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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
KEILA DA SILVA FRAGOSO
CORPO E VOZ, LIVRO E ESCRITA
nas práticas de leitura da Biblioteca Livro em Roda
João Pessoa
2007
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1
KEILA DA SILVA FRAGOSO
CORPO E VOZ, LIVRO E ESCRITA
nas práticas de leitura da Biblioteca Livro em Roda
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Letras do Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes, da Universidade
Federal da Paraíba, como requisito parcial para
a obtenção do grau de Mestre em Letras.
ORIENTADORA: Prof. Dr. Socorro de Fátima Pacífico Barbosa
CO-ORIENTADORA: Prof. Dr. Maria Ester Vieira de Sousa
João Pessoa
2007
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2
Dados Internacionais da catalogação na publicação (IBICT)
F811c Fragoso, Keila da Silva
Corpo e voz, livro e escrita nas práticas de leitura da
Biblioteca Livro em Roda / Keila da Silva Fragoso · –
João Pessoa, 2007.
112 f : il. ; 30cm
Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade
Federal da Paraíba, 2007.
1 Biblioteca Livro em Roda. 2 Práticas de Leitura.
3 Promotora de leitura. 4 Literatura Infanto-juvenil. I Título
CDU 82-94
3
KEILA DA SILVA FRAGOSO
CORPO E VOZ, LIVRO E ESCRITA
nas práticas de leitura da Biblioteca Livro em Roda
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Letras do Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes, da Universidade
Federal da Paraíba, como requisito parcial para
a obtenção do grau de Mestre em Letras.
Aprovada em ___ de ___ de ______
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Prof. Dr. Socorro de Fátima Pacífico Barbosa
Orientadora (Universidade Federal da Paraíba)
_____________________________________________
Prof. Dr. Maria Ester Vieira de Sousa
Co-orientadora (Universidade Federal da Paraíba)
_____________________________________________
Prof. Dr. Francilda Araújo Inácio
Membro (Centro Federal de Educação Tecnológica da Paraíba)
_____________________________________________
Prof. Dr. Maria Claurênia Abreu de Andrade Silveira
Suplente (Universidade Federal da Paraíba)
4
Aos leitores e leitoras da BLR com quem
aprendi muito dos livros, de gente e da vida,
DEDICO.
5
AGRADECIMENTOS
Às Promotoras de Leitura Edna de Sousa, Bernadete Marinho e Helioeny Carvalho pela
partilha de histórias lidas e vividas;
Às fundadoras da Associação Educativa Livro em Roda, Anne Ceulemans e Tereza Cristina
de Brito pela acolhida inicial;
À minha orientadora Professora Socorro Barbosa que desde o tempo da graduação instigava
em mim o desejo pelos estudos, pela pesquisa, mostrando-me caminhos e possibilidades. Sou
grata pela sua orientação e pelas palavras de encorajamento;
À minha co-orientadora Professora Ester Vieira pelas suas preleções, leituras, correções e pela
sua postura ética;
Às amigas Moama Lorena e Bernardina Freire, companheiras do mestrado, colegas de
disciplinas pela partilha através de conversas, telefonemas, e-mails, minimizando minhas
angústias, ansiedade, insegurança e cansaço que por vezes insistiam em existir em minha
caminhada. Também sou grata a elas pelos momentos de descontração, pelas risadas, pela
amizade;
Aos demais colegas de disciplinas pelas discussões teóricas e partilha de experiências que
muito contribuíram para meu amadurecimento intelectual;
Aos professores da Pós-graduação em Letras que me guiaram nas leituras, discussões,
reflexões, questionamentos no decurso das disciplinas, possibilitando meu caminhar enquanto
aluna/pesquisadora;
Ao meu noivo, Walter Valentim, por perceber os momentos de se distanciar, deixando-me às
voltas com a dissertação; e pela sua doce presença que me renovava as forças;
À minha mãe, Ilza Fragoso, pelo seu exemplo de dedicação aos estudos, de força de vontade e
de auto-credibilidade. Sou tão grata quanto orgulhosa!
Ao meu pai, Cecil Manoel, pelo conforto material, conselhos e exemplo que possibilitaram
meus estudos;
As minhas irmãs Leila e Sheilla e ao meu irmão Cecil pela partilha do computador, por
relevarem meus momentos de impaciência, por entenderem minha ausência e meu isolamento.
Sou grata também pelas suas expressões de carinho e de amor incondicional.
6
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff,
levou-o para descobrir o mar.
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas,
esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas
alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava
na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar e
tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E
quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando,
pediu ao pai:
– Me ajuda a olhar!
(Pescadores de vida – Eduardo Galeano)
7
RESUMO
Este trabalho analisa as práticas de leitura da Biblioteca Livro em Roda, um programa de
leitura que há 10 anos realiza atividades junto aos alunos da Educação Infantil à primeira fase
do Ensino Fundamental de escolas públicas situadas na zona rural do município de Conde –
PB. Tem como objetivo, discutir as práticas de leitura da Biblioteca Livro em Roda norteadas
pelo discurso sobre a leitura e a imagem de leitor por ela elaborados. O corpus desta pesquisa
é constituído pelos Diários de Bordo em que constam as observações e as vivências
decorridas no âmbito da Biblioteca no período de agosto de 2000 a dezembro de 2005, bem
como pelos registros escritos dos seus leitores. Apresenta como resultado a importância da
função mediadora que a Promotora de Leitura exerce entre os leitores e o livro. O trabalho
enfatiza, sobretudo, a performance da Promotora de Leitura, pois conclui que este é o
elemento que garante o êxito do trabalho da Biblioteca enquanto instituição que se propõe a
formar leitores.
Palavras-chave: Biblioteca Livro em Roda. Práticas de Leitura. Promotora de leitura.
Literatura Infato-juvenil.
8
ABSTRACT
This work analyzes the practices of reading in the Library “Livro em roda”, a program of
reading that since ten years ago has carried though activities with the students of Infant
education from the fundamental education of the public schools situated in the country side in
the small town of Conde – P.B. It has as a mean goal to discuss the practices of reading of the
library cited above using the discuss about reading and the image of the reader by it
elaborated. The corpus of this research is constituted by the target log book where the
comments and the experiences are lived in the scope of the Library in the period of August –
2000 to December – 2005, and also the registers written by its readers. We presented as result
the importance of the mediating function that the reading promoter exerts between the readers
and the book. This work emphasizes over all the performance of the reading promoter, we
conclude that this element guarantees in fact the success of the work in the Library as an
institution which forms readers.
Key words: Library “Livro em Roda”. Reading pratice. Reading Promoter.
Literature Infant-juvenile
9
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Foto 1 –
Fachada da Escola Regina Gomes de Almeida em Capim-açu ................... p.16
Foto 2 –
Facha da Escola Maria da Penha Acioly em Pituaçu ................................... p.17
Foto 3
Fachada da Escola em Mata da Chica II, tendo ao lado, estacionada, a
caminhote da Biblioteca Livro em Roda ......................................................
p.18
Foto 4 –
Promotora de Leitura usando a Caixa de Histórias em sua performance ..... p.27
Foto 5 –
Caixas de livro que compõem o kit de empréstimo ..................................... p.30
Foto 6 –
Usuários da Biblioteca Livro em Roda na fila do empréstimo .................... p.31
Foto 7 –
Promotora de Leitura e leitores/expectadores em um
momento performático .................................................................................
p.35
Foto 8 –
Usuários escolhendo livros dentre os do acervo da caixa vermelha ............ p.57
Foto 9 –
Leitora/usuária folheando o livro, avaliando-o para um
possível empréstimo .....................................................................................
p.72
10
LISTA DE SIGLAS
ABRALIC – Associação Brasileira de Literatura Comparada
AELER – Associação Educativa Livro em Roda
BLR – Biblioteca Livro em Roda
CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
FNLIJ – Fundação Nacional do Livro Infanto-juvenil
IPTR – Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana
ITR – Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural
PIBIC – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
PL – Promotora de Leitura
PROLER – Programa Nacional de Incentivo à Leitura
UFPB – Universidade Federal da Paraíba
UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância
11
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO ............................................................................................ 12
2 O LER E O CONTAR NAS PRÁTICAS DE LEITURA
DA BIBLIOTECA LIVRO EM RODA ......................................................
23
2.1 A Promotora de Leitura: quem é essa “mulher” que empresta a voz ao
texto?...............................................................................................................
24
2.2
Rotina de trabalho das Promotoras de Leitura ......................................... 29
2.3
A performance .............................................................................................. 32
2.3.1
As técnicas utilizadas pelas Promotoras de Leitura na performance ............ 37
2.4
Repertório, performance e recepção ........................................................... 39
3 BIBLIOTECA LIVRO EM RODA: espaço, discurso e
práticas de leitura .........................................................................................
47
3.1
Biblioteca Livro em Roda: um lugar em um não-lugar? .......................... 47
3.2 Discurso sobre a leitura e imagem de leitor elaborados
pela Biblioteca Livro em Roda ....................................................................
51
3.3 Em meio aos olhares, aos discursos e às interdições,
estratégias de leitura e astúcias de leitores .................................................
61
4 ESCRITOS DE LEITORES: revelando leitores e
práticas de leitura .........................................................................................
67
4.1
Livros: suporte de leitura e de marcas de leitura ...................................... 71
4.2
Cartas a Ruth Rocha e a Ana Maria Machado ......................................... 78
4.2.1
Comunidade de leitores .................................................................................. 80
4.2.2
Leitura: vivência coletiva................................................................................ 86
5
CONCLUSÃO ............................................................................................... 92
REFERÊNCIAS ........................................................................................... 96
OBRAS DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL CITADAS ............... 99
ANEXO A – CÓPIA DO FOLDER DA CAMPANHA DE
ARRECAÇÃO DE LIVROS REALIZADA PELA AELER .........................
101
ANEXO B – ENVELOPE E FICHA DE EMPRÉSTIMO ............................ 102
ANEXO C – TEXTOS BIOGRÁFICOS DAS ESCRITORAS
RUTH ROCHA E ANA MARIA MACHADO .............................................
103
12
1 INTRODUÇÃO
De repente, os homens atravessaram o tempo, por túneis, pirâmides,
caravanas, mares e espelhos. E trouxeram histórias nas linhas das mãos. De
todas as partes veio sempre alguém com uma história na boca, saindo pelos
olhos, derramando-se pelo corpo...
Celso Sisto
Um dos grandes discursos recorrentes entre educadores e intelectuais é o da leitura
como uma prática imprescindível na formação social e intelectual do ser humano. Se antes,
até meados do século XVIII, a leitura era percebida como prejudicial à vista, à saúde mental,
física e social, no final do século XIX aos dias atuais, ela foi se configurando como “tábua de
salvação” para os que pretendem construir e se constituir em uma sociedade crítica, criativa e
informada (ABREU, 2000; MARQUES, 2006). Paralelo ao discurso do “elogio à leitura” e,
contrapondo-se a ele, encontramos o discurso da falta, expresso no lugar-comum que
brasileiros não gostam de ler, da dificuldade de se formar leitores, do livro como objeto
economicamente inacessível etc. Em meio a esses discursos, no Brasil, nos últimos trinta
anos, muitas ações, quer de órgãos públicos, quer de iniciativa privada ou civil, foram
empreendidas no intuito de democratizar e promover a leitura. A Escola, juntamente com a
Biblioteca (escolar ou não), foi o palco consagrado para respaldar o discurso do elogio à
leitura, bem como inserí-la em seu fazer cotidiano (PATRINI, 2005).
Dentre tantas iniciativas brasileiras, destacamos uma para ser objeto de investigação
deste trabalho: o Programa de Leitura da Biblioteca Livro em Roda empreendido pela
Associação Educativa Livro em Roda, órgão civil, que atua em um espaço considerado estéril
à leitura: a zona rural, bem como em um saturado: a Escola. Nesses espaços, a Biblioteca
Livro em Roda (BLR) construiu seu fazer exitoso que prioriza o caráter lúdico e livre da
leitura junto a alunos da Educação Infantil à primeira fase do Ensino Fundamental
1
das
1
No período em que se deu a coleta de dados para a presente pesquisa, 2000 a 2005, o Ensino Fundamental
ainda vigorava no regime dos oito anos. Em 2006, sob o regimento da Lei nº 11.274, o Ensino Fundamental
passou a ter nove anos de duração, tendo os sistemas de ensino o ano de 2010 como prazo final para implantá-lo.
No decorrer deste trabalho nos referiremos às séries do Ensino Fundamental, tendo em vista seus oito anos de
duração.
13
escolas públicas situadas nas zonas rurais dos municípios de Conde e Assunção
2
, ambos do
estado da Paraíba.
Entretanto, ao trazermos à baila a leitura, tendo como suporte o livro, não podemos
desprezar as experiências vivenciadas pelo ser humano através das narrativas oralizadas.
Essas duas práticas de leitura (leitura aqui no sentido mais amplo, no sentido de atribuir
significado), a escrita e a oralizada, foram se construindo e se intercambiando no decorrer da
história da humanidade e, juntas, constituem algumas práticas dentro do atual discurso sobre a
leitura (PATRINI, 2005).
Com relação às narrativas oralizadas, temos que desde os tempos remotos, o ser
humano se utiliza delas como meio de integração entre seus pares e de preservação dos
valores, das crenças e do modo de viver (XIDIEH, 1993). No decurso do tempo, essa prática
foi sofrendo influências da escrita, da industrialização, da urbanização e dos meios de
comunicação de massa, dentre outros.
Com a escrita, a possibilidade de registrar o repertório cultural e o conhecimento
humano, anteriormente propagado pela voz através da prática da oralização, se fez de modo
mais sistemático. A escrita então fixa, preserva e eterniza, por assim dizer, a palavra.
Diferentemente do texto oral que tem por característica a movência, a escrita pressupõe um
aparente congelamento e fixidez (ZUMTHOR, 1997).
Embora, com características diversas, a oralidade e a escrita não se opuseram.
Segundo Zumthor (2001), a Europa medieval foi palco de apresentações de cantores,
intérpretes, poetas, menestréis, que, embora compusessem suas obras e as registrassem através
da escrita, era à vocalização que eram destinadas. Tanto que, em muitas obras, eram usadas
expressões, evocando ouvintes como receptores do texto escrito. Até então, o acesso ao
código escrito era muito restrito. Somente depois da Reforma Protestante e da invenção da
imprensa é que a escrita foi se popularizando, mas somente no século XIX é que se deu a
alfabetização de maneira mais universal, tendo a Escola como a principal responsável pela sua
divulgação (CHARTIER, 1991). A narrativa também era veiculada pela escrita, mas a prática
da oralização ainda era muito evidente, expressa nos saraus e nas sessões de leitura oralizada
(CHARTIER, 2000; MANGUEL, 1999). A escrita não suplantou nem substituiu a oralidade
nas práticas narrativas, apenas veio juntar-se a ela.
Essas práticas narrativas mantiveram-se, durante muito tempo, ligadas ao mundo do
trabalho. Enquanto as mãos trabalhavam, promoviam-se momentos de audição. Na Europa
2
Na presente pesquisa, nos ateremos ao trabalho desenvolvido pela BLR no município de Conde.
14
medieval, enquanto as fiandeiras, com suas rocas, fiavam a lã ou o algodão, contavam-se
histórias para distrair a mente e amenizar a monotonia dos gestos repetitivos no trabalho. Em
época mais recente, no Brasil do século XX, por ocasião da debulha do milho, do feijão, do
descascar da macaxeira, promovia-se contação de história e, para tal atividade, era chamado o
contador mais famoso da redondeza. Este, por sua vez, não recebia pelos préstimos, apenas
usufruía de um cafezinho ou bolo servido a todos e da comunhão entre seus pares (LIMA,
1985).
Na industrialização temos um exemplo, segundo Manguel (1999), no século XIX: as
fábricas de charuto de Cuba tinham um lector, uma pessoa paga para ler em público.
Enquanto os operários enrolavam tabaco, o lector lia de romances a notícias de jornais.
Contudo, com a idéia de produtividade, estimulada pelo capitalismo, passou-se a acreditar que
os momentos de audição apenas atrapalhariam a concentração no trabalho e prejudicariam a
produtividade.
Com o advento da indústria, surgiram os centros urbanos, caracterizados por
aglomerados de moradias e de pessoas apressadas, ocupadas e isoladas. Características de um
ambiente nada propício à narrativa oral para a qual se fazem indispensáveis as relações
comunitárias (LIMA, 1985). Entretanto, a necessidade do ser humano pela narrativa e pela
ficção foi até certo ponto amenizada pela televisão e pelo rádio que rechearam suas
programações com novelas, seriados e filmes.
“As cidades são filhas da Escrita”, assim afirma Zumthor (2001, p. 91), e nelas há um
predomínio de texto escrito veiculado por livros e por jornais que viabilizam aos citadinos o
acesso às últimas notícias e informações.“Se a arte da narrativa é hoje rara”, afirma Benjamin
(1987, p. 203-204), “a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio.”
Benjamim reclama da escassez da arte da narrativa, que, para ele, é constituída das
experiências coletivas. A urgência por novas informações apaga as de ontem para dar espaço
às novas que chegam; ademais, a informação requer explicação dos fatos, ao contrário da
narrativa que pressupõe a não explicação. Para Benjamin, a informação é efêmera,
diferentemente da narrativa que não se entrega ao tempo, ao contrário “ela conserva suas
forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver”.
Lima (1985) também constatou a escassez da prática narrativa na cidade de Crato,
Ceará, no início da década de 1980. Segundo os narradores por ele entrevistados, isso se deu
pela oferta de entretenimento veiculada pelos programas televisivos, pela desvalorização da
sabedoria do ancião, pela vida corrida controlada no relógio e pelas mudanças nas técnicas
agrícolas que, se antes favoreciam a comunhão e as conversas – como nas ocasiões em que se
15
debulhava o feijão – passaram a ser realizadas por um mínimo de pessoas. Lima observou que
a escassez de ocasiões sistemáticas de serões de contos enfraqueceu a memória dos
contadores, diminuindo-lhes o repertório.
Paralelo a essa escassez da prática narrativa nas comunidades urbanas e rurais, baseada
na tradição e na transmissão oral, outro movimento se deu, mas esse, nos centros urbanos.
Patrini (2005) observou que nos idos de 1980, no Brasil, a prática de contar histórias começou
a fazer parte do cotidiano das bibliotecas e das escolas, entretanto, tendo como base as
histórias transmitidas pela escrita, mesmo as de tradição oral. Com a “hora do conto” o
objetivo principal de bibliotecários e professores era aproximar a criança do livro. Para tanto,
fizeram uso da voz e do corpo, reproduzindo, de certa forma, os serões dos contadores de
histórias tradicionais.
Posteriormente, graças a pesquisas nessa área e empreendimentos de fundações, a
exemplo da Fundação Nacional do Livro Infanto-juvenil – FNLIJ, instituições e iniciativas
públicas, “novas abordagens das práticas orais têm se tornado realidade, entre as quais as
relacionadas à arte de contar” (PATRINI, 2005, p. 22). A “hora do conto” nas bibliotecas e
escolas passou então, a ser direcionada pelo prazer e pela gratuidade que o conto oferece.
Extrapolando os muros da Escola e da Biblioteca, essa prática narrativa fez-se também em
outros lugares na voz e nos gestos não mais só dos professores e bibliotecários, mas de outros
profissionais, como cantores, atores, artistas plásticos, dentre outros. Esse movimento do
ressurgimento das práticas narrativas, da formação de novos contadores e da ampliação dos
lugares onde se dão a contar e a ouvir narrativas, é denominado por Patrini (2005) de
“renovação do conto”, em que um novo contador se constrói tendo, na oralidade e na escrita,
elementos para seu repertório e atuação. Esse movimento, segundo Patrini, teve seu início na
França pós maio de 1968, com a tomada da palavra, por conseguinte da liberdade, do poder e
da livre expressão por parte das camadas populares. Desse movimento, resultou a renovação
da arte de narrar, em que artistas urbanos, apropriando-se de uma tradição popular e
campestre, empreenderam um novo movimento artístico que teve ressonância em outros
países.
Sisto (2001) observa que nos centros urbanos brasileiros, ao final dos anos 80 do
século XX, o contador de histórias se multiplicou; em vez de um, tinham-se muitos que
organizados em grupos e remunerados, passaram a contar histórias. Como exemplo desses
grupos, cita o Morandubetá (RJ), Confabulando (RJ), Escuta, sô! (MG), Mexe Angu (SP),
dentre outros. Essa prática, denominada por Sisto de “BOOM da Arte de Contar História”,
16
iniciada no sudeste do Brasil, logo tomou todo o país, e a Hora do Conto virou Sessão de
Contos.
Em meio a esse movimento de renovação – iniciado no ambiente escolar e nas
bibliotecas, expandido-se posteriormente em outros espaços –, ao discurso de elogio à leitura
e ao lamento à falta de leitores, surge a Biblioteca Livro em Roda, objeto de investigação do
nosso trabalho.
A Biblioteca Livro em Roda (BLR) é um programa de leitura e atividade principal da
Associação Educativa Livro em Roda (AELER), organização não governamental que tem por
missão “contribuir com a formação de cidadãos críticos e atuantes para uma sociedade justa e
democrática, incentivando e promovendo a leitura, a escrita e a vivência comunitária,
prioritariamente junto a crianças e adolescentes, do campo” (ANEXO A). A história da
AELER tem início juntamente com a da BLR, pois a primeira surgiu para dar respaldo
jurídico à segunda.
Como tudo tem
um lugar (espaço
geográfico) para começar
ou para nascer, a BLR
também teve o seu: o
município de Conde,
litoral sul da Paraíba,
mais precisamente na
comunidade de Capim-
açu. As idealizadoras e
fundadoras da BLR,
Tereza Cristina Barbosa
de Brito e Anne
Ceulemans (ambas professoras do município), perceberam a precariedade do acervo de livros
de literatura infanto-juvenil disponível aos alunos das comunidades rurais e, verificando a
impossibilidade de implementar as pequeníssimas bibliotecas escolares que consistiam em
cestos de vime com alguns exemplares de livros, vislumbraram a possibilidade de formar uma
biblioteca que fosse comum às escolas rurais daquele município; uma biblioteca que chegasse
até seus usuários, uma biblioteca itinerante.
Para superar as primeiras dificuldades, as fundadoras tiveram o auxílio de amigos e
simpatizantes da idéia; dessa maneira, com a doação de alguns livros, alguns litros de gasolina
Foto 1. Fachada da Escola Municipal Regina Gomes de Almeida, situada
na comunidade de Campim-açu, onde a BLR iniciou suas atividades.
Fonte: acervo da BLR
17
e o carro de uma das fundadoras, a Biblioteca chegava à Escola Municipal Regina Gomes de
Almeida, situada na comunidade de Capim-açu, com pouco mais de 45 alunos matriculados
da Educação Infantil à primeira fase do Ensino Fundamental. Foi junto a esses poucos leitores
em Capim-açu que a Biblioteca tomou forma, nome e respaldo jurídico e legal com a
fundação da AELER, em 1997. O atendimento aos leitores se dava no horário oposto ao das
aulas; pouco depois, Teresa Cristina e Anne perceberam que era muito cansativo para eles
retornarem à escola no outro horário, quando deveriam estar na roça ajudando aos pais. Foi a
partir dessa percepção, que as fundadoras resolveram atender seus leitores em meio à rotina
escolar.
Com o saldo positivo dessa primeira experiência, a Biblioteca Livro em Roda passou a
ser convidada por outras escolas. Como a procura era grande, se fez necessário buscar novos
parceiros nesta empreitada; partiu-se então à busca de instituições financiadoras. Com muito
trabalho e persistência, a BLR teve seu primeiro parceiro financeiro: a Terre des Homes
3
que
garantiu recursos para parte de suas atividades; e contou também, com a colaboração da
Prefeitura Municipal de Conde que, ao dispensar a professora Teresa Cristina de sua atividade
docente, disponibilizou-a ao trabalho da BLR. Padres holandeses doaram uma caminhonete
S10, facilitando o atendimento da BLR às escolas mais distantes e de acesso dificultado pelas
estradas precárias.
Junto a muito trabalho, somou-se também o reconhecimento. Participando do III
Concurso Os melhores
Programas de incentivo à
leitura junto a crianças e
adolescentes de todo país
promovido pela Fundação
Nacional do Livro Infanto-
Juvenil e PROLER Nacional
em 1999, a BLR ganhou o
segundo lugar, o primeiro
seguido de muitos outros.
4
Em 2001, teve suas
atividades iniciadas em
3
Esta agência financiadora foi parceira da AELER no período de março de 2000 a setembro de 2006.
4
2001 – Menção Honrosa do Prêmio Itaú-Unicef “Educação e Participação”; 2004 – Moção de Aplauso da
Assembléia Legislativa do Estado da Paraíba.
Foto 2. Escola Municipal Maria da Penha Acioly, situada em Pituaçu.
Fonte: acervo da BLR
18
Assunção, no cariri paraibano, onde atualmente, uma funcionária atende a 250 alunos de
cinco escolas da rede municipal de ensino. No decorrer desta dissertação, nos ateremos a
investigar e a descrever as atividades desenvolvidas pela BLR no município de Conde no
período de 2000 a 2005. Nesse espaço de tempo, a BLR, atuante em Conde, contava com um
acervo estimado em 3000 livros, e uma equipe de cinco funcionárias que atendia,
semanalmente, a cerca de 2000 alunos matriculados na Educação Infantil à primeira fase do
Ensino Fundamental em 20 escolas e duas creches da rede municipal de ensino de Conde
5
.
É a Escola, o lugar eleito pela BLR para seu trabalho de leitura, mais precisamente as
situadas na zona rural. Passaremos então, em breves palavras, a descrevê-las. As 20 escolas
atendidas pela BLR situam-se em comunidades rurais, a saber: Caxitu, Utinga, Mituaçu,
Amparo, Pousada, Boa Água, Pituaçu, Gurugi, Barra de Gramame, Guaxinduba, Jacumã,
Tabatinga, Tambaba, Frei Anastácio, Mata da Chica I, Mata da Chica II, Garapú, Capim-açu,
Salsa e Paripe. As duas creches atendidas situam-se, uma na comunidade de Gurugi e a outra
em Jacumã.
Em sua maioria, os
prédios escolares são
formados por duas salas,
cozinha, despensa,
banheiro, diretoria e terraço
interno interligando as
dependências (apenas três
das 20 escolas têm um
número maior de sala de
aula – em média seis, e a
sala para professores). Das
20 escolas, 15 faziam parte
do Programa Escola Ativa
6
em que as salas são
organizadas em turmas multiseriadas. Alguns prédios escolares são improvisados, a exemplo
do da comunidade Mata da Chica II que, até a atual data, funciona em um dos galpões da casa
de farinha, e do situado no Assentamento Frei Anastácio que até início de 2004 funcionava
5
Dados de dezembro de 2005.
6
Programa do Governo Federal com proposta metodológica adequada para turmas multiseriadas das escolas
situadas em zonas rurais.
Foto 3. Escola localizada na comunidade de Mata da Chica II, onde
funciona em um dos galpões da casa de farinha. Ao lado da
escola/galpão, vê-se a caminhonete da BLR.
Fonte: acervo da BLR
19
em uma pequena casa emprestada pela associação dos moradores e que, em meados de 2004,
teve a conclusão do seu prédio no modelo padrão dos demais.
As comunidades onde situam as escolas atendidas pela BLR são de difícil acesso, quer
pela ausência ou escassez de transporte coletivo, quer pela precariedade das estradas
intransitáveis em épocas de chuva.
7
Todas as escolas estão localizadas na zona rural. Embora,
comunidades como Pousada, Gurugi e Jacumã apresentem um índice populacional mais alto
que o das demais comunidades, ainda permanecem as características rurais, no que se refere à
supremacia da agricultura familiar e ao estilo de vida. A Secretaria de Educação do Município
e a BLR reconhecem apenas como escolas urbanas as situadas no centro da cidade.
Entretanto, essa classificação entre o que é rural e o que é urbano em Conde é problemática.
Queiroz (1978) esclarece que a dicotomia campo/cidade vem sempre junto da
dicotomia agricultura/indústria. O movimento de urbanização tem relação com o
desenvolvimento econômico, tecnológico e industrial; e o rural estaria ligado à agricultura
rudimentar ou tradicional. O município de Conde não é marcado pela indústria nem pela
tecnologia. Seus moradores sobrevivem, em sua maioria, do trabalho com a natureza (plantio
e pesca) e de serviços prestados ao poder público. Desta feita, os moradores se dividem entre
os agricultores e pescadores e os funcionários públicos. Entretanto, todo o município,
inclusive seu centro “urbano” é dependente dos produtos do meio rural, quer como
alimentação quer como complemento de renda. Assim, podemos dizer que Conde é uma
sociedade agrária
8
, por entendermos que, no dizer de Queiroz (1978, p. 47), tem por
característica
a cidade como centro político-administrativo que organiza e domina o meio
rural, porém por outro lado é inteiramente dominada e delimitada por este,
já que dele depende estreitamente no que toca ao abastecimento [...] a
cidade é essencialmente consumidora dos produtos do campo; e este é
verdadeiramente o setor produtor.
Em Conde, um outro elemento, no que se refere ao rural e ao urbano, foi observado
por Sampaio (2002): o duplo movimento do rural sobre a cidade e da invasão do urbano sobre
o rural. O primeiro caso, do rural sobre a cidade, foi observado na presença das práticas
7
É recorrente nos relatórios da BLR a lista de escolas que no período das chuvas ficaram com o atendimento
comprometido, a exemplo das comunidades de Capim-açu, Mituaçu e Frei Anastácio.
8
Queiroz (1978) apresenta três configurações de organização social, sendo a primeira a sociedade tribal em que
inexiste a dicotomia rural e urbano; segunda, a sociedade agrária em que a cidade se constitui como centro
político-administratico dependente dos produtos do campo e, terceira, a sociedade urbana caracterizada pelo
desenvolvimento tecnológico e pela independência ao meio rural no que toca a produção em geral.
