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HILDENIA ONIAS DE SOUSA
As vozes da experiência e a experiência das vozes: práticas de
leitura com textos da coleção “Literatura em minha casa”
João Pessoa
2007
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HILDENIA ONIAS DE SOUSA
As vozes da experiência e a experiência das vozes: práticas de
leitura com textos da coleção “Literatura em minha casa”
Dissertação apresentada ao Programa de Pós
– Graduação em Letras da UFPB como
exigência parcial para a obtenção do título
de Mestre em Letras na área de Linguagem
e Ensino.
Orientadora: Profª Dra. Ana Cristina
Marinho Lúcio
Universidade Federal da Paraíba
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
João Pessoa, junho de 2007
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BANCA EXAMINADORA
Profª. Drª Ana Cristina Marinho Lúcio (UFPB)
(Orientadora)
Profª Drª Maria Marta dos Santos Silva Nóbrega (UFCG)
(Examinadora externa)
Profª Drª Maria Ester Vieira de Sousa (UFPB)
(Examinadora interna)
Prof. Dr. José Hélder Alves Pinheiro (UFCG – PPGL)
(Suplente)
Profª. Dra. Márcia Tavares Silva (UFRN)
(Suplente)
A Deus, minha força e meu socorro,
presente em todos os momentos de minha
vida.
AGRADECIMENTOS
À Professora Dra. Ana Cristina Marinho Lúcio, pela paciência, dedicação e apoio;
Ao prof. Dr. Hélder Pinheiro pelas significativas contribuições e sugestões neste trabalho;
Aos meus pais: Hildo Onias de Sousa e Maria das Graças Araújo Sousa, pelo exemplo de
vida que são para mim;
Aos meus irmãos, cunhados e sobrinhos por serem pessoas com as quais posso contar
sempre;
À amiga de todas as horas Lúcia Costa, que junto à sua família ofereceu-me moradia em
João Pessoa, dando-me total apoio e cooperação para a realização deste Mestrado;
À amiga Sandra Regina e ao seu esposo Tevan por me ajudarem no período mais difícil
desse Mestrado;
À amiga Marta (Bá), pelas palavras de encorajamento e ajuda na digitação de textos;
A Claud Kirmayr, pelos valiosos presentes de livros que tanto me serviram nessa pesquisa;
Ao amigo – irmão Josivaldo Custódio da Silva pela verdadeira e sincera amizade;
A Washington Onias Alves, pela prontidão com que sempre me recebeu em sua casa
quando precisei de ajuda;
Ao amigo Elmano Menezes, pela disponibilidade em me ajudar neste trabalho;
À Escola Estadual de Ensino Fundamental João da Mata (corpo diretivo, professores e
funcionários), por permitir a realização da nossa pesquisa de campo;
Ao diretor da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Mons. Vicente Freitas,
Prof. Carlos Antônio Pontes Gomes, por me emprestar os livros da coleção Literatura em
minha casa de que precisei para realizar esta pesquisa;
A todos que, ao longo desse período, foram instrumentos de Deus na minha vida, meu
especial muito obrigada!
RESUMO
A leitura dos textos dos livros da coleção Literatura em minha casa revela-se uma prática
favorável à formação do aluno leitor. A presença da coleção nas escolas públicas do Brasil
permitiu não só ao aluno, mas também ao professor ter um contato direto com textos
literários de qualidade estética. Na Escola Estadual de Ensino Fundamental João da Mata
(Pombal-PB), os livros da coleção Literatura em minha casa “fizeram a diferença”, visto
que antes da chegada desses livros, não havia um material de leitura literária de que o
aluno pudesse dispor. Durante a pesquisa de campo, observou-se que o aluno, diferente da
concepção que diretor e professores têm, é um leitor. Ele é capaz de fazer inferências sobre
o que lê, de trazer suas experiências de leitura para os textos. Comprovou-se a partir de
uma experiência de leitura de contos em sala de aula, realizada com alunos da 8ª serie, que
há uma boa relação do aluno com o livro, enquanto suporte de leitura. A concepção de
leitura que tais alunos têm dialoga com as modernas discussões teóricas acerca do tema.
Esses alunos se apropriam das leituras por eles realizadas, não ficam nos limites das
palavras escritas, defendem seus pontos de vista e se posicionam diante da leitura de modo
a conferir sentidos ao texto. Percebeu-se, ao final da pesquisa, que o professor precisa
rever sua concepção a respeito de leitura/leitor/livro e que isso só acontecerá quando ele se
dispuser a pensar as suas práticas e sua história de leitura, quando for capaz de dividir suas
experiências de leitura com os alunos. O título As vozes da experiência e a experiência das
vozes: práticas de leitura com textos da coleção “Literatura em minha casa” revela que a
leitura dos textos já existia na escola antes da realização desta pesquisa. Isso é confirmado
através das falas do diretor, da professora, da responsável pela sala de leitura, dos alunos.
Quando se refere às experiência das vozes, esse título remete à prática de leitura realizada
com os alunos pela pesquisadora. Ou seja, àquilo que eles disseram da leitura, inferiram e
extrapolaram do que leram.
PALAVRAS-CHAVE: leitura, leitor, experiências de leitura, coleção Literatura em minha
casa.
ABSTRACT
The reading of the texts of books of the collection Literature in my house shows one
practical favorable one to the formation of the reading pupil. The presence of the collection
in the public schools of Brazil not only allowed the pupil, but also to the teacher to have a
direct contact with literary texts of aesthetic quality. In the State School of Basic Education
João da Mata (Pombal-PB), the books of the collection Literature in my house "had made
the difference", since before the arrival of these books, it did not have a material of literary
reading of that the pupil could make use. During the field research, it was observed that the
pupil, different of the conception that managing and professors has, is a reader. It is
capable to make inferences on what he reads, to bring its experiences of reading for the
texts. Serie proved from an experience of story reading in classroom, carried through with
pupils of 8ª, that it has a good relation of the pupil with the book, while has supported of
reading. The conception of reading that such pupils have dialogues with the modern
theoretical quarrels concerning the subject. These pupils if appropriate of the readings for
carried through them, are not in the limits of the written words, defend its points of view
and if they ahead locate of the reading in order to confer sensible to the text. One
perceived, to the end of the research, that the necessary professor to review its conception
regarding reading/reader/book and that this will only happen when it to make use itself to
think its practical and its history of reading, when will be capable to divide its experiences
of reading with the pupils. The heading the voices of the experience and the experience of
the voices: practical of reading with texts of the collection "Literature in my house"
discloses that the reading of the texts already existed in the school before the
accomplishment of this research. This is confirmed through says them of the director, the
teacher, the responsible one for the reading room, of the pupils. When it is mentioned to
the experience of the voices, this heading sends to practical of reading carried through with
the pupils for the researcher. Or either, to that they had said of the reading, they had
inferred and they surpassed of that had read.
KEY-WORDS: reading, reader, experiences of reading, collection Literature in my house.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Escola Estadual de Ensino Fundamental João da Mata
Figura 2 – Escada que dá acesso à sala de leitura; e cozinha da Escola Estadual de Ensino
Fundamental João da Mata
Figura 3 – Livros da coleção Literatura em minha casa – 4ª série
Figura 4 – Livros da coleção Literatura em minha casa – 8ª série
Figura 5 – Capa do livro Deixa que eu conto – Conto e Crônica – 8ª série
Figura 6 – Capa do livro O Novo Manifesto antologia de Conto e Crônica – 8ª série
Figura 7 – Capa do livro A Descoberta do Amor em Prosa – Crônica e Conto – 8ª série
Figura 8 – Alunos com a pesquisadora na sala de leitura (momento de discussão do conto
A moça tecelã, de Marina Colasanti
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 11
CAPÍTULO I ....................................................................................................................... 14
1 ALGUMAS CONCEPÇÕES DE LEITURA .................................................................. 14
2 A FORMAÇÃO DO LEITOR ......................................................................................... 18
2.1 A formação do leitor: o hábito de ler faz o leitor?........................................................ 18
2.2 Os incentivos governamentais na formação de leitores ................................................ 20
2.3 A concepção de leitura do MEC na LMC: uma leitura de alguns textos de apresentação
da coleção ............................................................................................................................ 25
CAPÍTULO II ...................................................................................................................... 37
PRÁTICAS DE LEITURA NA ESCOLA JOÃO DA MATA – UM RELATO DE
CAMPO ............................................................................................................................... 37
1 Considerações gerais sobre a pesquisa de campo ............................................................ 37
2 O diretor e os livros da coleção LMC: uma postura em discussão................................... 45
3 A professora de português: relação aluno/sala de leitura ................................................. 50
4 A escola e a formação do leitor: o lugar da leitura e o lugar dos livros ........................... 56
5 A relação dos alunos com a leitura: uma discussão de dados .......................................... 60
CAPÍTULO III .................................................................................................................... 71
UMA PROPOSTA DE LEITURA COM LIVROS DE CONTOS DA COLEÇÃO LMC . 71
1 Apresentação dos livros escolhidos .................................................................................. 71
2 Leitura Literária na Escola: por uma metodologia de formação do leitor através da
coleção LMC ....................................................................................................................... 77
3 Relato e discussão da experiência realizada .................................................................... 87
CONCLUSÃO ................................................................................................................... 108
REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 112
ANEXOS ........................................................................................................................... 118
Anexo I .............................................................................................................................118
Anexo II.............................................................................................................................119
Anexo III............................................................................................................................125
Anexo IV............................................................................................................................129
Anexo V.............................................................................................................................133
Anexo VI............................................................................................................................141
Anexo VII...........................................................................................................................153
Anexo VIII.........................................................................................................................171
11
INTRODUÇÃO
A leitura do texto literário na escola tem sido objeto de pesquisas e tema de
discussões acadêmicas. Mesmo assim, as dificuldades de se trabalhar esse tipo de texto em
sala de aula permanecem. Muitos professores de Literatura e de Língua Portuguesa que,
seja dito de passagem, são os mais pressionados a incentivar o aluno a ler, têm apresentado
insatisfações nas questões pertinentes aos trabalhos com tais textos. A preocupação incide
sobre o desejo de promover a leitura de livros literários contribuindo, dessa forma, para
que os alunos se tornem leitores desse tipo de texto, em especial, das obras que estão no
cânone da literatura brasileira.
O MEC, desde 1997, criou um programa de incentivo à leitura, contendo seis
ações do PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola), a saber: Literatura em minha
casa – 4ª série; Literatura em minha casa – 8ª série; Palavra da Gente – Educação de
Jovens e Adultos; Biblioteca Escolar; Biblioteca do professor e Casa da leitura. Conforme
o FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), o programa objetiva
promover o incentivo ao hábito da leitura e o acesso dos alunos, professores e comunidade
em geral à cultura
1
. O PNBE, responsabilidade do FNDE, é administrado com recursos
financeiros oriundos do Orçamento Geral da União e da arrecadação do salário-educação.
Esse programa de incentivo à leitura é composto de: antologias poéticas brasileiras;
antologia de contos brasileiros; antologia de crônicas, novelas ou romances brasileiros e
estrangeiros, adaptados ou não; obras clássicas da literatura universal, traduzidas ou
adaptadas; peças teatrais brasileiras ou estrangeiras; obras ou antologias de textos de
tradição popular brasileira, em prosa ou verso; ensaios ou reportagens sobre um aspecto da
realidade brasileira; biografias ou relatos de viagens.
O nosso estudo investigou a circulação e recepção
2
dos livros da coleção
Literatura em minha casa – 8ª série e, como sugestão para o trabalho com tais textos,
propusemos estratégias de leitura com alguns desses livros em uma escola pública da
cidade de Pombal-PB. Tais estratégias foram construídas junto com a professora de
Português da 8ª série, Escola “João da Mata”. Em todas as fases da pesquisa buscamos a
1
Disponível em: <www.fnde.gov.br.> Acesso em: 18 de fevereiro de 2005.
2
A idéia de recepção neste trabalho está ligada ao resultado da circulação dos livros da coleção Literatura em
minha casa – 8ª série.
12
releitura de textos teóricos pertinentes ao nosso corpus, além de recorrermos a consultas a
trabalhos similares e experiências de pesquisa já realizadas com a coleção Literatura em
minha casa, as quais pudessem contribuir com o nosso trabalho.
O nosso trabalho de 18 anos como professora dos ensinos fundamental e médio
foi fator relevante para motivar a realização da presente pesquisa. Ao longo desses anos,
temos observado as dificuldades de alunos e professores com relação ao fenômeno da
leitura, sobretudo a leitura do texto literário. Grande parte dos professores atribui o
fracasso do aluno à falta de leitura. Entretanto, esses mesmos professores não conseguem
fazer com que o aluno se torne um leitor assíduo, especialmente quando se trata do texto
literário. Talvez não consigam por não serem, eles próprios, leitores do texto literário. Com
isso não queremos dizer que o professor seja o responsável, por excelência, pelos
problemas de leitura existentes na escola.
Percebemos que o aluno traz para a escola experiências de literatura e de leitura
que independem do estabelecido pelo currículo escolar. O papel da escola, pois, seria o de
acolher essas experiências de leitura e, a partir daí, relacioná-las com a vivência de mundo
do aluno, inserindo-o na leitura de textos de conteúdo que a escola considere mais
significativo. Nesse contexto, colocamos a leitura do texto literário como um mecanismo
capaz de atuar na formação do sujeito.
A escola com a qual trabalhamos dispõe de obras da coleção Literatura em
minha casa recebidas do MEC. Trabalhamos com duas turmas de 8ª séries da Escola
Estadual “João da Mata”. Elegemos a Escola Estadual “João da Mata” por ser a única
instituição estadual de ensino na cidade de Pombal que contempla todo o ensino
fundamental.
Observando o contato dos professores com os livros da coleção Literatura em
minha casa, logo nos primeiros anos de distribuição, pareceu-nos haver uma relação de
encantamento e estranhamento por parte dos mesmos. Encantamento quando pegavam os
livros, olhavam e viam a riqueza da seleção dos textos; estranhamento quando pareciam
não saber o que fazer com eles. Questionamentos do tipo: como trabalhar esses livros tão
bons? Trazemos os alunos à biblioteca, à sala de leitura? Levamos alguns volumes para a
sala e lemos com os alunos? Mas o que fazer com essa leitura? Essas questões nos
motivaram a realizar este estudo.
13
Os objetivos desta pesquisa são investigar como ocorre a circulação e a
recepção da coleção Literatura em minha casa numa 8ª série da escola João da Mata, de
Pombal-PB; como os alunos se apropriam dessas leituras. A nossa pesquisa se iniciou com
entrevistas visando obter um diagnóstico da escola campo, com relação à prática de leitura
dos livros da coleção Literatura em minha casa. Fixamos também como objetivo a
elaboração e aplicação de uma proposta de trabalho com alguns livros de contos da
coleção. Acreditamos que a construção de estratégias de leitura pode contribuir para o
trabalho do professor com esses livros, além de ajudar na efetivação de práticas de leitura
com o texto literário.
Não há como conceber a leitura dos livros da coleção Literatura em minha casa
ignorando o processo de escolarização, pedagogização e didatização de que fala Magda
Soares (In: EVANGELISTA et. al., 2003) por que passam as leituras na escola. O que
pretendemos com a elaboração de propostas de leitura com alguns desses livros foi tornar
essa escolarização mais adequada, a fim de que alunos e professores possam ir encontrando
caminhos mais prazerosos com a leitura do texto literário presente na coleção Literatura
em minha casa.
Três capítulos constituem o corpo deste trabalho. No primeiro, fizemos uma
discussão sobre as concepções de leitura, com base nos estudos de Roland Barthes, Michel
de Certeau, Roger Chartier e outros. Acreditamos que, para que se chegasse à discussão
dos dados coletados na pesquisa e à elaboração e execução de estratégias de leitura, era
imprescindível ter bem claras as modernas concepções sobre a leitura. No segundo
capítulo, realizamos a discussão dos dados da pesquisa, com o objetivo de discorrer sobre
as concepções de leitura de alunos, professora de português, diretor e responsável pela sala
de leitura. No terceiro capítulo, apresentamos sugestões que consideramos importantes no
trabalho com os textos da coleção. Também nesse capítulo fizemos o relato da experiência
de leitura realizada com alunos da 8ª série, ano 2007, da Escola “João da Mata”.
É importante pontuar que a coleta de dados foi realizada em 2006. Por questões
que escaparam do nosso controle, como os vários dias sem aulas no segundo semestre,
cumprimento de determinado conteúdo pela professora, não nos foram disponibilizadas as
aulas de que precisávamos para realizar a experiência. Tal fato justifica a execução da
citada experiência no ano de 2007 com outra turma de 8ª série que não fora aquela na qual
aplicamos os questionários.
14
CAPÍTULO I
1 ALGUMAS CONCEPÇÕES DE LEITURA
Convém iniciar essa discussão trazendo o seguinte texto de Barthes (1988, p.
40): “Nunca lhe aconteceu, ao ler um livro, interromper com freqüência a leitura, não por
desinteresse, mas, ao contrário, por afluxo de idéias, excitação, associação? Numa palavra,
nunca lhe aconteceu ler levantando a cabeça?”
O questionamento de Roland Barthes sinaliza para uma discussão sobre leitura
que renderá muitas páginas publicadas na última década do século XX e anos seguintes. O
tema leitura ganha alargadas proporções no discurso acadêmico, dando margem a
problemas de pesquisa, cujas respostas são contribuições de peso para uma nova
concepção a respeito de leitor/leitura. Concepção essa em que o leitor passa a ser visto
como aquele que confere existência ao texto.
Barthes foi um dos primeiros autores a discorrer sobre a invisibilidade do leitor
por parte dos que estudam a leitura. Para ele, a maioria das teorias críticas têm em foco a
preocupação de explicar “por que o autor escreve sua obra, segundo que pulsões, que
injunções, que limites” (BARTHES, 1998, p. 41). Esse teórico apresenta a leitura como um
texto que nós escrevemos em nós mesmos no momento em que estamos lendo. A leitura é
para ele escritura.
Independente das regras de composição do texto escrito, herdadas da retórica, a
leitura é uma digressão. Ela dispersa, fazendo o leitor sair da lógica do texto para fazer
associações a uma lógica de símbolos na qual se inscrevem “outras idéias, outras imagens,
outras significações” (BARTHES, 1988, p. 41). Essa digressão pela qual o leitor envereda,
ainda que possa ser encarada como uma “transgressão” está submetida a regras, que por
sua vez estão ligadas a uma lógica milenar da narrativa, ela é um momento em que o leitor
dialoga com o texto:
Quero dizer que toda leitura deriva de formas transindividuais: as associações
geradas pela letra do texto (onde está essa letra?) nunca são, o que quer que se
faça, anárquicas; elas sempre são tomadas (extraídas e inseridas) dentro de certos
códigos, certas línguas, certas listas de estereótipos. A leitura mais subjetiva que
se possa imaginar nunca passa de um jogo conduzido a partir de certas regras. De
15
onde vêm essas regras? Não do autor, por certo, que não faz mais do que aplicá-
las à sua moda (que pode ser genial, como em Balzac, por exemplo); visíveis
muito aquém dele, essas regras vêm de uma lógica milenar da narrativa, de uma
forma simbólica que nos constitui antes do nascimento, desse imenso espaço
cultural de que a nossa pessoa (de autor, de leitor) não é mais do que uma
passagem. (BARTHES, 1988, p. 42)
Para escrever a leitura
1
Barthes lança mão de sua experiência com a leitura do
texto Sarracine, novela de Balzac. Como ele próprio afirma: “tentei filmar em câmara
lenta a leitura de Sarracine.” A partir dessa vivência com o texto escrito e com o que se
sobrepõe a ele no momento em que a leitura acontece, (outras idéias, associações...),
Barthes realiza uma discussão muito pertinente.
A experiência com aquilo que ele chama de texto leitura
2
“não é nem
totalmente uma análise e nem totalmente uma imagem” (p. 41). É, portanto, o simples
texto que é formulado entre a parada que se dá na leitura do texto escrito e a volta a ele,
depois de satisfeita a necessidade de se “levantar a cabeça”. Todavia, ainda que aconteçam
essas evasões, o texto instaura uma ordem; ele é regido por regras, que se confrontam a
todo o momento com a liberdade do leitor.
Para Jouve (2002, p. 18-19) a leitura, como um processo cognitivo, demanda
esforço e abstração:
Depois que o leitor percebe e decifra os signos ele tenta entender do que se trata.
A conversão das palavras e grupos de palavras em elementos de significação
supõe um importante esforço de abstração. Essa compreensão pode ser mínima
dizendo respeito apenas à ação em curso. O leitor, totalmente preocupado em
chegar ao fim, concentra-se então no encaminhamento dos fatos: a atividade
cognitiva serve-lhe para progredir rapidamente na intriga. É o que geralmente se
produz durante a leitura dos romances policiais ou de aventura. Quando os textos
são mais complexos, o leitor pode, ao contrário, sacrificar a progressão em favor
da interpretação: detendo-se sobre este ou aquele texto, procura entender todas as
suas implicações [...].
Muitas vezes quando “levantamos a cabeça”, no momento da leitura, não é
simplesmente para formular um outro texto a nosso bel prazer, mas para “forçar” a
compressão do que se lê.
1
Essa terminologia é usada por Barthes (1988), como título de uma das secções de O Rumor da Língua.
2
Para Barthes texto-leitura é aquele que escrevemos em nós quando, no momento da leitura, levantamos a
cabeça. Isso corresponderia à organização de outros textos, que dialogam com aquele que estamos lendo,
outras lembranças que estão fora do texto enquanto materialidade.
16
Há alguns anos tornou-se recorrente um discurso entre os professores da educação
básica sobre a leitura: ela é o meio de o aluno conseguir produzir textos, escrever bem
3
, ou
seja, quem lê, escreve bem.
A leitura e a escrita são atividades distintas e assim devem ser consideradas,
ainda que esses fenômenos se cruzem. Por mais que alguém leia diversos textos em
diversos suportes, não se pode garantir uma competência de escrita do aluno ou de
qualquer estudioso sem que o sujeito se dedique ao trabalho da escrita como um processo,
no qual há um fazer e um refazer constantes. O que vai permitir a produção de um texto
qualificado como bom não é a quantidade de leituras que alguém fez, mas a intensidade
com que se dedica ao trabalho de produção, entendido como um processo que não se dá
repentinamente. Ao contrário, vai progredindo à medida que se investe esforço e paciência.
Além do mais, todo texto que alguém elabora, seja aluno, professor, escritor é
passível de revisão, de ajustes, seja qual for o nível intelectual do produtor, a modalidade
de texto ou gênero literário ou discursivo. É preciso não perder de vista que existe um
leitor inscrito no texto que é produzido e a recepção obedece a uma programação do
próprio texto (JOUVE, 2002).
Para Certeau (1994, p. 262-263) “pode-se muitas vezes substituir o binômio
produção consumo por seu equivalente revelador geral, o binômio escrita-leitura”, uma vez
que se tem uma sociedade sempre mais escrita, cujas transformações em suas estruturas
são feitas a partir de modelos escritos. Esse lugar de poder do texto escrito é marca da
modernidade. Até certa altura do século XIX as capacidades de ler e escrever eram
atividades separadas. Para Certeau, “ler é peregrinar por um sistema imposto (o do texto,
análogo à ordem construída de uma cidade ou de um supermercado)”. A hierarquização da
leitura e da escrita feita pelo funcionamento técnico-social da cultura dos nossos dias
confere uma definição muito limitada do “ler” e do “escrever”. Ler é, portanto, “receber o
texto de outrem sem marcar aí o seu lugar, sem refazê-lo e Escrever é produzir o texto” (p.
264). Portanto a atividade escriturística é colocada em condição superior à atividade de
leitura. Certeau (1994) faz uma crítica a essa passividade do leitor. Nas análises das
3
Como professora dos ensinos fundamental e médio, tenho escutado muito essa afirmação de colegas
professores de Português e de outras disciplinas, sobretudo quando se trata da produção escrita do aluno nas
respostas que são dadas às questões da prova e/ou nas redações produzidas pelo aluno com a orientação do
professor.
17
práticas de leitura ao longo da história, vê-se o leitor subvertendo a ordem, modificando os
objetos de leitura. O leitor, portanto, não é passivo.
Chartier (1999) corrobora a discussão realizada por Certeau (1994) quando afirma
que “cada leitor é confrontado por um conjunto de constrangimentos e regras”. Em
contrapartida, sublinha a rebeldia da leitura como algo que foge ao controle do autor, do
livreiro – editor, do comentador, entidades que procuram controlar a produção do sentido
dos textos escritos e publicados. Esse discurso também é acentuado em Certeau (1994). Os
caminhos que o leitor percorre, subvertendo as imposições, são, na visão de Chartier,
(1999, p. 7) infinitos; portanto, incontroláveis:
Por um lado, cada leitor é confrontado por todo um conjunto de
constrangimentos e regras. O autor, o livreiro editor, o comentador, o censor,
todos pensam em controlar mais de perto a produção do sentido, fazendo com
que os textos escritos, publicados, glosados ou autorizados por eles sejam
compreendidos, sem qualquer variação possível, à luz de sua vontade prescritiva.
Por outro lado, a leitura é, por definição, rebelde e vadia. Os artifícios de que
lançam mão os leitores para obter livros proibidos, ler nas entrelinhas, e
subverter as lições impostas são infinitos.
São os deslocamentos que a recepção faz que instauram esse caráter
incontrolável nas práticas de leitura. E por mais que a obra esteja investida de uma ordem,
a do mercado editorial, por exemplo, essa investidura não é onipotente, não tem o poder de
neutralizar a liberdade que o leitor tem na sua relação com o texto. Nesse sentido, percebe-
se o quanto a figura do leitor precisa ser levada em conta quando se estuda a leitura.
Barthes, Certeau e Chatier têm discursos semelhantes quando o assunto é
leitura/leitor/livro. Eles marcam o lugar do leitor numa mesma perspectiva: o leitor é
aquele que consegue subverter a ordem imposta pelo texto e percorrer outros caminhos.
É lugar-comum na escola a circulação do discurso segundo o qual o aluno não
4
. Essa idéia de estereotipar o aluno como um não-leitor está ligada à concepção que se
tem de leitura. Dizer que o aluno não lê é descartar todas as leituras que ele faz em outros
suportes, que não o livro. É descartar todas as leituras consideradas pelo discurso
pedagógico como de pouco valor cultural. Chatier (1998, p. 103-104) chama essas leituras
de leitura selvagens e afirma ser possível utilizá-las como uma via para a formação do
leitor:
4
Esse discurso é recorrente entre os professores da educação básica.
18
Aqueles que são considerados não-leitores lêem, mas lêem coisas diferentes
daquilo que o cânone escolar define como uma leitura legítima. O problema não
é tanto o de considerar como não-leitura essas leituras selvagens que se ligam a
objetos escritos de fraca legitimidade cultural, mas é o de tentar apoiar-se sobre
essas práticas incontroladas e disseminadas para conduzir esses leitores, pela
escola mas também sem dúvida por múltiplas outras vias a encontrar outras
leituras. É preciso utilizar aquilo que a norma escolar rejeita como um suporte
para dar acesso à leitura na sua plenitude, isto é, ao encontro de textos densos e
mais capazes de transformar a visão do mundo, as maneiras de sentir e de pensar.
É um desafio que se lança ao professor formador de leitor: aproveitar as
práticas de leitura do aluno para inseri-lo num contexto de leituras de qualidade estética.
Nesse aspecto, o texto literário seria a melhor porta de entrada para se encaminhar o aluno,
uma vez que pode contribuir para desenvolvimento da capacidade de pensar-se como
sujeito, modificador da sua realidade. Para que o professor possa enfrentar esse desafio é
indispensável que tenha claras as concepções de leitura e reveja certos conceitos que
limitam a idéia do que é leitura e do papel do leitor. A questão da formação do leitor é um
dos pontos que precisa estar bem definido na prática do professor formador de leitor.
2 A FORMAÇÃO DO LEITOR
2.1 A formação do leitor: o hábito de ler faz o leitor?
A expressão hábito de ler é muito usada no discurso pedagógico sobre leitura.
