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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
A CONSTRUÇÃO RETÓRICA DE UM MONUMENTO:
IMAGENS HAGIOGRÁFICAS NAS CARTAS DE ANCHIETA
KARLA JANAINA COSTA CRUZ
JOÃO PESSOA
ABRIL/2007
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1
KARLA JANAINA COSTA CRUZ
A CONSTRUÇÃO RETÓRICA DE UM MONUMENTO:
IMAGENS HAGIOGRÁFICAS NAS CARTAS DE ANCHIETA
Dissertação apresentada ao programa de
Pós Graduação em Letras do Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal da Paraíba, como
requisito parcial para a obtenção do título
de Mestre em Letras, na área de
concentração Literatura e Cultura.
Profª. Drª. Socorro de Fátima Pacífico Barbosa – Orientadora
JOÃO PESSOA
ABRIL / 2007
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2
KARLA JANAINA COSTA CRUZ
A CONSTRUÇÃO RETÓRICA DE UM MONUMENTO:
IMAGENS HAGIOGRÁFICAS NAS CARTAS DE ANCHIETA
Dissertação apresentada ao programa de
Pós Graduação em Letras do Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal da Paraíba, como
requisito parcial para a obtenção do título
de Mestre em Letras, na área de
concentração Literatura e Cultura.
Aprovada em ____ / ____ / ______
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________
Profª. Drª Socorro de Fátima Pacífico Barbosa – Orientadora
(UFPB)
______________________________________________________
Profª. Drª. Francilda Araújo Inácio – Examinadora
(CEFET – PB)
______________________________________________________
Prof°. Dr°. Diógenes André Vieira Maciel – Examinador
(UFPB – PB)
______________________________________________________
Profª. Drª. Beliza Áurea de Arruda Melo – Suplente
(UFPB – PB)
João Pessoa
Abril/2003
3
A meus pais, Maria de Fátima e
Carlos Costa, que com muita
paciência, construíram os pilares da
minha educação e, mesmo sem as
oportunidades acadêmicas que hoje
posso usufruir, incentivaram-me a
experimentar sempre o sabor do
saber.
4
Anchieta é um monumento que, diferente
das estátuas e arcos, molda-se,
transforma-se, adapta-se e assume feições
múltiplas e distintas que variam de acordo
com os interesses daqueles que se
apropriam de seu nome, de sua imagem, de
sua escrita, ao longo desses quatro séculos.
(Socorro de Fátima)
5
AGRADECIMENTOS
A Deus, fonte de toda sabedoria, em quem posso me abrigar como Rocha inabalável.
A meu marido e filho, pela paciência e apoio para que este trabalho se concretizasse – existo por
vocês.
A Profª. Socorro Barbosa, minha gratidão por ter sido orientadora persistente e amiga
(desde minha Iniciação Científica como bolsista do PIBIC), que com diretrizes seguras,
aceitou a orientação com todas as minhas restrições e com sua competência, colaborou
para a conclusão
dessa empreitada.
Aos Professores Diógenes Maciel e Francilda Araújo, pelos comentários e sugestões apontados
no decorrer do exame de qualificação.
Ao Prof°. Rinaldo Fernandes que, na graduação, analisava meus textos e comentava “prossiga
com seus estudos na Pós Graduação” – Professor, você é prova do poder de um incentivo.
Aos demais professores que formam o corpo docente do Programa de Pós–Graduação em
Letras, por nutrirem em mim a paixão pela arte literária.
Aos meus amigos e também mestrandos Moama, Keila, Gilvan, Plínio e Fabiana (doutoranda),
por tudo o que compartilhamos – jamais esquecerei.
A minha família que sempre colaborou e me incentivou em vários momentos de minha vida tão
atribulada, fazendo-me repensar e prosseguir.
6
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo a abordagem das cartas do Pe. José de Anchieta sob
o ponto de vista de um gênero retórico – ars dictaminis – fundado sobre modos de ver
próprios à época, o que inclui uma visão teológica de mundo e, no caso da Companhia de
Jesus, escritos de caráter devocional, cujo objetivo era o de sedimentar e divulgar a ação
missionária. Nesse sentido, procuramos resgatar o significado e a importância da
correspondência para a ordem jesuítica, identificando e analisando as imagens
hagiográficas, ou seja, os modelos, exemplos e topoi próprios às vidas dos santos, que
estão contidas nas epístolas anchietanas. Pretendemos revelar a construção de um
monumento retórico alicerçado nas imagens santas e no discurso bíblico, que fizeram de
Anchieta um exemplo de virtude a serviço da Ordem dos Jesuítas e da Coroa Portuguesa.
Palavras – chave: Retórica – Hagiografia – Epistolografia – Jesuítas.
7
ABSTRACT
This research has as a goal the study of the letters from the Priest José de Anchieta under
the point of view of the rhetoric gender- ars dictaminis-established on ways the see the
time proper, what includes a theological view of world and in the case of Jesus’ Company,
writings of devocional character whose goal was to sediment and to divulge the
missionary action. In this way we looked for rescue the meaning and importance of the
correspondence for the Jesuitic order, identifying and analyzing the hagiographic
images,that is the models, examples and topoi proper to the saint lives, that are inside in
the anchietans epistles. We intend to reveal the building of a rhetoric moment built in the
saints images and Biblical speech which made Anchieta an example of virtue in the service
of the Jesuitic order and Portuguese kindom.
Key-words: Rhetoric – Hagiography – Epistolography – Jesuitics.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 09
CAPÍTULO I Retórica, Teologia e Política nas cartas de Anchieta ................... 14
1.1 Correspondência Jesuítica: um gênero regrado ........................................................... 14
1.2 Companhia de Jesus: fruto de uma concepção essencialmente teológica de
mundo .................................................................................................................................. 18
1.3 A importância da arte de fazer cartas para a Companhia de Jesus ........................... 23
1.4 Os aspectos retóricos da escrita jesuítica ...................................................................... 33
1.4.1 Salutatio ................................................................................................................................ 34
1.4.2 Captatio Benevolentiae ( ou Exordium) ................................................................................ 34
1.4.3 Narratio ................................................................................................................................ 35
1.4.4 Petitio .................................................................................................................................... 37
1.4.5 Conclusio ................................................................................................................................ 37
CAPÍTULO II – As Imagens Hagiográficas nas cartas de Anchieta ................................. 38
2.1 O fazer hagiográfico: a reinvenção de um tema antigo no discurso quinhentista .. 38
2.2 Identificação e análise das Imagens Hagiográficas nas Cartas de Anchieta ............. 41
2.2.1 A Imagem do soldado de Cristo na Carta de 1554 ...................................................... 41
2.2.2 A Imagem do evangelista na Carta de 1554 .................................................................. 48
2.2.3 A Imagem do casto ............................................................................................................ 50
2.2.4 A Imagem do mártir .......................................................................................................... 55
CAPÍTULO III – A Literatura Quinhentista e sua representação no livro didático ....... 62
3.1 Entendendo o problema ......................................................................................................... 62
3.2 Incoerências sobre a representação discursiva quinhentista no livro didático .............. 64
3.2.1 Anacronismo Literário ......................................................................................................... 64
3.2.2 Espaço insuficiente para a abordagem do conteúdo ...................................................... 66
3.2.4 Exercícios simplórios ........................................................................................................... 68
COSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................... 70
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 73
ANEXOS .................................................................................................................. 77
9
INTRODUÇÃO
Contrário às correntes definições, que costumam ser estabelecidas por padrões
instituídos pela tradição romântica como, por exemplo, a atribuição de um caráter
meramente descritivo-informativo às representações discursivas do século XVI, esse
estudo visa proporcionar novas bases para uma leitura e compreensão eficazes dos textos
produzidos na época dos Grandes Descobrimentos, tomando como principal objeto de
análise as cartas do Pe. José de Anchieta, representando a produção epistolográfica da
Companhia de Jesus.
Para que isso seja possível, a tríade Retórica, Teologia e Política é tomada como o
suporte de nossa linha de pesquisa para uma possível reconstrução das condições sob as
quais os textos do período colonial foram produzidos. Segundo Hansen, “os textos luso-
brasileiros do século XVI, que hoje eventualmente lemos como literários, chegaram ao
presente apropriados desde o século XIX nos programas nacionalistas de invenção de
tradições” (1999, p. 172). Esses programas, por sua vez, proporcionaram uma leitura
anacrônica aos textos redefinindo os valores políticos, retóricos e poéticos em prol de um
enquadramento das representações discursivas em moldes nacionalistas.
Isso significa dizer que, os textos coloniais foram inadequadamente apropriados
de uma interpretação referendada em uma subjetividade particular e em um interesse de
determinado grupo social, responsáveis pela inclusão desses em “formas nas quais se vazam
conteúdos externos a elas”, quando, na realidade, deveriam ser tomados como
“determinações convencionais e históricas constitutivas dos sentidos verossímeis de cada
um desses textos” (PÉCORA, 2001, p. 11).
Desvinculando-se desses padrões impostos pela estética romântica foi possível
observar, a partir das cartas de Anchieta, uma escrita norteada pela Retórica, pois essas se
enquadram perfeitamente na Ars Dictaminis, ou “arte de fazer cartas”, procedimento
retórico que “se destinava em primeira linha a oferecer modelos para a confecção de
cartas e documentos” (CURTIUS, 1979, p. 78). Além disso, as cartas tornam-se material
digno de análise textual por estarem repletas de uma série de metáforas, alegorias e traços
característicos da arte de persuadir.
10
Essa escrita é também norteada pela Teologia, visto que a forma mentis de então
concebia a temporalidade como “emanação ou figura de Deus que inclui a história como
projeto providencialista” (HANSEN, 2002, p. 2). Entendendo Providencialismo como a
doutrina cristã que, de forma geral, é definida como a suprema sabedoria com que Deus
conduz todas as coisas, os jesuítas acreditavam fazer parte deste projeto divino sendo, eles
mesmos, a atualização dos eventos bíblicos. Tomando como exemplo os grandes homens
da Bíblia Sagrada, principalmente o apóstolo Paulo, eles queriam ser instrumentos para a
glorificação e estabelecimento do Reino de Deus aqui na Terra, como afirma Anchieta em
uma de suas cartas: “E ali logo começamos a experimentar a doçura da divina
Misericórdia e Providência à qual totalmente nos havíamos nos entregado” (Do Ir. José
de Anchieta ao Geral P. Diogo Laínes, Roma, 1565. In: VIOTTI, 198, p. 211).
Encontramos ainda nas cartas uma escrita norteada pela Política. Havia uma
estreita ligação entre a Fé Cristã e o Império Português respaldada a concepção teológica
do homem quinhentista. Discorrendo sobre a política portuguesa e a Companhia de
Jesus, o Pe. Hélio Abranchess Viotti afirma que:
A expansão missionária dos jesuítas está sem dúvida, vinculada à
expansão política e social dos portugueses pelo mundo. (...) A ação
missionária dos jesuítas abriu Portugal, de par em par, a porta de seus
domínios, até o extremo da zona de influência de seu comércio
internacional, o arquipélago nipônico. E logo mais o Celeste Império.
Financiou as viagens das sucessivas levas de evangelizadores e, até certo
ponto, sustentou sua obra apostólica. (VIOTTI, 1984, pp. 10,11)
Levando em consideração esses três elementos – Retórica, Teologia, Política – como
norteadores da escrita jesuítica, torna-se possível “a desvinculação desses textos de um
certo caráter de escrita pura e simplesmente informativa” (SILVA, 2002, p. 5), conforme
são entendidos pela historiografia literária e brasileira. De fato, não apenas as cartas, como
as crônicas e os demais documentos da época continham descrições e informações.
Porém, deve-se considerar que há, por trás de todo o arranjo textual, um discurso
permeado de intenções responsável em tornar, por exemplo, a escrita de Anchieta “uma
escrita poderosa e fundadora” (VILAR, 1999, p. 73).
Nesta escrita poderosa e fundadora, encontramos a presença do gênero
hagiográfico que, conforme Socorro de Fátima, “privilegia em seu texto os autores do
11
sagrado (os santos) e visa a edificação (uma exemplaridade)” (CERTEAU, 1982, p. 81).
Sendo assim, partindo das categorias retóricas, Anchieta constrói em suas cartas a figura
heróica do santo, passando a ser, ele mesmo, um monumento retórico servindo como
exemplo aos demais membros da Ordem.
Estabelece-se aqui o caráter utilitário das epístolas, pois o ornatus utilizado no
discurso tinha um objetivo único: instruir. Ao realizar ou ouvir a leitura, o destinatário
deveria se sentir inspirado a seguir o exemplo de vida daquele santo que tem seus gloriosos
feitos narrados com um ethos humilde (HANSEN, 1995, p. 96). Para deleitar, agradar e,
enfim, convencer seus leitores/ouvintes, Anchieta fazia uso do que se chama na retórica de
argumentos éticos, fomentando, por meio de seu discurso, uma imagem respaldada em
diversos lugares comuns da Hagiografia, tais como, o mártir, o casto, o evangelista etc.
As cartas pretendiam então persuadir seus interlocutores a que permanecem leais à
Companhia, praticando uma devoção pura, conforme os exemplos narrados, o que
beneficiaria a coesão da Ordem dos jesuítas e seus ideais ante a Igreja Católica e o
Império Português.
Partindo destas constatações, procuramos de forma mais específica identificar e
resgatar essas imagens hagiográficas contidas nas cartas fazendo uma análise da utilização
de diversos discursos, dentre os quais se destaca o bíblico, que contribuíram para a
sedimentação desses lugares comuns. Ficará claro, então, que não existe um discurso
primeiro (FOUCAULT, 2000, p. 225) nas Cartas. Não há nada de novo, nada de original.
Categorias como estas surgiram com o Iluminismo já no século XVIII. A historiografia
literária brasileira é falha, portanto, em atribuir anacronicamente uma suposta
“originalidade” à produção discursiva colonial.
Cientes da contribuição dos resultados desse estudo para a um entendimento mais
satisfatório e diacrônico das representações discursivas do século XVI, reafirmamos seu
valor por propor uma reconstituição dos sentidos primeiros dos textos coloniais – de
forma mais específicas às cartas jesuíticas – os quais foram apropriados de concepções
estéticas da modernidade, que permanecem até hoje nos manuais literários e,
conseqüentemente, nos livros didáticos disseminando uma interpretação defasada às
propostas originais de criação dos discursos.
Vale ainda salientar que não é nossa preocupação, ao menos nesse trabalho,
resgatar as questões ideológicas e sociais que brotam da relação jesuíta – índio
12
(colonizador – colonizado). Queremos apenas analisar o texto literário, no caso as cartas
anchietanas, levando em consideração a riqueza dos artifícios utilizados em uma época em
que a repetição e a imitação dos modelos retóricos eram os paradigmas do exercício da escrita. Assim,
pretende-se descrever, nesse conjunto de representações discursivas, “as suas tópicas
tradicionais de invenção, suas figuras elocutivas e medidas dispositivas, valorizando a
ruptura com as formas de realismo documentalista, psicológico, sociológico ou cultural”
com as quais comumente esses textos são abordados (PÉCORA, 2001, p. 13).
Para que isso se torne possível, o primeiro capítulo se ocupará em demonstrar que
os discursos coloniais – independentes do gênero (crônicas, autos, cartas, sermões, atas
etc) – estão inseridos em procedimentos retóricos, teológicos e políticos. Ainda aqui, se dá
o resgate da arqueologia da correspondência, suas organizações e usos e a importância
desta para a manutenção institucional e devocional da Companhia de Jesus.
O segundo capítulo ocupa-se da análise de cartas anchietanas resgatando, inclusive,
as imagens hagiográficas, que se articulam no arranjo textual das mesmas. Conforme
ficará explicito, essas imagens contribuem para a construção de um monumento retórico
em torno da figura do Pe. Jo de Anchieta (VILAR, 2005), que se perpetuou ao longo da
historiografia brasileira, beneficiando não só a Ordem Jesuítica, como aqueles que se
apropriam desse monumento para fins diversos.
Há de se delimitar aqui, as cartas selecionadas do corpus para as análises. Pelo fato
de estarem os textos coloniais inseridos, conforme já dito em formas e modelos, diversos
documentos, incluindo cartas, foram produzidos e atribuídos a Anchieta pelo status que
lhe cabia como jesuíta dedicado à missão catequética e à educação nos “anos ferrenhos da
colonização brasileira”. Isso significa dizer que nem todas as cartas são de fato de autoria
anchietana.
Para se ter uma noção mais concreta, no livro “Cartas: Correspondência ativa e passiva”,
o Pe. Hélio Viotti reúne 63 cartas sob a autoria de Anchieta. Porém, no ARSI (Arquivo
Romano da Companhia de Jesus), a principal fonte de informação sobre tudo o que diz
respeito à Companhia, encontram-se apenas 17 documentos de autoria de Anchieta
sendo, 13 cartas e os demais papéis diversos. Em ocasião dos 450 anos do Aniversário de
13
fundação da cidade de São Paulo em 2004, foram expostas as 13 cartas originais no pátio
do Colégio da Companhia (MORENO, 2004).
1
As análises se baseiam nessas cartas, porém, alguns trechos foram tomados
também desse conjunto epistolar reunido pelo Pe. Hélio Viotti, o que não comprometerá
o estudo, uma vez que estas cartas já sedimentaram a imagem de Anchieta de forma
política-teológica como o primeiro santo espanhol do Novo Mundo e retórica como o
mártir (VILAR, 2006). Além disso, os paradigmas retóricos são responsáveis pela imitação
dos topoi e lugares comuns inerentes às representações discursivas, o que atribuía aos
jesuítas uma língua uma com relação aos seus discursos. Isso significa dizer, que as
observações e pressupostos elencados a partir dos trechos analisados no segundo capítulo
são perfeitamente aplicáveis a qualquer outra epístola assinada por um membro da Ordem
jesuítica.
No terceiro capítulo, se apresenta uma visão – na práxis – dos assuntos abordados
anteriormente. Assim, procura-se analisar a forma como a Literatura Quinhentista é
veiculada nos livros didáticos destinados ao Ensino Médio, levando em consideração as
incoerências e as inadequações com que os discursos coloniais são abordados.
Diante da carência de pesquisadores dedicados aos estudos da produção literária
colonial, estamos dando aqui nossa contribuição, cientes de que há muito a se considerar
sobre a riqueza dos temas e aspectos das representações discursivas contidas nesses
textos.
1
Os jesuítas desempenham papel importante na história da fundação da cidade de São Paulo e,
conseqüentemente na história do Brasil (ao menos essa é a visão do grupo que se apropria do poder
documental para a construção da História – o Positivismo), por participarem dessas com a criação do
Colégio da Companhia em Piratininga. Inclusive, pelo fato de ter Anchieta desenvolvido os primeiros anos
de seu ministério nessa região, as 13 cartas referendadas acima dizem respeito aos “primeiros anos da
cidade de São Paulo, o cotidiano de seus moradores, a cristianização dos indígenas, as dificuldades
missionárias nessa tarefa, as festas e costumes aborígines, seus rituais antropofágicos e ainda a riqueza da
fauna e flora da Mata Atlântica” (MORENO, 2004, p. 3). Inclusive, considera-se uma carta extraviada
denominada Quadrimestre de Junho de 1554 (referida por Anchieta em outra correspondência datada de 1° de
setembro do mesmo ano) como sendo o documento mais antigo a falar de São Paulo tornando-se, por
isso, “a certidão de batismo da cidade” (ibidem).
