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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
A Saga de Lampião pelos Caminhos
Discursivos do Cinema Brasileiro
MATHEUS JOSÉ PESSOA DE ANDRADE
João Pessoa – PB
2007
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
A Saga de Lampião pelos Caminhos
Discursivos do Cinema Brasileiro
MATHEUS JOSÉ PESSOA DE ANDRADE
João Pessoa – PB
2007
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MATHEUS JOSÉ PESSOA DE ANDRADE
A Saga de Lampião pelos Caminhos
Discursivos do Cinema Brasileiro
Dissertação apresentada como requisito para
obtenção do grau de Mestre em Letras, na área
de Lingüística e Língua Portuguesa, linha de
pesquisa Língua Escrita e Língua Falada:
Aspectos Discursivos e Pragmáticos, do
Programa de Pós-Graduação em Letras.
Orientadora: Profª.drª. Ivone Tavares de Lucena
Universidade Federal da Paraíba
João Pessoa – 2007
BANCA EXAMINADORA
PROFª.DRª. IVONE TAVARES DE LUCENA
Professora orientadora
UFPB
PROFª. DRª. MARIA ELIAS SOARES
1ª examinadora
UFC
PROFª. DRª. REGINA MARIA RODRIGUES BEHAR
2ª examinadora
UFPB
PROFª. DRª. MARIA ANGÉLICA DE OLIVEIRA
Suplente
UFCG/UFPB
João Pessoa, 23 de abril de 2007.
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Adélio e Vera, meus irmãos, Thiago e Rachel, minha cunhada, Diana
Abrantes, meu sobrinho, Dhiego Andrade, e meu “irmão mais novo”, Jailson Bandeira,
pelo alicerce familiar e afetivo sobre o qual me apoiei com confiança para realizar o
presente trabalho de pesquisa e todos os outros trabalhos passados e os futuros;
A Ivone Tavares de Lucena, amiga, professora e orientadora (no sentido mais amplo do
termo), por acreditar na idéia, na pesquisa e no pesquisador aqui em questão, trazendo,
ainda, uma luminosidade e uma energia singular, elementos que sempre serão citados na
minha vida acadêmica e social;
A Regina Behar pela amizade, pelo companheirismo acadêmico cinematográfico e pelo
auxílio intelectual constante, o que carrego comigo desde nossas primeiras reflexões
conjuntas até os dias de hoje, e farei questão de não largá-los daqui pra frente;
A todos os amigos professores que, de maneira formal e informal, discutiram minhas
idéias de pesquisa e outras idéias. Em especial: João Batista de Brito, Roberto Faustino,
Artur Andrade, Socorro Rosas, Maria Angélica Oliveira, Mônica Nóbrega, Bertrand
Lira, Marcos Nicolau, Nádea Gastar, Rosário Gregolin, Fátima Batista, Vera Chacham,
Kátia Sousa, Nilton Milanez, Jorge Bacana, César Santos, e outros;
Aos amigos e novos amigos que estiveram juntos, estudando, dialogando, questionando
e auxiliando, de alguma forma, durante minha saga de pesquisador acadêmico. Entre
eles: Laerte Cerqueira, Niutildes Batista, João Carlos Beltrão, Renato Alves, Giselle
Ponciano, Maíra Martins e Amanda Braga (em nosso grupo de estudos), Manuela
Fialho, Eliza Freitas, Edjane Assis, Rosemary E. Barbosa, Ana Cristina Lucena, Dilson
Meneses, Ana Maria, Tatiana Costa, Dayse Furtado, Orlando Jr., Emilyn Janaína,
Mislene Santos, Dulcenéa Meneses, Cecília Noronha, Flávio Benites, Gianni Almeida,
Elder Dias, Mirela Adriele, Eunice Morais, entre vários outros esquecidos no momento,
mas lembrados de alguma outra maneira;
À turma da banda Art & Manhas e outros vários músicos pelo companheirismo
artístico, profissional e amigável, o que, certamente, colaborou para o meu desempenho
acadêmico: Tuca Brown, Saulo Torquato, Raonny Nóbrega, Elaine Cristina, Júnior do
tenor e o Boy do sax, Nando Azimuth, Alexandre e o Mago, Jr. Meneses, Jonas Batera,
Flamarion, Zé Ruben, Ademilson, Herberte José, Cíntia Carvalho, Grupo Acorde, entre
outros;
Aos auxílios técnicos prestados à confecção do trabalho, como as ilustrações, realizadas
por Thiago Andrade, e o Abstract, auxiliado por Tatiana Costa;
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES – pelo
apoio financeiro fundamental para a pesquisa realizada durante os últimos dois anos.
ABORRECIMENTOS
Gostaria de registrar, também, meus sinceros aborrecimentos, os quais ocorreram
durante o período do mestrado, desde as primeiras disciplinas até os últimos textos
produzidos. Em especial, foram os seguintes:
Aos meus pais, por me interromperem incansáveis vezes, em casa, enquanto eu
estudava e/ou escrevia sobre minha pesquisa. Quebravam minha rotina de trabalho para
resolver as coisas deles, sem questionar sobre o que eu estava fazendo naquele
momento;
Ao meu sobrinho, que, no turno que permanecia em nossa casa, brincava e brigava com
a cadela da família, fazendo o maior barulho possível enquanto eu (tentava) estudar ou
escrever;
Aos amigos que disseram repetidas vezes: “É muito bom receber pra estudar!”; ou
aqueles que iam à nossa casa, me encontravam vestido à vontade e faziam questão de
perguntar: “Acordou agora, vida boa?”, tendo eu trabalhado na dissertação desde as oito
da manhã; ou, ainda, os que me viam no computador e indagavam: “Você não faz nada
o dia todo? Só fica aí!”, sem perguntar o que eu estava fazendo ali;
E, especialmente, ao computador que quebrava quando eu menos esperava e muito
menos precisava que ele quebrasse (ainda bem que foram poucas vezes!).
Veneno faz o mundo girar
Um calafrio de medo eu não posso evitar
Quando ela espalha o seu doce perfume
Sinto no peito a paixão e o terror
Se alguém soubesse o que me passa
Ao vê-la alegre dançando
Me invade um cheiro de morte
Sinto loucura no ar
Quando ela chega e pede um tango
Me perco todo em seu rastro
Não há razão nem virtude
Só o seu sabor fleur d'amour
(Letra da música Baile Perfumado)
RESUMO
Com base na perspectiva francesa de Análise do Discurso, o presente trabalho trata do
texto fílmico como materialidade – verbal e imagética – sobre a qual os processos
discursivos atuam movendo sentidos. Neste processo, aborda-se o discurso do cinema
brasileiro sobre o cangaço e seu legítimo representando: o cangaceiro Virgulino Ferreira
da Silva, vulgo Lampião. Assim, o trabalho consiste em analisar os aspectos discursivos
da reutilização das imagens originais do Capitão Virgulino e seu bando no filme Baile
Perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, datado em 1996. As imagens documentais
são do filme Lampião, o Rei do Cangaço, realizadas por Benjamin Abrahão, em 1936.
O remanejamento de tal materialidade para outro texto fílmico, consequentemente,
implica na rearticulação de sentidos diversos devido à nova condição histórica e
enunciativa das únicas imagens de Lampião, refletindo, diretamente, em efeitos de
sentido pelo jogo discursivo em questão e na reconstrução discursiva, no cinema
brasileiro, do autêntico Rei do Cangaço.
Palavra-chave: Discurso – Cinema – Cangaço – Lampião – Sentido
ABSTRACT
Based on the French perspective of Discourse Analysis, this paper discusses film scripts
as verbal and visual substances about which the discourse process changes meanings.
This process involves the Brazilian cinema discourse about the ‘cangaço’ and its leader:
the ‘cangaceiro’ Virgulino Ferreira da Silva, also known as ‘Lampião’. This paper
consists of analyzing the discourse aspects of the reuse of the original images of
‘Virgulino Captain’ and its group in the movie Baile Perfumado (1996), by Paulo
Caldas and Lírio Ferreira. Actual footage of Virgulino, shot by Benjamin Abrahão, was
used in the movie ‘Lampião, o Rei do Cangaço’, in 1936. The use of original Virgulino
footage in another film results in a change of meanings due to the new historic context
and perception of the only images of ‘Lampião’. As a consequence, the meaning is
affected through the change in discourse of Lampião, Rei do Cangaço, in the evolving
Brazilian cinema.
Key-words: Discourse – Cinema - Cangaço – Lampião – Meaning
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO À SESSÃO.........................................................................................13
CAPÍTULO I: O FILME DA ANÁLISE DO DISCURSO E A ANÁLISE DO
DISCURSO FÍLMICO..................................................................................................19
1.1 Revisando o roteiro e escolhendo os a(u)tores.............................................19
1.2 De voltas para o futuro: o discurso e as inter-relações discursivas...............25
1.3 Contatos imediatos da memória com os processos discursivos....................36
1.4 Entre umas e outras formulações e reformulações.......................................44
1.5 O cinema como materialidade discursiva.....................................................52
1.6 Materialidades não-lingüísticas do filme e o jogo dos sentidos...................64
CAPÍTULO II: ERA UMA VEZ NO NORDESTERN...............................................70
2.1 Lampião no cinema: os brutos também brilham............................................70
2.2 Virgulino Ferreira da Silva: no tempo das divergências................................81
2.3 Benjamin Abrahão: o homem que filmou o facínora.....................................94
2.4 Baile Perfumado: a bailada dos pistoleiros..................................................100
2.5 Três cineastas e um destino.........................................................................108
CAPÍTULO III: FRAGMENTOS DISCURSIVOS E FÍLMICOS DE UM
LAMPIÃO....................................................................................................................116
3.1 Primeira parte: o lançamento de um filme...................................................117
3.2 Segunda parte: reconstrução de um cangaceiro mitológico.........................124
COMENTÁRIOS APÓS A SESSÃO.........................................................................132
REFERÊNCIAS...........................................................................................................137
INTRODUÇÃO À SESSÃO
Nós quer, assim, de confiança, faz filme
com a capiton e a bando dele, hem? Nós
ficaria com a capiton, assim, uns dias e
filmava as coisas necessárias, hem?
(Benjamin Abrahão em Baile Perfumado)
Para iniciarmos o corrente texto, gostaríamos de sugerir ao leitor para se
posicionar como se estivesse prestes a ver um filme, numa sala de cinema, acomodado
numa poltrona qualquer, a poucos minutos de vivenciar uma nova experiência.
Entramos na sala. Há algumas pessoas sentadas nas cadeiras, posicionadas
aleatoriamente. Uns acompanhados de amigos, outros são casais lado a lado, e há
sempre aquele solitário, porém interessado pela sessão. Procura-se o lugar mais
confortável para assistirmos ao filme, um lugar mediano, de onde não precisamos fazer
esforço para dirigirmos o olhar para a tela.
Pipoca, refrigerante, chocolate, balas, são itens comuns e deliciosos para uma
sessão de cinema. Mas aqui não chega a ser tão necessário assim, a não ser que se
deseje muito. As pessoas, antes do filme, permanecem comendo e dialogando em baixo
tom, sussurrando não se sabe por que.
Enfim, as luzes se apagam. A sala fica escura e a grande tela vira o centro das
atenções daquele ambiente. Começam os traillers dos próximos lançamentos. É o tempo
de sentirmos a temperatura da sala, o silêncio que as outras pessoas estão fazendo (ou
não), desligarmos o celular, e pensarmos se esta, realmente, é a sala certa. De repente,
começa o filme: realmente estamos na sala certa.
A sala está totalmente escura. O filme vai se apresentando passo a passo.
Ficamos entorpecidos pela história que nos é contada, com todos aqueles efeitos de
imagem e som, com os atores interpretando personagens fantásticos. Sustos, rancores,
suspiros, sorrisos, sensações causadas no decorrer do filme. E o final não se pode dizer.
Então, não mais como leitor, e sim como “espectador” deste trabalho, assuma a
postura de alguém que esquece do mundo lá fora para se envolver com a narrativa,
alguém que se enrola com o filme como se entrega a um sonho, aflorando sentimentos
diversos, preocupado com o destino do personagem principal, e querendo, mais do que
saber o que vai acontecer, finalmente, ver como tudo vai acontecer.
E, se estiver realmente na sala errada, prestes a assistir a um filme sem saber de
suas procedências, achando que nada deu certo, não tem problemas: se não há como
contornar a situação: relaxe! Passaremos uma sinopse e algumas pistas sobre a narrativa
a seguir.
De forma ampla, trata-se de um trabalho no qual o objeto de estudo engloba uma
trilogia temática: discurso, cinema e cangaço. O discurso na perspectiva da Análise do
Discurso francesa, o cinema com os filmes nos quais estão retratados os personagens da
história do movimento do cangaço e o cangaço representado pela figura do cangaceiro
Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião.
Vale ressaltar, antes de tudo, que nosso personagem principal não morre no
final. Ele já começa a história, verdadeiramente, morto. A informação parece estragar
completamente o prazer do filme (assistir a um filme sabendo do destino do “mocinho”
não tem tanta emoção). Mas, aqui, não é assim que funciona. Ele está morto em vida,
mas não em obra. Ele é reavivado, com grandiosidade, pelo cinema brasileiro durante
vários anos de produção cinematográfica.
No tocante, é numerosa a quantidade de filmes, dos mais diversos gêneros, sobre
Lampião e seu bando de cangaceiros na história do cinema brasileiro. E, por esta razão,
também é tamanha a locomoção, nas narrativas cinematográficas nacionais, dos
processos discursivos sobre a figura do cangaceiro Lampião. É um verdadeiro trabalho
de construção, demolição e reconstrução discursiva sobre o personagem nas demais
histórias contadas e recontadas pelos filmes de cangaço.
Neste jogo de sentidos, o cangaço vem a ser recriado nas obras dos vários
cineastas brasileiros, trazendo para as grandes telas e para os espectadores brasileiros
marcas de uma história do cangaceirismo, ao mesmo tempo em que se mexe com traços
de sentido de uma memória pré-estabelecida sobre os cangaceiros das caatingas do
Nordeste.
Mesmo valendo-se de uma base abstrata, simbólica, de determinadas
significações sobre o cangaço, o texto fílmico, assim com outras categorias textuais,
atua com a possibilidade de, ao ressuscitar sentidos passados, instaurar novos traços de
sentido – o diferente – sobre o mesmo – o que se repete – na ação presente do novo
dizer, o qual evoca marcas históricas existentes na memória discursiva, ou sobre dizeres
constituídos em épocas anteriores.
Com a finalidade de compreendermos como tais processos discursivos trafegam
no cinema com a temática do cangaço, recortamos o objeto da presente pesquisa da
seguinte maneira: serão utilizados os filmes Lampião, o Rei do Cangaço, de Benjamin
Abrahão, realizado em 1936, e Baile Perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira,
datado em 1996.
O primeiro trata-se de um documentário realizado nas caatingas com Lampião e
seu bando, imagens cinematográficas originais e únicas dos cangaceiros em suas
atividades cotidianas. O segundo é um filme de ficção sobre a história do cineasta
estrangeiro que filmou Lampião e seu bando, uma remontagem cinematográfica do
percurso de Abrahão na busca de realizar seu filme.
Especificando, a narrativa de Baile Perfumado é elaborada com base nas
imagens restantes do filme do libanês, o que fez Caldas e Ferreira reutilizarem tais
fragmentos em duas cenas de seu filme, dois momentos contidos no texto fílmico em
questão. Ponto este sobre o qual procuraremos perceber a atuação dos processos
discursivos nas imagens originais aplicadas à narrativa ficcional construída.
Na perspectiva da Análise do Discurso (AD), em termos gerais, o discurso é
considerado como efeito de sentido entre sujeitos, isto é, algo constituído a partir de
elementos exteriores ao dizer, historicamente constituídos, evidenciados a partir da
posição ocupada por alguém que diz algo, de alguma maneira, em determinado
momento.
No nosso caso, cineastas que constroem narrativas contendo Lampião e seu
bando em determinados períodos históricos diferentes, em condições de produção
específicas, ocupando lugares diferentes. Contudo, partes das imagens originais de 1936
são postas, reutilizadas, no texto fílmico de 1996, pelos cineastas nordestinos. Tal
atitude expressa a movimentação de sentidos, ou efeitos de, explicitando o trabalho do
discurso.
Esta citação cinematográfica implica não apenas em um trabalho estrutural, de
elementos neutros, de composição da narrativa, mas sim de imagens operadoras de
discurso, capazes de erguer toda uma historicidade sobre o cangaço e seu respectivo
líder, de trazer uma memória com sentidos instituídos anteriormente, de fazer surgir
múltiplas vozes atravessadas entre si, de absorver novos sentidos instaurados na nova
condição de enunciação. Em suma, trazem condições de analisarmos o discurso presente
nas mesmas.
São imagens reais de Lampião e seu bando, colocadas em uma nova narrativa
cinematográfica sobre o cangaceiro, movendo sentidos diversos através do tempo,
remodelando, em parte, a figura do rei do cangaço pelo jogo dos sentidos. O cinema
brasileiro, portanto, apresenta caminhos discursivos de uma imensa saga histórica do
cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, onde o personagem está sujeito a ser moldado
pelo jogo dos sentidos, remodelando, assim, a memória do cangaço.
Para pensarmos as idéias expostas, o texto desta dissertação está dividido em três
capítulos, além das considerações finais, nos quais há subdivisões de tópicos onde se
encontram os passos de toda caminhada teórica e prática de nossas reflexões.
No primeiro capítulo abordamos questões teóricas, referentes à AD e à
metodologia a serem aplicadas ao nosso estudo. Inicialmente, é discutida a noção de
discurso na perspectiva em jogo, principalmente por haver outras noções sobre discurso
nas teorias do cinema. Em seguida, ao apresentarmos a linha determinada, serão
trabalhadas as noções de interdiscurso, memória discursiva, paráfrase e polissemia,
proposta pela teoria do discurso, procedimento necessário para compreender como se
estabelecem os sentidos nos dizeres, observando as inter-relações discursivas existentes
na trama do discurso e os deslizamentos dos sentidos através da retomada dos dizeres,
definindo o que se mantém e o que se acrescenta em termos de significação dos objetos
simbólicos.
Ainda no primeiro capítulo, discutimos a estrutura do texto fílmico e a aplicação
da AD sobre determinada(s) materialidade(s), levando em conta algumas características
específicas do cinema, considerando o filme em sua complexidade material – som,
imagem e montagem – e suas relações históricas. Tudo isso para se esclarecer a
estrutura textual em que os processos discursivos atuam em determinadas
circunstâncias.
O segundo capítulo apresenta, mais precisamente, o objeto do presente trabalho,
partindo de uma visão geral do objeto para o recorte proposto em nossa pesquisa.
Expõe-se um panorama da história dos filmes de cangaço – o Nordestern –, demarcando
a aparição de Lampião dentro de tal histórico. Discutindo o perfil cinematográfico do
cangaceiro, recorremos à história de Virgulino Ferreira da Silva para uma possível
comparação. Desta feita, inscrevem-se as histórias dos filmes de Benjamin Abrahão e de
Paulo Caldas e Lírio Ferreira, contextualizando-os histórica e estruturalmente. Por fim,
discutimos alguns pontos sobre a construção da história do cineasta libanês no filme
Baile Perfumado, observando as características presentes na versão cinematográfica dos
fatos.
E, no terceiro capítulo, após a definição do corpus como um todo, estão contidas
as análises discursivas sobre a reutilização das imagens originais de Lampião em outro
filme sobre ele. A fim de melhor sistematizar, dividimos as análises em duas partes,
pontuando os dois momentos de aparição das imagens de Abrahão no texto fílmico de
Caldas e Ferreira, analisando, assim, como os processos discursivos – baseado nos
pressupostos teóricos – atuam sobre os fragmentos das imagens originais em cada ponto
específico no texto fílmico, ou como as imagens operam com os discursos movendo
sentidos historicamente definidos na narrativa cinematográfica em jogo.
São postos em cena, portanto, elementos simbólicos os quais conduzem
discursos diversos, vozes entrecruzadas entre o passado e o presente, relacionadas a
outros ecos de sentido, com o propósito de fazer significar, de levar e trazer múltiplos
dizeres para o texto fílmico.
A saga do histórico personagem Lampião, eternizado nas imagens
cinematográficas realizadas por Benjamin Abrahão, transcorre pelos caminhos
discursivos do cinema brasileiro em meio às possibilidades de construção e
reconstrução de um perfil do cangaceiro a partir dos traços de sentido historicamente
definidos ou determinados.
Agora, silêncio! O filme vai começar!
CAPÍTULO I: O FILME DA ANÁLISE DO DISCURSO E A
ANÁLISE DO DISCURSO FÍLMICO
Você me diz a que vem essa prosa e eu lhe
digo se essa prosa vai!
(Lindalvo Rosas em Baile Perfumado)
Noções, conceitos, perspectivas, diretrizes, definições e procedimentos
metodológicos. Tudo isto na linha da AD francesa. Como podemos observar, temos um
vasto cenário com diversos atores principais e coadjuvantes atuando, cada qual com seu
devido papel, cumprindo suas ordens para montar a cena.
Tratando de definir a base teórica de nossa pesquisa, começaremos com a
identificação da linha de estudo proposta, definindo o conceito de “discurso” para a AD,
o qual difere de outras concepções, e os autores fundadores e emblemáticos da
respectiva teoria, com seus principais trabalhos.
Desta feita, empreenderemos nossa discussão, especialmente, sobre os conceitos
de interdiscurso, memória discursiva, paráfrase e polissemia. Considerando-os, assim,
como os primeiros personagens a aparecerem no seguinte capítulo. Entretanto, sempre
contracenando com outros personagens – conceitos – da teoria do discurso.
Por fim, abordamos procedimentos que julgamos necessário para aplicar a AD
sobre o cinema, levando em conta as características estruturais do texto fílmico em
relação ao discurso, considerando os elementos da materialidade não-lingüística no
movimento de sentidos no cinema. Enfim, adicionando tais personagens para
colaborarem com os procedimentos metodológicos de presente trabalho.
1.1 Revisando o roteiro e escolhendo os a(u)tores
Na tentativa de situarmo-nos adequadamente no trabalho que aqui se inicia,
gostaríamos de, inicialmente, expor o campo da Análise do Discurso a ser manuseado
no tipo de análise que será desenvolvida. Julgamos necessária tal exposição devido à
diversidade do uso da palavra “discurso”, aplicada em teorias diferenciadas e
interpretada de maneiras variadas, podendo levar, às vezes, ao mal-entendimento sobre
a forma de análise discursiva
1
.
Dessa maneira, diríamos que trabalhar com o “discurso” é como dirigir um filme
de “amor”: as possibilidades de modelar o filme são diversas e, para dirigir, é preciso
escolher uma maneira de abordar o tema, definir de que ponto de vista será narrado e
escolher uma série de elementos que irão compor a narrativa. Desta feita, dirigiremos, a
partir de então, o nosso “filme” sobre o “discurso”.
Na década de 1960, com base na crítica ao modelo estruturalista saussuriano de
lingüística – precisamente sobre os aspectos da dicotomia langue/parole, a ausência do
sujeito, da história e das práticas sociais na linguagem – surgiram as primeiras
discussões e os primeiros trabalhos franceses em Análise do Discurso.
Nos estudos sobre a linguagem, buscou-se o conhecimento de um objeto que
fosse além dos elementos puramente lingüísticos, entendido a partir do que era exterior
à língua e à fala, mas que se inseria no processo; um objeto que não estivesse reduzido à
sua imanência, constituído pela história e pelo social: esse objeto é o “discurso”. Para
Maingueneau, “contudo, em numerosos contextos a polissemia de discurso, termo
utilizado com acepções distintas pelas teorias da enunciação e da AD, pode mostrar-se
muito perturbadora” (1997, p.22).
Assim, voltando-nos para os estudos desenvolvidos na França, existe uma
generalização no apontamento de uma perspectiva “francesa” de discurso, “pois entre os
anos 1960 e 1980, na França, havia vários teóricos analisando 'discursos'”
(GREGOLIN, 2004, p.191), entretanto, partindo de campos de estudo diferenciados
2
.
Em meio às discussões sobre o assunto na França, em 1969, foram publicados
dois trabalhos cuja importância foi fecundar a linha de estudo francesa denominada
Análise do Discurso (AD), textos esses dos quais partiremos para especificar o conceito
de “discurso”. Esses trabalhos são: Análise Automática do Discurso (AAD-69), de
Michel Pêcheux, e A Arqueologia do Saber, de Michel Foucault.
Em geral, pensar o “discurso” para a AD é imaginar alguém que ocupa uma
posição social dada, inserido num contexto sócio-histórico determinado, e de tal lugar
diz algo, considerando que aquele ato gera o sentido do que é dito.
1
Nossa preocupação em discutir a noção de “discurso” é de tornar claro no que se refere quando
começarmos a abordar a que questão do cinema no capítulo seguinte.
2
Como, por exemplo, desenvolveu-se a noção de “discurso” a partir da teoria semiótica greimasiana.
No texto AAD-69, Michel Pêcheux afirma que “um discurso é sempre
pronunciado a partir de condições de produção dadas” (1997, p.77). Como exemplo,
pensemos num político que muda de partido, sai de um partido de direita para um de
esquerda
3
. Assim, “o que diz, anuncia, promete ou denuncia não tem o mesmo estatuto
conforme o lugar que ele ocupa” (PÊCHEUX, 1997, p.77). Diante do exposto,
entendemos, inicialmente, que o “discurso” se constitui a partir de algo exterior ao
sistema da língua, que atua na instauração dos sentidos das palavras.
Tomando como ponto de partida o modelo básico de comunicação, onde o
destinador (A) emite uma mensagem para o destinatário (B), o “discurso”, na concepção
de Pêcheux, não expressa, exatamente, uma simples transmissão de mensagem entre os
operadores do processo de comunicação, mas se trata, “de um modo geral, de um 'efeito
de sentido' entre os pontos A e B” (1997, p.82). Quer dizer, entendemos que é
precisamente nesse ato entre locutores que se constitui o sentido do que, de alguma
maneira, é dito.
Para compreendermos essa noção, tomaremos como exemplo o próprio título do
presente tópico: Revisando o roteiro e escolhendo os atores. Nessa concepção,
percebemos que esse título parte de um destinador inserido num lugar social de onde
suas palavras relacionam-se com a área do cinema, de alguma maneira. E o destinatário,
por sua vez, ciente do fio cinematográfico da presente pesquisa, compreende que, nessa
ocasião, o sentido, vindo de outro lugar, instaura-se de maneira particular nas palavras,
pois sua finalidade é explicar o conteúdo a ser desenvolvido no presente tópico sobre
AD. Assim, temos aqui um 'efeito de sentido' entre destinador e destinatário.
Nessa noção, o lugar que o sujeito ocupa no momento em que se diz algo é peça
chave para o entendimento do conceito de “discurso” em questão. Pêcheux afirma que
“(...) esses lugares estão representados nos processos discursivos em que são colocados
em jogo” (1997, p.82). Além de representados, esses lugares instauram sentido no dito,
coagem o que é dito, direcionando sentido ao que se faz entender.
Portanto, “compreender o que é ‘efeito de sentido’ é compreender que o sentido
não está (alocado) em lugar nenhum, mas se produz nas relações” (ORLANDI, 1997,
p.20). E, assim, vemos que, a princípio, o “discurso” é 'efeito de sentido' entre agentes
de um dado ato de comunicação.
3
Em seu trabalho, Pêcheux utiliza a política para aplicar suas propostas teóricas sobre a questão do
discurso.
Na perspectiva arqueológica de Michel Foucault, inicialmente
4
, o conceito de
“discurso” tende a ser visto de maneira mais ampla, pois, para ele, o discurso é um
agrupamento de enunciados fincados num contexto determinado: “é um espaço de
exterioridade que se desenvolve uma rede de lugares distintos” (2005, p.61). Essa rede
de lugares, como fala Foucault, valoriza os elementos extralingüísticos que atuam
diretamente sobre o sistema.
Pela relação estabelecida com elementos extras, Foucault concede ao discurso o
caráter de prática, isto é, se tratam de práticas discursivas exercidas na sociedade. Não
são nem relações internas, nem externas ao discurso, mas sim relações discursivas.
“Elas estão de alguma maneira no limite do discurso” (2005, p.51), determinando o
feixe de relações que interferem no processo, comportando, ao mesmo tempo, o sujeito
e o lugar de onde fala.
É comum percebermos, por sua vez, em textos que trabalham com a AD,
apontamentos do tipo: o discurso religioso, o discurso político, o discurso médico, o
machista, o feminista, entre vários outros
5
, para referir ao que é dito por determinado
grupo social; uma espécie de delimitação de espaço do dizer. Nessa perspectiva, o
“discurso” é pensado como um conjunto de expressões que pertencem a um dado meio
social, convergente a uma forma de regularidade. Nas palavras de Foucault, o discurso é
um “conjunto de enunciados que se apóia em um mesmo sistema de formação” (2005,
p.122).
Voltando ao exemplo dado, o título aqui proposto faz parte, no que pudemos
observar, do discurso cinematográfico, um sistema de formação de onde as palavras
carregam determinados sentidos devido aos seus lugares de emersão, seus pontos
(históricos) de partida. Com efeito, notamos a locomoção de sentido transitando de uma
região para outra, ou seja, quando inserido no discurso da AD.
Além da importância da posição do sujeito para o entendimento do conceito de
“discurso”, devemos, também, evidenciar o papel da história nesse conceito, pois, para
Foucault, o discurso “(...) é essencialmente histórico”, constituído “(...) de
acontecimentos reais e sucessivos, e que não se pode analisá-lo fora do tempo em que se
desenvolveu” (2005, p.224). Trata-se, assim, de considerar que os sujeitos ocupam, ao
4
Dizemos “inicialmente” nesse ponto, pois, aos poucos, Foucault vai inserindo traços ao “discurso” no
decorrer do seu texto. Veremos em nossa discussão.
5
Na verdade, o próprio Foucault utiliza essa forma de expressão para o discurso médico em seus
trabalhos.
proferir seus dizeres, lugares historicamente marcados, contextos sócio-históricos
peculiares à produção de sentido.
Nesse primeiro instante, mesmo tratando-se do quadro teórico da escola francesa
de AD, percebemos que a noção de “discurso” não se apresenta como algo estático e
evidente. Entretanto, é fundamental traçarmos parâmetros para melhor definir o
“discurso” na tentativa de evitar problemas em nossa análise.
Em sua revisão sobre o campo teórico da AD, Dominique Maingueneau sugere
que, “para referir sem equívoco o objeto da AD, preferimos, sempre que parecer útil,
recorrer ao conceito de formação discursiva (FD)” (1997, p.22). Este conceito foi usado
pelos dois autores de base da AD os quais nos referimos até então, entretanto o termo
foi tomado de empréstimo por Pêcheux a Foucault
6
.
Para Foucault, nesse jogo de sentido, a FD é a base para a compreensão do
sentido dos enunciados. Ele explica:
no caso em que se puder descrever, entre um certo número de
enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre
os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas,
se puder definir uma regularidade, diremos, por convenção, que se
trata de uma formação discursiva (FOUCAULT, 2005, p.43).
Nesta perspectiva, a FD é um fator determinante para o entendimento de um
enunciado, marcado numa situação histórica definida. Pode-se dizer que a FD é “(...) o
regime geral a que obedecem seus objetos, (...) o regime geral ao qual obedecem os
diferentes modos de enunciação” (GREGOLIN, 2004, p.90), ou, ainda, uma forma de
regularidade capaz de reger o que está sendo dito num determinado momento.
Para Pêcheux, a formação discursiva é fundamental para se estabelecer o sentido
das palavras, expressões, proposições, etc. Sendo assim, ele define a FD como “aquilo
que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa
conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e
deve ser dito” (1995, p. 160). A FD é o local onde se constitui o sentido das estruturas.
Uma mesma palavra, expressão, proposição, etc., pode assumir sentidos
diversos quando transferida e apresentada em outra FD, ou seja, numa mesma palavra, o
6
Esse empréstimo é discutido no trabalho Formação Discursiva em Pêcheux e Foucault: uma estranha
paternidade, de Roberto L. Baronas, citado posteriormente. Entretanto, no texto A Análise de Discurso:
três épocas (1983), Pêcheux assume o empréstimo feito a Foucault.
sentido estabelecido a ela numa FD pode ser posto em contradição ao sentido
constituído numa outra FD, pois, o objeto simbólico
7
, quando inserido numa outra FD
incorpora outro(s) sentido(s).
Apesar da mesma terminologia, o conceito de FD, em ambos os autores,
apresenta aspectos que se aproximam e se distanciam. Mas é necessário observar que
Pêcheux “(...) exemplifica essa noção a partir de discursos ideologicamente marcados,
privilegiando notadamente a luta política”, enquanto Foucault “(...) exemplifica com o
discurso da história das ciências, verificando as condições que possibilitam a irrupção e
a legitimação de determinados discursos no verdadeiro de uma época” (BARONAS,
2004, p.56).
Frente a ambos os conceitos, em aspectos gerais, formação discursiva define-se
como o que pode e deve ser dito a partir de um lugar determinado inserido numa
conjuntura. Lembramos, então, que a própria palavra “discurso”, quando posicionada
em outras formações discursivas, assume sentidos diferentes. Entretanto, de volta ao
“discurso”, “por este termo é possível entender o que Pêcheux chama de ‘superfície
discursiva’, que corresponde ao conjunto dos enunciados realizados, produzidos a partir
de uma certa posição” (MAINGUENEAU, 1997, p.23). É justamente essa posição
apontada pelo autor que indica o ponto crucial do que vem a ser “discurso” para a AD.
Pensando em paralelo, aproximando as perspectivas dos dois autores, vimos que
o aspecto fundamental na definição do “discurso” é a questão da posição, a qual
envolve o sujeito, o lugar institucional e a história ao mesmo tempo, isto é, tanto na
concepção de Pêcheux, como na de Foucault, a característica básica do “discurso” é o
lugar de onde ele vem.
Para Pêcheux, são os lugares em jogo no processo de comunicação que
funcionam no processo discursivo, “a imagem que eles (destinador e destinatário) se
fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro” (1997, p.82).
Em Foucault, são as posições que os sujeitos ocupam que afirmam o que está
sendo dito. Não se dá importância, especificamente, a quem fala, “mas o que ele diz não
é dito de qualquer lugar. É considerado, necessariamente, no jogo de uma exterioridade”
(2005, p.139).
7
A expressão “objeto simbólico” envolve as diversas materialidades possíveis sobre as quais atuam os
processos discursivos.
As colocações aqui expostas sobre o conceito de “discurso” foram definições
dos trabalhos iniciais da escola francesa AD. Resumindo, não se trata do sentido literal
das palavras em si; “em se tratando de Análise do Discurso, nega-se a imanência do
significado uma vez que interessam os sentidos produzidos em decorrência da inscrição
sócio-ideológica e histórica dos sujeitos envolvidos” (FERNANDES, 2005, p.74).
Portanto, o analista do discurso procura observar os sentidos advindos da exterioridade
a qual a materialidade está sendo aplicada, isto é, pensa nos elementos exteriores como
constituintes de sentido.
Além das definições dadas pelos autores, podemos pensar o conceito de
“discurso” a partir da própria terminologia, compreendendo “discurso” como o curso do
que se diz.
Em seguida, após a definição de “discurso” proposta pelos primeiros trabalhos
da AD francesa, ou seja, após nossa revisão de roteiro e escolha dos atores, ou autores,
veremos alguns pressupostos propostos pela teoria do discurso para buscarmos o
entendimento do mesmo, tais como: interdiscurso, memória discursiva, paráfrase e
polissemia. Aspectos esses, a serem aplicados nas análises do presente trabalho.
1.2 De voltas para o futuro: o discurso e as inter-relações discursivas
A partir de então, vamos adentrar um pouco mais na questão do “discurso”. Para
a AD torna-se preciso averiguar algumas nuanças desta noção, as quais são responsáveis
pela produção de sentido do que está sendo, de alguma maneira, dito. Entre umas e
outras nuanças, especificamente neste tópico, discutiremos como o discurso se inter-
relaciona com outros discursos para produzir sentido.
De modo geral, o que é dito parte sempre de uma base dizível
8
. Todo discurso se
baseia em um discurso que o antecede, o que nos faz pensar numa interdiscursividade.
Veremos essa condição de inter-relação entre discursos a partir do próprio conceito de
interdiscurso tomado por Michel Pêcheux, conceito esse re-trabalhado por outros
autores, fazendo um paralelo com outras maneiras de abordar as inter-relações
discursivas, como propõe Mikhael Bakhtin (1999) através do “dialogismo” e Michel
Foucault (2005) pela “ordem relacional do enunciado”.
8
Consideramos, desde esse ponto, a existência do já-dito, presente nas formações discursivas, como
parâmetro para os discursos a serem proferidos, determinando o que pode e deve ser dito.
