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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LINGUÍSTICA E LÍNGUA
PORTUGUESA
A REESCRITA DA HISTÓRIA DO
“DESASTRE DE CAMARÁ":
AS VERDADES/VERDADES
JORNALÍSTICAS
LAERTE JOSÉ CERQUEIRA DA SILVA
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JOÃO PESSOA - PB
2007
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LINGUÍSTICA E LÍNGUA PORTUGUESA
A REESCRITA DA HISTÓRIA DO “DESASTRE DE CAMARÁ": AS
VERDADES/VERDADES JORNALÍSTICAS
Laerte José Cerqueira da Silva
Orientadora: Profª. Drª. Ivone Tavares de Lucena
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João Pessoa - PB
2007
LAERTE JOSÉ CERQUEIRA DA SILVA
A REESCRITA DA HISTÓRIA DO “DESASTRE DE CAMARÁ”: AS
VERDADES/VERDADES JORNALÍSTICAS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras
do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade
Federal da Paraíba, como exigência para obtenção do grau de
mestre.
Orientadora: Profª Drª Ivone Tavares de Lucena
João Pessoa- PB
2007
DEDICATÓRIA
A Deus, que está sempre me guiando;
A meus pais, Raimundo e Solange,
que sempre estiveram do meu lado, em todos os momentos;
Aos meus irmãos: íntegros e amigos;
A minha “Bá”, Zina, que abriu mão de seus desejos,
e, muitas vezes, do seu apaixonante sorriso
para me estender a mão;
AGRADECIMENTOS
A Deus por todas as graças, pela mão estendida (sempre), por conduzir os meus erros e acertos, ou melhor, meus
acertos nos erros.
A meus pais, Raimundo e Solange, por terem me ensinado a respeitar, amar, compreender e ter força em todos os
momentos, mesmo naqueles que pareciam muito difíceis. Por fazerem questão de, mesmo na dificuldade, dar-me tudo
que não tiveram oportunidade de desfrutar.
A minha “bá”, Zina. Negra, pobre e órfã, que me deu o que não teve, a maior riqueza do mundo: o amor
incondicional, sem relação de sangue, pelo simples ato. Por sempre esteve ao meu lado...
A meus irmãos, Laércio e Laerge, por terem corações maravilhosos, por toda ajuda, pelo exemplo de silenciosa
amizade.
A Thais, minha namorada, que mais uma vez está a meu lado no final de um trabalho acadêmico. Pela ajuda nas noites
e dias de angústia e cansaço. Pelas palavras sempre meigas. Pelo amor, que espero que seja pra sempre...
Aos meus amigos Chico e Júlio Martinez que me acolheram, com todo carinho e compreensão quando voltei para João
Pessoa, em 2003.
Aos professores Anelsina Trigueiro e Luiz Custódio da Silva, que me mostraram o caminho da pesquisa e dos estudos
acadêmicos, que sempre apoiaram e me aconselharam nas escolhas e nas inquietações. Em nome deles agradeço todos
os professores que sempre me agraciaram com o conhecimento.
A minha querida orientadora e amigona, Ivone Tavares, que deu o primeiro sim, manteve vários “sins”, compreendeu
e aceitou a minha paixão pelo jornalismo e mais do que isso, os limites que esse “feitiço” me trouxe.
As professoras Maria Angélica, Claudia Rejane e Marli Moraes que aceitaram contribuir com meu aprendizado nesta
avaliação. A Rosário Gregolin pelos apontamentos nas orientações informais. A Elisalva por ter me apresentado
Ivone, no dia em que tudo começou. A Cristina Laura e Cibele, ex-professoras, agora amigas pra toda vida e para
todos os momentos.
A Matheus Andrade, um irmão que conquistei junto com a paio pelos estudos acadêmicos. Ao estímulo e as
discussões intermináveis. Aliás, alguém pode perguntar se ele comeu galinha hoje...(risos)
Aqueles que sempre me apoiaram, de todas as formas, na batalha para manter a minha vida de duas faces, como
repórter e pesquisador: Ruth Avelino, Maria Cristina Dias, Luiz Carlos, José Valdez, Antônio Hino, Ruy Dantas,
Lucélio Cartaxo, Allyson Tetôtonio, Val França. As minhas amigas e amigos Amanda, Rafa, Eliza Freitas, Patrícia,
Vivi, Carol, Jefferson, Rafa, Chicão, Josu, Anderson, Cícero Félix, Giselle, Adilis, Fabiana, Babi, Bia Saan, Edes,
Larissa, Everaldo, Edjane, Elisiane, Valdenira e outros (as) tantos que não teria espaço para registrar, mas que sabem
da suas relações com o meu crescimento.
Agradeço a todos que não pude colocar aqui, ou esqueci involuntariamente, mas que fazem parte de minha história e
estão em meu coração.
BANCA EXAMINADORA
A REESCRITA DA HISTÓRIA DO “DESASTRE DE CAMARÁ":
AS VERDADES/VERDADES JORNALÍSTICAS
Laerte José Cerqueira da Silva
Dissertação aprovada em: __________de_________
______________________________________________
Profª. Dra. Ivone Tavares de Lucena – UFPB
(Orientadora)
______________________________________________
Profª. Dr. Claudia Rejane Pinheiro Granjeiro– URCA
(Examinadora)
_____________________________________________
Profª. Dra. Maria Angélica de Oliveira – UFPB
(Examinadora)
______________________________________________
Profª. Dr. Marli Moraes de Lima - UFPB
(Suplente)
RESUMO
“Reinventar as coisas do mundo”, o jornalismo vive desse predicado constante e ininterrupto. São histórias
do e no cotidiano, construídas no embalo do tempo, algoz dessa prática, que emergem nos enunciados e suas
cadeias, envoltos por uma materialidade inseparável. Entender o traçado do nascimento dessas histórias no
jornalismo foi o caminho deste trabalho; uma tentativa de compreender, que a representação padronizada do
cotidiano, ditada nos jornais impressos, são verdades de uma “história imediata”, heterogênea, adequada ao
momento, lugar e relação, são vontades de verdades que se estabelecem e versões de um espelho que reflete
mais de uma realidade, que reflete vários interesses. O nosso pilar são os conceitos da Análise do Discurso
de linha francesa, especificamente de Pêcheux e Foucault, que nos ajudaram a perceber o que “pode” estar
aquém e além da manchete perfeita ou de um texto jornalisticamente bem trabalhado. Para isso, utilizamos
algumas matérias da cobertura do Jornal Correio da Paraíba e Jornal da Paraíba, sobre o “Desastre de
Camará”, ocorrido em junho de 2004, no qual uma cidade foi totalmente destruída e cinco pessoas
morreram. Essa é mais uma tentativa de perceber como o sujeito-jornalista, em sua posição e interpelação,
apropria-se de estratégias da enunciação e do discurso para produzir, em seu assujeitamento, efeitos de
sentidos diversos. Um caminho sob a força e égide da ordem, condições de produção, práticas discursivas,
onde se constrói memória, constitui-se arquivo, onde o interdiscurso no intradiscurso move dizeres antigos a
lugares que o faz novo. É o desvendar do óbvio, daquele fato transformado em notícia, daquela notícia
produto de um acontecimento discursivo. Deixamo-nos levar por este caminho e tentamos analisar a
construção das matérias (de política) que viraram manchete em ambos os supracitados jornais e ir em busca
dos defeitos de sentido instaurados nos discursos desses dois veículos de comunicação/informação.
Palavras-chave: discurso jornalístico, verdades/verdades, reescrita da história, sujeito-jornalista.
ABSTRACT
“Recreating things of world”, the journalism lives from this constant and uninterrupted attribute. They are
histories of and in the quotidian, built in the elapsing of time, cruelty of this practice, which emerge in the
enunciations and its chains, wrapped up by an inseparable materiality. Understanding the birth’s trace of
these histories in journalism was the way of this study; a try to comprehend that the standardized quotidian
representation, imposed in the written journals, are truths of an “immediate history”, heterogeneous, suitable
to the moment, place and relation, are wishes of truths that are settled and versions of a mirror that reflects
more than a reality, reflects innumerous interests. Our pillar are the conceptions of the Speech Analysis of
French line, specifically of Pêcheux and Foucault, who helped us to perceive what “may” be on this side and
over the perfect headline or over a text journalistically well done. For that, it was used some news of the
Correio of Paraíba Journal and Journal of Paraíba, about the “Disaster of Camará”, occurred in July of 2004,
in which a city was totally destructed and five people died. This is one more try to perceive as the journalist-
subject, in its position and interpellation, assumes strategies of the enunciation and of the speech to produce,
in its self-submitting, effects of several meanings. A way below the force and protection of order, conditions
of production, discursive practices, in which is constructed memory, is constituted archive, in which the
interspeech in the intraspeech moves ancient sayings to places that makes it new. It is the clearing up of
obvious, of that fact transformed in news, of that news product of a discursive happening. Let us take it for
this way and try to analyze the construction of the news that became headline in both supramentioned
journals, and go searching the defects of sense established in the discourses of these two vehicles of
communication/information.
Keywords: journalistic speech, truth/truth, history rewriting, journalist-subject.
SUMÁRIO
DAS DESCOBERTAS: À GUISA DE UMA INTRODUÇÃO -----------------------10
1. CAPÍTULO I – O CAMINHO DAS DESCOBERTAS -----------------------------16
1.1 O duelo do dizer e suas formações ------------------------------------------------------ 20
1.2. A “cara” do discurso e sua interpelação ----------------------------------------------- 27
1.3. Vontade de verdades------------------- -------------------------------------------------- 31
1.4. Na trilha do sentido ----------------------------------------------------------------------- 37
2. CAPÍTULO II – O CAMINHO DO JORNALISMO ------------------------------ 56
2.1. Caminho histórico no Brasil e as formas de “reinventar”---------------------------- 56
2.2. O efeito do real e a objetividade--------------------------------------------------------- 68
2.3. As teorias do jornalismo: o processo e sua influência ------------------------------- 74
2.4. O além do jornalismo, o discurso -------------------------------------------------------79
2.5. Jornalismo: a história do/no cotidiano ------------------------------------------------- 85
3. CAPÍTULO III – AS “REIVENÇÕES”: O FATO NO CP E NO JP------------- 93
3.1. A tragédia reescrita: o espelho de cada um ------------------------------------------- 98
3.2. O duelo no ato de informar ------------------------------------------------------------ 106
3.3. Uma voz, duas versões e vários sentidos -------------------------------------------- 124
3.4. Depois de um ano, a história refeita------ -------------------------------------------- 132
À GUISA DE UMA CONCLUSÃO ----------------------------------------------------- 140
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS-------------------------------------------------- 146
ANEXOS ------------------------------------------------------------------------------------- 152
1. O caminho das descobertas
o discurso é um tesouro inesgotável de onde se podem tirar sempre novas
riquezas, e a cada vez imprevisíveis (...) ele aparece como um bem- finito,
limitado, desejável, útil- que tem suas regras de aparecimento e também suas
condições de apropriação e de utilização: um bem que coloca, por
conseguinte, desde sua existência (e não simplesmente a suas aplicações
práticas), a questão do poder; um bem que é, por natureza, objeto de uma luta,
e de uma luta política.
Michel Foucault
Agora é sem volta e estamos no meio do tesouro. Entramos nesse conteúdo
pastoso (que passa fácil entre dedos e mentes), disforme e contínuo do discurso, formado por “células
vistosas e invisíveis, microscópicas e expostas. E é de bom grado confessar: ‘ainda bem que é assim’, do
contrário estaríamos negando a possibilidade de defesa daquilo que acreditamos ser possível desvendar.
Desvendar? Seria esse o verbo da Análise do Discurso Francesa? Desvendar o opaco, o possível, o
óbvio? Tudo isso pode ocorrer? Neste caminho teórico de descobertas históricas e desagravos, refutações e
conformidades, acreditamos que a melhor resposta é continuar a procurar.
A Análise do Discurso (AD), ao longo dos últimos 38 anos, fez-se na berlinda e mostrou que tem
muito mais que sete vidas - resultado dessa procura. Das primeiras incursões de Pêcheux aos novos estudos
brasileiros sobre a sua colocação na lingüística, um percurso áspero se formou, mas nada que implodisse as
bases de uma teoria encabeçada por estudiosos atentos às necessidades de retificações e novas formulações.
É assim desde o seu nascedouro com Análise Automática do discurso (1969), escrita por Michel Pêcheux,
que não abriu mão de repensar
(...) um campo de questões no interior da própria lingüística, operando um sensível
deslocamento de terreno na área, sobretudo nos conceitos de língua, historicidade e
sujeito, deixados à margem pelas correntes em voga na época (FERREIRA, 2005, p.
14).
Esse foi o estopim para o início de questionamentos - cada vez mais vorazes e surpreendentes - dentro de
uma época de mudanças teóricas, transformações incrédulas e tantas crenças. Em 1975, o texto A propósito
da análise automática do discurso: atualização e perspectivas, uma parceria com a lingüista Catherine
Fuchs, ficou comprovado que as perturbações na ciência da língua, trazidas no fim dos anos 1960 (seis anos
antes), não eram chuva passageira. Havia mais o que desmistificar, caracterizar, enterrar e fazer nascer.
Sair do âmbito da frase e da pura técnica estrutural fez a lingüística mergulhar em várias áreas do
conhecimento e perceber que, além das palavras bonitas, do texto morfológico, sintático e semanticamente
perfeito, existe um sujeito até então descartado. A linguagem deixaria de ser entendida como origem,
ou como algo que encobre a verdade existente independente dela própria, mas sim
com o exterior a qualquer falante, o que define precisamente a posição do sujeito de
todo sujeito possível. Mas isso define o sujeito como posição, e não como uma coisa
em si mesma, como uma substância (HENRY, 1997, p. 29).
Os lingüistas mais ortodoxos (outros, nem tanto) tiveram que aceitar um prato nada digestivo (para
muitos): a existência de um sujeito, origem, destino e posição histórica e ideológica da linguagem, do dizer.
A questão é que, quando o estruturalismo estava sendo elaborado, estudiosos de vários campos das
ciências traçavam outro caminho, tentavam descobrir a identidade de instrumento de análise das ciências
humanas, por vezes, esquecido. Para Lacan, esse sujeito era desejante, que se pensava autônomo e senhor
do dizer, inconsciente estruturado como uma linguagem -“condição do inconsciente, aquele que introduz
para todo ser falante a discordância com a sua própria realidade” (Henry, 1997, p. 34); Foucault concebia
um sujeito enunciador, que ocupa posições, um sujeito do discurso, afetado diretamente pela linguagem,
pelas formações discursivas, pela ordem, mas agente da materialidade.
Já Althusser, na busca de renovar o marxismo e o materialismo dialético (Henry, 1997), retirou o
sujeito do eixo do signo e linguagem e o colocou no campo ideológico. O sujeito para ele é o da ideologia e
sem possibilidade de fugir dela. Temos a partir de então um sujeito assujeitado, interpelado pela ideologia e
pelo materialismo dialético.
Era o desenho de um novo campo teórico, que não se resume nenhum desses campos, não se
relaciona simetricamente, em sua obrigatoriedade, mas se apropria de cada saber, aquilo que pode ser
importante. Pêcheux mexe então com aquilo que havia de mais caro à linguística, a sua própria estrutura; era
o estremecimento do objeto científico, sua reafirmação e negação. Era o que alguns chamam o caráter
revolucionário da AD. “A AD caracteriza-se, como se vê, desde seu início, por um viés de ruptura a toda
conjuntura política e epistemológica” (Ferreira, 2005, p. 15). Estaria aflorando a primeira fase da AD,
denominada em 1983, pelo próprio Pêcheux, no texto Análise de discurso: três épocas.
Foi visualizando o além da lingüística estrutural que muitos teóricos descobriram que, na opacidade e
transparência das estruturas, havia mais a investigar. A ampliação dessa visão não foi só necessária para
ratificar a importância dos estudos estruturalistas, abriu um novo e vasto – por natureza – campo de análise.
Um desdobramento que apresentava um sujeito por trás das armaduras textuais. Mostrava uma vida, a
história, a memória, as condições de produção e o momento. Não estava em análise a “língua da lingüística”,
mas a língua e seus entremeios, sua historicidade, seu inevitável equívoco.
Pêcheux iniciou um processo de discussão através dos estudos de Saussure, nos quais a fala foi
evidenciada como materialização da língua (sua antinomia), produto social, como passagem de discurso e
contato com os processos sócio-histórico-ideológico. Viu-se um conjunto de signos dentro de um globo
social, no qual interação humana, contato e relações, através de códigos, são alicerces para a solidificação,
construção e significação. Explica Pêcheux:
(...) mesmo que explicitamente ele (Saussure) não tenha desejado, é um fato que esta
oposição (língua/fala) autoriza a reaparição triunfal do sujeito falante como
subjetividade em ato, unidade ativa de intenções que se realizam pelos meios
colocados a sua disposição (...) A fala, enquanto uso da língua, aparece como
caminho da liberdade humana (PÊCHEUX, 1997b, p. 71).
Foi nesse rastro que o desmembrar do dizer ou as sombras ideológicas das estruturas lingüísticas
passaram a ser pensadas também como discurso, um dispositivo operacional para análise dos teóricos do
discurso. E o eles. A AD, enquanto instrumento para desvendar o mundo, surgiu como instrumento de
conhecimento de mundo para historiadores, sociólogos, filósofos. Sua teoria passou a colocar em close tudo
aquilo que se escondia atrás dos traços da língua e registrados pelos sentidos e inconsciência. Este último
como um dos pontos de articulação da teoria, junto com língua e sociedade.
A linguagem não serviria para comunicar, seria a parte “emersa do iceberg” (Henry, 1997,
p.26). Nessa fase da AD, segundo Pêcheux (1997d), as principais características eram a aparente
homogeneidade enunciativa e a influência dos “aparelhos ideológicos” na construção do dizer do sujeito.
Com os estudos de Althusser (2001), que bebeu em Marx, as análises do materialismo histórico
(pouco interessado pelas questões estruturais da linguagem), faz-se (Pêcheux) do discurso instrumento do
homem nas relações sociais, numa preocupação em ligar discurso e práticas políticas. Ele (o discurso) seria a
ponte que ligaria a linguagem e ideologia presentes nos aparelhos de força com intuito de interferir no
processo de criação e de vivência, pois, são a partir de fatos, atos e seus registros que os discursos são
reinventados, criados, retomados, confrontados.
Toda essa ação é materializada por um sujeito que luta incessantemente com a sua dualidade e a
dicotomia do mundo. Nos ditos e não ditos, no explícito e implícito, no claro e o obscuro, no evidente, com
atitudes do sujeito, iludido pela possibilidade de agir como dono do dizer e com certo teor de subjetividade,
a AD percebe mais, assimila conhecimentos da psicanálise, sobretudo no estudo do inconsciente, a partir de
Lacan e do seu antecessor, Freud. A grande preocupação não está no sujeito e no que ele diz, mas como ele
em sua ação se posiciona, ocupando um lugar e se tornando sujeito.
Daí parte o entendimento de texto na AD, que a linguagem não deve estar afastada dos processos
sociais e históricos, pois ela é “sítio de conflito, de confronto ideológico. É arena onde se constitui todo
processo de produção das formas de representação, das idéias e dos valores de uma dada sociedade”
(Oliveira, 2005, p.07).
Como o que é dito e o que não é dito, interferem no processo de compreensão e são pré-
determinantes na construção do sentido? Onde memória, história e sujeito vivem em confluência para a
consolidação do dizer e do próprio silêncio? Foram perguntas desse tipo que fizeram o entendimento da
“realidade discursivae é assim que adentramos na pragmática da mídia, que não foge à regra, em muitos
casos, impõe-se esse passo no processo de transformação social, afinal, ela se faz como discurso e permite a
relação entre ciências sociais e prática política, importantes nesse processo.
Na sua empreitada epistemológica para consolidação de uma ‘análise do discurso’ envolvida com a
Linguística, mas também em comunhão com o sujeito, língua e história, Pêcheux se “aproximou” muito dos
estudos de Freud, Saussure e Marx. Também adiante nessa empreitada, o tão menos lingüístico e mais
filosófico “o projeto de Foucault se relaciona tensivamente com uma tríplice aliança: Nietzsche, Freud e
Marx” (Gregolin, 2004a, p. 53), mas, neste último caso, menos para formalização de uma ‘teoria do
discurso’ e mais para compreender as relações entre o saber e o poder. Daí em diante, Pêcheux e Foucault
iniciam o que Gregolin (2004a) chama de “diálogos e duelos”- teóricos. E são destes autores (e não só deles)
que vamos absorver conceitos que nos serão essenciais neste trabalho: sujeito e discurso e seus cruzamentos
(formação discursiva, ideológica; interdiscurso, silêncio, discurso autorizado).
Começando por uma noção essencial de discurso que é eleito como objeto de estudo da AD. Este
objeto de desejo, de ódio, amor; material de conteúdo essencial para as relações sociais, saber e poder, que
perturba, transforma, demarca território ou simplesmente diz. Ao mesmo tempo estaremos traçando uma
relação dele (o discurso) com a língua, que, para Pêcheux e Fuchs (1997c), pode ser concebida como lugar
material para realização de “efeitos de sentido”. Assim, pensemos nesses “efeitos de sentido” a partir do
item seguinte.
1.1 O duelo do dizer e suas formações
Na perspectiva de Pêcheux, o discurso mantém uma relação direta com o sujeito, que é afetado pela
língua, história, ideologia e assentado pelas condições de produção, de onde esse sujeito enuncia. Essas
“circunstâncias” de produção (Pêcheux 1997b, p. 75) são os momentos histórico-ideológicos, onde os
discursos são enunciados e garantem um sentido. Isso faz do discurso fenômeno lingüístico de dimensão
superior ao da frase, constituído o na transmissão de informação entre dois extremos, mas de efeito e
efeitos de sentidos entre esses pontos. Mais ainda, os processos discursivos não têm início e vivem em
comunhão com algum discurso prévio, a matéria-prima, algo que em algum momento se fez também
discurso. Por isso, quando alguém evoca um acontecimento discursivo, que já foi objeto de discurso
ressuscita no espírito dos ouvintes, o discurso no qual esse acontecimento era alegado,
com as deformações que a situação presente introduz e da qual pode tirar partido
(PÊCHEUX, 1997b, p. 77).
Pêcheux versa ser impossível analisar o discurso como um texto, através de uma perspectiva
lingüística fechada. Pensar o discurso à luz desse filósofo é concebê-lo como instrumento de materialidade
ideológica, pois, a espécie discursiva pertence ao gênero ideológico e se inscreve numa relação ideológica
de classes. Segundo ele, as relações de classe são asseguradas pela existência de realidades complexas, que
Althusser (2001), chama de aparelhos ideológicos de estado, que estimulam o jogo de práticas ligadas a
lugares e às relações de lugares, remetendo as classes, sem evidenciá-las. As relações de classe estão
presentes na sociedade e são mantidas por instituições como Igreja, Estado, Escola e Família, que
estabelecem formas de agir, de se posicionar, que divide espaços e “normatiza” os lugares a serem
ocupados. Muitas dessas normas não estão no papel, mas, através de práticas sociais, ganham forma, são
reproduzidas e repetidas e regem os processos de sociabilidade.
Para Pêcheux, o discurso nasce sob a tutela do que ele chama de formação ideológica (FI), um
conjunto de atitudes e representações que estão ligadas às posições de classe em conflito e que estão dentro
das formações sociais. A FI é um elemento de força que vive em confronto com outras forças, ganhando
forma com a ajuda das formações discursivas. As duas formações “determinam o que pode ser dito, a partir
de uma posição dada numa conjuntura, isto é, numa certa relação de lugares no interior de um aparelho
ideológico e inscrito numa relação de classes” (Pêcheux, 1997c, p. 166-167).
Em outras palavras, o discurso é, para Pêcheux, o instrumento utilizado pelas formações ideológicas,
através das formações discursivas, para demarcar uma posição; é, também, a instância mais material das
posições ideológicas, que, como vimos, surgem no estabelecimento das relações de classes, reunidas em
uma determinada instância. À luz dessas análises, podemos afirmar que as formações discursivas são parte
integrante das formações ideológicas e, através das possibilidades de movência, interferem e são
interferidas, afinal, dentro de uma mesma formação ideológica é possível ter várias formações discursivas.
Pela base da teoria pêchetiana do discurso, passam também questões relacionadas à história, ao
sujeito, à linguagem e ao inconsciente, regiões que são articuladas e atravessadas. A ideologia, no entanto, é
a “estrutura” determinante na produção de sentidos das formações ideológicas e formações discursivas. O
conjunto de ‘enunciados ideológicos’, geradores de formações discursivas, tem como célula embrionária
todo o complexo das formações ideológicas. O que significa dizer que o sentido de palavras, expressões,
proposições e afins não existem em si, mas é determinado pelas posições ideológicas do processo histórico e
social em que estão inseridos; são produtos da chamada exterioridade lingüística. Isto é,
as palavras, expressões (...) mudam de sentido segundo as posições sustentadas por
aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido, em
referência a essas posições e nas quais essas se inscrevem (PÊCHEUX, 1997c, p.
160).
Percebemos, a partir desta afirmação, que posição sujeito, lugar social e momento de discurso são essenciais
para determinar o que deve ser dito. A carga ideológica lhe é correspondente e é evidenciada nas formações
ideológicas.
O autor ainda propõe pensar numa idéia de formação discursiva (já como lugar de constituição do
sentido) também submetida às leis de contradição-subordinação-desigualdade, que caracterizam o complexo
de formações ideológicas. Recorrendo a Orlandi:
a formação discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada - ou
seja, a partir de uma posição dada e uma conjuntura sócio-histórica dada - determina o
que pode e deve ser dito (ORLANDI, 1999, p. 43).
Temos então um sujeito marcado fortemente pelo complexo de formação ideológica”, que realiza o
funcionamento da ideologia; como um agente da linguagem que se constitui pelo esquecimento daquilo que
o determina. De forma mais clara, Baronas, resume este conceito e sua relação com o sujeito falante, da
seguinte forma:
Uma formação discursiva parece-me melhor compreendida como um jogo de
princípios reguladores que formam a base de discursos efetivos, mas que permanecem
separados deles. Essa determinação sugere que palavras, expressões e proposições
adquirem seus significados a partir das formações discursivas nas quais são
produzidas (BARONAS, 2004, p. 54).
É a partir dessa “matriz de sentido” que o indivíduo é interpelado por um sujeito falante, assentado em uma
formação discursiva, agregado a uma formação ideológica e dentro de uma dada condição de produção.
Diferente de Foucault, Pêcheux não se esforça em separar a formação discursiva da formação
ideológica: uma está ligada a outra, aliás, Foucault não se preocupa diretamente com o conceito ideológico.
Mas para Pêcheux, os dois conceitos caminham juntos influenciando o que deve ser dito em uma
determinada plataforma discursiva, são balizadoras dos sentidos e determinam o dizer do sujeito (centro do
dizer, mas assujeitado ao que é enunciado). A formação da formação discursiva, segundo Pêcheux, não
ocorre através do princípio de aglomeração de enunciados dispersos com afinidades e regularidades, ela é
constituída com um pilar de sustentação ideológico por natureza, visto que, ao nascer, está sob a égide das
lutas e interesses de classes, práticas sociais direcionadas pelos aparelhos ideológicos e posições políticas
que determinam as atitudes discursivas.
Para conhecer o conceito de formação discursiva nos estudos de Foucault, temos que passar por um
conceito, que, segundo ele, está na sustentação da existência do discurso: o enunciado. Para o autor, o
enunciado é a partícula elementar dos discursos, ou seja, de forma bem direta, os discursos são conjuntos de
enunciados. O próprio Foucault, no entanto, não se contentou com essa definição, dedicando um capítulo
inteiro do livro Arqueologia do Saber (2005) para desvendar suposta obviedade. Ele não questionou
como condicionou a existência dos enunciados a estruturas comuns aos discursos e pertencentes à teoria
arqueológica, uma dessas estruturas é o signo. Afirmou Foucault: “o limiar do enunciado seria o limiar da
existência dos signos”, ou seja, a condição de existência do enunciado é a existência dessa estrutura
condicionante na constituição da linguagem, pois
a língua só existe a título de sistema de construção para enunciados possíveis, mas por
outro lado ela só existe a título de descrição (mais ou menos exaustiva) obtidas a partir
de um conjunto de enunciados reais (FOUCAULT, 2005a, p. 95-96).
No mesmo livro, Foucault ressalta que, para manter a relação desses conceitos (signo, língua e
enunciado), é preciso levar em conta a forma de produção dos enunciados, o tempo e espaço, a sua condição
de existência e materialidade. Numa reflexão, ele delimita um problema e logo responde, afirmando que o
enunciado não é uma unidade do mesmo gênero da frase, proposição ou ato de linguagem e
não se apóia nos mesmos critérios; mas não é tão pouco como um objeto material,
poderia ser, tendo seus limites e sua independência. Em seu modo de ser singular
(nem inteiramente lingüístico, nem exclusivamente material), ele é indispensável para
dizer se ou não frase, proposição ou ato de linguagem; e para que se possa dizer se
a frase correta (ou aceitável, ou interpretável), se a proposição é legítima ou bem
constituída, se o ato está de acordo com os requisitos e se foi inteiramente realizado
(FOUCAULT, 2005a, p. 97 e 98).
Ascende aí, uma outra condição da existência do enunciado, a função enunciativa. Esta função
promove a comunhão de sujeito e condições sócio-históricas no processo de produção, que permite a
existência do que está pairando sobre, ao redor, na essência das estruturas gramaticais; ela permite a
existência da enunciação, vista como um conjunto de signos que é resultado da interação de indivíduos
organizados.
O discurso/enunciado surge através dessa cadeia de condicionantes que vão fazê-lo objeto de força e
transformação e mais
assim concebido, não é a manifestação, majestosamente desenvolvida, de um sujeito
que pensa, que conhece, e que diz: é, ao contrário, um conjunto que pode ser
determinada a dispersão do sujeito e a sua descontinuidade em relação a si mesmo. É
o espaço de exterioridade em que se desenvolvem uma rede de lugares distintos
(FOUCAULT, 2005a, p. 61).
Para justificar tal afirmação, o autor nos concede o que ele chama de formação discursiva, um dos
“conceitos mais caros”, como afirma Baronas (2004) e que, atualmente, direciona muitos estudos,
discussões e trabalhos brasileiros sobre AD. Não questionaremos aqui sua origem, como faz este autor no
artigo Formação discursiva em Pêcheux e Foucault: uma estranha paternidade, publicado em 2004; nem
muito menos os eclipses entre as definições de FD apresentadas pelos teóricos. Queremos de forma breve
beber dos próprios autores suas definições visando utilizá-las na compreensão do discurso da mídia
impressa.
Dos estudos arqueológicos, temos uma formação discursiva concebida pelo conjunto de enunciados
do mesmo tipo ou com outras características, mas que mantém uma regularidade interna. Ou seja:
No caso em que se puder descrever um certo número de enunciados, semelhante
sistema de dispersão e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os
conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem,
correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, que por convenção
se trata de uma formação discursiva (FOUCAULT, 2005a, p. 43).
Mas Foucault faz uma observação que consideramos importante para muitas discussões sobre as
várias análises da AD sobre a FD. O autor afirma que a idéia com aquele conceito (o de FD) é evitar
“palavras demasiado carregadas de condições e conseqüências, inadequadas, aliás, para designar semelhante
dispersão, tais como ‘ciência’, ou ‘ideologia’ ou ‘teoriaou ‘domínio de objetividade” (Foucault, 2005a, p.
43). A nosso ver, o que ele não quer é criar uma inter-relação de conceitos já consagrados, que poderiam
desvirtuar uma idéia baseada na perícia arqueológica. Um exemplo é toda a carga das idéias marxistas
presentes na palavra ideologia que, por opção, ele o queria vincular e relacionar. O que temos, por outro
lado, é uma teoria visando compreender o funcionamento dos discursos através do conjunto de práticas
discursivas que “instauram objetos sobre os quais enunciam, circunscrevem os conceitos, legitimam os
sujeitos enunciadores e fixam as estratégias sérias que rareiam os atos discursivos” (Baronas, 2004, p. 50).
A nossa discussão se estabelece nessa relação entre o processo de produção jornalística e os
conceitos de formação discursiva trabalhados por Pêcheux e Foucault. No primeiro (Pêcheux), porque em
suas incursões para conceber o conceito, ele o faz à luz do marxismo althusseriano. Uma noção que,
mesmo deixada de lado por alguns anos, nos ajuda a entender as afinidades e posicionamentos no exercício
do poder midiático.
O nosso estudo nos faz entender como as formações discursivas “arqueológicas” e “ideológicas” se
inserem nas determinações do discurso jornalístico. Vejamos o que diz Baronas sobre a relação Foucault -
formação discursiva:
é vista como um conjunto de enunciados que não se reduzem a objetos lingüísticos,
tal como as proposições, atos de fala ou frases, mas submetidos uma mesma
regularidade e dispersão na forma de uma ideologia, ciência e teoria etc
(BARONAS, 2004, p. 55).
Partindo dessa posição que o sentido do dizer jornalístico, dos fatos “reais” são concebidos através de
enunciados dispersos em um todo que significa, temos, então, uma colcha de retalhos de acontecimentos
enunciativos que significam a partir das suas interligações, de suas dispersões e de seu todo. Como uma
corrente de elos não tão visíveis, mas que anunciam, como um sistema autônomo, a direção do percurso
discursivo e da sua base arqueológica dos dizeres. Gregolin faz a seguinte análise:
O que ele (Foucault) descreve como formação discursiva constitui grupos de
enunciados, um conjunto de performances verbais que estão ligados no nível dos
enunciados. Isto supõe que se possa definir um regime geral que obedece seus
objetos, a forma de dispersão que repartem regularmente aquilo que falam, o sistema
de seus referenciais ; supõe-se também que se defina um regime geral ao qual
obedecem os diferentes modos de enunciação(...) como se pode perceber a
conceituação tem um caráter teórico-metodológico e institui o território da história
como campo das formações discursivas: nelas se encontram discurso, sujeito e
sentido (GREGOLIN, 2004b, p. 35 e 36).
Na análise do conceito de formação discursiva, a autora aponta as aproximações entre a FD
foucaultina e a pêchetiana. Esta última, como foi dito, tem uma grande ênfase nas interferências
ideológicas do processo de produção de sentidos. Para Foucault, é o jogo enunciativo que traz à tona o
sentido do dizer. Baseado no método arqueológico, o filósofo assinala para uma posição sujeito, que está em
um lugar específico, dentro de uma ordem e historicamente determinado. Todas essas interferências marcam
os enunciados que são ratificados através de práticas e avalizam sentidos. Para Pêcheux, o jogo enunciativo
é determinado pela ideologia, de onde nascem a condição e circunstância do dizer, de onde está cravada a
posição do sujeito, o seu dizer e, por sua vez, o sentido.
