, o que el espíritu sea simple efecto de la educación. Voltaire se sintió
molesto: el pensamiento de su discípulo batía sus principales tesis. Pero, como era habitual en él ,
sabe alabar el genio, la belleza, la agudeza del libro cuando escribe a Thiérot (II-1759), trivializarlo
al reducirlo a mera paráfrasis del pensamiento de La Rochefoucauld cuando escribe al duque de
Richelieu (VI-1762) o atacarlo con dureza como desordenado, incoherente y repleto de vulgares
cuentos azules cuanto escribe a M. de Brosses (IX-1758). Diderot – y así cerramos la rápida
referencia a las tres grandes posiciones en la ‘republique des lettres –, al tiempo que no vacila en su
defensa, con rapidez escribe sus Réflexions sur le livre De l’Esprit en las que se apresura a marcar
sus diferencias.” (BERMUDO, José Manuel. op. cit., p. 24.).
210
Bermudo se refere assim à transformação, na obra de Helvétius, da felicidade em meta social:
“Tras el relativismo histórico que se ha empeñado en subrayar, puede resultar sorprendente intentar
definir un valor absoluto; tras el descriptivismo en que ha su discurso, no deja de ser chocante este
157
Seguindo os passos de Condillac, Helvétius radicaliza o empirismo de
Locke até fazer com que, não apenas as idéias, mas todas as faculdades do espírito sejam
também derivadas das sensações.
211
Entretanto, diferentemente de Condillac, o objetivo de
Helvétius não será tanto a descrição, por si só, do processo de formação das faculdades do
espírito. Isso é apenas o meio, indispensável com certeza, para se alcançar a sua verdadeira
finalidade: a descoberta e análise dos princípios que guiam o comportamento humano. De
qualquer forma, assim como Condillac, ele não admite qualquer idéia ou capacidade inata
ao ser humano. Todas as idéias, juízos, todas as faculdades do espírito humano, assim como
as próprias emoções, não são nada além do que transformações das sensações.
Temos em nós duas faculdades, ou, se ouso dizer, duas potências
passivas, cuja existência é geral e distintamente reconhecida. Uma
é a faculdade de receber as impressões diferentes que exercem
sobre nós os objetos exteriores; denominamo-la sensibilidade
física. Outra é a faculdade de conservar a impressão que estes
objetos exerceram sobre nós chamamo-la memória; e a memória é
apenas uma sensação continuada, mas enfraquecida.
212
[...] Volto
ao meu tema e afirmo que a sensibilidade física e a memória, ou,
para falar com mais precisão, somente a sensibilidade física produz
todas as nossas idéias. Com efeito, a memória só pode ser um dos
órgãos da sensibilidade física: o princípio que sente em nós deve
salto al ‘deber’. Esta paradoja, que ya señalara Diderot, es difícil de eludir en un discurso como el
de Helvétius, que no podía eludir el compromiso, más aún, que estaba orientando a la acción
práctica. De todas maneras su paso del ‘se’ al ‘debe’ le parece bastante plausible por el carácter que
da al ‘debe’. Si todo individuo busca necesariamente su felicidad, ¿no está permitido decir que la
sociedad como conjunto tiende a la felicidad pública? Ciertamente, como Horowitz el ha criticado,
Helvétius no tiene en cuenta el carácter de clase de la dominación social y habla de un ‘bienestar
público’ abstracto. Pero piensa que maximizar la felicidad es ir de acuerdo con la naturaleza, tanto a
nivel del individuo como a nivel de la colectividad. […] Al nivel del legislador, encargado de la
moral, es decir, del la felicidad, la maximización de la felicidad se consigue dirigiendo esas
pasiones, generando unas, potenciando otras, contrarrestando éstas, disuadiendo aquéllas…, todo
con el uso de la recompensa y el castigo, distribuyendo la gloria y la infamia.” (BERMUDO, op.
cit., p. 34.).
211
“Pero todo esto está subordinado a un presupuesto que aún no ha sido bien esclarecido; a saber,
que el espíritu no es un don natural que es efecto de la educación y de la ley. Este principio estaba
en la filosofía de Locke: si no hay ideas innatas y el entendimiento es una tábula rasa, todo es efecto
del medio. Claro, para que este principio pudiera ser leído en términos helvetianos exigía unas
tareas previas. Por un lado, había que disminuir al máximo la ‘mente activa’ de Locke, la ‘faculdad
de pensar’, pues de lo contrario podría verse en ella la fuente del conocimiento y, por tanto, de la
desigualdad entre los espíritus. […] Además, en segundo lugar, Helvétius debía radicalizar la unión
entre ideas y pasiones, cosa que en Locke siempre es oscurecida por su conversión del hombre en
un sujeto libre y moral, especialmente en su obra política.” (BERMUDO, op. cit., p. 34-5.).
212
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 91.
158
ser necessariamente o princípio que se recorda, desde que se
recordar, como vou provar, é especificamente sentir.
213
[...]
Estabelecido este princípio, afirmo ainda que é na capacidade que
temos de perceber as semelhanças ou as diferenças, as
concordâncias ou as discordâncias que têm entre si os objetos
diferentes, que consistem todas as operações do espírito. Ora, esta
capacidade é apenas a própria sensibilidade física: tudo se reduz
portanto a sentir.
214
Helvétius procura demonstrar, assim, que toda a vida mental do sujeito é
o resultado das sensações que este experimentou. Chega-se, por essa via, à conclusão de
que o sujeito não é mais do que o resultado de todos os elementos que influenciaram sobre
sua formação. Mas há uma questão que Helvétius ainda tem que enfrentar. Já está
estabelecido que a conformação do espírito depende das sensações experimentadas por ele.
Mas ainda assim não está descartada a possibilidade de a natureza influir decisivamente
sobre a subjetividade, concorrentemente à influência das impressões sensíveis. A questão é
de extrema importância para Helvétius e para o iluminismo de uma forma geral, pois uma
resposta positiva pode fundamentar a tese de uma natural desigualdade entre os homens.
Todo o discurso III de Do Espírito é voltado a analisar, como diz já em seu título “Se o
espírito deve ser considerado como um dom da natureza ou como um efeito da
educação”.
215
Mas para avançarmos na questão, devemos entender exatamente o que
Helvétius considera como educação. Em primeiro lugar, por educação não é, para ele,
apenas o que geralmente se entende por esta palavra, ou seja, a educação que se recebe de
mestres em uma escola, segundo um plano pedagógico, ou ainda a educação, referente à
conduta de vida, que se recebe dos pais. Para Helvétius, educação é tudo o que colabora
para a nossa instrução. Assim, tudo o que influencia na formação do sujeito, incluindo-se aí
desde a forma de governo até ao simples acaso.
Mas, mas se damos a essa palavra uma significação mais
verdadeira e extensa e se aí compreendemos, de modo geral tudo o
que colabora para a nossa instrução, então afirmo que ninguém
recebe a mesma educação; uma vez que cada um tem, ouso dizê-lo,
como preceptor: a forma de governo sob que ele vive, seus amigos,
213
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 93.
214
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 93.
215
“Sobre si el espíritu debe ser considerado un don de la naturaleza o un efecto de la educación”
(HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 283.).
159
suas mestras, as pessoas que o cercam, suas leituras e, enfim, o
acaso, isto é, uma infinidade de acontecimentos cujo encadeamento
e cujas causas nossa ignorância não nos permite perceber. Ora, esse
acaso tem uma participação maior em nossa educação do que se
pensa. É ele que coloca certos objetos sob nossos olhos, ocasiona
em nós, por conseguinte, as idéias mais felizes e conduz-nos,
algumas vezes, às maiores descobertas.
216
[...] Assim, sem me deter
por mais tempo para provar que o acaso desempenha neste mundo
um papel maior do que se pensa, concluirei a partir do que acabo
de dizer que, se compreendemos sob a palavra educação tudo o que
contribui para a nossa instrução, esse próprio acaso deve
necessariamente ter aí a participação maior; e não estando ninguém
colocado exatamente no mesmo concurso de circunstâncias,
ninguém recebe precisamente a mesma educação.
217
Com estas afirmações Helvétius procura colocar um ponto final nas
dúvidas sobre se as diferenças de educação bastariam para explicar as enormes diversidades
de espíritos encontrados entre os homens. Na medida em que se considerasse como
educação somente aquilo que corresponde aos sentidos tradicionais da expressão,
dificilmente se poderia supor, em face da uniformidade dos processos educativos escolares
e familiares, que as diferenças entre os homens se derivariam dela. De qualquer forma,
ainda não está descartada a possibilidade de a natureza influir decisivamente na formação
dos homens, sendo assim responsável pelas diferenças entre eles. Assim, Helvétius se
dedica, então, a tentar demonstrar porque não há a possibilidade de a natureza determinar
qualquer desigualdade de espírito entre os homens.
218
Estando estabelecido que o espírito
provém das sensações experimentadas pelos homens, só se poderia supor que a natureza
interfere na organização do espírito se aceitarmos que as diferenças naturais entre os órgãos
dos sentidos podem levar a diferenças em sua extensão ou exatidão ou que isso possa ser
causado pela desigual capacidade de memória ou, ainda, pela desigual capacidade de
atenção.
Quanto à questão dos sentidos, embora seja verdade que um homem com
visão aguçada possa ver melhor os objetos que lhe são apresentados, ainda assim a
216
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... 285-6
217
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 288-9.
218
No mesmo sentido de nosso raciocínio, Bermudo afirma: “Pero no basta con suponer que la
educación es la causa del espíritu. Es necesario demostrar que no es en absoluto posible que dicha
causa sea la naturaleza. Para ello hay que ir analizando los factores naturales que estén más
directamente ligados a la producción del espíritu y ver así la insuficiencia de su determinación.
Helvétius los va eliminando uno a uno.” (BERMUDO, José Manuel. op. cit., p. 38.).
160
oportunidade de preencher sua memória, formar idéias e fazer combinações serão em
número igual às de um outro que tenha a visão prejudicada.
219
Assim, conclui Helvétius que
a diferença que a natureza coloca, com relação aos sentidos, nos homens que ele chama de
bem organizados não é responsável, em qualquer extensão, pelas suas diferenças de
espírito.
220
Quanto à questão da memória, em primeiro lugar Helvétius lembra ela própria já
é um produto das sensações e não um dom da natureza; em segundo, ele argumenta que,
nos homens “bem organizados”, ela, muito embora variando de um para outro, sempre será
suficiente para elevá-los “ao mais alto grau de espírito.”
221
Quanto à questão da atenção,
que qualquer homem é capaz de atenção suficiente por tudo aquilo que lhe interessa e que,
muito embora haja desigualdades de capacidade de atenção, elas, ao menos nos homens
“bem organizados”, são já suficientes para possibilitar que se elevem às mais altas idéias e
ao nível de homens ilustres.
222
De tal forma, se há determinismo em Helvétius, não é um determinismo
biológico, mas antes social.
223
Em face do inegável fato das desigualdades entre os homens,
a questão é: a que se deve esta desigualdade? Graças a este seu determinismo social,
podemos imputá-la inteiramente à sociedade, descartando assim a idéia de uma
desigualdade natural entre os homens. Podemos avaliar a importâncias destas idéias de
Helvétius dentro de um movimento, como o iluminismo francês, que defende
219
“Ora, se desses dois homens aquele cujo sentido da vista é menos apurado pode, no entanto,
depositar no armazém da memória um número de objetos tão grande quanto o outro e se, aliás,
esses dois homens são iguais em tudo, devem eles, por conseguinte, fazer o mesmo tanto de
combinações e, em minha suposição, ter o mesmo tanto de espírito, visto que a extensão do espírito
se mede pelo número de idéias e das combinações. A maior ou menor perfeição no órgão da visão
só pode, por conseguinte, influir no gênero de seu espírito, fazendo de um um pintor, um botânico,
e de outro um historiador ou um político; mas em nada pode influir sobre a extensão de seu
espírito.” (HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Do Espírito..., p. 291.).
220
“De onde concluo que entre os homens que denomino bem organizados não é absolutamente à
maior ou menor perfeição dos órgãos, tanto exteriores quanto interiores dos sentidos, que se atribui
a superioridade do saber, é necessariamente de uma outra causa que a grande desigualdade dos
espíritos depende.” ((HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p.292.).
221
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 294.
222
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 311.
223
Bermudo analisa assim o tratamento de Helvétius a questão dos determinismos biológico e
social: “Efectivamente, Helvétius no solamente olvida, ignora (y justifica este desplazamiento) la
determinación orgánica sobre el espíritu como irrelevante (y como injusta, como dirá comentando
l’Esprit des lois), poniendo en su lugar la determinación de lo social, sino que, al mismo tiempo, la
línea abierta de la cadena causal se cierra en un círculo: sociopolítico-psicológico (pasiones,
espíritu)-conducta social.” (BERMUDO, José Manuel. op. cit., p. 36.).
161
ardorosamente a idéia de que todos os homens são iguais por natureza. A mesma questão
foi colocada por Rousseau no Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens. E
a mesma resposta foi dada: a origem da desigualdade reside na sociedade. É claro que
Rousseau e Helvétius entendem pela palavra ‘desigualdade’ coisas diversas, pois se para
este se fala de desigualdade de espírito, para aquele a questão é a desigualdade de riquezas
e de posição social. De qualquer forma, além de haver uma relação entre as duas, ambas se
encaixam em uma idéia genérica de desigualdade e, portanto, servem igualmente para
exemplificar a preocupação iluminista com o tema e, é claro, a orientação majoritária que
seria dada em seu tratamento.
O determinismo social e, principalmente, o tratamento dado à questão da
influência do acaso sobre o espírito trazem consigo um rígido causalismo, onde o homem
responde mecanicamente aos estímulos externos, ainda que o mecanismo por meio do qual
isso aconteça seja um tanto complexo.
224
Este causalismo mecanicista demonstra o quanto
Helvétius partilha daquela tendência tão típica das ciências morais e políticas do século
XVIII (à qual já aludimos) de construir uma “física” das coisas humanas à maneira de
Newton.
225
Esta tarefa de construir bases empíricas para as ciências morais, imitando o que
224
Vimos, ao tratar da questão do acaso, que qualquer fato, por mais insignificante que seja,
influencia, por vezes decisivamente, na formação do sujeito. Para exemplificar sua tese, Helvétius
recorre aos célebres acontecimentos envolvendo Galileu e de Newton. Na vida destes dois grandes
cientistas algo, em princípio insignificante, aconteceu que os levou às suas grandes contribuições
científicas para a humanidade: no caso de Galileu, um simples questionamento de alguns jardineiros
acerca de uma bomba d’água levou-o às formulações acerca da pressão atmosférica; no caso de
Newton, a observação da queda da maçã o levou à formulação do princípio da gravitação: “Num
momento em que o espírito pacífico de Newton não estava ocupado por coisa alguma, agitado por
paixão alguma foi também o acaso que, atraindo-o para uma alameda de macieiras, desprendeu
alguns frutos de seus ramos e deu a esse filósofo a primeira idéia de seu sistema;” (HELVÉTIUS,
Claude-Adrien. Del espiritu... p. 287.). Estes dois exemplos utilizados por Helvétius nos permitem
ver o rígido mecanicismo que perpassa sua psicologia.
225
Quanto a isto, não deixa qualquer dúvida a maneira, digamos, “fisicalista” (ou “mecanicista”, se
se preferir) com a qual Helvétius trata da questão das “forças que agem sobre nossa alma”:
“Somente a experiência pode mostrar-nos quais são essas forças. Ela faz-nos ver que a preguiça é
natural no homem, que a atenção o cansa e o aflige, que ele gravita, sem cessar, em direção do
repouso, como os corpos em direção de um centro, que, atraído constantemente para esse centro, ele
aí se teria fixamente atado se não fosse, a cada instante, empurrado por duas espécies de forças, que
nele contrabalançam as da preguiça e da inércia e que lhe são comunicadas, uma pelas paixões
fortes outra pelo ódio ao tédio.” ((HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 313.). Bermudo
percebe bem a conexão entre empirismo e mecanicismo presente em Helvétius: “El modo de
inteligibilidad mecanicista, cartesiano o newtoniano (a estos efectos no es relevante la distinción), al
ser asumido por la filosofía, imponía a ésta la tarea de escribir la ciencia de la moral (‘una moral
162
Newton havia feito para a física, implicava, como vimos, em encontrar algum princípio que
funcionasse, na moral, tal como o princípio da gravitação universal funciona na física.
Vimos também que o princípio prazer/dor, na filosofia de Condillac, viria a cumprir
exatamente este papel. Este mesmo princípio aparece em Helvétius.
226
Em seu esquema, a
motivação humana é produto de um processo onde as sensações de prazer e dor produzem
desejos que, por sua vez, engendram no homem as mais diversas paixões. Estas são a fonte
que impulsiona o homem para as mais diversas ações. A paixão, enquanto um derivado das
sensações de prazer e dor, assumem o local central dentro do sistema de Helvétius, parelho
ao que seria o papel do movimento na física: “As paixões são na moral o que o movimento
é na física: cria, destrói, conserva, anima tudo; sem ele, só há morte. São elas também que
vivificam o mundo moral.”
227
Mas Helvétius não apenas acolhe o princípio prazer/dor, ele
o compara explicitamente ao princípio da gravitação universal:
Parece que, no universo moral como no universo físico, Deus
colocou apenas um único princípio, segundo o qual tudo o que foi, o
que é e o que será, é apenas um desenvolvimento necessário.
Disse ele à matéria: Eu te dou força. Logo, os elementos, submetidos
às leis do movimento, mas errantes e confundidos nos desertos do
espaço, formaram mil reuniões monstruosas, produziram mil caos
diversos, até que, enfim, se colocaram no equilíbrio e na ordem física
em que se supõe agora o universo organizado. Parece que
paralelamente ele disse ao homem: Eu te dou sensibilidade; é por ela
que, cego instrumento de minhas vontades, incapaz de conhecer a
profundeza de meus pensamentos, deves, sem sabê-lo, cumprir todos
os meus desígnios. Coloco-te sob a guarda do prazer e da dor; um e
outra vigiarão teus pensamentos, tuas ações; engendrarão tuas
paixões... e, depois de ter-te feito criar mil sistemas absurdos e
diferentes de moral e de legislação, mostrar-te-ão um dia os
princípios simples a cujo desenvolvimento se vincula a ordem e a
felicidade do mundo moral.
228
como ciencia experimental’, dice Helvétius en su ‘Prefacio’ al De l’Eprit).” (BERMUDO, José
Manuel. op. cit., p. 49.).
226
Nas palavras de Helvétius: “A conclusão geral daquilo que disse sobre a origem das paixões é
que a dor e o prazer dos sentidos fazem os homens agir e pensar e são os únicos contrapesos que
movem o mundo moral.” (HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 362.).
227
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 316.
228
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 333. É digna de nota a semelhança deste trecho
com uma passagem de Condillac, contida em seu Tratado das Sensações, onde ele fala do papel
que o prazer e a dor exercem sobre sua estátua de mármore: “Sem o prazer nossa estátua jamais
teria vontade de mover-se; sem a dor se trasladaria sem prevenção e pereceria infalivelmente. Em
163
Ao contrário de uma certa tradição filosófica que tendia a dar um valor
um tanto negativo para as paixões, vendo-as como a dimensão irracional do homem e fonte,
portanto, de descaminhos morais, Helvétius dá às paixões um valor altamente positivo. Para
ele, as paixões são a força motriz do homem, são o germe produtor do espírito. São as
paixões fortes que levam os homens às grandes ações e à elas se devem as maravilhas das
ciências e das artes.
229
As paixões fortes, fonte de todas as ações audaciosas, podem levar
os homens tanto às grandes ações criminosas quanto às grandes ações virtuosas.
230
Está
descartada, portanto, qualquer postura maniqueísta que coloque a paixão no caminho do
mal e a razão, enquanto seu contraponto, no caminho do bem. Assim, se a paixão é tanto a
fonte de ações virtuosas quanto de ações criminosas, o quê determina os destinos para os
quais a paixão impulsionará o homem? A que se deve o vício e a virtude? Para Helvétius o
fator que direciona o impulso da paixão, guiando-o seja para o bem, seja para o mal, é a
forma de governo.
conseqüência é necessário que sempre esteja exposta a sensações agradáveis ou desagradáveis. Tal
é o princípio e a norma de todos seus movimentos. O prazer a vincula aos objetos, a induz a prestar-
lhes toda a atenção de que é capaz e a formar deles idéias mais exatas. A dor a afasta de tudo quanto
possa daná-la, a torna ainda mais sensível ao prazer e a faz eleger os meios para gozar dele sem
riscos e lhe dá lições de habilidade. Numa palavra, o prazer e a dor são seus únicos mestres.
(CONDILLAC, Étienne Bonnot de. Tratado..., p. 189.).
229
Diz Helvétius: “É portanto às paixões fortes que se devem a invenção e as maravilhas das artes;
deve-se considerá-las, pois, como o germe produtor do espírito e o motor poderoso que leva os
homens às grandes ações.” ((HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 316.). E mais à frente:
“Com efeito, são as paixões fortes que, mais esclarecidas do que o bom senso, podem ensinar-nos a
distinguir o extraordinário do impossível, que quase sempre as pessoas sensatas confundem, porque,
não sendo de modo algum animadas por paixões fortes, essas pessoas sensatas sempre são apenas
homens medíocres: proposição que vou provar, para fazer sentir toda a superioridade do homem
passional sobre os outros homens e mostrar que realmente só as grandes paixões podem criar os
grandes homens.” ((HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 321.).