Partindo, ainda, dos primeiros trabalhos, Michel Pêcheux (em AAD-69) não
apresenta, nas reflexões iniciais, a terminologia “interdiscurso”, a qual desenvolve
posteriormente. Porém, desde já, mostra-se atento para a existência de uma inter-relação
entre discursos na produção de sentido. Ele explica:
o processo discursivo não tem, de direito, início: o discurso se conjuga
sempre sobre um discurso prévio, ao qual ele atribui o papel de
matéria-prima, e o orador sabe que quando evoca tal acontecimento,
que já foi objeto de discurso, ressuscita no espírito dos ouvintes o
discurso no qual este acontecimento era alegado, com as
“deformações” que a situação presente introduz e da qual pode tirar
partido (PÊCHEUX, 1997a, p.77).
Observamos, então, que os processos discursivos estão sempre relacionados com
outros discursos por excelência. De certa maneira, todo discurso está interligado a algo
que já foi dito anteriormente, trazendo à tona os sentidos passados, juntamente com os
acréscimos advindos da nova elaboração, no ato atualizado do discurso.
Para abordar as formas de relações, Pêcheux elabora o conceito de
“interdiscurso”, definindo-o, precisamente, como “‘todo complexo com dominante’ das
formações discursivas” (1997b, p.162). Nesse aspecto, o interdiscurso é um elemento
precisamente dominante na constituição do sentido, na base das formações discursivas.
Para o autor, o interdiscurso é o responsável pela transparência de sentido constituído
no eixo de uma formação discursiva, apesar da relação parecer encoberta.
O interdiscurso, por sua vez, possui dois tipos de elementos em sua estrutura: o
pré-construído e a articulação. O primeiro elemento “corresponde ao ‘sempre-já-aí’ da
interpelação ideológica que fornece-impõe a ‘realidade’ e seu ‘sentido’ sob a forma da
universalidade (‘o mundo das coisas’)”, enquanto o segundo elemento “constitui o
sujeito em sua relação com o sentido” (PÊCHEUX, 1997b, p.164). Isto é, o primeiro
refere-se ao que já foi dito; o segundo a quem diz.
Para nós, o pré-construído consiste no elemento mais direcionado à nossa
discussão sobre inter-relações. Tentamos compreendê-lo, até então, como a base
ditatorial do que se encontra na possibilidade de sentido do que é dizível
9
.
Em referência ao aspecto de “universalidade” do pré-construído, concordamos
com sua participação nas formações discursivas especificadamente. O pré-construído
não aparece como um “todo complexo” das formações discursivas, ele reside em cada
9
Há uma relação com o conceito de memória discursiva desde aqui. Entretanto, esse será o ponto de
discussão do tópico seguinte.
ordem determinada de formação discursiva. “Só estão disponíveis, para cada FD, os
pré-construídos cujo sentido é evidente para essa FD” (POSSENTI, 2003, p.556). Por
isso acontece a (ilusão de) unicidade do sentido de um objeto simbólico em uma
determinada FD.
Nesse processo relacional, Pêcheux utiliza, ainda, a expressão intradiscurso para
designar “o funcionamento do discurso com relação a si mesmo” (1997b, p.166).
Podemos entender como a elaboração atualizada do dizer no lugar e momento que
estamos dizendo, a formulação imediata da enunciação. O intradiscurso constitui,
precisamente, o “fio do discurso”: algo que se diz agora, relacionado com algo dito
anteriormente e que poderá ser dito posteriormente. É nele que aparecem as
deformações” (como diz Pêcheux) que a situação presente introduz no discurso.
Diríamos, por exemplo, que, em AD, é melhor ter um conceito na mão do que
estar voando em dois. Automaticamente, percebemos que o (intra)discurso aqui
proferido está constituído de dizeres anteriores, movimentando sentidos no jogo
discursivo. O sentido do que está dito antes (é melhor ter um pássaro na mão do que
dois voando) reforça o entendimento do que se diz agora, trazendo sentidos para unir-se
aos novos traços da formulação presente, por fim, deixando disponível nas formações
discursivas para ser utilizado outras vezes.
Em toda instância, observamos que o discurso não é um objeto isolado,
autônomo, que se sustenta pela singularidade. Ele necessita estabelecer relações com
outros discursos para fazer sentido.
Atualizando o conceito de interdiscurso, na concepção de Dominique
Maingueneau, a noção passa a ser subdividida, fragmentada, em três dimensões
complementares: universo, campo e espaço discursivos (1997, p.116). Observaremos,
então, como as três dimensões do conceito de interdiscurso funcionam.
O “universo discursivo”, pensando em universo como algo maior, representa “o
conjunto de formações discursivas de todos os tipos que coexistem, ou melhor,
interagem em uma conjuntura” (MAINGUENEAU, 1997, p.116). Dada essa dimensão,
ela representa toda base do dizível existente numa determinada época. De certo modo,
acreditamos ser semelhante ao “todo complexo com dominante”, de Michel Pêcheux.
Assim, o “universo discursivo”, apesar de ser dificilmente contabilizada, deve ser visto
como uma dimensão finita, onde há um número real de formações discursivas
disponíveis para o analista.
Já o “campo discursivo” representa “o conjunto de formações discursivas que se
encontram em relação de concorrência, em sentido amplo, e se delimitam, pois, por uma
posição enunciativa em uma dada região” (MAINGUENEAU, 1997, p.116). Os campos
estão contidos e divididos dentro do universo discursivo, ocupando regiões sociais do
dizer, tais como: o campo da política, da medicina, o campo artístico, entre tantos
outros. Esses campos atuam relacionados entre si, às vezes de forma convergente, às
vezes divergente, para efetuar a produção discursiva.
E, por fim, o “espaço discursivo”, que é visto como “um subconjunto do campo
discursivo, ligando pelo menos duas formações discursivas que, supõe-se, mantêm
relações privilegiadas, cruciais para a compreensão dos discursos considerados”
(MAINGUENEAU, 1997, p.117). O subconjunto, naturalmente, é determinado de
acordo com o objeto de estudo determinado pelo analista
10
.
A fragmentação proposta por Maingueneau no âmbito da noção de interdiscurso,
para nós representa um modo eficaz de compreendermos o processo inter-relacional do
discurso. As noções de universo, campo e espaço discursivos não se encontram isoladas
umas das outras, estão todas entrelaçadas de alguma maneira particular. “Os caminhos
percorridos por esta circulação não possuem, entretanto, nenhuma estabilidade;
dependendo dos discursos e das conjunturas visadas, estabelecer-se-ão intercâmbios
muito diferentes” (MAINGUENEAU, 1997, p.117).
Vejamos a seguinte ocasião como exemplo: num campo político qualquer, um
candidato diz, numa conversa informal: “para ganhar eleição, não precisa apenas de
uma idéia na cabeça, como, também, precisa de dinheiro na mão”. O discurso proferido
estabelece uma relação com o discurso do movimento cinematográfico denominado de
Cinema Novo brasileiro
11
, criado na década de 1960, cujo ideal coletivo era apresentado
a partir da frase do cineasta Glauber Rocha: uma idéia na cabeça e uma câmera na
mão.
Podemos observar, assim, o cruzamento entre o campo discursivo político e o
cinematográfico, onde duas formações discursivas determinadas se agregam, numa
relação privilegiada, para produzir um discurso compreensível. A unidade resultante
dessa relação representa o espaço discursivo em questão.
10
Na nossa pesquisa, por exemplo, pensamos no subconjunto derivado do campo do cinema e no do
cangaço. Dentro de ambos, constituem-se formações discursivas relacionando-se entre si para construir
nosso discurso.
11
O Cinema Novo foi um dos movimentos de vanguarda mais importantes da história do cinema
brasileiro, o qual teve repercussão internacional.
Neste jogo de sentido, o sujeito busca discursos formulados em outros lugares,
estabelecidos a partir de outras posições, para compor seu dizer. Tal processo de
relações entre campos discursivos no qual a troca de elementos constituídos de sentido
em determinadas regiões torna eficaz o discurso, assim, proferido. Segundo
Maingueneau, “confrontando com um discurso de certo campo, um sujeito encontra
elementos elaborados em outro lugar, os quais, intervindo sub-repticiamente, criam um
efeito de evidência” (1997, p.117). Portanto, concordamos em afirmar que a
interdiscursividade é um processo natural do discurso, extremamente eficaz para a
produção de sentidos no dizer.
Partindo de uma outra perspectiva sobre a inter-relação discursiva no jogo do
sentido, observaremos, em seguida, o conceito de dialogismo apresentado por Mikhael
Bakhtin.
O trabalho de Bakhtin, cuja linguagem é objeto de investigação, em especial, se
inicia no final da década de 1920, na Rússia. Nesse período, o autor já criticava os
estudos imanentes e psicologistas da lingüística
12
, opondo-se a conceitos estabelecidos
no estruturalismo saussuriano e em outras correntes dos estudos da língua.
A principio, a palavra dialogismo deriva, claramente, da idéia de diálogo ou do
fenômeno dialógico, como preferir. O diálogo, nessa vertente, é o princípio constitutivo
dos estudos da linguagem, pois, na concepção de Bahktin, a verdadeira essência da
língua é a interação verbal. Segundo ele, “a interação verbal constitui assim a realidade
fundamental da língua” (1999, p.123).
A interação verbal entre locutores se dá através da noção de enunciação. Ela, a
enunciação, é tanto um ato social quanto um evento histórico. É exatamente na
realização da interação verbal, advinda da enunciação, que a língua assume o papel de
discurso socialmente constituído, agregando-se aos valores que lhe são externos.
Na perspectiva dialógica, a palavra é o lugar em comum onde se localizam o eu
e o outro do discurso. “Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é
determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige
para alguém” (BAKHTIN, 1999, p.113). O dizer se constitui a partir da relação
dialógica estabelecida entre sujeitos no processo de comunicação
13
.
12
Referimo-nos ao livro Marxismo e Filosofia da Linguagem. Em seu trabalho, Bakhtin chama de
Objetivismo Abstrato a corrente imanentista-estruturalista e de Subjetivismo Individual a linha dos
estudos psicológicos.
13
Nesse ponto podemos observar, inicialmente, a aproximação com o conceito de discurso trazido por
Michel Pêcheux: o efeito de sentido.
Por essa razão, Bakhtin se contrapõe à idéia de que a palavra seja de natureza
unipolar, pois, quando proferida, ela sempre se dirige a um outro, mesmo na ausência
de um destinatário real. Nessas circunstâncias, cria-se um receptor imaginário ideal,
como no caso do monólogo
14
. E, assim, concordamos que “(...) o dialogismo passa a
ser, no quadro de suas formulações, uma condição constitutiva do sentido”
(BRANDÃO, 1998, p.51), o qual se insere no âmbito do processo discursivo.
Num diálogo entre interlocutores reais, para Bakhtin, o discurso do destinador é
constituído pelo discurso do destinatário. “De fato, o ouvinte que recebe e compreende a
significação (lingüística) de um discurso adota simultaneamente, para com este
discurso, uma atitude responsiva ativa” (2000, p.290). Ou seja, se faz necessário
pensarmos na condição ativa do destinatário, um sujeito vivo e atuante, ao invés de
pensá-lo como um mero decodificador. Com isso, ao enunciar, o destinador estabelece
um diálogo entre o seu discurso e o discurso do destinatário.
Sobre a noção de diálogo, Bakhtin afirma ser o gesto mais importante da
interação verbal. Entretanto, o autor chama a atenção para tentarmos compreender essa
noção numa perspectiva mais abrangente do que aparenta, ou seja, é preciso assimilar o
diálogo “não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face,
mas toda comunicação verbal de qualquer tipo que seja” (1999, p.123). A partir dessa
visão mais abrangente sobre a noção de diálogo, o conceito de dialogismo adquire
amplitude.
Frente ao processo discursivo, o dialogismo deve ser observado em duas
dimensões: uma tratada com base no diálogo entre locutores, sob a ótica da interação
verbal, voltando-se para o outro da interlocução; e a outra baseada no diálogo entre
discursos, no processo relacional entre os discursos, voltando-se para os “outros
discursos” ou para o “discurso de outrem”. Tendo em vista a discussão sobre
interdiscurso, trabalharemos a segunda dimensão do dialogismo pela aproximação ao
conceito já discutido.
O diálogo entre discursos é um processo, fruto da dinâmica da linguagem
socialmente organizada. A recorrência a discursos antecedentes, discursos outros, para a
composição de discursos recentes é uma prática constante cujo exercício é cotidiano,
ora consciente, ora inconsciente. Pois, segundo Bakhtin,
14
No monólogo, criamos um outro interior, para o qual nos dirigimos a fim de produzirmos algum dizer.
Ele é um fator constituinte do discurso.
o próprio locutor como tal é, em certo grau, um respondente, pois não
é o primeiro locutor, que rompe pela primeira vez o eterno silêncio de
um mundo mudo, e pressupõe não só o sistema da língua que utiliza,
mas também a existência de enunciados anteriores – aos quais seu
próprio enunciado está vinculado por algum tipo de relação
(fundamenta-se neles, polemiza com eles), pura e simplesmente ele já
os supõe conhecidos do ouvinte (2000, p.291).
O processo de inter-relações entre discursos, segundo Bakhtin, se dá não apenas
no plano das significações, como, também, no plano estrutural, tendo em vista as
possibilidades relacionais previstas na própria língua. Para o autor, “não somente o
conteúdo semântico mas também a estrutura da enunciação citada permanecem
relativamente estáveis, de tal forma que a substância do discurso do outro permanece
palpável, como um todo auto-suficiente” (1999, p.145).
Ao plano estrutural, a AD opera com o conceito de intertextualidade, no qual os
textos são retomados em outros textos, interligando-se uns aos outros, removendo
sentidos, implicando, dessa forma, na interdiscursividade. Do contrário, o efeito não é o
mesmo: nem todo interdiscurso implica numa intertextualidade. No caso da perspectiva
dialógica, a citação do discurso de outrem
15
é tanto um processo intertextual quanto
interdiscursivo.
Buscamos, através da citação, sentidos constituídos em outros lugares sociais
para auxiliar nossas próprias formulações discursivas sem que haja problema de
qualquer natureza e, dessa forma, realizamos uma interação entre discursos, alcançando
o que o autor acredita ser a unidade real da língua: o diálogo
16
. O discurso de outrem faz
da língua, não um ato individual quando realizada pelo falante, mas sim o reflexo “das
relações sociais estáveis dos falantes” (BAKHTIN, 1999, p.147). E faz do falante um
sujeito discursivo inserido num ponto social, cujas vozes que lhe cercam ecoam nas
suas palavras.
A apreensão do discurso de outrem resulta num emaranhado discursivo
dinâmico e eficiente, no qual os discursos tecem-se naturalmente proliferando sentidos
diversos. “Esses ‘fios dialógicos vivos’ são os ‘outros discursos’ ou o discurso do outro
que, intertextualmente, colocados como constitutivos do tecido de todo discurso, têm
lugar não ao lado, mas no interior do discurso” (BRANDÃO, 1998, p.53). Nessa
15
Essa expressão encontra-se em destaque por se tratar do título de um dos textos contidos no livro
Marxismo e Filosofia da Linguagem. Usaremos, desde então, sem mais destaques.
16
Considerando a amplitude da noção de diálogo para Bakhtin, principalmente das inter-relações entre
discursos.
perspectiva, o discurso representa um entrecruzamento de vozes vindas de todas as
direções: vozes complementares, vozes contraditórias.
Bakhtin assegura que o diálogo no discurso é um elemento fundamental para sua
vivência. “Na verdade, eles só têm uma existência real, só se formam e vivem através
dessa inter-relação, e não de maneira isolada” (1999, p.148). Sendo assim, observamos
que a inter-relação é o ponto crucial do discurso, pois o discurso necessita do lugar onde
possa buscar sentidos configurados anteriormente na história para deles fazer uso e
gerar novos sentidos.
Em referência ao discurso citado, Bakhtin oferece duas orientações básicas: a
primeira, observada como estilo linear, no qual o discurso de outrem permanece
estático, conservando sua integridade e sua autenticidade; e a segunda como estilo
pictórico, um processo de natureza oposta, no qual o autor busca maneiras sutis de
infiltrar no discurso de outrem, modificando-o a favor do que quer dizer (1999, p.150).
Em todo caso, em se tratando do enunciador inserido no processo discursivo, ele
é, predominantemente, coagido pela posição social que ocupa na produção de um
determinado discurso. Para Maingueneau, “o sujeito que enuncia a partir de um lugar
definido não cita quem deseja, como deseja, em função de seus objetivos conscientes,
do público visado, etc. São as imposições ligadas a este lugar discursivo que regulam a
citação” (MAINGUENEAU, 1997, p.86). Como exemplo, podemos nos remeter, em
especial, à produção acadêmica, científica, para compreender esse processo de coerção
da produção escrita.
Em resumo, observamos que Bakhtin concentra esse emaranhado da
dialogização do discurso, em referência ao ato de citação, na seguinte afirmação: “o
discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo
tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação” (1999,
p.144).
Após o discorrido, podemos observar tanto afinidades como particularidades
entre as noções de interdiscurso e de dialogismo, tais como: a idéia de diálogo, no
sentido abrangente, equivale, em parte, à noção de interdiscursividade como um todo
com dominante
17
.
Olhando mais especificamente para a idéia de discurso e produção de sentido,
percebemos, nas maneiras de lidar com tais processos, a afinidade entre Bakhtin e
17
Entretanto, a noção de interdiscurso é mais específica em relação ao pré-construído como suporte do
intradiscurso e mais trabalhada a partir da fragmentação de Maingueneau.
Pêcheux, nos quais o diálogo direcionado à interação verbal remete, em geral, à noção
de discurso como efeito de sentido entre componentes do processo de comunicação: é
no ato entre sujeitos que o sentido é instaurado. Todavia, Pêcheux dá certa importância
ao lugar dos interlocutores na constituição do discurso. Enfim, enquanto a noção de
interdiscurso conduz à existência de uma base dizível para o discurso em sua inter-
relação com outros discursos, a noção dialógica mostra o conglomerado de vozes que se
cruzam gerando o movimento do sentido.
Ainda a respeito das inter-relações discursivas, faz-se importante observarmos o
trabalho de Michel Foucault no que refere ao conceito de enunciado. Ao abordar a
noção de enunciado
18
em seu método arqueológico, Foucault demonstra a inter-relação
entre os enunciados existentes no corpo social como aspecto fundamental para a
existência do discurso.
Sintetizando a noção de enunciado, Foucault afirma que “o enunciado é uma
função de existência (...)” (2005, p.98). Vista a definição, podemos associar o termo
função à presença de um sujeito que se responsabiliza pelo enunciado e o termo
existência ao lugar institucional marcado com suas possibilidades sócio-históricas.
Foucault assevera: “é que ele não é em si mesmo uma unidade, mas sim uma função que
cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam,
com conteúdos concretos, no tempo e no espaço” (2005, p.98).
Frente à noção de enunciado, segundo Foucault, “é absolutamente geral na
medida em que o sujeito do enunciado é uma função determinada, mas não
forçosamente a mesma de um enunciado a outro” (2005, p.105), trata-se de uma função
lacunar capaz de ser preenchida por qualquer indivíduo. Assim, o autor demarca a
noção como uma função enunciativa, afirmando que, para haver um enunciado, é
preciso ser algo pronunciado por um sujeito, ou seja, uma posição vazia historicamente
marcada.
Vejamos, por exemplo, um artista que decide dar um curso sobre artes. Em sala
de aula, ele assume a posição de professor, e suas palavras vão surtir efeito a partir do
lugar assumido por ele em tal ocasião. Ele passa a ocupar o lugar do sujeito – o sujeito
professor, e suas palavras, emitidas de tal posição, afirmam-se a partir do lugar
institucional em que o indivíduo passou a atuar. Assim, o enunciado, na perspectiva de
Foucault, considera todos esses aspectos.
18
De modo geral, o enunciado é visto por Foucault como unidade mínima do discurso.
Portanto, é necessário pensarmos que o que transforma, precisamente, uma frase,
uma proposição, um ato de fala, num enunciado é exatamente a função enunciativa
exercida pelo sujeito, isto é, “o fato de ele ser exercido por um sujeito em um lugar
institucional, determinado por regras sócio-históricas que definem e possibilitam que ele
seja enunciado” (GREGOLIN, 2004, p.89).
O enunciado, então, só é considerado enquanto tal quando relacionado a outros
enunciados. Na concepção de Foucault, “um enunciado tem sempre margens povoadas
por outros enunciados” (2005, p.110). Assim, ele não é uma forma originada em si
mesmo que sobreviva de maneira individual, singular, ele só existe em relação a outro.
As inter-relações do enunciado não estão resumidas ao nível estrutural, nem
somente a conteúdos afins, esse processo envolve os enunciados que se opõem, que se
afirmam, reafirmam e que se apresentam em materialidades diversas. Formam, assim,
todo um campo associativo onde eles se relacionam entre si, “(...) uma trama complexa”
(FOUCAULT, 2005, p.111). O enunciado é sempre parte constituída de um conjunto de
formulações que, de algum modo, se relacionam.
Especifica, ainda, Foucault, em relação ao enunciado, que “ele se delineia em
um campo enunciativo onde tem lugar e status, que lhe apresenta relações possíveis
com o passado e que lhe abre um futuro eventual” (2005, p.111-112). O enunciado
encontra-se não apenas relacionado, mas apoiado num alicerce de enunciados pré-
existentes para, dele, fazer uso. Tendo, ainda, abertura para a modelagem advinda do
acontecimento novo
19
.
Em suma, o autor especifica que “não há enunciado em geral, enunciado livre,
neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um
conjunto, desempenhando um papel no meio de outros, neles se apoiando e deles se
distinguindo” (FOUCAULT, 2005, p.112). Portanto, o enunciado é de ordem relacional
por excelência, ele não existe por si mesmo, mas sim em relação a.
Diante do exposto, o enunciado em si precisa do contato com outro enunciado
para se fazer como tal, o que mostra sua afinidade com o quadro interdiscursivo e
dialógico do discurso. Essa abordagem ressalta a necessidade da inter-relação discursiva
como processo constitutivo do discurso, afirmando a afinidade entre os conceitos
discutidos. Nesse caso, acreditamos que todo discurso se inter-relaciona com outro para
se constituir enquanto tal.
19
Nesse ponto, observamos a proximidade do processo descrito por Pêcheux no que se refere às noções
de interdiscurso e intradiscurso.
A partir da década de 1980, Michel Pêcheux faz algumas reconsiderações
importantes sobre seu trabalho em relação ao discurso e seu caráter interdiscursivo,
trazendo novas questões às noções outrora desenvolvidas, como a estrutura e o
acontecimento, ao objeto.
Pêcheux explica que a atividade de descrever torna-se necessária para a de
interpretar, mostrando a não necessidade de digladiarem como se fossem mecanismos
de leituras de campos distintos. Assim, o autor propõe uma divisão discursiva entre dois
espaços para o entendimento do objeto da lingüística (o próprio da língua):
o da manipulação de significações estabilizadas, normatizadas por
uma higiene pedagógica do pensamento, e o de transformações do
sentido, escapando a qualquer norma estabelecida a priori, de um
trabalho do sentido sobre o sentido, tomados no relançar indefinido
das interpretações (2002, p.55).
Na perspectiva exposta, o jogo discursivo do sentido sobre sentido cria uma
expectativa de estarmos questionando os sentidos dos objetos simbólicos, não
acreditando, apenas, nos sentidos que nos parecem evidentes, estando atento a outras
possibilidades presentes nas maneiras diversas de dizer as coisas.
Nesse período, Foucault inicia o trabalho de inserção da noção do poder no
discurso. O autor estava sempre preocupado com a questão do saber nas ciências
humanas. Assim, ele percebe que o discurso obedece a uma ordem: “é sempre possível
dizer o verdadeiro no espaço de uma exterioridade selvagem; mas não nos encontramos
no verdadeiro senão obedecendo às regras de uma ‘polícia’ discursiva que devemos
reativar em cada um de nossos discursos” (2004, p.35).
Sobre o interdiscurso, Pêcheux aponta para o fato de que é através da existência
do outro discursivo, na sociedade e na história, e suas possibilidades de interpretação,
que “(...) há essa ligação que as filiações históricas podem se organizar como memórias,
e as relações sociais em redes de significantes” (2002, p.54).
Para Pêcheux, é esse discurso antecedente que pontua “a insistência do outro
como lei do espaço social e da memória histórica, logo como o próprio princípio do real
sócio-histórico” (2002, p.55). Para Foucault, o discurso é produzido a partir de um
princípio de controle, o qual ele chama de disciplina: “ela lhe fixa os limites pelo jogo
de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras” (2004,
p.36). Enfim, não há apenas um discurso anterior que dá suporte de sentido ao discurso
atualizado, existe uma forma de regularidade: leis ou regras.
Assim, aplica-se à noção de interdiscurso o pressuposto de uma memória
discursiva, apreendendo-a como “redes de memórias que dão lugar a filiações
identificadoras” (PÊCHEUX, 2002, p.54).
Veremos, a seguir, a noção de memória para a Análise do Discurso,
estabelecendo essa ligação entre a história e a lingüística como base no movimento do
sentido no discurso, inserida na noção de interdiscurso.
1.3 Contatos imediatos da memória com os processos discursivos
Inicialmente, atentamos para o fato de que trabalhar com a noção de “memória”
é como operar com a noção de “discurso”: ela incita sentidos diferenciados de acordo
com a perspectiva de abordagem. Precisamos, assim, definir seus parâmetros de atuação
para chegarmos ao ponto que, de alguma forma, se aproxima da perspectiva discursiva
aqui adotada.
Para tanto, conduziremos a discussão sobre a noção de memória partindo,
primeiramente, da perspectiva apresentada pelo historiador Jacques Le Goff (1996),
para, em seguida, adentrarmos aos propósitos de Michel Foucault e Michel Pêcheux e
na Análise do Discurso.
A palavra “memória” remete, a princípio, ao conceito advindo da psicologia,
atuando paralelamente as idéias de lembrança, recordação, esquecimento, amnésia,
entre outras, sobre o sujeito individual
20
. Entretanto, o conceito de “memória” é
trabalhado, também, no campo das ciências sociais e humanas, onde o interesse gira em
torno da coletividade, trazendo à tona a noção de memória coletiva. Neste aspecto, não
se trata mais do indivíduo, mas sim de acontecimentos de uma civilização, um povo, um
grupo social em comum.
A memória coletiva é a base para o conhecimento dos acontecimentos ocorridos
(e não ocorridos) de um povo. Segundo Jacques Le Goff, “os esquecimentos e os
silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória
coletiva” (1996, p.426). E, por isso, ela se apresenta como um elemento manipulável.
Desta feita, busca-se fazer da memória coletiva, também, um instrumento de controle
social.
20
Nessa perspectiva, o conceito de memória se distancia da AD, pois a noção de sujeito discursivo não
opera com a idéia de indivíduo.
Existem, portanto, duas maneiras de apreensão e conhecimento da memória de
um povo: 1) através da memória oral, específica dos povos que não operam com formas
de registro; 2) e através da memória escrita, referente aos povos que trabalham com
escrituras e outros meios de registro.
No caso da memória oral, torna-se necessário buscarmos pontos objetivos onde
se instauram essas lembranças. Para Le Goff, “o primeiro domínio onde se cristaliza a
memória coletiva dos povos sem escrita é aquele que dá um fundamento –
aparentemente histórico – à existência das etnias ou das famílias, isto é, dos mitos de
origem” (1996, p.428). Apesar de não ser um ponto estável pelas nuanças da oralidade,
o mito é um ponto importante de preservação da memória de um povo que não possui
estratégias de registro.
Com a inserção da escrita, surge, também, uma nova prática de memorização.
As idéias passam a ser memorizadas de maneira estável, concreta, fixadas em
instrumentos invariáveis. Além do mais, “o aparecimento da escrita está ligado a uma
profunda transformação da memória coletiva” (LE GOFF, 1996, p.431), pois, com a
escrita, criam-se formas hierárquicas de memorização coletiva, como o documento, que
institui o acontecimento, o calendário e a comemoração, que passam a referenciar,
periodicamente, os acontecimentos passados.
Diante da transformação da memória coletiva pela inserção da escrita nos povos
que, até então, não operavam com formas de registro, a partir do século XVIII, “são
criadas instituições especializadas, com o fim de fornecerem especialistas do estudo
desses fundos” (1996, p.464), ou seja, lugares apropriados para o armazenamento da
memória coletiva, tais como: museus, biblioteca, construção de monumento aos mortos,
entre outros.
Gostaríamos, ainda, de acrescentar alguns elementos que operam com a
memória coletiva na ordem do simbólico, tais como bandeiras dos estados, países;
nomenclaturas dadas às cidades, ruas, avenidas, praças; nomes dados a instituições
públicas como hospitais, institutos educacionais, fundações culturais, teatros
21
; obras de
arte como pintura, música, literatura, cinema; meios de comunicação como rádio e tevê.
No decorrer do desenvolvimento social, outras estratégias de memorização
foram surgindo, muitas vezes modificando as técnicas passadas. Le Goff chama a
atenção para a importância da fotografia como algo que revoluciona a memória. Na
21
Ao pensarmos nas nomenclaturas mais usuais nos elementos citados podemos nos certificar do caráter
manipulável da memória coletiva, fator inerente aos grupos mais bem favorecidos da sociedade.
verdade, a foto “multiplica-a (a memória) e democratiza-a, dá-lhe uma precisão e uma
verdade visual nunca antes atingida, permitindo assim guardar a memória do tempo e da
evolução cronológica” (1996, p.466). Lembramos, aqui, o uso da câmera fotográfica
doméstica para o registro de momentos importantes de nossas vidas, como os instantes
com familiares, e os lugares por onde passamos numa viagem turística, acontecimentos
singulares
22
.
Nos últimos tempos, com o desenvolvimento da eletrônica, a partir do século
XIX, criam-se novas tecnologias que modificam a memória coletiva. A memória
eletrônica, comparada às características da memória humana, apresenta-se como mais
precisa e eficaz. Entretanto, Le Goff esclarece que “a memória eletrônica não é senão
um auxiliar, um servidor da memória e do espírito humano” (1996, p.469). O
computador doméstico é um suporte de armazenamento de memória.
Como pudemos observar, a partir dos elementos de memorização citados acima,
que são utilizados para homenagear com grande freqüência autoridades políticas, a
memória coletiva “(...) não é somente uma conquista, é também um instrumento e um
objeto de poder” (LE GOFF, 1996, p.476), o qual perpassa gerações e modelos de
sociedade na mão das autoridades, manipulado em mecanismos diversos que mudam de
acordo com o desenvolvimento das técnicas de memorização. “Nas sociedades
desenvolvidas, os novos arquivos (arquivos orais e audiovisuais) não escaparam à
vigilância dos governantes, mesmo se podem controlar esta memória tão estreitamente
como os novos utensílios de produção desta memória, nomeadamente a do rádio e da
televisão” (LE GOFF, 1996, p.477).
Frente ao exposto, entendemos que a noção de memória coletiva aproxima-se da
idéia de discursividade trazida pela AD, pois como o discurso opera com sentidos
anteriores, historicamente estabelecidos, a memória coletiva é o lugar onde estão
recortados os fatos de uma sociedade e seus sentidos. É na memória que os discursos
encontram sua gênese.
É importante ressaltarmos essa proximidade entre a memória coletiva e o
discurso, estreitando, ainda mais, a relação que o discurso estabelece com os processos
históricos. Para tanto, veremos as noções de a priori histórico e arquivo trabalhadas por
Michel Foucault em seu método arqueológico.
22
Por exemplo, os tradicionais álbuns de família, álbum de aniversário, álbum de formatura, de viagem,
de perfil como no caso dos álbuns virtuais.
Sobre a primeira noção, a priori histórico, Foucault explica que não se trata de
uma base qualquer para realização de discursos, pois um a priori é, sobretudo,
“condições de realidade para enunciados”, isto é, se trata, especificamente, “de uma
história determinada, já que é a das coisas efetivamente ditas” (2005, p.144).
Entendemos, portanto, que essa história determinada é o alicerce para produção dos
discursos “verdadeiros”.
O a priori, “em suma, tem de dar conta do fato de que o discurso não tem apenas
um sentido ou uma verdade, mas uma história, e uma história específica que não o
reconduz às leis de um devir estranho” (FOUCAULT, 2005, p.144). Para Foucault, o
que se diz assume o status de “verdadeiro” ao apoiar-se numa história específica, porém
entrecruzada por discursos munidos de outras histórias.
Em seu aspecto histórico, o a priori constitui-se “como o conjunto das regras
que caracterizam uma prática discursiva” (FOUCAULT, 2005, p.145). Assim, o a priori
histórico trata-se de um tipo de base que regula os processos discursivos.
O conjunto de textos que se encontra numa mesma formação discursiva cria
relações entre si através da forma de positividade de seus discursos, “pois ela
desenvolve um campo em que podem ser estabelecidas identidades formais,
continuidades temáticas de conceitos, jogos polêmicos” (GREGOLIN, 2004, p.91), ou
seja, existem diversas maneiras de relacionamento da produção discursiva e sua base
histórica. Assim, assevera Foucault que “a positividade desempenha o papel do que se
poderia chamar um a priori histórico” (2005, p.144).
Existem sistemas nas práticas discursivas que fundam os enunciados como
acontecimentos e coisas, para Foucault: o primeiro “tendo suas condições e seu domínio
de aparecimento”; o segundo “compreendendo sua possibilidade e o seu campo de
utilização” (2005, p.146). Assim, Foucault propõe chamar de arquivo todos esses
sistemas de enunciados.
Não se trata de entender o arquivo como tudo aquilo que foi dito numa
determinada época, ou tampouco como a soma de toda produção textual de um período
historicamente dado. O arquivo representa, justamente, o que faz com que sejam ditas
tantas coisas numa época, isto é, “(...) todo um jogo de relações que caracterizam
particularmente o nível discursivo” (FOUCAULT, 2005, p.146).
Foucault explica: “o arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema
que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares” (2005,
p.147). Ele é responsável pela definição existente entre as coisas que são ditas,
possibilitando o agrupamento de enunciados sem que se confundam entre si, vistos
como figuras singulares. Sendo assim, o arquivo “é o que diferencia os discursos em sua
existência múltipla e os especifica em sua duração própria” (FOUCAULT, 2005,
p.147).
Frente ao sistema de práticas discursivas, o arquivo é capaz de definir uma gama
regular de enunciados possíveis que, por alguma razão, se diferenciam entre si,
substituindo-se ou modificando-se segundo regras de um tipo de prática. Nas palavras
de Foucault: “é o sistema geral da formação e transformação dos enunciados” (2005,
p.148).
Portanto, podemos compreender, de maneira concisa, a noção de arquivo em
Foucault como “(...) o jogo das regras que, numa cultura, determinam o aparecimento e
o desaparecimento de enunciados, sua existência paradoxal de acontecimentos e de
coisas” (REVEL, 2005, p.18).
Em nossa concepção, acreditamos haver relação entre a noção histórica de
memória coletiva e as noções do a priori histórico e do arquivo, principalmente na
questão de nosso interesse: o discurso. Compreendemos que as respectivas noções
referenciam um alicerce onde se constitui a base de todo dizer social, local de estadia
dos sentidos, acervo para o qual nos dirigimos (de modo consciente ou inconsciente) ao
articularmos nossos discursos e torná-los precisos na ação de comunicar. Entretanto, na
exposição que se seguiu percebemos que as noções de a priori histórico e arquivo são
trabalhadas direcionadas ao entendimento da produção discursiva, vistas como os
elementos regentes do processo discursivo.
Na Análise do Discurso, a noção de memória refere-se aos implícitos existentes
para o dizer e é denominada de memória discursiva. A memória, então, encontra-se
presente no corpo da formação discursiva, na mediação do que pode e deve ser dito.
“De forma geral, a toda formação discursiva é associada uma memória discursiva,
constituída de formulações que repetem, recusam e transformam outras formulações”
(MAINGUENEAU, 1997, p.115). Trata-se de um modelo de memória diferente do
psicológico, porém semelhante ao histórico
23
, do qual o enunciado presume-a enquanto
registrado na história.
Na compreensão do processo interdiscursivo, vimos o que se denomina de pré-
construído, o equivalente, então, ao domínio de memória. Esse campo memorial
23
Semelhante não significa igual ao conceito histórico, e sim mais próximo ao que a AD trabalha.
Veremos, em seguida, mais especificidades sobre a memória discursiva.
antecedente ao discurso, como observamos, encontra-se na base das formulações
discursivas, dando a elas o status de socialmente aceitável, verossímil. Concordamos,
assim, com Maingueneau que “os objetos pelos quais a enunciação se responsabiliza
adquirem uma estabilidade referencial através do domínio de memória” (1997, p.115).
Neste vasto processo de inter-relações discursivas, no qual um discurso presente
recorre a um passado e subsidia um futuro, podemos apontar a funcionalidade da
memória coletiva no âmbito do discurso, pois “a memória, onde cresce a história, que
por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro” (LE
GOFF, 1996, p.477). E, em nossa concepção, termina por servir ao discurso também.
