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Geyzon Bezerra Dantas
zonda bez
De
O matador
a
O homem do ano
Civilizaçãoe barbárie nos (des)caminhos da adaptação
da literatura para o cinema brasileiro
João Pessoa
2007
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Livros Grátis
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Geyzon Bezerra Dantas
Geyzon Bezerra Dantas Geyzon Bezerra Dantas
Geyzon Bezerra Dantas
zonda bez
zonda bezzonda bez
zonda bez
De O matador a O homem do ano
De O matador a O homem do anoDe O matador a O homem do ano
De O matador a O homem do ano
c
cc
civilização
ivilizaçãoivilização
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e
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b
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barbárie
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nos
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nos (des)
(des)(des)
(des)caminhos da adaptação
caminhos da adaptação caminhos da adaptação
caminhos da adaptação
da literatura para o cinema brasileiro
da literatura para o cinema brasileiroda literatura para o cinema brasileiro
da literatura para o cinema brasileiro
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre em Letras.
Área de concentração: Literatura e Cultura
Área de concentração: Literatura e CulturaÁrea de concentração: Literatura e Cultura
Área de concentração: Literatura e Cultura
Orientador
OrientadorOrientador
Orientadora
aa
a: Genilda Azerêdo
: Genilda Azerêdo: Genilda Azerêdo
: Genilda Azerêdo
João Pessoa
João PessoaJoão Pessoa
João Pessoa
Programa de Pós
Programa de PósPrograma de Pós
Programa de Pós-
--
-Graduação em Letras da U
Graduação em Letras da UGraduação em Letras da U
Graduação em Letras da UFPB
FPBFPB
FPB
2007
20072007
2007
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FOLHA DE APROVAÇÃO
FOLHA DE APROVAÇÃOFOLHA DE APROVAÇÃO
FOLHA DE APROVAÇÃO
Dissertação intitulada
De O matador a O homem do ano:
civilização
e
barbárie
nos
(des)caminhos da adaptação da literatura para o cinema brasileiro”, de autoria do
mestrando Geyzon Bezerra Dantas (zonda bez), aprovada pela banca examinadora
constituída pelos seguintes professores:
____________________________________
________________________________________________________________________
____________________________________
Profa. Dra. Ângela Prysthon
Profa. Dra. Ângela PrysthonProfa. Dra. Ângela Prysthon
Profa. Dra. Ângela Prysthon
UFPE
UFPEUFPE
UFPE
_____________________________________
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_____________________________________
Prof. Dr. Luis Mouzinho
Prof. Dr. Luis MouzinhoProf. Dr. Luis Mouzinho
Prof. Dr. Luis Mouzinho
UFPB
UFPBUFPB
UFPB
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____________________________________________________________________________
______________________________________
Profa. Dra. Ge
Profa. Dra. GeProfa. Dra. Ge
Profa. Dra. Genilda Azerêdo
nilda Azerêdo nilda Azerêdo
nilda Azerêdo
UFPB
UFPB UFPB
UFPB -
--
-
Orientadora
OrientadoraOrientadora
Orientadora
DEDICATÓRIA
DEDICATÓRIADEDICATÓRIA
DEDICATÓRIA
A GD|ZB em toda dualidade (in)visível.
Ao Deus em cada um de nós.
AGRADECIMENTOS
AGRADECIMENTOSAGRADECIMENTOS
AGRADECIMENTOS
ABD-PB, Arturo Gouveia, Buda Lira, CAPES, Diógenes Maciel, Dona Socorro da
Barraca, Edvânea Maria, Elisalva Madruga, Genilda Azerêdo, Kyone Bezerra Dantas,
João Batista de Brito, João Bosco Dantas, Márcio Câmara, Marilene Bezerra, ‘Rosas’ da
Secretaria PPGL, Sandra Luna, Urbe Audiovisual.
EPÍGRAFE
EPÍGRAFEEPÍGRAFE
EPÍGRAFE
“Misturo coisas quando falo, não desconheço esses desvios, são as palavras que me
empurram, mas estou lúcido, pai, sei onde me contradigo, piso quem sabe em falso, pode
até parecer que exorbito, e se há farelo nisso tudo, posso assegurar, pai, que tem aí muito
grão inteiro. Mesmo confundindo, nunca me perco, distingo pro meu uso os fios do que
estou dizendo”.
André em
Lavoura Arcaica
1
.
1
NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. 3ª ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
RESUMO
RESUMORESUMO
RESUMO
Enfeixados na dinâmica da Indústria Cultural do final do século 20, o
romance
O matador
(Patrícia Melo, 1995) e sua adaptação fílmica
O homem do ano
(José Henrique Fonseca, 2003) dialogam com vertentes estéticas e ideológicas da
literatura e do cinema, em especial com aquelas que se revelam quando do embate entre
civilização e barbárie no campo da construção ficcional brasileira.
Entre várias perspectivas possíveis, romance e filme aproximam-se pela
utilização da referenciação poética” que propõe, através do intertexto, uma contínua
resignificação das formas artísticas, fazendo ambos especial referência ao conto
O
cobrador
(Rubem Fonseca, 1979); a utilização da narrativa em primeira pessoa
(narrador-protagonista), na qual se entrevê, através das tessituras textuais verbais e
icônicas, mais justaposição do que aglutinação entre as figuras do narrador e da
personagem de ficção; a presença visível, entre os autores envolvidos, do ‘marco autoral’
Rubem Fonseca, roteirista do filme e ‘maestro’ na renovação de signos literários por ele
criados e adaptados ao texto fílmico; e ainda a forma como pressupostos das tragédias
gregas clássicas, entre elas a bipolaridade civilização e barbárie, refazem-se na
contemporaneidade de (anti)heróis vivendo entre um ‘eu’ e um ‘outro’, buscando uma
saída possível na inefável contradição do mundo urbano.
Palavras
PalavrasPalavras
Palavras-
--
-chave:
chave:chave:
chave: Literatura e cinema; civilização e barbárie; referenciação poética;
narrativa em primeira pessoa; autoria; tragédia grega; violência urbana.
ABSTRACT
ABSTRACTABSTRACT
ABSTRACT
Inserted in the dynamics of the Cultural Industry at the end of the 20th-century,
the novel
O Matador
(Patrícia Melo, 1995) and its filmic adaptation
O homem do ano
(José Henrique Fonseca, 2003) produce a dialogue with different aesthetic and
ideological currents of literature and cinema, particularly those resulting from the
confrontation between civilization and barbarism in the Brazilian fictional production.
Among various perspectives, novel and film come closer through the use of
‘poetic reference’ (intertextuality), which proposes, through intertextual dialogue (both
texts refer to “O Cobrador”, 1979, by Rubem Fonseca) a continuous renewal of artistic
forms; the use of first-person narration (narrator-protagonist), responsible for revealing
the subtle juxtaposition of voices of narrator-character; the striking presence (among
the several authors involved in the texts) of the ‘authorial mark’ of Rubem Fonseca, the
film screenwriter and ‘conductor’ of the recycling process of literary signs already
created by him and now adapted to the filmic text; and also how premises of the classic
Greek tragedies – such as civilization and barbarism are brought to light again
through contemporary anti-heroes living between an “I” and the “other”, searching for
a possible escape in the contradictory urban world.
Key
KeyKey
Key-
--
-words
wordswords
words:
::
: Literature and cinema; civilization and barbarism; intertextuality; first-
person narration; authorship; Greek tragedy; urban violence.
SUMÁRIO
SUMÁRIOSUMÁRIO
SUMÁRIO
Que se saiba, antes de tudo...
Que se saiba, antes de tudo... Que se saiba, antes de tudo...
Que se saiba, antes de tudo...
Apresentação | 9-15
ENSAIO#1
ENSAIO#1ENSAIO#1
ENSAIO#1
Máiquel, o Dentista e o Cobrador | 16-50
ENSAIO#2
ENSAIO#2 ENSAIO#2
ENSAIO#2
O homem do ano
entre a civilização e a barbárie | 51-94
ENSAIO#3
ENSAIO#3ENSAIO#3
ENSAIO#3
Nos rastros de
O homem do ano
: autoria e ambivalência em um roteiro adaptado | 95-125
ENSAIO#4
ENSAIO#4ENSAIO#4
ENSAIO#4
Marcas de uma tragédia em
O homem do ano
ou Máiquel
in medias res
| 126-149
Do entrecruzamento dos que falam
Do entrecruzamento dos que falamDo entrecruzamento dos que falam
Do entrecruzamento dos que falam
Palavras finais | 150-162
Referências bibliográficas
Referências bibliográficasReferências bibliográficas
Referências bibliográficas
Bibliografia e filmografia completas | 163-176
ANEXO
ANEXOANEXO
ANEXO
Raspas&restos (também) interessam | 1-10
Que se saiba
Que se saibaQue se saiba
Que se saiba,
,,
,
antes de tudo
antes de tudoantes de tudo
antes de tudo...
......
...
Apresentação
Sabe, no fundo eu sou um
sentimental.
........................................................
mesmo quando as minhas mãos
estão ocupadas em torturar, esganar,
trucidar; meu coração fecha os olhos
E sinceramente, chora.
Fado Tropical (trecho)
2
Quantas palavras foram ditas e até hoje as repetimos sem cessar, apostando
em uma capacidade ilimitada de recriar o que quer que pareça manipulável pela
materialidade e mentalidade peculiares à raça humana. O
novo
é a consciência
insurgente das perspectivas de expressão e representação ofertadas no ‘supermercado
global’; ali na encruzilhada dos nossos ‘pós-tudo’.
Aqui nesse texto em definitivo, não é obra procuro contar algo. Talvez
um simulacro de verdades nascidas em
posts-it
; sublinhadas em livros ensebados e
rodados em
paper-back,
ou encenadas em dezenas de filmes vistos e aqueles que
ficam para depois’.
Mas é um traço de história, uma perfuração fina na espessa camada do saber,
cujo ousado intento é trazer para perto de quem
vive
o produto de sua criação - de si
mesmo alienado em função da “sociedade social” (FEHÉR, 1997) e essa insaciável
necessidade de retro-alimentação do sistema cultural.
Falo de um livro que acabou no cinema; ou de um conto que acabou virando
parte de um romance; ou de como uma história se desdobra em outras histórias, não
importando a sua forma (conto, romance, filme), mas sim o conteúdo dinamizado de sua
condição.
2
Fado Tropical. Chico Buarque e Ruy Guerra. Calabar. Letra disponível em <
http://chicobuarque.uol.com.br/letras/fadotrop_72.htm > Acesso em 15.4.06.
Este trabalho olha seu objeto o romance
O matador
e sua adaptação para o
cinema,
O homem do ano
– como estrutura ‘viva’, em movimento de atração e repulsão.
Do ponto que se olha, toda a perspectiva se altera: se me afasto do livro em direção ao
filme; desse para o roteiro que lhe antecede; dos três para o espaço cultural no qual se
inserem, noto que cada olhar interfere para um acúmulo contínuo de subsídios.
Percorremos o fragmento em toda sua instabilidade. “A escrita fragmentária seria,
sobretudo, a presença do risco, (...) que torna as próprias citações e epígrafes fragmentos
descontextualizados, possibilitando a simultaneidade de eventos temporal e
espacialmente diversos” (LOPES, 1999:48).
Os textos que aqui refletem sobre os caminhos e descaminhos que se traçam
no vir e ir dos signos da linguagem tomam forma de ensaio: “O fragmento partilha com
o ensaio o caráter de inacabado e de ser uma individualidade e não a expressão de algo
maior” (COSTA LIMA, L.
apud
LOPES, 1999:75). As partes únicas se aproximam e, em
fricção, revelam um todo momentâneo.
Publicado um ano antes, li
O matador
em 1996. Já era o segundo romance da
“escritora em ascensão” Patrícia Melo. Apenas me empenhei na tarefa da rápida, porém
árdua, leitura para quem tenta “deslindar” (BARTHES, 2002) as primeiras camadas de
sentidos que se lhe apresentam organizadas.
Conhecer a trajetória da personagem Máiquel foi ter acesso ao submundo
psicológico de um ‘matador de aluguel’ à brasileira. Montado em ‘alta velocidade’, as
frases se sucedem ‘em cascata’ para dar conta da saliente interioridade da personagem
saltando palavras afora: estava sempre eu a imaginar como seria esse filme...
O romance, que tanto impacto literário causara nos anos 90, foi adaptado
para o cinema em 2003, com o título de
O homem do ano
. Nesse ínterim, me enteirava
das narrativas cruéis de Rubem Fonseca cruel por falar do submundo gerador de
crueldades mil nos mundos cariocas universais sem saber que o encontraria outra vez
no filme enquanto roteirista – o ‘regente da orquestra sígnica’ quando o assunto é
adaptação da literatura para o cinema e enquanto marca autoral indiscutível para que
todo o processo de resignificação ganhasse forma.
O matador
alimenta a narrativa que se processa nas bordas da urbanidade
brasileira. Mas a violência que ali se revela, à medida do mergulho, não tem um fundo
ideológico que se revele de modo proeminente, ao menos se tomarmos como modelo de
contestação a literatura produzida sob a repressão, característica de autores da geração
Pós-64 a violência nas suas linhas se harmonizava com as da história que avançava e
retroagia.
Esse romance, se não pelo viés do embate político, retoma fios antes traçados
e cinge uma abertura na ficcionalidade, apoiando-se ainda no “realismo feroz” dos anos
60/70; daqueles autores cuja leitura “agride pela violência, não apenas dos temas, mas
dos recursos técnicos (...)” (CANDIDO, 2000: 211).
buscar o encontro entre civilização e barbárie em
O homem do ano
é uma
aproximação das dicotomias que cercam a cultura brasileira em nosso tempo haveria
ainda lados na forma dessa cultura ou já seríamos um círculo incontestável?
Produtos do mundo social, dele (quase) tudo imitando e a ele (quase) sempre
retornado, a literatura e o cinema brasileiros refletem contradições várias de seu
posicionamento cultural ainda na retaguarda do mundo não fomos os primeiros nem
seremos os últimos, mas o
gap
se faz sentir a todo instante.
Se os textos se enlaçam, reforçam e ganham consistência no percurso
infinito, mesmo que limitado pela insistência do ponto final, começo por olhar
O
matador
, de Patrícia Melo, a partir da “pessoa de papel” que lhe diz – o ’eu’ move-se aqui
incessantemente e pegadas que se deixam antever em seu ‘solo’, em especial a
interação com o conto
O cobrador
, de Rubem Fonseca, dando assim continuidade aos
‘jogos referenciais’ que se perpetuam. Vozes dialógicas projetam-se sobre a narrativa,
revelando o ‘outro’ latente a cada momento.
Ligados pelo uso da “referenciação poética” (SILVA, 2002), da primeira
pessoa narrativa e pelo assim chamado gênero policial, conto e romance tornam-se
objetos que dialogam nas suas construções interiores enquanto textos de ficção, abrindo
caminho para uma compreensão da dicotomia latente entre civilização e barbárie no
contexto da literatura nacional.
Salto então para o aspecto-base que move este encontro de textos: o caminho
da antinomia para a interação entre civilização e barbárie em
O homem do ano
. O
percurso revela entradas e saídas várias, concatenando ficcional e social para, no fim
aparente, dizer que civilizado e bárbaro somos todos nós; a arte reverbera sensibilidade e
violência; o ‘eu’ não vive sem o ‘outro’. Do cinema criminal dos primórdios do cinema
brasileiro, a (des)construção psicológica proposta pelos ‘negros’ (
noire
) do cinema e da
literatura, chegamos ao ponto no qual as personagens são ‘desmascaradas’ em sua
mobilidade.
No terceiro ensaio, romance e filme se encontram através de um texto focado
no seu momento ‘entre’, ou seja, no roteiro de
O homem do ano
. A labuta pelo interior
da construção ficcional deixa entrever signos despidos de sua “casca sígnica” e à procura
de um novo lugar para se refazerem.
Começo por uma breve reflexão sobre a condição autoral na atualidade,
quando a velocidade dos signos culturais é imensa, atravessando sem cessar uma rede
cujas malhas estão cada dia mais abertas para a contínua resignificação de formas.
A seguir ‘desço’ ao roteiro no qual a adaptação cinematográfica, em suas
diversas formas, se faz presente. Um ‘marco autoral’ se revela diante de outros autores
no ‘estado do meio’: o roteiro é passagem, não ponto final.
O último ensaio conduz o leitor aos primórdios do embate entre homens e
deuses, homens e homens, a partir das tragédias do teatro grego clássico e as estruturas
universais de representação que dele emanam, até hoje modelo artístico para o ocidente,
e lugar da primeira grande resignificação de formas: desde sempre, a arte vive ‘na
passagem’ entre o que é dela e o que é do outro.
A transição do mundo irracional (bárbaro) para o racional (civilizado) da
polis
fazia-se informada na literatura dramática grega. O filme
O homem do ano
, e seu
narrador-protagonista, traria em seu ‘filme primordial’ as marcas do (des)encontro entre
civilização e barbárie, que tem no modelo da tragédia pensada por Aristóteles na
Poética
.
Após algumas Palavras Finais e as referências bibliográficas que me guiaram
ao longo desses anos, a escrita fragmentada chega para revelar Raspas&restos de uma
dissertação – fim inquestionável para aquilo que não parece tê-lo.
ENSAIO
ENSAIO ENSAIO
ENSAIO #1
#1#1
#1
Máiquel, o Dentista e o Cobrador
Máiquel, o Dentista e o CobradorMáiquel, o Dentista e o Cobrador
Máiquel, o Dentista e o Cobrador
Narradores em primeira pessoa e referenciação poética
no romance
O Matador
e no conto
O Cobrador
“Ante nosso primeiro pecado, se o rubor nos cobre,
logo depois se instala a indiferença”.
Henry David Thoreau
3
A opção deste texto se por uma investida inicial no romance
O matador
,
escrito por Patrícia Melo em 1995, e sua relação de “referenciação poética” (SILVA,
2002) e uso da primeira pessoa narrativa com o conto
O cobrador
, escrito por Rubem
Fonseca em 1979, que dá título à coletânea.
Por mais interessante que seja o conhecimento das fontes e processos
narrativos primários, momento de “prefiguração” (RICOUER, 1995), a atenção aqui
recai sobre o espaço interior do texto, sua ficção figurada e reverberadora, e como o
narrador ‘possuído’ da primeira pessoa, o inconstante ‘eu que fala’, movimenta-se e deixa
fluir a história, utilizando-se da aparente solidão para dar vez às vozes que nele
coabitam; vozes ora brutais ora de intensa sensibilidade.
Parto para o ‘mergulho’ na ficção, começando pelo conto
O cobrador
, cujo
protagonista não tem nome à vista, mas uma identidade visivelmente violenta; misto de
“marginal e herói” – lema caro a outros ‘marginais’ – poeta-assassino.
Do cobrador do conto saio em busca de Máiquel no romance, cuja alcunha
de “matador” ele mesmo propõe para si, justificando os meios que utiliza para satisfazer
o destino; apaziguar a fome que nunca dorme e o ódio que amarga na boca.
Enquanto romance,
O matador
em seu recorte ‘abarca todo um mundo’, e a
tentativa de uma análise e interpretação apurada de sua configuração está além do
3
THOREAU, Henry David. A desobediência civil e outros escritos. Trad. Alex Marins. São Paulo: Martin
Claret, 2002. p.13-39.
alcance. Portanto, concentrar-me-ei na instância narrativa e nas revelações que o “eu-
narrador” nos propicia enquanto agente motriz da ficção.
Em cada um dos textos escolhidos, pelo diálogo íntimo’ que mantém para
além do nosso olhar, intento uma busca pela compreensão de partes ‘salientes’ quanto à
movimentação do narrador no espaço ficcional. As partes se complementam, pois muito
do que se diz no conto, reverbera também no romance. A contribuição dos críticos ao
tema faz-se continuamente presente, sendo o texto que traz no seu interior o gérmen
que conduz à escolha dos elementos de análise.
Ao final, proponho algumas relações de aproximação e distanciamento entre
O cobrador
e
O matador
. É um ‘quase nada dito’, pois pôr fim ao que está apenas a ser
descoberto seria matar o “prazer do texto” (BARTHES, 2002) em estado nascente.
Notificações aos que falam
Notificações aos que falamNotificações aos que falam
Notificações aos que falam
Quem nos conta, descreve, diz, fala. Quem projeta, organiza, propõe e
realiza. Falar do romance e de seu narrador é falar da voz que projeta a realidade da
ficção; é falar de um mundo ambíguo, no qual espaços e tempos se refazem diante dos
olhos crédulos do “leitor ideal” em busca da experiência do “autor virtual”.
Por muito tempo o romance, cujo objeto característico teria sido “o homem
que fala e sua palavra” (BAKHTIN, 1988: 135), pertenceu ao romancista – pessoa física e
material como se ele, através da arte da escrita, reproduzisse e reorganizasse o seu’
mundo, tanto para si próprio quanto para o outro, projetando-o socialmente.
O narrador, contudo, se interpõe entre esse “homem que fala” e aquela
história que se conta história que é de ninguém e de todos. Um mediador de talento,
seletivo, atento e, muitas vezes, criatura intermediária entre a natureza divina e
humana, capaz de saber mais do que conta, mas revelar apenas o que deseja.
O narrador transforma-se, no século XX, em figura central para vários
teóricos no contexto de análise da produção narrativa especialmente a partir de obras
escritas no século XIX. Entretanto, uma certa confusão parece se estabelecer entre eles,
ao menos é o que transparece nas traduções em língua portuguesa, acerca dos termos, e
conseqüentemente, dos papéis do autor e do narrador na realização do texto. O que
apenas demonstra quão recentes se posicionam os estudos sobre o papel primordial desse
arauto da criação ficcional que é o narrador.
“O mundo do romance é, basicamente, um mundo
in-sólito
. Mundo cheio
de vozes, sem que uma só seja real, sem que a única voz real do romance revele sua
origem” (TACCA,1983: 61). A busca dessa “voz real” aconteceria por conta de uma
aparente “reprodução da realidade” que a narrativa traria em si embutida
contrapondo-se ao ‘desdobramento da realidade’ que a poesia permitiria, por exemplo.
Daí a confusão ‘formal’ entre a personalidade real (o autor) e aquela ideal (o narrador).
Oscar Tacca nos alerta ainda que a voz do narrador é a única realidade da
linguagem sendo, em último caso, detentor da informação; do ‘saber’ e do ‘dizer’:
O narrador, que não é simplesmente o autor, nem tão pouco um
personagem qualquer, pode parecer uma enteléquia
i
. (...) a sua
identidade, fácil de confundir ou de perder-se entre os outros planos do
romance, precisa de ser determinada (...) (TACCA,1983: 65).
A condução da informação para a história está nas mãos virtuais’ do
narrador, variando a quantidade que chega a ser contada. “Basicamente, a voz do
narrador constitui a única realidade do relato. É o eixo do romance. Podemos não ouvir
em absoluto a voz do autor nem a dos personagens, mas sem narrador não romance”
(TACCA,1983: 65).
Sendo a voz do narrador contumaz, mesmo que fictícia, destacando-se em
meio à ‘turba romanesca’, dela se esperam certezas e quase nenhum desconhecimento,
especialmente pela força da onisciência do narrador fixada pela literatura
ii
, ainda o
cultivada. Carrega consigo, como fio condutor, a (pesada) responsabilidade da coerência
do universo narrativo.
Se narrador e autor não mais se confundem, o seu trabalho de saber, contar e
“como contar”, contudo, pode vir a ser compartilhado com a personagem na ficção
produzida em primeira pessoa: “Ambas as figuras se sobrepõem,
embora não se
confundam
” (TACCA,1983: 65, grifo meu).
Entre os teóricos que tratam do ponto de onde o narrador se “posiciona para
contar”, TACCA (1983: 68) resume-os em “narrador fora da história (terceira pessoa)” e
“narrador dentro da história (primeira pessoa)”.
Esta classificação inicial, para a qual outros teóricos utilizam diferentes
nomenclaturas, serve desde já para esclarecer a opção por não enveredar pela visão
tradicional da terceira pessoa
iii
, e concentrar atenção no ‘eu que fala’; primeira pessoa
cuja configuração guarda profundos mistérios, e está na base das narrativas que analiso.
Eu’ e os outros
‘Eu’ e os outros‘Eu’ e os outros
‘Eu’ e os outros
O primeiro dos mistérios sobre essa pessoa está na definição: “(...) o que se
diz não é o que
é
, (...) mas aquilo que os personagens
crêem
que é” (TACCA, 1983: 67,
grifo do autor). Essa proposição logo afasta a primeira pessoa da objetividade onisciente
do que simplesmente
é
, aproximando-a do narrador cujos conhecimentos estão ao nível
das personagens, que se utiliza muitas vezes de uma dessas figuras como canal emissor
de escolha.
Aparentemente, seus saberes advêm de experiência diegética
iv
peculiar,
dispondo assim de um conhecimento direto do mundo que conta, através da
identificação com o protagonista e com personagens ‘transeuntes’. Mas essa não sendo a
única possibilidade de apreensão da matéria romanesca o narrador pode saber mais ou
menos do que as personagens e ainda transitar entre este saber – olhemos para a
personagem na ficção; pessoa intencional na qual o narrador se materializa
freqüentemente nas narrativas de primeira pessoa.
A personagem pode não ser a razão central da existência de uma obra
literária, mas leva consigo o ‘sopro da vida’; as marcas visíveis do sensível; do plausível
humano transmutado em intenção.
Ao descrever problemas que se dão na construção de uma obra literária de
ficção, “objectualidade puramente intencional”, ROSENFELD (1995: 21) introduz: “É
(...) a personagem que com mais nitidez torna patente a ficção, e através dela a camada
imaginária se adensa e se cristaliza”. Essa ‘cristalização’ torna o narrador sujeito que sabe
dizer ‘eu’, humanizando-o: “o homem, afinal, pelo homem se interessa e com ele
pode identificar-se realmente” (ROSENFELD, 1995: 28).
Trata-se, pois, de orações verbais projetadas, e não, realidades humanas. Isto
posto, impõe-se a separação entre realidade ‘real’ e ficção ‘, assim como tenho feito entre
o mundo do autor e aquele do narrador: a via de mão dupla é marca constante neste
trajeto.
Conclui-se, no plano crítico, que o aspecto mais importante para o
estudo do romance é o que resulta da análise da sua composição, não da
sua comparação com o mundo. Mesmo que a matéria narrada seja cópia
fiel da realidade, ela parecerá tal na medida em que for organizada
numa estrutura coerente (CANDIDO, 1995: 75).
Antonio Candido desenvolve o papel da personagem no romance,
acrescentando: “(...) a compreensão que nos vem do romance (...) é muito mais precisa
do que a que nos vem da existência (...). A personagem é mais lógica, embora não mais
simples, do que o ser vivo” (CANDIDO, 1995: 69).
Delimitando o papel indispensável deste ser oriundo de um mundo
intencionalmente mais organizado e menos fragmentado do que o nosso, o crítico acaba,
contudo, por enredar-se no autor como base da criação ficcional, como no trecho em
que fala do aproveitamento dos “modos de ser” de uma pessoa real na fabricação
narrativa.
Por isso, quando toma um modelo na realidade,
o autor
sempre
acrescenta a ele, no plano psicológico, a sua incógnita pessoal, graças à
qual procura revelar a incógnita da pessoa copiada. Noutras palavras,
o
autor
é obrigado a construir uma explicação que corresponde ao
mistério da pessoa viva (CANDIDO, 1995: 65, grifo meu).
De forma alguma, o autor es de todo extinto no texto. Nos estudos
narrativos existem as categorias do “autor-implícito” - “Demiurgo dos poderes de vida e
morte sobre o seu universo,
emprestou
o verbo e deu o dom da voz ao seu narrador”
(DAL FARRA, 1978:22, grifo do autor) - e a categoria do “autor onisciente intruso”, cuja
marca característica seria “(...) a presença das intromissões e generalizações autorais
sobre a vida, os modos e as morais, que podem ou não estar (...) relacionadas com a
estória à mão” (FRIEDMAN, 2003: 5). Neste caso, seria a voz do autor que dominaria a
cena, expressando-se freqüentemente através da primeira pessoa do singular ou terceira
pessoa do plural.
Acredito, contudo, na máscara que o narrador impõe ao autor, sendo aquele
o provável fruto da responsabilidade de alguém cujo “ponto de vista”
v
, lugar de
manifestação, busca se projetar na diegese através da criação verbal.
Por agora, saliento que as formas de discurso nas narrativas são, no mínimo,
ambíguas, “projetadas ao mesmo tempo de duas perspectivas: a da personagem e a do
narrador fictício” (ROSENFELD, 1995: 25).
O conhecimento circula por entre linhas. É desse encontro que surgem
‘personagens-narradores’ ou ‘narradores personificados’, o que bem cabe para o nosso
estudo de
O matador
e
O cobrador
em seus mundos, grotescos mesmo que heróicos; de
conflitos interiores e exteriores “prismatizados” em história.
(...) a escritora contemporânea Patrícia Melo diz inspirar-se em Rubem
Fonseca ao trabalhar a temática da violência em seus romances
O
matador
e
Elogio da mentira
. Além do tema, o livro
O matador
possui
uma intertextualidade com a obra de Rubem Fonseca, em especial com
o conto
O cobrador
(...) (MANGUEIRA, 2003: 38).
O cobrador
O cobradorO cobrador
O cobrador
sai à frente
sai à frentesai à frente
sai à frente
Na literatura brasileira pós-64, alguns novos aspectos se apresentam ao
ficcionista como matéria-prima. “(...) os escritores não precisaram usar uma intuição
demasiado aguda para captar o perfil das contradições mais vivas da sociedade” (LUCAS,
1985: 95). A estrutura desequilibrada da pirâmide social, basicamente resumida entre
“classe dirigente” e “o resto da população”, têm regras individualizantes de conduta.
Assim, entre a originalidade da literatura que surge naquele contexto, a
violência é um dos temas marcantes, especialmente na obra de Rubem Fonseca,
enfeixada sob “o signo da negatividade”, sem “aberturas para o futuro”, como informa
Fábio Lucas:
A dualidade básica do Brasil, a extremação entre ricos e pobres, sem a
fortaleza de uma situação intermediária, estabilizadora, projeta-se com
vigor nos contos de Rubem Fonseca (LUCAS, 1985: 135).
Entre eles, se destacam
Feliz ano novo
(1975) e
O cobrador
(1979).
O conto ‘O Cobrador’ é uma litania da violência, tendo como fator de
impulsão da personagem principal a contra-repressão. O mesmo jogo
opositivo marca os dois contos: de um lado ricos perdulários; de outro
lado, desenfreado instinto de vingança dos pobres (LUCAS, 1985: 95).
A violência implícita está colocada dos dois lados da “corda social”, e a
explícita faz-se mais visível nas mãos de policiais e bandidos – faces evidentes da
repressão burguesa e da revolta marginal.
(...) na obra de Rubem Fonseca a violência não é um privilégio dos
grupos marginalizados; ao contrário, (...) Rubem nos mostra a violência
que atravessa todos os espaços, geográficos ou simbólicos, todos os
grupos e todas as relações sociais. A violência institucionalizada
confunde-se à violência criminosa, a ponto de se duvidar de qualquer
juízo de valor (GIASSOME, 1999: 38).
Cobrar sem saber a quem? O cobrador sabe muito bem quem são eles; mas
pouco interessa seus nomes, o que importa é o que de material possuem para ser
usurpado, atentado, destruído. Porque os burgueses devem e sabem disso, ele acredita, e
por isso temem. Mas o cobrador não tem medo. A violência é sua compensação; fruto
tangível de uma cobrança infinita. A primeira porta onde fora bater tem um nome:
Doutor Carvalho, Dentista. Entra e começa a cobrança.
Na sala de espera vazia uma placa,
Espere o doutor, ele esatendendo
um cliente
. Esperei meia hora, o dente doendo, a porta abriu e surgiu
uma mulher acompanhada de um sujeito grande, uns quarenta anos, de
jaleco branco (FONSECA, 1994: 491, grifo do autor).
O conto
O cobrador
assim começa, antes mesmo de se saber quem é o ‘eu’
que narra, logo revelando o encontro do protagonista com o Doutor Carvalho, sua
primeira ‘vítima’. As frases se sucedem no passado simples “entrei no gabinete, sentei
na cadeira, o dentista colou um guardanapo de papel no meu pescoço” (FONSECA, 1994:
491) - e são típicas da rememoração.
Então surgem os diálogos, dramatizando a ação que tende a se tornar distante
e ‘dissolvida’ pelo uso do pretérito, que marca a presença do narrador. Resolvido o
problema que lhe afligia, a dor de dente, a violência tem início. “(...) São quatrocentos
cruzeiros. rindo, Não tem não, meu chapa, eu disse. Não tem não o quê? Não tem
quatrocentos cruzeiros. Fui andando em direção à porta” (FONSECA, 1994: 491).
Ao longo da narrativa, essas formas verbais vão estar freqüentemente juntas,
ampliando seu fluxo temporal e criando entradas e saídas para o volume de informação
existente – no conto ela precisa ser sempre bem selecionada.
Gerard Genette diz existirem diferenças entre as práticas.
Existe uma diferença capital entre uma narrativa virada para frente, a
partir do passado, como no romance de terceira pessoa, e uma narrativa
virada para trás, a partir do presente, como no romance em primeira
pessoa (MENDILOW
apud
GENETTE, 1995: 166).
Assim, a ação de primeira pessoa tende a ser percebida como “coisa dada”,
enquanto a de terceira pessoa “em vias de se dar”. Implica isso relações diferenciadas
entre o envolvimento do leitor na história e a sua identificação com o universo ficcional.
Em
O cobrador
, a “distância narrativa” seria mista, pois traria em si tanto o discurso
“imitado” (direto) quanto o discurso “narrativizado” (indireto); o “discurso imediato” e o
“discurso relatado”.
Ao dizer “entrei no gabinete”, parece haver uma coincidência entre o sujeito
que ‘entra’ e o que diz “eu”, o que na verdade pode se configurar em uma distinção:
(...) não é idêntica a palavra de um personagem que fala ao de um
personagem que conta, ainda que ambos digam
eu
. Aquele que diz ‘eu’
pra contar, inaugura um mundo, um mundo da linguagem (TACCA,
1983: 87).