230
Para Helvétius, as paixões produzem tanto os vícios quanto as virtudes: “Para saber se é da
natureza ou da forma particular dos governos que depende a indiferença de certos povos para com a
virtude, é preciso primeiro conhecer o homem; penetrar até o abismo do coração humano; lembrar-
se que, tendo nascido sensível à dor e ao prazer, é à sensibilidade física que o homem deve suas
paixões, e é a suas paixões que deve todos os seus vícios e todas as virtudes.” (HELVÉTIUS,
Claude-Adrien. Del espiritu... p. 363.). E para não deixar qualquer dúvida, acrescenta ele, ainda, o
seguinte: “Vou, portanto, seguindo a metamorfose das penas e dos prazeres físicos em penas e
prazeres factícios, mostrar que, em paixões, tais como a avareza, a ambição, o orgulho, a amizade,
cujo objeto não parece fazer parte dos prazeres dos sentidos, é, no entanto, sempre a dor e o prazer
físico que buscamos ou de que fugimos.” ((HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 336.).
164
Estabelecidos estes princípios, para resolver a questão acima
proposta, é preciso examinar a seguir se as mesmas paixões,
modificadas de acordo com as diferentes formas de governo, não
produziriam em nós os vícios e as virtudes contrárias. Seja um
homem bastante apaixonado pela glória para sacrificar-lhe todas as
suas outras paixões: se, pela forma do governo, a glória é sempre o
prêmio das ações virtuosas, é evidente que este homem será sempre
obrigado à virtude, e que, para dele se fazer um Leônidas, um
Horácio Cocles, basta colocá-lo num país e em circunstâncias
semelhantes.
231
A organização política passa a ser, então, o foco das atenções de
Helvétius. A ela se deve o sentido a que se direciona o comportamento humano A
organização política de um Estado é que favorecerá o surgimento de indivíduos virtuosos
ou criminosos. Mas aqui talvez devêssemos perguntar sobre a idéia que faz Helvétius de
homem virtuoso e, conseqüentemente, virtude. Segundo Helvétius, cada homem tem
geralmente uma ou outra paixão que preside à sua conduta, submetendo todas as outras.
Assim, conforme ela seja, por sua natureza ou pelas circunstâncias, útil ou nociva ao Estado
o homem que a porta será dito virtuoso ou vicioso. Evidentemente, a força das virtudes ou
dos vícios de um homem depende sempre da força de suas paixões que, por sua vez, é
medida pelo grau de prazer que proporcionam ao serem satisfeitas. Portanto, o homem para
o qual a estima pública é tudo prefere a morte a pedir covarde e vergonhosamente pela
vida. E aquele outro que, pelo amor ao orgulho e à glória pessoal, se torna apaixonado pelo
bem público prefere a morte à humilhação de ver sua pátria submetida a uma nação
estrangeira e é capaz das mais heróicas ações para evitar que isso aconteça. Assim,
evidentemente, qualquer destas ações heróicas que ele pode vir a protagonizar serão sempre
o resultado de seu amor pela glória. Se caminhasse assim. Se for assim
Diante desses fatos, pode-se ver que a virtude só é possível se a ação
considerada virtuosa está de acordo com a paixão mais forte que anima a alma de um
homem. Se for impossível, conforme a afirmação de Helvétius, travar batalhas com suas
231
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 363. Um pouco mais à frente, Helvétius ainda
completa: “A respeito dos homens apaixonados que citei em primeiro lugar, é evidente que o
mesmo desejo de glória, que, nos primeiros séculos da república romana, teria feito Cúrcios e
Décios, deve transformá-los em Mários e Otávios nesses momentos de perturbações e de revoluções
em que a glória era, como nos últimos tempos da república, unicamente atribuída à tirania e ao
poder. E o que digo sobre a paixão pela glória digo também sobre o amor pela consideração, que
não passa de um diminutivo do amor pela glória, e o objeto dos desejos daqueles que não podem
atingir a fama.” (HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 364.).
165
paixões sem perder inúmeras delas, então um homem que, para ser virtuoso, tivesse que
vencê-las acabaria sendo necessariamente desonesto. Podemos concluir, a partir de tudo
isso, que a ação virtuosa só é possível quando há uma coincidência entre o interesse público
e o individual. Assim, vejamos o quê nosso autor entende por homem virtuoso:
O homem virtuoso não é, pois, aquele que sacrifica seus prazeres,
seus hábitos e as mais fortes paixões ao interesse público, pois um
homem assim é impossível, mas aquele cuja paixão mais forte está de
tal modo conforme ao interesse geral que ele é quase sempre
impelido para a virtude.
232
A paixão é o motor do homem, mas podemos dizer que é um motor
cego, ao menos no que diz respeito ao valor moral das ações. Para que ela tenha, em termos
morais, conseqüências positivas, deve estar conforme ao interesse geral. O fato de os
homens buscarem sempre o prazer ou a fuga da dor em todas as suas ações deve, portanto,
ser usado em benefício da virtude. Se a natureza possui as armas do prazer e da dor, os dois
agentes que engendram todas as paixões humanas, não as possui menos a sociedade. Aliás,
na medida em que as condições ambientais
233
de um homem que vive em sociedade são,
como parece óbvio, muito mais sociais do que naturais, então podemos dizer que, com
relação a um homem que nela viva, a sociedade pode engendrar e orientar paixões, através
das armas do prazer e dar dor, com muito mais facilidade. Portanto, se os homens são
virtuosos ou criminosos deve-se isso à sociedade, à forma como ela está organizada, à sua
estrutura política, à sua legislação. Assim, aquele que tem o poder de organizar a sociedade,
de interferir em sua estrutura, tem também o poder de direcionar as ações humanas
guiando-as para o bem. A figura do Legislador aparece, neste momento, e com destaque
especial. Sobre ele recaí a responsabilidade de produzir a organização política mais
adequada a favorecer a virtude dos cidadãos.
Se o prazer é o único objeto da procura dos homens, para inspirar-
lhes o amor pela virtude bata imitar a natureza: o prazer anuncia as
vontades dela, a dor, suas proibições; e o homem obedece-lhe
232
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 368.
233
Lembremos que o conjunto das condições ambientais, considerando-se assim tudo o que
influencia na formação do sujeito, é o que Helvétius entende por educação.
166
docilmente. Armado do mesmo poder, porque o legislador não
produziria os mesmos efeitos?
234
Deve-se deixar claro, entretanto, que para Helvétius o medo dos castigos
apenas afasta os vícios, mas não produz a virtude. Em uma “legislação excelente”, o medo
do desprezo público é suficiente para formar almas virtuosas e todos os outros tipos de
castigo tornam o homem tímido, covarde e estúpido. O fundamento da verdadeira virtude é
o desejo da estima e da glória e o medo do desprezo. Assim, portanto, o amor ou a
indiferença que certos povos têm pela virtude não é de forma alguma produto da natureza,
mas sim das diferentes constituições dos Estados. Mas quais seriam então as constituições
que levariam o homem à virtude e quais, ao contrário, o levariam ao vício? Helvétius
estabelece aqui um dualismo baseado no binômio despotismo/liberdade
235
para expor quais
são as condições sociais capazes de aperfeiçoar os indivíduos e quais contribuem, antes,
para gerar criminosos. Nesse momento entra em cena a crítica. Para ele, evidentemente, os
governos livres são aqueles que levam à virtude. Assim, Helvétius enxerga nos regimes
234
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu. p. 369. Helvétius afirma também, um pouco mais à
frente: “O ódio da maioria dos homens à virtude não é portanto resultado da corrupção de sua
natureza mas da imperfeição da legislação. É a legislação, ouso dizê-lo, que nos incita ao vício,
juntando-lhe com muita freqüência o prazer: a grande arte do legislador é a arte de desuni-los e de
não deixar nenhuma relação entre a vantagem que o celerado retira do crime e o castigo a que ele se
expõe.” ((HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 369.). O itinerário teórico de Helvétius é
resumido com bastante precisão por Francioni: “Tutte le valutazioni morali vanno dunque derivate
dal principio dell’interesse, o dell’utilità; tutta la vita sociale è mossa da un tale principio. Come si è
visto, lo stesso contratto sociale, che istituisce la società per la conservazione della vita e delle
proprietà degli individui, è fondato sull’interesse: ‘les hommes – afferma Helvétius –, uniquement
attentifs à leurs intérêts, n’ont jamais porté leurs regards sur l’intérêt général’, e tuttavia ‘sans
intérêt personnel ils ne se fussent point point rassemblés en société, n’eussent point fait entre eux de
conventions’. I concetti di bene e di male vanno dunque tradotti immediatamente in quelli di utile e
dannoso. Le passioni andranno indirizzate, facendo leva sull’interesse egoistico, in modo tale che il
comportamento dei singoli risulti utile in generale. Così, sarà detta virtuosa l’azione utile alla
società. Compito del legislatore sarà di procurare il pubblico bene consentendo una effetiva
possibilità ai singoli di soddisfare i propri bisogni, cioè di perseguire i propri interessi individuali;
ma occorre che gli interessi vengano armonizzati e convogliati verso la pubblica utilità, perchè
difficilmente dall’incontro (o dal conflitto) degli interessi individuali può prodursi spontaneamente
la felicità di tutti in quanto interesse generale.” (FRANCIONI, Gianni. Beccaria filosofo
utilitarista... p. 77.).
235
“Do que eu disse se poderia concluir que não é de modo algum da natureza mas da diferente
constituição dos Estados que depende o amor ou a indiferença de certos povos para com a virtude:
mas, por mais justa que fosse essa conclusão, não seria entretanto bem provada se, para esclarecer
melhor essa matéria, eu não procurasse mais particularmente nos governos, livres ou despóticos, as
causas desse mesmo amor ou dessa mesma indiferença para com a virtude.” (HELVÉTIUS, Claude-
Adrien. Del espiritu... p. 370.).
167
republicanos, tais como os que existiram em Roma e na Grécia, os mais capacitados a gerar
os melhores cidadãos. Em contrapartida o despotismo seria, acima de tudo, um
encorajamento ao vício.
Se a história grega e a romana está cheia desses traços heróicos e se
percorremos quase inutilmente toda a história do despotismo para
encontrar algo parecido, é que, nesses governos, o interesse particular
não está nunca ligado ao interesse público; é que nesses países, entre
mil qualidades, é a baixeza que é honrada, a mediocridade que é
recompensada; é a essa mediocridade que se confia quase sempre a
administração pública; dela são afastadas as pessoas de espírito.
236
Fica claro, portanto, que quando Helvétius fala de governo livre ele está
se referindo à repúblicas. Mas o quê, exatamente, ele está querendo dizer quando fala de
despotismo? Em princípio, as referências são ao chamado despotismo oriental. Helvétius,
aliás, nega explicitamente que na França haja uma constituição despótica. Isso poderia nos
fazer crer que ele faz coro com Montesquieu, procurando, assim, defender os poderes
intermediários (o da nobreza, principalmente) contra possíveis “usurpações” de um
monarca que se pretenda absoluto. Mas concluir isso talvez seja um pouco apressado.
237
Devemos lembrar, em primeiro lugar, que a preocupação em negar o caráter despótico da
constituição francesa poderia ter sido causada, evidentemente, pelo medo da censura. De
qualquer maneira, parece-nos que Helvétius esteja sendo sincero quando diz que na França
236
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 394.
237
Quanto a isso, analisemos com atenção o trecho de Do Espírito em que Helvétius nega o caráter
despótico da constituição francesa: “Em vão algumas nações vizinhas e invejosas já nos acusam de
cedermos ao jugo do despotismo oriental: afirmo que nossa religião não permite aos príncipes
usurpar esse poder; que nossa constituição é monárquica, e não despótica; que os particulares não
podem, por conseguinte, ser despojados de sua propriedade a não ser pela lei, e não por uma
vontade arbitrária; que nossos príncipes pretendem o título de monarca, e não o de déspota; que eles
reconhecem leis fundamentais no reino; que se declaram os pais e não os tiranos de seus súditos.
(HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 370-1.). Não se pode deixar de perceber, nesta
passagem, um certo cinismo evidenciado pela colocar sobre as tais “nações vizinhas e invejosas”, a
responsabilidade pela acusação de que a França está cedendo ao “jugo do despotismo oriental”, pelo
argumento de que a religião cristã (da qual Helvétius não partilhava) seria um dos fatores que
impediriam isso e pelos patéticos argumentos de que os príncipes franceses pretendem o título de
monarcas, e não o de déspotas, e que se declaram pais de seus súditos e não seus tiranos. Além
disso, pode-se ver, claramente, que Helvétius não está defendendo, contra a hipotética “usurpação”
despótica, os poderes intermediários da nobreza. Ao contrário, é marcante a referência ao direito de
propriedade, um típico valor burguês. E por fim, se pensarmos bem, veremos que os argumentos
aduzidos por ele para negar que a França esteja se tornando despótica são todos muito fracos.
168
não impera o despotismo. Entretanto, o que não fica descartado, de forma alguma, é que ela
esteja em seu caminho. Para Helvétius, o despotismo é um produto da “anarquia dos
interesses”, da “divisão entre os cidadãos”, e estas, em sua opinião, são características
justamente da estrutura estamental de monarquias como a da França, nas quais os cidadãos
são desprovidos daquele amor ao bem público chamado virtude, ao contrário do que
acontece nas repúblicas, onde o interesse individual está harmonizado com o interesse
geral. Assim, é de se crer que Helvétius estivesse afirmando ao menos que o caos dos
interesses da sociedade estamental francesa fosse um convite ao despotismo.
Para esclarecer com precisão suas opiniões políticas, Helvétius realiza
também uma outra interessante comparação, não entre dois povos distantes no tempo ou no
espaço, como Roma e algum reino oriental, mas entre a França e a Inglaterra. Nesta
comparação, ganha a Inglaterra. Ela figura, na pena de Helvétius, como a nação onde cada
cidadão participa dos assuntos públicos, onde os escritores célebres são mais honrados do
que em outras partes, onde o mérito é valorizado e onde se encontra, com facilidade, gente
instruída. Ao contrário da França, cujo povo Helvétius caracteriza como o “mais frívolo da
Europa”,
238
a Inglaterra tem, em sua opinião, cidadãos dotados de espírito de patriotismo e
magnanimidade, algo que, de acordo com nosso autor, pode-se encontrar apenas nos países
livres. Helvétius pode, assim, concluir que a forma de governo da Inglaterra apresenta
grande vantagem sobre a da França. É a ela que se deve a superioridade de espírito dos
ingleses sobre os franceses. Nesse ponto, aliás, há um interessante contraposição com a
teoria dos climas de Montesquieu, que Helvétius busca refutar explicitamente.
239
Se as
238
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del Espíritu… p. 238.
239
Nesta passagem, em meio às comparações entre Inglaterra e França, encontramos uma referência
à teoria dos climas que não deixa dúvidas: “Se os escritores célebres, pelo contrario, como o prova
o exemplo dos Locke e dos Addison, foram até agora mais honrados na Inglaterra que em outras
partes, é porque é impossível que na se faça caso do mérito em um país onde cada cidadão participa
no manejo dos assuntos gerais, onde todo homem de espírito pode esclarecer o público sobre seus
verdadeiros interesses. Por esta razão encontra-se tão freqüentemente em Londres gente instruída,
coisa mais difícil de conseguir na França, e não, como se pretendeu, porque o clima inglês seja mais
favorável ao espírito que o nosso. A lista de nossos homens célebre na guerra, na política, nas
ciências e nas artes é talvez mais numerosa que a deles [...] Comparando as vantagens que a forma
de nosso governo pode ter com relação ao seu, resulta a seu favor uma vantagem muito
considerável sobre nós, vantagem que conservam até que o luxo tenha corrompido totalmente os
princípios de seu governo, os tenha colocado, sem que se dessem conta, sobre o jugo e a servidão e
os tenha ensinado a preferir as riquezas aos talentos. Até hoje em Londres é um mérito instruir-se;
em Paris, é ridículo.” (HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 233.). A tese de que as
169
diferenças de espírito são sempre provocados pelas diferenças nas formas de governo, fica
descartada a possibilidade de o clima influir diretamente sobre ele.
240
Além de estabelecer, por intermédio de sua psicologia política, os
princípios que devem orientar a moral, Helvétius se pergunta sobre a razão que retardaram
seus progressos. Segundo ele, o atraso da moral em relação às outras ciências se deve à
oposição de interesses poderosos. Assim, segundo ele, todas as diferentes espécies de
celerados que, para atender a seus interesses particulares, deviam estabelecer leis contrárias
ao bem geral, sabiam que o fundamento de seu poder era a ignorância e a imbecilidade
humanas. Por isso, impuseram, ao longo dos tempos, o silêncio àqueles que revelavam os
verdadeiros princípios da moral aos povos, armando-os na luta por seus direitos.
241
Helvétius prossegue perguntado quais são, mais exatamente, os inimigos
da humanidade que se opõem aos progressos da moral em sua época. Estes não seriam os
soberanos, que, em sua opinião, são colocados no trono por um consentimento unânime e
refletem a glória e a felicidade dos povos. Assim, para nosso autor, os inimigos da moral de
sua época seriam, então, de duas espécies: uns são os fanáticos, outros os semi-políticos.
Neste ponto, a insatisfação de Helvétius com a sociedade estamental ganha contornos ainda
diferenças de espírito se devem unicamente à natureza do governo parece entrar em conflito com a
seguinte passagem, na qual, novamente, franceses e ingleses são comparados: “Surpreendido, a esse
respeito, pela diferença entre nossa nação e a sua, quase não há inglês que não creia ser de uma
natureza superior, que não tome os franceses por cabeças frívolas e a França por um reino da
puerilidade. Seria fácil para ele, na verdade, dar-se conta de que não é somente á forma de seu
governo que seus compatriotas devem este espírito de patriotismo e de grandeza desconhecido em
qualquer outro país que não seja livre, senão que o devem também à situação geográfica da
Inglaterra” ((HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 246.). A referência à “situação
geográfica da Inglaterra” pode dar a impressão de que Helvétius fala de um outro fator que,
paralelamente à forma de governo, influenciaria diretamente a constituição do espírito. Entretanto,
devemos ter em conta que a influência que a “situação geográfica” exerce sobre o espírito não é por
intermédio da estrutura psico-biológico do homem. A “situação geográfica” age sobre o espírito
enquanto uma causa social, na medida em que influência a organização da sociedade. Em outras
palavras, é por suas relações com a forma de governo que a “situação geográfica” pode afetar o
espírito. Para ficarmos no caso da Inglaterra, para Helvétius, o fato de ser ela uma ilha, ao protegê-
la de seus inimigos, permitiu que sua forma de governo livre subsistisse em torno de valores
comercial-industriais, pondo de lado os valores militares (ao contrário de Roma) cuja deterioração,
ocorrendo pouco a pouco, pode ser a causa, em um governo livre, de sua caída ou de sua
escravização. ((HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 233, 246-7.).
240
“Aplico o que disse dos diversos séculos aos diferentes países e encontro que a estima ou o
desprezo vinculado com os mesmo gêneros de espírito nos diferentes povos é sempre o efeito da
diferente forma de seu governo e, por conseguinte, da diversidade de seus interesses.”
(HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 238.).
241
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 250.
170
mais nítidos. Tais tipos de homens são, segundo a sua descrição, facilmente identificáveis
com os membros do clero e da nobreza.
Vejamos, primeiro, como Helvétius caracteriza os fanáticos. Estes são
aqueles que se julgam virtuosos apenas pelos que acreditam e não pelo que são e que,
portanto, são indiferentes às ações honestas; que odeiam aqueles que não são ingênuos em
relação a eles e que acusam de impiedade todos que esclarecem as nações. Os semi-
políticos, por sua vez, ou são aqueles que são inimigos das verdades novas apenas por
serem preguiçosos e quererem subtrair-se à fadiga de atenção necessária para examiná-las;
ou são aqueles outros, os mais perigosos, que não têm talentos ou virtudes e aos quais, para
serem grandes criminosos, falta apenas a coragem. Estes últimos armam paixões e
preconceitos contra todo homem que quer destruir seu império.
242
O progresso moral da
sociedade começa em desmascarar esses homens, mostrando-os como os mais cruéis
inimigos da humanidade. De tal forma, se a arma deles é a ignorância das massas a arma da
emancipação humana é o esclarecimento delas.
243
Podem causar certo estranhamento esses brados de Helvétius contra os
estamentos privilegiados, especialmente com relação à nobreza, quando se tem em mente
que o próprio Helvétius era um nobre. Não era um nobre de linhagem longa, é certo: o
título nobiliárquico foi concedido pelo rei Luis XIV a seu avô. Mas tinha relações estreitas
com a corte. Além disso, possuiu por muito tempo um ofício, mais exatamente o de fermier
général, que lhe foi comprado pela família quando tinha apenas 23 anos e que lhe garantiu
o enriquecimento. Este ofício dizia respeito à coleta de impostos: o fermier devia recolher
os impostos estabelecidos pela coroa, retendo uma parte para si e repassando o restante. Os
fermiers eram uma poderosa elite reprodutora do antigo regime. Assim, deveríamos, talvez,
supor que Helvétius é um daqueles abnegados homens capazes de se rebelar contra aquilo
que eles mesmos representam? Ou, ao contrário, devemos rever nossa leitura do filósofo
francês, imputando-lhe menos radicalismo político? Afinal de contas, em Do Espírito ele
242
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 251.
243
“É suficiente com relação a isso levanta os obstáculos que opõem a seus progressos as duas
espécies de homens que mencionei. O único meio para conseguir isso é desmascará-los, mostrar os
defensores da ignorância como os mais cruéis inimigos da humanidade, ensinar às nações que os
homens são, em geral, ainda mais estúpidos que maus, que curando-os de seus erros se lhes curaria
da maior parte de seus vícios e que opor-se à sua cura é cometer um crime de lesa humanidade.”
(HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 253.).