Parece que para resolver o problema de aprendizagem o aluno teria que incluir a leitura
entre os seus atos cotidianos. O hábito de ler pode ser entendido como as operações que se
processam no indivíduo (desejo, curiosidade, necessidade do lúdico etc.) habituando-o à
convivência com o escrito, de modo a constituir, nesse contexto, um costume, até certo
ponto vital para o sujeito. Já o processo de formação do leitor é mais complexo e envolve
contingências sociais que o subordinam à escola, fazendo dessa instituição o lugar
privilegiado para essa prática. É importante pontuar que quando se fala em hábito de ler, a
idéia mais precisa que se encontra é a de um ledor. O conceito de ledor é discutido por
Verbena Maria Rocha Cordeiro no artigo “Cenas de leitura” (In: TURCHI e SILVA,
19
2006). O ledor pode ser entendido como aquele indivíduo que lê muito, mas não acrescenta
nada ao que lê, ou acrescenta muito pouco.
Entre criar o hábito de ler
5
e o processo de formar leitor existem lacunas que
precisam ser preenchidas. Quando se forma leitor é imprescindível marcar o lugar dele no
texto. A formação do leitor implica interação com o texto o que não necessariamente
acontecerá com aquele que tem a leitura como um hábito.
Uma pesquisa voltada para a compreensão do processo de formação do leitor
deve contemplar uma visibilidade muito mais acentuada desse leitor, trazendo-o para o
bojo das discussões sobre leitura, como o elemento que dá vida ao texto, que inscreve os
sentidos no texto lido.
A experiência de formação do indivíduo enquanto leitor precisa passar pela
relação do sujeito com o mundo, cujo cerne implica um processo de internalização que
deve ser feito pelo leitor de forma consciente. Vera Teixeira Aguiar em seu artigo “Leitura
Literária e Escola” (In: EVANGELISTA, 2003) faz uma discussão sobre esse processo de
internalização. A relação sujeito/mundo é indispensável para tal formação. Ele (o sujeito)
precisa estar a sós com o texto e se distinguir como um ser individual que interioriza o que
lê. Assim a leitura torna-se essencialmente uma reflexão. Reflexão essa que só é possível
quando o sujeito, “afastado” do grupo busca uma experiência pessoal com o livro, com o
texto que lê. Essa experiência é norteada pelas condições individuais e sociais desse
sujeito. O processo de internalização para se efetivar pressupõe a posse individual do livro,
a existência de um lugar onde o leitor possa dialogar, interagir com o texto. O próprio
leitor em formação sente a necessidade de buscar um espaço privado. Convém lembrar que
o processo de interiorização, de particularização com o livro se dá paulatinamente: a
criança evolui do mítico, do mágico para se descobrir interiormente, porém ainda numa
proporção em que ela não distingue a relação nítida do eu com o mundo. A sua vivência de
leitor é centrada no lúdico, no livro enquanto objeto que possui uma forma, exala um
cheiro, é perceptível pela sua cor. O processo de formação do leitor é, pois, uma
construção que acontece levando-se em conta a vida toda do sujeito.
A personalidade da criança é plasmada pela reiteração do jogo simbólico que
ela faz com a leitura. Quando imita o adulto que se utiliza do livro para ler, ela está
construindo a interiorização do processo de formação enquanto indivíduo. É
5
O uso da expressão “hábito de ler” permeou a formação dos professores nos anos 80 e permeia ainda hoje.
20
imprescindível, pois, que esse período seja marcado pela presença do livro, aqui tido como
experiência lúdica, isso já caracteriza a leitura. Assim a criança irá conseguir passar para a
fase de leitor consciente, que se sente impelido à busca desse lugar solitário que lhe vai
permitir, com amadurecimento, a interação com o mundo.
Se a expressão hábito de ler for considerada como a prática de leitura dentro e
fora da escola, numa dimensão que envolva prazer, interesse, necessidade de aprender
sobre algo, não há como esse hábito se distanciar da formação do leitor
2.2 Os incentivos governamentais na formação de leitores
O MEC criou em 1997 o PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola), um
programa de incentivo à leitura. Esse programa, de responsabilidade do FNDE (Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação), é administrado com recursos financeiros
oriundos do Orçamento Geral da União e da arrecadação do salário-educação. Veja-se o
texto a seguir.
O Ministério da Educação vem, desde 1997, incentivando o hábito da leitura e o
acesso à cultura junto aos alunos, professores e a comunidade em geral mediante
a execução do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). O programa
consiste na aquisição e distribuição de obras de literatura brasileira e estrangeira,
infanto-juvenis, de pesquisa, de referência além de outros materiais de apoio a
professores e aluno, como atlas, globos e mapas
6
.
Como se pode constatar em primeira instância, no texto, o MEC vem desde
1997 incentivando o hábito da leitura e o acesso à cultura. Tem-se, nesse aspecto, a idéia
de que é necessário se adquirir o hábito de ler e que para tanto se precisa de livros. A noção
de leitura e de leitor esta diretamente ligada ao livro Quando se fala em hábito de ler, a
terminologia parece evocar as práticas de leituras daqueles sujeitos que têm o costume e/ou
a mania de lêem todo texto escrito, que encontram: o jornal que encontrou sobre a mesa da
vizinha, o papelzinho amassado que alguém deixou cair no chão, o folder, a receita de
bolo, a bula do remédio. Portanto, pode-se ter um sujeito muito habituado a ler e não
necessariamente um leitor capaz de alcançar as redes de significações de um texto.
6
Disponível em < www.fnde.gov.br > Acesso em 05 de maio de 2007.
21
Outra idéia veiculada por esse texto é “o acesso à cultura” (alunos, professores,
comunidade geral) por meio dos livros do programa (PNBE) o que, sem dúvida, é um
avanço. Hoje, quando se chega a uma biblioteca de uma escola pública, cujos segmentos
funcionem com certa harmonia, é possível se ter um “alumbramento”, se considerarmos as
épocas passadas em que o aluno precisava comprar o livro para estudar, ainda que suas
condições financeiras fossem das mais difíceis.
Com uma história de dez anos, o PNBE tem contribuído para melhorar a
qualidade da escola pública brasileira no que diz respeito a um processo de democratização
da leitura, através do acesso a livros. Porém, o simples acesso não garante a formação do
leitor.
Em 1998, houve a distribuição de acervos variados contendo obras literárias, de
referências, de pesquisas e materiais de apoio. Foram, desta feita, contemplados alunos das
séries finais do ensino fundamental de 20 mil escolas públicas brasileiras. Já em 1999,
foram atendidas 36 mil escolas públicas, dessa vez, com a distribuição de acervos de
literatura infanto-juvenil, cujos beneficiados foram alunos das séries iniciais. Em 2001,
2002 e 2003, o foco da distribuição dos livros do PNBE foi o aluno.
Foram realizadas diferentes ações com vistas a atingir públicos específicos.
Assim, foram distribuídos livros mediante seis ações, a saber: Literatura em minha casa –
4ª série; Literatura em minha casa – 8ª série; Palavra da Gente – Educação de Jovens e
Adultos; Biblioteca escolar, Biblioteca do professor e Casa da Leitura. O presente trabalho
discorrerá sobre a ação Literatura em minha. Assim constituída: Literatura em minha
casa – 4ª série – consistiu na distribuição de 1 coleção com 5 volumes de obras de
literatura e informação para cada aluno matriculado na 4ª série do ensino fundamental das
escolas públicas; 10 coleções para a escola com mais de dez alunos matriculados na 4ª
série. Literatura em minha casa – 8ª série consistiu na distribuição de 1 coleção com 4
volumes para cada aluno, 10 coleções para a escola com mais de 10 alunos e que ofereça a
8ª série. Convém frisar que as coleções, tanto de 4ª como de 8ª séries, são para o uso e
propriedade dos alunos, ainda que saibamos que, na realidade, nem todos os alunos
receberam os livros.
A distribuição dos livros foi feita com base no Censo escolar, de modo que um
dos principais requisitos para que as escolas recebessem os acervos foi responder
22
corretamente ao censo. Exemplificando: a distribuição das coleções em 2005 teve como
base as informações, os números de 2004.
A Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação, com o PNBE, tem
articulado uma política de formação de leitores (alunos e professores: de escolas públicas
brasileiras):
Incentivar nas crianças e nos professores o gosto pela leitura e pelo saber é o
principal objetivo do Ministério da Educação ao propor ações que acompanham
uma política de Formação de leitores que democratize o acesso de alunos e
professores à cultura e à informação, contribuindo dessa forma para o fomento à
prática da leitura e para a formação de professores e alunos leitores
7
Traçando um histórico do PNBE, o site do MEC veicula o seguinte texto:
Em 1997, foi instituído no MEC o Programa Nacional Biblioteca da Escola
(PNBE), com o objetivo de democratizar, o acesso de alunos e professores à
cultura, à informação e aos conhecimentos socialmente produzidos ao longo da
história da humanidade. Desde então são distribuídas acervos formados por obras
de referências de literatura e de apoio a formação de professores, às escolas de
ensino fundamental. Essa foi a contribuição do MEC para o fomento à prática de
leitura. Mas a mera distribuição de livros para criar e compor uma biblioteca na
escola se mostrou pouco eficaz para atingir o objetivo de formar professores e
alunos leitores. Hoje, além da distribuição de livros às escolas, o MEC busca
implementar uma PFL
8
, em uma parceria que valoriza a autonomia dos Estados e
Municípios, buscando assim reverter a tendência de restrição ao acesso aos livros
e à leitura como bem cultural privilegiado a limitadas parcelas da população. As
idéias e conceitos básicos, que norteiam esta política foram apresentados pelo
MEC em dez, seminários regionais realizados em 2005, para discussão com os
sistemas de ensino, eles geraram a publicação: Política de Formação de Leitores,
em três volumes: Por uma política de formação de leitores; Biblioteca na
Escola; Dicionários em sala aula.
Vê-se, pois, que há dez anos o PNBE do Ministério da Educação vem tentando
aproximar o aluno e o professor da escola pública do livro enquanto um objeto de
manipulação que promove o encontro “com os conhecimentos socialmente produzidos ao
longo da história da humanidade”. Foi o primeiro passo para democratizar o acesso ao
livro a uma maior parcela da população.
Os livros chegaram a muitas escolas. Formaram-se bibliotecas. Porém,
professores e alunos continuaram com uma relação mal resolvida com os livros. Muitos
7
Disponível em <www.mec.gov.br>. Acesso em 5 de maio de 2007.
8
PLF – Politica de Formações de Leitores.
23
deles, aqueles destinados à formação do professor, até hoje continuam intactos sem marcas
de leitura ou folheamento. É o caso do livro “Estética da Criação Verbal de Bakhtin. Além
de outros encontrados nas bibliotecas das duas maiores escolas públicas de Pombal – PB.
Quando o MEC busca implementar a Política de Formação de Leitores percebe-
se que houve o entendimento de que distribuir livros por si só não garante a formação do
leitor nem promove democratização de leitura. Faz-se necessário que mediadora do
processo, no caso, a escola, principalmente através do professor, conheça o material e,
acima de tudo, saiba utilizá-lo com propriedade.
A coleção LMC
9
apresenta uma seleção de textos que contempla os principais
gêneros literários: poesia, conto e crônica, romance, novela, teatro. Esses textos favorecem
a formação do aluno-leitor e do professor-leitor. O professor pode sondar as preferências
dos alunos, trabalhar com essas preferências e inserir outros gêneros com os quais o aluno
não tenha muito contato: talvez a poesia, o teatro.
Percebe-se que “por trás” de obras de tão boa qualidade, sob todos os aspectos
(seleção de textos, processo editorial, controle de qualidade, etc.), existem escritores e
pesquisadores afinados com os estudos sobre leitura nos últimos anos, a exemplo de Ana
Maria Machado, Ruth Rocha, Marisa Lajolo, entre tantos outros. E também afinados com
“uma história da leitura”, uma teoria da leitura, sobretudo no que concerne ao estudo das
práticas, há uma intenção de evidenciar a figura do leitor, apontando-o como o eixo do
processo, de uma prática “por definição rebelde e vadia” (CHARTIER, 1999, p. 7).
A concepção de leitura presente nos livros da coleção LMC é, em geral aquela
que valoriza o leitor. Há um desejo de encantar, de seduzir esse leitor, e fazê-lo gostar dos
textos dos livros; e, por consegüinte, do livro de seus autores. Nesse âmbito, pode-se
constatar que há influência na formação do gosto pela leitura literária e há intenção de
formar leitores na escola, a partir de textos literários de qualidade externa. Ainda que se
trate de uma leitura de textos já selecionados, o lugar do leitor confirma as teorias
apresentadas por autores como Barthes (1988), Certeau (1994), Chartier (1998). Esses
teóricos defendem um lugar de indiscutível importância para o leitor em relação ao livro e
às práticas de leitura; e a leitura, por sua vez, estaria ligada à concepção de arte centrada no
sujeito leitor.
9
Disponível em www.mec.gov.br. Acesso em 05 de maio de 2007.
10
A partir desse momento usaremos a sigla LMC para nos referimos à coleção “Literatura em minha casa”.
24
A proposta de incentivo à leitura do MEC através da coleção LMC é um plano
ambicioso. Entretanto, a realidade das escolas diante da concepção de leitura deixa muito a
dever. A idéia de cobrança do que se lê ainda tem muita força no discurso escolar. O
professor tem que fazer alguma atividade com a leitura que o aluno fez do livro da coleção
LMC
10
.
O MEC cuidou da seleção dos textos, da qualidade editorial dos livros, porém
teria sido interessante que, além dos livros, tivesse sido levado às escolas discussões sobre
a circulação e a recepção desses livros. Não se pode esquecer que tudo o que entra na
escola passa por um processo de didatização, de pedagogização (SOARES, In:
EVANGELISTA et. al., 2003). O que deve ser combatido é o excesso dessa didatização,
dessa pedagogização. Elaborar propostas de trabalho com tais livros, levando em conta a
participação do professor seria uma forma de se encaminhar um processo de formação de
leitor dentro da escola. A aplicação de tais propostas com os alunos pode oferecer
subsídios para que o professor, junto a eles, encontre outros caminhos para crescer no
processo de formação do leitor. Assim os livros da coleção LMC produziriam resultados
mais efetivos e num universo maior de alunos.
Um número considerável de estudos críticos sobre a leitura tem sido feito por
pesquisadores ao longo das últimas décadas. Tais estudos, no entanto, não conseguem dar
conta do universo que envolve as experiências que são vivenciadas na relação sujeito-texto
no momento em que a leitura acontece. Porque enquanto caçador (CERTEAU, apud
CHARTIER, 1999) o leitor vai atribuir sentidos ao texto e talvez não sejam previsto pelo
autor. Vai imprimir uma maneira de ler que é sua e não, necessariamente, aquela leitura
programada pelo texto (JOUVE, 2002).
Aquilo que pode ser chamado de uma Teoria da leitura existe efetivamente no
rol das publicações no Brasil. O que talvez não aconteça, de fato, ou apareça com timidez,
é o contato do professor da educação básica com tais teorias. Por isso, a existência de
tantas dificuldades, que não raro coloca o professor numa relação de conflito com a leitura.
Veja-se o que diz Leal (In: EVANGELISTA, 2003, p. 263-264):
Não é desconhecido por ninguém que o formador de leitor, dadas as diferentes
circunstâncias, dentre elas as históricas, sociais, econômicas e culturais, se
10
A pesquisadora comprovou isso no decorrer da presente pesquisa, no período em que passou
acompanhando o trabalho dos professores de Português das 8
as
séries da escola-campo.
25
encontra fragilizado em seu conhecimento sobre o próprio objeto de ensino. E
mais: muitas vezes domina muito pouco, ele próprio, as competências de leitura
que pretende ensinar. Sabemos, esperançosamente, que hoje, mais do que nunca,
é possível lançar mão de contribuições de diferentes teorias e de resultados de
estudos e investigações em diferentes áreas para se repensar o ensino da leitura.
Então, a pergunta se desloca: é possível ensinar a ler sem se dar conta do que é a
leitura, sem se dar conta do que é ensinar a ler? Entre aprender a ler e ensinar ler
há distâncias e necessidades a serem preenchidas.
Estudar sobre concepções de leitura seria o primeiro passo para o professor
elaborar propostas para trabalhar com os alunos, sobretudo a leitura do texto literário.
Conscientizar-se de que a leitura é uma atividade complexa, que envolve o indivíduo em
todas as suas dimensões: social, cultural, religiosa, afetiva, econômica, e, mais ainda,
corporal, é estar abrindo uma porta para um projeto de leitura que contemple a excelência
do leitor diante do texto.
O aluno precisa ser visto como um leitor e como tal considerado nas suas
digressões durante o ato de ler. As interrupções, por desinteresse ou por afluxo de outras
idéias, de associações, não devem ser vistas como um ato de irresponsabilidade.
2.3 A concepção de leitura do MEC na LMC: uma leitura de alguns textos de
apresentação da coleção
Será feita a seguir a discussão de três textos de apresentação da coleção LMC a
fim de se ver a concepção de leitura veiculada por eles. O primeiro é de responsabilidade
do MEC – está na maioria dos livros da 8ª série da coleção; o segundo, de Marisa Lajolo –
introduz o livro Historinhas pescadas: e o terceiro, de Ana Maria Machado – introduz o
livro Cinco estrelas. Os textos de Marisa Lajolo e Ana Maria Machado foram sugeridos na
qualificação deste trabalho pela professora Márcia Tavares (UFRN), pois, a princípio,
trabalhamos somente com o texto A chance de saber mais. Vejamos:
A chance de saber mais
O mundo parece ser feito apenas de coisas que a gente vê nele. Mas há outras
que não vemos, embora existam. São as coisas que lemos. Elas estão escondidas
no meio das letras. É preciso ler para que elas apareçam diretamente em nossas
cabeças. Se não lemos, todas essas coisas que estão guardadas nos livros não
aparecem para nós. Quem não lê, só vê uma parte das coisas do mundo. E não
26
consegue conhecer tudo. Muitas vezes, no meio de uma conversa, ouvimos falar
de uma pessoa ou de uma história que o amigo conhece de leitura. Quem não leu
ficou de fora. Por isso, estamos distribuindo esses livros. Queremos que você
conheça o que não está na sua frente, mas está dentro dos livros. Você vai poder
viajar sem se levantar da cadeira. Conhecer gente muito interessante sem
precisar conviver com ela, vai rir e até chorar com histórias de pessoas que só
existem nos livros. Não jogue fora a chance de saber mais. Não fique por fora.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
O texto acima, direcionado ao aluno, leitor-alvo das obras, traduz uma política
de incentivo à leitura de livros. Essa afirmativa remete à credibilidade do suporte livro e
ostenta o poder do texto escrito. Há no texto uma abertura à reflexão do leitor e à incitação
do desejo de construir o conhecimento por meio da leitura dos livros. O conceito de leitura
está ligado à atribuição de sentidos e ainda à idéia de prazer. O leitor, por sua vez, vai
desenvolver a sua prática, seus modos de dizer e de ler o texto. Assim, muitas “coisas” que
estão sem vida nos livros somente podem aparecer quando movidas pelo sujeito leitor:
“queremos que você conheça o que não está na sua frente, mas está dentro dos livros”.
Não se trata de uma leitura que suscita cobrança, ao contrário, trata-se da leitura
libertadora, de ler para se incluir. A importância que é dada ao livro como suporte, no texto
do MEC, dialoga com o pensamento de Roger Chartier (1999). Para ele, os livros são
objetos nos quais as formas podem comandar a imposição de sentido ao texto que
carregam e podem ainda interferir nos usos e nas apropriações a que os textos estejam
sujeitos. Desse modo, “as obras, os discursos, só existem quando se tornam realidades
físicas, inscritas sobre as páginas de um livro, transmitidas por uma voz que lê ou narra,
declamadas num palco de teatro” (CHARTIER, 1999 p. 8). O suporte livro confere poder,
carrega uma idéia de superioridade em relação aos outros suportes.
A leitura nos livros da coleção LMC é apresentada pelo MEC como um meio de
colaboração para a inclusão social, para que os jovens possam ascender socialmente. É
possível inferir isso quando percebemos a conjuntura das outras ações de incentivo à
leitura do Ministério da Educação, através do PNDE. Há livros para os alunos de 4ª série e
de 8ª série, para a Educação de Jovens e Adultos, Biblioteca para a escola, Livros para o
professor e livros para o uso de toda a comunidade do município. Entretanto, é preciso não
perder de vista a realidade. E a realidade é que não houve uma efetivação desse programa
27
de forma satisfatória. Será que todos os alunos inseridos no perfil do MEC foram
contemplados com os livros? As escolas recebem os livros na proporção dos alunos que
têm matriculados na 4ª série e na 8ª série? Essas questões passam obviamente pela
responsabilidade da escola, não só do MEC.
O texto do MEC imprime a proposta de uma leitura “descomprometida”
conferindo a esse leitor um lugar privilegiado, pois permite uma certa liberdade para estar
a sós com o texto, podendo assim construir conceitos, viver digressões, enfim, estar na sua
autoridade de leitor, cujo valor recai sobre o poder de dar vida ao texto, que até então não
passa de um escrito inerte. Ainda com relação ao texto do MEC, é pertinente comentar
algumas passagens consideradas relevantes para a compreensão da leitura do texto literário
no suporte livro. Vejamos:
Quem não lê, só vê uma parte das coisas do mundo e não consegue conhecer
tudo.
Indaga-se: quem lê livros conhece, então, tudo? O próprio texto que propõe
inclusão através da leitura de livros, veicula também a idéia de que lendo livros o indivíduo
conhecerá tudo não é possível se conhecer tudo, lendo livros ou não.
Imaginemos, pois, um aluno de 8ª série que pega um volume da coleção e vai
ler um determinado texto que ele escolher pelo título. A sua leitura estará mediada por sua
história individual, social, religiosa, econômica. Ele já tem um conhecimento prévio que
lhe incita a escolha de determinado texto. Por isso, dizer que a leitura de livros vai nos
fazer conhecer tudo é uma proposta ilusória pelo menos sob dois aspectos: primeiro,
conseguir apreender os sentidos de um texto e fazê-lo dialogar conosco já é uma pretensão,
considerando que interpretar um texto corresponde a vê-lo de diferentes modos; segundo, o
advérbio “tudo” gera no leitor, mesmo o mais experiente – seja um aluno de 8ª série ou não
– um peso, uma responsabilidade que não se é capaz de dar conta: conhecer tudo.
Vejamos outra passagem:
Quem não leu ficou por fora. Por isso estamos distribuindo esses livros.
Está aí nitidamente explícita a proposta do MEC: a inclusão por meio da leitura
de livros. É, portanto, para que o aluno conheça os belos textos do cânone brasileiro e
universal que esses livros foram distribuídos. Inegavelmente, uma proposta que procura
amenizar as distâncias do aluno da escola pública do cânone literário.
28
A literatura é realmente um direito que todos devem ter, e esse direito deveria
ser assegurado tanto quanto os outros como moradia, vestuário, alimentação. Sobre isso
Candido (1989, p. 112) reflete:
Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e
quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado [...]
Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da
ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece
corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja
satisfação constitui um direito.
Nesse aspecto, defendido por Candido (1989), a literatura entraria com um
caráter de humanização. No artigo A literatura e a formação homem (1972) ele apresenta
algumas variações dessa função humanizadora. Abreu (2006, p. 83) questiona essa forma
de ver a literatura:
Uma definição de Literatura como fonte de humanização não se sustenta diante
do fato de que há gente muito boa que nunca leu um livro e gente péssima que
vive de livro na mão. Menos grave mas também importante é o fato de que a
transformação e a humanização dos sujeitos podem ocorrer – e freqüentemente
ocorrem – quando se ler um best seller. Ou seja, essa definição também não se
sustenta já que, por meio dela, não se pode diferenciar a Grande Literatura das
literaturas.
Atribuir, pois, à literatura a função de humanizar, de tornar as pessoas melhores
é desconsiderar o que tão facilmente pode ser comprovado na reflexão de Márcia Abreu.
Realmente existem muitas pessoas que são leitoras da Grande Literatura e não
necessariamente são pessoas boas. Às vezes, são até cruéis no trato com as outras.
Isso, porém, não exime os órgãos governamentais de oferecer o cânone literário
às escolas públicas. O acesso a esses textos deve ser propiciado pelo governo aos alunos e
professores das escolas públicas. E isso o MEC vem articulando, com a política de
formação de leitores.
Outra passagem do texto do MEC diz:
Você vai poder viajar sem se levantar da cadeira [...] vai rir e até chorar com a
história de pessoas que só existem nos livros.
A leitura não deixa de ser uma viagem, mas não qualquer viagem. É muito
diferente, por exemplo, a viagem que se faz durante a leitura e a viagem que se faz a um
lugar real historiado num texto de ficção. A viagem que fazemos durante a leitura é
29
metafórica e rápida, às vezes em questão de segundos. É sempre uma viagem no tempo, é
um momento semelhante ao sono: “a situação do sujeito que lê aparenta-se com a do
sonhador” (JOUVE, 2002, p. 115).
Mas o que dizer daquelas narrativas que nos deixam absortos? Sobre elas a
economia do nosso trabalho permite-nos afirmar que se trata, ainda assim, de uma viagem
no tempo, de um reencontro mais desejado com o nosso passado, com a nossa infância. A
viagem nesse universo de fabulação é, portanto, um encontro com nós mesmos, com o
nosso passado, com o nosso “eu” criança: “a leitura que, outrora ofereceu para o nosso
imaginário um universo sem fim, ressuscita esse passado cada vez que, nostálgicos, lemos
uma história”. (JOUVE, 2002, p. 117)
A idéia de viajar na leitura não traduz a concepção do prazer pelo prazer.
Quantas viagens pela leitura não nos fazem sofrer! Além do mais, o leitor crítico
(COELHO, 2000) deve ser alertado sobre alguns discursos que reportam a leitura a um
prazer inebriante. As pessoas não têm, necessariamente, que gostar de ler e sentir enorme
prazer no que lêem. O prazer que nos dão algumas leituras passa exatamente pelo caminho
do desprazer que outras leituras proporcionaram. Dessa forma, para escolher o que se quer
ler com prazer, muitas vezes é preciso ler textos dos quais não se gosta. Senão, como se vai
justificar escolhas, justificar o abandono da leitura de um livro, por exemplo? Alcançar
essa maturidade é tarefa de um leitor crítico, cuja discussão deve ser instigada no aluno,
principalmente naquele que está nas séries finais do ensino fundamental. Ademais, a
questão do prazer é mediada por diversas situações e, em se tratando da leitura do texto
literário na escola, o prazer que tantos postulam como requisito para formação do leitor
não deve constituir a maior preocupação. Se o professor é um leitor, se tem uma concepção
clara de leitor/livro/leitura, ele terá condições de realizar um trabalho de formação do
leitor.
Outro aspecto do tópico que se está comentando sobre o texto do MEC é o fato
de afirmar que se “vai rir e até chorar com a história de pessoas que só existem nos livros”.
Usando a liberdade de leitor, pode-se completar um vazio (ISER, in: LIMA, 2002) que o
próprio texto deixa com esta afirmativa: história de pessoas que só existem nos livros da
coleção LMC. Trata-se de um apelo convincente para se ler tais livros e para se conceber a
idéia de representação.
30
Nelly Novaes Coelho (2000) lembra que “a literatura é um microcosmo da vida
real”. Portanto, as personagens de uma narrativa podem dizer muito de nós mesmos e do
outro.
Vejamos o texto de Marisa Lajolo que apresenta o livro Historinhas pescadas
CARTAS AOS LEITORES
Olá meninas, alô meninos, oi todo mundo!
Este é um livro de histórias. Muitas histórias, de tamanhos variados, cada uma
muito diferente da outra, para você ler, para você se divertir, rir, emocionar-se,
descobrir coisas novas. Você sabe como é a literatura, não é mesmo? Aquela
mágica das palavras que se derramam das páginas dos livros e entram pela nossa
vida para todo o sempre...Nestas HISTORINHAS PESCADAS, dez pequenas
narrativas levam você pelos caminhos da imaginação para regiões e situações
incríveis. Inventadas por diferentes escritores brasileiros, que viveram em
diferentes épocas e em diferentes regiões do Brasil, todas elas têm algo de muito
importante para lhe contar.