No mundo da primeira pessoa, o narrador não está tão explícito quanto
parece. Essa constatação reafirma o caráter de mobilidade da narrativa contemporânea,
mesmo erigida ‘dentro de uma pessoa’ apenas, e ilustra quão movediço pode ser o
terreno para quem insistir em delimitações rígidas e simplificações.
Quando a fúria do homem de “físico franzino” surge diante do “homem
grande, mãos grandes e pulso forte de tanto arrancar os dentes dos fodidos” (FONSECA,
1994: 491), vislumbra-se para onde se direciona o ódio da nossa personagem: “Odeio
dentistas, comerciantes, advogados, industriais, funcionários, médicos, executivos, essa
canalha inteira. Todos eles estão me devendo muito” (FONSECA, 1994: 491).
A afirmativa amplia um leque de profissões urbanas estamos no cenário da
cidade grande, sem dúvida que se destacam no contexto da literatura pós-64
vi
e, desde
já, a narrativa evidencia a tragédia da pirâmide social brasileira em seus dois pólos
centrais: os que possuem e os que não possuem – pelo menos por enquanto.
Aqui, os últimos vêem a possibilidade de transformação e ‘igualdade’, ao
menos diante do mundo capitalista, através da violência; enquanto os primeiros, em sua
indiferença, apenas lutam para manter a situação minimamente sob controle.
Após a violenta explosão no consultório, nosso “narrador-protagonista”
(FRIEDMAN, 2003) afirma: “Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei pra ele,
agora eu cobro!” (FONSECA, 1994: 492). Fere o dentista com um tiro na perna e dali
segue em sua trajetória que mistura barbárie e civilização, entre a violência física e a
palavra poética.
O lugar de onde flui a fábula é o universo da consciência e sua interioridade,
criando um contraponto com o mundo exterior e seu objetivismo: “A rua está cheia de
gente. Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo me devendo”
(FONSECA, 1994: 492).
GOUVEIA (2004: 25), tratando da composição estética do narrador em
Fogo
Morto
, de José Lins do Rego, descortina alguns aspectos que, mesmo vindo de uma
criação de diferente linhagem (romance regional com focalização variada), servem
também aqui pelo modo como o narrador dispersa informação:
O narrador acompanha a mente do personagem num momento
descontínuo entre uma questão e outra (...). O narrador não pede
licença para cruzar subitamente esses campos. Não estabelece
conectivos formais e, antes, cria um trânsito livre entre as imagens mais
incompatíveis.
O fluxo da consciência, pedra-de-toque da criação narrativa do século
passado, localiza-se nos níveis da “pré-fala” e da “fala”, podendo ser definido como
(…) um tipo de ficção em que a ênfase principal é posta na exploração
dos níveis de consciência que antecedem a fala com a finalidade de
revelar (…) o estado psíquico dos personagens (HUMPHREY, 1976:
5).
Essa modalidade narrativa propõe a busca de estados interiores, estando mais
centrada naquilo que se sente, se percebe do que naquilo que se faz. O mundo exterior,
como resultado da interioridade, permite a ampliação da subjetividade humana sobre a
intocável realidade objetiva; a profundidade da mente acima da padronização do
discurso. Esta vertente pode ser facilmente confundida com o “monólogo interior”:
O monólogo interior é, então, a técnica usada na ficção para
representar o conteúdo e os processos psíquicos da personagem, parcial
ou inteiramente inarticulados, exatamente da maneira como esses
processos existem em diversos níveis do controle consciente antes de
serem formulados para fala deliberada (HUMPHREY, 1976: 22).
À procura de uma verdadeira textura para a consciência, esta técnica não
levaria em conta a clareza de entendimento linear para o leitor; não alimentando assim
expectativas de uma compreensão direta, mantendo o narrador em estado ‘sub-reptício’,
pois as narrativas tendem, de uma forma ou outra, a manter seus narradores mesmo que
camuflados ao máximo.
No caso de
O cobrador
, percebemos uma articulação propícia a explicitar o
vai e vem das palavras que saltam da ‘interioridade para fora’. Mesmo fazendo uso de
imagens interiores que se justapõem continuamente por sobre imagens exteriores, existe
ali uma organização mínima: as idéias estão ritmadas pela pontuação, por uma cadência
de imagens que pedem atenção.
(...) verifica-se no monólogo interior uma certa fluidez sintática, uma
pontuação escassa, uma total liberdade de associações lexicais. O
narrador desaparece e a ‘voz’ da personagem atinge o limite (...): o
presente da atividade mental do eu-personagem é o único ponto de
ancoragem (REIS; LOPES, 1988: 267, grifo do autor).
A voz de quem
A voz de quemA voz de quem
A voz de quem
Em certo momento, o ‘protagonista-cobrador’ dialoga com uma de suas
vítimas e, então, notamos a diferença de construção sintática entre as vozes do narrador
e da personagem: “E porque o branco dos olhos dele era azulado eu disse você vai
morrer, ô cara, quer que eu te dê o tiro de misericórdia? Não, não, ele disse com esforço,
por favor“ (FONSECA, 1994: 493). E, mais à frente, encontramos uma elaboração textual
reveladora:
Vi no cinema (...) um ritual que consistia em cortar a cabeça de um
animal (...) num golpe único. Os oficiais ingleses presidiam a cerimônia
com um ar de enfado, mas os decapitadores eram verdadeiros artistas
(FONSECA, 1994: 494).
O coloquialismo daquela primeira fala contrapõe-se à estrutura da segunda,
mais erudita, de vocabulário elaborado, demonstrando estarem narrador e personagem
em convívio no mesmo ‘eu’, com uma demarcação sutil a separá-los. A fala da
personagem está carregada de uma modalidade lingüística individual, uma “voz pessoal”
(GENETTE, 1995), enquanto o discurso do narrador assume a “estilização”, “forma
extrema da mimese de discurso” (GENETTE, 1995: 182).
Num relato de primeira pessoa recebem-se, a respeito do personagem
que narra, simultaneamente duas informações de ordem diferente: uma
que é do mesmo tipo de que se recebe numa narrativa de terceira
pessoa (...); outra de um tipo novo, isto é, informações sobre quem fala
enquanto sujeito da enunciação. Em outras palavras, a imagem do
personagem é fecundada pela imagem do narrador, daquele que é
sujeito da enunciação; e a do narrador é ‘humanizada’ pela vivência
comum e efêmera do personagem (URBANO, 2002: 62)
No decorrer da história, com o aparecimento de uma das mulheres com
quem o cobrador rapidamente se envolve, dá-se então uma reviravolta do contexto da
personagem e sua voz: “Ela pergunta o que eu faço e digo que sou poeta, o que é
rigorosamente verdade. Ela me pede que recite um poema meu” (FONSECA, 1994: 494).
Agora, o narrador reassume’ à personagem, rompendo a barreira da
erudição; dando verossimilhança às palavras que anteriormente pareciam apenas suas,
por conta de conhecimento que não dedicávamos ao protagonista. Ao assumir estatuto
de poeta, seus contornos modificam-se e nele se associam sensibilidade e violência, amor
e ódio – dialéticas produtoras de novas significações.
Em um dos seus ‘poemas cobradores’, nosso protagonista diz: “come
caviar/teu dia vai chegar”. A estrofe revela o ‘culto do ódio’ pelo produto burguês e uma
expectativa crescente de mudança por parte do cobrador.
No caso, existe uma relação de “referenciação poética” com o “poeta da
revolução russa” que escreveu, em 1917, o poema “Come ananás, mastiga perdiz/teu dia
está prestes, burguês(MAIAKÓVSKY, 2002: 82). Tal referência imprime ‘revolução’ à
atitude do cobrador diante da sociedade burguesa e propõe um primeiro jogo referencial
com outros textos – relação corriqueira na história da literatura.
Basta ler o conto [
O cobrador
] de mesmo título [do livro] duas vezes: a
primeira simplesmente como um texto que trata da realidade carioca de
nossos dias; a segunda, em confronto com os
Poemas de Maiakóvsky
(...). O ‘cobrador’ adquire assim outra dimensão, o diálogo intertextual
acrescenta-lhe uma grandeza simbólica (...)” (SCHNAIDERMAN,
1994: 776).
O “diálogo intertextual”, que desde logo se inicia no conto, é um dos
principais traços que unem
O cobrador
e
O matador
. O fato de um texto aludir a outro
não é novo na história da literatura, está presente no contexto grego, as tragédias
recriam os mitos épicos, passando pelo romano Virgílio e chega até a modernidade,
ampliado pela perspectiva metalingüística.
Falando a partir da poesia, SILVA (2002: 94), descortina o processo no século
XX.
(...) A retomada modernista (...) converte a referenciação poética num
processo metapoemático, que inscreve o ato da criação poética no
âmbito discursivo do próprio poema. Esse processo, que denominamos
auto-referenciação poética (...), inscreve também, no âmbito discursivo
do poema, além de enunciados do ato criador (...),
enunciados/fragmentos de poemas do próprio autor e de outros poetas,
criando outro importante recurso poético (...), a
intertextualidade
(grifo do autor).
O diálogo entre textos, mantidas ainda suas formas específicas, promove um
fluxo de signos ‘originais’ na modernidade, que não perdem tal condição até o momento
em que, ao invés de se tentar reordenar a caótica condição humana, o artista passa a
vivenciá-la, conduzindo assim a criação artística para uma reformulação. “(...) as obras,
perdendo a individualidade de sua condição sígnica particular, passam a configurar
apenas um significante a ser reutilizado (...)” (SILVA, 2002: 96).
A ‘originalidade’ nestes tempos, batizada agora de “hetero-referenciação”,
está legitimada especialmente pela ressemiotização das formas, ou seja, a criação de novo
“vínculo sígnico” para as palavras: o que antes era signo original em um texto passa
agora a ser referente para um novo signo, gerando novas significações, capazes de
abandonar de todo aquela fonte primeira, de onde os novos signos se originaram.
O fluxo de signos em processo contínuo de mobilidade encontra lugar ainda
na teoria de Mikhail Bakhtin. O “dialogismo” encontra na intertextualidade “Diálogo
entre os muitos textos da cultura, que se instala no interior de cada texto e o define”
(BARROS, 1994: 4) – matéria oriunda de práticas discursivas diferenciadas, que se
dirigem para instaurar a polifonia no texto, mantendo acesa a diversidade das idéias e
ampliando o “tecido” verbal. “Afirma-se o primado do intertextual sobre o textual: a
intertextualidade não é mais uma dimensão derivada, mas, ao contrário, a dimensão
primeira de que o texto deriva” (BARROS, 1994: 4).
Desta forma, o diálogo do nosso ‘eu-poeta-cobrador’ com a poesia russa
concentrar-se-ia nesta nova forma de referenciação, na qual os signos primeiros (no
caso, a poesia de Maiakóvsky) são reincorporados em um novo contexto, dando sentido
a um novo “discurso poético”
vii
.
Semelhante situação se entre
O cobrador
e
O matador
, com a retomada
por parte desta segunda narrativa de elementos originados naquela primeira, em
especial, a figura do Doutor Carvalho, e o contexto de conflito entre detentores e
destituídos de capital, que coloca em um plano central o embate entre civilização e
barbárie.
A leitura de Boris Schnaidermann contribui para a compreensão das vozes
que se alternam mescladas, fragmentadas e passíveis de reorganização
nos contos de
Rubem Fonseca, primeiramente proclamada por Bakhtin a partir da obra de
Dostoiévsky. “Dirigindo esta minha preocupação para os contos de Rubem Fonseca,
distingo claramente vozes de barbárie e vozes de cultura” (SCHNAIDERMAN, 1994:
773).
A violência levada ao limite por várias das personagens de contos e romances
de Fonseca contra representantes da burguesia e suas instituições, coaduna-se com
situações líricas até, marcadas pela benevolência erigida entre os destituídos, tão ou mais
despossuídos do que eles.
Passando a analisar
O cobrador
a partir desse ponto, o ensaísta admite que a
violência física extrema, sempre presente, tem seu contraponto nos momentos de
sensibilidade inesperados e reveladores:
No meio da maior rudeza, ele se detém às vezes e seu monólogo passa
da prosa ao verso, surgindo uma nota erudita. (...) O toque erudito
surge de modo não menos brusco que o dos momentos de violência (...)
(SCHNAIDERMAN, 1994: 774).
Cultura (ou Civilização) e barbárie estão imbricadas no íntimo da
personagem, o que de modo inequívoco permite ao narrador ampliar sua atuação, ao
revelar-nos as contradições aparentes da situação sem, contudo, julgá-las. Estaríamos
diante de um narrador culto que se disfarça de ‘bárbaro’ ou uma personagem erudita que
faz uso da voz ‘íntima’ do narrador em primeira pessoa para violentar a história e o
leitor? “Ana acordou primeiro do que eu e a luz está acesa. Você só tem livros de poesia?
E as armas todas, pra quê?” (FONSECA, 1994: 503).
Antagonismos na produção contística de Rubem Fonseca têm sido
identificadas: de corruptores a corrompidos; da violência à compaixão; da vida à morte
que se desvela entre personagens ambíguos e controversos.
A obra de Rubem Fonseca se faz de diversos antagonismos, como, por
exemplo, um contraste permanente entre o mundo dos ricos e o mundo
dos pobres, hipocrisia e verdade, amor e ódio, alta e baixa cultura,
violência física e violência social (PEREIRA, 1997: 13).
Francisco Pereira acredita que a ambivalência latente nos sentimentos das
personagens reflete uma “realidade exterior” a elas mesmas, dominando-as
“independentemente de sua vontade” (PEREIRA, 1997: 104), existindo assim uma razão
que tem sua origem na própria estrutura social. “Na ficção de Rubem Fonseca,
odiar
é
também uma forma de
amar
. Nela, além do mais, a expressão do
ódio
é ao mesmo tempo
agressão e defesa. Dardo e escudo” (PEREIRA, 1997: 117, grifo do autor).
O encontro do cobrador com Ana Palindrômica, por exemplo, e o amor que
daí surge, altera a forma do poeta-assassino encarar o ódio. Uma ‘aura’ se interpõe, uma
“missão” se revela pela presença da mulher de origem burguesa em busca de um novo
contexto de inserção no mundo; alguém capaz de exercer atos bárbaros contra seus
iguais.
A morte dos sujeitos individuais, representantes de tipos característicos da
burguesia, passa agora a ser vista como “romântica” diante da chance de explodir
literalmente a todos.
Aqui, o narrador revela uma preocupação com o status que as ações do casal
terrorista irão causar no meio social “’O mundo inteiro saberá quem é você, quem
somos nós’, diz Ana” (FONSECA, 1994: 504) – amplificando assim a inserção do discurso
discordante na interminável rede polifônica de vozes. “Não serei apenas o louco da
Magnun” (FONSECA, 1994: 504), diz o homem que, mais do que satisfação material,
busca transformar seu “discurso nulo” (FOUCAULT, 2001: 11) em razão: da
impossibilidade à realização.
Ana ensina-lhe a conhecer quem são seus inimigos, dá-lhe razões políticas, já
têm às poéticas, para matar em grande escala. Ao impulso anterior, bárbaro’ porque
impulsivo, ela acrescenta um novo impulso, ‘civilizado’ porque racional, premeditado. O
momento de intensa transformação aponta para o futuro: “Fecha-se um ciclo da minha
vida e abre-se outro” (FONSECA, 1994: 504). A porta para Máiquel está aberta.
O cobrador
é uma narrativa que caminha pela fragmentação textual
viii
; saltos
temporais e espaciais contínuos revelam e amplificam personagens pressionadas por uma
interioridade abafada pelo intenso ruído exterior: o capitalismo que rouba sonhos e, ao
mesmo tempo, alimenta desejo de vozes em turba para um ‘eu-solitário’.
Em sua organização, o conto revela uma prática da contemporaneidade ao
introjetar no interior da personagem a máscara de um narrador capaz de se disfarçar na
palavra e no verbo, seus lugares de vida e morte, propondo uma (des)organização
voltada a salientar a interioridade quando o exterior pressiona continuamente; a visão
do ‘eu’ através do ‘outro’, e vice-versa.
Sua pujança polifônica ecoa em
O matador
, desdobramento (in)voluntário
daquele primeiro cobrador.
Nada de migalhas ao matador
Nada de migalhas ao matadorNada de migalhas ao matador
Nada de migalhas ao matador
Ele tem 22 anos, chama-se Máiquel, torce pelo São Paulo Futebol Clube e até
pouco tempo vendia automóveis velhos numa concessionária. Mas ele perdeu a aposta
do futebol e teve que pintar o cabelo de loiro. Cumpriu a aposta e ainda conheceu uma
cabeleireira gostosa. Mas o Suel, aquele cara não gostou, achou graça no cabelinho,
disse. E Máiquel matou pela primeira vez. Todo mundo curtiu a morte do cara!
Ganhou presentes e tapinhas nas costas; sentiu-se mais próximo da comunidade que o
quer como cavaleiro, cuja lança ataca e cuja armadura defende. Mas e a dor de dente! O
Doutor Carvalho atendeu. A dor jamais passou.
“Tudo começou quando eu perdi a aposta” (MELO, 1995: 9). Assim
ascendemos ao mundo de Máiquel na primeira linha de
O matador
. a seguir, ele está
na cadeira de uma cabeleireira operando a primeira mudança, ao menos a que chega até
nós; primeira de muitas tão intensas quanto esta que se dá agora. E logo ao final da cena,
fodem rapidamente dentro do salão (real ou imaginário?). Tudo passou, contudo.
Muito se passa dentro da cabeça do rapaz.
Mas quem mesmo está ali, afinal? “Sempre me achei um homem feio”
(MELO, 1995: 10). A primeira pessoa se apresenta sem eximir nada do que lhe acontece,
trazendo à tona os sinais, por mais sórdidos que sejam, do conhecimento restrito de um
“eu-narrador”. A visão vem “de dentro”
ix
, modo próprio de o narrador acompanhar
individualmente cada personagem, sem confundir-se com a fala deste. “(...) o
personagem-narrador existe em sua fala; se as outras personagens são, antes de tudo,
imagens refletidas desta consciência, ele é essa mesma consciência” (TODOROV, 1970:
46).
Todorov contribui, de forma concisa, para esclarecer o papel da primeira
pessoa na narrativa, especialmente quanto à relação enunciado e enunciação.
No momento em que o sujeito da enunciação se torna sujeito do
enunciado, não é mais o mesmo sujeito que enuncia. Falar de si próprio
significa não ser mais si próprio. O narrador é inominável: se quisermos
dar-lhe um nome, ele nos permite um nome, mas não se encontra por
detrás dele: refugia-se eternamente no anonimato (TODOROV, 1970:
47).
A dissimulação do narrador em personagem principal da história que narra,
pressupõe uma série de transformações; reflexos do interior que saltam para fora sem
cessar. “Fiquei admirando a imagem daquele ser humano que não era eu, um loiro, um
desconhecido, um estranho” (MELO, 1995: 10).
Desconhecer a si mesmo é perder a referência da individualidade, o espaço
identitário diferenciador. Por dentro, outras faces parecem lutar. “(...) passei a maior
parte da minha vida querendo ser outro cara” (MELO, 1995: 11). O ‘jorro da existência’
parece projetar-se através de Máiquel e outras vozes deixam-se abarcar por seu bramido.
Ao entrar em uma loja Mappin e pedir um par de calças Lee a Cledir, sua
futura esposa, o jovem revela a destituição material a qual esteve submetido desde cedo
e a vergonha por não ter consumido. “Eu sempre quis ter uma, mas não tinha dinheiro,
nunca tive calça Lee, isso não contei para Cledir” (MELO, 1995: 12). Esse sentimento de
ser despossuído persegue-o ao longo da história e a chance de mudar a situação
acontecerá através de assassinatos encomendados por “cidadãos de bem” e pela própria
polícia.
Na mesma seqüência de fatos, a relação entre interior e exterior se explicita,
marcando o fluir da consciência através dos monólogos interiores.
Peguei uma gravata pra fazer onda. Você me ensina a dar na
gravata? , perguntei. Estávamos dentro de um provador. Enlacei-a pela
cintura e senti o cheiro de boceta de Arlete no meu rosto. Como é que
eu esqueci de lavar? Será que Cledir perceberia. É simples, você só
precisa juntar as pontas, depois ajeitar assim (...) (MELO, 1995: 12).
Desvendar os estados íntimos de consciência de Máiquel faz parte da
construção narrativa e o leitor é arremessado continuamente de dentro para fora dos
espaços, salvaguardado apenas pelas marcas mecânicas presentes no texto. O tempo
verbal, assim como em
O cobrador
, caminha entre presente e pretérito e tem
importância fundamental:
A presença de verbos na primeira pessoa num texto narrativo pode,
pois, reenviar para duas situações muito diferentes, que a gramática
confunde, mas a análise narrativa deve distinguir: a designação do
narrador enquanto tal por si mesmo (...) e a identidade de pessoa entre
o narrador e uma das personagens da história (GENETTE, 1995: 243).
O tempo narrativo está em função da história e do discurso. No caso de
O
matador
, estamos diante de um “jogo temporal” que conduz a um “tempo intercalado”
(presente e passado pronunciados pelo verbo), e a uma indeterminação quanto ao
predomínio da ação ou do discurso.
Tudo se passa, pois, como se o emprego do presente aproximando as
instâncias, tivesse por efeito romper o seu equilíbrio, e permitir ao
conjunto da narrativa, segundo o mais pequeno
(sic)
deslocamento de
acento, balouçar ou para o lado da história ou para o lado da narração,
isto é, discurso (GENETTE, 1995: 218).
Máiquel, após marcar um duelo com Suel, que achou graça no seu novo
visual
blondie
, passa a sofrer uma pressão interior por conta da proposta impensada:
“Estava arrependido de ter proposto o duelo, aquilo tinha sido uma bobagem, uma
estupidez sem fim. Quis dar uma de bacana pra impressionar Cledir e me ferrei todo”
(MELO, 1995: 14).
Na continuidade do monólogo, que se interrompe continuamente para
sabermos o que acontece do lado de fora’, Máiquel revela sentir medo e fragilidade,
além de um inesperado desconhecimento dos seus próprios atos: “Realmente,
não dá pra
entender
como é que um sujeito faz uma bobagem dessas” (MELO, 1995: 15, grifo meu).
Mas quem não entende? Estaríamos agora diante de um desequilíbrio entre o
nível de conhecimento do narrador e da personagem, aquele sabendo mais do que este –
ou vice-versa? Mais à frente, ao tentar justificar para a namorada o duelo insensato, mais
uma pista do ‘nem-tudo-saber’ entre as partes revela-se:
Aquele cara vai aprender a não sair por aí chamando os outros de
veado, eu disse. Ele não te chamou de veado, chamou de gringo. É a
mesma coisa. Veado e gringo são a mesma coisa.
Também não sei de
onde eu tirei isso
(MELO, 1995: 16, grifo meu).
A dúvida, à primeira vista, parece concentrar-se na instância do “discurso
relatado” e não do “discurso imediato”, especialmente devido à indicação do tempo
verbal. Ou seja, o narrador, mesmo contando a história ‘do interior’, em primeira pessoa,
demonstra ter menos conhecimento dos fatos do que a “criatura projetada” de que faz
uso pra se pronunciar. “Eu tinha acabado de matar um homem e estava arrasado (...).
Por que eu matei Suel?, eu queria saber, eu
queria que alguém me explicasse
por que eu
matei Suel” (MELO, 1995: 18, grifo meu). A personagem acaba por ser revelada a partir
das reflexões do narrador.
A não ser que o rapaz sofra de algum problema psicológico é revelado que
“Coisas sem nexo. Ás vezes, penso coisas assim” (MELO, 1995: 16) e “Eu demoro muito
pra entender as coisas, parece que tem um véu cobrindo meu entendimento” (MELO,
1995: 39) o detentor da informação sobre a origem dos acontecimentos permanece
nebuloso
x
. “(...) o herói oculta muito amiúde de si mesmo aquilo que sabe e finge a si
mesmo que não percebe o que em realidade está sempre diante dos seus olhos”
(BAKHTIN, 1981: 210).
Se “a voz do erro e da tribulação não pode identificar-se à do conhecimento e
da sabedoria” (GENETTE, 1995: 252), a fragilidade no domínio narrativo revela que os
estados de onisciência encontram-se ausentes nesse contexto: algum demiurgo deixaria
de demonstrar sua capacidade de domínio sobre a informação narrativa, assentando-se
na incerteza e na ignorância? “
Sei lá
se ele estuprou um monte de mulheres,
pode ser
. As
pessoas dizem isso” (MELO, 1995: 44, grifo meu).
Estamos no campo do “modo narrativo”, transitando nos diferentes níveis de
consciência em jogo. Propõe-se o termo “focalização” (ampliação do “ponto de vista”)
para melhor demarcar o espaço de atuação do narrador bastante maleável na extensão
do texto. No caso do romance em primeira pessoa, a “focalização interna” predomina.
Deve igualmente notar-se que aquilo a que chamamos focalização
interna raramente é aplicado de forma inteiramente rigorosa. (...) o
próprio princípio desse modo narrativo implica, em todo rigor, que a
personagem focal não seja nunca descrita, nem tão pouco designada do
exterior, e que os seus pensamentos ou as suas percepções não sejam
nunca analisados objetivamente pelo narrador (GENETTE, 1995:
190).
Mesmo quando as instâncias da focalização e da narração confluem para
pessoa única, não devem criar confusão, pois “a identidade de ‘pessoa’ não deve
dissimular a diferença de função e (...) de informação” (GENETTE, 1995: 192).
A sapiência do narrador seria incomparável em superioridade à da
personagem, mesmo que unidos venham a estar no enunciar e no narrar? Se a
mobilidade permissiva da focalização permite alterações, aí encontro um esclarecimento
possível para as lacunas’ de memória de Máiquel: a quantidade de informação dada é
menos do que seria necessária ou esperada para o conjunto ficcional: a “paralipse”
xi
.
A partir da análise da obra de Proust, Gerard Genette admite uma maior
flexibilidade do modo focal, uma “polimodalidade” ou “tripla posição narrativa”, na qual
passamos da consciência do herói para a do narrador e ainda abrindo espaço à
intromissão de outras personagens abertura essa que encontra terreno em
O matador
com personagens como Doutor Carvalho e a jovem Érica.
Já ciente de vácuos na história ocasionados pela informação narrativa que, de
forma ampla, não alcança o exterior, venha ela do narrador ou da personagem, passo
também a olhar para o adiantamento de informação narrativa ou “prolepse”
xii
presente
no texto: “Pensei que
depois que eu matasse
o Ezequiel eles precisariam de um
vendedor” (MELO, 1995: 48, grifo meu).
Expressões adverbiais de tempo e o tempo verbal propiciam para a “prolepse”
uma vida efêmera, pois tem suas funções condicionadas a “aludir a eventos ou
personagens que
a posteriori
corresponderão à curiosidade (...) criada (...)” (REIS;
LOPES, 1988: 284).
O ódio, alguém disse isso, começa na boca. E aquilo, que eu nem
sabia o que era e que
era a minha própria morte
, o começo da minha
morte, terminava na boca, sem espuma (MELO, 1995: 114, grifo
meu).
Mesmo estando ciente das diferenças que marcam a “prolepse” e uma
percepção que parece transpor os limites ‘lógicos’ da narrativa, as palavras de Máiquel,
personagem cuja consciência o leitor acessa a todo o momento, indicam um ‘estado
premonitório’ presente em algumas de suas falas “(...)
eu sinto
que alguma coisa nos
engana, ser tão bom assim é a prova de que nós vamos nos foder completamente”
(MELO, 1995: 130, grifo meu) – e sua projeção para o futuro advém tanto da experiência
no mundo exterior, quanto de uma condição interior que ultrapassa o entendimento e a
materialidade; informando ainda de ações planejadas para o futuro próximo no ‘mundo
consciente’ – “(...) vá com Deus, disse o babaca, bati a porta com toda a força, o Marlênio
não perde por esperar
(MELO, 1995: 131, grifo meu) e das dúvidas cuja origem estão
no inconsciente
Eu andava
com um pressentimento ruim,
alguma coisa iria
acontecer” (MELO, 1995: 156, grifo meu).
Ao mesmo tempo em que transita entre o mundo do tangível e do
inalcançável, uma consciência metalingüística parece passear pelo texto e, a cada
descoberta dos entremeios narrativos que o compõem, uma voz advinda da fabulação
parece ironizar ao longo do caminho:
(...)
estou sentindo
um cheiro de merda, eu disse, se o Marcão ficar de
bico calado não tem problema, respondeu Santana. Não, eu falei, você
deve ter pisado em merda de cachorro. Eu estava certo (MELO, 1995:
138, grifo meu).
Concluindo a apreciação sobre o tempo, a partir dos seus signos técnico-
narrativos característicos,
O matador
restringe-se muito a “voltar no tempo” para
reforçar a memória ou deixar patente momentos obscuros, mas preciosos para a fruição
do romance.
A “analepse”
xiii
pode funcionar muito mais do que apenas ilustração de um
passado, mas trazer maior coerência interna à obra. Sua aparição dá-se pela suspensão do
tempo presente, sem, contudo, obstruir a organicidade do texto.
Abri a garrafa de vodca, eu queria ficar quieto,
pensando em Érica
,
lembrando de nós dois
, ela me ensinando a dançar, logo depois que a
Cledir morreu. Bem disse Érica, eu vou te ensinar, mas você tem que se
soltar, você é muito travado (...) (MELO, 1995: 201, grifo meu).
No caso, a lembrança apenas contribui para exemplificar uma ‘fuga’ do
presente. Mas a narrativa mantém um controle acirrado do seu caminhar e as tentativas
do protagonista em recorrer ao passado, à memória, acabam sendo por vezes frustradas –
“O Enoque
não me deixava ficar pensando
, ele queria conversar” (MELO, 1995: 202,
grifo meu) uma tentativa de manter Máiquel fora do mundo dos sonhos, evitando-lhe
a fuga, realmente impossível, da realidade massacrante que o conduzirá a um lugar por
nós desconhecido, apenas subentendido: “Eu não queria saber de nada que estava
acontecendo, queria deixar tudo para trás, ir em frente até encontrar um buraco e me
meter nele (...)” (MELO, 1995: 204).
O dentista abre a boca
O dentista abre a bocaO dentista abre a boca
O dentista abre a boca
“No dia seguinte, acordei com dor de dente e não fui trabalhar” (MELO,
1995: 12). Essa seria uma segunda pista do elo de referenciação que ligaria as narrativas
de
O matador
e
O cobrador
. A primeira delas, considero a forma ‘instantânea’ (
in medias
res
) como as duas histórias têm início: Máiquel adentra o Salão de Cledir para pintar os
cabelos, onde acontece sua primeira transformação; da mesma maneira acontece com “o
cobrador”, adentrando o consultório dentário do Doutor Carvalho que virá a ser o
nome do dentista de Máiquel – e praticando seu violento
début
.
em
O matador
, não é o encontro com o dentista que inicia a trama,
embora seja um dos aspectos fundamentais para detonar o processo de
transformação de Máiquel em matador. A trama (...) começa com o
protagonista pintando os cabelos de loiro, com pagamento de uma
aposta (...) (GIASSONI, 1999: 36-37).
Os dois protagonistas compartilham’ assim uma mesma personagem, tendo
ela no romance ganho voz ativa e preceitos morais individualizadores. O dentista aqui se
torna mais do que apenas vítima da violência, como no conto, mas elemento central na
reformulação da vida do jovem matador, conduzindo-o em busca de um alívio da dor de
dente e a dor de dentro: “(...) não iria mais sofrer por causa de dor de dente. Eu iria ao
dentista. (...) Vão cobrar caro, vai doer, vão me foder, mas foda-se, pensei. Não
agüentava mais aquela dor” (MELO, 1995: 29).
A “referenciação poética alcança seu ponto mais alto quando o dentista
conta como ficou manco. “Arranquei o dente de um infeliz e ele não queria pagar, veja
só, fui cobrar e levei um tiro no joelho, tive sorte de não morrer, ele disse” (MELO,
1995: 30).
Claro que tal informação, nos remetendo diretamente à situação criada no
conto de Fonseca, faz-se ‘nova’ (resignificada) no contexto do romance, sendo a
referenciação ao conto de interesse especial do analista, em nada prejudicando a
verossimilhança e a compreensão do romance. Contudo, a presença dessa personagem a
transitar pelo universo ficcional faz com que nossa tentativa de aproximação do “eu-
narrador” em suas vertentes se amplie.
De fato,
O matador
estabelece com o “O cobrador” não o óbvio nexo
de uma ‘continuidade temporal’ (...), mas também como um
contraponto semântico o cobrador (...) e o matador (...) irão, afinal de
contas, partindo de um lugar social comum (...), percorrer caminhos
muito diferentes, em determinados momentos opostos (GIASSONI,
1999: 34).
O fluxo do interior para o exterior faz-se sempre claro entre Máiquel e
Doutor Carvalho: “Foi você que matou o Suel? A pergunta, à queima-roupa, me deixou
assustado. Não, respondi, ainda bem que o espelhinho travava minha língua” (MELO,
1995: 30).
Os estados exteriores agora exercem grande influência sobre o protagonista e
o dentista parece assumir a narração em determinados momentos, quando suas palavras
são incorporadas à narrativa como discurso relatado, criando uma ilusão de primeira
pessoa autônoma. “Sou a favor da pena de morte. Dou uma banana para quem pensa ao
contrário. Essa história de direitos humanos é uma piada” (MELO, 1995: 30). Com o
deslocamento, passa-se a conhecer as disposições morais do dentista “É através do
discurso fascista do Doutor Carvalho que Máiquel inicia sua
educação sentimental
do
ódio (...)” (GIASSONI, 1999:39, grifo meu) – transformado, momentaneamente, em
personagem que fala ao leitor na primeira pessoa.
Seu nível de conhecimento, contudo, é bastante limitado – sabe tanto quanto
o “eu-protagonista” que tem lapsos de saber’ e o seu discurso propicia uma ‘segunda
vida’ para o protagonista da história; bua de salvação temporária para seus conflitos
interiores.
