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Dissertação elaborada por Hermano de
França Rodrigues e apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal da Paraíba, área de
concentração Lingüística e Língua
Portuguesa, linha de pesquisa Semiótica, com
vistas à obtenção do grau de mestre em
Letras.
Orientador: Profª. Drª. Maria de Fátima
Barbosa de Mesquita Batista.
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HERMANO DE FRANÇA RODRIGUES
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Esta dissertação foi julgada e aprovada com
distinção para a obtenção do título de Mestre em
Letras, área de concentração em Lingüística e
Língua Portuguesa, no Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Federal
da Paraíba – UFPB.
Aprovação: João Pessoa, 10 de março de 2006.
Elisalva Madruga Dantas
Coordenadora PPGL / UFPB.
_________________________________________________________________
Profª. Drª. Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista – UFPB.
Orientadora
_________________________________________________________________
Profª. Drª. Neide Medeiros Santos – FCJA.
Examinadora
_________________________________________________________________
Profª. Drª. Mônica Nóbrega - UFPB
Examinadora
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À minha mãe, por ter desde cedo me colocado em
contato com o saber e nunca permitido que eu me
desviasse dele.
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Primeiramente a Deus, Pai de infinita bondade, que me iluminou e me
encaminhou nos estudos acadêmicos.
À minha família, por todo o incentivo positivo que me foi dado nesse
percurso.
Aos meus irmãos Gilmar, Gláucia e Cátia, por estarem sempre presentes
para me ajudar na organização deste trabalho.
Aos professores Cidmar Pais e Maria Aparecida Barbosa pelas valiosas
sugestões, dadas no Exame de Qualificação, que ampliaram este estudo.
À professora Mônica Nóbrega, pelo excelente curso de Lingüística Geral
que ofereceu contribuições importantes a meu saber científico.
Às minhas amigas Graziellen e Flávia, pela amizade e apoio ilimitado.
À amiga historiadora Mirele Rocha, pelos esclarecimentos históricos e pela
ajuda bibliográfica.
Aos amigos de curso que dividiram comigo a longa jornada do mestrado.
Enfim, a todas as pessoas, parentes e amigos que colaboraram de forma
direta ou não para a realização deste trabalho.
18
Agradecimento Especial
À minha orientadora
Profª. Drª. Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista
Pela exigência, intensamente positiva, pelo
comprometimento, dedicação e responsabilidade para
com os orientandos. Ela é, sem dúvida nenhuma, a
grande responsável pelo nosso crescimento cultural,
social e, precipuamente, pessoal.
Particularmente, se não fosse o seu estímulo, eu não
teria chegado aqui. Então, meu
muito obrigado...
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É preciso não acreditar que o espírito que inventa caminha ao acaso.
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O presente trabalho teve por objetivo analisar, semioticamente, as narrativas orais
de valentia, buscando observar os valores sócio-culturais e históricos capazes de
reverberar, explicitamente ou não, uma identidade nordestina ainda em
efervescência. Como arcabouço teórico, utilizou-se os modelos atuais da
Semiótica Greimasiana, mais especificamente, o da Semiótica do Discurso, que
tem como principais expoentes: GREIMAS, COURTÉS, PAIS, BATISTA, FIORIN
e BARROS. Realizaram-se, também, estudos sobre o Romanceiro Popular que
serviram para constituir um capítulo em que se delineiam as principais
características do romance oral, diferenciando-o de outros gêneros populares. O
corpus constou de quatro versões do romance tradicional O Boi Espácio do qual
se extraíram os dados que permitiram chegar à confirmação da hipótese
norteadora da pesquisa: o povo produz, em sua literatura, formas específicas de
representação, reprodução e reelaboração simbólica de suas relações sociais, o
que a torna um verdadeiro registro da cultura nordestina. A análise considerou,
primeiramente, uma investigação segmental das versões que possibilitou uma
reconstituição dos percursos temáticos do romance. Em seguida, procedeu-se à
narrativização, focalizando o agir de cada sujeito semiótico em busca de seu
objeto de valor. No nível discursivo, analisaram-se as relações intersubjetivas e
espaço-temporais, buscando estabelecer uma correlação entre os efeitos de
sentido provocados por tais procedimentos e os valores sócio-culturais do sujeito
produtor. À tematização e à figurativização coube estabelecer uma aproximação
entre discurso e contexto. Como último passo, efetuou-se uma análise das
estruturas fundamentais que trouxe à tona as ideologias imanentes ao discurso.
No romance analisado, o boi aparece sob os aspectos da realidade e da
imaginação popular, exercendo, imponentemente, o papel de protagonista. É um
herói autêntico cuja caracterização reverbera, inconscientemente ou não, uma
formação ideológica na qual emergem elementos culturais de auto-afirmação e de
auto-reconhecimento, ou seja, o fazer-ser do animal representa,
substancialmente, o ser, o ethos de um povo, de uma região. Seus dons físicos,
suas façanhas extraordinárias, além de lhe garantir superioridade, contribuem,
consideravelmente, para a construção de uma imagem que, ao concentrar valores
de merecimento e grandiosidade, passa a servir de referência sócio-histórica para
a sociedade que a concebe. Com efeito, espera-se que as análises por ora
realizadas possam contribuir de alguma maneira para a ciência semiótica e sua
aplicação ou possam, talvez, trazer um contributo aos estudos etnolingüísticos,
antropológicos e culturais. Espera-se, também, ainda que modestamente, suscitar
alguma reflexão social no tocante às constatações presentes neste estudo.
Palavras-chave: Semiótica – Romanceiro – Identidade
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Este trabajo tiene el objetivo de analisar, semióticamente, las narrativas orales de
valentía, buscando observar los valores socio-culturales e históricos capaces de
reverberar, explicitamente o no, una identidad nordestina aún en efervescencia.
Como teoría, se utilizó los modelos actuales de Semiótica Greimasiana, más
especificamente, de la Semiótica del Discurso, que tiene como principales
exponentes: GREIMAS, COURTÉS, PAIS, BATISTA, FIORIN y BARROS. Se
realizó, también, estudios sobre el Romancero Popular que servieron para
constituir un capítulo en que se delinean las principales características del
romance oral, diferenciándolo de otros géneros populares. El corpus constó de
cuatro versiones del romance tradicional O Boi Espácio de donde se extrayó los
dados que permitieron llegar a la confirmación de la hipótesis de la investigación:
el pueblo produce, en su literatura, formas específicas de representación,
reproducción y reelaboración simbólica de sus relaciones sociales, lo que la hace
un verdadero registro de la cultura nordestina. El análisis consideró,
primeramente, una investigación segmental de las versiones que posibilitó una
reconstituición de los percursos temáticos del romance. Enseguida, se procedió a
la narrativización, focalizando el actuar de cada sujeto semiótico en busca de su
valor. En el nivel discursivo, se analisaron las relaciones intersubjetivas y espacio-
temporales, buscando establecer una correlacción entre los efectos de sentido
provocados por tales procedimientos y los valores socio-culturalesdel sujeto
productor. A la tematización y a la figurativización cupo establecer una
aproximación entre discurso y contexto. Como último paso, se efectuó un análisis
de las estructuras fundamentales que trajo las ideologías inmanentes al discurso.
En el romance analisado, el buey aparece bajo los aspectos de la realidad y de la
imaginación popular, ejercendo, imponentemente, el papel de protagonista. Es un
héroe auténtico cuya caracterización reverbera, inconscientemente o no, una
formación ideológica en la cual emergen elementos culturales de autoafirmación y
de autoreconocimiento, o sea, el hacer-ser del animal representa,
sustancialmente, el ser, el ethos de un pueblo, de una región. Sus dones físicos,
sus hazañas extraordinarias, además de garantizarle superioridad, contribuyen,
considerablemente, para la construcción de una imagen que, al concentrar
valores de merecimiento y grandiosidad, pasa a servir de referencia socio-
histórica para la sociedad que la concibe. Se espera que los análisis realizados
puedan contribuir de alguna manera para la ciencia semiótica y su aplicación o
puedan traer, tal vez, una contribución a los estudios etnolingüísticos,
antropológicos y culturales. Se espera también, aún que modestamente, suscitar
alguna reflexión social en lo que se refiere a las constataciones presentes en este
estudio.
Palabras-Clave: Semiótica, Romancero, Identidad.
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
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1. A TEORIA SEMIÓTICA
20
1.1. Preliminares
20
1.2. Metamodelos sincrônicos
21
1.2.1. Saussure e o objeto da Lingüística
22
1.2.2. Martinet e a dupla articulação lingüística
28
1.2.3. Chomsky e a Gramática Gerativa
32
1.3. Metamodelos Pancrônicos
36
1.3.1. Coseriu e sua visão tricotômica da linguagem
38
1.3.2. Hjelmslev e a função semiótica
40
1.3.3. Greimas e os níveis semióticos
44
1.3.3.1. Nível Fundamental
46
1.3.3.2. Nível Narrativo
50
1.3.3.3. Nível Discursivo
63
2. O ROMANCEIRO POPULAR
81
2.1. O que é um romance popular?
81
2.2. Origem do romance popular
90
2.3. Permanência e difusão do romance popular
no Nordeste do Brasil
93
23
3. ANÁLISE SEMIÓTICA DO
ROMANCE ORAL O BOI ESPÁCIO
96
3.1. Preliminares
96
3.2. Organização textual: versões examinadas e segmentação
97
3.3. Estruturas Narrativas
102
3.3.1. A propósito do sujeito semiótico 1
103
3.3.2. A propósito do sujeito semiótico 2
105
3.3.3. A propósito do sujeito semiótico 3
106
3.3.4. A propósito do sujeito semiótico 4
108
3.3.5. A propósito do sujeito semiótico 5
110
3.3.6. A propósito do sujeito semiótico 6
111
3.3.7. A propósito do sujeito semiótico 7
113
3.3.8. A propósito do sujeito semiótico 8
114
3.3.9. A propósito do sujeito semiótico 9
116
3.3.10. A propósito do sujeito semiótico 10
121
3.3.11. A propósito do sujeito semiótico 11
122
3.3.12. Qualificação dos valores
124
3.3.13. Quadro-resumo das Estruturas Narrativas
127
3.4. Estruturas Discursivas
129
3.4.1. Delegação de Voz e Relações Argumentativas
129
3.4.2. Temporalização
148
3.4.3. Espacialização
153
3.4.4. Tematização e Figurativização
160
3.4.5. Leituras Temáticas
166
24
3.5. Estruturas Fundamentais
167
CONSIDERAÇÕES FINAIS
179
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
183
ANEXOS
191
Versão BE1
192
Versão BE2
193
Versão BE3
194
Versão BE4
195
25
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As manifestações culturais populares podem ser vistas além de sua
aparência folclórica, lúdica ou artística, numa perspectiva que as situe como
cenário de práticas sociais e de construção de identidade. São através delas que
historiadores, antropólogos
e lingüistas conseguem recuperar informações
preciosas sobre a cultura e a história
de um povo e de uma época.
Sob esse prisma, a Literatura Popular, em sua dupla modalidade, oral e
escrita, apresenta-se, indiscutivelmente, como uma marca da identidade do
homem nordestino e, tal como é posta, cria fronteiras culturais entre o Nordeste e
o resto do Brasil. Ela propõe novas formas de apreensão do real, deslocando,
para um exterior definido, o referencial constituinte das representações que os
indivíduos fazem de si mesmos e de sua sociedade. Dessa forma, os processos
de construção de identidades são considerados frutos das relações dos indivíduos
ou grupos com processos sociais mais amplos e, portanto, compreensíveis a
partir da busca de reconhecimento e de legitimidade para as suas
especificidades.
As compilações orais, inventário maior da literatura popular, ao serem
(re)construídas incessantemente, seja por intervenção das forças coativas do
26
tempo, seja por determinações ideológicas, apresentam uma textualização
peculiar, própria, fruto de adaptações aos múltiplos contextos em que se
manifestam. Esse contínuo enunciar torna a literatura oral uma fonte inesgotável
de vestígios lingüísticos e sociológicos capazes de desvelar o saber e as
intenções discursivas de um povo, de uma gente que, embora iletrada, elabora
uma literatura, altamente produtiva, por meio da qual expressa seus valores, suas
crenças, seus comportamentos, enfim, sua visão de mundo.
Ao veicular elementos culturais, ideológicos e históricos do Nordeste, a
literatura popular consegue representar, de maneira legítima, as “engrenagens”
sociais dessa região. Nesse sentido, as peças populares representam, para o
nordestino, bem mais do que manifestações de caráter estético, artístico,
histórico; são expressões de uma prática cultural, a reatualização de uma
memória coletiva que se presentifica nos mais variados gêneros (romances,
cordéis, mitos
, lendas, contos, provérbios), revelando o imaginário do tempo e do
espaço em que foi criada.
Tanto o romance oral quanto o folheto de cordel são produções culturais
que retratam, implícita ou explicitamente, a memória de um povo. A diversidade
temática dos textos é tão acentuada que podemos encontrar cordéis e romances
orais sobre uma multiplicidade de acontecimentos, desde fatos rotineiros do
cotidiano até ocasiões especiais, como narrativas históricas e religiosas, muitas
até transformadas em teatro. Esses textos relacionam-se, em sua maioria, com a
realidade popular, observada e transformada em literatura pelos autores.
As produções populares, por trazerem marcas das relações sociais
(comportamentos, crenças, valores) daqueles que as produzem, tornam-se
documentos genuínos e extremamente valiosos que permitem ao estudioso
27
restaurar e apreender a visão de mundo de um povo cujos valores culturais,
embora sofrendo as imposições mutiladoras da modernidade, ainda continuam
vivos e latentes. Por isso, ao analisar peças de natureza popular, deve-se,
inicialmente, levar em consideração a sociedade na qual são produzidas, uma vez
que pertencem a um contexto sóciocultural historicamente determinado. Esse
procedimento permite enxergar o fazer e o agir do povo como processos
dinâmicos, atuais; não como algo anacrônico, uma simples sobrevivência,
resquícios do passado no presente.
A construção deste texto-dissertação comporta um estudo que tenta
contemplar a diversidade das imagens que a narrativa popular produz sobre o
Nordeste, resgatando fatos históricos e pondo em evidência aspectos humanos e
físicos da região. Procurou-se recuperar, ainda, as ideologias produzidas no
contexto sócio-cultural que lhes dá origem, reconstituindo e interpretando os
processos sociais que fazem emergir uma sociedade autônoma que conserva
inalteráveis seus valores identitários.
Para auxiliar nessa árdua trajetória, recorreu-se aos fundamentos
epistemológicos e operacionais da Semiótica Greimasiana, que forneceram os
instrumentos adequados para se debruçar sobre a concretude dos textos e extrair
dela o material necessário à confirmação das hipóteses. Evidentemente, sendo o
discurso um amálgama de outros discursos, foi inevitável tecer alguns
comentários extra-textuais que reforçam e, por vezes, cristalizam o dito.
Dada a riqueza temática das narrativas orais, especificamente das gestas
de valentia, selecionou-se um corpus que contemplou aspectos constitutivos da
sociedade nordestina, tais como história, cultura e tradição. Esses elementos,
fundidos e revestidos pelo imaginário popular, ganham dimensões ao mesmo
28
tempo individuais (subjetivas) e regionais (coletivas), capazes de “denunciar” os
valores de um povo que se (re)constrói discursivamente através de suas
manifestações literárias.
Assim, para atingir os propósitos da pesquisa, foram extraídas do
Romanceiro Tradicional (1988), de autoria de Batista, quatro versões do romance
oral O Boi Espácio, coletadas em cidades do interior e da zona urbana da
Paraíba e de Pernambuco. A narrativa se estrutura em torno de um boi valente
que, simbolicamente, representa determinados valores da cultura nordestina. Por
meio dele, foi possível perceber, com acuidade e sensibilidade, os dados
identitários que se presentificam substancialmente nos textos.
A pesquisa conseguiu, satisfatoriamente, alcançar os objetivos a que se
propôs e, por conseqüência, a confirmar, como era previsto, as hipóteses que
fundamentaram as reflexões acerca do corpus e direcionaram as análises.
Buscou-se, como objetivo principal, analisar, semioticamente, o processo
de construção da identidade do homem nordestino na poesia tradicional de
valentia, a partir do exame dos aspectos culturais, ideológicos, sociais e
históricos, presentes nos textos, capazes de alicerçar uma identidade cultural e
regional. Para tanto, fez-se necessário estabelecer um percurso sistemático que
compreendeu as seguintes ações: a) realização de um estudo teórico acerca da
semiótica greimasiana e sobre o romance oral e sua permanência e difusão no
nordeste brasileiro; b) análise das estruturas narrativas, observando o agir de
cada sujeito semiótico em busca de seu objeto de valor, como também as
modalidades que, semanticamente os instauram; c) exame, no corpus
selecionado, das projeções actoriais, temporais e espaciais, descrevendo os
efeitos de sentido provocados por tais mecanismos; d) recuperação, através do
29
estudo da semântica discursiva, das ideologias imanentes às narrativas de
valentia, reconstituindo e interpretando os processos socioculturais e os valores
da sociedade nordestina; e e) análise das oposições semânticas no nível da
semântica profunda, buscando determinar a axiologia, os microssistemas de
valores sustentados pelos textos.
Partiu-se das hipóteses de que: (a) o povo produz, em sua literatura,
formas específicas de representação, reprodução e reelaboração simbólica de
suas relações sociais, o que a torna um verdadeiro registro da cultura nordestina;
(b) as narrativas de valentia abarcam uma diversidade de imagens que
caracterizam tanto social quanto culturalmente o Nordeste; (c) a identidade do
homem nordestino emerge, nas diferentes narrativas de valentia, a partir do
entrecruzamento de discursos, história e cultura.
A partir dessas elucidações, dividiu-se a pesquisa em três capítulos que
comportam e direcionam as leituras, as análises, enfim, o engendramento deste
texto-dissertação.
Reservaram-se para o primeiro capítulo, os pilares teóricos que
subsidiaram com precisão as análises, dando um respaldo científico para as
reflexões que, aqui, foram realizadas. Preferiu-se não partir do tradicional
panorama histórico da semiótica por considerar que algumas inferências se
mostrariam insignificantes para o propósito da pesquisa. Optou-se, então, por
discorrer sobre as bases epistemológicas e metodológicas das principais
correntes lingüísticas, situando-as em dois grupos: os modelos sincrônicos e os
modelos pancrônicos. Tal procedimento permitiu estabelecer pontos de contato
entre abordagens que a tradição concebia como radicalmente opostas, como por
exemplo, entre o estruturalismo e o gerativismo.
30
Apresentou-se a semiótica como uma ciência que se fundamenta
pancronicamente e não evolutivamente, o que possibilitou imprimir à teoria um
revestimento metodológico mais dinâmico, afastando-a da simples relação
signosigno. Não houve, neste trabalho, uma tentativa de negar a relação entre
os estudos do signo e a formação da semiótica, apenas privilegiou-se um outro
momento histórico da teoria: sua relação signousuário dentro de uma situação
discursiva.
O percurso gerativo de sentido, unidade operatória da semiótica, foi
descrito minuciosamente em suas estruturas constituintes: narrativa, discursiva e
fundamental. Investigou-se cada nível através da exposição detalhada de seu
componente sintático e semântico.
Para o segundo capítulo, julgou-se pertinente uma “viagem” pelas origens
e difusão do romance popular para que nosso corpus fosse devidamente
justificado e coberto por olhares científicos. Procurou-se elencar as características
que identificam o romance oral, distinguindo-o de outras manifestações populares,
como a fábula, o conto e o folheto de cordel. Em seguida, discorreu-se sobre os
fenômenos que são responsáveis por sua permanência e disseminação no
nordeste do Brasil.
Ao terceiro capítulo, destinou-se um mergulho nas análises, que
permitiram decifrar as tramas discursivas, fazendo emergir os sentidos que se
instauram nas subjacências dos textos. Inicialmente, estudou-se a segmentação
de cada versão, procurando estabelecer, entre elas, convergências e
discrepâncias. Isto tornou possível uma apreensão mais sistêmica de
determinados dados que aparecem em algumas versões e estão ausentes em
outras. Logo depois, passou-se a investigar a narrativização do corpus escolhido,
31
através da descrição dos percursos realizados por cada sujeito semiótico e a
constatação das modalidades que os instauram. Quando possível, examinou-se
as relações manipulatórias que se estabelecem entre os sujeitos.
A análise discursiva constituiu o terceiro passo. As relações
argumentativas entre enunciador e enunciatário foram vislumbradas a partir das
projeções actanciais, temporais e espaciais. Coube à tematização e
figurativização assumirem a correlação entre as leituras intra e extradiscursivas. A
axiologia sustentada pelos discursos foram estudadas nos três níveis, porém só
no fundamental, houve um aprofundamento e operacionalização por meio dos
octógonos semióticos.
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As múltiplas correntes da lingüística moderna, quando consideradas em seus
fundamentos epistemológicos que, substancialmente, norteiam seus estudos e
aplicações, apresentam divergências no que diz respeito à noção de estrutura que
adotam. Enquanto umas legitimam um modelo estático, compreendendo a língua
apenas em sua imanência, outras, mais voltadas para questões extradiscursivas,
concebem um modelo dinâmico no qual a correlação signo-usuário é privilegiada.
Consoante Barbosa (1996), tais linhas de investigação lingüística “podem ser
agrupadas, ainda que de maneira elementar, em dois grandes grupos”, cuja
designação traduz, claramente, os alicerces teóricos que as caracterizam, ou
seja, que meta-teorias as constituem cientificamente. Propõe a autora a seguinte
divisão: os meta-modelos sincrônicos (estudos que priorizam a análise do
sistema, visto que concebem a língua como forma que se configura
sincronicamente) e os meta-modelos pancrônicos (pesquisas que
compreendem o sistema como um processo contínuo de auto-alimentação e auto
regulação, que se modifica discursivamente).
33
Perpassando a densa cartografia das bases epistemológicas dos diversos
rumos da ciência da linguagem, é possível identificar algumas orientações
teóricas que se aproximam coerentemente, embora provenham de abordagens
distintas. Nesse âmbito, pode-se elencar as conhecidas oposições língua / fala
(Saussure), código / mensagem (Martinet e Jakobson), competência /
performance (Chomsky) e sistema / processo (Hjelmslev) em que, erigidas ou
sobre o princípio da estabilidade (as formalistas) ou se opondo a este (as
funcionalistas), encerram uma certa “semelhança”, sobretudo metodológica, na
forma de conceber binariamente o objeto-linguagem.
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O método sincrônico, gestado sob a égide do estruturalismo, caracteriza-se,
epistemologicamente, por abstrair das análises lingüísticas as considerações de
cunho histórico, para assim, “purificar” e cientificar o seu objeto, a língua,
concebida unicamente através de sua imanência.
Investigar sincronicamente os dados permanentes do fenômeno lingüístico é
concebê-los como fazendo parte de um sistema organicamente estável e
autônomo cujas unidades constituintes são fixadas, classificadas, prescritas como
imutáveis em seu momento realizador e variáveis somente a longo prazo, ao se
submeterem às forças coativas do tempo. Ademais, as questões enunciativas são
deixadas de lado ou, simplesmente, abandonadas visto que são supostas como
caóticas e extremamente instáveis, impossíveis de serem apreendidas.
Fazem parte dos meta-modelos sincrônicos as abordagens lingüísticas que
se constroem a partir de “uma noção de estrutura, entendida como um conjunto
34
de relões estáticas, numa etapa sincnica” (Barbosa, 1996, p.16). Grandes
lingüistas como Saussure, Martinet e Chomsky compartilham dessa visão.
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Rompendo com a orientação histórica do século XIX, marcada
essencialmente por estudos de natureza comparativa, Saussure, no seu Curso de
lingüística geral, estabelece os pilares científicos de uma lingüística estrutural. Ao
tomar a língua como uma entidade autônoma, o mestre genebrino exclui,
consideravelmente, os elementos concernentes à linguagem, os quais “poderiam
ser estudados do ponto de vista de outras ciências” (Fiorin, 2002, p.27). Com isso,
postula Saussure que,
“tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita;
a cavaleiro de diferentes domínios, ao mesmo tempo física,
fisiológica e psíquica, ela pertence ao domínio individual e ao
domínio social, não se deixa classificar em nenhuma
categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir
sua unidade” (1969, p.17)
Por situar-se no nível extra-sistêmico e, por conseguinte, pertencer à ordem
da instabilidade, a linguagem não poderia ser imobilizada pelo lingüista, o que a
torna, portanto, “inadequada” para assumir o posto de objeto científico. Contudo,
se assim ocorresse,o objeto apareceria como um aglomerado confuso de coisas
heteróclitas, sem liame entre si e estaria aberta a porta para várias ciências, como
a Antropologia, a Psicologia, etc.” (Fiorin, p. 27, 2002). Infere, então, Saussure,
ser necessário tomar a língua como matéria e núcleo de suas reflexões:
35
“[A langue constitui] um todo em si e um princípio de
classificação [...] conjunto de convenções necessárias
adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa
faculdade [da linguagem] nos indivíduos (1969, p.17); sistema
de signos [e de regras] (1969, p.23); tesouro depositado pela
prática da fala em todos os indivíduos pertencentes à mesma
comunidade (1969, p.21)”.
Dessas ponderações, resulta a clássica oposição entre os atos lingüísticos
concretos (parole) e o sistema que lhes serve de suporte (langue). Para o
lingüista suíço, a fala encontra-se no nível da manifestação individual visto que
aqueles que a utilizam sempre o fazem por iniciativa pessoal. Ela é momentânea
e heterogênea, estando, pois, situada no reino da liberdade e da criação. A
língua, por sua vez, é homogênea, um conjunto de signos interrelacionados,
obrigatório para todos os membros de uma comunidade lingüística. Esse sistema,
enquanto representação coletiva, não se define pela fala, impõe-se
inapelavelmente ao indivíduo uma vez que este não pode modificá-lo
conscientemente:
A língua não constitui, pois, uma função do falante: é o
produto que o indivíduo registra passivamente; não supõe
jamais premeditação, e a reflexão nela intervém somente
para a atividade de classificação (...)” (CLG, 1969, p.22)
Certamente, nenhuma outra posição lingüística até Saussure tinha
estabelecido com tanta acuidade e vigor o distanciamento entre a esfera
individual e a esfera social do funcionamento da linguagem. Ao mesmo tempo,
entretanto, é preciso lembrar que ele insistiu sempre na interdependência desses
dois constituintes:
36
Sem dúvida, os objetos [langue e parole] estão estreitamente
ligados e se implicam mutuamente; a língua é necessária
para que a fala seja inteligível e produza todos os seus
efeitos; mas esta é necessária para que a língua se
estabeleça”. (CLG, 1969, p.27)
A autonomia dos estudos da langue produziu resultados consideráveis para
a ciência da linguagem. A estabilização do objeto, empiricamente independente
do conhecimento histórico, permitiu ao lingüista entender e apreender
sincronicamente os princípios que “administram” o sistema. As “regras imanentes”
de cada estado de língua puderam ser percebidas conforme elas operam, se
efetivam, se transformam, evidenciando, embora sutilmente, como as formas e
sentidos se integram no sistema, num dado período, sem interferência dos
ditames da evolução, anterior ou futura. Cabe salientar, entretanto, que a
prioridade dada ao estudo sincrônico não revela que o fundador da lingüística
desconhecia o fato de ser a língua fundamentalmente histórica e inconstante.
Pelo contrário, é por ter reconhecido a mutabilidade e a historicidade da língua
que ele assinala a necessidade de distinguir fatos concernentes ao sistema
lingüístico de fatos relativos à evolução lingüística:
“a multiplicidade de signos (...) da língua nos impede
absolutamente de estudar-lhe, ao mesmo tempo, as relações
no tempo e no sistema (CLG, 1969, p.96); a langue constitui
um sistema de valores puros que nada determina fora do
estado momentâneo de seus termos. (CLG, 1969, p.95)”
Determinados constructos teóricos, acerca da variação lingüística,
formulados por Saussure e defendidos por muitos lingüistas do estruturalismo
europeu, encerram, por vezes, limitações que impedem uma compreensão mais
37
apurada e mais intensa a respeito da dinamicidade lingüística. São preceitos,
investigações que, barradas pelas doutrinas científicas, ideológicas e, por que não
dizer contextuais, da época, não conseguiram apreender o fenômeno em sua
totalidade. Ao vislumbrarem o tempo como única força capaz de acarretar
mudanças profundas na língua, o exímio teórico e seus seguidores ignoraram,
potencialmente, o papel e a relevância de diversos fatores, de natureza interna e
externa, que também podem propiciar a transposição, a passagem de um estado
sincrônico para outro. Dentre alguns fatores, merecem destaque aqueles de
caráter social e cultural. Os reveses do tempo asseguram, excepcionalmente, o
reconhecimento de dois estados de língua, isto é, marcam os limites transitórios
de uma língua que detém, em seus múltiplos estágios, aspectos fônicos, mórficos,
sintáticos e estilísticos distintos.
Quando Saussure afirma, veementemente, que a língua é uma instância
puramente social, alguns esclarecimentos são relevantes para que não se
fecunde uma concepção de dinâmica sistêmica relacionada com os princípios
axiológicos, extremamente instáveis (não caóticos), que inerentemente
constituem a língua(gem). Ao abstrair a sociedade dos estudos lingüísticos,
Saussure declara explicitamente que a língua conserva princípios constitutivos e,
o mais importante, únicos. Tais princípios, abstratos, porém não irreais,
configuram um padrão que se impõe homogeneamente a todos os indivíduos de
uma dada comunidade. Daí advém a tese de que a língua é uma entidade
coletiva. A seguinte fala de Lyons assevera as idéias acima:
Ao afirmar que os sistemas lingüísticos são fatos sociais,
Saussure estava dizendo várias coisas: que eles são
diferentes dos objetos materiais, embora não menos reais do
38
que esses; que são externos aos indivíduos e sujeitam-nos à
sua força restritiva; que são sistemas de valores mantidos por
convenção social.” (1987, p. 205)
Os elementos lexicais, gramaticais e fonológicos que são interiorizados,
adquiridos, assimilados por cada indivíduo e que lhe permitem falar e entender a
língua da sociedade em que foi educado só podem ser considerados como
indícios sociais na medida em que sua aquisição e disponibilidade se processam
idêntica e indistintamente para todos os falantes.
Não estaremos agredindo o pensamento saussureano se declararmos que a
descrição sincrônica somente se sustenta a partir da identificação de língua
enquanto estrutura, visto que, convenientemente, tal formulação confere-lhe o
status de instância abstrata, sistemicamente consolidada, que independe da
substância física (ou meio) em que se realiza. Nesse sentido, a noção de sistema
solidário cujas partes constituintes estão inter-relacionadas, não amontoadas,
converge, então, para o ensinamento de que a langue é forme, non substance.
De acordo com esse ponto de vista, a língua nada mais é que um sistema de
relações, ou melhor, comporta dois níveis nos quais todas as formas lingüísticas
(fonemas, morfemas, etc.) encadeiam-se, distribuem-se, em suma, relacionam-se.
Surgem, então, as relações sintagmáticas e paradigmáticas. A primeira,
responsável pela ordenação seqüencial dos elementos no enunciado, rege o
princípio da linearidade, resultante este do pacto firmado entre os elementos que,
combinatoriamente, contrastam entre si. Essa relação opositiva não atinge
apenas os sintagmas, indo além, ocorrendo, indiscriminadamente, entre
elementos de mesma classe lingüística: fonema diverge de fonemas, morfema se
opõe a morfemas, etc., instaurando os processos distribucionais de natureza
39
exclusivamente funcional. A segunda, paradigmática, de ordem associativa, opera
no eixo dos sistemas de categorias (classes) e dos elementos, engendrando
novos termos através de substituições de ordem contrastiva e/ou identitária. As
comutações se efetivam mediante abstrações de traços lingüísticos,
permanentemente comuns, que passam a figurar como paradigmas.
Essas interrelações (combinatórias e comutáveis) ganham contornos mais
nítidos quando se agregam às reflexões acerca do signo lingüístico e,
consequentemente, ao postulado de sua arbitrariedade.
Erigido diadicamente, o signo saussureano resulta da fusão de um conceito
com uma imagem acústica. Por conceito, entende-se a representação mental de
um objeto, forjada a partir da realidade social em que nos inserimos e por isso
condicionada pela formação sociocultural que nos circunda desde o nascimento.
Em outras palavras, para Saussure, conceito equivale a significado (plano das
idéias), algo como o lado espiritual da palavra, sua contraparte inteligível, em
oposição ao significante (plano da expressão), que é sua parte sensível. Por outro
lado, a imagem acústica não é o som material, coisa puramente física, mas a
impressão psíquica desse som. Melhor dizendo, a imagem acústica é o
significante. Com isso, temos que o signo lingüístico é uma entidade psíquica de
duas faces semelhante a uma moeda.