171
criticou apenas os fanáticos e os semi-políticos. De tal maneira, deveríamos mesmo supor
que falava da aristocracia e do clero? Entretanto, quando buscamos outras fontes, qualquer
dúvida quanto a isso se dissipa. Se em Do Espírito as opiniões de Helvétius são atenuadas
com aquelas expressões dúbias, em uma carta a Montesquieu elas assumem contornos bem
claros:
Um rei é também escravo de suas amantes, de seus protegidos e de
seus ministros. Se ele se zanga, o pontapé que recebem seus
cortesãos se devolve e se propaga até o último grosseirão. Eis,
imagino, o único emprego ao qual podem servir os intermediários.
Num país governado pelas fantasias de um chefe, esses
intermediários que o importunam procuram ainda enganá-lo, impedi-
lo de ouvir as confissões e as queixas do povo sobre os abusos de que
apenas eles aproveitam. [...] Como podeis ver, por intermediários eu
entendo os membros dessa vasta aristocracia de nobres e de
sacerdotes cuja cabeça repousa em Versalhes, que usurpa e
multiplica à vontade quase todas as funções do poder, pelo único
privilégio do nascimento, sem direito, sem talento, sem mérito; e
retém na sua dependência até o soberano a quem ela impõe a sua
vontade e faz mudar de ministro de acordo com a conveniência de
seus interesses.
244
As duras palavras de Helvétius mostram bem com que espírito ele
olhava os poderes intermediários que constituíam um dos alicerces da constituição mista
defendida por Montesquieu em Do Espírito das Leis. Conforme havíamos analisado ao
tratarmos de Do Espírito, Helvétius inverte os termos de Montesquieu ao responsabilizar a
ordem estamental pelo surgimento do despotismo. Enquanto para este último os poderes
intermediários teriam por função limitar os poderes do monarca, fazendo com que ele se
diferencie dos déspotas (como os orientais, por exemplo), para Helvétius são justamente
eles que, gerando um estado de anarquia, criam as bases para o despotismo. Na carta a
Montesquieu aparece uma outra versão, um pouco mais radical, desse raciocínio: agora as
ordens intermediárias são incapazes de conter o despotismo não apenas porque engendram
a base a partir do qual ele se levanta, mas porque elas próprias já o exercem. E como já
244
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Carta a Montesquieu. In CONDILLAC, Étienne Bonnot de,
HELVÉTIUS, Claude-Adrien, DEGÉRANDO, Joseph-Marie. op. cit., p. 162-3.
172
ficou demonstrado na passagem acima, este despotismo das ordens intermediárias oprime,
na opinião de Helvétius, não apenas o povo, mas o próprio soberano.
245
Dissipadas quaisquer dúvidas que poderiam permanecer sobre as
verdadeiras opiniões políticas de nosso autor, devemos agora tentar entender as razões que
o levaram a se posicionar assim. Os vínculos de Helvétius não se resumem ao título
nobiliárquico e ao ofício que possuiu durante considerável tempo. Depois de vender seu
ofício de fermier général, compra extensas propriedades rurais e um cargo na corte,
tornado-se, assim, senhor de terras e cortesão. Passa, portanto, a ocupar outras duas
posições sociais fundamentais do ancien régime.
246
Todavia, paralelo a tudo isso, Helvétius
245
Na mencionada carta, Helvétius disse a Montesquieu: “Nossos padres são demasiados fanáticos e
nossos nobres demasiado ignorantes para se tornarem cidadãos e sentirem as vantagens que teriam
em ser e formar uma nação. Cada um sabe que é escravo, mas vive na esperança de ser um
subdéspota por sua vez.” (HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Carta a Montesquieu... p. 162.). Um
pouco antes, na mesma carta, ele havia já afirmado: “Ao passo que na Europa, hoje a menos pisada
das quatro partes do mundo, que é um soberano, enquanto que todas as fontes de rendas públicas se
perderam nos cem mil canais da feudalidade, que os desvia incessantemente de seu lucro? A metade
da nação se enriquece com a miséria da outra; a nobreza insolente faz cabala e o monarca que ela
adula é ele mesmo oprimido sem que o perceba. A história bem meditada é uma lição perpétua
disto. Um rei cria para si ordens intermediárias; logo eles são os mestres e os tiranos de seu povo.
Como conteriam o despotismo? Eles só apreciam a anarquia e são ciosos apenas de seus privilégios,
sempre opostos aos direitos naturais daqueles que oprimem.” (HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Carta
a Montesquieu... p. 162.). É interessante ver aqui o então fermier général observando que é através
do desvio das rendas públicas pelos “cem mil canais da feudalidade” que metade da nação exerce
seu despotismo sobre a outra metade e sobre o próprio soberano. Segundo alguns autores, essa
posição crítica com relação às instituições do antigo regime foi compartilhada por outros fermiers,
além de Helvétius. Bermudo, a esse respeito, afirma o seguinte: “Guy Besse señala que no sólo fue
Helvétius, sino también otros fermiers, los que dotados de un nuevo espírtu y sensibles a la
situación social, se rebelaron contra esta situación y denunciaron la degeneración del régimen.
Efectivamente, algunos de estos altos funcionarios supieron ver en la estructura de impuestos no
sólo una injusticia que hundía en la miseria a las capas populares, sino la forma moderna de
reproducción del orden feudal. Por eso todos ellos, y especialmente Helvétius, tomaron posición
confrontada al Esprit des lois de Montesquieu, cuyo espíritu renovador se vio limitado por su
reconocimiento de los privilegios y de la estructura de estamento del antiguo régimen.”
(BERMUDO, José Maria. op. cit., p.11.). Bermudo ressalta, neste trecho, o conflito, que já
ressaltamos neste trabalho, entre Helvétius e as teses expressas por Montesquieu em sua principal
obra. Em uma outra carta, destinada a Bernard-Joseph Saurin, na qual nosso autor comenta a
impressão que lhe causou a leitura dos manuscritos de De l’esprit des lois, ele dá sua opinião sobre
a origem dos erros de Montesquieu, deixando claro sua aversão ao ponto de vista nobiliárquico
expresso nessa obra. Vejamos as palavras de Helvétius: “Com o tipo de espírito de Montaigne, ele
conservou seus preconceitos de homem de toga e de fidalgo: esta é a origem de todos os seus
erros.” (HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Carta a Saurin. In CONDILLAC, Étienne Bonnot de,
HELVÉTIUS, Claude-Adrien, DEGÉRANDO, Joseph-Marie. op. cit., p. 165.).
246
“Toda la documentación que se posee coincide en señalar, por un lado, el escaso atractivo que
encuentra tiempo posible; por otro lado, su generosa gestión de sus tierras, ofreciendo condiciones
173
também promovia em suas terras intensas empresas industriais. Assim teve oportunidade de
viver conforme os interesses das classes produtoras (os burgueses, mais exatamente) e
sentir o peso do parasitismo cortesão, a injustiça dos privilégios e a irracionalidade da
burocracia. Essas experiências pessoais, somadas à percepção de que os caminhos trilhados
por sua nação poderiam levá-la à decadência, seriam motivos suficientes para que Helvétius
se fizesse porta-voz daqueles que ansiavam por mudanças, principalmente quando já estava
provado que ele próprio poderia se adaptar muito bem a elas.
O quê poderia atender a este anseio por mudanças expressado por
Helvétius? Como já ficou claro, Helvétius não apenas acusa os nobres e os sacerdotes de
parasitarem o restante da nação, mas ainda os responsabiliza pela manutenção do status
quo. Segundo ele, o próprio soberano é retido na dependência destas ordens privilegiadas e
oprimido por elas. No contexto do absolutismo francês, onde a concentração do poder por
parte do monarca esteve constantemente dificuldade e até parcialmente obstaculizada pela
resistência das ordens de poder intermediárias (como as nobiliárquicas e eclesiásticas) tal
posicionamento só poderia significar uma adesão à causa do príncipe, isto é, um
posicionamento em favor da concentração de poder em suas mãos e, portanto, da
solidificação do absolutismo. Evidentemente, isso estava acompanhado da esperança de que
o príncipe, livrando-se da pressão dos interesses dos estamentos privilegiados, governasse
mais racionalmente.
247
Esta defesa do absolutismo parece um tanto estranha se
dignas a sus campesinos, dotándolos de médicos y farmacia y no usando sus derechos feudales que
la ley reconoce, pero que odia sinceramente.” (BERMUDO, José Manuel. op. cit., p. 12.).
247
Na carta a Montesquieu encontramos o seguinte trecho: “Se nossos descendentes possuem senso
comum, duvido que se acomodem a nossos princípios de governo e que se adaptem a constituições,
sem dúvida melhores que as nossas, vossos balanços complicados de poderes intermediários. Os
próprios reis, se ficarem mais esclarecidos acerca de seus verdadeiros interesses (e por que não o
perceberiam?), procurarão, desembaraçando-se desses poderes, fazer com mais segurança sua
felicidade e a de seus súditos.” (HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Carta a Montesquieu... p. 162.). É
clara, aqui, a fórmula de Helvétius. Os reis, tornando-se esclarecidos, se desvencilhariam dos
poderes intermediários para poder, com maior tranqüilidade, planejar as estratégias para ampliar a
felicidade da nação, o que significa, para Helvétius, governar racionalmente. Em Do Espírito, por
sua vez, encontramos o seguinte trecho, onde Helvétius fala explicitamente sobre príncipes
esclarecidos: “Qualquer um que, sob o pretexto de manter a autoridade do príncipe, quiser levá-la
até o poder arbitrário, é por sua vez um mau pai, um mal cidadão e um al súdito: um mal pai e um
mal cidadão, porque carrega sua pátria e seus descendentes com as cadeias da escravidão; um mal
súdito, porque converter a autoridade legítima pela autoridade arbitrária é convocar contra os rei a
ambição e o desespero. [...] Os reis devem ser surdos a estes conselhos e devem recordar que seu
único interesse consiste em manter em boas condições o estado para ele e para seus descendentes.
Este interesse verdadeiro só pode ser entendido pelos príncipes ilustrados. Para os outros, a pequena
174
considerarmos a euforia de Helvétius pelos regimes republicanos. Por tudo o que
analisamos acima, não resta dúvidas que Helvétius considere a república como a melhor
forma de governo. Entretanto, estando em um estado monárquico onde, apesar dos avanços
do absolutismo, os estamentos privilegiados, que tanto prejuízo traziam à nação, ainda
tinham tanto poder, talvez parecesse bastante vantajoso apostar em uma possível aliança
entre o monarca e os setores progressistas da sociedade. Em 1758, ano em que foi
publicado Do Espírito, e em 1748, ano em que foi escrita a correspondência a Montesquieu
sobre os manuscritos de Do Espírito das Leis,
248
estávamos muito longe da conjuntura
revolucionária de 1789 e parecia, naquele momento, razoável esperar convencer o rei a
implementar uma política reformadora. Esta esperança se baseava na possibilidade de se
realizar, digamos, uma espécie de composição de interesses entre a coroa e os setores
sociais ascendentes. Na medida em que o monarca ampliasse seu poder à custa da
progressiva redução de poderes dos estamentos privilegiados, tenderia também a fortalecer
seus apoiadores. Como o interesse desses, por sua vez, está do lado da razão, o monarca
seria naturalmente levado a governar segundo ela, o que para aquele momento significava
dar eficiência à burocracia, estimular as atividades econômicas com reduções de tributos,
livre-comércio, etc., estimular as ciências, instruir a população, premiar o mérito, o que
implicava em destruir a ordem de privilégios, e ampliar a igualdade entre seus súditos.
Fazendo assim e vendo os benefícios gerais trazidos para a sociedade, por que o próprio
monarca não se convenceria de que este seria o melhor caminho? Não é de se duvidar que
Helvétius pensasse assim, já que ele próprio estava tão convencido da utilidade de uma
glória de mandar como amos e o interesse da preguiça, que os oculta os perigos que os rodeiam,
terão preferência sobre qualquer outro interesse; e todos os governos, como a história o confirma,
tenderão sempre ao despotismo.” (HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del Espíritu p. 376-7.). O
verdadeiro interesse dos príncipes é manter seu reino sempre em destaque; e para isso é necessário
governar com a razão. Acrescente-se, ainda, que está mais ou menos implícito, neste trecho citado,
que o poder arbitrário (ou despótico) não é definido como aquele que está concentrado nas mãos do
soberano, mas sim como aquele que é exercido sem obediência à razão. Este é o poder ilegítimo.
Para que não reste dúvidas quanto a isso, vejamos: “Inclusive entre os antigos persas, os mais vis e
covardes de todos os povos, estava permitido aos filósofos encarregados de consagrar os príncipes
repetir-lhes estas palavras no dia de sua coroação: ‘Saiba, oh rei!, que tua autoridade deixará de ser
legítima no dia em que deixar de fazer felizes os persas’. Verdade que parecia ter penetrado em
Trajano quando, ao ser elevado ao império, e quando, segundo o costume, para entrega de uma
espada ao prefeito do pretório, lhe disse: ‘Recebam de minhas mãos esta espada e sirvam-se dela,
seja para defender-me como príncipe justo, seja para castigar-me como tirano.” (HELVÉTIUS,
Claude-Adrien. Del Espíritu... p. 376.).
248
Veja-se a nota anterior.
175
política fundada nos princípios que propunha. É difícil determinarmos exatamente o que se
passava em sua cabeça quando o assunto são as estratégias para lidar com os embates
políticos quotidianos, mas certamente não estava em seus planos uma revolução que
colocasse a baixo a ordem estamental juntamente com a monarquia e instituísse uma
república democrática. Um governo monárquico que gradativamente fosse aproximando a
nação daquele modelo político elaborado em Do Espírito até alcançá-lo totalmente talvez
lhe parecesse não apenas possível como também a melhor forma de o implementar.
Em Helvétius podemos ver se desenhando um projeto de um tipo
específico de absolutismo, um absolutismo que suplanta os poderes intermediários,
portadores de ignóbeis interesses, e maximiza seu poder para governar racionalmente a
nação. Um absolutismo, portanto, que se faz parceiro das Luzes, que governa com elas e
que usa seu poder para difundi-las por toda a sociedade. Um absolutismo que reforma a
sociedade, reorganizando-a segundo princípios que sejam capazes de criar cidadãos
virtuosos e ampliar ao máximo a felicidade de todos. Para levar a cabo esta empreitada,
Helvétius oferecia ao soberano toda aquela ciência do espírito contida em sua principal
obra, que ensina como se deve legislar sabiamente e aperfeiçoar, por meio da legislação, a
sociedade. Assim, o projeto de sociedade elaborado em Do Espírito, que evidentemente não
poderia, no curto prazo, ser implementado, na França, em toda a sua plenitude, deveria
servir, entretanto, como um manual prático destinado a orientar o soberano na realização de
reformas destinadas ao aperfeiçoamento da sociedade.
249
Este projeto de um absolutismo
que governa segundo princípios filosóficos pode, certamente, ser chamado absolutismo
esclarecido.
249
De tal forma discordamos profundamente do que diz Tarello sobre Helvétius: “Si tratta, come è
evidente, di una dottrina del diritto completamente irrelata alle condizioni e alle immediate
prospettive di sviluppo dell’organizzazione giuridica francese, nei confronti della quale esprime –
ed è, con quella di Morelly, la prima espressione in senso conologico – un atteggiamento di rifiuto
integrale e senza possibilità di compromesso; una dottrina, in altre parole, fortemente utopistica e
atta ad utilizzazioni istituzionali solo dopo una vera e propria ‘distruzione’ dell’ordine esistente.”
(TARELLO, Giovanni. Storia della cultura giuridica moderna: assolutismo e codificazione del
diritto. Bologna: Società editrice il Mulino, 1999.). Acreditamos, ao contrário, que a doutrina
expressa por Helvétius diz respeito à possibilidade de um desenvolvimento das instituições políticas
francesas, em geral (e, portanto, não somente das jurídicas), que se baseava em uma aliança, tida
pelo autor como possível, entre o soberano e os setores sociais progressistas, que progredisse
paulatinamente, através de reformas, e que, portanto, não pressupunha, como ponto de partida,
qualquer derrubada violenta das instituições então existentes e nem manifestava qualquer tipo de
intransigência utopística.
176
SEÇÃO II – O utilitarismo de Helvétius em Dei Delitti e delle Pene
Em face do que vimos até aqui, fica claro que, de todos os autores da
filosofia política moderna, foi Helvétius aquele que mais influência exerceu sobre Beccaria.
Na verdade, quase todos os pontos de Dei Delitti e delle Pene são uma aplicação ao estudo
do direito penal dos princípios utilitaristas elaborados por Helvétius no âmbito da análise
política.
250
À influência de Helvétius soma-se, ainda, a de Montesquieu. Como admite o
próprio Beccaria na Introdução de sua obra, ele seguiu as pegadas de Montesquieu. Mas,
acompanhado a advertência que ele próprio faz na seqüência, é necessário saber distinguir
entre seus passos e os do filósofo francês.
251
Na verdade, toda a influência de Montesquieu
refere-se exclusivamente à teoria das penas. Em O Espírito das Leis, Montesquieu havia
iniciado uma racionalização da repressão penal, estabelecendo o princípio da legalidade,
elegendo a prevenção do crime como a principal meta do direito penal, defendendo a
mitigação das penas (sob o argumento de que não é a sua severidade que desvia os homens
da prática dos crimes, mas a certeza da punição), condenando a tortura, defendendo a
necessidade de uma relação de proporcionalidade entre as penas e os delitos. Tudo isso,
como sabem os leitores de Beccaria, está presente em Dei Delitti e delle Pene.
Na própria teoria das penas há, entretanto, uma importante diferença
entre os dois, relativa à questão da graça do rei, que é a chave para se compreender muitos
das diferenças entre os posicionamentos políticos de ambos. Na verdade, a postura
antinobiliárquica, que era um dos pontos principais dos autores do círculo do Il Caffè, iria
se encaixar perfeitamente com as idéias de Helvétius que, como vimos, já tinha tecido
250
ZARONE, Giuseppe. Etica e politica nell’utilitarismo...
251
Vejamos o que diz Beccaria: “L’immortale Presidente di Montesquieu ha rapidamente scorso su
di questa materia. L’indivisibile verità mi ha forzato a seguire le tracce luminose di questo
grand’uomo, ma gli uomini pensatori, pe’ quali scrivo, sapranno distinguere i miei passi dai suoi.”
(BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 10.). As palavras de nosso autor não nos deixam dúvidas. A
matéria que segundo ele foi objeto de uma rápida abordagem por parte de Montesquieu é,
evidentemente, a questão penal. Ele se refere ao Livro Sexto de O Espírito das Leis. É claro que a
filiação de Beccaria às idéias de Montesquieu dizem respeito apenas a essa parte. A advertência que
segue deixa-nos bem claro que Beccaria, apesar disso, busca trilhar, no cômputo geral, rumos
próprios.
177
ácidas críticas a Montesquieu. Assim a influência maciça de idéias helvetianas em Beccaria
e o posicionamento político de seu grupo em relação aos poderes estamentais de Milão
levá-lo-ia, apesar da admiração às idéias penais de Montesquieu, a adotar uma atitude
crítica em face do conjunto de sua obra.
252
Feitas essas considerações, tentaremos visualizar mais
pormenorizadamente a presença das idéias helvetianas em Dei Delitti e delle Pene. Para
tanto, procuraremos reconstruir toda a arquitetura teórica da obra ao mesmo tempo que
traçamos as comparações entre ela e a filosofia de Helvétius. Como vimos, a filosofia
política exposta em Do Espírito parte daquele raciocínio contratualista da tradição inglesa
em que o sujeito pressuposto realiza a passagem para o estado social buscando unicamente
maximizar vantagens pessoais. Já ressaltamos a semelhança, quanto a este ponto, entre
Beccaria e Helvétius. Na análise desse sujeito pré-suposto do contrato societário, um sujeito
individualista que age movido apenas pelo desejo de gratificação e que, buscando proteger
seus bens, faz o pacto político e constrói a sociedade, Helvétius realiza um aprofundamento
psicológico. Esse aprofundamento psicológico, como vimos, foi possibilitado pelos
avanços que, no âmbito da teoria do conhecimento empirista, vinham sendo realizado por
alguns de seus contemporâneos franceses.
De tal forma, na busca pela compreensão da dinâmica das paixões
humanas, Helvétius parte da crítica ao inatismo realizada pelo empirismo sensualista e
conclui que as idéias, os juízos e as emoções dos indivíduos não passam de transformações
de suas sensações. Como estas são causadas pelas impressões fornecidas pelos objetos
externos, o sujeito, portanto, transforma-se, nessa análise, em um produto do meio-
ambiente em que ele se desenvolveu, ou da educação que recebeu, se se preferir,
252
A contraposição a Montesquieu feita por Beccaria em Dei Delitti e delle Pene é percebida
também por Alberto Burgio, que menciona a inevitabilidade de um “acerto de contas” entre os dois
e, talvez com algum exagero, a presença, em toda a trama da obra do patrício italiano, do confronto
entre ambos. Segundo esse autor, “A questo punto si comprende come per Beccaria sia inevitabile
la ‘resa dei conti’ con Montesquieu, somma autorità nel campo della discussione filosofica su leggi
e diritti e massimo sostenitore di una concezione moderata della politica nella quale il rifiuto
pregiudiziale del mutamento nutre l’apologia dell’ordine feudale e della struttura poliarchica degli
Stati. È un confronto che attraversa l’intera trama dei Delitti, coinvolgendo via via l’immagine
dell’ordine sociale legittimo, il metodo politico idoneo a promuoverlo e a conservarlo, i temi
specifici del diritto penale e delle garanzie giuridiche individuali.” (BURGIO, Alberto. L’idea di
eguaglianza tra diritto e politica nel ‘Dei delitti e delle pene’. In FERRONE, Vincenzo e
FRANCIONI, Gianni. (org.). Cesare Beccaria: La pratica dei lumi. Atti del Convegno.Firenze: Leo
S. Olschki Editore, 2000, p. 90.).
178
considerando, evidentemente, que educação para ele inclui todos os acasos que causam
impressão sensível no sujeito. As impressões sensíveis causadas no sujeito pelos objetos
externos provocam sensações que, antes de qualquer coisa, são sensações de prazer ou de
desprazer (dor). Essas sensações causam reações por parte dos sujeitos que tendem sempre
a evitar a dor e a buscar o prazer. O princípio prazer/dor passa, assim, a comandar todos os
fenômenos do funcionamento psíquico. A partir de agora, a dinâmica psíquica será um
produto da ação do desejo e das paixões engendradas por ele. Conseqüentemente, na visão
de Helvétius o ser humano, a partir da busca pelo prazer e da fuga da dor, responde
mecanicamente aos estímulos externos. A causalidade física assume, assim, a primazia em
seu sistema de psicologia. De tal maneira, as ciências que dizem respeito ao homem, a
moral e a política, podem ser tratadas assim como se trata a física (na versão de Newton).