Você já ouviu dizer que quem conta um conto aumenta um ponto? Eu já ouvi e
concordo que as histórias sempre sofrem modificações quando são contadas por
diferentes pessoas. Concordo com a idéia, mas acho que não é apenas quem
conta um conto que aumenta um ponto. Quem lê e quem ouve um conto também
aumenta um ponto. Você sabe por que penso assim? Porque um conto não acaba
no ponto final. No ponto final, acaba a leitura, mas não acaba a história. A
história dura muito mais, às vezes a vida inteira. A história fica rodando na
cabeça de quem a lê ou a escuta, lembrando a gente de coisas que a gente já
viveu, de pessoas que a gente conhece, de situações pelas quais a gente passou.
Por isso histórias são tão importantes. Histórias são muito importantes na vida
das pessoas e na vida dos povos. Todos os povos têm histórias que contam as
coisas que todos precisam saber: como começou o mundo, como surgiram os
seres humanos, o que acontece depois da morte, como é que as pessoas devem
tratar umas às outras... As histórias também acompanham nossa vida, desde
pequenos. Você não se lembra das histórias que contavam quando você era bem
pequenininho ou bem pequenininha, e que começavam sempre com era uma
vez? Agora, com este belo livro para inaugurar sua biblioteca, você começa a
fazer parte da grande corrente de contadores de histórias: lendo ou contando as
histórias aqui reunidas para outras pessoas – seus pais, seus irmãos, seus amigos,
seus colegas –, você vai fazer, na prática, com que elas não terminem no ponto
final. Ou seja, você vai ler um conto e aumentar um ponto!
Professora Marisa
A carta da professora Marisa aos leitores é muito convidativa. Começar um
livro de textos literários com um texto-carta foi muito oportuno. Esse gênero textual
carrega uma certa aura de instigação à curiosidade, uma vez que a carta é geralmente
destinada a alguém individualmente. Apesar da saudação ter mais de um vocativo, o
menino e a menina leitores do livro vão se sentir importantes porque a carta é para eles.
31
A saudação é muito espontânea e entusiasta. O entusiasmo que o texto carrega é
sustentado do começo ao fim: “Este é um livro de histórias”. Eis ai uma frase que abre o
diálogo com o leitor de forma a lhe “pegar” pela “ponto fraco”. Quem não gosta de
histórias? Elas fazem parte da nossa vida. E segue: “Muitas histórias, de tamanhos
variados”. A questão do tamanho do texto é muito importante na formação do leitor. Se o
aluno pode contar com a opção de textos pequenos em meio a outros textos mais extensos,
ele pode escolher começar a ler o livro pelos textos menores e daí passar para os outros de
maior fôlego.
A forma de recepção dos textos do livro é induzida na carta: “para você ler,
para você se divertir, rir, emocionar-se”. E isso é bom. Assim o aluno pode estar mais livre
para construir suas representações de leitura.
O tom dialógico é marca no texto de Lajolo. O título do livro Historinhas
pescadas remete à brevidade dos textos; e também induz a forma de recepção, pois,
geralmente, para as crianças, historinhas são quase sempre historinhas boas. O texto
corrobora também a idéia da leitura como fruição do imaginário, conforme Jouve (2002, p.
109):
Ler, pois, é uma viagem, uma entrada insólita em outra dimensão que, na maioria
das vezes, enriquece a experiência: o leitor que, num primeiro tempo, deixa a
realidade para um universo ficctício, num segundo tempo volta ao real, nutrido
da ficção.
Outra frase do texto merece discussão:
“Quem lê e quem ouve um conto também aumenta um ponto”.
É importante pontuar que o texto veicula a idéia de que a literatura não está fora
da vida. Ela é, portanto, vida. A autora parte de um provérbio popular “Quem conta um
conto aumenta um ponto”, para mostrar que as histórias contadas, lidas e ouvidas são
marcadas pela recepção dos contadores/leitores/ouvintes. Além do mais, o texto em foco
mostra a relação entre leitura e história. A leitura (o texto físico, materializado) e a história
(que tem a ver com as relações que se vai fazendo, durante a vida, com o que se leu). Ela
evidencia o caráter de durabilidade do que ela chama de história, em detrimento da leitura.
Ou seja, do texto impresso: “No ponto final, acaba a leitura, mas não acaba a história. A
história dura muito mais, às vezes a vida inteira”.
Entendendo-se a leitura como o texto materializado em palavras, sinais de
pontuação, etc., e história como aquilo que fica “rodando” na lembrança de quem lê ou
32
escuta, vê-se que tais concepções da leitura e do escrito põem em discussão o que diz
Certeau (apud. CHARTIER, 1999, p.11): “A leitura não se protege contra o desgaste do
tempo (nós nos esquecemos e nós a esquecemos); ela pouco ou nada conserva de suas
aquisições e cada lugar por onde ela passa é a repetição do paraíso perdido”.
Se a recepção da leitura de um texto literário foi vivenciada como um processo
afetivo e simbólico, não há como essa leitura não se conservar no sujeito leitor, na sua vida,
na sua memória.
O paraíso, então, irá se repetir a cada vez que se traz a leitura de volta, porque
na verdade esse paraíso nunca foi perdido. Jouve (2002, p. 19) diz:
O charme da leitura provém em grande parte das emoções q ue ela suscita. Se a
recepção do texto recorre às capacidades reflexivas do leitor, influi igualmente –
talvez, sobretudo – sobre sua afetividade. As emoções estão de fato na base do
princípio de identificação, motor essencial da leitura de ficção.
Com relação ao processo simbólico, afirma:
O sentido que se tira da leitura (reagindo em face da história, dos argumentos
propostos, do jogo entre os pontos de vista) vai se instalar imediatamente no
contexto cultural onde cada leitor evolui. Toda leitura interage com a cultura e os
esquemas dominantes de um meio e de uma época. A leitura afirma sua
dimensão simbólica agindo nos modelos do imaginário coletivo quer os recuse
quer os aceite. (p. 22).
Além de ser um processo afetivo, a leitura atua no simbólico, à medida que
temos que considerar os textos literários ou não, mediante suas condições de produção. É
preciso que se tenha uma memória de leitura para que se possa entender um texto. Faz-se
necessário ver que outros discursos atravessam o texto.
O texto de Lajolo traz uma consideração que merece especial atenção: “Agora
com este belo livro para inaugurar sua biblioteca, você começa a fazer parte da grande
corrente de contadores de historias”. O uso da expressão “inaugurar sua biblioteca” sugere
a idéia de que o aluno não tem nenhum contato com o suporte livro. O livro que ele vai
receber será, pois, o livro inaugural. Trata-se de uma postura generalizada; pois no que
pese a realidade, o aluno tem contato com o suporte livro. Talvez o que o aluno não tenha é
33
a posse de uma diversidade de livros, de uma biblioteca para ele. Mas, o contato com o
suporte livro o aluno tem.
A autora conclui a carta com uma certeza que deveria ser analisada pelo
professor e transformada numa proposta para a formação do leitor:
Agora, com este belo livro para inaugurar sua biblioteca, você começa a fazer
parte da grande corrente de contadores de histórias: lendo ou contando as
histórias aqui reunidas para outras pessoas – seus pais, seus irmãos, seus amigos,
seus colegas –, você vai fazer, na prática, com que elas não terminem no ponto
final. Ou seja, você vai ler um conto e aumentar um ponto!
Esqueçamos a primeira frase do texto, já discutida, e atente-se para a questão de
se formar além de leitores, também contadores de histórias. Vê-se nessa perspectiva uma
idéia que não pode ser descartada. Tanto para o aluno quanto para o professor, o ato de
contar as histórias dos livros de conto da coleção pode render um trabalho pertinente na
formação do leitor.
Vejamos o terceiro texto de apresentação da coleção LMC:
POESIA: SEMENTE DE TODA A LITERATURA
Ana Maria Machado
Tudo indica que a literatura começou em forma de poesia. Muito antes de existir
a escrita. Os estudiosos se baseiam principalmente em três argumentos para
defender essa idéia. Em primeiro lugar, porque em geral os exemplos mais
antigos de literatura em todos os povos o de poemas. Em segundo, porque, em
matéria de linguagem, se pode considerar que a história de cada ser humano
repete um pouco o que aconteceu com toda a humanidade – e a primeira ligação
das crianças com o que se poderia considerar uso literário da linguagem tem a
ver com poesia. Além disso, é bem lógico imaginar que, se ainda não existia
escrita e o autor de uma obra queria que ela não fosse esquecida, tinha de
procurar um jeito de fazer com que fosse mais leve aprende-la de cor. E é claro
que é muito mais fácil decorar poesia do que prosa.
Assim, os artistas da palavra, quando queriam expressar o que estavam sentindo
(em poemas líricos), ou então impressionar os outros contando histórias que
imaginavam ou grandes feitos de heróis (em poemas chamados de épicos),
tratavam de usar a linguagem de uma forma um pouco diferente de seu uso de
todos os dias, e apelar para os recursos da poesia. [...]. Assim, os artistas da
palavra, quando queriam expressar que estavam sentindo (em poemas líricos), ou
então impressionar os outros contando histórias que imaginavam ou grandes
feitos de heróis (em poemas chamados de épicos), tratavam de usar a linguagem
de uma forma um pouco diferente de seu uso de todos os dias, e apelar para os
recursos da poesia. Que recursos são esses? Muitos são formais, quer dizer, têm
a ver com a forma de escrever ou arrumar a linguagem na hora de falar ou
escrever. É o caso da rima, por exemplo, quando se usam palavras que terminam
de forma parecida, quase sempre no final dos versos - aliás, é bom lembrar que
34
verso é o nome de cada linha num poema. Ou, ainda, pode ser o caso das
aliterações e assonâncias, em que a repetição de sons iguais ou semelhantes em
várias palavras faz com que elas funcionem como um eco umas das outras, de
um modo bonito. Ou da métrica - o número de sílabas de cada linha ou verso
obedecendo a regras. E também da acentuação tônica, ou seja, os intervalos entre
sílabas fortes e fracas. Todos esses recursos ajudam a marcar um ritmo, como se
fosse uma bateria numa música, batendo com certa regularidade. Com esse
ritmo, se cria uma beleza "muito especial, além de ficar mais fácil lembrar o
texto. Outro recurso formal muito empregado na poesia são as repetições. Podem
ser uma espécie de estribilho ou refrão, como se usa muito em letra de música.
Mas também podem ser paralelismos, em que se repete alguma coisa com
pequenas diferenças. Nesta antologia temos um belo exemplo desse recurso, de
Gonçalves Dias, na "Canção do exílio". Mas poesia não é só aquilo que rima,
tem sílabas contadas, musicalidade ou um esquema definido de composição.
Grande parte da poesia moderna, por exemplo, é bem mais livre em relação a
todos esses procedimentos. E nem por isso deixa de ser poesia. É que não é só a
forma que importa, mas principalmente a maneira de ver as coisas. Um modo
diferente do comum. Como se o mundo estivesse sendo visto pela primeira vez,
de um modo novo. Nesse sentido, os poetas muitas vezes fazem a gente se
lembrar de crianças brincando e descobrindo as coisas. Como se a própria
linguagem fosse um brinquedo e as palavras pudessem ser reviradas pelo avesso.
O modo poético de ver o mundo, deslumbrado e inventador de novidades, acaba
muitas vezes comparando uma coisa com outra. A gente bem que pode imaginar
como isso foi acontecendo com os primeiros poetas. Imaginemos, por exemplo,
que um homem primitivo sai para caçar, vai parar num lugar da floresta em que
nunca tiinha estado e lá descansa debaixo de uma árvore desconhecida, toda
coberta de flores alaranjadas e avermelhadas. Ele pode ficar olhando, achar
lindo, e pensar que aquelas cores lembram um pôr-do-sol. Então, volta para a
tribo e, de noite, conversando com os amigos, faz uma comparação e conta aos
outros: Vi uma árvore colorida como o céu quando o sol se põe. Mas, no dia
seguinte, resolve convidar alguém para ir com ele até lá, e chama para ver de
perto a árvore do pôr-do-sol. Nesse caso, ele já não está mais comparando e
dizendo que é parecido, ou que uma coisa é como a outra, mas já usa uma
imagem, utilizando a linguagem de um modo muito mais direto e econômico.
Porém, ainda pode ir mais além e, depois, contar uma história ou fazer uma
canção em que diga que se sentou à sombra do pôr-do-sol, ou que o sol pousou
no alto da floresta para descansar antes de ir embora. Ou se desviar ainda mais e
dizer que a fogueira, em torno da qual todos se reúnem à noite, é uma flor do sol
brotada do chão. E, nesses casos, nosso amigo só estará falando da impressão
que a planta lhe deu, mas já nem se preocupa mais com aquele objeto real que
ele viu - a árvore nem está sendo mencionada de forma direta na frase. Desse
modo, ele já está em pleno território poético, já deixou para trás a comparação e
a imagem e está usando um outro recurso da linguagem que se chama metáfora.
Quer dizer, transportou o sentido de um objeto concreto para um simbólico e só
se ocupa do símbolo. Para muita gente, esse mecanismo imaginário da metáfora
é a verdadeira marca registrada da poesia. Alguém que consiga criar boas
metáforas já tem meio caminho andado para ser um poeta. Não precisa nem
rimar e contar as sílabas - se viver numa época que não faça questão dessas
coisas. Mas nem sempre se aceitou toda essa liberdade em poesia. Por isso, vale
a pena a gente situar um pouco os nossos poetas escolhidos, e tentar entender
como eram as idéias sobre literatura no tempo em que eles viveram.
O texto de Ana Maria Machado é uma aula de literatura que só termina com a
última página do livro. Uma aula para crianças, iniciantes na leitura do texto poético; e
35
adultos, professores, (por que não?) que desejem uma sugestão para ensinar literatura
conquistando o aluno e influenciando o seu gosto por essa arte. Vê-se que o texto passa
pela teoria e pela história da literatura. Pela teoria, quando ela discute sobre o estudo do
verso, por exemplo. Pela história, quando ela traça o percurso histórico da poesia e também
quando organiza os autores dos livros nos respectivos momentos de suas produções. A
autora aproxima o aluno-leitor do gênero literário poesia e ainda traz a esse aluno a
possibilidade de se pensar e de se tornar um poeta: “Alguém que consiga criar boas
metáforas já tem meio caminho andado para ser um poeta. Não precisa nem rimar e contar
as sílabas – se viver numa época que não faça questão dessas coisas”. O aluno encontrou aí
uma porta que se lhe abriu para a sua formação de leitor. Ele é influenciado não só a gostar
de poesias, mas também a escrever poemas. E o professor, por sua vez, encontrou uma
reflexão na sua prática de formador de leitor.
O título do texto é bastante sugestivo. Ela utiliza a imagem da semente
aplicando-a à poesia. Considerando os objetivos do MEC com a coleção LMC, que é
democratizar a leitura, promover o acesso a livros, enfim, formar leitores, a idéia da poesia
como uma semente foi uma construção oportuna da autora do texto. A poesia é realmente
uma semente da literatura e da formação do leitor. Isso deve ser pensado pela escola.
Sabe-se que os livros da coleção LMC privilegiam o aluno. O destinatário
desses livros é, por excelência, o aluno. Todavia há que se considerar que as escolas
também recebem as coleções para o uso da comunidade e, nesse âmbito, o professor está
incluído como leitor das obras. Embora se saiba que a apresentação do texto dirige-se às
crianças leitoras, não há como eximir da recepção do texto o professor, também leitor real.
Há momentos no texto em que se nota o tom de formação de professor, a autora parece se
dirigir ao professor: “Os poetas muitas vezes fazem a gente se lembrar de crianças
brincando e descobrindo as coisas. Como a própria linguagem fosse um brinquedo e as
palavras pudessem ser reviradas pelo avesso”. Esse trecho pode levar o professor a pensar
sua história de leitura, enquanto leitor de poesia e como formador de alunos leitores de
poesia.
Antes do texto de apresentação de Ana Maria Machado, existe um outro texto
que faz uma apresentação direcionada ao aluno. Esse texto além de apresentar a coleção ao
aluno, apresenta também a escritora Ana Maria Machado e sua importância para a
Literatura Infantil:
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Esta é uma coleção de livros para você ler na escola – e levar para casa também.
Sabe aquela brincadeira que prende a atenção e faz a gente se esquecer da hora?
Quando o escritor é bom, acontece a mesma coisa: o livro encanta e envolve a
gente. Os autores que você vai ler formam um time de craques da nossa
literatura. Pela primeira vez estão juntos, especialmente convocados para esta
seleção. Você vai rir e se emocionar com os personagens que o gaúcho Luis
Fernando Veríssimo é capaz de inventar. O paulista José Roberto Torero estréia
na literatura para crianças e jovens, a carioca Sylvia Orthof prova que sabe
escrever como poucos. Chico Buarque vai convencer você de que poesia pode
ser fácil e gostoso de ler, e o mineiro Carlos Drummond de Andrade resgata
memórias da infância – reinando como o mestre que sempre foi. É a escritora
Ana Maria Machado quem apresenta este time de estrelas. Para você entender
direitinho quem são estes autores, e conhecer melhor cada livro desta coleção,
ela escreveu textos de abertura e notas explicativas. Se esta seleção fosse de
futebol, seria difícil escolher um técnico melhor. Ana ganhou em 2001 o mais
importante prêmio literário nacional, e um ano antes recebeu a Medalha Hans
Christian Andersen, considerada o Nobel da Literatura Infantil. Prepare-se para
uma viagem pela literatura com o prazer de quem vai começar um jogo com
amigos queridos. E se levar algum livro para casa, seja generoso: pode emprestar
para seus pais, desde que eles devolvam depois.
Esse texto introduz o de Ana Maria Machado e tem mais a ver com os outros
que foram analisados aqui como textos de apresentação da coleção. O tom é bem parecido
com o texto de Lajolo. Percebe-se claramente que eles são dirigidos aos alunos. Texto de
Lajolo: “Olá meninos, alô, meninos, oi todo mundo!” “Este é um livro de histórias (...)
para você ler, para você se divertir, rir, emocionar-se descobrir coisas novas”. Texto A
chance de saber mais: “Queremos que você conheça o que não está na sua frente, mas está
dentro dos livros. Você vai poder viajar sem se levantar da cadeira...” Texto introdutório ao
texto de Ana Maria Machado: “Esta é uma coleção de livros para você ler na escola e levar
para casa também”. Percebe-se que os três textos estão claramente dirigidos aos alunos,
veiculando a idéia de leitura ligada ao prazer, à viagem, enfim.
Defendemos o princípio de que para a existência, na escola, de um projeto de
formação de leitor que seja eficiente, é preciso existir o professor leitor de textos teóricos,
leitor das concepções que a escola tem de leitura. Compreender a sua história de leitura é
também fator preponderante para que se tenha o professor formador de leitor. O capítulo
seguinte trará a análise dos dados coletados na pesquisa de campo. O relato feito permitirá
que se pense a relação teoria e prática.
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CAPÍTULO II
PRÁTICAS DE LEITURA NA ESCOLA JOÃO DA MATA – UM RELATO DE
CAMPO
1 Considerações gerais sobre a pesquisa de campo
Nossa pesquisa consistiu na aplicação de questionários para alunos da 8ª série
“A” turno manhã da Escola Estadual de Ensino Fundamental “João da Mata”; assim como
em entrevistas feitas com o diretor, com a professora de Português e com a pessoa
responsável pela sala de leitura, a quem tratarei pelos respectivos nomes fictícios: João,
Raquel e Marta.
As entrevistas têm o objetivo de fornecer à pesquisadora um diagnóstico da
escola no que diz respeito à relação com os livros da coleção LMC e as práticas de leitura
que a escola realiza. Usamos também o diário de campo fazendo anotações de cada fato
que consideramos importante ao longo da pesquisa.
Em abril de 2006, aplicamos para os alunos um questionário composto por sete
perguntas abertas (ver anexos), fizemos as entrevistas com a professora de Português e
com o diretor. Nesse capítulo, nossa atenção repousará na apresentação e discussão do
material coletado na referida escola durante a pesquisa.
A escola João da Mata tem boas instalações. É localizada no centro da cidade e
congrega o centro histórico. Possui laboratório de informática, sala de leitura, espaço para
o planejamento e estudo dos professores, salas de aula relativamente boas. Entretanto, em
se tratando das práticas de leitura, da relação de alunos e professores com a leitura (eixo
dessa pesquisa), há muito o que se fazer para que a escola seja reconhecida pelo aluno
como o lugar representativo na sua formação de leitor.
38
FIG. 01 – EEEF “JOÃO DA MATA” - FOTO: ALMEIDA FOTO
Adotamos o procedimento de fazer visitas freqüentes à escola. Principalmente
entre os meses de agosto a novembro de 2006, estivemos bastante tempo dentro da escola,
conversando com o diretor, com a professora, com os alunos, com a responsável pela sala
de leitura e até mesmo aproveitando aulas em que a professora nos deixava ler alguns
contos com os alunos e discutir a leitura com eles; a exemplo do conto O boi Leição de
Câmara Cascudo que está no livro Deixa que eu conto da coleção LMC – 8ª série.
Os maiores problemas que encontramos nessa escola foram os feriados e
“imprensados”, a postura do diretor diante da leitura e dos livros (será discutida essa
postura) e ainda a questão do cumprimento de algum conteúdo de Gramática, além das
provas de recuperação. Isso tomou muito tempo, fazendo com que a professora adiasse as
aulas de leitura e tentasse integrar esse trabalho ao projeto de leitura que ela desenvolve
junto com o “Projeto Escola 2000 por hora”. Apesar dos esforços, não podemos aplicar a
proposta de leitura que elaboramos, ficando para ser aplicada na primeira semana de aula,
em fevereiro de 2007. Essa proposta consiste em algumas sugestões de trabalho com livros
de conto da coleção LMC. No terceiro capítulo, serão apresentadas e discutidas.
O número de dias sem aulas foi muito grande nas escolas públicas do Estado
em Pombal: houve dois turnos de eleições, ambos com as sextas-feiras que antecediam o
pleito e as segundas-feiras seguintes ao dia das eleições, sem aulas. Um outro
acontecimento que também acarreta dias sem aulas é a Festa do Rosário. Há um costume
na cidade de os alunos não irem às aulas na sexta-feira que antecede o dia principal da
festa e a segunda-feira seguinte é feriado municipal. Em 2006, a festa do Rosário
aconteceu na semana seguinte ao primeiro turno das eleições. Como se pode perceber,
39
essas variáveis fogem ao controle do pesquisador e trazem problemas no que tange ao bom
andamento de uma pesquisa.
Analisando a escola enquanto um lugar privilegiado para a formação de leitor,
pudemos ver pontos controversos com relação a isso. Em primeiro lugar, posso afirmamos
que o menor espaço da escola foi destinado à sala de leitura. Quando se leva os alunos para
essa sala, uma turma de 29 alunos, como é o caso da turma que respondeu aos
questionários, é preciso dividi-los em grupos. Ou seja, literalmente, não se encontra um
espaço de leitura. Encontra-se uma boa quantidade de livros, mas não é possível
estabelecer com eles uma relação afetiva, simbólica.
A sala de leitura fica em um apertado espaço construído no 1° andar, onde
existe paralela à mesma uma sala grande que é utilizada como sala de aula. A escola só tem
esses dois cômodos no 1° andar. Eles são divididos por uma escada que tem sua base junto
à cozinha. A escada e a estrutura da sala constituem um problema para a formação do
leitor. O acesso é meio escuro e a escada é estreita, o que dificulta a passagem dos alunos,
tanto dos que estudam na sala vizinha quanto dos alunos e professores que vão à sala de
leitura. É preciso se esperar que quem esteja na escada trafegando (subindo ou descendo)
desocupe o lugar para que outras pessoas possam passar. Sem contar que se corre o risco
de cair, pois os alunos correm na escada e se “amontoam”, principalmente aqueles que
estudam na sala do 1° andar. Na hora do intervalo, a sala de leitura fica fechada, pois, D.
Marta, a responsável, vai para a cozinha ajudar a distribuir merenda para os alunos. Depois
que conquistei a confiança dela, quando ia entregar os livros utilizados na sala de aula, e
era o momento do intervalo, D. Marta me entregava a chave para que guardasse os livros
na sala de leitura. A escada fica bem junto à referida cozinha sem definida separação, fato
que contribui para que a sala permaneça quente durante todo o dia.
40
FIG. 02 - ESCADA QUE DÁ ACESSO À SALA DE LEITURA;
COZINHA DA ESCOLA “JOÃO DA MATA” – FOTO:
ALMEIDA FOTO.
Além de o espaço ser pequeno, observamos que quando o aluno é levado à sala
de leitura, ele é bombardeado por discursos moralizadores sobre a importância da leitura.
Há um clima de vigilância sempre que se vai a esse lugar. No mês de novembro, quando
levamos os alunos para a sala de leitura, a professora que atua na chamada sala de recursos
da escola, se antecipou e esperou os alunos chegarem e fez um “sermão” dessa natureza:
“Vocês não lêem! Não têm leitura! A leitura é muito importante. Muitos alunos não
passam no vestibular porque não sabem interpretar as questões. Vocês não sabem redigir
um telegrama. Quem aqui sabe redigir um telegrama, ou ofício? Não sabem! O vestibular é
só texto! E vocês vão tirar dos textos a gramática, a sintaxe”. Os alunos ignoram o
discurso, fato que observei seja por risos irônicos, seja pela própria expressão corporal de
desdém. Eles estavam sentados no chão, em círculo, e a pesquisadora também com eles.
Quando ela saiu, lemos o conto “O boi Leição”, de Câmara Cascudo, que está no volume
Deixa que eu conto da coleção LMC (um dos livros que escolhemos para trabalhar com os
alunos).
Vê-se que esse discurso nada tem a ver com a formação do leitor, sobretudo,
quando o formando é um aluno de 8ª série. Se começarmos a analisar cada afirmativa da
professora, veremos que a primeira coisa que ela diz (Vocês não lêem) não tem qualquer
sustentação prática, além do mais, não é o que apontam os resultados dessa pesquisa. Se
considerarmos o dia-a-dia do aluno na escola, vê-se que ele lê, e muito: lê para responder
aos exercícios do livro didático de Português, lê o texto que a professora traz para ele
responder a questões de “interpretação”, lê avisos, cartazes no mural, lê em Geografia, em
41
História, em Matemática, lê textos da coleção LMC. Proponho um esquema para melhor
discutir a concepção de leitura da professora e o seu pretenso discurso de “incentivo” ao
aluno no que diz respeito ao ato de ler. A professora afirma:
1. Vocês não sabem ler;
2. Não têm leitura;
3. A leitura é muito importante;
4. Muitos alunos não passam no vestibular porque não sabem interpretar as
questões;
5. Vocês não sabem redigir um telegrama, um ofício;
6. O vestibular é só texto;
7. Vocês vão tirar do texto a gramática, a sintaxe.
A professora questiona:
Quem aqui sabe redigir um telegrama, um ofício?
A professora responde pelos alunos:
Não sabem!
Veja-se que tudo isso antecedeu uma aula de leitura. O aluno, ao invés de ter
sido incentivado para o seu encontro com o texto, foi aniquilado enquanto leitor. As
afirmativas de 1 a 3 parecem apontar para a leitura do texto literário, pois é o que tem
maior recorrência na sala de leitura. E mais: ser leitor é ser ledor; é estar sempre lendo,
mesmo que essa prática não acrescente nada a quem lê. Ou ainda: a leitura legítima é
aquela mediada pela escola. A afirmativa 3 configura-se como um jargão sem efeito para
quem escuta.
As afirmativas 4, 6 e 7 vão trazer a questão do vestibular como o único objetivo
a ser alcançado por quem está estudando, por quem está na escola. Será que a vida de um
aluno, a sua formação se resume a um vestibular? O papel da escola não seria formar
cidadãos e formá-los para a vida, e não só para ser aprovado em um vestibular?