O romance traz outras entradas de personagens e seus mundos interiores,
assim como pistas contínuas da “referenciação poética”
xiv
. E cada uma das vozes que
chega ao primeiro plano promove uma turbulência no mundo do nosso herói.
Cada personagem entra em seu discurso interior (...) não como um
caráter ou um tipo, não como uma personagem fabular do seu tema
vital (...), mas como um símbolo de alguma diretriz de vida ou posição
ideológica (...). Basta uma pessoa aparecer em seu campo de visão para
tornar-se imediatamente para ele uma solução consubstanciada do seu
próprio problema (...) (BAKHTIN, 1981: 210).
A intromissão de outras vozes no mundo do protagonista faz delas de pleno
valor “plenivalentes” para Bakhtin e iguais em importância no “grande diálogo” que
é o romance. No caso do Doutor Carvalho, pode-se considerar seu discurso do tipo
“penetrante”, isto é, “(...) capaz de interferir ativa e seguramente no diálogo interior do
outro, ajudando-lhe a reconhecer sua própria voz” (BAKHTIN, 1981: 213).
Eu estava de boca aberta, o Dr. Carvalho com um motorzinho na mão.
Se doer você avisa, já doía, mas era outra dor. Não sei como é a alma de
um bandido, mas a alma do homem honesto, do homem bom é um
inferno, (...) veja que interessante,
pense nisso
, ele disse.
Pensei
, a alma
de qualquer homem é um inferno, a minha alma é um inferno (MELO,
1995: 42, grifo meu).
Assim, aquilo que Doutor Carvalho declara incorpora-se à voz interior do
“eu-narrador”, amplificando o seu discurso e conduzindo-o a um estado de
“multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis” (BAKHTIN, 1981:
2).
Ao perceber como o eu’ que fala pode assumir facetas várias, olhar apenas
para a questão gramatical de que se trata de uma pessoa apenas toda vez que esse ‘eu’ se
fizer presente, seria uma incoerência primária, pois impossibilitaria o entendimento da
narrativa “polifônica” e manteria o romance na perspectiva “monológica” um mundo
homogêneo e visto a partir de uma posição fixa.
Mesmo levando a narrativa a uma aparente desorganização, por não deixar
identificar à primeira vista a origem do todo discursivo, a afirmação (ou negação) do ‘eu’
do protagonista com o ‘eu’ do outro, liberta o herói da objetivação e propõe um diálogo
de consciências entre sujeitos.
Outra voz que ganha abertura momentânea na narrativa, ser também ‘eu’, é a
ex-namorada de Suel, que vem a ser também amante de Máiquel. “Eu já te falei que meu
nome é Érica? Todo mundo gosta do meu nome” (MELO, 1995: 40).
Sua entrada em cena acontece através de um “sumário narrativo”, ou seja,
um acúmulo de informações resgatadas de forma ampla, fora da cena direta. Momentos-
chave de sua vida são transmitidos e, ao final do seu direito à voz plena, reiteram a
abertura cedida pelo narrador para a sua expressão, ativando ainda uma possibilidade de
metalinguagem: “Suel era o meu amor e vo me fodeu.
Vim para falar isso e falei
(MELO, 1995: 41, grifo meu).
Concluir o inconcluso
Concluir o inconclusoConcluir o inconcluso
Concluir o inconcluso
O mundo organizado em
O cobrador
e
O matador
é marcado por um
hibridismo levado avante por um narrador que faz uso da primeira pessoa como
aparência, para nela deixar se infiltrarem vozes distintas; sons interiores de personagens-
marginais e marginalizados que se chocam; mas postulam, em uníssono, o espaço da
moderna ficção como multiforme, prismático, inatingível em totalidade para o leitor e o
analista.
Indo do tempo presente de onde a personagem fala, ao pretérito que marca
as pegadas do habilidoso narrador; do “monólogo interior” do “eu que fala” para a
exteriorização no mundo objetivo de uma identidade descontínua; das personagens que
por momentos ‘sobem ao palco’ e têm voz audível e influência na forma de ser e agir do
protagonista ampliando ainda a capa semântica’ na qual este está envolto as duas
obras ficcionais dialogam de forma ampla e original no contexto da escrita policial.
Grande parte da literatura policial, em especial os textos de escritos norte-
americanos, dá-se através das limitações estéticas da narrativa em “focalização externa”,
“(...) onde o herói age a nossa frente sem que alguma vez sejamos admitidos ao
conhecimento dos seus pensamentos ou sentimentos” (GENETTE, 1995: 188), centrando
forças na ação.
Com o
cobrador e o
matador, pelo contrário, a “paisagem interior” é
proeminente, intensificada pela primeira pessoa, mesmo que o ‘fim social’ que se dá para
cada protagonista seja diferenciado.
É importante ressaltarmos que, na medida em que a ação do cobrador
continua sendo a da manipulação da violência, (...) ela será sempre
afirmativa da segregação brutal entre as duas sociedades: a dos
cobradores e a dos devedores. O cobrador não tem, como Máiquel, a
esperança (e sequer a vontade) de atravessar essas fronteiras (...). Já para
Máiquel, a conscientização da existência dessas fronteiras simbólicas
(...) só vem demasiado tarde (GIASSONI, 1999: 42).
mesmo personagens anti-heróicos como estas, em tempos de vácuos nas
utopias e crenças nas verdades estabelecidas, aceitariam missão tão árdua quanto a de
serem, na ficção, arautos do desespero que nasce do desconhecimento; da limitação
material estabelecida por “não-se-sabe-quem”, ordenando de um lugar longínquo. Seus
narradores, inabaláveis nas suas ‘obrigações’ de fazerem fluir a informação textual,
propõem um jogo ambíguo de entradas e saídas dos mundos subjetivos e objetivos das
personagens; mundos instáveis porque ainda em formação, impingidos pela pluralidade
de vozes as quais ‘filtram’ incessantemente.
“Como nos exemplos clássicos do
Bildungsroman
, Máiquel é um (anti-) herói
em formação, mas a diferença é que essa formação não trata de um real
amadurecimento, mas da ilusão (...)” (GIASSONI, 1999: 40). O processo de “educação
sentimental”, que vai se dando pelas mãos das personagens transeuntes na história, faz
de Máiquel um amálgama’ mantendo inclusive a ironia do sentido ‘odontológico’ da
palavra uma mistura de elementos diversos que caminham para um todo obscuro
porque nunca completamente dominado. O cobrador ainda se deu melhor, pois saiu à
frente. O sorriso do último não é pior do que aquele mais desdentado.
O sonho de atravessar a fronteira, passar para o outro lado, revela-se
subitamente em sua cruel impossibilidade. Agora, restaria a Máiquel
ser, ele também, o cobrador de uma dívida que nunca iria receber
(GIASSONI, 1999, p.44).
Notas
NotasNotas
Notas
i
“Segundo Aristóteles (...), o resultado ou a plenitude ou a perfeição de uma transformação ou de uma
criação, em oposição ao processo de que resulta tal criação ou transformação” (FERREIRA, 1999).
ii
Para cada um dos níveis, demonstra ele três possibilidades de ‘ciência’ para o narrador em relação à história
que se conta: omnisciência/supraciência; equiescência; deficiência/infraciência.
iii
TACCA (1983: 72) critica em seu ensaio o modelo “realista romanesco” do século XIX: não seria ele mais
artificioso, por buscar uma objetividade inalcançável, do que se assumisse o conhecimento individual e a
apreensão subjetiva do real?
iv
GENETTE (1995:164) afirma que a diegese literária está marcada por uma relação de “máximo
informador” e “mínima informação”, estando a mimesis no pólo oposto.
v
“O ponto de vista, ainda que apresentando semelhanças com a pintura, enriquece-se na literatura porque se
carrega de ‘informação’: a perspectiva visual torna-se perspectiva psicológica” (TACCA, 1983: 67, grifo do
autor).
vi
“Novos personagens se oferecem aos ficcionistas: os técnicos, os executivos, os despachantes, os
contrabandistas de um lado; e os marginais (setor urbano) e os bóias-frias (setor agrícola) de outro lado
(LUCAS, 1985: 95).
vii
Tomo aqui o termo como caracterizado por BARROS (1994:4 nota de rodapé), presente nas diversas
manifestações artísticas, da poesia ao cinema, “desde que a ambivalência se manifeste nas diferentes etapas da
organização desses textos”.
viii
MANGUEIRA (2002: 171) reforça a imagem da fragmentação ativada pelo recorte em O cobrador,
concentrando-se apenas em episódios da vida do protagonista. é conhecido pelo leitor aquilo que de
alguma forma é importante para a história de vida e para a construção da identidade do narrador-
personagem”.
ix
TODOROV (1970: 44) propõe a visão “de dentroe a visão “de fora”, “segundo o nível de consciência da
personagem em que se detém o narrador”.
x
Nos capítulos seguintes, outras expressões de aparente desconhecimento das situações aparecem
continuamente: “Por que fiquei?” (p.22); “Afinal, por que eu estava sofrendo tanto?” (p.26); “Mas naquele dia
eu não sabia de nada” (p.88); “Ela entrou na igreja e não me explicou que dor era aquela” (p.117); “Nem eu
sei porque eu estava falando aquilo” (p.202). Temos assim as limitações visíveis do narrador, mesmo estando
ele ‘armado’ em primeira pessoa.
xi
“O tipo clássico de paralipse, recordemos, é no digo de focalização interna, a omissão de certa ação ou
pensamento importante do herói focal, que nem o herói nem o narrador podem ignorar, mas que o narrador
prefere esconder do leitor” (GENETTE, 1995: 207).
xii
(...) a narrativa ‘na primeira pessoa’ presta-se melhor do que qualquer outra à antecipação, pelo seu
declarado caráter retrospectivo, que autoriza o narrador a alusões ao futuro e particularmente à sua situação
presente, que de certo modo fazem parte do seu papel” (GENETTE apud REIS; LOPES, 1988: 284).
xiii
“(...) movimento temporal retrospectivo destinado a relatar eventos anteriores ao presente da ação e mesmo
(...) anteriores ao seu início” (REIS; LOPES, 1988: 230).
xiv
Uma passagem cita, de modo indireto, o título do conto de Rubem Fonseca: “Paga a passagem para o cara,
ela disse. Que cara? O cobrador” (MELO, 1995: 45).
ENSAIO#2
ENSAIO#2ENSAIO#2
ENSAIO#2
O homem do ano
O homem do anoO homem do ano
O homem do ano
entre a civilização e a barbárie
entre a civilização e a barbárieentre a civilização e a barbárie
entre a civilização e a barbárie
Do “eu” ao “outro” no cinema e na literatura policial adaptada
“É claro que o homem quer ser mais do que apenas ele mesmo.
Quer ser um homem total”.
Ernst Fischer
A trajetória de ascensão e queda de um jovem (anti-) herói do subúrbio
carioca no mundo do crime organizado. Assim, pode se resumir o fio condutor da trama
no filme
O homem do ano
(José Henrique Fonseca, Brasil, 2003), produto cultural
amparado na intertextualidade com a literatura e o próprio cinema; sistemas nos quais o
filme vai buscar elementos para compor um painel híbrido de referências para um
cinema policial praticado no Brasil nesse início de século.
Se sua origem primeira estaria no romance
O matador
, de Patrícia Melo, o
qual adapta, uma análise mais apurada revela um percurso anterior, cujas bases estariam
assentadas ainda mais longe desde os primeiros filmes de ficção do cinema brasileiro
àqueles códigos visuais erigidos por Hollywood a partir de produções pensadas para
explicitar a violência (in) contida no homem, até se chegar ao tempo da banalização da
imagem promovida pela mídia atual e ao próprio contexto da Indústria Cultural no qual
livro e filme se inserem.
A literatura, para além da referência prévia de
O matador
, encontra-se ainda
presente no filme em camadas profundas, passíveis de uma “cronologia” contudo, que
o próprio texto de Melo, enquanto produto cultural contemporâneo, resignifica formas –
não apenas da literatura, mas do cinema também especialmente referenciado o conto
O cobrador
, de Rubem Fonseca.
Das formas que se enfrentam, mas dialogam, passamos à ação e seus
meandros. Sempre em conflito com forças exteriores massacrantes, em busca da
manutenção de um discurso de dominação, e forças interiores não menos poderosas e
determinantes a racionalidade
versus
a inexorabilidade dos destinos o nosso eleito
“homem do ano” tende à tragicidade própria do nosso tempo: o aniquilamento do sujeito
nas garras objetivas de um mundo fragmentado, rude e perverso, onde os “valores
universais” estão em queda livre; mas um mesmo mundo que, quando menos se espera,
deixa entrever sensibilidade e um istmo de humanidade esquecidos.
E ao tentar clarear um lado apenas dessa condição, acaba-se por afugentar o
outro temporariamente, perdendo assim o fio da relação dialógica que enlaça os
discursos. Uma leitura buscando iluminar momentaneamente um objeto precisa se
equilibrar entre divergências e convergências dos caminhos temporários do saber.
Nesse fluxo constante de signos verbais e visuais, tratando especialmente de
um filme erguido a partir de matéria literária, o percurso aqui iniciado é também um
tanto tortuoso, pois se tem à frente significações múltiplas de palavras e imagens girando
em torno de um eixo comum, a adaptação, e como elas se aproximam uma das outras na
(re) criação da realidade mantendo-se íntegras em suas individualidades, mas estando
abertas à síntese, todavia.
O caminho analítico começa no traçar de relações entre os dois campos da
produção cultural aqui abordados, literatura e cinema, e como se encaminham para o
fim comum da adaptação no cinema nacional.
Com estruturas narrativas e dramáticas compartilhadas, destaco entre os dois
eixos a questão da antinomia civilização e barbárie informada no filme e como ela
caminha à dialética da civilização bárbara”, deixando marcas visíveis em
O homem do
ano,
tanto na sua construção estética quanto na discursiva; na “massa” e no “recheio” do
produto cultural “para consumo imediato”.
Ora partindo da instância narrativa maior, organizadora do todo sonoro e
visual a qual o espectador tem acesso, ora partindo da percepção da personagem-
narradora na história, um mundo limitado e ainda enganador, o atrito entre civilização e
barbárie faz-se continuamente, reverberando um mundo que se (des)equilibra.
Dos pontos relevantes, a intertextualidade é explicitada no filme, abrindo
espaço para a interpretação de seqüências nas quais podemos identificar o que aqui
proponho: o olhar sobre o todo se dá a partir das partes.
Entre prós e contras, fazendo uso dos caminhos teóricos produzidos tanto
para a literatura quanto para o cinema, esse ensaio desenvolve-se em duas vertentes:
uma
antinômica
, na qual as diferenças entre cinema e literatura, civilização e barbárie,
“eu” e “outro” são vistas enquanto conceitos preliminares em busca de inserção na teia
polifônica; e uma outra,
dialética
, na qual os associativismos, interações, permutas,
trocas e obliterações tornam maleáveis as definições erigidas anteriormente,
convergindo para uma compreensão de preceitos que surgem na adaptação da literatura
policial para o cinema brasileiro.
Literatura no cinema brasileiro
Literatura no cinema brasileiroLiteratura no cinema brasileiro
Literatura no cinema brasileiro
Nos primeiros passos do cinema produzido no Brasil, no início do século XX,
a literatura de ficção fora logo aproveitada como matéria-prima para produções ainda
artesanais, em busca de público que as aceitasse.
A adaptação para o cinema de obras largamente conhecidas do público
e quase sempre vinculadas à literatura canônica, além de corresponder
a um desejo de legitimação das práticas artísticas do novo meio (...),
constituía um excelente mecanismo para compensar a limitação de seus
recursos narrativos (OLIVEIRA, 2002: 53).
O cinema queria ser prestigiado como linguagem artística assim como eram o
teatro, a pintura e a literatura; e naquele início de século, inicia-se a transposição de
romances clássicos brasileiros para a tela:
O guarani, Lucíola, A viuvinha,
do
popularíssimo e superadaptado José de Alencar; assim como
Inocência
, de Visconde de
Taunay;
O mulato
, de Aluísio de Azevedo, entre outros, entretendo o público nas
primeiras duas décadas daquele século com tramas da literatura romântico-nacionalista
escritas no século anterior. A garantia do sucesso da fita estava no modelo folhetinesco
já enraizado.
A presença das adaptações manteve-se constante no cinema brasileiro desde
então os estúdios do “surto industrial” nos anos 40 tinham o filão como certo e o
advento do Cinema Novo propõe um segundo momento de efervescência criativa para
elas.
Olhando criticamente para a situação social do país, os jovens realizadores
encontraram na literatura regionalista dos anos 30 o “leite e mel” para seus ensaios
visuais, tanto em termos estéticos quanto ideológicos, passando a utilizar os textos
literários de forma mais livre.
Se antes as adaptações correspondiam, quase sempre, a tentativas de
reprodução de obras literárias canônicas, com o aproveitamento quase
integral de diálogos criados por escritores (...), os cinemanovistas
substituíram a reverência ao ‘original’ por uma maior liberdade criativa
(OLIVEIRA, 2002: 72).
Para além de uma simples curiosidade, Marinize Oliveira estipula em 322 o
número de “filmes nacionais apropriados de obras literárias”, em um universo de duas
mil películas produzidas pelo cinema brasileiro, até o ano de 2002. De para cá, o
contador continua a somar novas adaptações estando
O homem do ano
entre elas
(2003) – ampliando as chances de interação e renovação para os dois lados.
Isso também demonstra que o diálogo entre cinema e literatura no Brasil é
tão antigo quanto o que se deu nos Estados Unidos, logo que o realizador D.W.Griffith
revelou dos enquadramentos influentes encontrados na narrativa romanesca de Charles
Dickens, que serviriam para formatar a primeira “gramática” do cinema.
Do mesmo modo, a literatura não ficaria à margem das novas formas de se
organizar uma história através das imagens em movimento desde então presentes em
um imaginário humano cada dia mais complexo e apto a novas experiências conduzidas
pelos sentidos e pela técnica. O contar (
tell
) e o mostrar (
show
)
xiv
traçam na literatura e
cinema da contemporaneidade caminhos paralelos, compartilhando estruturas
narrativas e temas comuns.
Presenças e ausências de alguém que conta
Presenças e ausências de alguém que contaPresenças e ausências de alguém que conta
Presenças e ausências de alguém que conta
O distanciamento da onisciente terceira pessoa narrativa, modelo no qual o
narrador não toma parte enquanto personagem vivo da história que narra e parece “tudo
saber”, foi o modelo que se firmou na literatura e acabou por se tornar “pedra de toque”
do “cinema clássico americano”.
Mas a primeira pessoa narrativa, o “eu que fala”, também saltou das páginas
para a tela, especialmente a partir da influência da “literatura
noire
dos anos 40
relação intertextual que também aqui será objeto de investigação.
BAPTISTA (1994:79) considera difícil transpor algumas “problemáticas
lingüísticas” para o cinema, especialmente referentes àquilo que se diz e da forma usada
para dizê-lo na literatura, pois “(...) o filme narrativo clássico tende a ocultar sua
enunciação. Parece que a história se desenvolve livremente, por si mesma, sem que
ninguém a esteja contando”.
A aparente ausência da instância organizadora, que projeta os discursos
estéticos e ideológicos no universo diegético
xiv
, parece deixar o cinema fragilizado
quando nos deparamos com outras formas de se relatar visualmente uma história. “A
questão ‘quem narra?’, o problema do narrador, (...) é mais difícil de analisar que a
questão ‘quem vê?’, o ponto de vista” (BAPTISTA,1994: 78).
De um lado, a instância indispensável do narrador
xiv
, que faz uso de todos os
níveis de expressão disponíveis no cinema (fotografia, música, montagem, cenários etc)
para contar sua história; e de outro, o ponto de vista, a perspectiva adotada por ele a
partir da percepção de suas personagens, revelando ou ocultando suas intenções em
função de quem detém a materialidade corpórea ou de um interesse maior, objetivado.
No caso de
O homem do ano
, Máiquel narra e é narrado; conta e se deixa
contar; soma as possibilidades de encontro entre a figura que deslancha a ação, o
intangível narrador, e aquele que é seu “porta-voz humano”, a personagem que oferece
olhos a quem não os tem. Aqui também se constrói uma primeira pessoa narrativa,
campo aberto para especulações variadas.
Quando se fala do “eu” no cinema, a estratégia encontrada para deixar claro
que o narrador aceita e compartilha o ponto de vista de uma ou várias personagens
deflagradoras da ação, é o uso de voz
over
, definida por XAVIER (1996: 17) como “(...)
esta que se superpõe às imagens e cujo foco emissor se encontra em outro espaço-tempo
frente ao mundo observado pela câmera”
xiv
.
Essa voz que se projeta acima das outras é resultante de um passado revisto,
organizado e agora presentificado em ação ficcional através das personagens, e rompe
em parte com a estrutura “transparente” e “idealista” do cinema clássico, cujo narrador
não se mostra e a mediação entre o mundo ficcional e o espectador parece inexistir.
Transferida para a imagem, a subjetividade do “eu” da personagem encharca
o texto fílmico; adensando de certo modo o conhecimento de sua interioridade por parte
do espectador, mesmo que isso não seja tarefa simples.
(...) em tese, a relação de um filme com a ‘vida interior’ do protagonista
tende a se complicar quando o livro apresenta o narrador ‘auto-
diegético’ (Genette) que conta de sua própria experiência,
compensando as limitações que tal opção narrativa acarreta, em termos
de ponto de vista, com a liberdade de movimentos que a voz permite na
explicação de sentimentos, idéias, comentários, etc... (XAVIER, 1996:
18).
A partir da análise da adaptação para o cinema da novela
São Bernardo
, de
Graciliano Ramos, Ismail Xavier afirma que um filme
assume
uma narração em primeira
pessoa, ao invés de ser
narrado
naquela pessoa, pois as instâncias narrativas são
múltiplas, podendo colaborar simultaneamente na composição da estrutura narrativa.
São Bernardo
(Leon Hirzsman, 1972)
xiv
“traz o texto de Graciliano para dentro do filme”,
acrescentando tópicos importantes na compreensão desse “eu” no cinema, através da voz
corpórea do narrador-protagonista,
(...) que estende sua presença por sobre as cenas que dão conta de sua
biografia, (...) deixando clara a convivência, no filme, de dois tempos: o
do passado narrado que desfila com o suceder das cenas que compõem o
trajeto do protagonista e o do presente do narrador (XAVIER, 1996:
18).
Contudo, por mais influente e definidora que seja a perspectiva (
filter
)
xiv
da
personagem-narradora em uma trama, a “focalização interna” estará sempre em um
nível diegético segundo, “pseudo-diegético” para Ismail Xavier, pois no filme a
existência de um primeiro nível objetivado, que organiza e sentido ao presente, é
inescapável.
A primeira pessoa literária transposta para o cinema, no aparente
comando do amplo processo de narrar, seria uma convenção apenas,
ilusionismo, pois, “haveria, pelo menos, uma segunda instância sempre
presente, apta a interagir com a primeira, apta (...) a efetivamente
prevalecer na construção dos efeitos (XAVIER, 1996: 20).
A partir dos estudos da narrativa fílmica, identifico essa figura considerada
onipresente e onipotente pelo crítico brasileiro com o “narrador cinemático”, conforme
CHATMAN (1993: 134), capaz de controlar as várias instâncias do mostrar (
showing
),
“sendo composto de uma vasta e complexa variedade de estratégias comunicacionais”
(tradução minha).
A diferença entre esse narrador objetivado e a voz
over,
que demarca a
subjetividade, é patente:
O narrador cinemático não é para ser identificado com o narrador em
voz
over
. A voz-
over
pode ser um componente do todo que se mostra,
um dos artifícios do narrador cinemático, mas (...) sua contribuição é
quase sempre transitória; raramente domina um filme nos moldes que
um narrador literário domina um romance (CHATMAN ,1993: 134,
tradução minha).
Mesmo o narrador utilizando a técnica da voz-
over
como forma de conduzir
a ação a partir de uma personagem que (se) narra em primeira pessoa, ela estaria
submetida à organização prévia de um narrador cinemático ou, como denomina o
teórico André Gaudreault, um “meganarrador” “esta presença virtual que organiza o
relato fílmico, que está detrás de todos os filmes” (BAPTISTA, 1994: 80).
O meganarrador delegaria a um “narrador atorializado” (personagem) uma
“sub-narração” quando este se faz presente em cena. Existiria um canal principal de
comunicação da história, partindo dele as diversas instâncias expressivas necessárias para
a construção do sentido fílmico, e assim seria pela capacidade do meganarrador em
manipular a linguagem cinematográfica.
(...) mesmo naqueles casos de filmes com personagens narradores (isto
é, personagens que nos contam a estória a que assistimos), a limitação
de seu conhecimento (o personagem pode contar o que
testemunhou!) é quase sempre suplantada pela onisciência da
narração
abstrata
, que nos faz ver aquilo que o
narrador actancial
não poderia ter
visto (BRITO, 1995: 195, grifo meu).
Desta feita, ao falar que
O homem do ano
é construído a partir da primeira
pessoa, digo da existência dialética entre um narrador que, ao mesmo tempo em que
assume a intimidade do “eu” de uma personagem, deixando-o tomar à frente enquanto
principal voz a ser ouvida entre as tantas passíveis de manifesto, jamais abre mão da
instância maior à qual está ligado, origem das imagens percebidas e detentor de
conhecimento anterior
xiv
: Máiquel é o mesmo, mas é outro também, e o que ele vê,
assim como o que o espectador vê, é o desígnio de uma entidade soberana, nunca
submissa.
A interação narrativa entre o “eu” (narrador temporário) e o outro”
(narrador cinemático) amplia a forma da estrutura ficcional. No estofo da criação, os
discursos alimentam esta dubiedade pelo modo como as personagens lidam com suas
situações de conflito interior.
Máiquel é um exemplo de como a interioridade de alguém se desorganiza a
partir da aceitação de um “outro” que chega para suplantar o antigo “eu”, trazendo à
tona uma das formas de choque entre civilização e barbárie na produção artística.
Da civilização bárbara ou da barbárie civilizada
Da civilização bárbara ou da barbárie civilizadaDa civilização bárbara ou da barbárie civilizada
Da civilização bárbara ou da barbárie civilizada
O herói grego Jasão, na tragédia
Medéia,
de Eurípides, revela a antinomia
entre civilização e barbárie em uma réplica à furiosa esposa abandonada, prestes a
deflagrar sua vingança:
(...) em lugar de um país
bárbaro
, agora habitas a
Grécia
. Aprendeste a
conhecer a
justiça
, a
reconhecer as leis em lugar da força
. Tua ciência
tornou-se famosa em toda a Grécia (...). Mas se habitasses ainda os
extremos da terra, não se falaria de ti (EURÍPIDES, 1976: 25, grifo
meu).
A partir da ascensão da racionalidade e suas conquistas que foram se
impondo lentamente e logo afastando o povo grego da visão mítica do mundo que por
longo tempo perdurara, o mundo ocidental tem importantes demarcações da alteridade.
Surge a possibilidade de convivência entre partes distintas, porém
complementares, entre quem fala e vive a
polis
(gregos) e quem está fora dela
(estrangeiro) ainda entregue à força física e à mágica do viver.
A ciência, a justiça, a palavra, a arte são conquistas da nova mentalidade
grega. Em um patamar abaixo, concentram-se os estados mágicos de vida e crença dos
outros povos, ainda incapazes de mergulhar nas conquistas superiores do espírito.
Desde logo ‘informada’ na tragédia grega, ponto culminante da criação
artística helênica ao resignificar códigos introduzidos pelas epopéias, a antinomia entre
quem detém a lei, a ordem, a palavra chaves para a civilização se estabelece em
relação a um pólo oposto. Mas essa trajetória está cheia de ambigüidades, havendo desde
logo constante alternância de papéis entre as partes.
PEREIRA (1991: 27), em introdução ao citado drama, revela esta
instabilidade:
Um certo relevo assume também a antinomia grego/bárbaro, um dos
temas postos em voga pelos sofistas. (...) Eurípides o faz entrar várias
vezes nos seus dramas, freqüentemente para mostrar, pelo
procedimento das suas figuras, que pode um bárbaro ser superior a um
grego, tal como (...) um escravo pode sê-lo a um homem livre.
A questão perdura e é tema recorrente em variados campos do conhecimento
(história, psicanálise, antropologia, filosofia, literatura) e o desenvolvimento da
humanidade, com a perda de parâmetros avaliatórios rígidos, reforça este
questionamento e o sentido dado a ele. “(...) não atividade do espírito (...) que não se
pergunte hoje o que é ser civilizado (e, em conseqüência, quem é bárbaro), o que é ser
moderno” (NOVAES, 2004: 9).
Atento à relação intrínseca que a obra de arte mantém com a realidade, de
onde advém todo o estofo a ser recriado por si, e os parâmetros da coerência a serem
adotados no universo ficcional, nesse estudo atenho-me à dualidade civilização e
barbárie como manifestada na produção artística trânsito constante entre estética e
ideologia e, especificamente, informada no longa-metragem
O homem do ano,
em
uma tentativa de perceber como esse (des)encontro se revela no filme e reverbera no
cinema brasileiro em diálogo com a ficção literária. Aqui e acolá, contudo, é possível que
ocorram atritos’ com outras áreas do saber em prol do esclarecimento de conceitos
indispensáveis para a análise da adaptação, como a seguir.
WOLFF (2004: 23) propõe três perspectivas na busca do sentido para a
barbárie, surgindo em contraponto à idéia de civilização: “(...) no primeiro sentido,
civilização é
civilidade
; no segundo, é a
parte espiritual da cultura
; no terceiro, é a
humanidade
no sentido moral” (grifo meu).
A idéia de bárbaro então estaria localizada nos pólos opostos:
comportamento rude, bruto, não polido, ligado a sociedades tradicionais arcaicas, pouco
desenvolvidas; insensibilidade diante do conhecimento material e imaterial produzido
pela humanidade (ciência, artes etc), sendo, pois, pouco “elevado” em relação à cultura e
ao espírito; e o alheamento dos ideais humanísticos que regem as relações sociais
(cooperação, benevolência etc), em função da “luta impiedosa pela vida” em um estado
ainda selvático. “É um estágio pré-humano a que o terceiro parece pertencer: é o
homem que permaneceu em estado selvagem, que se tornou, ou
tornou a ser
, desumano”
(WOLFF, 2004: 24, grifo meu).
As definições são tênues e a própria modernidade demonstrou que o século
XX é o melhor exemplo disso, que os homens mais civilizados são capazes dos atos mais
bárbaros. Ou seja, existe um fluxo contínuo entre as formas de se perceber a feição dessa
dicotomia. O mais importante é tentar mensurar a utilidade de conceitos cada dia menos
estanques. O caminho agora vai da antinomia, estruturas contraditórias impossibilitadas
de diálogo, para a dialética – estado de interação entre conceitos divergentes.
Para Francis Wolff,
toda e qualquer cultura
, e sua produção cultural
certamente, traria em si as sementes da civilização e da barbárie, havendo uma gradação,
momentos de transição, entre um estado e outro, dentro de cada contexto sócio-cultural.
Somente a permanência da
diversidade
seria capaz de gerar as respostas adequadas para
apaziguar os choques contínuos, ainda intransponíveis, entre aquilo que
é
civilizado ou
bárbaro para um, e não o
é
para outro.
Saindo do embate no campo social, pode-se também chegar ao (des)encontro
entre civilização e barbárie através da relação do sujeito consciente e autocentrado com
o inconsciente indomável. Esse caminho mostra um “eu conhecido e um “outro”
desconhecido como partes do todo existencial humano, porém desencontrados na
relação de alteridade e ainda disputando um lugar preferencial. “Ora, se o civilizado é
aquele que constrói sua identidade por oposição ao Outro, seu semelhante na diferença
(...), podemos dizer que ele nasce marcado pela diferença. Ou seja: nasce dividido”
(KEHL, 2004: 102).
Maria Rita Kehl associa o surgimento do sujeito civilizado à modernidade
que “ainda não se esgotou”. É com ela que surge a ruptura do “eu” antigo em relação ao
novo “outro” povos “descobertos” a partir do século XVI e suas formas próprias de
concepção da realidade e que coloca o sistema em cheque ao gerar incertezas sobre
verdades rígidas consideradas únicas. Mas ser realmente civilizado significa também ser
maleável e aceitar a instabilidade de preceitos e a diversidade.
Se o “eu” se identifica com a razão do sujeito “solar e autocentrado”,
alimentado por uma pulsão individualista, KEHL (2004:105) coloca na outra ponta o
inconsciente, não identificado “por tabela” com a barbárie, mas um contraponto da
razão exarcebada na definição das certezas intransigentes. “(...) seria muita pretensão
identificar a modernidade, o ocidente moderno, com a civilização. A modernidade
contém tanto ‘civilização’ como ‘barbárie’”.
A presença da dúvida dá à certeza instabilidade. O entrecruzamento dos
conceitos demonstra que o eixo bárbaro na atualidade estaria ao lado daqueles que se
sentem “autorizados a agir em nome de um bem absoluto”; defensores de um “discurso
monológico” ao invés de uma “polifonia de vozes”; tomando o seu agir individual como
medida universal e, assim, abafando o diálogo entre as diferenças.
Na tentativa de manter o controle da situação, o homem aposta na razão em
detrimento do inconsciente, acreditando poder controlar as pulsões naturais. Ao invés
de afugentar a desrazão, chega ainda mais próximo dela: uma verdade absoluta,
segurança infinita para quem teme, escapa de qualquer tentativa de abarcá-la por
inteiro, e o centro do “eu” estaria, a partir de Freud, onde não se quer encontrá-lo no
inconsciente.
Quanto mais o sujeito tenta domesticar seus conteúdos irracionais, mais
presentes eles se farão: o “natural” estaria em ambos compartilharem e não lutarem pela
supremacia: mas não é como acontece.
Se não quero admitir o ‘mal’ e a contradição em mim mesmo, vou
projetá-los no outro, e eliminar no outro aquilo de que não quero saber,
em mim. E quanto mais próximo for o próximo, mas ele serve de
suporte para esse mecanismo de defesa (KEHL, 2004: 122).
Essa forma de projetar em outrem aquilo que desgosto e não aceito em mim,
eliminando-o posteriormente em prol da preservação daquilo que considero certo, faz
ecos nas ações impetradas por Máiquel em
O homem do ano
.