14
CAPÍTULO 1
Retórica, Teologia e Política nas cartas de Anchieta
1.1 Correspondência jesuítica: um gênero regrado
Entender os escritos, ou qualquer outro tipo de representação discursiva do século
XVI, implica necessariamente em inseri-los em uma dupla normatividade: retórica e
teológico-política (HANSEN, 1999, p.173). Há de se considerar, antes de tudo, a noção de
temporalidade como fator determinante para análise diacrônica dessas representações.
Em oposição ao modelo linear e estanque, adotado pelos programas tradicionais
de estudos literários
1
, João Adolfo Hansen propõe uma “data indicativa” para os séculos
XVI e XVII: uma duração de quase duzentos anos entre 1580 a 1750 específica da
política católica absolutista (ibidem). Isso atribuiria às produções discursivas e plásticas
desse período – desde as crônicas dos viajantes aos documentos, atas e cartas – um
conjunto de características homólogas inserindo-as no seguinte modo histórico de
entendimento do tempo:
Nelas (práticas de representação), o tempo é qualitativo e
teológico, pois são práticas que pressupõem e implicam a repetição da
identidade divina nos eventos particulares da representação e que, assim,
conferem um padrão teológico-político, que era específico das
monarquias absolutistas de então, à mimesis neo-escolástica
fundamentada em Aristóteles. (HANSEN, 2003, p 4)
Isso significa dizer que as estruturas discursivas – sejam elas plásticas ou verbais –
inclusive as cartas produzidas pelos membros da Companhia de Jesus são norteadas por
procedimentos retóricos, teológicos e políticos.
1
Seria “o tempo da historiografia literária romântica, a que ainda estamos parcialmente presos. Nela desde
o século XIX, o tempo é entendido como evolução, contradição, superação e progresso, nada havendo
nele como um princípio absoluto que se repete” (HANSEN, 2003, p. 4)
15
Há de se considerar ainda a concepção de alfabetismo, que geralmente aparece
generalizada segundo o modelo do texto escrito ou do livro. Levando em consideração
que a alfabetização, no século XVI, era privilégio de uma pequena comunidade letrada, ler
era também ver e ouvir. Ou seja, os discursos não se limitavam apenas ao verbal – como o
são modernamente – mas permeavam as artes plásticas. As formas espaciais que
constavam, por exemplo, nos vitrais das Igrejas eram perfeitamente legíveis aos olhos
analfabetos da época, treinados, inclusive, no reconhecimento da significação e no valor
das metáforas e alegorias. (HANSEN, 1999, p. 170)
Outro fator a ser considerado é a denominação genérica de “Literatura” aplicada a
toda a produção discursiva do Brasil Inaugural e do Brasil Colônia. É comum olhar para o
que se convencionou chamar de “Literatura Quinhentista”, tendendo a universalizar os
critérios estéticos literários condicionados por padrões iluministas, tais como “autoria”,
“autonomia estética”, “originalidade”, “inspiração pessoal”. Pressupostos como esses
afastam o leitor contemporâneo da compreensão de que o conjunto dos textos coloniais
se enquadra em um gênero regrado e paradigmático. Sobre essa suposta “originalidade”
atribuída anacronicamente aos discursos coloniais, Hansen afirma:
Evidentemente os discursos coloniais não eram iluministas: por
isso, eram ordenados por uma concepção normativa de estilo, não por
uma concepção descritiva do mesmo. Sua forma sempre realizada como
adequação a esquemas aristotélicos de gêneros poéticos-retóricos,
prescrevia a audição e, às vezes, a leitura como reconhecimento de
tópicas e preceitos técnicos aplicados à sua invenção e, ainda, como
reconhecimento de modos autorizados de sua interpretação teológico-
política. (1999, p.173)
Assim, há de se considerar que a instância “literatura” entendida como sendo um
novo regime discursivo, que por sua vez se opõe a outros regimes tais como ciência,
filosofia e história, não pode ser atribuída aos escritos do século XVI (HANSEN, 2000,
p.2). Compartilha da mesma opinião Socorro de Fátima Vilar ao observar que:
(...) até mesmo o termo literatura, empregado para a toda a
produção anterior aos românticos, se constitui em anacronismo, haja
vista que a produção anterior a esse período era regrada pela retórica, e a
16
palavra literatura não designava um objeto esteticamente constituído. O
exemplo generalizável a todos os livros didáticos pode ser o da
produção dos jesuítas, que não produziram nem teatro, nem literatura,
mas textos didáticos-religiosos, pautados por modelos fixos de dizer,
construídos a partir de lugares comuns da tradição religiosa. (2004,
p.127, 128)
Partindo dessas constatações, a Companhia de Jesus, criada por St° Inácio de
Loyola em 1534, entende a correspondência como um mecanismo utilitário que, segundo
Hansen, se deixa instrumentalizar no ato da escrita de alguns saberes, como a teologia
política portuguesa e a retórica (1995, p. 91).
Isso significa dizer que as cartas de Anchieta não devem ser vistas – tal qual se
propaga nos manuais literários – como “absolutamente uma tábua em branco
impressionada por acontecimentos vividos pelos missionários”, nem “objetivamente
como representação ou notícia da terra do Brasil”, nem “subjetivamente, como impacto
sentimental ou expressivo dessa notícia em certa mentalidade católica européia”
(PÉCORA, 2001, p.18). Conforme Álcir Pécora, os textos epistolares da Companhia
devem ser vistos, antes de tudo, como:
(...) um mapa retórico em progresso da própria conversão. (...) são
produzidas como um instrumento decisivo para o êxito da ação
missionária jesuítica, de tal modo que as determinações convencionais
da tradição epistolográfica, revistas pela Companhia e aplicadas aos
diversos casos vividos, mesmo os mais inesperados, sedimentam
sentidos adequados aos roteiros plausíveis desse mapa. (1998, p. 375-
376) (Grifo nosso)
Na realidade, longe de ser um relato emocionante e inspirado dos missionários dos
“apóstolos do Novo Mundo” as cartas eram exercícios previstos e exigidos no cotidiano
do jesuíta. Não poderia ser diferente, levando em consideração que a repetição, atrelada a
seu caráter pedagógico e instrutivo, era característica preponderante da época colonial.
Focault mostra que o saber, até o fim século XVI, era baseado na semelhança (FOCAULT,
1987). Nesse sentido, “havia uma repetição no mundo, que tendia a tornar tudo
semelhante, repetindo-se sem cessar, homens, textos e natureza estabeleciam relações
infinitas, fundadas no parentesco’ ” (VILAR, 2006, p. 16)
17
O jesuíta, tampouco sua escrita, poderia ser considerado livre. “Isso porque não se
pode falar de individualidades quando tratamos da Companhia de Jesus, no século XVI,
uma vez que os votos de obediência absoluta inviabilizavam a emergência de uma
individualidade: o jesuíta é apenas mais um soldado da ordem” (VILAR, 2006, p. 15).
Para o bom andamento das funções contra-reformistas
2
da Ordem, as regras
deveriam ser mais que cumpridas, exercitadas. O livro dos Exercícios Espirituais, escrito por
Inácio de Loyola, se constituía eficaz mecanismo de controle que sistematizava e
organizava as ações do cotidiano daqueles que as praticavam, incluindo regras de
alimentação e comportamento (VILAR, 2006, p. 15):
(...) os Exercícios disciplinavam principalmente a imaginação,
através de um ‘controle metódico’ (...). Nesse sentido, partimos do
pressuposto de que os jesuítas foram exercitados para a prática de uma
‘língua’ una, ‘homogênea, cujo princípio de construção era o mesmo da
retórica, ou seja, ‘de um código, de uma língua artificial, elaborada a
partir de um idioma dado’ (ibidem, p. 16).
Mesmo diante das diversas objeções teológicas acerca desse manual devocional
3
tendo em vista que “um dos maiores conflitos intelectuais e espirituais da história do
pensamento humano foi suscitado pela doutrina inaciana da liberdade da vontade”
(FULLOP-MILLER, 1995, p. 263) – o livro se reafirmou por seus efeitos práticos e não
demorou muito para ser conhecido em toda parte do mundo católico, tornando-se “a
base sobre a qual a inteira estrutura da ordem jesuítica, com sua glorificação da disciplina
e da força de vontade, está edificada” (ibidem).
Entendendo agora a correspondência jesuítica como gênero que, longe de ser um
veículo de inspiração pessoal, insere-se em um conjunto de paradigmas (Cf. Anexo 1)
4
,
vejamos um pouco da história do surgimento da Companhia de Jesus e da importância e
função do principal instrumento utilizado por seus membros – a correspondência – numa
2
A atividade de Inácio e o começo da Reforma coincidem no tempo. Quando Lutero completara sua
tradução do Velho Testamento, Loyola lançou a primeira edição latina de seus Exercícios Espirituias. Sua
revisão dos mesmos foi completada no ano da morte de Lutero (FULLOP-MILLER, 1995).
3
A doutrina inaciana foi alvo de críticas ferrenhas, tais como a do historiador Edgar Quinet que “condenava o
treinamento da vontade, porque levava “a um ‘rebaixamento’ da fé” e considerou ainda os exercícios espirituais
como “um sistema que produzia ‘êxtase por meio da canga do método’ ”(apud FULLOP-MILLER, 1995, p. 263)
4
A fim de perceber a semelhança das cartas jesuíticas – fruto do ajuste do texto a um conjunto de regras e
padrões retóricos que mais adiante será exposto – anexamos duas epístolas a título de exemplificação, escritas
por Nóbrega e Anchieta.
18
época em que o saber se estabelecia sobre os critérios da repetição retórica, da ação
missionária católica e da política portuguesa.
1.2 Companhia de Jesus: fruto de uma concepção essencialmente teológica de
mundo
Não se pode analisar qualquer que seja a produção textual de épocas anteriores por
parâmetros da contemporaneidade, pois, como já foi dito, corre-se o risco de tolher o
sentido real do texto por meio do anacronismo literário. Assim, para se chegar a um
estudo mais verossímil das cartas de Anchieta se faz necessário conhecer um pouco da
história da Companhia de Jesus, o objetivo de sua criação e a concepção que formava a
mentalidade do homem do século XVI.
Desde o século II é possível observar a organização e a solidificação da Igreja
cristã, que se tornaria mais adiante, juntamente com o Estado, os dois grandes poderes
que regeriam o mundo de então. A respeito disso comenta o historiador Sérgio Buarque
de Hollanda:
Através de uma estrutura cada vez mais firme e centralizada
enriquecida por grandes doações de terras, a Igreja foi assumindo papel
político preeminente e consolidando gradativamente seu poder. (1975,
p. 127)
Essa solidificação continua sendo estabelecida no decorrer dos séculos, mantendo
a Igreja Católica o domínio sobre a concepção religiosa da época, tendo como aliado o
movimento monástico que, começando no século IV, expandiu-se do Oriente para o
Ocidente. No período das grandes invasões bárbaras, homens e mulheres cristãs
buscavam refúgio e tranqüilidade em uma vida rude e simples afastada de aglomerações
urbanas. Formavam, então, comunidades isoladas, caracterizadas pelo ascetismo,
procurando viver da oração, da caridade dos fiéis e do trabalho agrícola de seus membros.
Desta forma, se originaram os monges e os mosteiros, que tiveram grande
importância do ponto de vista religioso, econômico e cultural. Falar do movimento
monástico torna-se aqui necessário, pois, segundo Earle Cairns é possível relacioná-lo
com os jesuítas. Em sua visão:
19
O surgimento dos jesuítas na Contra-Reforma do século XVI
constitui o período final em que o monasticismo atingiu profundamente
a Igreja. O movimento [dos jesuítas] exerce até hoje um importante
papel na vida da Igreja Católica Romana. (1995, p.122)
Percebe-se que o ideal de pureza e a prática da ascese, comum à ordem dos
jesuítas, tiveram suas raízes ainda no século IV. Mais tarde, Inácio de Loyola, fundador da
Companhia, escreveria os Exercícios Espirituais que passaria a ser um manual de santidade e
devoção para o jesuíta, além, é claro, de um mecanismo de controle, conforme se mostrou
anteriormente.
Com a chegada do século XVI, os inventos, as descobertas científicas e os
descobrimentos marítimos, que marcaram o início da era moderna, influenciaram de certa
forma a mentalidade de alguns homens de senso crítico mais apurado. Além disso, a
divulgação do mais puro pensamento cristão contido nos antigos textos latinos, gregos,
hebraicos; os abusos do alto clero; a preocupação do Vaticano em alcançar prestígio
político sempre maior – conduziu a um profundo descontentamento de fundo religioso
que acabou provocando mais uma ruptura
5
no mundo cristão. (HOLLANDA,1975,
p.178)
Surge, conseqüentemente, o movimento da Reforma Protestante, que teve início
na Alemanha com Martinho Lutero em 1516. A Reforma foi um movimento religioso e
também político que objetivava um retorno à pureza original do cristianismo, descrita nas
páginas do Novo Testamento. Em resposta a essas transformações, o movimento da
Contra Reforma foi promovido pela Igreja de Roma com o objetivo de:
(...) reestruturar suas instituições, a fim de enfrentar ou
acompanhar as mudanças que se haviam operado na Europa com a
expansão do protestantismo; enfraquecimento do poder político da
Igreja Católica; aumento do poder dos reis; fortalecimento da classe
média; estímulo à educação; revigoramento da fé religiosa. (ibidem, p. 183)
Nesse período, a ordem mais eficiente na propaganda positiva usada pela Igreja de
Roma foi a Ordem jesuíta, que se firmava na pregação feita por noviços bem treinados
com um objetivo principal: difundir a fé católica por meio da ação missionária. O
5
Deve-se considerar que a primeira grande divisão da Igreja cristã se deu no Concílio de Nicéia (séc. IV),
estabelecendo-se a Igreja Romana e a Igreja Ortodoxa Grega.
20
fundador da ordem, Ignácio de Loyola (1491-1556), era de uma rica família basca. Depois
de aventuras de lutas, jogos e amores, comuns a um membro de uma família nobre da
Espanha, fez-se soldado. Sua perna foi esmagada numa batalha, ficando um longo tempo
no hospital.
Durante este tempo, realizou a leitura do livro A Legenda Áurea, do frei dominicano
Jacopo de Voragine, que lhe proporcionou uma experiência espiritual, levando-o a dedicar
sua vida para o serviço de Deus e da Igreja. A Legenda é uma compilação de vida de
santos, produzida no século XIII. O livro é organizado em 161 capítulos, que contam as
vidas dos santos, individualmente ou em grupo, procurando ressaltar – ao menos em 95
gestas – a figura do mártir. Sendo, até hoje, um dos mais importantes expoentes dos
escritos hagiográficos, não se pode negar a influência dessa leitura sobre Inácio de Loyola.
Em 1523, Loyola fez uma viagem à Terra Santa e voltou para estudar na França.
Cinco anos depois, entrou para a Universidade de Paris. Em 1534 no dia da Ascenção, ele
e seis discípulos reuniram-se na capela de Santa Maria, em Montmartre, para reafirmar
com solene juramento, sua fidelidade ao reino de Cristo. “Para a Terra! Agora”,
acrescentou Inácio (FULLOP-MILLER, 1995, p. 276). Estava formado o núcleo da
Sociatas Jesu, que obteria aprovação papal em 1540. Um ano depois, esse homem tornava-
se o geral da nova ordem que, em 1566, contava com cerca de mil noviços (CAIRNS,
1995, p. 284).
Paralelo a esses acontecimentos, a idéia do Milenarismo fomentada na Idade Média
continua a se propagar de forma cada vez mais forte no Império Português. Tomando
por base as profecias vétero-testamentárias descritas nos livros de Isaías e Daniel,
acreditava-se piamente no surgimento do Quinto Império, um reino de paz e
prosperidade, por meio do qual a justiça seria implantada na Terra. Ora, as Novas Terras
descobertas pelos colonizadores europeus pareciam se encaixar totalmente nas profecias,
conforme mostra o texto bíblico: “Pois, eis que crio novos céus e novas terras (...)”
(Isaías. 65: 17).
Imbuído dessa concepção teológica de mundo, Portugal toma para si esse papel de
instaurador da ordem e da justiça divinas na Terra. Fazendo uso do processo analógico,
na mentalidade dos colonizadores portugueses, a Nova Terra brasílica seria o Paraíso das
profecias, o lugar em que se instauraria o Quinto Império. Os índios nus trazem o retorno
21
ao Éden: Adão e Eva no paraíso.
6
Porém, precisavam ser ainda alcançados pela graça
divina; religados, trazidos de volta a Deus. Assim, não só o Brasil, recém-descoberto pelos
portugueses, bem como todo o restante da América do Sul, descoberta pelos Espanhóis,
se constituía um campo digno de ser conquistado em todos os sentidos: material e
espiritual, conforme claramente se observa no discurso dos cronistas viajantes.
A visão inaugural do Brasil do século XVI como uma terra gentílica continua ainda
no comentário contemporâneo do jesuíta Hélio Viotti, que, no prefácio do livro em que
reúne a correspondência atribuída a Anchieta, reafirma:
Aqui, florestas virgens e selvagens nus. Para o aproveitamento da
terra pouco se poderia contar com sua rarefeita população indígena, cuja
cultura não ultrapassa a idade da pedra. Era necessário povoá-la,
estabelecer na terra inculta a verdadeira colonização. (1984, p. 12).
Ora, a “verdadeira colonização” seria então aquela que estava respaldada na
autoridade e nas palavras do próprio Deus para instaurar a semente do Evangelho entre
os povos. O colonizador português, branco e católico, tornava-se, portanto, o mais
“indicado” para isso. Como missionários a serviço da Igreja, os jesuítas entendiam
perfeitamente que precisavam cumprir “a ordem” de Jesus Cristo descrita na Bíblia
Sagrada, quando este, no momento de sua assunção aos céus, ordenou a seus discípulos:
Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda a criatura.
Quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crer será
condenado. Estes sinais hão de acompanhar aqueles que crêem: em meu
nome expelirão demônios; falaram novas línguas; pegarão em serpentes;
e se alguma coisa mortífera beberem, não lhes fará mal; se impuserem as
mãos sobre os enfermos, eles ficarão curados (Evangelho segundo
Marcos 16: 15-18) (Grifo nosso)
No texto acima se encontra a conhecida “ordem da evangelização” que, em muitas
cartas da Companhia de Jesus, parece se aplicar claramente. O batismo dos índios, por
6
Segundo Sérgio Buarque de Hollanda, em dias de Colombo, as concepções correntes na Idade Média
acerca da realidade física do Éden em algum lugar do globo terrestre não eram “apenas uma sugestão
metafórica ou uma passageira fantasia, mas uma espécie de idéia fixa, que ramificada em numerosos
derivados ou variantes, acompanha ou precede, quase indefectivelmente, a atividade dos conquistadores”
(1969, p.12)
22
exemplo, é um tema bastante recorrente nas cartas e estava sempre ligado à idéia de
salvação. Como se vê nos trechos que seguem:
Não deixa, porém, o Senhor de chamar a si alguns deles, que
elegeu para o seu reino. E assim, agora de uma aldeia, agora de outra,
vêm alguns aqui a confessar-se, outros a batizar-se e morrer bem. (Carta
do irmão José de Anchieta ao Geral Pe. Diogo Laínes de 1561. In:
VIOTTI, 1984, p. 175) (Grifo nosso)
Ainda nos Evangelhos é possível encontrar outros textos dos quais os jesuítas se
valiam para autorizar sua condição de “embaixadores do reino de Deus” (Cf. I Epístola
de Paulo aos Coríntios 5:20) aqui na Terra. No Evangelho Segundo Mateus, Cristo prevê
os fins do tempo, vinculando-o à necessidade de pregação do Evangelho em todo o
mundo para que isso aconteça: “E será pregado este Evangelho do reino por todo o
mundo, para testemunho a todas as nações. Então virá o fim.” (Cf. Mateus 24:14)
Os jesuítas, como a maioria dos europeus civilizados do século XVI, estavam
totalmente imbuídos dessa concepção teológica de mundo, tomando para si o papel de
representantes de Cristo na Terra (o assunto será mais bem detalhado no capítulo II com
as análises das cartas), com a missão de resgatar nos índios, “feras indômitas”, a imagem
perdida do Criador.