20
agrícolas dos citadinos que utilizam os jardins de suas casas como espaços para o plantio de
inhame, milho, feijão e macaxeira. No segundo caso, que se refere à invasão do urbano sobre
o rural, Sampaio cita os projetos urbanísticos que dividem os sítios e as fazendas em lotes, a
exemplo do Loteamento Vilaje Jacumã, que mesmo sendo adquiridos por veranistas, estes
permitem que seus “caseiros” continuem plantando seus roçados. Ademais, falta a esse
projeto urbanístico, planos de saneamento e abastecimento de água potável. Outro caso,
também da invasão do urbano, se deu na comunidade de Gurugi quando teve seu registro
territorial mudado de rural para urbano como manobra política de aumento de impostos, que
de ITR (Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural)
9
passou ao IPTU (Imposto sobre a
Propriedade Predial e Territorial Urbano). Entretanto, o cotidiano dos moradores dessa
comunidade é marcado pela agricultura familiar de subsistência.
Podemos então inferir que o município de Conde é majoritariamente rural, por
entendermos o rural enquanto modo de vida peculiar, marcado pelo trabalho fruto do
relacionamento do homem com o meio em que habita. A cidade de Conde então, configura-se
como centro político administrativo e não como centro urbano, pois este se constitui mediante
desenvolvimento econômico, tecnológico e industrial.
Na sede do município, podemos encontrar os espaços político-administrativos, como
prefeitura, secretarias municipais, a câmara de vereadores e sindicados. Também encontramos
igrejas (católicas e protestantes), cemitério, delegacia, mercado público, duas escolas
municipais, três estaduais, uma creche municipal, um ginásio de esporte, um campo de
futebol, escolas particulares de pequeno porte, um posto de gasolina, uma agência dos
Correios, um Caixa Eletrônico do Banco do Brasil, uma agência da Lotérica, uma agência do
Multibank, um hospital, um posto médico e a Biblioteca Municipal Rodolfo Augusto de
Athayde fundada na década de 1980, que atualmente conta com um acervo estimado em sete
mil volumes destinado a serviços de consulta e empréstimo.
Nesse espaço conflitante entre o que é urbano e o que é rural, a BLR entende o rural
como zona distante do centro político-administrativo do município. Por não contar com uma
equipe de funcionários suficiente para o atendimento a todas as escolas do município de
Conde, a BLR achou por bem priorizar aquelas situadas na zona rural, por perceber que a
localização destas dificulta o acesso à Biblioteca Municipal, como também acarreta um
isolamento das professoras e alunos.
9
A Constituição (art 153, § 4º), isenta do pagamento do imposto o proprietário de pequenas glebas rurais (que no
litoral nordestino se refere, segundo delimitação legislativa, à propriedade inferior a 30 hectares) que as explore
só ou com a família e que não possua outro imóvel.
21
Dentro do histórico da BLR, reconstruo o meu dentro dessa instituição. Meu primeiro
contato com a BLR, deu-se através do Projeto de Pesquisa “Viajando com a Biblioteca Livro
em Roda”, financiada pelo PIBIC / CNPq – UFPB, em que atuei como pesquisadora bolsista,
juntamente com Karla Lucena de Sousa, de 01 de agosto de 2000 a 31 de julho de 2001, sob à
coordenação das Professoras Socorro de Fátima Pacífico Vilar e Maria Ester Vieira de Sousa.
Encerrada a participação no Projeto como bolsista, por ocasião da minha conclusão de
curso, continuei na BLR, como voluntária, no atendimento aos leitores. Pouco depois, fui
contratada, exercendo o cargo de Promotora de Leitura e, posteriormente, o de Coordenadora
Pedagógica da BLR. Fiz parte de seu quadro de funcionárias até dezembro de 2005.
O trabalho que se segue teve seus dados coletados no decurso dos pouco mais de cinco
anos em que estive inserida no cotidiano da BLR, quer, inicialmente, como pesquisadora quer,
posteriormente, como funcionária. Agora, volto novamente à posição de pesquisadora em que
investigo, também, minha própria atuação. Assim, constituo-me como pesquisadora, bem
como sujeito dessa investigação. Nessa dupla identidade, pesquisadora/sujeito, procurei me
distanciar de mim mesma (se é que isso é possível); assim, como sujeito investigado, incluo-
me na coletividade dos agentes da BLR que, como pesquisadora, investigo.
O material que constitui o corpus foi delimitado a partir das atividades realizadas pela
equipe da BLR, como amostra real de seu fazer. Em nenhum momento, realizaram-se
atividades que visassem dar subsídio a essa investigação. Fazem parte do corpus as produções
escritas dos leitores da BLR, tanto as produções espontâneas, principalmente, os escritos
“clandestinos” nas contracapas dos livros, como as solicitadas pela BLR em suas atividades
10
com os leitores, entre as quais a escrita de cartas a escritores da literatura infanto-juvenil.
Também constituem o corpus os Diários de Bordo, assim denominados os registros
que fiz durante o período de 2000 a 2005. Esses registros constam de situações vivenciadas
por mim, inicialmente como pesquisadora e, posteriormente, como funcionária no âmbito do
trabalho da Biblioteca Livro em Roda. Além disso, constam relatos das demais integrantes da
equipe de funcionárias da Associação Educativa Livro em Roda, e depoimentos informais de
seus leitores.
O cerne dessa pesquisa são as práticas de leitura da Biblioteca Livro em Roda.
Pretendemos descrevê-las e analisá-las, partindo do pressuposto de que elas são direcionadas
segundo um discurso sobre a leitura e segundo uma imagem de leitor.
10
As atividades de escrita desenvolvidas pela BLR junto a seus leitores são uma prática esporádica, pois é a
leitura gratuita o norteador de suas atividades. Contudo, algumas leituras são seguidas de atividades de escrita,
que são apenas sugeridas, ficando o leitor à vontade para, se interessado, produzir seus textos no tempo e no
espaço físico que melhor lhe aprouver.
22
Que discurso então, norteia as práticas de leitura da BLR? E consequentemente, que
imagem de leitor ela elabora? O inverso também complementa nossas interrogações: quais as
representações formuladas pelos leitores da BLR sobre as Promotoras de Leitura (PLs), sobre
a Biblioteca Livro em Roda e sobre a leitura?
O aporte teórico que guiará nossas reflexões tem como pressuposto a leitura como
uma prática cultural, portanto social e histórica (CHARTIER, 1996). Para Chartier (1990, p.
16-17) “a história cultural tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes
lugares e momentos uma determinada realidade é constituída, pensada, dada a ler.” Assim, a
história cultural se constitui o estudo das relações entre representações e prática. A prática,
por sua vez não se supõe só um gesto isolado, supõe um gesto, uma prática historicizada pelo
sujeito que sofre interferências sócio-históricas, como nos alerta Chartier (1990). Será então
nessa perspectiva da história cultural que conduziremos nossas discussões no decorrer deste
trabalho.
Nossas discussões estão organizadas em três partes; na primeira, intitulada O LER E
O CONTAR NAS PRÁTICAS DE LEITURA DA BIBLIOTECA LIVRO EM RODA,
relatamos a rotina de trabalho da BLR junto a seus leitores; discutimos a representação que
estes elaboram sobre as PLs; descrevemos as técnicas e a atuação desta última no momento
em que dá voz ao texto; analisamos a reação do público leitor; e, problematizamos a relação
ler e contar, escrita e voz.
Em BIBLIOTECA LIVRO EM RODA: espaço, discurso e práticas de leitura
problematizamos o espaço físico e discursivo em que se insere a BLR no desenvolvimento de
seu trabalho, seu discurso sobre a leitura e a imagem que elabora de seu leitor/usuário.
Na terceira e última parte ESCRITOS DE LEITORES: revelando leitores e
práticas de leitura, investigamos os escritos dos leitores no intuito de conhecermos suas
práticas de leitura, sua relação com o texto escrito e com os demais leitores com quem
vivencia a leitura no âmbito do trabalho da BLR.
No decorrer deste trabalho, ao apresentarmos as citações teóricas, utilizamos a Fonte
Times New Roman e seguimos as orientações da ABNT NBR 10520 (2002) item 5.1 a 5.3.
Na apresentação das citações dos Diários de Bordo em que constam a performance da
Promotora de Leitura junto a seus leitores/expectadores fizemos uso da Fonte Arial; e nas
citações dos escritos dos leitores da BLR utilizamos a
Fonte Comic Sans MS. Tanto para
citações diretas longas como para as curtas, utilizamos o recuo de 4 centímetros da margem
esquerda, espaçamento simples e tamanho da Fonte 11.
23
2 O LER E O CONTAR NAS PRÁTICAS DE LEITURA DA
BIBLITOECA LIVRO EM RODA
Alheias e nossas
as palavras voam.
Bando de borboletas multicores,
as palavras voam.
Bando azul de andorinhas,
bando de gaivotas brancas,
as palavras voam.
Voam as palavras
como águias imensas.
Como escuros morcegos
como negros abutres,
as palavras voam.
Oh! alto e baixo
em círculos e retas
acima de nós, em redor de nós
as palavras voam.
E às vezes pousam.
(Vôo – Cecília Meireles)
A Biblioteca Livro em Roda (BLR) partiu do entendimento que o trabalho de leitura
vai além da disponibilização de livros para empréstimo. É preciso que haja movimentação do
acervo, no sentido de que seja apresentado aos leitores, através de empréstimos e
leitura/contação. Esta última é uma estratégia metodológica eficiente, pois ela permite que o
livro (suporte do escrito) seja apresentado, atribuindo-lhe uma função. Além de instaurar uma
prática regida não pela obrigação, e sim pelo interesse, pois as atividades desenvolvidas pela
BLR não são impostas aos leitores e sim oferecidas. Usufruem delas os interessados que,
através da experiência, descobrem-se apreciadores e leitores de histórias.
Partindo da idéia de que não se pode fazer uso do que não se conhece e nem se
experimenta, a BLR desenvolve leitura/contação como meio de apresentar o livro ao futuro
leitor. Tendo a Promotora de Leitura (PL)
11
como mediadora, os leitores folheiam o livro,
vêm suas ilustrações e escutam seus textos, considerando aqui a escuta como leitura. Só
11
Funcionária da AELER, responsável pelo atendimento aos leitores e usuários da BLR.
24
assim, depois de serem apresentados, é que lhes vêm o interesse (ou não) de tomar outros
livros por empréstimo, de ler outros textos, de participar como sujeito leitor da literatura
veiculada pelo suporte escrito.
2.1 A Promotora de Leitura: quem é essa “mulher” que empresta a voz ao texto?
O trabalho de mediação da PL vai além da vocalização do texto escrito, pois ela
imprime à sua leitura recursos da oralidade utilizados pelos contadores tradicionais
12
, como
gestos, olhares, expressões corporais, vozes, silêncios. Dessa feita, a vocalização do texto
escrito não se constitui pura leitura, mesmo que parta do escrito, nem somente contação
mesmo que sejam utilizados recursos da oralidade, haja visto que parte da vocalização do
escrito. Elementos de um e de outro coexistem na prática de leitura da PL ante seu público
que, por sua vez, se constitui tanto como leitores do escrito como ouvintes ou expectadores da
performance daquela.
A leitura da PL é muito mais que uma leitura expressiva, pois, na vocalização do
escrito, ela também se utiliza da memória e do improviso, como veremos adiante. Assim, a PL
transita entre a escrita e a oralidade. Sua performance é constituída tanto de sua leitura do
texto verbal e não verbal como de sua expressão corporal e vocal a partir do escrito. O texto
escrito é somente um ponto de partida para a leitura e para a contação. É na performance da
PL que a leitura, como expressão da escrita, e a contação, como expressão da oralidade, se
imbricam em um momento comum de realização. Por isso utilizaremos tanto o termo
leitura/contação como performance para definir a prática de leitura da PL ante seu público
expectador.
Na performance, é imprescindível a presença de um público expectador. Segundo
Zumthor (1997), a performance só se constitui como tal na presença do ouvinte, pois ele faz
parte dela tanto quanto o intérprete, a ele cabe a recepção que é ímpar. Conseqüentemente,
em contrapartida ao termo leitura/contação, também utilizaremos o termo
leitores/expectadores ou leitores/ouvintes para definir o público da PL, pois ele é constituído
por expectadores da performance ao mesmo tempo que por leitores a partir da vocalização e
expressão do escrito. O público alvo da BLR, além de leitores/expectadores, se constitui
também de usuários, no instante em que usufruem o serviço de empréstimo, assim como
também de leitores, pressupondo que eles lêem os livros que tomam por empréstimo.
12
Utilizamos o termo contadores tradicionais para nos referir aos contadores da tradição oral. (Cf. PANTRINI
2005).
25
Os sujeitos da BLR são denominados a partir do lugar e da função que lhes é atribuída,
assim o público alvo é constituído de leitores, usuários e também de alunos por ser a Escola
espaço discursivo e geográfico onde a BLR partilha seus sujeitos. Nomear sua funcionária
responsável pelo incentivo à leitura também não foi fácil, pois ela transita entre a biblioteca e
o espaço escolar, entre a oralidade e a escrita.
De início, até meados de 2003, as PLs eram denominadas e referidas em documentos
oficiais – como relatórios financeiros e de atividades prestados às agências financiadoras –
como Contadoras de História e/ou Educadoras. Entretanto, uma reflexão maior sobre o papel
de suas funcionárias fez com que a BLR adotasse o termo Promotora de Leitura, tendo em
vista que, segundo a AELER, suas funcionárias tinham como papel principal estimular, dar
acesso e promover a leitura, sendo a contação/leitura apenas uma estratégia. Além disso, a
nomenclatura Contadora não expressava com fidelidade as práticas de leitura de suas
funcionárias, pois dava uma margem a supô-las como contadoras tradicionais que utilizam
exclusivamente elementos da oralidade na narração das histórias; ou como contadoras que,
individualmente ou em grupo, promovem sessões de conto utilizando recursos de iluminação,
efeitos sonoros conseguidos com o auxílio da tecnologia, instrumentos musicais, e manejo de
outros objetos que não o livro.
Essa reflexão, quanto ao termo que melhor definisse as funcionárias da AELER,
surgiu quando elas passaram a ter a Carteira de Trabalho assinada. Como definir então sua
função? Nem Contadora de História, nem Promotora de Leitura consta na Classificação
Brasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho. A solução foi buscar dentre as profissões
registradas quais se adequavam às funções e às formações
13
de suas funcionárias. Então,
mesmo não desempenhando o papel de professoras, mas por trabalharem em uma instituição
educativa que permeia o espaço escolar, foram registradas como Professoras e,
posteriormente, como Auxiliares de Biblioteca. Nos outros documentos da AELER, exceto
nos trabalhistas, as funcionárias são referidas como Promotoras de Leitura.
Nenhum dos registros profissionais das funcionárias explicita, autenticamente, seu
papel na BLR. Contudo, uma outra nomenclatura se apresentou, desde o início da BLR,
permanecendo até os dias de hoje, e dentre tantas, ao nosso ver, é a que melhor traduz o
trabalho das funcionárias da AELER: Mulher do Livro, assim chamada as PLs pelos
leitores/usuários da BLR
13
Das cinco funcionárias que exerciam a função de PL de 2000 a 2005, quatro tinham formação superior, sendo
uma em Letras e três em Pedagogia, e uma com magistério de nível médio.
26
O objeto livro é o que as caracteriza, pois é por meio dele que se dá a relação entre
elas e os leitores e usuários. Que livro define essa “Mulher”? O que ela lê ou o que ela
empresta?
Uma experiência vivenciada por uma das PL nos dá uma pista. No ano de 2001, em
resposta às solicitações
14
de ex-usuários que, ao serem promovidos para a segunda fase do
Ensino Fundamental, não mais usufruíam dos serviços oferecidos pela BLR, esta desenvolveu
um trabalho de empréstimo de livros para os que cursavam da 5ª a 8ª série do Ensino
Fundamental. No entanto, o atendimento a esses usuários se restringia só ao empréstimo; a
leitura/contação da PL não era realizada devido ao horário escolar desse segmento de ensino
ser organizado em aulas de 50 minutos, impossibilitando a disponibilidade de 15 minutos para
a leitura/contação. Diferentemente dos da primeira fase do Ensino Fundamental, os alunos da
segunda fase não tinham “a hora” pré-determinada para escolher o livro; eles, então,
aproveitavam o intervalo entre uma aula e outra, uma aula vaga, o intervalo para o lanche ou o
término das aulas. Uma vez por semana, as caixas ficavam expostas no pátio da escola por
todo o horário letivo, à espera dos usuários.
Nos horários de pouco ou nenhum movimento, a PL resolveu ler/contar histórias nas
turmas de 1ª à 4ª série. Pela insuficiência do acervo, a atividade de empréstimo não era
realizada nessas turmas, somente a leitura/contação. E foi pelos leitores/expectadores dessas
turmas que a PL passou a ser chamada de a “Moça da História” ou a “Moça da Historinha”.
A princípio, pensávamos que o livro que denominava a “Mulher do Livro” era o livro
que ela lia/contava para os leitores. Porém, com a “Moça da História”, pudemos inferir que o
que a determina não é o que ela lê/conta. Pois, na mesma escola, era denominada pelos
usuários que usufruíam o serviço de empréstimo, de “Mulher do Livro” (FRAGOSO, 2001).
Para esses leitores, o livro que a determinava era o livro que ela emprestava.
Os leitores não admitem, ou apresentam resistência, à contação feita pela PL sem a
presença do livro. Assim, ela é também determinada e autorizada pelo livro que lê/conta.
Podemos pensar o livro para a PL em sua performance tal qual o “objeto emblemático” que
Zumthor (1997) se refere, utilizado pelo intérprete para se aproximar do público expectador.
Mas, para a PL, o livro é mais do que um objeto que a aproxima do público, é o objeto que a
autoriza. As duas situações citadas a seguir configuraram essa constatação.
14
Essas solicitações foram feitas verbalmente, mas também através de Abaixo Assinado organizado pelos
próprios ex-usuários.
27
Certa vez uma das PLs leu, em um livro didático
15
, a reprodução da história Adivinha
quanto eu te amo de Sam McBratney e, encantada pela história, resolveu lê-la para os leitores
da BLR. Como não dispunha de um exemplar, resolveu contá-la sem o suporte livro. Para
suprir essa ausência, investiu nos gestos e nas expressões, aos quais os ouvintes
acompanharam atentos com os olhares. Não só pela performance da PL, mas pela beleza do
enredo criado por Sam McBratney, a história agradou mais aos adultos (professoras) que às
crianças pois estas reclamaram da ausência do livro. Ao contar Adivinha quanto eu te amo em
uma creche, a PL ouviu de um dos ouvintes indignado a seguinte reclamação: -“Você quer me
enganar é? Cadê o livro?” e em seguida retirou-se para não continuar a ouvir a história
(FRAGOSO, 2003).
Em uma
outra ocasião, as
PLs, entusiasmadas
com uma oficina de
Contadores de
História
16
da qual
participaram e
aprenderam a
construir uma Caixa
de Histórias
resolveram usá-la
como estratégia na
contação. Essa Caixa
consiste em uma caixa de sapato, daquelas que vêm com a tampa presa por um dos lados,
ornada com papel liso ou com o mínimo de estampas possível. Na parte interna da tampa é
afixada uma cartolina onde é montado o cenário, podendo ser retirado dando lugar a um outro
cenário para uma outra história. Os personagens são desenhados ou recortados de livros,
revistas ou qualquer outro material impresso, depois colados em prendedores de roupa. À
medida que o personagem for surgindo na história, o contador o expõe prendendo-o na parte
frontal da caixa.
15
Guia de Português 1 do Programa Escola Ativa do Governo Federal.
16
Oficina facilitada por Rogério Bellini, autor e contador de histórias, organizada pela Editora Paulinas no ano
de 2005.
Foto 4. Promotora de Leitura utilizando a Caixa de Histórias na sua performance.
Foto: arquivo da BLR
28
Munidas das tais caixas, as PLs contaram histórias produzidas oral e coletivamente
pelos próprios usuários da BLR, tendo a PL como escriba. Constituindo-se assim os leitores
da BLR como autores orais (CHARTIER, 1998). Os ouvintes apreciaram a Caixa de
Histórias, mas no decurso da terceira das quatro semanas previstas, muitos perguntaram pelos
livros. Quando uma das PLs perguntou se não estavam gostando da Caixa, alguns
responderam “A Caixa é boa, mas dá uma saudade do livro!” (FRAGOSO, 2005).
As PLs atuam como representantes da “sociedade escriturística”, no dizer de Certeau
(1996), e, como tais, seu lugar só é autorizado mediante a presença emblemática da escritura,
o livro. Desse objeto ela não pode fugir ou esquecer-se durante sua performance. No papel de
fiscais dessa ordem, os leitores/expectadores acompanham o passar das páginas do livro. Se a
PL, por um momento, não lhes mostra a ilustração ou a ausência dela, logo é impelida a fazê-
lo.
Houve apenas uma experiência em que a ausência do livro não despertou nenhuma
insatisfação. Por ocasião da Semana do Folclore tão festejado nas escolas, mesmo não
dispondo do livro, uma das PLs resolveu contar a história da Moça vestida de branco que
costumava ouvir quando criança. Ao entrar na sala, pediu para que os leitores/expectadores
fechassem as portas e janelas e apagassem as luzes. Em momento algum, a PL informou ser
essa uma história de malassombro, mas ao responderem à solicitação dela, eles já previram
uma história de terror com exclamações como “Uuuui, que medo, vai ser história de
fantasma” (FRAGOSO, 2002).
Em meio à penumbra e ao silêncio absoluto dos ouvintes, a PL ia narrando com uma
voz sombria, etérea, em um sussurrar, a história de uma moça vestida de branco que sempre à
meia noite pedia carona no portão do cemitério, às margens de uma rodovia que ligava Rio de
Janeiro a São Paulo. Em outras ocasiões, os ouvintes solicitaram a repetição dessa contação e
em nenhum momento reclamaram a presença do livro, apenas alguns perguntaram se não
havia um livro com essa história disponível para empréstimo (FRAGOSO, 2002).
Recuperemos aqui as três situações anteriormente citadas, em que as PLs não
utilizaram o livro na sua performance: na contação de Adivinha quanto eu te amo, na
utilização da Caixa de Histórias e na contação da Moça vestida de branco. Nessas três
situações apenas a última não suscitou reclamações quanto à ausência do livro. Ora, a Moça
vestida de branco é uma história da tradição oral e muitos ouvintes afirmaram conhecê-la.
Acreditamos que, por a história fazer parte do repertório oral e a reconhecerem como tal, os
ouvintes não exigiram a presença do livro. Assim, como com os contadores tradicionais, a
performance da PL, somando-se à natureza e à fonte (oral) e à reprodução do ambiente
29
sombrio, onde tradicionalmente se dão a contar histórias de fantasmas ou malassombros,
substituiu o livro, ou melhor, o tornou dispensável. Contudo, houve leitores que desejaram ler
a história em um livro. E como leitores do acervo da BLR, conheciam muitas histórias da
tradição oral registradas nos livros da BLR, a exemplo dos contos de fadas, das fábulas e das
lendas, dentre outras. Se tantas histórias da tradição oral constam nos livros, por que não a
Mulher vestida de branco? Mas o fato de desejarem ler a história em um livro, não fez com
que o exigissem na performance da PL. Sendo a história da tradição oral, a PL teve permissão
para contá-la sem o suporte livro.
Diferentemente se deu quando ela narrou Adivinhe quanto eu te amo. A história
constava em um livro, ela o deu a saber; e mesmo que ela não o tivesse dito, os ouvintes não a
reconheceram como integrante do repertório oral, o que não lhe autoriza a ser contada sem a
presença do livro. Como as PLs não são contadoras tradicionais e isso é denunciado pelo seu
repertório e pela sua performance que é sempre composta com o livro em mãos, os leitores da
BLR não lhes empregam tal autoridade. Quando eles as desenham, elas estão sempre em pé e
com um livro em mãos, em uma representação do momento performático (VILAR;
FRAGOSO, 2001). Dessa forma, a figura da PL é sempre associada à presença do livro. Ele é
seu objeto emblemático, e nada o substitui plenamente, nem mesmo uma Caixa de Histórias.
2.2 Rotina de Trabalho das Promotoras de Leitura
Às 7:00 horas da manhã começa a rotina das PLs. Tão logo chegam à sede, as PLs
carregam a S10 com o kit de caixas, contendo os livros para empréstimos.
O kit de empréstimo é composto por nove caixas plásticas coloridas, sendo uma
branca com livros só de imagens, sem texto escrito; três na cor vermelha, com livros ricos em
ilustrações e pouco texto escrito; três na cor verde, contendo livros com algumas ilustrações,
mas com predomínio de texto escrito; uma na cor azul com livros com predomínio de texto
verbal, destinado mais ao público juvenil com livros da literatura nacional e universal.
17
; e
uma caixa na cor amarela com livros informativos e paradidáticos. Cada caixa contém, em
média, 25 livros; elas não precisam estar cheias, pois, em uma biblioteca ambulante, os livros
também circulam das mãos dos leitores para as caixas e daí para outros leitores. Dessa
maneira, o acervo disponível nas caixas é sempre renovado. Ao final de cada semana de
17
Livros como os da Série Vaga-Lume da Editora Ática, obras de Machado de Assis, José de Alencar, dentre
outros clássicos nacionais, a obras de Victor Hugo, Júlio Verne, dentre outros da literatura universal, bem como
adaptações desses clássicos, são encontrados na caixa azul.
30
trabalho, as PLs reorganizam o kit, retirando livros que precisam ser consertados,
substituindo-os por outros. Para facilitar o trabalho de distribuição dos livros nas suas
respectivas caixas, no momento da catalogação, eles são assinalados por um adesivo, da
mesma cor de sua caixa correspondente, no canto superior direito da capa.
A maior parte do
acervo da BLR está nas
mãos dos leitores, ficando
uma pequena parte na
sede, como reserva. Ao
final do ano letivo, quando
se recolhem os livros, não
os disponibilizando mais
naquele ano, ao
empréstimo, as PLs
sentem dificuldades em
acomodá-los na sede por
insuficiência de espaço
físico, pois esta não foi
pensada como espaço de
condicionamento de livros e sim como um ponto de apoio, ou ponto de partida e de chegada,
já que a maior parte do trabalho de uma biblioteca itinerante não é realizada em local fixo.
O material utilizado pelas PLs no exercício de seu trabalho não se restringe ao kit.
Munidas também do livro que irão ler e de uma pasta fichário, contendo as fichas de
empréstimos dos usuários, as PLs partem para as escolas. São elas mesmas que dirigem a S10,
enfrentando as longas estradas desertas, lamaçais em épocas de chuva e areais em épocas de
secas.
Ao chegar às escolas, as PLs disponibilizam as caixas de livros no pátio, e, com a
devida permissão da professora, entram na sala de aula. Os alunos fecham os cadernos e, com
os livros a ser devolvidos em mãos, esperam ser chamados pela PL que os recebe e recoloca a
ficha de empréstimo no seu envelope. A chamada da devolução se dá de diferentes formas: há
PLs que iniciam o atendimento aos usuários, proferindo a palavra de ordem “Atenção,
atenção”, ao que eles respondem em coro “Todo mundo com o livro na mão”, acenando com
os livros a ser devolvidos. Depois segue-se a chamada quer pelo nome do usuário, quer pelo
título do livro. Essa última forma de fazer a chamada é muito apreciada pelos usuários que
Foto 5. Usuários da BLR escolhendo livros no kit exposto no pátio da
Escola Municipal Benedito Roberto da Paixão, em Paripe.
Fonte: acervo da BLR.
31
ficam atentos para não passar desapercebida a sua vez; riem com alguns títulos dos livros dos
colegas, e sabem, na maioria das vezes, com quem está o exemplar só pelo título proferido,
antes mesmo que seu dono se pronuncie.
O fato de saberem com quem está tal livro ou que livro fulano tomou por empréstimo
é conseqüência da interação que eles mantêm entre si, tendo o livro como objeto. Essa
interação, algumas vezes, é intermediada pela professora que costuma ler em sala os livros
que os alunos tomam por empréstimo. Mas há a interação promovida por eles mesmos.
Presenciamos muitas ocasiões em que os usuários marcavam horário para encontrarem-se na
casa de um para trocarem os livros entre si; e outros nem precisavam sair de casa para isso,
intercambiavam os livros entre os irmãos e os primos. Na hora da devolução, o livro voltava
para a mão do que o havia tomado emprestado oficialmente.
O ritual da devolução do livro já prepara os leitores/expectadores para a
leitura/contação da PL, entretanto, aconteceu, algumas vezes, estarem tão absorvidos com a
atividade de sala de aula ou agitados, que se fez necessária uma preparação. Como exemplo
dessa preparação, citamos dois momentos que registramos. Em um deles, uma das PLs os fez
levantar, sentar, rodopiar de acordo com
as ordens a partir da brincadeira “Boca
de Forno”. Em outra ocasião, para fazê-
los parar de escrever, propôs que
colocassem o lápis para dormir; e então,
embarcando na brincadeira, eles
embalaram o lápis, cantaram cantigas de
ninar, “deitaram-no” na página do livro
ou caderno, fechando-as sobre ele como
um lençol.
Após a leitura/contação da
história feita pela PL, é chegada a hora
de escolher o livro para tomar por
empréstimo. Os livros recolhidos na sala
são recolocados nas caixas, somando-se
aos que ali já se encontram. Durante a
escolha do livro, não há interferência por
parte da PL, salvo nas ocasiões em que é
Foto 6. PL efetuando o empréstimo a uma usuária,
enquanto os demais aguardam na fila.
Fonte: arquivo da BLR
.
32
solicitada pelos usuários na localização de um livro de poemas, ou de terror, de romance, ou
de um livro específico. Mas, no geral, os usuários se aventuram nas caixas à procura do livro
eleito; ouvem opiniões de colegas e emitem suas opiniões. Após a escolha, seguem para a fila
de empréstimo, onde a PL toma nota do nome do usuário, sigla da escola, série e data de
devolução quando da próxima visita semanal da BLR (ANEXO B). Segue, então, a PL para
outra sala ou para outra escola. No último caso, as caixas são organizadas e recolhidas com a
ajuda dos usuários.
Com a regra de que quem esquece o livro não leva outro, a BLR inibe as ocorrências
de inadimplência na devolução. Os usuários inadimplentes demonstram desagrado quando
vêm seus colegas escolhendo livros para empréstimo, e isso é motivo para fazê-los lembrar de
levar para a escola o que tomou emprestado. As professoras também auxiliam nessa parte; no
dia anterior, elas lembram os alunos/usuários da visita da BLR.