Atraído pelos barbarismos do discurso dos pequenos-burgueses
amedrontados pela violência, toma-os para si como parte integrante de sua nova
consciência, travando-se então uma luta interior pelo poder: o “eu” que se deixa
dominar em prol de um “outro”; uma consciência enfraquecida, em um mundo de
incertezas, que se acanha diante de outra, colocando em jogo os mecanismos de proteção
inconscientes.
Voltarei ao assunto quando da análise e interpretação de duas seqüências do
filme, especialmente no que toca à transformação visual da personagem em cena, sua
porta de entrada para uma nova concepção da vida ou da morte. Por agora, busco a
materialização do conflito entre civilização e barbárie na produção cultural brasileira.
Na literatura brasileira, muito próxima do (des)encontro entre civilização e
barbárie, está a criação do escritor Rubem Fonseca. Nela, segundo SCHNAIDERMAN
(1994: 774), “as vozes da barbárie são contaminadas por algo que não se coaduna com a
palavra ‘bárbaro’. E a crueldade máxima, o ápice da violência, está muitas vezes
matizada por algo que lhe é claramente oposto”.
Sensibilidade e rudeza; erudição e ignorância; amor e ódio são ambivalências
já detectadas nas vidas das personagens que circulam pelas histórias do escritor: “a
mistura de barbárie e humanidade no íntimo de uma pessoa é uma constante (...)”
(SCHNAIDERMAN, 1994: 775).
Vivendo entre o alto e o baixo a cada momento (lembremos do matador-
poeta em
O cobrador
ou do milionário cujo prazer é atropelar anônimos em
Passeio
Noturno I e II
), a violência explícita que as personagens deflagram é uma revolução
anticonformismo, uma forma de libertação da opressão capitalista cotidiana, seja para
ricos ou para pobres. E a luta pela sobrevivência diária vai, tantas vezes, para além dos
limites humanamente aceitos, especialmente para os que estão embaixo na rígida
hierarquia social.
Mas tudo não é uma coisa só: “Apesar da barbárie, da mais absoluta falta de
dignidade no mundo moderno, ainda há, muitas vezes, um sentimento de compaixão ou
mesmo um gesto de solidariedade por parte daqueles que sofrem (...)” (PEREIRA, 1997:
13).
Assim, a violência, atitude sempre bárbara, surge onde menos se espera e
pelas mãos de personagens que se digladiam com essa condição: agem ao mesmo tempo
contra o que é diferente e o que é igual; brutalidade e sensibilidade transitam entre
partes que antes não se permitiam confluir.
O cinema brasileiro também tem seus filmes tocados pela barbárie, como
afirma HALM (1994: 104): “No tocante ao cinema, o conceito de ‘bárbaro’ compreende
uma gama de filmes muito maior do que se possa imaginar. (...) é, por sua própria
natureza, abrangente, diversificado, às vezes até caótico, mas nunca excludente”.
O manifesto
Estética da Fome
, de Glauber Rocha (1965), demarcaria a gênese
dessa bipolaridade
xiv
. No cinema, ela seria identificada por produções que se prendem
aos padrões estéticos e ideológicos dos “colonizadores” um olhar estrangeiro, cuja
origem estaria no padrão do cinema norte-americano, adotado pelos realizadores
brasileiros para verem as coisas próprias do Brasil afastando assim o povo, o qual
deveria refletir, das imagens produzidas: ao invés da identificação e aproximação,
mantém-se o desconhecimento e o afastamento, perpetrando o sentimento de
inferioridade no público. “É o ‘olhar’ moderno e civilizado que queremos possuir, pois só
assim nos nivelaremos à Civilização” (HALM, 1994: 103).
Mesmo diante desse quadro – que deve ser relativizado passados mais de uma
década em que fora pensado, mas ainda bastante coerente com as realidades distintas da
produção brasileira o cinema bárbaro’ aqui se perpetuou, para o crítico, em filmes de
gêneros e caminhos estéticos bastante diferenciados, mas que se encontram diante da
mesma ambivalência.
Entre os filmes citados por HALM (1994: 106-107), destaco, pelas
proximidades temáticas com
O homem do ano
:
O romance da empregada
(Bruno
Barreto, 1988), a história de uma obsessiva empregada doméstica, Fausta, que “vende a
alma ao diabo para conseguir um teto”;
O homem da capa preta
(Sérgio Rezende, 1986),
pela forma como, diante da figura mítica do político Tenório Cavalcanti, o povo “(...)
aplaude e venera os
salvadores da pátria
, a quem entregamos nossas vidas e esperanças,
para que nos protejam e nos guiem”; e
Faca de dois gumes
(Murilo Salles, 1989), por
revelar a faceta bárbara do capitalismo nacional, originalmente fruto de um processo
civilizatório; produtor de uma violência “que não respeita classes sociais, poder
aquisitivo, grau de escolaridade, mas que é a espinha dorsal de nossa sociedade injusta e
selvagem, onde é cada um por si, (...), o homem é o lobo do homem (...)”.
Destes três filmes, o que os coloca em diálogo
xiv
com
O homem do ano
, pelo
viés da estrutura tramada, é no primeiro uma certa obsessão da protagonista que não
limites ético-morais para alcançar metas; a salvação para uma miséria coletiva advinda
da figura de um anti-herói no segundo; e a corrupção entranhada na burguesia e
instituições brasileiras que salta aos olhos na trama da terceira história.
Vale salientar que dentre estes filmes, os dois últimos são classificados no
gênero policial e pelo menos um deles, o filme de Murilo Salles, se origina de uma obra
literária. Pistas de que a literatura e o cinema policial brasileiros encontram muito de
sua razão de ser na dicotomia civilização e barbárie.
Afora os títulos acima, outros tantos filmes do cinema nacional poderiam ser
enumerados para fortificar essa ‘linhagem’ na produção brasileira. Do já clássico
Bye,bye
Brazil
(Carlos Diegues, 1978), passando pelo bizarro
16060
(Diogo Mainardi, 1996), e os
aclamados
O invasor
(Beto Brant, 2001) e
Cidade de Deus
(Fernando Meirelles, 2002)
xiv
,
cada título apresenta, a seu modo, a perspectiva do entrecruzamento entre civilização e
barbárie em si informados.
Se a prática de cinema produzido por aqui se empenha em reproduzir um
modelo civilizado, como indicava Glauber Rocha, a barbárie, associada à temática da
violência, mantém-se como fértil campo de produção de sentido desde os primórdios do
cinema nacional.
Nesse período, os primeiros realizadores dedicaram-se especialmente a filmar
reconstituições de crimes, no início reais, depois ficcionais, “crapulosos ou passionais,
que impressionavam a imaginação popular” (GOMES, 2001: 11).
O crime dos Cravinhos,
O crime da mala, Noivado de Sangue
e o fenômeno
de público
Os estranguladores
xiv
são alguns títulos do gênero “filme criminal” que se
impôs, ao lado do gênero “filme cantante”, como garantia de sucesso entre produtores e
exibidores na primeira década do século XX. “As rápidas transformações de caráter
urbano, social, tecnológico e cultural porque
(sic)
passava o Rio de Janeiro (...),
trouxeram em seu bojo o impacto da sociedade de massas, com a conseqüente
reprodução simbólica de sua violência” (SESC, 1995).
Esse filão ficaria lembrado mais pela história do que pelas imagens captadas –
ainda se vivia a era do filme mudo, a produção era bastante artesanal e a má-conservação
devorou grande parte desse material e, posteriormente, viria a ocupar amplos espaços
nos jornais e televisão de caráter sensacionalista. As bases da morte em cena no cinema
brasileiro, contudo, já estavam postas.
Mas foi Hollywood, a partir dos anos 30, que trouxe a violência como
modelo e tema freqüente para produções com os filmes de gângsteres. “Podemos definir
os filmes de gângsteres como aqueles cujas histórias dizem respeito a criminosos
empregando violência física, operando de modo organizado (...)” (KARPI, 1973: 247,
tradução minha).
Escrevendo a partir de três filmes considerados clássicos do período, Stephen
Karpi cita a presença de personagens cujas origens, quando não desconhecidas por
completo, estariam nas classes baixas; homens que vêem no mundo do crime espaço para
uma rápida ascensão social. O gângster, verdadeiro líder da gangue, faz uso de sua força
física, mata sem temer, como forma de manter a admiração e o respeito dos seus
comparsas e, ao seu modo, ser comparado a um herói.
A longevidade do gênero ficou comprometida pela censura norte-americana,
cujo pressuposto principal era evitar a glamourização dos gângsteres para que ninguém
quisesse copiar a vida que levavam, e os filmes nos anos 40 passam a ter em suas tramas,
envolvendo criminosos e detetives nas grandes cidades, um toque de “psicologia
estetizada”.
O filme
noir
é considerado uma vertente do filme policial, sua fonte direta
está na
serie noir
e (série negra ou romance negro) literária – desenvolvimento do gênero
“romance policial de enigma”, criado por Edgar Alan Poe, aprimorado por Conan Doyle
e Agatha Christie cujo ponto alto é a produção literária dos norte-americanos Dashiel
Hammett e Raymond Chandler e, no Brasil, tendo sido cultivado com interesse por
Rubem Fonseca
xiv
.
Essas narrativas exploram a ação, enfatizando aquelas violentas, brutais,
físicas. Centradas em histórias de detetives durões, homens comuns porém heróicos, que
ao tentarem resolver crimes sórdidos um assassinato, normalmente, o estopim das
tramas acabam por se envolver demais, colocando-se em risco e levantando
questionamentos éticos e morais.
Cabe ao leitor, a partir das descrições exteriores, deduzir o caráter, a
personalidade, os sentimentos das personagens variando entre paixões brutais e ódios
ardentes. A linguagem é coloquial, marcada pelas gírias, e aqui e ali desponta o humor
quase sempre cáustico.
Em geral, o tema é assassinato, e isto por si só retira da história o
elemento de elevação espiritual. Assassinato, uma frustração do
indivíduo, e conseqüentemente, uma frustração da raça (...). Mas
assassinatos vêm sendo cometidos tempo demais para serem notícia
(CHANDLER, 2001: 161).
Para Chandler, as histórias de resolução de mistérios, através da figura do
detetive, não aprenderam nada de muito novo desde os precursores, apenas atualizaram-
se às condições do seu tempo. Contudo, ele não aceita que essa produção seja
considerada apenas “literatura de fuga da realidade”, enquanto outras correntes ficam no
confortável patamar da “literatura de caráter artístico”.
Falando a partir da produção de Hammett, REIMÃO (1983: 62) sintetiza
alguns objetivos percebidos no romance negro: “Utilizando o mundo do crime como
metáfora da sociedade em geral, Hammett vai denunciando as falências das instituições
burguesas, a corrupção, o egoísmo, a falsa moralidade etc”.
A morte aqui alinhava a crítica às instituições, assim como revela o ambiente
agressivo, solitário e desagregador no qual o homem contemporâneo se insere, lugar
onde a vida já não vale tanto diante do imperativo do consumo. “Não é engraçada a idéia
de um homem ser assassinado, mas às vezes é engraçado que ele seja assassinado por tão
pouco, e que sua morte seja a moeda-corrente do que chamamos de civilização”
(CHANDLER, 2001: 185).
Pensando em filmes baratos rodados em cenários urbanos “reais”,
roteirizados a partir das obras já reconhecidas pelo público, às vezes por seus próprios
autores, ficou tudo adequado. Hollywood era então o território do claro-escuro.
Mauro Baptista, em entrevista, define alguns elementos que marcam o filme
noir
:
O homem acossado, em fuga, ou uma mulher sedutora apresentada
como ameaça para a integridade moral e física do herói são elementos
fundamentais. A predileção por ambientes noturnos, o submundo, uma
fotografia em preto e branco muito contrastada e, claro, uma narração
quase em primeira pessoa. É muito comum no
noir
o protagonista
relembrar o que aconteceu, para entender como ele se perdeu, como ele
cedeu às tentações (BORGES, 2006).
Além das características citadas, pode-se ainda considerar importante ao
noir
uma atmosfera pessimista, que não tende ao final feliz; a presença da perspectiva dos
criminosos nas histórias; a corrupção policial; a pouca lealdade das relações, mesmo
aquelas mais próximas; e o caráter do herói-protagonista que o conduz à armadilha e
queda
xiv
.
Se o filme
noir
duraria como filão até os anos 50, seus elementos
continuaram a ser incorporados nos filmes que o sucederam criando, inclusive, um estilo
chamado
neo-noir
, uma tentativa de manter presente as marcas da tradição do “filme
escuro” mesmo com o fim da era dos altos contrastes que o preto e branco
propiciavam.
A entrada em cena da personagem que narra sua própria história no cinema
(primeira pessoa em voz
over
), por exemplo, deu-se com o filme
noir
a partir da forma
literária, sendo até hoje uma das marcas mais visíveis da influência dessa estética.
O homem do ano
agrega em sua construção narrativa e dramática
características daqueles sub-gêneros
xiv
do cinema policial: o filme de gângsteres e o filme
noir
. Mesmo que não possa defini-lo como uma versão atualizada dessas estéticas, a
presença do submundo do crime organizado; a corrupção policial; a ascensão e queda de
um herói-matador em um mundo de violência explícita; as relações de pouco crédito
entre as personagens, além da utilização da voz
over
como caracterização da narrativa
em primeira pessoa traçam relações íntimas entre o filme e aquelas estéticas.
Repensando o gênero e a crítica
Repensando o gênero e a críticaRepensando o gênero e a crítica
Repensando o gênero e a crítica
Se fiz correlações com vertentes clássicas do cinema policial, então é
indubitável que
O homem do ano
seja um filme policial? MERTEN (2003) questiona o
realizador sobre o assunto:
Todo mundo define
O Homem do Ano
como um policial. ‘Você acha
que é?, pergunta o diretor. Para ele, não é, pelo menos no sentido
tradicional atribuído à palavra como definidora de um gênero. O que
lhe interessou foi Máiquel, como personagem (...).
Sem esclarecer o “sentido tradicional” de que fala, acredito que José
Henrique Fonseca se refira à perspectiva do policial enquanto “crime de enigma”, ou
seja, a razão da trama estaria em se desvendar, através de uma investigação, o(s)
culpado(s) de um crime. Se esse for o caminho para definir o policial, seu filme não se
encaixaria no gênero, pois nele o jovem criminoso Máiquel é (re)conhecido por todos e
seus crimes não são nenhum mistério. Ou seja, a informação diegética que, no policial
tradicional, deveria chegar ao público aos poucos, não é sonegada de todo em
O homem
do ano
: o interesse se estabelece na sua rota e sina.
Outra crítica corrobora a intenção do diretor em realizar um filme de
personagem mais do que um filme de gênero:
Ao atentar-se para a tarefa de explorar seus personagens, por mais
esquisitos que sejam, e criar para eles uma ambientação que mais parece
um mosaico das desigualdades somadas de todo o Brasil, o longa (...)
transcende seus limites, num exercício autofágico que picota, com fúria,
as regras fechadas do policial, sem desrespeitar os quesitos ‘ação a valer’,
‘sensualidade’ e ‘inteligência’. Trata-se, portanto, de um êxito
dramatúrgico singular, com os diferentes sabores que uma salada
narrativa pode apresentar (FONSECA, R., 2003: 40).
Assim, posso pensar
O homem do ano
como um somatório de características
ligadas ao cinema policial sem, contudo, encaixar-se em nenhuma corrente específica,
transitando entre marcas do filme de gângster e
noir,
e da linhagem “ação a valer” a
marca comercial do gênero na atualidade. Produto híbrido de influências, talvez seja
mesmo intencional essa “salada narrativa” que faz uso de cada ingrediente à disposição
em função das personagens e suas ações na ficção. Mas divergência quanto à forma
final das intenções.
BERNARDET(1985: 82), ao falar da personagem no cinema, por exemplo,
associa o interesse pelo destino de uma personagem única como um modelo imposto por
Hollywood: “Uma noção implícita nessa dramaturgia é que a história é feita por
indivíduos, a história tende a ser os atos de personagens de destaque ou heróis”. O filme,
assim, vai se mostrando cada vez mais resultante de camadas estéticas variadas, fazendo
refletir sobre os modelos “originais” e suas aberturas para o novo.
No contexto nacional, o filme se integraria ao conjunto de outros
classificados como policiais no pouco criterioso mercado de “gêneros cinematográficos”,
desde aqueles baseados em casos reais no começo do século XX, até os que têm surgido
com freqüência no país, derivados ou não da literatura policial (
Bellini e a esfinge
,
Cidade de Deus
e
Carandiru
são exemplos).
Mas essa tentativa de afastamento de um padrão policial de cinema nacional
conduz a outro caminho, criticado por FURTADO (2005a: 202), pois favoreceria o
desaparecimento de um gênero eminentemente nosso, oriundo da crônica policial, “em
favor de emulações dos modelos estrangeiros” ecos do eterno choque entre
“colonizador” e “colonizados” na
Estética da Fome
de Glauber Rocha?
O crítico expõe o filme em meio à crescente produção do cinema brasileiro,
em que diversas propostas estético-discursivas se misturam, e aponta influências não
reveladas em
O homem do ano
modelo de produção “civilizada” que desce ao
submundo da “barbárie” em busca de sua matéria-prima, estilizando-a.
Em crítica mais consistente dedicada ao filme, FURTADO (2005b), desde
logo, associa o filme de José Henrique Fonseca a uma matriz estética local “é o mais
novo exemplar da grife Conspiração Filmes”
xiv
que se encaixaria em “tentativas no
terreno do suspense policial” de um modelo difundido pela produtora, vindo a ocupar
seu lugar ao lado de filmes como
Gêmeas
,
Traição
e
Bufo&Spallanzani
o segundo se
baseia no universo trágico da literatura de Nelson Rodrigues e o último é uma adaptação
de romance homônimo de Rubem Fonseca, roteirizado por Patrícia Melo.
Os filmes estariam marcados pela “estética Conspiração”
xiv
que, na visão do
crítico, não seria o responsável direto pelo “fracasso” de
O homem do ano
, assim como
também não o seria o roteiro escrito por Rubem Fonseca. A responsabilidade estaria na
“completa incapacidade de pensar” a estética do filme por parte do cineasta.
Filipe Furtado faz ainda questionamentos relativos ao estabelecimento do
mundo da personagem-protagonista, Máiquel, para o cumprimento da meta de
realização – o diretor, como vimos anteriormente, afirmara ser o jovem matador o
interesse maior do filme.
A construção é falha, garante, levando o filme a se desfazer “na sua
incapacidade de sugerir qualquer momento íntimo de seus personagens, de construir
qualquer relação entre eles”. Nessa perspectiva, as intenções de criar intimidade na
recepção através de voz
over
e câmeras subjetivas também estariam frustradas, pois se o
“eu” (primeira pessoa) não chega perto, muito mais difícil seria para o “outro” (terceira
pessoa) fazê-lo.
O descompasso ou “fissura”, como nomeia o crítico da “geração
Contracampo
xiv
, que em alguns momentos parece um tanto impressionista nos
comentários, seria gerado pelo desencontro entre imagens que “só existem pelo seu
significante mais óbvio”, “atuações carregadas” e excessos por parte da fotografia e
direção de arte. A proposta de encenação do realizador, considerado “maneirista”, não se
mostra eficaz. Além disso,
Se o filme assumisse, por exemplo, seus personagens como meros
arquétipos e quanto estamos muito mais num universo devedor (...) de
imagens que veio antes dele (imagens cinematográficas ou não), vários
dos problemas dele se dissipariam (...) (FURTADO, 2005a).
A análise até aqui desenvolvida demonstra que não é difícil levantar origens
para o que está informado em
O homem do ano
enquanto influências estéticas. Filme de
gângsteres,
noir
e criminal brasileiro; o “romance negro”; a escritura de Rubem Fonseca
e a de Patrícia Melo; o flerte com modelos dramáticos norte-americanos (filme de
personagem à la
star system
hollywoodiano) e a tentativa de revelar a contradição nas
entranhas da sociedade brasileira, são alguns caminhos que parecem convergir
claramente no filme.
Quanto aos arquétipos
xiv
, se suas personagens os assumem ou não, salientaria
que a figura do herói perpetua-se na literatura ocidental desde as epopéias gregas,
mostrando-se longevo mesmo quando suas qualidades heróicas são transpostas ao
homem comum, para o anti-herói moderno, e subvertidas ao máximo no caldeirão da
contestada porém aceita pós-modernidade.
A crítica
Contracampo
foi mesmo impiedosa em relação ao filme
O homem
do ano
. Além dos aspectos salientados por Filipe Furtado, OLIVEIRA JR. reforça o
problema da
mise-en-scène
, citando a presença de “cenas de violência esvaziadas de
qualquer efeito”; personagens esquemáticos e “observações pueris acerca da sociedade e
seus poderes”. Diz ainda que o filme não é “louvável” e que ao realizar uma “geografia
criativa” da cidade do Rio de Janeiro, torna-a incompreensível
xiv
.
Talvez as expectativas em torno do filme, pela tríade que o envolve (Rubem
Fonseca, Patrícia Melo e José Henrique Fonseca), fossem grandes, especialmente por ser
a estréia de JHF na direção de longas metragens, o roteiro ser assinado por Rubem
Fonseca, após vários anos sem roteirizar, e se passar na Baixada Fluminense.
Mas as críticas também revelam um excesso de rigidez que muito parece se
ligar à “estética Conspiração” que, por não perder de vista o mercado consumidor, acaba
por não ser o modelo de cinema brasileiro independente, realizado sempre a “trancos e
barrancos”, desagradando assim os jovens críticos, defensores ferrenhos de um cinema
‘nacional’ – com toda a carga positiva e negativa que a palavra traz consigo.
Da conversa entre os discursos à intertextualidade
Da conversa entre os discursos à intertextualidadeDa conversa entre os discursos à intertextualidade
Da conversa entre os discursos à intertextualidade
No seu esmerado poema
Tecendo a manhã
, João Cabral de Melo Neto
anuncia: “Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos”.
A poética cabralina se encaixa “feito uma luva” com o modelo proposto por Mikhail
Bakhtin através da “polifonia”, que STAM (1992: 96) define como “a coexistência, em
qualquer situação textual ou protextual, de uma pluralidade de vozes que não se fundem
em uma consciência única, mas que (...) existem em registros diferentes (...)”.
Aproximando a proposta do teórico russo ao cinema, o ensaísta profere a
existência de múltiplos discursos no espaço da vida e da criação as palavras “não têm
dono” e circulam livremente entre interlocutores através de variados registros
continuamente marcados pelo embate ideológico em seu “centro vivo”, propiciando um
entrecruzamento de significados e sua ampliação por justaposição e contraposição.
Uma conjuntura textual se forma para se fazerem ouvir, em toda sua
potência, as vozes de personagens que falam por si e por outros. No caso do filme, toda a
sua possibilidade de gerar significados (planos, música, montagem, interpretação, "
mise-
en-scène"
etc) nos leva a identificar e registrar a diferença, saber da origem e intenções
de quem fala.
A circulação dos discursos no espaço textual deixa aberturas para a
intertextualidade. Entendida como permuta entre códigos lingüísticos, referenciação
poética, resignificação das formas ou “iluminação recíproca”, como bem nomeou
Bakhtin, ela garante a ampliação do patrimônio cultural pela hibridização.
Pelo mecanismo de inserção de uma referência produzida anteriormente no
sistema cultural em uma nova concepção, não substituímos a ‘originalidade’ do “eu” pela
do “outro”. Ao invés disto, atualizamos uma forma/fórmula anterior em um novo
contexto, que deixa de ser partido para ser inteiro: seu significado “outro” passa a estar
incorporado ao “eu”.
O homem do ano
, em toda sua hibridez, deixa entrever as marcas de uma
construção intertextual; um “comércio” entre concepções convergentes no tratamento
da vida e da morte do homem no mundo contemporâneo.
Dualidade, heroísmo e fragmentação do sujeito na Baixada Fluminense:
Dualidade, heroísmo e fragmentação do sujeito na Baixada Fluminense: Dualidade, heroísmo e fragmentação do sujeito na Baixada Fluminense:
Dualidade, heroísmo e fragmentação do sujeito na Baixada Fluminense:
(des)caminhos da
(des)caminhos da(des)caminhos da
(des)caminhos da
trama em
trama em trama em
trama em duas seqüências
duas seqüênciasduas seqüências
duas seqüências
de
dede
de
O homem do ano
O homem do ano O homem do ano
O homem do ano
Serão analisadas agora duas seqüências de
O homem do ano
, nas quais
(des)fio os caminhos teóricos até aqui percorridos. A análise fílmica seqüencial da obra
se perderia em uma tentativa, que tende à frustração, de transformar imagens em
palavras, especialmente por estarmos lidando com um processo no qual “a imagem é
tudo”. Portanto, nos atemos aos momentos nos quais civilização e barbárie, polifonia e
suas marcas intertextuaisinfluências estéticas e ideológicas do cinema e da literatura –
deixam-se à vista na construção dos seus efeitos.
Seqüência I
Seqüência ISeqüência I
Seqüência I
Lá está o mundo da cidade grande: mistura de construções acinzentadas, fios,
ícones do capitalismo, carros e, na noite que cai, uma luz que demarca espaços
actanciais: o contexto sócio-cultural onde a trama se desenvolverá se apresenta. E uma
voz narradora sobrepõe-se com domínio àquela paisagem saturada de formas e cores.
Fala de caminhos humanos pensados, muito antes de se vir ao mundo, por
“alguém, talvez Deus”; uma certeza de destinos traçados e do fim trágico iminente para
alguns. “Mas o meu [destino] ele pensou”, diz a voz que agora se materializa no jovem
branco de olhos escuros ocupando todo o quadro.
O “eu” se mostra aqui em três níveis distintos: vemos uma história que vai se
desenrolar no “aqui e agora” conduzida pela perspectiva da personagem-narradora
(Máiquel). a voz
over
, que diz “eu” fora do quadro, revela estar o narrador em outro
tempo-espaço e não naquele onde se vêem as imagens: o que se vislumbra é uma
retomada do passado, a fim de dissecá-lo, por parte do protagonista afastado do
momento actancial.
Ao mesmo tempo em que se sabe da existência do “eu”, se sabe do “outro”:
um “narrador cinemático”, figura abstrata porém eficiente no desenvolvimento de uma
narração em
flashback
, traz ao presente uma ação transcorrida no passado, organizando-
a de modo amplo, revelando situações que seriam impossíveis para o protagonista, mas
que não escapam do olho “que tudo vê”.
Seu disfarce de primeira pessoa surge quando assume o olhar da personagem
(câmera subjetiva) em vários momentos, dando assim identidade interior à entidade
exterior. Na face múltipla do espelho, espiamos olhos que se olham
xiv
, sem pestanejar.
Também olhos de “narrador abstrato” ocultados em “narrador actancial”.
Volto ao cenário da cidade. O rapaz agora está inserido no ambiente,
corporificado, já não é um rosto na tela, mas um rosto na multidão.
Olha uma vitrine. Ele sabe o que quer: uma bela cabeleireira, sorridente e
desinibida, logo mostra a cartela de cores para os cabelos: “E aí, escolheu?”. Ela os pinta
e logo profere sua “verdade estética”: homens e mulheres partilham do sonho de mudar
o corpo, adquirir outra forma visual; ser artificialmente o que não se é naturalmente.
“Mas no meu caso foi uma aposta...”, diz um titubeante Máiquel, justificando a
transformação por ter perdido a aposta no futebol.
O tempo passou rápido, as elipses temporais se sucedem, e o cabelo do rapaz
ficou “meio assim
platinum-blondie
”, mas Máiquel gostou. E ali, diante do espelho,
sobrepondo-se à imagem, a voz narradora profere o discurso da mutação: “sempre me
achei um homem feio...”, anunciando um senso crítico que, momentaneamente, parece
advir das imagens de alguém que se olha no espelho, não se reconhecendo, mas
gostando do que vê. Sabe-se, contudo, que a origem daquela voz não está nas imagens e
que Rimbaud estava certo, “Eu é um outro”, assim como Flaubert: “Madame Bovary c’est
moi”, isto é, “o outro sou eu”
xiv
.
Tocado pela mudança, sentindo-se renovado com a melhora da perspectiva
patrocinada pela tinta de cabelo e a sedutora Cledir, sua nova conquista, Máiquel vai
exibir aos amigos sua nova versão; como transformou o resultado negativo de se perder
uma aposta em algo bom pra si: “Tava me sentindo bem...”, diz.
Chega no bar do Gonzaga com o novo visual, a nova “gata”. Os amigos dão
uma risadinha, surpresos. Mas uma ecoa alto demais. Suel ri com o rapaz que ficou
“parecendo um gringo”. Máiquel logo se mostra arredio; quer brigar; provar que “não é
viado, nem palhaço”. Na presença de todos, revela afetação e valentia como nunca antes
fizera. Chama Suel para um duelo como se resolviam questões de honra nos filmes
western
de Hollywood.
O dia seguinte, contudo, se revelará assustador: medo, arrependimento e dor
de dente se misturam na sua mente atormentada. Mas ele parte mesmo assim para a ação
impensada, como que determinada pelo divino.
“Pode atirar, loirinha”, desafia o outro, dando às costas. Matar um homem
pelas costas, que crime mais desonrado no código do matador!? Mas toda a comunidade
está agradecida com o serviço, inclusive a polícia, pois o outro era um “ladrão safado”.
Afagado com abraços, tapinhas, risos, regalias e presentes, Máiquel se sente
feliz como nunca fora, espantando toda a apreensão que sentira anteriormente quanto à
idéia de cometer um crime.
Cledir, apaixonada e alheia à sua nova trajetória, gravita em torno dele como
uma promessa de estabilidade na qual Máiquel tenta se fiar para não sucumbir de todo à
atração que sua posição renovada na comunidade propicia: para mantê-la, precisa
continuar o trabalho de “tirar o lixo da rua”.
Dessa primeira seqüência, destaco o papel fundamental da mudança da cor
dos cabelos de Máiquel enquanto “efeito de mascaramento” necessário para dar início à
trama; quando o “eu” prefere ser o “outro” para poder agir, substituindo características
de que não gosta em si por algo novo; projetando em uma nova personalidade aquilo que
não deseja para si e reforçando, assim, o embate entre o que é ser civilizado e o seu
oposto.
Penso no teatro grego clássico, onde a tragédia tem na máscara elemento
indispensável da ação, e mais ainda em heróis românticos
xiv
que circulam entre a
literatura e o cinema, como modelos mínimos de comparação.
PALMA (2004: 95), organizando um estudo sobre literatura e cinema,
garante lugar para os mascarados na produção cultural:
As várias retomadas do arquétipo do herói justiceiro mascarado
inscrevem-se na cultura ocidental como matriz de fertilidade
inesgotável. Extrapolando os limites do tempo, do espaço e das
configurações estéticas, ele resiste, adapta-se e ressurge nos vários
discursos da modernidade e pós-modernidade.
A partir de uma ética judaico-cristã que paira no ocidente, a força do herói
mantém-se em um tempo-espaço no qual a dualidade básica entre bem e mal parece
incontornável. Na análise de uma narrativa literária (
Eurico, o presbítero
, de Alexandre
Herculano) e sua correlação cinematográfica (
A máscara do Zorro
, de Martin Campbell),
são levantados pontos comuns sobre a figura mítica e salvadora que mantém sua
identidade em segredo, sendo importante aqui salientá-los para uma compreensão
inicial de alguns aspectos do “mascaramento” de Máiquel.
A identidade é estruturante para as ações do herói e a liberdade de escolha
faz parte de sua origem afinal, ele seria um herói moderno, “dono do seu nariz” e
não se encontraria sob o jugo do divino, mesmo que a “voz over” na abertura do filme
diga o contrário.
A opção pelo duplo demonstra a coexistência de contrários em um embate
contínuo do “bem contra o mal”. Vencedor, recebe os louros da admiração e confiança
do povo, enquanto os poderosos cultivam o ódio à sua figura heróica.
Máscara e elmo resguardam sua identidade real e vida, aumentando-lhe a
chance de vitória diante do inimigo. “O mascarado domina a relatividade das coisas,
conhece os dois lados de qualquer situação e pode escolher, e atacar, a qualquer
momento em função dessa escolha” (PALMA, 2004: 97).
Mas o verdadeiro herói mascarado romântico na morte a única chance
para espiar os pecados cometidos. A quebra do padrão do “eu” único, viabilizado pelo
duplo, é fardo pesado demais para ele; sua essência prima pela salvação do mal
circundante e o fim da transgressão dos limites impostos pelo humano apenas se
completaria com a sua morte.
Em Máiquel, a representação de alguns destes tópicos aparecem invertidos:
sua luta não se estabelece entre bem e mal demarcados com exatidão, pois o seu “fazer o
bem” à comunidade e à pequena burguesia local significa matar várias pessoas. Enquanto
age positivamente em prol dos outros, faz mal a si mesmo, acentuando conflitos
interiores.
Além dessa inversão, a cor do mascaramento não é o negro, como nas
narrativas tradicionais, e sim o loiro. Se na condição tradicional, a cor negra (
noir
) “é a
cor da tensão, do momento de luta”, sombria e prestes a ser ultrapassada, em Máiquel a
cor é iluminada, como se tocada por um Anjo da Anunciação com face exterminadora.
Se antes ele tinha cabelos negros e circulava despercebido em seu mundo, o
tingimento prepara-o para uma nova possibilidade de vida, abrindo assim caminhos para
sua ação efetiva no mundo. A luz que deveria negar o mal, a ambigüidade e conduzir à
purificação, leva-o às trevas e ao obscurantismo.
Aclamado onde vive como herói, verdadeira reversão das qualidades
intrínsecas ao heroísmo, seu ódio se concentra sobre gente de sua própria condição
social (seus alvos são moradores do subúrbio, pobres que roubam para sobreviver) e não
naqueles de classe superior: a comunidade pobre e Máiquel, como elo entre os campos,
se identificam com os padrões de uma burguesia amedrontada que controla o comércio
local e não com aqueles “iguais” na falta material.