A temática de Missões, no sentido de pregação do Evangelho, se liga
intrinsecamente à Companhia. Francisco Xavier – um dos primeiros integrantes da
Ordem que havia sido enviado por Loyola à Índia a pedido do Rei João III de Portugal –
foi o incentivador do ardor missionário jesuítico e contribuiu, por meio de seu exemplo,
para que os jesuítas desejassem evangelizar outras partes do mundo.
Após ter desenvolvido sua atividade missionária de forma pioneira na Índia e
Japão e desejando chegar à China para levar a fé cristã (sua mais alta ambição) foi forçado
a esperar dia após dia pelo navio chinês em uma miserável choupana. Estando o tempo
frio, Xavier adoeceu de uma febre intermitente e, não podendo mais alimentar-se, seu
estado se agravou chegando a falecer. Antes, porém, foi tomado certa manhã de um
delírio. Ergueu subitamente os olhos aos céus e, com a expressão de júbilo no rosto,
começou a pregar em várias línguas – tâmil, malaio, japonês, basco (FULOP-MILLER,
1995, p. 286). Sobre a repercussão da história desse que pode ser considerado “o primeiro
mártir jesuíta” René Fulop-Miller conclui:
23
Embora a morte de Xavier o houvesse impedido de levar avante
o seu grande plano, a obra que iniciara foi não obstante continuada com
maravilhoso êxito. O lugar do morto foi ocupado por outros. Dúzias e
até mesmo centenas de missionários jesuítas estavam agora tentando
completar a obra que Xavier tinha sido forçado a abandonar inacabada.
Cada um deles era inspirado pelo mesmo zelo entusiasta e cada um
possuía no mesmo grau a habilidade de ser mercador entre mercadores,
soldados entre soldados, de torna-se conselheiros de príncipes, amigo de
escravos, de arrostar o japonês soberbo com comedido orgulho e de
derrotar os sábios bonzos com argumentos dialéticos. (1995, p. 287)
(Grifo nosso)
Assim foi – movidos pela ideologia do alcance evangélico de todos os povos – que
em 1549, aportavam no Brasil, sendo requisitados por El rei de Portugal D. João III, os
primeiros missionários da Companhia de Jesus, chefiados pelo Pe. Manuel da Nóbrega.
Somente mais tarde em 1553, José de Anchieta vem ao Brasil aconselhado pelos médicos
por conta de sua frágil saúde, não para deliberar dialeticamente com os sábios japoneses,
mas para evangelizar os índios o que consagraria mais tarde sua imagem, na historiografia
brasileira, como o mártir do Novo Mundo.
1.3 A importância da arte de fazer cartas para a Companhia de Jesus
Imbuídos da concepção teológica e do ardor missiológico sobre os quais
discutimos no item anterior, os discípulos de Inácio dispersaram-se por todo o globo.
Suas tarefas eram das mais diferentes espécies. Foi decisão de Inácio de Loyola, com as
Constituições que estabeleceu para Ordem (FULOP-MILLER, 1995, p. 287), mantê-los
juntos, num corpo homogêneo, de superior poder combatente, levando em plena conta
sua dispersão local e avariada natureza de seu trabalho. Ainda no dizer de Fulop-Miller
sobre esse documento regulador da Companhia entendemos que:
As constituições representavam um desenvolvimento lógico dos
princípios militares estabelecidos nos Exercícios. Fixam a estrutura da
ordem como um todo, de maneira tal que seu poder militante depende,
em última análise, dos exercícios de seus membros individuais,
justamente como as operações de um exército são basicamente
condicionadas pelo treinamento dos soldados individuais (ibidem).
24
A importância que exerce a correspondência para a ordem jesuítica pode ser
principalmente constatada em as Constituições. A escrita das cartas era um exercício
primordial para o jesuíta e “havia uma preocupação com o poder que era representado
por elas” (SILVA 2002, p. 25). Por isso, em quase todas as partes desse documento
encontram-se prescrições e observações sobre a produção epistolar que, conforme Álcir
Pécora, desde os anos de noviciado até o exercício dos principais cargos de governo,
passando pelos ministérios e missões, tudo é lugar onde a arte epistolar encontra funções
bem definidas e relevantes a cumprir (2001, p. 26).
Conforme esse mesmo autor, há pelo menos três aspectos decisivos para a
presença da carta na Ordem dos jesuítas: o da informação, o da reunião de todos em um, e,
enfim o da experiência mística ou devocional (ibidem, p. 28). No primeiro aspecto – o
informativo – as cartas se tornam úteis à medida que fornecem uma descrição minuciosa
(como que compondo cenas) das missões, das características da terra e de seus habitantes,
dos costumes e dos eventos vivenciados pelos “soldados de Cristo”.
O segundo aspecto – a reunião de todos em um – mostra que as cartas são
essenciais por promoverem a manutenção do corporativismo jesuítico. Os membros da
Ordem deviam se manter coesos em prol de um objetivo único: o bem da Igreja e da
Coroa Portuguesa. Os discursos epistolares construídos com base no ethos da humildade
eram capazes de promover a edificação do corpo místico por meio dos testemunhos e
exortações (HANSEN, 1995).
Analisando as cartas jesuíticas, João Adolfo Hansen mostra que este discurso
(humildade) se apropria do modelo paulino da epístola e do ciceroniano de carta,
“mesclando informações sobre a ação catequética dos padres no Brasil com referências
doxológicas, teórico-doutrinárias da igreja quinhentista” por meio de um éthos humilitate,
ou seja, “um fingimento retórico em que a enunciação refere a humildade das tarefas
executadas no cotidiano da missão com a obediência, a paciência e a perseverança
próprias de um homem de Deus (ibidem, p. 88, 94). Comparemos os trechos epistolares
que comprovam, de fato, a colocação de Hansen com relação a essa apropriação do
discurso paulino:
Porque a mim me parece que Deus nos pôs a nós, os apóstolos,
em último lugar, como se fôssemos condenados à morte; porque nos
tornamos espetáculo ao mundo, tanto a anjos, como a homens. Nós
25
somos loucos por causa de Cristo, e vós, sábios em Cristo; nós, fracos, e
vós, fortes; vós, nobres e nós, desprezíveis. Até a presente hora
sofremos fome, e sede, e nudez; e somos esbofeteados e não temos
morada certa, e nos afadigamos, trabalhando com as próprias mãos.
Quando somos injuriados bendizemos; quando perseguidos,
suportamos (...). (I Epístola de Paulo aos Coríntios 4:9-12)
Porque, vos recordais, irmãos, do nosso labor e fadiga; e, de como,
noite e dia labutando para não vivermos à custa de nenhum de vós, vos
proclamamos o evangelho de Deus. (I Epístola de Paulo aos
Tessalonicenses 2:9)
Vejamos agora os escritos de Anchieta, que representa o discurso de qualquer
outro membro da ordem, e de como esse se apropria do modelo epistolar paulino:
Nisso às vezes o trabalho é grande, que se dobra com a pouca
consolação que se recebe do pouco fruto, que dão campos lavrados com
tantos suores. Mas nos basta salvar uma só alma, ou melhor, dizer ser
cooperadores de Deus em sua salvação. E quando nem isto houvesse,
seja o Senhor servido nos nossos fracos e pequenos trabalhos, recebidos
por seu amor. (Carta do Ir. José de Anchieta ao Geral P. Diogo Laínes.
In: VIOTTI, 1992, pp. 187,188)
E outros que não podem vir, mandam pedir remédio de confissão,
outros trazem seu filho inocentes, de maneira que sempre se colhem
alguns manípulos, semeados cum fletu et labore, assim em Piratininga,
como quando nos vamos a visitar por suas aldeias, de cujas visitas,
quando não fosse outra coisa, ao menos se tira esse proveito, que se
padece alguma fome, cansaço e trabalho por amor de Nosso Senhor.
(Carta do Ir. José de Anchieta ao Geral P. Diogo Laínes de junho de
1560. In: VIOTTI, 1987, p. 176)
A isto se ajunta que nós, que socorremos, que socorremos as
necessidades dos outros, muitas vezes estamos mal dispostos e,
fatigados de sofrimentos, desfalecemos pelo caminho, de maneira que
apenas o conseguimos levar a cabo. (...) muitas vezes levantamos do
sono, ora para os doentes, ora para os moribundos, ora para as
mulheres de parto (...). (ibidem, p. 158)
Por fim, a correspondência se torna eficaz quando, unida aos relatos da ação dos
membros da companhia, fornece aos seus destinatários exemplos de fé e virtude,
26
incentivando-os à prática da devotion moderna, definida como a “proposta da exemplaridade
católica das boas obras, difundindo-se como propaganda sublime da Fé e do Império”
(HANSEN, 1995, p. 98), conforme o aspecto da devoção. Dessa forma, os missionários
jesuítas podiam se manter relutantes em suas tarefas, pois eram constantemente – visto
ser a escrita um dever – informados e animados pelos exemplos de outros irmãos que se
encontram espalhados pelo mundo.
Inseridas, como se vê, no cotidiano do jesuíta, dada sua importância fundamental à
manutenção administrativa e mística da Ordem, o exercício da escrita epistolar se mantém
como “um ritual” vivenciado por todos os membros, independente do grau exercido
hierarquicamente na Companhia. Analisando a relação do discurso com “o desejo e o
poder” e abordando os procedimentos de controle do discurso, Foucault vai mostrar que:
(...) o ritual define a qualificação que devem possuir os indivíduos
que falam (e que, no jogo de um diálogo, da interrogação, da recitação,
devem ocupar determinada posição e formular determinados tipos de
enunciado); define os gestos, os comportamentos, as circunstâncias, e
todo o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso; fixa
enfim, a eficácia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre
aqueles aos quais se dirigem, os limites de seu valor de coesão. Os
discursos religiosos, (...) não podem ser dissociados dessa prática de um
ritual que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo,
propriedades singulares e papéis preestabelecidos.” (1996, p.39) (Grifo
nosso)
Sendo assim, a arte epistolar na Companhia de Jesus deve ser entendida não como
espelho da realidade, mas como um mecanismo de controle baseado em um ritual
discursivo, que, por sua vez, se materializa textualmente em dois grandes tipos de
enunciado: o descritivo-narrativo e os enunciados prescritivos.
O enunciado descritivo-narrativo se refere a uma exposição da terra, seus habitantes,
costumes e eventos em uma descrição minuciosa, como que compondo cenas. Na grande
maioria das cartas de Anchieta, encontramos a utilização desse enunciado. Vale salientar,
porém, que o objetivo principal não era apenas descrever, mas mostrar os constantes
perigos enfrentados ante aos animais selvagens e aos índios canibais.
27
Esse efeito discursivo gera uma série de sentidos responsáveis por enaltecer a
missão e a figura do jesuíta, enquanto soldado da Ordem. A carta que melhor
exemplifique o uso desse enunciado é a escrita por José de Anchieta ao Geral P. Diogo
Laínes em 31 de maio de 1560 sobre as coisas naturais de São Vicente. Nela, encontramos
diversos temas que vão desde a intensidade dos trovões, à descrição de espécies como o
peixe-boi, a anta, os muitos tipos de cobras, o espanto de Anchieta ante a piracema, bem
como os costumes gentílicos dos indígenas. Destacaremos aqui alguns trechos (Cf. carta
completa no Anexo 2) :
As estações do ano (olhando de perto) são inteiramente às avessas
de lá; no tempo em que lá é primavera, cá é inverno e vice-versa; mas
não tão temperadas que não faltam no inverno os calores do sol para
suavizar o rigor do frio, nem no verão as bandas brisas e as úmidas
chuvas para regalo dos sentidos (...). ( In: MORENO, 2004, p. 26)
Há um certo peixe que chamamos peixe-bi e os índios (iguarará),
freqüente na Vila do Espírito Santo e noutras para o Norte, onde não há
frio ou é pouco e se faz sentir com menor rigor cá entre nós. Muito
grande no tamanho, alimenta-se de ervas, como mostram as mesmas
ervas pastadas nos rochedos à beira dos mangues. (ibidem, p. 29)
E o mais admirável é que os índios, então entretidos em seus
beberes e cantares (como costumam), sem nenhum temor a tamanha
confusão das coisas, não deixaram de dançar nem beber, como se
estivesse tudo no maior sossego. (ibidem, p. 27)
Após descrever, nessa mesma carta, as diversas espécies de serpentes e os perigos
que representavam, Anchieta passa a utilizar o ethos humilitate para construir, no arranjo
textual, os riscos corridos pelo jesuíta no cumprimento de sua missão. Vejamos:
Todas estas (exceto as não venenosas, muito abundantes e
variadas) são tão freqüentes que não se pode viajar sem perigo. Vimos
cães, porcos e outros animais sobreviver apenas seis ou sete horas à
mordedura. Não raro passamos os mesmos perigos os que por dever do
ofício andamos dumas vilas para as outras e as achamos nos caminhos.
Uma vez, com outro irmão, voltando para Piratininga duma povoação
de portugueses, aonde a obediência mandou doutrinar, achei no
caminho uma enroscada e, benzendo-me primeiro, lhe dei com o
28
bordão e a matei. (...) Entre tão grande e tão freqüente quantidade, Deus
tanto mais nos conserva incólumes quanto menos confiamos em
nenhum antídoto ou poder humano, mas só no Senhor Jesus, que
unicamente pode fazer que andando sobre cobras não recebemos mal
algum. (idem, pp. 36,37) (Grifo nosso)
Encontramos aqui, como em todas as cartas da Companhia, a apropriação do
discurso bíblico conforme as palavras ditas por Cristo no Evangelho de Marcos, quando
na ocasião em que foi emitida a ordem para a evangelização, Jesus disse a seus discípulos:
“Estes sinais hão de acompanhar aqueles que crêem: em meu nome, expelirão demônios;
falarão novas línguas; pegarão em serpentes
; e, se alguma cousa mortífera beberem, não
lhes fará mal; se impuserem as mãos sobre os enfermos, eles ficarão curados.” (Evangelho
segundo marcos 16:17,18) (Grifo nosso)
Já os enunciados prescritivos fornecem ao destinatário o modo de entender o que está
sendo dito, envolvendo a defesa dos dogmas católicos, a necessidade de conversão dos
infiéis, entre outros temas (HANSEN, 1995, p. 101). Vejamos o trecho:
Mas vou dizer outra coisa, que V. P. julgará se é mais digna de
lástima, ou de riso, e talvez deplore a cegueira e zombe da loucura. Não
eram passados muitos dias depois destas coisas, vindo a uma aldeia de
índios um padre e eu trazer o remédio da alma e do corpo a um doente,
achamos o feiticeiro de grande fama entre os índios. Exortamo-lo a que
deixasse as suas mentiras e reconhecesse a um só Deus, Criador e
Senhor de todas as coisas; (...). (ibidem, p. 28)
Dentro do conjunto dos enunciados prescritivos é possível encontrar a maneira
como as cartas deveriam ser escritas – uma espécie de metalinguagem epistolar – sabendo da
importância que a produção epistolográfica exercia para o jesuíta, tendo em vista sua
função não só de informação, mas acima de tudo de edificação, exemplaridade e coesão dos
seus destinatários.
Os discípulos de Inácio de Loyola haviam se espalhado por todo o globo,
desenvolvendo atividades das mais diferentes espécies. Mantê-los juntos, num corpo
homogêneo, de superior poder combatente, levando em plena conta sua dispersão local e
a variada natureza do seu trabalho, não era problema de somenos, mas foi resolvido por
29
Loyola com as Constituições, que traziam ordens claras com relação à necessidade da escrita.
(FULOP-MILLER, 1995) Ainda conforme René Fulop-Miller, o primeiro Geral da
Ordem:
Comia sem se sentar a fim de evitar perda de tempo; dormia
pouco a fim de aumentar suas horas de trabalho. Durante o dia inteiro
lia relatórios que haviam chegado, traçava novos planos, despachava
ordens e conduzia negociações. Para manter contato com seu disperso
pessoal, havia traçado Inácio um esquema de controle a longa distância.
Cada um de seus subordinados tinha de relatar por escrito tudo quanto
tinha acontecido e em particular as qualidades e deficiências daqueles
que trabalhavam sob seu comando. (...) Esse mecanismo capacitava
Inácio a dirigir recomendações, bem como reprovações, a homens cujo
caráter e ações lhe eram conhecidos no mais minucioso pormenor, a
despeito da grande distância de espaço que os separava dele. (FULOP-
MILLER, 1995, p. 290)
Existem, por exemplo, algumas cartas escritas por St° Inácio de Loyola, que
tematizam a forma adequada de escrevê-las. Partindo do pressuposto de que a produção
das cartas era, acima de tudo, um exercício retórico, a escrita jesuítica passa a funcionar
como avaliação da própria ação do missionário, levando ao conhecimento do superior a
condição espiritual dos membros da Companhia. É dessa maneira que as cartas de
Anchieta podem ser também visualizadas como “escritos que mostram os jesuítas dentro
dos padrões comportamentais da Igreja” e da Ordem (SILVA, 2002, p. 24).
Era necessário haver, em primeiro lugar, uma seleção das palavras e um esmero em
saber o que dizer, como dizer e a quem dizer. As palavras contidas nas cartas não deviam ser
ociosas, mas proveitosas, conforme admoesta o fundador da Ordem:
Não devemos dizer nenhuma palavra ociosa. Por palavra ociosa
entendo aquela que não tem utilidade nem para mim, nem para outrem,
nem se ordena a tal fim. De forma que não é palavra ociosa falar
daquilo que aproveita, ou se diz com intenção de aproveitar à própria
alma, ou a de outro, ao corpo ou aos bens temporais, mesmo que se fale
de assuntos estranhos á própria profissão, como um religioso a tratar de
guerras ou de comércio. Em resumo, podemos dizer que há mérito
quando as palavras são inspiradas por uma boa intenção, e pecado
quando por uma intenção repreensível ou se se falar em vão.
(LOYOLA, 1999, p.?)
30
Em carta escrita a seu irmão de sangue, Martín Garcia (Paris, junho de 1532),
Loyola “afirma não ter escrito antes com mais freqüência, por ter certeza ainda de que
suas cartas pudessem ‘causar algum serviço e louvor a Deus’ ” (PÉCORA, 2001, p. 29). O
conteúdo das cartas deveria ser então essencialmente doxológicos, como constataremos
mais adiante.
Em outra carta dirigida desta vez ao Pe. Pedro Fabro, missionário na Alemanha
(de Roma em dezembro de 1542), comunica-lhe uma determinação de que, ao escrever,
os padres fizessem uma carta principal, que poderia ser mostrada a qualquer pessoa,
inclusive às “pessoas principais de Roma”. Essa carta deveria “guardar ordem”, não
conter “coisas impertinentes” e “edificar a quem lesse” estando, por isso, de igualdade
com as outras “obras espirituais”, como “sermões, confissões, exercícios”. Obriga ainda
que a principal deve ser escrita e reescrita, com correções, fazendo o jesuíta de conta que
“todos a hão de ver”.