Contudo, do ponto de vista discursivo, essa perspectiva pode ser sutilmente
invertida: o discurso termina por servir à memória, pois “o passado, mesmo que
realmente memorizado, só pode trabalhar mediando as reformulações que permitem
reenquadrá-lo no discurso concreto face ao qual nos encontramos” (ACHARD, 1999,
p.14).
Na perspectiva discursiva, a memória sofre modificações na medida em que
surgem discursos atualizados com a capacidade de reformulá-la. Apesar de ser a
referência de base na qual o processo discursivo se apóia, “(...) a memória suposta pelo
discurso é sempre reconstruída na enunciação” (ACHARD, 1999, p.17). Assim,
compreendemos o discurso como operador da memória, trabalhando através de
dispositivos que passam a reconstruir a memória discursiva e coletiva das civilizações.
A partir dessa perspectiva, reafirmamos a atividade dos meios de comunicação
de massa e das obras de arte no âmbito social como aparelhos discursivos
24
operadores
da memória coletiva. Tendo isso em vista, assevera Le Goff: “a memorização pelo
inventário, pela lista hierarquizada não é unicamente uma atividade nova de organização
do saber, mas um aspecto da organização de um poder” (LE GOFF, p.436), assim como
o discurso
25
.
Em tal aspecto, para Foucault, “(...) em toda sociedade a produção do discurso é
ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número
de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos” (2004, p.09).
Portanto, no discurso, saber e poder fundem-se e tornam-se elementos indissociáveis.
24
Dispositivos discursivos.
25
Nesse ponto, acreditamos haver uma proximidade ao pensamento do Foucault pela observação da
relação estabelecida entre saber e poder na organização de tal processo.
Observamos, até então, que a memória coletiva possui variadas maneiras de se
firmar numa determinada civilização, desde as estratégias da memória oral até as mais
recentes técnicas advindas pela inserção da escrita. Entre a memória e o discurso, há um
processo relacional: a memória é base para o discurso; entretanto, o discurso é um forte
mecanismo capaz de modelar e instaurar a memória.
Sendo assim, segundo Michel Pêcheux, a palavra “memória” possui uma
definição particular para se obter a compreensão dos processos discursivos, distinta de
outras instâncias. Para ele, “memória deve ser entendida aqui não no sentido
diretamente psicologista da ‘memória individual’, mas nos sentidos entrecruzados da
memória mítica, da memória social inscrita em práticas, e da memória construída do
historiador” (1999, p.50). Desta maneira, o autor apresenta o ponto de aproximação da
AD ao conceito de memória coletiva, pois é justo nesse emaranhado existente dentro do
conceito histórico que, para a AD, transitam os sentidos e, até mesmo, os silêncios
26
.
Neste aspecto, pelo conhecimento de uma determinada memória, adquirimos a
legibilidade para a compreensão de um discurso, ressaltando, assim, a relação entre
memória e discurso para a constituição do sentido, dando abertura para o que se
convenciona chamar de memória discursiva.
Do ponto de vista da escola francesa AD, mais especificamente,
a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge
como acontecimento a ler, vem restabelecer os “implícitos” (quer
dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e
relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a
condição do legível em relação ao próprio legível (PÊCHEUX, 1999,
p.52).
A memória discursiva é o local onde se encontra a gênese do processo
discursivo, pois ela nos fornece a capacidade de assimilação e entendimento das coisas
ditas, ou a incompreensão das mesmas, devido ao desconhecimento desta. Ela
representa a legibilidade do dizer.
Por outro lado, a memória relacionada ao discurso não deve ser vista como uma
base imutável e impermeável, apesar de haver uma espécie de força reguladora. Essa
regularidade possibilita as diversas realizações de unidades lingüísticas que, ao mesmo
tempo, sustentam o sentido já existente e incorporam novos traços de sentido à
memória. “Mas para poder atribuir um sentido a essa unidade, é preciso admitir que
26
Veremos a discussão sobre o silêncio e o sentido no tópico seguinte.
suas repetições – essas repetições – estão tomadas por uma regularidade” (ACHARD,
1999, p.14).
Segundo Pêcheux, apesar dessa regularidade que rege os implícitos, tanto a
memória como a regularidade são ajustáveis. A possibilidade de modificação se dá a
partir da aparição de um acontecimento discursivo novo. Ele explica que “essa
regularização discursiva, que tende assim a formar a lei da série do legível, é sempre
suscetível de ruir sob o peso do acontecimento discursivo novo, que vem perturbar a
memória” (1999, p.52). A partir daí, é o acontecimento discursivo novo que rege o jogo
dos implícitos, ele altera a regularização impondo uma nova série sobre a já existente,
acrescentando e subtraindo traços da memória.
Porém, isto não quer dizer que os implícitos anteriores desapareçam, pois “o
acontecimento, no caso, desloca e desregula os implícitos associados ao sistema de
regularização anterior” (PÊCHEUX, 1999, p.52), isto é, o discurso novo pode
remodelar o sistema existente na memória discursiva, reajustando a cadeia de
implícitos, inserindo-se na estrutura pré-estabelecida da memória discursiva.
Desta maneira, Pêcheux explica que existe uma relação de forças na colisão
entre a memória discursiva e o acontecimento discursivo novo. De um lado, a memória
“visa manter uma regularização pré-existente com os implícitos que ela veicula”,
absorvendo o novo acontecimento e diluindo-o em meio ao seu sistema de pré-
existentes; do outro lado, o acontecimento discursivo novo traz consigo a novidade,
dando vez ao “jogo de forças de uma ‘desregulação’ que vem perturbar a rede dos
‘implícitos’”, ao ser inserido na memória discursiva (1999, p.53).
Deste modo, entendemos que o surgimento do acontecimento discursivo, como
conseqüência, implica na reformulação da memória discursiva, pois, concordamos que
existe um processo capaz de reestruturar a rede de implícitos pré-existente pela absorção
do novo acontecimento. Assim, reitera Maingueneau: “quando um discurso novo
emerge, ele faz emergir com ele uma redistribuição destas memórias” (1997, p.125).
Para Pêcheux, não se deve conceder ao que se entende por memória o status de
um elemento pleno, estático, imutável, impermeável, mas sim é preciso compreender
que a memória discursiva “é necessariamente um espaço móvel de divisões, de
disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos e de regularizações... Um
espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discurso” (1999, p.56).
E o discurso é o elemento responsável pela restauração dessa memória, pois
“todo discurso marca a possibilidade de uma desestruturação-reestruturação dessas
redes e trajetos” (PÊCHEUX, 2002, p.56).
Assim, a memória, na concepção da AD, é uma rede de implícitos regida por
uma historicidade, a qual trabalha em equilíbrio com a discursividade, pois, ora a
memória fundamenta o discurso, ora o discurso remodela a memória, ambos trafegando
numa linha de mão dupla onde sempre colidem.
A seguir, após a discussão sobre as noções de inter-relação discursiva e memória
discursiva, veremos o funcionamento do movimento do sentido entre discursos nos
processos metafóricos da AD, partindo das noções de paráfrase e polissemia do
discurso.
1.4 Entre umas e outras formulações e reformulações
Como pudemos observar, os processos discursivos são dinâmicos quando se
referem à produção de significados, eles se movimentam de acordo com o surgimento
dos discursos e suas necessidades de funcionamento, são formulações e reformulações,
construções e reconstruções, e transições de sentidos.
Dentre esses processos, para abordar tais fenômenos de reformulação e
movimento de sentido, a Análise do Discurso, na concepção de Michel Pêcheux, opera
com as noções de paráfrase e polissemia, equivalendo, à primeira noção, a idéia de
“mesmo” do discurso, reformulação do anteriormente dito de outra maneira em outro
lugar; e, à segunda noção, o “diferente” no discurso, ou seja, o que aparece de novo em
relação ao sentido já existente visto a incorporação de outros sentidos. Sendo assim,
vamos observar a noção de paráfrase para a AD.
Voltando-nos aos primeiros trabalhos de Michel Pêcheux sobre a Análise do
Discurso, observamos que, para este autor, os processos metafóricos
27
correspondem ao
deslizamento de sentido dentro do discurso. A noção de paráfrase tem grande
importância no que se refere à gênese do sentido daquilo que é dito, pois, para o autor,
“a produção do sentido é estritamente indissociável da relação de paráfrase entre
seqüências tais que a família parafrástica destas seqüências constitui o que se poderia
chamar a ‘matriz do sentido’” (PÊCHEUX, 1997, p.169).
27
Dentro dos processos metafóricos estão noções como a de metáfora, paráfrase, entre outras.
A matriz do sentido, como diz Pêcheux, remete-nos ao que apresentamos,
anteriormente, e entendemos por Formação Discursiva (lugar de constituição do
sentido), pois toda formulação de discurso deve pertencer a uma FD para que se
estabeleça o sentido adequado ao que se diz. Então, Pêcheux explica que o “efeito de
sentido” se dá a partir dessa relação existente no interior da família parafrástica: entre as
reformulações (paráfrase) e as Formações Discursivas (PÊCHEUX, 1997, p.169),
concedendo à formação discursiva o status de espaço de reformulações que possibilita
esse movimento do discurso.
Desse modo, a AD mantém uma relação firme com a paráfrase desde os
primeiros trabalhos de Pêcheux. A partir da afirmação do autor de que uma palavra,
uma expressão ou uma proposição, não possui sentido literal, e sim adquire sentido
quando inseridas numa formação discursiva, ou, ainda, palavras distintas podem possuir
o mesmo sentido dentro de uma formação discursiva dada, privilegia-se, assim, o papel
da paráfrase na teoria do discurso. “A partir de então, a expressão processo discursivo
passará a designar o sistema de relações de substituição, paráfrases, sinonímias, etc.,
que funcionam entre elementos lingüísticos – ‘significantes’ – em uma formação
discursiva dada” (PÊCHEUX, 1997a, p.161).
Neste caso, a importância do processo parafrástico na AD se dá, precisamente,
pelo fato de que “partia-se do princípio que, em uma formação discursiva, o sentido é
apreendido pelo deslizamento de uma fórmula à outra, no interior de classes de
equivalência” (MAINGUENEAU, 1997, p. 96).
Frente ao sistema de relação de substituição, Pêcheux convenciona chamar esse
processo de esquecimento nº2, ou seja, o “esquecimento pelo qual todo sujeito-falante
seleciona no interior da formação discursiva que o domina, isto é, no sistema de
enunciados, formas e seqüências que nela se encontram em relação de paráfrase”
28
(1997b, p.173). Dessa maneira, podemos dizer que em toda formação discursiva reside
uma gama de possibilidades enunciativas nas quais atua o processo parafrástico.
Em geral, inicialmente, podemos dizer que a paráfrase seria o ato de dizer a
mesma coisa de outra maneira, a reformulação da forma de um discurso já proferido, ou
melhor: “duas frases estão em relação de paráfrase se a soma de suas partes constitui o
28
Pêcheux define dois tipos de esquecimento: o nº1 formulado com base na noção de sistema
inconsciente. “O esquecimento nº1, que dá conta do fato de que o sujeito-falante não pode, por definição,
se encontrar no exteriorda formação discursiva que o domina” (1997b, p.173). O esquecimento nº2 nós
observamos no corpo do texto.
mesmo sentido por identidade ou equivalência lexical” (PÊCHEUX, 1997a, p.275). Por
essa razão a paráfrase ganha a titulação de “mesmo” no processo discursivo.
Nos primeiros trabalhos de Pêcheux, a noção de paráfrase, vista dessa maneira
(matriz do sentido, o “mesmo” do discurso), ocupava um lugar privilegiado no que
consiste o processo discursivo. Tratava-se do mesmo absoluto do discurso. Entretanto,
até então era uma noção pouco desenvolvida nos primeiros trabalhos, que sugere novas
reflexões posteriormente.
Segundo o próprio Pêcheux, trata-se, agora, “de relativizar o lugar da paráfrase,
reconhecendo que um discurso não se limita à produção de significações por
substituição lexical” (1997a, p.275). Partindo de uma perspectiva discursiva,
acreditamos que não existe sinonímia perfeita, na qual um termo substitui outro sem,
pelo menos, modificar traços de sentido. Toda substituição implica na movimentação do
sentido no discurso.
Para refletirmos sobre a referida concepção de paráfrase, vejamos um exemplo
de substituição por sinônimos. Vamos supor que, numa reunião sindical, o condutor da
pauta, ao se dirigir aos demais participantes, utilize, freqüentemente, a palavra
“camarada”. Pensemos que, noutra ocasião, o condutor substitua o termo por
“companheiros”. Apesar de serem sinônimos, segundo o dicionário, acreditamos que
esses termos remetam a traços de sentido distintos, calcados em formações discursivas
diferenciadas: o primeiro pertencente ao discurso do Partido Comunista, o segundo ao
discurso do Partido dos Trabalhadores
29
.
Diante do exposto, concordamos em dizer, novamente, que não existem
sinônimos absolutos no processo discursivo segundo a teoria do discurso, pelo
contrário, há sempre uma variação ou deslocamento do sentido em todo sistema de
substituição.
Sobre a noção de paráfrase, Pêcheux diz, também, que se trata, especialmente,
de estudar “‘o outro no interior do mesmo’: estudar as relações entre estruturas
sintáticas que fazem com que um conteúdo proposicional estável (por construção
discursiva) possa ser investido de sentidos diferentes” (1997a, p.275). Nesse caso, o fato
de estudar o “diferente” no processo discursivo abre a possibilidade de estudo dos
processos polissêmicos do discurso. Portanto, a noção de paráfrase implica diretamente
na noção de polissemia.
29
Lembremos das campanhas políticas do PT no âmbito de todo o Brasil e da utilização da palavra
“companheiros” em seu discurso.
Falar a mesma coisa com outras palavras, ou parafrasear, seria, para alguns, “(...)
colocar-se em uma posição de exterioridade relativa face à seqüência de seu próprio
discurso” (MAINGUENEAU, 1997, p.96); seria retirar o compromisso de proferir as
mesmas palavras já ditas anteriormente; seria assumir uma construção lexical e sintática
diferenciada para dizer a mesma coisa; ou seria, também, não usar os mesmos termos
ditos por um outro para ocasionar uma ilusão de autenticidade.
Entretanto, na perspectiva discursiva, falar de outra maneira, como
conseqüência, resulta na evocação de outros sentidos no que é dito, pois,
a parafrasagem aparece em AD como uma tentativa para controlar em
pontos nevrálgicos a polissemia aberta pela língua e pelo
interdiscurso. Fingindo dizer diferentemente a ‘mesma coisa’ para
restituir uma equivalência preexistente, a paráfrase abre, na realidade,
o bem-estar que pretende absorver, ela define uma rede de desvios
cuja figura desenha a identidade de uma formação discursiva
(MAINGUENEAU, 1997, p.96).
Vejamos outro exemplo desse processo: ao se referir a um CD pirata
30
, os
usuários, por vezes, chamam tal tipo de CD de “genérico”. Percebemos que essa palavra
traz consigo o sentido adquirido numa formação discursiva dada: a farmacêutica. Por
sua vez, a utilização do termo “genérico” apresenta um deslizamento de sentido entre
formações discursivas. O sentido da palavra “genérico”, aplicado freqüentemente para
medicamentos similares e mais em conta para o consumidor, presta, com eficácia, o
sentido à explicação do CD pirata, que também é similar e mais em conta.
Acreditamos, assim, que essa tentativa de dizer a “mesma coisa” de outra
maneira (no caso chamar de CD genérico) implica, diretamente, na reestruturação de
sentidos existentes na expressão original (CD pirata), entendendo, desta forma, que não
há paráfrase discursiva neutra, toda ela, a partir da reformulação, reflete o processo
polissêmico.
A polissemia pode ser entendida, como percebemos pela própria expressão,
como as nuanças dos vários sentidos pré-existentes no interior de um objeto simbólico.
Mais precisamente, refere-se à multiplicidade de sentidos existente e os movimentos
desses sentidos no interior de uma palavra, expressão ou proposição dada, quando
parafraseada em determina circunstância.
30
Como se denomina no popular a categoria de CD falsificado.
Em outras palavras, os conceitos de paráfrase e polissemia podem ser
observados da seguinte maneira: “os processos parafrásticos são aqueles pelos quais em
todo dizer há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória” (ORLANDI,
1999, p.36). Portanto, devemos pensar que a “paráfrase é a matriz do sentido, pois não
há sentido sem repetição, sem sustentação no saber discursivo” (ORLANDI, 1999,
p.38); já no processo polissêmico “o que temos é deslocamento, ruptura de processos de
significação” (ORLANDI, 1999, p.36), ou seja, uma variante de sentido, traços
múltiplos de sentidos contidos num objeto simbólico. Concordamos, então, que a
“polissemia é justamente a simultaneidade de movimentos distintos de sentido no
mesmo objeto simbólico” (ORLANDI, 1999, p.38).
Em paralelo à discussão proferida, Michel Foucault (2004) apresenta a noção de
comentário, a qual envolve em seu interior a existência de um texto primeiro e toda
produção discursiva que deriva a partir de tal texto.
Criado o texto primeiro funda-se a possibilidade de construir e reconstruir novos
discursos a partir do que foi dito neste primeiro momento. “Mas, por outro lado, o
comentário não tem outro papel, sejam quais forem as técnicas empregadas, senão o de
dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto primeiro” (FOUCAULT,
2004, p.25). O comentário expressa, assim, outros sentidos contidos no já dito,
silenciados até então, ao tempo em que se fala algo sobre o que havia sido dito. Assim,
há nesse processo tanto a conservação quando a novidade no discurso.
Segundo Foucault, a repetição, desse modo, representa a necessidade de
sustentação do texto primeiro para a inserção de um novo discurso sobre o que já havia
sido dito, porém não equivale ao que seria o mesmo do discurso. Como explica o autor,
nesse jogo do comentário deve-se “(...) dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já
havia sido dito (o mesmo) e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia
jamais sido dito” (2004, p.25). Ou seja, nessa concepção, o mesmo está para o já dito
assim como a repetição está pra o que há de novo
31
.
De modo geral, comentar, para nós, seria realizar um discurso em referência a
algo já existente (o texto primeiro), sobre o qual passamos a ter um conhecimento após
um contato. Assim, de alguma maneira, discorremos sobre o já dito.
Dessa maneira, Foucault explica que o comentário “permite-lhe dizer algo além
do texto mesmo, mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo
31
Para nós essa noção parece contrária ao usual, porém a idéia repetição em Foucault como elemento do
comentário excita realmente a novidade no discurso.
realizado” (2004, p.25-26). E, a circunstância da repetição pode ser reconhecida como
uma forma mascarada do discurso novo, pois, na realidade, “o novo não está no que é
dito, mas no acontecimento de sua volta” (FOUCAULT, 2004, p.26).
Nesta perspectiva, o comentário demonstra, assim, em sua funcionalidade
discursiva, o “(...) jogo de uma identidade que teria a forma da repetição e do mesmo
em referência ao que se diz de novo sobre um discurso já existente e ao que se sustenta
no discurso já proferido anteriormente (FOUCAULT, 2004, p.29).
Assim, percebemos que a noção de repetição e mesmo aproximam-se dos
conceitos de paráfrase e polissemia, assimilados como o mesmo e o diferente do
discurso. Da parte do mesmo, observa-se a equivalência ao processo parafrástico pela
capacidade de, a cada nova enunciação, estar sempre estabilizado num já dito.
Entretanto, a noção de repetição relaciona-se com a polissemia, pois, elas representam a
multiplicidade dos sentidos atuando sobre os discursos, fazendo referência ao novo do
discurso.
Uma outra abordagem na qual se enquadram os processos parafrásticos e
polissêmicos em seu funcionamento são os estudos sobre a relação entre o discurso e
silêncio na produção e movimentação do(s) sentido(s).
A princípio, o silêncio não representa a simples ausência de som ou ruído. Assim
como existe a produção sonora com a finalidade de gerar sentido, produzir silêncio
também é um ato de produção de sentido. Assim, Orlandi afirma que “não é o nada, não
é o vazio sem história. É silêncio significante” (1997, p.23). Nesta perspectiva,
diferentemente de outras
32
, o silêncio recebe um status positivo. É um silêncio produtor
de sentido que se relaciona com o discurso.
De modo mais específico, para a compreensão do processo de sentidos, o
silêncio pode ser subdividido em dois tipos: o silêncio fundador e a política do silêncio
(o silenciamento). Nesta fragmentação, “a primeira nos indica que todo processo de
significação traz uma relação necessária ao silêncio; a segunda diz que – como o sentido
é sempre produzido em algum lugar, a partir de uma posição do sujeito – ao dizer, ele
estará, necessariamente, não dizendo outros sentidos” (ORLANDI, 1997, p.55). Isto é, o
fundador existe nas palavras, refere-se ao que não está dito; e o silenciamento é a
política do silêncio, ou seja, uma questão de recorte que indica que dizer algo implica,
diretamente, em não dizer outro algo.
32
Por exemplo, na perspectiva musical o silêncio é ausência de som, entretanto elemento fundamental
para a música, pois, esta é um produto da combinação de sons e silêncios.
De tal maneira, o silêncio representa a possibilidade de manifestação de outros
sentidos presentes nos discursos, ele causa uma tensão entre o sentido principal e os
sentidos possíveis de serem atribuídos ao dito. Assim, “o funcionamento do silêncio
atesta o movimento do discurso que se faz na contradição entre o ‘um’ e o ‘múltiplo’, o
mesmo e o diferente, entre paráfrase e polissemia” (ORLANDI, 1997, p.17).
Na perspectiva em questão, trabalha-se freqüentemente com uma “ilusão de
unicidade” de sentido nos dizeres, ou seja, iludimo-nos diariamente que o dito possui
aquele sentido uno, e não outro(s) sentido(s). Isso porque, existe a necessidade de
produzir esse sentido ‘um’ frente à multiplicidade de sentidos possíveis. Caso contrário
dificultaria a comunicação entre sujeitos através da linguagem.
As coisas a dizer estão, de certa maneira, incompletas do ponto de vista da
produção de sentido. Parafrasear algo, ou até repetir, implica na aquisição de novos
traços de sentido ao discurso, abrindo espaço para as lacunas ainda incompletas do
discurso. Desta maneira, “é a incompletude que produz a possibilidade do múltiplo,
base da polissemia. E é o silêncio que preside essa possibilidade” (ORLANDI, 1997,
p.49). Percebemos, então, que o caráter incompleto do discurso se relaciona com o
funcionamento dos processos de paráfrase e polissemia.
Na paráfrase podemos observar o funcionamento do silêncio, pois ao dizer algo
de forma diferenciada, por um lado, se apagam traços de sentido do discurso, por outro
lado, surgem outros traços possíveis, gerando um deslocamento de sentido entre os
dizeres, tornando visível a movimentação dos sentidos existentes.
Portanto, toda palavra carrega consigo o silêncio. Quanto mais se diz, mais o
silêncio se instala no dizer, aumentando a possibilidade de sentidos a serem usados,
pois, no plano do discurso, o sentido se constitui em várias direções. Mesmo que se
tente produzir um sentido único para o dizer, no discurso a multiplicidade está sempre
presente. Temos, assim, aspectos básicos do funcionamento da polissemia: entre o
discurso e o silêncio.
Muitas vezes dizemos o mesmo na tentativa de significar outra coisa e dizemos
coisas diferentes a fim de sustentar o mesmo sentido. Entretanto, um dizer implica
necessariamente no apagamento de outros sentidos, isto é, ao passo que uns sentidos
vão à tona, outros permanecem silenciados. “Desse modo, podemos considerar o
silêncio como parte da incompletude que trabalha os limites das formações discursivas,
produzindo tanto a polissemia (o a-dizer) quanto o já dito” (ORLANDI, 1997, p.93).
Assim, acreditamos nessa relação existente entre o silêncio (discursivo) e as noções de
paráfrase e polissemia no discurso.
Após o silêncio vem o som, ou o sentido nesse caso. E, antes do silêncio existe o
já dito, ou melhor, a memória discursiva atuando como base dizível para as produções
de paráfrase e polissemia no processo discursivo.
Na regularidade da memória discursiva se torna necessário obter o entendimento
de uma forma de repetição do já dito paralelo a um gesto que venha a deslocar essa base
repetível, abrindo espaço para a atuação do processo parafrástico. Assim, construindo
paráfrases a regularização se estrutura na memória. “O que desempenha nessa hipótese
o papel de memória discursiva são as valorizações diferentes atribuídas às paráfrases,
que entretêm então, graças ao processo controlado de derivação, relações reguladas com
o atestado (discursivo)” (ACHARD, 1999, p.16).
Neste aspecto, o “atestado discursivo” representa apenas um ponto verossímil de
partida para se formular o dizer “e a memória não restitui frases escutadas no passado,
mas julgamentos de verossimilhança sobre o que é reconstituído pelas operações de
paráfrase” (ACHARD, 1999, p.16). Percebemos, assim, uma via de mão dupla onde, de
um lado, é a memória servindo à paráfrase e, do outro lado, é a paráfrase reconstruindo
a memória. E, por fim, essa relação biunívoca gera a base do sentido utilizado nas
reformulações e inovações discursivas.
Pensando na relação existente entre memória e paráfrase, Michel Pêcheux
explica o seguinte: “sob o ‘mesmo’ da materialidade da palavra abre-se então o jogo da
metáfora, como outra possibilidade de articulação discursiva... uma espécie de repetição
vertical, em que a própria memória esburaca-se, perfura-se antes de desdobrar-se em
paráfrase” (1999, p.53). Nas devidas circunstâncias, ainda segundo o autor, torna-se
necessário, na AD, questionarmos “os efeitos materiais de montagens de seqüências”
(PÊCHEUX, 1999, p.53), distanciando-nos cada vez mais das (aparentes) evidências e
estabilidades de sentido em tais processos.
Diante do exposto, os processos parafrástico e polissêmico trabalham em
conjunto, pois, é na tensão entre o mesmo (paráfrase) e o diferente (polissemia) que se
constitui o discurso. “Esse jogo entre paráfrase e polissemia atesta o confronto entre o
simbólico e o político” (ORLANDI, 2002, p.38), pressupondo as características de base
do processo discursivo
33
.
33
Processo discursivo na concepção de Pêcheux pela importância dada ao político. Contudo, acreditamos
que essa tensão acentue também o histórico para pensarmos na perspectiva foucaultiana.
Acreditamos, portanto, ser fundamental a compreensão dessas relações estreitas
entre o mesmo e o diferente no discurso para buscarmos entender como tais noções
influem na produção de sentidos diversos durante a efetuação dos processos discursivos.
A cada instante em que produzimos um novo discurso, os sentidos, já constituídos
historicamente, retornam ao dito e, ao mesmo tempo, podem produzir novos sentidos e
novas condições de significação.
Frente ao quadro da escola francesa de Análise do Discurso, observamos a
relação existente entre as respectivas noções teóricas em questão. No processo
discursivo, partindo da sistemática de funcionamento do discurso como tal, percebemos
o entrelace existente na AD entre as noções pré-estabelecidas de interdiscurso, memória
discursiva, paráfrase e polissemia; de certa forma, umas contidas nas outras.
No emaranhado de conceitos da AD apresentado, onde os sentidos são
historicamente marcados e determinados, o funcionamento do interdiscurso (o mesmo)
depende do que é concebido pela memória discursiva para que haja a produção do
intradiscurso (o diferente). A memória discursiva (o mesmo), por sua vez, relaciona-se
com o acontecimento discursivo novo (o diferente) para funcionar com dinamismo. A
paráfrase (o mesmo) está constituída nos processos metafóricos do discurso, onde a
cada reformulação ocorre um deslizamento de sentido entre os discursos em jogo, dando
margem à ação da polissemia (o diferente) em relação à movimentação dos sentidos no
discurso.
Compreendemos, enfim, ser fundamental observar esse trabalho entre o mesmo e
o diferente no processo discursivo para tentarmos compreender o funcionamento do
sentido nos objetos simbólicos, como se constituem e geram significação, partindo na
perspectiva da escola francesa de Análise do Discurso. Assim, verificaremos os pontos
de ação do discurso sobre o corpus proposto no presente trabalho.
1.5 O cinema como materialidade discursiva
Pretendemos, no presente tópico, empreender uma discussão sobre
procedimentos necessários para aplicarmos a teoria da Análise do Discurso sobre o
cinema, focando como os pressupostos estabelecidos pela AD podem ser trabalhos no
filme, esclarecendo determinados pontos a serem utilizados na nossa pesquisa.
Uma das primeiras razões para o empreendimento de tal discussão se dá pelo
fato de que alguns estudos elaborados sobre cinema baseiam-se nas teorias da
Lingüística, seguindo determinadas linhas de pesquisa, tais como a semiologia
34
.
Inicialmente, vejamos que falar de “discurso” dentro do campo do cinema pode
nos conduzir a uma outra forma de abordagem, diferente do que observamos na AD,
pois a própria noção de “discurso” adquire outros sentidos de acordo com o lugar de
aplicação do termo.
No cinema, a idéia de “discurso” desenvolvida e apresentada com freqüência
baseia-se no conceito de discurso traçado por Émile Benveniste, em paralelo à noção de
história, a partir dos quais o autor busca explicar a temporalidade verbal em francês
35
.
Segundo a concepção de Benveniste (1976, p.261), as noções de história e discurso
referenciam sistemas capazes de manifestar dois planos de enunciação diferentes, porém
“distribuem-se em dois sistemas distintos e complementares”. O plano do discurso,
nesta perspectiva, trata de apresentar marcas do narrador no texto, marcas que
proporcionam percebermos que o fato está sendo narrado por alguém. Para Benveniste,
“é preciso entender discurso na sua mais ampla extensão: toda enunciação que suponha
um locutor e um ouvinte e, no primeiro, a intenção de influenciar, de algum modo, o
outro” (1976, p.267).
Por exemplo, ao assistirmos a um filme, podemos presenciar os dois sistemas
durante a sessão: assim que o filme começa, aparecem os créditos com o nome dos
responsáveis pela obra, o que mostra sua situação de enunciação (discurso); no decorrer
do filme, mergulhamos na narrativa, sem nos importarmos com sua situação de
produção (história). Assim, “o filme de ficção clássico é um discurso (pois é o ato de
uma instância narrativa) que se disfarça de história (pois age como se essa instância
narrativa não existisse)” (AUMONT, 1995, p.121).
Noutras palavras, o modelo clássico de cinema tem como característica narrativa
a capacidade de se mostrar enquanto história, antes mesmo de se apresentar como
discurso. Assim, assevera Metz (1983, p.404):
Nos termos de Émile Benveniste, o filme tradicional se quer história,
não discurso. Porém, ele é discurso, se referido às intenções do
34
Mais especificamente, referimos-nos ao trabalho do pesquisador Christian Metz, o qual trabalha com a
idéia de discurso benvenistiana.
35
O conceito de discurso apresentado por Benveniste pode ser observado no texto As relações de tempo
no verbo francês (1976), noção a qual não equivale à noção trazida pela AD, apresentada em nosso
trabalho.
cineasta, às influências que exerce sobre o público, etc., e é próprio
desse discurso, o princípio mesmo de sua eficácia enquanto discurso,
justamente apagar as marcas da enunciação e se disfarçar de história.
A capacidade inata de apagar as marcas da enunciação termina por definir o
cinema como uma enunciação histórica por excelência.
Para adentrarmos numa abordagem cinematográfica sob a ótica da Análise do
Discurso francesa, não será possível compartilhar com a linha da semiologia,
principalmente pela noção de discurso apresentada. A partir de então, a concepção de
discurso discutida nos estudos sobre o cinema não equivale à concepção de discurso
desenvolvido pela escola francesa AD, sobre a qual nos debruçamos na presente
pesquisa. Principalmente pela idéia do discurso referir-se à intenção do falante, em se
tratando da semiologia
36
.
O discurso cinematográfico, pelos estudos semiológicos, se trata dos
posicionamentos da câmera e inserção de elementos no texto fílmico, marcadores que
trazem à tona o papel do cineasta operador da enunciação. Na AD o discurso é efeito de
sentido historicamente constituído, vozes inter-relacionadas. Para nos situarmos na
análise discursiva a ser desenvolvida no presente trabalho, lembremos que as
características do discurso para a AD são as seguintes: lugar, posição e historicidade.
As três atuando na constituição do sentido do dito.
Então, diferentemente do exposto, é a concepção de discurso da AD que
propomos aplicar sobre o texto fílmico. Assim, serão necessárias algumas reflexões, a
seguir, para pensarmos nessa aplicabilidade da teoria do discurso sobre o filme.
A princípio, por questões de terminologia e metodológicas, gostaríamos de fazer
uma distinção básica entre duas expressões – o cinematográfico e o fílmico – para
melhor definirmos nossa proposta de pesquisa na perspectiva da Análise do Discurso.
Apesar de utilizar, na prática, tais expressões sem maiores preocupações com
seus significados, elas se diferenciam entre si: o cinematográfico refere-se aos
“procedimentos técnicos de filmagem”; enquanto o fílmico é “o efeito do que se vê na
tela” (BRITO, 1995, p.183). Em suma, o cinematográfico é o conjunto de atividades e
procedimentos técnicos ocorridos no ato de filmagem, desde a pré-produção do filme; e
o fílmico é o que o espectador absorve diante da tela, na sala de cinema, com seus
efeitos textuais.
36
Essa noção de sujeito se distancia da idéia de sujeito proposta pela AD, o qual é interpelado pelo
discurso, agindo pela ilusão de ser o dono do que diz.
Assistindo a um filme, por exemplo, o espectador consome a narrativa histórica
do espaço fílmico sem se importar com as produções de ordem cinematográfica na
ocasião em que se encontra. Na verdade, “todos esses fatos de natureza prática são
dados pré-fílmicos de nenhum interesse para o espectador e, portanto, de nenhum
interesse para o estudioso da linguagem do cinema” (BRITO, 1995, p.184), embora
possam ser necessários para profissionais do cinema.
Diante do exposto, denominaremos de análise do discurso fílmico, em
contrapartida ao discurso cinematográfico benvenistiano, a perspectiva de investigação
discursiva sobre o cinema clássico, baseada na Análise do Discurso francesa, pois,
cremos que para o analista do discurso, o fílmico é o espaço mais valioso para seu
trabalho, sobre o qual podem ser aplicadas noções da AD. Isto é, o cinematográfico não
se torna o foco da análise
37
. Veremos, adiante, após a(s) idéia(s) de discurso, alguns
outros pontos fundamentais para pensarmos na Análise do Discurso Fílmico.
A atividade analítica proposta para ser aplicada sobre o texto fílmico consiste em
dois procedimentos básicos: primeiramente, “analisar um filme ou um fragmento é,
antes de mais nada, no sentido científico do termo, assim como se analisa, por exemplo,
a composição química da água, decompô-lo em seus elementos constitutivos”
(VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p.15).
Nesta proposta, a busca do analista se dá pelo conhecimento detalhado dos
elementos constitutivos da estrutura narrativa do filme, despedaçando o texto fílmico
para tomar conhecimento dos seus fragmentos. “Parte-se, portanto, do texto fílmico para
‘desconstruí-lo’ e obter um conjunto de elementos distintos do próprio filme”
(VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p.15).
Em seguida, após a fragmentação do filme, o trabalho do analista consiste,
enfim, “em estabelecer elos entre esses elementos isolados, em compreender como eles
se associam e se tornam cúmplices para fazer surgir um todo significante: reconstruir o
filme ou o fragmento” (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p.15).
No segundo momento da proposta de análise, trata-se de retornar ao texto
fílmico e relacionar os elementos já compreendidos na fase de fragmentação ao filme
como um todo.
Em suma, na atividade analítica proposta, “o filme é, portanto, o ponto de
partida e o ponto de chegada” (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p.15). Sobre as duas
37
Não significa afirmar que um elimina o outro, pois poderá haver caso em que o cinematográfico seja
imprescindível à analise discursiva do filme.
fases da análise, compreendemos que a primeira consiste em descrever o texto fílmico,
enquanto a segunda requer o trabalho interpretativo por parte do analista.
Assim, concordamos com estes procedimentos para a análise com base na
perspectiva da AD, entretanto cabe, ainda, acrescentar os fatores históricos produtores
de sentido.
Em geral, para empreender a proposta de análise na perspectiva da AD,
julgamos importante o seguinte procedimento: inicialmente é necessário decompor o
filme para entendermos sob qual materialidade o discurso está atuando. Desta feita,
verifica-se como os elementos do filme estão constituídos de sentido, sua relação com o
extra-fílmico, com o histórico; em seguida, consideramos o filme em sua totalidade
material, ao invés de pensá-lo apenas como imagem ou som, cenas ou planos, para
entendermos como os elementos constituem sentido no todo, pois acreditamos que as
partes estão sujeitas a manifestar sentidos a partir da idéia geral do filme.
Vejamos, por exemplo, a imagem de uma arma, o som de pássaros, ou uma cena
de beijo, um diálogo sobre luta, são elementos constituídos de sentido, mas que
evocarão um determinado significado de acordo, também, com o contexto temático da
narrativa como um todo. Em suma, o objetivo é entender como o texto fílmico produz
sentido.