Sua máscara loira, que lhe transmite força e segurança, se faz acompanhar do
seu elmo contemporâneo, uma espingarda ou pistola semi-automática, que é ao mesmo
tempo proteção e lança. “Familiaridade com as armas é outro dado importante na
configuração do mito do herói imbatível” (PALMA, 2004:101).
No filme, sua morte física redentora não acontece, como expiação para os
crimes cometidos, mesmo sendo ele responsável por tanta barbárie. Lidando com um
conflito interior crescente a sensibilidade não se rende fácil à brutalidade busca
livrar-se do mal, eliminando aqueles que o educaram para o ódio e, por fim, retomando
a cor dos cabelos que trazia consigo no início de tudo.
O negro do pêlo retorna ao seu lugar de origem e o associamos à “verdade”,
ao “conhecimento” e a “purificação”. O retorno ao seu primeiro “eu” é exterior: dentro
dele, lugar inalcançável, várias mortes se deram e são incontornáveis. Sua salvação ou
perdição é continuar vivo. O embate se daria entre se tornar um “homem normal”,
produto pico do meio suburbano onde vive, ou “o homem do ano”, personalidade
mascarada, cuja ascensão sobre o “eu” se através do sacrifício de vidas patrocinado
pelo “outro”. Civilização e barbárie se materializam em um sujeito no qual a antinomia
entre as partes caminha para a dialética da totalidade.
Na trama de
O homem do ano
, o entrecruzamento acima pode ser delimitado
pela forma ostensiva como a violência se institucionaliza. Máiquel transforma-se em
‘testa de ferro’ para empresários e um policial corrupto na Empresa Alpha de Segurança,
fachada para uma gangue de extermínio. As personagens burguesas divulgam sua
ideologia “biológica”, “higiênica”, “científica”, mais próximas do século XIX do que do
XXI, em prol da manutenção do estatuto de classe, claramente ideológico, que detêm.
Assim também se com a inversão de valores heróicos – Máiquel é escolhido “o
homem do ano” por desempenhar com eficiência sua função de matador.
Na estética “Conspiração”, esse choque também se faz presente na tentativa
de se realizar um filme brasileiro de “alto padrão” e “estilo” produção cara, atores
famosos, roteirista/autor de renome adaptando um sucesso literário recente sobre um
tema cuja matéria-prima é a morte desonrada, ato de pouca glória, criando assim um
ligeiro descompasso ético por proferir uma estilização da violência.
FIORILLO (1994: 11) rechaça a “violência estilosa”, pois ela
(...) acaba por glorificar o que de pior carregamos em nossa bagagem
genética: os comportamentos extremos (...) são tratados como lugares-
comuns, coisinhas à toa (...). Com isso, o abismo entre o humano e
inumano deixa de existir, dando lugar a uma equalização de tudo,
evidentemente por baixo.
Mas toda criação que nasce com “certificado de arte” carrega em si a
possibilidade de ser “outra”, a partir das interpretações várias que surgem a partir de sua
recepção no meio social. Sendo assim, se
O homem do ano
promove, em certo aspecto, a
banalização da crueldade, amparado em estéticas que traçaram as “rotas da violência” no
sistema cultural, também promove a inversão dessas mesmas formas, abrindo espaço
para a atualização de modelos originados na literatura e no cinema brasileiros.
Seqüência II
Seqüência IISeqüência II
Seqüência II
A dor de dente persiste em Máiquel. As várias gotas de Novalgina ao dia
não resolvem o problema: “Tô achando que você tem que procurar um dentista”,
aconselha a alienada Cledir
xiv
. Logo vemos a placa de Cirurgião Dentista e somos
introduzidos ao “mundo branco” do Doutor Carvalho, cujo discurso lombrosiano
xiv
e
racista revelam toda a sua perversidade: é o início da “educação para o ódio” do jovem
matador.
Dr. Carvalho: Eu sou a favor da pena de morte, porque essa história de
direitos humanos é uma piada, porque eles não são humanos, os
seqüestradores, os estupradores... Pra mim o sujeito nasce com esses
impulsos criminosos (FONSECA, R., 2001: 10).
Máiquel se deixa seduzir pela fala do “homem meio esquisito que diz umas
coisas engraçadas”, mesmo com vergonha de abrir a boca e mostrar os “dentes cariados,
todos fodidos”. Sem dinheiro para pagar o tratamento, aceita o pacto proposto: eliminar
o homem que pretensamente estuprou a filha do dentista em troca de ter um sorriso
alvo de volta. Assim, Máiquel vai eliminando as marcas do passado (cabelos escuros,
dentes cariados) por um presente novo e reluzente que nasce da sua entrada definitiva
no submundo criminoso, passando a ser aceito pelos seus iguais (comunidade) e,
aparentemente, pelos outros (burgueses). “Matar para poder viver” (FOUCAULT, 1998)
é o mote que lhe guia.
Ao chegar na porta de casa e encontrar Érica, a menor abandonada ex-
namorada de Suel, Máiquel oferece-lhe materialidade (casa, dinheiro) e imaterialidade
(amor), abrindo assim a porta para mais uma voz influente sobre sua existência.
Após cumprir a missão pedida pelo dentista, aprende a odiar e se entrega por
inteiro às intenções do destino, como um animal determinado por uma natureza vil
incontornável.
Essa seqüência introduz na trama o que Mikhail Bakhtin nomeia “polifonia”.
Máiquel é a voz audível de um sujeito marginalizado, cujo espaço de atuação discursiva
é restrito. Ao travar contato com o discurso opressor de Doutor Carvalho, uma voz que
clama em nome de outras, abre precedentes para uma visão que se sobrepõe às demais e
passa a conduzir ideologicamente a trama.
Por sua força persuasiva, derivada da linguagem elaborada, conjuntura social
e exercício do “biopoder”
xiv
, Doutor Carvalho atrai o jovem para junto de suas
distorcidas idéias higiênicas e heróicas’, alienando Máiquel de sua especificidade
humana, transformando-o em um veículo difusor da morte; máquina de execução de
condenados pelo sistema opressor.
Suspendendo seus valores individuais, Máiquel escolhe trabalhar em prol da
manutenção do “status quo” de um grupo que o alimenta com o capital a que, de
maneira ‘honesta’, não teria direito, encontrando ainda seu “lugar ao sol” e uma ‘função’
social. É o discurso do “outro” com o qual se identifica agora e se deixa levar como saída
única para sua falência humana.
Outras personagens, além do dentista, desvelarão perante o protagonista
formas peculiares (e turvas) de se encarar o mundo: o dono da loja de animais, Seu
Humberto, desfia sua visão cruel do casamento e das mulheres – “A mulher só é
boazinha até o dia do casamento. Depois, viram umas vacas gordas vingativas” –;
enquanto os empresários amigos do Doutor Carvalho, Sílvio e Zilmar, preferem a fala da
violência incessante no cotidiano e suas pequenas histórias tragicômicas. Érica, após
tornar-se uma fanática religiosa em busca de espiar seus pecados, tenta impor pela
palavra aprendida com o pastor Marlênio, a vitória de uma justiça divina que perdoa
àqueles submetidos a sua lei.
A opção de deixar as vozes dissonantes aos padrões éticos virem à tona em
O
homem do ano
cria um ambiente polifônico permissivo, aproximando o filme daquilo
que o cineasta Murilo Sales, a partir de sua experiência enquanto realizador, chama
“dramaturgia da suspensão”:
O centro dessa procura é pensar uma
narrativa de confrontos sem
sobredeterminação
, que chamei de dramaturgia de suspensão
dramaturgia de suspensãodramaturgia de suspensão
dramaturgia de suspensão’.
Suspensão dos valores baseados em conceitos morais tipo bem e mal.
Suspensão do juízo moral sobre as ações e os personagens. Suspensão
dos critérios narrativos baseados no protagonista e no antagonista
espelho sutil do herói e do vilão. E, sobretudo, suspensão da estética do
coitadinho’,
do
olha como somos pobrezinhos
(...) (SALLES, Murilo
apud
CAETANO, 2002: 17, grifo e negrito do autor).
Os valores morais e éticos das personagens no filme não são questionados
pelo narrador cinemático nem pelo protagonista-narrador misto de herói e bandido
envolto em trevas. A vivência da realidade violenta na palavra e na ação, sem reflexão
sobre como ela se dá, promove um distanciamento de posições estabelecidas como
“corretas” e “humanas”, em um momento no qual a barbárie se amalgama
continuamente na prática civilizada.
A palavra vale por si mesma em
O homem do ano,
passeia sem
constrangimentos, enquanto a imagem objetiva essa suspensão de padrões. E, outra vez,
retornamos à estilização, quando o artifício encerra a dubiedade. “A violência estilizada
tem outra característica marcante: costuma não fazer a menor distinção entre
representação e fato, imagem e realidade, aparência e experiência. Tudo dá na mesma,
tudo é
estilo
” (FIORILLO, 1994: 11, grifo do autor).
Antes de acabar...
Antes de acabar...Antes de acabar...
Antes de acabar...
Acredito que
O homem do ano
trata a violência (cruel, irônica, mimética ou
‘real’) de forma estilizada, pois ela assim também se mostra em
O matador
, texto-base
para a adaptação, e nas estéticas que o filme resemiotiza – além de ser a principal
matéria-prima da ficção em Rubem Fonseca, roteirista do filme.
Gerado em meio ao jorro incessante de violência produzida e difundida pelos
meios de comunicação de massa no Brasil, que fomenta o pânico e (retro)alimenta o
sistema capitalista em toda sua selvageria, o filme catalisa, de certo modo, a banalidade
da existência e, exatamente por isso, levanta reflexões sobre quem detém o discurso e o
fim dado à palavra em dias em que, se não reluzir feito ouro, nada parece valer tanto
assim.
O discurso da “violência gratuita” em contraponto à concepção corrente dos
valores da vida no “mundo real”, ao invés de ser apenas compreendido enquanto
fomentador de uma “crueldade irônica”
xiv
, pode conduzir-nos a um entendimento-
síntese que nasce da possibilidade do diálogo entre as vozes que emergem na multidão
sem rosto do cinema comercial.
Para além das questões ético-morais que envolvem o entendimento do filme
em relação ao mundo que o originou,
O homem do ano
deve ser visto como peça
estética que coloca a intertextualidade em um plano de destaque, deixando vir à tona
vozes que ecoam em sua elaboração e estabelecendo espaço para a reflexão: a arte deve
se guiar por limites morais ou éticos ou devemos deixá-la apenas
ser
recriação daquilo
que não desejamos para nós: a morte gratuita em um mundo onde o humano
desumaniza e materializa-se em papel-moeda?
Notas
NotasNotas
Notas
ENSAIO#3
ENSAIO#3ENSAIO#3
ENSAIO#3
Nos rastros de
Nos rastros de Nos rastros de
Nos rastros de
O homem do ano
O homem do anoO homem do ano
O homem do ano
Autoria e ambivalência em um roteiro adaptado
Século vinte e um
Tudo é um
Quem acha que faz teatro ou música ou pintura
ou cinema ou performance ou fotografia
está vivendo no século passado.
Não há fotografia que não seja música
Não há poesia que não seja cinema
Nem teatro que não seja escultura.
Arte única, mais que um movimento
É uma constatação da contemporaneidade.
Manifesto UM
(trecho), de Nadam Guerra
xiv
.
A autoria na literatura e no cinema
A autoria na literatura e no cinemaA autoria na literatura e no cinema
A autoria na literatura e no cinema
O mais discutido “quem-é-quem” na história das artes parece estar na
literatura do nosso tempo. Desde que o romance foi colocado em cheque no início do
século 20
xiv
, tudo mais pareceu ruir no até então inabalável cânone dos autores literários.
Quem poderia ter escrito “Quincas Borba”, por exemplo, além de Machado de Assis,
“homem das letras de seu tempo”? O que parecia evidente ao senso comum, a relação
entre o autor real e sua produção intelectual, passa a absorver novas concepções acerca
do papel de liderança exercido pelo narrador na organização ficcional e o
questionamento sobre a ‘condição ontológica’ da autoria, discutida por autores como
Michel Foucault e Roland Barthes a partir dos anos 60, conduzindo a mais
questionamentos do que fixidez de respostas.
O objetivo de Foucault seria descobrir “O que é um autor?”, restringindo-se
no seu ensaio à “singular relação que se mantêm entre um autor e um texto, a maneira
pela qual um texto aparentemente aponta para esta figura que está fora e o precede”
(FOUCAULT, 1992: 139, tradução minha).
Em um tempo em que a literatura é também auto-referencial, ela joga com
suas regras e vitima o sujeito na sua escrita: tudo que um escritor tenha produzido é obra
de um autor? A própria questão da obra (
work
) não está clara. A rigidez do conceito
estaria em oposição à maleabilidade do “texto”, sempre dinâmico (Barthes), preferida
para tratar da circulação de signos no âmbito cultural.
Se a figura autoral “está fora” do texto, pois o precede e vive “nos contornos
dos textos”, resta caminhar pelo espaço das especulações em busca de um norte para se
tentar compreender a condição do autor na literatura.
Uma primeira leitura: a demarcação não se dá pela materialidade de um
Machado de Assis, o homem, escritor, “pessoa humana”; mas sim pelos possíveis ‘marcos
bibliográficos’ que erigiu em seu percurso criativo. No caso, uma função discursiva o
distinguiria de outros. “(...) as funções de um autor é caracterizar a existência, circulação
e operação de certos discursos em uma sociedade” (FOUCAULT, 1992: 142, tradução
minha).
Várias foram as oscilações da “função autoral” (
author-function
) na história
da literatura desde a Idade Média, informa Michel Foucault. O autor do nosso tempo,
contudo, trabalharia em prol da existência do texto não apenas internamente, como o
narrador, mas organizando os vários discursos sociais que o caracterizam; buscando um
sentido de coerência com o projeto autoral.
Mas a que categorias de discurso o filósofo francês se refere? Partindo do
pressuposto de obras e textos com autores conhecidos, chama atenção aquele que diz das
marcas onipresentes do fazer humano se revelando na escrita, através dos signos
textuais, o que de alguma forma garantiria um ‘agir no mundo’ ao ente material.
Esses ‘marcos bibliográficos’ acabam por conduzir o autor para a iniciação de
“práticas discursivas”, especialmente a partir do século 19 com Karl Marx e Sigmund
Freud: “A contribuição distintiva desses autores é que produziram não só suas próprias
obras, mas a possibilidade e as regras de formação de outros textos” (FOUCAULT, 1992:
144-145, tradução minha)
xiv
.
Assim, a possibilidade de se estabelecer um número indeterminado de
discursos em sua
práxis
, mesmo para o ficcionista, faria parte do trabalho do autor que
conclama para um “retorno”, o “ato da iniciação” dessas mesmas práticas discursivas, ora
enquanto “reativação” ora enquanto “redescoberta”
xiv
, mesmo não garantindo o
preenchimento dos espaços vazios e omissões detectadas.
Continuo a pensar em Machado de Assis: sua produção textual envolvendo a
“violência científica” e a cidade do Rio de Janeiro no final do século 19
xiv
, por exemplo,
deixou marcas autorais inestimáveis para escritores brasileiros do século 20, como
Rubem Fonseca e outros da Geração pós-64, cujas contribuições para as narrativas de
escritores do final do século 20 também se fazem notar como as escritas por Patrícia
Melo, Fernando Bonassi e Marçal Aquino.
Ou seja, se o autor nominal’ precede o texto e a escritura, conta, contudo,
com o ‘enfeixe’ dos discursos sociais pelo ‘autor textual’, demarcando espaços
continuamente. Parece então que um estado momentâneo de equilíbrio se estabelece
entre partes.
Muito mais do que criaturas humanas,
o nome do autor não é a função de
status
civil de um homem, nem uma
ficcionalidade; está situado na brecha
(in the brench)
, entre as
descontinuidades, dando crescimento a novos grupos de discurso e seus
modos singulares de existência (FOUCAULT, 1992: 142, tradução
minha).
A originalidade, ou “singularidade” como Foucault indica, não é algo que
deponha contra o autor contemporâneo, pois as ações de retorno revelam que as formas
artísticas se desdobram continuamente ao longo do tempo. Sendo o texto uma colcha de
retalhos autoral, as identidades várias se dissolveriam na escritura: “A escritura é a
destruição de toda voz, de toda origem. (...) esse composto, esse oblíquo pelo qual foge o
nosso sujeito (...)” (BARTHES, 2004: 57).
A produção de textos literários estaria desligada de uma origem específica e
conduziria “à morte do autor”, título do ensaio de Roland Barthes, assim que a escritura
tem início.
Sempre a “imitar” um gesto (haveria então uma contínua
mimesis
textual?)
ou a reverberar uma sentença de outrem, o texto pode ser, no máximo, desfiado como
“um tecido de citações” (BARTHES, 2004: 62): como então detectar um autor apenas em
meio a tantos fios, emaranhados pelas suas distintas origens culturais?
As várias tentativas de libertação do texto da figura viva do autor material,
“sua pessoa, sua história, seus gostos, suas paixões” (BARTHES, 2004: 58), ainda está
longe de se tornar uma atitude popularizada para além da crítica especializada. Mesmo
que a linguagem estivesse apta a reconhecer uma pessoa, apenas o sujeito da enunciação
bastaria para “sustentar a linguagem, para exauri-la” (BARTHES, 2004: 60).
Enquanto figura primordial para a função que era de seu domínio, o
‘moribundo’ autor daria chance ao leitor de ser ‘o lugar’ de onde se contemplaria com
clareza o composto textual: esquecer o ponto de origem e apostar no ponto de chegada!
“O nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do autor” (BARTHES, 2004: 64).
Mesmo que muitos não se interessem por quem fala, a voz ainda ressoa sob as linhas
da literatura.
a partir do cinema, pode-se pensar a autoria um tanto menos
abstratamente, mas inicialmente ainda ligada a frágeis concepções.
São os críticos franceses dos anos 50 do século passado, que desenvolveram o
movimento de renovação cinematográfica conhecido como “Nouvelle Vague”, que dão
consistência às discussões em torno da autoria no cinema, através de uma “política de
autores”.
O ponto de partida está na literatura, lugar permanente da ‘cultura’, como
aponta BERNARDET (1994: 14): “Tratava-se de ver o cineasta como um escritor, o filme
como um livro, mais precisamente como um romance”.
A influência literária superaria em muito as outras artes na compreensão da
‘escritura fílmica’ e não apenas na visão dos críticos, mas também dos realizadores
Roberto Rosselini fala da “relação imediata” que se cria entre o cineasta e sua produção,
tal qual o pintor e seu quadro; o escritor e seu livro.
A compreensão da autoria nesse momento passa pelo argumento ou roteiro,
ou seja, compreende-se que o roteirista é o autor, pois suas palavras moldariam os rumos
para a criação imagética: o diretor daria então ‘visibilidade’ às idéias propostas pelo
roteiro. O peso da cultura letrada (civilizada porque milenar) seria definitivo sobre a
cultura cinematográfica (bárbara porque ainda jovem), ainda em plena descoberta de
suas possibilidades estéticas e ideológicas, especialmente naquele contexto histórico.
O ideal de fortificação de uma linguagem através de outra não agradava aos
franceses de todo: para alguns, a influência literária devia ser dissolvida ao máximo,
evitando assim que o filme ‘desandasse’ em sua autenticidade.
Pois esses críticos querem um cinema que seja cinema-cinema, e não
um cinema reflexo da literatura. O cinema não está aí para contar
histórias que a literatura pode contar tão bem quanto ele
(BERNARDET, 1994: 17).
A expressão do “ritmo, da cadência” (Fellini) própria ao cinema faz-se
primordial. Da literatura, o que importaria é o “espírito”, que Jean-Claude Bernardet
também entende enquanto “valores morais”.
O ponto primordial da “política de autores” está no autor que se permite
dizer na primeira pessoa do singular “autor é aquele que diz ‘eu’” (PHILIPPE, C-J.
apud
BERNARDET, 1994: 21) deixando sua marca intransferível e tendendo ainda ao
personalismo
xiv
.
Nesse ponto, a compreensão do autor no cinema roça a posição superada
na literatura do criador humano’ este que é mais uma ‘pluralidade de texto’ do que
entidade una e homogênea para, logo a seguir, buscar definições mais próximas da
convergência entre a idéia que pré-existe à forma e o sujeito que tenta materializá-la na
criação.
Três noções se deixam ver: a primeira aponta o autor como aquele que
escreve o roteiro e também a forma final na realização. O caminho desse autor, por
mais que passe pelo texto verbal, seria a direção, pois só a palavra não satisfaz o desejo de
imagem.
A segunda é uma ampliação da anterior: o autor também é produtor,
tornando-se assim um autêntico “3 em 1”. A última trata do autor enquanto “marca
autoral” do realizador que deixa transparecer sua “expressão pessoal”, mesmo não
tomando parte nas duas outras funções (roteirista e produtor).
Essa ‘expressão’ de que falam os franceses derivaria de uma “metafísica
latente”, uma “matriz” inerente à obra (conjunto de filmes de um realizador), já presente
desde a primeira peça do conjunto, e que deve ser procurada e mantida pelo autor ao
longo do seu percurso criativo: ela existe virtualmente, ‘antes da forma’, e ele tem por
tarefa alcançá-la, realizando filmes nos quais essa matriz possa se projetar.
A matriz seria o centro de onde irradia a criatividade, permanecendo
una
e à
espera do momento de ser identificada pelo autor ou pelo crítico que se propõe à análise
temática na tentativa de uma aproximação. O roteiro, desde logo, é relegado a um plano
inferior quando comparado à força que deriva da “mise-en-scène” – qualidade própria ao
realizador.
Ao liberar os filmes do conjunto daquilo que lhes é supérfluo “analisar o
enredo para se passar através dele” (BERNARDET, 1994: 30); “o que puder prejudicar a
unidade tem que ser aparado” (BERNARDET, 1994: 43) ou “a técnica importa
enquanto não-ela” (BERNARDET, 1994: 56) restaria um “arquefilme”, peça que não
existe enquanto materialidade, mas se faz latente em todos. Nesse modelo arquetípico, o
“mito fundamental” ou a “metáfora obcecante” do realizador se revelaria (BERNARDET,
1994: 32).
Essa compreensão acaba, contudo, por entrincheirar o realizador na
homogeneidade de uma matriz (unidade), que pré-existe e deve ser tentada todo o
tempo, levando-o possivelmente a uma ‘armadura temática’ ou o pior: a constatação do
lugar-comum da “imagem da marca”
xiv
.
A vagueza das definições (a ironia com “vague” é pertinente) da “política de
autores” francesa, alguns até chamaram-nas “esotéricas”, demonstra que assim como na
literatura, as flutuações são imanentes aos conceitos de autoria no cinema. Contudo, a
separação em relação à literatura estaria na aceitação da “mise-en-scène” como
característica apropriada ao autor fílmico, deixando de lado modelos oriundos do
romance, por exemplo.
O que gostaria de salientar até aqui, para além das diferenças pertinentes ao
literário e fílmico no quesito das discussões em torno do autor textual, é a proximidade
entre um entendimento da autoria enquanto ‘idéia’ que está virtualmente latente na
produção artística e se desenvolve em ‘moto contínuo’, objetivando-se na produção
continuada do artista.
A metáfora do “mito fundamental” no cinema vai ao encontro daquele
‘marco bibliográfico’ na literatura: por detrás do incessante vai e vem de discursos
sociais em busca de organização em um universo autoral, estaria um ‘feixe ótico’ (visões
várias agrupadas em uma via) de intenções e percursos semelhantes.
O escritor de livros ou o realizador de filmes têm sua estada material, como é
pertinente ao humano, limitada pelo tempo. Mas a matriz (ou o “magma” para Fellini)
permanece entrançada pela virtualidade, para além do que se conheça: o laço para a
“reativação” está dado; o “ato de retorno” aguarda.
O propósito aqui é criar uma primeira aproximação com o aspecto da autoria
envolvendo
O homem do ano
, filme derivado de uma essência literária uma vez que
adapta o romance
O matador
mas que conta com a presença distinta de entes autorais
em sua composição: Patrícia Melo, autora do romance; Rubem Fonseca, roteirista; e José
Henrique Fonseca, diretor.
Proponho que tendo o romance de Patrícia Melo
xiv
praticado um “ato de
retorno”, uma “referenciação poética” (SILVA, 2002) ao marco autoral protagonizado
pelo conto
O cobrador
, de Rubem Fonseca, a adaptação do livro para o cinema como
O
homem do ano
, mesmo estando orquestrada pelo autor estreante José Henrique
Fonseca
xiv
, traria em si uma ‘matriz fonsequiana’, isto é, elementos ‘obsessivos’ que
perpassam o espaço ficcional desenvolvido por Rubem Fonseca que, continuamente,
saltam aos olhos na organização fílmica, corroborando ainda o fato de ele ser roteirista
do filme
xiv
.
Mesmo que o roteiro não tenha reconhecido estatuto autoral, encarado mais
enquanto item técnico da ‘linha de montagem’ audiovisual do que propriamente criação
artística, ele é o intermediário indispensável na passagem da ‘literariedade do livro’ para
a iconicidade da imagem’; lugar onde se o ‘ponto de viragem sígnico’: o roteiro
condição ao signo de se integrar a um novo
medium
.
Estando o ‘marco autoral’ de Rubem Fonseca presente entre os pontos de
partida e de chegada, entre textos, proponho ainda que esse autor responderia pela
ressignificação de sua própria criação: da letra do conto ao
frame
do filme, um autor
entre três se faz entrever.
Tal proposição não pretende extrair méritos à importância dos outros autores
envolvidos no processo: Patrícia Melo continua respondendo pela autoria material de
O
matador
, assim como José Henrique Fonseca pela de
O homem do ano
. Contudo, o
caminho percorrido por ambos, ressente-se ainda de consistência material
(especialmente o realizador); assim como do despontar daquela “matriz” inestimável
para os críticos franceses que, estando certos, apenas o Tempo, esse incansável, e a
Constância, essa infatigável, desvelariam as máscaras em busca ‘daquele só’.
Discutir a autoria é uma antecipação para o sentido desse texto: como a
“matriz” Civilização e Barbárie, marca do universo autoral desenvolvido por Rubem
Fonseca, alcança textos que lhe sucedem, em especial
O matador
, o roteiro e o filme
O
homem do ano
.
O roteiro na literatura adaptada: um estado ‘entre’
O roteiro na literatura adaptada: um estado ‘entre’O roteiro na literatura adaptada: um estado ‘entre’
O roteiro na literatura adaptada: um estado ‘entre’
Pensado para ser uma estrutura mista de técnica e criação, o roteiro de
cinema que parte da adaptação de um texto literário torna-se lugar e momento de
compressão, supressão e recriação de situações suscitadas no texto no qual se apóia.
A literatura existente sobre o roteiro, além de trabalhos acadêmicos de difícil
acesso, resume-se no geral aos manuais “do it yourself” norte-americanos, pois foi nos
Estados Unidos que a visão do filme enquanto produto cresceu e se estabeleceu, servindo
de paradigma para as cinematografias menores, e o roteiro ficou sendo visto apenas
como peça da engrenagem industrial.
FIELD (1995: 2), autor de manual de roteiros de grande tiragem, define o
roteiro modelo ‘clássico’ com começo, meio e fim como “uma história contada em
imagens, diálogos e descrições”, tendo como referência uma estrutura dramática na qual
a relação entre as partes e o todo lhe dá o sustentáculo necessário.
Tomando como referência para a construção do roteiro as três unidades de
ação dramática a partir de Aristóteles (tempo, espaço e ação), Syd Field discorre
‘tecnicamente’ sobre a duração dos três atos (apresentação, confrontação e resolução),
para que cada um deles crie efeito sobre o público e o filme acabe no tempo calculado da
Indústria Cultural.
Tratando especificamente sobre a adaptação, diz que “adaptar uma novela,
livro, peça de teatro ou artigo de jornal ou revista para roteiro é a mesma coisa que
escrever um roteiro original” (FIELD, 1995: 174.). Defendendo a “originalidade” do
roteiro mesmo que parta de texto anterior, fala de “transposição”, “adequação” e
“mudança por ajuste” como tópicos habilmente manuseados para que o roteiro surja
como novo e não apenas como um livro muito lido. “Uma adaptação deve ser vista
como um roteiro original. Ela apenas começa no romance, livro, peça, artigo ou canção.
Essas são as
fontes
, o ponto de partida” (FIELD, 1995: 175. Grifo do autor).
O novo texto surgiria então do que teve começo em um texto anterior mas lá
não se firmou, e o roteirista não deve se ver obrigado a “manter-se fiel ao material
original” (FIELD, 1995: 175). Ele defende a não fidelidade aos textos primeiros,
esclarecendo que o que importa no roteiro são detalhes, “eventos exteriores”, “o que o
personagem
(FIELD, 1995: 185, grifo do autor), e não as sutilezas da interioridade,
próprias do romance.
Ao se posicionar contra a “decalcomania”
xiv
, Syd Field ressalta as diferenças
entre linguagens, anulando a possibilidade de reprodução ‘tal e qual’ dos textos: valoriza,
sim, a individualidade de cada uma delas e seus meios específicos.
Mas a crença na originalidade’ de um roteiro adaptado não alcança todos os
que escrevem roteiros. Di Moretti, roteirista brasileiro com experiência em adaptação do
teatro para o cinema, diz ser o roteiro adaptado uma estrutura mais difícil, pois, se for a
proposta do filme, o roteirista “não pode trair a idéia original nem se perder nesta
adaptação, querendo ser mais real do que o próprio autor” (FUJITA, 2003: 56).
Cientes de que os filmes que partem de um texto anterior (pintura, música,
escultura que seja) tendem a ser comparadas entre si pelo espectador mais atento, muitos
roteiristas preferem manter-se ‘na linha’ diante do ponto de origem.
Bráulio Montovani, autor da adaptação do livro
Cidade de Deus
para o
cinema, utiliza-se do termo “tradução” e “transcriação”, a partir do trabalho poético de
Augusto e Haroldo de Campos, para falar do processo de (re)construção própria do
roteiro adaptado. “Não estou dizendo que me apropriei dos métodos deles. É mais uma
questão de atitude: sempre que necessário, traí o romance para ser mais fiel ao romance”
(FUJITA, 2003: 56). A ‘traição’ soa sempre ao lado de ‘fidelidade’ na relação da literatura
adaptada ao cinema.
Fernando Bonassi, escritor que transita entre as formas criativas da literatura
e do roteiro, ratifica em entrevista a idéia do choque criador: “o melhor texto é sempre
resultado de no mínimo duas idéias que se chocam, não uma só” (LEAL, 2003: 16).
O roteirista também fala da relação entre a qualidade do roteiro e o resultado
final, o filme. O que pode acontecer é o texto não partir da concepção do diretor para a
narrativa ou não tomar conhecimento de como essa dramaturgia se estrutura “no seu
mundo” autoral, neste caso, o roteiro pode vir a ser pior do que o filme.
Contudo, o realizador deve ser capaz de intervir de forma criativa, como
Beto Brant diante do roteiro de
Os matadores
(1996), do qual Bonassi participou no
primeiro tratamento. “Ele [Beto Brant] intensificou uma coisa que tinha no roteiro que
era uma angústia do matador. Trouxe uma humanidade para ele que o roteiro não tinha”
(LEAL, 2003: 15).
O trabalho de intervenção do realizador no roteiro torna-se então
desdobramento necessário da adaptação roteirizada, sendo no ponto final o lugar onde,
na maioria das vezes, o filme se resolve. Mais uma vez, Montovanni esclarece: “o corte
final é, também, o roteiro final. Não dá para separar completamente o roteiro da
decupagem e da montagem” (FUJITA, 2003: 54).
BRITO (2006: 12-13), confirmando a roteirização como a “primeira forma
não-literária que um romance (...) adquire, antes de virar imagem cinematográfica”,
salienta o corte sobre o texto de origem como etapa indispensável na construção do
roteiro, embora seja a montagem o lugar onde o diretor realiza tantos cortes quanto
“julgue necessários para a viabilidade do filme”.
A relação entre a forma do roteiro e o seu resultado final em
O homem do
ano
demonstra sutilezas que compõem as formas de aproximação e afastamento do texto
de
O matador
.
Olho a seguir para o percurso do livro à tela, que encontra no roteiro seu
intermezzo
, ora reduzindo e deslocando, ora ampliando e transformando-o
xiv
.
Entre
Entre Entre
Entre
O matador
O matadorO matador
O matador
e
e e
e
O homem do ano
O homem do anoO homem do ano
O homem do ano
: esmiu
: esmiu: esmiu
: esmiuçando
çando çando
çando o romance, o roteiro e o filme
o romance, o roteiro e o filmeo romance, o roteiro e o filme
o romance, o roteiro e o filme
No roteiro de filmagem, a história de
O homem do ano
começa de forma
diferente da que se apresenta no filme: Máiquel agoniza, mortalmente ferido, enquanto
ouvimos em voz
over
seu monólogo sobre a força de um deus superior e seus desígnios
indiscutíveis. a versão final opta por apresentar esse monólogo em
foreshadowing
(antecipação da ação), ligando o início do filme a uma cena final: os cabelos pintados de
preto após a queda do herói bandido.
Do roteiro aqui analisado, foram suprimidas várias cenas iniciais e algumas
foram refeitas. Por exemplo, é apenas na cena sete do roteiro que se o protagonista a
caminho do salão de beleza e o início do seu processo de mutação, que no filme se dá
logo após a seqüência de abertura e dos créditos do filme.
Dessa forma é como também acontece no romance, logo nas primeiras linhas
do capítulo 1. A diferença principal é que no livro os cabelos dele ficam loiros “que nem
esses cantores de rock da Inglaterra” (MELO, 1995: 10) por conta da perda do tempo da
tintura ocasionada por uma cena de sexo selvagem protagonizada por Máiquel e a
cabeleireira em pleno salão – e não por conta de um projeto de transformação da
personalidade do jovem, como o filme propõe.
Ou seja, enquanto no filme a cabeleireira tenta convencê-lo de que o visual
“platinum blondie” ficou ótimo, mesmo ciente da perda do ponto da tintura, no
romance sua reação é negativa e ela prefere vê-lo voltar ao que era antes – “você não vai
sair daqui desse jeito” enquanto ele se sente inspirado pela nova ‘moldura de luz’
que o marca agora, aproximando-o assim de Deus.