Já os comentários mais detalhados sobre a saúde corporal dos missionários, os
negócios mais particulares, ou referentes à vida interna e administrativa da Companhia,
deveriam ser escritos ao que o Geral Loyola denominou de anexos. Esses admitiriam que
cada um escrevesse “a pressa da abundância do coração, concertado ou sem concerto” e
“alargando-se” à vontade. (PÉCORA, 2001, pp. 29-31).
Escrita a carta principal e o anexo (Cf. Anexo 3)
7
, o jesuíta tinha ainda a obrigação
de reescrever diversas cópias, tendo em vista as dificuldades concernentes à época. Sendo
a navegação o meio utilizado para o transporte de forma geral, havia muitos riscos de
extravios das cartas, tais como naufrágios, assaltos de piratas, entre outros
8
. Esse exercício
de reescrita endossava o caráter mecânico dos escritos da Ordem (Cf. Anexo 4).
Há de se considerar aqui, onde e como se encontram atualmente organizadas e
arquivadas as cartas não só correspondentes ao nosso corpus de análise, como os demais
7
Não nos foi possível identificar com exatidão as cartas que seriam consideradas “anexo” e “principal” dentro
do conjunto formador de nosso corpus. Inferimos que os organizadores das coletâneas epistolares deram
preferência a edição das “cartas principais” pelo arranjo textual que apresentam e por estarem endereçadas, na
sua maioria, aos padres que ocupavam o cargo de Geral da Companhia. No entanto, pela brevidade do texto e
por estar endereçada a noviços (mesmo grau hierárquico) tomamos como exemplo de carta do tipo “anexo” a que
foi dirigida aos “irmãos enfermos de Coimbra”, conforme o anexo em questão.
8
Sobre esse assunto Anchieta escreve: “Convém meter aqui, a propósito, algumas coisas, que se
escreveram há dois anos aproximadamente, e que pela falta de segurança da navegação cremos que não
chegaram lá.” (Carta do Ir. José de Anchieta ao geral Diogo Laínes de 31 de Maio de 1560. In: MORENO,
2004, p. 26)
31
escritos e documentos jesuíticos. No Arquivo Romano da Companhia de Jesus (ARSI),
encontra-se um tomo denominado “Epistolae Venerabilium S.J.–EPP. NN 95”. Nesse tomo
se encontram 129 documentos, em sua maioria cartas, escritas por jesuítas de diversos
lugares do mundo no período de 1553 a 1774. Vale salientar que o ARSI, é a principal
fonte de informação para o jesuíta acerca de tudo o que diz respeito à Ordem. Sua origem
remonta a 1540 – desde a fundação da Companhia por Inácio de Loyola (MORENO,
2004, p. 2).
Dos 129 documentos acima citados, 17 são de autoria anchietana, sendo 13 cartas
e os demais papéis diversos. As cartas desse conjunto foram escritas, em sua maior parte,
em espanhol (a língua pátria de Anchieta) e latim. Apenas uma, endereçada aos irmãos
enfermos de Coimbra, foi escrita em português. Como era hábito dos jesuítas, por
segurança, redigir mais de uma cópia de cada carta, encontramos, por exemplo, três cópias
da carta de 1° de junho de 1560 endereçada ao Geral Pe. Diogo Laínes.
O que se deduz dessas informações é que, apesar de diversas cartas serem
atribuídas a Anchieta, constam apenas 13 reconhecidas originalmente nos arquivos da
Companhia como sendo de fato suas. Isso serve para exemplificar, mais uma vez, o
caráter modelar e paradigmático da escrita jesuítica. Além disso, há um perfil de santidade
traçado no arranjo textual das cartas – construídos por meio dos recursos hagiográficos –
que objetiva o enaltecimento do jesuíta.
Com relação à linguagem a ser utilizada pelos membros da companhia nas cartas,
deveria seguir o “estilo conveniente”, evitando serem “muito doutas e ornadas”. Loyola,
em carta escrita ao Pe. Roberto Claysson (de Roma em março de 1555), critica o estilo
rebuscado utilizado nos textos epistolares desse padre, ao dizer que uma coisa é
“eloqüência, atrativo e gala da linguagem profana”, outra é “aquela que cabe ao religioso”.
Essa deve “respirar gravidade e modéstia” e jamais admitir um tom “exuberante e
juvenil”. Finaliza sua crítica ao citado padre mostrando que “quando tiver que ser
copioso, que o seja mais por abundância de idéias que de palavras” (ibidem, p. 2)
9
9
Esse discurso metaepistolar do St° Inácio de Loyola parece estar ainda vivo na mente do padre jesuíta
Antônio Vieira ao escrever, no ano de 1655 (cem anos depois), um de seus mais populares e conhecidos
sermões, chamado de “Sermão da Sexagésima” (ou do Evangelho), no qual dá uma lição sobre a arte de
pregar, criticando o estilo rebuscado e excessivamente ornado de certos pregadores, em contradição à
exposição clara e convincente das Escrituras. Em trecho da obra afirma que: “O estilo pode ser claro e
32
O discurso que se reproduz retoricamente nas cartas deve seguir um decoro que se
exprime por meio de uma série de topos, que contribuem para a formação do arranjo
textual de forma a gerar uma vida exemplar. Isto fortalece a imagem do jesuíta como um ser
santo e passível de qualquer sofrimento, a fim de que o Evangelho seja pregado aos
perdidos. Exemplificando agora com os discursos anchietanos, podemos destacar os
seguintes lugares comuns que se reproduzem no conjunto de suas epístolas:
Louvor a Deus
(doxologia): “... querendo-nos Nosso Senhor fazer participantes
da alegria da ressurreição, porque já era passada a Sexta-feira da Paixão. Glória
seja a ele por tudo!” (Carta do Ir. José de Anchieta ao Geral P. Diogo Laínes de
1556. In:Viotti,1984, p. 249) (Grifo nosso)
Uma vida de humildade e submissão à vontade divina
: “E quando nem isto
houvesse, seja o Senhor servido dos nossos fracos e pequenos
trabalhos,
recebidos por seu amor.” (Carta do Ir. José de Anchieta ao Geral P. Diogo
Laínes de 1561. In:Viotti,1984, p. 187) (Grifo nosso).
Uma vida exemplar de rejeição às tentações
: “E ao chegarem aos anos da
discrição, manda-los à Espanha, onde há menos inconvenientes e perigos para
serem ruins, do que aqui, onde as mulheres andam nuas e não se sabem negar a
ninguém, antes elas mesmas acometem e importunam aos homens, lançando-se
com eles nas redes, porque têm por honra dormir com os cristãos.” (Carta do
Ir. José de Anchieta a Santo Inácio de Loyola de 1554. In:Viotti,1984, p. 187)
(Grifo nosso)
Uma vida de renúncia e sofrimento por amor a Cristo
: “... o P. Francisco Pires
com outro Irmão percorreu, com grande trabalho, fome e frio
, uma grande
região, por causa do resgate de alguns cativos que estavam para ser comidos”.
muito alto. Tão claro que o entendam os que não sabem, e tão alto que tenham muito que entender
(aprender) os que sabem (...).” (VIEIRA, 2003, p. 21)
33
(Quadrimestre de Setembro a Dezembro dirigida a Santo Inácio de Loyola de
1555. In:Viotti,1984, p. 187) (grifo nosso)
Uma luta constante para a preservação dos dogmas católicos e combate às
heresias: “... vêm uns aqui confessar-se, outros a batizar-se e morrer bem.”
(Carta do Ir. José de Anchieta ao Geral P. Diogo Laínes de 1561.
In:Viotti,1984, p. 187) (Grifo nosso)
O zelo evangelístico em levar a mensagem de salvação aos destituídos da graça
de Deus: “Algumas distam três, outras seis milhas, entre si; cada semana cultiva
espiritualmente todas estas povoações com não pouco trabalho, ora celebrando
missa, ora fazendo pregações.” (Quadrimestre de Maio a Setembro a Santo
Inácio de Loyola de 1554. In: Viotti,1984, p. 187) (Grifo nosso)
Ora, esse discurso baseado em lugares-comuns de um gênero que abordaremos a
seguir, a hagiografia, aparece de forma concreta nas cartas dos jesuítas, reproduzindo
coercitivamente os interesses políticos e religiosos da Ordem. Logo, os destinatários à
medida que lessem estes escritos, se sentiriam incentivados a lutar pela fé católica,
seguindo o exemplum dos emissores, que assumem um status de santidade alicerçado em
artifícios retóricos.
1.4 Os aspectos retóricos na escrita jesuítica
Mais do que ser um instrumento decisivo para o êxito da ação missionária jesuítica
ou, conforme lhes atribuem os manuais didático-literários, meras descrições do Novo
Mundo, as cartas podem ser consideradas um rico campo para os estudos retóricos.
Em primeiro lugar, porque se enquadram perfeitamente na ars dictaminis, “um
sistema retórico que surge a partir do século XI e se destinava em primeira linha a
oferecer modelos para a composição de cartas e documentos” (CURTIUS, 1979, p.78).
34
Essa invenção medieval, que marca uma ruptura com uma antiga prática retórica,
se fundamenta na etruturação das cartas em cinco partes. Conforme será exposto e
exemplificado a seguir.
10
1.4.1 Salutatio
A salutatio constitui a parte inicial da carta. Uma saudação amigável e sentimental,
ainda que guardando o respeito com relação aos níveis hierárquicos da companhia,
seguindo o modelo das epístolas paulinas. Isso se explica pelo fato de os jesuítas tomarem
para si a função de apóstolos de Cristo. A saudação é entendida por Álcir Pécora como
“aplicação de uma forma piedosa” (1999, p. 386). Vejamos as saudações encontradas nas
epístolas de Anchieta:
Jesus Maria. A paz de Nosso Senhor Jesus Cristo esteja sempre
em nossas almas. Amém. (Carta do Irmão José de Anchieta a St° Inácio
de Loyola, de Piratininga em julho de 1554. In: VIOTTI, 1984, p. 55)
A Paz e o amor de Nosso Senhor Jesus Cristo seja sempre em
nossos corações. Amém. (Carta do Irmão José de Anchieta ao
provincial de Portugal, de Piratininga, fim de dezembro de 1556. In:
VIOTTI, 1984, p. 113)
Pax Christ! (Carta do irmão José de Anchieta ao Geral S.
Francisco de Borja, em julho de 1570. In: VIOTTI, 1984, p. 271)
1.4.2 Captatio benevolentiae (ou Exordium)
O exordium é a parte inicial do discurso, que, como toda boa introdução, deve ser
capaz de atrair a atenção do leitor, captar a sua benevolência. Essa parte da carta procura
reunir procedimentos que buscam disposição favorável do leitor para o que há de seguir.
10
Não é de nosso interesse fornecer, nesse estudo, uma análise mais detalhada dos aspectos da ars
dictaminis nas cartas jesuíticas. Para obter maior informação sobre o assunto, consultar os estudos de
Otoniel Machado da Silva em “Retórica, Teologia e Política no modelo histórico da literatura colonial: ars
dictaminis nas cartas de Anchieta” (2002).
35
Entre os recursos mais recorrentes está o de “representar-se sistematicamente com
humildade face aos demais irmãos da ordem”. Além desse recurso, um outro recorrente
no exordium é a demonstração da atividade jesuítica como cumprimento da vontade divina
(PÉCORA, 1999, p. 387). Como se vê no exemplo abaixo:
Nisso às vezes o trabalho é grande, que se dobra com a pouca
consolação que se recebe do pouco fruto, que dão campos lavrados com
tantos suores. Mas nos basta salvar uma só alma, ou para melhor dizer
ser cooperadores de Deus em sua salvação. E quando nem isto
houvesse, seja o Senhor servido de nossos fracos e pequenos trabalhos,
recebidos por seu amor. (Carta do irmão José de Anchieta ao Geral P.
Diogo Laínes, de Piratininga em março de 1562. In: VIOTTI, 1984, p.
269 )
1.4.3 Narratio
A narratio é a que apresenta a matéria geral da carta. Narra-se a geografia da Nova
Terra, o aspecto físico e costume dos nativos, entre outros temas. Especialmente aqui, o
jesuíta cumpre o papel devocional instituído pela Companhia. Como já dito
anteriormente, se estabelece, nessa parte, os dois grandes tipos de enunciado, o descritivo-
narrativo e o prescritivo. Conforme Hansen, são os eixos de referência do discurso: um,
horizontal, mostrando seres e eventos da terra e outro, vertical, atribuindo sentido
transcendente a esses seres e eventos (1995, p. 99)
Em seu estudo sobre ars dictaminis nas cartas de Anchieta, Otoniel Silva (2002, p.
35) identifica e recorta quatro aspectos temáticos predominantes nos textos epistolares
com seus respectivos temas. São eles:
a) A ação jesuítica, formando a santa imagem (frutos alcançados na missão, o
trabalho incansável dos irmãos, a atualização apostólica ou substituição de
Cristo):
Sofreram a morte estes bem-aventurados irmãos pela santa
obediência, pela pregação do Evangelho, pela paz, pelo amor e caridade
36
dos seus próximos, a quem foram prestar auxílio; e, para nenhuma jóia
ou pérola lhes faltar na coroa, perderam a vida pela verdade e pela
justiça que pregavam, e finalmente pela exaltação da santa fé, que daqui
foram confessar entre os gentios.” (Quadrimestre de setembro a
dezembro de 1554, dirigida a Santo Inácio de Loyola. In: VIOTTI, 1984,
p. 99)
b) Formação do “mapa retórico da conversão” (informação sobre os padres,
localização geográfica, medidas administrativas a serem tomadas):
Há de ser entendido que aqui na Bahia se usou de excomunhão
contra o Pe. N., por via de nosso conservador, para que não fosse a
Pernambuco, onde estava o padre provincial. (...) E é grandemente
necessário advertir que este modo de proceder se modere muito, porque
não é de edificação para os de fora, nem também se usa em outras
partes, e muito melhor se faz tudo por via de suavidade, capacitando as
partes pela razão, antes que por via dolorosa.” (Carta dirigida ao então
Provincial Pe. José de Anchieta de 1577. In: VIOTTI, 1984, p. 279)
c) A relação entre o jesuíta e o índio (reconhecimento, por parte dos índios, da
autoridade divina dos jesuítas; procura, por parte dos nativos, pelos padres a
fim de confessarem ou pedirem cura; proteção mútua):
Entre esses índios que digo, está um que creio passa de cento e
trinta anos, ao qual todos os que há muito tempo que o conhecem dão
testemunho de haver sempre vivido sine quarela esse tempo em que o
conheceram, assim com os seus como com os nossos portugueses.
Outra vez que fomos àquela vila (...) falamos que o queríamos batizar
para que não se perdesse a sua alma, mas que por então não podíamos
ensinar-lhe o que era necessário por falta de tempo, mas que estivesse
aparelhado para quando voltássemos. Folgou ele tanto com esta nova
vinda do céu, e teve-a na memória que, agora quando voltamos e lhe
perguntamos se queria ser cristão, respondeu com muita alegria que sim,
que desde então o estava esperando. (Carta do Ir. José de Anchieta ao
Geral P. Diogo Laínes de 1563. In: VIOTTI, 1984, p. 200)
d) Costumes gentílicos (nudez, canibalismo, guerras, feitiçarias):
Acabando isso, começaram logo a apregoar guerra contra
Piratininga, coisa que há muito tencionavam, porque tão carniceira é
37
esta gente que parece impossível poderem viver sem matar. (Carta do Ir.
José de Anchieta ao Geral P. Diogo Laínes de 1563. In: ibidem , p. 193)
Esta parte da região do Brasil que habitamos, (...) é habitada por
índios, que sem exceção comem carne humana; nisso sentem tanto
prazer e doçura que freqüentemente percorrem mais de 300 milhas
quando vão à guerra. (Quadrimestre de maio a setembro dirigida por
Anchieta a Santo Inácio de Loyola em 1554. In: VIOTTI,1984, p. 75)
1.4.4 Petitio
A petitio, por sua vez é a solicitação de providências às autoridades competentes. As
mais comuns são: o envio de mais padres; a nomeação de um governador zeloso e
prudente, que favoreça a ação missionária; o envio de mulheres para casar (órfãs ou
mesmo “erradas”); entre outras. Vejamos o exemplo:
Resta pedirmos humildemente que V. R. Paternidade e todos os
irmãos nos encomendem a nós e a estas almas nas suas orações. (Carta
do irmão José de Anchieta ao St° Inácio de Loyola, de São Vicente em
março de 1555. In: VIOTTI, 1984, p. 75).
1.4.5 Conclusio
Na conclusio, que é associada a petitio, há uma reafirmação das fórmulas piedosas da
salutatio e refere-se à próxima carta, assegurando a continuidade da circulação dos escritos.
Além disso, as conclusões geralmente prometem a continuidade e a circulação da
correspondência jesuítica, havendo sempre uma referência à próxima carta, que não
tardará a chegar, salvo por problemas de transporte, como os naufrágios, por exemplo.
Conforme trecho de Anchieta:
Nos santos sacrifícios e orações de Vossa Paternidade e de
todos os nossos caríssimos irmãos, desejamos e pedimos muito ser
38
encomendados a Deus Nosso Senhor, para que nos dê graça, com que
conheçamos e cumpramos perfeitamente sua santíssima vontade.
E a saudação final sempre seguida da tópica da humildade:
Minimus Societatis Jesu (Carta do irmão José de Anchieta ao Geral
P. Diogo Laínes, de São Vicente, abril de 1563; In: VIOTTI, 1984,
p.191)
Além de estarem perfeitamente enquadradas no modelo acima, as cartas jesuíticas são
um exercício retórico por possuírem uma destinação utilitária, que inclui seus arranjos
textuais em programas específicos para manter o enaltecimento da Ordem jesuítica. Nesse
sentido, encontramos nas epístolas uma série de lugares comuns inerentes ao gênero
hagiográfico, conforme veremos no próximo capítulo, mais um ingrediente que revela ser
inapropriada a leitura das cartas de Anchieta da perspectiva iluminista realista.
39
CAPÍTULO 2
As Imagens Hagiográficas nas Cartas de Anchieta
2.1 O
fazer hagiográfico
: a reinvenção de um tema antigo no discurso quinhentista
O termo hagiografia possui raízes gregas (hagios – santo; grafia – escrita) e é utilizado
desde o século XVII, momento que se iniciou o estudo sistemático e crítico sobre os
santos, sua história e culto, para designar tanto este novo ramo do conhecimento como o
conjunto de textos que tratem de santos com objetivos religiosos (DELEHAYE apud
SILVA, 2006).