Estabelecida a acepção do signo lingüístico como entidade de duas faces,
Saussure procede à sua caracterização. Desde logo, Saussure apura a
arbitrariedade do signo. A associação entre significante e significado é arbitrária.
O vínculo que une as duas faces do signo é de natureza convencional, ele
assenta num hábito coletivo. Assim, a idéia de "mesa" não está ligada por
nenhuma relação à sucessão de sons [m] + [e] + [s] + [a] que lhe serve de
40
significante; podia ser tão bem representada por qualquer outra. As diferenças
entre as línguas e a própria existência de línguas diferentes comprovam tal
afirmação.
Apesar das críticas arremessadas ao saussureanismo, muitas delas
descabidas e “ingênuas”, há de se reconhecer a sua insigne importância e
fecundidade. A Lingüística só se construiu verdadeiramente quando outros
rebentos, enxertados pelas reflexões do mestre suíço, seja para refutá-las, segui-
las ou, poucas vezes complementá-las, procuraram interrogar sobre o modo como
as línguas se modificam, para, daí, saber como elas funcionam. Seu grande
mérito não jaz, unicamente, na descoberta das ilustres dicotomias, mas,
principalmente, nos questionamentos epistemológicos que foi capaz de suscitar. A
esse respeito, afirma Pais:
l’importance de son travais découle surtout des questions
extrêmement fécondes qu’il a soulevées, sur lesquelles sés
successeurs ont dû se pencher longuement.” (1993, p.30)
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Adepto do funcionalismo, o lingüista francês André Martinet concebe a
linguagem como um processo no qual se sobressaem dois elementos: o código
(elementos lingüísticos que constituem o sistema) e a mensagem (a informação
operada através dos atos de fala). Para o autor, o funcionamento da língua se dá
através das escolhas do falante, que faz uso do código para satisfazer sua
intenção de comunicação. Não há lugar, em sua teoria, para o tratamento
substancial da informação, ou seja, inexiste o interesse em se investigar como
41
esse fenômeno se constitui e como se efetiva mediante a presença dos
interlocutores:
[...] o homem se serve da língua para se exprimir, ou seja,
para analisar o que sente, sem se preocupar grandemente
com as reações de eventuais ouvintes.” (Martinet, 1970,
p.06).
O termo ‘escolha’, empregado por Martinet, não traduz sequer um caráter
dinâmico de enunciação visto que o falante apenas seleciona as estruturas que
vão corporificar a mensagem. A partir de determinadas seleções, um número de
elementos da mesma classe é excluído e, com isso, atualiza-se, opositivamente,
o código. Os mecanismos que permitem a este recuperar e armazenar a
informação elaborada não são levados em consideração, o que exclui,
consideravelmente, a possibilidade de se examinar o dinamismo do sistema.
Sua definição de língua, lapidada no espírito saussureano, reflete e, ao
mesmo tempo, reforça convicções ainda estruturalistas. Situada entre as
instituições humanas, a língua, na perspectiva martinetiana, é demarcada
estaticamente como um instrumento de comunicação, cuja funcionalidade
encontra-se submetida inteiramente às necessidades de compreensão mútua dos
membros de determinado grupo social. Enquanto entidade institucional, é
organicamente formada por regras (códigos), sincronicamente apreendidas e
sistematizadas que a regem e a constituem. Tudo concorre para uma
mutabilidade sistêmica subordinada às pressões temporais e, precipuamente, às
adaptações espaciais, ambas se realizando simultaneamente, ou seja: uma
sociedade detém formas específicas de organizar linguisticamente seu
pensamento que a diferenciam de outra e, com o passar do tempo, essas formas
42
tendem a variar para satisfazer as novas necessidades comunicativas dos novos
indivíduos.
Se a função central do utensílio língua é a comunicação, faz-se necessário
distingui-lo de outros sistemas, vocais ou não, que também primam pela atividade
comunicativa. Assim, como discriminar gritos e grunhidos confusos de animais,
sinalização das estradas, ou simplesmente, imagens visuais de manifestações
genuinamente lingüísticas? O teórico francês dissolve o questionamento ao
certificar que a linguagem humana, por extensão a língua, ao contrário de outras
manifestações que geram a comunicação, reserva para si o caráter da
articulação. O homem só se faz entender na medida em que produz enunciados
harmoniosamente articulados em palavras sucessivas, as quais,
semelhantemente, são constituídas por nítidas sucessões fônicas. Depreende-se,
então, que fazer a língua funcionar é articulá-la em dois planos intimamente
relacionados: um em que os enunciados se articulam em monemas (unidades
mínimas significativas), e outro em que os monemas se articulam em fonemas
(unidades mínimas distintivamente sonoras):
“Uma língua é um instrumento de comunicação segundo o
qual, de modo variável de comunidade para comunidade, se
analisa a experiência humana em unidades providas de
conteúdo semântico e de expressão fônica – os monemas.
Esta expressão fônica articula-se por sua vez em unidades
distintas e sucessivas – os fonemas –, de número fixo em
cada língua e cuja natureza e relações mútuas também
diferem de língua para língua” (Martinet, 1970, p.17-18).
A sucessividade das unidades articulatórias é desencadeada e, sobretudo,
garantida pelo princípio da linearidade, visto que em cada segmento enunciado,
43
tanto concentra valor a ordem dos fonemas como a seleção destes para a
formação dos monemas. O termo acústico /amor/ comporta os mesmos
elementos sonoros que /roma/, mas os dois signos são distintos. Já nas unidades
de primeira articulação, o fenômeno apresenta certa complexidade. A estrutura O
policial prendeu o bandido não encerra a mesma significação da sucessão O
bandido prendeu o policial, porém, em determinadas estruturas, pode-se
vislumbrar o deslocamento de um signo de um ponto a outro sem que acarrete
mudança de sentido, como se sucede em Ontem fui à praia e Fui à praia
ontem.
É interessante notar que o caráter linear que perpassa as duas articulações
traz à tona a propriedade que Martinet considera fundamental para que a língua
se imponha como um instrumento comunicativo de emprego geral, a economia
lingüística. Como nenhum sentido se prende aos segmentos fônicos, não se fixa,
assim, nenhuma barreira semântica que obstrua a escolha, ou melhor, a seleção
de matéria sonora para concretização dos segmentos monêmicos. Em outros
termos, a segunda articulação concentra a vantagem de tornar independente do
valor do significado a forma do significante correspondente, atribuindo, assim,
maior estabilidade à forma lingüística. O testemunho do autor alicerça tais
ponderações:
A articulação de uma palavra numa sucessão de fonemas
impede que o sentido dessa palavra exerça qualquer
influência sobre esta forma. Pode-se conceber cada fonema
como um hábito motor particular que permanece sempre
idêntico a si próprio, qualquer que seja o sentido do contexto
no qual aparece” (Martinet, 1975, p.16).
44
As escolhas operadas pelo locutor não podem ser concebidas como ações
que desencadeiam a dinâmica do sistema. Os fatos ocorrem previsivelmente: o
sujeito falante, imbuído do desejo de comunicar, constrói um número infinito de
mensagens diferentes a partir do encadeamento de códigos, de natureza
significativa (os monemas) e de ordem sonora (fonemas). Conforme Barbosa, “em
nenhum momento, na teoria clássica de Martinet, se vislumbra a variação do
sistema. O código aparece como uma disponibilidade estática para as
atualizações e como um modelo pronto, segundo o qual se analisam as
experiências individuais” (1996, p.22). Estas, por sua vez, são responsáveis tanto
pela existência do ato comunicativo, como também pela distinção e classificação
dos fenômenos lingüísticos.
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Foi em 1957 que Noam Chomsky, lingüista americano e pedagogo, fundou a
gramática gerativo-transformacional, um sistema que revolucionou a lingüística
moderna. Publicada em seu livro Syntatic Structures, essa teoria estabelece um
novo método de análise sintática de frases que leva em consideração a diferença
entre os níveis “superficial” e “profundo”. No nível de superfície, estruturas como
Maria está ansiosa por agradar” e “Maria é fácil de agradar
” podem ser
investigadas de maneira análoga, caso se considere apenas a função sintática
dos termos que as constituem. Entretanto, do ponto de vista de seu significado
subjacente, os dois enunciados se distanciam completamente. No primeiro, jaz a
informação de que Maria deseja, aflitamente, agradar alguém; no segundo
enunciado, tem-se o parecer de que alguém pretende ou encontra-se empenhado
45
em agradar Maria. Delineiam-se, assim, os contornos de uma gramática que se
define como um sistema de regras que unem as unidades fônicas à sua
interpretação semântica. O testemunho que se segue firma, em bases sólidas, as
reflexões esboçadas:
A estrutura profunda contém, portanto, todos os dados que
devem permitir determinar o conteúdo semântico da frase,
enquanto a estrutura superficial, todos os elementos que
devem permitir alcançar a forma fonética da frase” (Nivette,
1975, p.43).
Adentrando pelo viés metodológico, percebe-se que a teoria gerativa
apresenta limites não muito bem delimitados, ocorrendo discrepâncias que
requerem um exame apurado de determinados axiomas epistemológicos. Em
primeiro lugar, Chomsky baseia-se em argumentos racionais e em hipóteses
intuitivas sobre a linguagem para construir um modelo lógico-matemático capaz
de tornar explícito o sistema mental de regras interiorizado pelo sujeito falante e
que se encontra subjacente em todos os seus atos de realização vocal. Em
seguida, reconhece o teórico a necessidade de recorrer a ações empíricas, visto
que objetiva a certa formalização, porque não dizer, aprisionamento do objeto.
Torna-se impossível explicar a natureza das regras como também a descrição
das mesmas se um recorte sincrônico não for firmado, separando, rigorosamente,
aquilo que é inerentemente lingüístico do que não é lingüístico. Com isso, a ficção
da homogeneidade do sistema lingüístico é mais uma vez posta em cena.
A gramática gerativa surge, pois, como uma teoria visivelmente
estruturalista. Ao focalizar a língua segundo o aspecto sincrônico, considerando-a
uma estrutura, propõe-se por alvo o sistema ordenado das unidades e das
46
relações. A inconstância sistêmica é atribuída ao processo de reconhecer e
formular estruturas sintaticamente aceitáveis, embora previstas e, sobretudo,
permitidas pelas regras assimiladas, automaticamente, pelos sujeitos falante-
ouvinte.
Procurando dados que sustentem a sua opinião, Chomsky concebe, ao
sabor saussureano, uma dicotomia: competência x performance. O conhecimento
que o falante-ouvinte tem das regras de sua língua, ele chamou de competência.
Ao emprego efetivo dessa língua em situações concretas, denominou de
desempenho (performance). Deduz Chomsky que a lingüística deve “apoderar-
se”, unicamente, do estudo da competência, da descrição das regras que
governam a estrutura e relegar, fortemente, a instabilidade e os “erros” de
desempenho (o uso). Eis, a respeito, a afirmação de Neto:
Chomsky desloca a questão fundamental da teoria lingüística
para a determinação das regras que regem os “corpora
representativos”, que deixam assim de ser o ponto de partida
da teoria lingüística e passam a ser o seu ponto de chegada”.
(2004, p.99)
A atenção de Chomsky recai, portanto, sobre a competência, a qual concebe
como a possibilidade ilimitada do locutor de construir e compreender um número
infinito de frases a partir de um número finito de regras, incluído, pois, o
julgamento de sua gramaticalidade. Para o autor, a comunidade lingüística possui
um conhecimento compartilhado sobre os enunciados que podem e os que não
podem ser produzidos e é justamente este conhecimento que constitui o escopo
da gramática gerativa, de natureza inata e de idêntica disponibilidade para todos
os falantes. Atribui-se, então, à competência um caráter rigidamente sincrônico. O
47
testemunho de Nivette explicita nitidamente a posição do gerativismo de negar o
desempenho:
O estudo da competência consistirá, pois, na elaboração de
teorias relativas ao poder lingüístico do homem, enquanto o
estudo do desempenho, na elaboração de teorias destinadas
a apresentar ou a explicar alguns aspectos do
comportamento do homem, quando utiliza o seu poder
lingüístico. Uma gramática gerativa pode considerar-se como
representante de uma teoria parcial do poder lingüístico; de
maneira alguma, ela não pode nem pretende ser uma
descrição dos comportamentos lingüísticos reais. (1995, p.81)
Embora Chomsky reconheça a existência de uma criatividade lingüística (a
produção de sentenças), esta se resume a um simples processo de codificação e
decodificação. Não se percebe em seu modelo lingüístico-computacional uma
dinâmica de sistema, entendida, como um conjunto de regras que sirva para
explicar a instabilidade sistêmica decorrente das coerções discursivas. Em outras
palavras, a gramática gerativa mostra-se indiferente ao processo interacional
característico dos atos comunicativos uma vez que suas “ferramentas” não
conseguem descrever a inter-relação existente entre a competência e fatores de
ordem psicológica e/ou social. A opinião de Barbosa vem a confirmar:
“(...) [Apesar de ter] constituído um notável avanço na ciência
da linguagem, a teoria sustentada por Chomsky e seus
discípulos repousa ainda numa concepção sincrônica de
sistema lingüístico”. (1996, p.27)
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É um dado empírico que todas as línguas estão sujeitas a constantes
transformações, acarretadas por inúmeros fatores, alguns dos quais bem
consolidados por algumas escolas lingüísticas. A tradição apregoou por muitos
anos que a versatilidade lingüística estava condicionada, preponderantemente, às
coerções temporais e que, ao cientista da língua cabia, unicamente, descrever os
efeitos destas para que, através de uma análise comparativa, se pudesse
estabelecer, entre línguas fronteiramente distintas, graus de identidade ou de
diferença. Era o primado dos estudos histórico-comparativos.
Outros lingüistas, já em cronologia distinta, todavia, não tão distanciada, se
propuseram a considerar, como fator desencadeador de instabilidade, a
satisfação comunicativa dos grupos sociais e a capacidade que tinha o indivíduo
para selecionar e combinar adequadamente os componentes formais da língua.
Entravam em vigor as abordagens estruturalistas.
Sintentizando, havia, na Lingüística Tradicional, a imposição metodológica
de situar a língua em dois pólos, caso se pretendesse descrever, mesmo que
superficialmente, a dinâmica do sistema lingüístico. Admitia-se ora o postulado
diacrônico segundo o qual as línguas evoluem ao longo do tempo, operando
basicamente transformações de caráter fonético e morfológico. Ora uma postura
sincrônica que permitia apropriar-se da língua enquanto entidade estática, cuja
dinamicidade aflui internamente através de movimentos associativos e
contrastivos dos signos.
Em decorrência dessas limitações, algumas linhas da Lingüística Atual, em
especial a Semiótica Francesa, estabeleceu, a fim de apreender e compreender o
49
fenômeno lingüístico em sua plenitude, uma neutralização, uma fusão das
abordagens sincrônica e diacrônica. Ergue-se, então, o princípio da pancronia que
define a língua como um sistema enunciativo em incessante transformação
discursiva. É somente no e pelo discurso que a língua se constitui e, o mais
importante, funciona instavelmente. São as leis que regem o ato discursivo, entre
elas, as de caráter enunciativo e ideológico, as responsáveis, em maior grau, pela
manutenção, realização e variação sistêmica.
Compreendem, então, os meta-modelos pancrônicos os estudos teórico-
científicos que procuram examinar as relações entre os sistemas lingüísticos e os
outros sistemas semióticos atuantes nas comunidades lingüístico-culturais e de
suas funções na dinâmica sócio-histórica dessas comunidades. A semiótica
greimasiana, por exemplo, ao se voltar para o discurso buscando investigar as
relações entre linguagem e sociedade, articulando os diversos sentidos de forma
a projetar, a exteriorizar as intenções e valores daqueles envolvidos no universo
enunciativo, apresenta-se, indiscutivelmente, como uma teoria cujos fundamentos
se organizam pancronicamente.
É importante ressaltar que o gérmen da pancronia já se presentificava em
abordagens anteriores à efetivação concreta e científica das grandes linhas
teóricas, tais como, Análise do Discurso, Semiótica, Pragmática, etc. À vista
disso, faz-se necessário distinguir as abordagens que não são propriamente
pancrônicas, conquanto concentrem elementos que podem conduzir a um certo
dinamismo dos fenômenos lingüísticos. São posturas teóricas cujas ações
metodológicas se situam transitoriamente entre a sincronia e a pancronia. Nesse
patamar, podem ser mencionadas as pesquisas desenvolvidas por Coseriu e
50
Hjelmslev, nas quais se observa a gestação de uma visão pancrônica de sistema
e de estrutura.
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Reformulando a famosa dicotomia saussuriana língua e fala, Eugenio
Coseriu postula que a linguagem humana pode ser estudada sob um tríplice
aspecto: o sistema, a norma e a fala. Para o lingüista romeno, a oposição
bipartida, ao se deter exclusivamente na imanência da língua, procurado os dados
permanentes, não constrói dados substanciais e concretos que possam servir
para o desvelamento funcional da linguagem. Fixa, pois, um elemento
intermediário – a norma – que se sustenta como um conjunto de “leis”, de caráter
sócio cultural, responsável por reger e, ao mesmo tempo, por organizar a
atividade vocal e a inferência desta no sistema. O seguinte esquema, formulado
pelo próprio autor, situa, mais claramente, o que de fato se passa na linguagem:
O primeiro quadrado corresponde à fala, isto é, ao conjunto dos atos
lingüísticos registrados pelos falantes de um idioma, no próprio momento de
51
produção. A norma, primeiro nível de abstração na análise dos fatos lingüísticos,
estaria representada pelo segundo quadrado. É de natureza dinâmica,
englobando aquilo que, no falar concreto, constitui repetição de modelos
anteriores. Por último, o terceiro quadrado nos guia ao segundo grau de
abstração lingüística, o sistema. Trata-se de uma organização abstrata,
convencional, distribuída na mente de todos os falantes de uma dada língua. Um
único indivíduo, ou uma classe ou uma parte da comunidade não possuem o
sistema em sua totalidade; ele se acha repartido em toda a comunidade
lingüística.
Dentro dessa formulação, o dinamismo lingüístico aparece hierarquizado,
atingindo os três níveis. Todo ato de fala é essencialmente acidental e, por isso,
em tempo algum se repete em idênticas condições, sejam elas de enunciado, de
enunciação ou de contexto lingüístico. A sucessão ininterrupta de atos lingüísticos
distintos faz com que determinadas diferenças se acumulem lentamente, a ponto
de acarretar uma mudança de norma. Por sua vez, as variações operadas na
norma armazenam-se, de tal forma, que motivam uma mudança ao nível do
sistema. Tem-se, então, segundo Barbosa, uma dinâmica evolutiva que pode ser
ilustrada por um esquema de três engrenagens:
Sistema Norma
“uso” Fala
Constata-se, pois, que a mudança lingüística tem sua origem no processo
enunciativo, efetivando-se mediante as “ações” realizadas pelos sujeitos falante-
52
ouvinte. É a expressividade lingüística do indivíduo que fere a norma, alterando-a
e, consequentemente, ajustando-a aos limites permitidos pelo sistema. Com
efeito, o equilíbrio sistêmico sofre uma nova reformulação, o que, gerencialmente
falando, impede que as condições funcionais do instrumento lingüístico sejam
afetadas. Essas reflexões aparecem solidificadas em Barbosa, quando assim se
expressa:
[Podemos] estabelecer certas relações entre o esquema de
abordagem do método pancrônico e o modelo de evolução
concebido a partir da distinção entre sistema e norma, e das
relações que mantêm estes últimos (1996, p.44); a mudança
lingüística que atinge os níveis se inscreve no mesmo
processo dinâmico, cujo ponto de partida é sempre o
indivíduo falante-ouvinte (1996, p.43).
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Fundador de uma escola radical de lingüística estruturalista, a
Glossemática, Louis Hjelmslev elabora uma teoria universal capaz de ser aplicada
a todas as línguas humanas. Seu pensamento, largamente conhecido e discutido
pela cultura lingüística internacional, apresenta-se como a explicitação das
intuições profundas de Saussure.
O teórico dinamarquês foi um dos primeiros lingüistas a se apoderar
verdadeiramente da lógica matemática e da investigação científica como
ferramentas para o desenvolvimento das concepções saussurianas sobre a língua
enquanto objeto da lingüística e desta como ciência da linguagem. Ele conserva
do Cours, sobretudo, duas reflexões. A primeira diz respeito à afirmação de que a
53
língua é forma e não substância. A outra, refere-se ao fato de que toda língua tem
ao mesmo tempo expressão e conteúdo.
Tais juízos, em Saussure, se fundem na sua concepção diádica do signo,
segundo a qual o elemento sígnico é tomado como uma entidade psíquica
constituída por duas faces, intimamente opostas e interdependentes: um conceito
e uma imagem acústica. Ao primeiro, designou significado e ao segundo,
reservou a denominação significante. Apreende-se mais nitidamente esse modelo
através do seguinte diagrama:
A concepção de Saussure sobre a língua enquanto pensamento
organizado em matéria sonora, e a sua definição da língua como forma e não
substância, foram amadurecidas por Hjelmslev na teoria sobre o plano da
expressão e o plano do conteúdo. Este pode ser considerado o mundo de
pensamentos que encontram expressão na língua. Aquele constitui o aspecto
externo da língua, isto é, a cobertura sonora, gráfica ou qualquer outro envoltório
do pensamento nela materializado.
Ademais, o autor propõe uma subdivisão desses dois planos, atribuindo a
cada um deles uma forma e uma substância. Cabe à língua o papel articulador
destes dois planos. O esquema seguinte, proposto por Pais, sintetiza, mais
claramente, as reflexões acima:
SIGNIFICADO
conceito
SIGNO
SIGNIFICANTE
imagem
acústica
54
Substância sêmica
CONTEÚDO
Forma semêmica
Sentido
significado
Forma fêmica
EXPRESSÃO
Substância femêmica
Sentido
significante
A forma de conteúdo engloba as relações entre as unidades sêmicas, ou
seja, refere-se à própria estruturação das idéias. Já a substância de conteúdo é o
pensamento ainda não estruturado (amorfo), ou seja, a projeção mental da
realidade extralingüística. Os sons ou as letras ainda não sistematizadas na
língua constituem a substância da expressão. Esses elementos são desprovidos
de valor lingüístico. No que tange à forma de expressão, a mesma abarca as
relações estruturais entre os sons, “representa o valor funcional dos fones na
língua” (Gomes, 2003, p.61).
A interdependência existente entre os dois planos, o autor considerou
como uma grandeza, indefinível por si mesma, a qual chamou de função
semiótica. Para Hjelmslev, uma função compreende uma relação na qual dois
termos se articulam dialeticamente, opondo-se e, ao mesmo tempo, contraindo-se
solidariamente. Nesse sentido, cada termo (funtivo) só se define em relação ao
outro e “os dois só existem naquela relação e a relação só existe entre os dois
termos” (Barbosa, 1996, p.35).
É esse vínculo recíproco estabelecido entre as grandezas expressão e
conteúdo que consolida e caracteriza a função semiótica. O resultado dessa
Função
Semiótica
ϕσ
55
dependência é a grandeza signo, que funciona, designa e, o mais importante,
concentra uma significação.
Torna-se, agora, conveniente traçar algumas distinções entre o modelo
hjelmsleviano e aquele proposto pelo mestre de genebra. Ora, enquanto
Saussure postula que a língua é um sistema de signos, um “dicionário”
intrinsecamente estável, a abordagem do lingüista dinamarquês alicerça-se na
concepção de função semiótica, segundo a qual as coerções discursivas são as
responsáveis pelas mudanças operadas no sistema. A cada novo ato
comunicativo, as grandezas sígnicas se atualizam, adquirindo feições semânticas
distintas. Esse fenômeno recebe o nome de semiose e caracteriza-se pelo ato
produtor de significação, gerado numa correlação entre signo e discurso. A esse
respeito afirma Barbosa:
Temos, pois, na função semiótica e na semiose que a
instaura, os elementos fundamentais para a proposição de
um modelo mais dinâmico de sistema de signos, já que,
inclusive, uma propriedade essencial do signo é a de poder
comporta-se tanto como signo-objeto – quando substitui, por
assim dizer, o ‘objeto’ do qual esse signo é signo -, quanto
poder comportar-se como meta-signo – quando substitui não
já um ‘objeto’, diretamente, mas, sim, outros signos”. (1996,
p.38)
Depreende-se, pois, que a concepção de processo, utilizada por Hjelmslev
para se referir inicialmente aos atos de fala (texto), passa a abarcar também o
sistema, cujo dinamismo semiótico organiza, continuamente, os códigos e sub-
códigos que o constituem. Nesse sentido, pode-se inferir que o sistema produz o
56
discurso que, por vez, transforma o sistema, num movimento ininterrupto de auto-
alimentação e auto-regulação da função semiótica.
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O estatuto de ciência da significação, alcançado pela semiótica durante a
década de 60, advém dos trabalhos do lingüista Algirdas Julien Greimas. Com
sua Semântica Estrutural (1966), ele introduziu uma semiótica, de natureza
lingüística, altamente influente e produtiva, que se tornou o núcleo de uma escola
semiótica, a École de Hautes Études em Sciences Sociales de Paris.
Greimas se opunha, radicalmente, ao conceito comum de semiótica como
ciência dos signos, uma vez que essa concepção impedia que a “nova” ciência
ultrapassasse os limites das descrições intuitivas e filosóficas. Seu objetivo, aliás,
era fazer com que a Semiótica galgasse novos “degraus” em direção às análises
discursivas. Para tanto, renuncia a mera descrição da comunicação e investe,
forçosamente, na exploração do sentido. Institui-se, a partir daí, outras reflexões
epistemológicas e novos métodos de apreensão dos universos semiológicos:
rompe-se a barreira da frase, perpassa-se o texto até atingir o discurso. A
linguagem, nessa esfera, não mais é apreendida em suas realizações
fragmentadas e dessubstanciadas, e sim, como uma rede de relações
essencialmente significativas, o que elimina, de vez, a simples concepção de
língua enquanto sistema de signos encadeados.
Na definição greimasiana, a Semiótica constitui, então, uma teoria que
integra o processo comunicativo (assentado, agora, na perspectiva da ação e da
competência dos sujeitos enunciativos) a um processo muito mais amplo: o
57
engendramento da significação. Esta, por sua vez, deve ser concebida não como
um a priori já substancialmente construído, que se revela integralmente e de
forma homogênea, mas, antes, e, sobretudo, como o resultado de articulações do
sentido. Recuperar, reconstituir os sentidos que se circunscrevem no discurso é o
fim primeiro de todo semioticista, que tem no texto não o seu objeto, mas o seu
instrumento de trabalho. Eis, a declaração de Cortina & Marchezan:
É essa constituição do sentido que a semiótica busca
expressar, opondo-se, portanto, ao posicionamento de que
sobre o sentido nada se pode ou se deve dizer, por ser
evidente ou intraduzível, recusando também a paráfrase,
pessoal, impressionista, a interpretação intuitiva” (2004,
p.394).
As inquietações da semiótica residem, pois, na explicitação do modo por
meio do qual os sentidos se manifestam e se constroem discursivamente; em
outras palavras, para se extrair o “dito”, debruça-se inicialmente no “como”.
Pretende-se chegar não aos sentidos convencionalmente verdadeiros, frutos de
abstrações, mas, antes, àqueles que, no interior do discurso, aparecem como
veridictórios, simulacros da realidade.
Considerando a produção de sentidos como uma formação significativa,
Greimas concebe a descrição desta através de um percurso gerativo, simulacro
metodológico do ato real de produção significante, que vai do mais simples e
abstrato até o mais complexo e concreto. Esse percurso, ao levar em
consideração a organização imanente do discurso, focalizando suas
dependências internas, tende a constituir um modelo que, em linhas gerais, pode
ser operacionalizado em qualquer unidade textual. Traduzindo, a descrição da
58
significação, em etapas, configura um padrão de previsibilidade comum a textos
de natureza diversa: verbais, não-verbais e, sincréticos, cujas textualizações são
compreendidas e examinadas por semióticas específicas.
O percurso gerador da significação é regido por três níveis de organização,
cuja construção terminológica deixa vir à tona a inspiração chomskyana. o eles:
o Nível fundamental, que corresponde à instância inicial do percurso que gera a
significação, abarcando as oposições semânticas básicas em torno das quais o
discurso se constrói; o Nível Narrativo, que comporta o fazer de um Sujeito
semiótico em busca de seu Objeto de valor, motivado por um Destinador,
auxiliado por um Adjuvante ou prejudicado por um Oponente; e o Nível
Discursivo, que opera sobre a relação fiduciária entre os sujeitos discursivos,
cujas escolhas possibilitam a conversão da narrativa em discurso.
Os níveis, ou estruturas, como também são designados, embora estejam
articulados, definem-se cada um por uma gramática autônoma: os níveis são
regidos por leis, regras e participantes próprios. Ademais, seu funcionamento está
relacionado com a natureza sintática ou semântica de sua operacionalização.
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O nível fundamental, também dito estrutura profunda, constitui a primeira
etapa do percurso que gera a significação, ou o ponto de partida na formação do
discurso. Sua formulação obedece a princípios lógico-conceptuais estruturados
por meio de uma sintaxe e de uma semântica fundamental.
A SINTAXE FUNDAMENTAL procura explicar o modo de existência da
significação como uma estrutura elementar, isto é, como uma estrutura em que as
59
categorias sêmicas de um determinado micro-universo são apreendidas,
binariamente, por meio de relações antonímicas e hipônicas, que as tornam
suscetíveis de serem reduzidas a um único núcleo sêmico. Os semas, providos
de traços inerentemente conceptuais, são ordenados de forma a fornecer uma
diagramação e virtualização do funcionamento da significação, concebida, esta,
em extrações mínimas de sentido.
Para tornar-se operatória, a estrutura elementar é representada,
graficamente, por um modelo lógico, o do quadrado semiótico. Tem-se, então,
uma primeira configuração do micro-universo semântico do discurso, onde estão
presentes, aparentemente, apenas unidades sêmicas hierarquizadas. Estas,
numa visão mais profunda, constituem um lugar privilegiado no qual se articulam
e manifestam, de modo estrutural, porém não estático, os sistemas de valores ou
axiologias, e os processos de criação de valores recorrentes ou ideologias. O
testemunho de Courtés reforça o que foi dito:
Les structures profondes sont beaucoup plus éloignées des
objets décrits, beaucoup plus générales. Il s’agit là d’um
niveau sous-jacent, qui correspond intuitivement à une
appréhension d’ensemble d’un univers sémantique determine
(1991, p.136).
Considerando a oposição liberdade x opressão, o quadrado semiótico fica
assim representado:
S
1
S
2
liberdade opressão
não-S
2
não-S
1
não-opressão não-liberdade
60
A formalização do quadrado semiótico se dá por meio de dois termos
positivos (S
1
e S
2
) assentado no eixo da contrariedade, desdobrados em suas
realizações negativas (não–S
1
e não-S
2
), responsáveis pelo eixo dos
subcontrários. O vínculo entre as categorias positivas e negativas estabelece uma
segunda geração dos chamados termos contraditórios e contrários. Pode-se
afirmar que a contradição é elaborada por um esquema positivo (S
1
e não-S
1
) e
outro negativo (S
2
e não-S
2
) enquanto a complementaridade se institui por meio
de uma dêixis positiva (S
1
e não S
2
) e outra negativa (S
2
e não-S
1
).
Sintetizando, tem-se:
A) Eixo horizontal: S
1
+ S
2
e não-S
1
+ não-S
2
(contrariedade). O primeiro
par traduz a oposição entre liberdade e opressão, sendo que o inverso também é
possível. O segundo, abarcando os subcontrários, denuncia uma ausência
conceptual, altamente significativa, que pode vir a ocorrer entre a não-liberdade e
não-opressão em dados universos semióticos.
B) Eixo diagonal: S
1
+ não-S
1
e S
2
+ não- S
2
(contradição). Em linhas
gerais, pode-se dizer que não-liberdade é o contraditório de liberdade e não-
opressão é o de opressão.
C) Eixo vertical: S
1
+ não-S
2
e S
2
+ não-S
1
(implicação). No primeiro
esquema, evidencia-se a complementaridade existente entre liberdade e não-
opressão; já o segundo encerra o elo implicativo que aproxima a opressão e a
não-liberdade.