Prosseguindo sobre a historicidade do filme, observamos, ainda, que um texto
fílmico, assim como outra modalidade textual, produz sentido de acordo com o lugar
onde é exibido, pois o contexto histórico imediato evocará determinados traços de
sentidos ao discurso fílmico. “Um filme é um produto cultural inscrito em um
determinado contexto sócio-histórico” (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p.26).
Por um lado, o discurso do filme transcorre com base no seu contexto histórico
de produção. Mas, por outro lado, ele pode assumir outros fatos históricos capazes de
gerar sentido de acordo com o processo de exibição. É o caso, por exemplo, de filmes
trabalhados em sala de aula. De acordo com a disciplina, o professor, ou a data da
sessão, eles podem suscitar traços de sentidos determinados. Ou, ainda, caso de filmes
exibidos por movimentos políticos e culturais, em que o conteúdo esteja em jogo.
Portanto, acreditamos que há dois níveis de contextualização do texto fílmico e
devemos observar não apenas o contexto sócio-histórico de realização do filme, mas,
também, o contexto sócio-histórico de exibição, o qual pode inferir no que se refere aos
sentidos advindos no filme. Na presente pesquisa, trabalharemos com o primeiro nível
de contextualização
38
.
Assim, são aspectos básicos da noção de discurso na perspectiva da escola
francesa de AD que acreditamos serem aplicáveis ao filme para pensarmos na idéia de
discurso fílmico.
Na AD, como afirmamos anteriormente, o sentido é historicamente constituído.
Portanto, pensemos no papel da história para o cinema para entendermos como o objeto
simbólico pode produzir sentidos diversos.
Devemos saber que “o cinema não é apenas um importante meio de
comunicação, expressão e espetáculo, que teve seu início e sua contínua evolução, mas,
exatamente enquanto tal, mantém relações muito estreitas com a história” (COSTA,
1989, p.29). Neste caso, são relações com a história vista como a disciplina que aborda
os fatos da humanidade.
Na respectiva relação, tomamos conhecimento de três propostas de aproximação
do cinema com a história. Elas são: a história do cinema, a história no cinema e o
cinema na história. A primeira aproximação refere-se à disciplina de história setorial.
“Dela se ocupa a historiografia cinematográfica”; a segunda contempla os filmes
“enquanto fontes de documentação histórica e meios de representação da história”; e a
terceira relação preocupa-se em “como os filmes podem assumir um papel importante
no campo da propaganda política, na difusão da ideologia” (COSTA, 1989, p.29-30).
Contudo, devido à nossa proposta de Análise do Discurso Fílmico, as relações
apresentadas não se fazem necessárias para nossa pesquisa
39
. Por isso, propomos outras
duas dimensões supondo a relação entre o cinema e a história, as quais nos parecem
mais adequadas ao trabalho calcado na AD.
Para a nossa abordagem, consideramos relacionar a História ao texto fílmico,
fragmentando essa relação em duas dimensões históricas: 1) o filme na História
40
; e 2) a
história no filme. De modo geral, a primeira dimensão refere-se ao que lhe é exterior, à
condição sócio-histórica na qual o filme está necessariamente inserido. Já a segunda faz
menção ao que lhe é interior, ao universo fictício construído pelo filme, o universo
diegético, o qual fundamenta a narrativa.
38
Para esse segundo nível, seria necessário elaborar um estudo de caso para poder analisar o contexto
sócio-histórico de exibição do filme, buscando como os sentidos são evocados a partir de tais condições.
39
Salvo a terceira relação que se aproxima de elementos existentes na base da Análise do Discurso
fundamentada por Michel Pêcheux.
40
Utilizaremos, durante o decorrer do texto, letra maiúscula para quando se tratar da disciplina história, a
fim de distinguir do conceito de história no cinema, e não para demarcar teor de veracidade.
Tais dimensões históricas do filme, apesar de as termos divididas, encontram-se
entrecruzadas no texto fílmico, atuando de forma relacional para constituir o discurso
fílmico, causando efeitos de sentido no texto a partir de um mecanismo de combinação.
Lembremos que, apesar de não ser a realidade, o que assistimos constantemente
no cinema parece muito com o nosso universo. Até mesmo quando apresenta as coisas
mais improváveis de se acontecerem na vida real, o filme faz com que nós creiamos no
que nos mostra antes de duvidarmos do que vemos.
O cinema pode ser visto como uma ferramenta narrativa de alto índice de
verossimilhança, talvez pela capacidade de simular, com perfeição, a vida real, através
de imagem e som. O filme nos dá a “impressão de que é a própria vida que vemos na
tela, brigas verdadeira, amores verdadeiros” (BERNARDET, 1980, p.12). Uma
realidade ideal para podermos embarcar e nos deixar levar pela narrativa.
Diante dessa impressão de realidade
41
causada pelo cinema, ao contemplarmos
um filme, acreditamos no que estamos vendo antes mesmo de pensarmos em questionar
sua veracidade. Precisamos entrar nesse universo do filme sem sair totalmente do nosso
universo real, numa proporção equilibrada. Por isso, o texto fílmico é constituído por
pressupostos de nossa realidade, porém utilizados sem restrições, já que no cinema tudo
pode acontecer.
Em geral, o cinema parece ser uma cópia mimética da realidade, pois as imagens
cinematográficas parecem terrivelmente verdadeiras, mas é, antes de tudo,
representação. Mesmo não sendo a realidade, um filme, segundo Marc Ferro (1992)
pode ser visto como uma fonte legítima de pesquisa para a História.
Sabemos que essas imagens e sonoridades do cinema são escolhidas e montadas,
são transformadas e modificadas, são totalmente manipuláveis. Porém, acima de tudo,
um filme é sempre uma testemunha de algo; pensemos, portanto, que “(...) imagem ou
não da realidade, documento ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é história”
(FERRO, 1992, p.86). Portanto, necessariamente, há algo de importante em sua
exterioridade atuando no filme, porque, na perspectiva da AD, sentidos são deslocados
para constituírem outros sentidos, pois o texto fílmico é apenas mais uma forma de
articulação do dizer, a qual está submetida a construir efeitos de sentido a partir de
lugares sociais.
41
Expressão utilizada por Christian Metz num texto intitulado Sobre a Impressão de Realidade do
Cinema (1966). Essa discussão envolve diversos aspectos que levam o cinema a causar esse efeito.
Para a atividade de análise histórica sobre o cinema, se faz necessário pesquisar
não somente o filme, mas também todo o universo que o rodeia, tudo que lhe é exterior,
referindo-se assim a todos os componentes contidos ou não no filme. De modo
abrangente, o pesquisador deve
analisar no filme tanto a narrativa quando o cenário, a escritura, as
relações do filme com aquilo que não é filme: o autor, a produção, o
público, a crítica, o regime político. Só assim se pode chegar à
compreensão não apenas da obra, mas também da realidade que ela
representa (FERRO, 1992, p.87).
A partir dessa forma de análise, percebemos a demarcação do filme na História,
a presença de elementos extras no próprio ato de representação. Interessa perceber
também as relações do filme com aquilo que não é filme, principalmente no que se
refere à produção do efeito de sentido no discurso fílmico.
Relacionado à História, o texto fílmico referencia diretamente seu contexto de
produção imediata, sua situação histórica, independente do estilo narrativo em questão:
tanto documental, quanto fictício. Além dos procedimentos técnicos que marcam os
períodos cinematográficos, a articulação de sentido referencia, também, o contexto
imediato de realização do filme. É a História constituindo sentidos no filme.
Vejamos um exemplo: no filme Guerra dos Mundos, de Steven Spielberg
(2005), em meio à invasão alienígena ao planeta Terra, o personagem principal
consegue roubar um carro (o único que estava funcionando naquela ocasião) e fugir
com seus filhos. Desesperado para saber o que estava acontecendo, o filho mais velho
pergunta ao pai: “São terroristas?”, e o pai responde: “Não. Aquilo veio de outro
lugar!”. Então o filho continua: “Como assim, da Europa?”.
O momento é de humor na sala de cinema. Nesse instante, as palavras do filho
passam a fazer sentido devido ao nosso conhecimento a algo que é exterior àquele
filme: a História dos ataques terrorista aos EUA. Imediatamente, entendemos que a
nossa História também está contida naquela narrativa, o que fornece mais veracidade ao
filme, subsidiando seu discurso, evidenciando esse entrelace entre a História e o
universo que o filme apresenta na produção de sentido.
Para lembrarmos, na AD o discurso trata-se “de um efeito de sentido” entre
sujeitos (PÊCHEUX, 1997, p.82). Não é só o que se diz, mas, também, de onde se diz,
de que posição, quem diz e para quem se diz. São os elementos exteriores ao dizer que
influem no sentido, pois ele não é fixo, pelo contrário, o sentido se constitui nessas
relações.
Nesta perspectiva discursiva, julgamos que a materialidade enunciativa pode se
manifestar nos suportes que expressem a linguagem verbal, não-verbal e imagética, tais
como o livro, a música, o filme. E, assim, temos a noção de enunciado fílmico, o qual
“(...) comporta múltiplas linguagens atuando simultaneamente” (GASPAR, 2004,
p.235).
Sobre a análise dessa noção, entendemos que “um possível enunciado que surge
numa modalidade da imagem fílmica, embora seja aí reconhecido, pode ter vínculos
com enunciados anteriores e posteriores a ele” (GASPAR, 2004, p.237). Podemos
investigar o enunciado fílmico, que inicialmente se vê na grande tela, a partir dos
elementos que não são filme, tais como, por exemplo, uma crítica, matérias
jornalísticas, as condições de exibição.
Lembremos ainda que, a partir da noção de a priori histórico de Foucault, ou
seja, a História vista como condição primária para a produção de enunciados diversos,
tentaremos compreender, não a origem, mas a forma como estão costurados os sentidos
encontrados no texto fílmico.
Até este momento, discutimos a primeira dimensão, seus efeitos, sua relevância
e sua atuação dentro do texto fílmico. Veremos, agora, a segunda dimensão histórica do
filme: a história no filme.
A diegese é o lugar onde tudo é possível: onde as pessoas falam, lutam, voam e
amam sem limites; onde elas nascem, crescem, reproduzem, morrem e ressuscitam;
onde elas param o tempo, vão para o passado e voltam para o futuro. É um universo
fictício onde as coisas podem acontecer sem compromisso com a realidade. Em outras
palavras, a diegese é o universo em projeção; um pseudomundo.
A história narrada por um filme é algo que está contido dentro da diegese deste
mesmo filme. “Sua acepção é, portanto, mais ampla do que a história, que ela acaba
englobando: é também tudo o que a história evoca ou provoca para o espectador”
(AUMONT, 1995, p.114). Resumindo: a história do filme está contida na diegese.
Por exemplo, o filme Cães de Aluguel, do diretor Quentin Tarantino (1992),
narra a história de um assalto. A cena do assalto não aparece em momento algum,
porém temos a impressão de tê-la visto pelas ações anteriores e posteriores apresentadas
pelo filme. Desse modo, há todo um passado contextualizado apresentado pelo universo
fictício o qual a história não mostra, mas supõe a existência e se apóia nele. Por essa
razão, pode ser considerado que a história apóia-se num universo diegético para dele
produzir sentido, ou seja, aquilo que gera a história, contexto que serve de fundo
verossímil para a história narrada pelo filme
42
.
Em seu aspecto discursivo, entendemos que o filme cria sua própria “História
43
(no universo diegético) para fundamentar sua história, assim como na vida real
fundamentamos nosso discurso com nossa História. Em outras palavras, no filme se
constroem discursos “verdadeiros” a partir de uma base histórica. Na vida real falamos
“verdades” baseando-nos na História da humanidade.
Lembremos, por exemplo, os casos dos filmes que trazem super-heróis com
poderes incríveis: normalmente, o impossível é justificado através da construção de um
universo ficcional que permite que tal atitude do personagem seja provável e até
inquestionável.
Outro exemplo: em Cidade de Deus, de Fernando Meirelles (2002), os
comentários eram unânimes após o filme: “essa é mesmo a realidade das favelas do
Rio!”. Realmente, o filme apóia-se num ponto específico para construir seu discurso: a
História da violência das favelas cariocas, produzindo uma representação mimética
daquela realidade.
Todavia, no filme de Meireles, chamamos atenção para o trabalho do universo
diegético na produção de sentido. Lembremos que o filme começa com uma farra na
comunidade Cidade de Deus, na qual apresenta imagens de matança de aves e corte de
legumes, encerrando a cena com uma perseguição à galinha que não queria participar
daquela comemoração (talvez porque ela seria a refeição). Em seguida, a história do
filme se passa em flashback, narrado do ponto de vista do personagem Buscapé.
Próximo ao fim (ou “no começo do fim” como pontua o próprio filme), a narrativa
retoma a cena da farra no morro.
Após presenciarmos a história no filme, as imagens da galinha e dos legumes
(precisamente uma cenoura), quando retomadas, apresentam novos traços de sentido,
pois, nesse instante estamos cientes de que o grupo do traficante Zé Pequeno está
42
Emprega-se, ainda, o termo extradiegético em relação à música no filme que, apesar de representar
muitas vezes os sentimentos dos personagens, não está contida dentro do universo diegético. Entretanto,
quando a música pode ser ouvida pelos personagens ela é diegética.
43
Neste caso, o termo está entre aspas por se referir a uma disciplina histórica existente dentro da ficção.
querendo matar os proprietários da “boca” concorrente, os traficantes Mané Galinha e
Sandro Cenoura.
Não isento da relação com a História, no caso apresentado, percebemos a ação
da história no filme em produzir sentido para as cenas ali apresentadas. A partir dos
elementos narrativos fornecidos pelo universo diegético, os elementos seguintes vão
sendo direcionados a significar de tal maneira, reduzindo a carga semântica da cena a
uma unicidade (ilusória) possível em relação ao sentido dado pelo filme.
Assim, devemos observar, paralelamente, as particularidades do universo
diegético em formular sua própria base histórica para subsidiar seu discurso e o
entrecruzamento com a História da humanidade que é uma base para o discurso fílmico
como um todo. Portanto, acreditamos que há um entrelace das histórias de um filme: a
História e as histórias. O filme constrói seu próprio universo carregado de pressupostos
do nosso universo. Assim, existe um balanço entre as dimensões históricas do filme
para a produção de efeito de sentido.
Ciente de seu poder de persuasão, o cinema é um dispositivo de representação de
grande eficácia. Na perspectiva da AD, devemos averiguar sua relação com a noção de
memória discursiva.
Em geral, acreditamos que o cinema possui a capacidade de fazer disseminar
idéias sobre a sociedade, retratando temas, discutindo perspectivas e sugerindo
caminhos. Portanto, concordamos em afirmar que
as obras de arte têm ressonância em todo o social. Elas são máquinas
de produção de sentido e de significados. Elas funcionam
proliferando o real, ultrapassando sua naturalização. São produtoras
de uma dada sensibilidade e instauradoras de uma dada forma de ver
e dizer a realidade. São máquinas históricas do saber
(ALBUQUERQUE JR., 1999, p.30).
De um outro ponto de vista sobre a relação das obras de arte com a memória,
considera-se que “(...) os objetos culturais abrem a possibilidade de um controle da
memória social; que esse controle está de fato estreitamente ligado ao funcionamento
formal e significante desses objetos” (DAVALLON, 1999, p.27).
Desta feita, entre as demais obras de arte ou objetos culturais, o filme apresenta-
se como um discurso que evoca a memória discursiva, remodelando-a, ao tempo que
traz à tona essa mesma memória em seu conteúdo temático na narrativa.
Pensemos, por exemplo, em nossa memória sobre as guerras mundiais. Ela é
imageticamente cinematográfica, baseada nos filmes que abordam o assunto; nossa
memória sobre os tubarões não é mais a mesma após os filmes que têm no enredo a
presença deste animal aterrorizando as orlas marítimas; resumindo, filmes que
apresentam novos traços de sentido em relação à memória histórica de um povo.
O filme clássico termina fazendo o trabalho do acontecimento discursivo em
relação à memória discursiva: ele é capaz de basear-se na memória para compor sua
narrativa e, com sua narrativa, modificar a memória de um povo; é uma máquina
histórica do saber, uma minuciosa ferramenta discursiva responsável pela construção e
reconstrução da memória discursiva.
Ao longo de sua produção, observamos que na história do cinema, os cineastas
conseguiram realizar inúmeros filmes sobre a mesma temática sem possibilidade
alguma de fazer um filme igual ao outro. Por alto, esse fator de variação reflete
diretamente nos aspectos parafrásticos e polissêmicos do cinema.
A produção de outras versões cinematográficas do mesmo fato oferece ao
espectador a possibilidade de executar uma (re)leitura do fato a partir de outro
posicionamento discursivo, onde se (re)formula o tema, fazendo, ao mesmo tempo, uma
leitura do já mostrado com seus deslocamentos de sentido. Na condição parafrástica e
polissêmica, ao tempo em que se acendem determinados sentidos, se ofuscam outros
sentidos possíveis. Articula-se, desta maneira, um processo discursivo calcado na
posição em que o dizer é efetuado.
Na perspectiva discursiva, mais especificamente sobre a idéia de posição do
sujeito, vemos o seguinte: “pondo o sujeito em um determinado lugar, as condições de
percepção da imagem/som no cinema estariam lhe fornecendo a ilusão de que é ele
quem está determinando um lugar para as coisas” (XAVIER, 2005, p.153). Diremos,
assim, que não apenas a reconstrução de determinados fatos, mas principalmente o
posicionamento no qual se apresenta o mesmo filme influi no movimento de sentido da
narrativa.
No caso das citações intertextuais, das homenagens cinematográficas, menções a
escolas ou filmes, enfim, as inter-relações textuais evocam sentidos contidos na história
do cinema, fazendo o jogo de manutenção do sentido com o pré-construído e o discurso
atualizado. Em geral, os filmes subtraem ou acrescentam elementos em sua narrativa,
fazendo vigorar sentidos outros estabelecidos historicamente.
O texto fílmico, em si, é um produto complexo – multitextual – em relação à sua
própria estrutura. Ele é composto, naturalmente, por diversas outras categorias textuais,
tais como: música, pintura, literatura, fotografia, teatro, entre outros elementos.
Relações tais que explicitam o trabalho da interdiscursividade dentro do texto fílmico.
Tais inter-relações são constitutivas de sentido para o trabalho do cineasta.
Há casos de filmes que representam a História da humanidade, que trazem em
suas narrativas os personagens e os cenários da História de um povo, que reconstituem a
história à sua maneira. Como um todo, o filme “constrói um mundo possível que
mantém relações complexas com o mundo real” (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994,
p.56), caso este visto anteriormente. Entretanto, reafirmamos que em nosso trabalho
observamos os elementos utilizados pelo filme para evocar sentidos constituídos na
História.
Enfim, a cada nova elaboração de uma forma de efetuar cinematograficamente
esse dizer, a multiplicidade de sentidos entra em cena, erguendo traços significativos
historicamente constituídos, produzindo novos sentidos a partir do seu lugar de
elaboração e execução.
Frente ao exposto, acreditamos que o texto fílmico contém deslizamentos de
sentido múltiplos em sua complexidade discursiva. A partir da reconstrução ou
reinvenção de fatos existentes, da utilização ou reutilização de elementos passados, o
filme pode ser analisado na perspectiva discursiva da AD, pela qual podemos
compreender como os objetos simbólicos contidos no texto fílmico produzem sentidos
diversos, e como tais sentidos transitam entre filmes.
1.6 Materialidades não-lingüísticas do filme e o jogo dos sentidos
Como dissemos anteriormente, o texto fílmico é intertextual por natureza,
montado com diversos elementos constituintes de sentido. Entre eles, encontram-se
elementos verbais (diálogos entre personagens, textos lidos, músicas cantadas) e não-
verbais (imagens, pinturas, sonoridades), ou seja, materialidades lingüística e não-
lingüística sobre as quais os processos discursivos também operam com os sentidos.
No início dos estudos discursivos, as considerações tecidas baseiam-se na
percepção do verbal como base material na qual atua o processo do discurso. Entretanto,
o não-verbal vem sendo alvo de observações na perspectiva da AD. Assim, vejamos
algumas considerações sobre a imagem e o som do cinema como materialidade não-
lingüística capaz de evocar sentidos diversos.
De modo geral, cada tipo de materialidade, sobre a qual age o discurso, possui
especificidades para propagar significados. Assim como há sentidos inerentes à palavra,
existem traços de significado que apenas se manifestam na imagem, no som, ou na
relação entre ambos.
Na AD, como os sentidos são historicamente constituídos, os discursos
necessitam de uma materialidade específica para se fazer enquanto tal, uma
materialidade capaz de dar eficácia ao discurso, clareza ao sentido a ser entendido.
Portanto, “a significação é um movimento, um trabalho na história e as diferentes
linguagens com suas diferentes matérias significantes são partes constitutivas dessa
história” (ORLANDI, 1995, p.40).
Sobre a imagem, torna-se necessário considerá-la como signo icônico, com suas
características específicas para a operação de discursos, entretanto inserindo-a numa
dada historicidade. Portanto, “entender a imagem como discurso, por sua vez, é atribuir-
lhe um sentido do ponto de vista social e ideológico, e não proceder à descrição (ou
segmentação) dos seus elementos visuais” (SOUZA, 2001, p.74). Assim, torna-se
preciso observar a imagem inserida num lugar historicamente marcado onde se
instauram seus significados.
Desta feita, a utilização da imagem em textos diversos
44
evoca toda uma história
na qual ela se encontra inserida, trazendo consigo sentidos pré-estabelecidos,
colocando-os no novo discurso. Pensemos, por exemplo, na palavra “caixa”. Quando
escrita com as configurações imagéticas do slogan das agências bancárias da Caixa
Econômica Federal (azuladas e alaranjadas, com o formato das letras personalizadas), a
palavra adquire traços de sentido constituídos historicamente.
Para compreender os processos discursivos transitando na materialidade
imagética é fundamental considerar a atuação do verbal sobre o não-verbal, numa
relação quase indissociável de direcionamento de sentidos. Neste enfoque, observa-se o
trabalho da paráfrase existente sobre os textos visuais. No caso do jornal, por exemplo,
44
Pensamos, mais especificamente, nos textos midiáticos em geral, tais como: jornal, revista, publicidade,
tevê, cinema, os quais relacionam o verbal e o não-verbal em sua estrutura.
o título de uma matéria reduz a capacidade de significar da imagem mostrada,
conduzindo o elemento visual para uma unicidade significativa, ofuscando a
multiplicidade inerente à imagem em si.
Na relação com o verbal, “reduz-se a imagem a um dado complementar, a
acessório (ou cenário), destituindo-lhe o caráter de texto, de linguagem, uma vez que a
imagem, ao ser traduzida através da sua verbalização, se apaga como elemento que pode
se tornar visual” (SOUZA, 2001, p.78). Assim, deve-se considerar o verbal a qualquer
referência à imagem na perspectiva discursiva.
Considerando tal forma de funcionamento, as imagens juntamente aos elementos
lingüísticos, os textos icônicos da mídia são articulados discursivamente para manobrar
os sentidos, pois “as imagens são apagadas por um processo de verbalização, de
paráfrase, porque reproduzem um determinado enfoque” (SOUZA, 2001, p.78).
Observamos isso quando se deseja ocultar qualquer conteúdo negativo contido nas
imagens a compor tal texto.
No texto fílmico, consideramos o verbal atuando sobre as imagens, pensando
como o título ou diálogos do filme conduzem os elementos imagéticos a um
direcionamento de significação, mesmo lidando com as imagens contidas de sentidos
historicamente dados. Portanto, por considerar a imagem como operador discursivo,
concordamos que “(...) a imagem intervem concretamente no estabelecimento de uma
forma de memória societal própria à nossa época e à nossa sociedade” (DAVALLON,
1999, p.32).
Da mesma maneira, devemos considerar os elementos sonoros, não-verbais,
existentes dentro do texto fílmico enquanto materialidade discursiva, tanto a música em
si, como ela agindo sobre a imagem. Por exemplo, a música o guarani, abertura oficial
do programa radiofônico A Voz do Brasil, adquire um sentido naquele momento.
Quando aplicada no filme Ilha das Flores, de Jorge Furtado (1989), o qual mostra uma
comunidade alimentando-se do lixo, ressona significados pré-construídos, trazendo
questões políticas para o filme, através do trecho da música executado com uma guitarra
elétrica de som distorcido.
Diante dos operadores discursivos – imagem e som – do texto fílmico,
salientamos, ainda, tais elementos são articulados no filme para movimentar sentidos
múltiplos na narrativa, trazendo sentidos exteriores ao texto para significar no filme,
através da montagem cinematográfica.
Na concepção cinematográfica de Sergei Eisenstein, a montagem é
simplesmente tudo no cinema, ele assevera que ela “(...) foi estabelecida pelo cinema
soviético como o nervo do cinema” (1990a, p.51).
De modo geral, “a montagem é uma idéia que nasce da colisão de planos
independentes” (1990a, p.52), no qual se justapõe imagens singulares para gerar um
significado fílmico determinado na mente do espectador devido à união das partes do
filme.
Na montagem eisensteiniana, acredita-se que o espectador reage à junção de dois
planos como se fosse um todo, isto é, não se fragmenta a cena para pensar o sentido de
cada plano independente, se observa o conjunto atuando em si. Portanto, em contradição
à exatidão matemática, no construtivismo russo, “o todo é diferente da soma das partes”
(TUDOR, 1985, p.36).
O ato de montar o filme, para Eisenstein, parte do procedimento dialético
45
, no
qual o cineasta justapõe uma imagem X (tese) a uma imagem Y (antítese) a fim de
compor um resultado definido na mente do espectador (síntese). Em outras palavras,
duas determinadas imagens montadas em colisão têm o poder de fabricar uma terceira
imagem situada na mente do espectador, lançando um propósito metafórico que se
encontra além dos elementos explícitos no filme.
Por exemplo, pensemos em três imagens para constituirmos a imagem mental: a
primeira seria a de um político proferindo algumas palavras num auditório; em
seqüência, a segunda seria a de uma máquina de encher lingüiça, enchendo o produto; e,
por fim, a terceira seria o mesmo político falando novamente. Assim, sem precisar
descrever, constituímos uma imagem mental a partir dos elementos dados.
Aproximando a montagem à perspectiva da AD, o espectador, para formar a
imagem em sua mente, busca traços de sentidos historicamente constituídos, evocando
silêncios e multiplicidades significativas existentes na sociedade, inserindo-os à imagem
mental. Qualquer modificação na montagem, a síntese está sujeita a evocar outros traços
de sentido. Portanto, julgamos que a montagem eisensteiniana oferece a possibilidade
de trabalho paralelo aos processos parafrásticos e polissêmicos do discurso, o mesmo e
o diferente no cinema, pois considera os elementos extra-fílmicos atuando diretamente
no filme para construir seus sentidos.
45
Modelo dialético clássico: tese – antítese – síntese.
Ainda para refletir a perspectiva discursiva, o cinema, ao longo de sua história,
constituiu diversas escolas cinematográficas, como, por exemplo: o expressionismo
alemão e o neo-realismo italiano
46
.
Na Alemanha, o movimento expressionista (1907/1926) se opõe ao realismo
explícito do cinema, pois sua intenção era mostrar, através dos filmes, a realidade
interior da vida humana; um cinema feito de delírios e tensões psicológicas de seus
personagens. Para tanto, os cineastas utilizavam elementos deformados em suas
imagens, exacerbavam as formas para criar universos psicológicos perturbados, usavam
sombras e silhuetas nas composições das cenas, enfim, era um cinema de “visões” e
“alucinações” (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p.33).
Na Itália o objetivo era exibir a realidade do país, ou a nova realidade, nas telas.
Um período em que as câmeras saíram dos estúdios de gravação para filmar um país
defasado pelos conflitos políticos. A finalidade era mostrar, pelo cinema, o cotidiano
italiano após a Segunda Guerra Mundial (1947). Eram filmes com conteúdo e forma
calcados na realidade que o país enfrentava naquela ocasião. Os filmes narravam os
problemas sociais daquela época – a fome, o desemprego, a falta de perspectiva de vida,
o descaso – de forma crua e real, assumindo defeitos técnicos do ponto de vista
cinematográfico de propósito.
Assim, o expressionismo e o neo-realismo foram maneiras de realizações
cinematográficas diferenciadas: “ao contrário do olhar desesperado da Alemanha na
Primeira Guerra, que produziu o expressionismo, a Itália preferiu se olhar no espelho do
cinema como quem espera um renascimento” (MERTEN, 1995, p.51).
Do ponto de vista da AD, os movimentos cinematográficos constroem, de tal
maneira, Formações Discursivas que se somam a vozes outras para falar dos problemas
sociais existentes em seus países, dando margem para discursos recentes evocarem
sentidos constituídos nas vanguardas.
A partir de então, nossa preocupação é tentar compreender como o filme evoca
sentidos vários historicamente constituídos, vozes atuantes no texto fílmico trazidas em
seus elementos, perpassando, também, pela lente objetiva da Análise do Discurso
Francesa. Portanto, a materialidade não-lingüística opera com a discursividade, com
suas características, trazendo sentidos constituídos em sua exterioridade, produzindo
significados diversos no interior do texto fílmico.
46
Restringiremos a exemplificar com apenas duas das escolas de cinema pela objetividade de nosso
trabalho.
CAPÍTULO II: ERA UMA VEZ NO NORDESTERN
Os Senhores está vendo aqui o verdadeiro
Governador do Sertão, a quem vocês
deviam obedecer e a respeitar, mas, como
não querem, a culpa não é minha de ter de
esgoelar vocês (...).
(Lampião em Baile Perfumado)
Filmes, enredos, personagem, diretores, períodos e abordagens. Estes pontos
traçam um panorama geral sobre a listagem histórica do gênero cinematográfico de
filmes que apresentam o cangaço como principal temática.
Em princípio, propomos um levantamento histórico do cinema de cangaço,
acentuando os filmes que privilegiam a figura do cangaceiro Lampião em seus enredos,
observando, por vez, a perspectiva de representação do personagem.
Para compreendermos o perfil cinematográfico do Capitão Virgulino Ferreira da
Silva, apresentamos um panorama histórico do percurso de Lampião no cangaço,
trançando os aspectos duais construídos sobre a figura do cangaceiro: herói ou facínora,
mocinho ou vilão.
Em seguida, discorremos sobre os filmes apresentados como nosso objeto de
pesquisa: Lampião, o Rei do Cangaço, de Benjamin Abrahão, e Baile Perfumado, de
Paulo Caldas e Lírio Ferreira. Desta feita, buscamos compreender, ainda, os
mecanismos utilizados para a construção da versão cinematográfica da história do
libanês que filmou rei dos cangaceiros.
2.1 Lampião no cinema: os brutos também brilham
O cinematographo chegou ao Brasil no final do século XIX, mais precisamente
um ano depois da invenção dos irmãos Lumière, em 1896, porém enfrentando suas
dificuldades devido ao próprio estado de desenvolvimento industrial do país. Entre
atropelos, o cinema brasileiro apresenta desde o início de sua trajetória no país uma
história periódica
47
de realizações de filmes, entre as quais surgiram indústrias, estilos,
movimentos e gêneros cinematográficos que traduzem a sociedade brasileira como um
todo.
Essa trajetória do cinema brasileiro ficou marcada por altos e baixos momentos
de produção: grandes bilheterias e salas vazias, mega-produções e falência de
produtoras, grandes histórias e nenhuma verba para realização, câmeras nas mãos sem
idéia na cabeça. O cineasta brasileiro sobrevivia constantemente entre o sonho e a
frustração de realizar um filme
48
.
Durante o percurso da produção cinematográfica nacional, os cineastas, em
busca de uma temática a mais para filmar, direcionaram suas lentes objetivas para os
fatos ocorrentes no próprio país, proferindo, assim, uma espécie de brasilidade ao
cinema local.
E, numa dessas buscas, os cineastas levaram às grandes telas o tema do cangaço,
com seus personagens e fatos mitológicos.
Foi o fenômeno cangaço que permitiu num cinema, tão sem diretrizes
como o brasileiro (até mesmo com o surgimento do chamado cinema
novo), a exploração de uma série de filmes com estrutura estético-
dramática e visão sócio-política especiais (LEAL, 1982, p.89).
A aceitação do público em relação a esse tipo de assunto fez com que o cangaço
se repetisse por várias e várias vezes no cinema nacional, o que acabou rendendo um
grande número de filmes sobre o movimento, entre eles alguns de grande importância
para a filmografia nacional.
Mas, o cangaço não apareceu nas grandes telas como o estilo cinematográfico
que conhecemos, até então. As primeiras imagens de cangaceiro no cinema surgiram em
meados dos anos 1920, especificamente no movimento cinematográfico do Ciclo
Regional do Recife, nos filmes mudos Filho sem Mãe, de Tancredo Seabra (1925), e
Sangue de Irmão, de Jota Soares (1927).
49
Nestes filmes, a figura do cangaceiro
ocupava um papel secundário na narrativa, foram apenas aparições coadjuvantes, mas
que constam como as primeiras inserções do tema na tela de cinema.
47
No Brasil, a produção cinematográfica nunca foi uma constante. Ver Paulo Emílio Sales Gomes (1996).
48
Referenciamos uma trajetória periódica do cinema, desde a década de 1920 até a década de 1990.
49
As datas serão postas ora com base na lista O Cangaço em Filmes contida no livro Cangaço: o
nordestern no cinema brasileiro (conferir nas referências), ora em outras fontes de estudo.
Apenas uma década depois o cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, vulgo
Lampião, passa a ser diretamente referenciado pelo cinema brasileiro. Primeiramente,
em 1930, Guilherme Gáldio realiza um filme chamado Lampião, a Fera do Nordeste,
“(...) uma película de ficção onde o Capitão Virgulino Ferreira encarnava a figura
principal, um assassino louco e cruel” (SILVA, 1970, p.45). O filme apresenta a figura
do cangaceiro sanguinário, cruel e impiedoso nas caatingas do sertão.
Anos depois, o libanês Benjamim Abrahão, com uma câmera de cinema,
registrou imagens do cangaceiro Lampião e seu bando na tentativa de mostrar a cultura
daquela forma de organização social: costumes, práticas conjuntas, atividades grupais,
hierarquia. O filme de Abrahão, Lampião, o Rei do Cangaço, um documentário in loco,
foi finalizado em 1936, sendo, logo em seguida, censurado e apreendido na época do
Estado Novo pela mensagem positiva gerada sobre o movimento do cangaço
50
.
Em 1950, foi realizado, também, outro filme intitulado Lampião, o Rei do
Cangaço, dessa vez dirigido por Fouad Anderaos. Porém, mesmo com algumas
produções cinematográficas sobre o assunto, não havia fecundado, até então, o gênero
cinematográfico dos filmes de cangaceiros. Mas já estava muito próximo de acontecer.
O filme de cangaço surge, definitivamente, em 1953 com O Cangaceiro, de
Lima Barreto. Realizado pela indústria cinematográfica Vera Cruz, nesse momento já
em crise e prestes a ser fechada, o filme de Barreto dá início a uma cinematografia
genuinamente nacional, levando às telas de cinema valores culturais, políticos e sociais
do país. Além de sua temática regional, O Cangaceiro foi o primeiro filme brasileiro a
repercutir em todo o mundo, inicialmente sendo premiado no Festival de Cinema de
Cannes, em 1953, como Melhor Filme de Aventura e recebeu, também, menção especial
pela música
51
.
Mesmo assim, a aparição desse estilo de filme na década de 1950 parecia um
fenômeno tardio:
É verdadeiramente inexplicável o fato do cinema brasileiro chegar à
temática do cangaço apenas em 1953, quando a literatura, através de
autores como Franklin Távora ou José Lins do Rego, já formara um
ciclo: o cangaceiro, personagem indispensável no romanceiro popular
50
Como Lampião, o Rei do Cangaço consiste num dos nossos objetos de estudo, dedicaremos, a seguir,
um tópico sobre o filme de Abrahão.
51
O responsável pela música do filme é Gabriel Migliori.
do Nordeste, passara ao romance nordestino com todo seu complexo
místico e anárquico (ROCHA, 2003, p.91).
Contudo, graças às referências à cinematografia internacional, considerando as
temáticas nacionais como inválidas para serem transformadas em grandes histórias, a
contemplação do tema rural na arte cinematográfica é tardia. Portanto, na metade do
século XX, com os artistas em busca de retratar uma identidade nacional, “a euforia do
país urbano-industrial já permitia que falássemos em cangaceiros” (TOLENTINO,
2001, p.23). Assim, em meados da década de 1950, o cangaço vai ao cinema como
elemento nacional, visto como “o rural” em cena, uma representação da identidade
brasileira desconhecida e negada pelo próprio país, até então.
Durante o período “modernista” do país, década de 1950, o Nordeste brasileiro
era tido como espaço menor, referenciado através de suas problemáticas, identificado
pelos elementos os quais significavam o atraso, o arcaico, a pobreza, tais como: a seca,
o cangaço e o messianismo. Por isso, a resistência ou o retardo do cinema a recorrer à
temática do cangaço.