Neste trabalho, os conceitos de FD de Pêcheux e de Foucault serão utilizados porque são balizadores
de nossas análises, visto que, do mesmo modo que entendemos que o efeito de sentido se constitui através de
uma materialidade ideológica, também se formata no processo de dispersão e regularidade de enunciados.
Vejamos o item seguinte.
1.2 A “cara” do discurso e sua interpelação
Por muito a cara” do discurso ficou camuflada por aqueles que acreditavam que o cientificismo da
linguagem seria perturbado com a sua evidência. O sujeito fora de cena. A linguagem insossa. O dizer
destemperado. A AD trouxe para o palco das possibilidades da língua o sujeito-autor, o inconsciente, o
ideológico, o histórico, o material, o assujeitado. Como e quando o sujeito estava não seria mais a questão.
A sua simples e turbulenta presença transformava a ótica de quem via o signo e se atrevia desvendá-lo.
Vimos que a reboque de todas as teorizações sobre a base, conceitos, caminhos e regimentos dos
processos discursivos, evidencia-se a presença do sujeito. E é dele, como posição ou como poço de
ideologia, que se concebe o além lingüístico. Pêcheux não titubeia e é enfático: o sujeito é conduzido e não
se dá conta de que não está exercendo a sua livre vontade ou ocupa lugares determinados por ele, visto que é
produto da ideologia - isso no fim da década de 60 e início de 70 - quando estava mergulhado nas questões
políticas. Um sujeito constituído pelo “esquecimento”, considerado um auto-apagamento discursivo.
Mas não cabe aqui questionar sobre a suposta recolocação desta afirmação e a época de sua
reformulação, nem muito menos colocá-la em riste. O que nos interessa, agora, é perceber que, com o passar
dos anos, o assujeitamento, ou seja, a incapacidade do sujeito de interferir no efeito de sentido
“propositadamente” (coincidentemente), que ele é dominado pelas questões ideológicas (meio e tempo,
ordem), também o coloca em condição de ser sujeito “capaz de compreender, produzir e interpretar
sentidos”. Pois, como assevera Ferreira “nem hipertrofia do sujeito cheio de vontades e intenções, nem o
total assujeitamento e a determinação de mão única” (Ferreira, 2005, p. 18-19).
Segundo Gregolin (2004a) esse reordenamento das questões do assujeitamento se deu, em Pêcheux,
quando ele admitiu que a interpelação ideológica tem falhas, fracasso e atos falhos presentes na ideologia
dominante e nos discursos dos sujeitos dominados:
o sujeito resiste à ideologia e essa resistência encontra-se materialmente instalada nos
traços do equívoco, como ‘formas de aparição fugidias de alguma coisa de outra
ordem (...) (GREGOLIN, 2004a, p. 140).
Concordamos com Gregolin com a idéia de que Pêcheux se aproxima da psicanálise para admitir que
não há dominação sem resistência e que é preciso ousar pensar por si mesmo. Ideologia deixa de ser a única
senhora de todas as horas e ao lado do inconsciente compõe este sujeito dos efeitos de sentido.
Ao falar de sujeito, Foucault o coloca em um lugar. O lugar de onde ele fala é onde estão as
formações discursivas que, mesmo dentro de uma ordem e determinado por práticas sociais, possui
“capacidade de criar sentidos e dar significações às coisas” (Lucena, 2001, p. 101)
O sujeito nos estudos de Foucault (1995) manteve uma relação sempre muito forte com o poder. A
justificativa do filósofo é que, ao tentar dividir o sujeito, ele encontrou as relações de classes determinadas
pelas relações de poder: “o sujeito humano é colocado em relações de produção e de significação, é
igualmente colocado em relações de poder muito complexas” (Foucault, 1995, p.232). A competência do
sujeito extrapola os limites da língua como estrutura rígida, é uma ação “comunicacional, discursiva e
lingüística” (Charaudeau, 2006, p. 457).
E se, para Foucault, o sujeito tem muito a ver com poder, para Pêcheux sujeito tem um verdadeiro
affair pela ideologia. Um conceito, hoje, ainda defendido apaixonadamente por muitos e pisoteado por
outros tantos. Sem interesse em colocar a mão nesse “conflito”, o que nós queremos é entender o que a
ideologia tem a ver com discurso, produção de sentido, sujeito.
Comecemos pela relação com o signo. Bakhtin, em Marxismo e Filosofia da Linguagem (1992),
assevera que todo signo é ideológico, o que o leva a ser um produto social. De acordo com ele, o signo é um
fenômeno do mundo exterior e o seu significado se constitui a partir de algo que está fora da estrutura:
O próprio signo e todos os seus efeitos (todas as ações, reações e novos signos que ele
gera no meio social circundante) aparecem na experiência exterior (...) todo signo está
sujeito a critérios de avaliação ideológica (BAKHTIN, 1992, p.32-33).
Entendemos que os signos possuem uma carga de sentido oriunda do social, adquiridas de práticas e
com ajuda de sujeitos que estão inseridos em determinado tempo e espaço. Como discurso é a junção de
signos verbais e/ou não-verbais, enunciados concebidos através da função enunciativa, é também produto do
ideológico de um sujeito que ocupa lugares e produz o seu dizer com a carga ideológica formatada dentro de
um globo simbólico de direcionamento e séries, chamado formação discursiva. Enfim, o discurso, ideologia
e sujeito conservam-se num ininterrupto triângulo amoroso.
Para Gregolin, baseada em Pêcheux, a ideologia é a relação imaginária que os homens mantêm com
as suas condições de existência e tem sua gestação e difusão, como vimos, nos aparelhos ideológicos de
Estado (escola, igreja, família, política). São eles, segundo os marxistas, que controlam os pensamentos, as
atitudes, ações com objetivo de manter as relações de poder e classe; manter, por vezes, o status quo; um
mecanismo feito para ocultar, impedir e peneirar a compreensão da “realidade”. Tal idéia esteve sempre ao
lado do materialismo histórico difundido pelos marxistas para explicar os modos de produção; as formações
sociais e as relações de poder entre classes. Vale ressaltar que não foi só a “teoria do discurso”, influenciada
pelo materialismo, vários estudos e ciências fizeram do “marxismo” essencial para ampliar suas bases
científicas.
Essa é uma linha conceptual, das várias, que tentam explicar a existência da ideologia. E é pertinente
ressaltar, de imediato, que o é nosso objetivo enumerá-las. Mas neste caminho de descobertas,
destacamos, pelo menos no que se refere a sua relação com o discurso, que ao longo do tempo, a ideologia
se aproximou definitivamente de práticas (sociais, históricas) e como forma histórica não está à margem do
tempo e do espaço, por outro lado, insere-se neles. O que esses aparelhos fazem é se apropriarem de meios
de reverberação (o discurso, por exemplo) para atribuir o efeito ideológico nas ações que lhes são
fundamentais para esse ou aquele objetivo. É elemento constitutivo das condições históricas e sociais das
produções do discurso e que, segundo Pêcheux, traz à tona as condições de reprodução/transformação das
relações através das materialidades discursivas, sintetizando que a
objetividade material da instância ideológica é caracterizada pela estrutura de
desigualdade-subordinação do todo complexo dominante das formações ideológicas
de uma formação social dada, estrutura que não é senão a da contradição
reprodução/transformação que constitui a luta ideológica de classes (PECHEUX,
1997a, p. 147).
Orlandi (1997) acredita que a ideologia deve ser percebida como processo de produção do
imaginário, de uma interpretação particular, que se coloca como necessária ao atribuir sentidos fixos em um
contexto dado. Ela não é ocultação, mas interpretação de sentido em uma direção específica determinada
pela história. A ideologia representa a saturação, o efeito de completude que, por sua vez, produz o ‘efeito’
de evidência, sustentando-se pelo já dito.
Com o intuito de darmos continuidade a nossa busca, optamos por escolher percursos que nos serão
caros para as análises. Conceitos, estudos e reflexões daquilo que chamamos de estratégias e compostos da
construção do discurso e de produção de sentidos no interior da discursivização jornalística, a fim de
encontrar a verdade nem sempre no verdadeiro, como assevera Foucault (2004). São eles: o silêncio, a
heterogeneidade, acontecimento discursivo, o discurso autorizado. Claro que, ao longo do caminho, a
simbiose teórica nos fará discutir relações de poder na concepção do jornalismo, o conceito de verdade na
AD, a sua força histórica, relações inevitáveis e inseparáveis neste percurso analítico. Para isso, Pêcheux e
Foucault serão, sem dúvida, os teóricos que nos ajudarão nestas análises; um mais alinhado à materialidade
ideológica, o outro ao poder das possibilidades arqueológicas. No entanto, o nos furtaremos, a recorrer a
outros estudiosos da língua, como Bakhtin, para compreender o funcionamento do que deve ser dito e não
dito no processo de construção de uma matéria jornalística para jornal impresso.
É preciso deixar claro que, a partir de agora, ao falarmos em acontecimento discursivo, estamos
relacionando ao aparecimento de um enunciado em um determinado tempo sócio-histórico-ideológico, em
determinada condição de produção. Pois, o acontecimento comum, ou seja, algo que aconteceu, chamaremos
de fato, que são episódios da realidade No que se refere aos conceitos de verdade, teremos a verdade
jornalística, aquele defendida como a representação do real, e a verdade discursiva, aquela baseada nos
jogos de verdade e na vontade de verdade. Vejamos, pois, o que nos diz Foucault sobre a vontade de
verdades no item que segue.
1.3. Vontade de verdades
Comecemos pela fala autorizada. No trajeto para representar a realidade”, da forma mais fiel,
verídica e objetiva, o jornalismo - no nosso caso, o impresso - apropria-se de vozes. Mas não é qualquer voz.
É sempre aquela que vem acompanhada da exterioridade, do simbólico, de legitimação, determinados por
um sistema de práticas, ordens e seguindo restrições, que se agrupam e formam o que Foucault (2004, p. 38-
39) chama de “ritual”. O ritual de quem diz e está pronto para dizer o que lhe é determinado, arraigado e
concebido. É deste ritual e de quem o determina, que vem a qualificação: são testemunhas oculares, fontes
oficiais, os representantes institucionais, “personagens”, detentores e credores da informação. São, no
momento da construção do discurso, sujeitos indicados para apontar se o fato é verdadeiro, verídico.
O discurso autorizado do entrevistado se faz dizer não pelo que diz, mas pela representação do
sujeito: quem o diz e quem o representa, pois, como assevera Foucault (apud Gregolin, 2004a, p.101), os
discursos definem uma diferente função para o sujeito, ou seja, definem estatutos, posições que o sujeito
pode ocupar e liga-se a localizações institucionais, que prescrevem o sujeito a ocupar certas posições
características no momento do dizer, visto que, está imerso na “trama histórica” (Foucault, 2005b, p.07).
Nessa matemática de produção de sentido, a conta é uma adição de emblema, uma marca,
representação, posição sujeito discursivo-histórico, e linguagem, habilidade na junção de signos. Quem diz é
tão importante ou de igual importância ao que é dito, afinal, como sujeito do discurso, ocupa um lugar
social. Segundo Foucault, descrever um enunciado não consiste em analisar a relação entre autor e aquilo
que ele disse, quis dizer ou disse sem querer, consiste em apontar qual é a posição que pode e deve ocupar
todo indivíduo para ser seu sujeito (Foucault, 2005a). Na maioria das vezes, a importância do que foi dito
tem poder porque veio de alguém que leva consigo valor de representação social, institucional.
Mas, para que o sujeito tenha o atributo de dizer algo a partir de posições é necessário pensar que
alguém lhe atribuiu este poder. Ao abrir espaço para um prefeito, por exemplo, o jornal o faz para que ele
ocupe o seu lugar da função-sujeito-prefeito. Função que lhe foi concedida, outorgada pela “identificação”
de gestor público, representante do povo e a sua voz” é sinônimo de representação. Segundo Orlandi
(2001b, p.144), a “encenação histórica do poder é advogar a clareza, a transparência” para produzir sentidos
com uma grande quantidade de discursos que tem finalidade de explicá-los, esclarecê-los e dar certeza do
sentido verdadeiro. o basta fato, é necessário dar a ele um sentido público de verdadeiro que está no
caminho da legitimação, mobilização do poder da palavra, de quem a domina e tem, oficialmente, o poder
de proferi-la.
Dentro de empresas, instituições, classes, condomínios, família, alguém, por força, conciliação,
atributos ou simplesmente por processos diversos, obtém da própria ordem institucional o crédito do dizer.
No momento em que lhe é dado o espaço para falar, ele o é um indivíduo falante é “o autor como
princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua
coerência” e mais “indicador de verdade” (Foucault, 2004a, p. 26). está a relação defendida por Foucault
em sua teoria, na qual “verdade não existe fora do poder ou sem poder”(Foucault, 2005b, p.12).
Os discursos autorizados, que compõem a teia discursiva do jornalismo, são utilizados pelos sujeitos-
jornalistas para ratificar a reescrita dos fatos jornalísticos” e são de um autor com status de indicador de
verdade jornalística, pois representa aquele que vai contribuir com a reprodução da realidade aspirada pelo
jornalismo. Uma verdade discursiva para a teoria do discurso, mas uma tentativa de representar o fato mais
próximo da “realidade” e remontar por um fio discursivo aquilo que ocorreu na vida real”. O jornalismo
tem na sua veia o caráter denunciador, transformador, crítico, de apelo e vigilância e, como presença vital
neste trabalho, traz em seus discursos a verdade referencial, testemunhal. E, assim, cada jornal se coloca
sócio-historicamente com vontades de verdades: ser um jornal com as suas particularidades e seus valores
diante da sociedade e de seu público-leitor, marcadas pelo seu dizer, pelas estratégias de discursivização.
Para Jean Baudrillard nada existe profundamente verdadeiro, a chave da verdade, segundo ele, é
mesmo a sedução, uma dramaturgia das aparências, “que prescinde o sujeito, representação e sentido” (apud
Sodré, 1996, p.64). Foucault faz uma viagem ao século VI para apontar as primeiras discussões sobre o
que é o discurso verdadeiro. É no conceito do autor que vamos nos acostar para entender esta busca.
Segundo Foucault, o discurso verdadeiro pelo qual se tinha “respeito e terror, aquele ao qual era preciso
submeter-se, porque ele reinava, era o discurso pronunciado por quem de direito e conforme o ritual
requerido (...) precioso e desejável”(Foucault, 2004a, p.15). Ou seja, a verdade estava em quem detinha o
poder para indicar o caminho dos valores, práticas sociais e atos entre os homens. A verdade era criada para
defender interesses de grupos que tentavam manter o status quo e através da coerção ia estabelecendo aquilo
que deveria ser considerado verdadeiro. Um ritual que se origina de um grupo, era massificado através de
práticas sociais e, posteriormente, práticas discursivas que se cristalizavam na sociedade em um determinado
período, época, ou momento histórico.
No jornalismo, é justamente com intuito de atribuir-lhe respeito, crédito, força de mudança e, às
vezes, terror, que “passa-se” a palavra a quem é de direito. Um ritual que lhe concede gosto de verdade e
poder transformador, sob a égide do controle. Basta ver a atenção que é dada a qualquer discurso do Papa da
Igreja Católica, maior atualidade religiosa do ocidente. Seu estatuto é símbolo, voz onipresente e onisciente.
Ao dizer, por exemplo, que o segundo casamento é uma praga, a Igreja está manifestando a sua verdade,
mais que isso, um saber religioso, com valor bíblico, uma verdade que se deseja ser mantida e ratificada
através de práticas sociais e discursivas, o que pode ou não ocorrer. Isso porque o saber e sua verdade
podem ser questionados na busca de um outro saber, ou no estabelecimento dele.
Foucault coloca que, ao lado desse respeito ao discurso ligado ao exercício do poder, está também a
transgressão, que se consolidou quando, na busca por uma vontade de saber, através das mutações da
ciência, estabeleceu-se uma vontade de verdade. Vontade que busca reconstruir uma outra verdade
produzida pela história e isenta de relações com o poder, identificando ao mesmo
tempo as coerções múltiplas e os jogos, na medida em que cada sociedade possui seu
próprio regime de verdade, isto é, os tipos de discurso que elas acolhem fazem
funcionar como verdadeiros (...) as técnicas e os procedimentos que são valorizados
para obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o poder de dizer aquilo que
funciona como verdadeiro (RAVEL, 2005, p. 86, grifo nosso).
O regime de verdade, da nossa sociedade tem na mídia, inclui-se o jornalismo impresso, por
exemplo, aparelho de controle político e econômico, uma produtora e transmissora de verdades que estão
centradas no discurso das instituições, da ciência e, segundo Foucault, permanentemente utilizada pela
produção econômica e poder político. E mais: “ela é lugar de enfrentamento social e de um debate político
violento, sob forma de lutas ideológicas” (Ravel, 2005, p. 87).
Além dos aparelhos políticos, que têm o controle dominante na produção de verdades, Foucault
destaca mais quatro características da economia política da verdade:
a verdade é centrada na forma do discurso científico e nas instituições que o
produzem; está submetida a uma constante incitação econômica e política
(necessidade de verdade tanto para produção econômica quanto para o poder
político); é objeto, de várias formas, de uma imensa difusão e de um imenso
consumo (circula nos aparelhos de educação e de informação, cuja extensão no
corpo social é relativamente grande, não obstante algumas limitações rigorosas (...);
enfim, é objeto de debate político e de confronto social (Foucault, 2005b, p. 13).
A verdade discursiva foucaultiana é aquela em que se considera o espaço, o tempo, o saber e
conhecimento de um momento, as práticas sociais e discursivas, estas últimas, como vimos, um conjunto
de regras anônimas de um tempo e espaço específicos, que definem o exercício de funções enunciativas
(Foucault, 2005a). A verdade se apresenta como uma construção necessária no embate das ciências, na
constituição dos conceitos sociais, dos valores e ações numa contingência histórica, “um conjunto de
procedimentos regulados para produção, a lei, repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados”
(Foucault, 2005b, 14). Ou seja, a verdade é construção e constituição de sujeitos históricos e determinados,
muitas vezes, é exteriorizada com intuito de se estabelecer uma prática de poder, o que, a nosso ver, é onde
se posiciona a relação do saber com o poder. Entendemos, pois, que saber e poder têm uma relação direta
com a verdade e com a vontade de verdade. Para Foucault (2004b), a verdade, aquela de um tempo histórico,
é estabelecida pelos jogos de verdade que se manifestam através de regras e normas de produção do que é
verdadeiro. Esses jogos mantem-se unido ao saber de uma determinada época e, conseguinte, ao poder, que
estão em atividade na sociedade.
Os jogos de verdade, segundo o autor, fazem parte de uma vontade de verdade, um dos
procedimentos externos dos princípios de controle do discurso, que se estabelece ao se opor o que é
verdadeiro e falso na sociedade, através do poder das instituições. O autor acredita que a vontade de verdade
apoiada sobre um suporte e a distribuição institucional, tende a exercer sobre os outros discursos uma
espécie de pressão e um poder de coerção, pois, acredita-se em tal vontade que é produzida historicamente e
sob operação das formas de controle. O jornalismo, portanto, constrói-se como instituição a partir da
constituição de cada jornal que se conduz com regras de controle do dizer instituindo-se, assim, seu poder de
coerção e fazendo-se “acreditarnuma construção discursiva que é identitária de sua vontade de verdade. É
importante compreender que os sujeitos que pronunciam os discursos são interpelados por regras que
envolvem o chamado ritual: as sociedades dos discursos, as doutrinas e as apropriações sociais. E o sujeito-
jornalista passa a ser interpelado pelas regras que envolvem o ritual do jornalismo fixando a eficácia do seu
dizer e produzindo efeitos de sentidos peculiares enquanto sistema social de instituição.
Vejamos o que diz Gregolin:
Por meio do ritual definem-se a qualificação, os comportamentos, as circunstâncias
que devem possuir os indivíduos que falam, e todo um conjunto de signos que
devem acompanhar o discurso; assim ele fixa a eficácia suposta ou imposta das
palavras, seu efeito aos quais se dirigem os limites de seu valor de coerção
(GREGOLIN, 2004a, p. 104).
Por conta desse efeito, dos três sistemas de exclusão que atingem o discurso, a vontade de verdade é
fundamental, segundo Foucault. Afinal, toda produção discursiva. operando em uma sociedade, vai
veicular jogos de verdade e a vontade de verdade. Isso ocorre porque é do que se estabelece verdadeiro que
se obtêm ações transformadoras ou mantenedoras de sistemas sociais e institucionais; que se apregoa o saber
de uma época e de um tempo; que se balizam práticas e atitudes, possibilitando estabelecê-las como
fundamental ao longo do tempo, ou, contraditoriamente, como estímulo para o nascer da resistência, da
governamentalidade, entendida como o governo de si por si na sua articulação com as relações com o outro
(Foucault, 1997, p.111).
A governamentalidade, segundo Foucault, é uma das evidências do poder moderno, que se contrapõe
a um sistema unitário, organizado em torno de um centro que é, ao mesmo tempo, sua fonte e que é levado
por sua dinâmica interna a se estender sempre. O poder moderno o se configura como absoluto, mas
dissipado em vários locais e instâncias, que surge de forma tênue, no mesmo ritmo das liberdades
individuais. A governamentalidade é a junção de ações utilizadas para
constituir, definir, organizar, instrumentalizar as estratégias que os indivíduos, em sua
liberdade, podem ter uns em relação aos outros. São indivíduos livres que tentam
controlar, determinar, delimitar a liberdade dos outros e, para fazê-lo, dispõe de certos
instrumentos para governar os outros (apud OLIVEIRA, 2005, P.54).
Dos princípios de controle do discurso, dois nos interessa destacar, o da doutrina e o de apropriações
sociais do discurso. O destaque se pela relação tênue, mas existente, que tais procedimentos têm com o
jornalismo. As doutrinas, por exemplo, têm um papel fundamental de limitar o discurso a alguns sujeitos,
que possuem uma pertença prévia, pois ligam aos indivíduos, enunciados específicos. as apropriações
sociais do discurso são princípios que gerenciam a responsabilidade de algumas instituições no que tange à
distribuição dos discursos.
No que se refere ao texto, o controle e a disciplina, na busca da vontade de verdade, estão na própria
técnica de contar os fatos através da tentativa de ausência, na tentativa de usar a terceira pessoa do verbo,
que o coloca numa posição de escuta, como mero reprodutor de palavras e discursos de outros. É através
desta tentativa que, segundo Gomes (2003, p. 90), “se apaga a mediação do jornalista, jornal, fontes,
condições técnicas, discurso corrente (o ideologicamente ou politicamente correto) e, finalmente, a própria
língua”.
Nas análises, veremos que, seja priorizando as intervenções e vozes dos representantes, como
simples técnico de reprodução de palavras, ou se utilizando de análises, gráficos, estudos científicos, no
jornalismo e no sujeito discursivo (o jornalista) uma busca incessante pela vontade de verdade,
consagrada, desde o seu nascimento em formações discursivas, embrenhadas em posições ideológicas. O
que forma na trilha por onde caminham os sentidos. O item seguinte pretendemos mostrar essa trilha.
1.4 Na trilha do sentido
Outro composto do discurso que segue a trilha da produção do sentido é a chamada heterogeneidade
discursiva. É dela que vamos nos ocupar, agora, na busca de criar bases, para perceber como o “dizer” do
jornalismo ganha, atinge e modifica o espaço social. Um instrumento, às vezes , imperceptível, em outros
momentos evidentes.
Para delimitar nosso percurso, registramos que é de Bakhtin, Foucault e Pêcheux, as definições que
serão importantes para a nossa análise, estudos sobre o caráter heterogêneo na construção do discurso que
nos são suficiente e abrangente. Porém, com trabalhos nessa vertente estão Althier-Revuz e Benveniste, que
também serão retomados para consolidar o caminho, traçado na chamada AD-3-Análise do Discurso terceira
época (Pêcheux, 2005a), na qual a heterogeneidade discursiva foi tematizada através das “formas
lingüísticas e discursivas do discurso outro” (Oliveira, 2005, p. 07). O enunciado/discurso se consolida
como um mosaico discursivo formado por várias vozes”, no caso do jornalismo: citações, falas,
interpretações, marcadas por um autor, que fala de um lugar de representação simbólica e resgatando outras
vozes.
É através desse “autor”, uma das dimensões do sujeito (Foucault 2005), que se concebe o caráter o
heterogêneo do discurso. O sujeito, “origem”, o centro do dizer, foi questionado quando se percebeu que, na
reintegração do conceito de subjetividade, nos estudos lingüísticos, institui não o eu, mas também o tu.
Significa que quando um eu fala ele o faz a partir e para o outro. Ao se considerar a existência de uma
“outra pessoa” na enunciação, creditou-se a possibilidade da interferência de outros discursos e de outros
dizeres, de um outro momento histórico e de outra força ideológica,
dessa forma, como ser projetado num espaço e num tempo e orientado socialmente,
o sujeito situa o seu discurso em relação aos discursos do outro. Outro que envolve
não o seu destinatário para quem planeja, ajusta a sua fala, mas também envolve
outros discursos historicamente constituídos e que emergem na sua fala
(BRANDÃO, 2000, p.49).
A partir da heterogeneidade da constituição do sujeito histórico, social e ideológico, um discurso também
heterogêneo se manifesta explícita ou implicitamente, das formas mais simples às mais complexas. Althier-
Revuz (apud Brandão, 2000, p. 50) aponta algumas dessas formas. Segundo ela, a heterogeneidade está: a)
no discurso relatado, aquele que é possível identificar o locutor e suas palavras, seja direta ou indiretamente;
b) no discurso marcado por conotação autonímica, no qual o locutor se inscreve no dizer sem que haja
interrupção no fio discursivo e isso é demarcado por sinais como aspas, por exemplo; e no c) discurso não
marcado pela presença do outro, onde o dizer anterior se insere no dizer atual sem que seja marcado ou
delimitado, inserindo-se num espaço semidesvelado e do implícito (Brandão, 2000).
Maingueneau (1993) também recorre a Althier-Revuz quando explica os elementos de constituição
do discurso. Ele, a partir do estudo, considera a heterogeneidade em dois planos: a heterogeneidade
mostrada e a heterogeneidade constitutiva
1
:
A primeira incide sobre as manifestações explícitas, recuperáveis a partir de uma
diversidade de fontes de enunciação, enquanto a segunda aborda uma
heterogeneidade que o é marcada em superfície, mas que a AD pode definir,
formulando hipóteses, através do interdiscurso, a propósito da constituição de uma
formação discursiva (MAINGUENEAU, 1993, p. 73).
1
Termos utilizados por Althier - Revuz em Hétérogénéité montrée et Hétérogénéité constituitive: éçements pour une aproche de
l’autre dans le discours (1982)
Essas formas de identificar ou não identificar um discurso dentro do outro, ratificam o princípio
de que fundamenta a natureza da linguagem, a sua heterogeneidade. Ou seja, um discurso se constrói a partir
de outros tantos que estão evidentes ou opacos, camuflados ou pincelados, marcados ou não. A forma da sua
apresentação o modifica essa característica, que o faz múltiplo, histórico e social, mais do que isso, o faz
forte pelas suas possibilidades de criação e articulação. A miscigenação do discurso enriquece a obra
discursiva.
Para Bakhtin, o princípio da heterogeneidade discursiva da linguagem tem nome: dialogismo,
“princípio constitutivo da linguagem e condição do sentido do discurso.” (Aldrigue, 2001, p. 81). O
princípio dialógico é concebido através da relação, da criação coletiva, do ordenamento de partes num todo
para produzir sentido, e que, para Bakhtin também integram o processo de interação verbal, pois
a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de
formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato
psicofisiológico de sua aparição, mas pelo fenômeno social de interação verbal,
realizada através da enunciação ou das enunciações (BAKHTIN, 1992, p.123).
Para este autor, o discurso é integrante de uma discussão ideológica em grande escala, que se utiliza
do dialogismo para responder alguma coisa, refutar, confirmar, antecipar respostas e objeções e têm nela
uma base de apoio. A heterogeneidade discursiva, aqui também concebida como possibilidade de incitar
diálogos entre discursos, revela algo múltiplo, formatado pela junção de vários discursos que fazem parte de
uma formação ideológica específica ou não; que são as vozes de um sujeito ou de outro; que partem de um
local e tempo específicos ou não; que são transformados e reutilizados, remontados, na tentativa de unificar
tantos caminhos discursivos.
A possibilidade de inserir no discurso os fios dialógicos vivos, tecidos pela consciência sócio-
ideológica (Bakhtin, 1992) permite que se fale discurso polifônico e numa teoria da polifonia
2
, onde se
considera as vozes, a manifestação de múltiplos dizeres sociais. Brandão registra que
Os fios dialógicos vivos são ‘os outros discursos’ ou o discurso do outro que,
intertextualmente, colocados como constitutivos do tecido de todo discurso, tem
lugar não ao lado mas no interior do discurso. O discurso se tece polifonicamente,
num jogo de várias vozes cruzadas, complementares, concorrentes e contraditórias
(BRANDÃO, 2000, p.53).
2
Conceito desenvolvido por Bakhtin e, em seguida, por O. Ducrot como conjunto de várias vozes (fala/ discurso) em uma voz.
Um dos mecanismos da heterogeneidade discursiva, segundo Maingueneau (1993).
São através desses fios que nascem duas características importantes no estudo da estrutura do
discurso: a interdiscursividade e o intradiscurso, presentes na constituição de sentido e que permitem um
ciclo ininterrupto de aparecimento dos discursos, numa atuação de complemento, confronto e atração.
A interdiscursividade, segundo Charaudeau e Maingueneau (2006) é a propriedade do discurso de
estar relacionado com outros do mesmo campo discursivo ou de campos distintos, isto significa que, mesmo
em formações discursivas diferentes, até mesmo antagônicas, é possível os discursos se atravessarem para
produzir sentido. O objeto da interdiscursividade, por sua vez, é o interdiscurso: “um jogo de reenvios entre
discursos” (Charaudeau e Maingueneau, 2006, p. 286).
A interdiscursividade é a relação do presente discursivo com o seu passado retomado por imposição
do processo de produção do sentido através do enunciado discursivo. Oliveira (2005) coloca o discurso no
domínio do pré-construído que se consolida no efeito de encadeamento, ou seja, num processo natural de
formação do discurso através de discursos outros. É a reconfiguração dos discursos ou de suas formações
idênticas ou antagônicas, complementares ou não; um retorno e uma redefinição do dizer entrelaçado por
natureza. O interdiscurso é o espaço da união do disperso, que, na plataforma interdiscursiva, ganha sentido
compacto. Por isso, para Maingueneau, não é possível estudar o discurso sem que se considere o
interdiscurso, visto que, na constituição de um está o outro.
O interdiscurso também mantém uma estreita relação com o intradiscurso. Este se constitui por conta
daquele. Segundo Oliveira (2005), com base em Pêcheux, enquanto o interdiscurso é ato de encadeamento,
o intradiscurso é resultado de articulação, formulação. É no espaço do intradiscurso que a forma-sujeito
intervém no enunciado, no repetível, possibilitando, assim, novas atuações” (idem, p. 29). Courtine (in
Orlandi, 1997, p.90) considera o interdiscurso e o intradiscurso como dois eixos da produção do sentido,
sendo o primeiro como eixo responsável pela constituição (vertical), ligado ao saber discursivo, sua história
(o dizível, o já-dito); o segundo eixo é o da formulação, que representa a atualização do dizer por um sujeito
em seu aqui e agora.
Em Pêcheux, o caráter da heterogeneidade discursiva se firma no início da obra, quando ele relaciona
o discurso ao pré-construído e ao -dito; quando insere o discurso no globo da formação discursiva e da
formação ideológica; e quando, na materialidade do enunciado, elementos do discurso são retomados após
os esquecimentos do sujeito. Segundo Gregolin foi assim que
derivou a idéia de que um discurso se constitui a partir de um discurso já-lá, de um
interdiscurso cuja objetividade material (...) reside no fato de que isto fala sempre
antes, alhures, independentemente (GREGOLIN, 2003b, p.18).
O caráter heterogêneo da enunciação, nos trabalhos deste Pêcheux, é justamente o que ele chama
também de interdiscurso, que, neste caso, designa as possibilidades de “criações” discursivas e colocações
ideológicas. É que as possibilidades doadas ao sujeito, através do interdiscurso, dão-lhe uma autonomia
aparente e impõe o seu assujeitamento. Em Semântica e discurso (1975), Pêcheux define o interdiscurso
como todo complexo dominante das formações discursivas, submetido à lei de desigualdade contradição -
subordinação, que caracteriza as formações ideológicas.
Enfim, a heterogeneidade no efeito de sentido está na liberdade do sujeito em seu assujeitamento e
ação de ir e vir com os discursos, colocá-los e retirá-los, redefini-los e reunificá-los de acordo com as
formações ideológicas que lhe é determinante dentro do seu esquecimento
3
e das suas possibilidades de
resistência.
Essa infinidade de desempenhos da língua, na finitude de regras, também é objeto de estudo de
Foucault (2005, p.30). O filósofo francês compreende o enunciado também em sua singularidade e
estreiteza, determinando as duas condições de existência, estabelecendo as suas correlações com outros
enunciados que podem estar ligados. Para ele, o enunciado não se esgota na língua, nem em um sentido, não
porque está ligado a um gesto de escrita ou articulação de palavras, mas porque recorre a uma memória,
materialidade. É único e pode conduzir outros enunciados e, principalmente,
está ligado não só à situação que os provocam, e a conseqüências por ele ocasionadas,
mas ao mesmo tempo, e segundo a uma modalidade inteiramente diferente, a
enunciados que o precedem e o seguem (FOUCAULT, 2005a, p.32, grifo nosso).
Ou seja, enunciados diferentes estão sempre se remetendo uns aos outros, em “convergência com
instituições e práticas” (Foucault, 2005, p. 134) com objetivo de produzir sentidos; seja através do princípio
da raridade, que repousa na idéia de que nem tudo é sempre dito, seja no acúmulo, seja lá, através da
apreensão da história na busca de re-significar.
É essa movência, que, a nosso ver, ao discurso esse caráter heterogêneo, com enunciados que se
conservam, se transmitem, transmutam; que têm um valor dos quais procuramos nos apropriar, repetindo,
reproduzindo, transformando e preparando circuitos pré-estabelecidos para os quais damos uma posição
dentro de uma instituição (Foucault, 2005a, p.136) Por isso, conclui Foucault, não há enunciado
livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou
de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando e
neles se distinguindo: ele se integra sempre a um jogo enunciativo, onde tem sua
participação, por ligeira e ínfima.(...) que não suponha outros; não há nenhum que não
3
Para cheux, o sujeito cria uma realidade discursiva ilusória quando do processo de construção do sentido no discurso. Isso
acontece sob duas bases de esquecimento. O esquecimento 1, como ele chama (1997b), é aquele de natureza ideológica e
inconsciente, no qual o sujeito se coloca como origem do que diz, exclusiva do sentido de seu discurso. O esquecimento 2 é
aquele em que o sujeito recorre ao que foi dito, por ele mesmo, para aprofundar o que pensa: é do tipo pré-consciente.
tenha, em torno de si, um campo de coexistências, efeitos de série e sucessão, uma
distribuição de funções e papéis (FOUCAULT, 2005a, p. 137).