Na verdade, as relações estabelecidas pelos quatro termos, na estrutura
elementar da significação, fazem surgir mais quatro numa posição
hierarquicamente superior, chamados metatermos, visto que representam a
junção de dois termos. Surge, então, não mais um quadrado e sim, um octógono,
61
o que motivou a terminologia octógono semiótico. O gérmen dessa
formalização, principalmente no que concerne à forma, se presentifica nos
trabalhos de Courtés. A complexificação das relações que se estabelecem no
octógono deve-se, no entanto, a outro discípulo de Greimas: Cidmar Teodoro
Pais. Observe-se um octógono elaborado pelo criador da semiótica francesa em
seu livro Sobre o Sentido:
A tensão dialética se sustenta entre ser e parecer que são os termos
contrários e o ponto de partida na geração do discurso no universo semiótico
dado. O contraditório de ser é não-ser e de parecer e não-parecer. Ser implica em
não-parecer e parecer implica em não-ser. Desses termos, resultam quatro
metatermos: segredo (que representa a junção entre ser e não-parecer), mentira
(que se fundamenta no parecer e no não-ser); verdade (que se define pela
combinação do ser e do parecer) e falsidade (que é o não-parecer e o não-ser).
O quadrado semiótico e a sua evolução, o octógono semiótico, são
representaçãos sintáticas da estrutura elementar da significação. Através deles,
observam-se as relações que sustentam qualquer oposição lógico-conceptual
parecer ser
não-parecer
não-ser
segredo
mentira
verdade
falsidade
62
capaz de produzir sentido. São estruturas articuladas, lógicas, acrônicas, que nos
permitem representar a arquitectura do sentido num texto e, portanto, a forma do
conteúdo.
No que tange à SEMÂNTICA FUNDAMENTAL, pode-se dizer que constitui
a unidade mais abstrata da geração do sentido do discurso. Ela pode ser
considerada como “um inventário de categorias sêmicas, suscetíveis de serem
exploradas pelo sujeito da enunciação” (Greimas & Courtés, 1979, p.399). Essas
categorias semânticas passam a ter valor para a determinação, no quadrado ou
no octógono, da categoria tímica euforia x disforia. A euforia estabelece uma
relação axiologicamente positiva, de conformidade, enquanto a disforia determina
uma relação conceptualmente negativa, de desconformidade.
São as timias que oferecem as primeiras conotações conceptuais ao texto,
e por conseguinte, revelam o conceber, embora ainda sensível, do sujeito que as
engendra. A interpretação, então, é um componente privilegiado na construção
desse “mínimo de sentido” que gera o texto. Assim, formalizadas, constituídas, as
estruturas fundamentais convertem-se em estruturas narrativas, que por sua vez,
após a sua constituição, tranformam-se em discurso. Esse itinerário será descrito
mais adiante.
1
1
.
.
3
3
.
.
3
3
.
.
2
2
.
.
N
N
í
í
v
v
e
e
l
l
N
N
a
a
r
r
r
r
a
a
t
t
i
i
v
v
o
o
De natureza antropomórfica, o nível narrativo procura reconstituir o fazer
do homem, que transforma a história e o mundo, ao buscar os valores
necessários à sua própria existência sóciocultural. A narrativa, sobre a qual se
debruça, nesse patamar, não pode ser considerada em sua acepção literária que
63
a define como simples história que se constrói por meio de uma secessão de
fatos (des)encadeados pela voz de um narrador. Deve-se, em termos semióticos,
tomá-la enquanto simulacro do ser e do agir de sujeitos, cujos conflitos e
contratos operam transformações que representam, em nível sociológico, o
próprio comportamento humano. Recorrendo ao testemunho de Barros, tem-se:
As estruturas narrativas simulam, por conseguinte, tanto a
história do homem em busca de valores ou à procura de
sentido quanto a dos contratos e dos conflitos que marcam os
relacionamentos humanos” (1990, p.16).
A organização da narrativa se processa através do estabelecimento de
seus mecanismos de estruturação sintática e da investigação de questões
semânticas de modalização.
A SINTAXE NARRATIVA se organiza em torno da atuação de um sujeito
semiótico, cognitivamente ativo, que realiza uma trajetória em busca de seu
objeto de valor. Todas as transformações operadas no universo narrativo
decorrem de modificações da relação entre esse dois pólos. É um vínculo que se
estabelece por meio de uma relação de desejo: o sujeito é aquele que quer, que
pretende o objeto. Advirta-se, no entanto, que sujeito e objeto não são
personagens, são precipuamente entidades actanciais que definem relações,
operam mudanças e conservam estados.
Na estrutura elementar da narrativa, em cujo centro estão presentes o
sujeito e o objeto, surgem outros agentes que atribuem uma dinamicidade à
relação base. Instalam-se, assim, o Destinador que incita o sujeito a adquirir o
objeto desejado; o Adjuvante que o favorece, seja física ou psicologicamente,
64
para que este obtenha o valor almejado; e o Oponente, cujas ações visam
prejudicar o sujeito em sua realização. Esse espetáculo tem um caráter
permanente, ou seja, o conteúdo das ações muda todo o tempo, os actantes
variam, mas o enunciado-espetáculo mantém-se sempre o mesmo, pois a sua
permanência está garantida pela distribuição única dos papéis. Para dar uma
ilustração desse modelo, considerem-se os enunciados O professor deu um livro
ao aluno e O aluno recebeu um livro do professor. É fácil perceber que o actante
<aluno> detém, nos dois casos, o mesmo estatuto de Destinatário, do ponto de
vista da forma do conteúdo, mesmo se, ao nível da manifestação lingüística, o
seu papel sintático é evidentemente distinto. A diagramação elaborada por Batista
(1999), permite uma visualização mais sistemática das relações estabelecidas
entre os actantes da narrativa:
Anti-Destinador
Destinador Objeto Destinatário
Adjuvante Sujeito Oponente
Anti-Sujeito
Como se pode notar, esse modelo actancial se apóia numa relação
paradigmática na qual os participantes são projetados aos pares e em
consonância com a função dialética por eles desempenhada. Tem-se, em tal
caso, uma organização de conjunto articulada em três grupos de actantes: Sujeito
(S) / Objeto (O), Adjuvante (Adj) / Oponente (Op), Destinador (Dor) / Destinatário
(Dário).
65
Embora sujeito e objeto se situem em um mesmo eixo estrutural, suas
relações não são simétricas, mas antes, orientadas. Essa orientação, de natureza
transitiva, vai da permanência à mudança, do estatismo ao dinamismo, dos
estados às transformações. É precisamente esta dicotomia que serve de base
para a distinção de dois tipos de função: a fonction-jonction que corresponde à
permanência, aos états de choses e a fonction-transformation, relacionada com a
mudança, com a variação, em suma, com o dinamismo.
A função-juntiva estabelece o enunciado de estado, que se traduz na
relação entre um sujeito e um objeto, os quais se definem e se sustentam
mutuamente: não há sujeito sem objeto nem objeto sem sujeito. Em outros
termos, o liame entre sujeito e objeto permite “considerar este sujeito e este
objeto como semioticamente existentes um para o outro” (Courtés, 1979, p.82).
Como categoria sêmica, a junção pode situar-se em duas instâncias
contraditórias: a conjunção que concerne ao estado de posse ou conservação do
objeto, e a disjunção que implica o estado de privação ou de não conservação do
objeto. Esquematicamente, tem-se:
F junção (S, O)
S O (deve ler-se sujeito em conjunção com o objeto de valor)
S O (deve ler-se sujeito em disjunção com o objeto de valor)
Conforme sublinha Greimas (1975), a disjunção, sendo a denegação da
conjunção, não é ausência de relação entre os actantes sujeito e objeto, uma vez
que a destruição de qualquer vínculo entre eles conduziria à abolição da
existência semiótica. Concebe-se, então, uma virtualização da relação entre
66
sujeito e objeto, mantendo-a, por sua vez, como possibilidade de conjunção. É
assim que, por exemplo, se o sujeito <príncipe> em seu percurso de salvamento
da princesa, estiver disjunto do objeto <espada> (devido a uma perda ou furto), a
relação continua a manter-se, mesmo sob a forma negativa.
Complementando o estudo sobre a dicotomia greimasiana conjunção e
disjunção, Courtés indica a possibilidade de uma outra função, a da suspensão
que corresponderia, seguindo a formulação do quadrado semiótico, à negação
simultânea da disjunção e da conjunção. Suspensão significa nem disjunção, nem
conjunção. Dessa forma, se em determinado universo semiótico o <amor>
aparece conjuntivo por oposição ao <ódio>, de caráter disjuntivo, a <indiferença>
corresponderia adequadamente ao termo neutro (suspensão). Eis um octógono
que sistematiza as ponderações realizadas:
jonction
avoir ne pas avoir
conjonction disjonction
trouver perdre
non- disjonction non- disjonction
suspension
A função-transformação acarreta o enunciado de fazer, que implica na
passagem de uma relação de estado para uma outra (da disjunção para a
conjunção, ou inversamente). Pode-se dizer, assim, que todo enunciado de fazer
pressupõe dois enunciados de estado: um situado acima e o outro, abaixo. O
encadeamento destes se configura de maneiras distintas. A sucessão de um
67
enunciado conjuntivo e de um enunciado disjuntivo, ou o contrário, que modifica
um mesmo sujeito (S) na sua relação com o objeto (O), só é garantido pela
interferência de um meta-sujeito capaz de operar a mudança, cujo estatuto formal
se explica pela fórmula:
F (transformação) (S
1
O
1
), onde
S
1
é o sujeito que realiza a transformação e
O
1
o enunciado de estado a que ela conduz.
No entanto, se considerarmos a seqüência sintagmática (S
1
υ O) (S
1
O) segundo a qual o Sujeito (S
1
) assenta-se numa relação de disjunção com o
objeto (O), e a seguir consegue está conjunto com ele, devido a uma
transformação intermediária, deve-se admitir a intervenção de um fazer
transformador que permita obter a segunda relação de estado, executada por um
meta-sujeito (S
2
):
F (transformação) [ S
2
(S
1
O
1
), onde
S
2
é o sujeito do fazer transformador
S
1
é o sujeito que, por meio do agir do S
2
, fica conjunto com o objeto (O).
É a partir desses dois tipos de enunciado – de estado e de fazer –
progressivamente construídos, que se depreende a unidade operatória da
organização narrativa de um texto, o programa narrativo (PN). Este comporta um
enunciado de fazer que rege um enunciado de estado. Integra, portanto, uma
sucessão de estados e de transformações, ambos, na base da relação S – O:
68
PN = F [S
1
(S
2
O
v
)], onde: F = função
= transformação
S
1
= sujeito do fazer
S
2
= sujeito do estado
= conjunção
O
v
= objeto-valor
Os semioticistas se valem da diagramação do programa narrativo a fim de
descreverem a trajetória realizada por um sujeito semiótico em perseguição ao
objeto de valor desejado. É constituído por mais de um programa hierarquizado, o
que impõe a distinção entre o programa principal (PP) ou programa de base e os
programas auxiliares (PA) ou de uso, pressupostos estes, pela existência
daquele.
A fórmula horizontal, como dá para perceber, encerra limitações visto que
não leva em consideração o desempenho dos demais actantes que
sobreorganizam a narrativa. Optam, então, os estudiosos por um modelo em
forma de retâgulo cujas regras de formalização são as seguintes: na extremidade
superior direita, direcionando o percurso, situa-se o Destinador (Dor) que,
dialeticamente, estabelece a existência, em posição paralela, do Anti-Destinador
(Dor); na extremidade esquerda, fixa-se o Destinatário (Dário), do qual parte uma
seta, de sentido vertical, em cujo extremo se posiciona o Sujeito (S). Ao seu lado,
instaura-se o Anti-sujeito (S). Uma reta, partindo do sujeito, é esboçada para
representar o seu percurso em direção ao seu Objeto de Valor (OV), que ocupa,
pois, a posição final dessa linha. O Adjunvante (Adj) e o Oponente (Op) devem
estar situados na parte inferior do retângulo da seguinte forma:
(Dor)
(S)
69
Dário Dor Dor
P. Principal
Adjuvante OV
1
S
1
S
1
Oponente
P. auxiliar 1
S
1
OV
2
P. auxiliar 2
S
1
OV
3
Um programa narrativo, qualquer que seja, pressupõe sempre um outro
programa narrativo de natureza contrária. Quer dizer, um programa narrativo
caracterizado pela conjunção para determinado sujeito corresponde a um
programa de disjunção para outro sujeito. Ocorre, por assim dizer, uma circulação
de objetos entre sujeitos que estabelece uma comunicação participativa e
hierarquica na qual se sobressaem dois tipos de relações: as polêmicas,
construídas no embate entre dois sujeitos pela obtenção do mesmo valor e as
contratuais, que concernem à troca de objetos entre sujeitos.
Se em dado programa narrativo, a transformação possibilita a conjunção
com o objeto, institui-se um percurso de aquisição do objeto de valor; caso resulte
em disjunção, fala-se em percurso de privação. Ambos são formulados tendo em
vista o caráter transitivo e reflexivo da mudança. O fazer transitivo implica o
revestimento actancial de S
1
(sujeito de estado) e S
2
(sujeito de fazer) por atores
diferentes e o fazer reflexivo emerge quando os pápeis de sujeito de estado e
sujeito de fazer são concebidos por um mesmo ator. O gráfico que se segue,
apresentado por Courtés, enseja uma melhor compreensão desse fenômeno:
70
(jonction)
(conjonction) (disjonction)
ACQUISTION PRIVATION
(transitive) (réfléchie) (transitive) (réfléchie)
ATTRIBUTION APPROPRIATION DEPOSSESSION RENONCIATION
épreuve
don
Como se percebe, a toda conjunção corresponde em qualquer parte uma
disjunção e vice-versa. À relação conjuntiva atribui-se a ocorrência de duas
espécies de transformação: a atribuição (fruto de uma ação transitiva) e a
apropriação (resultante de um fazer reflexivo). Analogamente, o caráter dinâmico
da disjunção faz emergir duas formas de relação actancial: a despossessão, que
se efetiva por meio de um ato transitivo; e a renúncia, que se afirma através de
um agir reflexivo. A passagem do estado de apropriação a uma condição de
despossessão é garantida pela intervenção de um fazer operador, de uma prova
(épreuve). Já o fenômeno que produz solidariamente uma atribuição e uma
renúncia, denomina-se dom (don). Transpondo essas considerações para a forma
de esquema, tem-se:
F [ S
1
(S
2
O) = PN de atribuição
F [ S
1
(S
1
υ O) = PN de renúncia
F [ S
1
(S
2
υ O) = PN de despossessão
F [ S
1
(S
1
O) = PN de apropriação
71
Enquanto a sintaxe narrativa se detém sobre as transformações operadas
a partir do objeto de valor, A SEMÂNTICA, desse nível, ocupa-se dos valores
modais do sujeito semiótico. São valores, de natureza semântico-cognitiva,
necessários para que o sujeito realize a ação que o levará ao estado juntivo.
A modalização como componente axiológico do percurso narrativo atinge
tanto o enunciado de estado quanto o enunciado de fazer. No primeiro, denomina-
se modalização do ser e recai sobre o sujeito de estado, atribuindo-lhe uma
existência modal. No segundo, recebe o estatuto de modalização do fazer, sendo
responsável pela competência modal do sujeito do fazer, qualificando-o para a
ação. Ambas regem, porém sob perspectivas semânticas distintas, os mesmos
predicados: o querer, o dever, o poder e o saber.
Em termos semióticos, nenhum sujeito pode realizar uma perfomance
(ação) sem ter para isso a respectiva e prévia competência. A competência
possibilita a passagem da virtualização à efetivação do PN. É da ordem do ser,
enquanto a performance pertence ao universo do fazer. Assevera, então, Greimas
que é somente a partir do agir de um sujeito modalmente competente que se
instaura uma narrativa complexa, cujo modelo cânonico, obedece a sucessão de
quatro percursos encadeados.
O primeiro corresponde ao percurso da manipulação que compreende,
simplesmente, a relação factiva (fazer-fazer) segundo a qual um enunciado de
fazer rege um outro enunciado de fazer. Esta estrutura modal tem como
particularidades a identidade formal dos predicados (os dois são de fazer) e a
diferença entre os sujeitos envolvidos. Encontram-se instaurados, nesse patamar,
um sujeito manipulador (em posição de destinador) e um sujeito manipulado
(destinatário). A seguinte formulação simbólica oferece uma visão mais sistêmica:
72
F
1
[ S
1
F
2
[ S
2
(S
3
O)
Ler-se: O sujeito manipulador (S
1
) faz (F
1
) com que o sujeito manipulado (S
2
)
realize (F
2
) a conjunção (ou, se for o caso, a disjunção) entre um sujeito de estado
(S
3
) e o objeto de valor (O). Pode ocorrer um sincretismo actancial entre S
2
e S
3
.
A manipulação não se processa homogeneamente em todas as narrativas
antropologicamente situadas. Sua manifestação depende da competência do
manipulador, ora sujeito do saber, ora sujeito do poder, e da alteração modal,
operada na competência do sujeito manipulado. Se o manipulador se apóia sobre
a dimensão pragmática e propõe ao manipulado um objeto de valor positivo,
revela-se a tentação. Outra possibilidade, para o manipulador, é de fato , mover-
se pela dimensão cognitiva. Nela, a competência do manipulado é apresentada
pelo manipulador sob um ponto positivo: fala-se, então, em “adulação”, ou melhor,
em sedução.
O outro tipo de manipulação assenta sob o plano pragmático, fazendo
emergir a intimidação. Ou seja, ao invés de propor, precedentemente, um objeto
de valor positivo, o manipulador ameaça de privar, de algo extremamente
importante, o manipulado. Ainda no nível cognitivo, o manipulador apresenta ao
manipulado uma imagem negativa de sua competência. Ele a denigre, por assim
dizer, ao ponto que, este aqui, vai reagir para oferecer a ele uma imagem positiva.
Realiza-se, então, a provocação.
O quadro seguinte oferece uma descrição estrutural das formas de
manipulação:
73
Competência do
destinador-manipulador
Alteração na
competência do
destinatário
PROVOCÃO
SABER (imagem
negativa do destinatário)
DEVER-FAZER
SEDUÇÃO
SABER (imagem positiva
do destinatário)
QUERER-FAZER
INTIMIDAÇÃO
PODER (valores
negativos)
DEVER-FAZER
TENTAÇÃO
PODER (valores
positivos)
QUERER-FAZER
A segunda etapa do percurso, rumo a construção de uma narrativa
complexa, diz respeito à competência modal do sujeito transformador a qual se
define pela articulação de quatro modalidades: dever-fazer e querer-fazer, poder-
fazer e saber-fazer. As duas primeiras constituem modalidades da virtualidade,
visto que operacionaliza o desejo do sujeito. É a partir do momento em que um
sujeito quer ou deve fazer alguma coisa que se pode vislumbrar a presença ou a
instalação de um sujeito transformador. As modalidades poder-fazer e saber-fazer
são modalidades da actualidade e são qualificantes, pois avaliam a capacidade
de fazer do sujeito. Estas quatro modalidades podem atingir negativamente o
sujeito (não-dever, não-querer, não-poder e não-saber), impedindo-o assim de
passar ao ato, isto é, de agir.
74
As modalidades realizantes, do ser e do fazer correspondentes a
performance do sujeito, determinam o terceiro percurso da complexificação
narrativa. Estas modalidades estão em relação de pressuposição unilateral com
aquelas concernentes à competência modal:
competência
performance
modalidades
virtualizantes
modalidades
actualizantes
modalidades
realizantes
/querer-fazer/
/dever-fazer/
Instauração do sujeito
/saber-fazer/
/poder-fazer/
Qualificação do sujeito
/fazer/
/ser/
Realização do sujeito
O último componente do esquema narrativo canônico é a sanção, que se
apresenta sob duas formas, ou seja, leva em consideração duas dimensões,
pragmática e cognitiva. A sanção pragmática se sustenta sobre o fazer do sujeito
que realiza a performance. Ela é dupla uma vez que coloca em cena dois
actantes: o destinador julgador e o destinatário sujeito (julgado). De um lado, o
destinador julgador estabelece um julgamento epistêmico (da ordem do crer)
sobre a conformidade ou não da performance, no que concerne às atribuições do
contrato previsto. A esse julgamento, responde, do ponto de vista do destinatário,
a retribuição que é a segunda face da sanção. Por ter realizado a performance e
cumprido, assim, seu contrato, o destinatário recebe do destinador a
compensação prevista. Pode ser uma recompensa ou uma punição, a depender
da conformidade ou não de sua ação.
A segunda forma de sanção é de caráter cognitivo. Ela não se assenta
mais sobre o fazer mas sobre o ser, levando em consideração, também, os
75
pontos de vista do destinador julgador e do destinatário. Reserva-se ao destinador
julgador a incumbência de estabelecer um julgamento epistêmico sobre a
realidade (intrínseca à narrativa) da performance realizada pelo destinatário,
asseverando, vigorosamente, a veracidade de suas proezas. Um exemplo simples
encontra-se no domínio das narrativas infantis. Num país distante, havia um
dragão que a cada ano exigia uma donzela que ele devorava imediatamente. A
moça era escolhida por intervenção da sorte. Ora, um dia, a sorte caiu sobre a
filha do rei. Este, aflito em salvá-la, proclamou, em todo país, que aquele que
vencesse o dragão, receberia sua filha em casamento. O herói chegou, cortou
todas as cabeças do terrível monstro e apresentou-as ao rei como signo da
verdade de sua façanha; depois, o cavaleiro desposa, como combinado, a
princesa. Tem-se, nessa narrativa, a sanção pragmática, quando o monarca
oferta ao herói, como retribuição, o casamento. Do ponto de vista cognitivo, isso
só foi possível porque o rei tem a comprovação de que o valente mancebo,
efetivamente, matou o dragão: as cabeças são, aliás, levadas ao castelo para
atestar que foi realmente o cavaleiro, e não outro personagem, o autor da vitória.
Segundo Courtés, “en l’occurrence, les choses sont ce qu’elles paraissent: d’où la
modalisation selon lê vrai” (1991, p.114).
1
1
.
.
3
3
.
.
3
3
.
.
3
3
.
.
N
N
í
í
v
v
e
e
l
l
D
D
i
i
s
s
c
c
u
u
r
r
s
s
i
i
v
v
o
o
Na axiologia do percurso gerativo da significação, sob o qual a semiótica
se debruça para construir os sentidos do texto, salienta-se o nível discursivo, o
patamar mais próximo da manifestação textual. Embora concebido como o
segmento superficial do percurso, sua operacionalização se efetiva
76
preponderantemente nas subjacências da concretude lingüística, ou seja, detém-
se no discurso, entendido como processo semiótico constituído exclusivamente
na e pela atividade enunciativa. Convém, nesse momento, lembrar a distinção
entre as acepções de texto e discurso. Ambos conservam uma mesma
materialidade lingüística, um mesmo conjunto de estruturas (verbais ou não)
ordenadas a partir dos mecanismos pragmáticos de coesão e coerência. A
divergência entre eles não reside, assim, no caráter de sua composição, mas no
olhar que o sujeito, historicamente situado, lhe impele: uma sucessão de unidades
sígnicas deixa de ser texto para se tornar discurso, quando o leitor/ouvinte passa
a focalizar o propósito de suas intenções, a observar as ideologias que o
sustentam, em outras palavras, a vislumbrar os vestígios que o processo de
enunciação deixou na tessitura do texto.
Na organização discursiva da narratividade em língua natural, deve-se
fazer uma separação terminológica e, sobretudo, funcional entre os entes
envolvidos no processo enunciativo-discursivo. O primeiro a ser caracterizado é o
autor, o ser que assina o texto escrito ou se responsabiliza pela produção oral. É
um sujeito empírico, de existência real, passível de ser reconhecido fisicamente.
Sua atualização somente se efetiva, em instância discursiva, quando se instala
como enunciador. Nessa posição, assume o posto de agente produtor e
organizador do universo enunciativo. Ele abstrai, em conformidade com o espaço
sócio-cultural em que se insere, os signos e as estruturas lingüísticas construídos
historicamente em sua memória e atribui, a seu significado geral, um sentido
específico, convergente com ideologia que carrega. É, na verdade, um proto-
sujeito que percebe e sente, que expressa por meio de discursos sua visão de
mundo, suas intenções e, principalmente, sua ideologia. Assim como o autor que,
77
ao se instaurar numa situação comunicativa, faz aparecer, pressupostamente, as
categorias de leitor/ouvinte, a função intrínseca de enunciador promove a
instalação pressuposta e dialética do enunciatário.
Em termos semióticos, o discurso é o resultado da conversão das
estruturas narrativas, quando estas se projetam na voz do sujeito da enunciação,
que faz determinadas escolhas, de ordem sintática (pessoa, tempo e espaço) e
de natureza semântica (tema e figura), fazendo expandir a narrativa e
transformando-a, através de sua enunciação, em instância discursiva. Consoante
Barros:
O discurso nada mais é, portanto, que a narrativa
‘enriquecida’ por todas essas opções do sujeito da
enunciação, que marcam os diferentes modos pelos quais a
enunciação se relaciona com o discurso que enuncia” (1990,
p.53).
Cabe à SINTAXE do discurso estudar as projeções da enunciação no
enunciado (fator desencadeante e ordenador do discurso) e as relações entre
enunciador e enunciatário. A enunciação configura, numa primeira demarcação,
como a instância de intercessão entre o patamar narrativo e o discursivo, que
assegura, por assim dizer, a conversão da competência em performance, das
estruturas semióticas virtuais em categorias realizadas sob a forma de discurso.
É, unicamente, por meio dos traços e marcas deixados neste, que a enunciação
pode ser reconstruída e, a partir daí, servir de instrumento para a extração dos
possíveis valores sobre os quais ou para os quais o texto foi construído.
78
Quando se engendra um discurso-enunciado, estabelece-se,
pressupostamente, um contrato fiduciário entre enunciador e enunciatário, que
determina a verdade ou não do texto. Esse pacto de confiança mútua comporta
dois preceitos. O primeiro prescreve como o enunciatário deve perceber o texto
do ponto de vista da verdade e da realidade. Há procedimentos enunciativos,
específicos de cada cultura ou grupo social, que impõem formas de interpretação
do discurso, direcionando a leitura rumo à verdade ou à mentira. Em dados
universos culturais, narrativas que trazem o rótulo de “histórias de pescador” são
agraciadas com o título de mentirosas, carregam consigo o gérmen da
desconfiança, da descrença. Os contos, infantis ou não, que se constroem a partir
do enunciado “Era uma vez...” são considerados irreais, frutos das coerções
imaginativas. As histórias populares, principalmente aquelas concernentes ao
romanceiro popular, são tomadas como verdadeiras para aqueles que
compartilham dos valores, das crenças por elas veiculados. No entanto, trazem os
signos da ficção, da invenção, do imaginário para aqueles que se encontram
distantes desse universo, para os que não participam ativamente do macro-
universo popular. As fábulas de La Fontaine ou aquelas adaptadas por Monteiro
Lobato no Sítio do Pica Pau Amarelo continuaram, à semelhança de Esopo, a
transmitir uma lição de moral por meio da elocução de animais e/ou de seres
inanimados, o que, aparentemente, denota um certo caráter irreal. No entanto,
esses personagens agem como humanos, seus sentimentos e atitudes são reais
e, por isso, explicitam conteúdos verdadeiros.
O segundo preceito, ainda sobre o dispositivo veridictório do texto,
determina como o enunciatário deve entender o discurso-enunciado, partindo da
informação superficial, encerrada pelos significados gerais dos elementos
79
constituintes da estrutura, ou seja, o conteúdo dito, o posto; ou o contrário,
recuperando aquilo que jaz sob as unidades significantes, o dizer. Existem
estratégias discursivas que assinalam se um dado enunciado deve ser
interpretado como H, alicerçando, com isso, um contrato de identidade, ou como
um o-H, estabelecendo, a partir de então, um vínculo de contrariedade.
Se numa situação específica, enuncia-se a estrutura “Muitos animais
encontram-se em extinção”, é evidente que o enunciador almeja que tal
enunciado seja concebido como H. Todavia, quando um adolescente diz “Levei
bomba na prova”, quer que o produto de sua enunciação seja interpretado como
não-H. O termo “bomba” figura como uma antífrase: não há possibilidade de
tomá-lo, aqui, como referência ao aparato bélico, uma vez que encerra um outro
sentido, o de que o aluno não obteve êxito na prova.
Segundo Courtés (1991), a enunciação é uma instância propriamente
lingüística ou, mais largamente, semiótica, logicamente pressuposta pela própria
existência do enunciado e cujos traços e marcas são recuperados nos discursos
examinados. Sua efetivação depende do sincretismo de três categorias: eu-aqui-
agora, que projetadas ou negadas no enunciado, fabricam o discurso. Dessa
forma, a discursivização é o procedimento gerador da pessoa, do espaço e do
tempo da enunciação e, ao mesmo tempo, da referencialização actancial,
espacial e temporal que, consequentemente, se inscreve no enunciado.
Os mecanismos de instauração de pessoas, espaços e tempos no
enunciado são dois: debreagem e embreagem. A debreagem consiste em
abandonar, em negar a instância fundadora da enunciação, e em fazer surgir,
como conseqüência, um enunciado cuja articulação actancial, espacial e
temporal, guarda como na memória, sobre um modo negativo, a estrutura original
80
do eu-aqui-agora. É somente através dessa operação de negação que se pode
vislumbrar a passagem da esfera de produção enunciativa para o patamar da
realização, ou seja, do enunciado. Ademais, o processo de negação recai sobre
cada um dos três componentes da instância enunciadora. Assim, o não-eu, obtido
por esse procedimento, equivale então a um ele, o que Benveniste designou, em
seu célebre artigo Da subjetividade na linguagem (1976, p.284), de não-pessoa. A
terceira pessoa não implica uma pessoa em particular, porque pode representar
qualquer sujeito ou nenhum e esse sujeito, inscrito ou não no discurso, não é
jamais instaurado como actante da enunciação. Corresponde àquele de que eu e
tu falam, pertencendo, pois, ao enunciado. Paralelamente, ao não-aqui que
estabelece a debreagem espacial corresponde a categoria do algures, assim
como a denegação do agora dá lugar a um então. As reflexões acima podem ser
expressas, visualmente, pelo seguinte esquema:
O procedimento de debreagem, que assegura a passagem da instância da
enunciação à do enunciado, responde, em sentido inverso, ao mecanismo
denominado embreagem que visa o retorno à esfera da enunciação. Para dizer a
verdade, esse retorno é absolutamente impossível. Se a reconstrução da
Enunciação
eu
aqui
agora
não-eu
(=ele)
não-aqui
(=algures)
não-agora
(=então)
enunciado
debreagem
actancial
debreagem
espacial
debreagem
temporal
81
enunciação só acontece mediante a recuperação dos traços deixados no
enunciado, a volta ao estado histórico de produção enunciativa desencadearia o
desaparecimento do enunciado, o que, por sua vez, impediria totalmente a
restauração da enunciação. O que se pode ter, de fato, é uma embreagem parcial
que corresponde, ao menos, a um esboço de um retorno e, pressupõe,
evidentemente, uma debreagem prévia:
O sistema de referencialização actorial, centrada nos mecanismos de
debreagem e embreagem, obedece a uma hierarquização que leva em
consideração as diferentes instâncias enunciativas instauradas no texto, todas
correlacionadas com a identidade do sujeito enunciador. O primeiro patamar da
enunciação goza, então, da presença do actante enunciador cuja instauração põe
em cena, numa relação de alteridade, o actante enunciatário. Ambos pertencem à
enunciação considerada enquanto quadro implícito e logicamente pressuposto
pela materialidade do enunciado, o qual retém os sinais que permitem “regenerá-
la”. Nesse âmbito, enunciador assume a função discursiva de destinador implícito
da enunciação e o enunciatário exerce o papel, também presumido, não
Enunciado
ele
algures
então
não-ele
(=eu)
não-algures
(=aqui)
não-então
(=agora)
enunciação
embreagem
actancial
embreagem
espacial
embreagem
temporal
82
estruturalmente expresso, de destinatário da atividade enunciativa. Se eu e tu se
constroem e se posicionam, convergentemente, na situação de enunciação, pode-
se afirmar, com veemência, que o “cargo” de enunciatário não se restringe
apenas a recepcionar o discurso, mas também, e sobretudo, de produzi-lo uma
vez que se apresenta “como filtro e instância pressuposta do ato de enunciar
(Fiorin, 2002, p.65).
O segundo patamar do ordenamento enunciativo comporta a existência de
um narrador e de um narratário instalados, explicitamente ou não, no enunciado.