As afirmativas 6 e 7 funcionam muito menos como incentivo à leitura de texto
do que como ameaça. O vestibular mais uma vez, é apresentado como uma etapa em que
serão cobrados conteúdos complexos e difíceis, se concebidos a partir dessa ótica
42
apresentada pela professora, sobretudo se é dado ao aluno a sentença de tirar do texto a
gramática e a sintaxe. Aí está a idéia do texto como um pretexto para meras informações e
achados de regras gramaticais. Essa idéia ainda é muito difundida nas escolas, no discurso
de muitos professores que, por sua vez, entendem que, usando um texto, muitas vezes
literário e formulando perguntas, cujas respostas sejam uma regra da gramática, estão
trabalhando o ensino gramatical de forma contextualizada. Muitos livros didáticos, mesmo
aqueles considerados bons, persistem nesse erro. Magda Soares (In: EVANGELISTA et.
al., 2003), quando discute a escolarização infantil na seção A escolarização da leitura
literária define três instâncias para essa escolarização: a biblioteca, a leitura e o estudo de
livros de literatura, a leitura e o estudo de textos. Nessa última instância a autora aborda
um aspecto relevante digno da nossa atenção como professores – mediadores do processo
de leitura: “a questão da transferência de texto de seu suporte literário para um suporte
didático, a página do livro didático. Já que estamos falando de leitura do texto literário, sob
a perspectiva da escolarização, achamos pertinente trazer um exemplo disso. Vejamos
como o poema Neologismo de Manuel Bandeira é tratado no livro didático
1
.
No item “Linguagem e Interação” do livro didático Português: Linguagens – 8ª
série de William Roberto Cereja e Tereza Cochar Magalhães encontramos o poema em
estudo, proposto da seguinte forma para o aluno
2
:
LINGUAGEM E INTERAÇÃO
Leia este poema para responder às questões de 1 a 3:
Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.
Manuel Bandeira
1. O título do poema é “Neologismo”.
1
Queremos pontuar que a formação de leitor na escola passa pela leitura dos textos do livro didático. O
professor deve está atento à forma como esses livros tratam o texto literário.
2
As indicações em negrito correspondem às respostas que o livro do professor apresenta.
43
a) O que quer dizer essa palavra? Palavra nova criada normalmente para designar
uma idéia ou um objeto novo.
b) Que palavra do poema justifica esse título? O verbo teadorar.
2. O eu lírico afirma que o verbo teadorar é intransitivo. Observe que “dentro” do verbo
está o nome da mulher amada do eu lírico. Por que o verbo é intransitivo? Porque
para esse novo verbo não há objeto; a mulher amada só pode ser a própria
Teodora, palavra subentendida no radical e expressa no vocativo.
3. Agora é a sua vez de inventar palavras. Se quiser, empregue alguns destes prefixos: an-
(privação, negação), hiper- (posição superior, excesso), hipo- (posição inferior,
escassez), ultra- (além de), supra- (posição superior, excesso). E alguns destes
sufixos: -dor (agente), -eiro (agente, intensidade, ofício) –ado (ação, golpe).
Crie neologismos para dar idéia de:
a) Pessoa que beija pouco d) Pessoa que fala pouco
b) Pessoa que beija muito e) Pessoa que sofre de amor não correspondido
c) Pessoa que fala muito f) Pessoa apaixonadíssima Respostas pessoais
Verificamos que há um empobrecimento do tratamento conferido pelo livro
didático com relação ao poema. Não houve nenhuma referência à poética de Bandeira. Não
existem elementos trabalhados pelo texto que favoreçam o aluno à sensibilidade para a
leitura do texto poético.
O sexto verso “Intransitivo” é tomado pelo livro didático como um pretexto
para se definir o que é um verbo intransitivo. Nesse aspecto, a questão da literariedade é
desprezada, diríamos até, que sacrificada em detrimento de meras informações gramaticais.
Existem três aspectos da gramática explorados no poema: o significado da palavra
neologismo (questão 1); a transitividade verbal (questão 2) e a formação de novas palavras
pelos processos de Prefixação e Sufixação (questão 3). São apresentados alguns prefixos e
sufixos com seus respectivos significados para que o aluno crie novas palavras a partir das
idéias sugeridas pelos autores. Colocando-nos no lugar do aluno para realizar essa tarefa,
podemos perceber o quanto ela nos distancia do texto poético e da sua função.
44
A terceira questão, que se propõe a ser mais aberta ao aluno, acaba por se tornar
uma prática sem significância para a formação do leitor. Que contribuição, do ponto de
vista literário, uma análise dessa natureza traz ao aluno? Provavelmente, em outro contato
com o poema, em outra circunstância, ele vá lembrar que um dia o viu no livro didático
quando estudou Formação de Palavras. E, provavelmente, o verso “Intransitivo” vá lhe
lembrar somente o estudo gramatical da Predicação Verbal.
Essas análises, a nosso, ver são problemáticas, uma vez que tiram do aluno o
direito que ele tem de mergulhar no universo de fabulação (CANDIDO, 1989) que o texto
literário oferece.
O que se vê nesse contexto é que o aluno ler o poema, mas é como se não
tivesse lido. Assim, é quase impossível o aluno tornar-se sujeito de sua leitura.
Exercícios inadequados com o texto poético ou com qualquer outro gênero
literário, ao invés de formar leitores competentes, acabam por enformá-los num paradigma
do qual o aluno tenha grandes dificuldades de sair. E, o professor, enquanto sujeito
facilitador da aprendizagem, pode se tornar um repassador desses exercícios. Isso porque a
própria escolarização da leitura literária de que tão bem trata Magda Soares em seu artigo
A escolarização da literatura infantil e juvenil” (EVANGELISTA et. al., 2003) tem
instâncias que acaba por prejudicar o fenômeno da leitura. Uma delas é o Livro Didático.
É imprescindível, pois, que o professor seja perspicaz e criativo para não se
deixar conduzir por um processo inadequado de escolarização nem pelo excesso de
didatismo ou pelo “didatismo emburrecedor” (PINHEIRO, 2002, p. 18). Para Pinheiro
(2002) “a maioria dos professores de Português, e Literatura não procuram despertar o
senso poético no aluno”, não se interessando por educar a sensibilidade do mesmo. De
fato, trata-se de uma argumentação procedente.
Na nossa prática, podemos observar que os professores, em sua maioria, não
são leitores de poesia; e quando o fazem em sala de aula, sequer, preocupam-se em realizar
a leitura de forma adequada. Dificilmente o aluno se sensibilizará com a leitura de um
texto poético em que ele não perceba a sensibilidade do professor. Nesse âmbito, é
importante pontuar o que diz Lajolo (2004, p. 51):
Como os contatos mais sistemáticos que as crianças têm com a poesia são
mediados pela escola (e não se tem como fugir a isso), e como é freqüente que os
45
textos mesmos bons sejam seguidos de maus exercícios, é bem provável que a
escola esteja, se não desensinando, ao menos prestando um desserviço à poesia.
Acreditamos que a poesia é um caminho efetivo na formação do aluno/leitor. E,
para tanto, o professor precisa, antes de tudo, acreditar que é possível sensibilizar o aluno,
pois de alguma maneira, a poesia toca, mexe com as emoções. Basta que se saibam
escolher bons poemas e se crie mecanismos metodológicos, os quais possam suscitar nos
alunos o gosto pela poesia.
Retomando o esquema que traçamos no início dessa discussão, o aluno além de
ser considerado não-leitor, no discurso da professora, também é taxado como alguém que
não sabe escrever; por segundo ela, não saber redigir um telegrama ou um ofício.
Todos os fatos mencionados nesse item foram observados pela pesquisadora
durante o período em que esteve na escola. Foram considerados os questionários a que os
alunos responderam, as entrevistas gravadas com alunos e professores de português,
conversas e observações de aulas, anotadas no diário de campo.
2 O diretor e os livros da coleção LMC: uma postura em discussão
O diretor da escola, embora tenha declarado estar receptivo à nossa pesquisa,
demonstrou-se rigoroso quando o assunto eram os livros da coleção LMC. Conversávamos
com a professora de Português sobre como fazer para elaborar propostas de leitura com
contos de três livros que nós havíamos escolhido. A professora havia retirado os livros da
sala de leitura e levado para a sala de planejamento. Quando o diretor soube que os livros
haviam sido retirados, procurou a professora e fez advertências acerca da decisão de não
serem retirados livros da sala de leitura. Ele definitivamente proibiu a saída dos livros,
mesmo que a professora dissesse que era para que pudéssemos desenvolver o trabalho
tendo os livros em mãos.
No dia seguinte, a pesquisadora conversou com ele novamente e pediu para
liberar os livros, ele disse que, por hipótese alguma, os livros sairiam da escola. A
pesquisadora insistiu, mas ele foi ainda mais veemente em dizer que essa decisão foi
tomada pelo conselho da escola (a pesquisadora foi informada por outros de que quando a
escola não quer emprestar livros a alguém, a tática é dizer que a decisão foi tomada pelo
conselho) e ele não abriria mão para ninguém, ainda que fosse um só livro. E repetiu:
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“Nenhum, nenhum livro sai da escola. E eu tô certo. Se eu não fizer assim depois eu é
quem vou ser crucificado” – abriu os braços, imitando Cristo na cruz. Disse ainda que já
haviam desaparecido muitos livros, e se ele não agisse dessa forma podia acontecer o
absurdo que aconteceu no Polivalente (outra escola pública de ensino fundamental e médio
de Pombal): “Alunos arrancaram páginas da BARSA!”.
Em uma outra ocasião, perguntamos ao diretor se houve alguma capacitação
para os diretores com relação à coleção LMC. Ele afirmou que nunca houve. Os livros
eram entregues pelos correios, ou então: “quando menos se esperava, parava um carro em
frente à escola para entregar os livros”. Ele afirmou também que o número de livros não
era suficiente para os alunos, por isso esses livros foram organizados na sala de leitura,
para que todos os alunos tivessem acesso aos mesmos.
Ainda que se leve em consideração que não houve nenhuma capacitação para os
diretores, que os livros foram deixados nas escolas sem que se tivesse uma real consciência
do seu objetivo, a postura do diretor dessa escola precisa ser revista quando assunto é a
formação de leitor.
Vejamos a transcrição da entrevista com o diretor realizada durante a pesquisa:
Pesquisadora: Como se comportam alunos e professores com relação ao uso dos livros da
coleção “Literatura em minha casa”?
Diretor: Na realidade, nós dispomos de uma sala de leitura com uma quantidade de livros
até certo ponto grande, bastante significativa, cujos livros são utilizados pelos alunos,
principalmente na área de Códigos e Linguagens, indicados pelos professores. Esses
livros eles tanto são utilizados na sala de leitura como também em casa, eles são
retirados, sob um controle muito rigoroso e utilizados em casa sob a orientação do
professor para trabalhos com o objetivo de, de... elevar o conhecimento do aluno no
campo literário.
Pesquisadora: Existe retirada desses livros por parte de professores, alunos? Empréstimos
à comunidade?
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Diretor: Existe a retirada apenas por professores e alunos da escola. Nós não permitimos
a retirada para pessoas estranhas à escola, porque eles são utilizados exclusivamente por
pessoas ligadas à escola, no caso, professores e alunos. Como eu falei anteriormente, eles
são retirados sobre um controle muito rígido, tem um prazo para a devolução, então eles
lêem o livro em casa, trabalham com o livro em casa e dentro daquele prazo estabelecido,
eles devolvem, retornam com o livro à sala de leitura.
Pesquisadora: Que orientação, como diretor, você dá à pessoa que fica responsável pela
sala de leitura?
Diretor: Os funcionários que trabalham na sala de leitura, eles são bastante orientados
nesse sentido: no sentido de que haja o maior aproveitamento possível, quando a sala for
utilizada pelos alunos. A princípio, todos os livros são catalogados, existe uma ficha e...
quando os alunos são conduzidos à sala de leitura, sempre acompanhados dos
professores, eles são orientados no sentido de que, como se trata de leitura, haja o maior
silêncio possível, um zelo... é... absoluto com o livro, para que assim haja realmente
aproveitamento daquele conteúdo que ele está tomando conhecimento. Esta é... são as
principais orientações que nós damos, a fim de que eles utilizem, de uma forma proveitosa,
os livros que nós dispomos na sala de leitura.
É importante pontuar que a pesquisadora participou de eventos na escola,
ajudou aos professores sempre que solicitavam sua ajuda: comemoração do dia das mães,
aniversário da escola, participação da escola no mês de maio (festividades da Igreja
Católica).
Em um dos dias que estava na escola, por falta de um professor numa sala de 7ª
série, a professora de Português foi chamada para antecipar sua aula na referida sala;
entretanto ela tinha, no mesmo horário, aula na 8ª série. Então, para ajudar, a pesquisadora
se dispôs a ministrar a aula na 8ª série. Aproveitamos para ler textos de livros da coleção
LMC com os alunos e falar sobre esses livros. Os alunos leram o que quiseram nos livros
que foram trazidos para a sala e a pesquisadora falou de alguns textos que já havia lido na
coleção LMC, tais como: A formiguinha e a Neve, O príncipe feliz, A revolta das palavras,
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A Bolsa Amarela, Sonhos de uma noite verão, Ubirajara, História de Aladim e a Lâmpada
Maravilhosa contada por Patativa do Assaré...
Acreditamos que nosso propósito de ajudar a escola foi sendo constatado pelo
diretor. Ele atendeu o nosso pedido e nos concedeu a entrevista, que aconteceu na sua sala,
nas acomodações do seu birô.
No desenrolar da pesquisa, percebemos que seria interessante para a gestão
escolar que o diretor revisse sua prática, com relação à circulação dos livros. No
depoimento acima, constatam-se alguns pontos controversos: ele afirma que os livros são
retirados pelo aluno para levar para casa. No decorrer desta pesquisa, não constatamos a
retirada dos livros para o aluno levar pra casa. O controle rigoroso de que ele fala traduz-se
num cuidado, excessivo. Alunos e professores podem se sentir muito mais vigiados do que
incentivados à leitura desses livros. “Existe a retirada apenas por professores e alunos da
escola”. Essa afirmativa é questionável, pois, no período de 2006, houve continuamente a
presença da pesquisadora na escola nos meses de abril a novembro. Pode-se afirmar que
eram feitas retiradas de livros por parte de professores (com a autorização do diretor), mas
essa prática foi suspensa (a retirada de livros para serem usados em casa) pelo diretor no 2°
semestre do referido ano. Entretanto, no que concerne aos alunos, não houve registros de
retiradas. Ademais, o “controle rigoroso, rígido” de que ele fala não está diretamente
relacionado à sistematização para controle de entrada e saída de livros. Afirmamos isso
porque não houve catalogação dos livros, não existe controle no sentido de organização
para facilitar a prática de leitura.
Não há fichários. Existe um caderninho comum, no qual a responsável pela sala
de leitura anota quantos livros foram levados para a sala de aula e o nome do professor. Na
maioria das vezes, nem há anotação. Ela conta os livros quando há a retirada e confere a
devolução, contando quantos foram devolvidos.
Talvez a intenção do diretor seja preservar os livros, cuidar para que eles não
sejam extraviados. Como ele afirma: “os funcionários são orientados no sentido de que
haja o maior aproveitamento possível”. Todavia, isso na prática deixa a desejar. O
cerceamento dos livros, principalmente, no tocante à nossa observação no ano de 2006, não
foi favorável a formação do leitor.
Quando o diretor afirma que “existe uma ficha”, ele não está falando de ficha
de leitura, mas de uma ficha, que corresponderia ao que podia ser um cadastro. Entretanto,
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no decorrer da pesquisa não constatamos a existência desta “ficha”. Há de se convir que há
um discurso do diretor, considerado ideal por ele, e uma prática que de certa forma
subverte esse discurso. Ainda que o diretor afirme haver um controle rigoroso dos livros,
isso não impediu que livros “sumissem” das prateleiras. Há dois anos, percebia-se uma
quantidade bem maior de livros do que existe atualmente. Há lacunas nas prateleiras.
Talvez se o acesso, a circulação desses livros tivessem sido democratizados, e se tivesse
levado em conta um nível de organização – catalogação, fichários – essas perdas não
tivessem ocorrido. E por conseqüência o processo de formação de leitor poderia ter
ocorrido de forma mais democrática.
Vejamos na fala do diretor, um enunciado que merece nossa apreciação crítica:
“... como se trata de leitura, haja o maior silêncio possível”.
A relação leitura e silêncio parece evocar os séculos XIII e XIV. Tempo esse
que, segundo Chartier (1998, p. 119) datam “os primeiros textos que impunham silêncio
nas bibliotecas”. Essa idéia do silêncio também tem muito a ver com a questão da
sacralização do livro. Assim sendo, o lugar onde o livro é lido deve ser um lugar de
respeito, de reverência, um lugar sagrado.
Para quem foi formado dentro de uma tradição social e familiar em que a
prática do silêncio era uma imposição que se obedecia passivamente, fugir a isso seria um
completo desrespeito. Porém, é preciso entender que essas práticas de que somos herdeiros
devem ser questionadas.
A biblioteca, a sala de leitura precisam ser espaços que permitam os leitores
interagirem, para isso a própria disposição do ambiente físico deve ser pensada levando em
conta a arquitetura. Um ambiente comprimido, restrito como é o caso da sala de leitura da
Escola “João da Mata”, não favorece a formação do leitor.
Vive-se uma época em que os sujeitos têm a liberdade de falar. Calar-se diante
da leitura seria o pior castigo que um adolescente poderia receber. Os alunos gostam de
falar, de interagir. Não se trata de usar a liberdade de falar para fins anárquicos. Não
estamos falando disso. Defendemos o ponto de vista de que é possível aproveitar a
disposição do aluno em favor de sua formação de leitor. Eles nunca ficam calados após
uma leitura (a maioria deles). Muitas vezes fazem questão de expressar o que pensam. Não
há como evitar ou “calar a boca” deles quando comentam, à meia-voz, algo com o colega
ao lado, muitas vezes porque temem a censura do professor. O que estamos discutindo é
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como conduzir esse debate entre os alunos. Nessa perspectiva, o silêncio postulado pelo
diretor não traz benefício para os alunos/leitores em formação.
Na sua função, o diretor incorpora a prática do zelo, do cuidado dos livros. Em
sua fala, vemos que ele procura proteger esse patrimônio da escola, às vezes, até do próprio
aluno: “quando os alunos são conduzidos à sala de leitura, sempre acompanhados dos
professores...” essa fala deixa transparecer o fato de não ser muito confiável deixar o aluno
ir à sala de leitura sem a presença do professor, talvez pela idéia de que a leitura deva
sempre ser orientada ou mesmo pelo fato de alguns alunos não devolverem os livros
quando eram emprestados. Reafirmamos que no período em que se decorreu a pesquisa, os
livros não podiam ser retirados. Porém, de alguma maneira, já o fora antes.
3 A professora de português: relação aluno/sala de leitura
A professora de Português tem o desejo de planejar suas aulas de leitura e levar
à frente um projeto que dê resultados. Em geral, os professores da escola acreditam que
estão realizando muito, os alunos é que são “desinteressados, não querem nada...” É quase
unânime essa idéia. A escola tem livros, mas tem dificuldades em trabalhar a leitura de
forma que os alunos apresentem resultados, pois na concepção de leitura que percebemos
existir nessa escola: toda leitura tem que ser de, alguma forma, comprovada com algum
trabalho. O “ler por ler” não é leitura. Pelo menos do ponto de vista do diretor - que pede a
professora resultados de leitura para exposição (segundo o que a professora nos afirmou
em conversa que tivemos na escola) e também do ponto de vista da responsável pela sala
de leitura, a qual afirma que quando os alunos vão à sala ficam olhando as figuras dos
livros.
Vejamos a transcrição da entrevista com a professora de Português:
Pesquisadora: Como você ficou sabendo da existência desses livros da coleção Literatura
em minha casa?
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Professora: Esses livros eu fiquei... exatamente conhecendo, né? A partir do momento que
eu vou lá na... sala de leitura e daí... eu comecei a ler, né? E vi que é bastante
interessante, muita coisa interessante, que o aluno podia também se
interessar com relação ao que estava escrito, né? É muito bom, muito.
Desenvolve bem... o aluno com relação o que tem, né?
Pesquisadora: Esse material tem lhe ajudado na formação do aluno leitor, como tem sido
essa prática?
Professora: É muito bom porque eles se interessam muito. Eles acham interessante, né? E
aí ele, ele, no caso, a cada momento que ele está fazendo a leitura, eles se
empolgam mais. E o material é muito bom. A partir do momento que ele está
lendo, a vontade é continuar. Muitas vezes a gente pára, por motivo do
horário, né? Mas, aí, eles pedem para dar continuidade na próxima aula.
Pesquisadora: Você tem preferência por algum gênero apresentado na coleção Literatura
em minha casa?
Professora: Geralmente assim, eu trabalho muito... eu trabalho com contos, eu trabalho
com contos... eu acho muito interessante, ... né? A desenvoltura dele com
relação a conto, né? A poesia, né isso? Então sempre eu peço pra que eles
reproduzam, façam, fazem a reprodução... dos contos. Eu acho muito bom
trabalhar com conto.
Pesquisadora: Você poderia relatar alguma experiência feita com algum livro da coleção
Literatura em minha casa?
Professora: Como eu já lhe falei, né? Eles fazem, reprodução, eles reproduzem né, no
caso, de qualquer forma, eles se empolga, né? Então eu já pedi pra eles,
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reproduzirem um conto, uma poesia, um verso, né? E como eu digo, a partir
do momento que eles começam a fazer o trabalho, ele se envolve mais, ele
pede mais, no caso, eles não querem parar por ali, eles querem dar
continuidade, com mais reproduções, né?
A resposta à primeira pergunta vem mostrar que a professora/leitora existe e a
disposição de formar leitor também existe: “Vi que é bastante interessante e o aluno podia
também se interessar”. Há nessa fala um princípio de prazer pelo que é lido e o desejo de
partilhá-lo com o aluno. Isso tem relevância na relação do professor/formador de leitor e o
aluno/leitor em formação. Burlamaque (In: TURCHI e SILVA, 2006, p. 83) afirma:
Se a relação do professor com o texto não for significativa, se não houver
interação entre ambos, a sua atuação como mediador da leitura fica
comprometida. Além de não conseguir atingir o aluno, talvez ainda ajude a
referendar a tradicional aversão dos alunos pela leitura proposta na escola.
Convém, pois, que a relação professor/texto além de significativa, seja um
evento (BOSI, 2003) motivador que ultrapasse as barreiras da timidez e da concepção de
que os alunos não vão se interessar pela partilha de experiência de leitura do professor.
Toda a questão passa pelo “como” essa partilha deve ser feita com o aluno. E isso não
exige nenhum efeito especial, não demanda o uso de recursos tecnológicos de ponta. Basta
acreditar que se está lidando com material humano, por isso carregado de emoções. O
aluno tem uma história, tem sonhos, desejos e fantasias. Isso não quer dizer que o professor
vá pré-conceber, através do seu testemunho de leitor, uma leitura pronta para o aluno.
Influenciar sim. Isso pode acontecer, mas não vai tirar do aluno a sua maneira de ver o
texto.
Conforme a resposta da professora à segunda pergunta, os alunos se interessam
por leitura, gostam de ler, pois como ela afirma “a vontade é continuar”. Indubitavelmente,
encontramos o leitor. Não simplesmente o leitor, mas o leitor dos livros da coleção LMC.
Isso confirma que tais livros apesar das interdições que sofrem ao chegar na escola (a
postura do diretor, por exemplo – a necessidade dos professores desenvolverem uma nova
concepção de leitura), encantam pela qualidade dos textos que veiculam, pela qualidade
editorial, enfim.
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Quando diz:
Geralmente assim, eu trabalho muito... eu trabalho com contos, eu trabalho com
contos... eu acho muito interessante... ? A desenvoltura dele com relação a
conto, né? A poesia, né isso? Então sempre eu peço pra que eles reproduzam,
façam, fazem a reprodução... dos contos. Eu acho muito bom trabalhar com
conto.
O depoimento da professora demonstra assistematização do trabalho com a
leitura e com a literatura. Ela trabalha muito com contos. Os alunos têm desenvoltura com
o conto. Ou seja, eles gostam mais da leitura dos contos. Em seguida, ela fala da poesia e
diz que pede que os alunos reproduzam os contos. A convivência com a professora na
escola veio nos revelar como ela realiza essas reproduções. Conversando informalmente
com a professora Raquel sobre o que ela chama de reprodução de leitura de textos dos
livros da LMC, soube que ela mandava os alunos escreverem a história que leram,
“mudando alguma coisa”, mas “conservando a mesma história”. Por exemplo: muda um
personagem ou algum elemento da narrativa, mas a história conserva o mesmo enredo. Ela
não falou em enredo nem em outros elementos da narrativa, foi o que deduzimos, no
decorrer da nossa conversa. Ela afirmou ainda que mandava os alunos “reproduzirem
poesias” mudando só alguma coisa. Em conversa com alguns alunos, eles disseram que a
professora “mandava eles dar o entendimento do que leram”, contar a história que leram.
É importante para a professora que o aluno faça alguma coisa com o texto, seja
o que for: até “reproduzir uma poesia”. Há uma preocupação exacerbada com o que fazer
com o texto. Sempre que recebe o texto, o aluno pergunta: Professora é para fazer o que
com esse texto? Ele já está acostumado com essa prática da escola. Como se pode formar
leitor dessa maneira? Quem precisa rever suas concepções sobre leitura? Creio que o
professor, em primeiro lugar. O aluno precisa ser conquistado pelo professor-leitor para
que se invista do desejo da leitura, do prazer de ler o texto. Esse prazer ou até mesmo a
fruição (BARTHES, 2006) é um processo que se dará sem, necessariamente, se passar pelo
percurso da obrigação ou do pragmatismo.
Entre a boa vontade da professora e a sua prática com a leitura, há algumas
ausências. Ela não falou de nenhuma obra que tivesse lido da coleção LMC, sobre a qual
pudéssemos conversar. A professora se preocupa em desenvolver no aluno a prática da
leitura, mas tem dificuldade com relação ao que fazer com o texto. Esse fator ocorre na
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prática de muitos professores de Português. Isso talvez se deva, em grande parte, à
formação que recebemos e/ou deixamos de receber nos cursos de letras. Questões
importantes para a formação do professor deixam de ser estudadas, disciplinas importantes
como literatura infanto-juvenil inexiste na maioria dos cursos. A professora é realmente
uma leitora de tipos diversos de textos, isso é muito relevante, entretanto isso não basta
para se formar alunos leitores. No quadro de professores da escola, ela é contratada para
dar aulas já há alguns anos e trabalhou até o ano de 2006 com 7ª e 8ª séries, o que lhe
confere um grau de experiência considerada para atuar como formadora de leitor.
Quando estávamos escolhendo os livros para a elaboração das propostas de
leitura, a contribuição da professora foi tímida. Disse apenas que preferia contos. Sua
preocupação maior era com o que fazer com as leituras e não com o como realizá-las. Ela
sugeriu: vamos trabalhar em forma de dramatizações, contar história extra-verbal.
Consideramos a sugestão e vimos que poderia ser feito o que ela sugeriu. Em
contrapartida, percebemos o quanto a escola sacrifica a leitura em prol dos resultados que
deseja ter com ela. Esta pesquisa preocupou-se em construir estratégias de leitura com a
professora. A nossa inquietação está no como realizar a leitura e não o que fazer com ela.
Há alguns anos, temos contato com a professora é uma pessoa responsável e
preocupada com as aulas que dá. Tem desejo de aprender, quer melhorar a sua prática.
Numa discussão sobre literatura infantil e formação de leitor, realizada numa
escola de ensino fundamental, uma professora nos disse: “estou vendo que você tem paixão
por leitura, por literatura, conhece as teorias, já nos indicou muitos livros, mas eu queria
que você dissesse como a gente faz na sala de aula com o texto do livro didático”. Ora, já
havíamos discutido com os professores textos teóricos sobre leitura e literatura infantil, já
havíamos discutido textos com relatos de experiência de leitura realizadas por
pesquisadores como o professor Hélder Pinheiro, experiências que podem servir de norte
para outras atividades com o texto literário na sala de aula. Percebemos que a insatisfação
da professora era porque não havíamos dado receitas, modelos acabados para se trabalhar o
texto literário em sala de aula e mais precisamente o texto do livro didático. Fizemos
algumas observações sobre o assunto e indicamos algumas leituras que já havíamos feito a
respeito. Saímos em defesa da academia e nossa também, afirmando que a Universidade,
enquanto lugar de pesquisa é cuidadosa em não fornecer técnicas, modelos prontos.