Em relação à sua estrutura narrativa, o filme de cangaço é
freqüentemente comparado ao modelo de filme de faroeste norte-
americano, conhecido como western. O princípio em comum é a
construção da narrativa a partir da figura do anti-herói com a
caracterização do perfil emblemático do “fora da lei”. O bang-
bang também passou a ser um ponto forte dessa comparação, pelo
uso recorrente das cenas das querelas entre cangaceiros e policiais
na maioria dos faroestes nacionais.
Classificado como herói marginal, o cangaceiro cinematográfico se enquadra no
patamar dos anti-heróis do cinema mundial. “Místico e rústico, justiceiro e criminoso, o
cangaceiro forma ao lado do ‘cowboy’ norte-americano e do samurai japonês a trindade
dos grandes heróis cinematográficos, pelo menos para os brasileiros” (SILVA, 1970,
p.45). Um trio de personagens formados a partir de mitológicos marginais integrantes
das diversas estruturas sociais e consagrados pela arte cinematográfica.
No Brasil, o filme O Cangaceiro narra os conflitos internos e externos gerados
pelo capitão Galdino Ferreira (Milton Ribeiro) que, em suas andanças, percorre o sertão
nordestino furtando e matando pessoas. Num dos ataques, o bando de cangaceiros
seqüestra a professora Olívia (Marisa Prado), a qual fica sobre custódia de um dos
cangaceiros. Teodorico (Alberto Ruschel), o cangaceiro responsável pela professora,
apaixona-se por Olívia e cria um conflito dentro do próprio bando: ele quer sair do
movimento para reconstituir sua vida na sociedade. O que não parece fácil.
Em geral, os personagens do filme de Lima Barreto são todos construídos
tomando como referência a história do cangaceiro Lampião e seu bando. A começar
pelo sobrenome do personagem principal: Ferreira. O perfil do capitão Galdino Ferreira
compara-se ao do capitão Virgulino Ferreira. Alguns dos seus capangas também são
baseados nos lendários capangas de Lampião. Contando, ainda no filme, com
ingredientes como: violência, criminalidade, sarcasmo, covardia, entre outras práticas
típicas dos cangaceiros.
O filme de Barreto teve êxito, sua repercussão transformou-o num grande
sucesso mundial, sendo, assim, um dos filmes brasileiros mais conhecidos da história do
cinema nacional. Foi, também, o primeiro sucesso internacional da cinematografia
brasileira, projetando uma imagem repleta de brasilidade no exterior, traduzindo em
imagens os valores culturais, históricos e sociais do próprio país, dando início à
consolidação da representação imagética do Nordeste no cinema brasileiro.
Com O Cangaceiro, em meio àqueles diretores quase todos estrangeiros, Lima
Barreto “inaugurou um gênero que permanece ainda vivo e fecundo” (GOMES, 1996,
p.77), tendo, assim, deixado marcas duradouras para a cinematografia nacional. Nesta
perspectiva, o filme O Cangaceiro iniciou um ciclo de produção cinematográfica. Na
busca de realizar um filme com temática nacional, Lima Barreto criara o protótipo para
os diversos filmes do gênero, produzidos posteriormente.
Porém, O Cangaceiro comporta alguns problemas de representatividade em
relação à região em cena, pois o filme de Barreto “foi também o primeiro que negou,
mentiu e disfarçou (...) o homem e a cultura do Nordeste” (LEAL, 1982, p.97).
Baseado na saga do cangaceiro Lampião e seu bando, O Cangaceiro foi filmado
no interior do Estado de São Paulo, produzido e realizado por uma equipe de cinema do
Sul do país, fazendo com que, em muitos momentos, a narrativa distancie-se dos valores
sociais, culturais e políticos do povo nordestino. No filme de Barreto, “o cangaço, como
fenômeno de rebeldia místico-anárquica surgido do sistema latifundiário nordestino,
agravado pelas secas, não era situado” (ROCHA, 2003, p.91). Aparenta, portanto, uma
narrativa cinematográfica muito mais preocupada em passar dramaticidade para seus
espectadores, em comover o público, do que ser fidedigno à realidade histórica.
Assim, seus maiores méritos estão na repercussão, na comercialização e na
inauguração do estilo de filme que proliferou décadas depois. “Batendo recordes de
bilheteria, apontaria, oito anos depois, um caminho certo para a criação de um gênero
no cinema brasileiro” (ROCHA, 2003, p.96). Em suma, O Cangaceiro representa um
dos períodos de sucesso do cinema do Brasil.
Diante do sucesso do filme de Barreto, a partir de então, os filmes que abordam
a temática do cangaço e apresentam as características do gênero fílmico foram
denominados de diferentes maneiras: uns chamam de filme-de-cangaço, outros preferem
o Western Caboclo, ou, ainda, de Nordestern
52
.
A partir de O Cangaceiro foram realizados diversos filmes-de-cangaço, variando
entre comédia, aventura, romance, documentários, etc., uma vasta produção da
cinematografia brasileira. Em sua maioria baseados na história de Lampião e seu bando,
os filmes trazem o cangaceiro como personagem de sua narrativa, o que fez com que a
saga de Virgulino Ferreira da Silva pelo cinema se repetisse variadas vezes na
filmografia nacional. A seguir, listaremos alguns filmes do gênero que fazem referência
ao Rei do Cangaço em suas histórias.
Na década de 1960 iniciou-se uma vasta produção de Nordestern, não apenas
influenciada pelo filme de Barreto, como, também, pela aceitação do público ao gênero
e pelos ideais artísticos existentes na época, em que os artistas tinham a necessidade de
retratar a nacionalidade nas obras de arte em busca de expressar uma identidade
tipicamente brasileira.
Assim, em 1962, foram rodados os filmes Lampião, o Rei do Cangaço, de
Carlos Coimbra e Três Cabras de Lampião, de Aurélio Teixeira. Coimbra e Teixeira
foram os mais expressivos diretores de filme-de-cangaço do cinema brasileiro. Eles
realizaram, em 1960, A Morte Comanda o Cangaço (C. Coimbra) e, em 1965, Entre o
Amor e o Cangaço (A. Teixeira). Na época, a principal finalidade dos dois diretores
com o Nordestern era atingir o público e o mercado cinematográfico brasileiro em si,
pois eles “(...) voltaram suas vistas para um tipo de fita comercial, até super-produções,
52
A primeira é utilizada por Wills Leal em seu trabalho O Nordeste no Cinema. As outras duas são de
Salvyano Cavalcanti de Paiva, citadas por Glauber Rocha em Revisão Critica do Cinema Brasileiro.
(...) numa tentativa desesperada de ganhar o mercado interno em prejuízo de uma
angulação artístico-histórica mais correta e vigorosa” (SILVA, 1970, p.45).
A primeira comédia feita sobre a temática do cangaço, especificamente com
Lampião, se chama O Lamparina, de Glauco Mirko Laurelli, realizada em 1963. O
título em si é uma paródia ao mais destemido homem das caatingas do Nordeste.
Um ano depois, em 1964, Glauber Rocha finaliza Deus e o Diabo na Terra do
Sol, uma obra de tamanha importância para a filmografia nacional. Com seu estilo
cinematográfico, “Glauber Rocha procurou rodar uma espécie de neo-cangaço, ou novo
cangaço, onde não figurassem apenas suas relações episódicas, mas, sobretudo, os
conflitos e os dramas sociais” (SILVA, 1970, p.46). Com Deus e o Diabo Glauber lança
uma das primeiras produções do Cinema Novo, fazendo uma verdadeira referência
poética ao espírito do cangaceiro Lampião, contido no personagem de Corisco,
interpretado por Othon Bastos
53
.
Um dos mais significativos trabalhos da época sobre Lampião foi o filme
Memória do Cangaço, de Paulo Gil Soares, realizado em 1965. Um documentário no
qual consta uma série de documentos históricos do movimento, entre eles as imagens
cinematográficas originais de Lampião realizadas pelo mascate Benjamim Abrahão.
Na segunda metade da década de 1960, ainda encontra-se um elevado número de
filmes sobre o cangaço, tomando a estatística em relação à produção cinematográfica
nacional. De modo específico, sobre Lampião temos ainda: em 1967, Cangaceiros de
Lampião, também de Carlos Coimbra
54
; em 1968, Maria Bonita, Rainha do Cangaço,
de Miguel Borges; e em 1969, Meu Nome é Lampião, de Mozael Silveira.
Nesse período, o filme-de-cangaço representou um momento econômico de
saldo positivo no mercado cinematográfico brasileiro, de bilheterias e audiência
consideráveis, uma temporada marcante para a produção nacional, pois além dos filmes
apresentados, existe um número mais significativo de filmes do gênero. Podemos
afirmar, portanto, esta como a década de maior produção do Nordestern.
Em geral, as décadas seguintes não se mostram tão expressivas em relação à
década de 1960 no que se refere à produção de filmes-de-cangaço, porém, o gênero
perpassa existente até os dias atuais. Continuaremos, então, a centrar nosso foco nos
53
Glauber Rocha ainda realizou o filme O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, em 1969. Há
aparição de cangaceiro, mas não apresentando, especificamente, o personagem Lampião.
54
O diretor Carlos Coimbra realizou, ainda no gênero, o filme Corisco, o Diabo Loiro, em 1969.
filmes que trazem a figura de Lampião em suas narrativas, entretanto discorrendo sobre
outros trabalhos com a temática do cangaço para termos noção da produção geral.
Na década de 1970, o trabalho do diretor Maurice Capoville, intitulado O Último
Dia de Lampião, foi realizado como Telefilme, em 1975, e transmitido pela Rede Globo
de televisão. O filme narra, através de depoimentos e reconstituição de cenas, a história
das últimas 24 horas de vida do cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva.
Ainda nessa década, foram realizados diversos outros filmes irreverentes com a
temática do movimento social do cangaço, tais como: O Último Cangaceiro, de Carlos
Mergulhão, em 1971; Jesuíno Brilhante, o Cangaceiro, de William Cobbett, em 1972;
dois filmes do diretor Hermano Penna: No Raso da Catarina, em 1975, e A Mulher no
Cangaço, em 1976; constam, até mesmo, dois filmes pornôs, dirigidos por Roberto
Mauro: As Cangaceiras Eróticas, em 1974, e A Ilha das Cangaceiras Virgens, em
1976; e, este como filme de aventura, Os Cangaceiros do Vale da Morte, de Apollo
Monteiro, realizado em 1978.
Na década de 1980, a produção já não se mostra tão significativa em relação às
duas últimas décadas. As realizações cinematográficas do Nordestern caminham em
ordem decrescente na escala quantitativa, mas crescente em seu valor qualitativo.
Precisamente em 1983, o grupo humorístico da tevê brasileira, Os Trapalhões,
grupo de grande importância para a história do cinema nacional, realiza um filme
abordando – parodiando - a temática do cangaço, no qual está presente o personagem de
Lampião, como coadjuvante da história. A obra é uma comédia ao estilo do grupo e se
chama O Cangaceiro Trapalhão, dirigido por Daniel Filho.
Entre outros trabalhos da referida década estão os filmes O Cangaceiro do
Diabo, dirigido por Tião Valadares, em 1980, e A Musa do Cangaço, dirigido por José
Umberto, no mesmo ano do filme dos Trapalhões.
Há, ainda na década de 1980, a referência à realização de dois programas feitos
para tevê sobre o cangaceiro Lampião. Eles são: Lampião e Maria Bonita, uma
minissérie de Aguinaldo Silva, realizada em 1984 e dirigida por Paulo Afonso Grisolli;
e A Última Semana de Lampião, de Ilma Fontes, realizado pela TV Educativa de
Sergipe, no ano de 1985.
Nos anos de 1990, a produção de filme-de-cangaço ainda perdura na história da
filmografia brasileira, e o Governador do Sertão
55
continua presente nas grandes telas
de cinema do país.
Em 1996, temos duas obras cinematográficas que recorrem à temática do
cangaço, trazendo a figura do cangaceiro Lampião em suas narrativas: Baile Perfumado,
de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, e Corisco & Dadá, de Rosemberg Cariry
56
. Após
décadas, os cineastas fazem uso do gênero cinematográfico fundado desde os anos
1950, entretanto, subvertendo as usuais estruturas narrativas do Nordertern, assim como
Glauber Rocha.
Um ano depois, o cineasta Aníbal Massaini finaliza uma realização ousada: a
refilmagem de O Cangaceiro, de Lima Barreto. Sobre esse trabalho, digamos que o
cineasta “(...) não realizou exatamente uma cópia, pois suprimiu e acrescentou
personagens e seqüências, mas não atualizou o gênero cangaço no cinema brasileiro”
(FREIRE, 2005, p.74). Tudo isso não o exclui da qualidade de uma obra coerente,
considerável do ponto de vista cinematográfico e bem vista pelos espectadores do
cinema brasileiro.
Em suma, temos um quadro geral, talvez impreciso, da filmografia do
cangaceiro Lampião, contando com diversos filmes que, de certo modo, envolve
Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião, em seu contexto.
No cinema brasileiro, a expressiva produção de filme-de-cangaço demonstra a
recorrência a elementos da história do movimento do cangaço, utilizando-os para
construir as narrativas sobre o movimento, recorrendo, na maioria das vezes, às figuras
do cangaceiro, do latifundiário, do vaqueiro, do beato e do policial, às querelas, aos
cenários da caatinga do sertão nordestino e às cidades do interior da região, espaço onde
ocorreram os fatos da história do movimento.
Reafirmando, as narrativas cinematográficas criadas sobre o cangaço tomam
como base, sempre que possível, a história do cangaceiro Lampião e seu bando. Dessa
maneira, a cada construção, ou reconstrução, da imagem do cangaceiro nasce um novo
Rei do Cangaço discursivo, dotado de traços de sentidos diversos, acentuando aspectos
referentes ao Capitão Virgulino. O jogo entre o mesmo e o diferente na realização das
55
Um dos vários apelidos de Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião.
56
Em 1993, Rosemberg Cariry realizou o filme A Saga do Guerreiro Alumioso, no qual consta a presença
da temática do cangaço em sua narrativa, mas não precisamente a figura de Lampião.
narrativas expressa o trabalho do discurso atuando sobre o assunto e as diversas formas
cinematográficas de representar o capitão Virgulino Ferreira da Silva.
De modo geral, acreditamos que Lampião talvez tenha sido o personagem da
história do Brasil mais vezes retratado pelo cinema nacional. Sua presença (simbólica)
nos filmes brasileiros rendeu um alto número de obras e percorreu as telas de cinema de
todo o mundo, tornando-o um mitológico mega star das ficções.
O cangaceiro cinematográfico, em geral, possui algumas características as quais
desvinculam sua imagem do seu significado social “real”. Em outras palavras, a imagem
de Lampião é comumente reconstruída pelo cinema. Em vida é o bandido selvagem e
ordinário; em obra é o mitológico herói do povo (ou vice-versa: em vida herói; em obra
bandido). Mas não há restrições para seu papel no cinema, pois o cangaceiro sempre foi
representado como herói, mesmo sendo bom ou mau. Existe, portanto, dois tipos de
cangaceiro cinematográfico: o cangaceiro-cangaceiro e o cangaceiro-bom.
O cangaceiro-cangaceiro caracteriza-se por ser violento, malvado,
perverso, sem moral, não contando com nenhum horizonte amoroso.
Já o outro tipo, o cangaceiro-bom, possui um heroísmo expresso sob
as mais diversas formas: traindo os companheiros (colegas de bando
que, naturalmente, são maus, etc.), tornando-se guerreiro em defesa
de cidades desamparadas, lutando, às vezes sozinho, contra tudo e
contra todos
(LEAL, 1982, p.92).
Analisando a estrutura narrativa do Nordestern, percebe-se que as primeiras
obras possuem um tronco actancial comum em seus roteiros. “Esses filmes todos têm
seu esquema dramático centrado no personagem do herói, e esse nunca é o cangaceiro
do filme”
57
(BERNARDET, 2005, p.33). A finalidade do cangaceiro-bom, o herói,
nesses filmes é largar o grupo de cangaceiros, mostrando que estava naquela vida numa
passagem, esperando uma oportunidade para sair daquela marginalidade e voltar para a
vida de cidadão comum.
Já o líder do bando é sempre um cangaceiro-cangaceiro, malvado, impiedoso,
sanguinário, violento. Nos filmes, este personagem “é apresentado e entendido como
convencionalmente cangaceiro, personagem criado a partir de um mito já estabelecido e
aceito e conhecido, que não se discute” (BERNARDET, 2005, p.34). Frente ao “herói”
57
A análise referida, realizada por Lucila R. Bernardet e Francisco Ramalho Jr., é centrada no filme O
Cangaceiro, de Lima Barreto, e outros filmes do gênero realizados na década de 1960.
que busca sair do bando e salvar a mocinha, o personagem do líder completa o esquema
actancial dramático do Nordestern.
Entretanto, essa estrutura da narrativa cinematográfica do filme-de-cangaço,
centrada no heroísmo de um lado, e no banditismo de outro, termina por distanciar-se
do sentido histórico do cangaceiro em si, principalmente pelo compromisso narrativo do
cinema com seu público. Enfim,
(...) esse cinema é a negação do cangaceiro como tal: enfoca-o
justamente como um excepcional; o cangaço aparece como uma
espécie de mal-entendido entre pessoas e instituições, um engano
passageiro, característica acessória de uma pessoa, fenômeno que
ocorreu como poderia não ter ocorrido (BERNARDET, 2005, p.48).
O cangaceiro fílmico possui suas especificidades como personagem em diálogo
com as narrativas históricas da trajetória do cangaço no Nordeste brasileiro. São
cangaceiros cinematográficos que processam reconstruções desse personagem, a partir
da história desse fenômeno social, gerando uma ação de movimentos de sentido.
As projeções cinematográficas do cangaceiro transformam o personagem num
verdadeiro “bandido de honra”. Em geral, o que importa nas narrativas cinematográficas
sobre o cangaceiro é que “ele não se fixe, não tenha pouso certo e sua vida seja uma
andança; ele vai de aventura em aventura” (BERNARDET, 1978, p.46), uma espécie de
anti-herói que perpassa pelas ensolaradas terras do sertão nordestino em busca de luta e
emoção.
O cangaceiro cinematográfico é o anti-herói clássico construído pelas nuanças
do discurso fílmico. “Interessante é que o cangaceiro (bom ou mau) é sempre um herói
astucioso, com um fundo altruístico” (LEAL, 1982, p.95). Pensando, principalmente,
nos casos em que o cangaceiro é um dos personagens principais da narrativa
cinematográfica em questão.
De modo geral, o Nordestern buscou expressões desse personagem, o
cangaceiro, preocupado com as melhores resoluções cinematográficas, transformando
os ícones da violência do Nordeste brasileiro em protagonistas e figurantes de cinema.
Por um lado, ao representar a realidade social, política e econômica do movimento do
cangaço, o cinema brasileiro soube criar um gênero de filme de aventura.
Por seu turno, podemos encontrar algumas produções de filmes documentários
que buscaram refletir a conjuntura na qual havia cangaceiros inseridos, com
preocupações históricas em jogo. Encontram-se, ainda, entre os filmes-de-cangaço,
narrativas cinematográficas que, mesmo inseridas no gênero, fogem da estrutura
convencional, buscando outras possibilidades de contar a saga do cangaceiro Lampião e
seu bando, reestruturando as narrativas do gênero de alguma maneira.
A partir dessas narrativas cinematográficas montadas sobre a figura do
cangaceiro, temos uma outra imagem edificada sobre Lampião. São filmes que
contribuem para a reconstrução da memória histórica gerada sobre o Capitão Virgulino
Ferreira da Silva, mostrando outras possibilidades de dizer Lampião.
Diante do expressivo número de representações cinematográficas de Lampião,
pelos caminhos do cinema nacional, Virgulino Ferreira da Silva atravessou caminhos
discursivos paradoxais: ora facínora, ora mocinho. São versões fílmicas que variam com
freqüência na representação do tema. Frente ao exposto, veremos, em seguida, como
tais narrativas cinematográficas foram influenciadas pela sua trajetória de vida como o
mais importante cangaceiro da história do movimento.
2.2 Virgulino Ferreira da Silva: no tempo das divergências
Em 1938, traídos por um aparente protetor que se dizia de confiança, Lampião,
Maria Bonita e outros nove cangaceiros integrantes do seu bando foram atacados de
surpresa pela volante do Tenente João Bezerra da Silva, na fazenda conhecida como
Angicos, localizada em Sergipe. Aquela consta como a última querela travada com os
“macacos” da polícia pelo Capitão Virgulino Ferreira da Silva. Naquele dia, ao serem
assassinados, os onze cangaceiros foram degolados, e suas cabeças foram mostradas
pela volante, em praça pública, como verdadeiras medalhas de honra ao mérito, pois há
muito tempo Lampião era perseguido.
Em meio à violência, chegou-se ao fim da soberania do Rei do Cangaço em sua
saga. Sobraram apenas as cabeças e inúmeras histórias sobre a trajetória do Capitão
Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião. Um percurso marcado por mortes em
vários momentos, coincidentemente, tanto no fim como no começo de sua carreira de
cangaceiro.
O cangaço foi um movimento social surgido no sertão do Nordeste brasileiro no
final do século XIX, fruto da estrutura social, política e econômica existente na região.
Em tese, a forma de desenvolvimento do povo sertanejo e as crises econômicas
causadas pelos períodos de seca foram fatores contribuintes para o aparecimento de
movimentos sociais marginais
58
na região. Outro fator determinante para o surgimento
de tal fenômeno no Nordeste foi o regime agrário latifundiário vivido naquela
conjuntura, a oligarquia dos coronéis.
Por um lado, as propriedades privadas, centradas nas mãos da minoria,
denotavam o poder aos grandes proprietários de terra. Por outro lado, os trabalhadores
eram esmagados por essa conjuntura, sujeitos a todo tipo de exploração em relação à
negociação da força de trabalho. Diante deste modelo hierárquico de organização social,
“era mais do que natural, era legítimo, que esses homens sem terra, sem bens, sem
direitos, sem garantias, buscassem uma ‘saída’ nos grupos de cangaceiros, (...)
sonhando a conquista de uma vida melhor” (FACÓ, 1980, p.13). Isto é, buscava-se,
dessa maneira, uma condição de vida diferenciada daquela vivenciada há anos, que
parecia não ter tanta alternativa de sobrevivência.
A desigualdade social no campo trouxe divergências para o povoado sertanejo.
O abuso de poder, de uma forma geral, dos latifundiários sobre os camponeses era um
dos maiores agravante para as pessoas do campo seguirem a vida como cangaceiros. A
princípio, “as causas determinantes do cangaço, dentro desses condicionamentos, são
duas: o coronelismo e, principalmente, as injustiças (o crime impune e a perseguição
irreversível)” (MARCIEL, 1979, p.97). Assim, os sertanejos encontravam no cangaço,
de certa maneira, uma forma de poder paralelo, um tanto selvagem, para atuarem “de
igual para igual” contra as autoridades da região.
Em outra perspectiva, o cangaço era considerado como um meio de vida para os
trabalhadores da região. Devido às periódicas estiagens ocorridas freqüentemente no
sertão nordestino, a estrutura de produção e manutenção do povo sertanejo ficava
abalada, fazendo com que a camada pobre da população tomasse algumas providências,
tais como: migrar para outras regiões, participar do movimento do cangaço, aderir a
movimentos de seitas religiosas, tudo isso na tentativa de encontrar melhores condições
para sobreviver naquela situação.
58
Referimo-nos não apenas aos cangaceiros, como também aos movimentos religiosos, fanáticos, como
apresenta Rui Facó (1980).
Em geral, os bandos de cangaceiros eram compostos por pessoas pobres do
interior do Nordeste, as quais nem possuíam propriedade privada, nem condições de
sobreviver de outra maneira. “Na verdade, com a seca de 1919, o cangaço atingiu seu
ponto máximo” (CHANDLER, 1980, p.27). Assim, nos períodos de calamidade, essas
pessoas buscavam ganhar a vida no cangaço.
Durante o período de seca o fluxo de integrantes dos bandos de cangaceiros
aumentava consideravelmente. “O cangaceirismo prolifera no Nordeste, sobretudo nas
épocas das grandes secas. (...) A maioria deles (dos bandos) desaparece uma vez
passada a calamidade climática” (FACÓ, 1980, p.59). Enfim, era, também, uma questão
de sobrevivência.
Além de fatores econômicos, vale salientar que a maneira como as instituições
atuavam contribuía, também, para a formação de tais formas de manifestações no
sertão. Naquela ordem social, o sertanejo não via apoio por parte do Estado, muito
menos por parte do patrão. Estes, por sua vez, inseridos num sistema corrupto de
alianças pela manutenção do poder na região, pouco se importavam com os
trabalhadores rurais. Portanto, “não foram só as condições econômicas que causaram o
aparecimento do banditismo neste período. A fragilidade das instituições responsáveis
pela lei, ordem e justiça também contribuiu grandemente” (CHANDLER, 1980, p.25).
Em tais condições, o pobre era obrigado a viver numa guerra constante pela
sobrevivência, suportando o descaso e o abuso de ambas as partes na luta pela
sustentação no sertão. “Parece, portanto, certo que o aparecimento do cangaço esteja
intimamente ligado a esse estado de desorganização social” (CHANDLER, 1980, p.26).
Diante da desordem institucional existente na região, consideram-se os
cangaceiros como uma forma selvagem de subverter essa dominância. “Não são ainda a
revolução social, mas são o seu prólogo. São os elementos regeneradores daquela
sociedade estagnada, em processo de putrefação” (FACÓ, 1980, p.37). Isto é, uma visão
sobre o movimento na perspectiva revolucionária naquela estrutura social.
Outro fator que levava os sertanejos a aderirem ao movimento era a vontade de
vingar. Devido à violência existente na época, muitos homens entravam no cangaço
para vingar, por exemplo, a morte de um familiar assassinado pelos latifundiários e
autoridades que usavam o poder para realizarem tais atos. Visto o cangaço como uma
das únicas formas de poder paralelo ao latifúndio, o movimento era uma alternativa para
realizar essa vingança.
Entretanto, os vingadores nem sempre continuavam seguindo tal objetivo após
enquadrar-se no bando de cangaceiros e começar a lucrar naquela vida. Algumas vezes,
“o cangaceiro alardeava a condição de vingador e pouco ou nada fazia para concretizar
sua vingança” (MELLO, 2004, p.126). Vingar era uma situação existente, porém
extremamente questionável, principalmente observando a trajetória de grandes líderes
do cangaço.
59
Alguns casos de adesão ao cangaço aconteciam por questões pessoais, de caráter
emotivo, de forma que os sertanejos viravam cangaceiros para vingar a dor provocada
por crimes contra o patrimônio, parentes ou aquilo que consideravam como honra
masculina e, em decorrência do descaso dos poderes públicos, tomavam a justiça em
suas mãos.
Ainda, outro motivo dos sertanejos virarem cangaceiros era a necessidade de
fuga motivada por crimes cometidos, muitas vezes por vinganças pessoais. Eles aderiam
ao cangaço para não serem presos ou assassinados pelas atrocidades cometidas, isto é,
era uma espécie de estratégia de defesa.
Os refugiados, muitas vezes, ao entrarem no movimento, motivados pela falta de
alternativa de sobrevivência, em especial nos períodos de escassez provocada pelas
secas temporárias, ocupavam-se com cargos medianos dentro da divisão de trabalho nos
bandos, pois eles não tinham uma finalidade como cangaceiro vingador ou
sobrevivente.
Em suma, acredita-se que o movimento do cangaço deriva de alguns fatores
comuns à estrutura da região no final do século XIX, como a política latifundiária, a
necessidade de trabalho, a opção como meio de sobrevivência, a forma de organização
social, a vontade de vingança e a violenta conjuntura da época. Frente ao exposto,
existem três modalidades de cangaceiros: “cangaço-meio de vida”; “cangaço de
vingança”; e o “cangaço-refúgio” (MELLO, 2004, p.140).
60
Tudo isso contribuía para a
formação desse perfil constitutivo de bandos de cangaceiros.
59
Como veremos, posteriormente, a vontade de vingar contribuiu para a inserção de Virgulino Ferreira da
Silva no banditismo, porém a lucratividade no cangaço não permitia sua saída daquela vida.
60
Segundo Frederico Pernambucano de Mello, as modalidades podem estar contidas num único
cangaceiro, porém uma delas sempre se sobrepõe. Assim, Lampião estaria enquadrado na primeira.
Em definição, “um bando de cangaceiros era um agrupamento de homens
armados que faziam do roubo, da vingança, da extorsão e de outros delitos, seu meio de
vida” (FERREIRA & AMAURY, 1997, p.11). As ações do movimento, em resumo,
encontram-se contidas numa única palavra: violência.
Todavia, é preciso argumentar que não apenas os cangaceiros eram violentos
naquela época. A conjuntura, como um todo, era assim. Os coronéis mandavam matar
pequenos proprietários para se apropriarem das terras, o Estado cobrava imposto do
povo através da agressividade, os policiais reprimiam em nome da república e o
cangaço, pelas circunstâncias, agia da mesma maneira.
Os bandos de cangaceiros possuíam toda uma estrutura hierárquica para seu
melhor funcionamento, divididos politicamente por cargos entre os integrantes. Os
grupos possuíam liderança, escalão de escolta, responsáveis pela alimentação, pela
guarda, pela montaria, contatos, e assim por diante.
A quantidade de integrantes por bando era variável, podendo apresentar de
quatro a noventa integrantes por grupo. Quando se tratava de ataque às cidades,
formavam-se alianças entre bandos de cangaceiros para o fortalecimento das tropas.
Mas, em algumas ocasiões, havia conflitos pela demarcação da posse. “Dezenas de
bandos atuavam no cangaço, alguns ligados entre si, outros adversários que se
exterminavam mutuamente” (FACÓ, 1980, p.171).
Os cangaceiros ficaram consagrados, também, pela sua personalizada maneira de
se vestir. Eles usavam trajes adequados para suas ações cotidianas, roupas de couro que
os protegiam da vegetação espinhosa existente na região na qual atuavam, usavam
chapéu meia-lua, lenços, alpercatas, jóias, e carregavam acessórios necessários para as
suas ações cotidianas, tais como: armas, cartucheiras, punhal, cantil, perfumes,
reservatório para comida.
O cangaço ficou conhecido no país e no mundo devido aos notáveis líderes que
passaram pelo movimento, homens que aterrorizavam o sertão nordestino com seus
temidos atos de violência. Entre eles, tivemos Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e
dois antecessores também de grande importância para o movimento: Antonio Silvino e
Sinhô Pereira.
Pernambucano, nascido na Serra da Colômbia, Manoel Batista de Moraes era o
filho caçula de uma família pobre. Devido às circunstâncias, após a morte de seu pai,
Manoel, jurando vingança, em 1896, entrou para o bando de cangaceiros liderado pelo
seu primo Silvino Aires, recebendo o codinome de Antonio Silvino.
Pouco tempo no cangaço, Antonio Silvino saiu do grupo do primo para
constituir o seu próprio bando de cangaceiros. Assim, atuou como líder de bando em
quase toda sua carreira no cangaço, conduzindo assaltos e outros delitos pelo sertão
nordestino
61
. Entretanto, a jornada de Silvino estendera-se até o ano de 1914, quando o
cangaceiro foi apreendido no estado de Pernambuco, passando grande parte de sua vida
na Casa de Detenção de Recife.
Durante o período em que esteve preso, Antonio Silvino ouvia falar, inúmeras
vezes, de um líder de cangaceiros que se transformou em notícia na imprensa. Através
das informações obtidas, Silvino “(...) reconhece espontaneamente a superioridade de
seu ilustre sucessor nas caatingas sertanejas” (ALMEIDA, 1998, p.122). O líder em
questão era o Capitão Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião.
Antonio Silvino cumpriu sua pena na casa de detenção e foi libertado no início
do ano de 1937. De volta à vida social, Silvino voltou a ser Manoel Batista de Moraes,
pois não retornou à vida no cangaço, e passou seus últimos sete anos vivendo outras
aventuras. Enfim, ele “morreu em Campina Grande, Paraíba, no ano de 1944, aos 69
anos” (FERREIRA & AMAURY, 1997, p.24).
Após a repercussão de Antonio Silvino, um outro líder de grande importância
para a história do cangaço e, principalmente, para a inserção de Lampião no movimento
foi Sebastião Pereira da Silva, vulgo Sinhô Pereira.
Nascido no ano de 1896, também no estado de Pernambuco, Sebastião veio ao
mundo fazendo parte, direta ou indiretamente, de uma luta existente entre as famílias
Pereira e Carvalho. Tratava-se de uma rixa política familiar, resultando num número
considerável de mortos e feridos. Uma situação que perdurou por muitos anos,
estendendo-se até aproximadamente 1907.
Dentro de determinado contexto familiar, Sebastião Pereira da Silva não buscou
outra saída que não fosse o cangaço para dar continuidade à luta contra a família
Carvalho. Após a morte de parentes e a continuidade da batalha, por imposição da
própria família, “ficou decidido que Sinhô Pereira comandaria o grupo vingador,
61
Assim como Lampião, Antonio Silvino entra no cangaço como vingador, porém logo se enquadra na
modalidade de cangaço-meio de vida, segundo Mello (2004).
cabendo a seus irmãos as funções de suporte, como fornecimento de homens, armas e
munições para os combates, além da administração das fazendas” (FERREIRA &
AMAURY, 1997, p.25). Assim, Sebastião Pereira da Silva entrou para o cangaço,
juntamente com seu primo Luiz Pereira Jacobina, vulgo Luiz Padre, no ano de 1916, aos
20 anos de idade
62
, ficando popularmente conhecido como Sinhô Pereira, seu apelido de
família.
Sinhô Pereira liderou bandos de cangaceiros, realizando assaltos, vinganças,
assassinatos, furtos, delitos, tornando-se um indivíduo temido pela população das
redondezas pernambucanas. Sua liderança repercutiu em grande parte da região
Nordeste, pois “recebendo o ‘diploma’ de cangaceiro, pôs-se Sinhô Pereira em campo,
enfrentando as polícias de cinco estados” (ALMEIDA, 1998, p.88).
Porém, sua carreira como chefe de cangaceiro também não se estendeu por
muito tempo. A mando do Padre Cícero Romão, da cidade de Juazeiro do Norte, Ceará,
Sinhô Pereira recebeu uma carta que lhe ordenava largar o cangaço e seguir a vida para
outro estado. Sendo assim, no final de 1919, Sinhô Pereira e Luiz Padre tentaram deixar
o cangaço, seguindo rumo a Goiás, onde viveriam longe de toda aquela situação.
Entretanto, ainda não foi desta vez.
Com o insucesso da primeira fuga, Sinhô Pereira permaneceu no cangaço até o
ano de 1922
63
. Devido à sua continuidade, durante mais três anos como líder de
cangaceiro, o movimento conheceu outra grande liderança, pois Sinhô Pereira, de certa
maneira, proporcionou os primeiros passos para a carreira de Lampião no movimento.
Filho de camponeses do interior do estado de Pernambuco, Virgulino Ferreira da
Silva foi o terceiro filho entre as muitas crianças que havia na casa José Ferreira da
Silva e Maria Lopes, seus pais. Nasceu no sítio de Ingazeiro, ou sítio Passagem das
Pedras, localizado no município de Vila Bela, hoje conhecido como Serra Talhada.
Entre a vasta bibliografia publicada sobre o cangaceiro Lampião, a data de
nascimento de Virgulino é um dos dados mais instáveis de sua história. Segundo nossa
pesquisa, as afirmações sobre seu nascimento ocorrem entre os anos de 1897, 1898 e,
62
De fato, na maioria das vezes eram os jovens, sem qualquer responsabilidade familiar, os principais
integrantes do cangaço.
63
Para Mello (2004), pelas suas características como líder, Sinhô Pereira está enquadrado na categoria de
cangaço de vingança.
até mesmo, 1900
64
, constando dias e meses diferenciados. Frente ao observado,
preferimos não citar qualquer das datas expostas.
Em sua infância, Virgulino viveu no sítio onde, juntamente com seus irmãos,
auxiliava seu pai no trabalho rural: na criação de animais e no cultivo de alimentos. À
parte do trabalho, brincava com seus irmãos, amigos e vizinhos. Ele foi alfabetizado em
casa, através do sistema de ensino particular, isto é, havia um professor que era pago
para ir ao sítio instruir os filhos de José Ferreira. Já adolescente, ele freqüentava as
festividades e eventos religiosos ocorridos na cidade, acompanhado de seus pais e
familiares, pois a família Ferreira era, até então, imparcial no que se refere às rixas
locais. Nessa fase, assumiu a profissão de vaqueiro e domador de cavalos. Em suma,
teve uma infância, aparentemente, comum.
Entretanto, a essa altura da vida, os conflitos entre proprietários de terra
assolavam a família Ferreira. O atrito era com Zé Saturnino, vizinho e amigo de infância
de Virgulino, Levino e Antonio Ferreira.