Referem-se, estes, a desdobramentos diretos do sujeito da enunciação. Mesmo
nos textos construídos a partir do ponto de vista de um narrador aparentemente
ausente, há, indubitavelmente, uma esfera inscrita no enunciado que assume a
responsabilidade pelas avaliações e interpretações, em suma, pelo dito. Ainda
que se conceba um objeto semiológico desprovido de interpretação, o que, em
termos lingüísticos, é absolutamente impossível, testemunhar-se-ia, certamente,
uma organização referencial do universo enunciativo, erigida pelo sujeito
narrador, alicerçada na distribuição dos atores (interlocutores), na construção dos
espaços, nas projeções temporais, etc. Semelhantemente, todavia em nível não
tão complexo, o narratário pode vir a figurar explicitamente no discurso-
enunciado, caso o narrador estabeleça um elo direto com ele, dirigindo-lhe
concretamente a palavra, ou de modo tácito, quando constitui uma imagem
projetada estrategicamente pelo narrador.
A terceira instância concernente à hierarquização enunciativa emerge
quando o narrador delega a voz a um actante do enunciado, produzindo uma
debreagem interna que instaura um diálogo. Cria-se, então, um simulacro da
própria esfera da comunicação cuja instalação, no interior do discurso, faz surgir,
83
em condição pressuposta e dialética, os actantes responsáveis, inerentemente,
pela efetivação da atividade comunicativa, o destinador e o destinatário que,
nesse contexto, exercem as funções de interlocutor e interlocutário. Observe-se a
diagramação seguinte:
É preciso dizer que esse esquema não aparece nas tramas discursivas
com esta ordenação metódica. A depender do universo de discurso, tal
hierarquização sofre determinadas transformações ou complicações. No caso da
literatura oral, especificamente nos romances tradicionais, observa-se uma
neutralização ou um apagamento da instância ocupada pelos actantes narrador e
narratário. Em determinadas peças, o sujeito enunciador e o seu correlato
dialético, o enunciatário, projetam no enunciado os interlocutores (atores) que, em
situação dialógica, passam a ter a “autonomia” do processo enunciativo. É o que
ocorre, por exemplo, no romance La condessa, cujo enredo se desenvolve a partir
do confronto dialógico fincado entre a Condessa, detentora de belas filhas, e o
cavaleiro e/ou rei, que pretende desposar uma das donzelas. Aparentemente, a
enunciação serve aos propósitos desses protagonistas:
Implícitos (Enunciação pressuposta)
Debreagem de 1ª grau
Debreagem de 2ª grau
Enunciador
{
Narrador
{
Interlocutor
{
Objeto Interlocutário Enunciatário Narratário
} } }
84
“_Ó condessa, condessinha, condessa de Aragão
Vinha te pedir uma filha das mais lindas que elas são.”
Em outras narrativas, no entanto, acontece uma convergência, uma
cumplicidade enunciativa entre os pares discursivos enunciador / enunciatário e
interlocutor / interlocutário. Nesse caso, os atores estão embreados no enunciado,
criando uma atmosfera real de comunicação, como se realmente fossem os
verdadeiros responsáveis pela materialização do discurso. Tal fenômeno atinge, a
título de exemplo, o romance popular Miguelzinho, caracterizado, em termos de
enredo, por um menino que triste com a morte da irmã se dirige, todas as
manhãs, para a tumba dela onde pede a Deus que a traga de volta. O discurso se
desenvolve em primeira pessoa, do ponto de vista de Miguelzinho, forjando a
impressão de que a história está acontecendo no momento em que é enunciada,
acentuando, dessa forma, o seu caráter veridictório:
— Papai do céu, por favor deixa voltar a maninha
Ela nunca mais brincou está tão triste coitadinha
Lá em casa todos choram a mamãe vive a chorar
A vovó só conta estória quando a maninha voltar
Deus, atende o meu pedido ela não suja o vestido
Eu vou segurando o véu e depois que a vovó contar
A maninha voltará pra dormir com Deus no céu
A crítica literária e diversas teorias que se dizem voltadas para o discurso
continuam postulando, erroneamente, que os mecanismos de debreagem e
embreagem criam, essencialmente, dois efeitos de sentido: o de objetividade e o
de subjetividade. Os fenômenos enunciativos não se limitam a essa visão
simplória e ingênua. Um discurso que se constrói sobre os simulacros do eu-aqui-
85
agora pode ser tão ou mais objetivo quanto aquele cujas marcas de enunciação
foram eliminadas. Subjetividade e objetividade não são fenômenos estruturais que
se fincam na superfície do discurso. São antes, procedimentos ideológicos que
fazem vir à tona as intenções e valores daqueles que, competentemente, deles
fazem uso. Recorrendo mais uma vez ao universo popular, tem-se o romance
Margarida, erigido predominantemente em terceira pessoa, mas que concentra
fortes traços de subjetividade. Constate-se:
Margarida não tinha mãe Alfredo não tinha pai
Era um amor entre os dois que não se via em ninguém bis
Alfredo fez uma viagem e prometeu de voltar
Margarida que tanto esperava nada de Alfredo voltar
Alfredo em campos de batalha seu corpo estremeceu
Quando soube da notícia que Margarida morreu
Margarida, por Deus te peço pelo Santo amor de Deus
Quando chegar lá no céu rogas por mim a Jesus bis
O enunciador, embora aparentemente distanciado do universo enunciativo,
detém um olhar, um dizer intensamente subjetivo. A caracterização de Margarida
e Alfredo assenta, já no início, sob a esfera do sofrimento, uma vez que são
órfãos, respectivamente, da figura materna e paterna. Em termos sociais, cabe à
mãe a função de educar os filhos, de dar-lhes afeto e ao pai, reserva-se o dever
de proteger a família, de provê-la. Assim, a união dos dois jovens se
complementam nessa ausência: Margarida busca o amor em Alfredo e este
almeja a realização, o abrigo em Margarida. Não é à toa que entre eles reside um
sentimento “que não se via em ninguém”. Por motivos não expressos, o valente
Alfredo viaja para lutar na guerra, mas promete à amada voltar. O destino lhes é
cruel e Margarida, não suportando a longa espera, desfalece. A causa da morte é
86
evidenciada através do elemento intensificador <tanto> presente no verso
Margarida que tanto esperava nada de Alfredo voltar”. Há, então, uma
avaliação da condição de espera de Margarida realizada pelo enunciador, que
interfere, subjetivamente, ao apreciar o fato.
Ao receber a notícia da morte de sua amada, Alfredo fica profundamente
perturbado. Essa constatação mais uma vez sofre intervenção estratégica do
enunciador, que, para enfatizar o transtorno que a perda da mulher dileta causara
no desarfortunado mancebo, projeta sobre o discurso uma estrutura lingüística
que o lança na cena enunciativa: “Alfredo em campos de batalha seu corpo
estremeceu”. O tremer do corpo só poderia ser descrito por alguém que, de fato,
estivesse a observar Alfredo quando este foi tomado pela tristeza. Infere-se,
depois dessas ponderações, que extrair os vestígios da enunciação de um texto,
não garante que sua enunciação proceder-se-á de forma objetiva.
É de responsabilidade da SEMÂNTICA DISCURSIVA descrever e explicar
os procedimentos semiológicos que permitem a conversão dos percursos
narrativos em percursos temáticos e o revestimento destes por meio das figuras.
Na epistemologia canônica da semiótica, a tematização e a figurativização
correspondem a realizações do sujeito da enunciação que as utiliza como
mecanismos geradores e mantenedores da coerência discursiva.
Na tematização, os valores semânticos que instauram o sujeito no patamar
narrativo são convertidos, no nível discursivo, em unidades abstratas
denominadas temas, as quais se organizam em percursos. Pertencem ao domínio
das idéias, pois não se referem a algo existente no mundo exterior, mas a
87
elementos capazes de organizar, distribuir e, principalmente, ordenar a realidade
apreendida por mediação dos sentidos. Em suma, os temas caracterizam-se por
seu aspecto propriamente conceptual.
Para revestir os temas, o sujeito da enunciação faz uso do processo de
figurativização que consiste em selecionar, do seu sistema de representação,
intensamente regulado e alimentado pelas coerções sociais e, sobretudo,
culturais, as figuras que poderão concretizar as categorias temáticas que,
abstratamente, tangenciam o discurso. Segundo Courtés (1991), será
considerada figura, de um dado universo de discurso (verbal ou não-verbal), todo
elemento diretamente reportado a um dos cinco sentidos tradicionais: a visão, a
audição, o olfato, o paladar e o tato. Resumindo, tudo o que se relaciona à
percepção.
Conforme o modo de concretização da estrutura narrativa, os versados em
semiótica prevêem a existência de dois tipos de texto: o temático e o figurativo.
Este se constrói sobre entidades que remetem ao mundo natural, trazendo para a
superfície discursiva, espetáculos reais, nos quais se presentificam seres
(humanos ou não), objetos, paisagens que impedem que se deforme,
interpretativamente, a realidade. Aquele, todavia, procura explicar os fatos e as
coisas do mundo exterior, buscando distinguir, organizar e, o mais importante,
interpretar a realidade que, abstratamente, se apresenta no discurso. Recuperar,
como exemplo, os textos populares, poderá didatizar o exposto. Assim, do
grandioso universo da literatura tradicional, extrair-se-á o romance oral O canário,
que narra a desventura de um pássaro (um canário) que é dado de presente a
uma menina que passa, a partir daquele momento, a engaiolá-lo. No entanto,
triste por está preso, o pobre canário adoece. Sua dona manda chamar um
88
médico que o examina imediatamente. Nada adianta, e depois de alguns dias o
canário vem a falecer:
Eu tinha um canário que me deram de presente bis
Quando era de madrugada meu canário acordava a gente bis
Mandei chamar o doutor pra fazer uma operação bis
Pra salvar o meu canário da veia do coração bis
Meu canário ficou triste no domingo adoeceu bis
Na segunda, bateu asa na terça, ele morreu bis
O texto, em questão, é totalmente coerente no que diz respeito à
verossimilhança, uma vez que as projeções actanciais e temporais se revelam
condizentes e adequadas à realidade do sujeito produtor. A menina, o canário e o
doutor são interlocutores figurativos cuja existência pode ser atestada,
comprovada, e, precipuamente, aceita pelo enunciatário. A figurativização
temporal obedece a um ordenamento lógico: o canário é entregue à menina, em
seguida ele é preso, adoece posteriormente e finalmente morre. Além disso, a
forma de conceber o tempo, ao utilizar as figuras domingo, segunda, resgata uma
norma social solidificada em determinadas comunidades humanas. Em termos
temáticos, a narrativa se expande: depreende-se o tema da opressão, realizada
por aqueles que, estando em posição contrária, são indiferentes aos sentimentos
do outro. Observa-se, também, o tema da exploração velada, visto que o sujeito
menina parece apreciar a ave, mas se mostra indiferente a sua prisão. Sua
preocupação em salvar o canário, encerra um propósito negativo – ela teme
perder o objeto de prazer.
A figurativização pode apresentar-se de maneiras distintas nos diversos
tipos de discurso. Há aqueles que comportam um investimento figurativo
89
esporádico, acarretando, com isso, um revestimento apenas parcial dos percursos
temáticos, que passam, então, a se constituírem de isotopias temáticas. É o que
ocorre, por exemplo, no discurso científico, predominantemente, construído sobre
enunciados abstratos. Por outro lado, as figuras podem se propagar em todo o
discurso, ordenando-se por meio de isotopias figurativas, como é o caso do
discurso literário, que requer uma referencialização enunciativa mais concreta.
Assim, é possível afirmar que não existem discursos não-figurativos, mas antes
discursos em que, ao contrário do literário, prima por um processo de
figurativização menos intenso.
As redes de figuras que se imprimem num texto contribuem para definir os
interlocutores cujos comportamentos são regidos, conduzidos e estereotipados
pelos papéis temáticos que assumem na instância discursiva. Justifica-se, então,
a posição metodológica da semiótica de abandonar a designação de interlocutor e
recuperar, do universo teatral, a denominação de ator, termo mais condizente
com a constituição físico-biológica dos personagens que se inscrevem no
enunciado e, principalmente, com as diversas funções por eles desempenhadas.
Entende-se por papel temático a qualificação ou o atributo de um ator.
Pode prender-se a uma esfera social (pai, mãe, marido, soldado), sintetizar um
conteúdo psico-sociológico (Cinderela, é caracterizada, em quase toda a
narrativa, como a pobre e humilhada donzela) e, em determinadas enunciações,
condensar uma valorização moral (a Madrasta da Branca de Neve é concebida
como má, perversa, extremamente, invejosa). A noção de ator, por sua vez,
implica uma figura, lexicalmente individualizada, capaz de assumir um ou vários
papéis. Nesse caso, apresenta-se como uma entidade estritamente semântica
que se define, linguisticamente, por abarcar os semas: a) unidade estruturalmente
90
figurativa, capaz de referencializar entes de natureza antropomórfica, zoomórfica
ou outras; b) categoria animada, com competência para agir discursivamente; e c)
instância passível de individuação, materializando-se no texto pela atribuição de
nomes próprios ou papéis temáticos.
Na literatura erudita, é comum se deparar com obras cujos personagens
são ardilosamente projetados a partir de denominações específicas que garantem
a sua permanência mítica. É assim que continuam intocáveis e estáticas as
personagens Iracema, de Alencar e Isaura, de Bernardo Guimarães. São figuras
restritas ao universo imaginativo, pertencem a um tempo que não é o do leitor e,
portanto, conservam-se distantes do mundo real, exterior. Diferentemente, os
romances populares, de realização oral, primam por papéis temáticos genéricos
que estendem a narrativa, situando-a mais próxima daquele que a produz. Assim,
o cangaceiro, a condessa, o marido traído, a namorada cruel podem ser
referentes de qualquer sujeito, podem ocupar outros espaços, podem ser
enunciados em outro tempo, em suma, podem ser reconstruídos incessantemente
pela dinâmica da memória e da cultura popular. São atributos sociais e morais
que não se restringem a uma dada História, caminham e se transformam com as
gerações.
O ator concentra outras complexificações que vão além de seu
investimento semântico. Ele não se limita a ocupar o nível discursivo, estando
também integrado na narrativa, onde é o responsável direto pela ordenação
sintática. Nesse âmbito, a figura do ator aparece como o lugar de convergência e
de união das estruturas narrativas e das estruturas discursivas, do componente
sintático e do componente semântico, visto que está incumbido, simultaneamente,
91
de pelo menos um papel temático e de um revestimento actancial. Trazendo à
tona a opinião de Greimas:
É a assunção dos papéis temáticos pelos papéis actanciais
que constitui a instância mediadora que dispõe a passagem
das estruturas narrativas para as estruturas discursivas
(1973, p.175)
Os dois níveis – narrativo e discursivo – embora estejam interligados numa
relação hierárquica ou de subordinação, não se encontram sobrepostos termo a
termo. O casamento entre ator e actante está longe de configurar um sistema de
inclusão de uma ordem numa determina classe. Assenta, na verdade, num
processo de combinação de funções, de desempenhos. Ou seja, um actante (A
1
)
pode ser manifestado no discurso por vários atores (a
1
, a
2
, a
3
) e, inversamente,
um só ator (a
1
) pode constituir o sincretismo de vários actantes (A
1
, A
2
, A
3
):
Em termos discursivos, o conflito interior, que a teoria literária admite
ocorrer somente quando o personagem mergulha num estado de inquietação e de
interrogação da sua condição humana ou social, ganha um enfoque mais
concreto e preciso, ao ser concebido como o resultado do sincretismo actancial
que atinge um determinado ator. Tem-se, então, uma estrutura actorial subjetiva,
caracterizada pela presença de um só ator que assume todos os actantes e
papéis actanciais, desencadeando uma altercação dramática em seu íntimo,
A
1
a
1
a
2
a
3
A
1
A
2
A
3
a
1
92
“obrigando-o” a tomar outros rumos, ou seja, a realizar outros percursos; e uma
estrutura actorial objetiva, quando para cada actante ou papel actancial
corresponde um ator diferente, que, geralmente, realiza percursos ordenados sem
ocorrência de rupturas.
93
2
2
.
.
O
O
R
R
O
O
M
M
A
A
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N
C
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1
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p
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l
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r
r
?
?
O lexema <romance>, dado a sua complexidade polissêmica, comporta,
comumente, sentidos que merecem ser explicitados, caso se pretenda fixar limites
concretos e nítidos entre as acepções que o termo encerra e o conceito que os
estudiosos da cultura popular estabelecem. A crítica literária, partidária e
divulgadora do saber erudito, concebe o romance como pertencendo ao gênero
narrativo. De textualização longa e estruturado em prosa, apresenta geralmente
um acontecimento ficcional que envolve várias personagens e pode tratar de
vários temas.
A partir de 1836, com o advento do Romantismo, o romance brasileiro
ganha outro atributo. A grande difusão entre as donzelas de educação refinada,
atribui ao gênero a descrição de aventuras amorosas. Essa conotação torna-se
tão profunda que faz perpetuar no cotidiano a definição de romance enquanto
ligação íntima entre homem e mulher. Cabe salientar que o público aristocrático
consolidado nessa época impediu, fortemente, que se agregassem ao romance
feições populares, embora alguns escritores, como Jose de Alencar, buscassem
inspiração nas peças oriundas do povo.
94
No âmbito lingüístico, o romance ou simplesmente <romanço> corresponde
ao período intermediário da evolução das línguas românicas durante o qual a
língua utilizada não era a latina, tampouco as neolatinas atuais, mas o latim vulgar
modificado pelos diferentes substratos regionais e pelos superstratos dos
conquistadores bárbaros. Dessa forma, houve na Europa um romance português,
um francês, outro espanhol e assim por diante. Séculos depois, a denominação,
antes restrita à língua, passou a caracterizar as obras literárias escritas nessa
modalidade lingüística e, mais tarde, veio a fundir-se com a concepção retórico-
literária criada pela academia.
Os investigadores do texto popular, todavia, preferem adotar a terminologia
romance para designar a poesia oral em verso, de natureza melódica, produzida
pelo povo e transmitida ao longo das gerações, distinguindo-o, por conseguinte,
do conto e da fábula que se constroem discursivamente através da prosa e do
folheto de cordel que tem a escrita como suporte. Contudo, o romance manifesta
alguns traços que reportam a esses três gêneros. Tal como o conto, efetiva-se
mediante uma progressão narrativa, apresentando uma textualização curta e,
consequentemente, um número reduzido de personagens. Assemelha-se à fabula
por encerrar um conteúdo por vezes moralizante e apresentar, em determinadas
ocasiões, animais que têm o poder de fala. E, como o cordel, constrói-se sobre a
memória e a história de um povo.
A oralidade constitui a marca maior da literatura tradicional. É Através dela
que se dá a conservação e inovação dos romances. Estes se encontram livres
dos grilhões da autoria, da escrita, fixando-se, dinamicamente, na memória de
crianças, pais, avós, em suma, de um povo, que os (re)constrói a cada momento
que os enuncia. Eles se transformam com as ideologias dos seus produtores, com
95
as inconstâncias da memória e, sobretudo, com as coerções temporais. Explica-
se, então, a textualização curta e, muitas vezes, fragmentada que apresentam.
Não é porque são produzidos pelo povo que os romances populares são
desprovidos de uma regularidade, de uma formalização, de uma estilística. No
que diz respeito à metrificação, são geralmente compostos de versos longos, de
quinze ou dezesseis sílabas, divididos em dois hemistíquios, apresentando cesura
depois da sétima ou oitava sílaba, o que comprova sua aproximação com os
poemas épicos medievais. A rima é predominantemente toante, como acontecia
também nas composições épicas da Idade Média peninsular. Como exemplo,
tem-se o romance Juliana, cuja escansão poética é a seguinte:
— Que/ é/ que/ tu/ tem,/ Ju/li/a/na?/ que es/tás/ tris/to/nha a/ cho/rar
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
— É/ por/ cau/sa/ de/ Dom/ Jor/ge/ que/ com/ ou/tra/ vai/ ca/sar
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15
(JULIANA, coletado por Maria de Fátima Batista)
Outra marca formal das compilações orais é a existência de um enunciado
formular, ou seja, a presença de pequenos segmentos lingüístico-discursivos que,
ao se repetirem na tessitura textual, permitem classificar um número determinado
de composições como sendo variantes de um mesmo romance. O enunciado
formular apresenta duas funções essencialmente distintas e relacionadas com a
instância enunciativa. A primeira assenta-se sobre o enunciado, criando a ilusão
de distanciamento entre o texto e o seu produtor, contribuindo para a própria
cesura após a oitava
cesura após a sétima
96
identificação do enunciado como um tipo de romance, principalmente se introduz
a narrativa:
A formiguinha foi passear ficou presa na neve
Muito triste a pensar começou logo a chorar
(A FORMIGUINHA E A NEVE, coletado por Maria de Fátima Batista).
Como se percebe, a debreagem que se instala logo no início do romance
produz a sensação de que os dois primeiros versos sintetizam a história, dando,
dessa forma, possibilidade ao informante de projetar fatos que, talvez, não se
encontrem materializados na versão presente em sua memória, mas que podem,
coerentemente, se ligar ao enunciado formular.
A segunda função refere-se às condições que permitem ao produtor
recuperar e ordenar tematicamente o texto. Trata-se de um processo mnemônico
que tem no enunciado-formular um “gancho” capaz de atrair os segmentos
dispersos na mente, oferecendo, portanto, condições para o progresso discursivo
do romance. A narrativa O Pavão do Mestre, nas 21 versões presentes no
Romanceiro Tradicional (1988), apresenta o segmento “— Bom dia, senhor
mestre, — bom dia, meu bom ladrão”, que promove o resgate do episódio
posterior à morte do pavão. Evidentemente, o enunciado sofre modificações
provocadas por acréscimos ou ausências lexicais mas estas não afetam a sua
funcionalidade. Constatem-se algumas variações do referido enunciado-formular:
— Bom dia Senhor mestre... tenho muito conversar
— Bom dia, senhor mestre —como vai, como passou?
97
— Bom-dia, Senhor mestre — bom dia, Senhor patrão
— Boa-tarde, senhor mestre — boa-tarde, seu ladrão
(PAVÃO DO MESTRE, coletado por Maria de Fátima Batista)
Quando o produtor detém, em sua memória, apenas fragmentos do
romance, ele recorre a um relato dos fatos, em estilo conversacional, para
introduzir a narrativa ou para ordenar logicamente os acontecimentos. É um tipo
de enunciado-formular específico daquela situação enunciativa e que evidencia a
fusão que se estabelece entre o texto e aquele que o “produz”. O fenômeno
atinge, em nível de exemplo, o romance “Quem geme, meu Deus, quem
geme?”, onde o informante sente a necessidade de intervir constantemente a fim
de se fazer entender por seu enunciatário:
Era uma moça que foi seduzida por um sujeito, um namorado. Ele a desprezou a ela
morreu de desgosto. Um dia, ele ia passando a cavalo, à meia-noite, pelo cemitério e viu
aquele gemido. Aí ele disse:
— Quem geme, meu Deus, quem geme nesta “horrive” solidão?
Vejo um vulto ali sentado acaso será visão?
— Vejo um vulto ali sentado para os céus vertendo as mãos
Com seu manto cor-de-neve é um anjo em devoção
Aí, ela respondeu:
— Zombando tu me deixaste nesta “ horrive” solidão
E por recompensamento e por recompensamento
Deus me deu a “ savalção”.
(QUEM GEME, MEU DEUS, QUEM GEME ?, Coletado por Maria de Fátima Batista)
O acompanhamento musical é outra característica do romance popular. A
prática advém da Idade Média quando as poesias eram feitas para serem
98
cantadas e não recitadas. Utilizavam-se instrumentos simples como a lira e a
flauta que impunham ao gênero os tons monótonos, ou seja, o ritmo constante,
sem variação melódica, como uma ária fastidiosa. Percebe-se, assim, uma
convergência entre as cantigas trovadorescas e as composições romancísticas
tradicionais. Ambas provêm de um mesmo período histórico, encerram vestígios
formais e enunciativos semelhantes e talvez, por isso, tenham ocorrido influências
e confluências entre elas. A História oficial afirma que a decadência do
mecenatismo real e o aburguesamento de Portugal foram fatores decisivos para a
expulsão das cantigas dos ambientes palacianos e sua disseminação nas
tavernas, no comércio, enfim, entre as camadas populares.
O fato é que cantigas e romances perderam, durante a travessia temporal,
o cortejo dos instrumentos e, a partir daí, tomaram rumos diferentes. As cantigas
deixaram de ser produzidas, chegando até os tempos atuais através dos
cancioneiros, que são compilações manuscritas de toda a produção do
Trovadorismo português. Foram reunidas em três volumes: o Cancioneiro da
Ajuda, o Cancioneiro da Biblioteca Nacional e o Cancioneiro do Vaticano. Os
romances, ao contrário, tiveram um fado mais aprazível. Eles se perpetuaram
durante os séculos e continuam a ser cantados como antes, graças à
musicalização que permaneceu viva e ativa na memória do povo, impedindo, na
maioria das vezes, seu desaparecimento. Eis, a afirmação de Batista sobre o
assunto:
A musicalização [...] tem sido, muitas vezes, a responsável
pela conservação [do romance] no decorrer dos séculos.
Tanto é verdade que o simples solfejar da música aguça a
memória do informante, levando-o, na maioria dos casos, a
lembrar o texto por inteiro” (1999, p. 67).
99
A reprodução do canto é tão importante que algumas edições de
romanceiros têm incorporado transcrições musicais quer em adaptações, quer em
fiéis registros. É o procedimento utilizado por Batista em seu romanceiro
Tradicional da Paraíba e em Pernambuco. Nele, o romance, além de receber um
revestimento lingüístico fiel ao falar dos informantes, é acompanhado por seu
registro musical, possibilitando ao estudioso da etno-literatura recuperar não só a
escrita do texto, mas reproduzi-lo com a melodia original. Observe-se o registro
musical do romance Dona Maria inserido na obra citada:
(BATISTA, O Romanceiro Tradicional da Paraíba e em Pernambuco)
Quanto à projeção actorial, o romance popular prima por personagens
predominantemente genéricos que carregam apenas qualificações sociais ou
morais. São atores que, por caminharem lado a lado com o informante, podem ser
(re)construídos em cada contexto onde a narrativa se insere. Tem-se, então, o
vaqueiro, o rei, o soldado, a princesa que são papéis temáticos de domínio
público, podendo remeter a qualquer sujeito de existência real ou fictícia que
ocupa o espaço ou o imaginário daquele que detém a enunciação. O Pavão do
100
Mestre é um bom exemplo. A história centra-se em Antonino, um menino que
brincando mata o pavão do mestre. Irritado, o professor vinga-se assassinando o
pobre menino. O revestimento figurativo de pai e de mestre torna a narrativa mais
impessoal, ou seja, permite que o informante e o ouvinte se identifiquem com os
fatos, correlacionando-os com o contexto ao qual pertencem.
Antonino estava brincando com três pedrinhas na mão
Foi atirar no passarinho pegou logo no pavão
— Papai, eu fiz uma arte agora vou lhe contar
Matei o pavão do mestre o senhor é quem vai pagar
— Menino malvado para que fizesse isso?
Fazer eu pagar agora o pavão do seu Felício
— Bom-dia, senhor mestre, —bom dia, como passou?
— Vim pagar o seu pavão que Antonino matou
(PAVÃO DO MESTRE, coletado por Maria de Fátima Batista)
No que diz respeito aos componentes discursivos, os romances orais
definem-se como composições poéticas de natureza estritamente narrativo-
dramática. Estruturam-se a partir de um núcleo narrativo homogêneo ou por meio
da instauração de situações dialógicas. No primeiro caso, têm-se dois tipos de
narrativas: aquelas que se constroem numa debreagem enunciativa, cujo discurso
se desenvolve em terceira pessoa e aquelas que apresentam um enunciador-ator,
embreado no enunciado, responsável por enunciar a história, criando a ilusão de
que se trata, realmente, do próprio enunciador. Numa das versões do romance O
Boi Espácio, as marcas de enunciação não se fazem presentes no enunciado. O
discurso se processa livremente como se os acontecimentos gozassem de uma
autonomia veridictória. Já na peça Miquelzinho, a narração fica sob a
101
responsabilidade de um ator-enunciador, forjando a impressão de que a história
se efetiva no momento que é enunciada:
— Papai do céu, por favor deixa voltar a maninha
Ela nunca mais brincou está tão triste coitadinha
Lá em casa todos choram a mamãe vive a chorar
(MIGUELZINHO, coletado por Maria de Fátima Batista)
Um caso que assucedeu no sertão do Quixelô
Um bezerro que nasceu o povo se admirou
(BOI ESPÁCIO, coletado por Maria de Fátima Batista)
No segundo caso, aparecem as narrativas cuja progressão discursiva
opera-se mediante confrontos dialógicos entre os atores inscritos no enunciado.
Estabelece-se, assim, uma dramaticidade que se assemelha às peças teatrais.
Não há estruturas lingüísticas que introduzem as falas dos atores e a mudança de
turno é percebida automaticamente pelas informações intracontextuais. Advém
daí o caráter elíptico dos romances, que impõe ao enunciatário/ouvinte o exercício
de ordenar as seqüências narrativas, reconhecendo os agentes dramáticos que
por elas são responsáveis. O seguinte testemunho de Pinto-Correia converge
para as reflexões acima esboçadas:
Os actores e as personagens raramente são apresentados e
os diálogos não comportam anotações didascálicas. É o
intracontexto que indica a personagem que fala. [...] Algumas
versões-ocorrência dispensam mesmo qualquer anotação
narrativa, apresentando-se como monólogos, cujos
intervenientes terão de ser identificados e caracterizados pelo
receptor da mensagem romanística.” (1984, p.34).
102
O romance Zé do Vale é um exemplar típico desse tipo de construção
enunciativa. O enredo se processa a partir do vínculo dialógico fixado entre a mãe
e o filho e entre ela e o presidente. Os diálogos se entrecruzam, mas se
identificam facilmente os sujeitos responsáveis pelos enunciados. O drama ganha
feições realísticas pelo uso do tempo presente e pelo simulacro do confronto
direto entre os personagens:
_A senhora dona, você por aqui
_Vim soltar um preso lá do Piauí
_Ai minha mãezinha, entre para dentro
Suba ao palácio fale ao presidente
(ZÉ DO VALE, coletado por Maria de Fátima Batista)
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Segundo Menédez Pidal, a origem do romance tradicional encontra-se nos
fragmentos dos cantares de gesta – estilhaços da poesia épica castelhana –
difundidos na Península Ibérica durante os séculos X, XI, e XII. Nessa época,
seus assuntos eram as aventuras e as façanhas, principalmente militares, de
heróis pertencentes à alta classe da sociedade medieval, aos reis, aos condes,
aos homens ricos ou aos simples cavalheiros.
Era poesía aristocrática, señorial, escrita originariamente pra
um público de hidalgos, cantada en el palacio, en el castillo,
en la casa solariega, en medio de lãs mesnadas preparadas
para marchar al combate; era la poesía de la casta militar,
heredera de lãs tradiciones de los visigodos” (PIDAL, 1973,
p.14).
103
No entanto, essa poesia, depois de um grande e ativo florescimento,
começa a dar sinais de decadência nos séculos XIV e XV. Castilha passa a viver
uma profunda desorganização de sua nobreza, provocada pela nova estrutura
econômico-social que lhe fora imposta e que atingira todo o país. Realizada a
unidade geográfica, pacificado o reino, a Espanha começa a expandir-se e a
revelar um vigoroso espírito mercantil. Esses fatores interferem radicalmente na
produção literária da nação castelhana, que passa, então, a ganhar outros
contornos.
O processo de democratização, fruto do desenvolvimento comercial, exige
e impõe uma mudança de rumo para a epopéia, símbolo da aristocracia de
Castilha. A poesia nobre, de amplas dimensões, produzida para o deleite dos
fidalgos nos dias ociosos de paz e tranqüilidade, deu lugar a uma produção
literária mais breve, que pôde servir aos homens mais rudes, menos
descansados, ou seja, uma literatura que reflete o gosto e os anseios do povo.
Esse novo público, numeroso e heterogêneo, ao reclamar uma poesia com
a qual pudesse se identificar, promove alterações extremas na antiga epopéia de
descendência ilustre. O distinto caráter militar de valorização aristocrática foi
substituído por temas mais variados; buscou-se a simplicidade e o fascínio das
aventuras novelescas, deixando de lado os episódios épicos sobre façanhas
guerreiras. Os idílios amorosos e os conflitos deles decorrentes, nunca descritos
pelos velhos cantares de gesta, passam a agradar e a encantar o espírito dos
homens “indelicados”. E, assim, a poesia heróico-cavaleiresca se evolui,
transformando-se numa expressão novelesca de interesse mais geral. A esse
respeito, aponta Menéndez:
104
En esta larga vida, la poesía heroica salió de Castilha pra
difundirse por España entera, y entonces tuvo que ensanchar
su primitivo espíritu local y cantar héroes de otras regiones,
abandonando su exclusivismo originário” (1973, p.13).