Trabalha-se com sugestões que, ao serem experimentadas, vão abrir novos caminhos. Cada
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escola tem sua própria realidade vivenciada no seu cotidiano, disso é impossível o
pesquisador dar conta, mas é possível que adaptemos experiências de leituras que deram
certo e vivenciemos a nossa própria experiência com nossos alunos.
O texto literário pode ser considerado a melhor porta de entrada para o processo
de formação do leitor, uma vez que imbuído de uma linguagem especial é capaz de motivar
o ser humano para a fabulação, para o sonho. (CANDIDO, 1995)
No dizer de Antonio Candido(1995), a literatura confirma a humanidade do
homem o que, aliás, não é difícil de se comprovar. Ela é manifestação universal dos
homens de todas as épocas. Quando Candido discute essa temática no ensaio O direito à
literatura, ele faz inicialmente uma reflexão sobre os direitos humanos e chama de
literatura:
da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou
dramática em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura,
desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e
difíceis da produção escrita das grandes civilizações. (CANDIDO, 1995, p. 242)
Entendida sob esse prisma não se pode negar que a literatura é uma necessidade
dos seres humanos e como tal indispensável para o equilíbrio emocional e social do
homem. A literatura, desta feita, é um bem que está para a integridade psíquica, espiritual;
assim como a saúde, a moradia, o emprego por exemplo, estão para a integridade física.
Se a escola, enquanto lugar de formação do leitor, refletir sobre o poder da
literatura na formação do sujeito, certamente encontrará caminhos para educar e formar
sem que esse processo seja considerado como um fardo na vida dos educadores e também
dos pais de aluno.
Acreditamos que quando o professor dar ao texto literário o tratamento que ele
pede – leitura adequada, atividades em que ajudem o aluno a ter o contato com a arte –
esse tipo de texto se torna um instrumento eficaz para o fomento da leitura.
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4 A escola e a formação do leitor: o lugar da leitura e o lugar dos livros
O aluno encontra na escola o lugar da leitura, da sua leitura, da construção dos
sentidos que ele confere aos textos que lê, ainda que essas leituras sejam restritas. O
professor leitor é o ponto de partida para um projeto de leitura que oriente o aluno, que
aponte a ele o caminho da apropriação de suas leituras. Esse é o desafio que o professor do
ensino fundamental, da educação básica precisa enfrentar. Esse desafio torna-se ainda mais
denso quando se considera as condições profissionais do professor no Brasil. Poucos são os
que têm acesso à qualificação profissional em decorrência da própria conjuntura do sistema
de educação.
Na sala de leitura da Escola “João da Mata”, como acontece com a maioria das
escolas, existe uma pessoa responsável pelo setor. Procuramos freqüentar com constância
essa sala, conversar com a senhora Marta. Ela nos afirmou que os alunos, quando vêm à
sala de leitura, levam o tempo a “jogar almofada uns nos outros”. A sala de leitura não tem
mesinhas e os alunos gostam de deitar nas almofadas. Quando perguntamos sobre o que ela
gostava de ler, ela afirmou que não tinha tempo de ler porque no período da manhã
removia a poeira dos livros. Ela ainda afirmou que quando lê, às vezes, gosta de poesia,
novela (ela divagou nesse comentário, não sabendo precisar que poesias, que novelas ou
por que tais gêneros).
Todo o tempo em que passamos na sala de leitura, vimos que Dona Marta
estava sempre limpando os livros e colocando-os arrumados nas prateleiras. Ela nos falou
que os alunos desarrumam tudo e ela tem que arrumar para deixar tudo organizado, pois o
diretor gosta que os livros sejam zelados.
Perguntamos, ainda, se já havia participado de algum curso promovido pelo
Estado para pessoas que trabalham em bibliotecas. Ela nos respondeu que nunca participou
de nenhum desses cursos. Também fomos informada de que a professora de Português,
quando leva os alunos para a sala de leitura, deixa que eles leiam o que quiserem. Segundo
Dona Marta, eles não lêem muito e ficam mais tempo olhando as gravuras. Dona Marta
organiza os livros nas estantes por gêneros: romance, conto, novela, teatro, poesia. Isso
com os livros da 8ª série. Os livros da coleção LMC da 4ª série são arrumados pelos títulos.
Por exemplo: todos os livros A arca de Noé de Vinícius de Morais estão juntos numa
seqüência.
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FIG. 03 – LIVROS DA COLEÇÃO LMC – 4ª SÉRE
FOTO: ALMEIDA FOTO.
FIG. 04 – LIVROS DA COLEÇÃO LMC – 8ª SÉRIE
FOTO: ALMEIDA FOTO.
A única atividade que Dona Marta realiza na escola é cuidar desses livros:
mantê-los arrumados, limpos, vigiar para que eles não saiam da sala sem o “rigoroso
controle”. Como ela afirmou: “tenho que dar conta dos livros”.
É interessante pontuar que a sala de leitura só tem funcionamento regular no
turno da manhã. À tarde, geralmente, ela fica fechada, porque não existe funcionário para
58
esse turno. Se alguém precisar ir lá à tarde, tem que recorrer ao diretor para ele autorizar
uma determinada pessoa a abrir a sala. No início da pesquisa, ele mesmo abriu a sala para
que consultássemos uns livros da coleção LMC.
Diante das afirmações acima, pode-se perceber as dificuldades de se trabalhar
um projeto de leitura na referida escola. Os livros chegaram lá (em quantidade razoável),
porém a relação com a leitura por parte de quem trabalha na escola ainda se distancia do
que se poderia chamar um projeto de formação de leitor, contudo, é possível organizar,
definir os objetivos das aulas de leitura para que melhor aconteça o processo da formação
do leitor
A pessoa que “vigia os livros” cumpre apenas ordens e vivencia uma função
que não tem ciência do que seja. Nesse caso, ela também não integra o processo de
formação do leitor, por ela mesma não ser qualificada para isso.
Pelo que observamos, o aluno gosta de ir à sala de leitura, gosta da aula de
leitura. Entretanto o seu acesso aos livros ainda é tímido, restrito apenas aos momentos em
que são levados pela professora ou nos quais os livros são levados a eles na sala de aula.
Na hora do intervalo, a sala é fechada. Questionamos: quando é que o aluno pode ir
sozinho à sala de leitura. Essa é uma questão que pretendemos discutir com professores e
corpo diretivo da escola a fim de que o aluno possa freqüentar a sala de leitura em horário
alternativo.
A concepção de leitura nas escolas, sobretudo no que se refere aos professores,
em geral, não só professores de Português e às pessoas responsáveis pelas salas de leitura,
ainda tem muito da concepção instaurada entre os séculos XVI e XVIII. Esse fator não
merece cunho condenatório quando se considera que a leitura tem uma história e essa
história, por sua vez, diz dos livros e dos sujeitos leitores, das condições sociais, históricas
e culturais dos mesmos. É preciso, pois, analisar a história da leitura de forma diacrônica.
(CHARTIER, 1999).
Entre os séculos XVI e XVIII, o livro, investido de uma função mística, passa a
exercer o papel diretivo na vida de comunidades minoritárias, a que se podiam chamar de
iluminados. Dada a situação de fragilidade por que passavam as instituições eclesiais, cabia
ao livro dar suporte à condução espiritual, à construção de diretrizes para a vida espiritual
(CHARTIER, 1999). Concomitante a esse contexto de sacralização, tem-se outras práticas
de leitura que poderiam se chamar de “rebeldes” por não entrar nessa investidura do
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sagrado. Tais práticas de leitura instauram um lugar para o leitor, antes visto como uma
conseqüência do livro, e instauram também a consolidação de uma certa independência
que reage aos rituais da leitura sacralizada: a leitura revestida de uma postura corporal, a
forma de pegar o livro, o ambiente apropriado para se ler (CHARTIER, 1999).
Quando se analisa a realidade descrita em Chartier (1999), pode-se perceber
que há um quadro de incongruência entre a proposta do MEC, com distribuição de livros e
o que é vivenciado na prática escolar. Tem-se um excelente material para a leitura, material
no qual se pode perceber que houve critérios de seleção baseados nas modernas teorias da
leitura; entretanto persistem as velhas concepções sobre a prática de leitura na escola. Ora
por parte do diretor, ora por parte da responsável de leitura e de professores em geral.
Nas ocasiões de contatos com a senhora Marta, com o senhor João, o diretor, e
com a professora de Português, Raquel, em entrevistas, conversas informais e observações,
obtivemos material para respaldar a concepção de leitura que eles têm.
A idéia que o diretor faz de leitura está muito ligada à concepção do Antigo
Regime de que trata Chartier (1999). O livro é uma autoridade sobre o leitor, é para o livro
que se volta a atenção do referido diretor. O aluno-leitor não é visto como o sujeito que dá
vida ao texto. O lado receptivo dos livros, aquele que apontaria o leitor como foco, é
esquecido ou talvez seja desconhecido. Ao invés disso se enaltece a obra e seus autores.
A seleção da coleção LMC, tanto 4ª como 8ª série, chama a atenção dos
professores, que se maravilham com os livros. Assim, o livro continua ocupando na escola
o lugar de destaque que deveria ser dado ao leitor.
A contribuição de Hans Robert Jauss, através da estética da recepção,
proporcionou uma nova etapa na história da leitura: o leitor é visto numa posição de
relevância com relação ao texto. Jauss( In: LIMA, 2002, p. 69) afirma:
A experiência primária de uma obra de arte realiza-se na sintonia com seu efeito
estético, isto é, na compreensão fruidora e na fruição compreensiva. Uma
interpretação que ignorasse esta experiência primária seria própria da presunção
do filólogo que cultivasse o engano de supor que o texto fora feito, não para o
leitor, mas, sim, especialmente para ser interpretado.
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A sobrevivência de uma obra através dos tempos é garantida por meio de um
público. Não é o autor em si, não é o texto em si que validam determinada obra, mas os
seus leitores de tempos e espaços diversos.
Com relação aos livros da coleção LMC, no contexto da escola na qual se
desenvolveu essa pesquisa, pode-se inferir que a recepção dessas obras atinge, de forma
limitada, o desejo do MEC de formar leitores. Os alunos são os mais afetados pelas
inadequadas concepções sobre a prática da leitura literária pela escola através de diretores,
professores, pessoas que trabalham em salas de leitura. Por exemplo: o aluno que é levado
à sala de leitura e fica olhando as ilustrações, não estaria lendo? Quando o professor pede
que os alunos leiam o que quiserem, será que os objetivos dessa leitura estão definidos –
considerando-se o fato de que se está na escola?
5 A relação dos alunos com a leitura: uma discussão de dados
Apresentamos a seguir o questionário que aplicamos numa turma da 8ª série na
Escola “João da Mata”. Todos os alunos da turma da 8ª série “A”, turno manhã, ano 2006,
responderam ao questionário. Um total de 29 alunos.
À primeira pergunta: o que você costuma ler, 25 alunos afirmam que
costumam ler livros; 13 deles, além de livros também lêem revistas e apenas 4 afirmam
jornais.
Esses dados fornecem uma comprovação que derruba qualquer afirmação de
que o aluno não lê. Encontramos o leitor e o leitor que lê em diversos suportes. Quando se
trata de livros, a incidência está sobre o livro didático, em primeiro lugar; em seguida, os
livros da coleção LMC. Em se tratando de revistas, estão inclusas diversos tipos, como por
exemplo aquelas que dão dicas de beleza, moda, etc. (as meninas afirmam ler tais revistas).
O jornal também aparece como suporte de leitura desses alunos, porém de forma mais
tímida. Talvez pelo fato de a escola não oferecer e de não se ter acesso em outros
ambientes, pois somente as pessoas de maior poder aquisitivo e de escolaridade mais
elevada têm assinatura de um dos jornais que circulam no estado e também de revistas de
circulação nacional. Estamos afirmando isso baseados no nosso contato e acesso à casa e
ambientes de trabalho de médicos, advogados, bancários, professores da cidade.
61
À segunda pergunta: como conseguem os livros que lêem, 14 alunos afirmam
que conseguem esses livros na escola; 7 deles apontaram que conseguem com amigos; 2,
com vizinhos; 1, com a professora e 5 pegam livros na Biblioteca Municipal.
Vemos que a maioria dos alunos conseguem os livros que lêem na escola. Isso,
a nosso ver, pode ser um sinal de que a escola está sendo reconhecida como um lugar de
formação do leitor, já que o aluno encontra nela os livros que busca para ler, ainda que essa
leitura seja feita para um fim avaliativo e estejam restritas às aulas que se reservam à
leitura pela professora de Português.
Não importa a causa que motiva a leitura: uma apresentação de um trabalho
com determinado livro, uma encenação, enfim. O que vale nesse contexto no qual estamos
discutindo é entender que o aluno é leitor e ele começa a se perceber como tal
independente daquilo que professores, diretores possam afirmar.
No Centro Municipal de Educação existe uma biblioteca. Quando se vê que em
um universo de 29 alunos, 5 deles procuram livros da biblioteca municipal, é animador,
pois é uma prova de que esses alunos percebem a leitura em um certo nível de
democratização. Fazem-se, portanto, leitores autônomos.
À terceira pergunta: você tem livros em casa, 28 alunos dizem ter livros em
casa e apenas 1 disse que não tinha.
Os alunos são quase unânimes em dizer que têm livros em casa e esses livros,
segundo eles complementaram a resposta, dizem: “Tenho livros de português, matemática,
geografia...” “Tenho os livros da escola, mesmo”. Os livros da escola, como eles dizem,
são os livros didáticos. Poucos deles afirmam que além dos livros didáticos, têm outros
como a Bíblia, e ainda: “Tenho a história do dilúvio, da Ressurreição de Cristo”. Também
afirmam ter alguns contos e “histórias de aventura”. O livro didático é para o aluno um
livro de leitura e como se pode perceber é um material que a maioria dos alunos tem. Os
textos, literários ou não, que o livro didático veicula são considerados pelos alunos (ver
anexo II). A Bíblia é outro suporte de leitura também considerado pelo aluno nas suas
leituras fora da escola e também na leitura dos pais.
Existe uma relação do aluno com o livro e nessa relação, o livro é um objeto de
que o aluno se utiliza para se divertir, para fazer as atividades de produção textual e para
satisfazer sua própria necessidade de fabulação (CANDIDO, 1995).
62
O que podemos constatar é que, ao contrário do que se pensa, o aluno tem uma
boa relação com o livro, com a leitura. Ele lê. Por isso, urge que diretores e professores
revejam suas concepções a respeito do trinômio leitor/livro/leitura, visto que os problemas
de “falta” de leitura não parecem estar no aluno. Está sim, nas instâncias consideradas
superiores na escola: diretores, professores e aqueles que fazem as vezes dos bibliotecários
nas bibliotecas das escolas e nas salas de leitura. Quando falamos em professores não
estamos nos referindo apenas ao professores de português, mas a todos os educadores.
Na quarta pergunta indagamos: seus pais costumam ler em casa? 7 alunos
responderam que os pais lêem em casa; 5 deles disseram que os pais não lêem; 2 alunos
disseram que os pais são analfabetos; 5 responderam que só a mãe lê; 3 deles disseram que
o pai é analfabeto; 6 alunos disseram que, às vezes, os pais lêem; e apenas 1 disse que os
pais não lêem nada em casa. Se somados os resultados entre os alunos, cujos pais não lêem
temos o total de 11. Dado que revela a minoria num universo de 29 alunos.
Partindo da premissa de que os alunos entrevistados são em sua maioria filhos
de pais com pouca escolarização, há de se convir que a leitura, embora apareça de forma
tímida no universo familiar, faz parte dele. O aluno tem uma concepção de leitura como
algo que vai além da decodificação de signos lingüísticos. Quando afirma que a mãe lê a
Bíblia, por exemplo, ele está falando de uma leitura que ele considera legítima. Quando diz
que o pai ou a mãe lêem um documento ou jornal estão percebendo a leitura além da escola
e com funções bem definidas na prática, na vida. A leitura da Bíblia é a mais citada pelos
alunos na prática de leitura de seus pais, sobretudo das mães.
Na quinta pergunta questionamos: você lê para os seus familiares? 5 alunos
disseram que não lêem; 4 disseram que lêem para os pais só o que eles (alunos) acham
interessante; 5 alunos afirmam não ler para os pais porque preferem ler sozinhos e têm
vergonha de ler para os pais; 8 deles disseram que lêem às vezes, para os pais; 8 afirmaram
ler para os pais; e 1 disse que não se interessa por leitura, por isso não lê.
Pelos dados apresentados, vemos que a maioria dos alunos lêem para os pais.
Entre os que disseram que lêem só o que acham interessante e aqueles que afirmam ler ou
esporadicamente ou com freqüência, tem-se um bom número de alunos que partilham com
a família suas leituras, o que revela uma faceta da democratização de tais práticas.
Indagamos sobre os livros que a professora lê na sala de aula – 8 alunos
disseram que ela lê livro didático; 18 disseram que a professora lê livros de literatura
63
(livros da coleção LMC); 1 disse que a professora lê textos e 2 disseram que ela lê revista
em quadrinhos.
Com base nesses dados, podemos ver que a professora é uma leitora; ela
democratiza a leitura e a realiza em diferentes suportes junto com os alunos. Os livros da
coleção LMC por sua vez são utilizados na sala de aula nas quintas-feiras. Os alunos que
lêem revistas em quadrinhos na sala de aula são beneficiados pela prática democrática que
a professora realiza, deixando-os fazer esse tipo de leitura em sala de aula por respeito à
liberdade de escolha desses alunos.
Sobre o que os alunos lêem na sala de leitura, temos: 2 lêem romance; 19
afirmam ler contos; 6 dizem que lêem livros didáticos; 1 deles lê poesia; e também 1 lê
texto teatral.
Vemos aqui a predominância do gênero conto entre as leituras que os alunos
fazem quando vão à sala de leitura. Isso tem muito a ver com a influência que a professora
exerce sobre eles, por preferir os contos e trabalhar com eles com mais freqüência esse
gênero. Além dos livros da coleção LMC, existem outros livros, em menor quantidade,
como algumas antologias de poemas, umas enciclopédias, etc.
Os dados da pesquisa confirmam o livro como o campeão entre os suportes de
leitura. Isso nos leva a crer que, apesar da existência de tantos outros suportes, sobretudo a
tela do computador
3
, o texto que o livro carrega é investido de grande credibilidade pelo
leitor.
Para que o aluno pudesse responder favoravelmente ao uso dos livros como
suportes de leitura, a presença da coleção LMC na escola foi fator decisivo. Com a
chegada dos livros na escola, os alunos passaram a ter contato com os mesmos. Eles os
lêem na sala de aula ou quando a professora os leva à sala de leitura. A escola é vista como
o lugar do livro, o que já é um passo para se encaminhar um projeto de formação de
leitores, a partir das experiências de leitura que se possa fazer com tais livros, uma vez que
o aluno já tem a prática de pegar o livro, folheá-lo, vê as ilustrações, lê alguns textos. A
relação do aluno com o objeto livro existe. E esse contato pôde ser democratizado graças
ao projeto do MEC, pois antes os livros que existiam eram poucos, não existia sala de
leitura nem biblioteca. Se as leituras mediadas pela escola ainda não são as ideais, a
3
Alguns alunos têm acesso ao computador. Não só na escola, mas nas famosas “Lan House”, onde eles usam
a Internet, lêem textos, conversam com amigos pelo MSN e até usam a página do orkut.
64
relação leitor/livro existe. Os livros da coleção LMC têm vida expressa nas cores, nas
ilustrações que trazem nas capas, tem o atrativo de serem novos. As sensações táteis,
olfativas e visuais são exercidas pelos alunos com relação a esses livros.
Se o aluno faz uma leitura da capa de um livro, ele terá feito uma leitura.
Podemos pensar no aluno que pega o livro e fica com ele nas mãos olhando a capa. Esse
gesto permite a esse aluno uma leitura que pode introduzi-lo na leitura de alguns textos do
livro ou do livro todo.
A coleção LMC abre esse espaço para que o professor contribua para a
formação do gosto do aluno pelo livro através da leitura da própria capa. No terceiro
capítulo, discorreremos acerca da leitura de contos na coleção, bem como sobre a leitura
das capas desses livros.
A recepção dos textos da coleção LMC começa pelo externo dos livros, eles
trazem diretivas emocionais. O aluno pode brincar com as figuras da capa, achar feias, rir
delas. Estará fazendo uma leitura que, se bem aproveitada pelo professor, pode render um
jogo simbólico muito significativo para o leitor. Uma arte puxa outra e assim, por exemplo,
aproveitar a empolgação do aluno que ri dos dois homens da capa de O Novo Manifesto
(ver p. 73) e mostrar que é uma ilustração produzida por autores anônimos do nosso país,
dialoga com o que vamos ler no livro, é uma maneira de se conquistar o aluno para ler o
livro ou, se ele quiser, para ler só a capa mesmo, por que não?
Além do mais, a maioria dos alunos “consegue” os livros que lêem na escola.
Praticamente todos os alunos têm livros em suas casas: livros didáticos, alguns livros que
conseguem com vizinhos ou professores, ou pegam emprestados na biblioteca municipal
para fazerem trabalhos escolares. Assim o contato com o livro é real. Não se pode afirmar
que o aluno não tem o que ler.
A participação da família na formação desses leitores ainda é tímida. O índice
de pais que lêem em casa, conforme o questionário dos alunos, está em torno de 60%,
incluindo aquelas leituras esporádicas e de utilidade doméstica (bula de remédio, avisos,
cartas). Consideramos esse índice insatisfatório, haja vista que essas práticas, se
considerarmos a influência dos pais na formação do leitor, talvez não contribuam muito.
Analisando as respostas dos alunos, podemos perceber que apenas 12 dos 29 alunos têm
nos pais uma representação de leitura. Ou seja, reconhecem os pais como leitores. Dentre
esse número, 5 são mães. Esses alunos fizeram questão de dizer: “Meu pai não lê, só
65
minha mãe”. A leitura de mãe mais citada pelos alunos é a leitura da Bíblia. Mais uma vez
vemos que o aluno reconhece como leitura legítima aquela que é feita nos livros.
As respostas dos alunos sobre as suas práticas de leitura em casa demonstram
que a maioria deles lêem para os pais aquilo que eles (alunos) acham interessante, ou
querem que os pais fiquem sabendo. Essas leituras são feitas obviamente em voz alta, fato
que faz com que alguns alunos não leiam para os seus familiares porque têm vergonha,
como afirmam 8 deles.
A leitura em voz alta perdeu muito seu lugar nos tempos modernos. Nas nossas
práticas de leitura atuais, dificilmente vemos alguém ler em voz alta. Lemos sempre
silenciosamente, no ônibus, na biblioteca, em casa, porque não há lugar para as práticas
individuais de leitura desse tipo. Pensamos que elas são necessárias para a formação do
leitor, especialmente se o leitor que está em jogo é o aluno do ensino fundamental. A
escola é o lugar dessas práticas oralizadas de leitura. A professora de Português, segundo
os alunos, em sua maioria, lê os livros da coleção LMC na sala de aula; convém lembrar
que na sala de leitura há outros livros que não são da coleção LMC. Porém a preferência da
professora é pelos livros dessa coleção.
Os alunos dizem preferir ler contos na sala de leitura. Esse fator é bastante
influenciado pela professora, por serem os contos narrativas curtas, geralmente, mais fáceis
para a aceitação do aluno. O tempo é outro fator que contribui para a preferência pelo
gênero. Por exemplo: quinta-feira é a aula de leitura: 45 minutos. Então é preciso escolher
um texto pequeno para que se possa dar conta, pois na próxima aula a professora tem um
conteúdo de Gramática do livro didático que precisa ser dado. Se não for assim, a
professora não estará ensinando Português.
Os outros gêneros literários são pouco mencionados. Talvez uma experiência de
leitura com a poesia ou com o romance, pudesse revelar o interesse por tais gêneros.
Além dos questionários aplicados, entrevistamos alguns alunos utilizando de
maneira mais espontânea (em forma de conversa) as perguntas que foram feitas no
questionário, tais como: 1) O que você costuma ler? 2) Que livros tem em casa? 3) O
que a professora costuma ler para vocês?
Vejamos alguns depoimentos dos alunos:
66
ALUNO I
1. Bom, eu costumo ler livros da sala de leitura da escola, ler, às vezes,
jornais porque eles incentivam muito nas notícias do mundo de hoje, né? Costumo ler
livros mais de Português, didático e de História, também.
O aluno marca sua leitura nos livros da coleção LMC, no livro didático de
Português e História e leituras esporádicas em jornais. A fala do aluno “eles incentivam
muito nas notícias do mundo de hoje” tenta nos dizer que é importante ler jornal para ficar
sabendo sobre atualidades, enfim, ficar informado sobre o que se passa no mundo. Esse
discurso é veiculado pela escola (geralmente os professores).
Quando o aluno é incentivado a ler pelos professores, geralmente se incluem
nesses discursos a leitura de jornais. Na propaganda que os professores fazem para
incentivar os alunos a lerem, sempre dizem: “leiam jornais para vocês ficarem sabendo
sobre atualidades, sobre o que está acontecendo no mundo”. Ora, o jornal impresso é um
suporte de leitura que não é acessível à maioria desses alunos. E, por outro lado, eles
sabem das notícias do Brasil e do mundo, em tempo real, através da televisão e da Internet.
Não desmerecendo a leitura do jornal, igualmente importante, podíamos
questionar: não seria mais interessante a escola, enquanto formadora de leitores, usar o
texto literário e paralelamente a essas leituras oferecer outras leituras em outros suportes?
O texto literário, sem dúvida, pode oferecer um leque de possibilidades de atuação do
leitor, além de apontar caminhos para a reflexão sobre o lugar do indivíduo enquanto
cidadão. O uso do texto literário não exclui a pratica de leitura do jornal. O que
defendemos aqui é a organização do trabalho com a leitura na escola.
2. Bom, eu não costumo ter livros em casa, mas às vezes, é... algumas pessoas
da minha família me dão e eu costumo guardar para ler em minhas horas vagas.
A idéia de leitura expressa pelo aluno revela a prática do ler por lazer, por
prazer. Essa prática está livre das cobranças que, geralmente, são feitas pela escola. E, de
certo modo, o aluno é um leitor que escolhe o que quer ler, ainda que dentro dos limites do
que ele tem como suporte. No caso, os livros que parentes lhe dão.
67
3. Bom, na sala de aula, é... ela costuma ler livros didáticos de Português e às
vezes traz livros da sala de leitura, e outros livros também fora, mas que tenham tudo a
ver com a aula.
Na fala desse aluno, o livro didático aparece como o mais usado na sala de aula.
O livro didático de Português é o que recebe maior atenção dos professores de Português
em geral. “As vezes traz livros da sala de aula”. Essa afirmação revela o que realmente
acontece: os livros da sala de leitura são trazidos para sala de aula, são lidos. Porém, isso
ocorre dentro das limitações de tempo impostas pelo conteúdo de Gramática.
Quando conversamos com a professora, em um dos planejamentos, sobre a
nossa participação nas aulas de leitura, ela nos dizia: “Essa semana, não vai ter aula de
leitura porque eu vou terminar o conteúdo de Orações Subordinadas e tem a recuperação
para fazer”.
Em decorrência dos limites que a própria escolarização impõe à leitura literária,
é preciso que se pense a formação do leitor dentro desses limites, mas, ao mesmo tempo,
urge que se use de criatividade. Não se tem moldes para a formação do leitor. É preciso
que se esteja sempre testando essa ou aquela sugestão e criando outras de acordo com a
realidade da classe.
ALUNO II
1. Bom, eu sempre gosto de ler, é... livros porque aí eu avalio a imaginação
dos escritores, e revistas para sempre estar bem informada, como... é... sobre o nosso país.
Interessou-nos particularmente discutir quando o aluno fala que gosta de ler
livros porque “aí ela pode avaliar a imaginação dos escritores”. Na sua fala, fica
subentendido que ele está falando de livros de literatura, de textos literários. Se olharmos
esse depoimento numa visão fora da literatura, podíamos até achar estranho se avaliar a
imaginação de um escritor. Porém, o que escapa a uma discussão mais filosófica, é o fato
de sabermos que o texto literário nos dá essa possibilidade de além de nos emocionarmos
com as histórias, além de trazê-las para perto de nós, ficarmos encantados com a qualidade
da obra, com a criatividade do artista escritor. Seria esse um estágio mais avançado da
68
leitura literária, em se tratando de um aluno de 8ª série. Conseguir refletir sobre o autor,
tentar “avaliar” como ele construiu tal texto é uma atitude de um leitor maduro.