Proveniente do Gênero Demonstrativo, responsável pela construção do elogio dos
homens que já faleceram, a literatura hagiográfica teve início ainda na Igreja Primitiva,
quando, a partir de documentos oficiais romanos ou do relato de testemunhas oculares,
eram registrados os suplícios dos mártires. Porém, seu desenvolvimento e consolidação
ocorrem na Idade Média, com a expansão do cristianismo e a conseqüente expansão do
culto aos santos. É nos séculos III e IV que a Hagiografia passa a se estabelecer como
gênero literário e, no século XVII, ressurge figurando com bastante força na Legenda
Áurea (FORTES, 2005). As obras hagiográficas possuíam objetivos múltiplos, tais como:
(...) propagar os efeitos de um determinado santo, atraindo, assim,
ofertas e doações para os Templos e os Mosteiros que os tinham como
patronos; produzir textos para o uso litúrgico, tanto nas missas como
nos ofícios monásticos; para a leitura privada ou como textos de escola;
instruir e edificar os cristãos na fé;
divulgar os ensinamentos oficiais da
igreja. Desta forma tais textos eram importantes veículos para a
propagação de concepções teológicas, modelos de comportamento,
padrões morais e valores. (SILVA, 2006, p. 1) (Grifos nossos)
Nesse sentido, o principal objetivo do autor hagiográfico não é compor um relato
biográfico do santo, mas retratá-lo como exemplo de virtude cristã. Os hagiógrafos procuravam
mostrar como os santos tinham seguido as normas, que haviam sido preestabelecidas pela
vida de cristo e dos outros santos. Assim, os religiosos encorajavam seus leitores (ou
40
ouvintes) a imitar o exemplo dos santos, pregando os modelos literários descritos na
Bíblia e em obras hagiográficas anteriores (FORTES, 2005).
Ainda com relação ao arranjo textual, os escritos relativos aos santos são
construídos de acordo com esteriótipos narrativos que formam um personagem dado.
Sendo, por isso, encontrados traços comuns ou até mesmo semelhantes entre os textos.
Não havia uma preocupação acentuada com o nome do santo, mas com o modelo que ele
instituía. Cada hagiógrafo adaptava o seu conjunto de lugares-comuns às necessidades das
narrativas que tinham em mãos, gerando “um efeito intencional ao enquadrar a
particularidade de uma vida de santo dada em um tipo generalizado de santidade, tais
como o mártir, a virgem ou o santo bispo” (ibidem). (Grifo nosso)
No Brasil, Anchieta se ergue como um marco alicerçado retoricamente no discurso
bíblico e no discurso hagiográfico (VILAR, 2006). Sua escrita era norteada pelo padrão
retórico, visto está perfeitamente enquadrada no modelo da ars dictaminis (arte de fazer
cartas), e permeada pela teologia fazendo, desta forma, constante uso do verbo
providencial – escrevia pela Providência e para a Providência. Os lugares comuns
recorrentes na Hagiografia são, portanto, inevitáveis em suas epístolas. São imagens
construídas por palavras, que serviram para fomentar a figura deste jesuíta como um herói
santo. Essas imagens sedimentaram a “invenção” desse herói utilizado pela Companhia de
Jesus como um exemplo a ser seguido.
Assim é que, levando em consideração as categorias retóricas do gênero
hagiográfico, Anchieta constrói em suas cartas a figura heróica de um santo, passando a
ser, ele mesmo, um monumento retórico servindo como exemplo aos demais membros da
Companhia. O ornatus utilizado no discurso hagiográfico contido nas cartas tinha um
objetivo único: instruir. Ao realizar ou ouvir a leitura, o destinatário deveria se sentir
inspirado a seguir o exemplo de vida daquele santo, que tem seus gloriosos feitos narrados
com um ethos humilde. Para deleitar, agradar e, enfim, convencer seus leitores/ouvintes
Anchieta fazia uso do que em Retórica se entende como argumentos éticos, definido por
Tringali como sendo:
(...) a imagem que o orador transmite de si mesmo aos ouvintes.
O orador varia a própria imagem de acordo com a conveniência da
causa. É, por assim dizer, a máscara – a “persona”, no sentido
Junguiano, que o orador assume. Pela imagem de si, ele revela seus
41
costumes, seu caráter. Como conseqüência da imagem que desperta nos
ouvintes, desperta, ao mesmo tempo, os sentimentos correspondentes.
(1988, pp. 75-76) (Grifo nosso)
Vale salientar que os textos hagiográficos não eram considerados canônicos, mas
“obras de caráter festivo, que objetivavam comemorar a vitória do santo contra o mal, o
diabo e a morte. É por isso que as hagiografias eram lidas nas festas, nos refeitórios
monásticos, nas escolas e em locais públicos como praças.” (SILVA, 2006, p. 2).
Propomos-nos no próximo item à identificação e análise das imagens
hagiográficas, que se estabelecem nas cartas e solidificam um monumento retórico em
torno da imagem de Anchieta.
2.2 Identificação e Análise das Imagens Hagiográficas nas Cartas de Anchieta
2.2.1 A Imagem do Soldado de Cristo na Carta de 1554
Na carta denominada “Quadrimestre de Setembro a Dezembro de 1554 e
Trimestral de Janeiro a Março de 1555”, dirigida a Santo Inácio de Loyola em Roma,
encontramos o trecho que melhor reflete a imagem do jesuíta como um soldado a
serviço de Cristo:
Outra esperança de maior fruto nos alenta ainda, porque
inumeráveis nações, espalhadas por vastíssimos territórios, têm fome e
sede da palavra de Deus. Satisfarão estas o nosso desejo e gosto, e
sobretudo aqueles que estão mais vizinhos de nós, chamados carijós, os
quais há muito nos esperam com ânsia. Alguns deles aqui vieram
ultimamente, procuram logo o Padre e beijaram-lhe a mão. E um
soldado, que foi para a aldeia deles, resolveu, para sentir menos
aborrecimento da demora, ensinar os meninos; pois em breve juntou
quase 200 e instruiu-os na doutrina cristã. Se um soldado do mundo
conseguiu isto tão facilmente por causa da mansidão que encontrou, que
farão os soldados de Cristo se o forem procurar? Não há dúvida de que
recolheram ubérrimos frutos. (...) Pedimos, portanto a V.P., despenseiro
do Senhor, que envie operários para a messe. (In: VIOTTI, 1984, pp.
94,95) (Grifos nossos)
42
Este trecho nos dá margem não só para a observação do topos hagiográfico do
soldado, como também possibilita uma análise bastante significativa do discurso político,
claramente demonstrado na suposição de que os índios carijós se submeteriam à
civilização portuguesa, como as outras nações se submeteram aos soldados de outros
impérios.
Ainda retoricamente, vemos o discurso bíblico permear o texto que está repleto de
metáforas amplamente usadas no Novo Testamento. Conforme Hansen:
(...) a utilização de provérbios bíblicos e versos adapta-se à
escrita como efeito discursivo em que o presente brasileiro do evento
humilde narrado é absorvido na exemplaridade de ações sublimes
passadas, nas quais a presença divina também age providencialmente. A
especularidade entre dois eventos temporalmente distintos se dá, no
caso, como alegoria in factis, ou tipologia. Ao atualizar-se no presente da
leitura como figura, a exemplaridade sagrada unifica e confirma
profeticamente destinador e destinatário da carta.” (1995, pp. 95,96)
Analisemos então por partes. No parágrafo antecedente ao trecho principal em
análise, Anchieta discorre acerca de sua esperança de que “os malvados que resistem à
pregação do evangelho” se sujeitem ao jugo da servidão pela força armada que seria
enviada pelo Rei de Portugal. Depois, prossegue tratando de uma esperança ainda maior
e mais frutífera, que é a propagação do Evangelho entre as diversas tribos indígenas da
Nova Terra que, conforme descreve a epístola, “tem fome e sede da palavra de Deus”.
Ora, a palavra de Deus, comparada ao alimento e à água, é uma metáfora que teve origem
ainda na tradição vétero-testamentária como, por exemplo, nas palavras do profeta
Jeremias e do salmista:
Achadas as tuas palavras, logo as comi; as tuas palavras me foram
gozo e alegria para o coração, pois pelo teu nome sou chamado, ó
Senhor, Deus dos Exércitos. (Jeremias 15:16)
Qo doces são as tuas palavras ao meu paladar! Mais que o mel à
minha boca. (Salmos 119:103)
Depois, nas palavras do próprio Cristo na passagem bíblica do Evangelho segundo
Mateus, na qual Jesus é tentado pelo Diabo, vemos mais uma vez a palavra de Deus ser
comparada ao alimento espiritual:
43
Então, o tentador, aproximando-se, lhe disse: Se és Filho de Deus,
manda que estas pedras se transformem em pães. Jesus, porém,
respondeu: Está escrito: Não só de pão viverá o homem, mas de toda
palavra que procede da boca de Deus. (Mt. 4:5,6)
Existem, na Bíblia Sagrada, diversas metáforas referentes à palavra de Deus, tais
como: “Não é minha palavra fogo, diz o Senhor, e martelo que esmiúça a penha?”
(Jeremias. 23:29); “Lâmpada para os meus pés é a tua palavra e luz, para os meus
caminhos” (Salmos 119:105). No entanto, a que mais predomina nas Cartas da
Companhia de Jesus é a Palavra divina, ou seja, o Evangelho como alimento e como
semente. Esta última (palavra como semente) é atualizada no discurso do também jesuíta
Antônio Vieira, ao se apropriar da metáfora presente na Parábola do Semeador, proferida
por Cristo nos Evangelhos, para construir o conhecido Sermão da Sexagésima –
conforme já dito no capítulo anterior.
A questão é: Que função (além do resgate de fatos históricos passados e sua
relação com o presente) exerce esta repetição de lugares comuns do discurso bíblico
contido não apenas nas cartas escritas por Anchieta, mas de forma geral, nos escritos dos
jesuítas? Teria apenas esta repetição a função de ornar o discurso? A ausência de
respostas satisfatórias a questões como essas possibilita um olhar anacrônico dos textos
da época colonial, dissociado, inclusive, de seu caráter utilitário. Antes de qualquer coisa,
se faz necessário entender que as cartas produzidas pela Companhia de Jesus foram
norteadas – como visto também de antemão – por princípios retóricos a começar pela
própria estrutura em que foram elaboradas, conforme o modelo da ars dictaminis.
Por serem as epístolas retóricas, hão de ser também persuasórias visto que a
persuasão se constitui a base do discurso retórico. Justifica-se, então, a relação entre retórica
– persuasão – repetição. Discorrendo sobre os discursos das práticas coloniais de
representação, afirma Hansen: “(...) e como só se pode persuadir a respeito daquilo que já
se conhece, eles também evidenciam, na mesma persuasão, padrões de repetição, ou seja,
padrões de ordenação da experiência temporal que não são evidentemente os nossos”
(1999, p.74). Assim, podemos concluir que o discurso bíblico, bem como suas figuras
retóricas, se repetem nas cartas de Anchieta pelo fato de ser um gênero bastante
conhecido e de fácil disseminação em uma época essencialmente teológica, e nada melhor
do que a repetição para persuadir.
44
Voltando ao trecho em análise (Cf. p. 41), se faz necessário abrir um parêntese
para observamos a questão política que igualmente permeia os escritos jesuítas. Pela data
desta epístola, 1555, podemos afirmar que a “visão inaugural” utópica do Brasil por parte
do colonizador português já havia passado e, usando as palavras de Guillermo Giucci, “o
caráter pacífico e transitório do contato mascara um processo profundo, ainda que
incipiente, de redução do nativo a objeto de trabalho, informação e conversão” (1993, p.
29).
Falando acerca dos índios carijós, Anchieta afirma que os mesmos “a muito
esperam com ânsia” a chegada dos jesuítas e quando alguns dos nativos vieram ao
encontro dos missionários “procuraram logo o padre e beijaram-lhe a mão”. A
subordinação da cultura indígena à cultura européia pode ser vista também nas artes
plásticas, em especial em telas. Os índios geralmente são retratados em uma postura
submissa, ajoelhados e admirados do que se considera sagrado como os símbolos cristãos
e até mesmo a figura do jesuíta
11
(Cf. Anexo 5).
Nessa imagem, é possível perceber claramente uma superposição da cultura cristã e
“civilizada” sobre a cultura dos colonizados. O índio é o que busca com ansiedade o
contato com os seus colonizadores e o fato de “beijar a mão do padre” demonstra a
intencionalidade do escritor da carta em enaltecer o homem português, católico, branco e
civilizado. Conforme Socorro Vilar, “a escrita jesuítica com relação à historiografia
brasileira, põe em causa uma relação de poder, que põe os homens ocidentais em lugar
superior aos selvagens, por determinação divina.” (2006, p.70)
Esta redução do nativo ante a política colonizadora portuguesa fica ainda mais
clara se observarmos um trecho retirado desta mesma carta, produzida na primeira fase
do ministério apostólico de Anchieta – nos primórdios da colonização – em que se
percebe a ligação da Fé católica com os interesses materiais do Império:
Vamos sofrendo com paciência, que depois da tempestade vem a
bonança e grande paz. É especialmente agora que se encontrou grande
abundância de oiro, prata, ferro e outros metais com que se enchem as
11
Socorro Vilar aborda a representação iconográfica de Anchieta, afirmando que: “Até o século XIX, percebe-se
certa recorrência (...) na qual o modelo consagrado é o jesuíta ao lado de índios e animais, à maneira das
consagradas gravuras hagiográficas (...). Nem mesmo um Portinare se furtou a representar sua figura magra, com
um bastão a escrever nas areias da praia.” (2006, pp. 57,58)
45
próprias casas onde moram; o que levará o Sereníssimo Rei de Portugal
a mandar para aqui uma força armada e numerosos exércitos, que dêem
cabo de todos os malvados que resistem á pregação do evangelho e os
sujeitem ao jugo de servidão; e honrem aos que se aproximarem de
Cristo. Nosso Senhor dê completa execução a essa nossa esperança!
(Carta de José de Anchieta a Santo Inácio de Loyola de 1555. In:
VIOTTI, 1884, p. 94) (Grifo nosso)
Os Jesuítas entendiam que estavam não apenas a serviço da Igreja, mas também da
Coroa Portuguesa, que por sua vez estava a serviço de Deus na execução de um plano
traçado por ele. A propagação da Fé cristã aliada a implantação da lei por parte do rei,
proporcionariam o controle dos nativos e a apropriação dos bem materiais abundantes na
Nova Terra.
Para que isso acontecesse era necessário o trabalho em conjunto de dois exércitos,
que são resgatados retoricamente por Anchieta no trecho em análise: o exército material,
representado pelas tropas enviadas por El Rei, implantadoras da lei e da ordem, e o exército
espiritual, representado pela Companhia de Jesus, que teria a tarefa de propagar o
Evangelho em terras tão “carentes da palavra de Deus”.
Nesse sentido, surge a imagem retórica e hagiográfica do jesuíta como soldado de
Cristo. Em primeiro lugar, essa imagem remete ao fato de Inácio de Loyola ter sido militar
antes de tornar-se religioso. “A idéia que tinha Inácio de sua ordem era,
fundamentalmente, como ele próprio a criou, a de um corpo militar em excelente preparo
bélico.” (FULOP-MILLER, 1995, p. 287) Assim, o termo “soldado” passou a fazer parte
do repertório religioso dos jesuítas ao se transformar nas idéias de disciplina e obediência
úteis à filosofia da Companhia, que também incluía o “controle da vontade sobre
pensamentos, emoções e imaginação” (ibidem, p. 272).
Em segundo lugar, temos a repetição do discurso bíblico estabelecendo-se por
meio dessa metáfora. Em especial, muito da teologia paulina está presente nos escritos de
Anchieta. Aspectos como “o controle dos impulsos carnais”, “a vida de submissão e
obediência a Cristo”, “renúncia do eu”, “amor ao próximo”, “prática da oração” que se
encontram disseminados em todas as epístolas paulinas são resgatados por Anchieta em
seus textos.
46
Levando ainda em consideração que as epístolas da Companhia de Jesus se
baseiam no modelo epistolar Paulino, ambas apresentam, além de aspectos retóricos,
aspectos doutrinários e doxológicos em comum. Historicamente se sabe que o Novo
Testamento foi escrito no período de dominação do Império Romano (CAIRNS, 1995),
que se caracterizou por sua força bélica. As epístolas de Paulo – que somam um total de
treze – foram escritas no período provável de 52 a 64 d. C. (HALLEY, p. 561).
Nessa época, era bastante freqüente o contato dos cristãos com a figura do
soldado. Isso serviu para criação de abundantes metáforas, comparações e até alegorias
por parte dos escritores neotestamentários. É o que exemplifica o trecho retirado da carta
escrita pelo Apóstolo ao seu discípulo Timóteo, possivelmente no ano de 66 d.C:
“Participa dos meus sofrimentos como bom soldado de Cristo Jesus
. Nenhum soldado
em serviço se envolve em negócios desta vida, porque o seu objetivo é satisfazer aquele
que o arregimentou.” (II Epístola de Paulo a Timóteo 2:3,4) (Grifo nosso)
Nesse verso bíblico, Paulo exorta Timóteo a manter-se como um bom soldado de
Cristo estando, por isso, disposto a participar não só das alegrias de um servo de Deus
como também dos sofrimentos proporcionados pela vida militar. Esse preceito resgatado
nas cartas de Anchieta serve para fomentar, por meio de artifícios retóricos, a imagem do
jesuíta como aquele que está sempre disposto a lutar por amor à propagação da Fé cristã.
De fato, algumas prerrogativas são exigidas para quem almeja ser um soldado: coragem,
lealdade, disciplina, renúncia, patriotismo etc. Prerrogativas como essas, por sua vez,
promovem o senso de heroísmo. O que mais é um soldado, capaz de dar a própria vida por
uma causa considerada justa, senão um herói?
Michel de Certeau destaca, como uma das três principais bases da construção do
discurso hagiográfico, a figura do herói fazendo uma relação desse com o santo e o príncipe
estabelecida a partir de elementos semânticos (1982, p. 272). Essa mesma imagem de
soldado arregimentado pela Companhia de Jesus, construída por Anchieta, aplica-se a
qualquer membro da Ordem. Aqui se estabelece o caráter utilitário de um texto que,
apesar de epistolar, satura-se do sentido hagiográfico. Anchieta conhecia seu público leitor
e utilizava seu poder persuasivo para legitimar, por meio do próprio exemplo, o discurso
caracterizador da instituição a que pertencia e não propriamente um discurso originado
em si.
47
Entende-se, assim, que toda e qualquer representação da época era uma repetição
saturada da Causa eficiente e final – Deus e seu projeto providencialista. Desta forma,
tanto o emissor como os destinatários das epístolas estavam cientes de que: “É Deus,
enfim, o Enunciador da carta, e ela se escreve para ele.” (HANSEN, 1995, p. 96)
Retomando o texto principal em análise (Cf. p. 41), é possível ainda observar a
supervalorização concedida pelo discurso de Anchieta aos “soldados de cristo” em relação
aos “soldados do mundo”. Claramente se percebe essa distinção santo/profano pela
entonação da frase: “Se um soldado do mundo conseguiu isto tão facilmente por causa da
mansidão que encontrou, que farão os soldados de Cristo se o forem procurar?”. Fica
claro que se um soldado, por meio da mansidão, foi capaz de instruir cerca de duzentos
índios carijós na doutrina cristã, imagine os missionários jesuítas! Do que não seriam
capazes de fazer visto servirem a um exército mui superior ao humano, ou seja, um
exército espiritual comandado pelo próprio Deus? Mais uma vez destaca-se o caráter
utilitário do discurso anchietano que intencionava, por meio do exercício de escrita da
correspondência, manter todos os membros da Companhia unidos em torno dos ideais de
fé e incentivados a lutarem como “bons soldados de Cristo” fazendo uso da humildade e da
devoção. Conforme as palavras de Otoniel Silva:
As cartas jesuíticas têm o propósito de edificar, informar, instruir,
unir, todos os membros da Companhia em torno de ideais e idéias
comuns e, por isso mesmo, não podem deixar a chama da fé católica
apagar no coração dos seus destinatários. Decorre disso, todo o discurso
que elas produzem retoricamente, de forma planejada e com objetivos
bem definidos. (2001, p. 9)
A conclusão parece óbvia: os representantes de Cristo sem dúvida alguma
colheram “ubérrimos frutos”. Desta forma, resgatamos a imagem retórica do soldado de
Cristo que comprova, por sua vez, o uso de um topos retirado da Bíblia e utilizado na
produção escrita dos jesuítas como componente do discurso hagiográfico, para a
promoção dos membros da Companhia como homens santos, “verdadeiros soldados do
Novo Mundo” em serviço do cumprimento da vontade divina.