2.3 A performance
Antes de iniciar a leitura, mas já como preparação para ela, a PL insere o tema da
história, permitindo que os leitores/expectadores se coloquem antes da história, tecendo
comentários ou discutindo desde o tema à ilustração da capa do livro. Como exemplo,
vejamos as estratégias usadas em um momento que antecedeu a leitura/contação da fábula A
Galinha Ruiva em uma turma da Educação Infantil com leitores/expectadores de quatro a seis
anos de idade. Uma das PL mostrou a capa do livro e perguntou aos leitores/expectadores do
que se tratava a história; e fazendo referência à ilustração da galinha e dos pintinhos, eles
teceram comentários sobre galinhas, pintos, galos, patos, marrecos e toda sorte de aves que
criavam em casa; contaram episódios sobre galinheiros por eles presenciados, como o
nascimento de um pintinho. Somente após esses preâmbulos, a PL iniciou sua leitura/contação
(FRAGOSO, 2005).
Esse preâmbulo para iniciar a história é mais apreciado pelos leitores/expectadores
menores de sete anos; para os maiores, esse momento não pode se extender muito. Caso a PL
se exceda, os leitores/expectadores logo intervêm “Começa logo a história” ou então se
dispersam. Na turma dos leitores menores, a conversa antes da história se faz necessária para
que eles comentem os assuntos que a história por ventura tenha suscitado neles, evitando que
interropam a narrativa. Essa necessidade dos leitores menores em se manifestar diante e até
mesmo no meio da narrativa, se dá por dois motivos. Primeiro porque ainda são muito
crianças, espontâneas nas suas idéias, sempre ávidas por expressá-las. Segundo porque ainda
33
são iniciantes na prática de ouvir/ler história, assim como iniciantes na vida. Os leitores
maiores já entendem que interromper uma narrativa possivelmente quebrará seu encanto e que
nem tudo que se vive precisa ser comentado, basta ser sentido.
O fato de se evitar a pausa na leitura se dá tanto por uma necessidade dos
leitores/expectadores, para não comprometer sua recepção, como por uma necessidade da PL,
para não atrapalhar sua performance. Quando acontece de um leitor tecer um comentário
sobre a história e exigir atenção da PL, é logo recriminado pelos demais, o mesmo acontece
caso haja conversas paralelas.
Entretanto, também há casos de interação verbal entre PL e leitores/expectadores no
momento da leitura quando essa interação faz parte da performance. Vejamos dois casos. Ao
ler, da autoria de Ana Maria Machado, Camilão, o comilão – um porco muito guloso que
arrecada comida entre seus amigos, acumulando-a em uma cesta –, outra PL, implicitamente,
convidou-os a participar na listagem dos alimentos que Camilão depositava na cesta,
originado um texto em “lenga-lenga”
18
, pois há uma repetição de todos os alimentos
anteriormente depositados a cada novo que se lhe acrescenta. Esse jogo de memória foi muito
apreciado pelos leitores que repetiam a plenos pulmões a lista de comida de Camilão,
respeitando as pausas e a vez da voz da PL no decurso da narrativa (FRAGOSO, 2003).
Em outra leitura/contação de A Galinha ruiva, presenciamos outra participação do
público leitor na performance da PL, quando ele antecipava à leitura dela, o nome do
animal/personagem de quem partia a enunciação. A PL iniciou a leitura/contação:
A Galinha Ruiva encontrou um grão de trigo e perguntou “Quem
quer me ajudar a plantar o trigo?” “Eu não.” [imitando o roncar do
porco] Disse o porco. “Eu não.” [imitando o latir do cachorro] Disse o
cachorro. “Eu não.” [imitando o grasnar do pato] Disse o pato. “Eu
não” [imitando o miado do gato] Disse o gato.
Seguiu-se a narrativa com o mesmo refrão dos “nãos” dos animais/personagens ao pedido da
Galinha para ajudarem-na a colher o trigo, moer o trigo e fazer o pão. Na primeira vez em que
o refrão se repetiu, os leitores percebendo a repetição que se daria, interagiram com a
performance da PL, antecipando à sua leitura, o nome do animal a partir do som que ela
imitava. Assim, quando ela lia/contava:
18
Também chamado de conto acumulativo, em que novos elementos apresentados no decurso da narrativa vão se
acumulando, resultando em um jogo de memória para o narrador e para o ouvinte. Como exemplo podemos
citar, da tradição oral, a famosa A formiga e a neve (Cf. Coelho 2003).
34
Então a Galinha perguntou: “Quem quer me ajudar a colher o trigo?”
“Eu não” [imitando o roncar do porco]. Disse o porco [afirmaram os
leitores]. “Eu não” [imitando o latir do cachorro]. Disse o cachorro
[os leitores emendaram]. “Eu não” [imitando o grasnar do pato].
Disse o pato [completaram os leitores]. “Eu não” [imitando o
miado do gato]. Disse o gato [os leitores afirmaram].
Essa participação dos leitores se deu de maneira espontânea, e a PL, atenta ao seu público
leitor, favoreceu sua participação na performance, calando-se no instante que se nomeava o
enunciador, deixando-se ouvir apenas a voz do público leitor (FRAGOSO, 2005). Nos casos
de participação espontânea, por nós presenciados e registrados, o previsível e a repetição se
fizeram elementos necessários na narrativa.
Em nossos registros também constam participações do público solicitadas pela PL;
nesses casos houve um ensaio ou simulação antes do início da narrativa. Antes de ler/contar
No Sítio, da autoria de Jean François Martine e Maria Aubina, a PL perguntou aos
leitores/expectadores que animais moravam com eles e como era a “voz” deles; depois dessa
conversa inicial, apresentou a história e solicitou ajuda na hora de imitar as vozes dos animais
que faziam parte dela. Obedecendo a organização em fila das carteiras em que se achavam os
leitores, dividiu-os entre os que imitariam cada animal; em seguida deu-se um pequeno
ensaio. A PL, então, iniciou a história que tratava de um pequeno sítio em que reinava o
silêncio e a tranqüilidade, até que se deu a chegada de alguns animais. Assim, vão chegando,
um a um, o cachorro, o jumento, o peru, o galo, o porco entre outros. À medida que cada
animal chega e é recebido pelo proprietário do sítio, o público imitava-o. Segue-se a narrativa
até o ponto em que o proprietário do sítio, não suportando o barulho dos animais (ocasião em
que o público imitou todos eles, provocando um barulho ensurdecedor), vai em busca de um
lugar tranqüilo para viver (FRAGOSO, 2001).
Cada PL tem seu estilo de ler/contar histórias. Esse estilo ou maneira foi sendo
construído por elas no decurso de suas performances. De início, utilizavam pouco os recursos
da oralidade. Mas, com o passar do tempo, a intimidade com seu público, o desprendimento
para inovações, as experiências acumuladas e partilhadas entre si, contribuíram para dar a
forma atual da performance.
Mesmo tendo a experiência como fator decisivo na construção das performances, não
podemos desmerecer estudos e leituras sobre técnicas de contar histórias veiculadas por livros
que as PLs intercambiavam entre si do seu acervo particular à exemplares adquiridos pela
BLR para a formação de suas profissionais, como também de participação em oficinas afins.
35
Contudo, foi no fazer do dia-a-dia, em cada performance, que as PLs foram construindo suas
técnicas, a partir das respostas positivas ou negativas de seu público.
O fazer na constituição da performance é tão determinante que as PL afirmam que,
embora ensaiem a leitura do texto escrito para dele poderem se desprender, planejem o modo
como se dará a leitura e façam de seus parentes platéia da sua prévia, é no contato com seu
público verdadeiro que a performance vai tomando forma no decurso de cada nova
apresentação.
Para Zumthor (1997), a performance se constitui mediante uma platéia, pois ela requer
uma situação de escuta, uma situação autêntica, não artificial. Por isso, a performance prévia
que a PL faz diante de uma platéia improvisada não é a mesma diante da platéia a que se
destina verdadeiramente. Os ouvintes também participam ativamente da constituição da
performance, sendo até mesmo o silêncio elemento de participação. Assim, “quando a
comunicação e a recepção (assim como, de maneira excepcional, a produção) coincidem no
tempo, temos uma situação de performance” (ZUMTHOR, 2001, p. 19 – grifos do autor).
“O ouvinte não é necessariamente destinatário.” (ZUMTHOR, 1997, p. 243) Na
performance há uma reciprocidade das relações entre o intérprete, o texto e o ouvinte de modo
que cada um deles interage com os outros dois. “O ouvinte contribui, portanto, com a
produção da obra da performance. Ele é ouvinte-autor, a menos que o executante não seja
autor. Daí a especificidade do fenômeno da recepção na poesia oral.” (ZUMTHOR, 1997, p.
247)
A qualidade da
leitura performática da PL
e o tipo de texto é que
instigará seu expectador à
leitura. Se a performance
da PL ou a narrativa não
agrada o expectador, ele
não se faz de rogado, trata
de ocupar-se com outra
coisa quer seja com o
exercício escolar, quer
seja com conversas com
um outro expectador.
Foto 7. Promotora de Leitura e os leitores/expectadores no instante da
leitura peformatizada.
Fonte: Keila Fragoso
36
Temos dois sujeitos leitores: a PL e seu expectador. Como também três autores: o que
compôs o texto escrito, a PL que compõe sua performance a partir da leitura do escrito e do
seu público, e o expectador que interfere no processo de composição da performance da PL.
Na concepção de que ler é atribuir significado (Chartier, 1998, 2001), o leitor se faz
produtor de sentido, e é nessa função do leitor que para Barthes (1984) se constitui a morte do
autor. O leitor só entra em cena na ausência do autor, “pois para que um texto fique pronto, o
escritor deve se retirar, deve deixar de existir. Enquanto o escritor está presente, o texto
continua incompleto” (Manguel, 1999, p. 207).
O ouvinte, como o leitor aferrado a um livro, desde que aceita o seu
risco, se compromete a uma interpretação da qual nada garante a justeza.
Mas, mais do que o do leitor, seu lugar é instável: narratório? narrador?
Sem cessar, as funções tendem a se intercambiar no seio dos costumes
orais. ( ZUMTHOR, 1997, p.241)
É através da recepção da performance da PL que os leitores da BLR constroem sua
leitura, que, por sua vez, interfere na composição da apresentação da intérprete. A recepção
do público, expresso em seu comportamento, é para a PL como um eco à sua performance,
que partindo desse eco a reconstrói, sem, no entanto, perder de vista o texto escrito.
O corpo e a voz da PL e o livro são suportes do texto, objeto de leitura dos
leitores/expectadores. O leitor do texto oral é tão leitor quanto o do texto escrito e, como tal,
assume seu papel ante o risco da polissemia. Entretanto, a obra, se performática ou escrita,
interfere diferentemente na recepção do sujeito, alerta Zumthor
(2001, p. 23-24), pois,
É certo (às vezes consideravelmente) que na economia interna e na
gramática de um texto não importa que ele tenha ou não sido composto por
escrito. No entanto, o fato de ele ser recebido pela leitura individual direta
ou pela audição e espetáculo modifica profundamente seu efeito sobre o
receptor e, portanto, sobre sua significância.
Na leitura individual, cabe ao leitor, solitário, buscar outros textos, outras leituras na
construção de um novo “tecido textual” (BARTHES, 1984). Em uma situação performática, o
leitor, não mais solitário, busca, junto aos demais leitores da platéia e ao intérprete, costurar as
diversas leituras em uma única: a sua.
É na leitura, solitária ou coletiva, que outros dizeres vão se integrando e constituindo
um “tecido textual”. E a cada nova leitura outras vão se relacionando e se rememorando.
Assim como nenhuma leitura é igual em sua totalidade à outra, do mesmo modo procede a
performance da PL. Em uma mesma semana, as PLs, lêem/contam a mesma história muitas
37
vezes, e a cada apresentação elas vão aprimorando a performance; mais seguras na história
percebem com mais facilidade as preferências dos leitores/expectadores, podendo suprimir ou
esticar um trecho que mais lhes agrade. Em média, as PLs liam/contavam a mesma história
19
de 16 a 20 vezes em uma mesma semana, e afirmavam que a última performance não se
comparava à primeira em qualidade.
2.3.1 Técnicas utilizadas pelas Promotoras de Leitura na performance
Nas suas performances, as PLs procuram usar o corpo comedidamente e tomam
cuidado nas expressões exageradas para não dar um caráter teatralizado à história. Esses
cuidados são necessários para a performance não sobressair ao livro, afinal de contas, elas
estão sempre com o livro em mãos e é dele que as histórias “saem”. O livro acompanha toda a
narrativa e os leitores/expectadores seguem seu passar de páginas e exigem a exibição das
ilustrações. Dessa maneira, o livro não se constitui como um mero acessório nas mãos da PL,
ele é tão suporte da história quanto a voz e o corpo dela, não podendo um sobressair ao outro,
a não ser em momentos específicos em que a narrativa pede.
Quando um poeta ou seu intérprete canta ou recita (seja o texto
improvisado, seja memorizado), sua voz por si só, lhe confere autoridade. O
prestígio da tradição é a ação da voz. Se o poeta ou intérprete, ao contrário,
lê num livro o que os ouvintes escutam, a autoridade provém do livro como
tal, objeto visualmente percebido no centro do espetáculo performático; a
escritura, com os valores que ela significa e mantém, pertence
explicitamente à performance. [...] a leitura pública é menos teatral,
qualquer que seja a actio do leitor; a presença do livro, elemento fixo, freia
o movimento dramático, introduzindo nele as conotações originais. Ela não
pode, contudo, eliminar a predominância do efeito vocal (ZUMTHOR,
2001, p. 19).
Em algumas performances, o livro se constituiu como elemento principal. Na
leitura/contação da história Menina bonita do laço de fita, a PL inseriu o passar de páginas
como elemento performático, bem como a exibição das ilustrações. A história, da autoria de
Ana Maria Machado, ilustrada por Claudius, oferece uma leitura a partir das imagens que
dialogam com o texto escrito em uma sincronia de significados e, além de terem um belo
traço, colorido, ocupam a maior parte da página, favorecendo a visualização dos
leitores/expectadores. A história narra a admiração de um coelho pela cor da pele de uma
19
Salvo nas ocasiões em que as PLs percebiam que a performance daquele texto não havia agradado aos
leitores/expectadores, ocasião em que procurava um outro texto.
38
menina. No desejo de ter uma filha pretinha como ela, o coelho fez de tudo para ficar preto:
tomou banho de tinta, bebeu muito café preto, se empanturrou de jabuticaba, até que
descobriu o motivo genético da cor da menina. Então ele concluiu que
Se ele queria ter uma filha pretinha e linda que nem a menina, tinha
era que procurar uma coelha preta para casar. Não precisou
procurar muito. [a PL passou a página do livro e o público vibrou
com a ilustração de uma bela coelha preta de saia, bolsa, sombrinha
e colar. Muitas expressões como Ah!, Eita! e risos demonstraram a
empatia do público com a coelha.] Logo encontrou uma coelhinha
escura como a noite, que achava aquele coelho branco uma graça.
Foram namorando, casando e tiveram ... [a PL fez um suspense, um
breve momento de silêncio, o suficiente para que os
leitores/expectadores fizessem suposições. Uma coelhinha preta!
Gritaram muitos] Uma ninhada de filhotes [completou a PL ao
mesmo tempo em que passou a página do livro, exibindo a
ilustração de 13 coelhinhos de todas as cores que ocupa duas
páginas; os leitores expectadores riram com o inusitado]
(FRAGOSO, 2005).
Para que o público tenha uma visão das ilustrações, é necessário que as PLs não
monopolizem o livro para sua leitura. Por isso, elas procuram memorizar o texto escrito de tal
maneira que um simples olhar sobre o parágrafo (de cabeça para baixo) as faça lembrar o seu
desenrolar. Assim, recorrendo ao texto escrito apenas em alguns momentos, não ficam tão
presas a ele, disponibilizando então seu olhar para a percepção do público, bem como sua
interação com ele. Mesmo utilizando a memória na performance, as PLs não dispensam o
livro, suporte do texto, pois ele as auxilia no resgate do texto memorizado.
Assim como o passar de páginas, a exibição (ou o atraso na exibição da ilustração), o
abrir e o fechar do livro também fazem parte da performance. No instante em que a PL abre o
livro, o público leitor/expectador já sabe: começou a história; quando ela fecha o livro, a
história está encerrada, seguem-se então os aplausos.
Após fechar o livro, não adianta a PL tecer comentários ou esticar a história, o público
já não está mais presente, estão todos na ânsia de escolher o livro para sua próxima leitura. Se
a PL insiste, corre o risco de ficar falando sozinha. O que autoriza a sua fala não é só a posse
do livro, e sim a posse do livro aberto. Ao abrir o livro, constitui-se uma platéia de
leitores/expectadores; ao fechá-lo esta se dissolve.
39
2.4 Repertório, performance e recepção
As escolhas das histórias a serem lidas/contadas pelas PLs se dão a partir dos temas e
objetivos estabelecidos pelo Plano de Leitura, que é o planejamento das atividades das PLs
junto aos leitores e usuários da BLR. Esse planejamento ocorre, em geral, bimestralmente e é
construído pela equipe de PLs juntamente com a coordenação pedagógica. Alguns Planos de
Leitura são construídos, em consonância com as datas comemorativas festejadas nas escolas,
a pedido de professoras e leitores/expectadores; como também a partir dos gostos e
preferências da equipe da BLR, além de suas percepções do gosto dos seus
leitores/expectadores. O Plano de Leitura é composto pelos passos de todo planejamento,
como tema, objetivos, recursos, cronograma e repertório das histórias a serem lidas/contadas.
Dentre as histórias previstas no Plano de Leitura, há as que as PL reservam para o
público leitor/expectador acima de sete anos de idade e outras para os de quatro aos sete anos
de idade. Como o público da BLR está agrupado em séries escolares por serem também o
público escolar, então é por séries que se dá a seleção das histórias a serem lidas/contadas.
O público leitor/expectador das creches até a 1ª série do Ensino Fundamental apreciam
narrativas cheias de repetição, do tipo lenga-lenga, personagens inanimados,
preferencialmente os animais, Contos de Fadas e Fábulas. Apreciam narrativas previsíveis e
também as que permitem ou possuíam onomatopéias.
O público leitor/expectador da 2ª à 4ª série se aborrece com histórias muito previsíveis
e repetitivas. Gosta de narrativas que incluam o elemento surpresa e a esperteza dos
personagens. Mas, há histórias que agradavam aos dois públicos, dentre muitas citamos os
Contos de Fadas e as Fábulas.
Essa classificação entre os públicos não é tão categórica assim, pois as PLs afirmam
ser cada sala de aula um público específico, com preferências diversas. Entretanto, essas
preferências, em sua maioria, se encaixam na classificação acima.
Um outro critério também é adotado pelas PLs na escolha da obra a ser
performatizada: o projeto gráfico do livro e a natureza das ilustrações. Há obras em que as
ilustrações se constituem como complemento ao texto escrito; se essas ilustrações forem
pequenas, certamente comprometerão a visualização e, portanto, a recepção do público, a não
ser que palavras ou gesto as exprimam de tal forma que sua visualização seja dispensável, o
que nem sempre ocorre. Há também textos escritos que não são dados a uma performance
para um grande público, esses exigem ou uma leitura individual ou uma leitura para um
pequeno grupo.
40
Levando em consideração esses critérios, as PLs constroem seu repertório a partir de
histórias veiculadas pela escrita. É no acervo da BLR que elas encontram uma infinidade de
opções. Muitas dessas histórias, mesmo que registradas pela escrita, são da tradição oral:
Contos de Fadas e Fábulas são alguns exemplos. Dizer que o repertório das PLs tem por base
a cultura escrita é não atentar para os inúmeros recontos e obras escritas baseadas nas
narrativas orais.
Recorrer à escrita como fonte de repertório também foi uma prática dos contadores
tradicionais, embora tivessem na transmissão e na tradição oral elementos mais
preponderantes na construção de seus repertórios. Nas narrativas dos contadores de Crato,
Lima (1985) observou semelhanças com narrativas veiculadas tanto por livros como pela
literatura de cordel. Embora a maioria dos entrevistados tenha afirmado que seu repertório é
composto por histórias que ouviram de outros, alguns disseram que tinham os livros como
fonte de narrativas. O contador José Taveira Chato (Cazuza) contava, ao estilo novelas de
rádio, histórias lidas em literatura escrita:
Antes de eu ler, que eu não sabia ler, eu ouvia os outros ler. E ouvindo os
outros ler, eu aprendia. Pegava a oração da história e fazia toda ela. (...)
Aprendi por ver os outros ler. E diversas delas que é de romance, tirante a
de Carlos Magno, as outras eu lia mesmo. Comecei a ler de uns vinte anos
para cá (LIMA, 1985, p. 24).
No assentamento Dona Antônia, em Conde, uma das usuárias da BLR costumava
escolher livros que supunha agradar a seu avô. Ao ser interrogada pela PL acerca de ser o
gosto de seu avô e não o dela decisivo na escolha do livro, disse que era porque sendo a
história boa, o avô contaria para ela ouvir. Por ser seu avô analfabeto, sua mãe lia o livro para
ele para que posteriormente ele contasse à neta (FRAGOSO, 2005). Ora, por que a mãe não
contaria a história para a filha, lendo ela mesma no livro? Talvez porque o avô contasse de
uma maneira mais envolvente, mais especial, com a performance de um contador tradicional.
Este, por sua vez, fazia uso do acervo da BLR como fonte de seu repertório; sendo sua neta
mediadora entre ele e o suporte (por ela ser autorizada a tomar livros emprestados), e sua filha
entre ele e o texto (por emprestar a sua voz ao texto). Nesse “telefone-sem-fio”, todos (avô,
filha e neta) contribuíam, à sua maneira, para a performance.
Segundo Patrini (2005), com o movimento da “renovação do conto”, cada vez mais os
contadores buscam na escrita as narrativas para sua performance. Isso é até óbvio ao
atentarmos para o fato de que esse movimento se iniciou dentro das bibliotecas e das escolas,
por iniciativa de seus profissionais.
41
As PLs, que também se constituem sujeitos dessas instituições, de alguma forma
reproduzem suas práticas leitoras, salvo nas situações em que se utilizam de elementos da
oralidade para a construção de sua performance, bem como para compor sua apresentação, se
reportam às situações outrora vividas na infância, quando histórias lhes eram contadas. Desse
modo, elas correspondem ao perfil desse novo contador “responsável pelo estabelecimento
das relações lúdicas e amorosas entre a palavra e a escuta, entre o narrador e o ouvinte, entre a
oralidade e a escrita e entre o leitor e o livro, esboços de um repertório cultural” (PATRINI,
2005, p. 23).
Uma das PLs ao ler o clássico Cachinhos de Ouro – história que narra as aventuras
vividas por uma menina que, por curiosidade, entra na casa de uma família de ursos – em um
dos livros do acervo da BLR, lembrou-se dessa história que, em sua memória, encontrava-se
embaçada pelo tempo. Rememorando, então, a narrativa que em sua infância havia sido
contada por sua tia, compôs sua performance, utilizando as mesmas modulações vocais
outrora usadas, que tanto lhe impressionara na infância por dar mais expressividade às
dimensões pequeno, médio e grande exploradas no enredo. Para um melhor entendimento,
descreveremos a performance da PL.
Ao chegar em casa, a família Urso percebeu que havia um intruso
na casa.
‘Alguém comeu minha papa’ [ a PL fez uma voz grave ao mesmo
tempo em que esticou todo seu corpo, dando uma idéia de
grandeza] – disse o pai Urso.
‘Alguém comeu minha papa’ [a PL suavizou a voz, dando um tom
mediano, mas não menos surpreso e aborrecido que o pai Urso] –
disse a mãe Ursa.
‘Alguém também comeu minha papa’ [a PL fez uma voz fina e
gasguita dando um efeito de pequenez] disse o filhotinho urso
(FRAGOSO, 2002).
E assim continua a família Urso a percorrer a casa e descobrir que alguém usou sua colher,
sentou em sua cadeira, até chegar ao quarto e descobrir a identidade da invasora.
Em momento algum, o texto da história relaciona o tamanho dos objetos ao seu dono,
mas os leitores logo associavam a voz ao tamanho do objeto; é do pai Urso, a colher, o prato,
a cadeira e a cama grandes; é da mãe Ursa, a colher, o prato, a cadeira e a cama médias; e é do
filhotinho Urso, a colher, o prato, a cadeira e a cama pequenas. Essa associação se deu,
também mediante o recurso da modulação vocal utilizado pela PL em sua performance.
42
Mesmo com o livro em mãos e não sendo contadoras tradicionais, as PLs utilizam
recursos da oralidade como memória, gestos, modulações vocais, além de se reportarem à
performance de outros contadores na composição da sua.
Uma outra técnica utilizada pelas PLs é a de inserir no contexto da narrativa, tomando
o devido cuidado para não alterá-la, elementos que ela julga permear o cotidiano dos
leitores/expectadores. Como exemplo, temos a leitura/contação de Julinho, o sapo da autoria
de Flávia Muniz. Julinho é um sapo roqueiro que se apaixona por uma princesinha oriental,
para conquistá-la faz serenatas embaixo de sua janela. Em um dos trechos em que o Julinho
canta para sua amada, a PL, em vez de cantar a música It´s now or never prevista no livro,
cantou um dos hits do momento Baba baby gravado pela cantora Kelly Key. A apreciação dos
leitores/expectadores pela inserção da música ficou expressa nas risadas que deram ao ouvir a
PL cantar, ao cantarem junto com ela e ao irem escolher os livros cantarolando Baba baby
(FRAGOSO, 2003).
Uma outra PL leu/contou Julinho, o sapo fazendo-o tocar e dançar rock’n’roll. Os
leitores/expectadores acharam divertidíssimo verem a PL dançar ao estilo twist, tanto que na
hora da escolha do livro também ficaram ensaiando os mesmos passos. Alguns meses depois,
a mesma PL foi ler/contar Festa no céu, conto popular que narra a artimanha do sapo (em
outras versões, a tartaruga) que para fazer parte de uma festa no céu, se esconde na viola do
urubu para chegar até lá, já que não pode voar. No meio da festa, quando os convivas estavam
dançando, inclusive o sapo, alguns leitores/expectadores, fazendo referência ao sapo Julinho,
perguntaram se ele estava dançando rock’n’roll. A PL, então, rapidamente e com naturalidade
inseriu os passos do twist à narrativa (FRAGOSO, 2003).
Como outro exemplo de inserção de elementos do cotidiano dos leitores/expectadores
nas histórias, temos a performance da fábula A Formiga e a Cigarra. Quando alertada pela
Formiga da necessidade de juntar alimentos, a Cigarra tomou sua viola e, com desdém, cantou
a seguinte canção tão ouvida pelos leitores/expectadores na voz da cantora Luka: “Tô nem aí,
tô nem aí, pode ficar no seu mundinho que eu não tô nem aí. Tô nem aí, tô nem aí, pode
falar dos seus problemas que eu não vou ouvir
” (FRAGOSO, 2004).
Pra vencer certas pessoas, escrita por Ruth Rocha, é a história do vaqueiro Pedro,
esperto por natureza, amigo e admirador de Frei Damião. Certa feita, o Rei cisma de testar a
proclamada sabedoria de Frei Damião e o intima a comparecer ao palácio para responder
umas charadas. No intuito de evitar que Frei Damião atendesse ao chamado do Rei, Pedro se
veste com as roupas do Frei e vai ao encontro do Rei.
43
Pedro então, esperou a noite chegar. E quando todos estavam
dormindo, inclusive Frei Damião, foi à cocheira, montou na egüinha
e... pocotó, pocotó, pocotó. Ao raiar do dia já estava no palácio
(FRAGOSO, 2003).
Na história escrita por Ruth Rocha, a referência ao animal que Pedro montava é feita
através da ilustração de Alcy, mas não se sabe se é uma égua ou um cavalo. O texto escrito
apenas informa que Pedro foi, na surdina, ao encontro do Rei, não se pronuncia quanto ao
veículo utilizado por ele, como também não tem nenhuma expressão que faça alusão ao
barulho dos cascos do animal. Mas a PL fez essa alteração como uma referência a Egüinha
Pocotó, um funk muito tocado no momento na voz do MC Serginho. Os leitores/expectadores
demonstraram perceber a referência através de risos e olhares cúmplices entre si.
O cotidiano dos sujeitos da BLR é permeado pela cultura popular e pela cultura de
massa. Entendemos a primeira como toda expressão cultural e social construída em meio ao
convívio cotidiano entre os pares, a partir das necessidades comunitárias atuais (Ayala,1989,
2003; Xidieh 1993). O senso comum vê a cultura popular como algo ultrapassado, congelado
e passível de extinção. Entretanto, estudos têm apontado para outras perspectivas em que a
cultura popular é entendida como algo mutável por ser um fenômeno social, espaço aberto
para transformações que inevitavelmente se apresentam no convívio e no fazer da vida. A
cultura popular, nesse sentido, não pode ser vista como “relíquia, nem, muito menos, peça de
museu” (BOSI: 1993, p. 19). E é exatamente por ser construída a partir das necessidades e do
fazer social que a cultura popular dialoga com outras expressões culturais. Assim,
os traços e os elementos das culturas eruditas e popular podem entrar em
processo mais ou menos intenso de permuta, empréstimo, cópia e imitação,
que podem interagir-se, com maior ou menor intensidade, extensão e
profundidade, dependendo essa situação, ou de favor eventual, precário,
efêmero, unilateral e intencional, isto é, das vagas da moda, ou então, das
vicissitudes do convívio social, e esse é o fato que se conta entre os grupos
representativos das duas culturas (XIDIEH: 1993, p. 81).
No entanto, essas adaptações ou mudanças se dão em meio a resistências e conformismos
(CHAUÍ, 1996). Contudo, “há um momento em que um dos grupos concede e acaba por
aceitar fórmulas propostas pelo meio sócio-culturalmente mais poderoso” (XIDIEH: 1993, p.
82).
Um outro lugar-comum é de que o oral e o popular são equivalentes assim como o
erudito e a escrita. Entretanto, Zumthor (2001, p. 119) nos esclarece que cultura popular
refere-se a usos e não à essência.
44
Oral não significa popular, tanto quanto escrito não significa erudito. Na
verdade, o que a palavra erudito designa é uma tendência, no seio de uma
cultura comum, à satisfação de necessidades isoladas da globalidade vivida,
à instauração de condutas antônomas, exprimíveis numa linguagem
consciente de seus fins e móvel em relação a elas; popular, a tendência a
alto grau de funcionalidade das formas, no interior de costumes ancorados
na experiência cotidiana, com desígnios coletivos e em linguagem
relativamente cristalizada (grifos do autor).