Os romances criados pelo povo mostraram-se mais democráticos, mais
instigantes, causando enlevo a todos aqueles que traziam em sem âmago à
paixão pelas histórias. Estas, aliás, continuaram a imbuir-se de ideologias locais,
influenciando todos os segmentos sociais. Atraíram a atenção de fidalgos,
burgueses, mercadores e trabalhadores. Dessa forma, a poesia heróica, nascida
para os nobres, transforma-se na poesia de todos, dos grandes e dos pequenos,
passando, verdadeiramente, a transmitir a memória do povo.
Assim como as cantigas trovadorescas, os romances também eram
cantados em galego-português. Este era a língua usada por todos os poetas da
Península Ibérica, graças à importância de Santiago de Compostela, na Galiza,
que, em função das peregrinações, influenciou culturalmente toda a região
peninsular. Como na Galiza falava-se o galego-português, essa língua se
sobrepôs às demais. Entretanto, a partir do reinado de D. Afonso VI, as relações
entre Portugal e Espanha tornam-se tensas, o que ocasiona uma separação não
só lingüística mas sobretudo literária. Cada nação procura formas próprias de
expressão, abandonando o que era feito em comum.
As cantigas não resistiram ao desaparecimento do galego-português. Já os
romances foram paulatinamente se adaptando aos falares que despontavam. E,
com isso, foram aparecendo romances em português, em espanhol, em francês e
estes, passando de geração a geração, chegaram aos dias de hoje.
Conquanto se originem dos cantares de gesta, os romances populares não
conservam inteiramente o caráter épico que detinham em princípio. A explicação
105
parece estar na fragmentação da épica castelhana que estava condicionada à
possibilidade de se poderem revestir os episódios ou seqüências isolados por um
conteúdo lírico, explorado-os numa direção afetiva e sentimental. É o que ocorre,
por exemplo, no romance Xácara de Dom Varão. O enredo centra-se na história
de um rei que, impossibilitado pela velhice de participar na guerra e sem filhos
homens para mandar, aceita o pedido da filha de representá-lo. Para isso, ela se
faz passar por cavaleiro e assume a alcunha de Dom Varão. Durante a guerra, o
filho do general apaixona-se por ela. Instala-se, assim, o conflito. Apesar de a
narrativa apresentar insígnias épicas como a batalha contra os mouros, a ida de
um filho à guerra, estas são apagadas pela tensão amorosa que se instaura como
núcleo discursivo, fazendo com que a épica figure apenas como pano de fundo e
o revestimento lírico assuma o comando. Não é à toa que o enunciatário é levado
a envolver-se com o drama de Dom Varão que assume duas identidades e a
esquecer o fato de que se tem uma donzela no campo de batalha.
—Já se formaram as guerras nos campos de Aragão
Ai de mim que já sou velho em guerra me acabarão
E das três. filhas que tive nenhuma saiu varão!
—Me mande,meu pai,a guerra que eu tenho disposição
Sou sua filha mais moça serei seu filho varão!
(XÁCARA DE DOM VARÃO, coletado por Maria de Fátima Batista)
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A conquista de novas terras não significa apenas o aumento do território
pertencente ao país. A colonização portuguesa no Brasil representou, além de
106
riqueza e exploração, a migração de uma cultura riquíssima que encontrou, nas
terras do além-mar, condições propícias para se desenvolver.
O povoamento do Brasil iniciou-se com as expedições exploradoras. Delas,
a elite nunca participou. Eram comandadas por homens com conhecimentos
náuticos – navegadores – ligados à Coroa, que, instigados pelas altas
recompensas, aventuraram-se a explorar a nova e desconhecida terra. A
tripulação que os acompanhava era composta basicamente por homens pobres,
degredados, escravos. Foram estes que principiaram a difusão do romance
tradicional aqui no Brasil. Os romances se mostraram preciosos e extremamente
úteis para amenizar as saudades da terra natal e a consolá-los nos duros
momentos de solidão.
Devido à grande extensão territorial brasileira, essas expedições não
obtiveram êxitos. Assim, entre 1534 e 1536 Dom João III estabeleceu o sistema
de capitanias hereditárias, dividindo o litoral brasileiro em quinze lotes de terras
que foram entregues a senhores chamados capitães donatários. Apenas duas
foram bem sucedidas. Entre elas a Capitania de Pernambuco. O sucesso deveu-
se ao cultivo da cana de açúcar. Para ocupar a capitania, a população pobre de
Portugal foi mais uma vez “convidada”.
Com o aumento da produção açucareira, Pernambuco assume o posto de
sede da aristocracia canavieira. Nesse momento, o romance popular fixa-se de
vez no Brasil. Numa região até então rural, sem atrativos, as mulheres passam a
utilizar as narrativas, que trazem na memória, para entreter as crianças, para
acariciá-las. No fim do dia, a família se reúne para cantar as histórias como forma
de suavizar a saudade. As tarefas domésticas revelam-se menos desgastantes
quando acompanhadas pelas melodias brandas dos romances. São atividades
107
que não se perderam na história, permanecem, ainda, vivas em algumas regiões
interioranas do nordeste brasileiro. Em determinados povoados, por exemplo, as
lavadeiras cantam romances e cantigas para tornar menos cansativa a atividade
de lavar roupas sobre pedras.
Décadas depois, a pecuária surge como a mais importante atividade para a
efetivação do território, auxiliando, inclusive, no cultivo da cana de açúcar uma
vez que eram os bois que aravam as terras. A Bahia, nesse período, aparece
como o maior criador de gado do nordeste, reservando, ainda, uma cultura
canavieira em expansão. Tais características lhe conferem o posto de primeira
capital do Brasil. O desbravamento do sertão, pela busca de pastos mais férteis
para o gado, possibilita a disseminação do romance tradicional em todo o
nordeste e também para o centro-oeste e sul do Brasil.
Consolidado em terras brasileiras, o romance passa a ganhar feições locais
através da incorporação de elementos sócio-culturais nordestinos nas
composições trazidas da Ibéria. Além disso, o Nordeste passa a elaborar seus
próprios romances, dando-lhes características próprias que os tornam verdadeiros
documentos literários nos quais se podem depreender os aspectos econômicos e
ideológicos dessa região. Nesse contexto, surgem as gestas de valentia, poesias
tradicionais estreitamente vinculadas à história e à sociedade nordestinas,
principalmente no que tange aos problemas político-sociais, às lutas ocorridas,
como rebeliões políticas e o cangaço e à relação entre o nordestino e os animais
típicos da região como o boi, o cavalo, o jumento.
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O romance oral O Boi Espácio, exemplar ímpar das gestas de boi, surgido
por volta de 1880, narra a existência de um boi indomável, dotado de força física
e bravura extraordinárias, que instiga admiração e medo entre a população
sertaneja de Quixelô. Sua superioridade, advinda principalmente da força
descomunal que possui, afugenta até os renomados vaqueiros que, mesmo
unidos, não conseguem dominá-lo. Apenas ao seu dono reserva obediência.
A natureza sobrenatural que reveste o Boi Espácio o torna ainda mais
supremo. Ele nasce de manhã e, inexplicavelmente, ao meio dia, torna-se adulto.
Apenas um urro seu é capaz de fazer estremecer, fortemente, a terra. Tais
virtudes lhe conferem um grande valor monetário, além do reconhecido prestígio a
seu possuidor, o qual se recusa a vendê-lo. Todavia, o valioso e insólito animal é
morto e das partes de seu corpo são feitas importantes obras, tais como
grandiosas edificações, além de outros objetos de variados tipos e dimensões.
Como se percebe, a narrativa constrói-se numa simbiose entre a genuína
expressão social e a efervescente criatividade do imaginário popular, convergindo
109
para uma analogia orgânica da ligação do homem com a natureza. Em termos
semióticos, essa união faz com que o romance apresente uma organização
discursiva peculiar, elaborada ao gosto popular, capaz de conciliar e revelar os
valores, as crenças e as intenções daquele que o produziu.
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Foram levantadas do Romanceiro Tradicional da Paraíba e de
Pernambuco, de autoria da estudiosa da literatura popular Maria de Fátima
Batista, quatro versões do romance O Boi Espácio. Há uma diversificação de
títulos que provém, certamente, do itinerário temporal e cultural realizado por
todas as manifestações tradicionais que têm, na memória e na oralidade, seus
mecanismos de difusão e conservação.
O corpus selecionado apresenta as seguintes designações: Romance do
Boi Espácio / O Boi Espácio, que denotam uma particularização do animal,
atribuindo-lhe, de imediato, a posição de protagonista e, consequentemente, de
alvo discursivo; O Boi Misterioso, traduzindo uma apreciação cognitiva que recai
sobre o caráter sobrenatural, místico do boi; O Boi do Quixelô, que evidencia a
localização geográfica na qual figura o personagem, outorgando-lhe os valores
próprios da região, ou seja, o sertão. Nesse caso, o espaço físico surge como o
traço caracterizador do animal.
As versões examinadas receberam uma codificação oportuna a fim de
garantir-lhes uma recuperação mais ordenada e coerente no desenvolver da
análise. Dessa forma, têm-se:
110
BE1 - ROMANCE DO BOI ESPÁCIO (Va): Cantado por Dalvanira Gadelha,
professora de música, natural de Campina Grande e coletado por Maria de Fátima
Barbosa de Mesquita Batista em 04 de abril de 1984, na cidade de Campina
Grande.
BE2 - O BOI ESPÁCIO (Vb): Cantado por Umbelina Clementina Neves
Antonino, nascida em Vila do Abel (Monteiro) e coletado por Maria de Fátima
Barbosa de Mesquita Batista em 30 de janeiro de 1988, na cidade de Campina
Grande, Abrigo de São Vicente.
BE3 - O BOI MISTERIOSO (Vc): Recitado por Severino Paulino de Farias,
agricultor, nascido no Sítio Paquivira (Macaparana-PE) e coletado por Maria de
Fátima Barbosa de Mesquita Batista em 28 de janeiro de 1987, no Sítio Pau
d’Arco (Salgado de São Félix).
BE4 - O BOI DO QUIXELÔ (Vd): Cantado por Maria do Carmo do Espírito
Santo (Dona Carmem), lavadeira e roceira nascida no Sítio Balaço (Macaparana)
e coletado por Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista em 22 de janeiro de
1987 no Sítio Pau d’Arco (Salgado de São Félix).
Devido ao caráter mutacional das compilações orais, que atinge,
radicalmente, sua textualização, o grupo de versões inspecionado apresentou ora
convergências ora discrepâncias segmentais. Estas, efetivando-se através de
supressões e acréscimos, não afetam a estrutura conteudística da narrativa, ou
111
seja, aquela que permite reconhecer uma peça como pertencendo ou não a um
determinado grupo ou classe. Eis, os segmentos extraídos:
S
S
g
g
1
1
– O enunciador-ator, proprietário do Boi Espácio, dirige-se a seu enunciatário-ator,
mãe, para contar-lhe a origem e as peripécias do indômito animal. Essa estrutura
enunciativa projeta os demais segmentos:
S
S
g
g
2
2
– O nascimento do boi ocorre no sertão de Quixelô.
S
S
g
g
3
3
– Ainda bezerro, o boi transforma-se, bruscamente, num animal adulto.
S
S
g
g
4
4
– A mãe do Boi Espácio não detém as virtudes do filho, sendo pois domável e
desprovida de vigor.
S
S
g
g
5
5
- O povo admira e teme o porte descomunal do boi.
S
S
g
g
6
6
– A imponente fera atende aos chamados do dono.
S
S
g
g
7
7
– Aqueles que tentam domá-lo são impiedosamente massacrados.
S
S
g
g
8
8
– O animal emite um urro que abala, intensamente, a terra. O povo, espantado, pensa
ter acabado o mundo.
S
S
g
g
9
9
– Quatro açudes permanentes, em pleno sertão, surgem em decorrência de uma
carreira” dada pelo boi robusto.
S
S
g
g
1
1
0
0
– O proprietário recusa a oferta de compra do animal.
S
S
g
g
1
1
1
1
– O boi é enviado, como presente, ao imperador.
S
S
g
g
1
1
2
2
– Morto, sua partes são transformadas em obras e objetos grandiosos.
112
A textualização do S
g1
, introduzindo a história a partir de uma situação
dialógica, é exclusiva da versão codificada como Va, como também as constantes
retomadas desse vínculo durante a progressão enunciativa do romance: “Eu
chamava ele vinha, mamãe, eiá, meu boi, eiô”. Em Vd, a enunciação se processa
diretamente em 3ª pessoa, a partir da materialização do S
g2
.
Eu vou lhe contar um caso mamãe, que o povo se admirou” (BE1)
Um caso que assucedeu no sertão de Quixelô” (BE4
)
A obediência do animal aparece pressuposta em Vb, Vc e Vd e, apenas em
Va, aparece materializada linguisticamente. Vc apresenta-se constituída
basicamente pelo S
g8
, que refencializa uma das grandes construções erigidas
pelo boi (quatro açudes duradouros nas terras áridas do sertão). Nas outras
versões, as inacreditáveis obras surgem da morte do boi, visto que é a partir de
suas partes que tais criações se originam.
A presença da vaca, genitora do Boi Espácio, manifesta-se no S
g4
, cuja
ocorrência somente se processa em Vb. Esta versão, assim como Vc, é
extremamente curta, abarcando além do S
g4
, o enunciado que comporta a morte e
transformação do boi, ou seja, o S
g12
(materializado, também, em Va, Vb e Vd).
Outra divergência segmental reside na responsabilidade pela morte do boi.
Enquanto em Vb, o animal é morto pelas mãos de seu possuidor, que o extirpa
para beneficiar pessoas de mesma condição sócio-cultural, nas versões
codificadas como Va e Vd, o intrépido Boi Espácio é dado ao ilustre imperador
que, pela cronologia do romance, presume-se ser D. Pedro II. Este,
pressupostamente, responde pelo extermínio do valente e valioso animal,
beneficiando-se direta ou indiretamente com isso:
113
Da ponta do Boi Espácio mandei fazer um a canoa
Para embarcar a gente de Goiana para Lisboa” (BE2)
Das pontas do boi Espácio, mamãe, fizeram uma canoa
Pra transportar o rei, mamãe, da Bahia pra Lisboa” (BE1)
E este boi vai de mimo pra o doutor emperiador
Das pontas deste boi quatro obra se formou” (BE4)
O quadro seguinte oferece uma distribuição mais sistemática e nítida dos
segmentos estudados:
Segmentos
Versões
S
g1
S
g2
S
g3
S
g4
S
g5
S
g6
S
g7
S
g8
S
g9
S
g10
S
g11
S
g12
TOTAL
BE1
(Va)
X
X
X
X
X
X
X
X
X
09
BE2
(Vb)
X
X
X
03
BE3
(Vc)
X
X
02
BE4
(Vd)
X
X
X
X
X
X
X
X
X
09
Percebe-se, a partir dessa discriminação, que nenhuma das versões
apresenta a totalidade dos segmentos. Colocando-os em ordem decrescente,
tem-se:
114
Versões
Segmentos
BE1 / BE4 09
BE2 03
BE3 02
A identificação dos segmentos por versões (em ordem decrescente)
Número de versões em que
aparece
Identificação dos
segmentos
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12
02 S
11
02 S
10
01 S
9
01 S
8
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6
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a
a
t
t
i
i
v
v
a
a
s
s
O processo de narrativização do romance oral O Boi Espácio faz emergir
11 (onze) sujeitos semióticos. O número de sujeitos pode parecer elevado se
comparado à textualização curta do romance. No entanto, determinados atores
115
sincretizam mais de um papel actancial o que gera a desproporção. Dessa forma,
distribuem-se:
3
3
.
.
3
3
.
.
1
1
.
.
A
A
p
p
r
r
o
o
p
p
ó
ó
s
s
i
i
t
t
o
o
d
d
o
o
s
s
u
u
j
j
e
e
i
i
t
t
o
o
s
s
e
e
m
m
i
i
ó
ó
t
t
i
i
c
c
o
o
1
1
O sujeito semiótico 1 assume o revestimento figurativo do Boi Espácio,
instaurando-se, na narrativa, pela modalidade complexa do querer-ser. Motivado
por uma auto-destinação, realiza um percurso em busca da liberdade – seu objeto
de valor principal – visto que reage contra todos aqueles que tentam subjugá-lo.
As forças sobrenaturais o auxiliam em seu objetivo, atribuindo-lhe um dote físico
descomunal e uma ferocidade extraordinária. Esta, aliás, evidencia-se também
em seus urros, que fazem estremecer a terra, paralisando, de medo, os seus
opressores (oponentes). Como anti-destinador aparece a opressão da qual tenta,
bravamente, fugir.
Sujeito Versão
S
1
Va, Vb, Vc, Vd
sincretismo
S
2
Va, Vb, Vc, Vd
S
3
Va, Vb, Vc, Vd
S
4
Va, Vb, Vc, Vd
sincretismo
S
5
Va, Vd
Sujeito Versão
S
6
Vb
S
7
Va
S
8
Va, Vd
S
9
Va, Vd
S
10
Va, Vd
S
11
Va, Vd
116
Dário Dor Dor
(auto-destinação) (opressão)
Adjuvante: forças sobrenaturais OV
1
liberdade
S1 Oponente: tangedores
(Boi Espácio)
OV
2
S
1
confronto
S
1
OV
3
morte dos tangedores
Como se pode notar, o S
1
é o responsável direto por sua transformação
juntiva, ou seja, realiza ele próprio o fazer transformador que lhe garante passar
da disjunção à conjunção. Sua competência modal, fincada na imponência,
destemor, bravura, excede, portanto, a de seus oponentes. O esquema seguinte
condensa o que foi dito:
En = F [ S
1
υ OV
1
(S1 OV
1
)]
F
imponência, força,
bravura
[Dor (desejo) S
1
(o boi)
(querer-ser) O
v
não-sujeição
PN de performance
aquisição
valores
descritivos
F
extirpar os
opressores
[ Dor (desejo) S
1
(o boi)
(isenção de coação
física ou moral)
O
v
liberdade
PN de competência aquisição valores modais
117
3
3
.
.
3
3
.
.
2
2
.
.
A
A
p
p
r
r
o
o
p
p
ó
ó
s
s
i
i
t
t
o
o
d
d
o
o
s
s
u
u
j
j
e
e
i
i
t
t
o
o
s
s
e
e
m
m
i
i
ó
ó
t
t
i
i
c
c
o
o
2
2
Figurativizado pelo Boi Espácio, o S
2
, nesse percurso, almeja como objeto
de valor principal servir a seu dono, ao qual reserva grande obediência. O afeto
que nutre por seu possuidor constitui, por conseguinte, o seu destinador. Para
coadjuvá-lo em seu itinerário, conta mais uma vez com o sobrenatural que o
reveste de uma supremacia singular, fazendo com que seja valorizado e
apreciado por muitos, especialmente, por aquele que detém sua posse. A
oponência advém do intenso respeito que o dono tem para com o rei/imperador
que se mostra superior ao afeto que nutre pelo valoroso animal.
Tem-se, assim, um percurso que se caracteriza pela modalização
passional. O querer-ser obediente do S
2
revela um estado passional afetivo que
toma a forma da estima, da fidelidade. É por estes valores, dirigidos ao dono, que
o valoroso animal deixa-se submeter. A concepção negativa da traição, por
conseguinte, mostra-se como seu anti-destinador:
Dário Dor Dor
(fidelidade) (traição)
Adjuvante: forças sobrenaturais OV
1
S
2
Oponente: rei/imperador servir ao dono
(Boi Espácio)
OV
2
S
2
obedecê-lo
OV
3
S
2
atender aos seus chamados
118
A passagem do estado de privação ao de posse do objeto desejado é
desencadeada por intervenção de um fazer transformador operacionalizado pelo
próprio S
2
. Este, ao doar para si próprio a competência modal de que necessita,
consegue cumprir o contrato narrativo, assegurando, dessa forma, uma sanção
positiva. Observe-se a diagramação seguinte.
En = F [ S
2
υ OV
1
(S
2
OV
1
)]
3
3
.
.
3
3
.
.
3
3
.
.
A
A
p
p
r
r
o
o
p
p
ó
ó
s
s
i
i
t
t
o
o
d
d
o
o
s
s
u
u
j
j
e
e
i
i
t
t
o
o
s
s
e
e
m
m
i
i
ó
ó
t
t
i
i
c
c
o
o
3
3
O S
3
, na figura do possuidor do animal, desenvolve um percurso, impelido
pelo desejo de afirmação social, em busca do objeto de valor prestígio, o qual
abstrai da autoridade que exerce sobre o boi. É um sujeito complexo que se
instaura pela competência modal do querer-ser.
O domínio que exerce sobre o boi constitui o adjuvante que o auxilia na
obtenção do tão almejado reconhecimento. Somente a descrença pode vir a
PN de competência
aquisição valores modais
F
estima, lealdade
para com o dono
[Dor (o desejo) S
2
(o boi)
(querer-ser
obediente)
O
v
servir ao dono
PN de performance
aquisição valores descritivos
F
obediência
[Dor (desejo) S
2
(o boi)
(estima e respeito
ao possuidor)
O
v
fidelidade
ao dono
119
constituir uma ameaça a sua realização. Como anti-destinador, surge a
indiferença, à qual intenta sobrepor-se.
Dário Dor Dor
(o querer do sujeito) (indiferença)
Adjuvante: obediência do boi
OV
1
S
3
Oponente: a descrença o prestígio
(o dono)
OV
2
S
3
posse do boi
Averigua-se, então, que esse percurso assenta-se numa relação prévia de
conjunção. Ao receber do boi (sujeito transformador) os valores modais que o
habilitam a agir, o S
3
executa uma performance que, incontestavelmente, lhe
agraciará uma sanção positiva, ou seja, obtenção do objeto. O oponente não tem
uma existência fixa, concreta no percurso, apresentando-se como um provável
obstáculo. Os esquemas seguintes trarão uma descrição mais sistêmica desse
percurso:
En = F [ S
3
υ OV
1
(S
3
OV
1
)]
PN de competência
aquisição valores modais
F
mostrar-se como
“senhor” do boi
[Dor (o boi) S
3
(o dono)
(querer-ser) O
v
o prestígio
120
A propósito do sujeito semiótico 4
3
3
.
.
3
3
.
.
4
4
.
.
A
A
p
p
r
r
o
o
p
p
ó
ó
s
s
i
i
t
t
o
o
d
d
o
o
s
s
u
u
j
j
e
e
i
i
t
t
o
o
s
s
e
e
m
m
i
i
ó
ó
t
t
i
i
c
c
o
o
4
4
Destinado pela influência que exerce sobre o boi, o S
4
, sob o revestimento
figurativo de dono, promove um conjunto de ações que visam persuadir o
pequeno povoado de Quixelô, fazendo-o crer, por meio de uma manipulação que
se efetiva mediante atos provocativos, que ele, assim como o boi, traz consigo os
signos da bravura, da força e, consequentemente, da imponência. Dessa forma, a
auto-promoção constitui o objeto de valor que deseja.
Tencionando, claramente, expor a fragilidade de outros vaqueiros, realiza
um passeio no qual expõe o animal em condição de docilidade, de sujeição.
Previsivelmente, essa exposição, consciente, acarreta tentativas de compra do
animal que são usadas, pelo S
4
, para sua auto-promoção. Ele recusa a oferta,
dizendo que outras maiores já haviam sido feitas e, o mais importante, rejeitadas.
A docilidade do animal apresenta-se como seu adjuvante e o livre-arbítrio,
inerente a qualquer indivíduo, surge como o possível oponente que poderá
impedir à efetivação do percurso. Observe-se a diagramação seguinte:
PN de performance
aquisição valores descritivos
F
a obediência
do boi
[Dor(desejo) S
3
(o dono)
(prestígio) O
v
bravura, força,
imponência
121
Dário Dor
(querer do sujeito)
Adjuvante: docilidade do boi OV
1
S
4
Oponente: o livre-arbítrio auto-promover-se
(o Boi Espácio)
OV
2
S
4
“manipular”
S
4
OV
3
expor o animal
S
4
OV
4
convencer o povo
Privado do objeto de valor desejado, o S
4
necessita da mediação de um
fazer transformador, no caso, o saber manipular, a fim de passar do estado
disjunto ao conjunto. A aquisição pressupõe, então, o êxito do ato manipulatório
que, por sua vez, só é obtido porque os sujeitos envolvidos compartilham dos
mesmos valores, ou seja, ambos acreditam na supremacia do boi.
En = F [ S
4
υ OV
1
(S
4
OV
1
)]
PN de competência
aquisição valores modais
F
posse do animal
[Dor (desejo) S
4
(o dono)
(fazer-crer) O
v
auto-promover-se
PN de performance
aquisição
valores
descritivos
F
o saber
manipular
[Dor(desejo) S
4
(o dono)
(prestígio) O
v
bravura, força,
imponência
122
3
3
.
.
3
3
.
.
5
5
.
.
A
A
p
p
r
r
o
o
p
p
ó
ó
s
s
i
i
t
t
o
o
d
d
o
o
s
s
u
u
j
j
e
e
i
i
t
t
o
o
s
s
e
e
m
m
i
i
ó
ó
t
t
i
i
c
c
o
o
5
5
Ao passar às mãos do rei a posse do proveitoso animal, o dono assume o
papel actancial de S
5
. Impulsionado pelo respeito, pelo apreço estabelece um
percurso que tem como fim agradar o monarca – seu objeto de valor principal.
Para isso tem como adjuvante a imponência do boi que instiga o querer do rei,
fazendo-o aceitar o presente.
O amor que sente pelo animal não é maior que a estima, a consideração
que nutre pela autoridade. Embora inferior, tal afeto constitui o seu oponente. Por
conseguinte, o conflito que perpassa o íntimo do S
5
o instaura pela modalidade do
crer, visto que é na crença da respeitabilidade real, que assenta o seu agir.
Dário Dor
(respeito)
Adjuvante: imponência do boi OV
1
S
5
Oponente: o amor agradar o rei
(o dono)
OV
2
S
5
sobrepor-se ao amor
S
5
OV
3
dar o boi
Nesse percurso, a conjunção com o objeto de valor provém do confronto
de valores passionais: o amor, traduzido na modalidade do ser, detém um valor
menor em relação ao respeito, que se reveste da modalidade do crer. Se acreditar
pressupõe sempre uma prévia manipulação, infere-se, pois, que o fazer
123
transformador advém do rei que leva o S
5
a querer-fazer dar o boi. Observem-se
os esquemas seguintes:
En = F [ S
5
υ OV
1
(S
5
OV
1
)]
A propósito do sujeito semiótico 4
3
3
.
.
3
3
.
.
6
6
.
.
A
A
p
p
r
r
o
o
p
p
ó
ó
s
s
i
i
t
t
o
o
d
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s
s
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j
j
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t
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o
o
s
s
e
e
m
m
i
i
ó
ó
t
t
i
i
c
c
o
o
6
6
Trazendo características totalmente opostas, o S
6
, figurativizado pela mãe
do Boi Espácio, almeja como objeto de valor a tranqüilidade. Seu porte físico,
ausente de força e vigor, o auxilia nessa empreitada. É um sujeito que se instaura
pela modalidade do querer-ser, desenvolvendo uma trajetória marcada
essencialmente pela mansidão que lhe é inerente.
A superioridade do filho, surpreendentemente, ao contrapor-se com sua
constituição física comum e débil, configura o seu anti-sujeito. Ela, mesmo em
condições propícias (correndo sobre uma superfície plana), não consegue atingir
uma velocidade satisfatória. Conforme está em Vc, a vaca não alevantava poeira.
PN de competência
aquisição valores modais
F
posse do valioso
animal
[Dor (crença) S
5
(o dono)
(crer) O
v
agradar o rei
PN de performance
aquisição
valores
descritivos
F
sobrepor-se ao
amor
[Dor (o rei) S
5
(o dono)
(respeitabilidade) O
v
dar o boi
124
Tem como destinador a paz e, logicamente, como anti-destinador a guerra. A
diagramação seguinte sintetiza o percurso:
Dário Dor Dor
(a paz) (a guerra)
Adjuvante: o porte frágil
OV
1
S
6
S
6
tranqüilidade
(o filho) (a mãe)
OV
2
S
6
mansidão
S
6
OV
3
naõ alevantava poeira
O S
6
, como pode ser constatado no percurso acima, é sancionado
positivamente, ou seja, obtém a conjunção com o objeto de valor desejado. O
fazer que possibilita esse estado juntivo advém do próprio S
6
que, por meio de
uma auto destinação modal, adquire competência para realizar a performance e,
consequentemente, receber a recompensa. Inexiste uma ação contrária que se
coloque entre o sujeito e aquilo que almeja. Os esquemas seguintes
consubstanciam as afirmações acima:
En = F [ S
6
υ OV
1
(S
6
OV
1
)]
PN de competência aquisição valores modais
F
a mansidão
[
Dor
(p
az
)
S
6
(
vaca
)
(querer-ser)
O
v
tranqüilidade
125
3
3
.
.
3
3
.
.
7
7
.
.
A
A
p
p
r
r
o
o
p
p
ó
ó
s
s
i
i
t
t
o
o
d
d
o
o
s
s
u
u
j
j
e
e
i
i
t
t
o
o
s
s
e
e
m
m
i
i
ó
ó
t
t
i
i
c
c
o
o
7
7
Aparece, na história, como S
7
, a mãe do possuidor do boi que, instaurada
pelo dever social para com a família, realiza um percurso no qual busca como
objeto de valor escutar o filho. Este, por sua vez, se institui como destinador visto
que atribui ao S
6
a posição de julgador ouvinte. É recorrendo, constantemente, a
ela, que o filho procura conseguir o aval veridictório de que a sua história
necessita.
Para coadjuvá-lo nesse itinerário, o S
7
conta com o auxílio da própria
estrutura familiar, no caso a sertaneja, que prescreve uma relação mais regrada
entre pais e filhos. Não é aleatório que é a mãe e, não outra pessoa, que o filho
procura para narrar as peripécias do boi misterioso, das quais é um participante
ativo.
Dário Dor
(filho)
Adjuvante: estrutura familiar OV
1
S
7
ouvir o filho
(mãe)
OV
2
S
7
atenção à história
S
7
OV
3
crer na história
PN de performance
aquisição
valores
descritivos
F
não executar
movimentos ágeis
[ Dor S
6
(vaca)
(
a mansidão
)
(docilidade) O
v
repouso, sossego
126
Como se pode depreender, tudo contribui para que a aquisição se efetive
plenamente. Não há a presença de oponente que obstrua o percurso nem de anti-
sujeito que deseje o mesmo objeto. Merece ser assinalado que o estado
disjuntivo, nesse contexto, não significa a ausência de relação afetiva entre mãe e
filho, traduz apenas uma situação na qual esse vínculo ainda não se fazia
presente. A diagramação seguinte consegue oferecer uma visão mais sistêmica
do percurso:
En = F [ S
7
(S
7
υ OV
1
)]
3
3
.
.
3
3
.
.
8
8
.
.
A
A
p
p
r
r
o
o
p
p
ó
ó
s
s
i
i
t
t
o
o
d
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s
s
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t
t
o
o
s
s
e
e
m
m
i
i
ó
ó
t
t
i
i
c
c
o
o
8
8
Os vaqueiros que tentam domar o Boi Espácio figurativizam o S
8
,
instaurando-se na narrativa pela modalidade do querer-fazer. A depender da
versão analisada, muda-se o número e caracterização dos desafortunados
tangedores. Em Va, três pretendem executar a façanha e são eles simples peões.
Na versão que traz o código Vd, aparecem vinte candidatos, vaqueiros de
PN de competência
aquisição valores modais
F
organização da
família
[
Dor
(
filho
)
S
7
(
mãe
)
(dever)
O
v
atender o filho
PN de performance
aquisição
valores
descritivos
F
participar da fala
do filho
[ Dor S
7
(a mãe)
(
o filho
)
(crer na fala do
filho)
O
v
cuidado para
com a família
127
renome, dispostos a enfrentar a “fera”. Famosos ou não, todos são destinados
pela glória que a dominação sobre o boi poderá lhes oferecer. Como esta se
encontra em poder do dono do animal, este assume o papel de anti-sujeito e a
probabilidade de fracasso, em oposição ao mérito desejado, configura o anti-
destinador.