48
2.2.2 A Imagem do Evangelista na Carta de 1554
Não apenas no trecho principal citado e analisado no item anterior, como em
diversas epístolas, encontramos outra metáfora comum ao discurso bíblico: as almas
como sendo frutos que devem ser colhidos. Esta analogia, por sua vez, serve para a
construção retórica de mais uma imagem: o jesuíta como um incansável evangelista cujo
principal mérito seria “colher os frutos” da então Nova Terra. No Evangelho Segundo
João, encontramos a seguinte alegoria construída por Jesus Cristo:
A videira e os ramos
Eu sou a videira verdadeira, e meu pai é o agricultor. Todo o ramo
que, estando em mim, não der fruto, ele o corta; e todo o que dá fruto
limpa, para que produza mais fruto ainda. Vós já estais limpos pela
palavra que vos tenho falado; permanecei em mim, e eu permanecerei
em vós. Como não pode o ramo produzir fruto de si mesmo se não
permanecer na videira, assim, nem vós os podeis dar, se não
permanecerdes em mim. Eu sou a videira, vós os ramos. Quem
permanece em mim, e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem mim
nada podeis fazer. Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora,
à semelhança do ramo, e secará; e o apanham, lançam no fogo e o
queimam. Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras
permanecerem em vós, pedireis o que quiserdes e vos será feito. Nisto é
glorificado meu pai, em que deis muito fruto; e assim vos tornareis meus
discípulos. (Jo. 15:1-8)
Como observamos, Anchieta mais uma vez utiliza-se do discurso Primeiro, ou seja,
do discurso bíblico. Aqui, encontramos Cristo como sendo a videira verdadeira e aqueles
que o servem como os ramos constituintes dessa videira. Esses ramos devem por sua vez
produzir frutos, ou seja, tornarem-se eficientes na obra da evangelização. A metáfora do
fruto é encontrada ainda em diversos textos bíblicos:
Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento. (Evangelho
segundo Mateus 3:8)
Outra, enfim, caiu em boa terra e deu fruto: a cem, a sessenta e a
trinta por um (...) (Evangelho segundo Mateus 13:7)
Porque não quero, irmãos, que ignoreis que, muitas vezes, me
propus ir ter convosco, no que tenho sido, até agora impedido, para
49
conseguir igualmente entre vós algum fruto, como também entre os
outros gentios. (Epístola de Paulo aos Romanos 1:13)
No final do parágrafo em análise, Anchieta faz um pedido a Inácio de Loyola:
“pedimos portanto a V.P., despenseiro do Senhor
, que envie operários para a messe.”
(grifo nosso) Ambos os termos em destaque são também uma atualização feita por
Anchieta partindo do discurso bíblico. Os apóstolos costumavam chamar a liderança da
Igreja Primitiva de “despenseiros de Deus”, conforme os escritos de Paulo e Pedro:
Assim, pois, importa que os homens nos considerem como
ministros de Cristo e despenseiros dos mistérios de Deus. Ora, além
disso, o que se requer dos despenseiros é que cada um deles seja
encontrado fiel. (I Epístola de Paulo aos Coríntios 4:1,2) (Grifo nosso)
Servi uns aos outros, cada um conforme o dom que recebeu, como
bons despenseiros da multiforme graça de Deus. (I Epístola de Pedro
4:10) (Grifo nosso)
A comparação dos missionários jesuítas com “operários que devem ser enviados
para a messe” se origina também de um diálogo de Cristo com seus discípulos. Vejamos o
texto primeiro:
E percorria Jesus todas as cidades e povoados, ensinando nas
sinagogas, pregando o evangelho do reino e curando toda a sorte de
doenças e enfermidades. Vendo eles as multidões, compadeceu-se delas,
porque estavam aflitas e exaustas como ovelhas que não têm pastor. E,
então, se dirigiu a seus discípulos: A seara, na verdade, é grande, mas os
trabalhadores são poucos. Rogai, pois, ao senhor da seara que mande
trabalhadores para a sua seara. (Evangelho segundo Mateus 9:35-38)
A construção da imagem hagiográfica do jesuíta como um incansável evangelista, que
é capaz de abrir mão do conforto e das vantagens de um mundo civilizado para estar
entre “feras”, como eram considerados os índios (VIOTTI, 1984, p. 121) correndo,
inclusive, os mais variados riscos de vida, se estabelece nas cartas de Anchieta
promovendo um discurso de louvor à Companhia de Jesus. Vale salientar mais uma vez
que as metáforas bíblicas retornam às produções como uma atualização do discurso,
demonstrado desta forma, o caráter reprodutor da escrita jesuítica.
50
2.2.3 A Imagem do Casto
Os Exercícios Espirituais escritos por Santo Inácio de Loyola que representa, pode-
se dizer, o manual de comportamento e guia espiritual dos jesuítas no sentido de ser
utilizado constantemente para a prática da vida devocional, traz os votos que deveriam ser
feitos pelos que desejassem ingressar na Ordem:
Porque, embora tenhamos o direito a animar alguém a entrar na
vida religiosa, na qual se fazem os votos de obediência, pobreza e
castidade, e embora uma boa ação feita em virtude de um voto seja mais
meritória do que a que faz sem voto (...). (1994, pp. 19,20) (Grifo nosso)
Assim, o religioso que não fosse capaz de cumprir os votos de obediência,
pobreza, pureza, castidade e submissão ao papa, não podia ser considerado um homem
virtuoso, segundo a sua vocação. As cartas de Anchieta estão repletas de exemplos,
exortações e prescrições acerca do cumprimento desses votos. Mais uma vez os aspectos
retóricos contribuem de forma utilitária para uma exaltação da vida santa e consagrada a Deus
redundando em motivos de louvor. A repetição de lugares-comuns do discurso bíblico e dos
Exercícios Espirituais se instaura mais uma vez na escrita de Anchieta com o objetivo de
persuadir e animar aos demais da Companhia a manutenção de uma vida virtuosa e pura.
Queremos destacar aqui o voto da castidade analisando alguns trechos em que os
topoi da virgindade e da pureza são utilizados como formadores de imagens hagiográficas.
Analisemos o trecho seguinte:
Os índios nos faziam todo o bom trato possível à sua pobreza e
baixeza. E como têm por grande honra, quando vão cristãos as suas
casas, dar-lhes suas filhas e irmãs para que fiquem por seus genros e
cunhados, quiseram nos fazer tal honra, oferecendo-nos suas filhas,
insistindo muitas vezes; mas como lhes déssemos a entender que não
somente aquilo que era ofensa a Deus aborrecíamos, senão que não
éramos casados, nem tínhamos mulheres, ficaram eles e elas espantados,
como éramos tão sofridos e continentes, e tínhamos muito maior
crédito e reverência. As mais particularidades neste caso, não é possível,
nem expediente escrever-se. Basta entender-se que é necessária graça
mui especial e fogo do Espírito Santo a quem há de viver entre gente
que põe nisto uma das essenciais partes da sua felicidade, cujos
51
pensamentos, palavras e obras, que quase necessariamente há de ouvir-
se, e ainda ver-se, todos finalmente vem parar nisto. Mas bendita seja a
Santa Bondade que tanto cuidado tem daqueles que são membros desta
sua mínima Companhia. (Carta do irmão José ao Geral P. Diogo Laínes
de 1565. In: VIOTTI, 1984, p. 215) (Grifo nosso).
Sempre partindo do pressuposto de serem superiores à “pobreza e baixeza” dos
nativos brasis, os jesuítas consideravam os costumes – naturais aos índios – como algo de
extrema ofensa aos padrões cristãos. Manter relações sexuais com as índias era para os
membros da Companhia além do rompimento do voto de castidade, uma verdadeira
“ofensa a Deus”. Assim, os índios são acusados, entre outras coisas, de seres que
centralizam a sua vida na sensualidade, nos prazeres carnais. Os missionários jesuítas
encontram-se frente a frente com a tentação, que se personifica na nudez das índias. No
entanto, eles se mantêm firmes sufocando os desejos da carne por meio da graça
concedida por Deus.
Levando em consideração que as narrativas hagiográficas mantêm um estereotipo,
que, associado a um conjunto de lugares-comuns relacionados à santidade, servem como
modelo do qual o hagiógrafo se vale para construir seu texto, retomamos a Vita de Santo
Antão
12
– considerada a primeira narrativa hagiográfica a ser produzida (FULOP-
MILLER, 1995, p. 3) – a fim de relacioná-la ao texto epistolar em análise, considerando o
topos do casto.
Para esse santo, a tentação se personificou também na figura da mulher, quando
após haver rezado certa noite, viu diante de si uma moça que carregava na cabeça um
pote d’água e sua blusa estava aberta, mostrando-lhes o pescoço e o seio. Era uma das
raparigas felá a quem virá muitas vezes passar pelos campos. A moça despojou-se de suas
vestes e passou a noite inteira a tentá-lo com todas as espécies de gestos lascivos. Ele,
porém, conservando os olhos em Deus, implorava-lhe para que viesse a seu socorro. Por
meio de preces ardentes, resistiu à tentação. Ao amanhecer, a moça havia desaparecido e,
logo após, apareceu-lhe uma figura horrenda de chifres. Antão logo constatou ser o
12
Asceta cristão que viveu no século II d.C na província de Beni Seuf, no alto Egito. Filho de ricos coptas,
vendeu todas as propriedades que havia herdado dos pais e distribuiu-as entre os pobres, após ouvir o sermão do
Padre que expunha o diálogo de um jovem rico com Cristo, conforme a narrativa do Evangelho de Mateus: “E
eis que alguém se aproximou e lhe disse: ‘Mestre, que coisa boa farei para ter a vida eterna?’ E Jesus respondeu-
lhe: ‘Se queres entrar na vida, guarda os meus mandamentos’. Disse-lhe o jovem: ‘Tudo isso tenho guardado;
que me falta ainda?” Disse-lhe Jesus: ‘Se queres ser perfeito, vai vender tudo o que tens e dá-o aos pobres, e
terás um tesouro nos céus; depois, vem seguir-Me’’”. Sua Vita foi escrita por Atanásio, o famoso bispo de
Alexandria (FULOP-MILLER, 1995).
52
Diabo, que se queixava de ter “iludido a muitos com o espírito da fornicação para desviá-
los da vereda da castidade”, mas que seu ataque não havia sido suficiente forte para
derrotá-lo. (FULOP-MILLER, 1995)
Como podemos constatar, os lugares-comuns se mantêm nas estruturas textuais
das hagiografias adaptando-se apenas a um novo contexto temporal e local. No caso do
trecho em análise, três motivos são apresentados no discurso de Anchieta que permitem a
vitória sobre estas tentações: graça mui especial, fogo do Espírito santo e o cuidado de Deus.
Exemplificando um destes motivos, observamos na Bíblia que a graça de Deus
assume diversos sentidos. Neste trecho da epístola, o melhor sentido para a palavra graça
seria “uma ajuda especial e sobrenatural de Deus para vencer as tentações” (SHEDD,
1995, p. 107) Vejamos para uma possível comparação outros textos bíblicos nos quais a
palavra graça foi empregada em um mesmo contexto:
Porque a nossa glória é esta: o testemunho da nossa consciência,
de que, com santidade e sinceridade de Deus, não com sabedoria
humana, mas na graça divina, temos vivido no mundo (...). (I Epístola
de Paulo aos Coríntios 1:12) (Grifo nosso)
Infiéis, não compreendeis que a amizade do mundo é inimiga de
Deus? Aquele, pois, que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo
de Deus. Ou supondes que em vão afirma a Escritura: É com ciúme que
por nós anseia o Espírito, que ele faz habitar em nós? Antes, ele dá
maior graça; pelo que diz: Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos
humildes. Sujeitai-vos, portanto, a Deus; mas resisti ao Diabo e ele
fugirá de vós. (Epístola de Tiago aos Irmãos da Dispersão 4:4-7) (Grifo
nosso)
Como podemos ver nos textos acima, Anchieta se apropria do discurso bíblico
para validar o seu próprio discurso. E mais uma vez critérios como originalidade e
criatividade são erradicados pela repetição que, como já foi dito, era um artifício bastante
comum nas representações coloniais.
Existia também certa vigilância para se evitar as tentações na área da sensualidade. A
figura da mulher estava, em algumas das cartas, vinculada à idéia de tentação. Na
correspondência enviada pelo então Geral da Companhia, P. Everardo Mercuriano, de
1579, com recomendações para Anchieta, que na ocasião exercia a função de padre
provincial encontramos o seguinte conselho:
53
Entendendo que, em certa capitania, a maioria das esmolas que
nos fazem, a enviam de noite e que comumente a trazem as moças de
serviço, não sem perigo dos nossos os que recebam tais esmolas, não
permitindo que se apresente um só. (In: VIOTTI, 1984, p. 288)
Fica claro o cuidado que os jesuítas deveriam ter em evitar o contato com as
mulheres denominadas por Anchieta de “diabos encarnados”:
(...) outros solteiros vencendo muitos encontros de tentações de
diabos encarnados, e dando muito crédito ao que lhes ensinamos, não
duvido de antepô-los a seus senhores, que comumente cada vez se
embaraçam com diversos gêneros de impedimentos, com quem não
podem nem querem admitir o remédio, que lhes querem dar os da
Companhia.” (Carta do Ir. José de Anchieta ao Geral P. Diogo Laínes
de1563. In: VIOTTI, 1984, p. 199)
Em outra epístola encontramos mais uma vez a figura da mulher como leviana e
provocante:
E ao chegarem os anos da discrição, mandá-los à Espanha, onde há
menos inconvenientes e perigos para serem ruins, do que aqui, onde as
mulheres andam nuas e não se sabem negar a ninguém, antes elas mesmas
acometem e importunam aos homens, lançando-se com eles nas redes, porque
têm por honra dormir com os cristãos. (Carta do Ir. José de Anchieta a Santo
Inácio de Loyola de 1554. In: VIOTTI, 1984, p. 187) (Grifo nosso)
Em todas estas descrições feitas por Anchieta acerca das tentações na área sexual é
possível perceber certo louvor próprio, que consiste em conseguir se manter puro e em
contenção, mesmo vivendo entre mulheres que “andam constantemente nuas e bem
dispostas”. Ora, sendo capazes de vencer as tentações como essas, os jesuítas construíam
em torno de si uma imagem de pureza e santidade que, conforme as palavras de Anchieta
na citação principal em análise, lhes davam “maior crédito e reverência” por parte dos índios.
Um outro meio descrito por Anchieta, que servia como auxílio para controlar os
desejos sensuais da carne eram as penitências. Prescritas à Companhia de Jesus pelos
Exercícios Espirituais eram bastante praticadas pelos jesuítas. Dentre os três motivos dados
por Loyola para a prática das penitências exteriores, temos que: “(...) para vencer-se a si
mesmo, isto é, pra obrigar a sensualidade a obedecer à razão, e as tendências inferiores
54
estarem mais sujeitas às superiores” (1994, p. 61). Vemos esse discurso tomar forma
prática nas cartas conforme o trecho que segue:
E sabendo que não tínhamos mulheres, se espantou muito,
perguntando-nos: ‘E não as desejais, quando vedes algumas formosas?’
Nós como resposta lhes mostramos as disciplinas com que se domava a
carne, quando se desmandava a esses maus desejos, falando-lhe também
dos jejuns, abstinências, e outros remédios que tínhamos, e que tudo
isto fazíamos por não ofender a Deus, que manda o contrário. (Carta
do Ir. Anchieta ao Geral P. Diogo Laínes de 1565. In: VIOTTI, 1984,
p. 218) (Grifo nosso)
Os termos carne e Espírito que aparecem com freqüência tanto nos Exercícios como
nas cartas (conforme o trecho acima citado), se originam também no discurso bíblico
neotestamentário. Em especial nos escritos do Apóstolo Paulo. A carne é metáfora das
paixões e do ego humano e o Espírito é a terceira pessoa da Trindade, que age no homem
conscientizando-o “da justiça, do pecado e do juízo”. Vejamos o texto bíblico intitulado
“As obras da carne e o fruto do Espírito”:
Digo, porém: andai no Espírito e jamais satisfareis à
concupiscência da carne. Porque a carne milita contra o Espírito, e o
Espírito, contra a carne, porque são opostos entre si; para que não façais
o que, porventura, seja do vosso querer. (...) Ora, as obras da carne são
conhecidas e são: prostituição, impureza, lascívia (...). (Epístola do
Apóstolo Paulo aos Gálatas 5:16-19)
A imagem hagiográfica da casto se estabeleceu e se fixou de maneira tão forte nos
escritos, que ainda no ano de 1607 (dez anos após a morte de Anchieta) é possível
encontrarmos o seguinte elogio feito pelo escritor da biografia anchietana, Pe. Pero Roiz,
que na ocasião cita o voto de castidade feito pelo jovem de apenas dezessete anos:
(...) e Deus nosso Senhor começou, por sua parte, a plantar em
sua alma as virtudes, das quais crescendo depois com a divina graça,
havia os fiéis e gentios de recolher muito fruto espiritual, como a
experiência mostrou: a primeira destas plantas foi um eficaz desejo da
pureza d’alma e corpo, com aborrecimento de todos os vícios, e em
particular dos torpes e desonestos, em sinal do qual desejo, estando um
dia na Sé de Coimbra, de joelhos diante de um altar, em que estava uma
imagem de vulto de N. senhora, fez voto de perpétua virgindade, em
que Deus nosso senhor o conservou em toda a vida (...). (1955, p. 55)
55
Podemos afirmar que a imagem hagiográfica da castidade também se estabelece
como parte essencial ao ritual discursivo, que perpassa os escritos anchietanos cuja
principal finalidade no discurso hagiográfico é “a instrução, o aperfeiçoamento e a
gratificação dos leitores (ou dos ouvintes), bem como a glorificação do herói dos relatos.”
(ATTWATER, 1991, p.11)
2.2.4 A Imagem do Mártir
A partir das pesquisas realizadas, podemos afirmar que esta é a imagem
hagiográfica mais recorrente e passível de recursos retóricos (como a metaforização, a
ampliação) nas cartas de Anchieta. Isto se explica basicamente por um critério já bastante
referido anteriormente: a atualização do discurso bíblico. Os membros da Companhia
acreditavam ser apóstolos do Novo Mundo a exemplo dos apóstolos encontrados no
Novo Testamento. Tomavam para si a responsabilidade de serem representantes de
Cristo no mundo, ou melhor, para fazer uso da terminologia bíblica “embaixadores de
Cristo”. O trecho que melhor exemplifica nossa argumentação encontra-se na carta escrita
pelo então Irmão José de Anchieta a Santo Inácio de Loyola em 1554 (Cf. Anexo 1), uma
das primeiras escritas por ele, um ano depois de sua vinda para o Brasil:
Estando nosso padre na Bahia de Todos os Santos, determinou
Sua Alteza mandar doze homens pelo sertão a descobrir ouro, que
diziam existir, para o governador Tomé de Souza pediu um padre que
fosse com eles em lugar de Cristo, afim de não irem desamparados.