Por isso, compreendemos que o jornalismo se utiliza muito disso. Faz do “novo não o que está no que é dito,
mas no acontecimento de sua volta” (Foucault, 2004, p. 26), nas suas aplicações práticas e força
heterogênea, na sua utilização a serviço do poder. Ver a heterogeneidade aplicada ao jornalismo - a partir
dessas concepções - é entendê-lo como um todo repartido. Com regras próprias de subjetivação e
significação, mas que, ao longo do seu processo de produção, caminha para trazer, reformar, reutilizar os
discursos. Da utilização da terceira pessoa, como forma de neutralizar o dizer e reintroduzi-lo em contexto, à
evidência do apoteótico circo dos discursos autorizados, passando pelo resgate histórico- busca de forças
que interferem no fato e constroem o acontecimento discursivo- o que se materializa nos jornais é o
heterogêneo a serviço do “homogêneo”.
Eugênio Bucci, na introdução de Poder no Jornalismo, de Mayra Rodrigues Gomes (2003), faz
colocações importantes para iniciarmos essa discussão. Segundo ele, as notícias dos jornais não relatam a
realidade - ou aquilo que acreditamos como tal- não que os jornalistas mintam, distorçam, ou manipulem,
mas, na sua concepção, o que temos é uma realidade consolidada como relato. Bucci vai mais além. Afirma
que o jornalismo já nasce como relato, pois, como fato, já nasce traduzido. Vejamos:
os fatos acontecem, no instante que acontecem, como relatos. Ou se quisermos
como elementos discursivos. Um fato ambiciona a condição de relato - pois só o relato
dará a ele, mero fato, um sentido narrativo. o há, portanto, fato jornalístico sem o
relato jornalístico. O que pretendo dizer, enfim, é que o relato jornalístico ordena e,
por definição, constitui a realidade que ele mesmo apresenta como sentido de
realidade feita de fatos (BUCCI, 2003, p. 09).
Os jornais narram fatos, buscam contar um ocorrido, para isso, utilizam-se dos enunciados, espaço de
geração de acontecimentos discursivos, conceito este que corrobora com a teoria foucaultiana, quando da
sua defesa de uma história heterogênea, descontinua, não linear, formada por séries e rupturas.
A investigação dos acontecimentos discursivos, de sua irrupção e de sua forma de aparecimento,
define o método arqueológico de análise, visto que, os estes acontecimentos são enunciados gerados por um
sujeito interpelado, que ocupa lugares em seu tempo e espaço. Os acontecimentos discursivos estão na
ordem do saber e da verdade de um tempo e são deles que se tem o reflexo das histórias. Todos os dias
novos acontecimentos discursivos estão na ordem das leis do jornalismo. Eles produzem uma radiografia do
que acreditamos ser a ordenação dos principais ‘fatos’ do dia e “cristalizam certos objetos em nossa
cultura”. (Gregolin, 2004, p.88). Para Bucci, hoje, além dos brocardos jurídicos, o que não está na mídia, e
aqui a entendemos como produtora incessante de acontecimentos discursivos, não está no mundo. (Bucci,
2003, p. 12). E foi assim que Foucault entendeu a história do mundo, entendida através da singularidade dos
acontecimentos enunciativos, que não é um “lugar de repouso e certezas - de um sono tranqüilizado”(2005a,
p. 17).
É preciso entender que os acontecimentos discursivos e os fatos (considerados jornalísticos) o
bases para o caminho da análise histórica, e é neles que se constituem os jogos do poder presentes no
discurso: as formas de controle, disciplina e resistência. É por isso que não é possível ver a história como
linear. No caso do jornalismo, foi através dos fatos que se construiu a função simbólica, antes exclusiva ao
direito, como ordenar e atribuir valores, definir o bom e o mau, condenar, normatizar, punir. Ao criar o
acontecimento (em tempo e espaço próprios) a mídia “hierarquiza sentidos e valores, preconiza condutas”
(Bucci, 2005, p.12).
Para o jornalismo, acontecimento é sinônimo de fato, que está na instância de real, algo ocorrido em
um tempo e lugar, que merece atenção para ser cristalizado em palavras, estórias, fotografias; fato que
merece relato. O “fato”, que é a matéria-prima do jornalismo se torna acontecimento por meio do
discurso, do enunciado, intermediado por um sujeito. “Ele é fato por ser uma cena - e é uma cena para que
possa ser vista como um fato”. (Bucci, 2003, 10). Em outras palavras, os fatos relatados pelo jornalismo , só
se fazem mostrar, só tem vida “pós-momento”, porque são marcados pelo discurso, pelo dizer.
na teoria discursiva, o acontecimento é a volta do enunciado para se fazer novo. A assinatura de
uma ordem de serviço feita por um governo, por exemplo, como ação da realidade, existe no exato
momento do ato, em seguida, possibilidade inerente de se transformar em acontecimento discursivo. Nessa
perspectiva, como acredita Bucci (2003), a realidade não antecede o discurso - os fatos jornalísticos não
antecedem o discurso jornalístico, eles são materializados pelos discursos. A realidade - compartilhando
ainda com o autor - é um discurso que se articula em signos lingüísticos, sobretudo em signos visuais e, logo
em seguida, discursivo oral e escrito. “O que chamamos de realidade é sempre realidade discursiva” (Bucci,
2003, p. 11).
No caminho da representação do real, seja através da história do passado ou história do presente
jornalismo- seguimos as trilhas do acontecimento. Para Foucault (2005), ele é a cristalização de imposições
históricas e seu aparecimento representa aparição dos discursos. Por sua importância, sua ascensão através
das funções enunciativas
4
, está inevitavelmente ligada à tentativa de imediação histórica. E, dentro da
construção da história, pode, como afirma Lacauture (2002, p. 232), não ser mais que um fenômeno
secundário no processo de mudança social, mas também pode ser um criador de emoções passageiras,
distinguido pelas formas de escuta, reconstrução dos fatos e acrescentamos: objeto dos operários da
memória.
4
Segundo Foucault (2005a) a função enunciativa é condicionante para existência do enunciado, promovendo a comunhão de sujeito e condições
sócio-históricas no processo de produção e permitindo a existência dos efeitos de sentido pairam sobre, ao redor, na essência das estruturas
gramaticais. Mas não parece ser só isso, ascende aí uma cadeia de condicionantes que vão fazer do discurso esse objeto de força e transformação.
Entender o discurso como acontecimento é, compartilhando com Baronas (2004, p. 108), “aceitar
que é ele que funda a interpretação, constrói uma verdade, dá rosto às coisas. Por isso o discurso é objeto de
disputa, em vista do poder que, em seu intermédio se exerce”. Afinal,
certamente o acontecimento não é substância nem acidente, nem qualidade, nem processo;
o acontecimento não é da ordem dos corpos. Entretanto ele não é imaterial; é sempre no
âmbito da materialidade que ele se efetiva, que é efeito; ele possui o seu lugar e consiste na
relação, coexistência, dispersão, recorte, acumulação, seleção de elementos materiais; não é
ato nem a propriedade de um corpo; produz-se como efeito de e em uma dispersão material
(FOUCAULT, 2004a, p. 57).
Ter uma noção do que seja o acontecimento, segundo Foucault, é um dos princípios reguladores para a
análise. Junto da noção de acontecimento, estão o de séries, o de regularidade e a de condição de
possibilidade. De acordo com ele, a essas noções se opõem o conceito da história tradicional, como criação,
unidade, originalidade e significação, que, para ele, não mais contemplam as possibilidades. Sua defesa
parte do princípio de que a história não procura mais compreender os acontecimentos em um jogo de causas,
de forma homogênea e hierarquizada, mas se propõe a considerar e aceitar as séries diversas, entrecruzadas,
divergentes e que permitem identificar o lugar do acontecimento e, como já dissemos, as condições de sua
aparição. A nossa discussão foi até os conceitos da história para que possamos perceber que, como
acontecimento discursivo, o jornalismo é também dispersão, regularidade, série, descontinuidade,
casualidade, dependência e transformação. E, é através destas características que esta prática produz sentido,
antecipa “fatos reais” e os anunciam.
Para Pêcheux, o acontecimento aparece como princípio de ordem, que faz com que enunciados ditos
em outros lugares reapareçam reagrupados, como atuais, ou como resquícios de memória. Ao travar a
discussão sobre a essência do discurso, cheux concede ao acontecimento, bem como a sua estrutura, um
lugar de destaque. Visto que, é no confronto discursivo, segundo ele, que se apressa a vinda (evidência) do
acontecimento e se concretizam as possibilidades da estrutura, afinal como ele mesmo afirma:
Todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si
mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro (...)
Todo enunciado, toda seqüência de enunciados é, pois, lingüisticamente descritível
como uma série de pontos de deriva possíveis (...) (PÊCHEUX, 1995, p.53).
É nesse ‘sistema do acontecimento’ composto por enunciados que se agrupam, reagrupam, excluem-
se e reproduzem-se, que vai se modelando os efeitos de sentido. Da estrutura ao acontecimento, o discurso
se alicia às diversas possibilidades de fazer sentir, ouvir, marcar e significar na forma mais sublime, como
evento do instante, da hora, anunciando o amanhã, ou simplesmente num movimento ininterrupto do retorno
do que foi, mas que pela sua característica perene de estrutura e ideológica de acontecimento, faz-se novo
transformador, velho e também transformador.
Ao propormos uma discussão sobre a operação discursiva do jornalismo, não poderíamos deixar, em
segundo plano, as questões relacionadas a uma das bases dos estudos de Foucault no que se refere ao seu
estudo arqueológica, e é um dos instrumentos essenciais na produção de sentido no dizer jornalístico: o
arquivo. Trata-se de algo que faz com que o relato de uma fonte, dados oficiais, vozes sociais não surjam do
nada. O arquivo é ingrediente constituinte de toda teia discursiva que o sujeito-jornalista se apropria para
concepção do produto noticioso.
Porém, antes de falarmos do todo, comecemos pelas partes. O arquivo, enquanto sistema de
formação e transformação de enunciados, possui partículas discursivas que se juntam de maneira ilimitada ,
disforme que permitem a sua formação. Estamos falando do a priori, que entendemos como montanhas e
emaranhados de textos e discursos dispersos e regulares, idéias e conceitos de tempo e épocas diversas que
pairam sobre e se estabelecem nas atitudes humanas, nas suas ações e que servem de substância,
combustível para o exercício enunciativo. De forma bem simplista, é tudo aquilo que um indivíduo qualquer
precisa para se fazer constituir.
O a priori permite que os discursos, como afirma o próprio Foucault (2005a), não tenham apenas um
sentido ou uma verdade, possuam uma história, uma história específica que não o reconduz para um
caminho desconhecido, pois o desconhecimento, neste caso, é sempre uma retomada, um diálogo de massas
de textos que pertencem às mesmas formações discursivas, as suas exclusões, ao processo de demarcação de
território, aos conflitos materializados (escritos), as redescobertas e as transmutações, instrumentos que
possibilitam a condição de existência dos enunciados, define-se como conjunto de regras que caracterizam
uma prática discursiva. Esse a priori
deve dar conta dos enunciados em sua dispersão, em todas as suas falhas abertas por
sua não-coerência, em sua superposição e substituição recíproca, em sua
simultaneidade que não pode ser unificada e em sua sucessão que não é dedutível
(FOUCAULT, 2005a, p. 144) .
o arquivo, em sua espontânea função de acúmulo pujante, transforma-se nessa massa heterogênea
que, como sistema, instaura os enunciados e vê-se junção de práticas discursivas com jeito nada amorfo,
porém aparentemente fixo, mas que, ao ser tocado se refaz em um novo tempo, doa-se a novas retomadas e
de sarcófago faz-se uma múmia andante, capaz de repensar os discursos, torná-lo singular, a mais exímia
peça de raridade, mais novo espaço de acúmulo.
O arquivo justifica, segundo Foucault, o reaparecimento de tantas coisas ditas pelos homens, em
outros tempos, fora do jogo de circunstâncias e das regras de pensamento. Ele surge a partir de todo um jogo
de relações que se dão no nível do discurso e da discursividade. Pois,
o arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o acontecimento
dos enunciados como sistemas singulares (...) é também o que faz com que todas as
coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não se
inscrevam, tão pouco, em uma linearidade sem ruptura (...) (FOUCAULT, 2005a, p.
147).
Na sua aparente incansável tentativa de esclarecer como o arquivo borbulha na máquina discursiva,
Foucault, atribui ao próprio arquivo responsabilidade de definir o sistema de enunciabilidade, ou seja, a
aparição dos enunciados, não lhe dando como função proteger e conservar o acontecimento discursivo
para as memórias futuras. Por isso está longe de ser
O que unifica tudo que foi dito no grande murmúrio confuso de um discurso, longe
de ser apenas o que nos assegura a existência no meio do discurso mantido, é o que
diferencia o discurso na sua existência múltipla e os especifica em uma duração
própria. (FOUCAULT, 2005a, p. 147).
A esse sistema geral de formação e transformação dos discursos creditamos no poder de criar
possibilidades através da sua concepção, compostas por práticas discursivas e, por sua vez, de uma
multiplicidade de enunciados. Deixemos, então, de ver o arquivo como peça intacta e imóvel de museu,
histórica, marcante e inquestionável, visto que, mais do que isso, ele permite a movência de algo que está,
em sua totalidade, disposto a contribuir para o surgimento do novo, do raro, de um novo caminho: do inerte
ao móvel, do inconcebível ao possível. Mas como é possível localizar esse sistema tão viril, reprodutor,
reconciliador na atividade discursiva? A nosso ver, está em todos os lugares onde é possível fazer o resgate,
nem que seja em fragmentos miúdos, da sua existência.
Para Pêcheux (1999, p.49) esse lugar se chama memória. Local, sem endereço fixo, onde os
discursos ditos em algum tempo e lugar alojam-se e esperam o aperto do gatilho. Onde é possível
compreender as condições em que um acontecimento histórico é suscetível de vir e a se inscrever na
continuidade interna, pois, através da sua função contraditória de guarda e doação, é possível a constituição
dos discursos. E não estamos falando só de memória da maneira biológica, como capacidade de guardar uma
cena, um ato, uma frase, fatos de uma determinada época, visto que, a história não cansa de nos mostrar que
os instrumentos de memória não cessam de aparecer, sem pedir licença para viver uma vida nômade,
deixando sempre em alguém, em algum lugar e tempo capacidade individual de nos inserirmos como seres
sociais, nos constituindo como sujeitos, onde nós nos encontramos.
A memória deve ser entendida “nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social
inscrita em práticas, e da memória construída do historiador” (Pêcheux, 1999, p.50). E é na memória
discursiva onde todas elas ganham contornos materiais através da linguagem, pois,
a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como
acontecimento a ler, vem restabelecer os implícitos (quer dizer, mais tecnicamente,
os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que
sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível
(PÊCHEUX, 1999, p. 52).
A memória discursiva não permite as materializações de sentidos dispersos, irregulares e, por
vezes, até perdidos, como permite também que o acontecimento discursivo em sua constituição, através da
linguagem, seja entendido em um tempo diferente, distante ou próximo, aqui ou acolá, seja refeito de forma
a enquadrar-se ao mundo que ela ressurgiu dentro do ciclo da memória. Acreditamos que a memória
discursiva é a responsável pelo vai e vem dos discursos, sua movência, reestruturação, re-significação.
Achard (1999, p. 8) acredita que a memória não pode ser provada, não pode ser deduzida de um
corpus e trabalha se for reenquadrada em um discurso concreto, para isso acentua-se a retomada e as
paráfrases. Ou seja, a memória (suposta pelo discurso) é uma reconstrução da enunciação que, por sua vez,
regula “a retomada e a circulação dos discursos” (Achard, 1999, p. 17). Uma das conseqüências é o fato de
que a estruturação dos textos é uma questão social, através de sua circulação social, para nós, ininterrupta.
As memórias individual, coletiva, social, discursiva têm um papel de fundamentação no nascimento
de práticas sociais e discursivas e vice-versa, formações sociais, formações discursivas e ideológicas. É na
busca do que ficou guardado no baú flutuante das memórias que se constitui um tempo presente, que se
constituem os novos arquivos, discurso, dizeres, sentidos. Por isso, a memória é fundamental ao discutirmos
os efeitos de sentido nas matérias jornalísticas. As suas redes permitem que o passado seja reconduzido na
construção do novo acontecimento discursivo, “provocando sua emergência na memória do presente”
(Gregolin, 2003a, p.54).
A nosso ver, uma das análises mais felizes sobre a memória é a de Jean Davalon, principalmente
porque se aproxima da análise que faremos adiante. Segundo a primeira constatação que se impõe para que
haja memória é que o acontecimento ou o saber suscetível a ser registrado sai da insignificância. “É preciso
que ele conserve uma força a fim de poder posteriormente fazer impressão” (in Achard, 1999, p. 25) Uma
força que não está na sua espetacularização, pois o interesse no acontecimento depende de quem o quer
fazer. Veremos que isso acontece com freqüência na decisão do que é ou não é notícia (fato) no jornalismo.
Uma outra constatação feita pelo autor é que um acontecimento ou um saber não é forçosamente
mobilizar e fazer jogar uma memória social. Há necessidade de que o
acontecimento lembrado reencontre a sua vivacidade; e, sobretudo, é preciso que ele
seja reconstruído a partir de dados e de noções comuns aos diferentes membros da
comunidade social. Esse fundo comum, essa dimensão intersubjetiva e, sobretudo
grupal, entre eu e os outros especifica, diz Halbwachs, a memória coletiva
(DAVALON, in Achard, 1999, p.25).
Como vimos, entra no circuito agora a memória coletiva, que é parte da memória social e, segundo o
autor, tem um caráter paradoxal: possui ao mesmo tempo uma capacidade de conservar o passado e
fragilidade porque está suscetível a um grupo que pode desaparecer e eliminar a chance dessa memória se
perpetuar. Isso se o conteúdo dessa consciência grupal não se materializar, no que, o próprio Davalon
chama de arquivos da mídia.
De todos aqueles compostos do discurso ou melhor, que consideramos como tal, dadas as suas
capacidades de produzir sentido - o silêncio é um dos mais impressionantes; contraditório por natureza. Ele
é abstração e evidência. É nada e muita coisa. Ele está no seu jeito de não se estar. Sua presença é, ao
mesmo tempo, sumiço e evidência. Ele é resistência e poder: o silêncio está a serviço do dizer. Ele é
fundante e político (Orlandi, 1997). Não basta não só ser o silêncio, mas fazer companhia a um dizer, afinal,
como assevera Orlandi (1997 p. 31), “o silêncio é o real do discurso”.
É do perfil desse conceito, que nasce sob a tutela do antagonismo e da diferença e de As formas do
silêncio (Orlandi, 1997), que vamos tirar aspectos importantes desta análise. Não nos furtaremos, no entanto,
de recorrer a elucubrações de autores como Foucault que, na Ordem do Discurso (2004), relaciona o o
dizer com os princípios de disciplina e exclusão.
Como acredita Orlandi (1997, p.12), não queremos manter o silêncio na excrescência, como resto da
linguagem, mas como condição essencial para significar; algo menos passivo e negativo e, umbilicalmente,
ligado à história e à ideologia. Para a autora, o silêncio é a respiração (o fôlego) da significação; excesso e
não falta; um lugar para recuar para que se possa significar, para que o sentido faça sentido. “Reduto do
possível, do múltiplo, o silêncio abre espaço para o que não é ‘um’, para o que permite o movimento do
sujeito”. (p.13) E é daí que parte a nossa discussão.
Como espaço onde se permite a transmutação do sujeito, o silêncio é também lugar de acionamento
ideológico, solidificação de formações discursivas e demarcação de território da ideologia. Dizer e não
dizer, neste caso, dentro da cópula das formações discursivas estão em comunhão para significar, produzir
sentidos juntos. Por isso, acreditamos em um silêncio ligado fortemente à ordem de um dizer determinado.
De todos os modos do silêncio elencados pela autora, um nos é muito relevante no momento de
análise das matérias jornalísticas. Não é o que atravessa as palavras, nem o que está entre elas, ou que indica
outro sentido; é um onde se observa algo “importante que nunca se diz”, que está entrelaçado aos sujeitos
assujeitados, porém que, por todas essas características, aparece interligado à história e à ideologia, do local
onde ele é sentido. Dentro de uma prática marcada por técnicas de construção de texto, regras de
formatação, modos de exibições de idéias, que ali se silencia pela própria justificativa do ato, da ação
descontínua e dispersa.
Nesse terreno, consideramos que o silêncio tem seus modos próprios de significar. Ele o faz ao lado
da palavra sem precisar dela diretamente. Do mesmo modo que não se reduz à ausência de palavras,
segundo Orlandi (1997), pois, as palavras também são carregadas de silêncio. Um e outro não se excluem.
Essas duas atuações (fora e dentro da palavra) nos fazem compreender que o silêncio é base constituinte
da significação na linguagem, condição da produção de sentido, é o silêncio fundador. Baseado nessa
hipótese a autora afirma
O silêncio não é o vazio, o sem-sentido; ao contrário, ele é o indício de uma
totalidade significativa. Isso nos leva à compreensão do vazio da linguagem como
horizonte e não como falta (ORLANDI, 1997, p.70).
Uma outra forma do silêncio apreendida é a política do silêncio, ou seja, a arte de escolher não dizer
em determinado momento sócio-histórico. Ao definir de fato que pode ser dito e que deve ser apagado, por
seu caráter indesejável, em um momento discursivo determinado, estamos definindo uma política do
silenciamento. A diferença do silêncio fundador e da política do silêncio é que “a política do silêncio
produz um recorte entre o que se diz, enquanto o silêncio fundador não estabelece nenhuma divisão: ele
significa em (por) si mesmo” (Orlandi, 1997, p 75).
Na política do silêncio, que nos interessa, por ser estratégico diante de posições ideológicas e
históricas, o eixo do sentido se instala com o objetivo de dizer isso para deixar de dizer aquilo, ou vice-
versa, silenciar nisto para evidenciar aquilo:
Por se apagam os sentidos que se quer evitar, sentidos que poderiam instalar o
trabalho significativo de uma ‘outra’ formação discursiva, uma ‘outra’ região de
sentidos. O silêncio trabalha assim os limites das formações discursivas,
determinando conseqüentemente os limites do dizer (ORLANDI, 1997, p. 76).
Este recorte desejável é determinado pelas condições de produção, formações discursivas, tempo, entre
outros apontamentos, é comum no jornalismo. Ao definir o foco de uma matéria, por exemplo, o repórter o
faz, inevitavelmente, dentro de uma política de silenciamento. Não que o outro silêncio, o fundante, não
esteja presente: deixar algo de fora, por uma questão espacial, por exemplo, é comum e faz sentido no
resultado final. O que estamos colocando em discussão é que o silêncio provocado pela ideologia e história é
mais comum do que se pode imaginar, porque ele, nos grandes sistemas de comunicação, representa, muitas
vezes, posições partidárias e políticas, grandes negócios, interesses pessoais e particulares; representa o
sistema do poder e controle.
É importante ressaltar que, nesse caso específico, a política do silenciamento não deve ser resumida à
censura: produção do silêncio de “forma fraca” que é, segundo Orlandi,
uma estratégia política circunstanciada em relação à política dos sentidos: é a
produção do interdito, do proibido (...) o silêncio da censura não significa ausência
de informação, mas interdição. Nesse caso não coincidência entre o não-dizer e o
não saber (ORLANDI, 1997, p. 77 e 110).
A censura é umas das formas explícitas de silenciamento e tem ligação profunda com a proibição de
um sujeito ocupar lugares e posições no discurso, bem como interdita o sujeito em formações discursivas.
Mas nosso objetivo aqui não é falar dessa interdição, nem como isso acontece como processo. O que
queremos é perceber o silenciamento, como política do silêncio, na sua forma mais sutil, mais silenciosa,
sem coerções e determinações políticas e ditatoriais, como estratégia discursiva de produção de sentido e
vivo em um momento considerado de livre expressão jornalística. Silenciamento, fato de linguagem,
materialidade discursiva específica e parte integrante de uma formação discursiva, que, como mola mestra,
determina o que deve ser silenciado e o que deve ser evidenciado.
Antes disso passaremos pelo dizer do jornalismo, pela rota traçada por ele ao utilizar da
discursivização para representar e reinventar as coisas do mundo. É o que consta no capítulo seguinte.
2. O caminho do jornalismo
Meu coração não é maior que o mundo, ele é muito menor.
Nele não cabe nem as minhas dores. Por isso,
gosto tanto de me contar, por isso, me dispo, por isso,
freqüento jornais e me esponho cruamente nas livrarias.
Carlos Drummond de Andrade
2.1 O caminho histórico
e as formas de “reinventar”
De acordo com Nelson Werneck Sodré (1983), um dos maiores estudiosos da história da imprensa no
Brasil, foi em 10 de setembro 1808 que fomos “agraciados” oficialmente pelo primeiro número de um jornal
brasileiro. A imprensa brasileira inicia-se com a publicação da Gazeta do Rio de Janeiro, um jornal que
estava preocupado “quase que tão-somente com o que se passava na Europa” (Sodré, 1983, p.19) e
patrocinado por D. João VI que, fugindo da força de Napoleão Bonaparte, amparou-se em terras tupiniquins.
Três meses antes, no entanto, o Correio Brasiliense é editado e publicado, em Londres, por Hipólito
da Costa, “a quem se atribui o título de fundador da press brasileira” (Pereira, 1994, p. 43). O jornal foi
publicado no exterior, segundo Hipólito, porque havia uma dificuldade de fazê-lo no Brasil, “já pela censura
prévia, pelos perigos que os redatores se exporiam, falando livremente das ações dos homens poderosos”
(Sodré, 1983, p. 20).
Assim, como a Gazeta do Rio de Janeiro, impresso no Brasil sob a tutela da realeza, o Correio
Brasiliense tinha um caráter doutrinário e não noticioso. A diferença estava na perspectiva dada aos textos
que, segundo Sodré (1983), falavam de um Brasil visto de fora, segundo as condições internacionais.
Diferenças a parte, com a criação desses dois jornais, estava estabelecida para se desenvolver no Brasil a
atividade de impressão. Estava, portanto, estabelecida a origem da representação do real do país no papel
que, inicialmente, reproduzia-se na produção de documentos oficiais. Também estaria estabelecida a ordem
oficial e oficiosa do discurso impresso que ainda não era considerado jornalístico, pois, nessa época, não se
fincava ainda o jornalismo como visto hoje, ensaiado para ser transformador, para suprir necessidades
histórico-sociais, mercadológico, como reconstrutor do universo social, calcado na operação de informações
e seleção dos fatos mais importantes. Segundo Pereira,
os jornais que atravessaram todo o período histórico, que vai desde a época colonial
até o Império, passando pela Primeira República, podem ser considerados uma
imprensa sem jornalismo, pois os fatos são veiculados numa ordem quase inversa
aos acontecimentos sociais (PEREIRA, 1994, p. 48).
Com exceção dos panfletos liberais, os chamados pasquins, nos quais pequenos grupos
questionavam as atitudes da Corte, a imprensa brasileira sempre esteve ligada à classe dominante, detentora
dos poderes políticos e econômicos. “O caráter doutrinário embutido nos impressos perfazia toda uma
imagem de jornais que, na sua maioria, não sobreviviam longe da sombra do poder” (Pereira, 1994, p.50).
Os jornais não passavam de boletins oficiais com a tarimba da família Real, com tom enciclopédico,
como um catálogo de normas, onde as vozes dos poderosos eram reproduzidas, mobilizadas por seus
interesses. As posições ideológicas (dos dominadores) se materializavam no discurso jornalístico. Uma
característica sintomática, já que o pensamento da corte, naquele momento, era o de fazer do jornal um
veículo de defesa de seus ideais. Assim foi ao final do século XIX, onde se configurava, no Brasil, uma
imprensa sem jornalismo. Vejamos o que diz Pereira:
A maioria dos jornais desse século se caracteriza pela proximidade que eles
encerram com o poder, além de uma existência periódica ligada à autorização da
Corte. Portanto nessa fase de nossa história não existia o jornalismo enquanto
prática de produção da informação e codificação de eventos sociais para
transformá-los em notícias (PEREIRA, 1994, p. 49-50).
no final do século XIX, a imprensa brasileira inicia sua etapa de modernização, a imprensa
artesanal estava sendo substituída pela imprensa industrial” e aproximava-se pouco a pouco dos padrões e as
características peculiares a uma sociedade burguesa (Sodré, 1983, p 261). O que não liberta a imprensa do
poder, do controle dos grupos dominantes, agora políticos, os quais também promoviam o seu
desenvolvimento. O jornalismo é gerado para manter a grande ordem e o status quo.
Mas a fase das inovações tecnológicas (processo de impressão) uma nova atribuição social ao
impresso; o jornal atinge um público maior e passa a ser um instrumento de incentivo às conquistas sociais.
A evolução, enquanto organização empresarial, a reviravolta instrumental e de ciência social do jornal não é
acompanhada, também, por uma transformação significativa na linguagem. Ficam pra trás os boletins
oficiais, mas entra em cena o ritmo bacharelesco do discurso político, que se confunde, com o
“rebuscamento” literário. Nelson W. Sodré ressalta que o noticiário era redigido de forma difícil, empolada.
“O jornalismo ainda feito por literatos é confundido com literatura, e no pior sentido” (Sodré, 1983, p.283).
A informação empolada ainda deixava a grande maioria dos leitores afastados da decodificação da
informação. Ou seja, os jornais não ainda promoviam de forma clara e democrática uma reflexão sobre a
sociedade brasileira. Houve um avanço nos procedimentos gráficos, mas no tocante à construção da
informação pouco mudou. O jornalismo brasileiro entra no século XX guardando as mesmas marcas, sem
uma linguagem sistematizada. Segundo Pena (2005),
os jornais eram essencialmente opinativos. Não que a informação/notícia estivesse
ausente das páginas. Mas a forma como era apresentada é que era diferente. As
reportagens não escondiam a carga panfletária, defendendo explicitamente as
posições dos jornais (e de seus donos) sobre os mais variados temas. As narrativas
eram mais retóricas do que informativas. (PENA, 2005, p.41)
A mudança na linguagem só começa a tomar forma quando os jornais resolvem assumir efetivamente
a função de empresa produtora de bens simbólicos e concomitantemente o texto literário começa a ganhar
espaço específico nos jornais, isso em meados de 1916. De acordo com Nelson W. Sodré, as
colaborações literárias começam a ser separadas dos jornais, constituindo-se matéria à parte, em críticas no
rodapé que, mais tarde, seriam os suplementos literários. As revistas também têm um papel fundamental
porque absorvem os textos dos literatos.
Buscando promover a prestação de serviço e fazendo da divulgação das informações uma fonte de
lucro, essa concepção de jornalismo como espelho das angústias, desejos e necessidades sociais, acentua-se
quando, na sistematização da linguagem, se propôs à “suposta” desvinculação do que era dito com quem
financiava o dizer.
Inicia-se a luta para aproximar o jornalismo de quem o consumia, isto é, para produzir aquilo que a
sociedade queria saber e “precisavasaber. Para isso, investiu-se no discurso e na prática da neutralidade da
linguagem, que passava a ser vendida como produto de uma indústria de informação e ao mesmo tempo
versada com comprometimento social. alguns anos após a Primeira Guerra Mundial, com influência
tardia dos norte-americanos e instigada pela realidade urbana e industrial que se vislumbrava, o jornalismo
traçava seu próprio caminho: com suas fórmulas, normas rígidas e manuais de construção do texto, onde os
jornais e as revistas, limitados pelo espaço físico e pelo início da comercialização da noticia, entregam-se ao
modelo das repostas. As pesquisas em jornalismo, inevitavelmente, começam a apontar para sua autonomia
nos processos comunicacionais e, no que tange a limiar do comércio da informação, estimulou a ratificação
de um campo auto–afirmativo, como assevera Marcondes Filho:
A noticia é a informação transformada em mercadoria com todos os seus
apelos estéticos, emocionais e sensacionais; para isso a informação sofre um
tratamento que a adapta às normas mercadológicas de generalização, padronização,
simplificação e negação do subjetivismo (MARCONDES FILHO, 1986, p. 59).
Tal afirmação, para Muniz Sodré, não rende em termos de conhecimento do que é realmente a
notícia, mas evidencia que a informação no Ocidente é marcada pela “ordem do valor de troca” e o é, de tal
forma, que muitas vezes passa despercebido o seu caráter mercantil, que se deu, depois de três séculos de
surgimento, quando a notícia foi legitimada jurídica e politicamente na esfera pública (Sodré, 1996, p.131).
Os fatos sociais, a partir de então, deveriam se adequar às regras de produção e ser de
interesse público. A atividade passou a ser vista o como materialização de idéias através da língua, mas
como reconstrutora e diluidora de ideais. Isso se justifica, pois,
por detrás da imprensa enquanto indústria/comércio, encontra-se a idéia
moderna de espaço nacional, que favorece o estabelecimento de um certo tipo de
continuidade dos acontecimentos isolados ou singulares, com vista a reforçar o
sentido de continuidade homogênea, mas aberta, ao mesmo tempo, à
heterogeneidade dos acontecimentos cotidianos (SODRÉ, 1996, p. 132).
E nesse relato jornalístico dos fatos, tidos como importantes para a sociedade, o sujeito, moldado e
como produto e instrumento social (como veremos adiante), apropria-se dos signos para interferir na
construção neste mesmo âmbito. O jornalismo se constitui por pólo ideológico, ligado aos anseios sociais, e
pelo pólo mercadológico, transformando-se em produto de venda e troca (Traquina, 2005a).
A linguagem foi padronizada na forma da pirâmide invertida, que consiste no relato em ordem
decrescente de importância e não na seqüência cronológica dos fatos, ou seja, a informação mais relevante
está no início do parágrafo e as complementares estão na seqüência (Pena, 2005). Essa fórmula teria surgido
em 1861, no The New York Times, firmando-se como estrutura hegemônica da notícia, nos países latinos,
por volta da segunda metade do século XX (Genro Filho, 1989, p. 189). Neste modelo, ratifica Genro, as
informações principais são alocadas de forma direta, logo no primeiro parágrafo e os fatos são colocados de
forma decrescente de importância. Os destaques vêm logo para atrair o interesse do leitor.
no lead forma parecida de estruturar a notícia jornalística - o relato sintético do acontecimento
logo no primeiro parágrafo, respondendo às perguntas básicas do leitor: o que, onde, como, quem, quando e
por que (Pena, 2005, p.48), passavam a definir a forma generalizada de se contar os fatos diários. Supunha
que, assim, se mantinha a neutralidade desejada para que a nova “mercadoria” vendida não atendesse
somente a interesses particulares e forçadamente, como num cálculo matemático, mantivesse-se a
objetividade das notícias e garantisse a legitimidade. A técnica seria, então, aliada ao compromisso social
com a verdade jornalística (o mais fiel da realidade, testemunha do fato realmente acontecido) e método de
afastamento da interfencia de fatores externos ao acontecimento, inclusive com as opiniões pessoais dos
produtores de informação. E assim o é até hoje.