A cultura de massa também transita nesse espaço de construção social, permeando-o
com contribuições efêmeras e que, acima de tudo, visam o consumo. Muitas práticas da
cultura popular tiveram alguns de seus elementos transformados, a partir da convivência com
a cultura de massa veiculada, principalmente, pelos canais televisivos e pelas emissoras de
rádios. Sampaio (2002, p. 21), ao estudar o processo de reestruturação dos cocos de roda em
Conde, observou elementos novos inseridos em sua prática, como “a introdução de passos do
funk na dança, de versos de músicas tocadas nas rádios na sua elaboração poética, introdução
de batidas diferenciadas provenientes de outras manifestações artísticas populares ou da
indústria cultural, etc”.
As PLs, também inseridas nesse contexto sócio-cultural e sem o compromisso escolar,
introduzem, em sua performance, fórmulas e elementos, quer de uma quer de outra expressão
cultural. Na maioria das vezes, esses elementos são partilhados entre a PL e os leitores da
BLR, noutros momentos, soam estranhos aos segundos.
Na leitura/contação de Strega Nona de Tomie de Paola, temos outra vez a inserção de
elementos do cotidiano na performance. A história trata de uma velhinha feiticeira possuidora
de um caldeirão que, ao som de palavras mágicas, se enche de macarrão gostoso e quentinho.
Certa feita, por ocasião de uma viagem de Strega Nona, Tony, um encarregado dos serviços
gerais da casa, desobedecendo às recomendações dela, pronuncia as palavras mágicas. O
caldeirão se enche de macarrão e, como Tony não sabe fazê-lo parar, transborda macarrão,
enchendo a casa. No instante em que, na narrativa, a notícia chega à praça da cidade, a PL
inseriu falas que não estavam previstas no livro, mas que faziam parte de sua performance:
Correram todos à casa de Strega Nona, levando pratos, travessas,
garfos e facas para provar do delicioso macarrão. Muitos repetiram,
mas não deram conta do macarrão. Começaram a encher vasilhas
para levar para casa. Tony então anunciava: ‘Olha o macarrão
quentinho, gostoso. É de graça, mas traga a vasilha, traga a
vasilha!(FRAGOSO, 2003).
45
O “traga a vasilha, traga a vasilha” era um refrão muito conhecido por alguns
leitores/expectadores que o escutavam na voz do sorveteiro que anunciava sua oferta com o
refrão “Vai passando o sorveteiro. Sorvete gostoso, sorvete saboroso. Uma delícia de sorvete.
Oito bolas por um real, traga a vasilha, traga a vasilha.”
Assim como em Pra vencer certas pessoas e em Strega Nona, a PL relatou que a idéia
de fazer referência a esses elementos se deu no instante de sua performance; em uma
demonstração de uso de mais um recurso da oralidade: o improviso. Zumthor (1997) afirma
que, se a performance é marcada pelo improviso, inevitavelmente a produção faz parte de
suas operações, juntamente com a transmissão e a recepção, em uma confirmação de que a
performance é construída em seu instante performático, sofrendo interferências do interprete e
do público, já que o primeiro guiará sua apresentação, baseando-se no perfil e preferências do
segundo.
Mas, o refrão do sorveteiro não era conhecido por todos, pois o sorveteiro transitava,
apenas, pelo centro da cidade e pelas comunidades litorâneas de Conde. Por isso, os
leitores/expectadores das outras comunidades, ao contrário dos que riram, não demonstraram
reconhecer na performance da PL referência ao anúncio do sorveteiro.
Essa prática de vender produtos em automóveis é comum em muitas comunidades
rurais de Conde, que se utilizam desse tipo de comércio como meio de vencer a distância dos
mercados e padarias. Com o estabelecimento comercial itinerante, ganha o vendedor e o
freguês. Assim, têm-se os carros do bolo, do pão e da galinha, além do homem que passa
recolhendo garrafas e panelas velhas em troca de algodão doce.
Assim, como o carro do pão, da galinha, do bolo, do dia do atendimento médico na
comunidade, a BLR também se insere nesse “fazer” itinerante tão intrínseco às comunidades
rurais de Conde. Assim como os demais, sua passagem pela comunidade marca o tempo. Está
na hora de passar o carro do pão. Amanhã é o dia do médico. Hoje é o dia da “Mulher do
Livro”.
Sampaio (2002) afirma que a noção de tempo nas comunidades rurais se dá de maneira
diversa das comunidades urbanas. Mesmo possuindo relógios e seguindo o horário dos
programas televisivos, são os elementos de seu cotidiano que marcam e orientam seu tempo.
As comunidades camponesas e todas aquelas que tiveram e ainda têm uma
dependência direta na exploração de plantas e animais forjaram sua
concepção de tempo em conformidade com os ciclos da natureza. [...] A
referência temporal dessas comunidades é dada pelos ciclos solares e
lunares. O tempo ao longo do dia é orientado pelas tarefas (SAMPAIO,
2002, p. 65).
46
A BLR, como integrante do cotidiano das comunidades, também é referência
temporal. O dia da visita da “Mulher do Livro” se constituiu em uma referência tão
importante no trabalho com a leitura que desde o início da BLR foi percebido pelas
fundadoras. Quando uma delas era ainda professora da escola em Capim-açu, por medidas de
economia de combustível e de tempo, ela mesma era responsável pelo atendimento da BLR
aos leitores daquela comunidade. Entretanto, as fundadoras perceberam que a chegada da
“Mulher do Livro” faz parte do ritual do trabalho da BLR, pois já predispõe os leitores para o
que virá. O fato de chegar alguém que não está na rotina diária escolar constitui para os
alunos uma ruptura nas atividades e um marco de tempo. Chegou a “Mulher do Livro”! Então,
dá-se uma pausa nas atividades escolares e prepara-se para a hora de ouvir histórias e escolher
livros. A chegada da “Mulher do Livro” é parte do ritual, da preparação do seu trabalho.
Nesse instante, o tempo escolar pára, e em meio a uma atividade pedagógica, tudo é suspenso
e um outro momento se dá, em que o aluno agora, se faz leitor. E em um mesmo espaço
discursivo, o escolar, ele encontra outras maneiras de dizer e de se fazer ante o escrito.
47
3 BIBLIOTECA LIVRO EM RODA: espaço, discurso e práticas de leitura
Era uma casa
muito engraçada
não tinha teto
não tinha nada
Ninguém podia entrar nela não
porque na casa não tinha chão
Ninguém podia dormir na rede
porque na casa não tinha parede
Ninguém podia fazer pipi
porque penico
não tinha ali
Mas era feita com muito esmero
na rua dos bobos número zero
(A casa – Vinicius de Moraes)
3.1 Biblioteca Livro em Roda: um lugar em um não-lugar?
A Biblioteca Livro em Roda difere, em alguns aspectos, de uma biblioteca
convencional. Em primeiro lugar, a BLR não é visitada por seus usuários, é ela quem os
visita. Segundo, seus usuários não transitam em seu prédio, ela transita, juntamente com seus
usuários, em outro prédio: o escolar, com normas, rotinas e discursos próprios. Entretanto,
suas paredes não são as da escola; nem seu chão, nem seu teto, nem sua porta é a da escola.
Muito menos o carro que transporta os livros da BLR a materializa. Embora o nome Livro em
Roda também signifique uma biblioteca ambulante
20
, no sentido de que a Biblioteca transita
sobre as rodas do carro, não é nesse espaço que seus leitores/usuários usufruem de seus
serviços. A BLR se materializa no corpo, ou melhor, na presença/atuação da PL. É ela quem
20
Outros sentidos também são apontados pelas fundadoras para a nomenclatura da Biblioteca: em Roda também
faz referência à roda que os leitores fazem para ouvir a PL, como também à circularidade da posse do livro
através do empréstimo que de um leitor passa a outro e assim por diante.
48
possibilita o acesso dos leitores ao acervo da BLR, quer através do empréstimo, quer através
da audição das leituras performatizadas.
Em muitos registros escritos pelos usuários da BLR, vemos referência à visita da PL,
como sinônimo da visita da BLR, ou referência à ação da primeira como o fazer da segunda.
Em cartas endereçadas a escritoras da literatura infanto-juvenil
21
, os leitores da BLR
denunciam esse imbricamento de imagens, como no trecho:
Conheci suas histórias através da Biblioteca Livro em Roda que
toda semana vai até nossa escola e lê um livro para nós.
22
Ora, a BLR, um ser inanimado, jamais será sujeito de uma ação tão objetiva como ler
em voz alta um livro; quem o faz é a PL, sujeito representante da BLR. Para os usuários e
leitores, a PL é a personificação da BLR; se a PL chega à escola é para desenvolver o trabalho
da BLR que, por sua vez, só chega aos usuários e leitores através da ação da PL.
Embora não seja parte da instituição escolar, é na Escola que a BLR desenvolve seu
trabalho junto aos leitores e usuários. Estes, por sua vez, apesar de reconhecerem que a BLR
não pertence à escola, haja visto que ela vem de fora fazer uma visita, entendem que é na
escola que ela pode ser encontrada. Novamente, citaremos um trecho das cartas para
exemplificar.
Você poderia vir a Jacumã, na Escola M. de E. F. D. José Mariz,
falar da sua vida, contar HISTÓRIA e conhecer a Livro em Roda
(grifos do escritor).
23
Ao convidar a escritora de literatura infanto-juvenil para conhecer a BLR, o leitor dá a
localização onde ela pode ser encontrada: na escola, particularmente, na sua. A BLR não é da
escola, mas se faz nela, pois é nesse espaço que a PL desenvolve seu trabalho.
Apressadamente, poderíamos inferir que a BLR estaria em qualquer lugar em que a PL
se fizesse presente. Entretanto, outro elemento vem se juntar à presença da PL na constituição
do espaço da BLR; esse outro elemento se refere ao lugar autorizado para a materialização da
BLR: o espaço escolar. Diferentemente de uma Biblioteca convencional, a BLR não
desenvolve suas atividades na sede, ou em prédio próprio. Sua prática se dá em qualquer
21
Essas cartas, especificamente destinadas a Ruth Rocha e a Ana Maria Machado, constituem o corpus de
análise que compõem o capítulo posterior. Por hora, apenas citamos um trecho das cartas para exemplificar
nosso argumento.
22
Trecho da carta 18.
23
Trecho da carta 35.
49
lugar, desde que seja nas dependências da Escola. Esse lugar autorizado instituiu-se a partir de
sua própria prática; a BLR escolheu esse espaço para fazer-se. Dessa forma, o lugar
autorizado e a presença e o fazer da PL é que materializam a BLR, fazendo de um lugar alheio
o seu espaço, fazendo de um não-lugar seu espaço para existir.
Antes de se inserir no espaço escolar, um outro espaço também foi palco das primeiras
atividades da BLR, quando esta ainda estava tomando forma: o acampamento dos sem-terra
na comunidade de Capim-açu. As professoras idealizadoras da BLR disponibilizavam cestos
com revistas e livros em baixo das árvores, à vista e à mão de todos; adultos e crianças davam
uma olhada e faziam suas leituras. Elas também liam livros para as crianças que se sentavam
ao redor delas e ouviam-nas. Entretanto, para um trabalho mais sistemático (perspectiva que
foi tomando forma com o passar do tempo) que se propunha a “incentivar” e a “promover” a
leitura, era necessário um público mais estável, constante. E isso se tornou imprescindível
quando se passou a oferecer o serviço de empréstimo de livros.
O público alvo da BLR era (e é) formado por crianças e adolescentes em idade escolar.
Dessa forma, Escola e Biblioteca dividiam o mesmo público. Então, por que não aproveitar a
organização da instituição escolar a favor do trabalho da BLR? Uma parceria que promoveu
vantagens para os dois lados. Vantagem para a Escola por contar com o apoio de profissionais
para o estímulo à leitura (e porque não dizer também à aprendizagem?) e com disponibilidade
de material (livros) específico para tal trabalho. Assim, a Escola tinha uma aliada forte e com
ela dividia sua missão de inserir seus sujeitos no mundo da leitura.
Por outro lado, a BLR também se beneficiou dessa parceria. Ao iniciar seu trabalho, já
encontra seu público devidamente agrupado em séries (tendo por critério idade ou nível de
aprendizagem), alojado em salas, disciplinado e “vigiado”. Dessa forma, a BLR utiliza o
aparelho disciplinador da escola em benefício do seu fazer. Em outras palavras, a BLR usa, no
dizer de Foucault (1995), o olho disciplinar da escola.
Para Focault (1995), a Escola é uma máquina ótica necessária na disciplina dos corpos,
que torna visível e, portanto, passível de serem vigiados, todos os sujeitos. “A disciplina é
conseguida através da ação de vigiar e da punição.(...) Só assim, acredita, a escola conseguirá
cumprir com seu intento, que é ensinar. A disciplina eficiente se dá quando o sujeito
internaliza o olhar vigiador” (VILAR; FRAGOSO; 2001, p.6).
Segundo Sousa (2002), o professor representa a autoridade da instituição escolar, ou
melhor, a instituição escolar é quem autoriza e delega ao professor o papel de organizador do
discurso (fazer falar e fazer calar), de autoridade para punir e de vigia disciplinar.
50
A BLR também faz uso desse “olhar vigiador e disciplinador” escolar, ao ponto de a
autoridade ou não autoridade dele refletir na viabilidade do trabalho desenvolvido junto aos
seus leitores e usuários. Temos inúmeros relatos e situações presenciadas e vividas em que o
papel disciplinar do professor não foi reconhecido pelos alunos, de modo que a indisciplina
deles impossibilitou o trabalho da BLR. Em uma escola em que a professora literalmente foi
expulsa pelos alunos, a PL não conseguia ler/contar histórias, além de registrar-se um grande
índice de inadimplência na devolução dos livros. Quando mudou a professora e a nova
convenceu em seu papel de autoridade, um outro ambiente se fez para a PL, agora muito mais
receptivo ao seu trabalho (FRAGOSO, 2003). De maneira similar, também ocorreu com outra
PL em outra escola. Essa promotora relatou que, enquanto lia/contava história, alunos que
estavam fora da sala jogavam pedras na parede da sala e proferiam palavras de baixo calão,
fazendo-se ouvir e entrever pelos combogós da sala de aula. Ao mudar a equipe da escola, a
autoridade escolar foi restabelecida, favorecendo um ambiente propício para o trabalho
desenvolvido pela PL (FRAGOSO, 2000).
Se os alunos não reconhecem na professora a autoridade escolar não desempenham,
por sua vez, seus papéis em sala de aula (papéis de sujeitos disciplinados). À PL não é dada a
autoridade disciplinar dentro da rotina escolar, seu papel é o de ler/contar histórias e
emprestar livros, para isto sim ela é autorizada. Entretanto, nesse seu espaço de legitimidade,
a PL exerce um papel disciplinador quando a ela cabe punir a inadimplência dos usuários,
bem como vigiá-los na devolução e empréstimo de livros. Embora a BLR entenda o veto do
empréstimo aos usuários inadimplentes como apenas um cumprimento de cláusula do acordo
verbal firmado, acreditamos que o não empréstimo soa para o usuário como uma punição por
ter infringido a regra da devolução. O fato de a PL “punir” o inadimplente não lhe atribui um
papel de carrasco, mas o papel de autoridade no controle e na observância das regras do
empréstimo.
Concluindo, podemos afirmar que a autoridade da PL está circunscrita às ações de
ler/contar histórias, recolher e emprestar livros. Mesmo se posicionando, como faz a
professora, em frente ao quadro e assumindo o papel de dirimir algumas ações (recolher ,
ler/contar e emprestar livros) a serem realizadas na sala, não lhe é conferida autoridade no
cuidado da disciplina e da ordem, pois à sua chegada o aluno se faz leitor, e é nessa posição
que ele se relaciona com ela.
A autoridade da professora é tão imprescindível no estabelecimento do ambiente para o
trabalho da BLR que algumas PLs reclamavam a presença da professora em sala de aula no
instante da leitura/contação. Entretanto, observamos que, nas salas em que a professora é
51
reconhecida como autoridade e que o olhar vigiador já se internalizou nos alunos, a presença
da professora não se faz imprescindível, pois os alunos continuam se comportando de acordo
com o previsto em seu papel de alunos disciplinados. Isso se dá porque “eles sabem as regras
da instituição e eles sabem quem é e como é a professora, logo cabe a eles agirem conforme o
esperado” (SOUSA: 2002, p. 50 – grifos da autora).
3.2 Discurso sobre a leitura e imagem de leitor elaborados pela Biblioteca Livro em
Roda
A BLR, assim como a Escola, é uma instituição autorizada a “dizer” a leitura. Seu
discurso, inicialmente, foi referendado e autorizado pela sua prática, reconhecidamente
exitosa por instituições, a exemplo das financiadoras e das escolas que solicitavam seu
atendimento, conforme citamos na Introdução desse trabalho, como também pelos próprios
leitores. Se, hoje, o discurso da BLR – que é referendado pelo reconhecimento público e pelos
prêmios alcançados – é quem autoriza sua prática, outrora, foi sua prática quem lhe outorgou
autoridade para dizer a leitura. Vejamos o que a prática de BLR nos revela do seu discurso
sobre a leitura e da imagem que elabora de seus leitores.
Quando a BLR iniciou suas atividades em Capim-açu, ela partiu da falta de livros nas
escolas rurais e não da falta de leitores. Sua empreitada não era a de estimular a leitura, mas a
de democratizá-la, pois acreditava que todos eram leitores em potencial, e se não o eram
naquele instante era porque lhes faltava o que ler, ou porque não lhes deram a conhecer esse
fazer.
Para melhor entendermos o fazer e o dizer a leitura da BLR, vejamos a missão da
AELER tal qual consta em seu Estatuto e referenciado em outros documentos a exemplo de
material de campanhas e divulgação (ANEXO A):
Contribuir com a formação de cidadãos críticos e atuantes para uma
sociedade justa e democrática, incentivando e promovendo a leitura, a
escrita e a vivência comunitária, prioritariamente junto a crianças e
adolescentes, do campo.
A missão é constituída por duas partes: a primeira trata do objetivo da instituição, com
sua concepção de que uma sociedade justa e democrática é formada por cidadãos críticos e
atuantes; a segunda parte refere-se ao fazer, à ação da instituição para alcançar seu objetivo
52
explicitado na primeira parte da missão. Nossa discussão prosseguirá, priorizando a expressão
“incentivando e promovendo a leitura presente na segunda parte da missão.
24
Nos tratados e projetos sobre leitura, o substantivo leitura vem sempre associado aos
verbos incentivar, promover e estimular. Vejamos o que nos diz Ferreira (1999) sobre as
ações incentivar, promover e estimular, inseparáveis da leitura:
Incentivar 1. Dar incentivo a; estimular, incitar.
Promover 1. Dar impulso a; trabalhar a favor de; favorecer o progresso de; fazer avançar;
fomentar. 2. Fazer avançar; dar. 3. Ser a causa de; causar, gerar, provocar, originar. 4.
Requerer, solicitar, propondo. 5. Diligenciar para que se realize, se efetue, se verifique. 6.
Elevar a (cargo ou categoria superior).
Estimular 1. Excitar, incitar, instigar; picar, espicaçar, ativar; 2. Animar, encorajar; 3. Excitar
o brio, a emulação de; 4. aguilhoar, picar, pungir; 5. Levar, compelir; incitar.
Nossa! Como a leitura precisa de ajuda para agradar ao leitor! Veja que os verbetes
sugerem a existência de um sujeito que age sobre outro passivo, a favor de algo. Remetem-
nos, portanto, a uma ação sobre alguém inerte (o leitor), que precisa ser instigando a uma ação
(ler). Nesses termos, a leitura e o leitor precisam sempre de um “empurrão”. Acreditamos,
contudo, que a BLR, mais que “incentivar” e “promover”, dá a ler, pois considera seu público
alvo, leitores. Sendo leitores, pelo menos em potencial, não precisam que se incentive nem
que se promova a leitura entre eles, precisam sim, de acesso ao suporte livro. Nesse sentido, a
BLR possibilita a leitura, dando aos leitores acesso a esta. A leitura/contação da PL,
acreditamos, é menos uma forma de estímulo que uma forma de dar a conhecer e vivenciar a
prática da leitura, tendo como suporte o livro. Assim, a ação da BLR ante seus sujeitos
denuncia uma outra concepção de leitor, pois entende que as crianças e os adolescentes que
fazem parte de seu público são leitores ativos e exigentes e em nada transparecem ser sujeitos
que necessitam de estímulo, de incentivo. Talvez a BLR, sem uma reflexão mais aprofundada,
tenha inserido em seu vocabulário expressões, hoje em dia, tão em voga e tão próximas da
leitura, mas que não expressam com fidedignidade sua ação e seu dizer sobre ela. A própria
nomenclatura que deu a sua funcionária, Promotora de Leitura, referenda a imagem de leitor
implícita em sua missão. Entretanto, a ação de sua funcionária ante os leitores denuncia uma
24
No próximo capítulo, trataremos da ação da BLR referente ao “incentivando e a promovendo a escrita”.
53
outra imagem, um outro discurso, e isso é tão percebido pelos leitores que lhes empregaram
uma nomenclatura apropriada por excelência: Mulher do Livro.
No senso comum, quando há referência à leitura, pressupondo uma ação incentivadora
e promotora, logo nos vem a imagem de sujeitos que não lêem porque não se aprazem de tal
prática, vem-nos a imagem de sujeitos com acesso a uma diversidade de opções de leitura,
livros à mão, estantes repletas, mas que não se interessam pela prática da leitura. Britto (2001,
p. 5) defende que
O excluído da leitura não é sujeito que sabe ler e quem não gosta de
romance, é o mesmo sujeito que, no Brasil de hoje, não tem terra, não tem
emprego, não tem habitação. Não vou parar de repetir que a questão da
leitura é uma questão político-social e não de gosto ou prazer.
Nesses termos, o grande problema da leitura, ou da falta de leitura no Brasil, é o acesso ao
suporte e até mesmo ao texto – em se tratando dos analfabetos. Assim, “a grande promoção
possível da leitura é a que se articula com a democratização social objetiva. (...) O que está em
questão é o direito do cidadão de ter acesso (material e intelectual) à informação escrita e à
cultura letrada” (BRITTO, 2001, p. 5).
As PLs da BLR não trabalham tendo como foco incentivar o gosto dos leitores, elas
trabalham tendo como foco possibilitar aos leitores o acesso ao suporte e por conseguinte ao
texto nele contido. Para a BLR, como já foi dito anteriormente, todos são leitores em
potencial, e, para que sejam de fato, basta que se lhes dê acesso ao suporte, como também que
se lhes inicie nesse “novo” fazer, entre aspas porque se trata de crianças iniciantes na vida,
aprendendo tantos outros “novos” fazeres. Contudo, novo também porque essas crianças
fazem parte de um segmento da sociedade (pobre e rural) em que a leitura do escrito é um
fazer cotidianamente raro.
Em nossos registros, não consta nenhuma referência em que a PL dirija-se aos leitores
discursando sobre a importância da leitura ou a necessidade de se ser leitor. Isso porque, de
fato, a BLR não reproduz, em seu fazer, essa prática tão corriqueira em instituições outras que
se propõem a formar leitores, convencendo-os ou constrangendo-os a sê-lo. Em momento
algum de sua rotina, a BLR dispõe um momento para que suas PLs falem sobre os benefícios
que a leitura possivelmente trará ao leitor. Mesmo nas turmas em que se dá seu primeiro
contato – por ocasião do início do ano letivo nas turmas de pré-escolar e creche, quer por
ocasião de ter seu atendimento ampliado para mais uma escola – as PLs não reproduzem esse
discurso. Apenas se apresentam e informam sobre seu trabalho que consta em ler/contar
histórias e emprestar livros. No mais, algumas orientações quanto ao empréstimo, devolução e
54
cuidados com o livro (evitar riscar, amassar, arrancar páginas). A BLR oferece a leitura,
partindo do pressuposto de que não precisa convencer ninguém a ler, que precisa sim, dar
acesso a uma prática social cada vez mais imprescindível na vida de – como bem explicita em
sua missão – “cidadãos críticos e atuantes (em) uma sociedade justa e democrática”, em uma
sociedade escriturística, como afirma Certeau (1996). E esta última consideração não é um
sonho, ou uma meta, é uma realidade.
A leitura/contação da PL, além de ser uma estratégia para apresentar aos leitores a
prática de leitura, é também uma forma de dar a ler aqueles que ainda não dominam o código
escrito, como também proporcionar, aos que já dominam, um momento de audição e
comunhão. A BLR entende que a aprendizagem da língua escrita é imprescindível na
construção do leitor independente. Contudo, ela não cuida, não em sua ação programada, para
que o leitor adquira esse saber, pois ela atribui essa responsabilidade à Escola. A BLR cuida
para que os alfabetizados ou em alfabetização vivenciem outra experiência possibilitada pela
língua escrita: a literatura e seu valor estético, embora, a BLR seja consciente de que muitos
dos seus leitores/usuários aprenderam e aprendem a ler (no sentido de se alfabetizarem),
também, nos livros do seu acervo. E isso foi dado a saber pelos próprios leitores/usuários. Em
entrevista para a pesquisa realizada por Vilar e Fragoso (2001), essa foi uma das informações
mais recorrentes. Os entrevistados afirmaram que levavam livros para casa antes mesmo de
dominarem o código escrito, na certeza de que, em casa, parentes dariam voz ao escrito. A
exemplo: “Aí eu pegava e minha irmã me ensinava, às vezes quando eu ia dormir, ou ficava
assim na cama, num cantinho” (p. 10). Mais adiante, a leitora informa que nem sempre havia
leitores a sua disposição, o que não a impedia de fazer sua leitura. “Mainha mandava eu ler,
ficava olhando as figuras, os textos.” Ainda em Vilar e Fragoso (2001, p. 16), temos uma
outra leitora que também, em seus passos de aprendiz do código escrito, trilhou seus
caminhos pelos livros da BLR.: “Não sabia ler ainda não. Eu aprendi ainda lendo esses livros.
((indicando com os olhos, as caixas que estavam no chão da sala))”.
A classificação dos livros da BLR, suas disposições em caixas seqüenciadas,
“considerando o grau de dificuldade do livro e o nível de leitura dos alunos” (AELER: 2003,
p. 09), é um indicativo de que a BLR pressupõe que seus sujeitos se constroem leitores
autônomos, concomitantemente, ao seu aprendizado do código escrito, A BLR parte da
hipótese de que, à medida que os leitores vão se alfabetizando, vão mudando de caixa e prevê
que essa mudança siga a seqüência das cores das caixas do kit: branca, vermelha, verde e
55
azul
25
. Essa classificação tem por função auxiliar os usuários na escolha do livro. E realmente
os auxilia, pois eles sabem em que caixa procurar o livro pretendido e isso é revelado pela
autonomia com que procuram, folheiam e indicam caixas e livros aos colegas, como também
pela pouca solicitação ao auxílio da PL na procura do livro. Entretanto, o caminho percorrido
pelos usuários não segue a seqüência de caixas previstas pela BLR. Vejamos algumas
situações.
Foi recorrente, nos nossos registros, o fato dos usuários da 1ª série do Ensino
Fundamental, nos primeiros atendimentos, afoitos por terem direito a usufruírem o
empréstimo – já que no pré-escolar só usufruíam a leitura/contação da PL –, tomarem por
empréstimo livros da caixa azul, mesmo sob protestos das professoras. A PL, embora não
interferisse diretamente na escolha, por vezes, mostrava aos usuários livros que considerava
compatível com os mesmos. Mas, na maioria das vezes, nada os demovia da idéia de levar um
livro da caixa azul para casa. Certa vez um usuário, em resposta à interpelação da PL sobre o
tempo que seria gasto na leitura de um livro tão “grande”, disse: “De dia-em-dia!” (AELER:
2003, p. 10).
O leitor não tem pressa, ele irá saborear sua caça com toda a paciência e perícia de um
degustador. Leitor-caçador, é assim que Certeau (1996, p.269-270) se refere ao leitor, pois
para ele “os leitores são viajantes; circulam nas terras alheias, nômades caçando por conta
própria através dos campos que não escreveram”. Embora os leitores de Conde,
provavelmente, não tenham lido nem ouvido os textos de Certeau, utilizam essa expressão
quando se referem à procura de um livro. “Ainda tô caçando um livro na caixa.” Esses ditos,
freqüentes, soavam deliciosamente aos nossos ouvidos, pois lembrávamos de Certeau.
Se “de grão-em-grão a galinha enche o papo”, “de dia-em-dia” o leitor concluirá a
leitura do livro. Ou simplesmente desistirá da leitura do mesmo. Mas isso não é problema, se
assim o fizer ele não estará infringindo nenhuma regra. Aliás, essa ação está prevista nos
Direitos Imprescritíveis do Leitor elaborado por Pennac (1998, p. 139) onde temos que ao
leitor é dado “o direito de não terminar um livro”.
26
O leitor tem “fome” e sua voracidade pelo texto escrito posteriormente lhe denunciará
que seu “olho foi maior que a barriga”, no sentido de que sua aquisição do código escrito
25
A caixa de cor amarela contém livros que fogem à classificação quanto ao nível de leitura. O critério de
classificação para essa caixa é que o texto seja informativo, independentemente de sua complexidade, da
presença ou ausência de ilustrações.
26
São dez, os Direitos Imprescritíveis do Leitor elencados por Pennac (1998):
(1) O direito de não ler. (2) O direito de pular páginas. (3) O direito de não terminar um livro. (4) O direito de
reler. (5) O direito de ler qualquer coisa. (6) O direito ao bovarismo. (7) O direito de ler em qualquer lugar. (8) O
direito de ler uma frase aqui e outra ali. (9) O direito de ler em voz alta. (10) O direito de calar.
56
ainda é incompatível com o texto verbal do livro. Após as primeiras semanas de empréstimos,
os leitores da 1ª série percorreram as outras caixas e ao descobrirem as ilustrações, passaram a
adotá-las também como critério de escolha. E, ao descobrirem as caixas vermelhas, tornaram-
se fregueses assíduos do seu acervo, resistindo a percorrer as demais caixas. O que temos é
que o caminho percorrido pelo leitor não é assim tão previsível como pressupõe a BLR, nem
seu nível de leitura é tão fácil assim de categorizar.