Podemos dizer que a moral e a política se fisicalizam.
Da mesma maneira, Beccaria entende que os fenômenos psicológicos do
ser humano derivam exclusivamente das impressões sensíveis que o sujeito experimenta.
253
Por conseguinte, Beccaria, seguindo rigorosamente as conseqüências desta idéia, é levado a
desenvolver uma visão mecanicista de ser humano em que, tal como vimos em Helvétius, a
causalidade física dos sentimentos é a base da psicologia e, portanto, das ações humanas.
Segundo ele:
Não há propriamente, no homem, nenhum sentimento supérfluo; este é
sempre proporcional ao resultado das impressões exercidas sobre os
sentidos.
254
Esse raciocínio aparece em uma parte em que Beccaria trata da questão
das testemunhas. Segundo ele, a credibilidade de uma testemunha é tanto menor quanto
mais inverossímil for a acusação. Assim quando alguém é acusado de praticar uma ação
gratuitamente cruel, a credibilidade de uma testemunha de acusação reduz-se
consideravelmente porque não é concebível um sentimento e, conseqüentemente, uma ação
humana que não tenha sido causada, pela impressão sensível causada por um objeto, o que
253
ZARONE, Giuseppe. Etica e politica nell’utilitarismo...; BIAGINI, Enza. Introduzioe a
Beccaria. Roma-Bari: Editori Laterza, 1992.
254
“Non v’è propriamente alcun sentimento superfluo nell’uomo; egli è sempre proporzionale al
risultato delle impressioni fatte su i sensi.” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti e delle Pene. Consulte
Criminali. Itália: Garzanti Editore, 1987, p. 31.).
179
significa dizer que não há ação que não tenha sido causa mecanicamente, pela ação do
princípio prazer/dor.
255
De qualquer maneira, o que devemos fixar é que, em Beccaria, tal
como em Helvétius, o princípio da ação humana é a busca do prazer e a fuga da dor e este
princípio atua no ser humano de forma mecânica, sendo possível, portanto, estudá-lo tal
qual um fenômeno da física. Ao longo de todo o texto de Dei Delitti e delle Pene aparecem
comparações entre fenômenos físicos e psicológicos que, em um primeiro momento,
poderiam parecer tratarem-se de meras analogias, mas que na realidade, refletem a postura
de nosso autor quanto à caracterização das ciências morais e políticas.
Se o prazer e a dor são a força motora dos seres sensíveis, se entre os
motivos que impelem os homens às ações mais sublimes foram
colocados pelo Legislador invisível o prêmio e o castigo, a distribuição
desigual destes produzirá a contradição, tanto menos evidente quanto
mais é comum, de que as penas punem os delitos que fizeram nascer.
256
Da mesma forma como acontece em Helvétius (e no conjunto dos
materialistas franceses) a concepção mecanicista que se cria do ser humano, graças à
radicalização sensualista do empirismo, permite que se fisicalize as ciências humanas, isto
é, que se passe a tratar as ciências humanas de forma análoga àquela com que se trata as
relações mecânicas dos seres inanimados. A razão disso é que o princípio prazer/dor atuaria
nos seres humanos do mesmo jeito que o princípio da gravitação universal atua nos astros
celestes. E para não deixar nenhuma dúvida quanto a isto, Beccaria afirma ainda o seguinte:
255
Vale a pena transcrever integralmente a passagem: “La credibilità di un testimonio diviene tanto
sensibilmente minore quanto più cresce l’atrocità di un delitto o l’inverisimiglianza delle
circostanze; tali sono per esempio la magia e le azioni gratuitamente crudeli. Egli è più probabile
che più uomini mentiscano nella prima accusa, perché è più facile che si combini in più uomini o
l’illusione dell’ignoranza o l’odio persecutore di quello che un uomo eserciti una potestà che Dio o
non ha dato, o ha tolto ad ogni essere creato. Parimente nella seconda, perché l’uomo non è crudele
che a proporzione del proprio interesse, dell’odio o del timore concepito. Non v’è propriamente
alcun sentimento superfluo nell’uomo; egli è sempre proporzionale al risultato delle impressioni
fatte su i sensi.” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 31.). ZARONE, Giuseppe. Etica e politica
nell’utilitarismo...
256
“Se il piacere e il dolore sono i motori degli esseri sensibili, se tra i motivi che spingono gli
uomini anche alle più sublimi operazioni, furono destinati dall’invisibile legislatore il premio e la
pena, dalla inesatta distribuzione di queste ne nascerá quella tanto meno osservata contradizione,
quanto più comune, che le pene puniscano i delitti che hanno fatto nascere.” (BECCARIA, Cesare.
Dei Delitti... p. 20.).
180
Não é possível reduzir a turbulenta atividade dos homens a uma ordem
geométrica sem irregularidade e confusão. Assim como as leis da
natureza, constantes e simplíssimas, não impedem que os planetas
sofram perturbações em seus movimentos, assim também nas atrações
infinitas e muito opostas do prazer e da dor as leis humanas não podem
impedir as perturbações e a desordem.
257
Em Helvétius, a paixão guia o homem seguindo um rígido nexo de
causalidade. Acompanhamos seus esforços para provar que a superioridade de espírito de
um homem com relação a qualquer outro nunca pode ser determinado a partir de diferenças
em sua constituição, o que poderia conduzir à fundamentação de uma suposta desigualdade
natural entre eles. Em Helvétius, toda a constituição do espírito é devida às influências do
meio sobre ele. Isso abriria a possibilidade para que as condições do meio ambiente natural,
desde logo, o clima e a localização geográfica exerçam influência sobre o espírito,
moldando assim a sua constituição. Mas Do Espírito é, além de tudo, uma tentativa de
refutar Montesquieu, cuja teoria da influência dos climas sobre o temperamento humano e,
conseqüentemente, sobre o governo é um de seus traços mais característicos. Montesquieu
criava, assim, uma limitação à atividade reformadora, estabelecendo a indisponibilidade de
certas instituições perante as condições naturais. Helvétius, não nega que as condições
ambientais naturais possam ter alguma influência sobre o espírito. Todavia, no estágio atual
da civilização, as condições ambientais em que o indivíduo se desenvolve são muito mais
sociais que naturais, decorrem muito mais da organização política que da natureza. Assim é
do governo que depende o espírito.
257
“Non è possibile il ridurre la turbulenta attività degli uomini ad un ordine geometrico senza
irregolarità e confusione. Come le costanti e semplicissime leggi della natura non impediscono che i
pianeti non si turbino nei loro movimenti, così nelle infinite ed oppostissime attrazioni del pieacere
e del dolore, non possono impedirsene dalle leggi umane i turbamenti ed il disordine.”
(BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 90). Ainda segundo Beccaria: “Le azioni morali, come le
fisiche, hanno la loro sfera limitata di attività e sono diversamente circonscritte, come tutti i
movimenti di natura, dal tempo e dallo spazio;” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 23). Embora
sem implicações realmente importantes a equiparação do princípio prazer/dor com o princípio da
gravitação universal aparece, também, neste trecho em que Beccaria trata das causas do crime de
adultério: “L’adulterio è un delitto che, considerato politicamente, ha la sua forza e la sua direzione
da due cagioni: le leggi variabili degli uomini e quella fortissima attrazione che spinge l’un sesso
verso l’altro; simile in molti casi alla gravità motrice dell’universo, perché come essa diminuisce
colle distanze, e se l’una modifica tutt’i movimenti de’ corpi, così l’altra quasi tutti quelli
dell’animo, finché dura il di lei periodo; dissimile in questo, che la gravità si mette in equilibrio
cogli ostacoli, ma quella per lo più prende forza e vigore col crescere degli ostacoli medesimi.
(BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... , p. 72.).
181
A organização política torna-se a questão central e a causa principal das
ações humanas. É a ela que se deve o surgimento de indivíduos virtuosos ou criminosos.
Como essa organização política é um produto social, portanto, um produto humano, é
possível guiar racionalmente os efeitos que a paixão exerce, é possível moldar os espíritos.
O Legislador, portanto, pode forjar através das leis a arquitetura política que leve os
cidadãos a serem virtuosos.
258
Em Beccaria, da mesma forma, as paixões engendradas pelas sensações de
prazer e de dor, que por sua vez são provocadas pelas impressões sensíveis, são uma
espécie de motor das ações humanas, um motor que pode ser direcionado racionalmente
através da manipulação justamente daquelas condições ambientais que afetam a
sensibilidade dos seres humanos.
259
Assim como Helvétius, ele vê nas leis e na organização
política em geral a forma de se mudar as condições ambientais do indivíduo e, assim,
manipulando os elementos que agem sobre a sua sensibilidade, agir sobre o princípio motor
do ser humano, ou seja, o princípio prazer/dor de forma a conduzir a ação humana para o
bem, desviando os indivíduos do crime e moldando cidadãos virtuosos. Dentro da lógica
deste raciocínio, a política e a moral, e assim também a legislação e o direito em geral, não
são a arte de se opor à paixão sufocando-a, mas sim a arte de guiá-la rumo ao bem comum.
Nas palavras de Beccaria:
258
O fato de a paixão ser considerada o motor de todas as ações humanas significa que ela não é
vista apenas de forma negativa, ou seja, como contrária à razão e, portanto, ao bem. Se ela é o
motor de todas as ações humanas ela deve ser necessariamente o motor também das boas ações, das
ações virtuosas. Assim, se os grandes delitos supõem paixões fortes, também os grandes atos de
heroísmo e de virtude precisam ser causadas por uma paixão intensa. Nas palavras de Helvétius:
“[...]só as grandes paixões podem criar os grandes homens.” (HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del
Espiritu... , p. 321.). Ou ainda: “É portanto às paixões fortes que se devem a invenção e as
maravilhas das artes; deve-se considerá-las, pois, como o germe produtor do espírito e o motor
poderoso que leva os homens às grandes ações.” (HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del Espiritu... , p.
316.). Beccaria, de forma bastante parecida, diz que: “Manca nella maggior parte degli uomini quel
vigore necessario egualmene per i grandi delitti che per le grandi virtù, per cui pare che gli uni
vadan sempre contemporanei colle altre in quelle nazioni che più si sostengono per l’attività del
governo e delle passioni cospiranti al pubblico bene che per la massa loro o la costante bontà delle
leggi. In queste le passioni indebolite sembran più atte a mantenere che a migliorare la forma di
governo. Da ciò si cava una conseguenza importante, che non sempre in una nazione i grandi delitti
provano il suo deperimento.” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... , p. 71.).
259
ZARONE, Giuseppe. Etica e politica nell’utilitarismo...; BIAGINI, Enza. Introduzioe a
Beccaria. Roma-Bari: Editori Laterza, 1992.
182
Consultemos o coração humano e nele encontraremos os princípios
fundamentais do verdadeiro direito do soberano de punir os delitos, já
que não é de esperar nenhuma vantagem duradoura da política moral se
ela não se alicerçar nos sentimentos indeléveis do homem. Qualquer lei
que deles se desvie encontrará sempre uma resistência contrária que
acabará vencendo, da mesma forma que uma força, por menor que seja,
mas aplicada continuamente, vencerá qualquer movimento transmitido
com violência a um corpo.
260
O Legislador, portanto, deve agir como um arquiteto, planejando, através
das leis, a estrutura política que tanto poder tem sobre a sensibilidade humana e,
conseqüentemente, sobre seus desejos e suas paixões, de forma que as tendências naturais
do ser humano, que se originam em sua sensibilidade, seja conduzidas para o bem
comum.
261
Assim a tendência natural do ser humano, aquela força semelhante à gravidade,
que faz com que ele busque sempre o bem-estar, aquela eterna ânsia pelo prazer e aquela
eterna fuga da dor (o princípio da gravitação universal dos seres orgânicos) são a causa
propulsora das ações humanas e reduzem-se, no limite, à própria sensibilidade inseparável
do homem. As penas, ou os obstáculos políticos, não devem ter como objetivo a
aniquilação deste motor, mas apenas o direcionamento de sua força, o uso dela em
benefício da solidez do edifício político. Em outras palavras o Legislador não deve tentar,
com as penas, mortificada asceticamente as tendências da sensibilidade humana, mas
manobrá-las, através dos instrumentos que dispõe, fazendo com elas, ao invés de
conspirarem contra a sociedade, antes a fortaleçam.
Essa força semelhante à gravidade, que nos impele ao bem-estar, só
pode ser contida na medida dos obstáculos que se lhe opõem. Os
efeitos dessa força são a série confusa das ações humanas: se elas se
entrechocam e se ferem, as penas, a que eu chamaria obstáculos
políticos impedem seu efeito nocivo sem destruir a causa propulsora
que é a própria sensibilidade inseparável do homem; e o legislador age
como o hábil arquiteto cujo ofício é opor-se às diretrizes destrutivas da
260
“Consultiamo il cuore umano e in esso troveremo i principii fondamentali del vero diritto del
sovrano di punire i delitti, poiché non è da sperarsi alcun vantaggio durevole dalla politica morale
se ella non sia fondata su i sentimenti indelebili dell’uomo. Qualunque legge devii da questi
incontrerà sempre una resistenza contraria che vince alla fine, in quella maniera che una forza
benché minima, se sia continuamente applicata, vince qualunque violento moto comunicato ad un
corpo.” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... , p. 11-12.).
261
ZARONE, Giuseppe. Etica e politica nell’utilitarismo...
183
gravidade e fazer colaborar aquelas que contribuem para a solidez do
edifício.
262
Como em Helvétius, para Beccaria a política é a forma de se fazer com
que as paixões humanas, que se baseiam na busca pelo bem-estar físico inerente aos seres
sensíveis, sejam dirigidas da melhor forma possível. Afirma ele categoricamente que a
política é a arte de melhor dirigir e fazer cooperar os sentimentos imutáveis dos homens.
263
Este “melhor dirigir” deve ser compreendido de duas formas: como “dirigir da forma mais
hábil” levando-se em consideração as intrincadas formas em que se estrutura e em que age
o princípio prazer/dor no espírito humano; e como “dirigir para o melhor”, entendendo-se
como “melhor” o “bem”.
Resta, porém, indefinida a questão de o que é o “bem”. A ruptura com
qualquer postura metafísica e a radicalização sensualista do empirismo de Helvétius não
deixou possibilidade para se erigir nada como bom em si mesmo sem ser a própria
felicidade, cuja base era justamente o prazer sensível. Assim a meta da ação, sob o ponto de
vista moral, passa a ser a maximização do prazer sensível. Surge, portanto, uma ética
eudemonista, porque, o bem é identificado com a felicidade, e hedonista, porque esta é
identificada com o prazer sensível.
264
Podemos dizer que a Ética e absorvida na Estética (no
sentido de uma teoria da sensibilidade). Evidentemente, esse bem não pode ser identificado
apenas com o prazer sensível individual, ou melhor, com o interesse individual que,
orientado para o bem-estar particular, desconsidere e afronte o interesse dos outros
membros da sociedade. O “bem” é, sobretudo, o “Bem Comum” que nasce da fusão dos
diversos interesses individuais que buscam o bem-estar. Disto decorre, para nossos dois
262
“Quella forza simile alla gravità, che ci spinge al nostro ben essere, non si trattiene che a misura
degli ostacoli che gli sono opposti. Gli effetti di questa forza sono la confusa serie delle azioni
umane: se queste si urtano scambievolmente e si offendono, le pene, che io chiamerei ostacoli
politici, ne impediscono il cattivo effetto senza distruggere la causa impellente, che è la sensibilità
medesima inseparabile dall’uomo, e il legislatore fa come l’abile architetto di cui l’officio è di
opporsi alle direzioni rovinose della gravità e di far conspirare quelle che contribuiscono alla forza
dell’edificio.” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 19.)
263
“Ecco la maniera di non confondere i rapporti e la natura invariabile delle cose, che non essendo
limitata dal tempo ed operando incessantemente, confonde e svolge tutti i limitati regolamenti che
da lei si scostano. Non sono le sole arti di gusto e di piacere che hanno per principio universale
l’imitazione fedele della natura, ma la politica istessa, almeno la vera e la durevole, è soggetta a
questa massima generale, poiché ella non è altro che l’arte di meglio dirigere e di rendere
conspiranti i sentimenti immutabili degli uomini.” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 52.).
264
ZARONE, Giuseppe. Etica e politica nell’utilitarismo...
184
autores, em primeiro lugar, que a virtude não é entendida como o sacrifício, por parte do
indivíduo, de seus prazeres, seus hábitos e suas paixões ao interesse público e sim como a
coincidência entre o interesse público e o individual; em segundo lugar, que a estrutura
política é vista como sendo fundamentalmente narcisística. Vimos acima as palavras de
Helvétius, que vale repetir:
O homem virtuoso não é, pois, aquele que sacrifica seus prazeres,
seus hábitos e as mais fortes paixões ao interesse público, pois um
homem assim é impossível, mas aquele cuja paixão mais forte está de
tal modo conforme ao interesse geral que ele é quase sempre
impelido para a virtude.
265
O raciocínio de Helvétius é acompanhado por Beccaria. Seguindo essa
lógica, ele coloca no amor-de-si, ou seja, no interesse individual, a base fundadora das
formações políticas.
Nenhum homem entregou gratuitamente parte da própria liberdade
visando ao bem comum; essa quimera só existe nos romances. Se
fosse possível, cada um de nós desejaria que os pactos que vinculam
os outros não nos vinculassem; cada homem faz de si o centro de
todas as combinações do globo.
266
Desta maneira, o justo é o que contempla e articula da melhor forma
possível os diversos interesses individuais.
267
O interesse comum não é mais que a síntese
265
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Do Espírito... p. 368.
266
“Nessun uomo ha fatto il dono gratuito di parte della propria libertà in vista del ben pubblico;
questa chimera non esiste che ne’ romanzi; se fosse possibile, ciascuno di noi vorrebbe che i patti
che legano gli altri, non ci legassero; ogni uomo si fa centro di tutte le combinazioni del globo”
(BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 12.). As mesmas idéias são encontradas em Helvétius de
forma bastante enfática: “É preciso, com uma mão audaz, quebrar o talismã de imbecilidade a que
se vincula o poder desses gênios malfeitores; apontar às nações os verdadeiros princípios da moral:
mostrar-lhes que, insensivelmente arrastados à felicidade aparente ou real, a dor e o prazer são os
únicos motores do universo moral e que o sentimento do amor de si é a única base sobre que se
pode lançar os fundamentos de uma moral útil.” (HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del Espiritu... p.
254.). Ou ainda neste trecho: “É, portanto, unicamente por boas leis que se pode formar homens
virtuosos. Toda a arte do legislador consiste, pois, em forçar os homens, pelo sentimento do amor
de si mesmos, a serem sempre justos uns em relação aos outros.” (HELVÉTIUS, Claude-Adrien.
Del Espiritu... p. 258.).
267
Segundo Beccaria: “E per giustizia io non intendo altro che il vincolo necessario per tenere uniti
gl’interessi particolari, che senz’esso si scioglierebbono nell’antico stato d’insociabilità; tutte le
pene che oltrepassano la necessità di conservare questo vincolo sono ingiuste di lor natura.
185
dos interesses privados.
268
Portanto, se, como diz Helvétius, o homem virtuoso é aquele
cuja paixão mais forte está conforme o interesse geral, a arquitetura política deve ter como
base de ação o amor próprio de cada um e colocar esse amor próprio de cada um em
sintonia com o amor próprio de todos os outros. Beccaria formula esta conclusão de forma
a não deixar dúvidas:
Que as leis sejam, pois, inexoráveis e inexoráveis sejam também seus
executores nos casos particulares, mas que o legislador seja brando,
humano e indulgente. Sábio arquiteto, erga ele seu edifício sobre uma
base de amor próprio e seja interesse geral resultado dos interesses de
cada um;
269
Se a virtude e a justiça, em Helvétius e em Beccaria, não é entendida como
o sacrifício, por parte do indivíduo, de seus prazeres, seus hábitos e suas paixões ao
interesse público e sim como a coincidência entre o interesse público e o individual, ou
seja, como a síntese entre os diversos interesses privados, pode-se indagar sobre qual
regime político, assentando-se sobre a fusão destes interesses privados, teria a vantagem de
(BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... , p. 12-3.). Ou ainda: “La sola necessità ha fatto nascere
dall’urto delle passioni e dalle opposizioni degl’interessi l’idea della utilità comune, che è la base
della giustizia umana;”(BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 21-2.).
268
Segundo Beccaria: “Quali sono le vere e le più utili leggi? Quei patti e quelle condizioni che tutti
vorrebbero osservate e proporre, mentre tace la voce sempre ascoltata dell’interesse privato o si
combina con quello del pubblico.” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 64.). Ou ainda:
“Finalmente è falsa idea d’utilità quella che, sacrificando la cosa al nome, divide il ben pubblico dal
bene di tutt’i particolari.” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 89.).