Nessa árdua trajetória, o único elemento a auxiliá-los é a coragem que, no
entanto, mostra-se ineficiente, inútil diante da supremacia física e da bravura do
boi. Estas, aliás, são os seus grandes oponentes. À vista dessa desproporção de
forças, o boi, obviamente, é agraciado com a vitória e os infaustos vaqueiros
recebem a sanção da morte. O esquema abaixo sistematiza o percurso:
Dário Dor Dor
(glória) (o fracasso)
Adjuvante: a coragem OV
1
dominar o boi
S
8
S
8
Oponente: supremacia do boi
(dono) (vaqueiros)
OV
2
S
8
tangê-lo/encurralá-lo
Por estar modalmente em desvantagem em relação a seu oponente, o S
8
termina o percurso disjunto do objeto almejado. Sua performance, assentada no
querer-fazer, sucumbe à competência modal do poder-ser do Boi Espácio. Como
não cumpre o contrato narrativo, o S
8
é punido, negativamente, ou seja, perde a
vida.
128
En = F [ S
8
υ OV
1
(S
8
υ OV
1
)]
3
3
.
.
3
3
.
.
9
9
.
.
A
A
p
p
r
r
o
o
p
p
ó
ó
s
s
i
i
t
t
o
o
d
d
o
o
s
s
u
u
j
j
e
e
i
i
t
t
o
o
s
s
e
e
m
m
i
i
ó
ó
t
t
i
i
c
c
o
o
9
9
Destinado pelo status que lhe atribui autoridade e prestígio, o S
9
, na figura
do imperador, estabelece um percurso no qual se propõe a tirar proveito da
superioridade física e sobrenatural do boi – seu objeto de valor principal. Suas
ações, impelidas pela modalidade do querer, variam consoante a versão
examinada. Em Va, manda construir, com os chifres do vigoroso animal, uma
canoa para transportá-lo da Bahia até Lisboa, sendo, pois, o único beneficiário. Já
em Vd, com as mesmas partes do boi, dá ordem para edificar um açude e uma
igreja, bens que se prestam a uma coletividade, além de uma lancha e um vapor,
artefatos que, pela importância, pressupõem servir unicamente aos seus
propósitos.
Tem-se, dessa forma, um percurso que apresenta dois momentos. No
primeiro, assumindo, unicamente, o papel figurativo de rei, pretende deslocar-se
PN de competência privação valores modais
F
vencer o boi
[
Dor
(g
lória
)
S
8
(
va
q
ueiros
)
(querer-fazer)
υ O
v
domínio
sobre o boi
PN de performance
valores
descritivos
F
ter meios de
domar o boi
suplantada pela
competência do
intrépido animal
(força aquém
do oponente)
privação
[ o boi(S
8
υ OV
1
)(Anti-sujeito OV1)]
129
do Brasil para Lisboa, utilizando para tal um meio de navegação, advindo do
corpo do boi, que pode ser uma canoa, uma lancha ou vapor, a depender da
versão analisada. O dono constitui o seu adjuvante, uma vez que, por respeito,
entrega ao imperador a posse do vantajoso animal. Nada impede o S
9
nesse
percurso. Veja-se:
Dário Dor
(status)
Adjuvante: o dono OV
1
S
9
aproveitar-se do boi
(rei/imperdor)
OV
2
S
9
construir um transporte
OV
3
S
9
deslocar-se até Lisboa
A conjunção com o objeto de valor é efetivada mediante intervenção
realizada pelo próprio S
9
que passa, então, ao posto de sujeito operador. Em
outros termos, sendo o responsável direto por sua competência modal, adquire,
ele, condições necessárias para transformar seu estado disjunto e,
consequentemente, gozar de uma reparação recompensatória:
En = F [ S
9
(S
9
υ OV
1
)]
PN de competência
aquisição
valores
modais
F
Receber o animal e
prover-se dele
[
Dor
(
status
)
S
9
(
im
p
erador
)
(querer)
O
v
deslocar-se
até Lisboa
130
No segundo momento do percurso, o S
9
abarca não só o revestimento de
rei, como de qualquer sujeito astuto, aproveitador, enfim, político. A construção de
uma igreja e um açude revela uma estratégia manipulatória (tentação), com a qual
o S
9
objetiva convencer o povo de que é um bom monarca, um bom político. Ele
usa de métodos tentatórios ao oferecer valores importantes e desejáveis para o
manipulado: água, para o corpo, fé, para a alma. O animal que materializa esses
valores constitui o seu adjuvante e a ardileza, ou seja, o saber-enganar aparece
como o seu destinador. Inexiste, no universo em questão, a figura de um
oponente que intente prejudicar a realização do percurso. O esquema seguinte
oferece uma diagramação mais nítida do agir do S9:
Dário Dor
(ardileza)
Adjuvante: o boi OV
1
S
9
aproveitar-se do boi
(rei/imperdor)
OV
2
S
9
possuir o boi
OV
3
S
9
construir uma igreja
e um açude
OV
4
S
9
mostrar-se “benevolente”
PN de performance aquisição
valores
descritivos
F
construção do
transporte
[ Dor S
9
(imperador)
(
o im
p
erdor
)
(Usufruto do
animal
)
O
v
vínculo ente
Brasil e Portugal
131
Como os valores inscritos no ato manipulatório são almejados pelo sujeito-
manipulado, cumpre-se o contrato narrativo e o S
8
recebe como sanção a
conjunção com o objeto desejado. Cabe lembrar que, numa manipulação, os
actantes manipulador e manipulado assumem sempre a função de sujeito
julgador. É por julgar a competência do povo que o imperador acredita ser
possível persuadi-lo e, por outro lado, é julgando o agir do imperador, acreditando
nas suas propostas, que o povo deixa-se manipular.
En = F [(S
9
υ OV
1
) (S
9
υ OV
1
)]
PN de competência aquisição
valores
modais
F
prover-se do animal
[
Dor
(
astúcia
)
S
9
(
im
p
erador
)
(querer-fazer)
υ O
v
mostrar-se
como bom
monarca
PN de performance aquisição
valores
descritivos
F
manipular
o povo
[Dor (astúcia)S
9
(imperador)
(ludibriar o
povo)
O
v
prestígio perante
o povo
120
PERCURSO COMPLETO DO S
9
1º momento 2º momento
OV
2
OV
4
S
9
construir um S
9
aproveitar-se do boi
transporte
OV
3
OV
5
S
9
deslocar-se até S
9
possuir o boi
Lisboa
OV
6
S
9
construir uma igreja
e um açude
S
9
OV
7
mostrar-se benevolente
121
3
3
.
.
3
3
.
.
1
1
0
0
.
.
A
A
p
p
r
r
o
o
p
p
ó
ó
s
s
i
i
t
t
o
o
d
d
o
o
s
s
u
u
j
j
e
e
i
i
t
t
o
o
s
s
e
e
m
m
i
i
ó
ó
t
t
i
i
c
c
o
o
1
1
0
0
Na narrativa em questão, o S
10
, figurativizado pelo comprador que intenta
ter o Boi Espácio, inscreve-se como sujeito de um querer-fazer, sendo motivado
pelo desejo de reconhecimento, de prestígio que a posse do virtuoso animal – seu
objeto de valor principal – pode ocasionar. Nesse contexto, a riqueza surge como
seu adjuvante, uma vez que, agregando o boi um valor inestimável, apenas os
bem dotados monetariamente poderiam ser os agentes de ofertas tão tentadoras.
No entanto, o dono recusa a proposta, o que lhe confere o papel actancial de
oponente, ao obstruir a conquista, visto que o intrépido animal encontra-se em
seu poder.
Dário Dor
(prestígio)
Adjuvante: riqueza OV
1
S
10
comprar o boi
(a dama/a cometa) Oponente
OV
2
S
10
seduzir o dono
OV
3
S
10
ter dinheiro
A performance do S
10
apresenta-se como um fazer manipulatório de ordem
tentatória, visto que objetiva alterar a competência do manipulado, o dono,
instigando-o a dever-fazer-vender o boi. Como os sujeitos envolvidos não
compartilham dos mesmos valores, a persuasão não é bem sucedida e, como
122
conseqüência, o S
10
perde o valor cobiçado, permanecendo, portanto, em estado
disjuntivo.
Um fato que merece vir à tona diz respeito à variação figurativa do S
10
.
Enquanto em Va, a abordagem ao dono do misterioso animal é feita por uma
dama, em Vd, a tentação é realizada por uma cometa, espécie de caixeiro
viajante. Todavia, a noção de gênero permanece invariável: ambas são mulheres.
Os esquemas seguintes ordenam, visualmente, as reflexões acima esboçadas:
En = F [ S
10
υ OV
1
(S
10
υ OV
1
)]
3
3
.
.
3
3
.
.
1
1
1
1
.
.
A
A
p
p
r
r
o
o
p
p
ó
ó
s
s
i
i
t
t
o
o
d
d
o
o
s
s
u
u
j
j
e
e
i
i
t
t
o
o
s
s
e
e
m
m
i
i
ó
ó
t
t
i
i
c
c
o
o
1
1
1
1
O povo figurativiza o S
11
, cujo objeto de valor principal é admirar o Boi
Espácio. Impulsionado pelas insígnias do sobrenatural que envolvem o animal,
transformando-o num ser grandioso, o S
11
estabelece um percurso no qual se
instaura pela modalidade do querer. O sertão de Quixelô, enquanto lugar
PN de competência privação
valores
modais
F
riqueza
[Dor (prestígio) S
10
(
dama/cometa
)
(querer-fazer-
vender)
υ O
v
possuir o
ilustre animal
PN de performance
valores
descritivos
F
oferecer uma
elevada quantia
suplantada pela
com
p
etência do
(desprezo pelo
dinheiro)
privação
[ dono(S
10
υ OV1)(dono OV1)]
123
privilegiado pela existência do ilustre animal, apresenta-se como seu adjuvante.
Não há um oponente que se interponha entre o objeto desejado e o S
11
.
Dário Dor
(sobrenatural)
Adjuvante: Quixelô
OV
1
S
11
admirar o boi
(povo)
A passagem da disjunção à conjunção, nesse percurso, é desencadeada
pela operacionalização de um fazer transformador, promovido pela intervenção do
boi, que doa ao S
11
a competência necessária para que este obtenha os valores
pretendidos. É um percurso extremamente simples. Observe-se a diagramação
seguinte.
En = F [ Boi (S
11
υ OV
1
) (S
11
OV
1
)]
PN de competência
aquisição
valores
m
oda
i
s
F
habitar o mesmo
lugar do boi
[
Dor
(
sobrenatural
)
S
11
(p
ovo
)
(querer)
O
v
admiração
PN de performance
aquisição
valores
descritivos
F
poder admirar
o boi
[Dor (o boi) S
11
(povo)
(lugar propício ao
sobrenatural)
O
v
admiração,
surpresa,
espanto
124
3
3
.
.
3
3
.
.
1
1
2
2
.
.
Q
Q
u
u
a
a
l
l
i
i
f
f
i
i
c
c
a
a
ç
ç
ã
ã
o
o
d
d
o
o
s
s
v
v
a
a
l
l
o
o
r
r
e
e
s
s
Na concepção dos sujeitos
Na concepção da
sociedade
Objetos de
Valor
positivo
negativo neutro positivo
negativo
liberdade
S
1
, S
2
, S
3
,
S
4
, S
5
, S
6
,
S
7
, S
11
S
8
, S
9
, S
10
-
X
-
confronto
S
1
, S
2
, S
3
,
S
4
, S
5
, S
6
,
S
7
, S
10
, S
11
S
8
S
9
X
-
morte dos
tangedores
S
1
, S
2
, S
3
,
S
4
, S
5
, S
6
,
S
7
, S
10
, S
11
S
8
S
9
X
-
servir ao dono
S
1
, S
2
, S
3
,
S
4
, S
5
, S
6
,
S
7
, S
9
, S
11
S
8
, S
10
-
X
-
obedecer ao dono
S
1
, S
2
, S
3
,
S
4
, S
5
, S
6
,
S
7
, S
9
, S
11
S
8
, S
10
-
X
-
prestígio
S
1
, S
2
, S
3
,
S
4
, S
5
, S
6
,
S
7
, S
8
, S
9
,
S
10
, S
11
-
S
6
X
-
posse do boi
(dono)
S
1
, S
2
, S3,
S
4
, S
5
, S
7
,
S
9
, S
11
S
8
, S
10
S
6
X
-
auto-promover-se
S
1
, S
2
, S3,
S
4
, S
5
, S
8
,
S
9
, S
10
, S
11
-
S
6
, S
7
X
“manipular”
S
3
, S
4
, S
5
,
S
9
, S
10
, S
11
S
8
S
1
, S
2
, S
6
,
S
7
X
-
expor o animal
S
3
, S
4
, S
5
,
S
8
, S
9
, S
10
,
S
11
-
S
1
, S
2
, S
6
,
S
7
X
-
convencer o povo
S
3
, S
4
, S
5
,
S
8
, S
9
, S
10
-
S
1
, S
2
, S
6
,
S
7
, S
11
-
X
agradar o rei
S
5
, S
9
, S
11
S
3
, S
4
S
1
, S
2
, S
6
,
S
7
, S
8
, S
10
X
-
sobrepor-se ao
amor
S
5
, S
9
S
1
, S
2
, S3,
S
4
, S
6
, S
7
,
S
11
S
8
, S
10
-
X
125
Na concepção da sociedade
Na concepção da
sociedade
Objetos de
Valor
positivo
negativo
neutro
positivo negativo
dar o boi
S
5,
S
9
S
1
, S
2
, S
3
,
S
4
, S
6
, S
7
,
S
10
S
8
-
X
tranqüilidade
S
6
, S
7
, S
1
, S
2
, S
3
,
S
4
, S
5
, S
8
,
S
9
, S
10
, S
11
-
X
-
mansidão
S
6
, S
7
S
1
, S
2
, S
3
,
S
4
, S
5
, S
8
,
S
9
, S
10
, S
11
-
X
não alevantar
poeira
S
6
, S
7
S
1
, S
2
, S
3
,
S
4
, S
5
, S
8
,
S
9
, S
10
, S
11
-
X
ouvir o filho
S
3
, S
4
, S
5
,
S
7
-
S
1
, S
2
, S
6
,
S
8
, S
9
, S
10
,
S
11
X
-
atenção à história
S
3
, S
4
, S
5
,
S
7
-
S
1
, S
2
, S
6
,
S
8
, S
9
, S
10
,
S
11
X
-
acreditar na
história
S
3
, S
4
, S
5
,
S
7
-
S
1
, S
2
, S
6
,
S
8
, S
9
, S
10
,
S
11
X
-
dominar o boi
S
8
, S
9
, S
10
S
1
, S
2
, S
3
,
S
4
, S
5
, S
6
,
S
7
, S
8
, S
11
-
-
X
encurralá-lo
S
8
S
1
, S
2
, S
3
,
S
4
, S
5
, S
6
,
S
7
, S
11
S
9
, S
10
-
X
aproveitar-se do
boi
S
3
, S
4
, S
5
,
S
8
, S
9
, S
10
S
1
, S
2
S
6
, S
7
, S
11
-
X
construir
transportes
S
9
-
S
1
, S
2
, S
3
,
S
4
, S
5
, S
6
,
S
7
, S
8
, S
10
,
S
11
X
-
deslocar-se para
Lisboa
S
9
-
S
1
, S
2
, S
3
,
S
4
, S
5
, S
6
,
S
7
, S
8
, S
10
,
S
11
X
-
mostrar-se “bom”
S
9
S
1
, S
2
, S
3
,
S
4
, S
5
, S
6
,
S
7
, S
11
S
8
, S
10
X
-
126
Na concepção da sociedade Na concepção da
sociedade
Objetos de
Valor
positivo negativo neutro positivo negativo
igreja e açude
S
5
, S
9
-
S
1
, S
2
, S
3
,
S
4
, S
6
, S
7
,
S
8
, S
10
, S
11
-
X
comprar o boi
S
10
S
1
, S
2
, S
3
,
S
4
, S
5
, S
6
,
S
7
, S
9
, S
11
S
8
-
X
riqueza
S
9
, S
10
S
1
, S
2
, S
3
,
S
4
, S
5
, S
6
,
S
7
, S
8
, S
11
-
-
X
admirar o boi
S
1
, S
2
, S
3
,
S
4
, S
5
, S
6
,
S
7
, S
8
, S
9
,
S
10
, S
11
-
-
X
-
127
3
3
.
.
3
3
.
.
1
1
3
3
.
.
Q
Q
u
u
a
a
d
d
r
r
o
o
R
R
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e
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s
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s
s
N
N
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t
i
i
v
v
a
a
s
s
Junção
Sujeito
Semiótico
Objeto de
Valor
Principal
Conjunção
Disjunção
Destinador
Anti-
destinador
Anti-
sujeito
Adjuvante
Oponente
Modalizaçã:
instauração
do sujeito
S
1
Boi
Espácio
liberdade
X
-
desejo
opressão
-
forças
sobrenaturai
s
tangedore
s
querer-ser
livre
S
2
Boi
Espácio
obedecer
ao dono
X
-
fidelidade
traição
-
forças
sobrenaturai
s
rei/impera
dor
querer-ser
obediente
S
3
possuidor
do boi
o prestígio
X
-
desejo
indiferença
-
posse do
boi
descrença
querer-ser
S
4
possuidor
do boi
auto-
promover-
se
X
-
desejo
-
-
docilidade
do boi
livre-
arbítrio
fazer-saber-
crer
S
5
possuidor
do boi
agradar o
rei
X
-
respeito
-
-
imponência
do boi
o amor
crer
S
6
mãe do boi
Espácio)
tranqüilida
de
X
-
paz
guerra
suprema
cia do
filho
porte físico
débil
-
ser
128
Junção
Sujeito
Semiótico
Objeto
de Valor
Principa
l
Conjunção
Disjunção
Destinador
Anti-
destinador
Anti-
sujeito
Adjuvante
Oponente
Modalização:
instauração
do sujeito
S
7
mãe do dono
ouvir o
filho
X
-
filho
-
-
estrutura
familiar
-
dever-ouvir
S
8
vaqueiros
dominar
o boi
-
X
glória
fracasso
-
coragem
supremacia
do boi
querer-
dominar
S
9
imperador
usufruir
do boi
X
-
status
-
-
o dono
-
querer-
aproveitar-se
S
10
dama/cometa
comprar
o boi
-
X
reconhecimento
prestígio
-
-
riqueza
possuidor
do boi
querer-
comprar
S
11
povo
admirar
o boi
X
-
forças
sobrenaturais
-
-
Sertão de
Quixelô
-
querer-
admirar
129
3
3
.
.
4
4
.
.
E
E
s
s
t
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r
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t
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s
s
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i
v
v
a
a
s
s
3
3
.
.
4
4
.
.
1
1
.
.
D
D
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l
l
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g
g
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ç
ç
ã
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V
V
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z
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m
e
e
n
n
t
t
a
a
t
t
i
i
v
v
a
a
s
s
O processo de enunciação do romance O Boi Espácio, como de toda
narrativa oral que se (re)constrói pelas forças incoativas da memória e pelas
determinações ideológicas de seu produtor, efetiva-se sob a voz de um
enunciador coletivo o qual, dialogicamente, instaura um enunciatário de mesma
natureza. Essa consonância estabelece um texto em que a distância cio-
cultural e, sobretudo lingüística, entre enunciador e enunciatário tende a
desaparecer, atestando, nitidamente, os fundamentos de uma alteridade popular.
Imbuído de valores culturais socialmente filtrados, o enunciador, nessa
narrativa, apresenta um discurso fundamentado na tese de que, a supremacia
física do boi, aliada a sua extrema valentia, representa, simbolicamente, a
imponência e a intrepidez daquele que detém a sua posse, ou seja, o nordestino.
Para sustentar veridictoriamente tal proposição, esse enunciador delega a voz a
oito atores (interlocutores), que não são nomeados, mas revestidos de papéis
temáticos. Estes conferem à história um caráter atemporal, por não se prenderem
a seres específicos, podendo figurar aqueles que, durante a travessia temporal do
romance, desempenharam as mesmas funções e, talvez, os mesmos
comportamentos. São eles: o boi (a
1
), o seu dono (a
2
), a vaca mãe do boi (a
3
), a
mãe do proprietário (a
4
), os vaqueiros que procuram domar o boi (a
5
), a dama/a
cometa (a
6
) que pretende comprá-lo, o imperador (a
7
) e, em sentido geral, o povo
(a
8
).
130
A designação <Espácio>, atribuída ao ator boi, recai apenas sobre duas
versões, Va e Vb, nas quais, provavelmente, constitui o fator desencadeante da
compilação dos títulos que as introduzem: Romance do Boi Espácio e O Boi
Espácio, respectivamente. As demais, ao trazerem a denominação genérica de
boi, acentuam e, ao mesmo tempo, comprovam a variabilidade e difusão do
romance.
O boi é projetado na tessitura textual por meio de uma debreagem
enunciativa, caracterizada, formalmente, pelo fazer-contar, ou seja, ele se
instaura, em todas as versões, como fruto de uma memória que é recuperada a
partir da elocução direta do próprio enunciador (Vd) ou, em segunda instância,
pela voz de seu proprietário (Va), do qual é sempre enunciatário:
Eu vou lhe contar um caso mamãe, que o povo se admirou
De um bezerro que nasceu, mamãe, no sertão de Quixelô” (BE1)
Um caso que assucedeu no sertão do Quixelô
Um bezerro que nasceu o povo se admirou” (BE4)
A ausência de voz que atinge o vigoroso animal é uma das estratégicas
usadas pelo enunciador para conferir maior veracidade ao discurso que enuncia.
Colocar um animal falante, por mais místico que seja, pode ressoar como um
acontecimento falso, enganoso. Além do mais, sem poder de fala, a construção
do boi, enquanto simbologia do fazer e do ser nordestino, ganha maior ênfase,
visto que o animal ganha feições realísticas.
O mistério e o encantamento que envolvem a figura do boi não
comprometem sua apreensão enquanto ser real, antes a reforça, uma vez que
superstições e episódios sobrenaturais, embora tidos pela ciência como ficcionais,
131
fazem parte do imaginário fantástico de um povo, de uma sociedade que os
concebe, por sua vez, como verdades irrefutáveis, espalhando-se com a dinâmica
das gerações e fixando-se nas várias memórias por meio da admiração ou do
temor que encerram. É muito comum, o sertanejo, de natureza mais interiorana,
atribuir, muitas vezes, uma alma aos animais, sentindo dificuldade em definir a
fronteira entre o mundo animal e o humano, entre o natural e o sobrenatural. Daí
a antropomorfização do boi, que passa, hiperbolicamente, a expressar os valores
de uma coletividade: a nordestina.
Ao ser descrito através de sua força e tamanho incomuns, incrível rapidez,
nascimento, criação, ações e o próprio destino impulsionados por forças
sobrenaturais, o boi recebe uma caracterização culturalmente positiva. Ele
consegue abarcar todas as virtudes apreciáveis e desejáveis para a gente e o
contexto que representa. Mesmo quando suas peripécias convergem para a
morte dos vaqueiros, há uma tentativa, explícita, do enunciador, de eximi-lo da
responsabilidade, negativa, do ato:
Às quatro horas da tarde, mamãe, abateu três tangedor” (BE1)
Às quatro hora da tarde, Tangeram pra o bebedor
Vinte vaqueiro de fama Não deu pra rudeador” (BE4)
Nos fragmentos acima, percebe-se que o bondoso animal é levado a matar
os tangedores, visto que são estes que tentam encurralá-lo, no intuito de, assim,
conseguirem subjugá-lo. É obvio que o enunciatário espera que o boi, na figura do
grande herói, lute contra tais opressores e, se os mata é unicamente para
defender-se. Isso ocorre, constantemente, em filmes e novelas, onde o extermínio
do vilão é aguardado, ansiosamente, por todos.
132
A respeito do dono do boi, pode-se dizer que há uma identificação entre ele
e o enunciador, a qual se encontra alicerçada em alguns argumentos. O primeiro
reside em sua projeção no enunciado que, apesar de processar-se de maneiras
distintas, consoante a versão que o comporta, garante-lhe o papel constante e
exclusivo de ator-enunciador. Em Va, ao inscrever-se através de uma embreagem
enunciva, assume aparentemente a responsabilidade pela enunciação,
estabelecendo, inclusive, uma situação dialógica na qual recupera uma outra
enunciação da qual provém a progressão do romance. É a partir da segunda
enunciação que os demais atores são projetados. Observe-se o esquema:
De acordo com a diagramação acima, constata-se que o filho (dono do boi)
dirige-se à mãe, sua enunciatária, para contar-lhe os feitos extraordinários do Boi
Espácio. Ao iniciar a narração, ele passa a figurar como “enunciador” visto que
introduz uma outra enunciação no interior daquela em que já está inscrito. Os
efeitos de sentido obtidos por meio deste mecanismo consubstanciam-se nos
valores culturais do contar histórias. Em diversas comunidades, especialmente as
populares, a atividade de narrar causos, lendas, contos consiste numa verdadeira
Eor Eário
filho mãe
filho mãe
Boi Espácio
vaca
vaqueiros
dama/cometa
povo
Eor
Eário
a
2
(filho)
133
arte de ensinar. Os pais contavam e ainda contam histórias para seus filhos a fim
que eles assimilem as lições veiculadas por elas. Muitas, apesar de fabulosas,
são tomadas por seus ouvintes como reais.
No romance em questão, é o filho o agente do contar e, nessa posição,
suas palavras não carregam a confiabilidade necessária. Por isso recorre à figura
materna, símbolo do conhecimento familiar, com o propósito de oferecer
credibilidade a seu dizer. O próprio lexema <e>, reiterado ao logo de toda a
narrativa, sobretudo em função vocativa, comprova a busca do filho pela
aceitação e aquiescência de seu discurso.
Eu vou lhe contar um caso mamãe, que o povo se admirou
De um bezerro que nasceu, mamãe, no sertão de Quixelô
Eu chamava ele vinha, mamãe, eiá, meu boi eiô” (BE1)
Na versão BE4, a enunciação se projeta em terceira pessoa, ou seja,
opera-se por meio de uma debreagem enunciativa. O discurso se efetiva
mediante uma voz que não diz “eu”, mas que congrega os valores de um “nós”,
reverberando, nitidamente, o sincretismo dialógico/dialético entre sujeito e
sociedade. Cabe ao enunciador a incumbência de instalar no enunciado os atores
que, nessa esfera, não têm autonomia ilocucionária. A exceção incide sobre o
possuidor do boi que, apesar de inicialmente projetado como um ator distante da
enunciação, ocupa, em seguida, o cargo de enunciador ator:
Um caso que assucedeu No sertão de Quixelô
Um bezerro que nasceu O povo se admirou” (BE4)
134
O dono que vinha atrás palavra não lhe tomou
Que um conto e setecentos Por ele já se enjeitou
E este boi vai de mimo Pra o doutor imperador” (BE4)
Inconscientemente ou não, o enunciador, cúmplice enunciativo do dono,
rompe com o foco narrativo em terceira pessoa quando projeta a fala do dono do
animal de forma subjetiva, ou seja, fincando estruturas lingüísticas que remetem à
instância de enunciação. Ao relatar que o boi será dado ao imperador, enuncia-se
a estrutura “E este boi vai de mimo Pra o doutor imperador” na qual figura o
lexema <este>, de valor dêitico, que situa o fato em relação ao seu enunciador,
isto é, remete a uma voz que se coloca enquanto “eu”. O gráfico seguinte
apresenta, mais claramente, o fenômeno:
Outro argumento que reforça a fusão entre o enunciador e o dono reside
no fato de que ambos perseguem um objetivo comum. Não é ao acaso que o
proprietário do boi goza de plenas prerrogativas. Ele é o possuidor legítimo do
Eor
Enunciação
Eário
a
2
a
3
a
4
a
2
a
5
a
6
a
7
a
8
...
135
temeroso animal e o único a quem o boi reserva obediência. Ademais, as
façanhas inacreditáveis, sobrenaturais que acentuam a superioridade bestial do
Boi Espácio condicionam também a supremacia de seu dono. Isto é, sendo o boi
indomável, de força brutal, aquele que detém a sua posse, por extensão, passa a
ser, também grandioso, altivo, imponente. É, então, através da caracterização e
comportamentos do dono
que o enunciador solidifica a sua tese.
Eu chamava ele vinha, mae, eiá, meu boi, eió” (BE1)
Na citação acima, recupera-se uma estrutura lingüística, tipicamente
nordestina, que evidencia, explicitamente, o núcleo ideológico em torno do qual o
discurso se desenvolve: eiá, meu boi, eiô. Essa expressão pertence
culturalmente ao universo discursivo dos vaqueiros (peões) que fazem uso dela
em situações de contato com o gado. Depreende-se, pois, que o travestimento de
vaqueiro alia-se, harmoniosamente, à condição de filho, atribuindo ao dono do
animal um engrandecimento ao mesmo tempo moral e físico.
Reconhecidamente, o vaqueiro, no imaginário popular, reveste-se de
semas positivos que o caracterizam como bravo, forte, destemido, mas também
recebe atribuições negativas que o configuram como rude, impolido, de natureza
bruta. Estas últimas, no romance, são neutralizadas pela relação que se
estabelece entre o filho e a mãe, uma vez que o enunciatário concebe como
sendo benévolo, cortês o filho que conta histórias à mãe. Dessa forma, há um
vínculo dialógico que ultrapassa os limites do enunciado e se estende até a
instância social.
A simbologia do boi, enquanto expressão cultural de um povo, torna-se
mais evidente quando se projeta no romance a recusa, por parte do dono, em
136
vender o valioso animal. Embora as propostas sejam tentadoras, o possuidor do
animal não deixa transparecer nenhum sinal de interesse e as rejeita
imediatamente. Com isso, ele opta por seus valores de bravura, intrepidez,
supremacia. Cabe ressaltar, que são elementos sócio-culturalmente atribuídos ao
homem, o que, certamente, converge para explicar a posse do animal, visto que
se encontra em mãos genuinamente masculinas. Ainda é bastante comum, entre
determinadas comunidades sertanejas, o homem, principalmente, valorizar sua
honra, força, valentia em detrimento do dinheiro, do poder monetário.
Os atores femininos que permeiam, debreativamente, o romance não
usufruem de privilégios, são inteligentemente colocados para reforçar a
supremacia masculina. A mãe do dono é uma enunciatária a quem não se atribui,
em nenhum momento, o poder de voz, embora ela desempenhe um papel
culturalmente superior. Essa ausência de voz constitui, indubitavelmente, uma
estratégia argumentativa, uma vez que seu silêncio ressoa socialmente como
uma aprovação à enunciação do filho.
A vaca, genitora do boi descomunal, não possui as virtudes do filho. Pelo
contrário, ela conserva um porte débil, não atinge uma velocidade espantosa,
sendo extremamente vagarosa e, o mais importante, apresenta-se dócil. É uma
caracterização que faz emanar preceitos axiológicos que estabelecem uma
oposição entre masculinidade e feminilidade. Dentro do universo semiótico em
questão, ao homem são dadas as atribuições relacionadas com a força, a
bravura, a supremacia, o poder e à mulher, conotações que remetem à
fragilidade, à docilidade, à ausência de poder.
A vaca mãe do Boi Espácio era uma vaca maneira
Corria num baixio de terra não alevantava poeira” (BE2)
137
Em Va, aquele que propõe ao dono à compra do Boi Espácio é,
figurativamente, uma mulher, para usar a designação que consta na narrativa,
uma dama. Essa denominação denota já uma incapacidade para as transações
comerciais, visto que confere a ela as qualificações apenas de educada, fina,
nobre, polida, ou seja, sem poder de persuasão. Sendo, assim, um homem sagaz
não pode ser “convencido” por uma mulher delicada:
Fui passear na cidade, mamãe, uma dama me chamou
Quer vender o surubim, mamãe três contos de réis eu dou,
Três contos e oitocentos, mamãe, por ela já se enjeitou” (BE1)
O mesmo episódio, em Vd, concentra uma apreciação histórica. A mulher
permanece como o sujeito realizador da proposta, no entanto, não carrega mais
as qualificações próprias de uma dama. É caracterizada como uma cometa, ou
seja, desempenha a função de caixeiro viajante, atividade muito presente no
Brasil na época Imperial. Era uma ocupação legitimamente masculina. As
mulheres que enveredavam por este caminho não conseguiam obter a
credibilidade que só ao homem era oferecida. Dessa forma, ainda que possua
competência para o oficio, ela se mostra inadequada, socialmente, para ter em
seu poder o boi majestoso. A indiferença do dono em relação à sua investida
comprova o fato:
Dentro de Pedra e fogo Uma cometa estralou
–Se este boi for para vender Um conto por ele eu dou,
O dono que vinha atrás Palavra não lhe tomou
Que um conto e setecento Por ele já se injeitou” (BE4)
138
No fragmento acima, constata-se que o enunciador, ardilosamente, “dá” a
palavra ao comprador através do discurso direto, que se efetiva logo após o verbo
discendi <estralou>, o que poderia sugerir aos que se detém, unicamente, na
tessitura do texto, a existência de outro ator-enunciador. No entanto, não é a
cometa que fala diretamente no enunciado. É simplesmente uma “repetição”, uma
reprodução de um dito que o enunciador, conscientemente ou não, projeta para
criar a impressão de que o fato se processa no momento em que está sendo
enunciado. Tal recurso, utilizado, especificamente nesse segmento, revela a
necessidade de referencilizar, de criar o efeito de realidade, de desvelar,
enfaticamente, o apego aos princípios culturais e a conseqüente apatia aos bens
materiais.