Ademais, temos que a seleção dos textos quanto ao “grau de dificuldade do livro e o
nível de leitura dos alunos” é feita pela BLR de um modo muito simplista: o grau de
complexidade do texto escrito é indicado pela quantidade de ilustrações. Assim, para a BLR, a
quantidade de ilustrações é inversamente proporcional ao nível de leitura exigido. Realmente,
para certas produções editoriais, esse critério procede; nesse caso, as ilustrações são
redundantes ao texto escrito, auxiliando o leitor “imaturo” na significação do mesmo. Mas,
nem todas ilustrações são tão redundantes assim.
E o que dizer dos livros de imagens, a exemplo de Seca e Mestre Vitalino, ambos de
André Neves, dentre outros, que exigem do leitor certa maturidade, criatividade e destreza em
sua leitura? E aqui é bom ressaltar que esses livros de imagens, presentes nas caixas brancas,
não são muito procurados pelos leitores da BLR. Comentários tais como: “Não vou pegar esse
livro não. Não tem o que ler” (FRAGOSO, 2004), foram recorrentes entre os usuários que
visitavam a caixa branca. Parece contraditório: leitores que gostam de ilustrações demonstram
desagrado diante de Livros de Imagens. Entretanto, o que se evidencia é que os leitores da
BLR procuram o equilíbrio entre texto e imagem em sua conquista pela prática leitora
autônoma. Além disso, os leitores da BLR são ansiosos na conquista da independência em
decodificar o escrito, em dar, eles mesmos, a voz ao texto. Em se tratando dos leitores da
BLR, a aprendizagem da decifração do signo lingüístico é posterior à vivência da prática
leitora. É por saberem ler, mesmo que por audição, por saberem apreciar uma narrativa, um
jogo com as palavras, por perceber uma ironia disfarçada em um texto que anseiam pela outra
ação necessária a um leitor autônomo, a ação de decifrar o signo lingüístico. Talvez por isso a
exigência dos leitores pela presença de texto verbal.
Contudo, há, na BLR, leitores de livros de imagens que, por um motivo ou outro, dão
voz às ilustrações. Certa vez, ao chegarmos em uma das escolas, surpreendemos um leitor
lendo/contando, entusiasmadamente, para seus colegas de turma, o livro de imagens Filó e
Marieta de Eva Furnari (FRAGOSO, 2000). Em outra ocasião, um leitor escolheu um livro de
imagens e, segredando ao colega o motivo da escolha, informou que a professora “tomaria” a
leitura deles naquela semana a partir dos livros da BLR. Sendo seu livro somente de imagens,
57
ele não precisaria ficar nervoso e, até mesmo, poderia ser dispensado da leitura (FRAGOSO,
2003). Como vimos, diversos são os motivos que levam o leitor a escolher um livro de
imagens: gosto, tática, astúcia dentre outros. Alguns leitores já alfabetizados também
procuram os livros de imagens, e isso é evidente no registro escrito que eles fazem e deixam
nas páginas desses livros, escrevendo as falas dos personagens e descrevendo as cenas.
Assim, ao final de sua leitura, o leitor disponibiliza esse livro a outro leitor já acrescido de um
texto escrito. Contudo, de um modo geral, como já ressaltamos, a ausência do escrito
incomoda os leitores da BLR, assim como a ausência e escassez de ilustrações.
Há ilustrações que repetem o texto verbal, configurando sua existência no suporte livro
apenas como enfeite. Sua supressão em nada comprometeria a leitura. Outras ilustrações
configuram-se como textos
27
, portanto passíveis de leitura(s). Segundo Azevedo (1998), há
quem acredite que à ilustração cabe apenas a função de ajudar no entendimento do texto
escrito ou que serve
como um “enfeite” para
dar mais cor às
monótonas marcas
pretas em meio a
páginas brancas. Mais
que isso, a ilustração,
quando não redundante
ao texto escrito, é uma
arte que possibilita a
ampliação do potencial
significativo do texto.
Azevedo (1998, p. 108)
alerta que “é impossível
negar que todo texto
ilustrado vai, necessariamente, receber interferências de suas ilustrações. A energia, a
linguagem, as cores, o clima, a técnica, o imaginários, tudo o que o ilustrador fizer vai alterar
e interferir na leitura (e no significado) do texto.”
Como exemplo, podemos citar o livro Tanto, tanto com texto escrito por Trish Cooke
(tão apreciado pelos leitores da BLR!), em que se narra uma festa surpresa preparada para o
27
Texto aqui no sentido de objeto de significação (BAKHTIN, 2000).
Foto 8. Usuários avaliando os livros da caixa vermelha para um possível
empréstimo.
Fonte: acervo da BLR.
58
pai. Toda a família vai chegando aos poucos, causando expectativa nos personagens e nos
leitores; assim vão chegando primos, tia, avó e à medida que chegam brincam com o bebê: o
centro das atenções da casa e do enredo. O texto escrito descreve as brincadeiras e as palavras
carinhosas. Mas, a ilustração de Helen Oxenbury diz tanto quanto o texto verbal, suas cores
alegres vão delineando rostos felizes e gestos afetuosos que deixam bem evidente o amor que
todos têm pelo bebê. Se o leitor tiver acesso somente ao texto verbal, talvez, influenciado pelo
estereótipo do “bebê Johnson”, branco e de olhos azuis, imagine o da história com as mesmas
feições. Mas há uma informação que só é dada pela ilustração: o bebê, que todos amam
“tanto, tanto”, é um lindo bebê negro, integrante de uma família negra. Podemos citar também
outros exemplos como os divertidíssimos Amoreco, Príncipe Cinderelo e Mamãe botou um
ovo! de Babette Cole em que as ilustrações nos remetem a cenas engraçadas e “indizíveis”, de
que um texto verbal dificilmente daria conta.
Talvez esse encanto da ilustração, uma vez descoberta, responda, mas não
completamente, à resistência dos usuários da BLR em percorrer as outras caixas do kit,
principalmente a de cor azul em que as ilustrações, quando existentes, são raras. Essa
resistência não é presente só nos leitores da primeira fase do Ensino Fundamental; a
experiência da BLR com a segunda fase também testemunhou essa resistência, a ponto de a
BLR retirar as caixas vermelhas
28
do kit de empréstimo da segunda fase. Essa medida foi
necessária, pois a procura pelas caixas vermelhas era bem maior que o acervo delas. Como a
procura era maior que a oferta, a BLR disponibilizou as caixas vermelhas apenas aos leitores
da primeira fase. E aos usuários da segunda fase, disponibilizou mais caixas na cor verde
29
e
azul
30
. Após essa medida, houve uma queda no número de empréstimo na segunda fase e a
BLR teve que transferir para a caixa verde alguns livros da caixa vermelha – aqueles que
poderiam ser classificados tanto para esta como para aquela, pois suas ilustrações
acompanham textos verbais mais extensos – até que os usuários se acostumassem com a
“nova” caixa.
Vejamos os resultados de outra pesquisa com outro público, para melhor responder ao
nosso questionamento quanto à preferência dos leitores da BLR por livros com fartas
ilustrações. Um estudo realizado por Amarilha (2004), em meados de 1990, com 350 alunos
das cinco primeiras séries do Ensino Fundamental de 14 escolas estaduais de Natal – RN,
apontou que os leitores não abandonavam os livros ilustrados, contrariando as expectativas
28
Reúne livros com texto ilustrativo em evidência.
29
Reúne livros com texto verbal em evidência, embora acompanhe ilustrações.
30
Reúne livros com texto verbal mais extenso acompanhado de pouca ou nenhuma ilustração.
59
dos profissionais das escolas em questão, que acreditavam que à medida que fossem
amadurecendo no domínio do código escrito, os leitores iriam dispensar as ilustrações. (A
mesma expectativa da BLR!) Amarilha informa que, entre os profissionais da educação,
sujeitos de sua pesquisa, havia uma prática que revelava o entendimento deles de que
ilustração tem por função auxiliar o leitor na atribuição de sentido ao texto escrito, ou de
“facilitadora do aprendizado da leitura”. Amarilha (2004, p. 41) também defende que “a
ilustração é instrumento do processo de ler (...) Com certeza, reconhecer e interpretar
ilustrações faz parte da gênese da alfabetização. Mas o que dizer de um processo que não
avança do pictórico para o verbal?” O problema, para a autora, está na inexistência desse
“progresso”, referendado pela posição dos profissionais ante esta constatação que, ao invés de
possibilitarem o percurso do aluno/leitor por outros textos, acabaram por reforçar essa
comodidade através de indicações de livros fartamente ilustrados.
Dentre as várias funções atribuídas por Amarilha (2004) à ilustração, como a de
possibilitar a capacidade de observação e análise do leitor, e a já citada função de facilitar o
aprendizado da leitura, a autora afirma que à ilustração foi atribuída a função de substituir a
voz do narrador que anteriormente trilhava com o leitor/ouvinte os caminhos da compreensão
da história (AMARILHA, 2004, p. 42-43).
Ora, com a popularização dos livros e outras mudanças sociais, a leitura
individual tornou-se mais difundida e necessária. Com isso, o leitor
desprovido das nuances da voz narrando uma história perdeu seu referencial
e seu guia na compreensão da trama. Agora, ele teria que, sozinho, suprir a
ausência da voz do narrador e contar, ele próprio, a si mesmo a história lida.
A gravura vem, então, substituir a entonação da voz do leitor-narrador. O
texto encolhe-se para dar lugar à imagem. Pelas cores, linhas, formas e
ângulos das ilustrações, o leitor aprendiz tem um guia de leitura mais
preciso que, inclusive, produz resultados socializadores, como a voz fizera
no passado.
Entretanto, a voz do leitor-narrador é elemento cotidiano nas práticas de leitura dos
leitores da BLR quer através da PL quer através de familiares, que, segundo depoimentos,
costumam partilhar o momento da leitura (VILAR; FRAGOSO, 2001). Desse modo, o
argumento de que a preferência pela ilustração supre a ausência de uma voz, não se aplica aos
leitores da BLR. Pelo contrário, acreditamos que, é na voz do narrador, ou seja, na
leitura/contação da PL que encontramos um direcionamento à leitura de livros ricos em
imagens, resultando na permanência dos leitores com esse tipo de texto. Explicaremos
melhor. As PL priorizam em sua performance, livros da caixa vermelha, ou seja, os ricos em
ilustrações. Essa prioridade é justificada, por elas, também, devido ao tamanho da história, já
60
que a leitura/contação não pode exceder muito ao tempo médio de cinco a dez minutos, por
correr o risco das PLs não darem conta de outras salas e escolas a serem atendidas dentro
daquele horário. O atendimento por sala – entre recolher, ler/contar e emprestar livros – tem
duração média de 30 minutos, não podendo exceder a isso. Lembramos que eram 20 escolas e
duas creches atendidas dentro de uma semana por apenas cinco PLs. O horário de
atendimento às escolas foi estabelecido, tendo por base essa média de tempo. Dessa forma, se
a PL levasse mais tempo no atendimento de uma turma, correria o risco de não atender a
última escola prevista no horário. Somando o tempo para o atendimento aos leitores e
usuários, tem-se que computar o tempo gasto no itinerário entre uma escola e outra. Em
média, cada PL atende a três escolas em um expediente.
Nas ocasiões em que as PLs decidiram ler/contar histórias maiores, dividiram-nas em
duas partes, começando a narrativa em uma semana e concluindo-a na outra. Mas esse é um
artifício não muito apreciado pelas PLs, pois das vezes que assim o fizeram, tiveram a
continuidade da leitura interrompida por certos imprevistos, por vezes constantes, como falta
de combustível, estradas intransitáveis, carro quebrado, atolamento em areal ou lamaçal,
dentre tantos que as impediram de chegar até algumas escolas. Assim, a leitura/contação da
segunda parte da narrativa distanciou-se da primeira, desgostando os leitores/ouvintes e as PL,
fazendo com que estas abandonassem esse tipo de técnica.
Mas não é só o tempo, fator decisivo na escolha da história a ser performatizada.
Como já dissemos no capítulo anterior, a ilustração também é critério de escolha das PLs e
elemento integrante de sua performance. A ilustração, associada à voz e ao gesto da PL, é
uma forte aliada na construção da performance. Ler/contar histórias sem o recurso da
ilustração requer muito mais da PL e de sua criatividade. Ademais, as PLs afirmavam que as
histórias, dentre o acervo da BLR, ideais para serem performatizadas encontram-se na caixa
vermelha: histórias que, em curta duração, contemplam as partes de uma narrativa exigida
pelos leitores/expectadores: começo, apresentação do problema e resolução do problema,
além de possuírem texto escrito apropriado para a oralização. Por essas histórias constarem
em livros da caixa vermelha, inevitavelmente, contêm textos ilustrativos, tendo em vista que o
critério para a seleção desta caixa é exatamente a presença marcante das ilustrações. E se o
suporte também possibilita ao leitor/expectador esse texto, por que privá-los?
Há então uma contradição dentro do fazer da BLR: enquanto a seleção do acervo
pressupõe um abandono gradativo da ilustração por parte do leitor, sua prática de leitura ante
os leitores/expectadores não segue essa indicação. O que temos é que as leituras/contações da
PL direcionam as leituras dos leitores (observe-se bem que direcionam, mas não determinam),
61
pois eles ainda estão trilhando seu caminhar em busca de autonomia e vivenciam, na
performance da PL, experiências com a leitura. Se esta, por sua vez, não lhe proporciona
novos textos, trilhará, talvez, sozinho ou com o auxílio de outros leitores, outros
caminhos/textos.
E foram exatamente esses caminhos que os leitores da segunda fase do Ensino
Fundamental percorreram. Alguns, ao transitarem sozinhos pelas caixas, descobriram, nas
azuis, as séries Vaga-Lume e Primeiro Amor, ambas da Editora Ática. Como em um
“telefone-sem-fio”, um leitor indicou a outro, que indicou a outros e assim por diante, a ponto
da caixa azul ser uma das mais “reviradas” entre os leitores dessa fase. Somando-se a essa
iniciativa do leitor, teve também a da PL que atendia a esse segmento de ensino. Ela, ao
constatar a insatisfação dos leitores quanto aos livros oferecidos e por atribuir essa
insatisfação ao desconhecimento das obras, resolveu ler sinopses ou trechos de alguns livros
na sala de aula. Essas sinopses e trechos deveriam ser curtíssimos para não tomar muito o
tempo das aulas. A resposta dos leitores foi imediata. Na segunda semana, quando a PL leu
um trecho do Manual de sobrevivência familiar, de Ivan Jaf, – em que se narra as hilárias
estratégias de um adolescente para se proteger do amor da família, pois considera perigosas
essas demonstrações de afeto –, muitos foram à procura do referido livro. Os que não
conseguiram chegar a tempo de tomá-lo emprestado, tiveram outras indicações da PL dentre
os livros da caixa azul. Nas semanas subseqüentes, a leitura da sinopse ou de trecho tornou-se
desnecessária, pois os leitores, ao devolverem seus livros, já levavam consigo o próximo
leitor para efetuar o empréstimo, de modo que os livros não voltavam mais para as caixas
azuis, eles haviam caído em uma rede de leitores (FRAGOSO, 2002).
3.3 Em meio aos olhares, aos discursos e às interdições, estratégias de leitura e astúcias
de leitores
Como dissemos anteriormente, os leitores da BLR e a BLR convivem em outro
espaço, o escolar que, por sua vez, tem seu discurso próprio sobre a leitura e,
conseqüentemente, elabora sua imagem de aluno/leitor. O discurso e a prática de leitura
dessas duas instituições, Escola e BLR, são divergentes. A primeira cuida que a leitura tenha
um sentido, o autorizado por ela, que tenha um caráter didático e avaliativo; ela mesma é
quem cuida da seleção do que é dado a ler. O livro oficial é o livro didático e é ele quem
referenda a “verdade” dita pelo professor. A leitura do professor é a oficial, a autorizada, a
62
expressão da verdade; ao aluno, enquanto leitor, cabe a função de receptor passivo (SOUSA,
2002).
A leitura autorizada pela escola é a utilitária; e seu dizer sobre a leitura, como afirma
Larossa (2000, p. 117), é explicitado em seu discurso pedagógico que
estabelece o modo de leitura, tutela-o e avalia-o ou, dito de outra forma,
seleciona o texto, determina a relação legítima com o texto, controla essa
relação e ordena hierarquicamente o valor relativo de cada uma das
realizações concretas da leitura, distinguindo entre ‘melhores’ e ‘piores’
leituras.
Para Larossa (2000), o comentário do texto se constitui o dispositivo pedagógico mais
recorrente. Em Sousa (2002), vemos que, na Escola, após a leitura vem sempre o comentário
que é particularmente constituído de perguntas do professor dirigidas aos alunos.
Direcionando o comentário, inevitavelmente, o professor direcionará a leitura, pois o
comentário é um dispositivo de ordenação do discurso, que se propõe a fixar o sentido
(FOUCAULT, 2001).
Em estudo realizado por Sousa (2005), em escolas públicas e privadas do município de
João Pessoa, vemos que a Escola, embora tome para si o papel de formadora de leitores,
considera seus alunos não-leitores ou mau-leitores. E direciona sua prática pedagógica
partindo desse (pré)conceito. Resultado: embora os alunos rejeitem a leitura e o que lhes é
dado a ler pela Escola, constituem-se leitores em outros espaços. Esse fato e esse discurso,
acreditamos, não é recorrente apenas nas escolas pesquisadas por Sousa, haja visto o lugar-
comum de que o povo brasileiro é um não-leitor, e as inúmeras iniciativas governamentais e
não governamentais de “estímulo” à leitura.
A BLR, ao se propor caminhar na contra-mão dessa imagem de leitor não-leitor
instituído pela Escola, favorece, em seu dizer/fazer a leitura, oportunidades para a
multiplicidade de sentidos em detrimento da “verdade”, no momento em que não avalia, não
tece comentários sobre a leitura; prioriza a gratuidade da mesma em detrimento de sua
utilidade e percebe o leitor como sujeito ativo e crítico. Após a leitura/contação da PL,
seguem-se os aplausos e o silêncio, não no sentido do estéril, mas no sentido da não-
obrigatoriedade do comentário, na certeza de que seus leitores, por si sós, são capazes de dar
sentido e “utilidade” à leitura. “Grande fruição do leitor, esse silêncio depois da leitura”
(PENNAC, 1998, p. 20). Terminada a leitura/contação, o encaminhamento é outro: os leitores
se manifestam pelo aplauso e vão à “caça” de outros textos a ler.
63
O discurso da Escola e o discurso da BLR circulam em um mesmo espaço: o escolar;
que, assim como demais discursos divergentes, “se cruzam por vezes, mas também se
ignoram ou se excluem.” (FOUCAULT: 2001, p. 52-53) É nesse movimento dos discursos
que o sujeito – aqui o leitor – encontra seu ponto de fuga, se inserindo ora em um, ora em
outro espaço discursivo, ora inventando um outro lugar: o seu.
Manguel (1999) considera o leitor detentor de poder, e isso é expresso na sua
atribuição de sentido ao texto, na sua leitura silenciosa que a ninguém dá a saber o que lê,
mesmo estando em meio à multidão. O leitor percorre o itinerário deixado pelo escritor, mas,
em seu percurso pelo texto, usufrui uma certa liberdade para associar este a outras leituras,
contrapondo-se a esta e/ou corroborando com ela. O leitor, em um instante de leitura, pode
aparentar uma inércia, um alheamento ao mundo expresso na quietude de seu corpo. Mas essa
quietude não pode ser interpretada como passividade. Certeau (1996) também contra-
argumenta o senso-comum de que a leitura é associada à passividade e adverte sobre a
imagem que se tem do leitor como um consumidor passivo. O sujeito não age com indiferença
ante uma recepção, antes, ele se faz presente e demarca seu lugar, pois à assimilação, tão
associada ao consumo e à passividade, é dado, por Certeau, o sentido de assemelhar-se à,
apropriar-se, reapropriar-se.
Essa apropriação e reapropiação são resultantes da contemplação do objeto estético em
questão, a leitura. É no olhar, no sentir, no perceber que o sujeito, aqui o leitor se constitui
também criador, pois “a contemplação é um ato de criação, de co-autoria. Aquele que aprecia
a obra continua a produção do autor ao tomar para si o processo de reflexão e de
compreensão” (BORBA; GOULART, 2006, p. 50). Sendo a leitura um ato de criação, jamais
poderá ser associada à passividade, ao conformismo.
Embora pareça alheamento, mas não seja, a quietude física do leitor em sua leitura
silenciosa permite-lhe uma certa liberdade sobre o que lê e sobre o sentido. A leitura em voz
alta não permite ao leitor essa privacidade. Mas, ao negar a sua voz ao texto, o leitor
conquista seu hábeas corpus, na expressão de Certeau (1996).
Como o corpo se retira do texto para se comprometer com ele apenas pela
mobilidade dos olhos, a configuração geográfica do texto organiza cada vez
menos a atividade do leitor. A leitura se liberta do solo que a determinava.
Afasta-se dele. A autonomia do olho suspende as cumplicidades do corpo
com o texto; ela o desvincula do lugar escrito; faz do escrito um objeto e
aumenta as possibilidades que o sujeito tem de circular (p. 272).
64
Manguel (1999), enquanto leitor, relata um episódio vivido em sua adolescência
quando se deu a descoberta desse hábeas corpus. Certa vez, ao adentrar na biblioteca do pai,
foi em busca das enciclopédias para ler sobre verbetes relacionados a sexo. Em meio a sua
leitura silenciosa, foi surpreendido pela presença do pai que, por sua vez, sentou-se à
escrivaninha a poucos metros. Por alguns instantes, Manguel sentiu-se constrangido pela sua
leitura, mas logo percebeu que apenas ele era senhor do que lia, e que o outro só tomaria
conhecimento de sua leitura caso ele desse a saber.
Quantos relatos parecidos com os de Manguel também não temos conhecimento? Quer
os vividos por nós quer os que nos foram segredados. E na escola? Quantas histórias de
alunos camuflando gibis ou revistas de nu “artístico (?)” em meios às páginas do livro
didático? Uma leitora da BLR, em conversa informal com uma das PLs, segredou que, nas
aulas de geografia, abria o livro didático e escondia entre suas páginas um dos livros do
acervo da BLR; e enquanto a professora explanava o conteúdo didático, ela lia o que lhe era
de interesse (FRAGOSO, 2002).
É essa busca pelo habeas corpus que faz o leitor da BLR ansiar pelo domínio da
decifração do código escrito, conforme nos referimos anteriormente. Dando ele mesmo voz
ou sentido ao texto, usufruirá muito mais de seu poder de leitor, de sua intimidade com o texto
e de sua invisibilidade, da qual nos relatou Manguel (1999). Será toda sua agora, a
responsabilidade na assimilação, apropriação, reapropriação e criação do texto.
A mobilidade invisível do leitor é constituída por táticas que permitem burlar e ser
livre dentro de um terreno imposto. Vejamos o que Certeau (1996, p. 100-101) nos diz sobre o
conceito de tática:
chamo de tática a ação calculada que é determinada pela ausência de um
próprio. Então nenhuma determinação de fora lhe fornece a condição de
autonomia. A tática não tem lugar senão o do outro. E por isso deve jogar
com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força
estranha. [...] a tática é movimento ‘dentro da visão do inimigo’, como dizia
von Büllow, e no espaço por ele controlado. [...] Este não-lugar lhe permite
sem dúvida mobilidade, mas nunca docilidade aos azares do tempo, para
captar no vôo as possibilidades oferecidas por um instante. Tem que
utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na
vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue
estar onde ninguém espera. É astúcia (grifos do autor).
Ainda complementado esse sentido, Certeau (1996; p. 101) afirma que “a tática é determinada
pela ausência de poder assim como a estratégia é organizada pelo postulado de um poder”
(grifos do autor).
65
Assim, podemos afirmar que os leitores que circulam no espaço escolar e em meio às
práticas de leitura da BLR constroem-se e constroem suas táticas a partir e em meio às
estratégias de leitura dessas duas instituições: ora correspondendo aos discursos legitimados
sobre a leitura, ora burlando-os em seu fazer.
Os usuários também burlam as regras de empréstimo estabelecidas pela BLR. Alguns
inadimplentes escolhem livros e vão para a fila de empréstimo; se a PL não estiver atenta para
a lista de inadimplentes daquela semana, efetua o empréstimo e só percebe o engano no
momento da devolução que se dará na próxima visita; instante em que o usuário, com a “cara
mais lavada”, devolve dois livros. É recorrente, na rotina da BLR, os inadimplentes irem para
a fila de empréstimo, na esperança de que o “olhar vigiador” da PL falhe.
Mas também, em algumas ocasiões, as próprias PL fecham seus olhos vigiadores.
Uma das PL relatou que observava uma usuária que ao sair da fila de empréstimo passava
pelas caixas de livros e levava mais um, na surdina. Para devolvê-los, ela também era bastante
astuciosa: oferecia-se para ajudar a PL no recolhimento dos livros, recolocando a ficha de
empréstimo nos envelopes, momento em que ela aproveitava para, além de devolver o livro
que tomou emprestado oficialmente, omitir na pilha de livros devolvidos, o que levou sem
legalmente efetuar o empréstimo. A PL que tudo percebia, reconhecia na usuária uma leitora
ávida por livros, contudo não poderia oficialmente oferecer-lhe empréstimo de dois livros,
pois teria que oferecer o mesmo aos demais usuários. Assim, a PL fazia “vista grossa” à burla
da usuária, ao mesmo tempo em que ela também burlava uma das regras da qual era sua
função fazer cumprir (FRAGOSO, 2002).
Os leitores constroem suas táticas não só à revelia dos discursos da Escola e da BLR,
há também outros discursos e vigias que eles precisam burlar, como a família, vigia do
discurso religioso. A prática da censura (quer de cunho religioso ou político) de queimar
livros, tão presente na história da humanidade, foi repetida pela mãe de uma das leitoras da
BLR. Esse fato nos foi relatado por uma das PL que estranhou a inadimplência de uma das
usuárias que sempre fora pontual na devolução do livro, bem como percebeu o acanhamento
daquela a sua presença na escola. Semanas depois, a usuária tomou coragem e disse que não
poderia mais devolver o livro Um buraco no telhado, pois sua mãe o havia queimado por tê-lo
considerado “satânico” (FRAGOSO, 2003).
Ainda como zeladores das práticas religiosas, outros pais agiram para salvaguardar
seus filhos dos livros e das leituras “pecaminosas e ofensivas”. Certa vez, o pai de outra
leitora a proibiu de ler os livros oferecidos pela BLR, com o argumento de que essas horas de
leitura deveriam ser dedicadas, em sua maioria, também à Bíblia. O fato de a filha não
66
priorizar a leitura do Livro Sagrado, teve como punição a proibição da leitura de livros não
religiosos. Houve outro pai, também pastor de uma igreja da comunidade, que foi até a escola
reclamar à direção a presença da BLR com o argumento de que suas leituras eram cheias de
fadas e bruxas, estimulando as crianças à “fantasia” e à “mentira”. Após muita conversa com
a diretora, o pai permitiu que sua filha tomasse os livros da BLR por empréstimo, desde que
lesse junto com ele (FRAGOSO, 2004).
A reserva das religiões cristãs às leituras é histórica. Inicialmente, a leitura permitida e
propagada era a do texto sagrado, mas, mesmo assim, muitos leitores da Bíblia somente a
liam na voz dos eclesiásticos, que frisavam suas interpretações das escrituras, de maneira a
não permitir outras. Somente após a Reforma Protestante, foi que a leitura da Bíblia foi
recomendada aos fiéis, para que a fizesse diariamente no recesso do seu lar. Contudo, nas
reuniões, o eclesiástico fazia a leitura do texto sagrado, ressaltando bem o “verdadeiro”
significado. Com o discurso protestante de que, para exercitar a fé cristã e para tornar-se
espiritualmente mais fortalecido, os fiéis deveriam ler a Bíblia, a alfabetização tomou
repercussão ao ponto que, em alguns países protestantes, a capacidade de ler se tornou
universal, embora priorizassem a aprendizagem da leitura em detrimento da escrita
(CHARTIER, 1991). Ao mesmo tempo em que as práticas religiosas pressionaram seus fiéis à
leitura, restringiram-na à leitura da Bíblia. E, atualmente, se não a restringe ao Livro Sagrado,
exigem maior dedicação a ela.
No caso da BLR, como resposta aos fatos mencionados e respondendo à solicitação de
alguns leitores, a BLR acresceu seu acervo com Bíblias infantis e livros com narrativas
bíblicas. Tomando por empréstimo esses livros, os leitores da BLR apaziguaram os ânimos
dos pais (zeladores das normas cristãs), ao mesmo tempo que atenderam ao seu desejo de
leitor. Dessa forma, os leitores encontraram no proibido (acervo da BLR) algo permitido
(livros religiosos) e, quando os pais baixaram a guarda e deixaram de vigiar o que tomavam
por empréstimo, encontraram no permitido (livros religiosos do acervo da BLR) o proibido
(livros não religiosos).
São nesses espaços que o leitor da BLR transita, burlando um olhar aqui, uma regra
ali, ora conformando-se, ora resistindo. É nesse espaço de fuga que se dá sua prática de
leitura, é nesse espaço que ele se constrói leitor. E o que ele lê, como lê e para que lê é algo
tão incerto e obscuro aos nossos sentidos que somente nos é dado a saber se revelado pelo
próprio leitor ou quando esse deixa escapar algumas marcas.
67
4 ESCRITOS DE LEITORES: revelando leitores e práticas de leitura
Na escola a professora ensinava leitura. Foi sem esforço que o menino
aprendeu. Ele já conhecia que entre as letras e seus silêncios podia-se saber
muito mais longe. Era possível viajar mundos distantes. Mundos que o olhar
não alcançava, mas o livro trazia. E daí para Antônio escrever, bastou
apenas um lápis.
(Bartolomeu Campos de Queirós – Indez)
A relação do leitor com o texto é muito íntima, ou até mesmo secreta. Se o leitor leu,
não leu, se gostou, não gostou, se se emocionou, se foi indiferente, somente é dado a saber a
outros se, presencialmente, ele relatar ou se fizer anotações nas margens, capa e/ou contracapa
do suporte do texto lido que agora se faz suporte também do seu escrito. Outras marcas
(perceptíveis aos cinco sentidos) nos dão outros indícios sobre o leitor, mas nunca sobre sua
leitura. Manchas de café, marcas de cigarro em meio às páginas, folhas amassadas, “orelhas-
de-burro” (aquelas dobras nas pontas das páginas para marcar a pausa na leitura ou algum
trecho que merece ser relido), vestígios de perfume, areia entre as páginas (será que leu na
praia?), dentre tantas outras marcas que nos fazem inferir sobre a pessoa do leitor: ah, esse é
desleixado! Esse outro parece ser bom vivant, deve ter lido na praia... Humm, deve ser
elegante a julgar pela fragrância! Essas marcas podem até nos divertir, se quisermos brincar
de detetive e buscarmos as pistas deixadas pelo leitor; ou aborrecer-nos se as marcas
estiverem em nosso livro, aquele que emprestamos com tanta cautela...