A imprensa e o jornalismo, de forma geral, calcaram-se na técnica de construção de notícias
“objetivas” para estabelecer verdades sociais vistas através dos “óculos”, termo utilizado por Pierre
Bourdieu para explicar que o jornalismo é um microcosmo e os jornalistas partilham estruturas invisíveis
que organizam a percepção e determinam o que vemos e o que não vemos (apud Traquina, 2005b, p.25). O
discurso de representar o mais fiel da realidade, baseada em fontes oficiais, testemunhais, e a própria ética
jornalística, que exige a reprodução do que realmente “teria” acontecido, fez do jornalismo essa instituição
que se auto-afirma detentora da verdade dos fatos. Quem nunca ouvia alguém dizer: “está no jornal!”, “deu
na televisão”. Essa verdade jornalística torna-se discursiva e institucional. Institucionalizada, como qualquer
outra verdade que ao longo dos séculos se tentou empurrar na sociedade, estabelecida por práticas sociais e
discursivas; a verdade jornalística se sustenta, séculos, numa ideologia jornalística de que contar fatos
buscando ser fiel a tudo que ocorreu, não é contar “estórias” com caráter inventivo. Para os jornalistas, que
receberam da sociedade, ou impuseram a ela, a postura de “agentes especializados” (Bourdieu, apud
Traquina, 2005b, p.14), o inventar, criar, ficcionalizar, é estar o mais próximo de realidade, da verdade.
Esse mais próximo é, por sua vez, subjugado e como numa metonímia, a quase verdade, transforma-se em
verdade possível, a verdade dos jornais, ou simplesmente, a verdade.
Ao relatar estudos sociológicos sobre a postura dos jornalistas quando falam do produto da sua
atuação, Traquina faz o seguinte recorte, que pode nos ajudar nesta compreensão:
Os profissionais da notícia resistem ao paradigma da notícia
narrativa/construção apesar dos jornalistas se referirem constantemente à notícia, no
seu vernáculo profissional como ‘estória’. Esta resistência ao conceito de narrativa
é mais bem compreendida sob o brilho dos valores fundamentais da sua ideologia
profissional (TRAQUINA, 2005b, p.17).
Esta resistência, segundo Stuart Hall (apud Traquina, 2005b, p. 17), reside no fato de que ao admitir
o termo, a possibilidade de versões e significados distintos, está se atacando a legitimidade profissional dos
jornalistas, que resistem a duas noções: que a notícia é uma construção da realidade e que é o espelho do
real. A ideologia do profissional-jornalista e do jornalismo defende e faz-se afirmar como prática de uma
linguagem transparente, verdadeira, porque se baseia em fatos reais, em discursos autorizados, este é o
dogma da fé universal do jornalismo, enraizado na comunidade profissional.
Os gêneros notícia, reportagem, artigos, notas, editorias, opinião ilustrada são as formas que
moldam e materializam para o público a informação e essa universal da verdade. É através deles que os
leitores, espectadores e ouvintes são aludidos a perceber que um espaço é destinado ao relato e ao dizer
supostamente imparcial e neutro e outro é resguardado à determinada opinião de um ou de um grupo. É
através desses arquétipos que a informação é veiculada como verdade social e de interesse público. O
impresso adjudica aquilo que o leitor quer ler, aquilo que a sociedade cobra. Mas, se como espectador/leitor
essa visão pode ser transparente e límpida, para o produtor dessa informação esse olhar para o real,
verdadeiro, livre e público está muito aquém.
No capítulo anterior, fizemos a diferenciação entre acontecimento no jornalismo e acontecimento no
discurso, vale ressaltar, agora, a diferença entre acontecimento jornalístico (que chamamos de fato) e notícia.
Segundo Sodré (1996), eles não são a mesma coisa, pois do ponto de vista dos jornais, TV e rádios, o
acontecimento, como vimos, “é matéria-prima para o produto notícia”, que, por sua vez, é o acontecimento
para o público. Isto é, o acontecimento para o jornalismo é o “fato real”, produto da realidade, a sua
representação verbal e imagética pode ser a notícia, ou o que chamamos de relato. Sodré explica:
tal hipótese parte do reconhecimento de que a realidade social dos
indivíduos no mundo contemporâneo é construída por fatos noticiosos, ou seja, de
acontecimentos jornalisticamente interpretados e, portanto, “transvalorizados” (...) a
notícia converte-se, assim, numa tecnologia, não simplesmente cognitiva, mas
produtora de real - é história que cria história (SODRÉ, 1996, p. 133).
Na rotina do jornalismo há um excesso de fatos que chegam ao conhecimento dos repórteres, mas
uma parte deles é relatada e vira notícia, com seus, segundo Sodré, “microaspectos” unidos, numa junção de
detalhes e de prováveis conseqüências que geram um tipo de “unidade narrativa que, segundo se presume,
tranqüiliza a consciência do indivíduo inseguro em face da dispersão humana, da vicissitude dos
acontecimentos” (Sodré, 1996, p. 133). Vejamos como esses fatos chegam ao leitor, suas formas e
peculiaridades.
O fato jornalístico está diretamente ligado ao homem enquanto ser social, como ser político; está
entrelaçado com as diferenças econômicas, sociais e geográficas. Por isso, o conceito de fato, matéria-prima
e base do jornalismo, está atrelado diretamente ao conceito de notícia. Ele, produto da realidade, provoca,
contudo, muitas discussões quando ligado à maneira que vai ser abordado pelo mediador social. A distinção
entre as categorias do jornalismo tem sua gênese no fato marcado pelo caráter simbólico da realidade:
A realidade é o que nos advém do simbólico (...) a realidade evoca toda a
discursividade: o dado a ver, a apresentação do mundo - construção do mundo a
equacionar-se entre real, simbólico e imaginário, no jogo do signo em sua
tripartição (GOMES, 2000, p.16).
Quando falamos em categorias, nos remetemos inicialmente aos conceitos e distinções entre
jornalismo informativo e opinativo. No final do século XIX, no Brasil, ainda não havia uma distinção clara
entre o que eram informação e opinião jornalística. Mesmo quando o jornal iniciou seu caráter de
empreendimento mercantil, ele era marcado pelo discurso bacharelesco, político-literário, um jornalismo
essencialmente opinativo” (PENA, 2005, p. 41). A informação se engendrava à opinião do escritor-jornalista
e o discurso tinha um caráter pessoal e diletante. Com o nascimento, no final daquele século, das primeiras
cadeias de jornais–empresa e o desenvolvimento das agências de notícias nos Estados Unidos e Europa, a
notícia, enquanto “comunicação de uma estrutura fática, atual ou atualizada” (Lima, 1995, p.23) se tornou
forma padrão de comunicar no jornalismo e a informação foi se desalojando da opinião, conquistando sua
hegemonia com o desenvolvimento de métodos para estruturar o conteúdo jornal.
A consolidação da pirâmide invertida levou o jornalismo opinativo, enquanto categoria jornalista, a
alojar-se nas páginas “editoriais”, outro gênero jornalístico. Como arremata Pereira:
em si, as categorias jornalísticas da informação jornalística não têm nenhuma
atribuição estética, ou seja, elas se definem mais pelos métodos empregados para
estruturar as informações do que pela sua capacidade de gerar novas leituras a partir
de seu conteúdo (PEREIRA, 1994:113).
O desenvolvimento das novas técnicas jornalísticas levou a segregação do fato enunciado de forma
direta, seca e objetiva e do relato com análises, comentários e interpretações. Até a Segunda Guerra
Mundial, tínhamos duas grandes categorias distintas no jornalismo: a informativa e a opinativa. Mas a
necessidade de uma análise mais profunda, sem a carga opinativa do jornalista, bem como ‘só informação’,
fez surgir uma nova categoria: a interpretativa.
No Brasil, as manifestações do jornalismo chamado interpretativo ocorreram de forma tardia, que,
na década de 20, do século passado, nos Estados Unidos, sugiram as primeiras experiências nesta categoria.
A revista semanal Time, que também dava os passos iniciais à reportagem trouxe um jornalismo que buscou
superar os princípios tradicionais da notícia, trazendo o aprofundamento, a complementação e a ampliação
do tradicional questionário da notícia. O jornalismo interpretativo se consolidou no Brasil em meados da
década de 60, com a criação, no Jornal do Brasil, do DPD - Departamento de Pesquisa e Documentação.
Este departamento, inicialmente, tinha o objetivo de dar subsídios históricos às matérias, mas passou à local
fértil para a contextualização dos fatos isolados.
Cremilda Medina e Paulo Roberto Leandro, em A arte de tecer o presente (1973), afirmam que,
mesmo com a eclosão da Primeira Guerra, com o uso do telégrafo, o trabalho das agências de notícias segue
a todo vapor,
a imprensa estava presa aos fatos, ao relato de ocorrências, mas era incapaz de
costurar uma ligação entre eles, de modo a revelar ao leitor o sentido e o rumo dos
acontecimentos.(...) é a partir desta deficiência que o público passa a esperar um
tratamento informativo de maior qualidade. E exatamente vindo favorecer o
entendimento a esta necessidade é que surge a revista Time (MEDINA e
LEANDRO, 1973, p. 20).
Mas, apesar de haver algumas resistências, vistas muitas vezes, como forma disfarçada de emitir opinião
através de análises e interpretações subjetivas, o jornalismo interpretativo se consolidou como prática que
transmite aos leitores informações com profundidade e contextualização. Alguns estudiosos acreditam na
possibilidade de separação entre opinar e interpretar. Cremilda e Paulo Roberto Leandro (1973) acreditam
que, no jornalismo, a opinião se prefigura quando uma atitude de valoração do fato (ou do seu sentido) e
a interpretação está no esforço de determinar o sentido de um fato através da rede de forças que atua nele. O
paralelismo entre o conceito de interpretação e jornalismo interpretativo se a partir do relato que amplia
as possibilidades analíticas e o resultado da observação e provoca a reconstituição das forças que dão sentido
ao fenômeno. MacDougall Curtis já afirmava em 1957:
(...) o futuro noticiarista deve estar preparado para ir ao encontro da crescente
demanda de noticiário em profundidade e; deve conduzir o leitor aos bastidores da
ação; relatar as notícias dentro da moldura da vida e experiências do leitor;
demonstrar os sentidos dos fatos, dar perspectivas as notícias diárias; significado as
ocorrências; apontar para a relevância das correntes dos acontecimentos (CURTIS,
1957, p. 90).
Medina e Leandro compartilham da teoria da interpretação, referenciado por Nietzsche, Marx e
Freud, sendo que, para este último, o processo de interpretação do mundo está calcado na compreensão dos
signos e símbolos da realidade objetiva. Para Nietzsche, segundo os autores, a interpretação é busca do
“sentido de um fenômeno”. Desta forma a interpretação tem como ponto de partida a compreensão das
forças que atuam no ato e lhe dão rumo; causa e conseqüência dá sentido ao processo fático. Já Marx, afirma
que tudo passa pela consciência reflexa das coisas e interpretar é entender a essência do fenômeno, indo
além das aparências e o compreendendo como um produto do contexto político, econômico e social.
No que se refere às categorias jornalísticas, no entanto, José Marques de Melo (1994), referência nas
pesquisas de comunicação no Brasil, não reconhece uma categoria interpretativa, pois considera que a
interpretação está nas entrelinhas dos gêneros de informação. Ele propõe uma divisão entre o jornalismo
informativo e opinativo. Aquele composto pelos gêneros: notícia, reportagem, entrevista e nota; este
reconhecido no editorial, artigo, crônica, caricatura, resenha e carta ao leitor. Ele adota os critérios para
essa classificação baseada nos conceitos de representação do real e leitura do real. Primeiro, para ele, real é
descrito jornalisticamente a partir do atual e do novo. Mas esse atual e novo possui um valor que é
identificado na conjuntura que nutre e transforma os processos jornalísticos (Melo, 1994). Isto é, em um dos
momentos é feita e descrição e o relato, noutro, fazemos a análise desta realidade dentro de padrões
permitidos pelas instituições comunicacionais. A segunda justificativa para a classificação de José Marques
ao que se refere às categorias parte da análise estrutural dos relatos. Os gêneros informativos se estruturam a
partir de referências exteriores à instituição jornalismo; o jornalismo é simplesmente a ponte entre o fato e
aqueles que se interessam por ele. nos gêneros opinativos, a estrutura da mensagem é pautada pela
liberdade do autor e/ou a controlada pela instituição comunicacional. “O jornalismo articula-se, portanto em
função de dois núcleos de interesse: a informação (saber o que passa) e a opinião (saber o que se pensa sobre
o que passa)” (Melo, 1987, p. 47).
Luiz Beltrão defende uma categoria interpretativa à parte, ao lado da informativa e da opinativa.
Seu esquema coloca a reportagem em profundidade como interpretação; a notícia, reportagem, história de
vida e imagens como gêneros informativos; e, por fim, o editorial, opinião do leitor e ilustrada, artigo,
crônica, como gêneros de opinião. O critério adotado por ele se baseia na função que cada gênero exerce:
informar, explicar e orientar. O gênero reportagem em profundidade e reportagem se distinguem porque
seguem caminhos horizontais e verticais diferentes, naturalmente no primeiro gênero o repórter tem mais
tempo para pesquisar, avaliar e construir um texto completo. O que não acontece na reportagem, gênero da
categoria informativa, segundo Beltrão, que inevitavelmente tem uma abordagem superficial, seqüelas da
aceleração e volume de acontecimentos diários. Para Marques de Melo, no entanto, não existe esta
segregação. O que há é uma diferenciação na permanência do interesse e dimensão do assunto abordado:
Na prática, o que ocorre é a sua distinção como matéria fria (de atualidade
permanente), permitindo-se ao jornalista que a escreve recorrer ao arsenal narrativo
peculiar ao universo da ficção. Mas nada diferencia da reportagem o relato
jornalístico é fundamentalmente o mesmo. Trata-se de um fato que foi notícia,
matéria quente, e que o jornalista retoma na sua dimensão humana para suscitar o
interesse à atenção do público (MELO, 1987, p.46).
também quem categorize o jornalismo em quatro grandes grupos. É o caso de Mário Erbolato,
que no livro Técnicas de Codificação em Jornalismo (1991) divide o jornalismo em informativo, opinativo,
interpretativo e diversional.
As modificações no conteúdo jornalístico ganham adeptos e os novos veículos procuram desligar-se
da quantidade de informação e se preocupam, também, com a qualidade informativa. Década de 60 foi um
período fecundo à disseminação de matérias que buscavam o aprofundamento. Os jornalistas brasileiros
naquele momento, influenciados pelo new journalism americano, trazem para as reportagens o um
aprofundamento e contextualização na busca do sentido dos fenômenos, como propõem uma nova forma de
narrar o real, trazendo para o texto jornalístico, características presentes dos textos literários. Ao lado das
transformações no conteúdo, foi dado um novo tratamento à informação e, ao estilo, foi dada mais atenção.
Esse jornalismo é conceituado por Erbolato como Jornalismo Diversional, que se livra das amarras
do lead e da pirâmide invertida. A maioria dos estudiosos, no entanto, não considera o jornalismo
diversional como uma categoria à parte e o que iria se chamar de novo jornalismo seria um novo tratamento
estilístico dado ao jornalismo interpretativo. A descrição dos fatos reais transcende às construções
estereotipadas, transcrevendo diálogos dos personagens reais, desligando o tempo cronológico da narrativa,
promovendo o envolvimento do leitor não com o assunto, mas com realidade descrita. Mario Erbolato,
porém, afirma:
No jornalismo diversional, o repórter procura viver o ambiente e os problemas dos
envolvidos na história, mas não pode se limitar às entrevistas superficiais e sim
descobrir sentimentos, anotar diálogos, inventariar detalhes, observar tudo e fazer-se
presente em certos momentos reveladores (ERBOLATO, 1991, p. 44).
Os primeiros representantes do novo jornalismo no Brasil foram a revista Realidade e o Jornal da
Tarde que, embalados pelas transformações sócio-políticas, econômicas e culturais, forneceram aos
conteúdos jornalísticos as criações artísticas da linguagem literária. Esses veículos revelam em seus
conteúdos traços da influência do new journalism norte-americano, referência maior do estilo que combina
literatura e jornalismo que, a nosso ver , a ele pulsação, uma musicalidade, um ritmo à narrativa
jornalística, que combina dados estatísticos, números e ciência com humanidades, com contato, com emoção
e sentimento. Segundo Azevedo,
Ao incorporar ao jornalismo brasileiro os princípios narrativos do Novo Jornalismo
norte-americano, a revista Realidade promoveu uma verdadeira revolução na
imprensa nacional. E o paradigma do Novo Jornalismo trata de trazer para o texto
do repórter as técnicas literárias, resgatando um tipo mais antigo de expressão, o
chamado jornalismo literário (AZEVEDO, 2002, p.127).
A Realidade e o Jornal da Tarde teceram um novo estilo para a narrativa jornalística brasileira que,
desde a introdução da pirâmide invertida, não ampliava as possibilidades estilísticas do ato de narrar.
Atualmente outros teóricos tentam categorizar os modelos e a forma de apresentar o texto no
jornalismo, todos baseados nestas categorias que apresentamos acima. O que nos é importante com essa
manifestação é perceber que fatores internos de construção do texto vão influenciar na atuação do sujeito-
jornalista, que é o articulador da materialização da exterioridade no texto jornalístico, transformado em
discurso jornalístico. Afinal, “o poder da mídia não está só (nem principalmente) no seu poder de declarar as
coisas como sendo verdadeiras, mas no seu poder de fornecer as formas sob as quais as declarações
aparecem” (Schudson, apud Traquina, 2005, p. 203). Isso é feito através da busca de um efeito de real, de
objetividade. É o que veremos agora.
2.2 O efeito do real e a objetividade
O “real” (visão de realidade) é a essência do jornalismo, sua base. Sem ele, o jornalismo não
existiria, pelo menos da forma que conhecemos. O jornalismo reinventa o “real” no papel, procura transpõe
essa realidade com as palavras e, na maioria das vezes, seguindo o seu padrão de defesa: evitando a
subjetividade, o envolvimento emocional, a pessoalidade. Para isso, ganha contornos com seus aparatos, faz
os seus recortes simbólicos no tempo e através dos signos, socialmente aceitos, consolida a sua
representação.
O signo é uma partícula constituinte da língua. Segundo Saussure a língua é um sistema de signos
que exprimem idéias, e é comparável por isso à escrita; ao alfabeto dos surdos mudo, aos ritos simbólicos
(...) é apenas o principal desses sistemas (apud Gomes, 2000, p. 10). O jornalismo se apropria, em sua
prática, desses sistemas de signos para representar essa essência que chamamos de realidade. Na realidade
representada existe um pacto simbólico que reconhece os signos através da relação “tripartida” entre o
significado, significante e referente. O primeiro como conceito e idéia consolidada; o segundo como
materialização desta idéia; e o último como concepção oriunda do nosso repertório “cultural”, isto é, do
nosso conhecimento prévio de uma significação anterior, das nossas referências de tal significado.
Anterior ao ato de enunciar, informar e registrar, antes mesmo de postar a sua característica principal,
a objetividade, e colocar em prática conceitos como periodicidade, universalidade, atualidade, difusão, o
jornalismo é um produto da língua. Assim, afirma Gomes:
(...) como fato de língua, seu papel/função primordial será necessariamente aquele
que a língua/instituição social amplia: o de organizar discursivamente, o que, aliás, é
prática jornalística por excelência (GOMES, 2000, p. 19).
O jornalismo possui uma função organizadora, legado da língua como instituição social, que precede
a suas práticas, numa organização baseada num pacto simbólico, “sempre levando em conta o estatuto desse
pacto/língua que nos precede e em relação ao qual não temos escolha. Somos constituídos na linguagem
como sujeitos singulares e sociais de um só golpe” (Gomes, 2000, p.16).
Dentre as funções organizadoras do jornalismo, proposta por Mayra Rodrigues Gomes (2000), está a
função testemunhal, na qual coloca o jornalismo como testemunho do testemunho. A autora acredita que de
maneira testemunhal, o discurso jornalístico confirma o pacto simbólico fundado nas comunidades e é
estabelecido pela língua, além de selecionar temas marcados pela aliança e interesses sociais. Ele se torna
vigilante observador/denunciador diante do exercício do Estado como poder; passando a um quarto poder
onisciente, que conhece e fiscaliza. Desta forma, o jornalismo vai fazendo o desenho do espaço social, que é
a confirmação/afirmação do próprio lócus:
Esse desenho para tanto hierarquiza dando uma ordem de importância, colocando
valores, pela escolha e priorização das temáticas (...) assim as matérias estabelecem,
pelo espaço concedido, uma seqüência (...) (GOMES, 2000 p.18).
No que se refere à narrativa que persegue o realismo, há uma busca a efeitos de representação fiel da
realidade, através daquilo que será seu testemunho: o referencial. É por isso que o jornalismo se apega às
entrevistas, citações, fotografias, mapas e tabelas. É como se artifícios como esses revelassem para aquele
que é testemunho da ordem simbólica: o próprio jornalismo. É uma forma, contudo, de tentar remeter o real
na sua plenitude. Essa estratégia de apreensão, descrição e/ou representação do real é conceituado por
Barthes como “efeito do real”. Assim coloca Gomes:
É o termo designado por Barthes para designar o resultado das estratégias dos
discursos realistas, aqueles que, na busca pelo testemunho para o seu testemunho,
recorrem para uma realidade em cuja construção colaboram (GOMES, 2000, p.27).
A realidade advinda do simbólico se relaciona, através do signo, com essa relação tripartida. E o
jornalismo, com sua linguagem com signos consignados, é o exercício da sua função organizadora, produto
de uma instituição social testemunhal/legitimadora. A autora assinala que a linguagem posta em ação “é um
exercício da instituição social em sua função organizadora e legitimadora do laço social, pela qual o homem
falante e o homem social são equivalentes”(Gomes, 2000, p.46). Por isso, entendemos que as narrativas
jornalísticas são produtos da linguagem simbólica colocadas em ão nas sociedades, que necessitam desta
organização simbólica já consolidada para se firmar como tal.
Quando falamos em estrutura narrativa no jornalismo, nos remetemos imediatamente ao modelo da
pirâmide invertida e numa das suas principais características: a objetividade que, ao longo dos anos, foi
colocada em cheque, transformou-se em objeto de estudo e de várias pesquisas, o que faz ratificar a sua
importância para a epistemologia do jornalismo. Os estudos sobre a objetividade jornalística sempre
estiveram ligados à teoria funcionalista norte-americana, que o jornalismo como representação fiel da
realidade, apresentada de forma rápida. As perguntas lead (como vimos), de forma breve, resumem a notícia
e o os principais instrumentos da técnica de construção de texto no jornalismo na tentativa de ser preciso,
ágil, eficiente, neutro e imparcial. Por isso, segundo Moura,
a teoria funcionalista tem se tornado a base da formulação dos manuais de redação
jornalística. Nela, a objetividade e a neutralidade são marcas essenciais do fazer
jornalístico. Essas categorias pertencem a uma mitologia desenvolvida no
Iluminismo, que acreditava na apresentação dos fatos de forma livre das
intervenções e dos interesses humanos (MOURA, 1995, p.26).
Mas vários estudiosos contestaram a objetividade funcionalista como forma neutra e impessoal de
apreensão da realidade. Nilson Lage (1982), por exemplo, compartilha da idéia de quanto mais objetivo se
pretende ser, mais subjetivo é na seleção e organização dos fatos, pois, como assevera o autor:
O conceito de objetividade posto em voga consiste basicamente descrever os fatos
tal como eles aparecem; é, na realidade, um abandono consciente das
interpretações, ou do diálogo com a realidade, para extrair desta, apenas, o que se
evidencia. A competência profissional passa a medir-se pelo primor da observação
exata e minuciosa dos acontecimentos do dia-a-dia. No entanto, ao privilegiar as
aparências e reordená-las num texto, incluindo algumas e suprimindo outras,
colocando esta em primeiro, aquela depois, o jornalista deixa inevitavelmente
inferir fatores subjetivos. A interferência da subjetividade, nas escolhas e na
ordenação, será tanto maior quanto mais objetivo ou preso às aparências, o texto
pretenda ser. (LAGE, 1979, p.25)
Assim, a complexidade do processo informativo nos afirma que a objetividade no jornalismo, quando
colocada em conflito com subjetividade, é um mito, principalmente, quando mantemos a relação entre
jornalismo e discurso, que é o que veremos ao longo deste estudo. No jornalismo, especificamente, as
inquietações permeiam a tentativa de distinção entre o que é opinião e o que é informação. Todavia, a nosso
ver, a própria notícia pura e simples passa por um processo de escolha. Caminho que vai desde a marcação
no espaço do jornal, escolha da primeira resposta do lead à seleção dos referenciais e palavras: “a notícia
não é um objeto, mas um produto do juízo, em cada fase do processo de informação intervém um juízo, quer
dizer: um elemento subjetivo” (Silva, 1991, p.24).
Para Felipe Pena (2005) é um erro definir objetividade em oposição à subjetividade, pois, ela surge
não para negá-la, mas para reconhecer que é inevitável não ser subjetivo. O autor arremata afirmando que o
verdadeiro significado está ligado à idéia de que os fatos são construídos de forma complexa, o que lhes
afastam da realidade absoluta e do seu culto. A objetividade, então,
Surge porque há uma percepção de que os fatos são subjetivos, ou seja, construídos
a partir da mediação de um indivíduo, que tem preconceitos, ideologias, carências,
interesses pessoais ou organizacionais ou idiossincrasias. (PENA, 2005, p.50).
O que acontece cotidianamente, segundo sua análise, é que para diminuir e amenizar a influência subjetiva
criou-se uma metodologia de trabalho que busca chegar ao máximo de objetividade no relato dos
acontecimentos.
Adelmo Genro Filho (1987, p. 132) afirma que o significados objetivos no exercício
jornalístico, pois, na reprodução e captação dos fenômenos o “subjetivismo da intermediação”. Pois,
ser favorável a este ou aquele, contrário ou a favor de uma ação, pode não ficar explicito na construção da
notícia, mas a supressão desta ou daquela informação, ou a utilização daquele ou deste referente já tem uma
carga de subjetividade que transcende o conceito da impessoalidade.
Na opinião de Traquina (2005), nenhum valor no jornalismo como a objetividade tem sido objetivo
de tanta discussão, crítica e má-compreensão, porque vem sendo resumida a simples dicotomia com a
subjetividade. Segundo Michael Schudson (in Traquina, 2005), que, na tese de doutorado, fez um estudo
comparativo sobre a objetividade nas profissões e afirmou que este conceito não surgiu como negação à
subjetividade, mas como reconhecimento da sai inevitabilidade.
No jornalismo, segundo ele, o valor da objetividade nasceu no início do século XX quando o
jornalismo percebeu que era preciso reconhecer a necessidade de interpretar um mundo mais complexo no
que se refere ao tratamento dado à informação: surgimento da propaganda na Primeira Guerra Mundial e o
nascimento da profissão de relações públicas, profissionais que fizeram com que o universo dos fatos
passasse a ser visto como algo ligado a interesses de particulares, informações direcionadas, fatos que
interferiram no modo de pensar a notícia dentro e fora do meio jornalístico (Traquina, 2005a). Segundo
Schudson,
O ideal da objetividade no jornalismo foi fundado numa confidência de que a perda
de fé nos fatos era irrecuperável. Os jornalistas chegaram a acreditar na
objetividade porque queriam, porque precisavam, porque eram obrigados pela
simples aspiração humana de procurar uma fuga das suas próprias convicções
profundas de dúvida e incerteza (Traquina, 2005a, p. 138).
A objetividade jornalística é uma busca; a imparcialidade um desejo que faz do jornalismo um
exercício à representação de uma verdade real. Nesse caminho, objetividade deve ser compreendida como
uma cnica de construção de textos, com objetivo de dar um caráter de leitura rápida e concisa, como
instrumento facilitador no ato de informar e enunciar e não como negação à subjetividade.
Conclusão a que também chegou Traquina (2005a) ao afirmar que ela é mais uma série de
procedimentos que os membros da comunidade interpretativa, os jornalistas, utilizam para assegurar uma
credibilidade como parte o-interessada e se protegerem contra eventuais críticas ao seu trabalho. Algo
como um “ritual estratégico”, segundo o sociólogo Gaye Tuchman, que faz dos procedimentos de
construção de texto jornalístico uma barreira para neutralizar críticas. Reforça o sociólogo: “atacados devido
a uma controvérsia apresentação de fatos, os jornalistas invocam a sua objetividade quase do mesmo modo
que um camponês mediterrâneo põe um colar de alhos à volta do pescoço para afastar os espíritos malignos”
(apud Traquina, 2005, p. 139).
Na lista de procedimentos que constituem esse ritual em busca da objetividade estão regras básicas
como ouvir os dois lados da história, ou seja, se fulano disse “a” e não como confirmar, procura-se “b”
para opor a idéia. Vale ressaltar que “a” e “b” possuem o discurso autorizado para fazer tais afirmações e
isso, também, ajuda o profissional a argumentar tal “objetividade”. O fato é que a técnica é objetiva, mas o
procedimento é subjetivo, visto que, ao escolher essa ou aquela fonte se o está fazendo a partir de
interesses pessoais, institucionais etc.
A busca de provas auxiliares como citações, fatos aceitos como verdadeiros, é um outro
procedimento identificado com a objetividade. Bem como, o uso de marcadores como aspas para deixar a
responsabilidade das afirmações as fontes ou designar a origem de um termo. Com isso, o profissional
acredita não interferir “explicitamente” na condução do dizer. O mesmo acontece quando da estruturação da
notícia em formas determinadas, como lead e pirâmide invertida, como vimos. Neste caso, o maior
problema apresentado pelos estudiosos para se justificar a objetividade, é também o processos de escolha no
direcionamento da matéria, pois, ao tentar responder no lead o como aconteceu e não o quem agiu, o
jornalista está direcionando a interpretação do leitor.
De qualquer maneira, a objetividade é importante para o jornalista e para a sociedade, ao menos,
traça metas que o jornalista deve seguir, e se ele não o faz corre o risco de perder o que lhe é mais
importante: a credibilidade e a legitimidade. Pois,
a definição da postura profissional do campo jornalístico não é da exclusiva
responsabilidade dos próprios agentes especializados; a própria sociedade, com base
na aceitação consensual da teoria democrática, influencia fortemente a definição da
postura profissional dos membros desta comunidade. A objetividade, ou uma outra
designação de uma noção de equilíbrio, está associada pela esmagadora maioria dos
cidadãos ao papel do jornalista (TRAQUINA, 2005a, 143).
É fato ainda que a objetividade, quando não levada ao duelo maniqueísta com a subjetivida, é
instrumento importante na organização da notícia e no enfrentamento diário que o profissional tem com o
complexo mundo da informação, dos fatos, dos acontecimentos discursivos, das “estórias” que não cessam
em aparecer. E para analisar a forma que estas informações se materializam o jornalismo se utiliza de um
aparato teórico. É o que veremos adiante.
2.3 As teorias do jornalismo:
o processo e sua influência
As notícias acontecem na conjunção
de acontecimentos e textos.
Enquanto o acontecimento cria a notícia,
a notícia cria o acontecimento
Nelson Traquina
Cientes de que o discurso é um “tesouro inesgotável” (Foucault, 2005) também da mídia e na mídia,
partimos para outro momento importante na nossa discussão. Colocamos em riste agora o os aspectos
discursivos da produção jornalística (posição do sujeito, assujeitamento, silenciamento ou
interdiscursividade), mas os eixos práticos desta produção, trazidos pelas teorias do jornalismo e que
influenciam no sentido da notícia, fazendo dela muito mais do que uma reprodução de episódios da vida
real.
As teorias do jornalismo são resultados dos estudos sobre a prática de jornalistas que, ao longo dos
anos, ganharam os bancos acadêmicos e começaram a fazer parte das pesquisas e da tentativa de entender
como as notícias são produzidas, aliás, como afirma Traquina (2005a), a idéia é descobrir porque as
notícias são como são”, quais suas influências, os seus poderes, o sujeito que está por trás dessa construção,
ou na frente deste reflexo. A partir daí, adentramos a rede nevrálgica que fazem os discursos serem o que
são e nem sempre apresentarem o que apresentam: ao mesmo tempo transparência e opacidade.
A primeira teoria empregada é aquela chamada de teoria do espelho, a mais antiga e comum: nela as
notícias são como são porque são frutos da realidade, reflexo do real. Para isso parte do pressuposto que o
mediador social (o jornalista) não interfere no dizer e tem uma função única de informar, falar a verdade e
representar o real da forma mais fiel possível, “contar o que aconteceu, doa a quem doer” (Traquina, 2005a,
p. 147). O jornalista é responsável por colocar o espelho na frente do fato.
Essa teoria começou a ser modelada no fim do século XIX e início do século XX a partir de duas
vertentes: a industrialização trouxe a produção em série e a transformação da notícia em mercadoria e o
desenvolvimento da sociedade e das estruturas democráticas exigiam do jornalismo um caráter de
comprometimento social; dos jornalistas, exigia-se responsabilidade, honestidade e equilíbrio na condução
das “estórias”. Essa pressão externa mudou a forma de tratamento da linguagem noticiosa, opinião e
informação “se separam”, as agências de notícia se desenvolvem e partem para a defesa de uma mensagem
dita informativa, com valorização da objetividade, que, como vimos, não se opõe a subjetividade, mas
aparece como forma de afirmar a sua inevitabilidade. Para isso, entram em cena as regras e formas de contar
o fato de maneira direta, o mais próximo da realidade para, assim, garantir a segurança do espelho, a
legitimidade do campo jornalístico.
A teoria do gatekeeper se desenvolveu nos anos cinqüenta do século XX e é baseada no critério da
seleção. Ou seja, o processo de produção de notícia é subjetivo e arbitrário na sua gênese. Segundo os
defensores dessa teoria, como David Manning White (apud Traquina, 2005a, p. 149) o jornalista é
responsável, a partir de critérios próprios, por escolher quais o as notícias que irão passar pelo portão
(gate) e estarão na mídia. Essa teoria não considera as dimensões externas de seleção das notícias, baseia-se
na postura de um único agente, o jornalista, por isso para alguns, ela é minimalista (Pena, 2005).