269
“Siano dunque inesorabili le leggi, inesorabili gli esecutori di esse nei casi particolari, ma sia
dolce, indulgente, umano il legislatore. Saggio architetto, faccia sorgere il suo edificio sulla base
dell’amor proprio, e l’interesse generale sia il risultato degl’interessi di ciascuno, e non sarà
costretto con leggi parziali e con rimedi tumultuosi a separare ad ogni momento il ben pubblico dal
bene de’ particolari, e ad alzare il simulacro della salute pubblica sul timore e sulla diffidenza.”
(BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 96.). Helvétius colocava sobre os ombros do Legislador a
responsabilidade de inspirar nos homens o amor pela virtude: “Se o prazer é o único objeto da
procura dos homens, para inspirar-lhes o amor pela virtude basta imitar a natureza: o prazer anuncia
as vontades dela, a dor, suas proibições; e o homem obedece-lhe docilmente. Armado do mesmo
poder, porque o legislador não produziria os mesmos efeitos?” (HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del
Espirito... p. 369.). Seguindo as pegadas de Helvétius, Beccaria afirma a legislação como meio
eficiente de desviar os homens do crime e premiar a virtude: “Un altro mezzo di prevenire i delitti è
quello di ricompensare la virtù. Su di questo proposito osservo un silenzio universale nelle leggi di
tutte le nazioni del dì d’oggi. Se i premi proposti dalle accademie ai discuopritori delle utili veri
hanno moltiplicato e le cognizioni e i buoni libri, perché non i premi distribuiti dalla benefica mano
del sovrano non moltiplicherebbeno altresì le azioni virtuose? La moneta dell’onore è sempre
inesausta e fruttifera nelle mani del saggio distributore.” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 95.).
186
unir, mais que qualquer outro, o interesse do cidadão privado com o interesse comum ou
geral. Vimos anteriormente que Helvétius, recorrendo a exemplos históricos, procura
demonstrar que são os regimes republicanos, como os que existiram na história grega e
romana, a organização política que mais favorece o surgimento de cidadãos virtuosos. O
despotismo, ao contrário, tende a produzir pessoas medíocres. E para que suas idéias
fiquem mais claras, Helvétius apresenta uma outra exemplificação mais próxima da sua
realidade: a comparação entre a França e a Inglaterra, onde a França é descrita como o
“reino da puerilidade”
270
e a Inglaterra como a nação que, graças à sua forma de governo e
às liberdades daí oriundas, produziu cidadãos imbuídos de espírito de patriotismo e
magnanimidade.
Beccaria compartilha com Helvétius entusiasticamente de ideais
republicanos e vê na república a forma de governo mais apta a formar cidadãos virtuosos e
corajosos na medida em que consegue fazer com que os indivíduos sirvam às leis buscando
apenas o seu interesse pessoal, o que implica em que este interesse pessoal esteja conforme
o interesse geral. Discutindo as teses que entendiam a república como uma união de
famílias e as que a entendiam como uma união de indivíduos, ele deixa claro que o espírito
da monarquia é igual ao espírito de família e que, portanto, uma república concebida como
união de famílias seria, na verdade, uma união de pequenas monarquias. Tentemos, agora,
acompanham o raciocínio de Beccaria. Deslindando aquela aversão que os jovens redatores
do Il Caffè tinham pelo caráter autoritário da instituição familiar de sua época, Beccaria
afirma que na republica concebida com uma união de famílias, apenas os chefes de cada
uma delas seriam realmente livres. Assim nessa união haveria sim uma república, mas que
seria composta apenas por esses homens livres (os chefes familiares). No interior de cada
uma daquelas famílias que compõem a união teríamos, ao contrário, pequenas monarquias,
onde todos aqueles submetidos ao poder patriarcal seriam escravos. De tal forma, o regime
monárquico é comparado à instituição familiar autoritária e está, por sua vez, a um regime
de escravidão. Os membros da república, assim, são cidadãos e os da monarquia, escravos.
No tratamento dessa questão temos um paralelo enorme com aquela discussão travada por
John Locke contra Robert Filmer. Um sistema político fundado na autonomia individual é
270
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del Espiritu... p. 246.
187
contrastado com um outro, baseado no poder tutorial de um sobre outros, inspirado na
instituição familiar.
Para Beccaria, o espírito monárquico é responsável pela dissolução da
idéia de bem comum e pela supremacia da particularização dos interesses privados
limitados aos detalhes imediatos, enquanto que o “espírito regulador das repúblicas”,
movido pelo sentimento de liberdade e igualdade, preocupa-se com os princípios gerais e
ordena os fatos segundo o interesse público. O espírito monárquico, equiparado ao espírito
de família, ensina aos homens a submissão e funciona pelo temor; nele os benefícios devem
necessariamente se limitar a um pequeno grupo e considera-se virtude o sacrifício do
indivíduo a ideais que nunca são o interesse geral. A república ensina a liberdade e a
coragem e ensina a buscar o interesse individual no geral; nela os benefícios devem
estender-se sobre todos os seus membros. Nas repúblicas os caminho da virtude é simples.
O espírito monárquico, ao contrário, envolve-o em tamanho emaranhado a ponto de ocultá-
lo completamente.
271
Sejam cem mil homens, isto é, vinte mil famílias de cinco pessoas
cada uma, incluído o chefe que a representa; se a associação for de
famílias, haverá vinte mil homens e oitenta mil escravos; se a
associação for de homens, haverá cem mil cidadãos e nenhum
escravo. No primeiro caso, haverá uma república e vinte mil
pequenas monarquias que a compõem; no segundo, o espírito
republicano não soprará apenas nas praças ou nas assembléias das
nações, mas também entre as paredes domésticas, onde reside grande
parte da felicidade ou da miséria dos homens. No primeiro caso,
como as leis e costumes são efeitos dos sentimentos habituais dos
membros da república, ou seja, dos chefes de família, o espírito
271
Segundo Beccaria: “Tali contradizioni fralle leggi di famiglia e la fondamentali della repubblica
sono una feconda sorgente di altre contradizioni fralla morale domestica e la pubblica, e però fanno
nascere un perpetuo conflitto nell’animo di ciascun uomo. La prima inspira soggezione e timore, la
seconda coraggio e libertà; quella insegna a ristringere la beneficenza ad un piccol numero di
persone senza spontanea scelta, questa a stenderla ad ogni classe di uomini; quella comanda un
continuo sacrificio di se stesso a un idolo vano, che si chiama bene di famiglia, che spesse volte non
è il bene d’alcuno che la compone; questa insegna di servire ai propri vantaggi senza offendere le
leggi, o eccita ad immolarsi alla patria col premio del fanatismo, che previene l’azione. Tali
contrasti fanno che gli uomini si sdegnino a seguire la virtù che trovano inviluppata e confusa, e in
quella lontananza che nasce dall’oscurità degli oggetti sì fisici che morali. Quante volte un uomo,
rivolgendosi alle sue azioni passate, resta attonito di trovarsi malonesto! A misura che la società si
moltiplica, ciascun membro diviene più piccola parte del tutto, e il sentimento repubblicano si
sminuisce proporzionalmente, se cura non è delle leggi di rinforzarlo.” ( BECCARIA, Cesare. Dei
Delitti... , pp. 55-56.).
188
monárquico introduzir-se-á paulatinamente na república mesma; e
seus efeitos só serão evitados pela oposição dos interesses
particulares, e não pelo sopro de um sentimento de liberdade e
igualdade. O espírito de família é um espírito de detalhes, limitado
aos pequenos fatos. Já o espírito regulador das repúblicas, senhor dos
princípios gerais, vê os fatos e os situa nas classes principais e
importantes para o bem da maioria.
272
Ao contrário do espírito republicano, para Beccaria o despotismo (que
segundo Helvétius propiciava o surgimento de homens medíocres) torna os homens
voluptuosos, libertinos e cruéis. A separação entre o interesse geral e os interesses privados
e a política do medo e do privilégio sobre a qual se estabelecem estes governos destroem os
verdadeiros ideais de virtude, baseados na igualdade e na liberdade dos indivíduos, a partir
dos quais constrói-se o aprimoramento do cidadão e faz com que a busca desarticulada do
interesse pessoal leve ao surgimento de todas as espécies de vício. O temor exclusivo das
leis elaboradas segundo o interesse geral torna os homens grandiosos; o temor de homem a
homem constrói criminosos.
273
272
“Vi siano cento mila uomini, o sia ventimila famiglie, ciascuna delle quali è composta di cinque
persone, compresovi il capo che la rappresenta: se l’associazione è fatta per le famiglie, vi saranno
ventimila uomini e ottanta mila schiavi; se l’associazione è di uomini, vi saranno cento mila
cittadini e nessuno schiavo. Nel primo caso vi sarà una repubblica, e ventimila piccole monarchie
che la compongono; nel secondo lo spirito repubblicano non solo spirerà nelle piazze e nelle
adunanze della nazione, ma anche nelle domestiche mura, dove sta gran parte della felicità o della
miseria degli uomini. Nel primo caso, come le leggi ed i costumi sono l’effetto dei sentimenti
abituali dei membri della repubblica, o sia dei capi della famiglia, lo spirito monarchico s’introdurrà
a poco a poco nella repubblica medesima; e i di lui effetti saranno frenati soltanto dagl’interessi
opposti di ciascuno, ma non già da un sentimento spirante libertà ed uguaglianza. Lo spirito di
famiglia è uno spirito di dettaglio e limitato a’ piccoli fatti. Lo spirito regolatore delle repubbliche,
padrone dei principii generali, vede i fatti e gli condensa nelle classi principali ed importanti al bene
della maggior parte.” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... , p. 54-5).
273
“Fate che le leggi favoriscono meno le classi degli uomini che gli uomini stessi. Fate che gli
uomini le temano, e temano esse sole. Il timor delle leggi è salutare, ma fatale e fecondo di delitti è
quello di uomo a uomo. Gli uomini schiavi sono più voluttuosi, più libertini, più crudeli degli
uomini liberi. Questi meditano sulle scienze, meditano sugl’interessi della nazione, veggono grandi
oggetti, e gl’imitano;” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 91.). A mesma admiração que
Helvétius expressava pela forma de governo da Inglaterra e pelas suas liberdades é expressa por
Beccaria no seguinte trecho em que trata da tortura: “Queste verità sono state conosciute dai romani
legislatori, presso i quali non trovasi usata alcuna tortura che su i soli schiavi, ai quali era tolta ogni
personalità; queste dall’Inghilterra, nazione in cui la gloria delle lettere, la superiorità del
commercio e delle ricchezze, e perciò della potenza, e gli esempi di virtù e di coraggio non ci
lasciano dubitare della bontà delle leggi.” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 40.).
189
Segundo Helvétius, entretanto, os regimes despóticos perduram. Qual seria
a razão disso? Em que se fundamenta a escravidão dos povos? Segundo ele, na ignorância.
É em cima da ignorância humana que se sustenta o poder daqueles que buscam estabelecer
leis contrárias ao interesse geral para atender a seu interesse particular. Estes, portanto, são
os inimigos da humanidade. Estes guardiões da ignorância, como vimos, são divididos por
Helvétius em duas classes, os fanáticos e os semi-políticos, e se identificam, em sua
descrição, com os estamentos privilegiados da França, o clero e a nobreza. Deve-se,
conseqüentemente, desmascarar esses protetores da ignorância e mostrar neles os inimigos
da humanidade. E se o despotismo tem como arma a ignorância das massas a arma da
emancipação humana deve ser o esclarecimento.
A relação entre ignorância e despotismo, de um lado, e esclarecimento e
liberdade, de outro, é reproduzida por Beccaria. A passagem das trevas da ignorância à luz
da filosofia implica na passagem da tirania à liberdade. Assim como em Helvétius, os erros
(a ignorância) são o fundamento do poder e dos privilégios de alguns poucos e a causa de
“males infinitos” à humanidade. A verdade e as luzes, ao contrário, são o meio de
emancipação da humanidade e, em especial, daqueles muitos fracos tiranizados pelos
guardiões das trevas da ignorância. Em uma típica periodização histórica iluminista feita a
partir da afirmação da razão no mundo, Beccaria discrimina duas épocas em que os erros
são danosos à humanidade, afirmando que:
A segunda consiste na passagem tão difícil quanto terrível dos erros à
verdade, das trevas desconhecidas à luz. O impacto imenso dos erros
úteis a poucos poderosos contra as verdades úteis a muitos fracos, a
aproximação e o crescimento das paixões, que despertam naquela
ocasião, causam males infinitos à mísera humanidade. Quem refletir
sobre as histórias, que após certos intervalos se assemelham em seus
períodos principais, encontrará não raras vezes uma geração inteira
sacrificada à felicidade daquelas que lhe sucedem na passagem,
lúgubre porém necessária, das trevas da ignorância à luz da filosofia
e, conseqüentemente, da tirania à liberdade.
274
274
“La seconda è nel difficile e terribil passaggio dagli errori alla verità, dall’oscurità non
conosciuta alla luce. L’urto immenso degli errori utili ai pochi potenti contro le verità utili ai molti
deboli, l’avvicinamento ed il fermento delle passioni, che si destano in quell’occasione, fanno
infiniti mali alla misera umanità. Chiunque riflette sulle storie, le quali dopo certi intervalli di tempo
si rassomigliano quanto all’epoche principali, vi troverà più volte una generazione intera sacrificata
alla felicità di quelle che le succedono nel luttuoso ma necessario passaggio dalle tenebre
190
Seguindo o tema a que se propôs, Beccaria enfatiza outro ponto
relacionado à questão da ignorância e do esclarecimento. A saber, que a superação da
ignorância pelas luzes não apenas liberta os homens da tirania, mas também previne os
delitos ao dissuadir os homens da prática do crime. Numa sociedade em que o interesse
geral é a síntese dos interesses privados e em que as leis são a perfeita expressão da vontade
individual expressa na vontade geral, a autonomia individual se completa com o pleno
conhecimento das leis e os cidadãos tornam-se seus guardiões e depositários. Este é,
segundo Beccaria, um dos mecanismos mais eficazes na prevenção dos delitos.
Vemos, com isso, o quanto é útil a imprensa ao fazer do público, e
não apenas de alguns poucos, o depositário das leis sagradas: e o
quanto se dissipou o espírito tenebroso de cabala e de intriga que
desaparece diante das luzes e das ciências, aparentemente
desprezadas por seus adeptos, mas na verdade temidas por eles. Essa
é a razão pela qual vemos diminuir na Europa a atrocidade dos
crimes que faziam gemer nossos ancestrais, os quais se tornavam
alternadamente tiranos e escravos.
275
Em Helvétius, o clero e a nobreza são os “cruéis inimigos da
humanidade”,
276
os guardiões da ignorância que, visando atender a seus interesses
particulares, são os responsáveis por leis contrárias ao bem geral e por uma estrutura social
que, baseada no privilégio, termina por premiar o vício e desestimular a virtude. A postura
dell’ignoranza alla luce della filosofia, e dalla tirannia alla libertà, che ne sono le conseguenze.
(BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 134.).
275
“Da ciò veggiamo quanto sia utile stampa, che rende il pubblico, e non alcuni pochi, depositario
delle sante leggi, e quanto abbia dissipato quello spirito tenebroso di cabala e d’intrigo che sparisce
in faccia ai lumi ed alle scienze apparetemente disprezzate e realmente temute dai seguaci di lui.
Questa è la cagione, per cui veggiamo sminuita in Europa l’atrocità de’ delitti che facevano gemere
gli antiche nostri padri, i quali diventavano a vicenda tiranni e schiavi.” (BECCARIA, Cesare. Dei
Delitti... p. 17-8.). A mesma idéia é expressa pelo Marquês em diversas passagens de sua obra,
como exemplo: “Volete prevenire i delitti? Fate che i lumi accompagnino la libertà. I mali che
nascono dalle cognizioni sono in ragione inversa della loro diffusione, e i beni lo sono nella diretta.”
(BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 91.). Ou ainda: “Finalmente il più sicuro ma più difficil
mezzo di prevenire i delitti si è di perfezionare l’educazione, oggetto troppo vasto e che eccede i
confini che mi sono prescritto [...]” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 95.). Se todos os cidadãos
são os guardiões das leis, então esta não só não pode ser obscura, como também não pode constituir
um conhecimento técnico especializado. Em função disto, Beccaria pode bradar que: “Felice quella
nazione dove le leggi non fossero una scienza!” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 33.).
276
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del Espiritu... p. 251
191
antinobiliárquicos que marca a obra de Helvétius é assumida também em Beccaria. Ao
tratar sobre as penas aplicáveis aos nobres, a maneira de colocar a questão nos deixa claro
com que espírito nosso autor percebe os privilégios estamentais.
Quais serão, pois, as penas aplicáveis aos delitos dos nobres, cujos
privilégio formam grande parte das leis das nações? Não examinarei
aqui se essa distinção hereditária entre nobres e plebeus é útil num
governo ou necessária numa monarquia; se é verdade que a nobreza
forma um poder intermediário que limita excessos dos dois extremos,
ou se antes ela forma uma casta, escrava de si mesma e de outrem,
que, como aqueles oásis amenos e fecundos que se destacam nos
vastos e arenosos desertos da Arábia, encerra toda a circulação de
crédito e esperança a um círculo estreitíssimo.
277
E a resposta à questão vem a confirmar nossa impressão:
Eu me limitarei às penas aplicáveis à nobreza, afirmando que elas
devem ser as mesmas para o primeiro e o último dos cidadãos. Toda
distinção nas honrarias ou nas riquezas, para ser legítima supõe uma
igualdade anterior fundada nas leis, que consideram todos os súditos
igualmente dependentes delas. Devemos admitir que os homens, que
renunciaram ao seu despotismo natural, tenham dito: que o mais
industrioso tenha as maiores honras e que sua fama resplandeça nos
seus sucessores; e quem é mais feliz ou mais honrado tenha maiores
aspirações, mas não tema, menos que os outros, violar aqueles
pactos por meio dos quais se elevou acima deles.
278
277
“Quali saranno dunque le pene dovute ai delitti dei nobili, i privilegi dei quali formano gran parte
delle leggi delle nazioni? Io qui non esaminerò se questa distinzione ereditaria tra nobili e plebei sia
utile in un governo o necessaria nella monarchia, se egli è vero che formi un potere intermedio, che
limiti gli eccessi dei due estremi, non piuttosto formi un ceto che, schiavo di se stesso e di altrui,
racchiude ogni circolazione di credito e di speranza in uno stretissimo cerchio, simile a quelle
feconde ed amene isolette che spiccano negli arenosi e vasti deserti d’Arabia [...]” (BECCARIA,
Cesare. Dei Delitti... p. 48.).
278
“Io mi ristringerò alle sole pene dovute a questo rango, asserendo che esser debbono le
medesime pel primo e per l’ultimo cittadino. Ogni distinzione sia negli onori sia nelle ricchezze
perché sia legittima suppone un’anteriore uguaglianza fondata sulle leggi, che connsiderano tutti i
sudditi come egualmente dipendenti da esse. Si deve supporre che gli uomini che hanno rinunziato
al naturale loro dispotismo abbiano detto: chi sarà più industrioso abbia maggiori onori, e la fama
di lui risplenda ne’ suoi successori; ma chi è più felice o più onorato speri di più, ma non tama
meno degli altri di violare quei patti coi quali è sopra gli altri sollevato. (BECCARIA, Cesare. Dei
Delitti... p. 48-9.) Esse trecho de Dei Delitti e delle Pene encaixa-se perfeitamente no sentido geral
da polêmica antinobiliárquica conduzida pelo conjunto da reflexão dos jovens escritores do Il Caffè.
A nobreza vem questionada sobretudo pelas deletérias conseqüências econômicas que seu modo de
192
Beccaria, por fim, afirma a disseminação das luzes e da liberdade como
um meio decisivo na prevenção dos delitos. O esclarecimento leva os homens a
fortalecerem as leis e apreciarem os pactos fundadores da sociedade, estabelecidos para o
bem comum e para a segurança de todos. A destruição da ignorância, a base do poder
daqueles que insistem em estabelecer leis contrárias ao bem comum para atenderem a seus
interesses individuais, faz tremer a “autoridade privada do usa da razão” e é o fundamento
sob o qual se estabelece a fusão de todos os interesses pessoais com o interesse geral e,
portanto, a própria força e perenidade das leis. Assim como em Helvétius, para Beccaria os
homens são mais estúpidos do que maus e esta é a verdadeira causa dos males da
humanidade. O esclarecimento é a arma privilegiada da emancipação humana e da
prevenção do crime.
Quereis prevenir os delitos? Fazei com que as luzes acompanhem a
liberdade. Os males nascidos dos conhecimentos estão na razão
inversa de sua difusão e os bens, na razão direta. Um impostor
audacioso, que nunca é um homem vulgar, é adorado por um povo
ignorante e vaiado por um povo esclarecido. Os conhecimentos, ao
facilitarem a comparação entre os objetos e ao multiplicar os pontos
de vista, contrapõem muitos sentimentos que se modificam entre si
tanto mais facilmente quanto mais previsíveis são nos outros as
mesmas opiniões e as mesmas resistências. Diante das luzes
derramadas em profusão sobre a nação, cala-se a ignorância
caluniosa e treme a autoridade privada das armas da razão,
permanecendo imóvel a força vigorosa das leis, pois não há homem
esclarecido que não aprecie os pactos públicos, claros e úteis da
segurança comum, ao comparar a pequena e inútil parcela de
liberdade que sacrificou com a soma de todas as liberdades
sacrificadas pelos outros homens, os quais, sem as leis, poderiam
conspirar contra ele.
279
existência social traz para a economia. Veja-se sobre isso: BURGIO, Alberto. L’idea di eguaglianza
tra... p. 86-90.