Essas marcas podem ser deixadas pelo leitor involuntariamente (ou não), mas o certo é
que, em algumas ocasiões, o leitor se sente impelido a deixar sua marca por onde passou (para
desespero das bibliotecas), quer grifando as passagens que julgou relevante, quer escrevendo
observações, impressões ou registrando algo que nada tenha a ver (não explicitamente) com o
texto lido. Há ocasiões, também, em que o leitor prefere não deixar marca alguma; como no
caso das leituras “clandestinas” em que se esmera para não deixar nenhum vestígio de sua
passagem.
68
Esse ímpeto do leitor em deixar registro de sua leitura, ou de sua passagem pelo texto,
ou até do desejo de escrever é referido por Barthes (1984) como uma das aventuras da leitura,
dentre as três que ele cita. A primeira caracterizada pela leitura vagarosa, saboriando
lentamente o texto, sentindo bem as palavras; a segunda pela leitura apressada e ansiosa,
quase “devorando” as palavras e, por fim, a terceira caracterizada pelo desejo de escrever, seja
lá o que for, seja lá onde for, inclusive nas margens, nas contracapas dos livros. Nas palavras
de Barthes (1984, p. 36):
existe uma terceira aventura da leitura (chamo aventura ao modo como o
prazer vem ao leitor): é, se se pode dizer, a da Escritura; a leitura é
condutora do Desejo de escrever (temos agora a certeza que existe uma
fruição da escrita, embora seja ainda muito enigmática); não é, de modo
algum, desejarmos forçosamente escrever como o autor cuja leitura nos
agrada; o que desejamos é simplesmente o desejo que o scriptor teve de
escrever, ou ainda; desejamos o desejo que o autor teve do leitor quando
escrevia, desejamos o ama-me presente em toda a escrita. (grifos do autor –
negrito nosso)
Parece-nos que foi exatamente o que aconteceu com Antônio em Indez. No trecho
reproduzido na epígrafe deste capítulo, fica bem evidente que o leitor, após descobrir o
mundo da leitura e seus encantos, se aventurou na escrita, e sem dificuldades, pois “bastou-lhe
apenas um lápis”. Considerando que a leitura é condutora do Desejo de escrever, como se
deu, então, a escrita em meio a um Programa que, desde o início, se destinou à leitura? Uma
das preocupações da AELER na formulação de seu Programa de Leitura, a BLR, foi a da
leitura não ser pretexto para a escrita ou para a aprendizagem da escrita. A intenção da
AELER sempre foi a de priorizar o caráter estético da leitura, em que o que vale é a fruição, o
prazer e a própria leitura. É o “ler pra ler” na expressão de Sousa e Vilar (2001), em outras
palavras, o que vale é a gratuidade da leitura, sem a preocupação com resultados palpáveis
como avaliações. Por vezes, o trabalho desenvolvido pela BLR foi questionado por
professoras e até mesmo por gestores da Secretaria de Educação do município que
consideravam seu trabalho “incompleto”, sugerindo o desenvolvimento de atividades de
escrita posteriores à leitura. Enunciados como “Vocês só lêem e emprestam livros, é? Não
fazem mais nada?” foram ouvidos pelas PLs como também pelas coordenadoras da BLR
(FRAGOSO, 2003, 2005).
A associação da leitura à improdutividade tão recorrente e até mesmo estimulada pela
sociedade escriturística, como nos afirma Certeau (1996), possivelmente contribui para esse
69
modo de pensar a leitura gratuita como prática insuficiente em uma sociedade produtiva.
Nessa lógica, a escrita vem juntar-se à leitura para redimi-la desse seu estado improdutivo.
O fato de a leitura ser “abstrata” dificulta sua avaliação e sua mensuração, o que é
imprescindível para a Escola, como também para as agências financiadoras que necessitam do
uso das tabelas e porcentagens na divulgação de seus investimentos, solicitando, assim, dados
quantitativos das instituições financiadas. Ficando, então, a BLR, entre dois sistemas que
primam pelo mensurável: o educacional e o econômico. A Agência Financiadora, instituição
representante desse último sistema, solicitava nos relatórios semestrais, além do relato das
atividades desenvolvidas pela BLR, dados quantitativos, como a média de livros emprestados,
a média de vida do livro, média de livros não devolvidos, número de leitores atendidos, média
de idade desses leitores, dentre outros dados. Até aí tudo bem, dá para se mensurar. Mas o que
dizer quando se solicita indicadores do possível desenvolvimento dos leitores, ou indicadores
de progresso no nível de leitura dos leitores? Que referência tomar para dizer que um leitor
amadureceu ou progrediu? As cores das caixas, das quais o leitor escolhe seu livro não nos
assegura o seu nível de leitura, como bem problematizamos no capítulo anterior. Talvez a
escrita desses leitores possa nos dizer de suas leituras. Sim, a escrita pode nos dar indícios.
Mas tentar classificar e mensurar o leitor e a leitura através de sua escrita pode ser um
caminho incerto, tendo em vista que a prática de leitura “(...) raramente deixa marcas, e que,
ao dispersar-se em uma infinidade de atos singulares, liberta-se de todos os entraves que
visam submetê-la” (CHARTIER, 1999, p.11).
A BLR desenvolve atividades de escrita em meios às suas leituras, mas essa não é uma
prática obrigatória, nem constante. Apenas as PLs e os leitores também se rendem à terceira
aventura do leitor: a escrita. E houve muitas leituras que convidaram à escrita, a exemplo da
leitura do livro Duas dúzias de coisinhas à-toa que deixam a gente feliz e Outras duas dúzias
de coisinhas à-toa que deixam a gente feliz, ambos de Otávio Roth que suscitaram nas PLs o
desejo de propor aos leitores a escrita das coisinhas à-toa que os deixavam felizes, proposta
essa aceita pelos leitores, resultando assim em uma coletânea
31
que, posteriormente, foi lida
pelas PLs nas salas de aula (FRAGOSO, 2000). Essa atividade correspondia, assim, ao desejo
da escrita do leitor: que venha um outro leitor, nesse caso: que venha um leitor/ouvinte.
A escrita se fez presente na ação programada da BLR – prevista em alguns Planos de
Leitura –, mas não como instrumento de avaliação ou mensuração. A escrita, no âmbito de
31
Essa produção textual foi reunida em uma encadernação, catalogada e disponibilizada nas caixas do kit para
empréstimo.
70
trabalho da BLR, é decorrente da prática leitora e jamais foi imposta aos seus leitores, pois a
participação dos mesmos é voluntária.
Dentre as atividades de escrita prevista nos Planos de Leitura da BLR, escolhemos as
cartas enviadas pelos leitores da BLR às escritoras Ruth Rocha e Ana Maria Machado para ser
objeto desta nossa análise. O objetivo, o desenvolvimento e os resultados dessa atividade de
escrita serão mais adiante explicitados. Por hora, adiantamos que a escrita dessas cartas
ofereceu uma grande possibilidade de investigar as práticas de leitura dos leitores da BLR.
Entretanto, a escrita se apresentou aos leitores não só por intermédio das PLs. Bem antes da
BLR inserir a escrita em suas atividades, os leitores já haviam sido rendidos pelo Desejo. E,
utilizando o suporte da leitura também como suporte de sua escrita, registravam suas
impressões, apreciações, decepções, sentimentos e recados suscitados pela leitura do livro. É
graças a essa terceira aventura do leitor que podemos inferir sobre sua prática. É graças a essa
aventura dos leitores da BLR que podemos dissertar aqui sobre suas possíveis leituras.
Possíveis sim, nunca exatas, pois estamos lidando com um fazer subjetivo: a leitura
(CHARTIER, 1990). E assim, analisando essas marcas, essa escrita dos leitores da BLR,
podemos inferir sobre os leitores e suas leituras.
Antes de iniciarmos nossas reflexões sobre as escritas dos leitores, necessário se faz
relatar, em breves palavras, sua repercussão nas atividades desenvolvidas pela BLR. Junto à
reação de incômodo com relação às “rasuras” dos leitores nos livros, veio a constatação por
parte da equipe da BLR de que os leitores necessitavam de um espaço para escrever, registrar
suas impressões sobre os livros, sobre as histórias lidas e ouvidas. Sendo assim, pensava a
equipe, eles escreviam nos livros por falta de um espaço “próprio” para tal. Seguindo essa
lógica, em 2001, a BLR lançou um periódico bimestral, o Jornal Gira-Gira
32
que se propunha
a publicar os escritos dos leitores, suas dicas de leitura e demais textos (como quadrinhas,
poemas preferidos, histórias e recados) que fossem entregues à equipe. Contudo, esse
espaço/suporte, legitimado pela BLR para a escrita dos leitores, não fez com que eles
abandonassem sua prática de “rasurar” os livros. Claro, a escrita no Gira-Gira não substituía a
escrita nos livros, pois aquela escrita não deixava “rastros” da presença do leitor no suporte de
leitura! Apenas configura-se como mais um suporte, diverso do anterior, apropriado a uma
outra escrita
33
, com outro objetivo, como ter seu nome e sua escrita publicados no Jornal.
32
A primeira edição circulou com o nome “Jornal em Roda”. Na terceira edição foi lançado um concurso para
que os leitores sugerissem um nome para o jornal. A quarta edição circulou em julho de 2002, com o nome
“Jornal Gira-Gira”, proposto por Otaciana Gomes, ganhadora do concurso.
33
Sobre a interferência do suporte nas maneiras de ler, ver Chartier (1998).
71
Neste trabalho, não nos dedicaremos à análise dos escritos dos leitores publicados no
Jornal Gira-Gira por não considerá-los expressão plena do leitor, tendo em vista que os
escritos passaram pela seleção e correção da equipe responsável pela editoração, carregando
suas possíveis interferências, comprometendo dessa forma a originalidade dos mesmos.
Ao apropriar-se, também, do Jornal Gira-Gira como suporte de sua escrita (mas não
mais da que marcava sua leitura e a tornava pública), o leitor da BLR passou a conviver com
um outro aspecto da sociedade escriturística: nem sempre o que se escreve é publicado. A
escrita nos livros, automaticamente torná-se pública, no sentido de que circula nas mãos de
muitos outros leitores. Os textos que enviam para o Jornal Gira-Gira nem sempre são
publicados, pois passam por uma seleção. Assim, sua escrita corre o risco de não cumprir sua
função: ser lida; ou, para usar a expressão de Barthes (1984), não ver cumprir seu desejo
imperioso: ama-me. Continuaram, então, as margens e as páginas em branco dos livros a
convidarem os leitores a escreverem, a deixarem suas marcas de passagem e de leitura.
4.1 Livros: suportes de leitura e de marcas de leitura
De início, os escritos dos leitores nos livros provocavam certo desconforto à equipe da
BLR que se esmerava na conservação do pequeno acervo. Ao final de cada ano de
atendimento, as PLs ocupavam-se com o “conserto” dos livros. Assim, elas desamassavam
folhas, passavam pano umedecido nas capas para amenizar o tom amarelado adquirido pelo
uso, remendavam páginas e capas com fita adesiva, apagavam a escrita dos leitores com
borrachas ou corretivos. Todo esse esmero, refletido em um trabalho minucioso e demorado,
era no intuito de devolver aos leitores livros mais apresentáveis em seu aspecto físico. O fim
da vida útil do livro era determinado quando não havia mais jeito de consertá-lo, e essa
constatação era recebida com muito pesar pela equipe que tinha dificuldade em dar ao livro o
seu destino derradeiro: o lixo.
Que sacrilégio, jogar um livro no lixo! Era mais ou menos esse o sentimento que
dominava a equipe da BLR. No entanto, seus leitores lhe deixaram, indiretamente, uma lição
expressa em suas atitudes frente às caixas de livros: livro não é objeto sagrado, não-
consumível, nem eterno. Livro tem prazo de validade e não gostamos deles remendados.
Essas observações eram explícitas quando, ao procurarem livros nas caixas para o
empréstimo, reclamavam que “só tinha livro velho”; observações também expressas na
euforia com que recebiam a notícia de que havia livro novo nas caixas, como também ao
“riscarem” os livros, dessacralizando-os, em uma expressão de que livro é para ser usado em
72
todas suas possibilidades, ao bel prazer do leitor. Se a leitura conduziu no leitor o desejo de
escrever, o mesmo poderá deixar sua escrita no mesmo suporte das palavras que o conduziram
a tal.
Posteriormente, o recebimento mais freqüente de verbas destinadas à compra de livros,
bem como as doações de livros novos, acrescendo assim o acervo da BLR, corroboraram,
juntamente com as “lições” dos leitores, para a mudança de posicionamento da equipe quanto
à vida útil do livro. Um outro sentimento veio substituir ou ainda amenizar o anterior: se o
livro está desgastado é porque muitos leitores já passaram por suas páginas. Desse modo, ele
já cumpriu com sua missão, podendo agora descansar em paz.
Quanto às escritas dos leitores nos livros, passou-se a deixá-las circular junto com as
histórias, sendo algumas apagadas, como nos casos de escritos que denegriam a imagem de
outros leitores ou que poderiam lhes causar constrangimento, como nas escritas em que
adicionavam epítetos indecorosos ao nome dos leitores/usuários.
Prosseguindo nessa
aventura, os leitores da
BLR fizeram uso das
margens, capas e
contracapas dos livros do
acervo da BLR, registrando
impressões e advertências
sobre o livro, recados para
as PLs, para os escritores,
quadrinhas poéticas e até
mesmo escreveram para
advertir que não se deve
escrever nos livros, a
exemplo:
Não rabisque os livros, eles servem para todos, não é só para
você. Ok! Obrigado.
(Registrado no livro
Tato
da autoria de
Mandy Suhr e Mike Gordon).
Essas escritas dos leitores da BLR foram objeto de estudo de Sousa (2007) que as
considera “vestígios de leitura”, pois expressam um pouco dos leitores que as escreveram,
como também de suas leituras. Assim, afirma Sousa (2007, p.91),
Foto 9. Usuária folheando o livro, submetendo-o a avaliação para um
possível empréstimo. Nesta foto, a leitora/usuária observa a contracapa.
O que ela procura? Será que por registro de avaliações ou vestígios de
leitura de outros leitores que a precederam?
Fonte: acervo da BLR.
73
esses escritos – num primeiro momento, considerados como ‘rasuras’
inconvenientes e indesejadas, aparentemente sem importância – revelam
histórias. Ou seja, essas anotações, ‘esses recados’, ‘essas recomendações’
que os leitores deixa(ra)m escritos nos livros lidos contam suas histórias de
leitura e, às vezes, suas histórias de vida.
Ainda para Sousa (2007), esses escritos desestabilizam o mito de que leitores/alunos do
Ensino Fundamental, se lêem, lêem mal. Ora, como poderia um não-leitor ou um mau-leitor
escrever sobre suas impressões de leitura, recomendá-la ou advertir outros leitores?
Podemos, com segurança, afirmar que os alunos das escolas atendidas pela BLR são
leitores, e que, à revelia das orientações das PLs e professoras, registram, marcam os livros,
perpetuando na escrita, sua passagem. Mas, essa “teimosia” em continuar escrevendo em um
suporte de leitura não expressa desdém ou subversão. É a pura expressão da necessidade de
externar ou de tornar público algo que não querem deixar apenas consigo. Eles assinam,
assumem o escrito, raros são os escritos anônimos.
Em sua análise dos “vestígios de leitura”, Sousa (2007) os agrupou segundo o
interlocutor dos enunciados. Assim, os leitores escreviam aos autores dos livros e aos outros
possíveis leitores, recomendando-os à leitura ou advertindo-os sobre ela, ressaltando o prazer
ou o desprazer que tiveram ao ler tal obra.
Partindo dos escritos por nós coletados, acrescentamos aqui, mais um interlocutor: a
BLR, na pessoa das PLs.
Dudui
34
é demais. Este livros é irados. (
A preguiça
Alba Capelli e
Dora Dias)
Keila, Bernadete e Edna
35
,
Parabéns pelo sucesso da Biblioteca. Ok! (
Barbie:
aprender é fácil
– Melhoramentos)
Keila, você é muito legal. Obrigada por estar me entregando o
livro para eu ler. Ass. Keline (
O coreto do Jardim
– Lucia Pimentel
Góes e Freddy Galan)
Que Deus proteja todos vocês que participam do livro em roda.
Ass. Alguém que gostou do livro. (
Nas águas de meu pai
Marilene
Godinho)
34
Como é carinhosamente conhecida Teresa Cristina, idealizadora e fundadora da BLR, que também atua como
PL.
35
Promotoras de Leitura da BLR.
74
Biblioteca Livro em Roda. Parabéns! (
Foguinho
– Jules Renard)
Esses “recados” poderiam ser dados verbalmente pelos leitores às PLs, tendo em vista
que o contato entre eles é freqüente. Entretanto, é a necessidade de registrar e perpetuar o dito
que nos fica evidente. A escrita marca, registra, podendo ser relida, e até mesmo tornar
pública a gratidão. Pode ser também que, em meio à leitura, levado pela emoção, o leitor sinta
a necessidade de externar seu sentimento, sua gratidão naquele exato instante. Como a PL não
está presente naquele momento, é melhor registrar a correr o risco de perder as palavras e a
inspiração. Então, movido e envolvido pela leitura, o leitor agradece à pessoa que ele julga ter
lhe proporcionado tal prazer, e lhe agradece na mesma linguagem que se lhe apresentou o
prazer, na linguagem escrita. Esses “vestígios de leitura” também são um indício de que o
leitor apropriou-se da escrita como forma de interação verbal, como forma de expressar-se,
revelar-se. A escrita então se configura para esse leitor como mais uma possibilidade de uso
da língua. E por que não usar a escrita para “dizer” a leitura?
Entre os recados às PLs, encontramos também pedidos de desculpas, como:
Dudui, a chuva rasgou a capa do livro. Eu peço desculpa.
Além do pedido de desculpas, esse recado é a expressão do cuidado do leitor com o
livro. A chuva rasgou a capa, foi inevitável, sinto muito por isso. Seriam essas as palavras que
expressariam a nossa leitura desse escrito. Há também um dado a observar. A quem o leitor
pede desculpas? À PL. No seu entendimento, é a ela que ele deve satisfação do livro. Ele
poderia até pedir desculpas a outros leitores que por ventura lhe sucedesse, de ter-lhes privado
da capa do livro. Pode ser que o leitor, tendo em vista que dificilmente tenha encontrado um
livro sem capa nas caixas, tenha inferido que sem a capa o livro seria inutilizado. Sendo
assim, não haveria outros leitores, a não ser a própria PL que, ao disponibilizar os livros nas
caixas, daria pela falta da capa.
Nos recados em que o interlocutor é o próximo leitor, destacamos aqui as advertências
quanto ao manuseio e à posse do livro.
Pegue com carinho
Guarde com amor
Depois de ler
Guarde por favor.
Muito obrigado.
(
Apenas um Curumim
– Werner Zotz)
75
Se você for educado
Mostre sua educação
Só pegue neste livro
Com a minha permissão
(
Tonico
– José Rezende Filho)
Esses escritos denunciam leitores enciumados. O livro não é só de um leitor, é de uma
comunidade de leitores; eles são conscientes disso. Mas como deixar ir e deixar outro possuir
aquilo que lhe foi tão prazeroso? Para esses leitores, possuir o livro apenas pela leitura não é
suficiente, ele deseja a posse do suporte da leitura, ele deseja possuir o objeto, deseja guardar
o livro consigo para que fique a sua disposição para, quem sabe, uma próxima leitura. Mas ele
precisa devolver seu objeto de desejo. A PL chama por seu nome. Ela chama novamente.
Incansavelmente. Ele TEM que devolver. Vencido, o leitor devolve o livro, mas registra em
suas páginas a expressão de sua posse, advertindo os futuros leitores do cuidado com o
mesmo.
Outro modo de deixar um leitor longe do livro é denegrindo sua imagem. Escritas
como
Quem pegar esse livro é doido é feio e é ruim. (
Quero um gato
Tony Ross)
deixam margens para inferirmos que tanto pode ser um julgamento indireto do livro como
também, um modo muito estratégico de afastar possíveis leitores, se levarmos em
consideração a lógica de que elogiar um livro atrairá leitores, divulgar uma avaliação negativa
os repelirá. Sabe-se lá qual a intenção do leitor?!
Há recados mais sutis. Como
Cuide bem dos livros. Deus ama vocês e eu também. Ass. Ana
Maria (
Água:
pra que serve a água – Anna Cláudia Ramos)
A leitora começa com um enunciado que pode ser interpretado como um aviso, um pedido,
uma advertência ou uma ordem. Depois apela para o nome de Deus, expressão de amor e de
onipresença, de olho que tudo vê. O amor de Deus aqui se revela como condicional. Se você
não cuidar bem do livro, Deus não o amará. Essa leitura nos é possível devido à organização
das duas orações escritas pela leitora. As duas orações não são coordenadas pela sintaxe, mas
pela idéia, por isso uma complementa a outra, condicionando-as. E aqui temos um dizer não
76
explicitado em que o livro se constitui em um objeto sagrado, pois está sob a proteção de
Deus, sob o atento olhar do divino onipresente. E ao lado de Deus, pelo menos no enunciado,
lá está a leitora que assina o escrito, lá es Ana Maria, será que também onipresente? Olhe,
cuidado com o livro, hein! Eu, Ana Maria, estou aqui lhe vendo. Seria uma leitura possível do
escrito da leitora.
Uma outra expressão de desejo de posse foi externada por um leitor que se negava a
devolver o livro O pato e o sapo da autoria de Mary e Eliardo França, efetuando sucessivas
renovações no empréstimo. Ao final de três meses de renovação, a PL perguntou ao leitor se
ele não tinha interesse em ler outros livros. Havia tantos livros bons nas caixas! Mas o leitor
queria insistentemente aquele. Eu ainda estou lendo esse livro. Disse o leitor. Esse tempo todo
e você ainda não terminou? Perguntou a PL. Já, mas ele é tão bom que estou lendo de novo!
Respondeu orgulhoso, o leitor. Passados mais alguns meses, a PL tornou a questionar o leitor.
Dessa vez perguntou se algum dia ele gostaria de ler outra história, ao que ele respondeu que
sim. Quando? Perguntou a PL. Quando a ficha de empréstimo desse livro estiver toda
preenchida com meu nome, de um lado e de outro, aí eu devolvo ele e pego outro livro
(FRAGOSO, 2001). Podemos até completar o dizer desse leitor tão possessivo: quando a
ficha de empréstimo não couber o nome de mais ninguém, além do meu. Quem pode com
esses leitores?!
Mas nem todos são tão possessivos assim, alguns desejam que outros também
experimentem a sensação de ler um bom livro. E, acrescendo os exemplos dados por Sousa
(2007) aos casos de avaliações positivas dos livros, reproduzimos as seguintes indicações:
Esse livro é 10. Você não vai se arrepender. Leia. Kallynne. (
Meus
três namorados
– Alexis Page)
Este livro é ótimo! Não deixe de pegá-lo, ok! Ass. Kallynne (
Meus
três namorados
Alexis Page.)
Quer saber de uma coisa. Eu amei este livro e espero que você
também goste. Kallyne. (
Meus três namorados
Alexis Page.)
Não deixe de pegar esse livro. Pra mim ele é 10. Amy e Cris si
amam! (
Meu primeiro namorado
– Callie West)
Nesses escritos/recados, é evidente que, para esses leitores, ao se referirem às suas
práticas de leitura, o verbo pegar é diretamente relacionado ao verbo ler. Para ler é preciso
77
antes possuir o objeto suporte da leitura, tê-lo em seu poder. Observe que os dois verbos
foram usados por uma mesma leitora ao indicar o livro Meus três namorados. Primeiro ela
ordena “Leia!” Para logo em seguida aconselhar “Não deixe de pegá-lo, ok!”. Sousa (2007)
relaciona o uso do verbo pegar pelos leitores ao momento de empréstimo no qual as PLs
também fazem uso dele ao convidarem os usuários para irem às caixas escolher os livros. O
fato dos usuários da BLR escolherem e efetuarem o empréstimo do livro não nos garante que
farão sua leitura. Ora, possuir um livro não implica em uma leitura. Assim como a não-posse
não implica, necessariamente, em um não-leitor (CHARTIER, 1999). Mas, para os leitores da
BLR, a ação de pegar o livro levará, certamente, o sujeito a outra ação: ler. Ou o contrário: a
intenção de ler levará o leitor a pegar um livro ou o livro.
Eu quero
dizer que eu gostei muito desse livro. Agora
eu quero
ler
o livro P. Coração.
(
Canção para Débora
– Luci Guimarães
Watanabe / grifo nosso)
Nessa escrita, o que nos fica de mais forte é o eu quero do leitor que pode ser
entendido como expressão de poder e/ou de necessidade. Na primeira parte do enunciado, o
querer do leitor expressa-se no sentido de necessidade: Eu quero, eu preciso, eu necessito
externar o prazer que tive na leitura. Na segunda parte o eu quero evidencia-se como
expressão de poder, de apropriação da posição de poder querer: Neste espaço, enquanto leitor,
sou autorizado, eu tenho o poder para dizer o que quero, o que desejo ter/ler. Assim, nesse
vestígio de leitura temos a expressão de dois desejos, o primeiro: querer dizer a leitura; o
segundo: querer ler, mas não qualquer livro e sim o escolhido.
Nos escritos dos leitores também encontramos vestígios da intimidade e da
identificação do leitor com o texto lido, expresso no diálogo que mantém com o título do
livro. Como exemplo temos:
Este livro é tanto, tanto de bom. Quem ler vai gostar. Jéssica.
(
Tanto, tanto!
Trish Cooke e Helen Oxenbury)
A leitora, além de fazer uma indicação positiva do livro, brinca com seu título, dialogando
com ele. O tanto, tanto do título do livro é expressão do amor da família protagonista ao bebê:
“Eu amo esse bebê, tanto, tanto!”, é um dos enunciados mais recorrentes na história. E a
leitora, apropriando-se da história, registra sua leitura, parodiando o título do livro.
Um outro leitor, também no livro, registrou sua “brincadeira” com a escrita.
78
Quando penso em você vejo tudo
(
Um rosto no
computador
– Marcos Rey)
A escrita ropálica, essa disposição gráfica da escrita que reforça sua semântica, foi utilizada
por muitos poetas, escritores e artistas plásticos como forma artística de enfatizar o dito. Mas,
no caso do nosso leitor, fica-nos, acima de tudo, a expressão de sua intimidade com a escrita,
pois sente-se à vontade para brincar com suas possibilidades, com seus efeitos. Intimidade
essa também expressa pelos leitores que advertiram os futuros leitores/possuidores do livro,
utilizando as quadrinhas, como também da leitora que parodiou o título do livro.
Partindo dessas marcas de leitura deixadas pelos leitores da BLR, podemos afirmar
que, para eles, a escrita tem por função marcar seu lugar de leitor, registrar suas leituras,
interagir com outros leitores e com a BLR, brincar com ela (a escrita) e, acima de tudo, tem
por função satisfazer seu desejo conduzido pela leitura, o desejo de escrever. Essas marcas,
esses “vestígios de leitura” expressam leitores que se apropriaram da linguagem escrita como
forma de se posicionarem, de se fazerem “ouvir” em meio a tantos outros
leitores/interlocutores, quer lendo a escrita, quer produzindo-a. São leitores que, ao seu bel
prazer, marcam, demarcam e perpetuam seu lugar, sua passagem.
4.2 Cartas a Ruth Rocha e a Ana Maria Machado
Como afirmamos anteriormente, não só as leituras solitárias, mas as leituras coletivas
também instauram nos leitores o Desejo da escrita. Muitas vezes, a leitura performatizada
conduz nos leitores o Desejo de participar da atividade escrita proposta pela PL. Assim se deu
a produção das cartas aqui analisadas, endereçadas às escritoras Ruth Rocha e Ana Maria
Machado. Essa escrita dos leitores da BLR estava prevista no Plano de Leitura que tinha por
objetivo aproximar a pessoa do escritor à pessoa do leitor, possibilitando uma possível
interação entre eles.
A primeira ação desse Plano de Leitura foi a escolha dos escritores que teriam suas
obras performatizadas. O critério para essa escolha foi o gosto das PLs bem como as
percepções delas quanto ao gosto dos leitores/expectadores. Assim, foram escolhidas as
escritoras Ruth Rocha e Ana Maria Machado que teriam, cada uma, suas obras
performatizadas pelas PLs no decurso de cinco semanas, como também teriam suas biografias
79
lidas e suas fotos exibidas aos leitores/expectadores. Para tanto, as PLs pesquisaram nos sites
oficiais das escritoras, informações biográficas que julgaram necessárias.
Com todo o material em mãos – livros, biografia e fotos impressas – as PLs partiram
para a ação junto aos leitores/expectadores. Em um primeiro momento, as PLs leram o texto
biográfico da escritora, veiculado pelo site oficial com informações sobre local e data de
nascimento, estado civil, preferências pessoais, trajetória profissional e principais obras
(ANEXO C). Foram também exibidas fotos das escritoras quando crianças, com a família, em
situações de trabalho etc. Posteriormente, houve conversa informal sobre as informações
lidas/ouvidas; os leitores calcularam a idade da escritora, comentaram as fotos. E por fim
ouviram/leram a história performatizada pela PL.
Após cinco semanas lendo histórias de Ruth Rocha, as PLs apresentaram Ana Maria
Machado, lendo suas histórias, biografia e exibindo suas fotos. Somente ao final das dez
semanas, as PLs propuseram aos leitores se comunicarem com as escritoras através de cartas.
Eles poderiam escolher uma das duas para se comunicarem, como também poderiam se
comunicar com as duas. As cartas foram enviadas para as escritoras que responderam
carinhosamente através de carta e de envio de livros.
As cartas não foram escritas sob a orientação das PLs. Estas apenas sugeriram aos
leitores a sua escrita. Alguns leitores preferiram escrever em casa; outros, ao avistarem a PL
na escola, pediam para que ela esperasse, pois escreveriam a carta naquele mesmo instante.