No início, os animais da propriedade dos Ferreira passavam para a propriedade
vizinha e desapareciam. Então, foram encontradas as peles dos bichos enterradas nas
terras de Saturnino. O atrito foi gradativamente aumentando, começaram a aparecer
animais maltratados, marcados, com patas quebradas, até agravar a luta.
Com apoio político, Zé Saturnino tentava se apropriar de parte da propriedade da
família Ferreira, o que transformou a disputa numa verdadeira guerra, onde os filhos de
José Ferreira trocavam tiros, brigavam a punho, vingavam atos em nome da família.
Mas, por fim, José Ferreira decidiu deixar a propriedade e procurar outro lugar para
constituir uma nova vida com sua família, em paz.
A essa altura, por volta de 1917-1919, Virgulino já havia conhecido o cangaço,
mais precisamente o bando de Sinhô Pereira. Tinha, inclusive, participado do bando
algumas vezes
65
. Mas não assumira ainda o posto definitivo de cangaceiro.
64
Conferir nas obras indicadas pela referência bibliográfica do presente trabalho. Entretanto, 1900 é a
data mais improvável, contida no livro Lampião, lendas e fatos, de Piragibe de Lucena (1995). Não
consta nas nossas referências.
65
Segundo Maciel (1979), antes de sua inserção definitiva no cangaço, Lampião conhecia aquela
realidade, “várias vezes entrando no grupo de Sinhô Pereira e dele saindo”.
Após tantos conflitos e perturbações, no decorrer da retirada, sua mãe adoecera e
morrera repentinamente. Pouco tempo depois, José Ferreira foi assassinado. Fato esse
que propiciou a entrada definitiva de Virgulino Ferreira da Silva no cangaço.
Na época, o cangaço era uma das únicas opções de sobrevivência para os pobres
camponeses da região e, além do mais, “o apogeu do cangaceirismo verifica-se
aproximadamente do ano de 1914 até 1922” (FACÓ, 1980, p.171), convergindo, de
outro ponto de vista, devido ao modismo, à idéia de participar do movimento.
Aparentemente, a vontade de vingar a morte do pai levou Virgulino Ferreira da
Silva ao cangaço, mas acreditamos que houve outros fatores que o levaram ao
movimento.
Depois da morte de seus pais, em 1921, resultado de abuso de poder, Virgulino
Ferreira da Silva e seus irmãos Levino Ferreira e Antonio Ferreira, seguiram rumo ao
cangaço, incorporando, assim, o bando do cangaceiro Sinhô Pereira.
Nos bandos, todos os integrantes tinham pseudônimos. No caso de Virgulino não
seria diferente. O apelido de “Lampião” surgiu da astúcia do jovem cangaceiro de usar
sua habilidade para criar um sistema de repetição no seu rifle, utilizando acessórios
artesanais. À noite, descarregando a arma contra a polícia, no local onde o garoto estava
atirando, estabelecia-se um clarão persistente bala após bala, semelhante à luminosidade
de um lampião aceso.
No decorrer dos assaltos às cidades e das querelas com os “macacos” da polícia,
Lampião mostrava-se cada vez mais um cangaceiro destemido. Sinhô Pereira tecia
inúmeros elogios ao jovem. E, logo, em 1922, Sinhô Pereira afasta-se do cangaço e
transfere o cargo de líder do bando para o jovem cangaceiro. Segundo Maciel, “no dia 4
de junho de 1922, na fazenda Feijão (Belmonte), Sinhô Pereira entregou seu grupo a
Virgulino Ferreira da Silva, Lampião” (1979, p.95).
66
Durante dezesseis anos de liderança, Lampião percorreu grande parte do
Nordeste brasileiro, na região semi-árida, praticando seus golpes nos mais diversos
municípios dos Estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará, Bahia, Rio Grande do Norte e
Sergipe.
66
Do mesmo modo da data de nascimento, outros livros apresentam datas diferenciadas para a posse de
Lampião. Desta vez, pela predominância nas obras mais confiáveis, inserimos o ano de 1922 no texto
para nos situarmos na trajetória de Lampião.
Inúmeras são as lendas contadas sobre seus ataques, narrativas que apresentam
tanto atos caridosos, quanto ações impiedosas, repercutindo na imprensa nacional. Em
geral, “as notícias sobre o paradeiro de Lampião só começaram a chegar aos jornais no
início de 1925” (CHANDLER, 1980, p.67). Tal fenômeno contribuiu para o aumento da
repercussão do cangaceiro na região, ao mesmo tempo proferindo fama e acelerando as
perseguições da polícia para exterminar o movimento.
Em 1926, a Coluna Prestes, um movimento de oposição ao governo do
Presidente Artur Bernardes, liderado por Luís Carlos Prestes, tinha como finalidade
realizar uma marcha pelo interior do Brasil. No Nordeste, os revoltosos já haviam
visitado o Piauí. Sua próxima parada seria o Ceará.
Naquelas circunstâncias, Lampião foi convocado pelo Padre Cícero Romão
Batista para combater a marcha dos oficiais. “Dizem os jornais que prometeram a
Lampião o seu perdão e o comando de um destacamento, caso consentisse em combater
os revoltosos” (CHANDLER, 1980, p.78). Assim, ao aceitar a proposta, Lampião estava
autorizado a viajar livremente pelos estados da região em busca da Coluna Prestes e
recebeu o título de Capitão dos Batalhões Patrióticos.
Com a aquisição da patente, dentro do bando, Lampião passou a ser referenciado
pelos cangaceiros, e por ele próprio, como Capitão Virgulino. Nesse período, consta que
seu bando cessou a prática de crimes durante algum tempo, mas, devido às perseguições
e divergências políticas
67
, logo tudo voltou ao normal.
Seguiram-se, assim, roubos, estupros, assaltos, torturas, ameaças, queimadas,
derrubadas, pelo interior da Nordeste brasileiro. Foram atos aterrorizantes pelas cidades
e vilarejos da região. O bando de Lampião, ou do Capitão Virgulino, era o mais temido
de todos os tempos. Ataques como os de Serra Grande, Mossoró, Queimadas, e outros
tantos, ficaram marcados na memória das referidas cidades.
No interior dos grupos de cangaceiro, Lampião cultivava a arte de modo geral:
ele era tocador, poeta, compositor, repentista, animador de festa, tocava um pouco de
acordeon, enfim, pregava a alegria no bando.
A partir de 1927 (nesse período Lampião já abusara da popularidade), iniciou-se
uma campanha contra os coiteiros, isto é, o ideal do governo era acabar com as bases
67
Depois do ocorrido, Padre Cícero nega, a Lampião, o direito de receber uma visita sua, pois Cícero já
estava sendo acusado de ser protetor do cangaceiro. Porém, vale lembrar que Padre Cícero na época era
candidato à Câmara Federal.
que auxiliavam os cangaceiros para enfraquecer os adversários. Assim, foram presos
coronéis, fazendeiros e militares que, com muita discrição, apoiavam Virgulino em
troca de favores.
Por volta dos anos 1930, já no estado da Bahia, o Capitão conheceu Maria Déia
Oliveira, historicamente conhecida como Maria Bonita, uma moça destemida entre as
demais apaixonadas pelo célebre facínora. Por sua vez, Lampião correspondeu à paixão
e, “para se ligar a ela chegou a modificar a estrutura do cangaço” (MACIEL, 1979,
p.201), permitindo a entrada da mulher nos bandos de cangaceiros. Foram instituídas
novas estratégias de organização e combate no movimento, atribuindo atividades
específicas às mulheres dentro do bando, o que leva a crer que “a presença das mulheres
entre os cangaceiros pode ter influenciado o padrão de comportamento” (CHANDLER,
1980, p.179).
Nesta época, Lampião e seu grupo atuavam com mais freqüência através de
acordos financeiros com os coronéis da região, em troca de “favores”, o que fazia do
Capitão Virgulino um dos homens mais bem sucedidos do sertão. Em tais condições, ele
chegava a distribuir dinheiro com os pobres, era um bandido de elite, um vilão burguês,
que desfrutava hábitos praticados pela camada mais bem sucedida da região.
Nesta estrutura de ação, a mulher encontrou espaço para integrar-se ao
cangaceirismo, pois “nos grupos que se dedicavam verdadeiramente ao cangaço de
vingança não havia lugar para as mulheres e sim para tremendas privações materiais e
afetivas” (MELLO, 2004, p.147).
Entre mortos e feridos, o cangaço ainda perdurou por um tempo considerável.
Os inúmeros atos exercidos por Lampião e seu bando, entre os mais violentos e os mais
ousados, continuaram a repercutir, tornando-se notícia nos meios de comunicação e
temas de expressões artísticas da época, o que o denominava de “governador do sertão”
ou “rei do cangaço”.
Todavia, a partir do golpe de 1937, com o Estado Novo, a perseguição aos
cangaceiros agravou-se. As volantes da polícia da região receberam reforços em
armamento e homens para combater o cangaço como fosse preciso. A meta era
exterminar o movimento das caatingas do Nordeste.
E, desta feita, Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião, Capitão, Rei e
Governador do sertão, encerra sua notável carreira de cangaceiro em 1938, na
emboscada de Angico.
Lampião não foi nem o primeiro, nem o último cangaceiro a atuar na região
Nordeste, pois o cangaço ainda se manteve até o ano de 1940
68
. Mas, definitivamente,
Virgulino Ferreira da Silva foi o cangaceiro mais famoso de todos os tempos, tanto que,
seu fim refletiu diretamente no fim emblemático do cangaço.
A morte do cangaceiro representou, também, o sossego para grande parte do
povo do Nordeste. “Contudo, nem os acontecimentos em Angicos, nem o cemitério de
Quintas deixaram Lampião descansar, pois continua sendo um dos personagens
históricos mais famosos da cultura popular brasileira” (CHANDLER, 1980, p. 265).
Desde sua entrada no cangaço
69
, até obter grandes conquistas como líder de
grupo, ou seja, frente à sua trajetória de cangaceiro, Lampião “(...) torna-se o mais
célebre cangaceiro de todo o Nordeste, devassa de um extremo a outro, durante vinte
anos, despertando admiração e horror” (FACÓ, 1980, p.171).
De outro ponto de vista, é cabível observarmos que Lampião e o cangaço
tiveram sua importância para a estrutura da região interiorana do Nordeste brasileiro,
pois, “de passagem, é força também reconhecer que o fenômeno Lampião, aguçando as
vistas do Governo para o sertão, acelerou o desenvolvimento” (MACIEL, 1979, p.57).
Para uns, “Lampião foi e ainda é um herói para sua gente, mas um herói
ambíguo” (HOBSBAWN, 1975, p.56). Para outros, principalmente os que perderam
parentes e amigos devido às atitudes dos cangaceiros, Lampião era e sempre será um
bandido impiedoso. São dois olhares sobre o cangaceiro: o mocinho e o facínora. Herói
pelo aparente aspecto revolucionário de suas ações; bandido pela violência contida em
seus atos enquanto cangaceiro.
Entre o heroísmo e o banditismo, Eric Hobsbawn chegou a classificar o
cangaceiro Lampião como um legítimo bandido social. Segundo o autor,
68
O movimento durou mais dois anos referenciado pelos grupos de Corisco e Labareda. Segundo Ferreira
& Amaury (1997, p.189), Corisco foi assassinado “no dia 25 de maio de 1940. Labareda se entregara um
mês antes”.
69
Facó (1980) data sua primeira entrada no cangaço em 1917, por isso refere-se a vinte anos de carreira
do cangaceiro Lampião.
o ponto básico a respeito dos bandidos sociais é que são proscritos
rurais, encarados como criminosos pelo senhor e pelo Estado, mas
que continuam a fazer parte da sociedade camponesa, e são
considerados por sua gente como heróis, como campeões,
vingadores, paladinos da Justiça, talvez até como líderes da
libertação e, sempre, como homens a serem admirados, ajudados e
sustentados (HOBSBAWN, 1975, p.11).
Os bandidos sociais agem de tal modo devido aos problemas enfrentados na
região do campo, tais como catástrofes climáticas ou exploração de trabalho, os quais
não proporcionam condições dignas de sobrevivência. Portanto, busca-se o banditismo
social para tentar reformular o sistema existente no âmbito rural. Em suma, é uma
maneira de lutar por um ideal de igualdade, o que leva a criar certas contradições com a
realidade do cangaço.
Billy Chandler, por exemplo, assevera que, por algumas características, Lampião
não se enquadra no patamar dos bandidos sociais – precisamente entre os vingadores,
principalmente porque o cangaceiro não tinha as mesmas finalidades que, por exemplo,
um Hobin Hood
70
.
Segundo Chandler, “o interesse de Hobsbawn se concentra principalmente
naqueles bandidos que ele classificou como bandidos sociais, e que são camponeses
criminosos que o povo considera heróis, em vez de criminosos comuns” (1980, p.266).
E, de acordo com o ponto de vista, talvez não seja o caso do cangaceiro Lampião.
Então, Chandler conclui que, acima da contribuição de Hobsbawn em resgatar os
tantos personagens da abordagem do banditismo social, “a maior parte do problema está
no fato de que ele mistura fato e ficção para apoiar seu ponto de vista, sem indicar (e
muitas vezes sem saber) qual é qual” (1980, p.267-268).
E, justamente, é nesse emaranhado de lenda e realidade onde transitam as mais
diversas histórias e discursos sobre o rei do cangaço, classificando-o, ora como herói,
ora como bandido. Neste caso, podemos considerar a existência de diversos “Lampiões”
num só cangaceiro, constituídos a partir de pontos dos acontecimentos de sua saga,
cientes de que “Lampião é assim, o corpo onde posições políticas, histórias de vida,
projetos de mundo se encontram” (PEREIRA, 2000, p.269). Mas, em suma, não vem ao
caso afirmarmos se ele é um ou outro – mocinho ou vilão. É Lampião.
70
Hobsbawn traça algumas semelhanças de outros bandidos com Hobin Hood. Entretanto, ele afirma que,
apesar de herói, Lampião não deve ser observado como um herói.
O movimento do cangaço e seu legítimo representante, Virgulino Ferreira da
Silva, em morte, tornou-se tema das mais diversas áreas da produção cultural do Brasil
e do mundo, sendo representado em livro, artesanato, música, teatro, cordel, cinema,
pintura, entre outras artes, mantendo vivas as histórias sobre o célebre bandido do sertão
nordestino. O Capitão Virgulino, Governador do Sertão, Rei do Cangaço, ou
simplesmente, Lampião, transformou-se num exímio personagem das obras de arte.
2.3 Benjamin Abrahão: o homem que filmou o facínora
Dois meses antes da morte do Capitão Virgulino Ferreira da Silva, mais
precisamente em maio de 1938, apareceu morto, no estado de Pernambuco, Benjamin
Abrahão Calil Botto, o homem consagrado no campo do cinema brasileiro pela proeza
de capturar as únicas imagens cinematográficas do cangaceiro Lampião e seu bando.
Recém chegado ao Brasil, na década de 1920, o libanês
71
Benjamin Abrahão
atuava no ramo do comércio, negociando com tecidos e outros acessórios. Numa de
suas andanças como mascate, se dirigiu a Juazeiro do Norte, onde se tornou secretário
do Padre Cícero Romão. Pelo cargo que assumira, logo virou correspondente de jornais
do Sul do país, mantendo os jornalistas informados sobre os fatos ocorridos nas
imediações do sertão nordestino.
Em meados da década de 1920, o cangaço vivia um período grandioso,
considerado como um movimento consistente, com um alto índice de camponeses
integrantes, os quais aderiam ao cangaço como forma de sobreviver na região, algumas
vezes por conta das estiagens ocorridas no sertão.
Lampião, por sua vez, tinha grande respeito e admiração pelo Padre Cícero do
Juazeiro, uma consideração tamanha que, quando o Padre precisava de seu auxílio, ele
se punha à disposição, locomovendo-se até o Ceará. E, numa dessas passagens por
Juazeiro do Norte, Abrahão conheceu de perto o rei dos cangaceiros, o que fizera,
repentinamente, despertar uma outra maneira de observar e entender a vida de Lampião.
O discurso oficial da época sobre os cangaceiros era calcado nos atos de
violência cometidos pelo bando: as manchetes de jornais anunciavam os demônios das
71
Algumas obras que discorrem sobre o fato afirmam, equivocadamente, que o estrangeiro Benjamin
Abrahão era turco.
caatingas e as autoridades diziam que Lampião era um insulto à república. Entretanto,
para Abrahão, por trás daquelas roupas de couro, por baixo daquele chapéu meia-lua, à
frente daquele bando de facínoras, havia um homem comum e uma comunidade
politicamente organizada, capaz de despertar, no libanês, a curiosidade de melhor
conhecer aquele grupo, de investigar aquela realidade de perto e mostrar para o mundo
como é a vida dos cangaceiros em seu cotidiano.
Tal ponto de vista, assumido pelo mascate, estimulou-o a realizar um trabalho
que retratasse uma “outra verdade” sobre Lampião e seu bando, porém isso não seria tão
fácil como parecia. Suas primeiras matérias de jornal, escritas, não mais na história da
violência, mas sim com base no cotidiano do bando não foram publicadas. Mesmo
assim, Abrahão não desistiu e, tempos depois, lhe veio a idéia de realizar um filme
sobre Lampião.
Benjamin Abrahão era um homem de muita retórica, e usou de tal recurso para
conseguir o material necessário para filmar. Ele se valeu, em parte, do fato de ter sido
secretário do Padre Cícero para fazer contatos com autoridades da região como artifício
para facilitar o acesso aos cangaceiros. Mesmo assim, ainda teria muito trabalho pela
frente para conseguir acompanhar, de dentro, o bando de Lampião. Era preciso muita
perseverança e coragem para realizar as filmagens desejadas frente aos perigos
existentes na estrutura social e política do interior do Nordeste brasileiro.
Sua finalidade “poética” com o documentário era estabelecer um olhar diferente
sobre o cangaço de modo geral, um ponto de vista mais amplo sobre o movimento,
distante do sensacionalismo jornalístico existente em torno da violência pregada pelo
bando, contemplando outros aspectos existentes no grupo. Contudo, como um bom
vendedor, o mascate tinha mesmo a real intenção de lucrar com o filme.
A essa altura, na década de 1930, o Estado Novo pressionava cada vez mais as
tropas da polícia para extinguir o cangaço do Nordeste de uma vez por todas. O
presidente Getúlio Vargas ordenou o desarmamento total, aumentou o número de
volantes, pressionou alguns coiteros e reforçou o armamento da polícia. “A ordem do
mais alto escalão consistia em eliminar qualquer vestígio relacionado, pois que
desafiava a honra e o prestígio da Nova República” (UMBERTO, 2005, p.30). E tudo
isso dificultava cada vez mais o propósito do cineasta amador.
Todavia, em menos de dois anos o filme de Abrahão ficou pronto. Era uma obra
documental, em preto e branco, longa metragem, rodado em 35mm, com seus
problemas técnicos e narrativos devido às condições de realização cinematográfica e a
inexperiência do estrangeiro, mas que, no entanto, trazia consigo as imagens originais
do Capitão Virgulino Ferreira e dos cabras do seu bando.
No início, o obstáculo era saber o paradeiro de Lampião, ou seja, exatamente
onde o cangaceiro estava alocado naquele momento. Depois de uma longa jornada em
busca dos cangaceiros, o cineasta localizou Lampião e seu bando na Bahia, onde pôde
dar início ao seu trabalho. “Em 1935, com o apoio da Abafilm, uma firma de fotografias
de Fortaleza, ele entrou no mato para procurar Lampião e filmar seu modo de vida”
(CHANDLER, 1980, p.225).
Mas, antes mesmo de Abrahão encontrar o bando, o Capitão já sabia, através de
suas fontes, que havia um homem de fala estranha a sua procura no sertão para fazer
uma filmagem com ele. Lampião, em alguns de seus ataques às cidades, assistiu a
filmes
72
e imaginava do que se tratava, porém não deu plena confiança ao libanês.
Cauteloso como sempre, Lampião suspeitou que tivesse sido
enviado pela polícia, e, antes de consentir em ser filmado, insistiu
para que primeiro Abrahão se sentasse diante da câmera quando ela
estivesse funcionando. Depois, convencido de que a máquina não
escondia um rifle, cooperou entusiasmadamente (CHANDLER,
1980, p.226).
Pelo estilo de vida do cangaceiro Lampião, verdadeiramente, não podia confiar
tão facilmente nas pessoas ali existentes, estando sempre cismado até mesmo com as
pessoas de sua confiança. Mas, tendo comprovado a segurança do equipamento levado
por Abrahão, juntamente com sua vaidade de ser o cangaceiro mais famoso do
Nordeste, o Capitão Virgulino deu ordens ao cineasta para começar as filmagens.
No primeiro encontro, o libanês permaneceu por cinco dias acompanhando os
cangaceiros enquanto filmava. Retornando e conferindo seu trabalho, após ter visto as
72
Nas invasões às cidades de Queimadas e Capela consta que Lampião e seu bando entraram no cinema
da cidade e ficaram assistindo aos filmes, por outro lado, os espectadores ali presentes saíram
desesperados por temerem sua chegada. E o projecionista, extremamente assustado, deixou a película
partir diversas vezes.
primeiras imagens reveladas, achou que o material capturado ainda era insuficiente para
a composição de seu filme, levando-o a fazer outras visitas ao bando.
Para compor seu documentário, “o cineasta procurava focalizar os mínimos
detalhes daquela comunidade, seu costume, modos de comportamentos, forma de
organização política, econômica, social e religiosa” (UMBERTO, 2005, p.28). Ele
tentou filmar o máximo possível sobre o cotidiano do bando, porém sua maior angústia
foi não ter conseguido registrar, em película, uma querela real entre os cangaceiros e os
“macacos” da polícia. Em suma, o libanês conseguiu capturar, “(...) entre março e
outubro de 1936, um longo documentário do surpreendentemente tranqüilo dia-a-dia em
que se desenrolava à época a vida do cangaço” (MELLO, 2004, p.302).
Finalizado todo o processo de realização, apareceram outras dificuldades, dessa
vez de cunho político, principalmente naquela conjuntura, pois se tratava de mostrar um
documentário in loco sobre a vida do cangaceiro mais heróico do sertão nordestino, o
célebre facínora.
Em 1936, o filme Lampião, o Rei do Cangaço estava, definitivamente, pronto
para ser exibido. Muitas pessoas não acreditaram no projeto de Benjamin Abrahão em
filmar Lampião, “mas, o que realmente surpreendeu a todos, foi o anúncio em Fortaleza,
no princípio de 1937, de que Lampião em pessoa, tomara parte num documentário, que
seria logo exibido” (CHANDLER, 1980, p.225). É provável que o informe do
lançamento do filme tenha surpreendido a todos, mas o filme em si não agradou tanto
quanto o libanês esperava.
Coerente com sua proposta inicial e com a situação vivida pelo cangaço na
época
73
, o filme apresentava o ponto de vista pensado por Benjamin Abrahão sobre
Lampião e seu bando: as imagens traziam os cangaceiros em estado de plena alegria e
despreocupação; difundiam seus valores culturais; construíam o estereótipo do líder
justo, do mocinho; mostravam, ainda, cenas da polícia violentando civis. Enfim, as
autoridades não se animaram muito com o filme em si. Aliás, os policiais presentes à
sessão ficaram totalmente insatisfeitos com os sentidos contidos naquele documentário.
Na perspectiva discursiva, naquela condição de produção, o discurso fílmico
rompia com a formação discursiva dominante da época, a qual proferia um discurso
73
A essa altura, o cangaço não era mais o mesmo da década de 1920. Lampião levara uma vida mais
cômoda, sem tantas aventuras e ataques, apenas negociando “serviços” com as autoridades regionais e
desfrutando de requintes de um burguês bem-sucedido.
sobre Lampião baseado nos seus atos de banditismo, denegrindo a imagem do
cangaceiro, apontando-o como um problema a ser resolvido, e não como uma estrela de
cinema. A película, ao mostrar “o outro lado” da vida dos cangaceiros, evocou
silenciamentos, sentidos propositalmente ofuscados pelo discurso dominante,
dialogando em contraposição ao discurso do facínora, acordando significados que
hibernavam pela ordem discursiva daquela conjuntura, remodelando a memória do
cangaço e movimentando sentidos ao parafrasear o discurso sobre o cangaceiro, fazendo
com que Lampião, o Rei do Cangaço significasse um insulto à ordem pública, era uma
afronta aos créditos da nacionalidade, um descaso com a república.
Sem mais controvérsias, o filme foi ligeiramente censurado. “A polícia do
Ceará, opôs-se a seus esforços, e confiscou o filme” (CHANDLER, 1980, p.226).
Lampião, o Rei do Cangaço “(...) viria a irritar profundamente o Governo Federal,
principalmente o Departamento de Imprensa e Propaganda, dirigido, meses depois da
divulgação do filme, em abril de 1937, por Lorival Fontes” (MELLO, 2004, p.302).
Assim, a película foi apreendida e encaminhada para o DIP
74
do Estado Novo, no Rio
de Janeiro, onde deteriorou e quase foi destruída por completo. “Grande parte do
material colhido pelo mascate foi apreendido e destruído pela Polícia do Estado Novo”
(LEAL, 1982, p.116). Outra parte deteriorou-se com o tempo pela falta de cuidados com
a película, restando apenas 20% no material capturado.
Diante de todo o esforço do cineasta Benjamin Abrahão de realizar um filme
com o cangaceiro mais famoso do sertão nordestino, jamais alguém ousaria dizer que
não valeu de nada, pois as imagens restantes foram recuperadas apenas em 1957.
Aproveitou-se menos da metade do material, uma média de 15 minutos de filme, sem
som. Entretanto, trata-se dos resquícios do trabalho do cineasta estrangeiro, suficiente
para comprovar o valor do seu esforço. Como ressalta Leal (1982, p.115),
foi o heroísmo de um árabe, do aventureiro mascate Abrahão
Benjamin, morto covardemente pela Polícia, que possibilitou no
Nordeste ainda império dos cangaceiros, a realização de um dos
mais significativos (e autênticos) filmes sobre o cangaço.
74
O DIP era um órgão federal de censura do Estado Novo, o qual ditava os assuntos probidos de serem
referenciados pelos meios de comunicação e outras formas de expressão da época.
Seria justo conceder ao cineasta estrangeiro o status de herói, pela proeza de
filmar Lampião e seu bando e deixar um material cinematográfico contido de uma carga
de historicidade tamanha. Imagens singulares do mais aclamado dos bandidos do
Nordeste. Todavia, não podemos confirmar a parte da polícia, pois a morte de Benjamin
Abrahão virou uma incógnita na historia do cangaço.
Segundo Chandler (1980, p.226), a morte de Abrahão teve a ver com outros
motivos pessoais do cineasta, e não pelo filme. “Solteiro, foi morto a tiros, presume-se
por algum marido ciumento, em Vila Bela, em maio de 1938, dois meses antes da morte
do cangaceiro”.
Para Glauber Rocha (2003, p.91), “conta-se que, retornando à Paraíba com
várias latas de negativo impresso, foi assassinado por desafetos e a maior parte do filme
se perdeu”. A versão de Rocha parece-nos a menos provável, pela localidade apontada.
Afirma Umberto (2005, p.30) que o fato gira em torno de três versões:
há a versão de que o dono da pensão da localidade, um indivíduo
aleijado, o teria apunhalado quando dormia, por ciúme. Outros
dizem ter sido um ladrão, em busca de uma pedra preciosa trazida
pelo tropeiro, enquanto alguns opinam ter sido a polícia. O mais
comum, porém, a atribuir o crime a chefetes políticos
acumpliciados com os cangaceiros, todos eles interessados em
destruir o documentário que iria, com certeza, revelar muitas
verdades na tela
75
.
Em aspectos políticos, cabe pensarmos na força da temática do cangaço e o
quanto tais “verdades” perturbava a ordem republicana, tendo em vista a existência de
tal movimento na região e o incômodo causado às forças armadas dos Estados do
Nordeste. Assim, “quando ainda se tratava de um fato nacional a ser discutido e
comentado, era visto como indigno de ocupar espaço em nossa cinematografia”
(TOLENTINO, 2001, p.22). Isto é, na década de 1930, a nação não precisava, ou não
podia ir ao cinema para assistir às problemáticas do país ou uma outra versão da história
do cangaço.
Pela polêmica causada, talvez o documentário de Abrahão tenha sido um ponto
na história do cangaço relevante para o fim do célebre facínora pouco tempo depois do
filme. “Irritando o Estado Novo, mesmo sem querer – seus planos foram à ruína com
75
A primeira versão citada sobre a morte do libanês aproxima-se da encenação feita no filme Baile
Perfumado, sobre o qual discorreremos posteriormente.
isso – Benjamin mete-se na corrente causal da morte de Lampião, findando por também
dar o seu tirinho na realeza” (MELLO, 2004, p.317).
E, no final das contas, alguém deveria pagar por isso: talvez o cineasta Benjamin
Abrahão com sua própria vida, talvez a cinematografia brasileira por perder grande
parte desse material, ou talvez os cangaceiros pelas discórdias geradas na polícia a partir
do documentário.
Por outro lado, apesar de o libanês não ter conseguido lucro, o cinema brasileiro
lucrou bastante com o material restante do seu filme. Com isso, temos, atualmente, um
filme histórico, representativo, sobre o movimento do cangaço. As sobras de Lampião,
o Rei do Cangaço podem ter servido, também, de estímulo aos cineastas brasileiros que,
a partir da década de 1950, trabalharam o Nordestern.
A película pode ser encontrada em alguns centros de arquivo cinematográfico
existente no Brasil. As imagens foram, também, reutilizadas em filmes que abordam o
assunto, tais como: Memória do Cangaço, de Paulo Gil Soares, documentário de curta-
metragem realizado em 1965; Baile Perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, filme
pernambucano finalizado em 1996; e Corisco e Dadá, do cineasta cearense Rosemberg
Cariry, em 1997
76
.
A reutilização das imagens realizadas por Abrahão, pelo menos fragmentos
delas, nos referidos filmes, coloca em funcionamento o processo discursivo, instaurando
sentidos historicamente constituídos para dentro do texto fílmico, movimentando
significados diversos, ofuscando e acendendo dizeres sobre o movimento do cangaço a
partir do que é mostrado.
2.4 Baile Perfumado: a bailada dos pistoleiros
Sessenta anos após a realização do documentário cinematográfico de Benjamin
Abrahão, em 1996, dois diretores nordestinos, Paulo Caldas e Lírio Ferreira, prestaram
uma grandiosa homenagem ao trabalho do cineasta libanês, realizando, então, o filme
Baile Perfumado. Nesse período, os cineastas enfrentaram outros obstáculos para
conseguirem fazer o filme desejado.
76
Os filmes de Soares e Cariry talvez sugiram uma pesquisa mais abrangente para entender como os
processos discursivos, nas imagens de Benjamin, se instauram em outras condições de produção.
Delimitamos, portanto, o filme de Caldas e Ferreira para nossas análises.
Na década de 1990, o cinema brasileiro atravessou uma fase complicada devido
às modificações estruturais implantadas no governo federal pelo ex-presidente Fernando
Collor de Melo, principalmente ao substituir o Ministério da Cultura por uma secretaria
ligada diretamente à presidência, administrada pelo cineasta Ipojuca Pontes, e ao
extinguir a Embrafilme
77
(Empresa Brasileira de Filme).
Nestas condições, a estatística de filmes por ano no Brasil chegou a ser
insignificante entre os anos de 1990 a 1993, tornando-se um verdadeiro colapso
cinematográfico, pois não havia recursos financeiros suficientes destinados à produção
de filmes no país. Em 1992, por exemplo, o Festival de Gramado e o 25º Festival de
Brasília, os mais significativos do país, tiveram problemas pela falta de títulos
nacionais. O primeiro desistiu de fazer uma competição exclusivamente brasileira,
reformulando para uma competição de filmes ibero-americanos, com o intuito de não
cancelar o evento; o segundo foi adiado pela falta de filmes brasileiros inscritos para
concorrerem na mostra competitiva.
Nestes três anos a produção não chegou ao zero, pois para tentar suprir tal
problema financeiro, os produtores brasileiros recorriam aos meios estrangeiros a fim de
conseguirem recursos para realizarem seus filmes
78
.
Após a aprovação do Impeachment de Collor, tendo o vice-presidente (Itamar
Franco) como sucessor, surge uma luz na escuridão que assolava o cinema brasileiro. A
partir do final de 1992, o Ministério da Cultura foi reinstalado, fazendo com que, em
1993, o cinema nacional retomasse sua produção, renascesse no cenário brasileiro.
Nesse ano, as portas começaram a se abrir com o Programa Banespa de Incentivo à
Indústria Cinematográfica e o Prêmio Resgate, incentivos gerados pelo Ministério da
Cultura para a realização de filmes no país. Foi criada, ainda, a Lei do Audiovisual, a
qual propunha o apoio das empresas privadas aos cineastas em troca da isenção fiscal
79
.
Portanto, denominou-se de Retomada ou Renascimento o período em que o
cinema brasileiro começou a se reerguer, voltando a realizar filmes no país, na década
77
Empresa estatal criada em 1969, com o propósito de financiar, co-produzir e distribuir filmes
brasileiros. A Embrafilme foi responsável por vários filmes nas décadas de 1970 e 1980.
78
Como, por exemplo, o filme A Grande Arte, de Walter Salles Jr., realizado no ano de 1991, co-
produzido com uma empresa norte-americana.
79
Em 1991, a única forma de apoio do Governo Federal ao cinema era através da Lei de Incentivo à
Cultura (Lei Rouanet), que engloba todos os tipos de projetos artísticos, e não apenas o cinema.
de 1990
80
. E assim, aos poucos, foram surgindo meios de financiamento para os
cineastas brasileiros.
Em geral, se já era difícil, na década de 1990, realizar um filme no pólo
industrial do Brasil (Sul e Sudeste), onde circula grande fatia do fluxo monetário do
país, fazer cinema no Nordeste parecia um desafio ainda maior. Mas não era uma
missão totalmente impossível.
Mesmo com a minoritária produção cinematográfica do Nordeste, marcada pela
produção de filmes de curta-metragem, Caldas e Ferreira realizaram o longa-metragem,
ficção, Baile Perfumado, no estado de Pernambuco. A dificuldade de realização era
enorme. O processo de produção do filme se iniciou em 1994 quando, com o apoio do
Ministério da Cultura, os diretores fizeram as primeiras imagens do filme para, com
elas, buscarem mais apoio para prosseguir com o filme.
Para a continuação do trabalho, eles arrecadaram dinheiro de diversas maneiras:
através de festas, campanhas publicitárias em outdoors e outros meios. O processo
durou dois anos. Muitas pessoas ligadas ao cinema pernambucano, e à arte em geral, se
envolveram na realização do filme. Pela dificuldade financeira enfrentada pelos
diretores, “o roteiro foi pensado para adequar a produção às condições locais”
(FIGUEIRÔA, 2000, p.110). A equipe contava com soluções criativas e práticas para a
diminuição dos custos a cada cena. Por estas e outras razões, Baile Perfumado tem um
significado especial para a produção audiovisual regional.
Paulo Caldas e Lírio Ferreira são profissionais do audiovisual desde a década de
1980, tendo realizado alguns trabalhos anteriores, em especial filmes de curta-metragem
(alguns premiados) e produções televisivas. Mas, apenas em Baile Perfumado, dando
vez ao trabalho em parceria, eles assinaram roteiro e direção juntos.
O filme teve êxito, sendo exibido em quase todo o Brasil. Desde então, “depois
do Ciclo do Recife
81
, foi a primeira produção local a ganhar projeção nacional”
(FIGUEIRÔA, 2000, p.107), e logo obteve o reconhecimento da crítica e do grande
público. No ano de seu lançamento, em 1996, Baile Perfumado ganhou os prêmios de
Melhor Filme, Melhor Direção de Arte e Melhor Ator Coadjuvante no 29º Festival do
Cinema Brasileiro de Brasília. Em seguida, no Prêmio Cine Sesc, foi eleito o Melhor
80
O filme marco da Retomada é Carlota Joaquina – Princesa do Brazil (1994), de Carla Camurati.
81
Figueirôa se refere, especialmente, ao filme A Filha do Advogado (1926), de Jota Soares, último filme
da Aurora Film, longa-metragem o qual foi exibido em outros estados do Brasil.
Filme Brasileiro. Segundo o crítico de cinema João Batista de Brito, no artigo intitulado
O baile perfumado’ para o bem do cinema nacional (1997, p.06), “se todos os filmes
nacionais que nos chegassem tivessem seu nível, suponho que começaríamos a acreditar
num cinema brasileiro do terceiro milênio”.