279
“Volete prevenire i delitti? Fate che i lumi accompagnino la libertà. I mali che nascono dalle
cognizioni sono in ragione inversa della loro diffusione, e i beni lo sono nella diretta. Un ardito
impostore, che è sempre un uomo non volgare, ha le adorazioni di un popolo ignorante e le fischiate
di un illuminato. Le cognizioni facilitando i paragoni degli oggetti e moltiplicandone i punti di
vista, contrappongono molti sentimenti gli uni altri, che si modificano vicendevolmente, tanto più
facilmente quanto si preveggono negli altri le medesime viste e le medesime resistenze. In faccia ai
lumi sparsi con profusione nella nazione, tace la calunniosa ignoraza e trema l’autorità disarmata di
ragioni, rimanendo immobile la vigorosa forza delle leggi; perché non v’è uomo illuminato che non
ami i pubblici, chiari ed utili patti della comune sicurezza, paragonando il poco d’inutile libertà da
lui sacrificata alla somma di tutte le libertà sacrificate dagli altri uomini, che senza le leggi poteano
193
Conforme havíamos visto, Helvétius elabora uma ética eudemonista e
hedonista na qual o “Bem” é identificado com a felicidade e esta, por sua vez, com o prazer
sensível. Evidentemente, do ponto de vista político o “Bem”, o “Justo” e a “Virtude”
devem resultam da fusão dos diversos interesses individuais. Resulta daí, em primeiro
lugar, que uma ação individual, para ser considerada boa, deve ser o mais compatível
possível com o interesse de todos os membros da sociedade. Resulta também que a
estrutura política, para ser justa, deve ser aquela que propicie o máximo de felicidade
possível para o maior número possível de seus membros. Esta última tese é a base e o
critério a partir dos quais ele elabora o modelo de Estado e de sociedade que considera
melhor. Todavia, não obstante constituir uma conseqüência necessária de suas idéias,
Helvétius não a elabora de forma explícita, dando-lhe o status de uma regra geral para
medir o valor moral das ações individuais e das instituições políticas. Essa fórmula
elaborada como máxima será a marca mais característica e a base de raciocínio do
Utilitarismo inglês de Jeremy Bentham e John Stuart Mill. De qualquer maneira, podemos
dizer então que Helvétius, partindo da reflexão psicológica da teoria empirista do
conhecimento em sua versão sensualista que surge na França com alguns de seus
contemporâneos, especialmente Condillac, e aproveitando ainda a idéia de utilidade
presente já no raciocínio do contratualismo inglês, ele traça as linhas básicas do que viria a
ser conhecido como Utilitarismo.
As teses materialistas de Helvétius podem, de certa forma, ser chamadas
de utilitaristas, já que nelas o critério supremo é o da utilidade, entendida como prazer
sensível. Helvétius representa, entretanto, uma espécie de utilitarismo ainda totalmente
envolto nos ideais iluministas e que, como vimos, sequer se desprendeu totalmente do
divenire conspiranti contro di lui.” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 91-92.). Beccaria afirma
ainda: “Se la cieca ignoranza è meno fatale che il mediocre e confuso sapere, poiché questi
aggiunge ai mali della prima quegli dell’errore inevitabile da chi ha una vista ristretta al di qua dei
confini del vero, l’uomo illuminato è il dono più prezioso che faccia alla nazione ed a se stesso il
sovrano, che lo rende depositario e custode delle sante leggi. Avvezzo a vedere la verità e a non
temerla, privo della maggior parte dei bisogni dell’opinione non mai abbastanza soddisfatti, che
mettono alla prova la virtù della maggior parte degli uomini, assuefatto a contemplare l’umanità dai
punti di vista più elevati, avanti a lui la propria nazione diventa una famiglia di uomini fratelli, e la
distana dei grandi al popolo gli par tanto minore quanto è maggiore la massa dell’umanità che ha
avanti gli occhi.” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 93-94.).
194
paradigma contratualista. Assim, apesar de já haver nele todas as linhas básicas do núcleo
de idéias daquilo que viria a ser conhecido como o Utilitarismo, ou seja, aquele movimento
teórico que elegia como princípio fundador de sua cosmovisão o princípio da utilidade,
seria errôneo falar dele como um utilitarista assim como falamos de Bentham. Mas se não
encontramos em Helvétius nenhuma máxima que expressa a fórmula utilitarista de forma
explícita e inequívoca, em Beccaria, ao contrário, já na abertura de sua obra nos podemos
ler o seguinte:
Consultemos a história e veremos que as leis, que são ou deveriam ser
pactos de homens livres, não são mais que instrumentos das paixões de
alguns poucos, ou nasceram de uma fortuita e passageira necessidade;
não foram elas ditadas por um frio examinador da natureza humana, que
em um só ponto concentrasse as ações de uma multidão de homens e as
considerasse neste ponto de vista: a máxima felicidade dividida no maior
número.
280
A idéias sensualistas do materialismo iluminista encontraram enormes
ecos no Iluminismo lombardo.
281
Pietro Verri, em especial, já havia inserido as idéias de
Helvétius nas discussões filosóficas da Società dei Pugni com suas Meditazioni sulla
Felicità. Nessa obra, a máxima utilitarista da maior felicidade dividida no maior número
vem também, como em Beccaria, formulada expressamente.
282
Aquela espécie de
utilitarismo que nós havíamos chamado de utilitarismo político-econômico, que marca a
literatura pró-absolutista, onde a ênfase recai sobre o papel de promotor do bem-estar social
(identificado com a produção de bens materiais) que o soberano deveria exercer, na medida
em que possuía tanta afinidade com o utilitarismo filosófico de Helvétius e com o papel que
era reservado em sua obra para o Legislador, talvez explique porque o hedonismo
helvetiano faria tanto sucesso entre os escritores de Il Caffè. Podemos talvez dizer que o
nascimento do moderno Utilitarismo de Bentham, sob certo aspecto, é um produto, entre
280
“Apriamo le istorie e vedremo che le leggi, che pur sono o dovrebbon esser patti di uomini liberi,
non sono state per lo più che lo stromento delle passioni di alcuni pochi, o nate da una fortuita e
passeggiera necessità; non giá dettate da un freddo esaminatore della natura umana, che in un sol
punto concentrasse le azioni di una moltitudine di uomini, e le considerasse in questo punto di vista:
la massima felicità divisa nel maggior numero.” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 8.).
281
Nesse sentido, veja-se: ZARONE, Giuseppe. Etica e politica nell’utilitarismo...; PARENTI,
Roberto. Sensismo e edonismo nella cultura lombarda...; SINA, Mario. Locke e la filosofia
dell’Illuminismo...
282
FRANCIONI, Gianni. Beccaria filosofo utilitarista...; CAPRA, Carlo. I progressi...
195
outras coisas, da fusão do utilitarismo filosófico iluminista de Helvétius com o utilitarismo
político-econômico da reflexão pró-absolutista.
De qualquer maneira, podemos dizer que, assim como Helvétius,
Beccaria pode ser considerado um filósofo utilitarista, mas não certamente como Bentham.
Beccaria e Helvétius encontram-se em uma faze em que a reflexão utilitarista não alcançou
ou seu mais alto grau de coerência de princípios. Mas na comparação entre os dois,
certamente é o italiano que mais perto está de Bentham. A formulação explícita do
princípio da utilidade e a maior propensão ao abandono daqueles elementos da filosofia
iluminista que seriam totalmente esquecidos por Bentham nos dão a certeza disso. Não é à
toa que Bentham afirmou-se seu discípulo.
Tendo por base esta concepção hedonista de viés utilitarista, da mesma
forma que, na filosofia deste materialismo iluminista do século XVIII, o ser humano era
visto como uma máquina, um autômato que responde mecanicamente aos estímulos
externos, assim também o próprio Estado passa a ser visto como uma máquina, arquitetada
pelo legislador e destinada a propiciar o máximo de prazer a seus indivíduos
componentes
283
. Como o mecanismo desta máquina tem por base o interesse pessoal de
cada indivíduo do qual resulta o interesse geral, os entraves em seu funcionamento são
aqueles que, contrapondo ao interesse geral seus privilégios, transformam-se em guardiões
de uma estrutura social arcaica. Para Helvétius, as causas da infelicidade pública estão nos
resíduos feudais presentes nas instituições e os inimigos públicos são aqueles que lutam
para manter esta situação. É neste ponto, como vimos, que tem início seu discurso
antinobiliárquico e anticlerical.
284
283
A metáfora da máquina para a compreensão do Estado nos aparece, no discurso de Helvétius, por
exemplo, neste trecho de uma carta dele a Montesquieu: “Creio no entanto na possibilidade de um
bom governo em que, respeitadas a liberdade e a propriedade do povo, ver-se-ia resultar o interesse
geral, sem todos os vossos balanços, do interesse particular. Seria uma máquina simples, cujas
molas, fáceis de dirigir, não exigiriam esse grande aparato de engrenagens e de contrapesos tão
difíceis de consertar pelas pessoas inábeis, que se intrometem o mais das vezes no governo.”
(HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Carta de Helvétius a Montesquieu. In HELVÉTIUS et al. Textos
Escolhidos. Trad. Luis Roberto Monzani et al. 2ª ed. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1979.
p.163). Assim como Helvétius, Beccaria vê no Estado uma máquina: “Le macchine politiche
conservano più d’ogni altra il moto concepito e sono le più lente ad acquistarne un nuovo.”
(BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... p. 50.).
284
Lembremos aqui as palavras que Helvétius dirige a Montesquieu: “Como podeis ver, por
intermediários eu entendo os membros dessa vasta aristocracia de nobres e de sacerdotes cuja
cabeça repousa em Versalhes, que usurpa e multiplica à vontade quase todas as funções do poder,
196
Como havíamos visto em Do Espírito Helvétius faz o elogio de regimes
políticos republicano-democráticos e a defesa de uma sociedade fundada sobre a virtude, ou
seja, sobre a fusão dos diversos interesses individuais. A incompatibilidade de tais valores
com a existência de estamentos é óbvia. Entretanto, o mesmo Helvétius criticava o clero e a
nobreza por serem os intermediários, que por privilégio de nascimento usurpa as funções
do poder e impõe a sua vontade até ao soberano. Os valores republicanos cedem lugar para
uma preocupação com a preservação do poder do soberano e com o fato de este estar na
dependência dos estamentos privilegiados. Agora, o clero e a nobreza são os intermediários
entre o monarca e o conjunto da nação que, usurpando o poder do soberano, impõem a
manutenção de seus privilégios e impede que a sociedade se estabeleça sobre bases mais
racionais. Parece, portanto, que a tarefa de reorganizar a sociedade segundo a razão agora
cabe ao monarca e a aristocracia e o clero (os intermediários) são o entrave a este projeto.
Essa esperança depositada sobre a ação da coroa e, em especial, sobre os monarcas
benfeitores também passa a ocupar, em um certo momento, o posto central da reflexão de
Beccaria:
Feliz a humanidade se, pela primeira vez, lhe fossem ditadas leis, agora
que novamente galgaram os tronos da Europa monarcas benfeitores,
promotores das virtudes pacíficas, das ciências e das artes, pais de seus
povos, cidadãos coroados, cuja autoridade acrescida contribui para a
felicidade dos súditos destruindo aquele despotismo intermediário, mais
cruel porque menos seguro, que impedia os votos sempre sinceros do
povo e sempre gratos de alcançarem o trono. Se esses monarcas
permitem a subsistência das antigas leis, é pela dificuldade imensa de
tirar dos erros a venerada ferrugem dos séculos; é esse um motivo para
que cidadãos ilustrados desejem com maior ardor o contínuo crescimento
de sua autoridade.
285
pelo único privilégio do nascimento, sem direito, sem talento, sem mérito; e retém na sua
dependência até o soberano a quem ela impõe a sua vontade e faz mudar de ministro de acordo com
a conveniência de seus interesses.” (HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Carta de Helvétius a
Montesquieu... p. 163.).
285
“Felice l’umanità, se per la prima volta le si dettassero leggi, ora che veggiamo riposti su i troni
di Europa monarchi benefici, animatori delle pacifiche virtù, delle scienze, delle arti, padri de’ loro
popoli, cittadini coronati, l’aumento dell’autorità de’ quali forma la felicità de’ sudditi perché toglie
quell’intermediario dispostismo più crudele, perché men sicuro, da cui venivano soffogati i voti
sempre sinceri del popolo e sempre fausti quando posson giungere al trono! Se essi, dico, lascian
sussistere le antiche leggi, ciò nasce dalla dificoltà infinita di togliere dagli errori la venerata
ruggine di molti secoli, ciò è un motivo per i cittadini illuminati di desiderare con maggiore ardore
il continuo accrescimento della loro autorità.” (BECCARIA, Cesare. Dei Delitti... , p. 66.).
197
Parece, então, que, assim como em Helvétius, a preocupação de Beccaria
desloca-se, agora, para o “despotismo intermediário”, que se coloca entre o povo e o trono.
A salvação da sociedade e a destruição deste despotismo será obra destes “monarcas
benfeitores, promotores das virtudes pacíficas, das ciências e das artes” que devem ditar
leis para humanidade, eliminando os erros engrandecidos pela “ferrugem dos séculos”.
Esse é o motivo pelo qual os “cidadãos ilustrados” devem desejar “com maior ardor o
contínuo crescimento de sua autoridade”.
Ao longo de Do Espírito Helvétius reitera constantemente a exaltação do
espírito republicano e da virtude (no sentido de amor ao bem-comum). De qualquer forma,
como tivemos oportunidade de ver, já aparecia nessa mesma obra uma confiança na coroa e
uma esperança no papel positivo que ela poderia exercer dentro do conjunto social. A carta
em ele criticou Montesquieu mostra claramente o seu posicionamento em defesa do
absolutismo, contra os estamentos privilegiados, pautado na esperança de que ele pudesse
levar a um governo mais em conformidade com o bem-estar geral. A adesão de Beccaria à
proposta absolutista é clara em Dei Delitti e delle Pene. Depois de enaltecer o “espírito
regulador das repúblicas, senhor dos princípios gerais”
286
, depois de ter falado do espírito
monárquico como um corruptor maligno que entra nas repúblicas quando estas são
consideradas como união de famílias e não como uma união de indivíduos, depois de ter
dito que, nas monarquias, os súditos são escravos, depois de, finalmente, ter equiparado o
espírito monárquico ao espírito de família, mesquinho e “limitado aos pequenos fatos”
287
,
ele afirma, na mesma obra, sem constrangimentos, que certos monarcas são “pais de seus
povos” cujo crescimento da autoridade deve ser o desejo dos cidadãos ilustrados.
Por fim podemos dizer, assim, que, tanto em Helvétius quanto em
Beccaria, a presença de marcantes referências aos ideais republicanos e democráticos
convive ao lado da defesa do absolutismo morquico. A defesa deste absolutismo tem por
base, entretanto, a esperança de que ele, libertando-se dos interesses dos setores
intermediários – o clero e a nobreza – possa estabelecer um governo que estaria em
conformidade com a razão e que seria voltado para a felicidade pública. Um tipo de
286
“Lo spirito regolatore delle repubbliche, padrone dei principii genereli, vede i fatti e gli condensa
nelle classi principali ed importanti al bene della maggior parte.” (BECCARIA, Cesare. Dei
Delitti... p. 55.).
287
“Lo spirito di famiglia è uno spirito di dettaglio e limitato a’ piccoli fatti.” (BECCARIA, Cesare.
Dei Delitti... p. 55.).
198
absolutismo onde o monarca concentra poderes em suas mãos para organizar a sociedade
de forma racional e justa, livrando-a dos despóticos poderes intermediários que não apenas
oprimem os mais humildes, mas que viciam todo o corpo social. Um absolutismo, portanto,
que institua, pelo alto, os princípios do espírito da Ilustração. De tal forma, muito embora
nossos dois autores elejam a república como o governo mais legítimo porque mais apto a
realizar, na política, seus critérios utilitaristas, uma porta permanece aberta, na obra de
ambos, à monarquia absolutista. Improbabilidade de se conseguir tornar realidade os ideais
republicanos, dada a conjuntura política com que se confrontavam, talvez os leve a se
contentam em defender uma forma de governo, ou antes uma forma de governar, o
absolutismo esclarecido, que leve a sociedade o mais próximo possível das metas
estipuladas. As circunstâncias políticas da Lombardia na época em que Beccaria escreveu,
onde a monarquia austríaca retomava seu agressivo programa de modernização
institucional contra as estruturas patrícias, talvez explique porque essa postura é, em
Beccaria, mais forte do que em Helvétius.
SEÇÃO III – O utilitarismo em Cesare Beccaria: racionalidade e eficiência do sistema
penal no Estado absolutista
A diferença entre o raciocínio utilitarista presente no contratualismo
hobbesiano-lockeano e o utilitarismo que começa a despontar com Helvétius e Beccaria e
que chega à sua perfeição sistemática com Bentham está em que, no primeiro, a ênfase
recai sobre a racionalidade dos agentes, enquanto que no segundo ela recai sobre
passionalidade deles. Quando falamos em utilitarismo ou raciocínio utilitarista estamos nos
referindo ao cálculo de utilidade, ao cálculo do útil. No contratualismo inglês, como vimos,
os sujeitos realizam a passagem para o estado social em função dos inconvenientes dos
estado de natureza. Os objetivos visados pelos sujeitos, desde logo objetivos egoísticos e
individualistas (seja a proteção da vida, seja a proteção da propriedade), são o que os leva a,
199
através de um raciocínio pragmático de meios e fins, realizarem a passagem para o estado
social. A base do raciocínio é a pressuposição da racionalidade individual ou da condição
natural do homem de ser racional, por isso pode-se falar em direito natural ou racional.
Mas o que realmente é importante, para os fins que propomos, é que no modelo do
contratualismo inglês o sujeito busca a gratificação hedonista, mas age, calculando as
conseqüências, de forma a interferir sobre as próprias condições políticas e sociais de suas
ações. Em outras palavras, nesse esquema de pensamento a estruturação da arquitetura
político-social é feita pelos próprios sujeitos sociais, em um hipotético acordo, através do
cálculo de utilidade. Ou seja, através do cálculo de utilidade, partindo-se do pressuposto de
que todos os outros sujeitos são igualmente racionais, cada sujeito planeja a estrutura social
que corresponde melhor aos seus interesses individuais.
Como o objetivo da teoria do contrato social é aferir a legitimidade das
instituições o ponto de partida do raciocínio do contratualismo é a condição natural do
homem, a condição pré-societária. A reconstrução hipotética que visa sobretudo por à
mostra a lógica que orienta a dinâmica social tem como objetivo fornecer um critério para
se distinguir o poder legítimo do ilegítimo. Evidentemente, a condição natural do homem
não é semelhantes à condição natural de qualquer outro ser da natureza, pois a natureza do
ser humano é precisamente a racionalidade: o ser humano é um ser racional. Essa é a
essência imutável do ser humano, aquilo que o torna propriamente humano. De tal forma,
as construções fundadas no contrato social são pretensamente universalistas, o que significa
válidas para todos os tempos e lugares, ou seja, imutáveis. É interessante notarmos a
afinidade que existe entre esse sujeito racional do contratualismo inglês e a imagem de ser
humano que se constrói dentro do Iluminismo. A reconstrução do pacto implícito na ordem
social é uma forma de colocar entre parênteses todas as instituições políticas (mais ou
menos como Descartes fazia com o mundo em Discurso sobre o Método) e analisar única e
exclusivamente a partir da razão os fundamentos de toda a ordem político-social. Não era
outra coisa o que propunha a filosofia iluminista, com a diferença que essa análise racional
dos fundamentos deveria ser feita, para os filósofos das Luzes, com relação a tudo, isto é, a
toda a cultura, a toda a tradição, a toda a sociedade, etc.. Se isolarmos Locke, podemos
perceber uma enorme semelhança entre a forma como ele refuta, no Primeiro Tratado
sobre o Governo, as teses de Robert Filmer e a maneira como Kant reprova o estado de
200
minoridade que caracteriza o indivíduo anterior à Aufklärung. Nos dois casos o que se quer
é um abandono da tutela de outrem em favor de um uso autônomo da própria razão. Não é
sem motivo que Voltaire afirmou-se discípulo de Locke. O contratualismo possui, portanto,
uma marcante afinidade com o sapere aude kantiano.
No Utilitarismo, entretanto, há uma espécie de bifurcação do cálculo da
utilidade. Se no contratualismo ele era a base para que o sujeito planejasse a ação segundo
seus interesses individuais de forma a, ao mesmo tempo, planejar a própria estrutura
político-social em que ele estará inserido,
288
no Utilitarismo, ao contrário, as coisas se
separam. Os sujeitos sociais permanecem guiando a sua vida hedonisticamente a partir do
cálculo de utilidades, isto é, planejando suas ações segundo seus objetivos egoísticos.
Porém, a função de planejar globalmente a sociedade segundo o bem comum, que por sua
vez também é determinado a partir de critérios hedonístico-utilitarísticos e, portanto, pelo
cálculo de utilidades, passa a um terceiro: o Legislador. No modelo do Utilitarismo, o ser
humano é interpretado como uma máquina que funciona segundo a necessidade de obter
prazer e fugir da dor e que, portanto, guia as suas ações realizando uma espécie de cálculo
do prazer ou da dor que cada uma das ações possíveis lhe trará. De tal forma, surge a idéia
de que, manipulando os objetos que afetam a sensibilidade humana, pode-se direcionar a
ação dos seres humanos da maneira que se desejar. Torna-se, assim, possível planejar, com
o domínio dos princípios utilitaristas que governam a ação humana, o funcionamento da
sociedade. O cálculo de utilidades permite determinar, por conseqüência, os caminhos para
se chegar ao “bem comum”, considerado assim o máximo de felicidade (enquanto prazer
sensível) distribuída entre o maior número de pessoas. O Legislador poderá, portanto,
planejar a arquitetura social de forma que o prazer ou o interesse individual esteja sempre
conectado com o interesse do conjunto social, o que significa direcionar as ações
individuais, manobrando a sensibilidade humana, para o interesse geral. Assim no modelo
político do Utilitarismo o cálculo de utilidades é feito em duas etapas: na primeira, o
Legislador determina o interesse geral e planeja a arquitetura político-social; na segunda, os
sujeitos agentes, buscando o máximo de gratificação individual, executam, ainda que sem o
saber, o planejamento social e realizam, buscando exclusivamente seu interesse pessoal, o
288
Em outras palavras, a ação que brota do cálculo de utilidades do contrato social é a ação que
estrutura a própria sociedade, a ação que celebra o pacto social (com cada uma de suas cláusulas
racionalmente escolhidas) onde é definida a estrutura social.