Algumas professoras aproveitaram o entusiasmo dos leitores para fazer da carta uma atividade
de escrita escolar. Mesmo com essa diversidade de situação de produção, a maioria das cartas
enfatiza aspectos por nós analisados no decorrer deste capítulo. Do total das cartas, 43
36
fazem parte do corpus desta análise, em que priorizamos dados quanto às práticas de leitura
dos leitores remetentes. Essas cartas endereçadas às escritoras Ruth Rocha e Ana Maria
Machado também fizeram parte do corpus de um ensaio nosso em que analisamos as imagens
de escritores da literatura infanto-juvenil elaboradas pelos leitores da BLR, bem como
problematizamos a noção de função autor presente nas cartas (FRAGOSO, 2006).
36
Para que essas cartas fizessem parte do corpus desta pesquisa foi solicitada a autorização dos seus
escritores/remetentes. Mesmo com a autorização concedida, achamos por bem alterar seus nomes a fim de
resguardar a privacidade dos mesmos.
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4.2.1 Comunidade de leitores
De maneira geral, observamos que os leitores, em sua maioria, se identificam como
alunos, descrevem sua escola, como tamm sua rotina escolar. No cabeçalho da carta, muitos
registram o nome da escola, série e o nome da professora. Nas cartas em que essas
informações não se apresentam no início, podemos encontrá-las integradas ao texto da carta,
ao final ou em uma das margens da mesma.
O fato de os leitores escreverem o cabeçalho da escola no início das cartas não quer
dizer que eles não saibam escrever na estrutura do gênero carta, pois o cabeçalho se configura
como um aparte. Ao iniciar a escrita da carta propriamente dita, informam local e data e usam
expressões como: “
Saudações”, “Dona Ruth”, “Olá Ana Maria Machado”. Eles conhecem a
estrutura composicional do gênero carta, mas a informação sobre a escola é importante, como
veremos adiante. Iniciada a carta, segue-se uma descrição de si mesmo: idade, características
físicas e onde estuda. Ao final da carta, alguns leitores se subscrevem aluno, outros apenas
assinam seu nome e tantos outros se subscrevem “...
de seu amigo e fã” (Carta 1), “... de uma
menininha que gosta muito de ler suas histórias
” (Carta 43), “... da sua admiradora” (Carta
33), dentre outros.
Por que a informação sobre a escola é tão recorrente nas cartas? Se apenas constassem
no cabeçalho poderíamos afirmar que os leitores estavam seguindo um modelo escolar. Essa
hipótese se aplicaria, principalmente, aos que produziram as cartas sob a orientação da
professora. Entretanto, por que a insistência em repetir os dados escolares no corpo do texto?
Por que esses dados são tão imprescindíveis? Ora, porque a escola é o lugar que os distingue
dentro das comunidades de leitores das quais fazem parte. Para Chartier (1999), o que
caracteriza uma comunidade de leitores não é a classe social e econômica, nem a idade, sexo e
a religião de seus integrantes. São “as redes de práticas e as regras de leitura próprias” (p. 14)
que a distingue. Assim, as maneiras de ler e o acesso ao texto é que distinguem as
comunidades de leitores entre si.
Os leitores de Conde fazem parte de uma comunidade de leitores, a da BLR. Essa
constatação não os massifica, no sentido de perderem suas peculiaridades na prática leitora,
mas os agrupam dentro de uma rotina de acesso ao texto. Todos os leitores da BLR lêem
histórias na voz da PL, e esse acesso ao texto é coletivo. Nessa leitura coletiva, eles não
possuem de forma tateável o objeto livro, mas o suporte corpo e voz da PL os permite
ler/ver/ouvir o texto, conforme observamos no capítulo 2. Os leitores, uma vez por semana,
81
têm a opção de escolher um livro para lê-lo e/ou para tê-lo em suas mãos. Os leitores da BLR
usufruem dessa leitura em meio à rotina escolar, mesmo espaço (geográfico e discursivo) e
horário. Os leitores são atendidos de acordo com seu agrupamento escolar, ou seja, por turmas
organizadas de acordo com as séries cursadas.
Outras práticas de leitura poderiam também os distinguir, como a comunidade dos que
vocalizam a leitura para os familiares, dos que copiam as gravuras dos livros, dos assíduos da
caixa vermelha, a qual já fizemos referência no capítulo anterior. Mas essas práticas não são
tão visíveis assim. Em meio à coletividade, é a escola e a turma que os distingue
objetivamente. Isso é bastante evidente na devolução dos livros. O usuário não tem sua ficha
localizada pela ordem alfabética do seu nome, e sim pela escola e turma que estuda. Além do
mais, as PLs, ao recolherem os escritos para publicação no Jornal Gira-Gira, solicitam a
identificação do leitor quanto a sua escola, série e professora.
Situar-se quanto à série e à escola identifica os leitores como integrantes autorizados a
participar de uma comunidade de leitores que tem por critério de ingresso a série cursada e a
localidade da escola – se em comunidade rural ou urbana. Os leitores são cientes que, ao
ingressarem na 5ª série, já não mais usufruirão os serviços da BLR, não diretamente. Alguns
leitores tentam perpetuar sua participação nessa comunidade através de um irmão ou irmã que
ainda façam parte oficialmente, usufruindo da leitura do livro que este ou esta tomou por
empréstimo. Em todo caso, informar que cursa “tal” série, em “tal” escola é apresentar suas
credenciais de sócio de uma comunidade de leitores formada por alunos da Educação Infantil
à primeira fase do Ensino Fundamental de escolas rurais.
Um outro dado recorrente nas cartas refere-se ao grau de formalidade com que os
leitores tratam as escritoras. Embora eles as vejam como escritoras famosas e importantes, se
dirigem a elas de maneira bem coloquial e íntima, em sua maioria, tratam-nas por você,
despendem-se mandando beijos e abraços, relatam acontecimentos do cotidiano como a festa
de formatura que a professora está organizando (Carta 21), o filme Os dois filhos de
Francisco que assistiram na escola por ocasião do dia da Criança (Carta 14), e iniciam cartas
como “Olá, como vai você? Eu vou bem graças a Deus” (Carta 16). Até parece que o leitor,
pressupondo o interesse da escritora por ele, já antevê a pergunta dela, e adiantando-se já
responde que está mui bem.
Reproduzimos aqui algumas cartas na íntegra para melhor conduzir nossa discussão.
Apenas alteramos os nomes dos leitores e o número do telefone registrado na Carta 1,
garantindo assim a privacidade dos mesmos
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Escola Municipal de E. F. Manoel Paulino
Pousada do Conde 25/10/2005
Oi Ruth Rocha mim chamo Daniel tenho 10 anos estudo
na 4ª série.
Gostaria desse que eu sou fã do seu livrinho sempre
quando eu poço eu pego o seu livrinho no colégio.
Para eu ler, quando a equipe vem de livro em roda,
eu gosto muito quando eles vem aí deixa a gente leva para
casa aí a gente entrega no outro dia. Eu só vou dormir quando
eu ler para o meu irmão dormir ele tem 8 anos estuda no
mesmo colégio que eu estudo ele faz a 2ª série e ele também
gosta muito do seu livrinho Ruth Rocha minha História
termina poraqui um beijo e um abraso
Assinado: Daniel
Carta 20
“A enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados”,
assim afirma Bakhtin (1986, p.112). Nessa lógica, o interlocutor organiza sua fala, ou sua
escrita, de acordo com o lugar social que ocupa e de acordo para quem se fala e em que
contexto. A organização do enunciado não se dá somente tendo em vista as regras sintáticas.
O que nos faz escolher essa palavra à outra, o que nos faz dizer isso primeiro que aquilo, vai
muito além das convenções gramaticais. O contexto sócio-histórico em que me insiro é que
dirime minha enunciação. Partindo desse pressuposto teórico, podemos perceber, através das
palavras, como o escritor da carta elabora sua relação com a escritora dos livros que lê e ouve,
como se vê enquanto leitor e como nos revela sua relação com a leitura.
Na Carta 20, podemos destacar o tratamento informal destinado a Ruth Rocha,
expresso no início da carta com um “Oi”, na expressão “livrinho” como forma carinhosa de se
referir à obra da escritora, como tamm, ao despedir-se enviando-lhe “um beijo e um
abraso
”. Dirigir-se a alguém com esses termos requer uma intimidade. É bem verdade que o
leitor não conhece a pessoa, a mulher Ruth Rocha, mas conhece e tem intimidade com a
escritora através dos “livrinhos” que lê para si e para seu irmão. Sim, ele mantém uma
interação com a escritora através dos textos, ela escrevendo, ele lendo. E nessa relação
leitor/escritora, fã/escritora – como assim se refere o leitor-, a intimidade já está estabelecida.
Voltando ao início da Carta 20, visualizamos o nome da escola como a primeira
informação escrita, abaixo segue a localidade e a data. A escola define de onde se fala e,
portanto, quem fala. Se se fala de uma escola pode ser um funcionário, professora, diretora ou
83
aluno. Mas logo no início da carta o remetente complementa a informação, é estudante, cursa
a 4ª série. Em seguida, relata sua vivência com a leitura, sua e de seu irmão que escuta as
histórias que ele conta todas as noites. Mas seu irmão também precisa de uma referência, é
preciso que se diga que ele cursa a 2ª série. Portanto, ambos são integrantes da comunidade de
leitores da BLR.
Das atividades desenvolvidas pela BLR, o leitor apenas faz referência ao serviço de
empréstimo. Será que a voz não está presente em suas práticas de leitura? Sim, ela está. Mas
não é mais a voz da PL que ecoa, é a sua voz agora quem dá “vida” ao texto escrito. O leitor
agora é a voz, e o é para outro leitor: seu irmão menor. O leitor que vocaliza o escrito repete a
prática de leitura da PL, como também repete sua função: a de dar a ler a outros. A voz da PL
não silenciou, se propagou em outra voz, quiçá em outras vozes.
Encerrando a carta, o leitor se despede afirmando que sua “História termina
poraqui
”. A carta então fala de sua História, de sua História de leitor, que na escola, através
da BLR, usufrui do serviço de empréstimo de livros, de sua História de leitor/contador de
história que guia seu irmão ou, quem sabe, percorre junto com ele as páginas dos livros
recheadas de enredos. Não, essa não é só uma carta, é a História de um leitor, quem sabe até
de dois leitores.
Na Carta 1, que reproduzimos a seguir, a informação escolar toma um outro plano,
secundário, mas ainda assim necessário. Vejamos.
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Pousada do Conde 25/10/2005
Saudações.
Olá Ruth Rocha como vai você.
Eu espero um dia lhiconhecer. Meu nome é César Barbosa
Gomes e sou seu fã.
Sou fanático pelo seus livros. Continui assim! Uma
excelente escritora.
Espero que você venha conhecer um dia. Meus amigos e
principalmente eu, estamos na esperança de ter contato com
você não esqueça de mim. Essa carta que eu estou te enviando é
pra vê se não esquece de mim. Gosto muito do seu trabalho.
Beijos de seu amigo que lhe adora. Por favor resposte a
minha carta OK: Abraços.
A menina do livro em Roda sempre conta histórias que
você escreveu.
Esse é o meu número
99999999
Aluno: César Barbosa
Gomes
Série: 4ª / Professora
Ana Cláudia
Turno: Tarde
Carta 1
Na Carta 1, os dados escolares não constam em um primeiro plano, o leitor não se
identifica quanto a série cursada e se refere aos colegas de turma como amigos. Ao final, após
ter se despedido com abraços, beijos e solicitação de resposta, o leitor retorna, faltou dizer
algo, e é preciso que se diga, por isso ele retorna e, quase como um P.S. (por esquecimento),
faz referência à BLR “A menina do livro em Roda sempre conta histórias que você
escreveu
”. Mas não situa o local nem para quem a menina da BLR conta história. Como meio
de contato, dá o número de seu telefone celular, diferente de muitos outros que citam a escola
como endereço de localização e de contato.
Embora o leitor afirme que não conhece a escritora, e o faz duas vezes na carta com
Eu espero um dia lhiconhecer” e “Espero que você venha conhecer um dia. Meus amigos
e principalmente eu, estamos na esperança de ter contato com você não esqueça de
mim
”, não diminui seu grau de intimidade com a escritora, e essa intimidade é tanta que ele dá
a saber a Ruth Rocha o número do seu telefone, mais, do seu telefone celular. Mesmo se
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posicionando como fanático pelos livros da escritora e a remetendo à excelência, em uma
relação fã /ídolo, ele não se sente menor que ela, pois, além de fã, se intitula amigo da
escriora. Parece que ser fã de Ruth Rocha é tão prestigioso quanto ser uma excelente escritora.
O leitor possui um lugar de prestígio, tão próximo de seu ídolo e isso é resultado de sua ação
leitora. Ao ler o texto de Ruth Rocha, ele se aproxima dela, ele se assemelha a ela, no sentido
de partilharem o mesmo texto, o mesmo gosto, a mesma emoção. E se a escritora é
inesquecível para ele, ele também o quer ser para ela, por isso a escrita da carta que tem por
objetivo fazer com que a escritora não o esqueça. “Não esqueça de mim. Essa carta que
estou te enviando é pra vê se não esquece de mim.
Quanta intimidade do leitor com a escritora! E isso nos revela sua intimidade com a
leitura. Mas, entre eles (leitor/escritora e leitor/leitura) há uma mediadora, e isso é denunciado
no PS da carta. “A menina do livro em Roda sempre conta histórias que você escreveu.
Observe-se o tempo verbal em que se dá a ação dos sujeitos dessa enunciação. A ação da PL é
descrita no tempo presente – conta – precedido pelo advérbio sempre que dá um sentido de
ação que se realizou no passado, continua no presente e se perpetua no futuro. Já a ação da
escritora é referida no passado – escreveu. Isso nos é tão revelador, pois a voz, que não se
perpetua no tempo, mas se esvai tão logo seja pronunciada, para o leitor permanece. E essa
permanência é advinda da presença da PL. Sim, pois se há voz, há quem a pronuncie. Ao
contrário, a escrita, que permanece, que não modifica, que está sempre ali, visível, concreta,
para o leitor ficou no passado. Isso porque a ação da escritora já foi encerrada. Para que o
texto dela chegasse às mãos e ao ouvido do leitor, foi imprescindível que ela o deixasse ir, que
ela parasse de escrever. É a morte do autor de que nos fala Barthes (1984), da qual já nos
referimos no capítulo 2. Enquanto que a escritora já escreveu, a PL continua contando, sua
voz ainda é ouvida, sua voz continua a dar “vida” à escrita, sua voz integra-se nas práticas de
leitura desse leitor.
Com relação aos dados escolares, encontramos, na margem direita inferior da carta,
seu nome precedido da indicação de aluno e informações sobre a série, professora e turno. Por
que essa informação tão à margem? Ela não está ali como um lembrete ou como reforço a
alguma informação dada no decurso da carta. O que nos parece é que o leitor escreveu aquelas
identificações para a PL, e não para a escritora Ruth Rocha, para que aquela o identifique
dentro de sua comunidade de leitor. Para a escritora, ele não se situa como estudante, mas sim
como leitor. Não lhe é importante que Ruth Rocha saiba em que escola ele estuda e que série
ele cursa, basta que ela saiba que ele e seus amigos gostam do trabalho dela, ou seja, que são
86
leitores de sua obra. Mas para a PL, é preciso suas credenciais estudantis para que ela o
distinga dos demais leitores. Sua carta é destinada a duas leitoras: a Ruth Rocha e à PL, sendo
esta última leitora de margens. E assim, o leitor, novamente, escreve nas margens, mas desta
vez nas margens de sua própria escrita.
4.2.2 Leitura: vivência coletiva
Um outro aspecto nas cartas que nos salta aos olhos é quanto ao uso da 1ª pessoa do
plural – o nós – no relato das práticas de leitura. Muitos leitores iniciam as cartas falando na
1ª do singular, dando referências pessoais e escolares. Quando passam a relatar as
experiências de leitura, fazem uso do pronome nós, sem anteriormente ter situado o
destinatário, quanto ao nós. Subtende-se que o nós refere-se à coletividade de
leitores/ouvintes. E essa constatação nos é evidente porque conhecemos a prática leitora dos
sujeitos da BLR em que uma delas se dá em meio a uma coletividade de leitores/ouvintes e
intérprete. O leitor/ouvinte da BLR não é solitário, ele sempre ouve/lê junto a um público de
leitores/ouvintes. E essa vivência se caracteriza coletiva, não apenas pela presença física do
outro, mas pela interação durante a leitura/contação, interferindo quer na própria produção da
performance como na recepção (ZUMTHOR, 2001), conforme descrevemos no capítulo 2.
É claro que os leitores da BLR, ao se referirem às experiências de leitura, relatando-as
na 1ª pessoa do singular, estão se referindo à leitura que fazem a partir do serviço de
empréstimo. Quando relatam suas práticas de leitura na 1ª pessoa do plural, referem-se à
leitura/contação realizada pela PL. Essa relação pessoal eu/nós está evidente nos fragmentos
que seguem:
Eu queria que soubesse que li suas histórias e escutei outras que
uma moça da biblioteca leu para nós essas histórias maravilhosas
(Carta 17 – grifo nosso).
Conheci suas histórias através da biblioteca Livro em Roda que
vem toda semana até nossa escola e ler um livro para nós eu
também leio saiba que gostei muito das histórias que você
escreveu (Carta 18 – grifo nosso).
Eu sempre leio e escuto suas histórias através da moça da
biblioteca livro em roda que vem ler para nós toda semana (Carta
39, grifo nosso).
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Percebemos, nesses recortes, que o leitor se insere em uma prática coletiva de leitura ao
mesmo tempo em que se reporta à sua prática de leitura solitária. Em todo caso, uma prática
sempre chama a outra, pois sua experiência de leitura é marcada pela coletividade, e, portanto,
pela vocalização do escrito.
Um outro dado a se considerar é quanto ao uso do verbo ler e contar como sinônimos
de uma prática de leitura a partir da audição. No capítulo 2, problematizamos essas
nomenclaturas, posicionando-as como dois lados de uma mesma ação, no sentido de que os
leitores lêem o escrito na voz e nos gestos da PL. Por isso, nos referimos a eles tanto como
leitores como leitores/ouvintes ou leitores/expectadores. Do mesmo modo procedemos com a
PL, nomeando sua atuação como leitura/contação. Leitura por partir do escrito, contação por
extrapolar o escrito, investindo em gestos, sons, silêncios e expressões próprios da oralidade.
Nos fragmentos das cartas, percebemos dos leitores, essa mesma concepção. Pois, ora
fazem uso do verbo ler, ora fazem uso do verbo contar ao se referirem à leitura/contação da
PL. No fragmento da Carta 17, o leitor distingue sua prática de leitura em seus dois modos,
lendo individualmente e lendo a partir da voz da PL. Ao se referir a audição da história, se
referiu a sua ação, escutar, a partir da ação da PL, ler. O leitor ouviu a leitura feita PL. A PL
lê, e ele escuta sua voz, e consequentemente a sua leitura. Ele é um ouvinte/leitor que, ao
escutar a leitura de outro, também lê.
O mesmo observamos no fragmento da Carta 39. O leitor e escuta a leitura da PL. E
esses dois verbos são referenciados juntos, apenas interligados pela conjunção coordenada
aditiva e. Parece-nos que o primeiro verbo refere-se a sua ação, ler. Enquanto que o segundo
verbo refere-se ao modo como lê. Sendo assim, o leitor quer dizer que lê, escutando a leitura
vocalizada da PL.
Os fragmentos das Cartas 17, 18 e 39 são apenas amostras, dentre tantas referências
presentes em outras cartas, de que a prática de leitura desses leitores se dá de dois modos,
lendo, através da escrita e lendo, por intermédio da voz. No segundo modo, há sempre uma
coletividade que acompanha o leitor, há sempre uma platéia, ele não se sente sozinho no
instante em que a PL lê/conta história. E não é só a presença dela que conta, é a presença de
outros leitores também. Parafraseando o leitor, ao relatar esse instante de audição: Eu escuto
as histórias que a PL lê para nós. Eles nunca se referem à leitura/contação da PL como um ato
realizado só para ele. O leitor sempre se coloca em meio a uma coletividade no instante da
audição. E o nós é tão integrante do seu eu/leitor que ao relatar para as escritoras Ruth Rocha
e Ana Maria Machado o momento da leitura/contação, utilizam aquele pronome sem antes
especificar explicitamente, de que coletividade ele está falando. O nós no enunciado dos
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leitores, também nos dá uma impressão de que os outros estão tão perto dele que é como se
fossem um só. Eles poderiam dizer que a PL lê histórias para ele e para seus colegas. Mas dito
assim, parece que o leitor não faz parte da coletividade. O nós é mais que eu e eles, o nós é eu
e eles em um só. Nós, é a platéia, o público, em uma relação de simbiose. O nós é um corpo,
um todo que se constitui diante de uma leitura/contação, diante de uma performance. Para
Zumthor (1997), o instante performático, para ser verdadeiro, requer uma unidade entre
platéia e intérprete. Todos contribuem a seu modo na construção da performance. Nessa
lógica, o nós também inclui a PL.
Nas experiências de leitura coletiva dos leitores da BLR, a voz é o suporte do texto,
juntamente com o corpo e o livro. Contudo, é a voz que faz o texto ressurgir da escrita, é a
voz quem dá “vida” às palavras. Nas cartas dos leitores, percebemos a forte relação entre a
escrita e a vocalização dessa escrita. O texto sempre pede uma voz, e o leitor está sempre a
sua espera.
Vejamos um outro recorte.
Carta 34
Na Carta 34, observamos os mesmos elementos presentes em outras cartas dos quais
discutimos anteriormente, tais como: o lugar de onde fala, em que coletividade se insere, a
Jacumã 25/10/2005
Bom dia Ana Maria Machado.
Meu nome é Maria Estela, Estudo na escola José Mariz, tenho 3
irmãos tenho 11 anos e gosto de ler é a Tia Edina ela ler histórias
em tuda a sala e ela em presta livro para todas as clases e nome da
minha professora e Sandra
E adoro as histórias que a senhora conta. No imenso Céu azul, A
galinha que criava um ratinho, Menina bonita do laço de fita...
A história que eu mais gostei foi No imenso céu azul.
Tem alguma história que a senhora escreveu e não publicou? A
senhora conta história para os seus filhos?
A quando uma carta da senhora.
4ª série
Beijos e abraços e carinho
ass= Maria Estela Cruz Silveira
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presença/voz da PL e a informalidade com que se dirige à escritora. Embora a leitora, na carta
34, se dirija à Ana Maria Machado usando o pronome senhora, não diminui sua aproximação
com a mesma, pois todo o texto da carta revela uma leitora à vontade para falar de si, fazer
perguntas, enviar beijos, e abraços e carinho e solicitar uma resposta de um jeito muito
imperioso “A quando uma carta da senhora” e o não dito: Pois é certo que a senhora vai
enviar-me. O pronome senhora, aqui, revela-se como tratamento respeitosos, de veneração,
não de distanciamento.
Mas, o que queremos enfatizar na análise da Carta 34 é a solicitação da voz da
escritora, ou seja, é a solicitação que se dê voz à escrita. E isso nos foi dado a perceber pela
leitora, ao afirmar em sua carta “Adoro as histórias que a senhora conta. No imenso Céu
azul, A galinha que criava um ratinho, Menina bonita do laço de fita...
Ora, a leitora não ouviu Ana Maria Machado contar essas histórias, é mais provável
que ela as tenha ouvido na voz da PL, pois todas fizeram parte do repertório dela nesse
período. Mas o contar soa como uma metáfora, pois não importa que se tenha escrito a
história se ela chegou ao leitor, vocalizada. A PL, então, não dá voz apenas ao texto de Ana
Maria Machado, ela dá voz à Ana Maria Machado.
Ainda na Carta 34 temos uma pergunta explicita quanto ao fato de a escritora vocalizar
histórias. “
A senhora conta história para os seus filhos?” Se Ana Maria Machado não
vocaliza histórias para os leitores, por esses estarem distantes, provavelmente ela vocalizará
para seus filhos, prováveis leitores mais próximos. Essa solicitação de voz se faz presente
também em outras cartas. Vejamos:
Você conta para as crianças as histórias que escreve? (Carta 9).
Ao perguntar se a escritora conta as histórias que escreve, o leitor solicita dela também a sua
voz. Para ser uma narradora em sua plenitude, não basta à escritora escrever, ela tem que
vocalizar seu escrito.
Na Carta 36 temos uma outra solicitação de voz.
Suas filhas e netas gostam de ouvir histórias sim ou não?
Se os filhos e netas da escritora gostam de ouvir histórias, por que ela não as contaria para
eles? Mas aqui, um outro aspecto se evidencia, os leitores fazem uso das informações dos
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textos biográficos lidos pelas PLs para inferirem sobre as escritoras. Pois, ao perguntarem se
suas filhas e netas gostam de ouvir histórias” é porque contam com o fato da escritora ter
filhos e netas, o que foi dado a saber no texto biográfico.
Em recortes a cartas endereçadas à Ruth Rocha temos outros exemplos de escrita
baseada na leitura do texto biográfico.
Não lhe conheço mas eu sei que você já é idosa mais seus livros
são muito legais (Carta 11).
Eu gostaria de conhece você eu tenho uma irmanzinha e você tem
filios (Carta 13).
Eu sei que você é muito bonita, a mulher do livro conhecida como
Elioene nos mostrou sua foto (Carta 5).
Uma das grandes curiosidades dos leitores era saber a idade das escritoras, por isso
após a leitura da data de nascimento das escritoras, eles faziam cálculos. O leitor na Carta 11
parece dizer: apesar de ser idosa, você sabe como conquistar um público infantil através de
livros. Conviver com crianças, parece ser condição sine quanon para ser escritora de literatura
infanto-juvenil. Isso é evidenciado na Carta 13 quando o leitor se refere ao fato de ele ter uma
irmãzinha e a escritora filhos, como evidência de que ambos convivem com crianças e que
por isso têm algo em comum e provavelmente muito que conversar.
Embora a maior parte dos leitores tenha afirmado nas cartas que conheceu as histórias
das escritoras por intermédio da voz das PLs, houve quem citasse um outro suporte:
Eu estava assistindo televisão passou a sua história e gostei
muito. A história que mais gostei foi essa Azul e Lindo Planeta
Terra nossa casa (Carta 43).
Contudo, a voz foi o suporte mais referido pelos leitores da BLR. Em referência às suas
práticas de leitura, a voz e a presença da PL estavam sempre evidenciadas, como também suas
próprias práticas de ler, vocalizando o escrito para familiares, principalmente para os irmãos
menores. Ao que nos parece, a leitura coletiva não só conduz ao Desejo da escrita, mas
instaura o desejo de dar também sua voz à escrita.
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Os leitores da BLR, ao se referirem às obras das escritoras Ruth Rocha e Ana Maria
Machado, não deixavam à parte a voz das PLs. Muitas vezes, a referência à escritora era feita
de forma indireta, como no trecho abaixo:
Que legal é pode escutar suas histórias contadas por tia Edna, a
mulher do livro (Carta 35).
A única referência à escritora é feita através do pronome “suas”. A ação da “mulher do livro”
é que norteia o enunciado. Se suprimíssemos o pronome “suas” do enunciado leríamos “Que
legal é poder escutar histórias contadas por tia Edna, a mulher do livro”. Temos ainda que, nas
cartas, ao citarem as obras preferidas e até mesmo as conhecidas, os leitores citavam as obras
performatizadas pelas PL, com exceção da 43 que aponta como suporte a televisão.
Ora, por que tanta ênfase na prática de leitura mediada pela voz? Primeiro, “A
oralidade não se reduz à ação da voz. Expansão do corpo, embora não o esgote. A oralidade
implica tudo o que, em nós, se endereça ao outro: seja um gesto mudo, um olhar”
(ZUMTHOR, 1997, p. 203). Nessa lógica, o leitor da BLR não usufrui somente da voz da PL,
ele usufrui de seus gestos, de suas expressões, de sua presença, além de compartilhar com
outros leitores um momento tão prazeroso. A leitura oralizada é a partilha máxima entre os
leitores, principalmente entre leitores que se reconhecem integrantes de uma comunidade de
leitores. Segundo, a vivência comunitária é um modo peculiar das populações rurais. É a voz
que possibilita o intercâmbio de idéias e vivências em meio a saraus, velórios, debulhas,
colheitas. (LIMA,1985; XIDIEH, 1993; QUEIROZ, 1978). Por isso, a voz tem uma existência
tão imprescindível na prática de leitura dos leitores da BLR que vivem em meio à
coletividade.
A escrita que pede uma voz, e a leitura que instaura no leitor o Desejo de escrever,
nada mais são do que expressões da necessidade de intercâmbio entre leitores. Eles precisam
escrever/falar de suas leituras, precisam que os leiam/ouçam, precisam se fazer “ouvir” em
meio a uma comunidade de leitores. Eles querem partilhar histórias, suas e as dos livros. E a
voz e a escrita estão a serviço desses leitores tão Desejosos.
92
5 CONCLUSÃO
E a matéria do nosso sonho – que a princípio pode parecer fugaz, já que o
ato de narrar oralmente não se perpetua no tempo e no espaço – só
encontrará eco se levar, num próximo passo, o ouvinte ao livro.
Celso Cisto
Voz, presença, silêncio, gesto e olhar são alguns elementos que permeiam as práticas
de leitura dos leitores da BLR. A leitura oralizada, partilhada, marca seus gestos e suas
maneiras de ler. Mesmo a leitura realizada em outros espaços que não o escolar, clama pela
voz, por ouvintes, por uma platéia; e isto foi claramente perceptível nos relatos dos leitores
sobre suas leituras, a partir do livro que levavam emprestado. A leitura deste era, por vezes,
feita em companhia de familiares: da mãe, da irmã, do avô, do irmão que, se não davam voz
ao escrito, faziam a vez da platéia, conforme vimos nos relatos analisados no decorrer deste
trabalho. Nas ocasiões em que faltavam ouvintes, houve quem improvisasse uma platéia,
mesmo que de seres inanimados. Assim procedeu uma leitora que ao justificar para a PL seu
esquecimento do livro, comunicou-lhe que na noite anterior o havia lido para suas bonecas,
deixando-o junto a elas ao término da leitura (FRAGOSO, 2004).