2. Tenho. Muitos (risos). Tenho livros didáticos, é Português, Matemática, é...
que são sempre usados na escola e tenho livros à parte: contos, romances, aventuras e
outros.
Os livros didáticos são livros de leitura e o aluno entende-o como tal. Além do
mais, por serem os que mais são usados na escola, adquirem superioridade face aos livros
de literatura. Para o aluno, esses últimos são “livros à parte”. Os contos, romances são
livros separados no universo de compreensão do aluno. A fala do aluno mostra que a
escola não dá ao livro de literatura o seu devido valor. A própria prática da escola de usá-
los de vez em quando torna-o algo à parte.
3. Bom, ela traz sempre livros e livros à parte, né? Afora, que sempre estão no
assunto. E também ela faz uma coisa muito boa que é, que eu gosto muito, que é assim: ela
manda, ela deixa a critério do aluno, ela diz ao aluno o que que o aluno gosta de ler?
Pronto: Se o aluno gosta de ler um gibi, ele traz o gibi e lê na sala de aula para se sentir
mais à vontade, na sua leitura.
Chamamos a atenção para esta fala: “livros e livros à parte, afora, que sempre
estão no assunto”. O primeiro termo “livros” parece legitimar o livro didático, é o livro. O
segundo termo “livros à parte” remete a uma categoria de livros, cujas leituras
incrementam o assunto que está sendo dado. E ainda: os livros à parte referem-se aos da
coleção LMC. São considerados livros “à parte”, a partir do momento em que se concebe a
leitura fora de um contexto imediato de cobrança. Ou seja, ler para responder a perguntas
sobre o texto ou localizar conteúdos gramaticais.
A professora é uma leitora. Dentro dos limites que se lhe apresentam, ela é uma
leitora. E o que é muito importante: ela democratiza a leitura. Quando deixa que os alunos
leiam o que gostam de ler e ainda que tragam à sala de aula outros suportes de leitura ou
outra leitura como o gibi, ela está no caminho certo como leitora formadora de leitores.
69
ALUNO III
1. Eu gosto de ler mais livro de Ciências, sobre a vida humana, sobre os
animais, as plantas, eu gosto de ler mais, assim, livros que ensinam muitas coisas. É...
livro didático.
Percebe-se aqui a importância que o aluno dá ao livro didático. São livros que
ensinam aquilo que ele se interessa em aprender, em conhecer: a vida. Esse aluno é um
leitor e tem um gosto por esse tipo de leitura, que para ele é acessível somente no livro
didático. Seria o momento de mostrar a ele outras leituras que dialoguem com o seu desejo
de conhecer a vida. Nesse caso, a leitura do texto literário da coleção LMC pode muito
bem dialogar com essa prática de ler textos informativos, didáticos.
2. Tenho, muitos livros. Muitos livros de... como eu já disse, didáticos e de
Ciências. Eu tenho mais livros assim. E outros livros... de Português, de texto e livro de
Matemática também. Só tenho esses tipos de livros.
Visto como uma instância da escolarização da leitura literária (SOARES, In
EVANGELISTA, et. al., 2003), o livro didático traz problemas para a formação do leitor,
quando usa inadequadamente o texto literário. Por outro lado, se visto como o material de
leitura que o aluno tem em casa, ele funciona como um via de formação do leitor que deve
ser considerada.
3. Bom, ela traz texto que... livros que tenham textos práticos, para ensinar
sobre umas coisas, os verbos, algumas coisas... também romances, contos e traz também
textos com história de vida reais, mas narrada, que tem na vida real, traz esses tipos de
livros, essas histórias.
O depoimento do aluno aponta para duas práticas que são realizadas nas aulas
de Português: a prática diária, a do livro didático e a prática semanal (há semanas em que a
professora não realiza a aula de leitura, porque tem um conteúdo atrasado de Gramática ou
recuperação para fazer). Essa atividade, quase que semanal, a aula de leitura, funciona
mais como um cumprimento de uma norma que garanta a sobrevivência do projeto de
leitura do que uma prática para a formação do leitor. Tanto é que a professora se preocupa
demais com o que fazer com as leituras, e o diretor, por sua vez, quer que a professora
mostre, de alguma forma, trabalhos feitos com os alunos. Isso porque eles têm que mostrar
70
nos encontros do “Projeto Escola 2000 por hora” que a escola está obtendo resultados
significativos quanto ao incentivo à leitura. Esse projeto esta ligado ao Instituto Ayrton
Senna.
É importante notar que ainda que as aulas de leitura aconteçam considerando a
existência do projeto 2000 por hora, a prática de leitura não esbarra nesse limite. Ela
acontece como momento de encontro, de diálogo entre leitor e texto.
A fala do aluno revela uma recorrência da inadequada escolarização da leitura
literária (SOARES, in: EVANGELISTA, et al., 2003). Trata-se do uso de textos como
pretextos para localização de informações gramaticais. É o que o aluno chama de textos
práticos e que tem a ver com os conteúdos das disciplinas.
A escola, portanto, tem condições para realizar um projeto de formação de
alunos leitores. Precisa, nesse contexto, ter claras as concepções de leitor/livro/leitura. Para
isso é necessário buscar as contribuições das pesquisas acadêmicas sobre o assunto e uma
formação continuada, que contemple diretores, professores de Português e pessoas que
trabalham nas salas de leitura e/ou bibliotecas. Da tríade leitor/livro/leitura, podemos dizer
que o leitor é aquele que da vida ao texto, que atribui sentidos a ele. Suas maneiras de ler
são diversas e não se pode ter o controle das práticas de leitura que são realizadas pelo
leitor. O livro, por sua vez, é um suporte de leitura dentre tantos, porém sua história
respalda sua credibilidade até hoje em detrimento dos outros suportes
4
. A leitura é uma
operação que envolve contingências sociais, religiosas, dentre outras, é a atribuição de
sentidos.
No capítulo seguinte, apresentamos uma sugestão de trabalho com a leitura de
contos da coleção LMC – 8ª série. Mostrarei os livros e contos escolhidos e o relato da
experiência de leitura com alunos da 8ª série “A”, ano 2007, da Escola “João da Mata”.
4
Para um aprofundamento sobre a tríade leitor/livro/leitura, recomendamos os livros: A aventura do livro: do
leitor ao navegador e A ordem dos livros. Ambos de Roger Chartier (ver referências).
71
CAPÍTULO III
UMA PROPOSTA DE LEITURA COM LIVROS DE CONTOS DA COLEÇÃO
LMC
1 Apresentação dos livros escolhidos
Trabalhar com narrativa, especificamente com o gênero conto, foi uma escolha
que fiz a partir das considerações dos alunos e da professora. É o gênero de que os alunos
gostam (conforme dados obtidos através de questionários), a professora prefere, assim
como a pesquisadora, uma vez que minha formação de leitora traz muito das histórias
contadas e das histórias lidas (conto) nos livros.
Escolhemos três livros, dos quais elegemos para a leitura com os alunos seis
contos. Os livros são os seguintes: Deixa que eu conto, V. 2, Crônica e Conto, Editora
Global; O novo manifesto – Antologia de Contos e Crônicas – V. 2, Martins Fontes
Editora; A descoberta do amor em prosa V. 2, crônica e conto, Companhia Editora
Nacional.
1
Os contos escolhidos foram: Conto familiar (Mario Quintana); Medo (Cora
Coralina); A moça tecelã (Marina Colasanti); O boi Leição (Câmara Cascudo); Missa do
Galo (Machado de Assis); As mãos de meu filho (Érico Veríssimo).
O volume 2 Deixa que eu conto – Crônica e Conto, integra uma coleção de 4
volumes, sendo: volume 1 – Poesia – Tempo de poesia; volume 3 – Novela – Um sonho no
coração do abacate – Moacyr Scliar; volume 4 – Peça teatral – Sonho de uma noite de
verão – William Shakespeare.
1
Os livros da Coleção LMC com os quais trabalhei durante toda esta pesquisa foram emprestados pelo
diretor da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio “Mons. Vicente Freitas” – Pombal-PB.
72
FIG. 05 – CAPA DO LIVRO DEIXA QUE EU CONTO – CONTO
E CRÔNICA – 8ª SÉRIE
O livro O novo manifesto é uma antologia de contos e crônicas – e faz parte da
coleção, que contém os seguintes volumes: volume 1 – Poesia – Discurso de um sonho e
outros poemas; volume 3 – Romance – Ubirajara de José de Alencar; e volume 4 – Teatro
As mãos de Eurídice de Pedro Bloch.
73
FIG. 06 – CAPA DO LIVRO O NOVO MANIFESTO – ANTOLOGIA
DE CONTOS E CRÔNICAS – 8ª SÉRIE.
Fazem parte da coleção os seguintes volumes: volume 1 – Poesia – A
descoberta do amor em versos; volume 2 – A descoberta do amor em prosa, , Crônica e
Conto; volume 3 – Romance Raptado; e volume 4 – Peça teatral – O Judas em sábado de
Aleluia.
74
FIG. 07 – CAPA DO LIVRO A DESCOBERTA DO AMOR EM
PROSA – CRÔNICA E CONTO – 8ª SÉRIE.
A tarefa de escolher, com a professora, livros da coleção LMC para
trabalharmos com os alunos foi um processo difícil e ao mesmo tempo prazeroso. Difícil
pelo fato de a coleção LMC já ser fruto de uma seleção. Não existem, pois, livros ou
textos, ou gêneros de menor valor.
A nossa escolha deveu-se à economia desse trabalho, pois se trata de uma
elaboração de propostas e de uma execução das mesmas. Portanto, trabalhamos com uma
amostragem tanto com relação à turma escolhida, como com relação aos livros.
75
O primeiro livro escolhido foi Deixa que eu conto. O título pareceu-nos muito
sugestivo. Deixa que eu conto é uma frase carregada de sentidos. Além de remeter o leitor
ao gênero “conto”, enquanto texto escrito no livro, projeta a idéia de contar histórias, do
falar, do ouvir. Além disso, o verbo no imperativo afirmativo “Deixa” veicula a idéia de
apropriação da leitura.
Tendo lido os textos do livro, pensamos: Como seria interessante resgatar,
através desse texto, o paraíso perdido
2
ou talvez, nunca encontrado totalmente, das
histórias contadas e lidas! Muitos alunos não tiveram, ou pouco tiveram, oportunidade de
trabalhar seu universo de fabulação (CANDIDO, 1995) durante a infância. Muitos são
educados numa ótica de consumo que não inclui o livro como objeto de uso necessário
tanto quanto uma roupa ou um calçado. Por outro lado, a vida moderna não permite o
precioso tempo, que outrora os avós ou os pais dedicavam aos netos ou filhos: horas a
contar histórias. Tinha-se tempo para ouvir essas histórias, para sentar perto do avô ou da
avó, ou do pai ou da mãe, e atentamente escutar maravilhado aquela narrativa, aquela
“nova” ou velha história que eles tinham para nos contar.
O resgate dessa prática pode ser mediado pela escola. Por isso pensar-se em
fazer um projeto de formação do leitor, a partir dos livros da coleção LMC não parece
utopia. Em todas as idades gostamos de ouvir histórias reais ou fictícias (ABRAMOVICH,
2004); sobretudo, quando crianças, pois estamos propensos ao desenvolvimento da
fabulação.
Os livros da coleção LMC proporcionam ao leitor o conhecimento dos
escritores canônicos. Há a apresentação dos autores por “pacotes”. Ou seja, cada volume
de poesia, conto e crônica traz, em média, três a oito escritores. Assim, na leitura do livro
Deixa que eu conto, o aluno vai ouvir falar e ler algumas informações sobre sete autores
brasileiros: Mário Quintana, Cora Coralina, Manuel Bandeira, Ignácio de Loyola Brandão,
Cecília Meireles, Lygia Fagundes Telles, Carlos Drummond de Andrade, Maria Colasanti,
Rachel de Queiroz, Luís da Câmara Cascudo e Daniel Munduruku.
A coleção LMC é, sem dúvida, um projeto que ambiciona a inclusão social do
aluno por meio da leitura; e por assim dizer da leitura de textos canônicos. A proposta
2
Expressão utilizada por Michel de Certeau quando discorre sobre a fragilidade da leitura em relação à
passagem do tempo. Para ele, “a leitura não se protege contra o desgaste do tempo. E cada lugar por onde ela
passa é a repetição do paraíso perdido”. (CERTEAU, apud CHARTIER, 1999, p. 11).
76
merece reverência. O aluno do ensino público necessita do contato com bons textos. A
coleção LMC permite essa aproximação, uma vez que ela existe, se não em casa, na escola.
Resta saber se as escolas democratizam as práticas de leitura dos livros, se consideram as
outras leituras dos alunos, aquelas que ficam de fora do cânone.
A aproximação que previmos nesta pesquisa – aluno e livro – é aquela que leva
em conta as experiências do aluno com a leitura, dentro e fora da escola. O livro, a leitura,
a literatura precisam ser concebidos pelo aluno com um direito, como já afirmamos
anteriormente (CANDIDO, 1995). E a relação dele com os textos veiculados pela coleção
precisa ser afetiva e simbólica (JOUVE, 2002).
Lembramos aqui que a voz do professor pode ajudar muito na formação do
leitor. Não basta “mandar os alunos lerem” qualquer livro. É imprescindível que o
professor deixe fluir sua experiência de leitor, sua paixão pela leitura. Nesse contexto, a
voz, os gestos, os tons que a leitura pede devem ser respeitados. Se não for assim, a leitura
do texto literário será reduzida a uma mera leitura, sem qualquer aproveitamento da
literariedade.
Em O Novo Manifesto – Antologia de Contos e Crônicas, têm-se a
oportunidade de informar o aluno sobre o que é uma Antologia, um Manifesto. O livro
possibilita o diálogo com outras artes e também leva o aluno a ver-se como sujeito capaz
de produzir arte, seja em desenho, pintura, escultura. O volume é ilustrado (capa) com uma
escultura produzida por artista anônimo. (Ver figura p. 71)
A coleção LMC enfatiza além da escultura, e da produção literária, outras artes,
outros trabalhos, como fotografia, ilustração. Quem faz esse trabalho para tornar o livro o
que ele é, a matéria que chega ao aluno, é visto na obra também como autor: “outros
autores deste livro”. Ainda que a maior relevância seja dada ao autor-escritor, por se tratar
de textos literários, o foco da coleção.
Nesse volume, pode-se “conhecer” escritores como Érico Veríssimo, Machado
de Assis, Cecília Meireles, Lima Barreto e Antônio Maria; além de se inserir uma
discussão sobre conto e crônica e sobre outras obras, outros textos de conhecimento do
professor, que ele já tenha lido como leitor, não como ledor. (CORDEIRO, In: TURCHI e
SILVA, 2006).
77
2 Leitura Literária na Escola: por uma metodologia de formação do leitor através da
coleção LMC
Tomamos como pressuposto para sugestão dos tópicos a seguir o fato de a
formação do leitor está muito ligada à infância e à prática de se ouvir histórias: “Ah, como
é importante para a formação de qualquer criança ouvir muitas, muitas histórias... Escutá-
las é o início da aprendizagem para ser um leitor, ser leitor é ter um caminho
absolutamente infinito de descoberta e compreensão do mundo...” (ABRAMOVICK, 2004,
p. 16)
Lembro-nos de que o nosso gosto pela leitura, sobretudo pela leitura literária, se
deu muito antes de que soubéssemos decifrar signos lingüísticos. O conhecer as letras, as
sílabas e formar as palavras foram atividades estimuladas pelo desejo de descobrir o
mundo escrito, o mundo dos livros. O mundo da fantasia, da fabulação, já existia na
pesquisadora desde muito cedo, quando ouvia seus avós contarem estórias e seu pai cantar
e recitar estórias inteiras em versos. Lembra-nos o quanto nos interessava ouvi-las
repetidas vezes
3
e o quanto essa prática foi importante na nossa formação de leitora. Dessa
forma, fomos “trabalhada” para gostar de ler, a partir desses gestos familiares
aparentemente sem importância.
Quando ouvíamos tais estórias nos emocionávamos. Às vezes, sentíamos
alegria, às vezes, tristeza, outras vezes sentíamos raiva daquelas pessoas ruins que sempre
estavam nas estórias que ouvámos. Portanto, para se formar leitor é condição sine qua non
ser leitor e usar esse testemunho, essa história de leitura para conquistar o aluno. Isso vale
para o professor e para a família. Entenda-se a leitura aqui como uma prática que se
constrói antes de o aluno freqüentar os bancos escolares.
Quando a criança passa a freqüentar a escola, a sua experiência de leitura vai
ser aquela mais escolarizada, ou seja, aquela que sofrerá interdições feitas pela própria
instituição Escola. Como exemplos, podemos citar a eleição de determinado gênero
literário em detrimento de outros; o uso da fragmentação de textos decorrentes da didática;
a indiferença às experiências de leitura que o aluno traz (EVANGELISTA, et. al. 2003).
3
Hoje, fazendo as vezes de contadora de estórias para crianças (sobrinhos, primos), sinto o quanto a
repetição (o “conte de novo”, como as crianças dizem) é importante para eles como o era para mim. A cada
vez que contamos a história, acrescentamos novas informações, novos detalhes. Nunca é para a criança uma
mera repetição, ainda que possa parecer para o adulto.
78
Questão já evidenciada anteriormente através da discussão do poema Neologismo de
Manuel Bandeira no livro didático.
Considerando a coleção LMC, é possível se desenvolver um projeto de
formação do leitor a partir de textos canônicos, sem, contudo, desprezar as leituras que o
aluno tem, ou seja, a sua própria história, constituída a partir da oralidade ou da leitura de
textos fora do cânone. Comentaremos a seguir alguns pontos importantes para a formação
do aluno-leitor
4
, com base em discussões sobre o trabalho com a leitura desde os anos 80, a
partir das propostas de João Wanderley Geraldi (1984), Zilberman (1985):
1. O professor precisa, em primeiro lugar, resgatar a sua história de leitura,
posicionando-se como um leitor autêntico. Sem essa condição fica praticamente
impossível formar o aluno leitor, pois não há como influenciar o gosto pela leitura se
não se é leitor. O professor, portanto, deve ser leitor assíduo dos textos da coleção
LMC. Deverá ter bem claras as concepções de leitor, livro e leitura. A nossa proposta
de leitura consiste em ler para formar leitor. Isso exige um certo embasamento teórico a
fim de que a prática do professor seja feita à luz das pesquisas, dos estudos já
realizados nessa área.
2. Dedicar, no mínimo, duas aulas à leitura de textos, selecionados pelo professor.
Considere-se aqui que o professor, enquanto leitor maduro, escolherá os textos baseado
no gosto que esses lhes causaram e não na eventual praticidade que ele possa ter para
se “ensinar” alguma coisa ao aluno. A experiência de encantamento com o texto é
muito importante na relação do professor-leitor com o aluno em processo de formação.
3. Criar um ambiente de leitura na sala de aula. É importante que na sala de aula seja
criado um ambiente que se diferencie do cotidiano. Pode-se deixar os alunos mais à
vontade, sem a formalidade das filas, sentados nas cadeiras em círculo ou até mesmo
no chão. O professor aqui se mistura com os alunos. Ou seja, ele deve se envolver na
atividade como um leitor que vai viver uma nova experiência, embora já conheça o
texto. Afinal, ele é leitor junto com o aluno. O professor, portanto, deve se despojar de
79
certas concepções mediadas pelo discurso de poder, tais como: professor não pode
sentar no chão, o aluno tem que reconhecer o seu lugar. Esses preconceitos são
prejudiciais num processo de formação do leitor. Se o professor planeja a leitura com
ludicidade, com versatilidade, se é alguém que lê apropriando-se das leituras, não
precisa temer ser desrespeitado. O seu papel não será arbitrário. Ao contrário, ele se
sentirá muito mais formador de mentalidades, a partir do momento em que mantém
com os alunos uma relação dialógica.
4. Quando se tratar de contos, é interessante para o aluno que o professor conte a
estória antes de fazer a leitura do conto (um comentário que faça o aluno se
interessar pela estória). A maneira como o professor fará isso pode incitar a
curiosidade do aluno pelo texto e a vontade de lê-lo. Daí, o aluno vai entender que
entre ouvir uma estória contada e lê-la, há diferenças. Os detalhes só poderão ser
entendidos, vistos, ao ler o texto. O professor não precisa alertar o aluno para essas
diferenças, os próprios depoimentos deles acerca da leitura vão confirmar essa verdade.
Ou seja, eles perceberão nuanças no texto que o professor pode não ter visto na sua
leitura. Ou pode ocorrer que a fala do aluno dê margem a outras colocações que o
professor poderá fazer.
5. Não prescindir da leitura em voz alta em sala de aula. O professor deve fazer uma
leitura do texto em voz alta, investindo nesse momento sua experiência como leitor:
emoção, entonação, pausas, expressão corporal, valorização das onomatopéias na
leitura. Nenhum aspecto do texto, sob o ponto de vista da oralização, pode ser
menosprezado pelo professor. Por isso essa prática exige planejamento e repetidas
leituras do texto, na sua saudável solidão com o livro.
Sobre a prática da leitura em voz alta, Chartier (1999, p. 16-17) discute:
A leitura não é somente uma operação abstrata de intelecção; ela é engajamento
do corpo, inscrição num espaço, relação consigo e com os outros. Eis por que
deve-se voltar a atenção particularmente para as maneiras de ler que
desapareceram em nosso mundo contemporâneo. Por exemplo, a leitura em voz
alta, em sua dupla função: comunicar o texto aos que não o sabem decifrar, mas
80
também cimentar as formas de sociabilidade imbricadas igualmente em símbolos
de privacidade- a intimidade familiar, a convivência mundana, a convivência
letrada.
Quando lemos um texto literário em voz alta, tanto na nossa privacidade quanto
em sala de aula, estamos realizando uma prática peculiar ao nosso exercício de leitor e
prestando um serviço à formação do leitor. No caso da poesia, por exemplo, nunca
podemos abrir mão dessa maneira de ler, sob pena de aniquilarmos a vida do texto, pois
muitos poemas pedem além da leitura oral bem feita, a impressão do ritmo, da
musicalidade. É o que podemos perceber em muitos poemas de Manuel Bandeira. Os
Sinos, por exemplo, pedem para ser cantados e em tom litúrgico. Percebendo esse tom,
realizamos em uma turma de Especialização de Letras o estudo desse poema a partir da
leitura cantada em tom de ladainha e acompanhada com violão. Foi emocionante. Essa
experiência de leitura é válida para turmas do ensino básico. Aliás, seja lembrado que
muitos poemas de Bandeira parecem cantigas, parecem ser feitos para serem cantados e
evocam muito essa aura litúrgica. Pensar num projeto de formação de professores leitores
considerando esse viés nos parece.
6. Promover leitura individual e coletiva
4
. Para esse ponto, o professor precisa ser
criativo. Não basta pedir que todos os alunos leiam de uma só vez ou pedir que
determinado aluno leia tal parágrafo e outro continue. Como o professor é leitor, junto
com o aluno, obviamente vai participar da leitura e essa participação experiente lhe
permitirá conduzir a leitura de forma que os alunos que tenham dificuldade de fazer as
pausas e as entonações possam seguir o ritmo do professor e, posteriormente, sejam
capazes de ler bem sozinhos e/ou ler para toda a sala.
A leitura individual não deve soar como uma ordem do professor. Ao contrário,
o aluno deve sentir que está contribuindo, no momento em que lê. Por isso em vez de o
professor dizer: Carla ou Antônio, leia o primeiro parágrafo do texto, melhor será
aproveitar o momento em que o aluno estiver fazendo alguma colocação sobre o texto e
4
Aqui estamos discutindo sobre a produção da leitura na dimensão individual e coletiva, enquanto emissão
da voz. Porém, recomendamos que o professor possa ampliar esses conceitos entendendo também a leitura
individual como aquela que o aluno escolhe por iniciativa própria; e por leitura coletiva como aquela que
toda classe ler. Ex.: toda classe pode ler o mesmo livro.
81
pedir que ajude o professor a localizar a parte do texto que tem a ver com o que ele está
falando e, em seguida, pedir para que ele leia.
O professor deve criar uma atmosfera de afetividade e humanidade diante dos
alunos. O aluno precisa sentir que a sua fala é importante, que ela não está sendo censurada
ou medida pelo professor numa escala de zero a dez.
7. Explorar as ilustrações e as informações que os livros trazem. As ilustrações são
recursos muito importantes na coleção LMC. Elas dizem dos textos que estão nos
livros, dialogando dessa forma com a temática. Tais ilustrações não devem ser
ignoradas pelo professor formador de leitor. A leitura desses livros deve ser aquela que
contemple também a dimensão não-verbal, num diálogo constante com o texto escrito.
Quando fizemos a leitura com os alunos das capas dos livros escolhidos (1°
encontro), fomos descobrindo e construindo o sentido do texto juntos. Essas descobertas
pareciam fluir naquele momento. Os alunos quando leram a capa do livro A Descoberta do
amor em prosa fizeram várias colocações: “Professora, a mulher está lendo deitada. Quer
dizer que a gente pode ler como quiser”. “Ela está lendo em casa, na sua cama, é por isso
que é Literatura em minha casa”. Muitas discussões surgiram. A professora lia e os alunos
liam e se cruzavam as idéias como um jogo de descobertas. Tudo isso a partir de uma
ilustração. Foram dados muitos sentidos para esse texto, a partir de indagações bem
informais como: Que tipo de leitura a mulher pode está lendo? “Deve estar lendo uma
história de amor”. “Ela vai pegar no sono porque está lendo deitada”. Que relação há entre
a ilustração da capa dos livros e os textos que ele contém?
Outros aspectos a serem considerados são as informações que os livros da
coleção LMC trazem na sua parte introdutória, ou como elementos pós-textuais. São
comentários sobre os escritores, sobre os ilustradores, texto dos editores, comentários sobre
os textos contidos nos livros, explicações sobre os gêneros (conto e crônica).
Recomendamos ao professor formador de leitor, especialmente aqueles que
lidam com todas as séries do ensino fundamental, fazer uma leitura cuidadosa dos livros,
começando pela capa, sem deixar escapar importantes detalhes. A arte popular tem seu
lugar nos livros da coleção LMC e o professor deve estar atento também a esse detalhe. No
caso do livro O Novo Manifesto, tem-se na capa e na primeira página a reprodução da
82
figura do preto velho. Essa imagem também pode ser explorada, assim como as outras
existentes na capa do livro.
8. Promover debates sempre que o texto lido pedir o preenchimento de vazios,
diríamos mais polêmicos. Ou seja, permitir que os alunos façam inferências sobre o
que leram. Exemplificando: o professor leva à sala de aula o conto “Missa do Galo” de
Machado de Assis. Após comentar a estória e usando sua experiência de leitor e
conhecedor do texto, ele poderá fazer a leitura do texto em voz alta, parando um pouco
em cada ilustração. É importante ler tais ilustrações com os alunos, deixar que eles
vejam pormenores, que confirmem ou neguem o que foi lido no texto escrito. A
presença das ilustrações nos textos da coleção LMC exerce uma espécie de
relaxamento no fôlego do leitor, sobretudo quando se trata de textos mais longos.
A leitura de um texto como “Missa do Galo” pode ser feita por partes. Dessa
forma, a marca divisória dessas partes seriam as próprias ilustrações. O uso das ilustrações
na coleção faz desses livros uma importante via de formação do leitor.
9. O professor deve promover uma maior circulação dos livros da coleção LMC
entre os alunos da escola. O aluno, uma vez envolvido na dinâmica da leitura
desenvolvida em sala de aula, dentro dos pontos aqui discutidos, pode se tornar um
contador das estórias que leu. Como se fará isso? A essa altura é possível se perceber
que alunos se envolveram mais, quais deles têm desenvoltura para contar algumas
estórias para outras turmas (5ª, 6ª, 7ª série). Lembramos que essa tarefa exige
planejamento, flexibilidade, liberdade para o aluno escolher o que quer contar e ler,
considerando junto com o professor que público quer atingir.