A valorização masculina do dono é tão marcada e evidente que os outros
atores que trazem o signo da masculinidade não se equiparam a ele. Tem-se,
assim, os vaqueiros que, apesar de renomados, sucumbem à imponência física e
sobrenatural do Boi Espácio. Debreados enunciativamente, os vaqueiros, como
os demais atores, condensam apenas poder de audição, servindo, pois, aos
propósitos discursivos do enunciador e, consequentemente, do possuidor do
animal.
As quatro horas da tarde Tangeram pra o bebedor
Vinte vaqueiro de fama Não deu pra rudeador” (BE4)
A reconhecida habilidade dos vaqueiros, traduzida na expressão “Vinte
vaqueiro de fama”, apresenta-se como um argumento contrário ao próprio fazer
dos desditosos peões. O vergonhoso fracasso, proveniente da tentativa frustrada
de subjugar o Boi Espácio, vai de encontro à informação pressuposta de que já
139
haviam domado outros bois. Dessa forma, a reputação que trazem é
incisivamente destruída, fazendo-os perder as virtuosas atribuições masculinas.
Por outro lado, a ruína daqueles dá relevo a supremacia do boi valente visto que
este alcança, imponentemente, a vitória mesmo estando em desvantagem, o que
justifica sua ação violenta. Em Va, o confronto é mais cruel, culminando na morte
de três tangedores:
As quatro horas da tarde, mamãe, abateu três tangedor” (BE)
Da inclusão do imperador/rei, outro representante da ordem masculina,
emana propósitos diversos. Primeiro, agregando os semas da autoridade, da
nobreza, da austeridade, o rei assume um revestimento masculino que não
corresponde à concepção de homem viril, forte, vigoroso construída pelo
imaginário popular. Ele traz as insígnias da ostentação, da autoridade, da
ociosidade. No entanto, esses atributos o fazem merecedor de estima e respeito.
É para ele que o dono entrega, como mimo, o suntuoso animal. Fazendo isso, o
dono nega a proeminência física do monarca que se mostra incapaz de submeter
ao seu poder o indômito animal. Tal fato parece convergir para responsabilidade
pela morte do boi, que, em duas versões, tem o rei, pressupostamente, como
mandante.
E este boi vai de mimo Pra o doutor imperiador
Das pontas deste boi Quatro obras se formou
Um ude e uma igreja Uma lancha e um vapor” (BE4)
Das pontas do boi espácio, mamãe, fizeram uma canoa
Pra transportar o rei, mamãe, da Bahia pra Lisboa” (BE1)
140
O lexema <mimo> remete, potencialmente, ao ócio que recai sobre muitos
nobres, uma vez que, gozando de luxo e poder, não se dignam a trabalhar,
sobrevivem da exploração dos mais fracos. Além disso, o termo mimo parece não
ser adequado às características bestiais do boi, constituindo uma forte ironia
contra a realeza, que se mostra, por assim dizer, delicada, “primorosa”. Tem-se,
mais uma vez, um apagamento, uma neutralização dos atributos masculinos de
um ator, intensificando a proposição de que somente o dono do animal representa
os valores sertanejos.
Seguindo o encadeamento lógico das narrativas BE1 e BE4, percebe-se
que as transformações que as “partes” do boi sofrem, ocorrem posteriormente à
entrega deste ao imperador, o que alicerça a pressuposição de que provém do rei
a ordem para matar o animal. Corroborando o fato, em BE4, surge o imperador
como único sujeito a ser beneficiado com as obras advindas dos chifres do boi:
uma canoa que o transporta da Bahia para Lisboa.
Agrupando todas as obras e objetos originados das entranhas do
misterioso animal de acordo com os traços semânticos que os aproximam e os
distanciam, consideram-se dois campos: um, que abarca os elementos próprios
do povo, outro, que comporta objetos que servem à nobreza.
“Povo”
açude
igreja
atabaque
surrão
“nobreza/elite"
canoa
vapor
lancha
141
Os lexemas do campo semântico “elite” unem-se numa relação hiponímica
que remete ao hiperônimo <transportes marítimos>. Essa constatação parece
convergir para a indolência que, inevitavelmente, acomete os nobres. Sem vigor,
eles necessitam de meios para se locomoverem. A variedade deve-se,
certamente, à confluência social e temporal que permite ao romance adaptar-se
ao contexto que lhe dá suporte. Canoa, vapor e lancha são instrumentos que se
situam em grupos sociais distintos e pertencem a tempos também distintos. A
discordância mais evidente acontece entre o vapor, utilizado por pessoas de
posse, cujo auge se dá no século XIX e a lancha, invenção do século XX, que
agrega um grande valor monetário. A utilização de uma <canoa>, apesar de não
adequar-se à condição ilustre de monarca, pode estar relacionada com o fato de
que, no universo sócio-cultural do enunciador, talvez seja este o meio de
transporte usado por pessoas nobres, ou provavelmente, que seja a canoa o
único meio disponível para grandes locomoções.
A própria figura do rei, nas versões em que aparece, recebe conotações
conceptuais também diversas. Em Va, remete diretamente à autoridade real,
recuperando, através da referência a Lisboa, a época imperial brasileira. Aliado a
isso, a provável gênese do romance, coincidindo com tal período, autoriza dizer
que se trata de uma alusão ao ilustre imperador D Pedro II, o qual, devido à
posição que detinha, mantinha relações diretas com Portugal. Isto explica, dessa
forma, o porquê dos meios de transportes serem todos concernentes à
navegação: era a única forma de realizar o trajeto entre a metrópole e a colônia.
Já em Vd, a referência à realeza se materializa através da lexia <doutor
imperiador> que expulsa a narrativa para um outro tempo que não é o do
império. Nesse momento histórico, não era costume denominar um sujeito que
142
detinha um título aristocrático, nobre de doutor. Rei, conde, barão, duque eram
designações honoríficas que sobrepujavam o próprio nome e a qualificação de
doutor era utilizada, unicamente, para nomear os profissionais ligados à medicina
ou à advocacia. Tem-se, assim,uma interferência contextual explícita, visto que a
expressão doutor imperiador pode remeter a qualquer sujeito que, no universo
sócio-cultural do enunciador, apresenta os atributos concernentes à autoridade,
ao prestígio, a um estado social elevado. No Brasil, principalmente entre os de
menor condição econômica, é comum o uso do termo <doutor> como referência a
um indivíduo que, na visão do outro, detém certa superioridade. É assim que
políticos, fazendeiros, empresários, homens de “bens” são chamados doutor, sem
que, necessariamente, tenham uma formação acadêmica que lhes garanta o
título.
Retornando ao campo semântico constituído pelas construções advindas
do boi, que se circunscrevem na esfera popular, pode-se dizer que cada elemento
corresponde a uma necessidade do povo sertanejo. Observe-se:
“Povo”
açude
igreja
atabaque
surrão
SECA água
RELIGIÃO
EXPRESSÃO alegria
COLHEITA agricultura
143
Água e fé são para o sertanejo bens preciosos que estão relacionados com
sua própria sobrevivência física e espiritual. Em meio ao clima árido, seco, que
maltrata animais, plantações e, sobretudo, o ser humano, os açudes são vistos
como oásis que, ao saciarem a sede, transformam-se em esperanças de sobrevir
ao hoje e de resistir ao provável amanhã. É por serem profundamente castigadas
pela carência desse líquido vivificador, que a religião se mostra tão presente e
fecunda no cotidiano de muitas comunidades interioranas. Recorrem à religião
como forma de amenizar as angústias, de alimentar as esperanças, de se
sentirem providas por um ente em que acreditam, veementemente, que irá
atendê-las. No Sertão, evidentemente, o apego acentuado à religião não é fruto
unicamente desse fenômeno sofrível que é a seca. A crença irrestrita em
milagres, promessas, oferendas, simpatias, que solidifica uma religiosidade
própria, presentifica-se em grande parte das atividades que o sertanejo realiza
(comuns e cerimoniosas) e em muitos dos comportamentos que expressa,
constituindo, na verdade, expressões de uma identidade cultural.
Dessa forma, a construção de uma igreja e um açude por parte de um
“doutor” imperador revela propósitos que provocam uma ruptura radical no tempo,
projetando a narrativa para atualidade. O fato constrói simbolicamente o
estratagema utilizado por muitos políticos brasileiros. O dono, ao se privar de um
animal grandioso, sobrepujando seus afetos para satisfazer o doutor (que não é
mais o rei ocioso) representa, explicitamente, a manobra política de “fazer
campanha”, usando, para tal, os bens retirados do próprio povo. É usufruindo
desse produto que o representante dos pobres, ardilosamente, tenta calar as
vozes contrárias e desviar as atenções, oferecendo para a “massa” bens
desejáveis e essenciais, que vão de um simples pão a um saco de cimento. No
144
romance, o hábil imperiador, buscando o prestígio, doa ao povo uma igreja e um
açude. Dadas as características de seu “eleitorado”, não poderiam ter sido
oferecidos benefícios mais adequados.
A entrega do poderoso animal para o astuto doutor não prejudica o
revestimento simbólico, de expressão de uma cultura, que incide sobre o dono.
Ele é de uma benevolência ímpar ao se desfazer de um animal valioso, o qual
ama e admira, para dá-lo a uma autoridade, a quem reserva apreço, respeito e,
pressupostamente, a quem deve favores. É um valor medieval ainda muito latente
entre os de origem simples e interiorana.
Na Idade Média, marcada essencialmente pelo feudalismo, as relações de
proteção e confiança, entre os mais pobres, eram estabelecidas por meio dos
laços de servidão. Os trabalhadores rurais em geral passavam à condição de
servos de seus senhores, de quem recebiam segurança paga com produtos
agrícolas e/ou com o trabalho nas terras que pertenciam diretamente ao senhor.
Mesmo sendo intensamente explorados, tais trabalhadores viam no senhor feudal
um homem bondoso que os acolheu e que, por isso, merecia e devia ser
venerado. Era um favor que só se pagava pela obediência.
Entre os nobres, a servidão ganha contornos sutis, recebendo a
denominação de laços de suserania e vassalagem. Um nobre cavalheiro, por
exemplo, ao receber do rei uma propriedade, tornava-se imediatamente vassalo
do soberano, o que era formalizado numa cerimônia de juramento. Cabia ao
vassalo severas obrigações e fidelidade hereditária. Caso não cumprisse o
acordo, perdia todos os benefícios.
Dessa forma, a igreja e o açude surgem como favores ao povo e como tais
pressupõem uma sólida lealdade. Por isso, o dono, apesar de querer a vida do
145
animal, de estimá-lo, entrega-o ao doutor imperiador. Em nenhum momento, o
dono caminha pela esfera da maldade e da indiferença. Ele suplanta o próprio
amor em favor de um sentimento mais nobre: a fidelidade.
A criação do atabaque e do surrão está relacionada com o próprio agir do
dono, materializado na versão BE2, que responde pela morte do animal. Há um
vínculo direto entre esses objetos e a parte do animal que os origina: o atabaque,
instrumento de operacionalização manual, advém das unhas do boi e o surrão,
tipo de saco usado na colheita, é fabricado a partir do couro do animal.
A projeção do atabaque revela uma outra face da literatura oral, aquela que
mostra o sincretismo de etnias amalgamadas por uma mesma cultura: a popular.
Usado nas danças e cerimônias (religiosas e profanas) afro-brasileiras, o tambor
de repercussão direta, como também é conhecido o atabaque, imprime ao
romance valores da cultura negra. Estes, devido ao processo de miscigenação,
passam a pertencer a todos os brasileiros, embora estejam em maior
efervescência entre os mais simples.
A simbologia do instrumento vincula-se à musicalidade e à dança que, por
sua vez, remetem à alegria. Esta, conforme a narrativa, é doada, através do
atabaque, ao povo de carioque. Mais uma vez, o dono do boi se desvela um
generoso sujeito, que procura, constantemente, ajudar o outro.
Das unhas do Boi Espácio mandei fazer corrimboque
Para dar um atabaque ao povo do carioque” (BE2)
O surrão traz à tona um aspecto cultural importante do povo sertanejo que
colhe os frutos do seu trabalho, nos rados, por meios de sacos que, colocados
sobre os ombros, permitem acumular uma quantidade razoável de milho, feijão,
146
algodão, etc., propiciando uma locomoção mais fácil entre as plantações. Assim,
no romance, o dono (porta-voz do enunciador), ao mandar construir um surrão e
entregá-lo à gente do Bastião para que se faça a embarcação do milho, procura
enfatizar dois valores em ebulição na esfera nordestina: a força e a solidariedade.
Do couro do Boi Espácio mandei fazer um surrão
Para embarcar os milho da gente do Bastião” (BE2)
Muitas famílias retiram todo o seu sustento daquilo que plantam nos
roçados. Trabalham intensamente sem se curvarem ao calor massacrante do sol,
nem a agressividade das chuvas. A atividade de arar a terra manualmente por
meio de uma enxada, de semear e de colher são executadas por crianças,
mulheres e homens. Não há divisão genérica, nem etária das atividades. Todos
lutam, unidos, pela provisão do lar. E, na época de colheita, é comum a ajuda
mútua entre estes que se vêem unidos pelo intenso esforço que fazem para
sobreviver. É também nesse sentido que o sertanejo recebe a conotação de forte,
bravo e, sobretudo, solidário.
A materialização do ator povo complementa o simulacro sócio-cultural que
se ergue no romance. Através dele, o enunciador apresenta, sob um ponto de
vista essencialmente eufórico, o universo sobrenatural que permeia e constrói o
imaginário popular. Ao admirar o misterioso animal, o povo de Quixelô manifesta,
claramente, a sua apreciação positiva sobre o misticismo que envolve o boi. É
uma concepção de mundo, um fazer e um ser que situam um povo numa dada
sociedade, identificando-o e, ao mesmo tempo, distinguindo-o de outros, que
podem até compartilhar os valores, mas certamente, darão a estes princípios
outras feições:
Eu vou lhe contar um caso mamãe, que o povo se admirou
De um bezerro que nasceu, mamãe, no sertão de Quixelô” (BE1)
147
Um caso que assucedeu No sertão de Quixelô
Um bezerro que nasceu O povo se admirou” (BE4)
As forças sobrenaturais caminham junto às camadas populares desde a
Antiguidade. Tornaram-se mais lidas e mais fantásticas na Idade Média quando
o maniqueísmo cristão passou a influenciá-las diretamente. Os eventos naturais,
biológicos, econômicos foram obrigados a ocupar dois pólos: o do bem e o do
mal. O “desconhecido” que infringisse os dogmas católicos era destinado ao
diabo, representação da malevolência e os preceitos que convergiam para a
igreja, apesar de muitas vezes não serem verdadeiros, obtinham o estatuto do
correto, do irrepreensível, estando, pois, interligados a Deus, sinônimo de
bondade e justiça.
Na narrativa, o envolvimento do boi com o desconhecido confere-lhe um
poder surpreendente que o torna capaz, dentre outras coisas, de abalar,
sismicamente, a terra. Tal faculdade o impulsiona rumo à esfera da religiosidade,
fazendo emanar do povo a crença no fim do mundo. É sabido que, no imaginário
coletivo das classes populares, reside a convicção de que o apocalipse se
processará de forma violenta, com terremotos, meteoros, enchentes, em suma,
com a natureza se voltando contra próprio homem.
Este boi deu um urro Que a terra paralisou
O povo dali disseram, O mundo se acabou
Dentro de pedra e fogo Uma cometa estralou” (BE4)
O estremecer da terra, provocado pelo urro do vigoroso boi, acarreta
desmoronamento de pedras e surgimento de fogo, sinais que reforçam a
148
concepção de fim do mundo. Nesse contexto, o boi aparece, portanto, como um
mensageiro de uma divindade, um ser que, ao mostrar-se supremo, obscuro,
enigmático sinaliza a existência de uma força mística, sobrenatural que recai
sobre o animal, mas principalmente sobre ‘sertão de Quixelô’, espaço no qual
habita.
3
3
.
.
4
4
.
.
2
2
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T
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e
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o
o
No romance O Boi Espácio, o sistema temporal bifurca-se em tempo
lingüístico, que remete à instância enunciativa, situando o enunciador em relação
aos acontecimentos e o tempo crônico, que organiza a enunciação a partir de
marcos referenciais logicamente instalados no enunciado.
Em todas as versões, o enunciador encontra-se distante do tempo da
enunciação. Os fatos que compõem o enunciado são projetados,
predominantemente, nos pretéritos perfeito e imperfeito do indicativo. A única
exceção ocorre na versão BE1 onde aparece uma única locução verbal <vou
contar> que encerra, semanticamente, noção de futuro. Anterioridade e
posteridade sinalizam, então, a debreagem temporal que caracteriza o romance.
O afastamento do enunciador assenta-se num momento de referência
passado, inscrito no enunciado, que passa a ordenar a progressão do romance
<um caso que assucedeu> e <um caso...que o povo se admirou>. Este marco
temporal faz surgir três instâncias enunciativas ao mesmo tempo autônomas e
interdependentes.
149
A primeira instância corresponde ao momento mnemônico da história do
Boi Espácio, ocupando, por conseguinte, um imaginário passado. O enunciador,
ao recuperar esse caso, constrói uma outra enunciação na qual se coloca,
logicamente, no tempo presente. Em seguida, a história do boi é expulsa para
uma outra esfera onde passa a ser projetada no passado. O tempo do
enunciador, cumpre salientar, é sempre o presente e a partir dele é que se
ordenam os outros tempos. Só há passado e futuro porque existe, obviamente,
um hoje. Este hoje, enquanto foco enunciativo, jamais poderá ser efetivamente
recuperado pois contrariaria o conceito de enunciação como instância
lingüisticamente pressuposta.
Essa cadeia enunciativa traz um propósito bastante claro. Através dela o
enunciador se exime da responsabilidade pelo dito, transferindo-a para o povo de
Quixelô que, admirados com o misticismo do boi, dissemina a história. Cria-se a
impressão de que as façanhas do indômito animal realmente aconteceram visto
que provêm de um povo, de um lugar e não de um único ser: o enunciador.
A identificação entre o dono do boi e o enunciador acarreta também efeitos
de sentido relacionados com o tempo. Em BE1, por assumir a função de ator-
enunciador, o dono projeta diretamente na narrativa uma estrutura de valor
temporal futuro <vou contar> que exprime uma modalidade factual, ou seja, a
veracidade do conteúdo enunciado não pode ser determinada no momento da
História do
boi
“passado”
Enunciador
presente
História do
boi
“passado”
150
enunciação. Explica-se, sintaticamente, o constante apelo do filho para que a mãe
o escute. A reiteração vocativa do vocábulo <mãe> traz o respaldo que o discurso
do dono reclama. Observe-se:
Eu vou lhe contar um caso mamãe, que o povo se admirou
...
Eu chamava ele vinha, mamãe, eiá, meu boi eiô
...
Eu chamava ele vinha, mamãe, eiá, meu boi eiô
Três contos e oitocentos, mamãe, por ela se enjeitou
...
Eu chamava ele vinha, mamãe, eiá, meu boi eiô” (BE4)
Ademais, em grande parte das línguas neolatinas, a expressão formada
pelo verbo ir mais o infinitivo de outro verbo, carrega a noção de uma posteridade
mais próxima do falante. É o que ocorre no francês, no espanhol, no português
etc.
Em língua portuguesa, tal processo concentra uma particularidade. O
futuro do presente, composto por um único vocábulo (cantarei, por exemplo),
passou a pertencer à modalidade culta da língua. No falar cotidiano,
precipuamente no falar popular, prefere-se o uso do futuro perifrástico. Assim, no
romance, a utilização da estrutura <vou contar>, além de mostrar-se coerente
com o nível de linguagem do produtor, tem a finalidade de criar a ilusão de uma
proximidade maior entre o ator-enunciador o os fatos que pretende enunciar.
Na versão BE4, caracterizada pelo foco em terceira pessoa, usa-se uma
estratégia com fins opostos. O enunciador inicia a elocução do romance por meio
de uma indeterminação do lexema caso <Um caso...>, fazendo emergir uma
151
pressuposição existencial, segundo a qual, o caso do Boi Espácio figura como o
único e o mais importante de Quixelô. Este, então, passa a estar totalmente
comprometido com o conteúdo veridictório da história.
O pretérito imperfeito aparece argumentativamente construído nas versões
BE1 e BE2. Nesta, ordena o episódio que relata a fraqueza e docilidade da vaca.
Naquela, sistematiza o enunciado no qual está presente a obediência do boi para
com o dono. As qualificações não valorativas da vaca, referencializadas pelo
imperfeito, enfatizam o seu estado contínuo de fragilidade e mansidão. Não são
atributos momentâneos, mas que se agregam estaticamente a ela. Dessa forma,
o misticismo do boi é fortemente acentuado visto que o animal é gerado por um
ser que foi e continua sendo frágil.
A vaca mãe do Boi Espácio era uma vaca maneira
Corria num baixio de terra não alevantava poeira” (BE2)
O caráter durativo que recai sobre a submissão do animal revela-se mais
complexo. Primeiramente, o imperfeito marcando, excepcionalmente, este fato
provoca uma ruptura radical com o pretérito perfeito que predomina no romance.
Considerando a enunciação como algo acabado, o pretérito perfeito oferece uma
dinamicidade em relação ao marco temporal presente do enunciador, enfatizando
o aspecto de realidade do romance visto que os fatos enunciados já figuraram em
outras enunciações. Assim, essa quebra traz o animal para o presente, deixando-
o mais próximo do enunciador-(ator).
Eu chamava ele vinha, mamãe, eiá, meu boi eiô” (BE1)
152
As ações <chamava> e <vinha> expressam, simultaneamente, noção de
descontinuidade e continuidade. O chamar do dono constitui um fato que se
repete no passado, porém passível de sofrer interrupções. Assume o valor de
marco referencial pretérito em torno do qual a obediência do boi se efetiva
duradouramente. Cria-se, então, a impressão de que a fidelidade do boi não está
relacionada, unicamente, com os chamados do dono.
O tempo crônico é utilizado para descrever o nascimento e a
transformação brusca do imponente animal. Para tanto, demarca-se, no
enunciado, três pontos de referência temporal que marcam a divisão de um dia:
manhã, meio-dia, quatro horas da tarde. São medidas de tempo “reais”,
estabelecidas socialmente, que reforçam o sentido de veracidade e de
exterioridade do romance.
O reduzido intervalo cronológico entre essas medidas vem a corroborar o
envolvimento místico do boi. Este, em curto período de tempo, deixa de ser um
simples bezerro para metamorfosear-se num animal de porte descomunal. Há
uma simbologia por ts de cada medida. A manhã traz os semas do princípio, do
desenvolvimento, da bondade (por oposição à noite, que remete à maldade)
convergindo para o momento do nascimento. O meio-dia comporta os semas da
maturidade, da transição, concorrendo para o estado de total supremacia do boi.
O marco quatro horas da tarde, sinalizando o fim do dia, anuncia a morte dos
tangedores.
Além disso, esses signos temporais alicerçam uma outra face da tradição
oral: aquela que rejeita a presença do capeta. Na literatura de cordel, a existência
de animais misteriosos prende-se, geralmente, a marcas crônicas que explicitam
a ligação destes com o diabo. É o que ocorre, por exemplo, no folheto “O Boi
153
Misterioso” de Leandro Gomes de Barros, em que o animal de cor preta
(simbologia do mal) tem a sua ligação com o diabo marcada pelas referências
temporais meia-noite e sexta-feira. Nas produções orais, o interdito em mencioná-
lo está diretamente ligado a valores culturais. Muitas pessoas acreditam que o
signo <diabo> carrega um valor negativo e proferindo-o pode estar, de certa
forma, invocando o próprio demônio.
As condições de enunciação também interferem decisivamente para o
apagamento do diabo nas produções orais. Os informantes do romance são,
predominantemente, mulheres que desempenham praticamente duas atividades:
doméstica e professora primária. Tais funções possibilitam a essas mulheres
utilizar seu saber, sua memória romanesca para acariciar, ensinar e divertir as
crianças, as quais, provavelmente, não se sentem à vontade em cantar ou ouvir
poesias em que “o mal” aparece como personagem. Cumpre salientar que os
romances populares ainda continuam a desempenhar função didática em muitas
escolas interioranas, onde “tias” promovem a construção do saber erudito a partir
do resgate lúdico, não folclórico, dessas narrativas.
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Assim como o tempo, a categoria espacial do romance o Boi Espácio
divide-se em espaço lingüístico que compreende o lugar axial do discurso, onde o
enunciador se posiciona em relação à enunciação e o espaço tópico,
caracterizado pela instauração, no enunciado, de pontos referenciais em torno
dos quais o enunciador e os interlocutores se situam e localizam.
154
Sendo a narrativa em questão construída por uma sucessão de três
enunciações, o espaço lingüístico muda conforme a posição que o enunciador
ocupa em cada uma dessas instâncias. A primeira corresponde ao espaço do ,
da memória que faz emergir a história do boi valente e da qual o ente responsável
pela enunciação encontra-se espacialmente debreado. Ao manifestar as
expressões <vou contar> e <um caso que assucedeu>, o enunciador se coloca no
aqui. Porém, ao projetar os fatos no passado, constrói um outro espaço, o do
enunciado, onde mais uma vez se situa por meio de uma debreagem.
Na versão BE4, a posição aqui do enunciador se reverbera mais
claramente pelo elemento dêitico <este> que se reitera ao longo da narrativa.
Esse lexema tem a função de criar a ilusão de retorno da esfera enunciativa,
fazendo-a situar dentro do espaço do enunciador. Os efeitos de sentido estão
relacionados aos segmentos onde tal elemento aparece:
Este boi deu um urro Que a terra paralisou
...
Se este boi for pra vender Um conto por ele eu dou
...
E este boi vai de mimo Pra o doutor emperiador” (BE4)
memória
“lá”
Enunciador
aqui
enunciado
“lá”
155
Como se percebe, a inserção do <este> “arranca” o boi de um tempo e
espaço remotos para o tempo e espaço do enunciador. Com isso, a existência do
animal passa a ser “comprovada” pelo enunciatário, dando credibilidade ao falar
do dono. Assim, três fatos passam a gozar de uma maior veracidade no romance:
a misticismo do boi (traduzido no urro), a recusa em vendê-lo e o envio deste para
o rei.
A ancoragem espacial tópica permite situar e caracterizar os atores que se
assentam no enunciado. Ocorre por meio de pontos referenciais que encerram
implicações argumentativas, deixando transparecer determinadas intenções do
sujeito enunciador. Apresentam essas características o sertão de Quixelô, Bahia e
Lisboa que formam o espaço específico.
O sertão de Quixelô constitui o meta-espaço da narrativa. À exceção da
figura do rei/imperador, os demais atores o ocupam e nele se constroem.
Compreende a cidade, o lado “urbano” e por oposição a fazenda, o ambiente
rural. Essa demarcação espacial corresponde à construção geográfica de muitas
cidades do interior nordestino, em que o núcleo urbano aparece envolto por
propriedades rurais: sítios, fazendas, pequenos povoados, etc.
O boi e o seu dono são os únicos a caminharem pelos dois subespaços. O
intrépido animal extrai do sertão-fazenda a sua origem e o seu revestimento
sobrenatural. Ao nascer nesse espaço, o boi passa a representar os mais
simples, os que estão sob o domínio de outros, os que não gozam de liberdade. É
opondo-se a esse clima de submissão que o sobrenatural age sobre o animal,
dando-lhe “armas” para que possa livrar-se dos opressores. O discurso bíblico,
fonte de inspiração do imaginário popular, apresenta episódios semelhantes.
Deus dá a Moisés o poder para que este liberte o povo de Israel da opressão
156
realizada pelo Faraó. O gigante Golias, opressor do povo de Israel, é morto por
Davi, um jovem de estatura normal. A façanha é realizada quando Deus intervém
no confronto, fazendo com que uma simples pedra arremessada por Davi fizesse
cair o Gigante.
Além disso, o elemento tópico fazenda reforça o vínculo entre o boi e o seu
dono que, nesse espaço, assume os papéis temáticos de fazendeiro e vaqueiro.
Na função de vaqueiro, tem para com o animal não uma relação de posse mas de
afetividade, de companheirismo. Daí o fiel animal atender sempre aos seus
chamados.
Eu chamava ele vinha, mamãe, eiá, meu boi eiô” (BE1)
Como fazendeiro, pretende usufruir da imponência do valente animal,
convertendo-a em prestígio e auto-afirmação. É buscando o reconhecimento
perante o povo que o fazendeiro conduz o animal rumo a outro espaço: o da
cidade. Este se apresenta como o lugar da exposição, do público, do mostrar-se
poderoso. Surgem, aí, as ofertas de compra do animal e, consequentemente a
inclusão do comprador.
Fui passear na cidade, mamãe, uma dama me chamou
Quer vender o Surubim, mamãe três contos de réis eu dou
Três contos e oitocentos, mamãe, por ele já se enjeitou” (BE4)
O passeio marca a proximidade entre os atores dono, boi, comprador ao
mesmo tempo em que afirma a cidade como o espaço do capital, das transações
comerciais. É um fato que encontra respaldo sócio-histórico. Ainda hoje, nas
157
pequenas cidades, principalmente nordestinas, o comércio se situa na esfera
urbana e em dia determinado, o conhecido “dia de feira”. Nessa ocasião, a
população rural migra até a cidade para se abastecer de alimentos e muitos
criadores aproveitam o momento para exporem seus animais, ou no intuito de
vendê-los ou, simplesmente para exibi-los. É o que acontece no romance: o dono
realiza uma exibição (passeio) onde ostenta o boi, a fim de que o povo reconheça
o domínio que ele exerce sobre o indômito animal.
Os tangedores inserem-se no espaço rural, contribuindo para a
caracterização do dono enquanto fazendeiro. Eles desempenham atividades
próprias do universo administrativo de uma fazenda: o trato para com o gado. São
os tangedores que, no romance, tentam levar o indômito animal para o bebedouro
e que visam domá-lo. É uma função remunerada, revelando dessa forma a boa
condição econômica do dono do Boi Espácio.
Às quatro horas da tarde, mamãe, abateu três tangedor” (BE1)
Às quatro horas da tarde Tangeram pra o bebedor
Vinte vaqueiro de fama Não deu pra rudeador” (BE4)
O povo, que admira o boi, apesar de não ter voz, constitui o sustentáculo
veridictório do espaço sertão de Quixelô. Representando uma coletividade, o povo
fornece as características geográficas que permitem considerar o lugar como um
ponto referencial provável de existir. O efeito de verdade não seria obtido se o
sertão fosse ocupado simplesmente por um homem e um boi. Ademais, a
inclusão do ator povo autoriza considerar a cidade e a fazenda como um espaço
homogêneo, único.
158
O rei ocupa dois lugares: Bahia e Lisboa. O aparecimento do primeiro pode
estar relacionado ao fato de ser o romance de origem nordestina e a Bahia figurar
no final do século XIX, como um dos maiores criadores de gado. Lisboa remete
ao período imperial brasileiro, visto que o surgimento do romance coincide com o
governo de D.Pedro II. E, nesta época, era freqüente o imperador, de
nacionalidade portuguesa, “visitar” a metrópole, sua terra natal.
Das pontas do boi espácio, mamãe, fizeram uma canoa
Pra transportar o rei, mamãe, da Bahia pra Lisboa” (BE4)
O espaço genérico permite considerar a existência das seguintes
oposições tópicas: proximidade / distanciamento, interior / exterior e nobreza /
humildade.