A terceira teoria atribui à estrutura organizacional dos meios de comunicação um papel fundamental
na definição do que é o que não é notícia, bem como de qual abordagem empregar. A teoria
organizacional é defendida por aqueles que crêem que os jornalistas estão mais apegados a política editorial
do jornal do que com as ideologias pessoais. Isso acontece, segundo o sociólogo Warrem Breed (apud
Traquina, 2005a, p. 152), devido a vários aspectos, entre eles: a autoridade institucional e as sanções, o
sentimento de obrigação, as aspirações de crescimento profissional, a ausência de grupos de lealdade em
conflito, o prazer da atividade, a busca pela notícia. De acordo com o sociólogo, as normas editorias dos
veículos não são impostas, o estão no papel, mas são apreendidas pelos profissionais por osmose”, um
processo natural de enquadramento e sobrevivência. Em resumo,
O jornalista sabe que seu trabalho vai passar por uma cadeia organizacional
em que seus superiores hierárquicos e os seus assistentes têm certos poderes e meios
de controle. O jornalista tem que se antecipar às expectativas (...) para evitar os
retoques dos seus textos e as reprimendas – dois meios que fazem parte do sistema de
controle, e que podem ter efeitos sobre a manutenção ou não do seu lugar, a escolha
das suas tarefas, e a sua promoção quer dizer, nada menos que sua carreira
profissional (TRAQUINA, 2005a, 158).
A justificativa para essa ação organizacional é o fator econômico (pólo econômico) que, em muitos
casos, sobrepõe o caráter ideológico (social) do jornalismo
5
e isso, alinhando-se as determinações da direção
das empresas. Neste caso, o aspecto econômico demarca a notícia como um produto que deve ser inserido ao
mercado.
A teoria da ação política ou “instrumentalista” (Pena, 2005, p. 147), que apresentamos agora,
é uma das mais importantes para a nossa análise. A justificativa para essa afirmação tem uma razão
histórica. No fim da década de 60 e em toda década de 70 o estudo do jornalismo recaiu sobre as influências
políticas e sociais da atividade jornalística. A reboque do crescente interesse dos estudiosos sobre o impacto
da ideologia nas instituições, e influenciados pelo marxismo, alguns autores aproximam ideologia da
atuação jornalística, como foi feito com a problemática da linguagem.
Nesta forma de analisar a atividade do jornalista, as notícias são vistas como distorções
sistemáticas que servem os interesses políticos de certos agentes sociais bem específicos”, que utilizam as
notícias na projeção da sua visão do mundo, da sociedade (Traquina, 2005a, p. 163).
De acordo com os adeptos da versão esquerdista da teoria, a notícia serve para manter um sistema
excludente, a favor da manutenção do status quo, do capitalismo. para os teóricos da direita, as notícias
sevem como mecanismos que colocam em cheque o capitalismo, são o que Traquina chama de contra-poder.
Ou seja, podem ser utilizados por movimento sociais e para dar espaço àqueles que normalmente não tem
espaço para falar e propagar opiniões anti-capitalistas.
A teoria da ação política versão esquerda é a mais marxista, como a teoria do assujeitamento
defendida por Althusser (2001). O jornalista, nesta versão, tem um papel quase irrelevante, são meros
operários, quando não são convenientes com as elites. Ele é profissional do jornalismo e totalmente
assujeitado. O conteúdo é determinado por uma ação externa e macroeconômica, baseado em determinações
direcionadas aos diretores dos meios de comunicação. Os maiores defensores dessa teoria foram Hermam e
Chomsky (apud Traquina, 2005a, p. 164), que estudaram a produção de notícias em jornais americanos.
Segundo eles, as empresas são ligadas fortemente a interesses comerciais e políticos, o que influencia na
produção de matérias, tornando a notícia um instrumento publicitário.
Críticos dessa teoria acreditam que esta avaliação do produto noticioso é estático e unilateral,
reduzindo consideravelmente a ‘ideologia’ profissional dos jornalistas. O que a teoria coloca é o
assujeitamento total do sujeito jornalista, que necessita entrar na ordem da instituição, e se submeter às
posições ideológicas, políticas e partidárias da empresa da que ele é funcionário. A relação de troca, como
no marxismo, se estabelece a partir da venda de mão de obra, com um produto simbólico meramente
programado para ser como determina os donos do negócio. É assim que as notícias são como são para os
crentes da ação política no jornalismo.
5
Segundo Traquina (2005a, p. 24), dois pólos são dominantes na emergência do campo jornalístico contemporâneo: o pólo
econômico, que é a definição da notícia como negócio. Neste caso, os fins mercadológicos é parte da função organizacional da
produção de notícias. E o pólo ideológico, a definição das notícias como um serviço público.
Outra teoria importante para nosso trabalho é a construcionista. Importante porque questiona
o que a teoria do discurso reflete: as notícias são construções, que tem a influência não só do assujeitamento,
mas também, para estabelecer o duelo, com a resistência do sujeito, enquanto origem do dizer. Analisa
Traquina (2005a, 169):
não é de se estranhar que o paradigma das notícias como construção não
considere o conceito de distorção como inadequado (...) como discorde radicalmente
da perspectiva das teorias que as atitudes políticas dos jornalistas são um fator
determinante no processo de produção de notícias.
Para os construcionistas, a construção da notícia não significa ficção, por isso não concordam
com a teoria do espelho, que acredita em um jornalismo reflexo da realidade. A construção da própria
realidade é algo natural, asseveram os teóricos da “construção”, o que não ficcionaliza as notícias nem muito
menos diminui o valor, o crédito ou a legitimidade da produção. Gaye Tuchman (in Traquina, 2005, p. 169)
defensor dessa teoria, busca justificar o medo da “construção” questionar a base real da notícia. Ele sublinha
que afirmar que uma “notícia é história não é de modo alguns rebaixar (...), nem acusá-la de fictícia. Melhor,
alerta-nos para o fato de que a notícia como todos os documentos públicos, é uma realidade construída
possuidora da sua própria validade interna” (apud Traquina, 2005a, 169). Essa teoria reflete e leva em
consideração as condições de produção da notícia. Não aquelas condições histórico-ideológicas, que, como
vimos, também influenciam na produção, mas as circunstâncias da própria práxis jornalística, como: rotina,
tempo, pressão organizacional. Também afirma que as rotinas jornalísticas podem sim influencias na ação
política e distorções do dizer.
A ampliar o campo de visão da atuação do jornalismo e partilhando da idéia de que as
notícias são ‘construção social’, os adeptos dessa da teoria fazem emergir mais duas teorias baseadas na
idéia de construção simbólica da realidade. São elas: a teoria estruturalista e a interacionista. Para ambas, o
jornalismo é resultado de uma rede complexa de interação social entre agentes sociais: jornalistas, fontes de
informação, sociedade, e outros jornalistas. As duas negam a teoria do espelho, acreditam que a estrutura
organizacional influencia na produção da notícia do jeito que ela é; também interferem no produto a cultura
e rotinas de trabalho da comunidade e as regras de construção do texto (lead, pirâmide invertida); e
principalmente, reconhece que o jornalista tem uma autonomia relativa, ou seja, não é totalmente
assujeitado.
Segundo Nelson Traquina a divergência fundamental entre as teorias da construção
(estruturalista e interacionista) esno ponto de vista sobre a relação das fontes com jornalistas. Na teoria
estruturalista essa relação é unidirecional, ou seja, as fontes oficiais comandam a relação na produção de
notícia, impõe a forma de atuação do jornalista, sem deixar brechas para manobras; as fontes determinam o
encaminhamento da notícia de forma que o mediador não tem como intervir. Na interacionista o profissional
mantém uma relação aberta com as fontes oficiais e tentam atuar de forma mais dialética, porém, neste caso,
coloca-se em evidência o fator tempo. O seu desafio cotidiano é ter de elaborar um produto final em um
tempo mínimo, em condições nem sempre adequadas e que influencia no resultado.
Podemos observar, a partir da apresentação dessas teorias do jornalismo, que a notícia é como
é porque ela é resultado de múltiplos interesses, pessoais e coletivos, externos e internos, ações integradas,
interação e desejo. Poderíamos, inclusive, enumerar outras teorias como a do agendamento, a etnográfica, a
gnóstica (Pena, 2005), que também demonstram que a práxis jornalística é rodeada de peculiaridades que
fazem da notícia um produto da subjetividade humana, instrumento de poder e de contra-poder,
manifestação social, produto de informação e conhecimento, mercadoria. Ela é linguagem, possibilidades
múltiplas de dizer e com inúmeras formas de se entender. É discurso que basta ensaiar uma materialidade,
fluir de um sujeito posicionado e, em um momento e espaço específicos, estamos diante da teia de sentidos.
Uma relação que aprofundaremos no próximo item.
2.4 O além do jornalismo, o discurso.
Quando os leitores em geral abrem um jornal, uma revista ou qualquer grande periódico para decifrar
códigos, signos e se alimentar de informações que o tornem um ser cultural, político e social, não devem
imaginar o que há detrás de cada vírgula, de cada foto, de cada manchete, dos subtítulos, de cada palavra, de
cada seqüência de abordagens. Aliás, não é fato que alguém o possa fazer, nem o próprio sujeito criador,
nem nós que, a todo instante, nos atrevemos adentrar nessas intempéries de sentido. Há como imaginar o que
está além do único texto que, por prazer ou necessidade, foi selecionado para ler? Quais os verdadeiros
desejos e vontades? É possível estar ciente do efeito dos significados somatizados e complementares?
Acreditamos que até seja possível perceber nos textos jornalísticos essa tentativa de refletir o mundo, de
procurar verdades, -lo como espelho. O difícil é conseguir quantificar e qualificar a produção de sentidos
naqueles acontecimentos discursivos segmentados, segregados e muitas vezes desfigurados. Aliás,
acreditamos que o discurso midiático é aquilo que entendemos como representação simbólica, pois, como
afirma Gregolin:
O que os textos da mídia oferecem não é a realidade, mas uma construção que
permite o leitor produzir formas simbólicas de representação da sua realidade
concreta (...) participa ativamente, na sociedade atual, da construção do imaginário
social, no interior do qual os indivíduos percebem-se em relação a si mesmos e em
relação aos outros (GREGOLIN, 2003b, p.97).
Seguindo essa trilha, acreditamos que o jornalismo é a reinvenção segmentada de histórias da vida
real, feito do mosaico de palavras significadas e re-significadas; são as representações sociais materializadas
de forma organizada na desordem dos fatos; efeito de construção discursiva que transforma e invade o
espaço do social na busca de, por natureza, alongar, transportar, materializar, refazer o que não tem volta e,
por sua vez, criar novos fatos para realimentar esse efeito de realidade.
Uma realidade que, ao longo de dezenas de anos, sempre foi anunciado aos quatro ventos como
verdade absoluta, construído e constituído para e pelo social, e como tal, modificador, balizador e
mantenedor de uma estrutura e de uma cultura. Vejamos:
No início do século XVIII, os jornalistas/tipógrafos passaram a formular a teoria da
livre expressão e da imprensa livre. Essa imprensa livre deveria ter compromisso
com a verdade para ajudar o povo a se auto-governar. Nos Estados Unidos, o termo
também se consolida no século XVIII e influencia a redação da primeira emenda à
constituição americana, que garante a liberdade de imprensa (PENA, 2005, p 32).
Este sempre foi o grande certificado de garantia propagado pelo jornalismo no mundo e no Brasil.
Hoje, a atividade já se encontra enraizada na sociedade como face importante no processo de formação de
opinião e de transformação social. Isso se deu, segundo Jürgen Habermas, quando da mudança estrutural da
esfera pública, que se transforma desde a “idéia de cidadania nas praças atenienses à noção de publicidade
nos tempos atuais”, incluindo a “mídia (a imprensa como parte dela) que assumiu privilegiada condição
de palco contemporâneo do debate público” (apud Pena, 2005, p. 29). Na sua empreitada diária visando os
olhos do grande público, o jornalismo traz a história, a memória, apropria-se de práticas para construir um
sentido presente e especular uma realidade que pode se prefigurar no futuro. Se não o faz por intenção, o
faz por um processo natural. Os sustentáculos desse processo são as estratégias discursivas que atraem,
convergem, convencem e porque não dizer: enfeitiçam.
É importante destacar, que a credibilidade conquistada, ou a tentativa de representação do real de um
ponto de vista específico, não garante, no entanto, a verdade absoluta dos fatos, mesmo que, para se
credenciar como jornalismo, persiga-se isto. Mesmo que os jornais utilizem, por exemplo, slogans
publicitários como: “A verdade em suas mãos”, “Você lê você acredita”.
Patrick Charaudeau acredita que analisar o discurso político é mais difícil que analisar o discurso das
mídias justamente por isso: enquanto no mundo político se admite, de maneira geral, que o discurso
manifestado esteja ligado ao poder e manipulação, “o mundo das mídias tem pretensão de se definir contra o
poder e contra a manipulação”, (Charaudeau, 2006, p.17) Ou seja, límpido, neutro e sem interferências
ideológicas.
Isso explica porque, para o jornalismo, a verdade é a composição de um acontecimento na sua mais
pura fidedignidade. Citar fontes, ouvir as versões, ampliar as fontes, dar acesso às informações
igualitariamente são características da busca da verdade ética. Verdade epicentro do fazer jornalístico.
Diferente da verdade discursiva, a verdade do jornalismo nasce sob a tutela do que chamamos de mundo
real, da sua representação. No caminho de ratificar a verdade constitutiva do jornalismo é necessário não
a transformação do ‘episódio’ da vida em relato, mas a utilização no relato das características desse real.
Para compreensão desses discursos midiáticos, especificamente no impresso, cuja nossa análise es
inserida, nós retomamos, como vimos em outro momento, as regras de formação, as formações discursivas e
as formações ideológicas, conceitos intrinsecamente ligados e introduzidos por Foucault e Pêcheux. As
formações discursivas são determinadas por regras de formação, que são, na prática discursiva do sujeito, a
junção de “regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço e para uma determinada
área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições de exercício das funções enunciativas”.
(Foucault, 2005a, p. 131).
Estabelecidas as regras de formações discursivas é o olhar sobre o mundo e os lugares dos sentidos
que consagram o discurso do jornalista. Entram em cena, então, as formações ideológicas. São elas que
mostram o sujeito, de onde ele fala, em que tempo ele está inserido. É no discurso, emoldurado pelas
formações discursivas que se materializam as formações ideológicas e, conseguinte, a identidade do sujeito-
jornalista e suas diferentes posições. Está apresentada a relação íntima e indissociável do jornalismo e o
discurso. Nessa perspectiva, podemos dizer que na linguagem jornalística, sujeito e sentido navegam o
mesmo barco e, por isso, a teoria da objetividade, da neutralidade e a da verdade absoluta, estão submetidos
às formações discursivas e ideológicas.
Outro elemento essencial para criação e compreensão prévia do dizer jornalístico é a memória
discursiva. É através dela, que discursos são reconhecidos, re-significados, cruzados e silenciados. Foucault
retoma a memória como arquivo, instrumento de formação e transformação dos enunciados. E é resgatando
essa máquina de produzir e reproduzir dizeres que o jornalismo presentifica a memória social. Jean Davalon
afirma que o aparecimento da imprensa
parece nos afastar definitivamente da necessidade de situar uma parte da
memória social na cabeça dos sujeitos sociais: a memória social estaria
inteiramente e naturalmente presente nos arquivos das mídias. (in ACHARD, 1999:
23)
São os arquivos produzidos pela imprensa e resgatados também por ela para restaurar uma nova
prática que é possível lhe atribuir uma prática societária. Segundo Gregolin, a mídia “produz sentido através
de um insistente retorno de figuras, de sínteses-narrativas, de representações que constituem o imaginário
social” (GREGOLIN, 2003b, p.96).
Mas para toda produção, representação e mesmo para o resgate de memória discursiva, o sujeito-
jornalista está posto dentro de uma ordem que, para ele, inevitavelmente materializa-se no âmbito no
discurso jornalístico. Este, como parte dos discursos produzidos pela e na sociedade é, compartilhando com
Foucault
controlado, selecionado, organizado e redistribuído por certos números de
procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade
(FOUCAULT, 1995, p.8 e 9).
O jornalismo como um todo, e especificamente o impresso, encaixa-se dentro não das formas
específicas de reinvenção (simbólica) do “real” ou representação da “realidade”, mas perpassa caminhos
pré-estabelecidos pelos interesses desta ordem. Afinal nesse campo de produção de sentidos “o desejo diz” e
“a instituição responde” (Foucault, 2004a, p.7). E é assim que o real é colocado nas ginas nos jornais, é
assim que o sujeito- jornalista produz a discursivização. Essa ordem começa, termina e silencia os discursos.
É ela que estabelece o começo e o fim deste percurso, encabeçados pelas formações discursivas e
ideológicas, pela memória social e pelas identidades de um sujeito, materializados pela ação transformadora
da linguagem.
Assujeitado pelo aparelho ideológico a que ele presta serviço, o jornalista reúne discursos que
estão dispersos nas formações sociais, promovendo a polifonia e a heterogeneidade discursiva, a qual é
emoldurada pelas formas de produção e, como vimos, as técnicas de construção do texto jornalístico. Para
tanto se utiliza e se adequa às várias formações discursivas e conseqüentemente às formações ideológicas
que lhes são colocadas para a concretização do dizer. Com a ilusão de ser possuidor do ato,
institucionalmente habilitado para tal função e credenciado socialmente para o cargo, o sujeito jornalista,
agente especializado, o faz através de recursos verbais e não-verbais que são utilizados para reproduzir
outros dizeres e produzir sentidos. Ele utiliza a linguagem para explicitar as formações ideológicas,
mantendo-as através do seu discurso que nutre uma íntima relação com os processos sócio-histórico-
ideológicos.
Ao ser afetado e feito pelas “coisas do mundo”, o jornalismo é umbilicalmente ligado à
ideologia. Um o corpo e o outro a alma. É assim que os discursos jornalísticos são utilizados, é,
inevitavelmente com esse objetivo de representar as ideologias que são criados e recriados. Foi também sob
a égide dessa relação intrínseca que a sua linguagem alcança o status de atividade autônoma e caráter de
agente transformador da sociedade.
Althusser (2001, p. 60), em suas discussões sobre repressão dos aparelhos ideológicos, vê a ideologia
funcionando como dominação dos sujeitos, conseqüentemente, nós entendemos a prática jornalística como o
corpo dessa alma, uma atividade que, desde seu nascedouro, foi criada para esse fim. E como em uma
moeda há sempre duas faces, o discurso jornalístico, enraizadamente ideológico, pode também como
produto da língua, que produz sentidos diversos, questionar, denunciar, ferir determinada ordem. Pode até
silenciar e, através dele, evidenciar o dizer que não pode ser visto num espectro. O fato é que a mídia
como produto da linguagem, nasceu chagada a produzir múltiplos sentidos a serviço de algo, do poder, por
exemplo. Algumas vezes oriundos da ingenuidade produtiva inconsciente e outras tantas vezes e, na maioria
delas, sendo produto de uma ação proposital, que faz das palavras instrumento de ação e transformação
ideológica, política, cultural. Compartilhamos, pela ciência, com Pinto (2002), que relaciona o discurso o
que consideramos a essência da mídia - como algo intimamente ligado à cooptação e sedução, pois
todo discurso é um simulacro interesseiro, produzido com o objetivo de se
conseguir dar a última palavra na arena da comunicação, isto é, de ter reconhecido
pelos outros as representações, identidades e relações sociais construídas por seu
intermédio. Os textos narrativos o os exemplos mais espetaculares disso: a
narração é um dispositivo instrumental de distribuição de afetos a serviço da
sedução e cooptação. (PINTO, 2002, p. 88).
Para compreender como isso acontece, o analista precisa voltar. Tentar refazer o caminho
traçado pelo jornalista ou mediador social - como caracteriza a jornalista Cremilda Medina (1973) - no
momento da construção dos sentidos, através do texto. É buscando saber de onde ele fala, pra quem ele fala
e quais as condições do processo de produção dessa fala, que poderemos compreendê-lo enquanto
articulador de sentidos, distribuidor de interesses, um sedutor discursivo, por isso agente transformador. A
regressão nos permitir galgar compreender, de uma forma particular, através de um olho específico, a
matemática dos sentidos e significações que se perfazem em cada título, palavra, em cada ponto, em cada
vírgula, que são inseridos pelo jornalista no processo de criação de uma matéria jornalística.
Para Foucault, o discurso é um bem finito, limitado, desejável, útil - que tem suas regras de
aparecimento e também suas condições de apropriação e de utilização que coloca desde seu nascimento a
questão do poder e é, por natureza, objeto de uma luta, e de uma luta política. Feito de discursos, o
jornalismo impresso é também objeto de disputa na arena da informação, do poder. Mas a informação é
poder? Segundo Bruce Sterling (in Sodré, 1996, p. 57) seria um equívoco confirmar isso porque se o fosse,
os bibliotecários teriam dominado o mundo”. O autor arremata a sua tese afirmando que o poder reside na
atenção que se consiga obter com o público, visto que, quem quiser sobreviver politicamente, segundo ele,
“vai ter que ter capacidade de pôr seu assunto (informação) na cara do público e convencer as pessoas a
tentar entender o que está acontecendo”. (Sterling, apud Sodré, 1996, p.57) Mais do que isso: colocar o que
está acontecendo do jeito que lhe é determinado. O poder, segundo Sodré, é a capacidade de administrar o
controle, de realizar efeitos de determinação ou de realidades socialmente reconhecíveis. A informação, por
sua vez, é um dos instrumentos utilizados para esse controle.
No início de 1970 foram introduzidos os conceitos de agendamento e enquadramento, que assevera
que a notícia influencia, sim, no que as pessoas pensam (Traquina, 2005b). A teoria postulou, no começo,
que as mídias (aparelhos para operação e distribuição dos discursos) podem não dizer às pessoas como
pensar sobre determinado assunto, mas são muito boas ao dizer às pessoas no que pensar. Os estudos
posteriores, como os de Gaye Tuchuman e Tood Gitlin (in Traquina, 2005b), mostraram que as mídias
fazem as duas coisas porque o enquadramento (agendamento), como idéia central organizadora, dá sentido a
acontecimentos relevantes e sugere o que é um tema.
Pois bem, o poder da mídia/jornalismo está nos discursos, tesouro inesgotável de transformação. O
que seria das páginas de uma revista sem o sujeito e a língua? O que seriam as grandes folhas dos jornais,
sem o sujeito, língua, ideologia? Será que sem as possibilidades do discurso, a TV (aparelho), a tecnologia e
outras dias seriam tão disputados? A realidade responde. Uma realidade de histórias reescritas sempre
cotidianamente com nome de jornalismo. É o que veremos agora.
2.5 Jornalismo: a “história” do cotidiano
Segundo Lacouture, o jornalista é como um camundongo que rói gulosamente suas aveias e o
“historiador-esquilo” as acumula. Le Goff (2001) coloca os jornalistas entre os historiadores porque ele seria
um “profissional da memória”. No seu trabalho seria possível encontrar resquícios da memória que, por sua
vez, se utilizaria da materialidade peculiar à mídia. Com tal afirmação, o autor justifica a relação direta entre
jornalismo (mídia-meio) e história e, por sua vez, com o discurso. Este último como sombra da linguagem,
objeto de essência do periodismo; buscando perceber o que sob, sobre, por trás e ao redor "das palavras
do outro dia", recuperadas a partir "da reinvenção das coisas de hoje" e nesse quase ininterrupto método de
constituição da história dos dias. Sobre os métodos de historicização, Lacauture afirma que a "história
imediata" (e aqui a lemos como jornalismo) vive em ebulição, recusa enquadramentos e a acomodação,
pois de acordo com ele,
do jornalismo bem pouco rigoroso, praticados por homens imersos no acontecimento
a ponto de serem ao mesmo tempo, participantes e reflexos dele, à pesquisa
propriamente histórica que tem por objeto um período bastante recente e recorre aos
métodos de enquête-entrevista passa-se aquém e além de certa linha específica que
seria a da história imediata, cujos componentes irredutíveis são, a um tempo,
proximidade temporal da redação da obra em relação ao tema tratado e
proximidade material do autor em relação crise estudada. (LACOUTURE, 2001,
p. 216, grifo nosso)
Neste caminho, nos perguntamos: os jornais fizerem a história que estamos acostumados na escola?
Qual história considerar, visto que, as histórias se divergem? Onde está a verdade única e contínua da
história dos fatos? Antes de tentarmos responder, vale compreender como o jornalismo e a história se
relacionam na busca pela representação. A justificativa vem do fato de que quando falamos na palavra
"história", é inevitável não pensarmos naquele conceito tradicional que foi, e ainda o é, nos passado pela
escola, história clássica, de uma conceão homogênea, baseada somente em documentos de arquivos. Uma
vida contada de forma linear, cronologicamente determinada e organizada como algo irreparável, irredutível,
mantenedora da “verdade” do discurso positivista e homogêneo. Tais características foram criticadas por
Foucault (2005), quando ao discutir conceitos de descontinuidade discursiva afirma que a história pura e
simples parece apagar a irrupção dos acontecimentos em benefício de estruturas fixas. Acreditando ele que
"a história do pensamento, dos conhecimentos, da filosofia, da literatura, parece multiplicar as rupturas e
buscar todas as perturbações da continuidade". (Foucaul, 2005, p. 06)
Em A Ordem do Discurso Foucault adentra também nessas questões quando afirma que a história
muito tempo deixou de compreender os acontecimentos como uma articulação de causas e efeitos
homogêneos ou hierarquizados, mas procura estabelecer as séries diversas, “entrecruzadas, divergentes
muitas vezes, mas não autônomas que permitem circunscrever o ‘lugar’ do acontecimento, as margens de
sua contingência, as condições de sua aparição”. (FOUCAULT, 2004, p.56). O que, segundo ele, impõe a
ligação a noções fundamentais de acontecimento e série e suas interligações: regularidade, casualidade,
descontinuidade, dependência, transformação.
As reflexões do autor não contribuem para os estudos sobre a história, bem como a aproximam -
em nosso ponto de vista - cada vez mais do jornalismo. Foi uma brecha aberta para também colocar o
discurso e os seus acontecimentos enunciativos como objeto e instrumento do processo de construção da
história do instante, considerando as questões sociais e culturais, as relações de poder. Afirma Baronas
(2003, p. 116): “a mídia não somente transforma o presente em acontecimento jornalístico, como também
lhe confere um estatuto histórico”, afinal os jornais impressos são um operador de memória e instrumento da
materialidade necessária para existência do enunciado, dos discursos - um suporte da escavação
arqueológica dos acontecimentos. Na reeleitura de Davallon, Baronas (2004, p. 102) afirma que, com o
surgimento da imprensa, “há um deslocamento da memória social, que não se encontra mais na cabeça dos
indivíduos, mas nos arquivos da mídia”. Ou seja, inicia-se um ciclo em que memória da mídia e memória
social vivem em simbiose produzindo memória coletiva:
em se tratando de relações, no mais das vezes conflituosas, entre a história e o
jornalismo, não podemos deixar de observar que as duas disciplinas tendem a
convergir, desde a época em que reinavam, de um lado, a religião de longa duração e,
de outro, a fobia do factual, o culto do sensacional a qualquer preço (...)
(LACOUTURE, 2002, p. 218).
A “flexibilização” do conceito de história, que nos oferece mais subsídios para estabelecer a
aproximação (jornalismo, história e discurso), segundo Sargentini (2004, p. 84), tem contribuição direta da
Escola do Annales que, ao apresentar os primeiros estudos no final dos anos 20 do século passado, inicia os
traços de um caminho reconhecendo que a história é uma ciência em construção, recusando a história
positivista. A autora acrescenta que foi na terceira geração da Escola que a história passa a ser vista com
heterogeneidade interior e como uma fragmentação do real:
nasce aí, assim, a Nova História, que considera as questões sociais e culturais, que
levam o historiador a observar as relações de poder, que a difusão do domínio
cultural tem como mediadores grupos sociais possuidores de um discurso dominante
e de poder (SARGENTINI, 2004, p.86).
Na Nova História, o discurso histórico e operação histórica parecem muito mais imbricados, afinal
são compostos por elementos comuns. Três deles formam o tripé que nos faz entender a heterogeneidade do
acontecimento enunciativo: são oriundos de um sujeito, estão em um contexto sócio-histórico e se firmam
através da materialidade. A Nova História, segundo Foucault (2005a, p. 11) evidencia questões adormecidas
como a problematização das séries, recortes, os limites, os desníveis, as defasagens, as especificidades
cronológicas, as formas singulares de permanência. A nova tarefa da “história geral” é determinar a
legitimidade das relações de séries, os sistemas, o jogo das correlações e dominâncias; de que efeito podem
ser as defasagens, as temporalidades diferentes, as diversas permanências.
Para Le Goff (2001, p. 28), a história nova ampliou o campo do documento histórico, substituindo
uma história baseada nos textos e nos documentos escritos, por uma fundada na multiplicidade de
documentos: escritos de todos os tipos, imagens, produtos de escavações, fotografia, filme etc., e
transformando-os em documentos de primeira ordem.
Vimos aí, que o jornalismo e a história têm muitos pontos em comum, especificamente no seu
seguimento do instante, que é o que nos interessa. Seja submetida ao controle (e o é, sempre), seja
demarcado pelo tempo cronológico, burilado pelas condições de produção, a operação discursiva jornalística
e histórica compõe a história do passado com sua superfície de lugar e tempo, bem como é instrumento do
relato dos instantes, com suas privações e privilégios. Emergem sob a égide das práticas discursivas,
“regularidades que ganham corpo seja em um conjunto técnico, em uma instituição, em formas de difusão”
(Sargentini, 2004, p. 86).
Na sua mesopotâmica inserção pelo tempo e pelo globo de acontecimentos, pelas grandes mudanças
e transformações no pensamento da humanidade, o historiador, ao tentar desvendar os percursos da história,
não só recorre à memória social, não só transforma monumentos em documentos, porque, determinar
simples causas e diferenças, datá-los e remarcá-los, não mais satisfaz o vácuo do saber. O caminho
inverso também passa a ser considerado. Documento histórico é transformado em monumento, no qual o
historiador constitui séries, define limite e elementos e desvendando as leis que o regem (Baronas, 2004, p.
101).
O documento para a história de nossos dias, segundo Foucault (2005a), não é só interpretado,
questionado sobre sua verdade ou valor expressivo, mas como algo passível de ser trabalhado, organizado,
recortado, distribuído, ordenado e repartido em níveis de séries. A história é responsável também em
distinguir o que é ou não pertinente, identificar elementos, define unidades, descreve relações:
O documento, pois, não é mais, para história, essa matéria inerte através da qual ela
tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que é passado e o que deixa
apenas rastro: ela procura definir, no próprio tecido documental, unidades, conjuntos,
séries e relações. (FOUCAULT, 2005a, p. 07)
Entendemos, portanto, o jornalismo como um desses documentos da história. Ou ainda o jornalismo
como a própria história, visto como massa heterogênea que a compõe? Essa é a nossa crea. O jornalismo
não é instrumento de memória e arquivo, como documento de análise. Assim como a memória coletiva e
social, ele contribui para sua construção, seja na sua forma clássica seja da sua forma nova. A História Nova
nos serve para dizer que, nela, os discursos históricos não são (ou não devem ser considerados) cristalizados,
imunes à intromissão da subjetividade humana e à ousadia do tempo e do social. Nem muito menos seria
capaz, ou tão capaz, de estar alheia às relações de poder, ao controle, às ordem e suas limitações. A História
Nova nos serve ainda para afirmar que a chamada História Clássica também é como ela, pois, mesmo que
por muitos anos se mantivesse dentro de um tubo de ensaio para se firmar como ciência, pôde perceber que a
ciência das histórias pode admitir que quem a constrói recorre a tudo que de mais heterogêneo, disperso,
subjetivo para sua construção. Como afirma De Certeau,
os fatos históricos são constituídos pela introdução de um sentido na objetividade.
Eles enunciam, na linguagem da análise, opções que lhe são anteriores, que não
resultam, portanto da observação - e que se quer são verificáveis, mas falsificáveis
graças a um exame crítico (LACOUTURE, 2001, p. 230).
Concordamos com De Certeau, acreditamos que os fatos jornalísticos também são constituídos
pela introdução de um sentido na objetividade. A sua linguagem, mesmo aquelas mais analíticas, prezam por
esse direcionamento. O que detrás da estrutura, no entanto, pode não ser tão simples. Como, aliás,
descobriu-se quando do entendimento de como se constituiria o saber histórico.
Constituída de discursos e enunciados, mantenedora de ambiente ideal para nascimento, constituição
e crescimento das funções enunciativas e formações discursivas, a linguagem jornalística é constituída nas
condições de produção, materialidade, poder, controle. E o que de melhor e pior em tudo isso? Faz-se
história com as suas histórias no e do cotidiano. Algumas sem tanto valor para tornar-se perene, outras mais
atraentes e impactantes, menos banais e transformadoras, como as grandes batalhas, as decisões, ações que
mudam a vida de milhares de pessoas, as tragédias. O fato jornalístico se faz histórico quando deixa marcas
na memória coletiva e quando ele é a própria memória. E, na construção da história um utiliza-se do outro
em um movimento simbiótico no que já vimos chamando de operação histórica. Concordamos com Baronas
quando ele afirma que,
face o confronto entre memória coletiva nacional dominante e memórias
marginalizadas, a mídia constituiu-se tanto como elemento fundamental no corpo
social e das suas instituições, quanto em um poderoso instrumento para rearranjos
sucessivos da memória coletiva nacional (BARONAS, 2004, p. 118).
O jornalismo se assemelha à história nos métodos de representação do fato, na suas relações com o
acontecimento, no seu caráter documental, até nas suas formas de serem interferidos pela exterioridade.
A questão que ascende agora é sobre a utilização do jornalismo como objeto da história. Até que
ponto os historiadores, ao utilizarem os fatos materializados pelo jornalismo, oriundo da memória social,
coletiva ou documental, ou vice-versa, estarão contando a “verdadeira história” de uma cidade, de um país,
de uma tragédia? Seria possível tal feito, mesmo levando em conta a dispersão, a heterogeneidade, a
descontinuidade, a análise de séries e unidade enunciativas? Acreditamos que não, inicialmente por dois
motivos. Um deles a própria teoria da descontinuidade arqueológica nos responderia, visto que, como afirma
Sargentini, ao cristalizar a noção de descontinuidade, o arqueólogo do discurso deixa de buscar o reencontro
com a totalidade da história e concorda que é impossível reconstituir integralmente o sujeito a partir da
história:
dessa forma é preciso renunciar à crença de que seja possível chegar à irrupção de um
acontecimento verdadeiro, pois jamais seria possível ao homem dele reapoderar-se
integralmente – e, consequentemente, de si mesmo. Nessa concepção passa-se a tratar
o acontecimento no jogo da sua instância, na pontualidade em que aparece e em sua
dispersão temporal (SARGENTINI, 2004, p. 86).
O outro motivo está na natureza da própria atividade jornalística que, desde o seu nascimento,
passando pela sua afirmação, até a consagração enquanto prática discursiva essencial na sociedade, traduziu
realidades e verdades por um espectro particular. O jornalismo sempre manteve relação direta com a
exterioridade, sujeito, controle, poder, condições de produção. Tudo que inevitavelmente não pediria licença
para constituição da verdade absoluta dos fatos se é que isso existe. É o que queremos “enxergar” no
capítulo seguinte: o fato “contado”, “reinventado” pelos jornais Correio da Paraíba e Jornal da Paraíba.