201
interesse comum, o bem geral. Podemos dizer, assim, que o cálculo de utilidades no nível
do planejamento social passa para o Legislador, mas que os cidadãos, em sua ação reflexa,
continuam calculando as utilidades para escolher quais ações realizar. Por fim, devemos
lembrar que esse cálculo que os sujeitos agentes realizam para decidir sobre suas ações não
é necessariamente um cálculo realizado conscientemente. Na verdade, ele pode assumir
muitas vezes a forma de um reflexo condicionado e, portanto, acabar sendo realizado
inconscientemente. Os motivos aduzidos por Beccaria para sustentar a necessidade da
presteza das penas deixam isso muito claro: ela deve suceder o mais rápido possível ao
delito para que, na mente dos celerados, a idéia do crime seja acompanhada
necessariamente da idéia do desprazer da pena. É assim que, na passagem do
Contratualismo para o Utilitarismo, a ênfase migra da racionalidade para a passionalidade
dos sujeitos agentes ou, se se preferir, da calculabilidade racional-consciente para o
condicionamento passional-inconsciente.
Esse desmembramento do cálculo de utilidades e o deslocamento de seu
nível social-organizativo para a alçada do Legislador possui uma enorme afinidade com a
redefinição do papel do monarca no contexto do desenvolvimento do absolutismo político.
De fato, há uma marcante e inegável proximidade entre o Legislador, do qual fala
explicitamente Helvétius e Beccaria, e a imagem do rei-legislador que vai ser formando
dentro da reflexão pró-absolutista. Além disso, como já havíamos dito, as necessidades
econômicas em meio às quais se desenvolveu o absolutismo tardio do século XVIII
acabaram levando ao surgimento de uma espécie de utilitarismo político-econômico dentro
da reflexão pró-absolutista, como por exemplo a que encontramos na Ciência da Polícia. A
necessidade de aumentar o volume das atividades econômicas internas para assim aumentar
a arrecadação encontrava-se com a vontade dos setores ascendentes, nomeadamente a
burguesia, de desenvolver atividades econômicas. De tal forma, a defesa do absolutismo
acabava vindo acompanhada da idéia de que a tarefa do soberano (absoluto) era promover o
bem-estar comum, que por sua vez era identificado com o aumento de bens materiais da
sociedade. Esse utilitarismo político-econômico que compõe a reflexão pró-absolutista cria
uma outra frente de afinidade entre o absolutismo monárquico e o Utilitarismo filosófico
que surge dentro do Iluminismo. Assim o monarca absoluto que concentra em si o poder
político para usá-lo na racionalização social e no fomento ao desenvolvimento econômico
202
interno pode seria ser progressivamente identificado com o Legislador que organiza a
sociedade segundo os princípios da moral utilitarista para promover seu aperfeiçoamento
geral.
Apesar dessa afinidade entre absolutismo monárquico e Utilitarismo a
perspectiva utilitarista não é, evidentemente, incompatível com regimes políticos
republicanos e democráticos. O Legislador não precisa necessariamente ser um rei-
legislador absoluto. Ao contrário, como vimos, em Helvétius o regime político considerado
ideal é o republicano. Todo o Do Espírito, aliás, é perpassado por ideais democráticos e
republicanos. Por um outro lado, o contratualismo pode, como bem o mostra a obra de
Hobbes, ser utilizado para fundamentar sistemas políticos que pouco tem a ver com idéias
democráticas, liberais ou republicanas. Entretanto, se considerarmos os vínculos históricos
do Iluminismo, não resta espaço para dúvidas sobre o fato de que a forma de contratualismo
que mais lhe era propício é aquela onde o contrato social funciona como fundamento da
liberdade individual e como termo limitador do poder político. Desde logo, esses vínculos
históricos a que nos referimos são aqueles que ligam o Iluminismo à economia capitalista e,
assim, à liberdade de mercado, à liberdade de consciência e de pensamento e à tolerância
religiosa fundada na idéia de que as crenças espirituais dizem respeito ao espaço da vida
privada. As idéias de igualdade e liberdade individual que integram o Iluminismo,
especialmente o francês, nos levam a crer que aquele indivíduo racional que está na base da
arquitetura política contratualista optaria, segundo os parâmetros iluministas, por uma
versão lockeana de contrato social.
De tal maneira, não obstante a possibilidade de se usar tanto o
Contratualismo quanto o Utilitarismo para fundamentar sistemas políticos divergentes,
podemos esquematicamente dizer que dentro da reflexão de Beccaria o Contratualismo,
com seu sujeito livre e racional na base da arquitetura política, vincula-se profundamente
aos valores republicanos e democráticos. Ao contrário, o Utilitarismo, em função da
afinidade da figura de seu onipotente Legislador com o monarca absoluto, dava margem
para que os princípios republicanos e democráticos se afrouxassem para permitir uma
aproximação com a proposta política absolutista. Em outras palavras, o Utilitarismo era
uma porta aberta ao absolutismo. Como já dissemos, a obra de Helvétius prova que o
Utilitarismo pode muito bem fazer parte de uma reflexão política republicana. As
203
diferenças contextuais entre Helvétius e Beccaria podem explicar porque a concessão ao
absolutismo enquanto uma tendência política modernizadora vai aparecer com muito mais
força no último. O fato de Beccaria situar-se em uma região onde o absolutismo
monárquico portava um agressivo programa de racionalização social que atacava
decididamente os poderes estamentais e promovia, através da dinamização econômica, a
ascensão de novos setores sociais faria com que aquela porta aberta ao absolutismo
oferecida pela presença das idéias utilitaristas fosse efetivamente usada.
Quando paramos para analisar detidamente Dei Delitti e delle Pene,
observamos que no cômputo geral a argumentação contratualista ocupa uma pequena parte.
Ela aparece no começo do texto, onde o autor disserta sobre os fundamentos da ordem
política e do direito penal, sobre o fundamento da atividade legislativa, sobre a separação
entre os poderes de fazer e de aplicar as leis e sobre a questão da interpretação.
Posteriormente, quando Beccaria trata da questão da pena de morte, os argumentos
utilitarista que buscam provar a sua inutilidade são combinados com reflexões
contratualistas que buscar demonstrar a sua ilegitimidade. Assim podemos dizer que, na
reflexão de Beccaria, a idéia de contrato social funciona apenas como fundamento
legitimador das instituições políticas e jurídicas. O bom governo e a boa política legislativa,
entretanto, fundam-se nas teorias utilitaristas que ofereceriam um conhecimento dos
princípios que orientam a ação humana ou, em outras palavras, no conhecimento da
psicologia humana.
Sobre isso algumas considerações merecem ser feitas. O Utilitarismo
possui, enquanto teoria política, esse caráter de ciência do bom governo, onde assume a
forma de uma teoria destinada a ensinar como se dirigir a sociedade. Todavia, esse aspecto
sofre uma espécie de aprofundamento ou adensamento no contexto político do absolutismo
tardio. A necessidade de maximizar o controle do soberano sobre a sociedade para
viabilizar o próprio projeto político absolutista faz parte das condições em que o
absolutismo tardio se desenvolveu. Para que países como Prússia, Áustria e Portugal
vencessem o atraso em que se encontravam em relação às principais potências européias de
então, como a Inglaterra e sobretudo a França, era necessário que o poder político central
desenvolvesse técnicas que lhe permitissem impor, a partir de cima, a modernização
econômica. No campo jurídico isso se coloca como o problema da eficácia da norma
204
jurídica da coroa, ou seja, da capacidade de a norma jurídica se fazer cumprir. Esse pode
ser considerado um dos problemas centrais do livro de Beccaria, visível sobretudo na
questão da mitigação das penas e da graça. A brutalidade das penas do direito penal do
antigo regime era um dos componentes essenciais de sua escandalosa ineficácia. No antigo
regime o objetivo da pena era fundamentalmente simbólico: buscava-se, com ela,
aterrorizar. A graça real, por meio da qual se afastava a aplicação da pena, era seu
complemento necessário. Por meio dela, o soberano se legitimava perante o organismo
social e, principalmente, perante o beneficiado. Isso, aos olhos iluministas, era
profundamente irracional. Todo o modo de operar do direito fundava-se, assim, no arbítrio
e a renúncia à eficácia do direito penal, implícita nessa estrutura, tolhia a capacidade real
de, por meio dele, interferir sobre o conjunto da sociedade. Portanto, para Beccaria a
mitigação das penas, a par de suas razões humanitárias (que certamente existiam), era o
pressuposto para que a graça fosse eliminada do direito penal e para que ele,
conseqüentemente, ganhasse a eficácia necessária para maximizar o poder de controle do
soberano sobre a sociedade. O sistema jurídico-penal proposto por Beccaria encaixa, assim,
perfeitamente na dinâmica política do absolutismo tardio, onde o que importa é dar ao
soberano os meios para direcionar a sociedade, intervir nela e controlá-la. Não é de se
duvidar, assim, que a aplicação, ao estudo do direito penal, do Utilitarismo aprendido com
Helvétius objetivava fornecer um fundamento sólido para o seu uso enquanto instrumento
para se modelar a sociedade.
Chegamos, então, ao tema do uso instrumental do direito. O aspecto
jurídico do desenvolvimento do absolutismo dentro da modernidade era a aniquilação
daquele particularismo que marcava a estrutura jurídica do antigo regime. Esse
particularismo jurídico fundava-se na pluralidade de fontes de direito concorrentes e em seu
complemento, a pluralidade de jurisdições (usamos aqui essa expressão em seu sentido
moderno). A afirmação do poder político monárquico foi completado, no campo jurídico,
pela afirmação da legislação real sobre todas as outras fontes jurídicas.
289
A supremacia da
legislação real sobre o direito romano, o direito consuetudinário, o direito corporativo,
tinha, obviamente, o objetivo de permitir à coroa a concretização, pelo direito, de suas
intenções. No contexto do absolutismo tardio, sob a influência da reflexão cameralística,
289
É precisamente isso que constitui aquilo que Paolo Grossi chama de absolutismo jurídico.
205
em especial da Ciência de Polícia, e das teses iluministas que outorgavam ao ser humano a
capacidade de, pelo uso da razão, subjugar a realidade que o circunda e colocá-la a seu
serviço, esse uso instrumental do direito tende a ganhar em sistematicidade e a conectar-se
com sistemas de planejamento social. O uso das teorias utilitaristas dentro desses projetos
de organização social a serem realizados com o instrumental fornecido pelo direito é,
assim, um dos pontos altos daquilo que Pietro Costa chamou de o Projeto Jurídico da
Modernidade.
Como vimos, em Dei Delitti e delle Pene a exaltação de valores
democráticos e republicanos convive com a aposta no papel modernizador realizado pelo
desenvolvimento do absolutismo habsbúrgico. Como prova a investigação histórica, a
esperança dos jovens filósofos do iluminismo milanês, como Beccaria, era a de que a
contribuição teórica que ofereciam poderia ser incorporada ao projeto reformista da
monarquia austríaca para a Lombardia e, assim, realizar-se uma singular fusão do
reformismo de inspiração filosófica iluminista com aquele outro que vinha da dinastia
habsbúrgica. Dei Delitti e delle Pene simboliza o processo de adaptação da filosofia
iluminista ao contexto específico da Lombardia, uma região situada na periferia de um
vasto império, portadora de um grande potencial econômico que era emperrado, entretanto,
por estruturas políticas arcaicas que a sua frágil burguesia não poderia vencer sozinha. A
presença de forças políticas externas descomprometidas com a dinâmica política local e
conectadas com tendências modernizadoras não poderia deixar de aparecer como um alento
para qualquer um que ansiasse por romper as estruturas político-sociais que bloqueavam o
progresso. A atividade literária dos jovens filósofos milaneses do Il Caffè conseguiu
finalmente atingir os ouvidos dos representantes do reformismo habsbúrgico e a
progressiva incorporação de seus membros no serviço público da administração austríaca
na Lombardia demonstra que a desejada aliança entre os intelectuais e o poder se realizou.
Nessa aliança, evidentemente, aqueles ideais republicanos tão fortemente
impregnados na filosofia que vinha da França teriam de ser deixados de lado. Em outras
palavras, a dinastia austríaca absorveu dentro de seu projeto político não apenas as
reivindicações modernizadoras dos intelectuais iluministas de Milão, mas também esses
próprios intelectuais iluministas (na condição de funcionários da coroa) e, em contrapartida,
em favor dessa modernização autocrática, os ideais políticos potencialmente mais radicais
206
e, ao mesmo tempo, mais de acordo com o interesse emancipatório da filosofia iluminista
foram colocados, por esses intelectuais, em segundo plano. O abandono dos ideais
democráticos e republicanos e a absorção dos intelectuais iluministas nas estruturas da
administração austríaca, na condição de funcionários técnicos, deram espaço para que a
racionalidade iluminista fosse progressivamente se reduzindo a uma mera racionalidade
técnica, voltada à dominação instrumental da realidade social e ao planejamento das
estruturas de um poder político que, muito embora representasse um avanço em relação à
ordem estamental, pouco tinha a ver com os aspectos políticos que melhor caracterizavam o
interesse emancipatório da filosofia do iluminismo. Assim, no final das contas, essa aliança
da filosofia iluminista com o absolutismo monárquico na Lombardia, representou uma
instrumentalização do iluminismo pelos interesses da dinastia habsbúrgica e uma
progressiva dissolução de suas tendências políticas emancipatórias. O desenvolvimento de
uma racionalidade instrumental desconectada da ascensão de um espaço público onde os
seus fins pudessem ser livremente discutidos e avaliados de acordo com aqueles valores
humanistas que justificavam o projeto da modernidade, valores que se fundavam na idéia
de dignidade humana, na concepção de que o ser humano é um fim em si mesmo, deram
oportunidade para que, na Lombardia austríaca, as sombras do Iluminismo ganhassem mais
espaço que suas luzes. Dei Delitti e delle Pene, o momento mais brilhante e luminoso do
Iluminismo lombardo, continha já o prenúncio de seu crepúsculo.
207
CONCLUSÃO
Na história da idéias, o Iluminismo é geralmente identificado com os
ideais liberais. Muito embora exista uma enorme afinidade entre alguns dos pontos-chave
do Iluminismo e as posições do liberalismo, vemos ao contrário que na maioria das regiões
da Europa moderna o Iluminismo acabou em uma curiosa conciliação com o absolutismo.
Sob muitos aspectos, o absolutismo exerceu um papel profundamente modernizador na
medida em que foi através dele que, na área política, a Europa saiu da Idade Média. O
contexto desfavorável em que o absolutismo se desenvolveu em países como Prússia,
Áustria e Portugal forçava-o a incorporar em seu projeto de poder um programa de
racionalização social muito mais agressivo do que se tinha visto até então. Esse absolutismo
tardio acabou sendo, assim, um fator de modernização ainda mais radical. De uma forma
geral, o auge desse absolutismo tardio é mais ou menos contemporâneo da recepção,
naqueles países, das idéias iluministas. Desde logo, o que tínhamos nesses países eram duas
tendências que apontavam para a modernização e racionalização social, uma que vinha das
influências filosóficas iluministas e outra que partia das dinastias reinantes e que dizia
respeito à luta pelo poder no cenário interno, contra os estamentos privilegiados, e no
cenário externo, contra os outros Estados. Essas duas tendências caminharam para uma
conciliação, ou seja, o Iluminismo concilia-se com o absolutismo e, assim, os ideais liberais
que o compunham são colocados para segundo plano.
A modernização introduzida pela coroa em seu projeto de poder
demandava recursos financeiros que deveriam ser extraídos do conjunto social através da
tributação. De tal maneira, o nível baixo da produção econômica interna comprometia
seriamente a viabilidade do projeto de fortalecimento monárquico. A necessidade de
208
promover ao desenvolvimento econômico interno para extrair dele, através da tributação, os
recursos que financiariam o projeto político absolutista entrou em conciliação com o
interesse dos setores sociais ascendentes, nomeadamente a burguesia, em desenvolver
atividades econômicas. Essa conciliação entre os interesses dos setores sociais
politicamente inferiores e do soberano começa a aparecer, na literatura política pró-
absolutista, como uma conciliação teórica entre o interesse social e o interesse do próprio
monarca. Surgem, então, os temas da felicidade publica e do bem estar geral. Essas novas
funções dadas ao soberano fazem com que a imagem do príncipe, em meados do século
XVIII, começa a mudar: a antiga imagem de um mero mediador dos conflitos entre os
poderes autônomos que deveria apenas garantir a intangibilidade da ordem tradicional,
passa a dar lugar à imagem de um príncipe que deve agir sobre a sociedade, não apenas
mantendo a ordem tradicional das coisas, mas sobretudo criando uma ordem que a leve à
felicidade pública. O soberano se torna o responsável por governar efetivamente a
sociedade e produzir, através de seu governo, a felicidade pública. O Iluminismo dará um
novo impulso a esta idéia de que o monarca, concentrado em suas mãos o poder, deve usá-
lo na realização das mudanças que promovam o bem-estar geral. Não é difícil de entender
as razões disso. O culto às capacidades racionais do ser humano e, portanto, à capacidade
humana de, pela razão, melhorar suas condições de vida e o culto ao progresso, que daí
advém, são características centrais do Iluminismo.
De tal maneira, podemos dizer que os países que desenvolveram
tardiamente a estrutura absolutista de poder político tiveram que enfrentar, para que o
próprio projeto absolutista fosse possível, os problemas relativos ao atraso econômico e
tentar dinamizar a economia interna para criar os recursos que, por intermédio da
tributação, sustentariam o fortalecimento institucional da coroa em relação aos adversários
internos e externos. Na medida em que isso demandava esforços em direção a um programa
de racionalização administrativa e social guiada por critérios de eficiência o projeto
absolutista desses países acabaria apresentando uma afinidade com os novos ideais
iluministas que, forjados na França, adentravam na periferia econômica e institucional da
Europa de então. A ausência de qualquer alternativa viável para vencer a resistência das
forças tradicionais cujos interesses estavam na contramão dos anseios dos setores sociais
insurgentes interessados em desenvolver atividades econômicas levou-os a apoiar o projeto
209
de modernização pela via absolutística. Igualmente, defender a modernização absolutística
era, na perspectiva das camadas letradas que receberam a filosofia iluminista, a única opção
que trazia possibilidades reais de concretização dos ideais oriundos de suas influências
filosóficas.
Este projeto político de modernização comandado pela coroa demandaria
funcionários que, além de fiéis, fossem também competentes o suficiente para servir ao
soberano em tão ousada empreitada. Os intelectuais iluministas que, naquele contexto,
aderiam ao teoricamente ao projeto político modernizador do absolutismo acabaram
constituindo uma fonte de recursos humanos para a composição do quadro administrativo
real. Essa circunstância aprofunda a coalizão de interesses entre o soberano e os intelectuais
iluministas. A fusão dos ideais iluministas com a proposta absolutista leva a duas
conseqüências importantes. A primeira é que graças à influência exercida pela filosofia das
Luzes, a proposta absolutista tem seus horizontes abertos e passa a incorporar uma série de
outros elementos além daqueles que estavam ligados de forma evidente e imediata com o
fortalecimento monárquico. Assim além das questões relativas à modernização econômica
e ao aumento da eficiência do aparato administrativo o programa de reformas do soberano
começa a atingir também outras áreas, como, por exemplo, o sistema penal e a instrução, e,
na medida em que demonstram uma relação (ainda que menos imediata) com os interesses
da centralização e do fortalecimento estatal, acabam sendo incorporadas ao conjunto do
reformismo absolutista. Podemos dizer que, graças ao Iluminismo, o reformismo
absolutista é ampliado e acaba absorvendo uma série de conteúdos que ultrapassam o
imediatamente necessário à viabilização da proposta absolutista e reforçam o seu caráter
modernizante. Temos assim o surgimento das formas mais características daquilo que
chamamos de absolutismo esclarecido.
A segunda conseqüência importante da fusão entre a proposta absolutista
e a filosofia iluminista é que os ideais democráticos e liberais desta última acabam sendo
atrofiados. A dedicação à causa da emancipação humana é um componente essencial do
Iluminismo. Essa emancipação, que pode aparecer sob várias formas, assume, na esfera
política, a forma de ideais democráticos, republicanos e liberais. A idéia de que a
racionalidade individual é fonte de uma autonomia igualmente individual possui evidentes
conexões com essas tendências políticas. Mas na fusão entre Iluminismo e absolutismo elas
210
terão de ficar para segundo plano. Ante à necessidade de apoiar o poder monárquico
absolutístico para conseguir um avanço em relação ao poder tradicional dos estamentos, os
representantes do Iluminismo daqueles Estados onde se desenvolveu o absolutismo tardio
do século XVIII acabarão deixando de lado as propensões políticas que, sob a marcante
influência de Locke, apareciam na reflexão política francesa do século XVIII. Na medida
em que boa parte desses intelectuais acabou indo compor os quadros administrativos da
coroa e servindo aos projetos de reestruturação institucional absolutística o Iluminismo
deles, além de ter negligenciado os aspectos políticos emancipatórios presentes na reflexão
francesa, desenvolveu fortemente aquele aspecto instrumental da racionalidade moderna
referente à articulação de meios segundo fins pré-determinados que é tão essencial ao
aperfeiçoamento de processos técnicos. O Iluminismo que se desenvolve no contexto do
absolutismo tardio constitui certamente um projeto de modernização, mas de uma
modernização autocrática que possui um considerável descuido com aqueles valores
humanistas que justificariam o projeto da modernidade. As condições históricas específicas
a que nos referimos deram espaço para que o aspecto instrumental da filosofia das Luzes se
desenvolvesse sem a contraposição daqueles valores que faziam do ser humano uma
finalidade em si mesmo e, assim, acabaram criando uma versão sombria do Iluminismo.