A cabeleireira Arlete, no livro, acaba por ser ‘aglutinada’ à personagem
seguinte que aparece no romance: Cledir, vendedora na loja de departamentos Mappin.
No livro, após o clima de sedução que se dá entre cuecas, gravatas e calças jeans na loja,
ele consegue levar a moça consigo até o bar do Gonzaga onde, assim como no filme,
acontece o ato deflagrador da escalada de violência que envolverá Máiquel ao longo de
toda a narrativa.
Suel, o estopim do comportamento violento do jovem, é chamado “negro de
foder” (MELO, 1995: 14) pelo narrador-protagonista no romance, e desde logo se fica
sabendo que sua profissão é o roubo de toca-fitas. O sarcasmo de sua atitude no bar, ao
menos no filme, parece dar as razões para o comportamento violento que Máiquel adota.
O filme, contudo, revela a ‘profissão’ de Suel mais adiante, que serve de justificativa
para sua morte perante os moradores da comunidade.
Essa readaptação das cenas iniciais do filme em relação ao roteiro demonstra
que, mesmo após vários tratamentos, um roteiro pode sofrer contínuas compressões e
supressões, ocasionadas pelas escolhas do autor final, o realizador, e, tantas outras vezes,
por questões externas à criação artística, salientado-se a pressão para que o produto se
adeqüe ao mercado consumidor.
O modo como Máiquel consegue a arma para realizar o primeiro crime, o
assassinato de Suel, é descrita com detalhes no romance, enquanto o filme opta pela
omissão da informação de forma absoluta: será que acreditam tanto assim na capacidade
de interpretação do espectador ou esperam mesmo que esse seja surpreendido quando o
objeto se revelar em toda sua magnitude suburbana?
A presença de testemunhas na cena do crime mantém-se no roteiro e filme,
mas apenas o espectador mais atento é capaz de percebê-las pela posição periférica em
que se encontram em relação ao centro da imagem, onde se o assassino estreante
bater em retirada.
Se fosse um filme policial de estrutura tradicional, a presença de testemunhas
em uma cena de grande carga dramática jamais seria tratada de modo secundário, pois o
filme policial prima pela informação que se mantém irrevelável até o clímax da trama.
As readaptações de diálogos e mesmo monólogos inteiros do roteiro se dão
continuamente ao longo do filme, demonstrando que a função do roteiro está no
deslinde, primeiro, do texto literário; uma distensão dos fios do tecido textual que
conduzirá a narrativa no seu percurso do verbal ao icônico.
Após o crime, o medo transtorna Máiquel. No romance, sua voz interior
revela uma fragilidade extrema, enquanto externamente mostra-se diferente: “Matar
para poder viver” é o lema quem vem ‘de fora’ e se contrapõe à informação originada em
sua interioridade.
A sua tentativa de fuga após o assassinato de Suel aparece de forma
diferenciada nos dois textos: no livro, o carro para a fuga não pega; ele tem seu primeiro
contato com a cocaína e parando no bar do Gonzaga para um café, será declarado ‘herói’
pela primeira vez.
No filme, a idéia da fuga é logo abortada por seus amigos na Oficina
Desautorizada do Marcão, mas vê-se na mesma seqüência Máiquel circulando pelo
bairro em um automóvel e também chegando ao bar. Lá, a chegada dos PMs e a
confissão do crime do rapaz por Gonzaga também são diferenciadas: o discurso dos
‘homens da lei’ ganha um reforço ‘bárbaro’ no filme. Enquanto no livro demonstram
apenas admiração por “homens corajosos” (MELO, 1995: 20), no filme argumentam que
“é importante tirar o lixo da rua”, criando assim uma associação do ser humano com os
rejeitos da sociedade.
A frase no filme, tão mais pujante e vil que a do livro, afasta a imagem
heróica, da admiração e coragem sugeridas no romance – mesmo que seu ato, em
nenhuma versão, possa ser considerado digno de felicitações.
A ironia
xiv
torna-se um elemento narrativo bastante utilizado na versão
audiovisual do romance, marcando as imagens ora com sutileza (o hábito de beber
uísque por parte dos burgueses, por exemplo) ora com clareza absoluta (a entrega do
troféu “Homem do ano” para o matador).
A ironia também se faz presente no romance, mas acaba por se dissolver,
envolta que está nas estruturas variantes do discurso (direto, indireto livre). Mesmo
corrosiva, aparenta um tanto menos cáustica quando comparada com a construção
imagética proposta pelo filme.
As condensações são indispensáveis ao trabalho do roteirista, que parte de
um texto prévio para a sua escritura, interessado que está nos pontos em que a ação é
desencadeada e logo visualizada; buscando as partes de maior carga dramática na
expectativa de manter a atenção do espectador. Dissolve informação, signos,
continuamente na paisagem (planos), chegando mesmo a saturá-la, impregná-la de
palavras tornadas imagens.
Tal dissolução também contribui para atenuar a violência que se expressa
continuamente no romance: o estupro de Cledir, por exemplo, não se no filme que,
ao contrário, propõe uma imagem romantizada da personagem e da relação do casal em
um primeiro momento. Manter a cena do estupro causaria ainda mais horror quando
Doutor Carvalho encomenda ao jovem matador a morte de Ezequiel, esse sim acusado
de estuprar a ‘inocente’ filha do dentista.
No romance, Máiquel associa sem pudor seu ato ao do “desgraçado” Ezequiel.
Por que essa relação, que parece tão importante na demarcação da amoralidade da
personagem-protagonista, fora suprimida do texto fílmico? Seria considerada muito
forte, por demais bárbara, para um produto com pretensões mercadológicas, a ser
consumido pela ‘família mediana’ dentro dos padrões de violência já aceitos como
normais? O que o filme propõe é uma romântica cena de amor suburbana, a dança do
casal Máiquel e Cledir ao som de uma música, fortificando o ideal do laço matrimonial.
A forma como o leitão Bil (Gorba no livro) é tratado também é revelador da
suavização de um estado bárbaro proposto à personagem no filme. Enquanto nesse se
mostram cenas de afeto entre o animal e seu dono, naquele a violência da relação é mais
evidente, especialmente no momento em que Máiquel chega a pegar uma faca para
matar o animal.
O roteiro propõe ainda a valorização da paisagem urbana e humana da
megalópole subdesenvolvida (São Paulo no romance, Rio de Janeiro no filme), como na
cena 40 na qual descrevem-se diferenças marcantes da cidade: palacetes e casebres;
viadutos e ruas de terra; gente trabalhadora e figuras pitorescas.
Essa relação com a paisagem propõe uma nuança documental capaz de
ampliar a compreensão do contexto sócio-cultural ao qual o jovem pertence. No filme,
contudo, essa possibilidade de leitura acaba por não se referendar, talvez pelo caráter um
tanto genérico de sua construção, quando as imagens pedem clareza e direcionamento
no mostrar e as palavras estão mais livres para descrever. Contudo, vemos no filme
Máiquel caminhar pela rua, ladeado por propagandas que acabam por contextualizar seu
espaço de atuação.
As cenas seguem-se no roteiro a partir da amarração temporal proposta pelo
narrador no livro. A seqüência anterior à compra da arma por Máiquel, por exemplo,
inicialmente mantida no roteiro, é suprimida na versão final.
O ato da compra es marcado por distinções nos textos. No romance,
Máiquel e Érica chegam juntos pra comprar a arma e saem com um revólver Taurus 38.
Uma cena retrabalhada que, no filme, seguindo o roteiro, leva o rapaz sozinho ao
depósito de Caju e, ao invés de um 38 “Trinta e oito é arma de viado”, diz Caju sai
com uma arma 45 automática
xiv
. É o vendedor também que traça o paralelo entre a força
da arma com o poder da coroa de um rei – no livro essa fala pertence à Érica.
Armado, parte para o assassinato de Ezequiel. A cena do encontro entre os
dois, da forma proposta no romance e no roteiro, acaba por não se realizar no filme.
Tantos saltos, por mais que pareçam abdicar de situações importantes para a narrativa,
acabam por promover uma fragmentação narrativa: uma ‘estética
jump-cut
xiv
que, na
sua ação abruptada, acaba por suavizar a violência explícita do texto literário.
A segunda morte no romance é narrada, em toda sua brutalidade, por um eu-
narrador assaz frio, que revela a ação inclemente de Máiquel diante de um sujeito
indefeso e assustado. Ao contrário, o filme põe uma arma nas os de Ezequiel,
fazendo-o atirar primeiro quando o matador iniciante desistira de perpetrar o crime,
mudando assim a perspectiva e aumentando a ironia: agora, Máiquel mata em ‘legítima
defesa’.
A transformação da cena em que Cledir revela sua gravidez inesperada é
notável: no livro, surge uma mulher agressiva, insatisfeita com a idéia da concepção;
enquanto o filme propõe uma mulher sonhadora, cheia de planos românticos para seu
futuro com Máiquel, enlaçando-o na teia de um breve casamento.
No roteiro, a cerimônia da união entre os dois, por exemplo, é ampla,
envolvendo situações variadas, assim como no romance. A opção da montagem foi
enxugar de forma tal a seqüência que pouco resta a não ser o convite feito por
Humberto, dono da loja de animais, para Máiquel substituir Ezequiel no emprego, mais
uma ironia; além do ‘jogo do poema’ entre os convidados da festa, já não muito sóbrios.
No livro, o trecho poético citado é “gênios caprípedes e brancos estupram
virgens hamadríades”, extraído do poema
Pierrette
de Manuel Bandeira (
Carnaval
,
1919): o que seria uma lembrança da vida escolar do matador, deixa também entrever
um ístimo de erudição.
Esse fragmento fixado faz com que ele crie associações entre seu ato violento
contra Cledir e o ato de Ezequiel contra a filha do dentista. No filme, o poema’ de
Máiquel é um lugar-comum, liberto de qualquer carga culta: “quando eu penso na
Cledir, penso num mundo de quatro letras: amor”.
Personagens violentas e cultas circulam com facilidade pelo universo
ficcional de Rubem Fonseca.
O cobrador
, por exemplo, é um poeta cuja ação é
implacável para com a sociedade burguesa a qual deve cobrar, fustigando seus membros
incansavelmente.
A opção feita pelo filme, de libertar Máiquel de toda referência culta, torna
seu perfil menos complexo, acentuando o aspecto esvaziado e inóspito do mundo no
qual sua personalidade se (re)constrói continuamente.
O consumo de drogas, álcool e sexo, corriqueiro para as personagens no
romance, é ‘aliviado’ na versão da história para o cinema. Sendo assim, posso dizer que o
filme tenta preservar um perfil ‘heróico’ para Máiquel, personagem marcado por
grandes distorções, enquanto não há tal preocupação no perfil traçado para ele no
romance.
O aniversário de Máiquel também traz diferenças para a adaptação. No
romance, após um dia de trabalho, ele chega em casa e encontra um novo par de sapatos,
amigos do trabalho de sua esposa e o jantar posto: Gorba servido à gosto! Contudo, sua
revolta em relação à morte do animal, no romance, dá-se apenas interiormente,
enquanto assiste aos convidados se deliciarem com o prato.
o filme, lugar de contínua ação exterior, revela o rapaz transtornado e, em
paralelo, mostra ao espectador a morte de Robinson, primo de Máiquel, reforçando
assim a carga dramática da seqüência.
Enoque sobrevive para contar a história às personagens e pôr fim, em
definitivo, a festa desdita em uma pungente cena final: o rapaz solitário, à mesa de jantar
posta, um porco assado intacto diante de si e, logo atrás, a imagem pintada de Jesus
Cristo em uma reprodução barata.
No livro, a morte do primo é mais brutal: Robinson é arrancado da cama e
assassinado na frente da mãe. Ou seja, as adequações, os ‘nós bárbaros’ do romance,
continuam a pontuar a narrativa fílmica, rearranjados na estrutura dramática, todavia.
A transformação de Máiquel em matador, tendo assumido para o ‘eu’ e
para o ‘outro’ tal transformação “Eu sou a grade, o cachorro, o muro (...)” (MELO,
1995: 92) acontece pelo ‘beco sem saída’ no qual se encontra após a morte do seu
primo Robinson.
No romance, a sua preparação para assumir o papel de matador profissional
se amplia com as lições de tiro que, ao lado de Érica, passa a praticar; e com o figurino
preto que completa o visual de agora por diante. Essas passagens são suprimidas no
roteiro.
No filme, entretanto, ainda se o rapaz utilizando o
look
negro em uma
determinada cena, mas também não esclarece a importância da indumentária na
transformação a qual se submetera.
Rubem Fonseca, roteirista, tenta manter-se ‘fiel’ aos acontecimentos como se
dão no romance, mesmo deslocando ações e suprimindo outras. A opção de José
Henrique Fonseca, diretor, é ainda mais enxuta, construindo o filme em elipses, breves
saltos temporais e actanciais em relação ao roteiro de filmagem e ao romance.
Toda a seqüência em que Máiquel visita a casa de Doutor Carvalho, levando
consigo um papelote de cocaína para a filha do dentista, Gabriela, assim como seu roubo
de um talão de cheques do dentista, foi deixada de lado no roteiro. Assim também
acontece com as cenas de certa afetividade entre Máiquel e Humberto especialmente
quando este o chama de “meu filho” e a tentativa do rapaz em salvá-lo da esposa
violenta (MELO, 1995: 104).
No livro, tais cenas servem para realçar aspectos contraditórios da
personalidade do matador e das outras personagens envolvidas a loucura nos olhos da
jovem, a fragilidade do “velho safado”. A opção do roteiro e do filme é dissolver tais
aspectos na “mise-en-scène”, especialmente o epíteto “meu filho”, proferido com alguma
desenvoltura por Doutor Carvalho, e que acaba tornando-se mais um chiste do que
sendo revelador da força que o vocativo exerce na interioridade do rapaz e que, no
romance, pertence à outra personagem.
Outro aspecto de alteração visível da estrutura tramada do roteiro em relação
ao livro está na morte de Cledir. Nesse, é a recusa de Érica em permanecer ao lado do
matador que o leva, deprimido, a cheirar cocaína (existe a tendência constante em
associar o uso da droga à prática do crime) e deixar-se molestar por uma esposa
insatisfeita. Não suportando a pressão, aperta-lhe o pescoço até o osso se partir (MELO,
1995: 117).
No roteiro, opção mantida no filme, Érica, amante de Máiquel, pede para que
a esposa desapareça da vida deles como ‘prova de amor’. Sua visita ao casal é o estopim
para o crime. Agora ela está abandonando Máiquel em nome do deus que isalvá-la do
“fogo do inferno”, depois de ter conhecido o pastor Marlênio e se ‘associado’ a sua igreja.
Enquanto isso, a esposa, com a filha Samantha recém-nascida, exaspera-se
com a idéia do envolvimento do marido com a “pirralha”. A agressividade dela leva-o a
se trancar no quarto e ser perturbado por uma sobreposição de vozes. Em um estado
de loucura instantânea, Máiquel empurra Cledir contra a parede, matando-a com uma
forte pancada na cabeça.
A tentativa de se livrar do cadáver, seqüência das mais tensas do livro, foi
transposta com fidelidade para o roteiro, mesmo que a opção final do realizador tenha
sido por apenas algumas das cenas propostas, fazendo de
O homem do ano
um filme que
chega a reconstruir a estrutura dramática dos textos anteriores, livro e roteiro, mas
picotando visualmente ainda mais a ação.
A ironia é continuamente exercitada no filme, ficando aparente na saída do
cadáver da casa do casal no porta-malas de um carro, após uma última noite de Cledir ao
lado do marido e da amante dele.
Aparece então o delegado Santana, a cena é mostrada em câmera subjetiva
pelos olhos de Érica, para dizer: “se tem uma coisa boa no Del Rey é a mala. Já tive um”.
O homem da lei permanece indiferente ao que Máiquel carrega no carro e se concentra
em convencê-lo a participar de uma empresa de segurança fachada para o extermínio
daqueles que ‘atrapalham’ a vida dos pequeno-burgueses.
Logo o rapaz desenvolve seu papel na empresa, vendendo-a através da
imagem ‘positiva’ que tem junto à comunidade. Se no livro, seu contato com o dono de
uma empresa de ônibus é narrado de forma resumida, no filme abre-se espaço para uma
seqüência na qual são revelados os métodos de atuação de Máiquel e sua equipe (coação,
roubo e morte) e também a ascensão financeira que o trabalho proporciona ao grupo,
mostrada aos moldes de um sumário narrativo.
A visita de Gabriela ao escritório de Máiquel, procurando mais drogas, e uma
cena de sedução no quarto dela são exemplos de supressões visíveis em relação a uma
personagem secundária do romance. A presença da moça foi dissolvida ao máximo na
versão final. Ela aparece, basicamente, para mostrar que a pobre filhinha” do dentista é
na verdade uma ‘vamp’ artificiosa e pronta ao bote a qualquer momento.
Já a presença cada vez mais incômoda do Pastor Marlênio na vida de Máiquel
é crescente no texto visual. Érica volta a viver com Máiquel após a morte de Cledir, mas
não abandona a igreja – continua fiel à ‘teologia’ do pregador neo-evangélico.
A personagem Marlênio é central na ruptura da relação entre Máiquel e
Érica, assim como se torna uma sombra que passa a persegui-los para que os crimes
sejam revelados, pois, segundo a doutrina teológica preconizada pelo pastor, os castigos
divinos cairão sobre aqueles que cometem o mal.
No romance, a entrega do prêmio de “Homem do Ano” para Máiquel
acontece quando a história caminha para seu clímax, após o rapaz ter alcançado o
ponto alto de sua trajetória de matador e iniciar sua queda enquanto figura social e
sujeito individual.
Érica não está, ao menos que se diga, presente à premiação, e seu sumiço é
premente. Seu desaparecimento posterior faz com que o pastor denuncie o que sabe
sobre a ação do matador (o assassinato de Cledir, a agressão física que sofrera e a
perseguição à Érica), o que põe Máiquel em cheque diante do seu ‘professor para o ódio’,
Doutor Carvalho, assim como os demais burgueses que fomentam sua atuação, pois
agora é a sua vez de ser salvo.
No livro, em uma seqüência envolvendo Gabriela, o dentista, em um acesso
de ódio, expulsa o rapaz de sua casa como um “cão sarnento” e, ironicamente, tem o
desejo de arrancar-lhe todos os dentes, aqueles que ele mesmo consertou e utilizou
como forma de aproximação e conquista do ainda ‘matador debutante’.
No roteiro e na versão final, o embate entre criador e criatura é levado para
uma silenciosa seqüência final. A ação que desencadeia o final trágico de Máiquel no
romance acontece quando bastante bêbado, após ser abandonado em definitivo por Érica
e ser expulso da casa do dentista, mata um adolescente “bom filho, bom aluno” em um
sinal de trânsito.
No dia seguinte, os jornais estampam seu retrato em primeira página. Todos
agora sabem do matador do subúrbio e seus aliados abandonam-no à própria sorte
porque errara o alvo matou quem não devia, pois a morte violenta serve apenas para
alguns pobres e não para os burgueses e sua descendência. Nas palavras do delegado
Santana, Máiquel “deu um tiro em sua cabeça” (MELO, 1995: 179).
Sua fuga então se e, de longe, Máiquel acompanha o caldo de sua situação
entornar; todas as vozes que lhe eram favoráveis viram-se contra ele e seu escape à
pressão do momento dá-se através do sono, o mundo dos sonhos onde pode encontrar
Érica: “Na verdade não eram sonhos, era a minha mente” (MELO, 1995: 185).
Ainda chega a ir ‘de fachada’ para a prisão, onde tentam matá-lo, assim como
fizeram com Marcão. É nesse ponto que descobre a verdade sobre a traição daqueles que
supunha aliados.
Já no filme, é a descoberta do corpo de Cledir enterrado no quintal de
Marcão, quando um policial honesto procura cocaína na casa do traficante, que anuncia
a queda iminente do (anti-)herói.
Após a fuga para não ser preso, descobre a traição por parte dos comparsas e
a única saída que vislumbra é pôr fim àqueles que lhe negaram apoio na hora de sua
maior fragilidade. O contraponto da desilusão é o ato de violência contra Santana e
Carvalho, mortos à queima-roupa como o matador sempre fizera com suas vítimas.
O filme propõe um final aberto, bem diferente daquele escrito por Rubem
Fonseca para o roteiro Máiquel também não escapa da morte nele e que se aproxima
mais do final de
O matador
, cujo parágrafo final anuncia “eu não queria saber de nada
que estava acontecendo” (MELO, 1995: 204).
A seqüência final revela a pintura dos cabelos de preto (renascimento?), cena
a qual o espectador tem acesso restrito logo na abertura do filme, e a síntese em voz
over
do novo momento em sua existência, enquanto trafega pelo tumultuado trânsito da
cidade: “A vida é uma coisa engraçada. Se você deixar, ela vai sozinha como um rio. Mas
se você quiser, pode colocar um cabresto e fazer da vida seu cavalo. A gente faz da vida o
que quer, cada um escolhe sua sina: cavalo ou rio”.
Palavras finais
Palavras finaisPalavras finais
Palavras finais
Em 1971, o escritor Rubem Fonseca confessava em entrevista: “Sou um
escritor que também gostaria de fazer cinema se tivesse tempo. Mas acho que o cinema
não deve ser a reprodução de uma coisa que foi escrita” (HORTA, 1971: 24).
A ciência de que os códigos literários, quando levados a um novo meio de
expressão, necessariamente sofrem alterações, devendo ainda se adequar à estrutura de
significação própria daquele meio, demonstra que o roteirista Rubem Fonseca tenta,
ciente das diferenças pertinentes aos códigos da literatura e do cinema, manter-se
próximo (fiel?) a
O matador
, dando aproveitamento visual a grande parte da estrutura
tramada do livro.
Ele respeita a estrutura literária, mas tenta aproximar no roteiro situações
que aparecem desligadas ou distantes no romance, deslocando cenas e diálogos sem
deixar se perder o contacto, a fricção com o texto que o originara, assim como a unidade
entre a ação exterior e a intimidade da mente perturbada do jovem matador.
Lidar com matéria ficcional criada por outro não é tarefa fácil, garante
Rubem Fonseca
xiv
, mesmo que seu universo referencial na criação literária esteja
atrelado ao conflito estético e ideológico entre classes; a violência institucionalizada pelo
Estado; o crime e o ódio que surgem entre os ‘despossuídos’ diante da sociedade de
consumo; a “dominação cultural” promovida pelos meios de comunicação de massa; o
embate entre um ideal civilizado e uma barbaridade cotidiana, assim como se
apresentam em
O matador
e
O homem do ano
.
O número de adaptações por ele já realizadas demonstra que tem conseguido,
em sua trajetória enquanto roteirista, transpor a “literariedade” através de seu apurado
senso cinematográfico. Assim, muito além de ser “texto escrito para não ser lido”, seus
roteiros trazem a marca de um autor original, um “espectador privilegiado que viu um
filme que nem pode existir e que apenas ele sabe contar” (AVELLAR, 1986: 234).
O roteirista revela que a “sintaxe alucinante” do livro
O matador
levou-o a
abandonar algumas tramas, enquanto outras foram criadas para
O homem do ano
: “o
mesmo acontecendo com os diálogos, num processo criativo que buscou transferir para a
linguagem cinematográfica, de maneira compreensiva, sem deturpações, a força e a
riqueza do texto literário original" (FONSECA, 2003).
Mas a montagem em relação ao roteiro, em vários aspectos, acaba por se
distanciar da intenção do roteirista. A interferência criativa do realizador, auxiliado pela
força seletora da montagem
xiv
, foi definitiva na reformatação do roteiro. Novas situações
foram (re)criadas, promovendo distanciamento em relação ao roteiro e, às vezes,
aproximação com o romance.
A suavização do caráter bárbaro da personagem-protagonista é latente no
filme em relação ao romance: menos drogas, menos sexo, menos brutalidade na
descrição dos crimes. O que pode ter levado a essa opção? Pressões de produção ou uma
proposta realmente balizada no delineamento psicológico da personagem, como
dissera anteriormente, acreditando na imagem como mote incontornável e já por demais
brutal porque massificada?
O resultado da adaptação de
O matador
para o cinema como
O homem do
ano
caminha pela opção de um modelo criativo que, mesmo respeitando o fio condutor
da narrativa literária, prefere criar novas situações mantendo ainda uma ‘espiritualidade’
que persegue a todos os textos. O ideal da fidelidade não deve ser regra, mas uma (frágil)
possibilidade no universo da transposição de códigos das linguagens artísticas na
mutante e incansável Indústria Cultural.
Boa parte das críticas feitas a
O homem do ano
acabam por se relacionar a o
que seria uma falha da “mise-en-scène”, cuja responsabilidade recai diretamente sobre o
realizador. Responsável pela “verdade do filme”, o autor no cinema tem na estética sua
ética, na “sua
mise-en-scène,
sua política” (ROCHA, Glauber
apud
BERNARDET, 1994:
140).
A aproximação ao que críticos nomeiam “estética Conspiração” parece
sujeitar o filme a “(...) refletores gongorizantes, a maquiagem, a cenografia de papelão”
(BERNARDET, 1994: 140), por dar atenção aos elementos ‘artificializantes’, mais
acentuados no cinema comercial (iluminação, cenários e figurinos vestindo ‘artistas de
renome’), e recusar um modelo ‘criativo e independente’, mais propício à ruptura do que
à manutenção dos códigos vigentes.
A opção em não produzir um filme à parte das condições de mercado, acaba
por colocá-lo no patamar de um cinema convencional, trazendo a reboque o embate
contínuo entre cinema comercial e cinema autoral na produção brasileira. Mas,
afinal...Quem é mesmo esse autor?
Notas
NotasNotas
Notas
ENSAIO#4
ENSAIO#4ENSAIO#4
ENSAIO#4
Marcas de uma tragédia em
Marcas de uma tragédia em Marcas de uma tragédia em
Marcas de uma tragédia em
O homem do ano
O homem do anoO homem do ano
O homem do ano
ou Máiquel
ou Máiquel ou Máiquel
ou Máiquel
in medias res
in medias resin medias res
in medias res
Olhando uma personagem a partir de elementos da tragédia grega clássica
“Ó Zeus, por que destes aos homens um meio seguro de reconhecer se o ouro é falso,
enquanto que, para distinguir os maus dos bons, nenhum sinal lhes está gravado no rosto?”
Medéia: EURÍPIDES
(1976).
Marcada pelo horror do inesperado; pelo sofrimento e queda que o erro
involuntário pode ocasionar na vida de um herói; o medo e a misericórdia que nos
aproxima e afasta dele, conduzindo, pelas emoções, à purgação final das misérias
humanas o ponto alto da tragédia, modelo de representação artística que reverbera a
fragilidade da condição humana diante do desconhecido da existência.
As tragédias gregas vistas a partir do modelo da “tragédia ideal”, proposto por
Aristóteles em sua
Poética
, oferecem ainda caminhos para a análise e interpretação de
obras de arte do nosso tempo, mesmo cientes de que o mundo no qual aquelas criações
surgiram está distante e cristalizado na história.
Esse ensaio, sincronizado com o seu tempo, propõe estabelecer uma ponte
entre as principais características do elemento trágico no drama grego, conforme
apresentadas na
Poética
e interpretadas posteriormente, aplicadas ao filme, produto
cultural do século XXI resultado da hibridização de formas artísticas no contexto da
Indústria Cultural que, contudo, não abandona as referências primeiras que abriram os
caminhos para sua materialização.
Detentor de linguagem comunicável pela força do ícone e “compilador” de
outras formas artísticas, o cinema amplia, através das imagens em movimento e de
expressões a ele associados (música, cenários, iluminação, montagem etc), os efeitos que
um texto verbal dramático se propõe alcançar quando da fruição através da leitura.
Não questiono a montagem teatral, lugar de destino de quase todo texto
dramático; nem a capacidade que cada leitor possui de criar sua própria visualidade,
materializada apenas no seu consciente a partir do acesso a uma narrativa (fábula); mas
no cinema, a ação, manipulada pela técnica e seu aparato, gera rumos narrativos a serem
seguidos pelo espectador com toda atenção e pouca dispersão, pois a sua compreensão
vai se dar pelo grau de envolvimento na trama. E quando estamos diante do trágico
materializado em imagem, como lidar com o encontro da tradição com a modernidade?
As particularidades do estudo de Aristóteles acerca da tragédia, no
entanto, necessitaram passar por uma relativização em suas bases, haja
vista que um (óbvio) distanciamento entre uma obra artística de
vinte e cinco (25) séculos atrás a tragédia e o cinema (ALMEIDA,
2005: 30).
Atento ao relativismo proposto, centro aqui atenção na caracterização de
uma personagem cinematográfica a partir de ações e caráter, cujas premissas se
encontram no protótipo da tragédia aristotélica. Máiquel, narrador-protagonista no
filme
O homem do ano
, de José Henrique Fonseca, cuja base está no romance
O
matador
, de Patrícia Melo, adaptado ao cinema por Rubem Fonseca: texto visual e
verbal resignificam códigos em processamento contínuo nas malhas da Indústria
Cultural.
Estando em campo intersemiótico, esse presente texto se estrutura como uma
possibilidade de diálogo entre o novo e o antigo, a palavra e a imagem; ressaltando
pontos de aproximação da criação audiovisual do sanguinário universo da Baixada
Fluminense de
O homem do ano
com o universo da “elevada” tragédia grega. Espero
assim que esses pontos convergentes, em um primeiro momento, sejam capazes de
iluminar, mesmo que indiretamente, o objeto cultural com o qual nos defrontamos e que
se (retro)alimenta das marcas daquele primeiro modelo trágico na sua construção
narrativa.
Busco caracterizar aspectos relevantes da tragédia antiga e algumas alterações
identificadas na época moderna, podendo esse olhar ser utilizado como ponto de partida,
ferramenta de análise para uma interpretação de
O homem do ano
pelo viés do trágico,
para o atual cenário cotidiano das ‘mortes em cena’ nas telas globais.
Caracterizando a tragédia grega
Caracterizando a tragédia gregaCaracterizando a tragédia grega
Caracterizando a tragédia grega
Após a fase na qual o mundo grego se fazia explicar na epopéia e na poesia
lírica através de ritos e mitos ancestrais, narrados pela primeira e cantados pela segunda,
aquele povo alcança o ápice da racionalidade aplicada à arte através das tragédias do
século V a.C., lugar de tensão entre o mítico e o racional; entre o destino e a necessidade
que se impõem continuamente.
Na tragédia, o divino e o humano são problematizados através da imitação
artística (mimesis) de ações consideradas importantes. A sua “mimesis de uma praxis”
racionaliza poeticamente aquilo que de “inesperado, inexplicável e ilógico” existiria no
acontecimento trágico real, tornando-o assim compreensível para um público através da
representação. “A tragédia provou ser excelente mediadora, assumindo uma posição
intermediária entre a religião e a arte, entre o racional e o irracional (...)” (HAUSER,
1998: 99).
A ambivalência entre consciência (motivação lógica e causal), e
inconsciência (motivação místico-religiosa), é de suma importância na compreensão da
tragédia. Nesse terreno, o tragediógrafo encontra amplo espaço para vasculhar em busca
da trama que melhor represente as dicotomias da sua época. “A obra do poeta não
consiste em contar o que aconteceu, mas sim coisas que poderiam acontecer, possíveis
no ponto de vista da verossimilhança e da necessidade” (ARISTÓTELES, 1997: 28).
O rigor formal da tragédia exige cada vez mais lógica e plausibilidade na
trama e nas personagens. O herói trágico continua a sofrer bravamente pelas
conseqüências de suas ações e por aquilo que advém do destino (
moira
). As relações
trágicas se concentram na medida de uma ordem superior (justiça, deuses)
transcendental, verdadeira e profunda – diante da desmedida humana, soberba excessiva
(
hybris
) fruto do desconhecimento, da mentira e da aparência ou de uma “vontade de
verdade” para além da medida.
A tragédia e o conflito que a caracteriza surgem como resposta para a falta de
percepção do homem quanto à verdadeira medida que deveria guiá-lo.
O fatalismo grego não é exclusivamente o que
deve
acontecer a alguém
por isto estar previamente decretado, mas o que acontece a alguém por
sua sorte, parte devido a suas próprias ações, parte devido à
hereditariedade e circunstâncias (LIND, 1957: 11, grifo do autor,
tradução minha).
Mesmo escrevendo seu tratado no século IV a.C., fase na qual a tragédia
enquanto gênero já estava decadente, Aristóteles, por ter trazido ao plano teórico um
conjunto de práticas, é a principal referência para caracterizá-la em seus aspectos mais
importantes.
A tragédia é imitação, não de pessoas, mas de uma ação, da vida, da
felicidade, da desventura (...). Segundo
o caráter
, as pessoas são tais ou
tais, mas é segundo
as ações
que são felizes ou o contrário. Portanto, as
personagens não agem para imitar os caracteres, mas adquirem os
caracteres graças às ações (ARISTÓTELES, 1997: 25, grifo meu).
Seguindo o pensamento aristotélico, BORNHEIM (1969: 74) afirma que “de
fato, não é o caráter que determina o trágico, e sim a ação”. Se o ser humano está no
centro das relações trágicas, o que está em jogo no momento não é o seu caráter (
ethos
)
e sim a ação desempenhada por ele em um contexto no qual valores objetivos buscam se
impor: o fazer do homem no mundo é determinante para sua salvação ou danação.
Nesse contexto, o erro (
hamartia
) é parte determinante para a tragédia.
Porém, na versão grega, esse erro não é colocado sob o ponto de vista subjetivo, “ele se
mantém, pelo contrário, como objetividade, conseguindo afetar, em conseqüência, a
relação entre deuses e homens, e a própria vida pública” (LESKY
apud
BORNHEIM,
1969: 75).
A tragédia inexiste sem a ação (
mythos
) e “duas partes que integram o mito
a
peripécia
e o
reconhecimento
são admitidas como os principais meios de fascinação
da tragédia” (COSTA; RÉMEDIOS, 1988: 10, grifo meu).