O filme apresenta a trajetória do mascate libanês Benjamin Abrahão (Duda
Mamberti) na tentativa de realizar um filme sobre Lampião (Luís Carlos Vasconcelos) e
seu bando. Após a morte do Padre Cícero (Jofre Soares), Abrahão tem a idéia de
realizar Lampião, o Rei do Cangaço, um documentário sobre a vida do cangaceiro em
sua rotina. Assim, consegue apoio técnico com Ademar Albuquerque (Germano
Hauiut), proprietário da AbaFilm, e busca vários meios para chegar até Lampião e
filmá-lo, sonhando em ficar rico com o documentário. O trabalho repercutiu bastante,
mas após o lançamento do filme, seu sonho logo é interditado por alguns obstáculos,
entre eles a ditadura do Estado Novo. Baile Perfumado é uma narrativa cinematográfica
construída com base na história do árabe cineasta, uma reconstrução da história do filme
de Abrahão, realizado em 1936
82
.
De um determinado ponto de vista, Baile Perfumado pode ser considerado como
um filme metalingüístico, pelo fato de abordar o cinema como temática de sua narrativa.
Ao representar a história da realização do documentário de Benjamin Abrahão, sobre
Lampião, os cineastas Paulo Caldas e Lírio Ferreira referenciam, diretamente, a
dificuldade de se trabalhar com cinema no Brasil.
Freqüentemente, o modo de produção, realização e comercialização de um filme
nos anos 1990 equivale, em alguns aspectos, à experiência vivida por Benjamin
Abrahão nos anos 1930, narrada no filme de Caldas e Ferreira. Em outros termos, não é
tão fácil assim fazer um filme, no todo.
Nesta linha de pensamento, Abrahão representa, em Baile Perfumado, o alterego
dos diretores: através da história de cineasta vivida pelo mascate libanês e os registros
cinematográficos deixados por ele, os jovens cineastas se afirmam enquanto
realizadores de filmes. Assim, de um lado Benjamin Abrahão na década de 1930, do
outro Paulo Caldas e Lírio Ferreira nos anos 1990, transparecem as afinidades da
profissão de cineasta em Baile Perfumado. Portanto, “é como se, apesar de estrangeiro,
o libanês que quer filmar Lampião fosse o alterego dos diretores do filme, e por
82
Veremos, no tópico seguinte, a idéia de reconstrução da história em Baile Perfumado.
extensão, o de todo cineasta brasileiro” (BRITO, 1997, p.06). Em suma, Baile
Perfumado é, antes de tudo, um filme sobre cinema; sobre as dificuldades vividas por
qualquer cineasta brasileiro em sua jornada de trabalho.
De outro ponto de vista, Baile Perfumado pode ser considerado um Nordestern,
porém constituído de elementos singulares, com características próprias para um filme-
de-cangaço, inovador no estilo de filme, rompendo com as narrativas cinematográficas
tradicionais do gênero.
Primeiramente, a narrativa é conduzida a partir do olhar do cineasta estrangeiro,
privando o cangaceiro chefe, como em narrativas anteriores, do papel principal do
filme
83
. A presença do estrangeirismo é uma característica expressiva da cinematografia
dos anos 90, pois “o nacionalismo, que a partir da década de 20 e principalmente nos
anos 60 tornou-se uma questão fundamental do cinema brasileiro, é posto em xeque”
nesse período (BUTCHER, 2005, p.31). Entretanto, mesmo com característica estética
da época, Baile Perfumado é possuidor de uma grandiosa expressividade nacionalista
pela recorrência à temática do cangaço.
Desta maneira, em Baile Perfumado, o conflito não está mais centrado, nem nas
querelas entre o bando e as volantes, nem nos conflitos internos entre cangaceiros, mas
sim na missão do mascate árabe em realizar seu documentário com o rei do cangaço.
Assumir o ponto de vista do estrangeiro para contar a história deu margem para
expressar um olhar diferenciado sobre o cangaço, apontando para outros fatos existentes
dentro do movimento, aspectos não usuais em outras narrativas, sugerindo outra
abordagem cinematográfica sobre Lampião e seu bando em relação às abordagens já
existentes no gênero. Narrar a partir do ponto de vista do estrangeiro, portanto,
possibilita aos cineastas uma maneira de implantar algo novo ao gênero, uma forma de
narrar algo a partir de um personagem possuidor de outra visão sobre o movimento, o
que possibilita uma configuração discursiva variada sobre a temática do cangaço.
O filme de Caldas e Ferreira caracteriza-se, também, pela maneira como
aproxima tradição e modernidade no Nordeste dos anos 1930 em sua narrativa, unindo o
progresso com a cultura regional como algo positivo, a partir de diversos elementos
cinematográficos contidos no filme.
83
Nesse período, muitos outros filmes trazem o “estrangeirismo” agregado à temática nacional, como, por
exemplo, Terra Estrangeira (1995), de Walter Salles e Daniela Thomas, O Quatrilho (1995), de Fábio
Barreto, e O Que é Isso, Companheiro? (1997), de Bruno Barreto.
No decorrer do filme, aparecem diversos elementos aparentemente incomuns nas
demais narrativas cinematográficas sobre o cangaço, mas capazes de demarcar a
presença da modernidade na década de 1930 em tais circunstâncias, tais como: os meios
de comunicação de massa (rádio, jornal impresso, revista O Cruzeiro, e o próprio
cinema), ventilador, eletricidade, automóvel, trem, whisky, perfume, câmera
fotográfica, entre outros, confluindo diretamente com o tradicionalismo local. Tais
elementos são absorvidos e utilizados pelos cangaceiros com naturalidade, mostrando o
cangaço evoluindo com o progresso, absorvendo a modernidade, sem maiores embates.
Outro elemento marcante, extra-diegético, contido no filme é a inserção em
cenas das músicas do movimento manguebit
84
, no qual se executam estilos musicais
tradicionais da região com instrumentos elétricos e tambores, propondo a aproximação
entre tradição e modernidade através do som e das letras das músicas. Em suma, o ideal
estabelecido pelo movimento era de elaborar um tratamento contemporâneo para as
manifestações culturais pernambucanas tradicionais (como o maracatu, por exemplo),
unindo a arte popular tradicional à estética artística moderna.
Desta maneira, Caldas e Ferreira recorrem não mais à música “Mulher
Rendeira”, tantas vezes utilizada pelo Nordestern, mas sim a novas formas sonoras de
representação do movimento do cangaço, fortalecendo a perspectiva do estrangeiro
sobre o movimento.
No total, as músicas utilizadas no Baile Perfumado foram compostas por Chico
Science, Lúcio Maia, Siba e Fred O4, contando, ainda, com a participação, no filme, de
vários outros músicos pernambucanos, como Mestre Ambrósio, Lenine, Alceu Valença,
Stella Campos, Luis e Manuel Paixão, Márcio Miranda e Ortinho Coelho.
Assim, com a sonoridade do manguebit, Baile Perfumado reforça a linha de
junção do tradicional com o moderno, estabelecendo, de outra forma, este ideal na
narrativa do filme. Contudo, a aproximação não está contida apenas na música.
Encontra-se explícita, também, na montagem do filme.
Em termos de edição, Baile Perfumado tem aspectos da estética do vídeoclip,
pela música e pela agilidade da mudança das imagens. Entretanto, ainda, no filme estão
intercaladas, constantemente, cenas nos espaços urbanos com cenas nos espaços rurais,
84
Movimento musical da década de 1990 liderado por Chico Science e Nação Zumbi, Fred O4 e Mundo
Livre. Entretanto, a direção musical do filme é assinada por Paulo Rafael.
criando uma sensação de proximidade entre a cidade e o campo, simulando um enlace
entre ambas as áreas, rompendo com o usual distanciamento ideológico entre esses
espaços contido em outras formas discursivas.
A velocidade da montagem do filme referencia a rapidez vinda para a vida social
através do sistema industrial, sem apresentar a chegada das máquinas como um “rolo
compressor” sobre o sertão. Cenas citadinas passam ligeiramente para as ações do
bando de Lampião no campo, automóvel sendo conduzido na fazenda, gramaphone
entre os cangaceiros, tudo isso deixando fluir a unidade entre os determinados espaços
sociais. Quem assina a edição de Baile Perfumado é Vania Debs.
A fotografia de Baile Perfumado, dirigida por Paulo Jacinto dos Reis, confere
grandiosidade à narrativa a partir dos movimentos de câmera e enquadramentos
aplicados no filme. Planos aéreos, travellings, panorâmicas, planos seqüência, câmera
na mão, uma linguagem arrojada que glorifica a história representada, levando para a
temática do cangaço, por outra via, a idéia de modernidade.
Em alguns planos, a fotografia segue uma linha baseada na estética do
movimento expressionista alemão, no qual contém a predominância das sombras dos
personagens bem definidas pela luz, imagens com proporções distorcidas pela utilização
de lente grande angular e cenas compostas com espelho e reflexo. A quantidade de
reflexos contidos nas cenas do filme auxilia a narrativa pelo fato de ser um filme,
também, sobre cinema, isto é, consiste em questionar a idéia das representações
imagéticas. As sombras e distorções existentes nas imagens de Baile Perfumado
somam-se à tensão existente na história do filme
85
.
Portanto, através das respectivas características cinematográficas (foco narrativo,
som, montagem, fotografia), Baile Perfumado constrói um universo fílmico diferente
das narrativas usuais do gênero, o qual confere um novo olhar sobre a região nordeste e,
principalmente, sobre o movimento do cangaço, propiciando outra visibilidade sobre a
figura de Lampião e seu bando.
Ciente de tais aspectos cinematográficos, Caldas e Ferreira, em sua obra,
remontam o cangaceiro Lampião, pois, com base na história do libanês, eles assumem
um olhar outrora assumido por Benjamin Abrahão sobre o Capitão Virgulino e seu
85
A composição imagética do filme é o trabalho conjunto entre os departamentos de fotografia e artes do
filme. Portanto, a Direção de Arte do filme é de Adão Pinheiro.
bando, contemplando, em seu filme, hábitos e costumes do cotidiano do bando. Eles
mostram recortes da vida de um Lampião moderno e arrojado, com dotes vagamente
expostos na história do cangaço: espectador de cinema, apreciador de boa música,
bebedor de whisky, usuário de perfume francês, religioso, vaidoso, romântico.
Elementos estes que evocam outros traços de sentido em relação à identidade do
cangaceiro.
A própria temática central do filme (o cinema) estabelece uma concepção
moderna ao cangaço, aproximando o movimento rural à tecnologia do setor urbano da
sociedade, criando, assim, um semblante diferenciado para Lampião, identificando-o, de
certa forma, como astro do cinema. “O que importa é a imagem produzida de Lampião,
a relação com esse instrumento moderno. E quando o cinema é retrabalhado no filme,
Lampião é projetado numa esfera de pop-star” (DÍDIMO, 2005, p.66). Acentua-se,
desta maneira, na narrativa de Baile Perfumado “o lado heróico” de Lampião,
mitológico, referenciando-o como o autêntico rei do cangaço, governador do sertão,
entre outros codinomes.
O filme de Caldas e Ferreira apresenta um Lampião com hábitos burgueses,
dotado de vaidade, consumidor de produtos de elite, amigos de coronéis e autoridades
da região, jogador de baralho, possuidor de uma considerável quantidade monetária.
Enfim, uma espécie grosseira de “latifundiário sem terra”.
No todo, trata-se de uma série de características cinematográficas capazes de
apresentar Baile Perfumado como um filme inovador do Nordestern, o qual enaltece, de
forma singular, o cangaceiro Lampião. O trabalho realizado pelos diretores foi
respectivamente atual, “eles deram um significado mais pop não somente a Lampião,
mas a todo o filme” (DÍDIMO, 2005, p.66).
Mediante o estilo cinematográfico de Baile Perfumado, semelhante à produção
musical do movimento manguebit, com a nova forma de expressão artística da região,
“os cineastas também lançaram sua marca de fantasia, intitulando a produção
pernambucana de árido movie, uma brincadeira, mas uma tentativa de identificar e unir
essa produção em torno de ideais compartilhados” (FIGUEIRÔA, 2000, p.105).
Em geral, os filmes do árido movie recebiam um tratamento cuidadoso,
diferenciando-se da produção local realizada até então. Baile Perfumado, portanto, não
foi o primeiro trabalho desse movimento pernambucano, mas, pela sua repercussão e
reconhecimento, sem dúvida, é o filme mais significativo da época. Uma estética
formulada com recursos tecnologicamente modernos, distribuídos entre os elementos do
filme como um todo, aspectos que fazem com que sua linguagem se torne
contemporânea, dando vida nova às tradições nele representadas. Considerando, ainda, a
maneira de abordagem da temática do cangaço como ponto positivo para seu valor de
importância.
Na última cena do filme, narrada em flashback, Benjamin Abrahão acaba de
chegar ao Recife, vindo de navio. Ele está dialogando com seu conterrâneo (Jamil)
sobre suas intenções na nova terra. A câmera faz um movimento em grua, descendo do
alto do navio em direção a eles no porto, quando se fecha o plano em Abrahão, que
afirma convicto: “os inquietos vão mudar o mundo!”. A imagem congela em seu rosto.
Encerra-se o filme.
A frase mencionada pelo cineasta libanês na cena final de Baile Perfumado, em
geral, mais uma vez demonstra a postura dos ousados cineastas nordestinos movidos
pela inquietude de realizar um longa-metragem, em Pernambuco, num período em que o
cinema no Brasil estava, novamente, em fase de lento crescimento.
No Nordeste, onde a produção nunca foi constante, a situação parecia ainda pior.
Conseguir financiamento para realizar um Nordestern não seria algo tão simples.
Deveria haver, realmente, uma inquietude por parte de Paulo Caldas e Lírio Ferreira
para realizar Baile Perfumado.
Neste aspecto, percebemos que as histórias dos três diretores (Abrahão, Caldas e
Ferreira) são semelhantes em relação à façanha de produzirem seus filmes pela
inquietude de acreditar que pode dar certo, apesar de períodos, contextos e dificuldades,
em parte, distintas.
No produto final há uma grandiosa semelhança, não em relação ao conteúdo do
filme, mas sim pela importância que as respectivas películas adquiriram: o filme de
Abrahão pelo documento histórico em que se transformou; e Baile Perfumado pelas
rupturas estéticas, pela abertura à produção local e pela repercussão nacional, o que
enaltece o cinema nordestino e, por tabela, a cinematografia brasileira.
Inquietos, corajosos, credores e confiantes, construindo a história de Lampião e
reconstruindo a história cinematográfica ocorrida em Pernambuco com o movimento do
cangaço, tratamos de diretores e trabalhos singulares: o diretor amador libanês
memoriza em imagens cinematográficas o bando dos cangaceiros; enquanto os diretores
nordestinos remontam essa memória construída no decorrer de sessenta anos.
2.5 Três cineastas e um destino
O destino seria realmente um só: construir uma narrativa cinematográfica com a
finalidade de mostrar a vida do cangaceiro Lampião e seu bando a partir de um ponto de
vista diferenciado, preocupados com aspectos culturais do movimento.
1936. Benjamin Abrahão concluiu seu trabalho. Ele filmou o cangaceiro
Lampião. Fez um documentário sobre o rei do cangaço. Ficou consagrado na história do
cinema brasileiro. São únicas, as imagens cinematográficas do Capitão Virgulino
Ferreira da Silva. E elas, as imagens, serviram de base documental para a construção da
narrativa de Baile Perfumado.
1996. Paulo Caldas e Lírio Ferreira finalizaram seu filme. Recontaram a história
do cineasta árabe que filmou Lampião. Fizeram um filme de ficção. Uma obra
considerável e notável. Uma narrativa inovadora para o gênero Nordestern. Eles, os
diretores, realizaram uma espécie de making of
86
de Lampião, o Rei do Cangaço,
reutilizando, de fato, imagens feitas pelo libanês na época.
Em geral, o filme de Caldas e Ferreira consiste num exercício artístico de
reconstrução dos fatos vividos por Abrahão em seu trabalho como cineasta. Uma forma
poética de representar o esforço do libanês que filmou Lampião.
Assim, há em Baile Perfumado um conjunto de elementos cinematográficos
conjugados para compor a representação da história do cineasta estrangeiro. Tanto ações
ocorridas na película original, quanto alguns fatos vividos pelo cineasta estrangeiro, são
referenciados pelos cineastas nordestinos.
Em tais circunstâncias, o filme de Caldas e Ferreira lida com a reconstrução
audiovisual de uma dada história, a recriação cinematográfica da realização do filme
Lampião, o Rei do Cangaço, operando, desta maneira, com questões referentes à
memória do fato ocorrido.
86
Tipo de filme documentário realizado sobre o processo de produção de um outro filme; mostra como
foi realizado o filme principal a partir de filmagens da gravação e depoimento dos participantes.
Neste momento, a questão em vigor, dependendo do ponto de vista, seria: qual a
preocupação do cinema em relação à história? O filme representa a história com
fidelidade? Os cineastas baseiam-se na história, mas não são historiadores, pelo
contrário, trabalham com histórias, mas montam às histórias para, às vezes, entreter o
público nas salas de cinema, a fim de venderem seu produto e lucrarem com isso.
Mesmo com algumas questões históricas, pelo fato de Caldas e Ferreira
remontarem à história do cineasta Benjamin Abrahão, nossa preocupação não será com
o teor de realismo. Observaremos, então, como são articulados os recursos
cinematográficos utilizados pelos cineastas para representar a história, considerando a
condição de legibilidade do sentido de algumas cenas montadas em Baile Perfumado de
acordo com a história do libanês.
Para tanto, é necessário observar três pontos cruciais do trabalho do filme de
Caldas e Ferreira em reconstruir a história de Benjamin Abrahão: cenas criadas pelos
cineastas; cenas recriadas a partir das imagens originais de Lampião; e cenas
pertencentes ao documentário do libanês inseridas em Baile Perfumado. Em geral, é
necessário pensar como as cenas produzem sentido com a finalidade de apresentar a
história do libanês.
As cenas criadas pelos cineastas contam, em parte, com o conhecimento dos
implícitos contidos na história do estrangeiro, pois eles proporcionam a legibilidade do
texto fílmico em relação aos significados em jogo.
Após a aparição do título do filme (Baile Perfumado), inicia-se uma cena de uma
querela entre o bando de Lampião e a Volante do Tenente Lindalvo Rosas. A câmera se
movimenta com velocidade por dentro do mato. Sons de chocalho, tiros de revólveres e
metralhadora, insultos gritados pelos cabras, tanto dos cangaceiros, quanto da polícia,
atravessam a cena. Com a troca de tiros surgem mortos e feridos. A querela começa a
finalizar. Entre todos, o tenente Rosas vê um policial morto e grita furiosamente: “Seus
bandidos de merda! Apois eu vou é matar vocês tudinho! E promessa de um Rosa é
dívida de cemitério. Lampião, cão de uma figa, tu vai vê só como eu vou acabar com a
tua raça até o fim do mundo, gota serena! Tu vai ver só o que é que acontece, molesta!”.
Ao termino do combate, o cangaceiro Lampo, percebendo o silêncio, dá o último tiro,
um tiro pra cima.
A cena da querela parece comum para um filme sobre o cangaço, entretanto, ela
representa um sonho, não realizado, de Benjamin Abrahão. Durante suas filmagens, o
libanês tentou o possível para filmar um combate dos cangaceiros com a polícia. Mas,
mesmo disposto a enfrentar o perigo de filmar uma querela, Abrahão não conseguiu.
“Ele contou que estava um dia em Piranhas, quando Corisco encontrou-se com uma
volante, do outro lado do rio, em Sergipe, mas, infelizmente, ele não conseguiu arranjar
ninguém com bastante coragem para remar e levá-lo até a cena da batalha”
(CHANDLER, 1980, p.226).
Em Baile Perfumado, a primeira vez que Abrahão pede ao Capitão para filmar
um ataque dos cangaceiros quase perde a vida
87
. Então, na segunda oportunidade, após
uma festa no bando, o cineasta fala com Lampião para fazerem uma simulação de
ataque dos cangaceiros, registro este contido na película original do libanês.
Portanto, a cena da querela contida no início de Baile Perfumado é uma
homenagem ao destemido cineasta estrangeiro, que, em outras condições de filmagem,
não pôde sequer encenar um combate desta natureza para filmar, como fizeram Caldas e
Ferreira.
Outro momento interessante de composição dos cineastas se passa na cena da
morte de Benjamin Abrahão.
Baseados em uma das versões histórica da morte do libanês, Baile Perfumado
constrói a seguinte cena: numa calçada de uma cidade do interior, Pedro, o aleijado,
marido da moça da pousada, caminha e pára num batente de uma porta qualquer.
Abrahão, todo vestido de branco, passa por Pedro e olha para trás, encarando-o. Então,
o estrangeiro fala em pensamento: “Que Deus me perdoe!”. Nesse instante, a câmera
mostra a cidade do alto, em plano geral. De repente, as luzes da cidade se apagam.
Ouve-se um desesperado grito.
A cena é intercalada com um som de explosão e imagens de um rio, com muita
água. Em seguida, a câmera mostra os pés de Abrahão, este deita no chão de uma sala,
agonizando. A câmera perpassa seu corpo todo ensangüentado, ainda mexendo, parando
em Pedro, que está ao lado, todo sujo de sangue, comendo algo.
87
Porque, no filme, dá a impressão de Lampião pensar que o cineasta queria filmar um ataque vendido,
recém negociado, isto é, um acordo feito com um coronel para matar outra pessoa.
Baile Perfumado, desta maneira, privilegia a versão da morte do libanês a qual
demonstra o lado mulherengo do mascate, pois, cenas anteriores, aparecem, na cama,
Abrahão e a mulher do aleijado, uma jovem admiradora do corajoso trabalho do
cineasta estrangeiro. É um trabalho de criação cinematográfica que, baseado na história
de Abrahão, monta uma versão encenada do suposto assassinato do mascate galã,
recriando uma memória da história do estrangeiro.
Em aspectos gerais, o filme de Abrahão, Lampião, o Rei do Cangaço, é o eixo
condutor da narrativa proposta em Baile Perfumado. Assim, com a finalidade de contar
a história do estrangeiro que filmou Lampião, Caldas e Ferreira remontam, em alguns
planos, as próprias imagens realizadas pelo mascate, conduzindo o espectador a
observar as cenas através da câmera do libanês, visualizando o ocorrido a partir do
ponto de vista do próprio cineasta amador dentro do bando.
Em Baile Perfumado, primeiramente, Abrahão filma os cangaceiros ajoelhados
ouvindo as preces feitas por Lampião. Em seguida, o cineasta filma diversas outras
atividades do cotidiano do bando, tais como: o carregamento de mantimentos para o
grupo, os cangaceiros reunidos conversando, a simulação de um ataque, Maria Bonita
caminhando em direção à câmera acompanhada de um cachorro.
Em especial, eles reconstroem uma cena em que Maria Bonita está penteando os
cabelos de Lampião, enquanto este coloca perfume no corpo e joga em direção à
câmera, mostrando, em suma, a vaidade o Capitão Virgulino.
As remontagens das cenas originais é uma maneira de os diretores simularem o
comportamento do bando de cangaceiros frente à câmera de cinema, demarcar a
presença da câmera no grupo
88
, com a presença de um cineasta dirigindo as cenas
desejadas e registrando as ações do bando em película.
Por fim, um dos cangaceiros, aparentemente curioso, admira o trabalho do
libanês, estando sempre ao seu lado durante as filmagens. Na ocasião, Abrahão ensina-o
a manusear a câmera de cinema e dirige-se para o meio do bando. Tal reconstrução feita
em Baile Perfumado adquire força de representação ao mostrar as imagens originais,
pois esta ação, na história do filme, possibilitou a aparição do cineasta estrangeiro nas
imagens de seu próprio documentário.
88
A câmera, em si, é um equipamento intimista, o qual provoca efeitos colaterais de comportamento ao se
aproximar de qualquer pessoal não habilitada para isso.
As recriações de cenas feitas por Caldas e Ferreira são justificadas,
precisamente, no momento em que as imagens cinematográficas reais de Benjamin
Abrahão são expostas em Baile Perfumado, mostrando, desta maneira, o resultado do
trabalho do libanês ao espectador entretido.
Após a censura de Lampião, o Rei do Cangaço, na década de 1930, foram
resgatados, em média, quinze minutos da película, isto é, menos de 30% do material
original completo. Entre as imagens “sobreviventes”, Caldas e Ferreira utilizaram
pequenos trechos da película de Benjamin, inserindo-as dentro de Baile Perfumado
como atestado do trabalho realizado pelo cineasta árabe.
Em aspectos gerais, são postas as imagens reais de Lampião e seu bando dentro
da ficção cinematográfica que narra o trajeto percorrido pelo cineasta libanês para
capturá-las. Cria-se uma condição cinematográfica híbrida, entrecruzando estilos de
filme (documentário e ficção) numa única narrativa fictícia.
O emprego de tais imagens na montagem contribui claramente para o teor de
credibilidade histórica do filme, ajudando a legitimar a história narrada como registro
do fato em si, ciente de que essas são as únicas imagens de Lampião existentes.
Reconhecemos, portanto, que um dos grandes momentos da narrativa de Baile
Perfumado “está na utilização dos documentários da época, e na criação de falsos
documentários, todos misturados e confundidos com a mise-en-scène de modo a
instantaneamente não permitir distinção” (BRITO, 1997, p.06). Em suma, as imagens
reais de Lampião e seu bando desvendam o realismo exposto pela ficção, o caráter de
versão cinematográfica de ficção é contrastado com o documentário no momento em
que as imagens de Lampião, o Rei do Cangaço aparecem.
Com a aparição das imagens, o que até então parecia verdadeiro no filme de
Caldas e Ferreira resguarda-se para o plano de representação fictícia da história do
mascate libanês. Contudo, ao tempo que coloca a ficção com o documentário, impõe-se,
assim, um caráter de realismo através das imagens originais, ressoando veracidade à
narrativa proposta por Baile Perfumado.
Por meio de imagens do filme Lampião, o Rei do Cangaço, Caldas e Ferreira
reconstroem a vivência do cineasta libanês, representam cinematograficamente a
história das filmagens de Lampião. Assim, “(...) através de suas imagens os cineastas
[Paulo Caldas e Lírio Ferreira] reinventam uma experiência. O filme de Abrahão
legitima o filme dos diretores” (YAKHNI, 2000)
89
.
A presença das imagens originais de Lampião em Baile Perfumado denota,
ainda, o resultado de uma pesquisa cerrada sobre o tema para a construção do roteiro do
filme
90
, apresentando os principais documentos históricos do trabalho como um todo.
Nesta perspectiva, “as imagens em preto e branco foram inseridas na montagem como
índice de outro momento, período este representado na matéria da narração em favor de
uma leitura positiva para o gesto original” (PINTO, 2006, p.108).
São imagens cinematográficas atravessando sessenta anos para significar em
outro momento, noutro filme, partindo de uma posição historicamente determinada para
ocupar outra posição, movendo sentidos diversos. O enunciado fílmico de Abrahão,
outrora censurado, adquire novos sentidos dentro do filme de Caldas e Ferreira.
Baile Perfumado, ao ser exibido em todo país, realizou o que Benjamin Abrahão
gostaria de ter feito sessenta anos antes: mostrar ao mundo um filme sobre Lampião e
seu bando, um documentário sobre o cotidiano dos cangaceiros, imagens reais do
cangaceiro mais destemido do sertão nordestino, pondo em questão a imagem de
facínora constituída sobre o rei dos cangaceiros. Entretanto, a conjuntura do Nordeste
brasileiro não permitiu tal façanha nos anos 1930, episódio este realizado apenas em
meados dos anos 1990, em outras condições enunciativas.
Assim, nossa finalidade é analisar, na perspectiva da AD, as inserções das
imagens originais de Lampião e seu bando em Baile Perfumado, observando o
funcionamento do discurso fílmico na produção e movimentação de sentido, aplicando
os conceitos de interdiscurso, memória, paráfrase e polissemia aos fragmentos,
existentes no filme de Caldas e Ferreira, de Lampião, o Rei do Cangaço.
89
A citação foi extraída do texto O Baile Perfumado – subversão no cangaço, de Sarah Yakhni (2000),
publicado na Internet, o qual não consta número de página. Confira nas referências.
90
O roteiro de Baile Perfumado é assinado por três pessoas: os dois diretores e o roteirista Hilton
Lacerda.
CAPÍTULO III: FRAGAMENTOS DISCURSIVOS E FÍLMICOS DE
UM LAMPIÃO
Se suas palavras pesam a chumbo, as
minhas, certamente, terão as mesmas
medidas!
(Cel. João Lebório em Baile Perfumado)
Com a apresentação dos pontos teóricos e do objeto nos capítulos anteriores, a
partir de agora, faremos a análise discursiva sobre os fragmentos do filme Lampião, o
Rei do Cangaço, de Benjamin Abrahão, contidos em Baile Perfumado, de Paulo Caldas
e Lírio Ferreira, objetivando compreender como, através das cenas, se movimentam
sentidos e se constroem discursos sobre Lampião diante do processo de reutilização das
imagens originais em outro texto fílmico.
Em tal perspectiva, trataremos de dois filmes realizados em condições de
produção diferenciadas, gerados em Formações Discursivas distintas, transitando em
uma outra condição histórica, com outras possibilidades de significação, levando a crer
que, em meio a tal percurso, sentidos diversos transitam em estradas entrecruzadas nos
caminhos de tais imagens de Lampião e seu bando ao longo desses sessenta anos.
Para melhor sistematizarmos, dividiremos as análises em duas partes, tendo em
vista a aparição das imagens de Abrahão em dois momentos no filme de Caldas e
Ferreira, o que consiste na movimentação de múltipos sentidos para cada caso, como
conseqüência. Para tanto, descreveremos tais cenas de Baile Perfumado – as duas
aparições das imagens cinematográficas de 1936, tendo em vista a compreensão da base
material sobre a qual os discursos atuam.
Em geral, trata-se de cenas originais do trabalho de Benjamin Abrahão que
foram inseridas na reconstrução cinematográfica de sua trajetória como cineasta, postas
dentro da narrativa fictícia do filme de Caldas e Ferreira. A inserção das cenas, portanto,
reflete no jogo transitório dos discursos no texto fílmico, pois tais materialidades
operam com os significados surgidos em épocas diferenciadas, movendo sentidos
diversos, fazendo significarem de outra maneira em outro tempo.
Em suma, faremos uma leitura discursiva sobre tais citações cinematográficas
para observarmos como os sentidos transitam entre os fragmentos do filme de
Benjamin, realizado em 1936, e as cenas do texto fílmico e Caldas e Ferreira, datado no
ano de 1996.
3.1 Primeira Parte: o lançamento de um filme
As filmagens chegaram ao fim. Contra a sua vontade, Abrahão foi deixado para
trás pelos cangaceiros, mas, a essa altura, já havia realizado um grande trabalho. Colheu
seu material, levou para a cidade, realizou a pós-produção, divulgou na imprensa e
lançou o filme. Cenas antes da sessão de Lampião, o Rei do Cangaço, em Baile
Perfumado, representam como se deu a repercussão do filme na imprensa. Na
seqüência, aparece um jornaleiro no centro do Recife, vendendo jornais na calçada,
gritando a manchete: “Extra! Extra! O árabe que filmou Lampião”.
A cena se passa no cinema. A sessão parece privada pelo número baixo de
pessoas na sala. Silenciosamente, aparecem as imagens cinematográficas, em preto e
branco, de Lampião e seu bando em seu cotidiano.
Na seqüência, as imagens vão surgindo sucessivamente da seguinte maneira:
imagem de Lampião, à frente do bando, ajoelhando-se no chão para fazer uma oração
com os outros cangaceiros que, logo atrás dele, permanecem em pé; em seguida,
aparecem cangaceiros carregando grandes potes ovais com água para o grupo, eles
passam em frente a Lampião. Ele sorri para a câmera; carregam, também, galhos de
árvore, colocando estes nos abrigos montados no acampamento. Ao término da ação, os
cabras se viram e fazem pose para a filmadora; em plano geral
91
, aparecem alguns
cangaceiros espalhados pelo acampamento, uns sentados e outros em pé, fazendo
atividades distintas; vê-se, depois, uma cena de Benjamin Abrahão fazendo anotações,
com lápis e uma caderneta de mão, ao lado de Lampião. A cena mostra o cangaceiro
falando algo e o cineasta, levando a mão à boca para umedecer o lápis, escrevendo no
bloco de notas, provavelmente tomando notas com o líder, provavelmente, sobre o
cotidiano do bando.
Intercalado às imagens de Abrahão, aparece uma imagem (colorido-ficcional)
dos dois espectadores da sala de cinema. A câmera perpassa de um para o outro, da
91
Enquadramento feito com a câmera distante do objeto filmado, mostrando a(s) pessoa(s) e um local por
completo.
esquerda para a direita, em movimento de travelling
92
. Tudo no mais absoluto silêncio e
em plena atenção.
De repente, na imagem seguinte, surgem imagens (originais) dos rostos de
cangaceiros aproximando-se da câmera de Abrahão, um close up
93
capaz de tirar de
foco a imagem do rosto do cabra mais próximo. A câmera se movimenta fazendo uma
panorâmica
94
para o lado direito, e volta para o lado esquerdo, parando no rosto de uma
mulher do cangaço; em seguida, cena de Maria Bonita caminhando em direção à
câmera, saindo de trás dos matos, com um cachorro ao seu lado. Ao parar, ela volta para
o local de onde começou a caminhada, talvez a pedido do cineasta para refazer a cena;
logo depois, surge a imagem de Abrahão, de chapéu de palha, mostrando um jornal a
dois cangaceiros, provavelmente com notícias do documentário.
A cena seguinte, ainda na sala de cinema, é outra imagem (original) de Lampião
rezando, ajoelhado no chão, com todo o grupo na mesma posição, ao lado e atrás dele.
Todos os cangaceiros estão sem chapéu. Intercalada à cena dos cangaceiros, aparece a
imagem (colorida) do rosto de um dos espectadores, que parece estar admirado com o
que vê na grande tela. Então, corta-se novamente para as imagens dos cangaceiros
finalizando a oração. Eles fazem o “sinal da cruz”, pegam seus chapéus, põem na
cabeça e levantam-se naturalmente.
A próxima imagem mostra o bando em caminhada. Lampião é o foco principal
da câmera. Os cangaceiros param repentinamente. O Capitão – vale salientar a patente
pelo chapéu usado por ele na cena – pega uma garrafa num dos bornais pendurados em
seu pescoço. Corta a imagem rapidamente para a mesma cena momentos depois,
aparecendo ele bebendo algo e guardando o punhal na bainha pendurada em sua cintura.
Então, eles prosseguem a caminhada com as armas de fogo nas mãos.
Vem, logo em seguida, a cena da simulação de um ataque dos cangaceiros. Um
cangaceiro, do lado esquerdo da imagem, com um cigarro na boca, dá as diretrizes para
o suposto ataque, indicando os procedimentos com o braço direito. Há alguns cabras à
sua frente, já em posição de combate, com as armas de fogo nas mãos. Corta-se de uma
imagem para a outra, mostrando os cangaceiros, lado a lado, entrando no mato,
representando um ataque conjunto. Levanta poeira enquanto estão caminhando. Corta.
Agora os cangaceiros estão andando para trás – de frente para a lente da câmera –,
92
Movimento lateral de câmera no qual o equipamento é transportado num carrinho.
93
Ângulo no qual a câmera encontra-se próximo ao objeto filmado. No caso de um personagem, mostra-
se a cabeça inteira da pessoa.
94
Trata-se de um giro horizontal da câmera. Ela permanece fixa no mesmo eixo.
homens e mulheres, todos alegres e risonhos provavelmente pela simulação da
atividade. No meio do grupo, uma mulher do bando dá uma risada mais forte, expressa
pela sua movimentação.
Por fim, a simulação do ataque é em direção à câmera do libanês. O cineasta
enquadra alguns cangaceiros enquanto eles se aproximam, mirando a lente para uma
cangaceira. Esta vem em direção à câmera apontando um revolver para o equipamento.
Entra a imagem (ficção) do rosto do espectador no cinema. Rapidamente, volta para a
imagem (original) do rosto da cangaceira mais próxima e à esquerda da câmera. Então,
passa novamente para a imagem do espectador também mais próximo da câmera –
como se eles estivessem se encarando – e encerra-se a seqüência por completo.
Para concluirmos a descrição, após a sessão (diegética) de cinema surgem duas
cenas: uma com o tenente João Bezerra ao telégrafo, dando ordens, e a outra com
Ademar ao telefone, falando sobre o documentário. Nesta segunda, vale destacar
quando o dono da Aba Film fala sobre Lampião, o Rei do Cangaço ao telefone: “Não
sei! Disseram que era um atentado aos créditos da nacionalidade”.
Esta primeira aparição das imagens de Abrahão em Baile Perfumado se dá numa
seqüência de, aproximadamente, dois minutos e quinze segundos. Sem contar com a
cena posterior aqui citada.
Diante da materialidade descrita, buscaremos compreender como se dá o
funcionamento do processo discursivo em tais circunstâncias.
Visivelmente, a aparição das imagens de Benjamin em Baile Perfumado trata-se
de uma intertextualidade fílmica que, por sua vez, evoca discursos constituídos em
outros lugares passados, isto é, implica diretamente no interdiscurso, edificando um
jogo de inter-relações de sentido entre os filmes. Diante das cenas históricas, ficamos
cientes de que algo fala antes a partir de outro lugar.