3. As “reinvenções”: o fato no CP e no JP
Por trás da história desgovernada dos governos,
das guerras e da fome, desenham-se histórias,
quase imóveis ao olhar –
histórias com um suave declive (...)
Michel Foucault
Estamos por trás, agora é desvendar. Vivenciar o caminho. Não seria repetitivo
dizer que o que es materializado nos jornais fica para posteridade. Ao contrário, é sempre importante
ratificar que o caráter descartável- enquanto material- dos jornais tem a mesma intensidade de seu caráter
histórico-discursivo. No mundo inteiro, os jornais são operadores de memória, memória discursiva;
instrumento na constituição da memória coletiva. E é a partir desse resgate que se estabelece o entendimento
dos dizeres e fatos reproduzidos pelos jornais impressos; entendimento, neste caso específico que vamos
analisar, dos interesses políticos e partidários que se estabeleceram para construção de uma realidade e
reprodução verídica de um fato.
Em História da Imprensa no Brasil (1983), Nelson Werneck Sodré relatou que, no início do
século dezenove, quando a chamada grande imprensa estava surgindo, a linguagem da imprensa política era
violentíssima. Dentro de uma orientação burguesa, os jornais refletiam o pensamento de um grupo, para
qual, o regime era bom. O autor do livro transcreve o discurso do paraibano Epitácio Pessoa, então senador
da República, que criticava essa postura da press. Para ele a imprensa estava desviada de seus nobres
intuitos, “afastada da missão civilizadora, convertida em vazadouro de todas as paixões, de todos os ódios,
de todos os despeitos” (Sodré, 1983, p. 331 e 332).
E, de certa forma, assim continua. Essa afirmação o é precipitada, mesmo acreditando que o
jornalismo deveria ser, justamente, ancoradouro da neutralidade e dos interesses da maioria da população. A
questão é que não grandes fatos, catástrofes, vitórias, grandes feitos, o pitoresco, o grotesco e
personalidades estiveram na pauta do cotidiano do jornalismo, nem muito menos os grandes pleitos sociais,
de transformação para um mundo melhor, os interesses particulares também, aliás, eles estão sempre
presentes, como comprovam as próprias teorias do jornalismo. Os fatos ganham versões de quem os contam,
materializadas pelas formações discursivas e estabilizados pela instituição do conceito de jornalismo:
reprodutor da verdade.
O jornalismo impresso é uma luta pela busca de mais leitores, pela ampliação de ideais,
pensamentos, ampliação da publicidade e dos parceiros comerciais, que financiarão, por conseguinte, a
divulgação de ideologias para um alcance maior de consumidores. Antes de se concretizar como história, o
ato jornalístico, oriundo do fato, passa por todo esse processo. No Jornal Correio da Paraíba (CP) e no
Jornal da Paraíba (JP), jornais de grande circulação no Estado, esse ciclo se configura da mesma forma.
Sustentado pelo secular discurso da imparcialidade, objetividade e neutralidade jornalística, eles vão
reforçando o compromisso social e de transformação social. Propaga-se, para tanto, transparência no
tratamento do fato, afinal, sem realidade e verdade jornalística, não haveria jornalismo. Essa é a essência
perseguida por quem o faz. De tudo isso há uma assertiva, o jornalismo se faz de fatos chamados reais e não
como contestar, faz-se de discursos autorizados, de depoimentos institucionalizados e de testemunhas da
“vida real”. É com esses discursos autorizados que o jornalismo se adequa a construir personagens” da
história política, da história do poder político, porque, em sua discursividade, efeitos de sentido constituídos
no processo sócio-histórico-ideológico da carreira de políticos vão se apresentando continuamente, advindo
do quotidiano, dos fatos, das ações políticas, que vão, por sua vez, construindo figuras, estereótipos, história
e estórias.
Em 17 de junho de 2004, o estouro de uma Barragem, na cidade de Alagoa Grande, a 100 km de
João Pessoa, abalou todo Estado. O impacto do acidente foi reproduzido para o país, através da mídia, afinal
morreram cinco pessoas e milhares ficaram desabrigadas. Elas perderam casas, roupas, objetos pessoais,
documentos etc. Esse foi o fato, testemunhado corpo a corpo, ali no abrir dos olhos, no sentir da pele.
Testemunhado in loco pelos jornais, ali no acontecer do acidente, no registro da desgraça, a infame miséria a
que chegou a comunidade alagoa grandense.
Não demorou muito e o fato tomou forma de enunciado nos principais meios de comunicação do
Estado. A “história” começava a ser construída, o jornalismo começa a construir uma realidade, aquela
perdida com o passar das horas, com o tempo. O fato vira relato. A realidade ganha versões. Os jornais,
como de práxis, relatam a dor e a desolação daqueles que viveram o ocorrido, os personagens da vida real,
falam em conseqüências, mobilizam a sociedade para se sensibilizar com aquelas histórias. Nas primeiras
horas após o desastre, as fontes oficiais são as testemunhas, aqueles que viram com os próprios olhos, que
sentiram, que estavam o mais próximo do local do desastre.
Cumprindo a sua função social de mobilizar a opinião pública, promover mudanças e discussões
positivas, os jornais tentaram encontrar as causas do acidente, culpados, colocam o dedo em riste em nome
da ajuda, da cidadania, em nome de milhares de pessoas, que, em poucos segundos, perderam tudo. Começa
então a apoteótica historicização do conflito. Correio da Paraíba e Jornal da Paraíba entram em cena e
assumem as suas posições, começam a enunciar suas defesas e apontam suas armas: as palavras, o
enunciado, o discurso. O duelo enunciativo estava começando. Inicia-se a produção de sentidos, cada um
com formações discursivas peculiares, correspondendo-se, interagindo, “dialogando” com as suas formações
ideológicas, produzindo suas verdades jornalísticas através de verdades discursivas, as suas histórias e suas
memórias.
Nenhum jornal pensou declarar a sua postura nas páginas, sua posição ou de que lado estava. As
idéias que defendiam se escondiam na opacidade da linguagem e apresentavam sua repetição. A sociedade,
enquanto leitora se encarregava de “ler” a (não) transparência da linguagem, passava a conhecer onde e
como se posicionava cada jornal, visto que, na cobertura jornalística, era possível perceber a afinidade
ideológica sob a tutela da materialização discursiva. E, sob o postulado da imparcialidade e neutralidade, era
preciso ouvir todos lados, dar voz a todos, informar e não opinar, relatar o fato sem interferir na
interpretação do leitor. É, como diz Rossi, papel da imprensa, de acordo com o mito da objetividade,
colocar-se numa posição neutra e publicar tudo que ocorre, deixando ao leitor a tarefa de tirar suas próprias
conclusões (2000, p.9).
Era de conhecimento de parte da sociedade que o Correio da Paraíba tinha uma ligação política com
o grupo do ex-governador do Estado e, então Senador da República, José Targino Maranhão. o Jornal da
Paraíba estava ligado ao grupo do atual governador da Paraíba, Cássio da Cunha Lima. Estas posturas
nunca foram colocadas abertamente nos jornais, mas estavam constituídas pelos acordos de bastidores, de
algumas posturas adotadas e, principalmente, por aquilo que era materializado nos jornais ao longo dos anos,
pois as práticas discursivas desses veículos, aos poucos, iam evidenciando as posições ideológicas,
demarcando seus interesses que, por sua vez, eram materializadas nas formações discursivas. Aliás, o
caminho traçado pela imprensa paraibana não era condenável e nem exclusivo, que estamos tratando
daquele que é instrumento de poder, um objeto simbólico e político, pois, como assevera Gregolin, o
discurso não serve apenas para comunicar, mas é a um tempo, um objeto simbólico no sentido de que ele
não é uma etiqueta que representa um determinado cuja ordenação, categorização e interpretação preexistem
a significação, e político, porque é uma luta de poder (2003, p.06 e 07).
A polarização na luta pelo poder, na busca pela sedução e cooptação, pela identificação de
afinidades, ficou mais evidente quando a ombreira esquerda da barragem de Camará se rompeu. O fato foi
destaque durante dias, inicialmente com a reprodução do que havia ocorrido, suas conseqüências e agravos,
em seguida, entrou na seara das disputas políticas, quando, protegidos pelo certificado de defensores dos
interesses sociais, os jornais começam a investir na tentativa de “descobrir” o culpado pela tragédia.
A barragem foi feita no governo de José Maranhão, que concluiu o mandato e a construção em 2002.
A responsabilidade de administrar a obra era do governo de Cássio Cunha Lima, que iniciou o mandato um
ano e meio antes do desastre, em janeiro de 2003. De certa forma, todos dois estavam envolvidos com a
obra: um “construtor”, o outro “mantenedor”. Alimentados pelas disputas políticas, os jornais começam a
perguntar, à sociedade e àqueles “sujeitos”, que tinham o discurso autorizado para indicar o caminho da
resposta, qual deles era o culpado pela tragédia. Qual o pecado cometido: o de omissão ou de ação. Estava
revelado qual seria o caminho do duelo discursivo assumido pelos jornais ou quem seriam os personagens
dessa história que, como quase todas, têm um protagonista e um antagonista.
As perguntas começaram a ser respondidas pelos periódicos antes mesmo do pronunciamento dos
“investigadores” do Ministério Público Federal (MPF), Polícia Federal (PF) e Ministério Público Estadual
(MPE), órgãos responsáveis em apurar as causas. Através de estratégias de produção de notícias, os jornais
partem para tentativa de apontar os culpados e dar a resposta e as explicações que a sociedade tanto
almejava”. Cada periódico tinha sua teoria, seu discurso, com afirmações alicerçadas pelo processo de
construção de matérias, em textos tecidos pelos seus enunciados, que produziam sentidos materializando
formações ideológicas representantes de cada lugar social, bem como, pela forma que eram regularmente
acoplados neste operador de memória. Cada fala autorizada, fonte oficial, cada dado novo, informado pelos
órgãos oficiais, autorizados e com credibilidade, que investigavam as causas e a procura de culpados, a cada
declaração dos envolvidos, um novo acontecimento discursivo, dentro de uma formação discursiva
específica, tomava forma na primeira página. O fato agora se materializaria nos depoimentos, nas entrevistas
dos envolvidos, que eram transformados em acontecimentos discursivos fáceis de ganhar as páginas dos
jornais. O discurso como acontecimento, elemento que acresce a compreensão, passa a ser aceito como algo
que funda a interpretação constrói uma verdade, rosto às coisas. “Por isso o discurso é objeto de disputa,
em vista do poder que, em seu intermédio, se exerce” (Navarro-Barbosa, 2004, p. 108).
E a disputa não demorou a aparecer. A primeira edição com a cobertura do fato saiu em um sábado,
dia 19, quando os jornais focaram as notícias na reprodução do que ocorreu. As outras edições dos jornais
com matérias sobre Camará chegaram às bancas somente no dia 22. A distância entre uma edição e outra na
cobertura, deu-se porque os jornais de domingo são produzidos com até dois dias de antecedência, ficaram
prontos na noite da tragédia, por isso, não trouxeram nada. Além disso, na segunda-feira, somente o Correio
da Paraíba é publicado (motivo pelo qual, não incluímos este dia na análise). Os jornais traziam as respostas
de perguntas: como aconteceu? quando aconteceu? quais as cidades atingidas? quantas pessoas sofreram,
qual o prejuízo, o que vai ser feito? Naquelas primeiras edições, os jornais demonstravam interesse nas
questões mais informativas. Um interesse duvidoso o qual resolvemos desvendar, visto que, não era
informação objetiva e/ou subjetiva na materialização de sentidos, era a irrupção das verdades e de histórias
por trás da história. Eram os espelhos de cada jornal que emolduravam sentidos ocultos pela opacidade de
linguagem e que procuravam objetivar-se como sujeito com suas verdades translúcidas emaranhadas na sua
formação ideológica/formação discursiva. Entremos na opacidade.
3.1 A reescrita da tragédia: o espelho de cada um
JORNAL CORREIO DA PARAÍBA
19 de junho de 2004
19 de junho de 2004, nesta data foi publicada a primeira edição com a “estória” do fato, o Correio da
Paraíba trouxe a seguinte manchete de capa: Tragédia de Camará: seis mortos, 20 desaparecidos e sete
cidades invadidas pelas águas. Neste dia, 85% por cento da capa do jornal destacavam o desastre, com
fotos, legendas e outras manchetes, como: Defesa Civil envia 144 toneladas de alimentos e Governo sabia
sobre falha na barragem. (ver anexo 1.1) Com essas três chamadas, incluindo texto-legenda e texto-
chamada, o jornal respondia as perguntas dos leitores sobre o que foi que aconteceu, quais os prejuízos
humanos e materiais, o que está sendo feito para amenizar o sofrimento e quem é o culpado. O jornal
começava a informar e contar a sua “versão” sobre aquela realidade.
No Caderno de Cidades estavam as matérias sobre o desastre com os seguintes títulos e subtítulos:
Enxurrada mata 6 e 20 desaparecem, Rastro da destruição, População vive madrugada de terror, Águas
levam destruição e desespero para Mulungu , Moradores esperam por auxílio, Exército é mobilizado,
Agricultor arrisca a vida para ajudar, Cássio diz que prejuízo deve estar na casa dos bilhões, Governo
conhecia falhas de Camará (subtítulo: Semarh detectou e notificou as rupturas no reservatório da
construtora responsável) e Maranhão critica postura de Cássio. Os textos, portanto, podem ser divididos
em dois grupos: um conjunto traz matérias que informam sobre a situação estrutural da cidade e dos
moradores e conseqüências do desastre; e um outro grupo composto por dois textos que começam a traçar o
caminho enunciativo do jornal na busca pelos culpados pelo acidente (ver anexos 1 a 1.4).
A “arma” do CP para explicar porque tudo aquilo tinha acontecido estava na última página do
caderno, onde estão alocadas as duas matérias que, no conjunto de enunciados, faziam referência a esse
desejo de nominar os responsáveis. Assumindo a sua posição de espelho da sociedade, o jornal se utiliza dos
enunciados para produzir o seu reflexo, o reflexo de seu espelho, de sua realidade. Era o primeiro
enunciado, de outros tantos daquela formação discursiva e ideológica, que delinearia o tratamento que o
periódico deu a repercussão do fato. Nas duas matérias, o jornal destaca a omissão do governo Cássio Cunha
Lima, caminho que o jornal nos leva a seguir através da cadeia enunciativa. Vejamos como isso ocorreu:
a) A matéria foi feita por uma agência de notícias de São Paulo - o que teoricamente o desvincula de
qualquer relação ideológica estadual para construção da matéria. Não havia por isso, aparentemente,
necessidade de beneficiar essa ou aquela tendência partidária, visto que, o sujeito-jornalista
6
assumia uma
posição fora da condição de produção histórico-ideológica de onde se originou o fato.
b) a matéria tem dois focos: primeiro coloca que uma falha de construção (governo anterior) pode ter sido a
causa do rompimento. No segundo momento, o sujeito-jornalista afirma que o governo atual, através da
secretaria responsável, sabia do defeito e foi avisada disso. O que podemos verificar é que, mesmo com dois
focos, o CP preferiu evidenciar na manchete e no subtítulo a segunda abordagem, ou seja, o enunciado que
mostra a omissão do governo atual. O estranho é que o jornal não fez o que, de regra, seria feito na
6
Sujeito-jornalista aqui são todos os profissionais que se envolvem na construção de uma texto do jornal. Repórter, que escreve o
texto e vai até o local; editor que faz os recortes, coloca os títulos e molda a notícia; chefe de reportagem e editor geral, que
definem a abordagem.
construção de uma notícia: destacar o aspecto que está no primeiro parágrafo da matéria, afinal ali se
aloja, na visão dos jornalistas, que assumem posições, a informação mais relevante. Nesse caso, em
particular, não foi isso que aconteceu.
Percebemos duas estratégias discursivas que interferem no processo de produção de sentido e,
conseqüentemente, identificam, através da forma de construção do discurso, a formação ideológica do
jornal. Primeiro, a manchete, que deveria resumir a idéia principal do texto, exalta somente a omissão do
governo atual. O jornal se utiliza da possibilidade de mover os enunciados evidenciado-os ou silenciando
aquilo que é conveniente ao interesse. Neste caso, um grande destaque ao enunciado que condena o
governo de Cássio. Para isso, desloca o enunciado de lugar para deslocar o sentido. Essa estratégia de
movência dos discursos e dos sentidos é uma das formas de direcionar o dizer para um entendimento do
leitor sobre o assunto. Ao afirmar, no título, que o governo de Cássio sabia de falhas, tendo no mesmo texto
a informação de que o governo Maranhão errou na construção, o sujeito-jornalista escolhe, recorta, destaca o
enunciado mais importante para ele, direcionando a sua compreensão sobre o fato e, por sua vez,
transmitindo esse sentido, selecionado com mais importante, para disponibilizá-lo à memória coletiva. O
leitor do jornal acompanha a produção desse sentido que se vai constituindo em prol da construção da figura
do culpado, do governo responsável pela tragédia.
O destaque dado àquele título, condena o governo Cássio, e mascara os enunciados que culpavam,
também, o governo de Maranhão pelo desastre. Nesse jogo de esconde e mostra, foi levado em conta um
interesse específico, em detrimento, inclusive, de regras de construção do texto jornalístico. A estratégia de
evidenciar e minimizar o discurso da culpa, mesmo modificando regras básicas da teoria jornalística,
interfere diretamente no sentido que o leitor vai dar àquele fato, de modo que a amplitude de um enunciado
pode marcar muito mais nessa cadeia enunciativa materializada no jornal.
Numa segunda matéria, colocada ao lado desta anterior, que “subrepticialmente” DESTACA a
omissão do governo atual e REGISTRA a irresponsabilidade do governo anterior, um outro enunciado
ganha espaço e inicia um diálogo. Neste outro enunciado, o ex-governador José Maranhão, acusado de
irresponsabilidade, defende-se das acusações de que construiu a obra em local irregular, que pode ter havido
um erro de projeção, que o foi irresponsável por não ter acompanhado o trabalho. Vale destacar que essa
defesa não poderia ter sido direcionada ao atual governador ssio Cunha Lima, visto que, em nenhum
momento Cássio acusou Maranhão no jornal.
A estratégia do jornal é fazer com que José Maranhão, defenda-se discursivamente da acusação
apresentada no texto da agência de notícias, que, como vimos, não exclui a sua irresponsabilidade para com
a construção da obra. Na matéria Maranhão critica postura de Cássio, o governador que construiu a
barragem, acusa Cássio Cunha Lima de estar sendo irresponsável ao afirmar que o problema estava na
construção. Maranhão se apropria de um discurso de Cássio, que não havia sido publicado no jornal, para se
defender, e o jornal, por intermédio do sujeito-jornalista, apropria-se daqueles enunciados para fazer do
texto, marcado pela sua volta como acontecimento discursivo, uma defesa às acusações feitas do primeiro
parágrafo da matéria publicada ao lado. A fala de Maranhão dialoga com o texto da agência de notícia, pois
Cássio não teve espaço para fazer suas acusações no jornal.
O “corpo de enunciados”, a partir de então, começa a reproduzir dizeres e, por sua vez, sentidos,
através de discursos que se entrecruzam. Os jornais começam a produzir sentidos ligados aos seus interesses
e materializando o discurso de defesa de seus “patrícios”, sem precisar garantir uma unidade pela
“linearidade formal, sintática, ou semântica, mas algo comparável a uma diversidade de instâncias
enunciativas simultâneas”. (Baronas, 2004, p. 55). Quem leu somente o CP, naquele dia, teve informações
sobre o fato, mas também foi “informado”, em destaque, que o governo atual sabia do problema e que foi
omisso. Também leu, em destaque, que o governo anterior se defendeu de uma crítica feita ao governador
Maranhão. O leitor não teve acesso à voz do gestor do governo atual: Cássio Cunha Lima, que também
foi acusado, em destaque, e não teve espaço para defesa, entendemos isto como parte da política do silêncio
do jornal, por uma questão organizacional, ou por uma ação política. O jogo discursivo começa a desenhar
a formação discursiva que será adotada pelo jornal, forma que materializa a sua formação ideológica e
produz sentido a partir dessa matriz de significação. A partir desse jogo, o jornal CP traça seu caminho
ideológico que, reciclado pela linguagem via formação discursiva, emoldura o perfil do jornal traçado pelo
seu espelho.
JORNAL DA PARAÍBA
19 de junho de 2004
O JP daquele dia também deu destaque ao desastre. Três páginas inteiras relatavam o que aconteceu:
as mortes, os desaparecidos, os prejuízos. O jornal trazia as seguintes manchetes dentro do Caderno de
Cidades: (ver anexos 2 e 2.1).
1 – EM ALAGOA GRANDE/ Três pessoas morrem e seis estão desaparecidos/
Barragem de Camará rompe, alaga cidade e causa mortes
2 – População se decepciona com obra
3 – Técnicos apontam falhas na estrutura
4 – População se decepciona com a obra
5- CHUVAS/ Boa parte do município desapareceu debaixo da água do Rio Mamanguape / Enchente deixa
desabrigasdos moradores ilhados em Mulungu.
6- Município está sem água e luz
7- Famílias são levadas para abrigo
Ao observar somente essas manchetes, verificamos que o JP também focou a sua cobertura na
descrição do fato, ou seja, na construção do espelho, representação daquela realidade. Para isso, o fato
transformou-se em enunciado, em notícia, em discurso. Os textos trazem dados oficiais de mortes,
desabrigados, o nome das vítimas, da atuação do governo, relatos das pessoas que vivenciaram a tragédia.
Até a cobertura do Jornal da Paraíba foi bem parecida com a do Correio da Paraíba, ambos tentavam
refletir nitidamente aquela realidade. Porém, alguns aspectos e dois textos também do JP chamam a atenção
naquela cadeia de informação. São abordagens que, mais do que qualquer outras, apontam para o caminho
da constituição da verdade que o JP vai apresentar ao seu leitor comum. Com esses dois enunciados o
espelho jornalístico nítido começa a refletir imagens discursivas, com carga ideológica, posições políticas; o
sujeito começa a desejar o reflexo do seu dizer em prol da construção do culpado que, neste olhar do JP,
aponta para o inimigo do então governador Cássio Cunha Lima. A construção discursiva vai montando o
perfil de Maranhão como culpado e o JP vai, pelos efeitos de sentido, constituindo sua verdade.
Sobre os textos ditos “informativos” que traziam números de desabrigados, mortos, a fala de
testemunhas do fato, estratégia de resgate das pessoas, destacamos a forma que o jornal tratou a atuação do
governo Cássio na ajuda às vitimas. Diferente do Correio da Paraíba, o Jornal da Paraíba inclui no seu
dizer que o governador Cássio Cunha Lima esteve pessoalmente em Alagoa Grande, durante toda manhã de
ontem, confirmando a catástrofe (...) fez questão de acompanhar o desespero de centenas de famílias, que
perderam tudo (...).
Essa informação não teria nenhuma “força” ideológica se tivesse isolada, ou não ocupasse o lugar
que ocupou, pois, ao se apresentar no duelo discursivo, o JP faz questão de materializar em toda a cobertura
jornalística, começando no dia 19, o posicionamento salvador do governo Cássio. Uma afirmação contínua
ao longo dos dias, que vai emoldurando o dizer do jornal sobre o caso e, junto de outros enunciados, revela a
formação ideológica/ formação discursiva, o posicionamento político-patidário, os seus interesses naquela
discursivização.
Nos textos População se decepciona com a obra e Técnicos apontam falhas na estrutura, o JP,
também demonstra a obrigação de traduzir os anseios da população, indica as causas e os supostos culpados
da tragédia. Como também fez o CP, afinal, além de relatar o fato, o jornalismo tem esse papel de
questionador, arma pública em defesa da sociedade. Mas, os culpados e responsáveis pela tragédia não
foram os mesmos, segundo o discurso dos jornais. O JP utiliza a discursividade para seguir um caminho
diferente do CP e sai em defesa do governo Cássio Cunha Lima, que, na edição do CP, do mesmo dia, foi
considerado responsável por não fazer a manutenção na obra.
No caso do JP, o sujeito-jornalista, na sua posição e interpelação, retoma discursos outros, através
do processo de interdiscursividade, para estabelecer o seu dizer. Respaldado pela técnica da objetividade
jornalística, sob a égide de vozes da sociedade, discursos autorizados (de testemunhas e autoridades), o seu
espelho reflete a imagem do desejo:
Uma obra que foi anunciada como redenção para o abastecimento d’água do Brejo paraibano é
motivo de decepção e revolta para a população de Alagoa Grande. Esta é a impressão de quem esteve
durante o dia de ontem em contato direto com a dor dos habitantes daquele município onde a tragédia
deixou um saldo de mortes, pessoas desaparecidas e perdas materiais (...) (ver anexo 2).
Com esse discurso, o sujeito-jornalista assumiu a sua posição sujeito, recorreu ao arquivo e retomou
um discurso dito em outro lugar. O discurso velho que se fez novo no seu retorno é de autoria do governador
da Paraíba, José Maranhão, que, em 2002, ao inaugurar a obra afirmou que a barragem de Camará seria a
redenção do Brejo, a esperança para fazer a água chegar às torneiras, desenvolver a agricultura e melhorar a
renda da população da região. O discurso que ficou no arquivo, na memória, marcou o seu retorno, agora em
outro local, outra situação histórica e, por sua vez, com outro sentido. Sentido que será entendido através
do a priori histórico, algo que permite que o leitor retome um dizer anterior e se ligue ao atual. A redenção,
sinônimo de esperança em 2002, virou desgraça, dor e sofrimento, em 2004. O instrumento dessa retomada
foi o sujeito-jornalista que se apossou desse dito para redizer. Neste, caso, condenar a obra. O JP inicia
apontando, então, o culpado do desastre, o governador José Maranhão. Vejamos como acontece de outra
forma:
Técnicos apontam falhas na estrutura - Equipes técnicas do Conselho Regional de Arquitetura e
Engenharia e Secretaria do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos (Semarh), durante inspeção realizada
ontem, em Camará, “apontaram” erros e falhas técnicas na execução da Barragem, a exemplo da parede
esquerda à montante, que não recebeu amarração, segundo o engenheiro Geraldo Magela, do Crea. O
secretário adjunto da Semarh, professor Sérgio Góes, responsabilizou o governo anterior pela catástrofe
em Alagoa Grande (...) Para Cássio Cunha Lima, o rompimento da barragem deve a dois possíveis fatos:
“Ou ela foi mal planejada ou mal construída”.
Podemos observar que, baseado em um laudo institucionalizado, o sujeito-jornalista do JP, na sua
possibilidade de discursivização, coloca em cheque, através de discursos de engenheiros, a estrutura da obra
e, por conseguinte, culpa o governo anterior pela tragédia. As vozes autorizadas servem não para dar o
parecer técnico, científico, mas através de uma articulação enunciativa, um recorte e seleção, condenar o que
foi feito.
Em seguida, através do discurso indireto, o sujeito-jornalista falou em nome das pessoas que
estiveram no local. Retomou o discurso de algumas pessoas para materializar o seu discurso, na sua
interpelação. Esta é a impressão de quem esteve durante o dia de ontem em contato direto com a dor dos
habitantes daquele município onde a tragédia deixou um saldo de mortes, pessoas desaparecidas e perdas
materiais (...) A veracidade desse discurso foi creditado a uma fala reproduzida: Para Valmir Rosendo
Costa, o povo de Alagoa Nova está chocado. Ele criticou a falta de responsabilidade do governo anterior.
“Estamos tristes com a incompetência dos engenheiros e do ex-governador, pois todo mundo notava falhas
na obra”. O sujeito-jornalista seleciona a fala, recorta, retoma, generaliza, mesmo na sua posição de
ordenado, sujeito e assujeitado, “origem” e fim. É dele que parte a significação nesse jogo de vai e vem dos
discursos, que, como vimos, é compreendido na força da sua exterioridade, da sua relação com outros
enunciados. Dentro e fora daquele universo discursivo.
O sujeito-jornalista poderia ter escolhido e selecionado a fala de outra testemunha, mas sob a força
da sua interpelação e assujeitamento, materializou o discurso alinhado à sua formação ideológica e formação
discursiva, capaz de refletir a forma que seu espelho deseja: a de que o governo anterior foi irresponsável. O
sujeito-jornalista, em seu agora e em seu local de enunciação, utiliza a intradiscursividade como efeito de
articulação para produzir um novo sentido; um discurso trazido para um novo espaço, a fim de ser novo na
materialização, novo no sentido, a fim de atender o sentido que ele “deseja” aproximar aquele enunciado.
Um outro instrumento utilizado na busca de estabelecer a verdade jornalística através da verdade
discursiva foi apresentado no texto Técnicos apontam falhas na estrutura. O sujeito-jornalista do JP aponta
mais a arma para o seu algoz. Se, no CP a o foco se voltou para a falta de manutenção e o silenciamento dos
problemas de construção, no JP, o caminho foi inverso. A manutenção foi condenada à política do
silenciamento em detrimento de discursos que condenavam a construção da obra. Com apoio de discursos de
técnicos, secretários, conhecedores do assunto, o jornal traz uma matéria que condena a construção, ou seja,
culpa o governo de José Maranhão de ter sido displicente. Na construção daquela verdade do jornal, o
sujeito-jornalista ouviu ou técnicos: em Camará “apontaram” erros e falhas técnicas na execução da
barragem, a exemplo da parede esquerda à montante (...); ouviu o governador atual: Ou ela foi mal
planejada, ou mal construída. Uma comissão será criada para investigar falhas estruturais que provocaram
a tragédia. Mas não ouviu o governador anterior, que foi discursivamente considerado culpado na retomada
de discursos outros. Ao retomar essas falas e colocá-las no seu fazer jornalístico, o sujeito-jornalista usa de
sua estratégia discursiva da intertextualidade para que sua verdade discursiva seja sustentada e que seus
leitores tenham credibilidade na sua matéria. A presença destas falas fazem dessas notícias uma verdade
discursiva que vai provocar uma leitura de credibilidade ou não em relação aos culpados.
Os enunciados no Jornal da Paraíba que tratam da responsabilidade pela tragédia são construídos
com vozes oficiais, com valor de representação, e de testemunhas, que condenam a estrutura da obra. O
jornal, além de evidenciar esses discursos, como os dos técnicos, do morador que está decepcionado e do
governador, silencia sobre a possibilidade do governo atual não ter investido na manutenção. Para o JP, a
verdade discursiva caminha na direção da culpa, como está materializado, por erro na construção e
irresponsabilidade do governo de José Maranhão. Inicia-se, assim, um duelo no ato de informar.
3.2 O duelo no ato de informar
JORNAL DA PARAÍBA e CORREIO DA PARAÍBA
22 de junho 2004
22 de junho de 2004, nesta data os jornais trouxeram a notícia de que o Ministério Público iria
investigar o acidente, matérias sobre o processo de limpeza da cidade e providências para ajudar os
moradores e, por último, ressaltaram que pessoas ainda estavam desaparecidas. A partir deste dia, os jornais
começam a passar informações segundo posições distintas. O JP tenta, com textos que exaltam a pró-
atividade de Cássio Cunha Lima, diminuir o peso da tragédia e mostrar que o desastre está controlado. Além
disso, os enunciados ressaltam que o governador está acompanhando tudo de perto e solicitando ações para
amenizar o sofrimento o que faz com que sua imagem seja vista como um bom dirigente, aquele que se
preocupa com a comunidade.
Ao publicar as ações (ver título e texto do anexo 3.1) do governo Cássio Cunha Lima, o jornal vai
desenhando discursivamente seu perfil de governo comprometido, um discurso que traz informação de
forma a construir uma imagem positiva do governador; o discurso jornalístico mais uma vez utilizado para
ampliar perfis e discurso políticos. Pois, ao descrever as ações emergenciais do governo, o jornal vai
instalando um posicionamento de defesa e refletindo sua verdade. O efeito de sentido produzido em defesa
do governador Cássio Cunha Lima é ampliado quando vem agregado a enunciados que trazem construções
discursivas que eleva o fazer do governador em detrimento da irresponsabilidade do outro governador, José
Maranhão. É um dizer que pela opacidade da linguagem vai construindo uma imagem de maneira
“informativa” e, ao mesmo tempo, derrubando outra imagem. O que, inevitavelmente, resulta na revelação
do posicionamento do jornal enquanto instrumento de defesa.
Em um momento da matéria, por exemplo, fica registrado o comprometimento do governo com os
comerciantes, agricultores e pessoas que foram prejudicadas, materializado na intradiscursividade do JP, o
que se traduz na construção positiva da figura de Cássio, ao mesmo tempo em que expõe silenciosamente,
no não dizer, a outra imagem de seu “inimigo concorrente”. É a imagem de um governo salvador sendo
construída, em detrimento de um outro que não se preocupou com o seu povo. Nesse jogo enunciativo
evidência e silêncio caminham juntos na discursivização. Evidência quando o jornal faz questão de colocar
Cássio como herói, reconstrutor da cidade destruída pela irresponsabilidade de seu algoz. Silêncio quando
omite sobre as discussões que giravam em torno da falta de manutenção da obra, de responsabilidade do
“protegido” do JP. Os discursos, marcados pela intradiscursividade, vão demarcando as suas regularidades
na dispersão comum da produção jornalística que se constitui no dia-a-dia e nas limitações espaciais dos
jornais.
o CP não ressalta nos textos, em nenhum momento, essa ação pessoal do governador. Ao contrário
do JP, silencia sobre ação do governo, não atribui as soluções ao governador e não evidencia este trabalho.
O CP traz textos “informativos”, com “objetividade”, procurando mostrar-se neutro. Vejamos pelas notícias
que aconteceu: (ver anexos 3 a 3.4).
a) destaques do JP no Caderno de Cidades e Política
1- Cássio anuncia ações às vítimas de Camará
2- Governador disse que Barragem será reconstruída
3- Cagepa distribui água em carros-pipa para as famílias
4- Energia é reestabelecida pela Saelpa (empresa de energia)
5- Municípios e entidades enviam doações para desabrigados
6- Mulungu recebe ajuda do Governo do Estado
7- Crea divulga documento de vistoria
8- Prejuízos já somam quase R$ 2 milhões
9- MPF e MPE instauram inquérito para investigar responsabilidade
10- Zenóbio (secretário do governo) vai integrar grupo de investigação
11- Políticos se unem em defesa da população
(Jornal da Paraíba, 22 de junho de 2004)
Podemos observar que nas seis primeiras manchetes e na penúltima, a ação do governo para restaurar
a ordem social é ressaltada. A tragédia “natural” passa, via discurso
jornalístico, agora para as mãos de homens capazes de reestabelecer o funcionamento da cidade; uma
construção discursiva da imagem do governador e da atuação do seu governo.