10. Como “escapar” das questões avaliativas. Convém que o professor faça essa
avaliação, considerando o trabalho como um todo: participação dos alunos,
contribuições que eles trouxeram com as suas experiências de leitura. Para se efetivar a
apropriação das leituras pelos alunos o professor pode oferecer a ele um leque de
possibilidades para que possa manifestar suas formas de apropriações das leituras que
realizou. Isso pode se fazer através de desenhos, entrevistas, resumos de obras,
83
comentários críticos de obras. O professor pode organizar com os alunos outras
antologias de contos de outros autores. Ou talvez os alunos possam criar suas histórias
e o professor possa fazer essa antologia com os textos dos próprios alunos. Alertamos
que o professor precisa usar sua perspicácia de leitor, sua experiência, e não prescindir
de um planejamento dessas atividades. A prática de contar as estórias para outros
alunos contribuirá para que o aluno faça a travessia da timidez para a percepção de sua
própria voz enquanto instrumento importante no ato de ler. Também contribuirá para
que o aluno deseje ler outros livros da coleção LMC.
Apresentamos a seguir uma sugestão para elaboração de uma proposta de
leitura com contos da coleção LMC – 8ª série:
Objetivo Geral
Contribuir para a formação do aluno-leitor através da leitura de contos da
coleção Literatura em minha casa – 8ª série.
Objetivos Específicos
Partilhar com os alunos as experiências de leitura de professor com cada
conto escolhido;
Ler os textos para e com os alunos;
Suscitar a discussão dos textos entre os alunos.
Montando a experiência
1° Passo:
Definição das obras e do gênero dos textos a serem trabalhados
considerando o contexto dos alunos.
2° Passo:
Leituras e releituras dos textos pelo professor;
3° Passo:
84
Partilha dos textos com outros professores de Português da mesma série ou
séries mais próximas (7ª e 8ª) a fim de que se possa ouvir as experiências
como o texto na leitura com os professores
4° Passo:
Percepção da possibilidade de a leitura dialogar com textos de outros
gêneros que tenham a mesma temática.
Planejar as aulas de leitura é muito importante para que o professor se prepare
para vivenciá-las com os alunos como uma experiência nova que vai enriquecer ambos.
A questão da releitura configura-se como um momento indispensável para o
professor. Ele vai ter a oportunidade de pensar com a cabeça e com o coração sobre o
momento em que o aluno vai se encontrar com o texto.
Sobre a partilha da leitura com outros professores, convém dizer que, no
processo de formação de leitor, o aluno precisa ver no professor um leitor. Adotar a prática
de conversar sobre o que se lê na escola pode virar “hábito”.
Sempre que possível, é bom fazer a leitura de um texto poético, por exemplo,
cujo tema dialogue com o conto lido.
Nesta pesquisa, no relato das experiências de leitura dos contos Conto familiar,
de Mário Quintana e Medo de Cora Coralina, ver-se-á que depois de um certo andamento
da discussão, foi lido um texto de literatura de cordel, Memórias de um enterro de autoria
da pesquisadora.
Cabe ao professor, portanto, estar aberto às expectativas da turma e ter em
mente que ele, enquanto mediador na leitura, pode influenciar o gosto do aluno pela
liberdade, pela leitura do texto literário. O contato com outro gênero de mesma temática
pode instigar o debate, além de promover a oportunidade de o aluno ampliar a experiência
com a leitura literária. Quem sabe aí possa surgir o desejo de ultrapassar as paredes da
escola e se vá em busca de outros textos literários que façam parte de sua história de
leitura. História essa que nem começa nem acaba na escola.
Vejamos agora um detalhamento maior da proposta:
85
Primeira etapa: escolha dos contos pelo professor (deve-se considerar as
preferências dos alunos).
Sugestões de procedimento
O professor: leitor e formador de leitores
Professor/leitor deve Professor/Formador de leitor
Fazer um levantamento dos livros de contos
da coleção LMC da 8ª série disponíveis na
escola.
Pensar sempre que o aluno também pode
participar desse processo de escolha.
Verificar todos os nomes de autores
elencados na capa dos livros, percebendo os
que são conhecidos do professor e aqueles
que poderão ser conhecidos nesse processo
de planejamento.
Conversar com os alunos sobre os autores
dos textos, fazendo a relação com títulos e
com a produção daquele autor
.
Abrir os livros numa atitude de busca, com
a sede de quem quer e vai encontrar o
melhor presente.
Lembrar que o texto que emociona o
professor também pode emocionar o aluno.
Deixar-se cativar pelo título dos textos: é a
vez de reler e conhecer textos novos.
Comentar com os alunos a experiência de
leitura que teve com os textos.
Segunda etapa: O planejamento das atividades precisa levar em conta:
Exemplo: O volume 2 Deixa que eu conto apresenta um texto maravilhoso de Câmara Cascudo. Chama-se
O boi Leição. Aqui entra o incentivo do professor ao aluno para que ele (o aluno) procure o texto para ler.
86
Sugestões de procedimento
O lugar O tempo
Organizar a sala de aula de forma a
propiciar um clima diferente do cotidiano.
Atentar para a distribuição das aulas a fim
de que sejam destinadas à leitura literária
pelo menos 2 das 5 aulas de Português.
Entender a sala de leitura como um lugar
em que o aluno vai encontrar muitas vezes o
que o professor não mandou procurar.
Incentivar o aluno a vir à sala de leitura em
horário alternativo às suas aulas.
A leitura do professor e a do aluno
Perceber que professor e aluno são leitores do texto que vai ser proposto
para a leitura;
Adotar múltiplas maneiras de ler o texto: silenciosamente, em voz alta, o
professor faz a leitura e os alunos escutam, os alunos podem ler o texto
alternadamente. A releitura também é muito importante, pois permite se
construir novos sentidos para um texto lido.
Terceira etapa: A execução da atividade: O momento do leitor e do texto.
Sugestões de procedimento
O professor O aluno
Um contador de história.
A experiência de ouvir a história antes de
ler prepara o aluno para uma melhor
recepção do texto escrito.
87
Um influenciador no gosto do aluno pela
leitura.
Alguém que empresta sua voz para dar vida
ao texto escrito.
Quando percebe o professor como um leitor
competente, o aluno é contagiado.
Alguém que escuta e faz uma boa leitura,
contempla a organização do texto, e pode
ser humanizado a partir desse traço.
Um leitor que conversa com os alunos sobre
o que lê.
Alguém que se percebe importante nas
inferências que faz sobre o texto.
3 Relato e discussão da experiência realizada
Três contos foram trabalhados durante os dias 15 e 16 de fevereiro de 2007:
Conto familiar (Mário Quintana); Medo (Cora Coralina) e O boi Leição (Câmara
Cascudo). Os dois primeiros textos são bem curtos. Escolhi trabalhar com esses três contos
pela correlação da temática morte nos dois primeiros textos. E, pela temática
amor/verdade/mentira no terceiro texto (O boi Leição).
Antes de iniciar as leituras as carteiras foram arrumadas em círculo. Trouxe da
sala de leitura para a sala de aula os volumes dos livros escolhidos. Procurei fazer da sala
de aula um ambiente de leitura. É importante pontuar que havia poucos exemplares dos
livros escolhidos, de modo que foi preciso fazer cópias para que todos os alunos tivessem o
texto. Porém todos os alunos tiveram contato com o texto original do livro, até porque a
Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio “Mons. Vicente Freitas” nos concedeu
alguns volumes, como foi relatado anteriormente.
Apresentei os livros, fiz um breve comentário sobre o objetivo da coleção
LMC. Em seguida, coloquei em retroprojetor a capa de cada livro. Fiz com os alunos a
leitura de cada capa dos livros.
Na oportunidade, expliquei o que é uma antologia. Esse momento seguiu-se de
um relato sobre a minha experiência com a leitura dos contos. Contei a estória do velho
88
que envenenou o barril de chope numa festa familiar. Ele, aos noventa e nove anos, queria
se ver livre de sua família, pois não a agüentava mais, sobretudo pela forma como era
tratado.
Em seguida lemos em voz alta, com todo entusiasmo e entonação, o conto:
Era um velho que estava na família há noventa e nove anos, há mais tempo que
os velhos móveis, há mais tempo até que o velho relógio de pêndulo. Por isso
estava ele farto dela, e não o contrário, como poderiam supor. A família o
apresentava aos forasteiros, com insopitado orgulho: “Olhem! Vocês estão vendo
como ‘nós’ duramos!?” Caduco? Qual nada! Tinha lá as suas idéias. Tanto que,
numa dessas grandes comemorações domésticas, o pobre velho envenenou o
barril de chope.
No entanto, como era obviamente impraticável – a não ser em novelas policiais
deitar veneno nas bebidas engarrafadas, apenas sobrevivem os inveterados
bebedores de coca-cola. Mas como é possível – lamentava-se agora
tardiamente o pobre velho – como é possível passar o resto da vida com esses?
Como gente assim? Porque a coca-cola não é verdadeiramente uma bebida –
concluiu ele, - a coca-cola é um estado de espírito... E, assim pensando, o sábio
ancião se envenenou também. (QUINTANA et al. 2003, p. 7-10)
Os alunos gostaram do texto, riram, lembraram de seus avós. A professora
continuou a discussão falando da sua experiência com seu avô paterno. Isso instigou os
alunos a falarem também de suas experiências pessoais com avós. Continuaram falando de
seus avós, bisavós. Seguiu-se a questão: o velho do texto era mesmo caduco? Uns disseram
que sim, pois “aos noventa e nove anos, não é possível que a pessoa tenha o juízo normal”.
Outros disseram que não, porque o velho achava a família egoísta. Falaram de coca-cola,
chope... Um aluno disse que a coca-cola era a segunda bebida mais ingerida do mundo, só
perdia para a água. Nesse momento, foi discutida a questão da lucidez dos idosos, foram
contadas experiências engraçadas envolvendo o comportamento de gente idosa da família
dos alunos e da família da professora pesquisadora.
Foi difícil coordenar a discussão porque eles queriam falar todos de uma vez.
Uns se dirigiam a mim para falar sobre velhice; outros se dirigiam aos colegas e quase
todos queriam dizer algo sobre o comportamento das pessoas mais velhas: dormem cedo,
não gostam de zoada... Um aluno fez a seguinte colocação: “Hoje em dia muitas pessoas
não gostam de velhos e têm filhos que colocam os pais no abrigo e nem vão ver eles”.
Considerando o texto como o campo do jogo (ISER, In: LIMA, 1979), percebe-
se que o aluno leitor vivenciou uma relação significante, no momento em que preencheu
89
tantos vazios deixados por este. O leitor identificou a partir do texto um mundo até então
não identificado. O texto enquanto ficção foi tomado como um jogo. Os alunos sabiam que
o texto em si não era realidade, mas era “como se fosse”, por isso todas as extrapolações
feitas são reais nas experiências deles.
No decorrer da discussão surgiu também o tema morte: o velho de 99 anos
suicidou-se com o chope que ele próprio envenenara. A partir daí mostrei outra estória: o
conto de Cora Coralina “Medo”.
Esse conto relata a estória de um homem que pegou uma carona em um carro
que conduzia um caixão de defunto, levado para o sepultamento de uma pessoa que
morrera em determinado distrito. O homem, para se proteger da chuva, acomodou-se no
caixão e seguiu viagem. Mais adiante, dois homens pediram carona, subiram no carro e
também seguiram viagem. À certa altura do caminho, o que estava no caixão levantou a
tampa e perguntou para os outros dois se a chuva havia passado. Os dois homens tomados
pelo medo se jogaram do carro, quebraram perna, braços, enfim, houve muitos ferimentos:
Viajava uma jardineira, expresso ou perua, como se diz, de Goiânia para
Goianópolis. Levava na coberta, entre malas e trouxas, um caixão vazio de
defunto, destinado para uma pessoa falecida naquele distrito. Logo adiante na
estrada, um homem parado, dá sinal e a perua pára. Dentro, tudo cheio. O
homem que precisava de seguir sua viagem aceitou de viajar na coberta com os
volumes e o caixão vazio. Subiu. O tempo tinha se fechado para chuva e logo
começou a pingar grosso. O sujeito em cima achou que não seria nada demais ele
entrar dentro do caixão e ali se defender da chuva. Pensou e melhor fez. Então,
espichou bem as pernas, ajeitou a cabeça na almofadinha que ia dentro, puxou a
tampa e, bem confortado, ouvia a chuva cair. Mais adiante, dois outros
esperavam condução. Deram sinal e a perua parou de novo; os homens subiram a
escadinha e se acocoraram no alto. Iam conversando e molhados com a chuva
fina e insistente. Passou algum tempo, o que ia resguardado escutando a
conversa ali em cima levantou devagarinho a tampa do caixão e perguntou de
dentro, só isto: “Companheiro, será que a chuva já passou?”. Foi um salto só,
que os dois embobados fizeram do coletivo, correndo. Um quebrou a perna, o
outro partiu braços e costelas e ficaram ambos estatelados do susto e sem fala, na
estrada. (CORALINA, In QUINTANA et al, 2003)
Discuti sobre o fato de os personagens do texto revelarem duas facetas do ser
humano diante da morte, e/ou diante de um morto: uns reagem com verdadeiro pânico,
outros encaram o fato como algo corriqueiro, normal.
Li o conto para eles enquanto escutavam atentamente. Adoraram a estória.
Tinham muitas outras estórias de defunto para contar. Alguns lembraram de um episódio
90
que aconteceu em Pombal: uma senhora havia morrido e o corpo se encontrava na igreja
para a celebração da missa de corpo presente. A mulher, a certa altura, mexeu-se e isso foi
visto por algumas pessoas que rodeavam o caixão. O tumulto foi muito grande na igreja
porque muitos afirmavam que a mulher estava viva. Voltaram com o corpo para o hospital
para ser examinado e o médico constatou que realmente a mulher estava morta. O que pode
ter ocorrido foi, como disse um aluno, que “o cérebro dela ainda tava com alguma coisa
viva”.
Toda essa história foi noticiada pelos jornais e motivo de especulação na
cidade. Quando pensamos no conto, jamais imaginamos que ele trouxesse à memória esse
fato, pois faz cerca de dez anos. Como esses meninos de 14, 15 anos lembraram?
Certamente ouviram dos pais, avós, ou guardam na memória como um fato que marcou
suas vidas. Uns falaram que tinham medo de almas, outro fez questão de dizer: “Eu não
tenho medo! Minha mãe diz que quem faz medo é gente viva, não quem já morreu”.
Outro aluno falou de um filme a que havia assistido em que os personagens
eram “gente que já morreu”. E assim a discussão foi sendo enriquecida pelas experiências
dos alunos. Eles conseguiram dar vida à leitura trazendo-a para as suas próprias vidas.
Aos poucos alunos que ficaram calados, perguntei se não queriam dizer algo
sobre o que leram. Três ou quatro alunos disseram que não gostavam de ler. Perguntei o
motivo e eles responderam: “Não, professora, eu gosto de ler horóscopo”; outra: “eu gosto
de ler revistas que têm dicas de beleza”, mas todos afirmaram que gostaram dos textos e
disseram mais: “eu gostei mais do texto que falou do enterro, de morte”. Levei para a sala
de aula um folheto de cordel com a história de um enterro; o texto em cordel dialoga com o
conto de Cora Coralina. Veja a seguir a transcrição de alguns trechos do texto, também
lido para os alunos:
MEMÓRIAS DE UM ENTERRO
Sempre fui bem arranjada
com as coisas da Igreja
ajudava o padre em tudo
numa atitude benfazeja
primando pela virtude
que o coração deseja
Enterro é coisa comum
na lida do dia-a-dia
91
morrer ninguém quer não
mas a morte sentencia
o sujeito a uma condição
que ele nunca queria
Num dia do meu ofício
o padre me incumbiu
a recomendar um corpo
que p’ra uma melhor partiu
eu só nunca esperancei
topar com um desafio
A peleja começou
naquela manhã fagueira
que se não me falha a memória
era uma segunda-feira
botamos “pé na estrada”
para uma viagem ligeira
Mas que ligeira que nada
saímos logo cedinho
num carro sucateado
tomamos nosso caminho
para fazer o enterro
num município vizinho
Quando nós chegamos lá
o carro parou ligeiro
ao lado daquela igreja
de São José padroeiro
ficamos bem satisfeitos
em ter cumprido o roteiro
Pensávamos que aquele momento
fosse o da celebração
mas logo alguém nos falou
com grande argumentação
vamos levar a defunta
pra uma última satisfação
Fiquei meio intrigada
com essa decisão marcante
porém vim para servir
e não pra ser arrogante
por isso seguir viagem
para um sítio distante
Eu e meus companheiros
daquela grande empreitada
seguimos num outro carro
numa estrada esburacada
rumo ao sítio pretendido
pra casa da tal finada
A minha angústia foi tanta
quase me pus a chorar
ao ver o longo caminho
que tinha para trilhar
por cima de pau e pedra
92
eu tinha que chegar lá
Continuei o caminho
com um ar mal humorado
quanto mais o povo andava
mais ficava aperreado
pois não se chegava nunca
ao sítio tão esperado
No meio de tal caminho
chegamos à beira de um rio
para aumentar nossa angústia
tinha um outro desafio
a nada atravessar
ou ficar no desvario
Do povo que caminhava
uns não sabiam nadar
outros foram mais afoitos
puderam atravessar
mas nós ficamos sentados
na areia a reclamar
Depois de um bom tempo
sentados a reclamar
lembramos Tancredo Neves
quando foi se sepultar
na lamúria um dizia:
– ô defunta pra andar!
Para aumentar nosso desgosto
ouvimos uma voz de brio
gritando desesperado
do outro lado do rio
– venham rezar um terço
Que só em vocês confio
Gritamos que não podíamos
as nossas roupas molhar
atravessando um rio
em risco de se afogar
Mandasse alguém fazer
As vezes de encomendar
Mas o sujeito era tinhoso
tratou de surpreender
disse vocês fiquem aí
que eu vou logo resolver
vou buscar uma canoa
pra ninguém se aborrecer
Passamos o rio à canoa
e chegamos a tal graça
tinha um sujeito chorando
no efeito da cachaça
mesmo assim fomos rezar
e rir da própria desgraça
Foi preciso paciência
93
na lida daquele dia
tinha sempre um “fotógrafo”
para onde o caixão ia
e das mais diversas poses
tiraram fotografia
De volta à santa Igreja
a cerimônia aconteceu
a hora estava avançada
e a fome nos bateu
porém ninguém deu comida
a gente quase morreu
Daquele dia pra cá
fiquei meio escabreada
quando me chamam pra enterro
dou logo uma avaliada
se for pra andar demais
eu digo em nome da paz
chame outro camarada”
Hildenia Onias
Mostrei o folheto e li-o recitando, com gestos, entonações. Muitos alunos
disseram ter gostado mais do texto em cordel. Disse para eles que foi algo que aconteceu
de verdade. Eles ficaram muito empolgados, riram, ficaram me perguntando como tinha
sido, quem era o(a) morto(a). Outros perguntaram qual seria a cidade onde tinha
acontecido isso. Por causa de algumas marcas que eles perceberam no texto como “São
José padroeiro”, alguns descobriram a cidade. Foi muito divertido. Os alunos se
envolveram, foram duas aulas seguidas e eles não se aborreceram e ainda me pediram para
que viesse ensinar a eles, pois tinham gostado de ler daquele jeito. Ninguém falou de nota,
nem perguntou para que serviam aqueles textos. Pareciam saber que era para ler e falar da
leitura, para se emocionar... Ou será que a forma como a leitura foi conduzida envolveu
tanto os alunos que eles esqueceram que estavam na escola?
O terceiro conto trabalhado foi O boi Leição de Câmara Cascudo (ver anexos).
Antes de ler o conto, comentei com os alunos que o meu contato com o texto “O boi
Leição” ocorreu por meio de uma amiga professora. Ela leu e comentou comigo a leitura:
disse que era um texto muito bom, engraçado, enfim, ela falou com tanto entusiasmo do
texto que eu fui à procura da coleção LMC para ler o conto. Disse a eles que a leitura foi
tão boa, que eu passei a comentar com outras pessoas, que também leram e gostaram. Uma
94
aluna afirmou que no ano anterior a professora
5
havia lido na sala de aula dela o referido
texto.
Fiz alguns comentários acerca da estória: disse que se tratava de um vaqueiro
que era muito fiel a seu patrão e não mentia nunca. Um dia esse vaqueiro caiu numa cilada
e foi desafiado a mentir. Dois amigos fazendeiros fizeram uma aposta. Um deles jurava
que o vaqueiro do seu amigo mentia; o outro, o patrão do vaqueiro, afirmava que o seu
vaqueiro não mentia nunca. Apostaram todos os seus haveres. E o fazendeiro que havia
proposto a aposta ao seu compadre amigo, tratou de arranjar um meio para fazer o vaqueiro
mentir: incumbiu sua filha mais nova de seduzir o vaqueiro e fazer com que este matasse o
boi mais estimado do seu patrão – O boi Leição. Convidei os alunos para conferirmos na
leitura se o vaqueiro mentiu ou não.
Li todo o conto em voz alta, sempre atenta às entonações, falas das
personagens, uso das marcas da oralidade (“fulô”, “figo”, “juiz de dereito”). Em nenhum
momento os alunos questionaram o uso desses termos escritos dessa forma. Acredito que
esses alunos foram conquistados e envolvidos pelo texto de tal forma que a arte (a
literatura) ecoou muito mais forte e eles entenderam a escrita de tais palavras como uma
representação da fala de personagens que têm um hábito de linguagem diferente das
pessoas escolarizadas. Ou seja, eles se “ligaram” muito mais no que a leitura lhes disse,
enquanto processo afetivo e simbólico (JOUVE, 2002), do que em qualquer marca
lingüística que pudesse desafiar o uso da língua no texto escrito.
Fiz esse comentário porque já vi muitos alunos, em outros contatos com textos
semelhantes, rirem e dizerem que determinada palavra estava errada, por ser um registro da
oralidade. Isso se deve à forma como os textos literários são tratados em sala de aula, na
escola.
Como professora de Português, já usei muitas vezes o texto literário como
pretexto para que o aluno respondesse a questões que eu elaborava para atender a uma
“interpretação” e a uma análise lingüística que contemplasse o conteúdo gramatical. Hoje
vejo que é possível o professor trabalhar o texto literário em sala de aula com menos
pedagogização e didatização (SOARES, In: EVANGELISTA, et. al., 2003) a fim de que
5
A professora de quem a aluna fala é aquela com quem escolhemos os contos. Lembro-me de ter lido com
ela (a professora) o conto “O boi Leição”. Ela, que não conhecia, gostou do conto e passou a levar para ler
com outros alunos de outras séries.
95
não sacrifique a arte literária em detrimento da absorção de regras gramaticais. No entanto,
há que se perceber que esse é um trabalho que exige do professor perseverança e paciência.
Perseverança para insistir em acreditar na formação do leitor e paciência para saber
esperar, compreendendo que formar um leitor é uma tarefa que exige tempo. Não
formamos leitor do dia para noite, num bimestre, numa semana. Muitas vezes nós
professores somos instrumentos que no decorrer da nossa passagem pela vida do aluno
despertamos nele o gosto pela leitura e indicamos o caminho para que ele se torne um
leitor crítico (COELHO, 2000). Se isso acontecer, podemos nos dar por satisfeitos.
Teremos feito a nossa parte.
Após a leitura do conto, alguns alunos falaram que aquela estória era uma lição
de que “falar a verdade é mais vantajoso do que mentir”. Uma menina disse que os homens
eram muito “safados” e se deixavam levar pelas mulheres oferecidas. Ela comentou a partir
deste episódio do texto:
Minha filha, você vai fazer os gostos de seu pai. Siga por este “compra-fiado”
até chegar na fazenda do compadre. Chegando lá procure a casa do vaqueiro e
arranje todos os meios para morar com ele. Uma vez em sua companhia faça
tudo para lhe agradar e iludir, e quando fizer três semanas deseje comer o “figo”
do boi Leição!... Peleje com ele e só me saia de lá depois que ele tiver matado o
boi, que o amor de uma mulher bonita consegue tudo no mundo, quanto mais
fazer um vaqueiro mentir!... Direitinho como o pai lhe havia ordenado, procedeu
a filha. Quando chegou na casa do vaqueiro não tinha ninguém. Sentou-se no
batente da porta e ficou esperando. Às 4 horas da tarde, quando o vaqueiro
apareceu tangendo uma boiada, avistou, assentada na porta dele, aquela moça,
como ele nunca tinha visto tão bonita. – Moça, faça o favor de abrir-me esta
porteira!... A moça levantou-se e abriu. Depois de trancado o gado no curral,
perguntou-lhe o vaqueiro o que andava fazendo por ali. Ela respondeu que seu
pai lhe maltratava muito em cãs, todo dia dava-lhe uma surra; por isso tinha
saído pelo mundo, como uma desvalida, toda rasgada e com fome, atrás de uma
pessoa que lhe protegesse. – Pois minha moça, eu sou solteiro, você também,
entre para dentro e vamos morar juntos. (CASCUDO, In: QUINTANA, et al, p.
76)
A página seguinte do livro que contém este texto (77) é uma ilustração que
mostra o vaqueiro chegando em casa e o seu encontro com a moça (ver anexos). Ela se
encontra sentada no batente da porta, numa posição sensual para chamar a atenção do
vaqueiro. A partir da leitura da ilustração, os alunos discutiram a forma de se vestir de
algumas mulheres e o comportamento delas em relação aos homens.
96
Na discussão sobre verdade e mentira, um menino disse que ele mentia quando
tinha necessidade. Ou seja: “A gente mente, quando ama”. Entendi que ele estava falando
das relações entre homem e mulher, em que o homem para não perder a namorada de quem
gosta é “obrigado a mentir”. Um outro aluno disse que nem todos os homens se deixavam
levar pelas mulheres. Um outro rebateu: “mas se um homem diz ‘não’ a uma mulher é
porque ele é ‘fanta’ ”.
Deixei que eles discutissem entre si e, em seguida, expressei também minha
opinião sobre o assunto. Disse a eles que eu não acreditava que um homem por ser fiel, ou
resistir às mulheres, possa ser considerado “gay”. O mais interessante foi ver aqueles
alunos discutirem com uma certa maturidade. Houve respeito à opinião do outro.
Em março de 2007, durante duas aulas, trabalhei com os alunos o conto Missa
do Galo de Machado de Assis. Como fiz com os outros contos, adotei o procedimento de
falar um pouco da minha experiência com o conto “Missa do Galo”. Falei da história, em
seguida fiz a leitura para os alunos. Em cada ilustração fazia uma pausa para discutir as
imagens com os alunos. Eles sempre tinham muito o que dizer das referidas ilustrações.
Percebi que essa parada nas ilustrações sedimentava a leitura do texto escrito e
impulsionava a leitura do decorrer da história.
Quando terminou a leitura do texto, os alunos começaram a rir entre si. Alguns
deles disseram: “professora é D. Conceição”. Perguntei o que tinham a dizer sobre a D.
Conceição que tanto os fazia rir. Um aluno respondeu que estavam rindo porque a mãe de
um dos colegas, um menino, um tipo brincalhão, era Conceição. Fiquei sabendo o nome da
mãe de todos porque eles passaram a se cumprimentar pelo nome da mãe.
Aproveitei o momento para falar o quanto a literatura está perto de nós. O
quanto ela é reflexo da nossa vida real. Não só pelo fato de retratar o nome comum de uma
mulher, no caso do conto lido, mas por tudo o que o texto nos fazia pensar sobre nós
mesmos e sobre os outros.
Notei que ninguém teve a decepção que, por exemplo, vivenciou a pesquisadora
ao ler o conto a primeira vez na sua adolescência: ela queria que os personagens tivessem
se entendido e ficado juntos apesar da diferença de idade. A recepção dos alunos foi
notadamente diferente. Talvez pelo motivo de a leitura ter sido mediada pela professora
leitora. A minha experiência foi somente com o texto, não houve mediação.
97
Os alunos gostaram do texto, comentaram a leitura entre eles. Todos queriam
explicar o que aconteceu naquela noite de Natal. Após ouvi-los, pedi que eles voltassem ao
início do texto e relessem. Releram o primeiro parágrafo:
Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos,
contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de natal. Havendo ajustado com um
vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo
à meia-noite. (ASSIS, Machado de. Missa do galo. In: A descoberta do amor.