Em relação à aproximação e distância, constata-se que o dono se
aproxima do boi, dos tangedores, do comprador e distancia-se apenas do rei,
embora entregue ao monarca a posse do poderoso animal. O boi mantém um
vínculo direto com o dono, o comprador, os tangedores, sendo o único a
aproximar-se do rei, o que intensifica seu valor e sua superioridade sobre os
outros. Permanece distante, porém, da vaca e da mãe do dono. Os tangedores se
aproximam somente do boi, fato que se revela coerente com a função exercida
por eles. O comprador ocupa o mesmo espaço do boi e do dono e se ausenta do
espaço dos tangedores, do comprador e do rei. A vaca aproxima-se apenas do
dono visto que pertence a ele. A mãe situa-se unicamente no espaço do filho
(dono), corroborando o vínculo cultural que se estabelece entre os dois. O rei
aproxima-se do boi e distancia-se dos demais atores.
159
O quadro a seguir permite visualizar o afastamento e aproximação entre os
actantes do enunciado:
Dono
Boi
Mãe
Vaca
Tangedores
Comprador
Rei
Dono
Ø P P P P P D
Boi
P Ø D D P P P
Mãe
P D Ø D D D D
Vaca
P D D Ø D D D
Tangedores
P P D D Ø D D
Comprador
P P D D D Ø D
Rei
D P D D D D Ø
A ausência do rei/imperador no espaço do sertão marca a distância entre
este e os outros atores. Trazendo as insígnias da realeza, o monarca não pode
aproximar-se do povo, os plebeus. Cabe, segundo o protocolo, permanecer no
interior do palácio. Foi o que sempre ocorreu na história do Brasil. Nunca houve
um vínculo direto entre rei e aqueles que financiam seu estado de indolência.
Na figura do “doutor” imperador, o afastamento denuncia a presença dos
conhecidos assessores, ministros, capangas que agem segundo as ordens que
recebem. Representam os interesses da autoridade maior. Esses “adjuntos” são
160
responsáveis por se infiltrarem entre o povo e colher as informações necessárias
para o doutor. O postulado de que o boi denota a exploração destes para com o
povo é confirmado por ser o animal o único ator a ocupar o espaço do rei/doutor.
A relação espacial interior e exterior inscreve-se apenas entre os atores
dono/filho e mãe. O contar da história que fixa a aproximação entre eles presume-
se ocorrer no interior de um dado ambiente. É verdadeiro que a atividade de
narrar casos entre familiares se processava e ainda se efetiva geralmente no
interior da casa, numa situação que procura congregar avós, pais e filhos.
O sertão de Quixelô e Lisboa sustentam a oposição entre espaço nobre e
espaço humilde. Lisboa, na condição de cidade monárquica, traz os semas da
riqueza, do luxo sendo, por conseguinte, um ambiente freqüentado por
aristocratas e nobres. Quixelô, no entanto, figura como uma cidade do interior,
localizada no sertão e habitada por pessoas simples, sem fidalguia.
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No romance O Boi Espácio, evidencia-se a presença de temas que,
correlacionados às figuras, alicerçam algumas reflexões que vêm sendo feitas
desde o início da análise.
O tema da dominação tangencia toda a narrativa, caracterizando as
relações de poder entre os atores dono e rei.
O dono exerce a sua autoridade
sobre o boi e os tangedores. É um poder outorgado respectivamente pela posse e
pela posição social. O domínio sobre o animal aparece figurativizado na
obediência deste ao atender aos chamados, ao recusar a proposta de vendê-lo e
ao entregá-lo ao rei.
161
Eu chamava ele vinha, mamãe, eiá, meu boi, eiô” (BE1)
Três contos e oitocentos, mamãe, por ele já se enjeitou” (BE1)
Um conto e setecento por Por ele já se injeitou” (BE4)
E este boi vai de mimo Pra o doutor imperador” (BE4)
Em relação aos tangedores, a dominação aparece impressa na tentativa de
levarem eles o poderoso animal para o bebedouro (cumprindo,
pressupostamente, uma ordem) e de se aventurarem a domar o animal a fim de
executarem uma façanha que só o dono do animal conseguira.
As quatro hora da tarde Tangeram pra o bebedor
Vinte vaqueiro de fama Não deu pra rudeador” (BE4)
A soberania do rei recai sobre o dono, fazendo-o acreditar que ele (o rei) é
merecedor do boi valioso. É um poder que se efetiva pelo status, pela capacidade
de enganar e de ludibriar. Essa supremacia se faz presente no envio do animal,
produto do trabalho do dono, para o usufruto do monarca.
E este boi vai de mimo Pra o doutor emperiador” (BE4)
O tema do desapego monetário assenta sobre o agir do dono que prefere
ficar com o animal a vendê-lo por uma quantia altíssima. A moeda utilizada
(contos de réis) comprova a ligação temporal do romance com o século XIX,
período em que um conto equivale a um escravo. É bom lembrar que os escravos
162
eram patrimônios de seus senhores; eram, na verdade, o ouro negro. Contava-se
a riqueza de um Senhor pela quantidade de escravos que possuía. Por outro lado,
a referência a contos de réis denuncia a atualidade da narrativa. Entre os de
menor condição financeira e analfabetos o uso do conto parece persistir na
memória, gerando uma adaptação com nova moeda do século XX, o real. É
comum ouvir-se <O objeto X custou oito conto> quando na verdade, as condições
temporais exigem <O objeto X custou oito reais>. Dessa forma, o aparecimento
do conto pode “jogar” a narrativa para o passado como também trazê-la para o
presente.
Quer vender o Surubim, mamãe, três contos de réis eu dou
Três contos e oitocentos, mamãe, por ele já se injeitou” (BE1)
Um conto e setecento por Por ele já se enjeitou” (BE4)
Outro tema bastante expressivo no romance corresponde à paz,
figurativizada na mansidão e na vagareza da vaca, mãe do Boi Espácio. É um
valor que, ao ser atribuído a um feminino, faz emergir uma caracterização
sóciocultural da mulher. Esta, desprovida de força e possuindo porte físico
desproporcional ao do homem, reserva-se a trabalhos mais leves e, por
conseguinte, menos ágeis (na visão masculina), como bordar, lavar, passar,
cozinhar. Esses ofícios, historicamente naturais à mulher, são executados no
interior dos lares, contribuindo decisivamente para a “paz” conjugal.
A vaca mãe do Boi Espácio era uma vaca maneira
Corria num baixio de terra não alevantava poeira” (BE2)
163
A História mundial é um testemunho da paz feminina. Nas grandes
revoluções, as mulheres, por serem consideradas frágeis, sempre estão ausentes
da frente de batalha. Desempenham atividades relacionas com o cuidar e com o
prover, como ocupar-se dos feridos ou alimentar as tropas. Elas não carregam os
semas da brutalidade, da frieza, da bravura, do destemor. Quando caminham pelo
universo masculino, são rejeitadas e neutralizadas. Joana D’Arc é um célebre
exemplo. Ao posicionar-se como homem, foi considerada pela igreja católica
como herege, bruxa, tendo como punição a morte na fogueira.
Imbricado ao tema da paz aparece o tema da religiosidade, impresso na
construção, a partir dos chifres do boi, de uma igreja e na crença do apocalipse,
revelada no tremor de terra e no fogo provocados pelo urro do misterioso animal.
Esses valores são apenas vestígios de um conteúdo religioso católico mais
profundo que permeia toda a narrativa. O episódio de um ser grandioso que
provém de um ser feminino frágil e pacífico remete ao mito cristão do nascimento
de Jesus. Maria, símbolo de paz e de feminilidade, concebe um ser poderoso cuja
função, no mundo, é libertar o povo do mal, dando-lhe a salvação espiritual. No
romance, o boi imponente procura libertar-se dos opressores e sua morte, assim
como a de Cristo, leva, através da materialização de uma igreja, paz e
espiritualidade para o povo de Quixelô. O gráfico que se segue estabelece a
aproximação entre o mito cristão e o romance do Boi Espácio:
164
Maria, mulher frágil,
fisicamente, concebe
um filho de uma
grandiosidade ímpar
A vaca, de porte
normal, engendra um
bezerro de físico e força
descomunais
O povo admira-se dos
feitos de Jesus
O povo admira-se dos
feitos do boi
Jesus não se deixa
tentar pelo diabo
A vinda de Jesus
representa a salvação
do povo
O dono recusa ofertas
tentadoras de compra
do animal
O sobrenatural torna o
boi capaz de libertar-se
dos opressores
O boi é dado ao
imperador que mata o
animal
Jesus é enviado para
Roma, onde é morto
pelo imperador Pilatos
O boi transforma-se em
obras que o prentificam
no sertão
Jesus ressuscita e o
cristianismo
dissemina-se
O boi transforma-se
numa igreja
Após a morte de
Jesus, surgem as
igrejas
“o pão e o vinho” “a fé e a água”
Mito cristão Romance
O BOI ESPÁCIO
165
Diretamente ligado à religião, aparece o tema da tentação feminina,
concretizado no texto pela proposta sedutora (muito alta) de compra do animal.
As mulheres que agem sobre o dono apresentam características que reforçam o
sentido negativo da tentação. Em BE1, o ser feminino traz os semas da beleza,
da sedução corporal, da riqueza, sendo, pois, referido como uma dama. Em BE4,
a mulher manifesta os semas da verbosidade, da astúcia, típicos de um
comprador.
Fui passear na cidade, mamãe, uma dama me chamou
Quer vender o surubim, mamãe três contos de réis eu dou” (BE1)
_Se este boi for pra vender Um conto por ele eu dou
O dono que vinha atrás palavra não lhe tomou” (BE4)
O estereótipo da mulher enquanto agente do mal, que tenta o homem pela
beleza e pela lábia faz surgir dois estigmas femininos bastante presentes no
imaginário popular: Salomé, de existência bíblica e as Sereias, fruto da oralidade
de Homero. No discurso bíblico, Salomé, enteada de Herodes, depois de dançar
para o rei, pede como prêmio a cabeça de João Batista. Sua beleza corporal,
acentuada pelos movimentos dançantes, seduz o padrasto que atende, sem
refutar, o seu pedido. A odisséia de Homero, apesar de difundida pela e na
academia, é uma obra que se construiu na oralidade e entre o povo. Abarca o
famoso episódio do canto das sereias. Ulisses pede que seus homens o amarrem
no mastro do navio para que, dessa forma, ele seja capaz de resistir aos
chamados encantadores das terríveis sereias, que se alimentavam de carne
masculina.
166
O tema da seca também ganha feições religiosas, uma vez que esse
fenômeno climático configura-se no imaginário popular nordestino como um
castigo enviado por Deus. Em BE3, a carreira que o Boi Espácio realiza dá origem
a quatro açudes que durante sete anos permanecem cheios. O sete é um número
muito recorrente na literatura popular e traz geralmente uma conotação bíblica.
Segundo o cristianismo, José escapa da morte ao decifrar os sonhos do faraó.
Este vivia angustiado pela visão de sete vacas magras que devoravam sete vacas
gordas, cuja interpretação revelava, na verdade, sete anos de fartura no Egito
seguidos por sete anos de seca ininterrupta. No romance os sete anos contínuos
de seca, não afetam os quatro açudes criados pelo boi, que, assim como José,
tornou possível a sobrevivência do povo durante um longo período de estiagem.
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Os traços reiterados no decorrer da narrativa permitiram considerar as
seguintes leituras temáticas:
Primeira leitura
A força física é um atributo do homem.
Segunda leitura
O cidadão deve respeitar as autoridades.
Terceira leitura
O discurso feminino não detém credibilidade.
Quarta leitura
A beleza e a sedução são armas femininas usadas para tentar o homem.
167
Quinta leitura
A mulher-mãe deseja sempre a paz do seu lar.
Sexta leitura
Cabe à mãe escutar os filhos.
Sétima leitura
Os políticos usam o produto que extraem do povo para se (re)elegerem.
Oitava leitura
Um favor paga-se com um voto.
Nona leitura
Deus ajuda os oprimidos.
Décima leitura
Respeito e virilidade superam o dinheiro.
Décima primeira leitura
Os monarcas têm como “atividade” o ócio.
Décima segunda leitura
O bem sempre persiste.
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Os valores axiológicos que permeiam o romance O Boi Espácio se
estabelecem por meio de relações conflitivas que podem ser dialeticamente
hierarquizadas no octógono semiótico. Este modelo lógico-conceptual permite
uma apreensão mais profunda das ideologias que subjazem à narrativa.
Ocorre uma tensão dialética entre fidelidade e traição que define as
relações de poder entre os atores dono, boi e rei. O somatório desses dois termos
168
dá origem ao metatermo posse. A fidelidade implica não-traição, fazendo emergir
uma relação que se assenta na afetividade. É o que ocorre, inicialmente, entre o
dono e o ilustre animal. A posse que os une revela o apego que o nordestino
interiorano tem para como os animais que, cotidianamente, estão ao seu lado (o
boi, o cavalo, o jumento etc). Esses animais fazem parte da alimentação, da
locomoção, do labor, representando, pois, sua própria sobrevivência.
A traição sem fidelidade, instiga a busca pelo prestígio que está
diretamente condicionado à posse do boi valente. O dono, assumindo a
caracterização de fazendeiro, sente a necessidade de mostrar-se aos outros, de
se expor como o possuidor legítimo do temido animal. Tal fato recupera a
informação de que os fazendeiros, principalmente nos dias atuais, expõem os
seus animais como prêmios, como troféus que lhe conferem reconhecimento e
prestígio.
Assim, a posse que caminha para a não-fidelidade caracteriza a relação de
exploração que se assenta sobre o agir do rei/doutor imperador. A presença
desse valor revela um Nordeste ainda oligárquico, onde o status é o grande
ordenador social. O dono priva-se de um bem valioso (o boi) para satisfazer o
rei/doutor. Estes se valem do animal (bem provindo do povo) para usufruto
próprio.
Sendo assim, a tensão fidelidade-traição acarreta a existência de três
percursos que reverberam à dinâmica narrativa:
boidono
posse fidelidade afetividade
(eufórica) (eufórica) (eufórica)
169
boidono
posse traição não-fidelidade
(eufórica) (disfórica) (disfórica)
rei/doutor
posse traição prestigio
(eufórica) (eufórica) (eufórico)
O octógono seguinte abarca com mais propriedade as percursos acima
delineados:
Outro conflito que se instaura na narrativa se processa entre dominante e
dominado, cuja junção caracteriza o agir do dono. Este mantém uma relação de
poder para com o boi e os vaqueiros, mas se deixa governar pelo respeito que
170
nutre pela autoridade legítima. Esse conflito traz à tona as relações sociais que
dominaram o nordeste nas primeiras décadas do século XX e que continuam a
vigorar, veladamente, nos dias atuais. O coronel, expoente maior da oligarquia
rural, impõe repressão ao povo e, no entanto, comporta-se como um “animal fiel”
diante de pessoas com mais prestígio do que ele, como o presidente, o
governador etc.
O dominante que faz uso da autoridade para sobrepor-se aos mais fracos
caracteriza o rei e o doutor. Eles não necessitam de poder físico para se imporem
ou sobreviverem. Retiram do povo os bens necessários à sua vida de luxo e
ociosidade. No romance, a figura do rei e a do doutor não representam tipos
masculinos apreciáveis, embora gozem de prestígio. O respeito a eles dirigido é
um valor cultural intrínseco às pessoas simples que admiram as autoridades,
reservando-lhes, muitas vezes, obediência incondicional. Um bom exemplo é o
político corrupto. Ele ludibria e explora o povo mas, em período de eleição, é
venerado.
O dominado sem autoridade define os vaqueiros que estão sob o jugo de
um patrão, de um fazendeiro. Eles tentam se sobressair através da força.
Todavia, não conseguem uma vez que sucumbem ao poder da autoridade (o boi).
O fato remete às relações trabalhistas de sociedades que se respaldam por
princípios escravocratas e exploratórios. A massa tenta uma mobilidade social
através do trabalho, do esforço físico, do suor mas é barrada pelas ações
daqueles que não querem perder a mão de obra barata.
Focalizando as relações tímicas que se estabelecem entre a tensão
dominante-dominado, foi possível depreender quatro caminhos pelos quais o
discurso caminha:
171
rei/doutordono: autoridade dominante não-dominado
(eufórico) (eufórico) (eufórico)
vaqueiro/boidono: obediência dominado não-dominante
(disfórica) (disfórico) (disfórico)
donorei/doutor: obediência dominado não-dominante
(disfórica) (disfórico) (disfórico)
donovaqueiro/boi: autoridade dominante não-dominado
(eufórica) (eufórico) (eufórico)
O octógono seguinte oferece uma sistematização mais nítida da tensão
que se opera entre dominante-dominado:
Tensão dialética da narrativa
dono
autoridade
rei/doutor
obediência
vaqueiro/boi
Ø
não-dominado não-dominante
dominante dominado
dono
172
Os atores femininos encontram-se em tensão dialética entre as funções de
mãe (mulher com obrigações para com a família) e comprador (mulher sem
atributos matriarcais), que se opõem evidenciando o conflito social da mulher.
Mãe e comprador são papéis convencionalmente estipulados pela sociedade e
que ganham feições distintas a depender da cultura onde se situam. No romance,
a mãe do dono se mostra responsável pela paz familiar, estando disponível, no
lar, para ouvir o filho. É um estereótipo bastante recorrente no imaginário popular
que atribui à figura materna, além do cuidado para com os filhos, as tarefas de
zelar pelo chefe da casa e os ofícios divinos de uma boa esposa, como costurar,
cozinhar, lavar e passar.
A mãe do boi, pelas características que traz, constrói uma imagem
feminina que complementa àquela que recai sobre a mãe do dono. Revela, não a
paz que se efetiva no seio familiar, mas aquela que é inerente à mulher, ou seja, a
fragilidade, a docilidade, a polidez. É um estado de debilidade que justifica,
socialmente, a necessidade de se ter um homem, símbolo de força e valentia,
dirigindo os seus passos. Cumpre lembrar que as mulheres, em algumas regiões
interioranas, ainda são criadas para o casamento. Elas mesmas enfatizam sua
inferioridade e se sentem realizadas quando conseguem um homem que lhes dê
suporte.
À mulher autônoma, que caminha por um lugar tradicionalmente ocupado
pelo homem, reserva-se normalmente acepções negativas visto que infringe
preceitos culturais que pregam a proeminência masculina. O “tino” pelos negócios
é um atributo que, desde os primórdios da história, agrega-se ao homem. Quando
envereda por esse caminho, a mulher não possui credibilidade de fala, ou seja,
173
seu discurso ressoa desprovido de confiança e verdade. É o que acontece no
romance. O dono não se deixa convencer pelas propostas da compradora.
Os conceitos de paz e tentação imbricados consubstanciam-se nos
dogmas religiosos. Deve-se à igreja católica, extremamente influente entre as
classes populares, a solidificação desses atributos femininos. Conforme apregoa,
desde a Idade Média, Deus abençoa o lar em que a mulher se doa aos filhos e ao
marido. Ela está encarregada pela agregação da família. Já a mulher
independente, sem um homem para orientá-la, simboliza a própria Eva. Nela, o
diabo age diretamente fazendo-a desviar da sua condição de futura “zeladora do
lar”. Encontra-se fora da igreja, afastada do lar e presente no mundo.
O comprador-mulher, em O Boi Epácio, aproxima-se, então, do coisa-ruim,
ao persuadir o dono a vender a alma do sertanejo, o boi. A recusa representa a
superioridade do homem que, ao contrário da mulher, resiste às investidas do
agente disseminador do mal.
O investimento tímico que caracteriza essa tensão permite distinguir dois
percursos:
mãe/vaca
dependência não-autonomia paz
(eufórica) (eufórica) (eufórica)
mulher-comprador
autonomia não-dependência tentação
(disfórica) (disfórica) (disfórica)
174
O conflito feminino da narrativa aparece hierarquizado no octógono abaixo:
A fartura e a seca, elementos tradutores do sertão, aparecem no romance
em tensão dialética. Revestida por preceitos católicos, a religiosidade sertaneja
caracteriza-se intrinsecamente pela crença providencial, segundo a qual Deus
conserva e governa o mundo, dirigindo todos os seres ao fim que se propôs.
Assim, a seca que castiga o corpo é considerada, por mais estranho que possa
parecer, positiva. É um sofrimento que Deus enviou para comprovar as virtudes e
o merecimento do homem. Em muitos povoados nordestinos, o longo período de
estiagem é tido como um castigo pelo mal que se abateu sobre a humanidade:
filho batendo nos pais, mulheres casando de branco sem serem virgens e traindo
os maridos etc.
conflito social
da mulher
paz tentação
Ø
não-autonomia não-dependência
dependência autonomia
Tensão dialética da narrativa
175
Diante desse infortúnio climático que faz padecer o corpo, a única solução
é recorrer a Deus. Só ele, através da fecundidade religiosa do nordestino, pode
acalentar a alma. Justificam-se, dessa forma, as constantes novenas, missas e
procissões realizadas pelos sertanejos que têm nessas manifestações a certeza
de que Deus providenciará o alento de que tanto necessitam. O Senhor dos
homens castiga o corpo para salvar as almas.
Ergue-se, portanto, um Deus ao mesmo tempo bondoso e vingativo,
próprio do imaginário popular. A seca não é eterna. Um dia, certamente, acaba. O
retorno das chuvas marca a absolvição do povo que volta mais uma vez a ser
enxergado, com bons olhos, pelo criador.
No romance, a transformação do boi em uma igreja e um açude representa
a intervenção de Deus em prol do povo. O templo religioso constitui o
apaziguamento da alma e o açude, ao saciar a sede, simboliza o término do
padecimento do corpo. O fato dessas obras surgirem do corpo do boi acentua seu
vínculo com o divino, com Jesus. A morte do filho de Deus representa para a
humanidade a regeneração do corpo e, consequentemente, a salvação da alma.
A narrativa, nesse sentido, apresenta quatro direções, cujo revestimento
tímico deixa vir à tona o conceber do enunciador sobre cada termo que gera o
conflito:
sertão seca sofrimento
(eufórico) (eufórica) (eufórico)
sertão fartura felicidade
(eufórico) (eufórica) (eufórico)
176
sofrimento não-fartura não-seca felicidade
(disfórico) (disfórica) (eufórica) (eufórica)
A tensão entre fartura e seca pode ser melhor visualizada através do
seguinte octógono semiótico:
O boi, herói da narrativa, ocupa o centro de uma tensão dialética que se
efetiva entre luta e submissão, cujo produto culmina no metatermo revolução. O
boi, enquanto representação do povo, não se submete àqueles que tentam
oprimi-lo. Ele se insurge, bravamente, contra os vaqueiros que, pela glória,
desejam domá-lo. Nesse âmbito, o romance reporta-se, explicitamente, às
oligarquias rurais do nordeste brasileiro. Os coronéis, expressão maior do poder
nessa região, consolida o seu poder através de jagunços, assassinos cruéis, que
177
levam o temor entre o povo. Esses profissionais “sujam as mãos” por seu patrão.
E quando cumprem satisfatoriamente as ordens passam a ter fama.
A liberdade, fruto da junção entre a luta e a não-submissão, simboliza a
bravura do sertanejo masculino que não se curva aos poderosos. Os cangaceiros
representam bem esse estigma de homem forte e valente que tem a liberdade
como um bem maior e pela qual, corajosamente, luta. Eles se opõem a uma
ordem social que procura estabelecer um sistema opressor sob os alicerces da
submissão e do conformismo. São considerados pelos coronéis como bandidos,
foras-da-lei, transgressores visto que impediam os propósitos da oligarquia. O
povo, no entanto, os tratava como heróis, seja porque os considerava justiceiros e
vingadores, seja pelo fato de que eles roubavam dos ricos. O fato é que eles
promovem uma ordem social própria, fundamentada nos valores de luta e não-
submissão, da qual obtêm a liberdade almejada.
Assim é o boi na narrativa. O imponente animal, buscando a liberdade,
desencadeia uma revolução ao confrontar-se com os opressores. O percurso
corresponde a uma ordem que tem a não-submisssão e a luta como fatores
indispensáveis para se chegar à liberdade.
O conflito, em sua totalidade, apresenta três caminhos nos quais os termos
axiológicos recebem revestimento tímico condizente com universo contextual da
narrativa:
revolução luta liberdade não-submissão
(eufórica) (eufórica) (eufórica) (eufórica)
178
revolução submissão opressão não-luta
(eufórica) (disfórica) (disfórica) (disfórica)
revolução submissão luta liberdade
(eufórica) (disfórica) (eufórica) (eufórica)
O octógono abaixo sintetiza melhor as reflexões acima:
179
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As narrativas do ciclo do boi ocupam um patamar privilegiado na literatura
popular. São histórias – verdadeiras fábulas alegóricas – nas quais se
presentificam o imaginário, o saber, a visão de mundo daqueles que se
encontram amalgamados à natureza que os rodeia. Organicamente ligadas ao
Nordeste brasileiro, elas traduzem o vínculo, a interação, o confronto do sertanejo
com um animal símbolo da região, do qual ele extrai a sua subsistência e
conquista a sua glória. Em termos discursivos, embora detenham uma
textualização curta (fator que contribui para sua memorização), apresentam um
esquema narrativo rico e complexo que inclui elementos da tradição rural e da
tradição cultural popular, religiosa e fantástica.
No romance analisado, o boi aparece sob os aspectos da realidade e da
imaginação popular, exercendo, imponentemente, o papel de protagonista. É um
herói autêntico cuja caracterização reverbera, inconscientemente ou não, uma
formação ideológica da qual emergem elementos culturais de auto-afirmação e de
auto-reconhecimento, ou seja, o fazer-ser do animal representa,
substancialmente, o ser, o ethos de um povo, de uma região. Seus dons físicos,
suas façanhas extraordinárias, além de lhe garantir superioridade, contribuem,
180
consideravelmente, para a construção de uma imagem que, ao concentrar valores
de merecimento e grandiosidade, passa a servir de referência sócio-histórica para
a sociedade que a concebe.
Penetrando nas subjacências do romance O Boi Espácio, recuperam-se
marcas ideológicas que fazem emergir uma organização social pautada ainda em
dogmas patriarcais. É uma narrativa que se constrói sobre e a partir do olhar
masculino. O boi e o seu dono fundem-se num paradigma de masculinidade
extremamente desejável e apreciável pelo imaginário popular. Eles sintetizam o
sertanejo viril, valente, imponente que não se curva diante dos opressores, nem
das tentações monetárias. São princípios ordenadores de uma norma cultural que
tem o homem como representação da boa índole, do bem. Sendo assim, sua
imagem, prestígio e honra devem ser preservados.
A mulher, na narrativa, não goza de prerrogativas. Todavia, não se pode
afirmar que há um olhar discriminatório sobre ela. Impor um juízo de valor externo
é, no mínimo, um anacronismo. Sua caracterização, de Maria à Eva, assenta
sobre dogmas culturais que vêm se perpetuando desde a Idade Média e que são
concebidos, ainda hoje, como adequados, corretos e, sobretudo, necessários
entre as camadas populares interioranas.
Subordinada a um homem, a mulher mãe/esposa recebe uma conotação
valorativa visto que se encontra inserida num lar onde passa a ser a responsável
pela harmonia familiar, isto é, mostra-se totalmente disposta a escutar o filho. É
um estereótipo feminino bastante recorrente nas gestas de valentia. Nestas, a
figura da mulher-mãe geralmente aparece como intercessora do filho. É o que
ocorre também nos romances Zé do Vale em que a mãe, para livrar o filho
181
cangaceiro do cárcere, tenta subornar o presidente e Tertuliano, no qual a mãe
protege o filho, transgressor da lei, que está sendo perseguido pela polícia.
À mulher independente, desprovida de um direcionamento masculino,
atribui-se um revestimento negativo. Ausentes de um lar, representa tentações
nefastas, capazes de desviar o homem do bom caminho, envolvendo-o nas
tramas do mal. Utilizando a linguagem popular é um diabo de saia.
Não só na caracterização feminina que o romance estabelece diálogos
entre o período medieval e a sociedade nordestina. A religiosidade, de natureza
estritamente católica, se faz presente através do providencialismo divino, ou seja,
a crença de que tudo o que acomete o homem provém de Deus e que só a este
cabe o julgamento. É assim que, na narrativa, a criação de uma igreja e um açude
representa a intervenção do Senhor dos homens sobre o Nordeste, que,
compadecendo-se do sofrimento advindo da seca, julga necessário aliviar o
espírito e o corpo de um povo tão trabalhador.
Amalgamados à religião, surgem os valores políticos. A concepção de
uma sociedade permeada por ações politiqueiras solidifica-se através do agir dos
sujeitos rei/doutor, personagens com exímios correspondentes no Brasil. Estes
usam os bens do povo, representados pelo boi, para se auto promoverem. É um
registro cultural importante que permite comprovar a atualidade das compilações
orais.
Pretende-se com esta pesquisa instigar o interesse pelo estudo
realmente científico do texto popular. Não aquele que se detém em abstrair seus
valores estilísticos e terminológicos, mas aquele que o concebe como um
instrumento de representação social, através do qual o povo, os “iletrados”, a
massa se expressa. Dessa forma, espera-se que este trabalho possa contribuir,
182
de alguma forma, para a compreensão e resgate da cultura popular e brasileira
como um todo, em suas origens e alicerces sócio-ideológicos. Espera-se,
outrossim, que esta pesquisa possa despertar o interesse para outras análises
mais profundas, numa correlação multidisciplinar com a Psicologia, a Sociologia,
a Antropologia, ou mesmo, com outras linhas da Lingüística Atual.
183
R
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TODOROV, Tzvetan. Teorias do símbolo. São Paulo: Editora Papirus, 1996.
VONOYE, Francis. Usos da Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
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ROMANCE DO BOI ESPÁCIO
BE1-Va
Cantado por Dalvanira Gadelha, 54 anos,
professora de musica, Campina Grande.
1. Eu vou lhe contar um caso mamãe, que o povo se admirou
De um bezerro que nasceu, mamãe, no sertão de Quixelô!
Eu chamava ele vinha, mamãe, eiá, meu boi eiô
2. Ele nasceu de manhã, mamãe, meio-dia se assinou
Às quatro horas da tarde, mamãe, abateu três tangedor
Eu chamava ele vinha, mamãe, eiá, meu boi eiô
3. Fui passear na cidade, mamãe, uma dama me chamou
Quer vender o Surubim, mamãe três contos de réis eu dou
Três contos e oitocentos, mamãe, par ela já se enjeitou.
4. Das pontas do boi espácio, mamãe, fizeram uma canoa
Pra transportar o rei, mamãe, da Bahia pra Lisboa
Eu chamava ele vinha, mamãe, eiá, meu boi eiô
João Pessoa, 04 de Abril de 1984
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O BOI ESPÁCIO
BE2-Vb
Cantado par Umbelina Clementina Neves
Antonino, 83 anos, Vila do Abel (Monteiro)
_A vaca mãe do Boi Espácio era uma vaca maneira
Corria num baixio de terra não alevantava poeira
Da ponta do Boi Espácio mandei fazer uma canoa
Para embarcar a gente de Goiana para Lisboa
Das unhas do Boi Espácio mandei fazer corrimboque
Para dar um atabaque ao povo de carioque,
Do couro do Boi Espácio mandei fazer um surrão
Para embarcar os milho da gente do Bastião
Campina Grande, Abrigo de São Vicente, 30 de janeiro de 1988
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O BOI MISTERIOSO
BE3-Vc
Recitado por Severino Paulino de Farias, 77
anos, agricultor, Sítio Paquivira (Macaparana-
PE)
A carreira que meu boi deu quatro açude se formou
Que com sete anos de seca, mamãe, água nele não faltou (bis)
Sítio Pau d’Arco (Salgado de São Félix), 28 de janeiro
de 1987.
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O BOI DO QUIXELÔ
BE4-Vd
Cantado por Maria do Carmo do Espírito
Santo (Dona Carmem), 61 anos, lavadeira e
roceira, Sítio Balaço (Macaparana).
Um caso que assucedeu No sertão do Quixelô
Um bezerro que nasceu O povo se admirou
Nasceu de manhãzinha A meio-dia se assinou
As quatro hora da tarde Tangeram pra o bebedor
Vinte vaqueiro de fama Não deu pra rudeador,
Este boi deu urro Que a terra paralisou
O povo dali disseram, O mundo se acabou
Dentro de Pedra e Fogo Uma cometa estralou:
_Se este boi for pra vender Um conto por ele eu dou,
O dono que vinha atrás Palavra não lhe tomou
Que um conto e setecento Por ele já se injeitou
E este boi vai de mimo Pra o doutor emperiador.
Das pontas deste boi Quatro obra se formou
Um açude e uma igreja Uma lancha e um vapor
Sítio Pau d’Arco (Salgado de São Félix), 22 de janeiro
de 1987
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