A voz da PL, que emana do escrito, instaura no leitor/ouvinte o desejo pela escrita,
pela posse do livro suporte. E assim, decifrador ele mesmo da escrita, emprega sua voz, seu
corpo ou seu silêncio em seus gestos de leitura. A voz da PL ecoa, perpetuando-se nos gestos
de leitura dos leitores/expectadores. A voz, tão efêmera, encontra maneiras de se perpetuar.
Uma voz primeira multiplica-se em outras vozes, em outras leituras, em outros impressos,
configurando-se como elemento socializador e iniciador de uma prática leitora, consolidando-
a. Talvez com o tempo, a voz do leitor silencie para uma platéia, resguardando sua leitura para
si mesmo, mas isso será determinado pelo perfil dos ouvintes, pelo gênero do texto e/ou pelo
próprio caminhar do leitor em suas maneiras de ler.
As leituras realizadas em meio ao trabalho da BLR ou possibilitadas por esta clamam
por uma voz por serem a partir de narrativas, gênero que se presta à oralização, à socialização.
93
A narrativa “é uma experiência coletiva”, assim afirma Benjamim (1987, p. 215), por isso ela
pede voz, presença, ouvidos, platéia, troca de impressões, partilha, enfim, a narrativa pede
uma coletividade.
Para Pennac (1998), a leitura é sempre um ato de comunicação, que, se não de maneira
imediata através da vocalização ou da própria leitura individual, é também um objeto de
partilhamento. Um leitor sempre indica a outro um bom livro, um leitor sempre lê ou compra
livros influenciado por comentários de outros leitores. Não há como negar, a leitura é uma
prática que pressupõe socialização, coletividade. Esses elementos são bem marcantes nas
práticas de leitura da BLR.
Nossas reflexões suscitadas no decorrer deste trabalho nos levam a crer que está na
voz/presença, o segredo do sucesso do trabalho da BLR, enquanto instituição que se propõe a
“incentivar e promover a leitura”. Em meio a uma “inflação do impresso”, a voz, instrumento
milenar de interação, se solidifica, apontando caminhos e leituras a leitores iniciantes,
evitando que se percam em meio a tanta oferta do escrito.
Na inflação do escrito, a função deste perde toda a evidência, enquanto a
voz encontra a sua, de maneira selvagem, na busca aleatória de sua
plenitude biológica. [...] Assim é chegado o tempo para nós de bricolar ao
sopro de nossas vozes, na energia de nossos corpos, a imensa e incoerente
herança de alguns séculos de escrita. (ZUMTHOR, 1997, p. 297; 299)
A BLR soube comungar sua prática com as reivindicações de seus leitores exigentes,
astuciosos, seletivos e, sobretudo, heterogêneos. No âmbito do trabalho da BLR, não há uma
imposição aos leitores quanto ao o que ler e como ler, pois o desejo e o gosto destes são
sempre respeitados, a exemplo da leitura/contação da PL que adequa seu repertório e
performance ao público leitor, como também do acervo de livros que a BLR se propõe a
oferecer segundo a procura do leitor, a exemplo dos livros religiosos.
Por ser a leitura uma prática social (CHARTIER, 2001, 1999, 1998, 1996, 1990),
requer um espaço (temporal, geográfico, político, ideológico) para ser e sujeitos para fazê-la.
Por ser uma prática cultural precisa ser socializada, transmitida, constituindo-se herança
cultural e social. Ora, a prática leitora não pressupõe só o domínio da tecnologia de
decodificar signos lingüísticos, ela requer a competência de “visualizar” além do escrito.
Requer a destreza para ler as entrelinhas, bem como requer a reflexão ao buscar outras
leituras; a sensibilidade na percepção do belo, da ironia, das imagens, da arte presentes na
escrita. Nessa lógica, para ser sujeito dessa prática cultural, necessita-se de outros sujeitos que
sirvam de mediadores, de socializadores. A PL é esse socializador, esse mediador que insere
94
os leitores na prática leitora, antes mesmo de aprenderem a decifrar o código escrito; assim, os
leitores da BLR lêem (atribui sentido) antes mesmo de saberem ler (decodificar o escrito).
Mas aos leitores que já dominam a decodificação do escrito, a PL não lhes furta o
prazer de continuarem lendo/ouvindo a narrativa através de sua performance. O tempo de
parar de ouvir histórias é dado por eles, a PL não tem pressa.
Pennac (1998) censura a atitude dos adultos que abandonam a leitura vocalizada para
os pequeninos tão logo estes adquiram a capacidade de lerem sozinhos. O leitor iniciante
ainda necessita do aconchego e do auxílio de uma voz/presença, e, por vezes, na falta desta
última acaba por abandonar ou esmorecer no seu percurso de leitor autônomo:
Ele [o leitor] seguia o seu ritmo, e era tudo, o que não é necessariamente o
ritmo de um outro que não é necessariamente o ritmo uniforme de uma
vida, seu ritmo de leitor aprendiz, que conhece acelerações e bruscas
regressões, períodos de bulimia e longas sestas digestivas, sede de avançar e
medo de decepcionar...
Só que nós ‘pedagogos’, somos credores apressados. Detentores do Saber,
emprestamos com juros. E é preciso que isso renda. Depressa! (p. 48-49)
O narrador/leitor não deve ser ansioso nem ter pressa em se libertar do leitor/ouvinte,
ou ter pressa que ele se liberte de sua voz. Deve esperar que o leitor/ouvinte, a seu tempo,
sinta a necessidade de caminhar sozinho. Quando esse momento chegar, o narrador, “não
mais do que uma casamenteira [...] é bom que saia de cena na ponta dos pés” (PENNAC,
1998, p. 115). No momento em que o narrador se faz dispensável, é preciso que ele se retire e
deixe o amante com seu objeto amado.
Quando o leitor conquista seu habeas corpus é sinal de que o leitor/narrador cumpriu
com sua missão de apresentar e guiar o iniciante em uma prática social até tornar-se sujeito
autônomo desta. Não é suficiente que se propaguem os benefícios e a necessidade de se ser
leitor em meio a uma sociedade do impresso, da escrita; é preciso que se mostre como sê-lo,
pois “aquilo que uma criança aprende primeiro não é o ato, mas o gesto do ato” (PENNAC,
1998, p. 46 – grifos do autor).
Ao atentarmos para nossa história de leitor, como a de outros leitores dos quais temos
conhecimento é recorrente a presença de outro que nos inicia na leitura, quer através da
partilha: lendo para nós, comentado suas leituras, indicando e disponibilizando livros; quer
através do simples ato de ler e nós de o observarmos lendo, absorto, esquecido do mundo. É
através de seu ato que aprendemos gestos como procurar um livro na estante, entrar em uma
livraria e saber escolher um livro, consultar o índice, entrar em uma biblioteca e saber se
localizar e localizar o livro em meio a tantas estantes. Não são os discursos do elogio à leitura
95
proferido por leitores (e por vezes por não-leitores), por instituições como a Escola e a
Biblioteca que nos fazem leitores autônomos, são sim, os gestos, o ato, enfim, a prática leitora
como prática “amorosa” que nos faz leitores. Somos leitores porque nos mostraram como sê-
lo, somos leitores porque primeiro foram conosco, porque primeiro se fizeram de livro,
possibilitando-nos a leitura (Pennac 1998).
A PL, “mulher do livro” é o próprio livro, no sentido de que se faz suporte do texto a
ser lido pelos ouvintes, como também no sentido de que possibilita o acesso ao texto escrito,
quer vocalizando-o, quer disponibilizando-o pelo empréstimo. A “mulher do livro” atua como
mediadora entre os sujeitos e a prática da leitura, garantindo a estes, o acesso e a
experimentação. A decisão ou o interesse de ser leitor parte de cada sujeito que, pelo seu
conhecimento (e não pelo desconhecimento) e vivência, decide sê-lo. “Porque se podemos
admitir que um indivíduo rejeite a leitura, é intolerável que ele seja rejeitado por ela”
(PENNAC, 1998, p. 145).
A voz é quem convida e guia o leitor nos caminhos da leitura, quem com ele vivencia
histórias fantásticas, surpresas, alegrias e tristezas suscitadas pelo texto escrito. Com ele
caminha lado a lado, até que um dia, o leitor não mais precisará de um guia. Ele agora é um
sujeito autônomo e sabe caminhar por veredas conflitantes ou tranqüilas em meio às páginas
dos livros. Ele não precisa mais da voz. Ele agora se faz voz para outros leitores iniciantes.
Ou ele agora prefere o silêncio das palavras escritas. Mas a voz, aquela voz primeira, ecoará
sempre em suas práticas de leitura. Pela voz, o leitor chegou ao livro.
96
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Petrópolis: Autores & Associados.
RAMOS, Anna Cláudia. Água: pra que serve a água. Belo Horizonte: Dimensão.
RENARD, Jules. Foguinho. Porto Alegre: Globo.
REY, Marcos. Um rosto no computador. São Paulo: Ática. (Série Vaga-Lume)
REZENDE FILHO, José. Tonico. São Paulo: Ática. (Série Vaga-Lume)
ROCHA, Ruth. Pra vencer certas pessoas. Il. Alcy. São Paulo: Ática.
______ . Azul e Lindo – Planeta Terra nossa casa. Il. Otávio Roth. São Paulo: Salamandra.
ROSS, Tony. Quero um gato. São Paulo: Martins Fontes.
ROTH, Otávio. Duas dúzias de coisinhas à toa que deixam a gente feliz. São Paulo: Ática.
______ . Outras duas dúzias de coisinhas à toa que deixam a gente feliz. São Paulo: Ática.
SUHR, Mandy. Tato. Il.Mike Gordon. São Paulo: Scipione. (Coleção Os sentidos)
WEST, Callie. Meu primeiro namorado. São Paulo: Ática. (Série Primeiro Amor)
WATANABE, Luci Guimarães. Canção para Débora. São Paulo: FTD.
ZOTZ, Werner. Apenas um curumim. Il. André Sandoval. Florianópolis: Letras Brasileiras.
101
ANEXO A – CÓPIA DO FOLDER DA CAMPANHA DE ARRECADAÇÃO DE LIVROS
102
ANEXO B – ENVELOPE E FICHA DE EMPRÉSTIMO
Ficha de empréstimo do livro Amoreco da autoria de Babette Cole. Na ficha consta a
informação referente à escola da qual o usuário faz parte, o nome do usuário e a data da
devolução do livro. O primeiro empréstimo foi efetuado em nome da usuária Ilma, estudante
da escola em Mata da Chica II, com devolução prevista para 02 de julho. No envelope fixado
à contra-capa do livro constam as informações referente à escola onde foi efetuado o
empréstimo e em que data deverá ser devolvido.
103
ANEXO C – TEXTOS BIOGRÁFICOS DAS ESCRITORAS RUTH ROCHA E ANA
MARIA MACHADO
http://www2.uol.com.br/ruthrocha/historiadaruth.htm
HISTÓRIA DA RUTH
Ruth Rocha nasceu em 1931 na cidade de São Paulo. Filha dos cariocas Álvaro de Faria
Machado, médico, e Esther de Sampaio Machado, tem quatro irmãos, Rilda, Álvaro,
Eliana e Alexandre. Teve uma infância alegre e repleta de livros e gibis. O bairro de Vila
Mariana, onde morava, tinha nessa época muitas chácaras por onde Ruth passava, a
caminho da escola - estudava no Colégio Bandeirantes. Mais tarde, terminou o Ensino
Médio no Colégio Rio Branco.
É graduada em Sociologia e Política pela Universidade de São Paulo e pós-graduada em
Orientação Educacional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Casada com
Eduardo Rocha, tem uma filha, Mariana e dois netos, Miguel e Pedro.
Durante 15 anos (de 1956 a 1972) foi orientadora educacional do Colégio Rio Branco,
onde pôde conviver com os conflitos e as difíceis vivências infantis e com as mudanças
do seu tempo. A liberação da mulher, as questões afetivas e de auto-estima foram
sedimentando-se em sua formação.
Começou a escrever em 1967, para a revista Claudia, artigos sobre educação. Participou
da criação da revista Recreio, da Editora Abril, onde teve suas primeiras histórias
publicadas a partir de 1969. “Romeu e Julieta”, “Meu Amigo Ventinho”, “Catapimba e Sua
Turma”, “O Dono da Bola”, “Teresinha e Gabriela” estão entre seus primeiros textos de
ficção. Ainda na Abril, foi editora, redatora e diretora da Divisão de Infanto-Juvenis.
Publicou seu primeiro livro, “Palavras Muitas Palavras”, em 1976, e desde então já teve
mais de 130 títulos publicados, entre livros de ficção, didáticos, paradidáticos e um
dicionário. As histórias de Ruth Rocha estão espalhadas pelo mundo, traduzidas em mais
de 25 idiomas.
Monteiro Lobato foi sua grande influência. Em sua obra, essa influência se traduz pelo
seu interesse nos problemas sociais e políticos, na sua tendência ao humor e nas suas
posições feministas.
Seu livro de forte conteúdo crítico, “Uma História de Rabos Presos”, foi lançado em 1989
no Congresso Nacional em Brasília, com a presença de grande número de parlamentares.
Em 1988 e 1990 lançou na sede da Organização das Nações Unidas em Nova York seus
livros “Declaração Universal dos Direitos Humanos” para crianças e “Azul e Lindo –
Planeta Terra Nossa Casa”.
Participou durante seis anos do programa de televisão Gazeta Meio-Dia como membro
fixo da mesa de debates.
Em 1998 foi condecorada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso com a Comenda da
Ordem do Mérito Cultural do Ministério da Cultura.
Ganhou os mais importantes prêmios brasileiros destinados à literatura infantil da
Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, da Câmara Brasileira do Livro, cinco
Prêmios “Jabuti”, da Associação Paulista de Críticos de Arte e da Academia Brasileira de
Letras, Prêmio João de Barro, da Prefeitura de Belo Horizonte, entre outros.
104
Seu livro mais conhecido é “Marcelo, Marmelo, Martelo”, que já vendeu mais de 1 milhão
de cópias.
Em 2002 ganhou o prêmio Moinho Santista de Literatura Infantil, da Fundação Bunge.
Também nesse ano foi escolhida como membro do PEN CLUB – Associação Mundial de
Escritores no Rio de Janeiro.
Atualmente é membro do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta.
Ruth Rocha aos quatro anos de idade, vestida de anjo.
105
http://www.anamariamachado.com/caderno/do_outro_lado06.html
Do Outro lado tem segredos
Uma exposição virtual
1. Primeiros passos
Meu nome é Ana Maria Machado e eu vivo inventando
histórias. E dessas que eu escrevo, algumas viram livros.
Adoro o meu trabalho. Ainda bem, porque acho que não
ia conseguir viver se não escrevesse. Já fui professora, já
fui jornalista, já fiz programa de rádio, já tive uma
livraria e nesse tempo todo nunca parei de escrever.
Eu e meus pais,
em 1942.
Arrastão em Manguinhos.
Nasci e me criei no Rio, mas quando era criança
costumava passar os verões na praia de Manguinhos, no
Espírito Santo. Ficava quase três meses por ano à beira
do mar, com meus avós, junto à natureza e às tradições.
Como não havia eletricidade, todas as noites as pessoas
se reuniam para contar e escutar histórias. Cada adulto
tinha a sua especialidade, contando os mais variados
tipos de história. Tenho certeza que sem os verões em
Manguinhos eu escreveria bem diferente.
Aprendi a ler sozinha, com menos de cinco anos. Depois
de deixar minha professora e minha mãe assustadas
(acharam que poderia fazer mal!), comecei a mergulhar
em leituras como o Almanaque do Tico-
T
ico e os livros de
Monteiro Lobato. Foi nesse período que encontrei o livro
que marcaria a minha vida para sempre: Reinações de
Narizinho.
Manguinhos, 1952.
Sítio como o do Pica Pau Amarelo,
só que com mar na porteira.
Carybé.
No meu aniversário de sete anos, ganhei de presente um
marcante e inesquecível diário. Era um fichário preto, de
três furos, onde eu podia guardar tudo o quisesse e
trancar para ninguém ver. Na primeira página tinha um
desenho lindo, feito por encomenda a um pintor
argentino chamado Carybé. Nesse tempo ele ainda não
tinha virado baiano nem ilustrador de Jorge Amado e
Garcia Márquez. Saí escrevendo furiosamente no diário.
Era uma boa aluna e vivia ganhando prêmios – em geral
livros, da família. Uma das minhas redações foi tão
elogiada e premiada que a mostrei em casa. Meu tio
Nelson, que estava lá, levou o texto para o meu tio
Guilherme, folclorista – e essa acabou sendo a minha
estréia literária. Devidamente assinado e aumentado, por
encomenda da revista Folclore, saiu publicado meu
Arrastão, sobre as redes de pesca artesanal em
Manguinhos. O meu orgulho supremo foi que a revista
Eu, aos 5 anos, em 1947.
106
não falava que o texto tinha sido feito por uma menina
de doze anos.
2. Pintando o caneco
A minha adolescência foi repleta de livros, que me
proporcionaram grandes prazeres e descobertas. Ficava
abismada com o jeito de escrever de grandes autores e
cronistas, como Rubem Braga. Na escola, em casa e
com meus amigos, estava sempre rodeada de gente que
também gostava de curtir a vida tendo bons livros ao
seu lado.
Rubem Braga.
Eu e Aloísio Carvão.
Estava no científico quando comecei a estudar pintura,
primeiro na Escolinha de Arte do Brasil, depois no
Atelier Livre do Museu de Arte Moderna. Foi nesse curso
que tive o privilégio de ter aulas com Aloísio Carvão,
por quem guardo até hoje um carinho muito grande.
Nunca alguém tinha sido tão exigente comigo e ao
mesmo tempo me dado tanta força, me preparando
para a dureza de ser artista.
Chegou a hora de fazer vestibular, e eu não tinha idéia
de que curso escolher. Na dúvida entre química e
arquitetura, acabei optando por geografia, pensando que
aprenderia assuntos como geografia econômica ou
entenderia de modo mais profundo a sociedade
brasileira. Mas a faculdade me desapontou, com a
exigência de muito conhecimento exato. Para mim, no
fundo, nada disso importava ou teria utilidade. O que eu
queria mesmo era trabalhar como pintora.
Pintando nos idos da
década de 70.
Conversando
com algumas
crianças.
Menos de um ano depois, cansada de examinar rochas e
eixos de cristalografia, mudei de curso e fui estudar
letras. Também comecei a trabalhar como professora,
dando aulas de português, latim e francês (em inglês!)
numa escola americana. Mesmo com tantas atividades, ia
seguindo com a carreira de pintora, fazendo exposições
individuais e coletivas.
De repente, tudo ficou mais sério. Me formei e fiz
mestrado, casei com o médico Álvaro Machado, mudei
de sobrenome e de cidade, indo para São Paulo. Passei
a escrever artigos para a revista Realidade e a
Enciclopédia Bloch, além de traduzir textos e continuar
pintando. Nesse período nasceu meu primeiro filho,
Rodrigo. Também ganhei uma amiga para a vida toda,
a escritora Ruth Rocha, que virou minha cunhada.
Eu e Ruth em Berlim, 1994.
107
Exemplar da Recreio.
Recebi certo dia uma ligação da Editora Abril, me chamando para
escrever em uma nova revista voltada para crianças, e que se
chamaria Recreio. Não acreditei no convite, afinal era professora
universitária, nunca tinha feito nada parecido. Mesmo assim,
insistiram em mim e acabei topando. A revista fez um sucesso
imenso, e acabou abrindo caminhos para a nova literatura
infantil brasileira.
3. Aquele abraço
Em 1969, o país estava em plena ditadura. Já
vivíamos sob o peso do Ato Institucional no 5, que
fechou o Congresso, instituiu a censura e
consolidou a tortura. O segundo semestre desse
ano foi particularmente difícil para mim. Fui presa,
tive colegas, amigos e alunos detidos. Quando o
ano acabou, estava desmontando minha casa e
fazendo malas para deixar o país. Anos depois,
escreveria sobre essa época no romance "Tropical
Sol da Liberdade".
Casa de meus
pais em
Manguinhos,
descrita no
livro.
Em Paris, brincando com meu filho
Rodrigo.
Fui para Paris em janeiro de 1970, onde trabalhei
como jornalista na revista Elle e como professora em
Sorbonne. Também trabalhei numa biblioteca,
cuidando do setor sobre a América Latina, fiz
dublagem de documentários e participei de
exposições de pintura. E tratei de aproveitar a
oportunidade para estudar e aprender bastante.
Virei aluna da Ecole Pratique des Hautes Etudes, onde
reinava soberano o famoso semiólogo Roland Barthes.
Em suas aulas, ele chegava a encher um anfiteatro com
800 estudantes, mas também orientava em separado a
um pequeno grupo de 20 estudantes. Depois de uma
entrevista, ele me chamou para pertencer a esse grupo.
Sob a sua orientação, escrevi a tese de doutorado que
acabou virando livro - "O Recado do Nome", que trata da
obra de Guimarães Rosa. Nesse período, em abril de
1971, nasceu Pedro, meu segundo filho.
Cartão de identificação como aluna de Barthes.
108
Em Londres, com meus filhos
Rodrigo e Pedro.
Estava com dois filhos pequenos em um país estranho, tinha o
trabalho, a tese e a casa para cuidar. Mesmo assim, não parei de
escrever as histórias infantis. Já estava definitivamente viciada em
escrevê-las. Quando não as mandava para a revista Recreio publicar,
guardava na gaveta o que escrevia. Surgiu uma oportunidade e fui
para Londres, trabalhar na BBC. Ficaria por um ano e meio. O fim do
exílio estava próximo
4. Agora pra ficar
A volta ao Brasil veio no final de 1972. Concentrei-me
na imprensa e fui trabalhar no Jornal do Brasil. De
repórter passei a chefe do departamento de jornalismo
da Rádio JB, onde fiquei durante sete anos. Entrevistei
um monte de gente, orientei mais um monte, e ganhei
muita intimidade com um tipo de linguagem oral e
acessível.
Com Caetano Veloso, na Rádio Jornal do Brasil,
em 1976.
Carta do escritor Carlos Drummond
de Andrade falando do livro.
Meu primeiro livro infantil, "Bento-que-bento-é-o-
frade", foi publicado cinco anos depois da minha
chegada. Ele fazia parte da coleção Livros de Recreio.
Outra série foi montada pela Editora Abril - Histórias
de Recreio. Nesta, foram selecionados os contos de
maior sucesso da revista, divididos por autor. Os
meus títulos foram "Severino faz chover", "Currupaco
Papaco" e "Camilão, o Comilão", cada um com quatro
histórias.
O primeiro prêmio viria logo a seguir. Em 1978, participei
de um concurso, sob pseudônimo, e acabei ganhando o
prêmio João de Barro, com "História Meio ao Contrário",
que depois também ganhou o Jaboti. Além da publicação
do livro, essa premiação desencadeou uma série de
convites de editores para publicar mais textos meus, e
fui tirando o que tinha guardado nas gavetas. Acabei
ganhando mais prêmios e me dedicando cada vez mais a
escrever.
Em 1979, um dia quis dar um livro a uma sobrinha que
fazia anos. Bati perna por todas as livrarias de Ipanema
e Copacabana e não achei um único livro infantil que me
agradasse! Percebi logo que estava faltando uma livraria
especializada, onde as crianças pudessem ler e encontrar
bons livros. Com a ajuda de uma sócia surgiu a Livraria
Malasartes, onde eu ficaria por 18 anos.
109
Malasartes, 1990.
Em 1980, passei por um momento decisivo dentro da
Rádio JB. Diante de uma ordem para demitir um terço da
redação, optei pela minha própria demissão. Com o
j
ornalismo devidamente abandonado, mudei de vida.
Iniciava um segundo casamento, com o músico Lourenço
Baeta. Passei a cuidar de minha livraria e me dediquei
mais a escrever, dando seguimento a um romance que
começara dois anos antes, "Alice e Ulisses".
Eu e Lourenço, em 1989.
5. Mil histórias
Em seguida, o que houve foi uma verdadeira surpresa
para mim: comecei a ganhar prêmios, de melhor livro
nacional do ano, de melhor livro do biênio, e muitos
outros. Até mesmo do exterior veio o reconhecimento,
com o Prêmio Casa de las Américas, em Cuba, ao qual
concorri num gesto de ousadia, com um livro infantil
("De Olho nas Penas") competindo com literatura adulta,
e venci. Foi muito emocionante perceber que aquilo que
eu gostava tanto de fazer chegava a outras pessoas.
Lançamento do livro
"De Olho nas Penas",
em dezembro de 1981.
Eu e minha filha Luísa.
Em 1983, nasceu Luísa. No mesmo ano, tomei
coragem e publiquei meu primeiro romance para
adultos, "Alice e Ulisses", muito bem recebido pela
crítica. Ao mesmo tempo, meus livros foram
começando a ser traduzidos no exterior, primeiro nos
países escandinavos e, em seguida, na Alemanha, na
França e na Espanha. Paralelamente, fui passando a
fazer palestras para professores pelo interior do Brasil
e desenvolvi cursos e seminários sobre promoção de
leitura no exterior.
De 1986 a 1988, fizemos uma coisa maravilhosa:
deixamos a cidade grande e nos mudamos para uma
casinha pequenina em Manguinhos. Uma verdadeira
volta as raízes. Uma vida muito modesta e recolhida, em
contato direto com o mar e a natureza. Luísa ia a escola
com os filhos dos moradores locais, Lourenço compunha
e tocava, eu escrevia.
Feliz com a tranqüilidade de Manguinhos.
De Manguinhos para o mundo... Em fim de 1989, me
ofereceram um novo contrato com a BBC e voltei para
Londres, onde passei oito meses e terminei de escrever o
romance "Canteiros de Saturno". Pouco depois de voltar
ao Brasil, em meio a muito trabalho, tive problemas de
saúde muito sérios. Por um longo tempo toda minha vida
ficou direcionada a enfrentar essa situação, ajudada pelo
110
Passeando no Regent´s Park,
Londres - 1990.
carinho de tanta gente que me quer bem e apoiada pelo
meu trabalho.
Os últimos anos tem sido principalmente de coisas boas,
que as outras a gente esquece. Dois netos maravilhosos:
Henrique em 1996 e Isadora em 2000. Nesse mesmo
ano, ganhei também o prêmio Hans Christian Andersen,
coisa que me trouxe muita alegria. É incrível saber que
um júri internacional, sem nenhum brasileiro, analisou o
conjunto de minha obra e concluiu que eu merecia ser
considerada a melhor autora do mundo...
Junto da estátua de Hans Christian Andersen, em
Nova Iorque.
Com o presidente Fernando Henrique
Cardoso, recebendo a Ordem do Mérito
Cultural.
Em 2001, tive uma surpresa maravilhosa: ganhei o maior
prêmio literário nacional, o Machado de Assis, que a
Academia Brasileira de Letras confere por toda a obra de um
autor. Uma honra dessas ainda veio se somar as
condecorações. Recebi a Medalha Tiradentes, da Assembléia
Legislativa do Rio, e a Ordem do Mérito Cultural, da
Presidência da República. Uma verdadeira consagração.
Puxa, nem com uma varinha mágica uma fada-madrinha
podia me dar isso...
6. Uma conquista histórica
Eu era muito amiga do doutor Evandro Lins e Silva.
Minha irmã foi casada com um filho dele, então a
gente conviveu muito. Ele várias vezes me falou que eu
deveria me candidatar, que ele gostaria muito de me ver
na Academia. E quando ele morreu eu fiquei muito triste
com o acontecido, mas pensei que a
hora era aquela.
Com o Dr. Evandro Lins e Silva
durante cerimônia de premiação
do Prêmio Machado de Assis
na ABL em 2001
111
Em recepção ocorrida na
Editora Nova Fronteira, com os
acadêmicos Evanildo Bechara,
Alberto da Costa
e Silva, Murilo Melo Filho no dia
da eleição para a ABL
Todo mundo que escreve tem uma vontade de
participar da Academia, é algo natural. É o mesmo
que um jogador de futebol querer entrar para a
seleção, um desembocadouro natural.
A campanha foi muito trabalhosa, mas acima de
tudo, proveitosa. Foi uma oportunidade de chegar
perto de pessoas muito interessantes que de outra
forma eu não teria como conhecer.
Depois de quatro meses onde procurei encontrar
pessoalmente cada um dos acadêmicos, para me
apresentar e à minha obra, tive a imensa honra de ser
eleita para ocupar a cadeira número 1, que tem como
patrono Adelino Fontoura, e cujo fundador foi Luís Murat.
Ana entre os imortais
presentes à sua posse
Já diplomada, assumindo
a cadeira nº 1.
Essa escolha é muito significativa, pois até hoje
nenhum autor com uma obra significativa para o
público infantil havia sido escolhida para a Academia.
Nem mesmo Monteiro Lobato conseguiu quando se
candidatou.
Como fiz questão de lembrar nas primeiras entrevistas
que dei após a eleição, sou muito grata a duas outras
autoras que abriram os caminhos para essa
consagração. Uma delas foi Rachel de Queiroz, por ter
sido a primeira mulher a ser escolhida para a Academia
e ter aberto as portas para todas as que vieram depois.
Se preparando para assinar o
livro de posse, encaminhada
por Cândido Mendes
Ao lado do presidente da
Academia, Alberto da Costa e
Silva
A outra autora que foi fundamental em minha
trajetória de escritora e me incentivou muito a me
candidatar foi minha querida amiga Ruth Rocha.
A repercussão da minha escolha foi outra coisa
maravilhosa que aconteceu. Compartilhe aqui um
pouco do carinho recebido através do site.
112
A posse aconteceu no dia 29 de agosto de 2003. Faz
parte da tradição da Academia quem está tomando
posse homenagear o antecessor. Para mim, essa tarefa
foi muito prazeirosa, já que pude falar de afetuosas
lembranças do meu convívio pessoal com o meu querido
amigo Evandro Lins e Silva. O meu discurso de posse
está disponível (num arquivo em formato PDF) para
quem quiser ler.
Sendo cumprimentada por
Bia e Pedro Correia do Lago
Com Claudia e Paulo Henrique
Amorim
Fui recebida pelo acadêmico Tarcísio Padilha, que lembrou, em
seu discurso, das outras cinco mulheres que alcançaram essa
mesma honra, recordando que, já na fundação da Academia,
"Lúcio de Mendonça, a quem todos devemos a idéia de se
fundar esta Academia, (...), incluiu o nome de Julia Lopes de
Almeida. Foi vencido duas vezes, mas pela imprensa insistiu na
mesma tecla, em favor do ingresso de escritoras na Casa de
Machado de Assis. ".
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