(In: VIOTTI, 1984, p. 57).
Conforme a língua em que foi escrito o Novo testamento, o Grego, as palavras
apóstolo e embaixador derivam de uma mesma raiz significando, de forma geral, representante.
Comparando o trecho acima com o escrito de Paulo podemos perceber a semelhança de
discursos entre as duas epístolas: “De sorte que somos embaixadores por Cristo
, como se
Deus por nós vos exortasse. Em nome de Cristo, pois rogamos
que vos reconcilieis com
Deus.” (Segunda Epístola de Paulo aos Coríntios 5:20) (Grifo nosso)
56
Nesse verso, se observa a propriedade com que Paulo e os demais líderes da Igreja
em Corinto assumiam para si o papel de representantes de Cristo tendo, por isso, total
autoridade para pregar a palavra de Deus, exortar, entre outras funções ministeriais. Da
mesma forma, encontramos nos escritos de Anchieta fatos narrados que demonstram a
similaridade dos acontecimentos vividos pelos apóstolos neotestamentários com os
acontecimentos vividos no Brasil colônia pelos novos apóstolos, os jesuítas.
A seguir analisaremos alguns trechos colhidos no texto primeiro, no caso a Bíblia, e a
reprodução feita por Anchieta de metáforas e lugares–comuns, que exercem a função de
criar, nas cartas, uma série de imagens hagiográficas ligadas ao topos do martírio. Após a
observação e comparação dos textos e conseqüentemente dos discursos, perceberemos
claramente os artifícios empregados por Anchieta para fortalecer a figura do jesuíta como
um ser santo, passível de qualquer sofrimento por amor à pregação do Evangelho,
imagem com a qual será dominantemente representado.
Reconhecendo ser a atualização temporal e pessoal do apóstolo Paulo, Anchieta
reproduz claramente o discurso paulino em seus textos. Comparemos:
São ministros de Cristo? Eu ainda mais: em trabalhos, muito mais;
muito mais em prisões; em açoites, sem medida; em perigos de morte
muitas vezes. (...) em jornadas, muitas vezes; em perigos de rios, em
perigos de salteadores, em perigos entre patrícios, em perigos entre
gentios, em perigos na cidade, em perigos no deserto, em perigos no
mar, em perigos entre falsos irmãos; em trabalhos e fadigas, em vigílias,
muitas vezes, em frio e nudez. (I Epístola de Paulo aos Coríntios 11:23-
27)
Foi o primeiro de todos que abraçou a vida da nossa companhia
(...) De fato, servi-os com diligência e constância, pois durante o espaço
de cinco anos, com os maiores trabalhos, por campos, matos e sertões,
entre evidentes perigos, pregou dedicadamente o Evangelho de Cristo
entre os índios, cuja língua conhecia muito bem e junto dos quais
gozava da maior autoridade. Veio afinal a padecer morte gloriosa pela
salvação das almas, sendo digno de conseguir este felicíssimo fim. (Carta
de Anchieta a Loyola na qual se descreve o martírio do Ir. Pero Correia.
In: VIOTTI, 1994:101)
Ambos os discursos apresentam em comum a figura de moti destinatus (homens
destinados à morte), capazes de viver os mais variados perigos como prova do zelo pela
57
pregação do Evangelho. Destaca-se o perigo entre os gentios. No caso do discurso
paulino, gentios representa todo aquele que não era judeu. Enquanto que no discurso
anchietano seriam os índios brasileiros, que precisam ser resgatados de volta para Deus.
Verificamos ainda a utilização do ethos humilitate ao se destacar as privações sofridas em se
cumprir a Missão divina e o desejo de morte que é vista, conforme os moldes
hagiográficos, como algo glorioso. É o que se pode observar também nos trechos abaixo:
Porque nenhum de vós vive para si mesmo, nem morre para si
mesmo. Porque, se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para
o Senhor morremos. Quer, pois, vivamos ou morramos, somos do
Senhor. Foi precisamente para esse fim que cristo morreu e ressurgiu:
para ser Senhor tanto de mortos como de vivos. (Paulo aos Romanos
14:7,8)
Estamos já a caminho desta jornada, entregando-nos à divina
Providência, como homens morti destinatos, não tendo mais conta com
morte nem vida que quanto for mais glória de Jesus Cristo e proveito
das almas, que Ele comprou com sua vida e morte. (Carta de Anchieta
a P. Diogo Laínes de 1563. In: VIOTTI, 1984:205)
Mais uma vez baseando-se no topos predominante do Gênero Hagiográfico – o
martírio – encontramos em comum, nesses textos, a idéia de que o viver e o morrer são
conceitos sinônimos para quem desejar servir a Cristo. Assim, o martírio era algo dado
como certo em ambas as épocas. Vale salientar que, na construção do discurso
hagiográfico, a morte era algo não apenas esperado, mas desejado. Vejamos:
Porquanto, para mim, o viver é Cristo, e o morrer é lucro.
Entretanto, se o viver na carne traz fruto para o meu trabalho, já não sei
o que hei de escolher. Ora, de um e outro lado, estou constrangido,
tendo o desejo de partir e estar com Cristo, o que é incomparavelmente
melhor. (Carta de Paulo aos Filipenses 1: 21,23) (Grifos nossos)
Acabei de pesuadir-me que muita coisa bastava para os mover a
nos dar a morte, e determinei de me dar mais intimamente a deus,
procurando não só achar-me mais aparelhado para recebe-la, mas
também deseja-la e pedi-la a Deus nosso Senhor com contínuas orações
58
inflamados desejos. (Carta de Anchieta a Diogo Laínes de 1565. In:
VIOTTI, 1984, p. 230) (Grifos nossos)
Sendo Estevão, um dos principais mártires descrito no Novo Testamento, Anchieta
apropria-se também da narrativa da morte daquele para criar um discurso segundo. Observando
atentamente os dois discursos podemos perceber a similaridade da narrativa dos martírios de
Estevão com o martírio de dois padres da Companhia de Jesus. Aspectos como o desejo de
morte e a capacidade de perdoar os próprios agressores são marcantes em ambos os trechos:
Ouvindo eles isto enfureciam-se nos seus corações e rilhavam os
dentes contra ele, mas Estevão cheio do Espírito santo, fitou os olhos
no céu e viu a glória de Deus, e Jesus, que estava à sua direita, e disse:
Eis que vejo os céus abertos e o Filho do homem em pé à destra de
Deus. Eles, porém, clamando em alta voz, taparam os ouvidos e
unânimes arremeteram contra ele. E lançando-o fora da cidade, o
apedrejaram (...). E apedrejavam Estevão que dizia: Senhor Jesus recebe
o meu espírito! Então, ajoelhando-se, clamou em alta voz: Senhor, não
lhes imputes este pecado. Com estas palavras adormeceu. (Atos dos
Apóstolos 7: 54-60)
Mortos esses dois, voltando-se eles contra o irmão João que estava
doente, começaram a frechar. O qual (como todos unânimente
afirmam), ajoelhado e dando graças a Deus, entregou o seu espírito ao
Criador atravessado de frechas. O irmão Pero, vendo-o assim tratado,
começou a falar aos índios... Em lugar de resposta, foi varado pelas
frechas dos índios; mas nem por isso deixou de lhes continuar a falar,
até que, não podendo mais suportar a dor, deixando cair o bordão que
levava a mão e apartando os olhos dos índios, se ajoelhou e foi morto
enquanto encomendava o seu espírito a Deus”. (Carta de Anchieta a S.
Inácio de Loyola de 1555. In: VIOTTI, 1984, p. 99)
Baseando-se nas comparações textuais acima, não restam dúvidas de quanto do
discurso bíblico se encontra inserido nas cartas não apenas de Anchieta, mas podemos,
afirmar, de toda a Companhia de Jesus. As imagens hagiográficas que surgem dessa
relação servem para estabelecer dois aspectos. O primeiro é o fortalecimento do caráter
exemplar e influenciador que a correspondência exercia sobre a Ordem ao redor do
mundo.
59
Outro aspecto é o uso que a Companhia faz dessas imagens para promover a
Ordem e seu papel na historiografia do Brasil. Há, pelo menos, dois momentos em que a
imagem consagrada do jesuíta, na figura de Anchieta, é tomada de forma utilitária para
promover determinada ideologia na construção da história do Brasil.
No Romantismo, Anchieta é resgatado como um representante dos ideais
romântico-nacionalistas. Mesmo havendo, no discurso romântico, uma forte
“mentalidade antijesuítica característica do tempo”
13
(VILAR, 2006, pp. 50,51), os autores
românticos vão preservar “em suas várias formas – romance, teatro, poesia – a
representação dos primeiros padres jesuítas” chegados ao Brasil. Analisando o assunto,
Socorro Vilar afirma que:
De forma, geral, há uma certa benevolência com relação a eles
[jesuítas], que tendem a ser representados através da imagem com que
primeiro se nomearam: a de apóstolos do Novo Mundo. Imagem que
em Anchieta se transformará no esteriótipo mais consagrado. (ibidem, p.
51)
No século XIX, a religião católica se constituía religião oficial conforme a
Constituição Imperial. Por esse tempo, deu-se início uma investida da igreja em recuperar
“as prerrogativas que foram perdidas com o regalismo, resgatando-se então a figura
‘redentora’ de Anchieta, imagem ideal de um ‘servo’ de Deus” (ibidem, p. 51). Mais
propriamente em 1877, o bispo de Olinda, D. Vital – acusado de ser simpatizante dos
jesuítas – escreve uma carta ao Papa Pio IX, na qual requer a beatificação de Anchieta,
“bem como a ascensão do jesuíta à condição de ‘patrono Celeste do Brasil’ ” (VILAR,
2006, p. 51). A vida heróica e os milagres de Anchieta são resgatados nessa carta e, mais
13
O novo regime instalado em Portugal (1750-1777) considerava o poder dos jesuítas como uma ameaça
aos princípios centralizadores do Estado, assim sendo o Marquês do Pombal, primeiro-ministro de D.José
I, determinou a expulsão da Companhia de Jesus de Portugal e das suas colônias, em 1759. No Brasil, os
colégios jesuítas foram fechados e as missões destruídas, sendo substituídos por escolas municipais e pela
preocupação científica no sentido de fazer os súditos não apenas serem seguidores da fé católica mas
obedientes às exigências do Despotismo Ilustrado. A ditadura humanista, ao tempo em que reprime a
nobreza feudal lusitana, decreta a abolição da escravização indígena (1757). (SHILLING, 2007)
60
uma vez, a imagem construída em torno desse jesuíta, por meio dos artifícios retóricos da
Hagiografia, exercem um caráter utilitário em benefício de nossa historiografia.
Socorro Vilar expõe ainda que nessa época, o pensamento positivista instalava-se
na intelectualidade brasileira e com ele uma forma particular de resgatar a história,
segundo o que Le Goff considera como o triunfo do documento (VILAR, 2006, p. 62).
Assim, as cartas da Companhia vão ser lidas na perspectiva de texto objetivo e
documento primeiro e fundador, servindo para a reabilitação da Companhia de Jesus que,
por sua vez, se mostrava:
(...) fonte inesgotável de documentos que finalmente nos dariam
uma identidade: os positivistas brasileiros julgaram ser possível, através
dos textos dos jesuítas, escrever a ‘verdadeira’ história do Brasil. (...) Na
verdade, essa imagem que consagra à Companhia de Jesus o importante
papel de ter legado ao Brasil a civilização, pelo saber que fomentou e o
registro histórico que fez do período, foi construída ainda no
romantismo. (...) podemos também considerar que, quando se trata do
papel dos jesuítas no Brasil, a palavra mais adequada é a ‘repetição’ de
um discurso (...).” (ibidem, p. 65)
Na realidade, a leitura desses documentos (cartas jesuíticas) é realizada de maneira
anacrônica – conforme exposto em capítulo anterior – tendo em vista, que a escrita do
século XVI era pautada por regras e paradigmas de um saber no qual a repetição era
elemento preponderante. Não podemos conceber, então, às cartas como “cópia ou retrato
fiel da realidade” (PÉCORA, 2001) de forma que possam construir objetivamente a
história do Brasil colonial. Eram textos preconcebidos por uma ideologia teológico-
política, que permeava qualquer intenção discursiva de então.
O poder do discurso anchietano e das imagens hagiográficas que fomentam as
cartas, porém, se perpetuam sendo resgatadas e apropriadas de acordo com a intenção a
que se quer promover. No século XVI, sua imagem de homem santo e evangelista
desbravador serve para incentivar o ardor missionário da Ordem. Anos depois, a imagem
de Anchieta é tomada como um dos fundadores de São Paulo sendo, por isso,
considerado o patrono dessa cidade (MORENO, 2004). A imagem do homem culto,
61
letrado, escrevendo na areia das praias
14
(Cf. Anexo 6) serviu para consagrá-lo de vez no
imaginário popular como o pedagogo, o teatrólogo, o poeta (VILAR, 2006). Essa imagem
é utilizada também por alguns políticos, conforme Socorro Vilar:
(...) pelo fato de melhor prestar a vários usos, que cada época e
alguns governantes trataram de usar a imagem de anchieta para fins
promocionais. É o caso de Getúlio Vargas, por exemplo, que se
representa em emblema junto a imagem do padre, figurando ambos
como patronos do teatro brasileiro. (2006, p. 134) (Cf. Anexo 7)
Nesse sentido, Anchieta se reafirma como um monumento retórico – alicerçado
nas imagens santas – que se coloca a serviço de instituições e ideais diversos (a exemplo
da política e da historiografia) como um mecanismo discursivo gerador de sentidos
diversos para aqueles que dele se apropriam.
14
Essa imagem faz referência ao episódio em que Anchieta, durante o tempo que passou cativo pelos
índios tamoios, escreve o Poema da Virgem nas areias da praia, sendo capaz de repassá-lo para o papel
depois de liberto, prova de uma memória exercitada pelos exercícios constantes da escrita (VIOTTI,
1966). Segundo carta escrita por Anchieta ao Geral Diogo Laínes em janeiro de 1565, os tamuya “estavam
levando continuamente os escravos, mulheres e filhos dos cristãos, matando-os e comendo-os, e isto sem
cessar, uns idos outros vindos por mar e por terra”. (In: VIOTTI, 1984, p. 210) O Pe. Manuel da Nóbrega
resolve tratar as pazes com essa tribo e, por não conhecer a língua indígena, leva consigo Anchieta como
intermediador.
62
CAPÍTULO 3
A Literatura Quinhentista e sua representação no livro didático
3.1 Entendendo o problema
O livro didático possui uma característica perversa: atribuir uma escala de valor aos
conteúdos que veicula, determinando e sacralizando o que deve ser lido e imitado. Há
uma divisão do conteúdo de literatura em estilos de época, agrupando os autores e textos
de acordo com as características que possuem em comum.
Como conseqüência desse modo de ensinar literatura – construído a partir dos
manuais acadêmicos de História da Literatura divulgado pelos cursos de Letras – (VILAR,
2004) e atrelado a concepção iluminista de Literatura Evolutiva, formada pelo conceito de
história como sendo linear e progressiva (OLINTO, 2001), os escritos coloniais são
tomados como portadores de um caráter meramente informativo/descritivo, quando não
os consideram uma “literatura menor”.
Essa visão permeia tanto os manuais literários destinados ao nível superior, quanto
os livros didáticos destinados ao Ensino Médio. A título de comprovação, observemos as
colocações de dois desses estudiosos, Alfredo Bossi e Massaud Moisés:
Os primeiros escritos de nossa vida (...) são informações que
viajantes e missionários europeus colheram sobre a natureza e o homem
brasileiro. Enquanto informação, não pertencem à categoria do literário,
mas à pura crônica histórica. (BOSI, 1999, p.13) (grifo nosso)
Do ângulo literário, as cartas [de Anchieta] ostentam menor
significação, a partir do fato de serem missivas-relatórios, isentas de
carga imaginativa e menos consciente (...). (MOISÉS, 1997, p.29) (grifo
nosso)
Contrária a essa ideologia, Socorro Vilar argumenta que:
63
Tanto o aluno como o professor devem compreender o caráter
histórico de determinadas manifestações literárias, não no sentido
apriorístico e determinista com que é mostrado no Livro didático e,
insisto, nas antologias dos cursos de Letras, mas como um embate entre
maneiras e possibilidades de dizer de uma época. Nesse sentido, o
‘novo’ não é necessariamente a melhor forma, nem a mais apropriada
do ponto de vista estético: não há o que podemos chamar de ‘evolução
qualitativa’ – na falta de melhor termo – na literatura. (2004, p. 125)
Porém, se faz necessário observar que outros critérios contidos nos textos
coloniais os enriquecem e lhes atribuem especificidade. São eles: os padrões retóricos
comuns ao gênero e à época dos discursos, a concepção teológica que constituía a forma
mentis do homem do século XVI e as relações políticas entre a Igreja Católica e a Coroa
Portuguesa. Esses critérios geram nos escritos o surgimento de “discursos permeados de
intenções” (VILAR, 1999), ou seja, havia intenções políticas, didáticas e religiosas nas
produções textuais dessa época.
Os textos coloniais se apresentam nos manuais literários apropriados de
concepções estéticas da modernidade, incorrendo em um anacronismo literário, que influi
diretamente na elaboração e na forma como esse tema é abordado nos livros didáticos.
Para isso, faz-se necessário a reconstituição dos sentidos primeiros dos escritos coloniais,
que só poderão ser resgatados a partir da “dupla normatividade” que os norteiam: retórica
e teológico-política (HANSEN, 1999), bases essas que deveriam ser apresentadas e discutidas
em sala de aula durante a exposição do conteúdo quinhentista
Para exemplificarmos a forma inadequada com que, não apenas a produção
epistolográfica anchietana como todo o Quinhentismo é abordado, faremos uma breve
análise da seção referente a esse assunto no livro Português de João Domingues Maia,
destinado ao Ensino Médio e editado pela Ática em 2002 (Cf. Anexo 8) . Vale salientar
que as considerações tecidas a seguir tornam-se aplicáveis aos demais livros didáticos por
seguirem o mesmo padrão de anacronismo em seus estudos. Além disso, são frutos de
minha prática como professora de “pré-vestibulandos”, que nenhuma motivação
possuem para o estudo dos textos quinhentistas pelo fato de não serem considerados
importantes e “não caírem na prova do vestibular”.
64
3.2 Incoerências da representação discursiva quinhentista no livro didático
3.2.1 Anacronismo literário
Partindo do entendimento de anacronismo como literalmente “fora do tempo”, a
primeira incoerência desse material pode ser percebida no próprio título da seção
“Literatura dos Jesuítas” (Cf. Anexo 8). Segundo João Adolfo Hansen, a instância
“literatura” entendida – de acordo os padrões iluministas - como sendo um novo regime
discursivo, que por sua vez se opõe a outros regimes tais como ciência, filosofia e história,
não pode ser atribuída aos escritos coloniais, do contrário teríamos um anacronismo
literário (2002, p.2).
Isso se explica pelo fato de estarem os discursos do século XVI, independente do
gênero que lhe servem como suporte, inseridos em um “conjunto convencional de leis ou
práticas” (PÉCORA, 2001, p. 14). Assim, os textos coloniais precisam ser analisados “a
partir do exame de procedimentos previstos e aplicados pelas convenções letradas em
vigência no período em questão” (ibidem, p.12).