No intradiscurso, acentuam-se as ações e atitudes pró-ativas do governo e/ou de seus auxiliares,
secretários e afins são ampliadas: em onze dos onze textos, o jornal destaque às iniciativas
governamentais, que são discursivamente responsáveis pela imagem do governo. Isso é feito com a
utilização de enunciados como: em atendimento à solicitação do Governo do Estado, encaminhada pelo
Governo, solicitada pelo governador, Cássio garante indenizar, Governador disse que vai ser reconstruída,
encomendado pelo governador Cássio. Esta prática discursiva materializa uma formação discursiva que
produz sentidos regulados, direcionando caminhos de interpretação e compreensão da verdade jornalística,
da “história” construída por este operador, pela verdade discursiva: uma ordem discursiva que determina o
lugar do sujeito-jornalista e o lugar do Jornal da Paraíba. Os dizeres são materialidades e se tornam parte de
uma formação discursiva, onde se define um regime geral que obedece aos seus objetos, à forma de
dispersão, à distribuição das posições subjetivas, às formas de sucessão, de simultaneidade, de repetição;
lugar onde todos são submetidos a um sistema que liga, entre si, todos esses campos de coexistência, enfim,
aquilo que possibilita o status desses enunciados.
No jornalismo, a manchete e o corpo do texto convergem para uma direção, obedecendo a um regime
geral de significação. Estão dispersos, mas regulados por uma força exterior que busca determinar o lugar
onde deve se postar. São enunciados que se fazem intradiscursivos para assumir determinados dizeres e
constituir sentidos.
A verdade discursiva e a “história” deste dia, no Correio da Paraíba, são diferentes. Apesar de ter um
conteúdo parecido com o Jornal da Paraíba, o CP não cria um protagonista para ões de recuperação,
limpeza, ajuda e investigação. Nas matérias, bem como nos títulos, o caráter salvador está subjugado à
técnica “objetiva” da informação. Nada de ação pró-ativa, atitude do governo, salvação, ajuda do
governador, pedido do governador. A recuperação da cidade acontece de forma natural, sem que
necessariamente seja preciso destacar essa ou aquela ação governamental, sem agentes da reconstrução, voz
ativa.
b) destaques do CP no Caderno de Cidades:
1- MPF vai apurar causas do rompimento
2- Estudo para reconstrução
3- Governo é instalado em Alagoa Grande
4- Força Tarefa para limpeza
5- Crea - PB divulga laudo de vistoria
6- Hospital de Mulungu recebe Medicamentos
7- Coep entrega donativos hoje
Observamos que nestas manchetes e nos textos (ver anexo 3.5 à 3.8), o jornal materializa enunciados
que não exaltam a postura do governador ssio Cunha Lima. Não um ator principal, como no JP. A
postura aparentemente “informativa” do jornal é um sintoma da sua estratégia discursiva que silencia sobre a
atuação do governo atual. Informa como a cidade e sua população estão sendo assistidos, mas não credita os
agentes dessa assistência. A sua política de omissão também é considerada uma forma de falar pelo silêncio.
Significar pelo não dizer, pois, o leitor do CP daquele dia não vai obter nenhuma informação, através do
discurso jornalístico, que o governo, na pessoa do governador, está acompanhado de perto a situação e
tomando providências. Observamos que os jornais tratam de assuntos comuns, como entrega de donativos,
laudo de vistoria, investigação do MP, ajuda recebida pelo hospital. Mas é na forma de constituição dos
sentidos no conjunto do texto e dos textos, que o discurso assume as suas facetas ideológicas e de
tendências.
A estratégia discursiva do CP é evitar enunciados que dêem crédito ao governador Cássio Cunha Lima.
Essa iniciativa de retirar o enunciado resistindo seu poder de significação é a admissão de que a sua presença
pode interferir no sentido que o jornal quer dar na sua cobertura sobre a recuperação da cidade. O
aparecimento de discursos que manifestem o interesse de resolver o problema vai de encontro à formação
ideológica/ formação discursiva do jornal. Vamos a dois exemplos nesta edição:
I - As matérias Mulungu recebe ajuda do Governo do Estado”, do JP, e “Hospital de Mulungu recebe
medicamentos”, do CP, têm o mesmo conteúdo. Aliás, é a mesma matéria feita pela Assessoria de Imprensa
do Governo do Estado, sem modificações. Porém, dois enunciados são determinantes na demarcação do
sentido que se “quer” dar ao texto e denunciam a posição sujeito. Vimos que a manchete no jornalismo, tem
a função de resumir a idéia do texto em poucas palavras e deve atrair o leitor para leitura. Subentende-se que
é nele que está o destaque da notícia, visto que, o jornalismo conta, inclusive, com a possibilidade do
leitor não ler todas as matérias (Pena, 2005). Mas o que deve ficar é a idéia principal que está na frase-
atração e no primeiro parágrafo (lead). Sujeitado ou o, assumindo uma posição dentro de uma formação
discursiva ou não, dentro de um conjunto de enunciados que significam a partir de sua posição, o título
contribui para produzir sentido, não isoladamente, mas no conjunto. O que aconteceu aqui: com um
mesmo texto, colocados em locais diferentes e, por sua vez, assumindo posições distintas, produziram
possibilidades de sentido, mexendo somente na frase que vai destacá-lo, um recorte diferente no emaranhado
de sentidos.
(Jornal da Paraíba, 22 de junho 2004)
Se o consumidor do jornal for só leitor do JP a informação que ele receberá é a de que foi o governo
que providenciou, ajudou, entregou e manifestou solidariedade com a entrega de medicamentos para
ajudar as vítimas do desastre. É bom lembrar que essa é uma das onze matérias que ressaltam a ação do
governo, então ela não se significa sozinha, ganha significado com os outros enunciados que compõem a
cadeia discursiva que o jornal tenta estabelecer com enunciados que se dispersam, mas que se alinham pela
significação, num diálogo constante, constitutivo de sentidos, é o mosaico discursivo ganhando formas
simétricas na dessimetria temporal e espacial, constitutiva da discursividade jornalística.
Já, se for leitor do CP, saberá apenas que o hospital recebeu medicamentos. Não importa, neste caso,
destacar quem ajudou, quem enviou os medicamentos, o foco esem: os medicamentos chegaram e vão
ajudar e não o governo alguém enviou os medicamentos.
Correio da Paraíba, 22 de junho 2007
Mesmo sendo uma enunciação meramente “informativa”, faz o leitor direcionar a sua interpretação
do fato a partir do ponto de vista que os jornais querem. O silêncio do jornal, no que se refere ao sujeito
agente da ação, é sintomático porque também segue a linha dos discursos que estavam materializados
naquele dia. Ou seja, sozinho ele seria um texto informativo. Mas ao lado de outros enunciados, que também
silenciam sobre a atitude do governador Cássio Cunha Lima, o jornal evidencia a sua posição ideológica, sua
posição discursiva, pois, os discursos separados por títulos, mas mantido em unidade, produzem um efeito
de sentido que permite afirmar que o sujeito-jornalista do CP não está interessado em fortalecer a imagem de
Cássio Cunha Lima um gestor interessado em manter a ordem e reconstruir a cidade, como faz o jornal
concorrente.
II - Outra matéria de forte produção de sentido desse mosaico discursivo é a que se refere às ações da
FORÇA-TAREFA. No JP o título da matéria é: Cássio anuncia ações às vítimas de Camará. No CP é:
Força-Tarefa para limpeza. As matérias versam sobre o mesmo assunto e descrevem o que está sendo feito
para limpar a cidade, abastecer os municípios de alimento e água. A diferença é que, no JP, o texto fala
sobre recuperação e limpeza da cidade, reconstrução da barragem, instalação do Governo, O CP divide
esses assuntos em três textos.
O JP ressalta, mais uma vez, a postura dinâmica do governo no caso. Isso é destacado na chamada,
manchete e no lead de um único texto: Entre as medidas iniciais de uma força-tarefa de socorro às vítimas
de Camará, determinadas pelo governador Cássio Cunha Lima, (grifo nosso), que instalou, na manhã de
ontem, a sede do governo em Alagoa Grande, onde permanecerá até o final da tarde de hoje, com toda sua
equipe de secretários, destacam-se o reforço de caçambas e a autorização ao município para locação de
outros carros destinados à limpeza da cidade; envio de cavalaria da Polícia Militar e de equipes especiais
do corpo de Bombeiros de Campina grande, para procederem buscas aos possíveis corpos desaparecidos,
no leito do Rio Mamanguape, e o fornecimento de água através de carro- pipa.
O jornal coloca a postura do governo em destaque e, para isso, recorre à sua fala para reproduzi-la no
interdiscurso jornalístico: Governador disse que Barragem será construída. Este enunciado está em
destaque em um boxe, que é um espaço que se abre dentro do texto para evidenciar a fala ou o pensamento
de alguém, e chama a atenção porque está em letras maiores. É o que poderíamos chamar de a manchete
inserida no intradiscurso, como efeito de articulação do sentido. Ou seja, o sujeito-jornalista destaca o que
disse o governador em um outro momento em um enunciado atual. Convida o leitor para ver, no texto, o
discurso do governador sobre a reconstrução: Queremos devolver uma vida normal a essas pessoas,
ressaltou, acrescentando que o Governo Federal garantiu a construção das moradias. Como vimos, a
heterogeneidade é uma das características do discurso que se faz a partir de um outro dizer. O jornal também
exalta a ação na chamada da matéria, as frases são: Força-tarefa/ Governo foi instalado em Alagoa Grande.
Dentro das ações emergenciais estão a limpeza das ruas e das casas.
A manchete aqui é constitutiva de sentido porque no intradiscurso (re)significa, traz a imagem do
governador como aquele que está preocupado, engajado com as pessoas que sofreram com a tragédia. O fato
serviu, neste instante, para projetar a figura do sujeiro-Cássio-governador como político comprometido com
o povo. A proposta de reconstrução feita pelo governador Cássio Cunha Lima trazida para o intradiscurso
do jornal, tanto projeta positivamente para o sucesso do governamental, como faz do jornal (JP) aliado
discursivo do governo.
O CP, em Força-Tarefa para limpeza prefere relatar o que está acontecendo na cidade a falar sobre a
ação governamental na cidade. O lead que, seguindo a linha da manchete, deveria trazer informações sobre a
ação do grupo, já que anunciou isso em destaque, relatou cenas observadas pelo jornalista: Durante todo dia
de ontem, o trânsito da cidade de Alagoa Grande ficou congestionado por causa do grande número de
caminhões e veículos, que chegavam carregados de donativos, entre agasalhos e cestas básicas. Nas ruas a
população se misturava a força-tarefa requisitada para auxiliar na reconstrução e limpeza da cidade.
Neste dizer do Caderno de Cidades nós temos um jogo enunciativo que se estabelece nos
instrumentos que o sujeito-jornalista e sua ordem têm para significar. O silêncio do Jornal Correio da
Paraíba sobre a ação do governo Cássio Cunha Lima, na recuperação da cidade, faz-se presente em todos os
enunciados do dia 22 de junho de 2004. Um silêncio que fala, sem palavras, sem demarcações, mas que fala
pelo vazio. O silêncio constitutivo pela linguagem, permite que o CP deixe de fora aquilo que para ele não
era importante, como o discurso da política, política organizacional, mercadológica ou ideologia.
Entendemos que este não-dizer é mostrar que o jornal não es comprometido com a projeção do
governador, nem com suas atitudes.
O dizer do jornal (CP) mantém uma construção cnica de representação jornalística da realidade,
com uma discursividade que se difere do JP, o que nos leva a perceber que a formação ideológica do CP é
aquela que traz discursos alinhados à defesa do ex-governador José Maranhão.
Este sujeito-jornalista nas suas várias funções: repórter, que escreveu o texto e teve o primeiro
contato com as vozes, com os fatos e selecionou aquilo que “seria” interessante ressaltar; editor do caderno,
responsável em dar destaque, através dos títulos, cortar excessos, ampliar; editor-geral que pediu
modificações no texto, no uso de uma palavra, esteve assujeitado à formação ideológica do veículo jornal
(CP) e materializou o dizer de uma ordem discursiva advinda do poder institucional do jornal.
Este sujeito-jornalista também assumiu sua posição, aceitou entrar nesta ordem arriscada do
discurso (Foucault, 2004, p.07) e o fez significar. Resistindo ou não às ideologias da instituição, o jornal
construiu significações contextualizadas na política da Paraíba. Os discursos dos jornais, enunciados nos
textos e materializados sob a forma de notícias, estiveram em três páginas e, mesmo separados por títulos,
fotos e propagandas, dispersos pela própria organização do objeto, transformaram-se em conjunto
enunciativo regulado pelas formações discursivas. As origens, através das práticas discursivas,
estabeleceram as condições de exercício da função enunciativa, através dos enunciados e suas formações.
Resta-nos enxergar que, no ato de informar, os dois jornais apresentam em seus dizeres, um duelo
discursivo” que coloca cada jornal em seu devido lugar sócio-ideológico na história da Paraíba e na história
do “desastre de Camará”.
JORNAL DA PARAÍBA e CORREIO DA PARAÍBA
23 e 24 de junho 2004
Nestes dois dias, o Correio da Paraíba não usou o discurso para apontar culpados, ou possíveis causas
do acidente. Limitou-se a falar das ações de solidariedade, noticiar sobre as buscas dos desaparecidos e
sobre a abertura de inquérito para apurar os motivos da tragédia. As manchetes e textos não apresentavam
indícios, explícitos, de duelo ideológico, mesmo que, na sua relação com outras matérias, outros sentidos
cristalizados ao longo da semana, o jornal tenha evidenciado qual a formação ideológica que o periódico
mantinha relação. As manchetes não apontavam para aquilo que parecia evidente nos enunciados que
precederam. Os títulos versavam sobre: Defesa Civil suspende buscas, Sebrae apóia campanha de
donativos, Combóio leva doações para Alagoa Grande, Entidades lançam S.O.S Camará, Inquérito apura
se houve crime de ação ou omissão em Camará, MP quer identificar responsáveis, Parceria para doar
alimentos, Solidariedade tem adesões, Cássio cria comissão de investigação. (grifo)
No corpo dos textos e nos títulos, a estratégia discursiva do jornal é manter uma postura informativa,
isso quando levamos em conta, que, naquela edição, o jornal não parte para defesa do governador José
Maranhão, como fez nos dias anteriores. Essa análise parte do pressuposto de que os sentidos produzidos
pelo CP, naquele momento, não se alinhavam com aqueles produzidos pelos enunciados do dia 19 e 22, em
que o jornal materializou, em seu universo, enunciados que condenavam o governo atual. O discurso
“informativo” não deixa de ser uma estratégia do jornal para reforçar o seu conceito comprometido com a
“informação” e não com as posições ideológicas e interesses. Devemos levar em conta que os sentidos são
constituídos e a formação discursiva de um sujeito, no caso o jornal, é identificada, no conjunto de
enunciados materializados em várias edições do jornal e não em um único dia. É através na união dos
enunciados, da sua elevação à arquivo, que é possível apontar a quem o dizer está a serviço.
Diferente do CP, o JP daqueles dias, continuou “confeccionando” acontecimentos discursivos
baseados em enunciados que levavam o leitor a conhecer uma verdade específica de Camará: a de que a
tragédia foi um problema de construção, que havia uma falha geológica e que o governador Cássio Cunha
Lima estava disposto a ajudar, pessoalmente, as vítimas do acidente. A proposta discursiva de evidenciar a
preocupação do governo com os desabrigados fica explícita quando o jornal noticia que o MP vai marcar
uma vistoria na Barragem com intuito de abrir inquérito. O texto segue a mesma linha do Correio da
Paraíba, falando sobre a autuação dos investigadores. A diferença é que, mais uma vez, o JP materializa
enunciados que ressaltam a atitude do governo Cássio Cunha Lima na tentativa de ajudar os moradores da
cidade. Os enunciados estão alinhados com a formação discursiva que, aos poucos, vai sendo identificada
mais claramente.
No terceiro parágrafo da matéria, o sujeito-jornalista lembra que o encontro para criar uma comissão
de investigação havia sido uma proposta do governador, quando da assinatura de um decreto. Este
enunciado, no entanto, não acrescenta em nada à informação principal de que o MP vai investigar as causas,
mas, por sua vez, ajuda o jornal a produzir o sentido desejado, mostrando que o principal homem do
governo se antecipou, inclusive, uma iniciativa dos órgãos que deveriam propor a investigação. O enunciado
do sujeito-jornalista reforça a teia de enunciados que o jornal vai construindo a cada dia evidenciando a
heroísmo do governador, a sua preocupação e a sua neutralidade diante das causas do acidente. O JP reforça
essa estratégia com abertura de um box, que é uma caixa de texto com informações extras: um instrumento
jornalístico que serve, geralmente, para complementar, destacar, explicar ou ilustrar a matéria principal. O
box traz o título Ações do governo, enunciado que traz toda carga da formação ideológica defendida pelo
periódico. O espaço é preenchido com um breve relato e uma série de enunciados sobre o que fez o governo
para ajudar e manter a ordem e esperança na cidade. Vejamos: Instalação do governo, de várias secretarias,
da Polícia Militar e Corpo de Bombeiros em Alagoa Grande; Envio de dez toneladas de alimentos, entrega
de 18 toneladas de alimentos de produtos de limpeza; Entrega de 10 kits de alimentos (...); Garantia de
indenização aos comerciantes e agricultores (...) (ver anexo 4.1).
O box destacado no jornal virou um espaço de prestação de conta do governo. É importante destacar
que enunciados de mesma formação discursiva vinham, aos poucos, sendo materializados nas edições
anteriores do JP, uma estratégia que dispersa o sentido através da distância temporal de publicação, mas que,
na sua seqüência e repetição, vai consolidando e fortalecendo o sentido. O resumo, no entanto, surgiu como
uma tentativa de não só facilitar a compreensão, o entendimento, a leitura e a interpretação, mas de
fortalecer os enunciados que o jornal deseja que fique na memória, ganhe caráter histórico e de arquivo,
mais fácil de ser retomada, reproduzida e utilizada por outros sujeitos em um outro dizer.
Outro momento importante nesta edição está na matéria sobre a campanha organizada para
arrecadação e doação de alimentos. No CP, a reunião de entidades para ação beneficente foi noticiada de
forma “neutra”, com informações técnicas da ação, objetivo, entidades envolvidas, telefone de contato,
locais de arrecadação, sem destacar a autoria, a pessoa responsável pela campanha. No JP, no entanto, a
personalidade responsável pela organização da campanha foi fortemente destacada e ganhou espaço na capa
do Caderno de Cidade, com o seguinte título: Campanha de solidariedade é lançada pela primeira-dama.
Mais uma vez, o JP coloca no pódio da discursividade jornalística a atuação do governo e de pessoas
ligadas a ele; fortalece a sua batalha discursiva para defender, proteger e afirmar a preocupação do governo
com a população. Vejamos a diferença sutil nos discursos dos jornais, mas que, quando observados dentro
de universos enunciativos pode revelar o que está exterior à língua:
a) O Jornal da Paraíba trouxe: Mais de 100 entidades, empresários e representantes comunitários
participaram ontem pela manhã do lançamento da Campanha de Solidariedade SOS Alagoa Grande e
Mulungu. A primeira-dama do Estado, Silvia Cunha Lima, presidiu a oficialização da iniciativa que
tem como objetivo sensibilizar a população (...).
b) O Correio da Paraíba trouxe: Uma ão conjunta para socorrer às vítimas de Alagoa Grande,
cidade atingida pela ruptura da barragem de Camará, foi deflagrada por uma comissão executiva
composta por representantes de várias entidades e instituições (...).
Vemos que os textos trazem as mesmas informações, mas com efeitos de sentido bem diferentes.
Principalmente quando levamos em conta o “local” onde estão inseridos os discursos e como os enunciados
vêm sendo materializados ao longo dos dias. Levando-se em conta a formação discursiva/formação
ideológica, que aos poucos foi evidenciada pelos jornais, bem como, a partir do a priori sobre as relações
dos jornais com os poderes, percebemos que o JP quis evidenciar a presença e não a presença, mas a
iniciativa do governo na tentativa de ajudar os desabrigados. Por outro lado, o Correio da Paraíba não achou
interessante declarar a relação direta da primeira-dama e atribuiu a autoria da iniciativa a uma comissão. O
silenciamento da participação do governo é sintomático porque nos enunciados da cobertura da Barragem de
Camará, o CP não ressaltou em nenhum momento essa participação. Ao contrário do JP, que escolheu essa
abordagem como importante na materialização dos enunciados.
Cada jornal, por ter vínculos com os governos, constrói seu discurso fazendo com que seu eixo de
cobertura jornalística seja a de acusar alguém pelo ocorrido. Que é uma resposta cobrada pela sociedade. O
que temos é uma construção discursiva política de cada jornal, que canaliza seu dizer para um discurso
político-ideológico e usa o acidente para construir a imagem da “sua reposta”. Enquanto o JP mostra-se
conivente com o governo Cunha Lima, o CP coloca-se do lado do ex-governador José Maranhão. São
posições sócio-histórico-ideológicas que foram materializando-se ao longo da suas práticas de historicização
do fato.
No dia 24 de junho, o JP deu destaque a outro eixo de sua cobertura sobre o desastre: o de acusar o
governo de José Maranhão na construção da obra. O jornal trouxe essa manchete de capa: Deputado vai
pedir CPI para apurar estouro de barragem. E o texto-chamada diz: João Bosco Carneiro vai esperar o
retorno do cesso da AL. O deputado já está entrando em contato com outros parlamentares para coletar as
assinaturas e apresentar o requerimento pedindo uma CPI específica para Camará.
Dentro do jornal, quase uma página inteira do Caderno de Política falando sobre o assunto que, numa
corrente, vai puxando outros assuntos na mesma cadeia discursiva de condenar o governo anterior e exaltar a
ação do governo atual. Vejamos como acontece: (ver anexo 5 e 5.1).
1- Deputado vai sugerir instalação da CPI da Barragem de Camará
2- Faremos surgir uma nova cidade
3- Gilvan lembra abusos em obras
4- Dois aditivos não foram cumpridos
5- Cássio garante que vai indenizar produtores
Os textos se dividem em: condenar a obra e solução do governo. O sujeito-jornalista recorre às
possibilidades de diálogo dos enunciados nesse espaço discursivo. No primeiro texto, o discurso autorizado
é de um deputado, um dizer que é deslocado com toda sua força simbólica para cristalizar um outro dizer.
Além de ser um parlamentar, que possui
(João
Pessoa, 24
de junho de
2004.
Página 03)
institucionalmente um respaldo na sociedade, ele é natural de Alagoa Grande, cidade que ficou totalmente
destruída. Essa característica legitima ainda mais o seu dizer, porque o faz parte daquele contexto.
Apresenta-se como sujeito integrante do lugar e mostra a necessidade de brigar pelos conterrâneos, um
resgate da identidade, das raízes, importantes na constituição do sujeito, do seu arquivo e de sua memória.
Ao trazer o discurso do deputado, o sujeito-jornalista reforça o seu dizer de que é preciso procurar os
culpados e essa preocupação é construída pelo dizer do jornal que pretende mostrar-se o como um
veículo de comunicação que não divulga os fatos ocorridos na sua veracidade, mas procura construir sua
imagem enquanto jornal preocupado com o bem-estar da população, com a solidariedade. Buscar as falas de
autoridades que podem opinar, apurar ou “sanar” os danos causados pelo rompimento da barragem lhe
garante um lugar de jornal comprometido com o povo, com o social, a denúncia, a verdade jornalística. O
JP está sempre recorrendo às falas dos componentes da máquina administrativa de Cássio, o que significa
dizer que toda essa quina discusivo-administrativa é importante para compor o discurso que o JP quer
materializar, espelhando sua formação discursiva/formação ideológica.
Sua verdade jornalística respalda-se no dizer de autoridades que trazem de volta arquivos de
memória. Ao discutir o acidente de Camará, o sujeito-jornal recorre a falas de outrem que denunciam,
acusam, analisam o assunto de forma a defender o interesse de cada jornal. Essas falas, no intradiscurso do
jornal, são enunciados que se instauram como um novo acontecimento enunciativo, que volta com um novo
sentido, numa nova posição.
O jornal diz, que o deputado disse, que vai pedir a criação de um CPI para apurar as causas da
quebra da barragem. O texto isolado remete a um acontecimento discursivo produzido por uma pessoa
importante e “neutra” que simplesmente pergunta quem é culpado? A resposta não está nesse texto, mas nos
outros que seguem.
O matéria que vem logo em seguida e a coordenada, uma espécie de complemento do texto
principal, registram a fala de um outro deputado que afirma que houve abusos na construção da obra, com
informação que havia irregularidades. Ou seja, em um jogo enunciativo, com regras próprias de produção de
sentido, o sujeito-jornalista se apropria de discursos autorizados, reescreve e faz a ponte dos diálogos. Isto é,
em um texto o deputado João Bosco pergunta quem é o responsável. No outro, a resposta vem em forma de
discurso autorizado, de um outro parlamentar.
Para reforçar a verdade de que o acidente foi provocado por problemas na construção, o sujeito-
jornalista recoloca o discurso do parlamentar, recorre à memória e a história, re-diz da forma que a sua
posição lhe permite. Vejamos: a) Várias obras executadas pelo governo anterior estão sob suspeita de
superfaturamento e coincidentemente, as mais caras (...)b) Esta é a constatação que chegou o deputado
Gilvan Freire durante uma entrevista (...) c) Ele citou como exemplo o Canal de Sousa, “obra mais antiga e
de maior volume que nunca alcançou a sua finalidade”: e a rodovia BR-230, a segunda mais importante,
que não foi inteiramente duplicada como foi anunciado.
Esses enunciados resgatados pelo parlamentar plantam no público leitor a dúvida sobre as obras
construídas pelo governo Maranhão; colocam em cheque a qualidade de tudo que foi feito naquele mandato,
inclusive, a barragem que desabou. Ao buscar os arquivos da memória e movê-los em outro espaço de
materialização, o deputado, com a ajuda do sujeito-jornalista, que é responsável pela reprodução daquele
dizer, tenta desqualificar todo trabalho do governo para culpá-lo pelo acidente e “ajudar” o público leitor a
entender o ocorrido porque a sua defesa é que houve irresponsabilidade na condução da obra. Juntos,
deputado na sua posição de fala autorizada e jornalista como articulador de sentidos, afirmam que a
reincidência de trabalhos mal feitos é a maior prova de que aquele também seguia a mesma linha.
Alimentado mais ainda essa sua verdade, o JP, destaca, através da voz do líder do governo na Assembléia,
deputado Gilvan Freire, que o Tribunal de Contas afirmou que dois aditivos para aumentar o prazo da
construção da obra não foram cumpridos. O deputado se apropria da investigação do Tribunal de Contas, um
órgão fiscalizador da sociedade, fiscalizador dos gastos públicos, para “informar” que a obra em questão
teve problemas jurídicos e foi condenada. Os enunciados, mais uma vez, tentam depreciar a construção e
fazer com que o leitor acredite na irresponsabilidade na condução daquela obra.
A presença da fala do deputado tem um efeito especial para o público-leitor do jornal, por ele ser
uma “autoridade” política, eleito pelo povo que recorre a outras histórias envolvendo má gestão do dinheiro
público e corrupção, afinal ele, como conhecedor da legalidade tem autonomia para tecer comentários,
apoderados pelo jornal e re-significado em um novo acontecimento. Já é possível perceber que o JP não está
somente preocupado com o desastre, com os desabrigados, mas, também com o uso discursivo do acidente
para construir a imagem política de Cássio, como inocente, e de culpado de José Maranhão pela tragédia. O
jornal faz da heterogeneidade discursiva e das possibilidades do ir e vir dos discursos e falas, no espaço
jornalístico, possibilidade de constituição de efeitos de sentido que se transforma na inocência de Cássio e a
na culpabilidade de seu algoz.
Para movimentar ainda mais o passeio pela teia de sentidos produzida pela suas movências, o sujeito-
jornalista coloca na mesma gina, onde se estabelece o diálogo discursivo, afirmações do governador
Cássio Cunha Lima. As declarações são sobre a garantia de que o governo vai dar aos produtores que
perderam tudo com a enchente. Mais uma vez o destaque se volta à atuação do governo. O discurso
salvador fica evidente em uma coordenada que trouxe a manchete: Faremos surgir uma nova cidade. O
enunciado foi dito pelo governador Cássio Cunha Lima, ator principal dessa reconstrução da verdade do JP.
Ao mover outros discursos, o de Cássio Cunha Lima, por exemplo, o sujeito-jornalista traz para seu
intradiscurso o destaque das ões do governo, sua atuação enquanto governador; este discurso é
constitutivo de sentidos outros que colocam o governador como compromissado, eficiente. Seu “discurso
salvador” o projeta como um bom governo, que mesmo não tendo culpa do acidente, está disposto a ajudar
as vítimas.
Neste dia, o conjunto de enunciados daquela formação discursiva mais uma vez condena a
construção da obra, agora com a utilização de discursos de deputados e líderes. Cássio novamente aparece
como aquele que está ali não para condenar, mas para solucionar os problemas e amenizar o sofrimento das
pessoas. (ver anexo 5.2 e 5.1)
Assim constrói-se o duelo entre os dois jornais no ato de informar. De um lado, um jornal que se
coloca como informativo, silenciando ações que o revela ligado à discursivização político-partidária e o
outro também na tentativa de evidenciar a informação, construtor de uma outra discursivização
partidária/ideológica. Cada um em defesa dos interesses do governo a que está vinculado.
3.3 Uma voz, duas versões e vários sentidos
JORNAL DA PARAÍBA e CORREIO DA PARAÍBA
13 de julho de 2004
Instalada a comissão para investigar as causas do rompimento, os jornais iniciam outro alexandrino
conflito, agora mais explícito, no qual as armas são os discursos autorizados e depoimentos. As posturas
políticas ficam mais claras quando lemos matérias com o mesmo assunto nos dois jornais. Das várias
manchetes e textos que poderiam ilustrar esse processo de produção de sentidos, elencamos dois corpos
enunciativos, veiculados na edição dos dias 13 e 14 de julho de 2004, quando prestaram esclarecimentos ao
MPF duas das pessoas mais importantes do caso, segundo a mídia.
No dia 13, os jornais trouxeram trechos do depoimento do ex-secretário de Recursos Hídricos do
Governo, Francisco Sarmento, que, na época, era responsável pela construção da Barragem. O depoimento
era, de acordo com a mídia local, um dos mais esperados. Vale salientar que, daquele depoimento, várias
versões surgiram, um duelo no campo discursivo. Por isso, O JP e CP construíram toda matéria baseada na
fala daquele personagem. Através do interdiscurso e intradiscurso, o jornal materializou recuperou os
dizeres do depoente e constituiu um novo acontecimento discursivo. Vejamos como ocorreu no JP:
a) o enunciado da manchete foi: Governo ignorou falhas durante a obra de Camará; e tinha como subtítulo:
Ex-secretário Francisco Sarmento confessou que não fez qualquer alerta formal porque desconhecia
problemas da barragem. (ver anexo 6 e 6.1).
O sujeito-jornalista recortou partes do depoimento que, ao serem reconduzidos a outro local, entram
em regularidade com a formação discursiva/formação ideológica de onde o sujeito está inserido, dentro da
sua ordem institucional. Ele também retomou os enunciados do ex-secretário e, através do efeito de
articulação intradiscursiva, produziu um novo sentido. Ou seja, ao confessar no depoimento que desconhecia
as falhas, o ex-secretário deixou o enunciado e sua carga de sentido disponíveis para que o sujeito-jornalista
promovesse o retorno e a construção de um novo dizer, de um novo sentido e da materialização da verdade
discursiva, bem como da verdade jornalística que, neste caso, está acostada no discurso de uma pessoa
autorizada, que é uma autoridade, com conhecimento sobre o assunto e é o responsável para prestar tais
esclarecimentos. Essa estratégia de utilizar o discurso de Sarmento, considerado homem chave do caso, suas
falas e toda força de sua representatividade, pautou a cobertura do jornal naquele dia. Pautou os sentidos
cristalizados sobre a participação do ex-secretário no caso.
b) manchete do texto traz: Sarmento desconhecia problemas surgidos na construção de Camará; na
chamada do texto: Depoimento: Ex-secretário diz que não recebeu relatório da Holanda Engenharia sobre
falhas. Os enunciados apresentados no JP, neste dia, mostraram um sujeito-jornalista querendo evidenciar
que Sarmento, um dos personagens principais e homem que poderia evitar a tragédia, admitiu que não sabia
das falhas geológicas e dos problemas na construção. O jornal conduz seu discurso para que todos acreditem
ser um absurdo um secretário e fiscal da obra, não ter conhecimento das irregularidades. Utilizando partes
do depoimento, do discurso autorizado, o sujeito assume sua posição e faz produzir um sentido que permite
o leitor acreditar que o secretário é o “culpado e responsável” pela tragédia, pois tinha obrigação de ter
conhecimento e fazer algo para que a obra não continuasse da forma que estava. O acontecimento discursivo
foi construído da seguinte forma:
1- Sarmento admitiu que nunca tomou conhecimento das falhas e ignorou relatórios (não fiscalizou):
O ex-secretário estadual de Recursos Hídricos Francisco Jácome Sarmento disse ontem que nunca tomou
conhecimento das falhas geológicas que comprometeram a barragem de Camará (...) em depoimento,
admitiu que, como secretário, ignorava o resultado dos procedimentos sugeridos pela Holanda Engenharia
(ver anexo 6.1). O sujeito-jornalista registra no lead o que o seu personagem disse de mais importante. Não
há indícios técnicos (de acordo com o jornalismo) que comprometa a objetividade do texto “rápido e
conciso”, com as informações mais importantes. Porém, ao longo do texto vamos observar que o caminho
seguido pelo jornalista não é algo que surge espontaneamente, mas determinado pelo seu processo de
sujeição, que vai se delineando ao longo de afirmações, recortes e silêncio.
2- o JP transcreve o que Sarmento disse no depoimento para ratificar o que foi afirmado pela
instituição. Ou seja, o sujeito resgata frases do depoimento de Sarmento para confirmar a verdade do que foi
dito nos títulos e no primeiro parágrafo. O resgate do discurso “real”, autorizado, um caráter verdadeiro
às afirmações do jornal. É como se tudo que foi dito pelo sujeito-jornalista tivesse respaldado em um dizer
outro, institucionalmente reconhecido. Como vimos, essa retomada serve para dar credibilidade ao discurso
do jornal, legitimidade, verdade ou uma vontade de verdade. Por conta das afirmativas, o que ele disse de
fato, na realidade. Vejamos parte do texto: O ex-secretário argumentou que este era um problema das partes
envolvidas diretamente na execução da obra e disse que, junto com o então governador (...) se encontrava
no nível político-administrativo. Segundo ele, havia uma estrutura (...) responsável pelo andamento do
projeto. “Não tomei conhecimento de quaisquer dos problemas técnicos relevantes, a fiscalização levaria
ao conhecimento do secretário”, destacou.