A peripécia (
peripeteia
) é definida como “viravolta das ações em sentido
contrário (...), segundo a verossimilhança ou necessidade” e o reconhecimento da
situação trágica (
anagnorisis
) é “a mudança do desconhecimento ao conhecimento, ou à
amizade, ou ao ódio, das pessoas marcadas para a ventura ou desdita” (ARISTÓTELES,
1997: 30). Quando os dois se dão em simultâneo, temos o ponto alto em uma bula
considerada “complexa”.
O pensador grego ainda introduz uma outra parte que seria inerente à fábula,
“alma da tragédia”, além das duas citadas, denominada “patética” (
katastrophe
): uma
ação produtora de destruição, exemplificando-a com a morte em cena bastante
incomum na maioria das tragédias que chegaram até nós, quando a morte se fora da
vista da platéia – e ocorrências de teor violento, causadoras de sofrimento.
AZEVEDO (1999: 35), atentando para o caminho que leva à tragédia ideal a
partir de Aristóteles, resume assim o percurso:
No desenvolvimento da ação, a
hamartia
, ou erro trágico, involuntário,
deve causar a
peripeteia
(reversão da situação), que será tanto mais
efetiva quanto mais ocorra abruptamente (...), concomitantemente com
a
anagnorisis
(o reconhecimento da situação trágica) (grifos do autor).
O erro do herói pode gerar a catástrofe e o efeito principal e benéfico que se
espera de uma boa tragédia para Aristóteles é a catarse (
katharsis
), que ao propor
sentimentos de medo (
phobos
) e piedade (
eleos
), gera empatia e identificação com o
público.
E quais seriam as situações que mais causariam temor na platéia e mesmo
naquele que não tendo assistido ao espetáculo, ao ouvir sua narração, “sinta arrepios e
compaixão em conseqüência dos fatos”?
No caso de um inimigo atentar contra outro, tirante o patético em si
mesmo, nada que cause pena (...). Quando, porém, o evento patético
acontece entre pessoas que se querem bem (...), temos o que buscar
(ARISTÓTELES, 1997: 33).
Finalizando o breve levantamento dos elementos básicos na constituição de
uma tragédia aos moldes gregos, COSTA; RÉMEDIOS (1988:9), a partir de Albin Lesky,
consideram ainda características importantes do gênero trágico a presença da máscara,
“a essência da representação dramática, a metamorfose”; o coro, “representando a
coletividade dos cidadãos”; e o herói trágico, pela sua capacidade de duplicar os valores
sociais da época.
Sobre o papel do herói, na perspectiva que vai do antigo ao contemporâneo,
me aproximo quando estiver analisando
O homem do ano
e seu narrador-protagonista,
Máiquel. Desde logo, indico que o filme contempla em sua trama pontos até aqui
suscitados, adaptando-os ao tempo de hibridismo em que fora produzido.
Fazem-se então necessárias algumas considerações sobre a tragédia nos
moldes modernos a única possível de ser realmente compreendida por nós, distantes
no tempo-espaço do mundo grego e sua concepção original do trágico.
A tragédia grega sobreviveu pelas mãos dos autores modernos europeus, luz
que surge no fim do escuro túnel da Idade Média, e ficou tocada pela ambigüidade,
absorvendo o crescente investimento do Renascimento na personalidade e interioridade
das personagens: “A debilidade da tragédia moderna deriva, precipuamente, do excesso
de importância que se empresta à subjetividade, sobretudo quando considerada em seu
aspecto moral” (BORNHEIM, 1969: 83).
Gerd Bornheim leva a crer que a crise da tragédia no mundo moderno se
pelos excessos de subjetivismo que passaram a dominar a vida humana: o homem, virado
para si próprio, Narciso que demais se contempla, perde confiança em um mundo que
vai se mostrando instável e distante a cada novo movimento.
Na modernidade, os homens tornaram-se estranhos, apenas tolerados
neste mundo que antes era o seu lar. (...) O herói moderno passou a
aceitar seu destino de derrota e a encará-lo como necessário; se é herói
trágico, o é devido à grandeza de seu
caráter
, e não por causa de suas
ações
(COSTA; RÉMEDIOS, 1988: 38, grifo meu).
A individualidade dominante no novo tempo transmite ao sujeito
responsabilidades morais sobre suas ações, pois é detentor de uma consciência, vontade
e livre arbítrio – exerce seu poder de escolha. Assim, os choques entre interior e
exterior, realidade objetiva e subjetividade, se fazem mais intensos e freqüentes. A
constância dos conflitos se “(...) com outras vontades, com forças naturais ou
sobrenaturais, com forças sociais, além de destaques mais ou menos relevantes em
conflitos interiores” (AZEVEDO, 1999: 36).
A mudança de foco da ação para o caráter na modernidade também faz
relação com a passagem de um trágico original para uma interpretação filosófica deste,
advinda com as reflexões do romantismo.
LOPES (1993: 46) atenta para a mudança: “O que se aponta nestes dois
momentos é (...) a distância que está na base da relação entre a tragédia e o discurso
sobre a tragédia. O que conhecemos (...) é muito mais uma interpretação do fenômeno”.
Sendo a existência de um trágico antigo nos dias de hoje impossível, são com
as diferenças propostas pelo trágico moderno que se podem ampliar as visões sobre o
fenômeno.
A essência da tragédia moderna é o processo pelo qual o homem
adquire clareza sobre si mesmo, repousando o valor moral da auto-
interrogação trágica na implacabilidade com que a ilusão é despedaçada
e a natureza do herói revelada, principalmente para ele próprio. A
recompensa pelo grande momento de realização do destino trágico é a
autoconsciência e a auto-realização (COSTA; RÉMEDIOS, 1988: 39).
Esse trabalho, contudo, não passa pela reflexão histórica do trágico através
dos tempos, mas é importante dizer da evolução do fenômeno e do envolvimento de
filósofos, em especial germânicos do século XIX (Schelling, Hölderlin, Hegel, Nietzsche
e Wagner), em considerações sobre o trágico, sua crise e o caminho da superação diante
de novos valores em um mundo “moderno e cristão” e, para Nietzsche, transitando entre
os estados apolíneo e dionisíaco.
Em relação ao herói trágico contemporâneo, a dualidade entre os dois
estados mostra-se marcante, como diz AZEVEDO (2000: 42):
Se por um lado o herói trágico é aquele indivíduo que aspira ao titânico
(...), aventura-se pelos
domínios dionisíacos
do descomedimento, por
outro lado ele deixa (...) um rastro das relações de causalidade de sua
queda (...), demarcando o
território apolíneo
o lugar do
autoconhecimento e do comedimento cujas leis sagradas não devem ser
transgredidas (grifo meu).
Entre aquilo que está posto e determinado, como aos moldes antigos, e aquilo
que está por vir, resultado do auto-conhecimento da modernidade, encontra-se Máiquel,
herói marcado por uma irônica dubiedade, que no percurso de sua história de erros,
alcança, ao final, uma clareza trágica acerca da existência.
O homem do ano
O homem do anoO homem do ano
O homem do ano
e as marcas de uma tragédia anunciada
e as marcas de uma tragédia anunciadae as marcas de uma tragédia anunciada
e as marcas de uma tragédia anunciada
No cenário de uma grande cidade que se mostra em panorâmica, vemos uma
personagem, um rapaz, diante de um espelho, enquanto ouvimos uma “voz-over
xiv
:
Máiquel: Antes da gente nascer, alguém, talvez Deus, define direitinho
como é que vai foder a sua vida. Essa era a minha teoria. Deus pensa
no homem na largada, quando decide se a sua vida vai ser boa ou ruim.
Quando não tem tempo, faz uma guerra, um furação e mata uma
porrada de gente, sem ter que pensar em nada. Mas em mim, ele
pensou (FONSECA, 2001: 1).
Essa introdução poderia ser identificada com o prólogo, um dos elementos
constitutivos da tragédia, que no drama grego antecede a entrada do coro, no nosso caso
o início da ação, sendo constituído por “um monólogo ou um diálogo. O prólogo é o
lugar da exposição. Pode haver caracterização de personagens e princípio de ação
(...)” (EURÍPIDES, 2005: 27).
A voz fora de quadro, que se identifica como ‘eu’, define que estamos
transitando pela primeira pessoa narrativa levada ao cinema, na qual narrador e
protagonista dividem a tarefa de fazer fluir a história, assumindo, aparentemente, o
mesmo eu-narrador, e, continuamente, a mesma perspectiva da personagem central.
Sempre haverá, contudo, a instância do narrador cinemático que responde pelo todo da
narrativa, entidade tão abstrata quanto necessária à condição fílmica.
Aristóteles, ao diferenciar a epopéia da tragédia, apontava sobre o pico
‘quem fala’ quanto à forma de representação dos objetos.
(...) podemos às vezes representar pelos mesmos meios os mesmos
objetos, seja narrando, quer pela boca duma personagem (...),
quer na primeira pessoa, sem mudá-la, seja deixando as
personagens imitadas tudo fazer, agindo (ARISTÓTELES, 1997:
21).
Neste prólogo, ao modo grego, o destino do homem está nas mãos de um
deus, que conduz o rumo de sua trajetória. Essa aceitação de algo irracionável no
comando projeta-o entre o espaço da visão trágica clássica e a visão moderna, na qual é o
caráter, e não uma entidade imaterial e superior, que criaria as bases para a felicidade ou
infortúnio do herói; pessoa livre para agir e decidir. Mas aqui, a força divina, além de
exercer poder absoluto sobre a raça humana, também domina a natureza e, assim, define
rotas inalteráveis.
O drama grego explora as possibilidades para o auto-conhecimento
espiritual que os seres humanos podem alcançar por uma longa e
intensa reflexão sobre as lutas do homem contra o homem, do homem
contra a natureza e do homem contra os deuses (LIND, 1957: 10,
tradução minha).
Destacando-se entre os humanos em geral, Máiquel fora escolhido pela
divindade e tem seu destino traçado, pensado individualmente. E será esse embate entre
determinação do divino e livre-arbítrio humano, uma moral universal e as escolhas
peculiares a cada um que se faz visível em
O homem do ano
: a trajetória de ascensão e
queda de um jovem suburbano no mundo do crime institucionalizado na Baixada
Fluminense.
O filme começa e já está Máiquel “em meio às coisas importantes” (
in medias
res
), elemento de condensação temporal para a história e marcação para ações que se
iniciam no presente. Nada se sabe do seu passado, distante e imutável mesmo em
qualquer situação, e logo ele se encontra diante de um salão de beleza: por ter perdido
uma aposta no futebol, seus cabelos de negros passam a loiros, assumindo assim uma
máscara, sua primeira metamorfose, que dará abertura para a representação de seu
drama de conflitos de personalidade, entre o “eu” e o “outro”.
Máiquel: Nunca gostei de me olhar no espelho. Mas naquele dia foi
diferente. Fiquei olhando para aquele cara que não era eu. Um loiro,
um desconhecido, um estranho. Eu passei a maior parte da minha vida
querendo ser outra pessoa. E ali, eu vi que tinha chegado minha hora
(FONSECA, 2001:3).
Sua vida transmutada, aparentemente nova e tocada por uma vontade
individual, traz consigo um sentido de superioridade que se aproximaria da
hybris
grega
e, pela cegueira da soberba, a personagem se coloca no caminho do erro trágico.
No bar onde perdera a aposta, chega com o novo visual
blondie
para mostrar
a todos – “Estava me sentindo bonito com aquele cabelo, com aquele carro e com aquela
gata sensacional” e acaba por causar riso incontrolável em Suel, que acha graça no
cabelo. Sentindo-se atingido em sua honra
xiv
, ao lado da nova namorada e dos amigos, a
ira leva-o a convocar Suel para um duelo. Age de forma inadequada e traz, assim, o
trágico, fruto de ato impensado, para dentro de sua vida. “Para os gregos, cultivar a
cólera e o ‘ressentimento’ era prática malvista, e a lembrança da ofensa (
mnesikakia
) era
considerada um vício” (MATOS: 2004: 299).
Após passar uma noite maldormida (sente uma terrível dor de dente) e cheia
de dúvidas sobre o que propusera para o dia seguinte, Máiquel sai armado e, diante do
alvo desamparado, mata Suel pelas costas, em um momento no qual um misto de
desconhecimento e sentimento de desonra fazem-no marionete do destino. Será seu
primeiro crime em uma escala ascendente; o primeiro que acabará por conduzi-lo à
catástrofe.
Sendo um homem bastante comum (brasileiro, jovem, desempregado, de
futebol, carros, mulheres, empada e Coca-Cola) vive sob o jugo de uma enraizada
tradição cristã (as imagens de Cristo estarão sempre presentes na decoração e em alguns
discursos) e, diante de um ato impensado, sente-se enfraquecido e culpado como
qualquer mortal que errasse – resquícios de um heroísmo antigo. “Os heróis gregos agem
sob sua própria responsabilidade, tomando todas as conseqüências de suas ações, e
sofrendo como homens valentes (...)” (LIND, 1957: 11, tradução minha).
Ao interpretar a função de uma “heroína trágica” da dramaturgia
contemporânea (Blanche du Bois em
Um bonde chamado desejo,
de Tenessee Williams),
AZEVEDO (1999: 36) explica que as tragédias no século XX propiciam uma
aproximação dos heróis com o mundo, com a realidade social, alterando sua constituição
enquanto criaturas inabaláveis: agora se encontram em terra firme como todos as outras
pessoas. “Esses dramas sociais, contudo, continuam a legitimar a construção da ação
através da trajetória desenhada pelos atos do herói – ainda que este pareça, muitas vezes,
um anti-herói (...)”.
Nesse contexto, a tragédia contrapõe as aspirações individuais dos heróis,
nem de todo boas ou más, às possibilidades sociais para alcançá-las.
E como diferenciar verdadeiros e falsos heróis quando a dubiedade das ações
são cada dia mais comuns entre as personagens trágicas contemporâneas? BATISTA
(1999: 76), analisando uma personagem literária (Alex no romance
Laranja Mecânica,
de
Anthony Burgess), informa sobre alterações na compreensão do herói atual:
Estes novos tipos de heróis são bastante diferentes dos tradicionais;
alguns não se caracterizam por serem vencedores, pois o fim de suas
histórias é marcado por perda e destruição, e a outros não são atribuídas
nobres qualidades heróicas (...) (tradução minha).
Com a ruptura do perfil heróico de nobreza, elevação e bravura, oriundo do
ideal da tragédia grega e mesmo de parte dos dramas modernos, surge a figura do anti-
herói que, mesmo com o prefixo de negatividade que o caracteriza, não deve ser visto
como mal, mas simplesmente como oposto ao herói por não possuir as qualidades
tradicionais daquele, sendo contudo mais complexo em sua definição: “O anti-herói é
uma pessoa’ simples, a quem é dada a chance de protagonizar uma obra literária (...)”
(BATISTA, 1999:77, tradução minha).
Máiquel, homem comum de uma periferia brasileira, ao cometer o primeiro
crime em
O homem do ano
, se coloca vários degraus abaixo da perspectiva do herói de
‘muitas qualidades’ mesmo que em várias tragédias gregas, os heróis cometam crimes
terríveis contra entes queridos e nem por isso percam sua condição heróica – por não ser
de todo honrado e capaz de justificar sua ação nefasta.
Ciente do erro cometido, arrependido e sofrendo individualmente (
pathos
)
“Eu queria fugir (...), mas fiquei ali parado, com medo de uma vingança, da polícia, de
ser preso (...)” acaba, por ironia, sendo reverenciado como herói pela comunidade
onde vive e pela própria polícia, por ter eliminado um procurado ladrão menor de idade,
portanto inimputável pela lei. Seu ato bárbaro, de desumanidade, acaba por se
transformar em acontecimento festivo, em uma visão civilizada distorcida. Teríamos
assim a primeira reversão da fortuna do nosso homem já não tão comum e a elevação do
contraponto entre civilização e barbárie a um ponto de destaque.
Máiquel: Eu nunca imaginei que todo mundo ia ficar feliz com a morte
do cara; diziam que lugar de bandido era embaixo da terra: eu tinha
feito um bem pra sociedade (FONSECA, 2001: 7).
Essa primeira reviravolta mantém o protagonista em um estado permanente
de aparência e desconhecimento da verdade. Escondido sob sua máscara de luz’, os
cabelos pintados, e agradado com presentes e regalias pelos membros de sua
comunidade, acaba por enveredar pelo caminho do crime como profissão, mesmo
vivendo internamente em constante conflito entre o ideal da normalidade/moralidade
do “homem médio” (casa, trabalho, casamento, igreja e filhos), advindo do casamento
com a cabeleireira Cledir, e a fortuna que seus feitos anti-heróicos podem lhe
proporcionar.
A partir do encontro com burgueses amedrontados pela violência urbana, e
sedentos de vingança contra os miseráveis que os roubam, Máiquel encampa uma nova
batalha: exterminar aqueles que causam problemas aos membros de uma elite a qual não
pertence, mas que almeja.
Nesse sentido, mais uma possível aproximação com a estrutura da tragédia
grega se apresenta a partir de LIND (1957: 10):
O drama grego está largamente relacionado com problemas éticos de
uma ordem superior, os quais as personagens devem resolver ou se
cercarem de uma responsabilidade individual para a manutenção de
uma sociedade aristocrática (tradução minha).
É por uma aristocracia, melhor dizendo, uma pequena burguesia
endinheirada, que Máiquel irá matar para proteger patrimônios materiais (empresas
capitalistas) e imateriais (o
status
social daqueles capitalistas) de uma classe ética e
moralmente decadente, marcada por um discurso retrógrado e desumanizado, mas que
sabe fazer uso do verbo e do poder financeiro para obter o que deseja através da
“coisificação” de uma pessoa – arma que atira e escudo que protege.
A ironia trágica poderá consistir em mostrar como, no decurso do
drama, o herói cai na armadilha da própria palavra, uma palavra que se
volta contra ele, trazendo-lhe a experiência amarga de um destino que
se obstinava em não reconhecer (VERNANT, Jean-Pierre
apud
LOPES, 1993: 71).
Sua sensação de soberania é fortificada quando compra uma arma portátil
“é como colocar uma coroa na cabeça”, diz o vendedor que o seduz com as palavras e o
objeto imantado e “queima” sua segunda vítima a mando de seu novo mentor,
garantindo, assim, a germinação de um ódio no seu interior, enquanto se consola com a
idéia de estar fazendo o bem.
Dr. Carvalho: Você foi embora sem que eu pudesse lhe demonstrar toda
a minha gratidão. tão pouca gente em que se possa confiar hoje em
dia. Arrependido? De ter virado um herói? De ter alijado do convívio
social um monstro? (FONSECA, 2001: 30)
Casado com Cledir e amante de Érica, a adolescente ex-namorada de Suel,
Máiquel inicia sua ascensão social no crime sem, contudo, tornar-se realmente igual
àqueles a quem serve. Transita entre o ‘civilizado’ mundo burguês e o ‘bárbaro’ mundo
suburbano no qual, com as próprias mãos, extermina vidas. Mas a outra face também se
mostra: o discurso burguês embasado na violência é tão bárbaro quanto as ações diretas
do jovem matador.
Em um momento de conflito entre as transformações do exterior e o
desconhecimento advindo do interior, Máiquel comete o erro que, desta vez, o
conduzirá à catástrofe: mata sua esposa em um acesso de loucura enraivecida. não
nada a esconder, todas as cenas violentas se dão diante dos olhos do público e o
“patético” aristotélico tem lugar garantido em
O homem do ano
.
A morte de Cledir, por se tratar de um ente querido e não de um dos
inimigos assumidos como seus pelo jovem matador, causa impacto. “Melhor é quando a
personagem pratica a ação sem conhecimento e reconhece depois de a praticar, pois
então não há repulsa e o reconhecimento produz abalo” (ARISTÓTELES, 1997: 34).
Não se pode, a partir do que se mostra, culpar Máiquel pelo crime, pois a
construção narrativa transmite a instabilidade na qual ele está mergulhado naquele
momento. Mas o que daí sucede, a saga para dar um fim ao corpo de Cledir, demonstra
persistência no erro, o que faz dele ainda mais responsável por seus atos.
Cada dia mais famoso na cidade por seu trabalho de “tirar o lixo da rua”,
como diz um policial já corrompido pelo sistema, Máiquel vive agora a transformação de
Érica, detentora de uma sabedoria livresca inesperada para o contexto sócio-cultural no
qual se insere, em religiosa fervorosa pelas mãos do pastor Marlênio.
O objetivo atual da jovem, após viver todo o luxo que o “dinheiro
sanguinário” pode propiciar-lhe, é pôr fim ao modo de vida que levam e revelar a todos
o assassinato de Cledir, em nome de uma prometida salvação espiritual. Ela está tocada
pelas palavras de um pastor “neo-evangélico”: “Quem não se aproxima de Jesus é porque
está de mãos dadas com o demônio. E Deus tudo, sabe de tudo e pune de maneira
terrível os crimes cometidos” (FONSECA, 2001: 55).
Assim como anunciado no “prólogo” do filme, uma força superior e terrível
faz-se presente outra vez a partir das palavras do pastor, ratificando uma visão mística,
ancestral, impossível de ser abalada.
Quando o corpo de Cledir
xiv
é encontrado no quintal de um dos amigos de
Máiquel (ele mesmo a enterrara lá), a situação limite em que vive se aproxima do fim.
Uma seqüência em especial, quando um honesto investigador pede para ele identificar
uma pulseira como sendo da falecida, reforça um elemento típico das tragédias gregas: o
reconhecimento.
Aristóteles apresenta na
Poética
suas espécies por meio de sinais, forjado
pelo poeta, devido a uma lembrança, por silogismo e paralogismo dos espectadores e
em
O homem do ano
, temos a junção do reconhecimento por um sinal material, a
pulseira, e aquele advindo da lembrança, “(...) quando a vista de algum objeto causa
sofrimento, como nos
Cíprios
, de Diceógenes, onde, ao ver um quadro, a personagem
chora (...)” ARISTÓTELES (1997:36). Máiquel também chora, mas são lágrimas forjadas
com o objetivo de não revelar a verdadeira natureza do crime e sua autoria.
intensifica o dilema de uma situação de desenlace inexorável.
Ela se encontra incontornável: dá-se a reversão da situação e, de herói
aclamado recebe o título de “O homem do ano” na sua comunidade e promete “não
parar” com o trabalho que realiza passa à categoria de bandido procurado por aqueles
que antes o apoiavam.
Desta vez, vai estar sozinho, diante de seus próprios erros. Assim, carrega
consigo a peja de bode expiatório (
pharmakos
), cujo fim viria para remir todos os crimes
cometidos em nome de outros em uma tarefa “purificadora”, mesmo mantendo o caráter
dúbio quanto ao sentido civilizado do efeito de limpeza.
(...) o
phármakos
, que designa, na Grécia, o bode expiatório sacrificado,
morto ou expulso, a cidade purifica-se dos males que a afligem. A
repetição ritual da violência purifica e protege a comunidade do mal e,
por seu efeito benéfico, afasta e preserva a sociedade da barbárie.
Assim, a tragédia grega seria a incorporação catártica do ritual
primitivo (MATOS, 2004: 281, grifo do autor).
Abandonado por Érica, que o entrega a sua própria desdita, e por seus não
muito amigos burgueses, Máiquel pode encarar os fatos: sua carreira de herói-
assassino caminha para o fim iminente. Como último lance, elimina as personagens que
o conduziram a essa situação-limite (a criatura vinga-se do criador) e, em uma seqüência
final, solitário no seu carro em meio ao trânsito intenso de uma auto-estrada, profere seu
monólogo em voz
over
, assim como no início:
Máiquel: A vida é uma coisa engraçada, se você deixar, ela vai sozinha,
como um rio. Mas você também pode botar um cabresto e fazer da vida
o seu cavalo. A gente faz da vida o que quer. Cada um escolhe a sua
sina. Cavalo ou rio (FONSECA, 2001:79).
Nesse momento, Máiquel vive um “rito de passagem”, da compreensão
mítica para uma racional. Se antes existia a crença em um deus definidor de destinos,
que não esquecera do seu, inclusive, agora, após toda a glória e desdita pela qual passou,
a vida deve estar nas mãos de quem a vive: o destino (sina) pode ser traçado pelo próprio
homem, a partir de suas ações, e o caráter pode, com força humana, dominar o “gênio
mau” (
daimon
).
Solitário em meio a um mundo violento e por demais fragmentado, nosso
homem, jovem (anti-)herói que surge na construção ficcional “em meio às coisas
importantes”, está marcado pelo conflito entre a objetividade de um destino pensado por
um deus e, portanto, incontrolável, e a subjetividade própria do caráter humano, força
transformadora imanente a cada ser.
Transitando em um espaço no qual a dicotomia entre civilização e barbárie é
intensa, notada através da construção narrativa, dos discursos e das ações, Máiquel faz
de si um disfarce, máscara para um “outro eu”, assumindo a função heróica de “salvador
às avessas” em um mundo cujas leis não valem para todos; deixando-se sacrificar em
nome daquilo que não lhe pertence, mas que toma como seu até o ponto em que se
confrontará com a verdade. O bem e o mal se integram em suas ações e, assim,
(des)enlaça-se seu destino.
Mesmo que na modernidade o caráter venha a sobrepujar o destino,
O
homem do ano
propõe a suspensão dos julgamentos morais sobre a construção ficcional
e a crença, ao menos no primeiro momento, da permanência da raça humana sob o
comando de forças superiores incontroláveis.
A transgressão de valores como nobreza e dignidade, erigidos em nome do
herói trágico, mostra-se coerente com as condições do nosso tempo, no qual a “parte
obscura da alma” é tão válida de conhecimento quanto seu oposto a barbárie está na
civilização e vice-versa.
O protagonista se digladia no conflito entre o “eu” e o “outro”. O primeiro
quer tomar o rumo de uma vida moralmente aceita pela sociedade de valores burgueses
(casamento, família, filhos, religião, trabalho certo), enquanto o segundo leva adiante a
inversão destes valores, assumindo a tarefa nefasta de decidir sobre a vida e a morte de
outras pessoas. Os poucos momentos de sensibilidade que demonstra diante do mundo
(com os animais, com Érica) apenas servem de ínterim para a desventura contínua.
Se fosse de todo mau, praticando ações bárbaras sem a ambivalência da
civilização, seu sofrimento seria apenas resultado de suas próprias atitudes. Mas
demonstrando alguma inocência ou fragilidade, a perversidade é revertida e aceita no
herói trágico, “ainda que tenha cometido crimes” (SANCHES VASQUEZ, 1999: 253).
Se, ao final, Máiquel revela a possibilidade de dar conta sozinho de sua vida,
redime o sujeito diante da crença apenas no absoluto, dando vez e voz ao caráter que lhe
é peculiar. As rédias estão nas mãos de quem as seguram.
Quanto ao efeito catártico esperado das boas tragédias, se sua condição deve
produzir no espectador uma liberação de compaixão diante do que vê, criando assim
identificação necessária para a interiorização da ação trágica, o filme, esvaziado dos
conteúdos morais ‘normatizados’, lança o “deleite estético” acima deles mesmo que
essa atitude já se torne “norma” na mídia de massa contemporânea.
Mas quando o caminho de Máiquel se afunila e sua condição de matador
soberano é trocada pela de bode expiatório a ser sacrificado não em nome da
coletividade, mas de um grupo apenas, nessa hora aflora sua fragilidade diante da
contemplação da condição de objeto que escolhera para si a partir do momento que
assumiu ser o “outro”; a cumplicidade do público surge pela percepção do
esvaziamento total da condição humana ao qual se deixara submeter.
A catarse surge através da crueldade final, cartada última, aniquilando
aqueles que o ensinaram a odiar e alimentaram seu (anti)heroísmo suburbano pela
manipulação da palavra, do capital, da vida. A criatura, cometendo o que parecem ser
seus derradeiros crimes, destrói os criadores e segue seu destino agora pela força da
opção pessoal.
Seu grito de liberdade, por mais que se utilize das estratégias bárbaras de
sempre, impõe-se como a voz da individualidade, e a recepção toma o partido de
Máiquel mesmo com todos os crimes cometidos a que assistiu, pois arrancar os grilhões
da submissão no presente é o que importa: o passado é mesmo imutável.
Se os gregos se juntavam na praça pública para assistir a uma Medeia
ciumenta cozinhar seus filhos em fogo lento, os homens de hoje, na
solidão do Um por Um, tem 200 canais onde escolher Chronos
devorando os próprios filhos, Hermes mutilado (...), Ícaro queimando
suas vãs asas de cera, Orestes assassinando a própria e, As troianas e
mais massacre de crianças, Clitemnestra assassinando Agamenon, seu
marido, Agamenon sacrificando sua filha adolescente Efigênia,
Cassandra esmolada, Suplicantes seqüestradas (ANTELO, 2003: 227).
O espectador contemporâneo dialoga com a banalização da vida através da
arte, com o trágico real transformado em espetáculo diário nas telas do dia-a-dia, e
mantém padrões de aproximação e afastamento bastante aprimorados nesse mundo onde
o que é trágico para uns, pode não o ser para outros; parecendo não mais existir uma
noção comum, código tácito humano, do que causa horror, sofrimento e compaixão.
Estou ciente de que a tragédia produzida hoje pode ser entendida a partir
do conhecimento que se acumulou ao longo dos séculos desde o mundo helênico. Por
mais pontos em comum que possa encontrar entre as visões ligadas ao trágico, o
sofrimento e piedade passíveis de se sentir hoje, diante de um objeto estético pensado
para criar sensações várias, encontram-se distantes da relação íntima que os gregos
mantinham com a recriação da vida através da imitação de ações de elevado caráter.
Apesar da extrema simplicidade da cena grega que não se pode
comparar aos modernos cenários de tão variados efeitos, a imaginação
pujante do povo, suprindo as lacunas, bastava para completar os
quadros, de imponente magnitude aliás, e para deles colher fortíssima
impressão, capaz de agitar as massas até o delírio (SOUZA, S/D: 13).
Notas
NotasNotas
Notas
Do entrecruzamento dos que falam
Do entrecruzamento dos que falamDo entrecruzamento dos que falam
Do entrecruzamento dos que falam
Palavras finais
Vizinho que tens quatro bois
e gorjeias no teu caminho,
aprende, pois, se não o sabes,
que um é a soma de dois.
Cassiano Ricardo
xiv
O cinema posiciona-se ao lado da literatura como parceiro questionador e
atento a tudo que a ela diz respeito; apto a tirar proveito de uma experiência de pelo
menos 25 séculos, incutindo-lhe novas formas e significações. “(...) embora duas
linguagens diferentes, eles chegam a núpcias manifestas através do valor humano, do
valor social, do valor estético” (TOCANTINS, 1978: 35).
Mais do que “núpcias”, EPSTEIN (1983: 293) revela o confronto entre
palavra e imagem, na literatura e no cinema: “Na verdade, a imagem é um símbolo, mas
um símbolo muito próximo da realidade sensível que ele representa. Enquanto isso, a
palavra constitui um símbolo indireto, elaborado pela razão por isso muito afastado do
objeto”.
Se a palavra muito simboliza e isso, de alguma forma, estabeleceria uma
distância com o real percebido, a imagem, na sua representação “semi-pronta” do
mundo, tornar-se-ia então canal privilegiado à condução de sensibilidade e emotividade
ao espectador.
Na visão de Jean Epstein, o texto verbal perderia em poder de influência
sobre a interioridade do indivíduo, pois sua organização afugentaria estados sensoriais
anímicos, ligados à imaterialidade da existência.
O texto construído através da imagem, contudo, acentuaria um caráter
“revolucionário e irracional” dispensando uma série de artifícios próprios do mundo
literário. Caminharíamos assim por “estados oníricos”, afastados da estrita vigilância da
razão: a imagem falaria “direto ao coração” (EPSTEIN, 1983: 296).
Mesmo sendo um realizador íntimo das adaptações literárias
xiv
, a poética do
teórico e realizador ligado à Vanguarda Francesa dos anos 20 do século passado, parece
resultar da compreensão da imagem pela sua capacidade de simbolizar partindo daquilo
que é de sua natureza mesma. Isto leva a compreender sua interpretação do fenômeno
da recepção enquanto ruptura com os cânones artísticos tradicionais e as novas reflexões
que surgem com o modelo de representação do real proposto pelo cinema.
É inegável, contudo, que a estruturação do texto visual enquanto cinema
passa por um processo tão racional quanto o texto verbal enquanto literatura a criação
artística encontra na técnica, conhecimento ordenado, os meios para revelar sua
espiritualidade e assim um diálogo se estabelece na arte quando a experiência
individual se defronta com as objetivações indispensáveis da “realidade construída”;
quando as emoções são polidas para se adequar a formas convencionadas.
Literatura e cinema, eminentemente presos às estruturas narrativas – ao
contar e ao mostrar, à forma e ao discurso mantêm uma situação relacional com os
processos psicológicos, sociais e econômicos da humanidade na dinâmica da cultura
industrializada, na qual tudo já foi pensado e estabelecido via regras. “Cada manifestação
particular da indústria cultural
reproduz
os homens como aquilo que foi produzido
por toda a indústria cultural” (ADORNO, 2002: 17, grifo meu).
Para além das diferenças, que tendem a ser vistas como afastamento mas
devem ser pensadas como partes integradas ao movimento das estruturas, interessou
aqui ressaltar um percurso que conduzisse à aproximação entre as duas formas de re-
escritura da realidade sensível inapreensível em sua totalidade para além do viver em
si mesmo.
Falo de linguagens artísticas que tendem às influências recíprocas, à
intertextualidade, ao hibridismo, ao diálogo e à multiplicidade de vozes que se fazem
ecoar; à fricção entre as partes salientes de cada estrutura, estando no centro delas a
literatura e o cinema.
Como uma preexiste cerca de 25 séculos a outra, e o cinema desde suas
origens teve a literatura como “modelo artístico” a ser imitado, a tendência está em ver
um filme com olhos analíticos posicionados no campo da literatura quando estamos
diante da adaptação.
Por muito que se tenha escrito e especulado sobre as especificidades próprias
aos meios artísticos (
medium specific
), quando se adentra no espaço comum da literatura
e do cinema, são aquelas estruturas que primeiro saltam aos olhos e parecem indicar o
caminho tanto para o leigo quanto para o analista.
o fato de se dizer que “o filme não é fiel ao livro”, quando este é utilizado
como referência prévia para a sua (re)construção através de um texto visual, significa
inscrever imediatamente o cinema nos ditames e cânones literários, abdicando assim dos
esforços voltados à definição de suas propriedades.