O que isso significa? Significa, por exemplo, aplicar à leitura da carta de Caminha,
texto considerado como a “certidão de nascimento” de nosso país, conceitos anacrônicos
preestabelecidos pela crítica literária, tais como a admiração de Caminha na descrição da
“realidade”, identificação da carga de subjetivismo e lirismo na carta, entre outros
detalhes. O mesmo poderia ser exemplificado com as cartas de Anchieta, nosso objeto de
estudo, com relação à riqueza de detalhes, ao retrato fiel da “realidade”, à fé e à devoção
pessoal do Padre: “condicionalismos subjetivos” típicos da arte literária, a qual esses
escritos não pertencem. Analisando essas questões, Álcir Pécora afirma que:
Ao longo de todo o século passado, com o propósito de impedir
que os textos literários fossem lidos como documento neutro ou
objetivo, a crítica esforçou-se – com êxito inegável, já que isso se tornou
condição da credibilidade analítica – para produzir a ‘consciência’ de que
eles se deixam escrever a partir de uma visão particular, perspectivada
segundo o ‘sujeito’ e o ‘lugar de classe’ ocupada pelo seu autor. À antiga
concepção positivista da linguagem como veículo neutro ou
transparente de representação factual contrapôs-se sua mescla de
condicionalismos subjetivos e materiais. (2001, p. 11)
65
Desconsiderando esses pressupostos, o que temos, de fato, são textos produzidos
conforme um modelo fixo de dizer, um paradigma retórico (no caso das cartas a ars
dictaminis), conforme já explicitado anteriormente, em uma época na qual a escrita era uma
prática regrada pelas “tópicas tradicionais da invenção, suas figuras elocutivas e medidas
dispositivas, valorizando a ruptura com a formas de realismo documentalista, psicológico,
sociológico ou cultural.” (PÉCORA, 2001, p. 13) (Grifos do autor)
A fim de abordar o conteúdo quinhentista, se faz necessário considerar que a visão
de mundo do homem no século XVI era essencialmente teocêntrica: Deus era a Causa
primeira de todas as coisas. Assim, todos os textos - sejam eles a própria natureza, a
história e os escritos – estavam amoldados à doutrina providencialista (a forma como
Deus conduz todas as coisas criadas). Essa noção era uma característica constitutiva do
saber de então.
Cabe aqui repetir o que foi explicitado nas análises das cartas: o saber do século
XVI, segundo Michel de Focault, estava baseado nos parâmetros da similitude. Isso
significa dizer que tanto “as coisas criadas” como “as palavras” guardavam uma relação
entre si, ou seja, “Natureza e Verbo” podem se entrecruzar até o infinito, formando, para
quem é capaz de ler e interpretar, um único texto que assinala o divino (1999).
Partindo do pressuposto construído por Michel Foucault, Hansen ressalta que “a
interpretação dos textos se faz segundo três grandes coordenadas: consideração da
presença de Deus nas coisas sensíveis; consideração da presença de Deus nos seres
espirituais, almas e puros espíritos; consideração da presença de Deus na alma humana
(...)” (1987, p. 43). Conforme se vê, no século XVI tudo se escreve por Deus e para Deus.
Como exemplo, tomemos o trecho da Carta de Caminha em que é trazido um
carneiro e se coloca diante dos índios. Se pensarmos em termos de Teologia o carneiro no
século XV, e até hoje na teologia cristã, é tomado como ágnus-dei. E o próprio animal
físico aponta para Cristo. Assim, se os índios fossem capazes de reconhecer o carneiro,
reconheceriam a Cristo. Como não reconheceram, não podiam ser considerados cristãos
(HANSEN, 2003, p. 100). O mesmo se aplica aos textos dos jesuítas, nos quais havia
sempre uma atualização do discurso Bíblico e da doutrina providencialista, conforme
explicitado no capítulo II. Tudo o que era dito e escrito estava inserido nesse conjunto de
paradigmas retórico-teológico.
66
Por isso, “as idéias de autonomia estética e as noções de autor como originalidade
e individualidade psicológica, não podem ser atribuídas aos escritos do século XVI, que
passam a receber inadequada e anacronicamente o título de “literatura
de informação” ou
“literatura
dos jesuítas / literatura catequética”, tendo em vista que esses critérios são de
origem iluminista (HANSEN, 2002, p. 2) (grifo nosso). Entendendo a Literatura, em seu
termo mais genérico como “a arte das palavras”, estando, por isso, diretamente
relacionada à criatividade, como poderiam os escritos jesuítas serem denominados
“Literários” (nesse sentido) se estam cerceados por padrões de escrita e modelos
prefixados do dizer?
Vale ressaltar aqui a concepção de arte para o período em estudo. O conceito de
arte para “deleitar”, de “arte pela arte” sem um caráter utilitário era de todo desconhecido.
Assim, quando se fala em “arte” de fazer cartas, por exemplo, com relação à produção
epistolográfica da Companhia de Jesus, depreende-se o conceito de arte como “artifício”,
um exercício, uma cópia, um conjunto de instruções passado para outro o que
siginificava, principalmente, algo destituído de naturalidade, espontaneidade e
subjetividade como o foram as obras de arte românticas. Neste sentido, a arte da
carpintaria – por exemplo – não diferia em termos de concepção da arte de fazer cartas,
todas exigiam conhecimento adquirido.
Mesmo sendo aparentemente uma questão de simples nomenclatura, percebemos
que os manuais literários são incoerentes nesse sentido. Nossa proposta é que os textos
produzidos nessa época sejam tomados no sentido original em que foram concebidas e
não propriamente “literatura”, no sentido iluminista do termo, ressaltando que “o
reconhecimento do anacronismo deveria impedir que se continue a universalizar a
particularidade de categorias estéticas e sociológicas e, com isso, deveria levar a rever a
historiografia literária brasileira.” (HANSEN,2006, p. 2)
3.2.2 Espaço insuficiente e abordagem incoerente do conteúdo
Outra incoerência é o espaço destinado à abordagem dessas “representações
discursivas”. São apenas quatro páginas, em sua maioria ocupadas por ilustrações e
gravuras, que não deixam de ser importantes, tendo em vista que muitas obras das artes
plásticas são portadoras de diversos sentidos e, por isso, dignas também de observação e
67
estudo. No entanto, encontramos apenas fragmentos do poema Santa Inês (Cf. Anexo 8),
escrito por Anchieta.
As cartas anchietanas, que são importantes representações a serem analisadas, por
estarem repletas de alegorias, metáforas e padrões inerentes aos gêneros retóricos, tais
como o gênero hagiográfico, são apenas mencionadas sem consideração alguma. Como
nos demonstra o trecho: “Escreveu cartas
, sermões e poesias, peças teatrais (...) em suas
obras quase sempre de inspiração missionária.
” (MAIA, 2002, p. 134) (grifo nosso)
Vale ainda salientar, chamando a atenção para esse trecho, que os escritos
jesuíticos não são “quase sempre”, mas sempre e essencialmente de caráter missionário.
Como já dito anteriormente, a temporalidade no século XVI era concebida pelo
Providencialismo. O aluno, ao se deparar com os textos epistolares, deveria ser
previamente orientado de que a correspondência, bem como toda a produção textual da
Ordem, tinha uma função tríade entre os membros da Companhia de Jesus: incentivar o
ardor missionário, promover a edificação por meio de seu caráter devocional e manter a
coesão de seus membros espalhados pelo mundo.
Além disso, Anchieta não “fez teatro” no sentido de “deleitar”. Na verdade,
produziu autos que, a exemplo das cartas, eram pautados em modelos herdados ainda do
período medieval. Esses autos possuíam o mesmo propósito das epístolas: divulgar a fé
cristã, a ação missionária e a solidificação de imagens santas por meio dos recursos
retóricos. Há de se considerar que a escrituras desses autos rendeu a Anchieta a
designação de “dramaturgo”, com que se consagrou também no discurso hagiográfico e,
consequentemente, nos livros didáticos.
Em outro trecho do livro, encontramos a seguinte proposta lançada ao aluno
leitor:
Imagine qual deveria ter sido a reação dos índios ao ouvirem a
explicação da expulsão de Eva e seu “marido” do Paraíso por terem
comido o fruto proibido. Reflita também sobre a realidade dos silvícolas,
que não tinham a noção de pecado original. De repente alguém lhes
informa que já nasceram com pecado... (MAIA, 2002, p. 135)
Como podemos perceber, são lançados para o aluno-leitor de nível médio
questionamentos de caráter religioso e a até moral sem, no entanto, considerar a
existência de um contexto essencialmente teológico herdado da Idade Média, que
68
fomentava o pensamento e as ações dos homens da península ibérica do século XVI.
Neste sentido, o livro didático estende para toda a Europa a noção de renascimento e
seus ideais, que era restrita à parte do território italiano.
Dizer que os jesuítas e demais colonizadores cometeram atos de violência ao
impor a cultura e a religião européia aos índios, é dizer o óbvio. O que deve ser
considerado, porém, é a visão teocêntrica de história, que fazia com que os colonizadores
vissem a terra recém-descoberta como um campo que precisava ser conquistado para
Deus, conforme a doutrina cristã.
Essa visão favoreceu, nas representações plásticas e discursivas de então, a
atualização do discurso bíblico e a solidificação do gênero hagiográfico. Nas cartas de
Anchieta, exemplo que representa aqui a produção epistolográfica da Companhia de Jesus
(chamada anacronicamente de “literatura” de catequese), é perceptível a construção de um
monumento retórico que esse jesuíta faz a partir de sua própria vida, por meio de imagens
impresas no texto como “o homem santo”, “o mártir”, “o apóstolo do Novo Mundo”, “o
soldado de Cristo” entre outras, conforme nos mostraram as análises feitas anteriormente.
Infelizmente, os critérios acima propostos deixam de ser abordados pelos autores
do material didático em detrimento de questionamentos simplórios e de colocações
“óbvias” de ordem ética, que em nada contribuem para um refazer dos sentidos primeiros
dos discursos e da valorização dos textos coloniais. O máximo que conseguem, é fazer o
aluno perceber que essa “sub-literatura” serve para demonstrar o modo como foram
tratados “os pobres” índios na fase dos “escritos inaugurais” de nossa terra.
3.2.3 Exercícios Simplórios
Como podemos ver no material em análise (Cf. Anexo 8), os exercícios propostos
pelo autor são simplórios e seguem o padrão comum da técnica “recorte - colagem”. Propor
ao aluno de ensino médio – em quem já se espera fomentar a capacidade crítica e reflexiva
ante ao objeto literário – questões do tipo “Quem iniciou a literatura informativa no Brasil?” ou
ordena-lhe “Copie em seu caderno o nome dos autores das seguintes obras ...” , revela ao mesmo
tempo que o autor subjuga o potencial reflexivo do aluno e desconhece a maneira
apropriada de ler os textos do período colonial.
69
Que interesse se desenvolveria, ou melhor, em que contribuiria uma seção de
respostas copiadas direto do texto para a formação crítica do aluno ante a matéria
literária? De certo, o máximo obtido pelo professor em sala de aula seria questões bem
comuns do tipo: “Professor, para que me servirá saber o nome do autor de Diálogos das
grandezas do Brasil?”
Sendo assim, nossa proposta é a elaboração de atividades pautadas na análise das
representações dos discursos do século XVI a partir dos gêneros e dos modos de dizer e
de escrever da época, não deixando de considerar a tríade retórica -teologia – política tão
presente nos textos. O aluno poderia, então, resgatar as imagens e recursos retóricos
construídos por meio de um arranjo textual rico em alegorias e metáforas de toda sorte.
Outro tema que poderia ser ainda abordado nos exercícios é a repetição de discursos
primeiros (no caso o bíblico) para a sedimentação do caráter devocional dos escritos
jesuíticos, propondo ao aluno a percepção e o resgate desses artifícios retóricos. Seria
mais um gênero a ser estudado em sala de aula, na perspectiva da hagiografia. A
abordagem se tornaria interessante se o aluno fosse orientado a perceber que convive
com textos hagiográficos, se levarmos em consideração a religiosidade como fator
preponderante na cultura brasileira.
Recentemente, os meios de divulgação de massa estão veiculando o tema da
canonização de Frei Galvão em ocasião da vinda do Papa Bento para o Brasil, que virá
realizar oficialmente a santificação do frei. Observa-se que as tópicas hagiográficas dos
milagres e exemplos de virtude se repetem nos discursos da mídia, ratificando o que foi
analisado no capítulo anterior com relação ao arranjo textual do discurso hagiográfico: a
predominância da repetição de esteriótipos narrativos que formam um personagem dado.
Situações como essas poderiam ser abordadas em sala de aula, contextualizando as
temáticas do gênero hagiográfico a fim de tornar o estudo das produções quinhentistas
mais concretas para os alunos.
70
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desvincular as cartas jesuíticas, bem como também toda e qualquer representação
discursiva do século XVI da Retórica, da Política e da Teologia é incorrer no anacronismo
literário que, por sua vez, promove a distorção do sentido primeiro, sobre o qual os textos
coloniais foram produzidos. Sendo assim, buscamos nesta dissertação compreender as
produções discursivas da companhia de Jesus de acordo com os pressupostos da época
colonial.
A partir da leitura das cartas de Anchieta, pudemos observar que, amparados em
um modelo retórico – ars dictaminis – os aspectos políticos e teológicos se estabelecem
como um recurso discursivo e gerador de sentidos tais como: a coesão e o fortalecimento
dos membros da Companhia de Jesus, por meio de exemplos de fé e virtude, narrados
nos escritos, a fim de que os interesses da Igreja Católica e da Coroa portuguesa fossem
satisfeitos.
Através do estabelecimento desses interesses, verificamos haver, no arranjo textual
epistolar, a atualização de fatos ocorridos nas narrativas bíblicas, visto ser a mentalidade
do homem do século XVI saturada de um sentido puramente teológico e escatológico.
Sentido este que – respaldado na doutrina cristã do Providencialismo – se vincula à
história e à cultura européias, estendendo às Novas Terras, cuja descoberta foi lida a partir
dessa mesma perspectiva como a oportunidade de estabelecimento de ideais políticos e
religiosos profetizados pelas Escrituras.
Na elaboração de um “exemplo de fé”, Anchieta se vale, na produção de suas
cartas, de uma série de imagens estabelecidas como lugares comuns do gênero hagiográfico,
que serviram para fortalecer a sua própria imagem na historiografia literária brasileira
como um verdadeiro monumento consagrado na colonização do Brasil. Imagens como:
soldado de Cristo, mártir do Novo mundo, homem puro e casto, se estabeleceram por meio de
artifícios retóricos que, sendo provenientes da Hagiografia, tornaram o discurso
anchietano poderoso, no sentido de serem constantemente resgatados no decorrer do
tempo.
Os românticos, então, apropriaram-se desse discurso para respaldar o caráter
“nacionalista” inerente à ideologia romântica. Anos mais tarde – a fim de reconstruir o
prestígio da Ordem ante “o sentimento antijesuítico” (VILAR, 2006) disseminado pela
71
Reforma Pombalina – a imagem de Anchieta foi mais uma vez retomada pela Igreja
Católica, que até hoje, deseja a canonização do beato, a qual “parece ter se transformado
em uma questão de Estado se levarmos em conta o gesto do [então] presidente da
República, Fernando Henrique Cardoso, que em visita ao Papa entregou-lhe uma medalha
do jesuíta, uma convenção que estabelece o desejo do país de ter aquele que figura no
emblema, santificado.” (ibidem, p. 75)
Assim, a imagem retórica de Anchieta como Mártir do Novo Mundo se esvanece, mas
não deixa de ser eterna. Mesmo com a expulsão da companhia das terras brasileiras em
1759, em decorrência da reforma realizada pelo Marquês de Pombal, José de Anchieta
continuou sendo lembrado e respeitado até hoje como o homem virtuoso, o pedagogo, o
intelectual e o missionário incansável, que contribuiu para propagação da educação e da fé
nos anos ferrenhos da colonização da terra Brasil. A partir dessas apropriações é que
deixará sua marca na construção do discurso historiográfico brasileiro.
Podemos também constatar que os diversos discursos epistolares – atribuídos
pelos padrões modernos a Anchieta – não são tão originais como aparentam ser. Muito
dos ditos das cartas tiveram sua origem no discurso bíblico, bem como no discurso do
fundador da Ordem, Santo Inácio de Loyola. Do discurso bíblico, Anchieta se valeu de
textos e de tipos, dentre os quais se destaca o apóstolo Paulo, para construir, no arranjo
textual das epístolas, a figura heróica do santo. Além disso, vale ressaltar que constam,
apenas, treze epístolas no Arquivo Romano da Companhia de Jesus (ARSI) como sendo,
de fato, de autoria anchietana. Isso implica dizer que muitos se apropriaram de seu nome
afim de, amparados em um paradigma de escrita, produzirem outras cartas.
No conjunto epistolar reunido sob a “rubrica” de Anchieta, as cartas aparentam
ser as mesmas por fazerem sempre uso de lugares-comuns inerentes à santidade,
formando imagens indestrutíveis em torno do jesuíta. Sendo assim, reafirmamos que
critérios da estética moderna como originalidade e individualidade autoral não podem ser
atribuídos às produções discursivas de uma época na qual a escrita exercia um caráter
mecânico, pedagógico e pré-determinado, conseqüência de um saber fomentado pelo
critério da semelhança (FOUCAULT, 1999).
No âmbito da práxis, com relação ao ensino de Literatura no Ensino Médio,
ressaltamos que o aluno-leitor deve ter acesso a todo e qualquer gênero textual, destituído
de juízos pré-concebidos ou escalas de valores. Atribuir apenas o rótulo de “literatura
72
sobre o Brasil” às representações discursivas coloniais e, por isso, considerá-la uma
literatura menor – porque mais distante do padrão moderno de literatura – implica em
privar o aluno do contato com uma riqueza de artifícios retóricos tais como as metáforas,
alegorias e topoi presentes nesses textos no momento de sua enunciação.
As representações discursivas do século XVI devem, portanto, ser passíveis de
discussão por representar as formas de leitura e escrita inerentes àquela época. Para que
essa realidade seja possível, os elaboradores dos manuais literários não poderiam deixar de
considerar a dupla normatividade, retórica e teológico-política, que norteia todo e qualquer
escrito da época, inclusive privilegiando essas concepções na exposição e elaboração do
texto didático. Essas considerações evitariam os anacronismos, que insistem em tolher os
reais sentidos dos textos coloniais.
Desse modo, cientes da importância dessas constatações obtidas por nossa
pesquisa, queremos confirmar seu valor em contribuir para uma interpretação mais
coerente dos escritos dos jesuítas evitando, desta forma, as definições de caráter
anacrônico que são atribuídas aos discursos do século XVI e que costumam predominar
nas análises literárias modernas.
73
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77
Anexo 1 – Carta do Pe. Manoel da Nóbrega e carta do Pe. Anchieta
78
79
80
81
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83
84
Anexo 2 – Carta de Anchieta ao Geral Diogo Laínes de 1560
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Anexo 3 – Carta original de Anchieta; carta principal; carta anexo
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106
107
108
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110
Anexo 4 - Referências às Cartas Extraviadas
111
Anexo 5 – Imagem de Anchieta com os índios
112
Anexo 6 – Imagem de Anchieta escrevendo na areia
“Poema à Virgem Maria” – B. Calixto, 1901
113
Anexo 7 – Imagem de Anchieta com Getúlio Vargas
Fonte: A invenção de uma escrita:Anchieta, os jesuítas e suas histórias, de Socorro Vilar
114
Anexo 8 – Capítulo sobre Literatura Quinhentista
115
116
117
118
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
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