JOSÉ, Elias. 2003)
O narrador afirma que nunca entendeu o que aconteceu com ele naquela noite.
Questionei: Vocês teriam uma explicação para o que aconteceu? Todos tinham. Então,
como uma forma de registrar o que eles estavam discutindo, sugeri que eles escrevessem
para o personagem. Perguntei se eles “topariam” escrever uma cartinha para o personagem
tentando mostrar a visão deles sobre o que aconteceu. Todos escreveram. Antes, porém,
lembrei a estrutura da carta. Eles já sabiam. Selecionei algumas para comentar:
TEXTO 1
Senhor Nogueira, ouvi a sua história e vou lhe explicar o que aconteceu naquela
noite. Naquela noite, você teve respeito e medo, porque Conceição era mais
velha do que você e tinha mais experiência. Você tinha apenas dezessete anos e
não entendia o que ela estava querendo com você. Ela só estava querendo um
pouco de atenção, já que o marido dela a traía e não dava atenção a ela. Você só
teve respeito por ela.
Seu amigo Germano
O aluno inicia o texto dizendo algo que me pareceu interessante: “Ouvi a sua
história”. A experiência de ouvir uma história bem contada (ABRAMOVICH, 2004) gera
um movimento que pode ir muito além do ouvir. Ou seja, pode percorrer o curso que vai
de um ouvinte encantado a um leitor formado. O aluno que ouviu o que a professora
comentou a respeito da experiência dela com o conto “Missa do Galo” (experiência com
várias leituras, feitas em diferentes etapas de sua vida) e teve a oportunidade de ler, revela-
se capaz de fazer inferências sobre o texto que ultrapassam os limites de uma análise do
material verbal, dos sinais gráficos. Ele faz uma leitura que não esbarra nos limites da
decodificação dos signos lingüísticos. Diria que, como afirma Bosi (2003), ele realizou
uma interpretação. O aluno conseguiu levantar hipóteses que o texto confirma. Lembrando
98
Umberto Eco (2005 p.28) “um texto é apenas um piquenique onde o autor entra com as
palavras e os leitores com o sentido”. O aluno atribuiu sentidos ao texto que leu.
Para o aluno, o personagem Nogueira, por ser muito jovem, confundiu seus
sentimentos: Nogueira não se apaixonou por Conceição, tampouco Conceição por ele. O
que realmente ela estava buscando era um pouco de atenção.
TEXTO 2
Caro senhor Nogueira, li a sua história do começo ao fim e tive um
entendimento: se o senhor tivesse insistido mais um pouquinho, não tivesse ido à
Igreja o senhor teria conquistado o coração dela.
Ronicleiton
O aluno procura dar um caráter de legitimidade à sua leitura quando diz: “li a
sua história do começo ao fim”. Seria como dizer: “eu tenho autoridade para dizer isso ou:
o que eu li me permite afirmar que...” Para ele, a ida de Nogueira à Igreja foi o que
atrapalhou a conquista. Como se vê, os alunos fizeram leituras diferentes do mesmo texto,
mas leituras legítimas porque o texto confirma as hipóteses levantadas. A expressão “tive
um entendimento”, advém da influência da professora da 7ª série; que, segundo alguns
alunos: mandava a gente dar o entendimento do texto.
TEXTO 3
Sr. Nogueira, o que aconteceu entre você e Conceição foi uma química, até pelo
fato, dela está sendo traída e ficar muito carente, por causa das supostas saídas
do marido ao teatro. Eu acho que deve ter rolado compaixão pelo seu lado e
amor e carência pelo lado dela.
Marcelo
O aluno, assim como os outros, foi capaz de estabelecer uma relação afetiva e
simbólica com o texto, uma vez que percebe a traição como um fator que acarreta um
estado de carência na mulher (no caso do texto lido). Para esse aluno, Nogueira teve
compaixão por aquela mulher cheia de virtudes, mas que não recebia do marido o carinho
merecido:
99
Boa Conceição! Chamavam-lhe “a santa”, e fazia jus ao título, tão facilmente
suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento
moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo
de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências
salvas. Deus me perdoe se julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O
próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma
pessoa simpática; Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. (MACHADO DE
ASSIS, In JOSÉ, Elias, 2003 p. 34).
É possível legitimar a leitura do aluno quando, mediante o processo da leitura
da história, ele consegue dialogar com as partes do texto para obter uma compreensão do
todo. Vê-se nesse caso o leitor crítico (COELHO, 2000). O aluno/leitor emerge com o
discurso que contraria a própria escola, que diz que “o aluno não lê, o aluno não quer
nada”. Na verdade, o aluno lê e isso precisa ser levado em conta pela escola.
TEXTO 4
Sr. Nogueira, eu li sua história e achei muito legal. Eu vi que Conceição se
apaixonou por você primeiro, mas mesmo ela sendo mais velha do que o senhor,
o senhor também se apaixonou por ela. Então eu desejo que vocês sejam muito
felizes juntos.
Renato
Nesse texto, o aluno demonstra ter gostado da história. Como aconteceu com
todos os alunos que escreveram, o uso do vocativo “Sr. Nogueira” é uma constante. Eles
mantêm a mesma formalidade com que o personagem é tratado pelos outros na história. A
abordagem que esse aluno traz é o fato de Conceição ter se apaixonado primeiro. Há, nesse
aspecto, algo que parece demonstrar que o aluno sai em defesa do personagem: Conceição
se apaixonou primeiro, mas Nogueira se apaixonou também por ela, embora fosse mais
velha. Como não há o que fazer quando a força do amor ultrapassa barreiras, resta o desejo
de que sejam felizes.
TEXTO 5
Senhor Nogueira, gostaria de falar para o senhor que eu gostei muito do seu texto
e que foi muito bonita a história contada de dona Conceição, enfim. É com muito
prazer que eu te dou os meus parabéns ok! Senhor Nogueira, o que aconteceu foi
que vocês dois se apaixonaram, mas só que o destino os separou, que pena que
vocês dois não terminaram essa linda história juntos. Tchau um grande beijo e
um mega abraço.
100
Luana
A aluna demonstra felicidade quando escreve para o personagem. Diz que
gostou “do seu texto”. Aqui a aluna marca com a expressão “seu texto” a identificação do
narrador-personagem. A menina revela, no seu texto, emoção por ser a reveladora de um
acontecimento nobre entre os humanos: o ato de ficar apaixonado por outra pessoa. O
entusiasmo da aluna é carregado de satisfação e alegria, que podem ser percebidas nas
expressões: “linda história”, “grande beijo”, “mega abraço”.
TEXTO 6
Sr. Nogueira, o que se passou foi que você e Conceição estavam se gostando.
Mas você deveria ter sido mais direto com o que você pretendia com ela.
Conceição estava apaixonada por você e não queria dizer o que estava sentindo
porque pensava que você não estava apaixonado por ela. Mas na conversa que
você e ela tiveram só faltou o beijo.
Paloma
Para essa aluna houve uma paixão recíproca. Pela leitura que ela fez do texto a
conversa entre Conceição e Nogueira tem tudo para ser caracterizada como o início de uma
história de amor que, no dizer dela, para se concretizar faltou apenas o beijo.
O quinto conto trabalhado foi “As mãos de meu filho” de Érico Veríssimo (ver
anexos). Fiz um comentário sobre o texto e falei sobre a minha experiência com ele. Disse
aos alunos que reli o texto várias vezes para que interiorizasse a leitura, pois a forma como
a história era contada não dava para entender “de uma primeira vez”. Fiz o seguinte
comentário:
A história que nós vamos ler, hoje, é muito legal. Mesmo que seja preciso a
gente reler o texto, parar num parágrafo, voltar e ler novamente, vale a pena!
Trata-se de uma família. O pai é Inocêncio, a mãe D. Margarida e eles têm um
filho que se chama Gilberto. Gilberto é um pianista que toca muito bem. Quando
ele se apresentou em um concerto musical, o teatro ficou lotado. Todas as
pessoas aplaudiam o rapaz porque ele tocava muito bem. Uma das pessoas da
platéia é a mãe de Gilberto, D. Margarida. Ela assiste à apresentação do filho e
fica muito feliz. Durante o tempo que dura o show D. Margarida relembra a vida
difícil que teve. Os esforços que tinha feito para educar o seu filho. Ela era
costureira e trabalhava muito para sustentar a casa.
E o marido dela, professora, não fazia nada, não? – Ah! O marido dela não
gostava muito de trabalhar. E gostava de umas biritas (gestos). Vou dizer uma
101
coisa que ele fez: um dia se ofereceu para fazer cobranças das costuras que a
mulher fazia. Sabe o que ele fez?
Tomou o dinheiro de cana, professora!
Isso mesmo! Vamos conferir a história!
Fiz a leitura em voz alta da primeira parte do texto e comentei algumas questões
que achei pertinentes: a referência que o narrador faz a Beethoven, por exemplo. Em
seguida, os alunos continuaram a leitura. Um após outro, lêem e a história vai sendo tecida.
Também fiz parte desse grupo de leitores e li com os alunos. Quando acabei a leitura do
texto, propus: “Que tal conversarmos um pouco sobre o texto!? Agora que vocês leram,
com certeza vão ter muitas coisas a dizer”.
Dividimo-nos em grupos, havia cerca de 20 alunos. Fiz quatro grupos de 5
pessoas. Fiquei um pouco de tempo em cada grupo, ouvindo o que eles diziam, rindo de
felicidade com o que ouvi deles. Fiz algumas provocações: Por que será que o título do
texto é “As mãos do meu filho?” Respondeu um: – Porque eram as mãos de Gilberto que
tocavam piano. – Sim! Ótimo! E o que a ilustração que vem junto ao título do texto tem a
ver com o texto? Outro aluno: – Tem tudo a ver, professora: o novelo e a agulha porque D.
Margarida era uma costureira e a nota musical era porque Gilberto tocava piano. Para
organizar a discussão, e como ainda tínhamos um tempo para a aula terminar, pedi que os
grupos escolhessem uma pessoa para que contasse para toda a turma o que foi que
discutiram. Assim foi feito. Vejamos alguns depoimentos:
1. A gente viu, professora, que mesmo que o pai seja uma pessoa errada não é obrigado o
filho ser.
2. A gente entendeu que Inocêncio poderia ter sido mais feliz se tivesse seguido o
exemplo de sua mulher e de seu filho. Ele só percebeu que tava errado muito tarde.
3. O filho dele tinha vergonha porque o pai só vivia bêbado. Uma pessoa que só vive
bêbado ninguém respeita. A bebida acaba a saúde. A pessoa perde emprego, tudo.
102
Pedi para a turma reler os quatro últimos parágrafos do texto:
Pois imagine como são as coisas... – diz ele. – Não sei se o senhor sabe que
nós fomos muito pobres. Pois é. Fomos. Roemos um osso duro. A vida tem
coisas engraçadas. Um dia – o Betinho tinha seis meses, umas mãozinhas assim
deste tamanho – nós botamos ele na nossa cama. Minha mulher dum lado, eu do
outro, ele no meio. Fazia um frio de rachar. O senhor sabe que aconteceu? Pois
eu senti nas minhas costas as mãozinhas do menino e passei a noite
impressionado, com medo de quebrar aqueles dedinhos, de esmagar aquelas
carninhas. O senhor sabe, quando a gente está nesse dorme-não-dorme, fica o
mesmo que tonto, não pensa direito. Eu podia me levantar e ir dormir no sofá.
Mas não. Fiquei ali no duro, de olho mal e mal aberto, cuidando do menino.
Passei a noite inteira em claro, com a metade do corpo pra fora da cama.
Amanheci todo dolorido, cansado, com a cabeça pesada. Veja hoje ele não estava
aí tocando essas músicas difíceis... Não podia ser o artista que é.
Cala-se. Sente agora que pode reclamar para si uma partícula da glória de seu
Gilberto. Satisfeito consigo mesmo e com o mundo, começa a assobiar baixinho.
O porteiro o contempla em silêncio. Arrebatado de repente por uma onda de
ternura, Inocêncio tira do bolso das calças uma nota amarrotada de cinqüenta mil
réis, e mete-a na mão do mulato.
Para tomar um traguinho – cochicha.
E fica, entre glorioso e confuso, olhando para as estrelas.
Perguntei: E aí? Será que Inocêncio não merece um pouquinho da nossa
compreensão? Do nosso perdão?
É professora, esse texto tá mostrando que Inocêncio também fez uma coisa boa.
Ele teve cuidado para não machucar as mãos de Gilberto. Se tivesse machucado,
ele não podia tocar.
Todos ficaram meio admirados. Pela expressão, pareciam ser unânimes nesse
pensamento.
Por último, pedimos para observarem três elementos que podiam funcionar
como uma forma de memorização da essência da história.
O título:
103
A ilustração do rapaz que toca piano
104
As mãos do bebê indefeso (dormindo) que são protegidas pelo pai
Esses três dispositivos (as três ilustrações) são a base da história. Funcionam
como luzes que rememoram a narrativa sempre que ela se “perder” no nosso esquecimento.
Ou seja, esses aspectos seqüenciados recontam a história. Voltei a lembrar a importância
das ilustrações nos livros da coleção LMC. Elas ajudam não só na formação do aluno/leitor
como também permite ao professor, formador de leitor, a possibilidade de leituras e
releituras prazerosas.
Considerando essa experiência, lembro o belo ensaio de Antonio Candido O
direito à leitura.
[...] há conflito entre a idéia convencional de uma literatura que eleva e edifica
(segundo os padrões oficiais) e a sua poderosa força indiscriminada de iniciação
na vida, com uma variada complexidade nem sempre desejada pelos educadores.
Ela não corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo livremente em si o que
chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo,
porque faz viver (CANDIDO, 1995, p. 244).
105
A leitura do texto literário pode ser uma forma de humanização. Talvez não o
seja para todas as pessoas em geral. Mas, em se tratando de crianças, e especificamente
dessa experiência, pode-se falar nessa humanização. Não há como não se perceber a reação
das pessoas à leitura desse tipo de texto. Falo, nesse caso, de pessoas alunos. O texto
literário se faz novo a cada momento em que é lido, a cada público que o recebe.
A formação do aluno-leitor passa pela recepção dos textos, obviamente, e, para
que esse aluno seja sujeito de sua leitura e construa sentidos para o texto, não se deve
prescindir de uma boa mediação do professor. Urge, pois, que esse professor não tenha
medo de ser ousado, não tenha medo de correr riscos. Às vezes a própria escola, imbuída
da sua missão de formar, de educar, de ensinar, acaba exasperando o aluno. E o professor
também acaba enveredando pela pedagogização inadequada.
Há professores que são ávidos por textos (chamarei aqui de textos de reflexão)
que ensinam a refletir sobre a vida, sobre a relação com os outros, sobre a moral, etc. O
pedagogo que mora em nós quer dar as regras do bem viver, mas está pouco disposto a
refletir, a pensar o seu objeto de ensino, ou as limitações do professor, em alguns casos não
permitem isso.
Em uma conversa com uma professora, discutíamos sobre a riqueza dos textos
da coleção LMC. Ela tinha muitos livros da coleção que ganhara de um parente. Peguei
alguns dos muitos livros que ela tinha e comecei a mostrar a ela alguns textos e a falar da
minha experiência de leitura. A princípio, ela se encantou por encontrar tantos textos bons
nos livros que eram de sua posse. Ademais, porque alguns desses textos foram trabalhados
em uma disciplina de um curso de Especialização. Ela ficou muito feliz, mas não se
demorou em me mostrar outro “tesouro”: Uma encadernação com um grande número de
páginas. Eram cerca de cem textos ou mais, que ela exibia com muita felicidade e dizia que
trabalhava com seus alunos. Não tenho nada contra esse tipo de texto. Mas entre estes e a
coleção LMC, é preferível trabalhar com esses livros, haja vista a qualidade estética e o
acesso do aluno a esse material.
O último texto trabalhado foi a “Moça tecelã”, de Marina Colasanti. Fiz a
leitura do conto na sala de leitura. Como não havia livros suficientes, fiz cópias do texto
para que nenhum aluno ficasse sem o contato com o escrito. Esse procedimento também
foi adotado na leitura dos outros contos.
106
Falei da minha experiência de leitura com o conto na coleção LMC, pois já
havia feito outras vezes a leitura do texto no suporte livro didático. Mostrei que foram
experiências diferentes. A leitura do texto no livro da coleção LMC permitiu-me pensar
muito mais e com mais liberdade do que no livro didático, uma vez que esse tipo de
suporte direciona a leitura, o que, de certa forma, limita-a. Li com os alunos. Como eles já
estavam bem livres para expressarem seu pensamento, a discussão fluiu a partir de um
aluno que falou de seus sonhos de ser advogado. O texto fê-lo pensar em desejos e sonhos
a serem realizados. A sua fala foi um misto de humor e indignação com referencia à
desvalorização do professor. Nos dedos, ele enumerava várias profissões que se exerce sem
uma maior exigência de escolarização: lixeiro, pedreiro... E dizia ainda que quando uma
pessoa não se saía bem em uma determinada profissão ia ser professor. Alguns alunos
demonstravam, nesse momento, um ar de admiração, outros ficaram silenciosos, meio
tristes, outros faziam expressões de risos sem graça mediante o que ouviam.
FIG. 08 – ALUNOS COM A PESQUISADORA NA SALA DE
LEITURA (MOMENTOS DE DISCUSSÃO DO CONTO A
MOÇA TECELÃ DE MARINA COLASANTI – FOTO:
ALMEIDA FOTO.
A discussão tomou o rumo de uma reflexão sobre o futuro profissional de cada
um deles. As meninas, por exemplo, pensavam na personagem e fizeram uma comparação
com a vida das mulheres. Para algumas delas, os homens muitas vezes atrapalham a vida
das mulheres, como no caso do texto. “A moça tecelã tinha tudo o que queria, mas não
estava satisfeita, achou que um marido ia completar sua felicidade e se arrependeu quando
viu que o marido só queria explorar ela”.
107
Depois de ouvir os alunos, fiquei com o sentimento de que tinha muito a dizer e
ao mesmo tempo nada a dizer. Pensei no que afirma Daniel Pennac (1993, p. 121-122):
Não se força uma curiosidade, desperta-se. Ler, ler e ter confiança nos olhos que
se abrem, nas cabeças que se divertem, na pergunta que vai nascer e que vai
puxar uma outra pergunta. Se o pedagogo em mim fica chocado por não
“apresentar a obra no seu contexto” persuada-se o dito pedagogo de que o único
contexto que conta, por enquanto é o dessa classe.
Dei-me por satisfeita com o trabalho de ler, ler, ler o texto, e ouvir, ouvir, ouvir
os alunos e falar, falar, falar da minha experiência de leitura com o texto literário. No final
de tudo, alegrou-me o fato de aquelas experiências de leitura não terem servido para
atribuir nota ao aluno.
Quem estava, então, com Língua Portuguesa na turma já não era a professora
com quem trabalhamos no ano anterior, mas um professor que, diga-se de passagem,
adorou ficar sem dar aulas uns dias. Ele deu-me total liberdade para trabalhar com a turma.
Quando terminei a experiência, ele voltou à sua gramática e os alunos sempre que me
encontram pedem para que eu volte para fazermos aulas de leitura.
Senti um grande desejo de continuar esse trabalho, desta feita, incluindo o
professor de forma a proporcionar-lhe uma formação continuada que permitisse a revisão
do conceito de leitura/livro/leitor e o encaminhasse a pensar a sua condição de formador de
leitor e a agir como tal. Para isso, quero contribuir para o projeto de leitura que a escola
pretende organizar em 2008, buscando formar grupos de estudo sobre leitura, com os
professores, e atuando no planejamento de atividades que promovam uma maior circulação
dos livros LMC.
108
CONCLUSÃO
Essa pesquisa teve como objetivo investigar a circulação e a recepção dos livros
da coleção LMC numa escola pública de Pombal – PB.
Muito já foi feito em termos de proposição para o trabalho de leitura na escola.
São notadamente reconhecidos os pesquisadores João Wanderley Geraldi, Marisa Lajolo,
Regina Zilberman e tantos outros que apresentam trabalhos e experiências muito
significativas Brasil a fora. A minha experiência vem a se configurar como mais um relato
dentre tanto outros já realizados. Porém é importante lembrar que cada professor tem uma
experiência de leitura que lhe é própria e sua vivência cotidiana na sala de aula, aliada às
leituras que ele realiza para rever sua prática (textos teóricos em cursos de pós-graduação,
por exemplo) e para se qualificar não são iguais ao que se aplica em todas as escolas do
Brasil. Por essa razão, é que, modelos prontos não funcionam. Por isso o que se sugere e se
discute neste trabalho são proposições questionáveis por outros professores e
pesquisadores. Tentei mostrar a importância do texto literário na formação do leitor e o fiz
com base numa vivência de leitora e de professora.
A experiência de se trabalhar com o texto literário na formação do aluno leitor,
principalmente o aluno de ensino fundamental não pode ser deixada de lado pelos
professores de Português. A circulação desses textos na escola pode ganhar maior espaço,
pois o texto literário é uma via fecunda para revelar o gosto do aluno pela leitura e para
formar esse gosto naqueles que “dizem” não gostar de ler.
A leitura do texto literário sempre foi um evento muito presente em minha vida
desde a infância. Quando escolhi fazer o curso de Letras, lembro-me de que a minha
justificativa repousava na idéia de que o curso iria me ensejar muita leitura e também o
aprendizado da língua portuguesa. Como professora, sempre fui “perseguida” pela
inquietação de ministrar boas aulas, de fazer o aluno gostar desse universo que envolve a
língua portuguesa, não apenas num aspecto gramatical, mas também na relação dialógica
que se estabelece entre língua e literatura. Era por isso que me angustiava tanto o esquema
de aulas de língua Portuguesa adota nas escolas da rede privada de ensino de Pombal: 3
109
aulas de Gramática; 2 aulas de Literatura e 1 aula de Redação. Em nome da didatização e
da pedagogização fazia-se assim.
Quando passei a ser professora da escola pública senti-me mais livre para não
exercer à risca essa divisão. Não vejo como fragmentar um complexo que funciona numa
perspectiva dialógica. Quando me refiro à separação não estou tocando unicamente no
ponto de se ter três disciplinas, mas sobretudo, no empobrecimento que isso gerava. Era
como se estipulasse até onde o professor podia ir para não invadir o território do outro. E
os alunos nos viam assim. Professora de gramática não era confiável para dar uma opinião
sobre Literatura e vice-versa. Pensar que dez anos da minha profissão vivi dessa forma,
faz-me ver que muitas angústias para as quais não tinham explicação na época, são-me
translúcidas hoje. A minha experiência com a literatura havia sido sacrificada por eu ser
professora de Gramática e Redação.
Dos fins dos anos noventa até meu ingresso na pós-graduação (2005), minha
preocupação incidia sobre o discurso recorrente de muitos professores: o aluno não lê. A
princípio, eu queria fazer o aluno gostar de ler. Era a minha meta naquele momento, mas
eu não sabia como. Pior: partia da premissa de que o aluno não lia, mesmo.
A partir das discussões de textos teóricos nas disciplinas do Mestrado, comecei
a rever minha concepção sobre leitura, livro e leitor. Parti para a minha pesquisa de campo
com essas questões agora vistas sob um novo olhar.
O meu olhar já refletia muito as leituras que tinha feito, as discussões das quais
tinha participado. Como já comentei no terceiro capítulo desse trabalho, a minha pesquisa
de campo iniciou-se em 2006 e os questionários foram aplicados com alunos de 8ª série do
ano de 2006, assim como as entrevistas com o diretor com a professora de Português e com
a pessoa responsável pela sala de leitura. Pelos motivos já evidenciados neste trabalho, só
executei a experiência de leitura com contos da coleção LMC – 8ª série em 2007. Os
alunos já não eram os mesmos, nem a professora continuou com turmas da 8ª série.
Essa variável na minha pesquisa foi muito enriquecedora. Pude perceber que
embora os alunos que participaram da experiência não fossem aqueles com quem eu havia
aplicado os questionários (os que entrevistei), as concepções de leitura de professores e do
diretor estavam, de fato, equivocadas. Os alunos lêem, fazem inferências sobre os textos,
trazem suas experiências com a leitura dos mesmos.
110
A realização desta pesquisa funcionou como uma gravidez de risco para mim.
Estive muitas vezes na iminência de abortá-la. Mas empenhei todas as minhas forças e para
parafrasear a situação biológica, tomei os remédios indicados pela minha orientadora, Ana
Marinho e interiorizei o que cada professor das disciplinas cursadas me fizeram pensar
durante as minhas participações nas discussões em sala e nos trabalhos escritos.
Cresci como leitora. Revivi com os meus pais as experiências da infância.
Cantei com meu pai, hoje com uma nova visão de leitura e de literatura, os mesmos versos
que me despertaram a paixão pela literatura. Tornei-me uma contadora de histórias para os
meus sobrinhos. Essas experiências me permitiram fazer uma ponte ligando a teoria e a
prática. Vivi essa pesquisa em família. Conversei com minha mãe sobre a minha
experiência de leitura com o texto O negrinho do pastoreio (minha primeira leitura de
texto literário escrito). Minha mãe me indicara essa leitura e me dera o seu livro didático
no qual, ela estudou uma das séries do curso primário. Lembramos que o livro se chamava
Pátria Minha e outro chamava-se Nordeste. Desse último, ainda tenho o da 1ª série. Ele era
passado para todos da família que estudavam.
Unindo a minha história de leitura à minha experiência como professora e aos
conhecimentos que construí durante o mestrado, encontro em mim uma professora com
uma qualificação profissional que pode “fazer a diferença”, quanto à minha prática
enquanto formadora de aluno leitor e também de professores leitores.
Encontro em mim também uma pesquisadora. Entendo melhor o processo de
pesquisa. Vejo por exemplo, que é preciso ter organização, método e disciplina. O
aproveitamento do tempo é muito importante. No início, eu não sabia lidar com essas
questões.
Por mais que se faça relato de campo que se registre o evento da leitura nessa
experiência, para mim vai ficar sempre um quê de indizível. Porém, no que pese ao limite
que as palavras escritas podem alcançar, digo que eu encontrei o leitor. Os alunos de 8ª
série com os quais trabalhei em 2006 e 2007 dissiparam qualquer (pre)conceito que eu
pudesse ter com relação a essa idéia de que o aluno não lê. Diria que encontrei não só o
aluno leitor, mas a professora formadora de leitores que eu procurava há tanto tempo em
mim.
111
Tenho muito para aprender e também muito para partilhar depois desta
pesquisa. Por isso não a dou por acabada. Quero continuar pesquisando nesse espaço onde
co-existem a leitura, o aluno e o professor.
Concluída a etapa a que essa pesquisa se propôs: investigar a circulação e a
recepção dos livros da LMC numa escola pública de Pombal - PB, posso afirmar que os
referidos livros têm uma circulação considerável na escola, mesmo que os espaços dessa
circulação ainda se restrinjam à sala de leitura e à sala de aula; e o tempo de contato seja
somente aquele das aulas de Português. Os alunos são receptivos às aulas de leitura,
manifestam o desejo de mostrar suas leituras através de exposições e eventos. Acredito que
para um projeto de sucesso de formação de leitor, a escola deva pensar como trabalhar a
leitura, levando em conta aquilo que pode interessar ao aluno.
Uma metodologia de trabalho com a poesia e com o contexto dramático talvez
pudesse incentivar o aluno a procurar mais a leitura do texto literário e a quebrar a rotina
dos modelos de leitura.
112
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118
ANEXOS
119
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRANDA: HILDENIA ONIAS DE SOUSA
ORIENTADORA: PROFª DRA. ANA CRISTINA MARINHO LÚCIO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUAGEM E ENSINO
LINHA DE PESQUISA: LITERATURA E ENSINO
QUESTIONÁRIO
01. O que você costuma ler (livros, revistas, jornal...)?
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____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
_________
02. Como você consegue os livros que lê?
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
_________
03. Você tem livros em casa?
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
_________
04. Seus pais costumam ler em casa?
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
_________
05. Você lê para os seus familiares?
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
_________
06. Na sala de aula, que livros a professora costuma ler?
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
_________
07. E na sala de leitura, o que você costuma ler?
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
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