Na Lombardia austríaca, o reformismo absolutista, conduzido pelos representantes da
coroa, começam a ser realizar já na década de quarenta do século XVIII, sob o governo de
Maria Teresa e, enfrentando alguns percalços, é interrompido durante a guerra dos sete
anos. Findada a guerra, ele é retomado, sob o comando de Carlo Giuseppe de Firmian, mais
ou menos ao mesmo tempo em que, em torno de Pietro Verri formava-se um novo grupo de
intelectuais que, recebendo as idéias do Iluminismo francês, reivindicavam reformas que
modernizassem a sociedade, que rompessem com as estruturas tradicionais que impediam o
progresso e que, ao contrário, o fomentassem e que reorganizassem, por fim, o conjunto
social segundo os parâmetros da razão.
Nos anos sessenta do século XVIII temos, portanto, na Lombardia
austríaca a insurgência de duas tendências reformadoras que buscavam a racionalização das
instituições e da sociedade. A primeira partia da dinastia da Áustria, a casa de Habsburg, e
era representada em Milão por Carlo de Firmian. O contexto de nascimento do reformismo
austríaco, produto da inspiração do modelo prussiano baseado na Polizeiwissenschaft
211
(Ciência da Polícia), nos permite ver claramente os objetivos a que visava. A
racionalização social e institucional deveria servir sobretudo para o fortalecimento do poder
real, para a consolidação do absolutismo e para o acúmulo de forças que garantissem uma
posição vantajosa em relação aos conflitos externos. Por um outro lado, teríamos a
instauração da filosofia das Luzes na Lombardia, através do círculo de jovens que, sob o
comando de Pietro Verri, reuniam-se na chamada Società dei Pugni, e que iria intervir nas
polêmicas de então através do periódico Il Caffè. Surge, portanto, uma outra tendência que,
ao lado daquela que partia da dinastia austríaca, apontaria para as reformas sociais e para a
racionalização.
A questão econômica e a questão nobiliárquica são o ponto central do interesse dos
jovens filósofos. Em princípio, as idéias econômicas dos filósofos da Società dei Pugni
favoreciam os setores produtores emergentes, como os proprietários de terras que tentavam
aproveitá-las utilizando métodos modernos voltados à produção para o mercado e os
empreendedores que, naquela mesma época, já haviam instalado as primeira manufaturas
da Lombardia. Inspirando-se na literatura iluminista fisiocrática, que na década de 60 já
havia alcançado enorme popularidade, eles reivindicariam a eliminação dos vínculos
feudais sobre a terra que impediam seu uso econômico mais racional e eficiente, a
eliminação das corporações que impediam a existência do livre-mercado, o
aperfeiçoamento do sistema fiscal e administrativo em geral e a eliminação da proibição de
exercício do comércio para os nobres. Como já dissemos, a questão econômica era também
importantíssima para a política de fortalecimento do poder real. A óbvia relação entre a
situação financeira de um Estado e a sua condição na política internacional faria com que a
monarquia austríaca buscasse por todas as formas aumentar suas fontes de renda. A
dinamização da economia, portanto, deveria necessariamente fazer parte da política de
fortalecimento do poder monárquico, pois permitiria que se extraísse, pela tributação, os
recursos necessários ao fortalecimento tanto da burocracia quanto do exército real. Essa
dinamização econômica seria feita com o estímulo à produção e ao comércio interno e,
assim, favorecia justamente aqueles setores produtores emergentes, sufocados pelas
estruturas feudais e corporativas. Assim as reformas executadas na Lombardia pela coroa
austríaca estariam, em boa medida, de acordo com aquilo que era proposto pelo círculo dos
intelectuais que escreviam no Caffè.
212
A postura dos filósofos da Società dei Pugni em relação à questão
nobiliárquica deve ser compreendida em conexão com a questão econômica no contexto da
luta entre coroa e estamentos. Graças à questão econômica a característica luta dos
monarcas contra os estamentos ganha um novo componente: agora eles não são apenas os
rivais da coroa na luta pelo poder dentro do Estado; eles são também aqueles que impedem
a aplicação de uma política mais racional, voltada para o desenvolvimento econômico e
para o conseqüente fortalecimento institucional, o que afeta também a luta política em face
dos concorrentes externos. O poder político e os privilégios nobiliárquicos, especialmente
patrícios, que caracterizavam a estrutura política milanesa eram óbices para o programa
econômico modernizador e dinamizador que necessariamente deveria fazer parte do projeto
absolutista da monarquia austríaca e, assim, o avanço do reformismo habsbúrgico na esfera
econômica implicaria necessariamente o declínio do patriciado milanês. Além do declínio
do poder político patrício, as reformas econômicas ainda promoviam a ascensão de novos
grupos sociais. Podemos dizer, assim, que a questão econômica não muda apenas o sentido
da luta interna pelo poder político entre o monarca e os estamentos, ela também altera a sua
dinâmica, pois o papel negativo que a aristocracia acabaria adquirindo em relação ao
desenvolvimento econômico (que, é claro, não interessava apenas à coroa, mas ao próprio
conjunto social, de uma forma geral) contribuiria decisivamente para eliminar a hegemonia
social da aristocracia. Além disso, o sucesso das reformas econômicas, ao promover a
ascensão de novos grupos sociais, criaria uma enorme base social de apoio ao monarca.
Ante aos benefícios sociais mais ou menos gerais advindos da política de fortalecimento
econômico a nobreza, e o patriciado em particular, cairá em um progressivo e crescente
descrédito em face do conjunto social. A partir de então, dificilmente ela conseguirá
mobilizar as massas, sejam urbanas ou camponesas, em rebeliões contra o poder real, tal
como aquelas que marcaram, por toda a Europa, o século XVII.
A percepção por parte dos jovens filósofos de que o monarca era a única
força que, naquele contexto, realmente poderia realizar as reformas necessárias e
implementar um processo de desenvolvimento econômico nos termos propostos levou-os
definitivamente para o lado do absolutismo. A questão econômica, ou mais exatamente, a
mesma posição em relação aos problemas econômicos propiciava a aproximação entre os
filósofos do círculo do Il Caffè e o absolutismo austríaco. Na medida em que os estamentos,
213
com seus privilégios, impediam o desenvolvimento econômico e a implementação de
reformas de interesse geral, nos escritos dos jovens iluministas lombardos eles apareceriam
como sendo o verdadeiro poder despótico contra o qual dever-se-ia lutar e contra o qual o
soberano já estava efetivamente lutando. Podemos dizer, assim, que a identificação dos
jovens filósofos iluministas da Lombardia com o absolutismo baseava-se, ao menos em
princípio, na posição comum em relação à questão econômica e na postura
antinobiliárquica.
O absolutismo esclarecido é a fusão da tendência modernizadora e
racionalizadora que vinha da filosofia iluminista com aquela outra tendência, também
modernizadora e racionalizadora, que partia das dinastias reinantes em cada Estado. A
articulação entre essas duas propostas reformadoras e a formação, a partir delas, de uma
única tendência reformista que articulava os desígnios centralizadores dos monarcas, em
sua luta pelo poder contra adversários internos e externos, com o anseio filosófico por
reformas que melhorassem as condições de vida e promovessem o progresso humano
implicava necessariamente a articulação entre os portadores dessa filosofia, os filósofos
iluministas, e o projeto político absolutista em uma espécie de aliança, ainda que tácita,
entre eles e a coroa. No caso da Lombardia, como vimos, a identificação entre os
representantes da filosofia das Luzes e as tendências reformadoras absolutistas já tinham
ocorrido. Mas para que o absolutismo esclarecido viesse a se completar era necessário que
os próprios sujeitos da filosofia iluminista aderissem ao projeto absolutista da casa da
Áustria e que sua colaboração fosse aceita, o que lhes possibilitaria exercer alguma
influência sobre os caminhos trilhados pela coroa em sua luta pela centralização política e
no que seria por ela com o poder assim concentrado em suas mãos. Ante à necessidade de
contar com quadros competentes e fiéis à coroa para que o projeto absolutista fosse viável,
a escassez de recursos humanos e a notória capacidade intelectual daqueles jovens
polemistas que, com seu jornal e com suas obras individuais, opinavam sobre todas as
questões importantes da política e da economia milanesas, não permitiriam que fossem
ignorados por muito tempo pelos representantes da coroa austríaca. A absorção dos
iluministas milaneses nos quadros funcionais da coroa em sua empreitada absolutista
completa o processo de formação do absolutismo esclarecido na Lombardia austríaca.
214
A fusão das duas tendências modernizadoras, aquela representada pela
filosofia iluminista e a do absolutismo tardio, não era entretanto um encontro perfeito. As
urgentes necessidades que atingiam com toda a força o projeto de poder daquelas dinastias
que se confrontavam, de tempos em tempos, no cenário político internacional e que, em
meio a uma economia capitalista cada vez mais desenvolvida, miravam-se no exemplo de
potências como a França e a Inglaterra obrigavam-nas a um agressivo programa de
racionalização social que deveria tornar mais eficiente a administração do Estado,
fomentar o desenvolvimento econômico e submeter os estamentos e os poderes políticos
autônomos. O Iluminismo, por um outro lado, era uma corrente filosófica que fundava na
racionalidade humana um projeto de emancipação; uma emancipação da tradição, dos
dogmas religiosos, das forças da natureza, mas uma emancipação também do poder político
ilegítimo, assim considerado aquele que não se fundava na autonomia humana individual,
inerente à idéia de que cada ser humano é um ser racional. Iluminismo e absolutismo
possuíam, portanto, interesses específicos, quando consideramos um em relação ao outro.
Portanto, nessa coalizão entre as duas tendências, uma deveria necessariamente ocupar o
lugar de comando. Esse papel caberia certamente ao absolutismo. A racionalidade das
Luzes ficava, de certa forma, subordinada à racionalidade do acumulo de poder. É claro que
algo do espírito original do Iluminismo deveria perder-se.
A filosofia do século XX nos ensina que o projeto da modernidade, do
qual o Iluminismo é o principal representante, ancorava-se em uma racionalidade
instrumental, que apontava para a dominação, e em uma racionalidade comunicativa, que
apontava para a emancipação, ou em um pilar regulatório e um outro emancipatório, se se
preferir. Quando olhamos para as idéias que fervilhavam nas obras dos autores do século
XVIII vemos que as duas coisas, dominação e emancipação, estavam profundamente
imbricadas. Segundo a critica filosófica contemporânea, os problemas da modernidade
teriam começado quando o aspecto instrumental colonizou o comunicativo-emancipatório.
O fato de os ideais democráticos e republicanos do Iluminismo terem sido relegados a um
segundo plano, na sua fusão com o absolutismo, talvez seja um indício de que
efetivamente, na aliança da filosofia das Luzes com aquelas formas políticas autocráticas,
aquele elemento instrumental de sua racionalidade tenha sido isolado e alçado ao primeiro
plano.
215
A absorção dos intelectuais do iluminismo lombardo no projeto político
do absolutismo habsbúrgico, na condição de funcionários da coroa, colocou a capacidade
intelectual daqueles jovens intelectuais a serviço do planejamento das estratégias da
ascensão da autocracia régia contra a pluralidade de poderes políticos que caracterizava a
sociedade do antigo regime. Nesse processo, o intelectual iluminista, assim absorvido e
transformado em funcionário administrativo da coroa, tem seu papel redefinido: agora ele
não é mais o conselheiro do rei que pensa globalmente a sociedade, não apenas ajudando-o
a alcançar as metas estipuladas, mas interferindo também na definição das próprias metas;
agora ele é o técnico em problemas jurídicos, econômicos ou cameralísticos que articula os
meios necessários para alcançar os fins determinados pelo monarca e por seus altos
ministros. É claro que aquela imagem de conselheiro do rei, ao menos na Lombardia, nunca
correspondeu propriamente à realidade. Mas era, entretanto, a maneira como os iluministas
lombardos compreendiam, em princípio, o seu papel dentro do projeto modernizador e
reformador do absolutismo habsbúrgico. A subordinação do intelectual iluminista ao
projeto autocrático do absolutismo tardio é a subordinação do próprio Iluminismo aos
desígnios da pura acumulação do poder, à lógica de uma espécie de nova razão de Estado.
Cesare Beccaria representou o caso mais extremo dessa conversão do
intelectual iluminista em técnico-administrador nas entranhas do poder habsbúrgico. Por
um outro lado, Beccaria também protagonizou, com a publicação de Dei Delitti e delle
Pene, o momento de maior brilhantismo do Iluminismo lombardo. Isso nos leva a pensar na
hipótese de que algo daquele declínio da cultura iluminista em Milão estivesse pré-figurado
em sua obra mais famosa. Não haveria nada nela que nos antecipasse a triste decadência
dos valores liberais, republicanos e democráticos, tão profundamente ligados ao código
genético do Iluminismo, e a ascensão exclusivista de uma racionalidade instrumental
soberana e autocrática? A sua análise poderá nos fornecer alguma resposta.
Muito se especulou sobre qual o modelo político que inspirou a estrutura
de Dei Delitti e delle Pene. Entretanto, a teoria política que fundamenta o modelo jurídico
penal de Beccaria, perpassando todos os seus pontos, é aquela exposta por Helvétius em Do
Espírito. Helvétius, autor ligado à corrente dos materialistas radicais do Iluminismo,
elabora um sistema político fundado em idéias que praticamente antecipam toda a base
daquilo que posteriormente será o utilitarismo de Jeremy Bentham. A inegável presença de
216
influências contratualistas na obra de Beccaria levou a crítica a especular sobre dois pontos
controversos: o primeiro indagava a origem dessas idéias contratualistas, o autor em qual
Beccaria teria se inspirado; a segunda indagava sobre o que poderia significar a presença,
na obra de nosso autor, de duas teorias que, reconhecidamente, são incompatíveis. As duas
questões podem ser solucionadas observando-se que, na verdade, já em Helvétius estava
presente, em meio às teses utilitaristas, a concepção contratualista e que isto se deve ao fato
de que o seu utilitarismo nasce de um aprofundamento psicológico feito na idéia de
utilidade que já existia nos próprios contratualistas ingleses. Assim a presença de idéias
contratualista não pressupõe a presença da influência qualquer outro autor que fosse o
próprio Helvétius.
Entretanto, o contratualismo e o utilitarismo, em Beccaria, acabam
assumindo aspectos bem delimitados um em relação ao outro. Analisemos primeiramente o
contratualismo. Entre o sujeito racional do contratualismo e a imagem de ser humano que
se constrói dentro do Iluminismo existe uma profunda afinidade. A reconstrução do pacto
implícito na ordem social, que vemos nas teorias contratualistas, é uma forma de colocar
entre parênteses todas as instituições políticas (mais ou menos como Descartes fazia com o
mundo em Discurso sobre o Método) e analisar única e exclusivamente a partir da razão os
fundamentos de toda a ordem político-social. Não era outra coisa o que propunha a filosofia
iluminista, com a diferença que essa análise racional dos fundamentos deveria ser feita,
para os filósofos das Luzes, com relação a tudo, isto é, a toda a cultura, a toda a tradição, a
toda a sociedade, etc.. Se isolarmos Locke, podemos perceber uma enorme semelhança
entre a forma como ele refuta, no Primeiro Tratado sobre o Governo, as teses de Robert
Filmer e a maneira como Kant reprova o estado de minoridade que caracteriza o indivíduo
anterior à Aufklärung. Nos dois casos o que se quer é um abandono da tutela de outrem em
favor de um uso autônomo da própria razão. Não é sem motivo que Voltaire afirmou-se
discípulo de Locke. O contratualismo possui, portanto, uma marcante afinidade com o
sapere aude kantiano.
O contratualismo da tradição inglesa operava a partir de um raciocínio
utilitarista. O sujeito racional, que está na base de suas especulações, realiza a passagem ao
estado social em função dos benefícios individuais ele poderia lhe trazer. Graças ao
aprofundamento psicológico possibilitado pelo desenvolvimento da teoria empirista do
217
conhecimento, essa idéia de utilidade é aprofundada por Helvétius até atingir os níveis
psíquicos emocionais menos submetidos ao controle racional pelos indivíduos. Isso permite
que, no utilitarismo de Helvétius haja uma espécie de bifurcação do cálculo da utilidade. Se
no contratualismo ele era a base para que o sujeito planejasse a ação segundo seus
interesses individuais de forma a, ao mesmo tempo, planejar a própria estrutura político-
social em que ele estará inserido, no utilitarismo, ao contrário, as coisas se separam. Os
sujeitos sociais permanecem guiando a sua vida hedonisticamente a partir do cálculo de
utilidades, isto é, planejando suas ações segundo seus objetivos egoísticos, tal qual no
contratualismo hobbesiano-lockeano. Porém, a função de planejar globalmente a sociedade
segundo o bem comum, que por sua vez também é determinado a partir de critérios
hedonístico-utilitarísticos e, portanto, pelo cálculo de utilidades, passa a um terceiro: o
Legislador. No modelo do utilitarismo, o ser humano é interpretado como uma máquina
que funciona segundo a necessidade de obter prazer e fugir da dor e que, portanto, guia as
suas ações realizando uma espécie de cálculo do prazer ou da dor que cada uma delas
poderia lhe trazer. De tal forma, surge a idéia de que, manipulando os objetos que afetam a
sensibilidade humana, pode-se direcionar a ação dos seres humanos da maneira que se
desejar. Torna-se, assim, possível planejar, com o domínio dos princípios utilitaristas que
governam a ação humana, o funcionamento da sociedade. O Legislador poderá, portanto,
planejar a arquitetura social de forma que o prazer ou o interesse individual esteja sempre
conectado com o interesse do conjunto social, o que significa direcionar as ações
individuais, manobrando a sensibilidade humana, para o interesse geral. Assim no modelo
político do Utilitarismo o cálculo de utilidades é feito em duas etapas: na primeira, o
Legislador determina o interesse geral e planeja a arquitetura político-social; na segunda, os
sujeitos agentes, buscando o máximo de gratificação individual, executam, ainda que sem o
saber, o planejamento social feito pelo Legislador e realizam, buscando exclusivamente seu
interesse pessoal, o interesse comum, o bem geral. Podemos dizer, assim, que o cálculo de
utilidades no nível do planejamento social passa para o Legislador, mas que os cidadãos,
em sua ação reflexa, continuam calculando as utilidades para escolher quais ações realizar.
Esse desmembramento do cálculo de utilidades e o deslocamento de seu
nível social-organizativo para a alçada do Legislador possui uma enorme afinidade com a
redefinição do papel do monarca no contexto do desenvolvimento do absolutismo político.
218
De fato, há uma marcante e inegável proximidade entre o Legislador, do qual fala
explicitamente Helvétius e Beccaria, e a imagem do rei-legislador que vai ser formando
dentro da reflexão pró-absolutista. Assim o monarca absoluto que concentra em si o poder
político para usá-lo na racionalização social e no fomento ao desenvolvimento econômico
interno poderia ser progressivamente identificado com o Legislador que organiza a
sociedade segundo os princípios da moral utilitarista para promover seu aperfeiçoamento
geral. De resto, ainda devemos lembrar que a crença no absolutismo enquanto um fator de
modernização social, que é tão nítida em Beccaria e nos outros iluministas milaneses,
também fazia parte das esperanças de Helvétius, embora pouco apareça em sua principal
obra. Considerando o contexto do desenvolvimento do absolutismo tardio austríaco na
Lombardia, onde o soberano incumbia-se da tarefa de, pelo intervencionismo e dirigismo
social, provocar o desenvolvimento econômico, fica claro que a aplicação ao estudo do
direito penal do utilitarismo aprendido com Helvétius objetivava fornecer um fundamento
sólido para o seu uso enquanto instrumento para se modelar a sociedade.
O Iluminismo milanês do Circulo do Caffè desenvolveu-se em um
contexto em que faltava, da parte da sociedade civil, qualquer iniciativa contundente em
benefício da causa da modernização institucional e em que a única tendência eficaz nesse
sentido era o programa reformista e modernizador levado a cabo dentro do projeto
autocrático do absolutismo habsbúrgico, cuja meta não era, evidentemente, a emancipação
humana. A obra Dei Delitti e delle Pene de Cesare Beccaria é louvada até hoje, por
criminalistas de todo o mundo, como aquela que ajudou a fundar o direito penal moderno,
instaurando na esfera criminal os princípios humanistas, fundados na idéia iluminista de
dignidade da pessoa humana. A publicação dessa obra foi certamente o momento mais
brilhante e luminoso do Iluminismo milanês, mas continha, também, algo daquilo que iria
fazer com que suas sombras se avolumassem cada vez mais até levá-lo a seu triste
crepúsculo dentro das entranhas do absolutismo habsbúrgico. O papel exercido pela teoria
utilitarista, voltada sobretudo para fornecer ao soberano os métodos indicados para a
subordinação do conjunto social, mais ou menos como fazia a Cameralística e, em especial,
a Ciência de Polícia, e o implícito desapreço pela autonomia do sujeito que ela permitia
eram as sombras que pairavam à margem dos entusiasmados ideais republicanos de Dei
Delitti e delle Pene.
219
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