Da literatura, contudo, grandes lições formam apreendidas e mantidas pelo
cinema, dela tendo ele se tornado parceiro (in)fiel, e algumas vezes por demais
dependente, na readequação dos códigos literários para uma nova recepção no meio
social.
Desfiar, pois, um tecido lmico, cujas bases se assentam em textos literários
que o precedem, parece um exercício infinito, assim também parece ser o texto, e
conduz à reflexão sobre as construções artísticas do nosso tempo pós-industrial.
A relação não é nova. Desde os primórdios do cinema que as adaptações
literárias serviram para justificar o status do filme no mundo das artes. Mas é com a
intensificação do diálogo entre as artes (a literatura também sofre influências dos
procedimentos do cinema) que o estudo dessa relação se faz mais pertinente e efetivo.
O encontro entre objetos se dá continuamente.
O homem do ano
é um filme
que se insere em uma tradição no cinema brasileiro, o filme criminal, mas que também
muito se apóia em modelos originários do cinema norte-americano, como o gosto pelo
crime e pela violência, entre a brutalidade física e o sadismo psicológico, que marcam
grande parte da produção atual daquela cinematografia.
Certamente, temos a parcela que nos cabe quando o assunto é violência
urbana, desigualdade social e o trágico da vida humana se desvelando continuamente
nas imagens da mídia. Intercaladas com outras imagens, aquelas do mundo ‘quase
civilizado’ onde se acredita estar, perpetuam o desequilíbrio.
Civilização, a construção da racionalidade humana, e barbárie, o estado
anímico do ser humano, estão constantemente referenciados nos objetos com os quais
essa pesquisa se (retro)alimenta.
Pensadas primeiro enquanto posições estanques, antinômicas, descubro a
simultaneidade como o estado mais pertinente da relação entre civilização e barbárie
nos textos literários e fílmico que aqui se (inter)conectam. A cadeia de “referenciações
poéticas” e “resignificações de formas” conduz a uma intertextualidade sempre presente,
criando variadas possibilidades de abordagem.
A opção por começar esse trabalho vendo a relação do romance
O matador
com o conto
O cobrador
acontece pela aproximação da estratégia narrativa e temática
existente entre eles.
Enquanto no conto, uma solitária personagem-protagonista tenta libertar-se
da opressão capitalista, odiando e violentando uma burguesia que, na sua visão, lhe deve
bens materiais e imateriais, até o momento de refazer-se diante do espelho do ‘outro’
burguês; no romance, a personagem-narradora se entrega aos desejos violentos dessa
mesma burguesia em busca de ascensão social, reconhecimento e aceitação, tanto
individual quanto por parte da coletividade à qual está ligada, passando de vítima de
‘forças superiores’ à autoria de sua própria história.
No que poderia ser um desdobramento do conto, uma personagem
secundária de
O cobrador
, Doutor Carvalho, atravessa o espaço da ficção para ocupar o
lugar de ‘mestre para o ódio’ do jovem Máiquel em
O matador
, reverenciando o fio da
barbárie que se firma em um discurso pseudocivilizado.
LIPOVETSKY (1986:173) indica que a contemporaneidade revela o
(des)encontro contínuo entre uma “sociedade de sangue” e uma “sociedade suave”. A
primeira primando, imperativamente, pela honra e vingança, o indivíduo que ainda se
subordina ao grupo; enquanto a segunda se baseando no individualismo e no controle do
uso da força pela lei do Estado, que reprime e subordina os sujeitos, impondo a
separação entre prazer e violência mesmo que de forma pouco igualitária
xiv
suavizando ainda os comportamentos, submetidos a regras de ser e estar cada vez mais
rígidas.
Assim, tanto a personagem cobradora do conto quanto o matador premiado
por atos de barbárie no romance circulam por entre códigos instáveis de aspereza e
suavidade; ódio e amor; barbárie e civilização; o ‘eu’ e o ‘outro’ em parco equilíbrio
entre o coletivo e o individual se tocam continuamente, informados na construção
ficcional.
No cinema, no teatro, na literatura assistimos a uma ascensão das cenas
de violência (...) de horror e atrocidade; jamais a ‘arte’ apresentara deste
modo a própria textura da violência, violência
hi-fi
feita de cenas
insuportáveis de ossos triturados, jorros de sangue, gritos, decapitações,
amputações, castrações. Desse modo, a sociedade
cool
corre paralela ao
estilo
hard
; com o espetáculo fictício de uma violência hiperrealista
(LIPOVETSKY, 1986: 205. Tradução e grifo meus).
Mesmo que os discursos ressoem através de um filtro único, na voz
aparentemente solitária de uma personagem que, na primeira pessoa, conta uma história
e dela também faz parte, a bipartição se perpetua, como explica URBANO (2000:61):
“Trata-se do narrador que (...) diz
eu
e esse
eu
se funde ou confunde semanticamente
com o eu-protagonista. Estruturalmente permanecem entidades diferentes, com funções
diferentes”.
A relação entre sujeito do enunciado e da enunciação, encontrados no ‘eu’,
não geram uma soma simplista de duas entidades, mas promovem, sim, “uma nova e
complexa entidade” (URBANO, 2000: 62). A fala do narrador e da personagem são
diferentes, sendo que ambas se fecundam e humanizam. Ao olhar para o eu’, o ‘outro’
simultaneamente se revela e, tantas vezes, ambos chegam a trocar “idéias e expressões
como pessoas diferentes” (URBANO, 2000: 66).
Assim, sob uma perspectiva narrativa, os discursos textuais que se
entrecruzam na primeira pessoa revelam sutilezas quanto à posição do narrador e da
personagem, transitando entre a exterioridade, lugar da enunciação, e a interioridade,
lugar do enunciado, propondo um ser narrativo híbrido, que contesta a igualdade
aparente de perspectivas entre as duas entidades na primeira pessoa do singular
xiv
.
Saltando das palavras para as imagens que as reconstroem e renovam através
do movimento, aquele ‘eu’ detectado no texto literário mantêm-se cindido no cinema,
desta vez por conta de pressupostos inerentes ao texto fílmico.
O cinema se organiza em torno de um narrador onisciente, um
“meganarrador”, que delibera de forma incontesti, ao menos no modelo narrativo que se
convencionou, sobre os rumos da trama.
Aqui, a perspectiva de primeira pessoa cinematográfica se submete à
permissão do narrador objetivo que, através do artifício da câmera subjetiva, realiza a
sobreposição de pontos de vista, a “duplicação dos discursos” (EDUARDO, 2005: 139),
mesmo que essa ampliação não signifique levar interioridade para a personagem, mas
humanizar a narrativa, deixando-a vir “(...) de um olhar limitado, impreciso por
princípio, que não vê a totalidade, mas somente partes”.
Assim, as narrativas em primeira pessoa, no cinema e na literatura, se
sustentam sobre imperfeições e dualidades, promovendo uma pluralização para um ex-
solitário eu-narrador’, e deixando espaço para o trânsito alternado entre os discursos
civilizados e bárbaros.
Além desse (des)encontro entre figuras imbricadas nas narrativas, os textos,
tomados isoladamente, ainda guardam referências culturais que vêm a se entrecruzarem
no discurso fílmico: a literatura e o cinema
noir(e)
; a poesia revolucionária de Vladimir
Maiakóvsky ou a violência da erudição vocabular de Manuel Bandeira; as marcas da
tragédia grega. Cada uma delas se dissolve enquanto objeto único, resignifica na forma e
no conteúdo da teia dialógica dos discursos
xiv
.
Produtos de uma indústria cultural onipresente e cerceadora – “Este é o
segredo da sublimação estética: representar a satisfação em sua própria negação. A
indústria cultural não sublima, mas reprime e sufoca” (ADORNO, 2004: 27-28) os
textos refletem-na também enquanto ‘personagem’, elemento ativo no desenrolar das
histórias. Não as estéticas se renovam, seus lugares de origem também são
reverenciados: o presente se ergue com os tijolos do passado formando uma parede, de
variada textura, entre a materialidade do ‘aqui-agora’ e a virtualidade do ‘lá-ontem’.
Descendo ao nível da trama, encontro um eu-protagonista no estágio de
“epopéia negativa” (ADORNO, 2003: 62), “cuja subjetividade liberada é levada por sua
própria força de gravidade a converter-se em seu contrário”.
Tais epopéias assistem à liquidação do sujeito diante da perda de sentido do
mundo e mantêm-se na ambigüidade imanente à arte contemporânea, “(...) dos que não
dispõem a decidir se a tendência histórica que registram é uma recaída na barbárie ou,
pelo contrário, o caminho para a realização da humanidade (...)” (ADORNO, 2003: 62).
A “recaída na barbárie” se concomitantemente com a tentativa de
manutenção de um estado humanizado para Máiquel. Personagem marcada pela
crueldade civilizada e seu contrário, ela circula em um mundo no qual agem forças
conhecidas (a retórica, o dinheiro, a arma) e desconhecidas (um deus), mantendo o
humano entre determinado e liberto.
Neste ponto, a relação com o universo trágico do teatro grego clássico se
ergue. Sua pertinência se mantém pela perpetuação das dualidades ali já detectadas: deus
x homem; civilizado grego x bárbaro estrangeiro.
Máiquel, enquanto (anti-)herói, é determinado e aprende a fazer-se
determinar. Permanece entre o alto e o baixo; luta para alterar uma rota que, desde o
início, é dita, estabelecida. Desconhece seu estado interior, mesmo que (se) narre, e
narre as razões para determinados fatos de sua vida, preferindo fixar-se nas facilidades
do mundo exterior que se interpõe.
Entre princípios estabelecidos nas tragédias gregas (o erro que nasce da
desmedida; a consciência do ato trágico e o sofrimento que daí surge; a reviravolta na
ação) e aquilo que se organizou nos modelos dramáticos posteriores (especialmente o
anti-herói da modernidade e sua consciência diante dos fatos), Máiquel permanece no
embate de forças. Dela extrai o sentido de sua existência vacilante: é violento e sensível;
monologa mas se deixar influenciar pelo diálogo de outrem; deixa-se envolver em fatos
que se organizam barbaramente sob uma capa de civilidade.
Analisando “as cenas de crueldade” na literatura contemporânea, DIAS
(2005:90) enfatiza que narradores e protagonistas em autores como Sérgio Sant’Anna e
Rubem Fonseca
(...) desfiam memórias de experiências intrigantes, cujos limites entre o
normal e o aberrante deslizam, variando com a perspectiva adotada ou
com a entonação narrativa a ser privilegiada. A ambivalência de tons e
matizes utilizados (...) manifesta em tais relatos uma espécie de
simultaneidade de papéis em que um mesmo protagonista pode ser o
monstro e a vítima, culpado ou inocente.
Ao tornar-se algoz de seus iguais nas ausências materiais e imateriais,
diferencia-se da galeria de personagens masculinos
xiv
criados por Rubem Fonseca que
“(...) amam aqueles com os quais se identificam, que pertencem ao seu grupo social (...).
Ao contrário, odeiam aqueles que estão em situação social oposta” (PEREIRA, 1997:
121).
A linha tênue entre um estado de normalidade e anormalidade também se
faz entrever na personagem-narradora. Alguns de seus crimes se dão por um ato
irracional (a “besteira” em matar Suel; a sensação instantânea de “aprender a odiar”
quando mata Ezequiel; o ‘cego’ assassinato de Cledir), sendo dominado pela
inconsciência momentânea e impulsos ‘primitivos’.
Aproximando o filme da discussão acerca da produção ficcional do cinema
brasileiro atual, posso relacionar o perfil da personagem-protagonista de
O homem do
ano
com uma situação identificada por Ismail Xavier nos filmes produzidos a partir de
2001, nos quais parece predominar “(...) a figura do pobre oprimido que a volta por
cima e se reinventa” (ARANTES, 2007). Tal situação se coaduna com aquela detectada
pelo pesquisador nos “filmes da retomada” (1993-2001), nos quais desfilam “(...)
personagens que se perdem por estarem presos ao passado ou por não se conformarem
com uma perda ou desvantagem, partindo para ações vingativas e cobranças mal-
conduzidas”. Nesse caso, Máiquel parece pertencer muito mais ao personagem que tenta
a reinvenção (pintura dos cabelos, mudança gradativa de status social), mesmo sendo
mal-sucedida, do que a tentativa de recuperar uma perda (o que se no conto
O
cobrador
).
Do seu passado, nada se sabe, além daquilo que se mostra. Se daí derivaria
algum tipo de pressão para uma escalada vingativa, constitui mera especulação.
As características alinhavadas por Xavier para o período pós-2001 se
aproximam de
O homem do ano
:
O pragmatismo do pobre envolve personagens contemporâneos que,
dentro de um quadro de violência urbana, crise de valores e hegemonia
do consumo, viabilizam uma saída – de sobrevivência (...); de alpinismo
social (...) ou de reinvenção de si mesmo para preservar uma liberdade
de movimentos (ARANTES, 2007)
xiv
.
Sem desconsiderar a natureza da criação pertinente ao artista, falando sobre
Patrícia Melo, sua produção na persistente pós-modernidade se faz sob o signo do
‘marco autoral’ Rubem Fonseca quando falo de
O matador
no contexto da literatura
policial brasileira
xiv
, chegando ao cinema também sob sua (dupla) égide. Autor do roteiro
de
O homem do ano
, Rubem Fonseca transpõe para um novo médium signos por si
(re)criados e referenciados pela autora do romance.
A ascensão da violência no espaço urbano; a vida de personagens solitárias e
desestabilizadas emocionalmente, frágeis porém ‘mascaradas’ de uma força exterior que
lhe vale; os conflitos de classe e a pressão do consumo também se materializam no
cinema roteirizado por Fonseca, enquanto um olho vigilante tudo parece observar:
Doutor Carvalho corta o espaço da ficção para ser o porta-voz da civilidade que se
esconde sob o modo
kistch
burguês
xiv
. Agente criador do Máiquel matador, educa-o para
odiar os seus iguais na tragédia social, sabendo ser a superação do fosso social para o
jovem uma jornada predestinada ao fracasso.
O roteiro de Rubem Fonseca respeita a trama armada em
O matador
, mesmo
que não se mantenha sincrônico em relação a fatos narrados e some novos fatos, fazendo
uso do que José Carlos Avellar chama de “(...) invenção de soluções visuais equivalentes
aos recursos estilísticos do texto” (AVELLAR
apud
JOHNSON, 2003: 39).
BRITO (2006: 17) propõe o termo “transformação” para a adaptação pela
imagem de elementos próprios do verbal – “idéias que se constituem em imagens”.
Procedimento no qual os significados semelhantes se valem de suportes diferentes para
se expressar.
Contudo, o filme não acaba na estrutura armada pelo roteiro. O resultado
final distingue-se em vários aspectos, revelando a interferência criativa de José Henrique
Fonseca na formatação do texto audiovisual que chegou até nós.
A adaptação de um texto literário para outro meio, em especial o cinema,
demonstra estar envolta em etapas diversas e frágeis definições, sujeita à intervenção de
autores vários, mesmo que persista a imagem de um ‘autor referencial’. No trabalho de
relocação de signos de um médium a outro a questão da fidelidade faz-se desde logo
infiel, exatamente pela manutenção das especificidades, além de pressões de produção
xiv
de variada espécie.
Aquela idéia fomentada no início da “política de autores” na França, de que o
diretor daria visibilidade às idéias suscitadas pelo roteiro, mostra-se aqui de alcance
limitado, mesmo que o cerne da “filosofia”, o núcleo central por onde circularia a
“espiritualidade” do filme, permaneça: a ambivalências dos modelos e a fragmentação
dos sujeitos objetivam-se em uma história que se estende até um comprimento deveras
(des)conhecido e que se transforma continuamente em algo
–re
: visto, aceito, gurgitado.
Notas
NotasNotas
Notas
Referências bibliográficas
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Filmografia
FilmografiaFilmografia
Filmografia
TRAIÇÃO
(Episódio
Cachorro!
). Direção: Arthur Fontes, Cláudio Torres e José
Henrique Fonseca. Produção: Conspiração Filmes. Roteiro: Patrícia Melo a partir do
conto
Anemia perniciosa
, de Nelson Rodrigues. Intérpretes: Alexandre Borges, Drica
Moraes, José Henrique Fonseca. [S.l.]: Conspiração Filmes , 1998. 1 filme VHS (105
min.), son., color., 35 mm.
O HOMEM do ano
. Direção: José Henrique Fonseca. Produção: Flávio R. Tambellini e
Leonardo Monteiro de Barros. Roteiro: Rubem Fonseca a partir do romance
O matador
,
de Patrícia Melo. Intérpretes: Murilo Benício, Cláudia Abreu, Natália Lage, Jorge Dória,
José Wilker, Agildo Ribeiro e outros. [S.l.]: Conspiração Filmes ; Warner Bros, 2003. 1
filme DVD (105 min.), son., color., 35 mm.
ANEXO
ANEXOANEXO
ANEXO
Raspas&r
Raspas&rRaspas&r
Raspas&restos (também) interessam
estos (também) interessamestos (também) interessam
estos (também) interessam
Fragmentos de uma dissertação
*
**
*
Como os seres humanos em geral, comecei a ‘ler’ pelas imagens: era espectador de mim
mesmo e de tudo ao redor. A primeira sessão de cinema proibida foi
Deus e o diabo na
terra do sol
, de Glauber Rocha. Entrei quase no final do filme, após muito choramingar
ao ‘moço da roleta’, e tive ainda tempo de sentir horror na cena corta-cabeça’ entre
Antonio das Mortes e Corisco: “por que alguém filma isso?”. Tudo o que está no mundo,
e aquilo que ele virtualmente promete, está para se filmar apenas mais uma forma de
(re)dizer.
*
**
*
Às analogias com as linguagens midiatizadas, damos vazão continuamente: ora é um
‘fotografia mental’ que faço; e no momento seguinte, risco o céu com uma imagem; e já a
seguir, ela é transformada em filme para espectador único.
A confluência das ‘impossibilidades possibilitadas’ através da arte faz-se sentir latente no
humano do século 21 quando ultrapassamos tantas verdades e utopias; de
Nostradamus a Kubrick. Enquanto isso... Apenas nos deixamos levar pelo fluxo
inclemente da “via digital”.
*
**
*
Parar e refletir a partir de todo o patrimônio obras e textos, tanto faz disponível
àquele que busca a (auto)crítica, é tarefa descomunal para o tempo em ‘rolo compressor’.
A academia, com todas as sua carências sabidas e possibilidades latentes, ainda propicia
aos interessados (lembro de “Dizem que sou louco...”) um período de maturação para
projetos que “lá do lado de fora” mal passariam pelo olho ‘clínico’ de um “marketeiro”
cultural em uma empresa propensa a fomentar cultura de massa. Digo isso porque, sem
relegar a quem acabo de elogiar, esta dissertação surge como resultado de vários anos de
sentir e pensar o cinema e a literatura exatamente nesta ordem em prol da ação
cultural; uma tentativa contínua de movimentar a ‘moenda’ do conhecimento. Aposto
na máxima do “conceito que nasce
com
a prática”, muito mais do que naquela que
designa um ponto de origem delimitado,
de
, e por tanto e estar lá, não tem forças
para quebrar o tedioso ciclo da inércia.
*
**
*
Nascemos sob a égide da civilização se opondo à barbárie. Aprendemos do ‘ser
civilizado’ nas aulas de Educação Moral e Cívica, enquanto a barbárie ficava relegada à
figura de índios devorando europeus nos livros de histórias; ou o noticiário da TV na
hora do almoço, exibindo o suicídio de pessoas desesperadas no Edifício Joelma em
chamas.
Sempre quisemos ser civilizados, evoluídos. Tudo que se dera antes disso era primitivo’
e ‘ultrapassado’. Nossa condição colonial estava superada: “o caminho do bem” estava
impresso no postal do Velho Mundo ah,
Welfare
state
tão sonhado! e reluzia na
máquina agora inquebrável da América do Norte.
De repente, parecíamos ser todos iguais, interligados por redes de comunicação
capilarizadas no nosso dia-a-dia “em desenvolvimento”: os “Pobres Subdesenvolvidos da
África Negra” recebiam
Live-Aids
e
We are the world
para se livrarem do ‘frio da
guerra’ que chegava a um novo estágio – ao fim, até hoje não – e para alguns se sentirem
mais confortados e outros menos culpados: apaziguando pela imagem roubada a fome
real. Os satélites que brilham todas as noites sobre a terra, mas para alguns são apenas
objetos não-identificados no céu que serve de teto e adorno. “E o que é que eu tenho
com isso?”.
*
**
*
A nova configuração do mundo, onde o que era singular passa ao plural por
contingências várias, solicita repensar o lugar das artes. Entronizadas por necessidade
capitalista, é fonte perpétua de processamento de informação enraizada em todas as
perspectivas e culturas humanas conhecidas. Elas mantêm o sistema em pleno
funcionamento, enquanto sua ‘essência’ é fetichizada continuamente.
Transitamos entre a produção ‘periférica’ da arte especialmente enquanto mercado,
não (só) enquanto posição geopolítica e aquela aceita ao ‘centro’; cientes também que
“à margem” é um estado transitório e os conteúdos tendem a movimentos de atração e
repulsão: “As características imanentes ao conteúdo são o movimento e a transformação”
(FISCHER, 1987:43).
A arte na batalha para transpor as formas de sempre, momentâneos modelos em
equilíbrio, procura se acercar de conteúdos (in)esperados, tantos deles ainda
“revolucionários”, para assim dar prosseguimento a sua jornada expressiva; recompor um
pouco do espaço perdido pela “coisificação” da natureza humana, já deveras
artificializada.
Assim, a convergência se‘por entre’ as artes e suas linguagens dinâmicas; as histórias,
com e sem fios de meada, surgem de autorias várias, alinhavadas; e, desde que ouvidas
pela primeira pessoa, deturpadas; transformadas em algo mais.
*
**
*
O olhar seria uma primeira representação da “coisa em si” e a obtenção da imagem do
objeto real é inalcançável. Posso apenas me aproximar, indo de encontro a sua
amplitude. Forma e conteúdo estabelecem uma relação intrincada entre materialidade,
essência ordenada das coisas, e aquilo que a preenche. Nem mesmo os cristais,
“considerados possuidores da mais perfeita forma de toda natureza inorgânica”
(FISCHER, 1987:135), são rígidos em sua condição simétrica e também se submetem à
transitoriedade dos estados materiais; à dialética da existência. “Pois a realidade é
exatamente isso:
um estado de tensão a todo instante interrompido entre o ser e o não-
ser, um estado no qual tanto o ser quanto o não-ser são irreais e é real a constante
interação entre ambos, o devir deles
” (FISCHER, 1987: 143, grifo do autor).
*
**
*
Os estudos críticos que, em especial, evidenciam os papéis do narrador, personagem e
autor na construção da narrativa ficcional o papel do destinatário da narrativa,
“narratário”, também é considerado mesmo em menor escala tomam corpo a partir do
final do século XIX com os prefácios de Henry James.
Esses vêm a ser acrescentados e atualizados a partir do começo do século XX por
diversos autores anglo-saxões (Beach, Lubbock, Warthon, Booth, Friedman) e de
‘linhagem’ centro-européia (Bakhtin, Tomachevski, Todorov, Lukács, Benjamin), sem
esquecer o papel fundamental de síntese do material e de novas proposições dos estudos
de Genette. Mesmo assim, muito ainda se mescla sobre o entendimento das funções de
cada um deles e das relações que se dão entre si, evidenciadas na narrativa espaço de
trânsito sempre fluido.
Após um diversificado estudo teórico das estruturas narrativas e de seus componentes
‘vivos’, percebo existir um “emaranhado teórico” que se forma a partir das diferentes
visões dos autores. Certamente, um diálogo das premissas de críticos e teóricos se fez
visível nas discussões em sala de aula. Contudo, vejo ser importante a aplicação dessa
“fortuna crítica” nos estudos da narrativa brasileira, ainda pouco vista sob o prisma das
categorias do narrador e do foco narrativo.
*
**
*
Assim, esse estudo pouco revelará das abordagens possíveis e amplas da ficção com a
História, a Sociedade; a Estética e a Ideologia; ficando uma aproximação destes tópicos
para momento posterior.
*
**
*
A leitura do conto e do romance se dá pelo viés das principais questões narrativas, como
“Quem fala ao leitor?”; “De que posição em relação a estória ele conta?”; “Que canais de
informação o narrador usa para transmitir a estória ao leitor?” (FRIEDMAN, 2003: 4).
*
**
*
“Assim, a personagem de um romance (...) é sempre uma configuração esquemática,
tanto no sentido físico como psíquico, embora
formaliter
seja projetada como indivíduo
‘real’, totalmente determinado (ROSENFELD, 1995: 33)”.
*
**
*
Mas concentrar atenções no ‘autor humano’ é afastar-se da ficcionalidade, pois tomar
como base dados biográficos, por exemplo, seria “ancorar barco em porto inseguro”: tais
dados podem não ser de todo verdadeiros e a centralidade do texto é sempre mais
segura.
*
**
*
“O discurso ‘estilizado’ é a forma extrema da mimese de discurso, em que o autor ‘imita’
a sua personagem não somente no tecido dos seus dizeres, como também nessa
literalidade hiperbólica que é a do
pastiche
, sempre um pouco mais idolectal que o texto
autêntico, como o da ‘imitação’ é sempre uma paródia por acumulação e acentuação de
traços específicos” (GENETTE, 1995: 182).
*
**
*
“(...) o poeta pós-moderno não sente a necessidade de explicar a referenciação poética
de que se utilizou, uma vez que a condição sígnica particularizadora não vai influenciar
na compreensão do novo signo poético criado” (SILVA, 2002: 96).
*
**
*
Em
O cobrador
, transita-se entre tempo e espaço pouco definidos, descontínuos, como
afirma MANGUEIRA (2003: 53): “(...) o conto
O cobrador
possui uma multiplicidade de
espaços, permitindo-nos visualizar mais detalhadamente a cidade ficcional criada por
Rubem Fonseca. (...) não são micro-espaços que representam a cidade. São, na
verdade, multi-espaços que mostram uma geografia maior dos contrastes que formam a
cidade maravilhosa”.
*
**
*
Sobre a prolepse: “Deve-se ter atenção, contudo, que tal informação adiantada não se
confunda com ‘estados mágicos’ como a premonição e a profecia, por exemplo, pois a
origem desse conhecimento pode transcender a figura do narrador e o seu relato,
criando “uma difusa atmosfera de agouros e suspeições” (REIS; LOPES, 1988: 285).
*
**
*
A conseqüência natural desse espectro narrativo [narrador-testemunha] é que a
testemunha não tem um acesso senão ordinário aos estados mentais dos outros; logo, sua
característica distintiva é que o autor renuncia totalmente à sua onisciência (...), e
escolhe deixar sua testemunha contar ao leitor, somente aquilo que ele (...) poderia
descobrir de maneira legítima (FRIEDMAN, 2003: 7).
*
**
*
A obra de arte tem sua existência garantida no sistema cultural. Alimentando-se da
multifacetada experiência humana, sua condição almeja, entre várias, subjetivar a
objetiva realidade, dialogizar o monológico, promover a aproximação entre o individual
e o coletivo um discurso que se encontra com outros além de questionar sua própria
existência enquanto fruto (i)material originado na vida que, por tanto nela confiar, pode
deixar de sê-lo
xiv
.
*
**
*
Nos encontros e desencontros possíveis entre literatura e cinema, estão em jogo: as
relações com a recriação da realidade que, acredito, a forma e o sentido aos discursos
artísticos (literatura e cinema); um distanciamento que a literatura promoveria com o
“aqui e agora”, construindo-se a partir da ‘arbitrariedade’ dos signos lingüísticos envoltos
em significados inesperados; para “além da vista”. A literatura propondo ainda à
recepção um “cinema imaginado” ou um “cinema mental”
xiv
, de repertório variado e
amplidão inigualável; mas tendo “ao de si a potência do ícone, que aproxima o
espectador de um novo sensível com uma imitação (
mimesis
) de persuasão tal que
lugares e realidades outras parecem próximas e plausíveis.
*
**
*
Em uma discussão profícua sobre a obra de arte e a crítica, KOTHE (1981: 27)
contextualiza a literatura no mundo cultural das artes e das mídias, proferindo sua
abertura necessária para outros elementos do sistema: “(...) a obra literária não existe
isoladamente (...), quando ocorre alguma alteração em algum dos elementos, todos os
demais acabam sendo afetados, devido ao caráter sistemático do todo e das relações
entre as suas partes”. Flávio Kothe, posicionando-se em prol do diálogo “a obra é
como diálogo, a obra se quando ocorre o diálogo” (KOTHE, 1981: 24) pede
atenção aos ganhos potenciais advindos das relações entre linguagens artísticas, abrindo
perspectivas para o encontro entre a literatura e o cinema em um mundo cultural
compartilhado.
*
**
*
Segundo LUCAS (1985: 135), “a dialética básica do Brasil, a extremação entre ricos e
pobres, sem a fortaleza de uma situação intermediária (...), projeta-se com vigor nos
contos de Rubem Fonseca”, destacando a harmonia entre
O cobrador
e
Feliz ano novo
.
A partir de toda a violência que se expressa em
O cobrador
, através do impulso anti-
repressão do personagem principal, Lucas vislumbra um efeito “simbólico e pedagógico”
no seu discurso: “É como se fosse o discurso da carência revertido em castigo do corpo
social”.
*
**
*
João Batista de Brito afirma que se confrontarmos “o gênero literário chamado
policial
com o filme
noir
equivalente, notaremos que as diferenças respectivas, mesmo naqueles
casos em que o cinema adapta a literatura, são abissais. A consciência de estar lidando
com uma forma específica de linguagem, que não se confunde no essencial com os
seus pares semióticos, foi sempre uma característica de estilo dos melhores fundadores
desses gêneros”.
*
**
*
Antes de chegar ao Brasil,
O homem do ano
foi exibido no Festival de Berlim
(Alemanha, 2003) e recebeu prêmios em festivais norte-americanos (São Francisco,
Miami, 2003).
*
**
*
Incentivado por seus ‘mecenas’ a substituir a “desobediência retórica” pela
“desobediência real” (PASOLINI, 1990), Máiquel transita em “terreno minado” por si
próprio, acreditando assim se libertar do seu mundo ‘real’ (pobreza) e adentrar,
finalmente, no mundo ‘ideal’ (riqueza).
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O primeiro matador de aluguel do cinema aparece em
This gun for hire
(Frank Tuttle,
1941), adaptação de uma obra de Graham Greene,
A gun for sale
. O filme, considerado
da primeira leva
noir
, não apresenta “certos aspectos de um filme
noir
clássico (...).
Notadamente, falta ao filme pelo menos um pouco de narração em
flashback
por voz
over
, que liga passado e presente (...). Ao filme também falta uma
femme fatale
sólida”
(WESTON, tradução minha).
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Em relação aos filmes de gângsteres, a produtora ‘oficial’ em Hollywood era a Warner
Brothers Pictures, que alcançou, em relação as concorrentes, os maiores sucessos com o
filão nos anos 30, produzindo os filmes mais significativos do período.
O homem do ano
é um projeto encampado pela Warner no Brasil: estaria ali algum resquício daquele
momento célebre vivido pela produtora?
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Medéia, em Eurípides, falando às mulheres de Corinto da desdita que se lhe abateu: “E
eu abandonada, proscrita, sou ultrajada por esse homem [Jasão]; arrancada por ele a uma
terra
bárbara
, não tenho mãe nem irmão nem parente, para encontrar junto deles um
porto de abrigo nessa tempestade” (EURÍPEDES, 1976:14, grifo meu).
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Aproximando os três sentidos de civilização e barbárie, WOLFF (2004) encontra traços
que aproximam a antinomia aqui estudada àquela existente entre natureza e cultura.
Mas se essa oposição não traz em si uma “noção de valor”, as duas estariam em de
igualdade perante uma escolha, civilização e barbárie, pelo contrário, vê-se polarizada
em prol do primeiro termo, sempre associado ao “bem”, em detrimento do segundo,
associado assim ao “mal”.
O assunto não se esgota facilmente. Das propostas de Francis Wolff, posso desde
agregar como uma vertente pertinente à produção cultural o contínuo afastamento dos
sujeitos de ideais humanistas; do humano que “tornou a ser desumano”, a partir da
fragmentação do sujeito psicológico (individual) e social (coletivo) na
contemporaneidade e o reflexo disto na produção artística. Mas outras leituras são
pertinentes e tendem a se mostrar.
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Sabemos que “o romance se impõe ao leitor progressivamente, enquanto o conto prima
pela intensidade” (CORTÁZAR, 1974: 147-163
apud
GOUVEIA, 2004: 79) e, portanto,
os desdobramentos romanescos acabam por permitir maiores digressões do que a
narrativa curta, mesmo que igualmente profícuas.
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Autor do roteiro de
O homem do ano
, Rubem Fonseca encontrou em
O matador
várias
semelhanças com seu próprio universo referencial e, sem dúvida, as marcas desse
encontro estão presentes no filme, mesmo que o romance de Patrícia Melo trace
caminhos próprios, especialmente por optar pela interioridade das personagens que se
projetam no exterior e pela pouca complacência com aqueles “iguais na dor”.
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Dentre as características da “barbárie contemporânea” historicamente constituída,
LÖWY identifica aquelas relacionadas à impessoalidade da violência, quando
“populações inteiras são eliminadas com o menor contato pessoal possível entre quem
toma a decisão e as vítimas”, havendo um modelo de gestão racional e burocratizada de
ações bárbaras.
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Ismail Xavier esclarece alguns pontos pertinentes quanto à relação entre linguagens
artísticas: “(...) literatura e cinema são terrenos em que, com peculiar freqüência, as
respectivas linguagens se organizam para narrar acontecimentos, criar personagens,
ações, estórias, definindo um campo comum de prática discursiva que pode, em
conseqüência, engendrar um campo comum de análise – a da narrativa, fílmica ou
literária” (XAVIER, 1996: 15).
Notas
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