Lampião, o Rei do Cangaço, contido na Formação Discursiva em que se
constitui, significa uma afronta ao discurso oficial da imprensa e da política dos anos
1930, um descaso com o Estado Novo, pois representar um cangaceiro não mais como o
famigerado Lampião, foragido e procurado pelas volantes da polícia de quase todo o
Nordeste brasileiro, era contrariar a ordem do discurso dominante.
Este contexto confere a presença do não dito gerando sentido nos entremeios do
que é dito pelo cineasta estrangeiro através de suas imagens cinematográficas. O
discurso, assim, dando voz à historicidade dos sentidos constituídos por Lampião, o Rei
do Cangaço. Trata-se, então, de transparecer a incompletude do discurso e dos sentidos
por meio das imagens cinematográficas de Benjamin. Em decorrência da sua inscrição
enquanto sujeito – cineasta – inserido numa determinada FD, por sua vez oposta às
forças políticas do Estado Novo e ao discurso dominante da época, são materializados
discursos inesperados ao seu documentário sobre Lampião.
Ao aparecerem, os sentidos atribuídos às imagens feitas por Benjamin, no
período do Estado Novo, são movidos para a narrativa de Baile Perfumado, deixando o
passado como mediador da reformulação cinematográfica, tendo os implícitos de
afronta ao discurso dominante da meria do homem que filmou Lampião como
responsáveis pela legibilidade do discurso.
Visto no universo diegético, ou na história no filme, em Baile Perfumado, as
imagens representam o resultado do trabalho do libanês, ou seja, o documentário in
locus sobre o rei dos cangaceiros. A sessão construída no filme simula a histórica
exibição de Lampião, o Rei do Cangaço por completo. Do ponto de vista discursivo,
permanecem reverberando tais traços de sentido obtidos na FD de origem, no contexto
dos anos 1930 em oposição à FD dominante da época, especialmente por se tratar da
recriação daquele período vivido por Benjamin Abrahão.
Como observamos no filme de Caldas e Ferreira, as imagens citadas são
operadores discursivos ao trazerem à tona os implícitos constituídos em seu lugar de
origem, atualizando toda uma historicidade na narrativa cinematográfica que remonta os
fatos ocorridos.
Entretanto, essa inserção não se trata apenas da sustentação do sentido anterior
trazido para dentro do filme de Caldas e Ferreira, mas implica, também, na tomada de
outros traços de sentido – novos – constituídos a partir da aparição de tal enunciado em
outra FD, com outras condições de produção, a partir de outra posição. Em outras
palavras, trata-se de marcas da FD dos diretores inseridos no contexto dos anos 1990
que, considerando-se em sua nova condição de produção, instaura-se nos entremeios das
imagens cinematográficas originais, nos processos discursivos.
Ainda na história no filme, ao presenciarmos, enquanto espectadores, as imagens
originais de Lampião e seu bando, entram em ascensão processos que revelam o
apagamento da memória frente à ordem discursiva dominante da época, silenciando
sentidos não inscritos na memória institucional, ou seja, traços significativos do
“heroísmo” construído sobre os cangaceiros.
Após a exibição do filme de Benjamin, na narrativa de Baile Perfumado, logo é
articulada de forma autoritária o controle sobre o discurso propagado pelo filme, ao
ponto de referenciá-lo como “um atentado aos créditos da nacionalidade”. Em outras
palavras, o discurso das imagens de Benjamin rompe com o discurso dominante da
época, como explicita, por um lado, a história narrada pelo filme de Caldas e Ferreira.
Considerando o filme na História, as imagens originais ressonam discursos
históricos de uma memória preservada pela atitude ousada de um cineasta estrangeiro
em imortalizar o movimento do cangaço em sua película. A reaparição desperta uma
outra memória no presente, atualizando e re-significando o passado memorável do
banditismo das caatingas.
Inseridas em outra condição de enunciação, as imagens originais adquirem
novos traços de sentido, onde os processos discursivos atuam com a multiplicidade de
significações, a aquisição de outros (novos) dizeres em virtude de estar contido em outra
localidade para surgir enquanto discurso. Presentes na conjuntura dos anos de 1990, os
fragmentos do filme de Benjamin, atualizados em Baile Perfumado, adquirem e
ressonam o sentido de documento histórico incontestável, ou seja, trata-se da
representação imagética, cinematográfica, original do cangaceiro mais temido do
Nordeste, ganhando autoridade para proferir os processos discursivos existentes sobre
as imagens. Caldas e Ferreira, nessa articulação discursiva, fazem acordar os sentidos de
heroísmo sobre o cangaço, existentes na película de Benjamin que hibernaram durante
muito tempo pelo apagamento do discurso realizado na década de 1930. Os fragmentos
mostrados no Baile Perfumado excitam os silêncios outrora criados, transformando-os
em traços de sentidos “audíveis” para o discurso recente, no filme. O que fora, em outro
momento, silenciado, agora é mostrado na reconstrução cinematográfica do fato,
trazendo para os anos 1990 um Lampião diferente do construído pelo discurso
dominante do Estado Novo; um homem valente, destemido e poderoso, representante do
nordestino, temido pelas maiores autoridades da região.
Em síntese, o cineasta estrangeiro eterniza em imagens a história do cangaço e
seu legítimo líder: o Lampião. Após anos de existência, suas imagens adquiriram o
valor documental, de autenticação da história, e a memória discursiva do movimento se
faz nelas institucionalizada, tornando evidentes implícitos para a atualização delas em
outro(s) filme(s). E tais inserções destas imagens originais em outro(s) filme(s) soam
como processos parafrásticos discursivos, capazes de provocar o deslizamento de
sentidos no dito. Através da paráfrase se estabelece uma ligação com o passado,
mantendo uma relação estável com o já dito, ao tempo que se sugere a absorção de
outros sentidos no seu momento de reaparição: uma polissemia imensurável.
Na perspectiva da paráfrase discursiva, o passado, embora já-memorizado,
sempre está sujeito a um jogo variado de reformulações. Estas, ligadas diretamente aos
implícitos contidos na memória, mantém uma forma de regularização entre os discursos
do passado e do presente.
Como dissemos anteriormente, o primeiro momento no qual aparecem as
imagens originais dos cangaceiros no filme de Caldas e Ferreira consiste numa tentativa
de remontar o passado de Lampião, o Rei do Cangaço, construindo um universo fictício
relativo ao historicamente dado onde Benjamin realizou seu filme. Tais fragmentos
cinematográficos subsidiam a reconstrução dessa história, preservando a memória do
movimento do cangaço e, por tabela, do cinema nacional. Uma materialidade e uma
memória que se fazem marcar por outras formas de discurso presente no artesanato, no
folclore, na mídia, entre outros.
Ao serem apreendidas, as imagens feitas por Benjamin são silenciadas numa
tentativa de omitir algo dito de um lugar determinado, ocupado pelo estrangeiro que se
tornou cineasta, em tais circunstâncias, e queria falar algo diferente sobre Lampião.
Assim, ao serem reutilizadas por outros cineastas, em outra obra e condição, as imagens
originais são re-significadas, e, de certo modo, a memória do cangaço é reinventada
pelo cinema. Seu desejo de cineasta amador manifesta-se numa outra FD, em outras
condições de produção, trazendo de volta sua voz calada, de cineasta estrangeiro que
enfrentou o Lampião, penetrando no “espaço proibido” do bando e fez as imagens
“falarem” deste lugar de cangaceiro.
Na cena descrita, na representação cinematográfica da sessão de Lampião, o Rei
do Cangaço remonta-se um passado vivido pelo cineasta estrangeiro. Ao inserir as
imagens de Benjamin, prima-se por uma pureza histórica dos fatos, por mais
verossimilhança na narrativa. Tudo isso está contido na noção de paráfrase discursiva na
medida em que o cinema busca dizer, da mesma maneira, algo já dito anteriormente, por
uma voz que fora abafada e que volta para ressoar o grito do cangaço, de ter encarado o
Lampião e ter feito história com ele.
No jogo de sentidos, ao parafrasear, preserva-se a matriz do sentido do discurso
proferido – a idéia de afronta à nação. As imagens originais dos cangaceiros, com as
cenas da organização e descontração do bando, calcam o sentido não mais de bandido
de Lampião e seus cabras, não mais de fugitivo, não mais de facínora, mas sim de uma
espécie de “herói”, construindo a imagem de Lampião como um líder, um coronel, um
burguês sem propriedade privada. Por essa razão foram proibidas e apreendidas pelo
Estado Novo. Consiste numa série de imagens que entraram para história pelo peso da
discursividade nelas contida, discurso este adquirido a partir da posição sujeito ocupada
pelo cineasta Benjamin Abrahão.
No aspecto discursivo, com a repetição do já-dito, parafraseando o discurso
fílmico contido na película de Abrahão, diz-se “o mesmo” de maneira diferenciada, em
outra condição de produção, movimentando, assim, sentidos já constituídos e
silenciados nas imagens históricas de Benjamin para o dizer articulado noutro momento
histórico. Esta ação discursiva dá margem para a constituição de outros sentidos
surgidos na rearticulação, abre lacunas para serem ocupadas pelo “diferente”, ou seja, os
múltiplos sentidos que aparecem no ato da nova reformulação do discurso, ou seja, na
inserção feita por Caldas e Ferreira.
Imagens de ações cotidianas dos cangaceiros, em atividade comunitária,
expressando alegria, descontração e despreocupação com o que os cercam, são taxadas
como um contra-discurso ao discurso predominante. No Baile Perfumado, por um lado,
elas produzem tal efeito de sentido no plano fílmico, condizente com a narrativa do
filme, representam um discurso ameaçador para a ordem pública do Estado Novo; por
outro lado, elas ressonam traços de uma autêntica peça para a representação da história
de Benjamin Abrahão como cineasta.
Os fragmentos expostos na cena da sessão de cinema em Baile Perfumado
demonstram o sentido de discurso incoerente em relação ao discurso oficial da época da
realização do filme. As imagens de Benjamin foram censuradas pelo discurso contido
nelas, o que vem à tona no filme de Caldas e Ferreira. Ao mesmo tempo em que trazem
sentidos passados, os fragmentos acendem os silêncios e constituem o efeito de sentido
da autenticidade histórica, deixando soar, desta vez sendo permitido, os sentidos outrora
censurados: de dizer o Capitão Virgulino como um líder despreocupado, autoritário,
risonho, organizado, artístico, vaidoso. Isto é, significações ofuscadas pelo discurso
oficial do Estado Novo – situação explicada na narrativa de Caldas e Ferreira – as quais
não entravam na construção discursiva da figura aterrorizante que era Lampião nos anos
1930.
Um filme sobre Lampião que, na época, significou um insulto discursivo às
autoridades da região, quando articulado em outro momento, ressona de maneira
diferenciada, incorpora outros sentidos pelo discurso recente, significa como
documentação histórica, abrindo espaço para a vertente heróica de um Lampião taxado
apenas como bandido.
Levando em conta a maneira como foram articuladas no texto fílmico, as
imagens originais de Benjamin Abrahão revelam discursos perpassados por normas
políticas em relação aos sentidos, outrora silenciados, apresentando marcas do discurso
autoritário do Estado Novo próprio da estrutura social da região Nordeste.
Como consta, o fato que levou Lampião, o Rei do Cangaço a incorporar tais
sentidos é reconstituído pelos diretores pernambucanos em Baile Perfumado. Do lugar
de onde eles dizem – na conjuntura da década de 1990, na função de cineastas, no árido
movie, entre outros pontos – as imagens citadas, além de sustentarem um já-dito em
outra época, tomam outros caminhos para significar nesse momento. Ao invés de
representarem um discurso de oposição ao poder, as imagens apresentam-se como peça
fundamental para a história do fenômeno social, com símbolo de consagração do
cangaço e seus personagens, adicionando traços ao teor de mito regional construído
sobre o cangaceiro Lampião.
Da posição sujeito de onde Paulo Caldas e Lírio Ferreira constroem seu discurso
em Baile Perfumado, o mesmo e o diferente no discurso são manuseados para formular
o efeito de sentido no texto fílmico em questão, mantendo inter-relações discursivas
entre ecos passados e presentes, resgatando toda uma memória discursiva, pois as
imagens são operadores discursivos nesse jogo. O mesmo do discurso, portanto, é
sempre sujeito a uma reestruturação pela nova condição enunciativa, o que ressalta o
lugar da polissemia nos processos discursivos em cena.
3.2 Segunda Parte: reconstrução de um cangaceiro mitológico
O bando de cangaceiros já não se encontra mais no local onde estavam
acampados. O Tenente Lindalvo Rosas está à procura dos cabras de Lampião, mas só
encontra sinais de que eles estiveram lá. A cena termina e a tela fica escura para dar
início à segunda inserção das imagens originais dos cangaceiros.
Nesta ocasião, a montagem de Baile Perfumado privilegia a forma de videoclipe
para apresentar os fragmentos de Lampião, o Rei do Cangaço, sincronizando as
imagens com a música Sangue de Bairro, dos compositores Chico Science e Ortinho
Coelho, interpretada por Chico Science & Nação Zumbi.
Da tela escura, já iniciada a música, passa, repentinamente, para uma imagem
(colorida) aérea do Raso da Catarina, um espaço geográfico com vegetação verde e farto
em reservatórios de água; em seguida, corta para a imagem (original) de Lampião, na
caatinga, se dirigindo em direção à câmera. Ao se aproximar, ficando só uma parte do
rosto visível, seus lábios mexem indicando que ele está falando algo; corta novamente
para a imagem aérea, volta para a cena de Lampião e segue, por fim, para a câmera
aérea, ficcional, de Caldas e Ferreira.
A montagem segue para outra imagem aérea, em preto e branco, mostrando do
alto os lajedos, árvores e rios do Raso da Catarina. Logo depois, entra a letra da música
junto com algumas imagens de Benjamin Abrahão.
Na primeira parte, a letra da música apresenta rapidamente uma grande
quantidade de nomes de vários cangaceiros da história do movimento. Então, aparece
uma imagem (original) do bando de Lampião. A câmera faz uma panorâmica da direita
para a esquerda dos cangaceiros em pé, lado a lado; logo passa para uma imagem do
grupo reunido diante de Lampião, este fazendo um gesto com o braço; depois vem a
imagem de duas cangaceiras risonhas, aparentemente felizes, pendurando alguns
pertences (como, por exemplo, um chapéu) no tronco de uma árvore; e, a seguir,
mostra-se o bando “marchando”. Organizados em fila indiana, os cangaceiros carregam
as armas de fogo apoiadas no ombro.
Então, corta para outra imagem aérea (ficção), dessa vez mais acelerada,
mostrando árvores passando ligeiramente; corta para uma imagem (original) de uma
cangaceira, diante de um cangaceiro, arrumando-se, colocando um colar no pescoço;
mais uma vez aparece o Raso da Catarina em imagem aérea, voltando rapidamente para
a imagem da cangaceira, agora colocando o chapéu em sua cabeça.
A música prossegue. Ligeiramente, aparece uma cena (original) de Lampião e
Maria Bonita se arrumando. O Capitão sem chapéu, com os cabelos molhados,
encostado numa mesa, sob os cuidados da companheira. Maria Bonita penteia os
cabelos do cangaceiro, enquanto ele pega o perfume. Logo, Lampião começa a colocar
perfume em si e joga um pouco em direção à câmera do libanês.
Após a cena do casal de cangaceiros, volta uma cena de ficção: sobre grandes
lajedos, cercado da vegetação das caatingas, Lampião está caminhando, sozinho, no alto
dos lajedos em direção à ponta da pedra. A câmera aérea circula o cangaceiro,
mostrando sua caminhada no alto daquela “montanha”; o filme corta para a imagem
(original) do Capitão Virgulino, em frente à câmera, com um rifle nas mãos, fazendo
pose para ser filmado; então, volta para Lampião sobre o lajedo, com o vento
balançando seus acessórios de cangaceiro; entra a imagem (original) dele com seu
punhal na mão, próximo à câmera do estrangeiro, Lampião fala algo, pelo movimento
da boca; por fim, novamente sobre o lajedo, imagem colorida, a câmera aérea começa
seu movimento mostrando Lampião de longe, em plano geral, se aproximando do
cangaceiro que está no alto do lajedo. Passa ao seu lado, ficando a imagem em câmera
lenta até acabar o videoclipe por completo, em fade out
95
, fechando a cena com a tela
escura e silenciosa.
Na música do vídeoclippe, nesta última seqüência, são proclamadas as seguintes
palavras: “quando degolaram minha cabeça passei quase dois minutos vendo meu corpo
tremendo. E não sabia o que fazer: morrer? Viver? Morrer? Viver?”. Ela acaba junto ao
fim da cena.
Nesse segundo momento de aparição das imagens realizadas por Benjamin
Abrahão, em Baile Perfumado, os discursos se manifestam de maneira singular na
articulação imagética proposta pelos diretores, causando efeitos de sentidos específicos
e outras significações sobre a figura do cangaceiro Lampião nas imagens
cinematográficas.
Em geral, a cena montada, ou o videoclipe, põe em ascensão o discurso heróico
sobre o cangaceiro a partir do discurso operado pelos elementos em jogo no filme de
Caldas e Ferreira.
As imagens originais contendo Lampião desempenham um papel importante na
constituição da memória do movimento como um todo. São imagens que, inseridas em
outro contexto, conseguem fundar uma outra memória discursiva, rompendo de forma a
construir uma outra rede de filiações capaz de re-significar o Capitão Virgulino.
Assim, a memória do cangaço está sujeita a um jogo variado de reformulações,
por estabelecer relações com implícitos contidos no discurso primeiro – os sentidos das
imagens em 1936 – e seus novos traços de significação aliados à atualização da
materialidade onde transitam os discursos.
Sob a ótica do videoclipe, as imagens áreas realizadas no plano ficcional da
narrativa de Baile Perfumado expressam uma grandiosidade em relação ao cangaceiro
Lampião, pois sobre o alto do sertão ele evoca o discurso de rei do cangaço ou
governador do sertão. Esta articulação de sentido, condizente com a narrativa como um
todo, leva outros sentidos possíveis para as imagens originais quando misturadas na
mise-en-scène.
95
O fade é a transição gradual entre uma cena e um fundo neutro (tela preta): fade in é o aparecimento
gradual da cena; fade out o desaparecimento gradual.
O trabalho interdiscursivo nesse ponto traz à tona, além dos sentidos de afronta
às autoridades, os discursos outrora apagados pelo ato de imposição moral do Estado
Novo. A discursividade trafega, assim, com possibilidades de abertura para reerguer
novos significados na condição de produção do texto fílmico em 1996. Em suma, trata-
se de uma interdiscursividade, com sentidos exteriores e anteriores ao texto fílmico,
refletindo dizeres que intervêm na construção, ou reconstrução, do Lampião,
fomentando uma reescrita da história do rei dos cangaceiros.
O discurso otimista (digamos assim) contido nas imagens de Benjamin sobre
Lampião renasce na multiplicidade de sentidos possível na FD em que se encontram
inseridas, fazendo parte de um trabalho de construção, ou reconstrução, da história do
movimento do cangaço.
As cenas do cangaceiro feitas pela câmera do cineasta estrangeiro, em preto e
branco, denota a historicidade dos fatos ocorridos em tal ocasião. Dentro do universo
diegético montado por Caldas e Ferreira, cria-se um efeito capaz de misturar as histórias
– a história no filme e o filme na História – promovendo um remanejamento da
memória do cangaço; de um lado cobrindo a história oficial, do outro lado descobrindo
uma história do movimento das caatingas outrora silenciada naquela conjuntura
regional.
Considerando o filme na História, as imagens originais se inter-relacionam com
o discurso construído sobre elas na década de sua existência. Atualizadas, articuladas
em outra narrativa cinematográfica, elas ressoam - da mesma forma que na primeira
inserção – o sentido de documentação histórica autêntica, de real do cangaço; elas
carregam uma visibilidade enunciativa singular sobre o movimento, contendo
significados possibilitados de ressurgirem no novo contexto; elas evocam toda uma
historicidade ao serem atualizadas em outro(s) filme(s).
Não se trata de uma forma de apagamento de um passado, mas de uma luz dada
sobre uma memória outrora ofuscada. As imagens originais, nesta segunda inserção,
trazem para o texto fílmico de Baile Perfumado dizeres silenciados no passado e
atestam uma existência de implícitos contidos nas filiações da rede da memória do
cangaço.
No ato de parafrasear, ocorre o deslizamento de sentido pela reutilização das
imagens cinematográficas, estas operando com os discursos, pondo em evidência
significações passadas que se encontram entrecruzadas com a multiplicidade decorrente
do novo texto fílmico.
As imagens históricas – “reais” – de Lampião aparecem no Baile Perfumado
ressaltando todo um percurso histórico do cangaceiro – ora facínora, ora herói – em seu
mais tranqüilo período de atuação enquanto líder e representante de todo um movimento
de violência, furtos, luxo e prazeres.
No filme de Caldas e Ferreira, essas imagens citadas e parafraseadas
movimentam o discurso do heroísmo sobre Lampião para dentro do texto fílmico,
apagado em sua época, mostrando o espaço existente para o trabalho polissêmico na
materialidade não-lingüística em questão. De tal maneira são instaurados traços de
sentidos outros e postos em ação o discurso outrora censurado ou silenciado sobre tais
imagens. É simulado, no videoclipe, o contra-discurso das imagens naquela ordem
discursiva.
Elas aparecem na forma do “mesmo” do discurso, pela repetição da
materialidade fincada em suas condições de significação, porém inserida numa outra
ordem discursiva, articulada com demais elementos de um outro texto fílmico,
atualizadas numa outra conjuntura, a qual possibilita gerar sentidos diversos sobre a
figura do cangaceiro Lampião e seu bando, incorporando, desta maneira, o “diferente”
no discurso nos fragmentos de Lampião, o Rei do Cangaço.
As imagens refletem a história traçada por um tipo de herói que foi Lampião, um
mito da luta dos nordestinos, um símbolo da região; elas absorveram novos sentidos a
partir da sua nova posição de articulação, como operadores de discursos ou suportes
para proliferarem efeitos de sentido.
Considerando, ainda, o papel da música do manguebit como operador
discursivo, juntamente com as imagens originais de Lampião e as cenas de ficção
montadas no videoclipe em Baile Perfumado, os sentidos, de mais uma maneira, são
movimentados para os fragmentos do filme de Benjamin.
Primeiramente, a sonoridade da guitarra elétrica agregada à batida dos tambores
do maracatu pernambucano transparece a idéia de junção entre tradição e modernidade
existente no universo fílmico de Baile Perfumado. Ideal, também, do movimento
musical em si, pela releitura pop de antigos ritmos da música regional. Em outras
palavras, o discurso das músicas do movimento manguebit é o da modernidade na
cultura da região Nordeste.
Ressaltando, ainda, a letra da música de Chico Science e Ortinho Coelho, ela
apresenta o codinome de vários dos cangaceiros de Lampião, falados rapidamente um
seguido do outro, cantados num estilo rock, com voz rouca e gritos.
Referenciar os cangaceiros na música consiste em rebuscar toda uma memória
do movimento do cangaço, apresentar uma historicidade constituída através dos seus
principais personagens. Entretanto, no contexto da música, a memória é remodelada ao
citar um movimento tido como primitivo e uma região tida como arcaica numa estrutura
musical modernizada, com traços demarcadores de um outro tempo histórico. Neste
caso, ao parafrasear a história através das imagens de Benjamin, a polissemia trabalha
com a possibilidade de ocupar espaços abertos com novos traços de sentido advindos da
reinstalação do dizer.
Diante o exposto, o discurso contido na materialidade da música de Sangue de
Bairro mistura-se com os elementos contidos no videoclipe final do filme de Caldas e
Ferreira, movimentando para os fragmentos as imagens originais outros sentidos
possíveis. As cenas articuladas em tal ocasião absorvem o sentido modernista trazido
pela música do movimento manguebit, re-significando as imagens originais de Lampião
e, por tabela, a memória do cangaço ao instaurar novos traços de sentido no texto
fílmico de Benjamin Abrahão.
A segunda parte da letra da música diz o seguinte: “quando degolaram minha
cabeça passei quase dois minutos vendo meu corpo tremendo. E não sabia o que fazer:
morrer, viver, morrer, viver?”. De forma um tanto poética, a música referencia alguns
dos principais fatos que cercam a história do cangaço: violência, vida e morte. Estes
dizeres dialogam com o discurso do Estado Novo, referenciando as condições de
produção da década de 1930, na qual o filme de Benjamin está inserido. Porém, a
estrutura musical afirma a discursividade transitória dos anos 1990, do falar heróico
sobre um Lampião mitológico, símbolo da região Nordeste e da cultura nordestina.
Trazendo à tona algumas marcas históricas do movimento do cangaço, ao se
inserir no videoclipe, juntamente com as imagens reais e fictícias de Lampião, o
discurso transita pelas demais materialidades – os elementos cinematográficos –
existentes na narrativa do filme, levando traços de sentido outros para os fragmentos de
Lampião, o Rei do Cangaço citados por Caldas e Ferreira.
De início, o dizer da música reforça o caráter de documento histórico
imensurável, adquirido com o passar de vários anos, reafirmando o caráter das imagens
enquanto um dos meios simbólicos que imortalizou Lampião em sua saga.
Em aspectos discursivos, Lampião, o Rei do Cangaço traz, para dentro de Baile
Perfumado, sentidos historicamente constituídos, eficazes para a construção
cinematográfica de uma memória outrora apagada. Entre morrer e viver, o filme de
Benjamin subverte a violenta história oficial do movimento do cangaço, compondo uma
outra história dos cangaceiros: a história cultural do movimento, dotada de outra rede de
implícitos, na qual sugere outros sentidos para narrar Lampião e seu bando.
Mantendo uma inter-relação com o discurso do passado, das imagens como
afronta aos créditos da nacionalidade, o texto fílmico de Caldas e Ferreira fornece, pela
reutilização desses mesmos fragmentos imagéticos, traços de significação para as
imagens originais dos cangaceiros, vistas como instrumento moderno e tradicional.
Ao subverter a memória oficial, inscreve-se, em Baile Perfumado, um outro real
da história do rei do cangaço. Ao reerguer discursos passados, no videoclipe em
questão, Lampião é um mitológico herói da história brasileira, tendo as imagens
originais como um reforço a esse heroísmo na construção de narrativa irreverente sobre
o cangaceiro. Os fragmentos absorvem, também, nesta nova enunciação, o sentido de
instrumento de mitificação de Lampião, pois o apresentar-se na arte cinematográfica
causa um efeito de sentido no texto fílmico de Caldas e Ferreira sobre o rei dos
cangaceiros, considerando essa articulação da temática um elemento que une o
tradicional e a modernidade, ou seja, o cangaço e o cinema.
Observando, enfim, a movimentação dos sentidos por meio da utilização dos
fragmentos de Lampião, o Rei do Cangaço, constata-se o trabalho do discurso sendo
operado pelas materialidades contidas no texto fílmico. Concomitante à sua atualização,
as imagens originais são, também, re-inventadas, re-construídas e re-significadas na
narrativa de Baile Perfumado pela movimentação dos sentidos historicamente definidos,
pelo discurso e sua inter-relação com outros discursos, deslizando a partir de
determinados lugares de articulação, atuando no jogo entre o mesmo e o diferente no
dizer social.
COMENTÁRIOS APÓS A SESSÃO
O moço ta querendo abusar de confiança
dada, é? O dito ta mais que dito!
(Zé Baiano em Baile Perfumado)
Nosso filme terminou. Sobem os créditos na tela escura. As luzes suavemente se
acendem na sala. As pessoas vão se levantando de suas poltronas, saindo aos poucos,
formando uma fila. A sala vai se esvaziando, restando apenas os resíduos de comida
espalhados pelo chão. Fim da sessão.
Após a sessão, as pessoas falam sobre o filme, comentam sobre o que gostaram
ou não nas cenas, no figurino, na história, discutem sobre possibilidades para o mocinho
ou o que fariam com o vilão. Em suma, nos restam, agora, os demais comentários pós-
cinema, ou melhor, as considerações finais sobre o trabalho como um todo.
Normalmente, depois de uma sessão de cinema, um simples “não gostei!” seria
um comentário qualquer, porém pendente de uma justificativa convincente frente ao
parceiro que não partilha da mesma opinião. Como, também, um “muito bom!” seria,
talvez, um grande motivo para uma longa discussão.
Enfim, as pessoas sempre saem de uma sessão de cinema com a inquietação de
quererem comentar algo sobre o filme, nem que seja uma frase amena, como também
pode causar horas de uma acirrada discussão. Assim, faremos alguns comentários sobre
o nosso “filme”, o qual acaba de ser visto (lido), esperando haver, ou não, um senso
comum entre nossas impressões sobre a narrativa.
Inicialmente, ressaltamos a importância da AD em nossa leitura sobre o cinema,
teoria esta que oferece mecanismos firmes para a compreensão de como são constituídos
os sentidos nas materialidades diversas.
Nesta perspectiva, o sentido se estabelece a partir do que lhe é exterior, das
condições sócio-históricas de aparição. A cada exposição feita por um sujeito, inserido
num lugar ou posição social, há de se reconstituir traços de significação. O efeito de
sentido existente nas materialidades do dizer é o determinante do discurso nos processos
de comunicação social entre sujeitos. Portanto, todo dizer está propenso a se
restabelecer com novos sentidos a partir de toda e qualquer reutilização por sujeitos
inseridos em outros contextos e lugares sociais.
O processo discursivo, em tais circunstâncias, forma um emaranhado complexo
no que concerne à constituição de sentidos, pois considera fatores espalhados no tempo
e no espaço, ou mais precisamente na historicidade, que fazem parte diretamente do
discurso atuante na materialidade.
Mostrar o funcionamento do discurso enquanto tal, compreendendo como são
constituídos os sentidos, é o que possibilita a teoria do discurso junto com seus
pressupostos e procedimentos para a análise de textos diversos. A partir de noções
teóricas estabelecidas na AD, monta-se a possibilidade de analisar um discurso em jogo
numa determinada materialidade lingüística ou não-lingüística. Desta maneira
observamos a funcionalidade para com o texto fílmico.
As noções de interdiscurso e memória discursiva referem-se ao trabalho do
passado em relação ao discurso presente, considerando sentidos constituídos
historicamente, em outro(s) tempo(s), e que atuam em processos discursivos recentes.
Assim, todo discurso está inter-relacionado a outros discursos, por ora, anteriores.
O interdiscurso, por sua vez, explicita a ligação existente entre discursos em
geral, principalmente na relação entre vozes do presente e do passado memorizado, ou
seja, define a não singularidade do discurso em seu processo de formação de sentido,
refletindo, também, na não unicidade do sentido de um texto.
A memória discursiva constitui a existência de uma rede de implícitos já-
construídos necessários para o entendimento geral de sentidos expostos no jogo
discursivo de um determinado dizer; uma base dizível instituída no passado dos
discursos.
A paráfrase e a polissemia, ou o mesmo e o diferente do discurso, são noções
teóricas as quais, na AD, evidenciam o deslizamento e o movimento de sentidos
constituídos em tempos distintos. Tal movimentação pode ser observada através do
processo de repetição ou recriação do dizer em outro tempo.
Em geral, portanto, a AD possibilita o entendimento de como se constitui o
processo de significação dos objetos simbólicos a partir de tais procedimentos de
análise, o que nos rende uma possibilidade de interpretação do texto fílmico em
referência à forma de constituição dos sentidos no filme.
Em nosso caso, tais noções abordam o trabalho do discurso contido nas imagens
cinematográficas originais dos cangaceiros citadas em outro texto fílmico, baldeando a
rede de filiações pré-ditas.
Considerando a complexidade estrutural do cinema, com sua intertextualidade
inerente, procuramos formas, através da teoria do discurso, de estabelecer um
procedimento eficaz para o trabalho de análise aqui proposto. Em referência aos
pressupostos por nós aplicados, acreditamos na possibilidade de avaliar e compreender a
forma pela qual se constituem os sentidos no texto fílmico e, em parte, em seus
elementos de composição. É o trabalho de tais elementos recorrendo ao passado para
significarem no presente.
O filme, por suas características textuais particulares, requer algumas
considerações para se pensar o discurso na perspectiva francesa. Sendo assim, o texto
fílmico é alvo, também, de uma reflexão estrutural para o procedimento de análise, pois
a AD considera a necessidade de se conhecer a materialidade sobre a qual os processos
discursivos estão em atuação.
Ao abordar a temática do cangaço – ou qualquer outra temática –, o cinema
trabalha com discursos, gerando efeitos de sentidos diversos, historicamente marcados,
capazes de reluzir sobre o movimento dos cangaceiros.
No Nordestern brasileiro, portanto, várias vezes foram construídas narrativas
cinematográficas baseadas na história de Lampião e seu bando, de alguma forma
referenciando o cangaceiro, por sua vez edificando dizeres múltiplos sobre o, então, rei
do cangaço. São muitos filmes encenando Lampião, o que, talvez, necessitaria um
trabalho específico sobre cada obra para melhor entender o percurso completo da
representação cinematográfica de Virgulino Ferreira da Silva.
Com isso, nossa saga marca a seguinte dimensão: trata-se de quase o primeiro e
quase o último filme sobre Lampião; o quase primeiro é um documentário com as
imagens originais do cangaceiro; o quase último é uma reconstrução ficcional do
processo de realização do anterior. Para tanto, o segundo filme reutiliza imagens do
primeiro em sua narrativa.
Em nossa concepção, mais do que uma reutilização estrutural na narrativa, trata-
se de uma saga discursiva de sessenta anos de história – de 1936 a 1996 –, fazendo com
que as imagens originais transpirem efeitos de sentido no texto fílmico, mostrem a
possibilidade de gerar outras significações, diferentes, através da retomada da mesma
materialidade que adquiriu certos sentidos em seu tempo.
Os processos discursivos caminham por meio dessa saga imagética construída
sobre Lampião, nas imagens dele e de seu bando, proporcionando a aparição do
cangaceiro pelas filiações históricas de uma memória outrora silenciada. É a edificação
de um Lampião diferente, não mais o mesmo desenhado pelo discurso oficial, um
cangaceiro com traços, possivelmente, de processos discursivos evocados em outra
condição de produção, dentro de outra FD, por via de outros implícitos, com novas
formas de dizer Lampião em si.
A princípio, as imagens evocam sentidos apagados por uma conjuntura anterior
ao aparecerem numa reconstrução cinematográfica da história do lançamento de
Lampião, o Rei do Cangaço. Elas referenciam implícitos discursivos contidos na
memória dos anos 1930, os quais tomaram determinado significado em tal contexto.
Através da tentativa de narrar esse passado em Baile Perfumado, o discurso contido nas
imagens originais é evidenciado. Assim, antes mesmo de compreendê-las como
documento histórico em nossos dias, é preciso pensá-las como operadoras discursivas
capazes de evocar um outro tempo, o qual ressona em virtude de sua reaparição.
Em seguida, na segunda articulação dentro do texto fílmico de Caldas e Ferreira,
no videoclipe, as imagens feitas por Benjamin Abrahão apresentam lacunas preenchidas
por novos traços de sentido, advindos da nova posição discursiva ocupada pelos
diretores, da qual implantam outros elementos no filme referentes à época presente,
lugar onde se encontram inseridos os cineastas que fazem remodelar os implícitos
contidos nos fragmentos do filme do libanês, ressaltando a autenticidade das imagens
enquanto documento e emergindo a face heróica de um Lampião imortalizado pelo
cinema brasileiro.
Gestos de interpretação como o nosso revelam, em termos discursivos, uma
intricada e polissêmica constituição de memória que, ao mesmo tempo em que é
atualizada pelo texto fílmico ficcional, é reinventada pelo presente universo criado em
Baile Perfumado, re-significando o passado mencionado por Lampião, o Rei do
Cangaço, tornando “audíveis” os silêncios apagados e existentes nas tramas das
imagens cinematográficas mais representativas da história do cangaço brasileiro.
Talvez fosse necessário, para abranger nossa pesquisa, investigar a reutilização
destas mesmas imagens cinematográficas em outros textos fílmicos (como os outros
dois filmes citados anteriormente), pensando como elas movimentam e constituem
sentidos em outras condições enunciativas.
A saga de Lampião pelos caminhos discursivos do cinema brasileiro consiste
num longo e duradouro percurso vivenciado pelos diversos sentidos existentes sobre o
rei do cangaço, uma dura caminhada de construções e reconstruções narrativas e
discursivas, onde se erguem significações múltiplas na história do cangaceiro,
constituindo na criação e recriação de um Lampião mocinho/bandido.
Mesmo sabendo, de início, da morte do mocinho de nossa pesquisa, na série de
filmes-de-cangaço não se perde o eixo da narrativa pela informação que, aparentemente,
deveria ter sido sonegada no começo. Pelo contrário, ficamos, enquanto espectadores,
querendo ver outras cenas trazidas pela história do cinema brasileiro em relação ao
cangaço seu emblemático representante, observando como se inscrevem sentidos sobre
essa temática no texto fílmico. Fim.
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