3 Sarmento chegou a dizer que não soube do último relatório (o principal) e o jornal afirma que o
engenheiro da empresa alertou o governo que Sarmento fazia parte, também com frases do próprio autor,
entre aspas. O jornal utiliza os enunciados do próprio personagem; faz questão de ressaltar que, apesar de
desconhecer os problemas, afirma, também, que alguém teria alertado o Governo (instituição da qual ele
fazia parte). Essa estratégia, ao mesmo tempo em que legitimidade ao discurso do jornalista, porque é
baseado na fala autorizada, coloca em dúvida a verdade do depoimento, coloca em dúvida a índole do
personagem que, ao se contradizer, pode estar mentindo. O sujeito-jornalista incita o embate das declarações
para tentar apresentar a verdade para um público que, ao ter acesso somente às falas selecionadas pelo
sujeito-jornalista (jornal), é direcionado a fazer um juízo de valor baseado naquilo que foi recortado e
evidenciado.
4 - Sarmento revelou ao procurador do MP que foi alertado sobre a necessidade de monitoramento.
O jornal insiste na hipótese de que o desconhecimento não era total, visto que, ele sabia de algumas coisas e
não sabia de outras. Ao tomar o discurso do ex-secretário e reproduzi-lo da forma indireta, o sujeito-
jornalista se apropria de um dizer do outro para dar sentido dentro de uma posição assumida por ele, é o
dialogismo constitutivo de sentido. O que nós verificamos é um processo de heterogeneidade discursiva,
presente na teia de sentidos dos discursos e que identifica outros discursos, discursos ditos em outros lugares
sendo retomados, inseridos em uma outra instância. É a presença do outro que pode estar explicitada, como
acontece quando o jornalista reproduz o que foi dito, bem como pode estar traduzido pelo sujeito para
remeter a uma outra fonte de sentido.
5- O procurador não aceitou a justificativa sobre o desconhecimento. Para o jornal, nesta formação
discursiva, afirmar que o investigador, capacitado para isso, não acreditou, é realmente colocar em dúvida a
verdade do que o magistrado diz. Vejamos que o sujeito- jornalista, no jogo enunciativo, utiliza-se da
heterogeneidade já presente no processo de discursivização, ele incita essa heterogeneização. Com os
discursos reproduzidos, os chamados diretos, demarcado por aspas, o sujeito credibilidade ao que está
dizendo, registra a verdade do que está sendo colocado. Esses enunciados são “colocados”, “aparecem”
dentro de outros que são conduzidos pelo próprio jornalista que, num processo de discursivização, teve que
recortar aquilo que ele ou a sua ordem achou mais importante.
6- Sarmento continua admitindo. O jornal explora o uso de verbos e expressões como revelou,
admitiu, argumentou, chegou a dizer que tomou, também admitiu, na terceira pessoa, para manter o caráter
“objetivo” da notícia. Todas as declarações são prejudiciais a ele. Em nenhum momento do jogo
enunciativo, o sujeito jornalista resgata ou conduz a fala da personagem para uma defesa com argumentos.
Ao contrário, materializa aquilo que pode marcar a postura negativa do ex-secretário, é o que temos nessa
passagem: No depoimento de ontem, que durou mais de cinco horas, o ex-secretário também admitiu que a
obra só recebeu definitivamente licença ambiental após um ano de execução do projeto. Podemos ler, neste
enunciado, que a obra era irregular, um efeito de sentido que deprecia a ação do ex-secretário em relação à
obra. O sentido foi mais um da cadeia de discursos dispersos e materializados nas edições dos jornais que
iam se sucedendo. Naquele dia, a verdade do JP trazia um ex-secretário do governo anterior desinteressado
com a segurança da obra, irresponsável e o pior, tudo foi dito por ele mesmo em depoimento. Depoimento
do qual o jornal se apodera para comprometê-lo e comprometer o governo anterior.
O CP, no dia 13 de julho, também registrou o depoimento do engenheiro Francisco Sarmento. É
importante ressaltar que os jornais se basearam no mesmo depoimento, que ocorreu um dia antes da
publicação. Os dois sujeitos-jornalistas responsáveis pela cobertura do interrogatório estavam na sala do
MPF e acompanharam de perto tudo que foi dito. Cada um assumindo a suas posições-sujeito e interpelados
pela ideologia dos jornais.
A notícia foi publicada no CP com seguinte título: Sarmento diz no MP que caso de Camará foi
acidente geológico. No texto (p. A-12, últimas), o sujeito-jornalista exalta a parte do depoimento em que ele
diz que não houve problemas na construção, que a falha foi geológica e que não tomou conhecimento dos
problemas que poderiam ter apresentado. O jornal ainda descreve o momento em que o ex-secretário exibe
slids no depoimento para dar mais veracidade e verdade às suas declarações. Vejamos em detalhes como, no
jogo de posições ideológicas, o sujeito, mesmo assujeitado, pode manobrar o dizer a partir desta posição.
Algo, somente possível, pela maleabilidade do discurso na trajetória incansável do ir e vir.
No CP, a história” do depoimento não coube admitir desconhecimento, ignorar relatórios, nem
confessar problemas. A verdade deste sujeito-jornalista é que houve falhas geológicas, segundo a sua fonte.
A diferença, neste caso, é que em nenhum momento do texto o sujeito jornalista, na possibilidade da
intradiscursividade, dá voz ao personagem, transcreve a fala. Prevalece o discurso indireto que, por sua vez,
facilita a intervenção do sujeito-jornalista em sua interpelação, mas também não descredita a verdade do
jornal. A forma, seleção e recorte é um instrumento para, inclusive, resistir a essa ou aquela ordem.
O texto em todos os parágrafos traz expressões como: Sarmento disse; Segundo ele, os problemas
ocorridos; Sarmento afirmou que; O ex-secretário disse também que tomou conhecimento; Sarmento
disse acreditar; durante alguns minutos, o ex-secretário fez uma exposição; Sarmento chegou a falar sobre;
ele também afirmou.
O fato é que duas verdades jornalísticas, via discurso, foram construídas nos jornais daquele dia, a
partir de um depoimento. Era um só depoimento e duas verdades materializadas por articulações discursivas.
Independente de posições político-ideológicas, o que nos interessa é entender que este tal sujeito-jornalista
se utiliza das possibilidades do discurso para estabelecer uma verdade. Neste caso, vimos que o silêncio é
um instrumento e um o efeito de articulação. O intradiscurso não resgata a credibilidade, como produz a
movência dos sentidos, com deslocamentos de enunciados. O mesmo procedimento de articulações
discursivas acontece com a voz-depoimento do engenheiro Antônio Soares. Vejamos os dois jornais.
JORNAL DA PARAÍBA e CORREIO DA PARAÍBA
14 de julho de 2004
A mesma linha de produção de sentido foi materializada nos enunciados manchetes e textos - do
dia 14 de julho de 2004. O JP trouxe uma matéria com o depoimento de Antônio Soares, engenheiro da
empresa que construiu a obra. Aquele era o fato jornalístico mais importante na cobertura sobre o “caso
Camará” daquele dia. O engenheiro iria rebater as declarações de Francisco Sarmento, ex-secretário que
prestou depoimento no dia anterior. Baseado no histórico do depoente, a mídia sabia que o depoimento
interessava mais ao Jornal da Paraíba do que ao Correio da Paraíba e, como também era previsto, o
engenheiro daria declarações que acusaria a ação do governo José Maranhão e inocentava a omissão do
governo Cássio Cunha Lima.
O Correio da Paraíba descartou o depoimento do engenheiro; não publicou uma linha daquela fala e
silenciou aquela voz. Ao abrir mão de fazer a cobertura do fato mais importante do dia, silenciar aquele
depoimento, o jornal admitiu a sua posição. Também produziu sentido, pois, “confessou”, com a omissão, o
seu desejo de proteger um dos lados; esta atuação discursiva vinha sendo materializada ao longo da
cobertura sobre o desastre. O fato é que ele silenciou baseado em uma posição ideológica e estratégica,
concretizada por uma atuação organizacional, instrumentalista. Mais um vez, o efeito de sentido incide sobre
o seu silêncio, que, em consonância com os enunciados materializados nas edições anteriores, interferiu no
entendimento do leitor sobre o fato. O sujeito-jornal estava excluindo da sua cobertura a voz de um
personagem importante para contar aquela história. A exclusão daquele depoimento era a exclusão de um
dos pólos enunciativos daquela batalha discursiva.
Mas, para fortalecer o pólo discursivo de seu interesse, o jornal CP apresentou outros enunciados que
reforçavam a sua tese de que o governo ssio Cunha Lima foi omisso. A manchete de capa traz, como no
dia anterior, enunciados do depoimento do ex-secretário Francisco Sarmento. Vejamos a manchete e o texto
da capa: Sarmento: “Camará seria esvaziada e estaria segura em apenas 16 dias; Ex-secretários de
Recursos Hídricos, Francisco Sarmento, disse, ontem, que a barragem poderia ter sido esvaziada em 6
milhões de metros cúbicos em 16 dias, evitando a tragédia que matou cinco pessoas, em Alagoa Grande.
Segundo ele, a barragem estaria segura. (ver anexo 6.2 a 6.5)
Dentro do jornal, a manchete da matéria reforça: Sarmento: “Camará perderia 6 milhões em apenas
16 dias”- Cálculo tem base em procedimento da Defesa Civil americana. O CP parte para defesa do
secretário, ou melhor, sede um espaço nas suas ginas para que ele, não mais fale do seu conhecimento
sobre a construção da obra, já que fez isso na edição anterior, mas relata o conhecimento que tinha para
solucionar o problema.
Para fazer significar e aos poucos estabelecer uma verdade jornalística sobre o caso, a verdade do
jornal, o CP não resgata as falas de Sarmento na íntegra utilizando marcadores, como aspas e destaques,
recorre a um instrumento comum na prática jornalística: o uso de análises, dados, gráficos e números.
Quando o jornal estampa nas manchetes a afirmação de Sarmento sobre o esvaziamento da barragem, coloca
também que os cálculos foram feitos com base em procedimento da Defesa Civil americana. Fazer esta
ligação legítima caráter científico à afirmação feita pelo ex-secretário. Essa é a lógica que acompanha
todo texto, que se apropriando da opacidade e transparência da linguagem, instiga o leitor a tirar conclusões
como: ‘o governo teve culpa porque não abriu as comportas, não viu que a barragem estava cheia, não fez a
manutenção. Os gráficos e os dados comprovam. Os estudos foram feitos por um “órgão conceituado”. A
intradiscursividade do interdiscurso mais uma vez foi utilizada para formular um novo dizer e trazer para o
texto do jornal a insinuação de que a culpa do desastre foi do governo atual que não se preocupou em fazer a
manutenção de olha em seu governo.
Além de estratégias jornalísticas para legitimar o discurso do ex-secretário, ou seja, dar espaço para
declarações dele, ressaltar a origem conceituada dos documentos em mãos, o sujeito-jornalista promove o
diálogo entre os rios textos no mesmo caderno, que se complementam e induzem o leitor a chegar a uma
conclusão, a uma verdade. Todos os títulos das matérias são oriundos do depoimento de Sarmento, mas
foram retomados de forma “impessoal” e caráter afirmativo. Enunciados que significam na sua função
enunciativa.
Os jornais, por questões materiais ou estratégicas, distribuem seus sentidos dia-a-dia e é nessa
descontinuidade que as histórias das “estórias” vão sendo contadas, os sentidos apresentados e a interpelação
ideológica exposta. Neste caso, por exemplo, o CP trouxe o depoimento de Sarmento afirmando que houve
uma falha geológica, que o governo atual foi omisso, que os relatórios das construtoras não tinham
problema. No outro dia (14), trouxe as afirmações que vimos pouco. No dia 19 de junho, destacou que o
governo atual sabia do problema da barragem; no dia 22 de junho, silenciou sobre a ação de ajuda do
governo. Aos poucos o campo discursivo vai sendo montado, a formação discursiva do jornal vai ficando
evidente através da materialização e, consequentemente, a formação ideológica, que interpela o sujeito e o
faz assumir posições.
O JP do dia 14 de julho traz: “Soares diz que Sarmento sabia de falhas”. Soares é o engenheiro
Antônio Soares, da empresa responsável pela construção da obra. No dia anterior, ele prestou depoimento no
MPF esclarecendo o processo de construção, entrega de relatórios e fiscalização do governo. Em mais de
quatro horas ele afirmou muita coisa, entre as quais aquelas que foram destacadas pelo JP e totalmente
silenciada pelo CP, que não publicou nada das declarações. Vejamos parte do ele afirmou e foi materializado
pelo jornal.
Antônio Soares contou que durante o período em que esteve como supervisor do processo de
construção da Barragem de Camará produziu relatórios com comentários sobre a obra, falhas apontadas e
dados relevantes: Eu entregava os documentos ao coordenador do Gogerh na época, Gilmar Ferreira, e
ele repassava para o secretário titular da pasta e para o adjunto”, disse. Isso contradiz o depoimento do ex
secretário de Recursos Hídricos, José Sarmento, que disse não ter conhecimento de qualquer problema na
execução da obra.
O engenheiro ainda declarou que esse é um procedimento normal dentro da Secretaria e que,
atualmente, como é o responsável pelo Cogerh, ele próprio encaminha os relatórios de execução das obras
em andamento de todo o estado para os secretários da pasta (...) Antônio Soares destacou que esteve
presente durante o processo inicial da construção da Barragem de Camará, de junho de 2000 a junho de
2001. “Nas escavações iniciais, se percebiam as falhas na ombreira esquerda e a necessidade de
correção”, atestou. Ele falou que em maio a CRE instalou e em junho, a Holanda Engenharia.
Soares fez afirmações que poderiam ajudar o JP a construir, com mais força, sua história sobre o
caso: que a causa da tragédia foi irresponsabilidade na construção. Na matéria, o sujeito-jornalista afirma
que o engenheiro da empresa avisou que havia uma falha geológica, que o governo foi omisso, que foi
irresponsável. Explorando a heterogeneidade constitutiva do discurso resgata falas do entrevistado para
afirmar sua posição. O sujeito-jornalista atua como o articulador de peças discursivas que são colocadas de
acordo com os interesses de onde ele fala. Ele confronta os depoimentos de Soares e Sarmento para induzir a
uma produção de sentido, através da “informação” aparentemente imparcial e ingênua. Os jogos
enunciativos estabelecidos por cada jornal, possuem um vencedor que vai sendo construído no processo de
enunciação e discursivização.
Mais uma vez, o sujeito-jornalista se aproveita do instrumento da intradiscursividade e da própria
heterogeneidade do discursivo para produzir o sentido que deseja, materializar a história que se adeqüe à
verdade que ele quer estabelecer, dentro de uma determinada ordem. O sujeito-jornalista move as falas de
Soares e as transforma em um novo discurso, um acontecimento discursivo que provoca efeitos de sentidos
diversos.
A partir destas construções jornalísticas podemos pensar: qual história do desastre de Camará vai
ficar? A do JP ou do CP? Vejamos a história refeita, exatamente, depois de um ano no item que segue.
3.4 Depois de um ano, a história refeita
JORNAL DA PARAÍBA e CORREIO DA PARAÍBA
17 de junho de 2005
Um ano depois de ocorrido o desastre, o Jornal da Paraíba explorou, de forma mais abrangente, a sua
função de operador de memória e produziu um Caderno Especial de seis páginas. As matérias fazem o
resgate do que aconteceu, ouvindo moradores sobre a tentativa de colocar a vida na normalidade, sobre as
dificuldades e dores. Também retomou a discussão de dois eixos que marcaram os discursos do jornal
durante todo o ano: argumentar que o desastre foi causado por uma falha na obra e creditar ao governo a
força de reconstruir a cidade com solidariedade e ação. Das onze matérias do caderno, podemos ler que (ver
anexo 7 a 7.7):
a) três trazem discursos que versam sobre reconstrução da história do acidente, com dados
oficiais e números e com as manchetes: Tragédia de Camará completa um ano e Alagoa
Grande é reconstruída, Marcas do desastre permanece na vida das pessoas e dos
moradores, Severino Ramos salvou 15 famílias;
b) uma reconstrói o dia que marca o aniversário de um ano da tragédia: População relembra a
data de hoje;
c) duas o marcadas por enunciados que registram a fé, a esperança do povo e, ao lado, a
iniciativa do governo em ajudar a cidade, os textos têm os seguintes enunciados nos títulos:
Uma tragédia a ser vencida com a força da solidariedade e Alagoa Grande começa a
reerguer-se;
d) As outras cinco, 40% do Caderno Especial, falam sobre as investigações que buscam os
culpados, mais do que isso, todas elas reproduzem enunciados que levam à compreensão
de que o MPF vai provar que foi um erro na construção, ou seja, a culpa é do governo José
Maranhão. Vejamos: MP quer reconstrução de Camará; Barragem foi construída para
beneficiar 200 mil habitantes; Obras priorizam a restauração de pontes, estradas, casas e
escolas;
No texto MP quer reconstrução de Camará, o sujeito-jornalista, baseado no relatório da comissão de
investigação, faz um resumo de toda verdade que o jornal buscou estabelecer durante a cobertura jornalística
sobre o caso. As práticas discursivas do jornal foram retomadas em uma edição que se propôs catalogar a
“história” da tragédia a partir daquele ponto de vista. Uma tentativa de retroalimentar a memória e o arquivo
com objetivo de mais uma vez, através da verdade discursiva, defender interesses. Com aquela edição, o
jornal juntou as suas verdades dispersas em um ano de cobertura: primeiro sobre o fato, depois construiu
acontecimentos discursivos nos episódios dos depoimentos e sem seguida, apropriando-se dos discursos
oficiais da comissão de investigação para contar sua versão.
Camará, nos discursos que o JP materializou ao longo do ano, no diálogo, na interação discursiva, na
apropriação da interdiscursividade, via intradiscursividade, foi um erro de construção. Conclusão que ficou
registrada na memória do público leitor. O jornal pode até ter transformado em algo descartável, mas fez
daquele discurso, construído com a veracidade dos discursos autorizados, com a tentativa de representar a
realidade do sujeito-jornalista, um arquivo que nasce pronto para retornar em um outro momento, em um
novo lugar.
A verdade do JP foi de que o MPF constatou erros seqüenciais que levaram ao rompimento, que
secretários e o governador José Maranhão foram irresponsáveis por não fiscalizar com a devida precisão a
construção, bem como, para aquele jornal, houve falha geológica, o governo atual poderia ter evitado. O
governo atual também teria feito o possível, ajudou famílias, organizou campanhas, atuou como o redentor,
esteve ao lado dos desabrigados, foi sensível à dor, ajudou financeiramente. Esses são alguns dos discursos
marcantes que se projetaram na materialização dos enunciados dessa formação discursiva/formação
ideológica. Vejamos o recorte:
A
heterog
eneida
de
discurs
iva é
um
instrum
ento
import
ante
para
estabel
ecer a
sua
“históri
a”. No
texto
CPI
propõe
ação judicial contra empresas, o sujeito-jornalista utiliza documentos fornecidos pelo MPF e analisados
pela CPI, instalada na Assembléia Legislativa, para reproduzir o discurso de que os responsáveis pela
tragédia são os construtores. O texto traz, números, dados, falas dos deputados para, como vimos, ratificar a
legitimidade daquele outro discurso. Numa estratégia discursiva, o jornal explora as possibilidades da
heterogeneidade mostrada. Retoma os discursos que apontam para o caminho do sentido desejado. Essa
articulação discursiva garante a possibilidade de evidenciar ainda mais o sentido que o sujeito-jornalista quer
dar àqueles enunciados. Vejamos, no recorte acima, feito na página 04 do Caderno Especial do JP como
ocorreu a heterogeneidade.
Todos os box, em destaque, trazem enunciados escolhidos do relatório, documento que traz em seu
registro a verdade da instituição: a CPI, da Assembléia Legislativa, na qual se supõe neutralidade,
impessoalidade e legitimidade. Os enunciados se inscrevem em sistema de dispersão, em que sua
enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, definem uma regularidade (uma ordem, correlações,
posições e funcionamentos, transformações) por isso, fazem parte e estão dentro de uma formação
discursiva, aquela em que se encaixou os discursos do JP.
Neste caso, a seleção de frases de efeito que condenam a obra e o governo de José Maranhão trazem,
ainda, informações que depreciam a sua administração, destacando que a obra não foi licitada, ou seja,
estava irregular; a pressa em construir, por causa da eleição, inibiu o cumprimento de medidas de segurança;
a construção da barragem sobre falha geológica; o controle de qualidade foi frágil; os recursos financeiros
beneficiaram algumas pessoas, mas não trouxe segurança a obra. Todos os enunciados, baseados em fonte
oficial, produz um efeito de sentido que leva o público-leitor a condenar, baseado em informações do jornal,
o governo anterior e inocentar o governo de Cássio. Mais que isso, a estratégia do jornal é também colocar
em dúvida a legalidade da construção e da aplicação dos recursos financeiros, levando o público a pensar
que todo processo foi corrompido, desde a licitação até a conclusão apressada da barragem.
A verdade jornalística, via discurso, do jornal é respaldada pelo relatório da CPI, que leva consigo, o
crédito de “grupo” responsável pela transparência, legalidade e justiça. Através do processo de
intradiscursividade, o discurso da Comissão é apropriado pelo JP para moldar a sua história de culpados e
um inocente: o governo Cássio Cunha Lima.
Naquele dia, 17 de junho de 2005, um ano depois da tragédia de Camará, o CP não considerou que
valia a pena um Caderno Especial, como fez o JP. O jornal falou sobre o assunto de forma breve, porém deu
o seu recado. O recado do CP seguia a linha de pensamento que foi materializada durante toda sua cobertura
jornalística. Como o JP, o CP, definiu uma regularidade de sentidos com a materialização de enunciados dia-
a-dia, dispersos no tempo, mas unificados no sentido. (ver anexo 7.8).
Também como, o jornal “adversário”, manteve a política do silêncio. Silêncio que seguiu uma outra
direção. O CP noticiou apenas que dois engenheiros que construíram a obra iriam responder processo. No
texto Caso Camará: Murilo e Soares vão responder por homicídios culposos, as informações são baseadas
nos documentos da justiça. A verdade sobre os culpados, no CP, é de que dois engenheiros das empresas vão
responder por homicídios culposos e que cinco ações civis públicas foram impetradas para um ex-secretário
do governo José Maranhão e proprietários de empresas envolvidas na construção. O jornal se deteve apenas
a isso. Silenciou sobre as ações do governo para restabelecer a cidade, um dos destaques na enunciação do
JP.
Na notícia trazida pelo CP não havia informações sobre a conclusão das investigações feitas pela
CPI. O jornal traz, de forma breve a informação de que duas pessoas, incluindo o ex-secretário Francisco
Sarmento responderiam processo por irregularidades na aplicação de recurso destinados à execução da
obra.
Sobre Cássio Cunha Lima, o jornal se restringiu a anunciar que ele iria conceder uma coletiva a
imprensa, prestando conta das providências e ações das secretarias tomadas para ajudar a população de
Alagoa Grande. Bem diferente do JP, a imagem do governo não é de salvador, mas de “instituição” que tem
obrigação pública de dar satisfação do que foi feito.
A amplitude da abordagem também é constitutivo de sentido. O espaço dado pelo CP foi menor
porque as informações e o resultado da CPI não eram de interesse do grupo político que tinha ligações com
o Correio da Paraíba. Por isso tal restrição, sem informações transparentes de valores, nomes, detalhes sobre
a investigação e parecer oficial dos relatores. Todas essas informações foram exploradas, por sua vez, pelo
JP, pois interessavam àquele periódico, apresentá-las à sociedade. O resultado da CPI acrescentava mais
elementos na tentativa do jornal em, discursivamente, condenar o governador José Maranhão e seus aliados,
colocando como responsáveis por tal desastre, bem como eximir o governador Cássio Cunha Lima de
qualquer responsabilidade, elevando sua figura a salvador e redentor daquela cidade destruída pela
irresponsabilidade de um grupo político. Depois de um ano estavam contadas as “histórias de Camará”, com
verdades, formações discursivas e formações ideológicas, com estratégica movência dos sentidos, uma
reescrita de história a partir de sujeitos que ocuparam (ocupam) posições sociais e lugares sociais marcados
por uma regularidade de uma dizer defensivo-denunciador: o JORNAL e seu jornalismo.
À guisa de uma conclusão
O final é o devir. Um efeito que acaba e recomeça. De repente, ouviu-se, por
telefone, a primeira versão da história da tragédia de Camará. "É uma enchente, a cidade está inundada, uma
ponte foi levada pelas águas e está tudo escuro", disse a voz do outro lado da linha. Alguém, qualquer
pessoa você, Severino, Antônio, Beatriz. Alguém que percebeu uma anormalidade. Era mais uma das
"coisas do mundo", um fato, um acontecimento. Era mais uma história que precisava ser contada e ganhar o
universo do discurso.
Os jornais se incumbiram disso; trouxeram as versões, o início de operações históricas, o que
Lacouture descreve como um processo de “verificação, delimitação exclusão, coleção, e supõe a intervenção
de um mínimo de meios técnicos de mediação, caneta, papel, cola pastas, documentos” (Lacouture, 2001,
p.216). Palavras, expressões e enunciados, alocadas em determinados espaços, em um momento específico e
interferido por um indivíduo transformado em sujeito, que range à procura do fazer sentido.
A opacidade da linguagem, quando vista à luz da história, da memória, do tempo e de todo um
contexto social, nos parece menos opaca. Isso nos fez perceber, então, que a cada manchete, palavra, frase
de efeito, foco dado a cada fato, ou mesmo o silêncio e omissão de informações, uma nova verdade
discursiva foi desenhada, um novo real é concebido. São as células que formam esse campo peculiar das
formações discursivas; são brechas deixadas pelo sujeito do discurso, o jornalista, que reconstruiu os
sentidos e modificou os dizeres.
Durante todo o processo de construção do material jornalístico, os dois jornais não fugiram do ritual
da verdade fiel (produto da vida real); imprimiram suas histórias a partir de bases reais. Sob a ordem do
discurso, o sujeito-jornalista constituiu o seu desejo de verdade. Os jornais ditaram as regras. nos coube
perceber que as palavras e as suas colocações não são neutras, em um simples ato de informar a verdade
com neutralidade, imparcialidade e impessoalidade. Os sentidos estão postos e as determinações do sistema,
seja no Jornal da Paraíba, ou no Correio da Paraíba, interferiram não só na colocação do sujeito-jornalista,
mas no seu assujeitamento diante daquele fato, que valeu manchetes de primeira página.
Um desastre daquele tamanho não seria mais uma história do cotidiano, banal e repetível. Morreram
pessoas, desapareceram outras, sonhos e projetos foram ceifados. O impacto na vida de uma comunidade
que creditava àquele fato jornalístico como um fato histórico. E seria, inevitavelmente, o jornalismo e seus
agentes os que primeiro materializariam sentimentos, vozes, testemunhos e cenários. De resto, ficaria a
cargo da memória social a reinvenção daquele incidente. Os repórteres seriam os "historiadores do instante",
roubando um termo de Albert Camus (apud Lacouture, 2001, p. 218), pois como um historiador do
momento, os jornalistas de cada empresa de comunicação iriam fazer a identificação do seu objeto,
classificar, montar, intervir, interferir e analisar, com uma enorme diferença: seu tempo seria breve, mas o
seu lugar seria invejável.
Ao invadir o caminho da produção dos sentidos no universo discursivo do jornalismo, verificamos
que verdades são ditas todos os dias e que as histórias ou “estórias” são resultado de um processo de
construção, marcado pelo poder de articulação dos signos lingüísticos e pela relação dele com o mundo, com
o momento, com o sujeito. Mais uma vez demos congratulações àqueles que entenderam o papel do sujeito
na linguagem; deram a ele, contraditoriamente, o posto de assujeitado, de origem do dizer, homem da
técnica da resistência. Este trabalho nos serviu também para isso.
O nosso trabalho nunca teve o intuito de dizer que os jornais mentem, que inventam, manipulam
informação, que são um espelho torto de nossa realidade. A celeuma provocada focou as possibilidades de
usar a linguagem em benefício de uma vontade de verdade. A vontade que os jornais imprimem, em
congruência com as formações discursivas e formações ideológicas que lhes são correspondentes.
O trabalho jornalístico não se faz com apenas um par de mãos, um fato e uma cabeça. O processo de
produção de sentido, no jornalismo, é formado por vários sujeitos que utilizam o conhecimento técnico da
linguagem, numa dada formação e interpelados por uma ideologia, para imprimir a visão diante de um fato,
que, como vimos, pode ser um desastre, uma morte, um acidente, uma voz, um discurso de alguém que
possua uma representatividade. Os sujeitos-jornalistas o operadores das estratégias discursivas e foram
nelas que adentramos para entender como os jornais, sob a égide, do status de verdade absoluta”,
representação fiel da realidade, cravam os dizeres de grupos na memória coletiva.
O interdiscurso é um desses instrumentos de movência e estabelecimento de sentido dos enunciados.
Ele é a própria heterogeneidade constitutiva do discurso. Que faz o dizer entendido, o dizer nascido de
várias vozes e lugares que se faz entender em um momento específico. E se o interdiscurso permite esse
efeito de formação, foi no intradiscurso que percebemos, com evidência, essa relação, às vezes, destoante,
amigável e até fraterna dos discursos, dependendo de como se estabeleça essa relação. O seu efeito de
articulação permite a união de sentidos que pareciam distantes, mas que, quando movidos, completam-se. O
intradiscurso, para o jornalismo, tem uma função estratégica, limite: a retomoda do Outro legitima o dizer
do Eu, evidencia a essência do jornalismo, a condição de sua existência: a representação da verdade
jornalística, da realidade. Afinal, nesta prática, representar a realidade, é dizer o verdadeiro.
Por isso, já não é mais perigoso afirmar que interdiscursividade é constitutiva do jornalismo e a
instradiscursividade é instrumento da prática jornalística. É delas que nascem os dizeres novos, de velhos e
deslocados dizeres. Mais do que isso, interdiscurso no intradiscurso permite o jornalismo dizer a verdade
que lhe é conveniente, estabelecer a sua vontade de verdade, contar histórias em posições que não
deslegitimam essa prática; ao contrário, faz nascer dizeres múltiplos essenciais na construção da história
heterogênea, descontínua, como defende Foucault (2005a).
Ao lado desse dizer também se faz silêncio. E que silêncio! Diante de tantas histórias”, tantas
retomadas discursivas, títulos, manchetes, palavras, enunciados, discursos autorizados, ainda foi possível
fazer muito silêncio. O silêncio a serviço do sujeito e, claro, de sua interpelação. Às vezes para não dizer
algo, às vezes para reafirmar o que está dito. No seu vazio constituinte, ele se fez preencher por uma política
de silenciamento. E, nesse jogo de dizer e se calar, os jornais se fizeram significar.
O Jornal da Paraíba e o Correio da Paraíba travam um duelo ideológico utilizando as mesmas armas:
os enunciados. A diferença estava na forma de usar esses artefatos. Aliás, o discurso sempre foi um
instrumento de guerras. Montam-se heróis, constroem-se mitos, alimenta-se a morte. Ou melhor, os sujeitos,
na sua capacidade de assujeitamento e resistência, montam em determinadas condições de produções, os
discursos das guerras de verdades. Para ao JP, ou para o seu público-leitor assíduo, a história de Camará tem
a seguinte sinopse: Essa é a história de uma barragem que foi mal construída, em um local inapropriado e
que tinham falhas geológicas e com falcatruas monetárias. Tudo foi confirmado pelo MPF e MPE que
investigaram o caso. O governo que construiu a obra não fiscalizou a execução e na primeira enchente uma
das ombreiras se partiu. O desastre que teve um saldo de cinco mortes e centenas de desabrigados foi
amenizado pela ão do governo atual que indenizou famílias, comandou campanhas de solidariedade e
reconstruiu a cidade e a cidadania.
Já para o CP, a sinopse da história de Camará, baseada nos enunciados dispersos em cada edição, é a
seguinte: Essa é a história de uma Barragem que foi construída com objetivo de beneficiar milhares de
pessoas. Mas, por omissão, o governo da época não fez manutenção. Isso ocasionou um desgaste e a
ombreira cedeu. Cinco pessoas morreram, outras ficaram desaparecidas, muitas pessoas perderam tudo
que construíram durante toda vida. Mas a sociedade se mobilizou, doou alimentos, roupas e mantimento, a
cidade foi reconstruída com a força do seu povo. O MPF e MPE pediram o indiciamento de engenheiros
por homicídio culposo e ex-secretários por improbidade administrativa.
Vemos que não é a mesma história, não tem os mesmos personagens principais, os mesmos
figurantes, porém foram construídas no mesmo local, no mesmo tempo e foram os sujeitos desse tempo,
mergulhados em formações ideológicas, os responsáveis por todos aqueles dizeres materializados. Nenhuma
dessas sinopses está escrita nos jornais, com essas palavras. Agora fazem parte da memória dos leitores de
cada periódico, fazem parte da memória social do povo paraibano e estão cristalizadas nos enunciados que
ganharam forma e sentido nos dois jornais. Na dispersão da página, das edições, do tempo, os enunciados
mantinham a regularidade temática e de pensamento que lhes permitiam fazer parte de uma mesma
formação discursiva. Os seus sentidos lhes inseriam em uma formação ideológica. Na defesa do
governador Cássio Cunha Lima, o JP manteve a regularidade enunciativa que permitiu ao leitor identificar,
daquele ponto de vista, uma verdade discursiva, anunciada dia-a-dia, a cada enunciado. Da mesma forma, na
defesa do governador José Maranhão, o CP estabeleceu uma linha de formação de discursos que permitiu o
leitor se identificar com uma outra verdade.
Qual verdade ficou? Será que as duas? Sim, duas verdades. Os jornais só formam e continuam a ser
mais um operador da construção da história de Camará e cabe ao responsável por contar essa história
considerar a heterogeneidade dessa produção, afinal, como afirma Foucault (2005) por trás de umas
histórias, outras se estabelecem.
O “historiador” jornalista se apodera dos fatos relatados via jornal, enquanto documento e, na
montagem do seu dizer, de sua discursivização, os transforma em monumentos que registram a história de
Camará, segundo um posicionamento sócio-ideológico, que identifica cada jornal e cada sujeito-jornalista.
Uma história de políticos culpados, onde sujeitos que se constituem como políticos que se objetivam por
discursos ou práticas discursivas numa perpetuação que se repetirá em quantos governos se constituírem e
quantas novas histórias surgirem para serem re-escritas ou “reinventadas”.
Enquanto leitor do jornalismo paraibano, mais especificamente no que se refere ao desastre da
barragem de Camará, pensamos ter dados passos leitores coerente e ter discutido sobre o discurso
jornalístico, a reescrita da história e sobre as verdades/verdades que reescreveram entre duelos e diálogos a
história de Camará. Caso nossa leitura tenha sido compreendida mesmo à luz de discordâncias e
concordâncias, acreditamos ter alcançado nosso objetivo maior e contribuído para os estudos da Análise de
Discurso e com um olhar-leitor plural do jornalismo. Essa é a nossa história, nossa verdade. Que venham
então outras histórias e outras verdades.
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