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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
CAMPUS DE MARÍLIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS
Aristeu Laurêncio Cordeiro Mascarenhas
DA DETERMINAÇÃO SUBJETIVA A UMA VIDA DE PURA IMANÊNCIA
CRÍTICAS DELEUZIANAS ÀS FILOSOFIAS DO SUJEITO
Marília
2008
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ARISTEU LAURÊNCIO CORDEIRO MASCARENHAS
DA DETERMINAÇÃO SUBJETIVA A UMA VIDA DE PURA IMANÊNCIA
CRÍTICAS DELEUZIANAS ÀS FILOSOFIAS DO SUJEITO
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Filosofia da
UNESP Campus de Marília / SP
para fins de obtenção do título de
Mestre em Filosofia.
Área de Concentração: Filosofia
Moderna e Contemporânea.
Orientação: Clélia Aparecida Martins.
Marília
2008
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AGRADECIMENTOS
Agradeço à CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior pela ajuda financeira que possibilitou a finalização dessa pesquisa.
Ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da UNESP e sua secretaria que,
mesmo às vezes à distância, sempre me auxiliaram quando solicitados.
Especialmente a Aline pela gentileza com que sempre me atendeu.
Ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFSCar. Especialmente às
professoras Silene Marques e Débora Morato por me terem acolhido tão bem
como aluno especial em suas disciplinas.
Agradeço aos colegas de labuta da UNESP e da UFSCar pela companhia sempre
agradável, seja nos cursos freqüentados ou na mesa do bar.
Agradeço aos amigos e professores da UNIMONTES que me educaram em
filosofia, principalmente Alex Fabiano e Péricles que desde o inicio da graduação
acompanharam e incentivaram meus projetos.
À minha família, especialmente Seu Aristeu e Dona Maria, pela paciência com que
acompanham meu percurso e pelo carinho com que me recebem nos meus
retornos à terra natal. Se existe alicerces para o conhecimento, os meus são
vocês.
A Ama(n)da por ser meu norte e minha companheira nos altos e baixos do
caminho. Cada palavra desse trabalho fora escrita também com a suas mãos.
E finalmente agradeço à professora Clélia Aparecida Martins por ter acreditado em
meu trabalho e me acolhido como seu orientando. Sou muito grato pela presteza e
simpatia com que sempre me recebeu para orientação. Sem sua acolhida tudo
seria só um sonho de um interiorano um pouco ousado das Minas Gerais.
A Reuter Neves que mesmo sem saber bem o
que é filosofia me ensinou o mais difícil: viver.
Mostrou, ainda, que existo pra lembrar. Mas uma
pergunta ficou pra trás: pra quê tanta pressa?
Pois é, pra quê?
O jornal comenta, um rapaz tão moço
O calor aumenta, a família cresce
O cientista inventa uma flor que parece
A razão mais segura pra ninguém saber
De outra flor que tortura, pois é pra quê?
(S. Miller)
RESUMO
O tema principal desse trabalho é a apresentação da crítica dispensada por Gilles
Deleuze às filosofias do sujeito. Este é um assunto recorrente em seus textos,
embora apareça disperso principalmente no que diz respeito à figura do cogito
como começo em filosofia e a sua inserção no quadro do que ele irá chamar de
postulados da imagem dogmática do pensamento. Fugindo dessa imagem para
devolver à imanência seus direitos, o autor irá propor um campo transcendental, e
a partir daí, um plano de imanência pré-subjetivo e pré-objetivo como condição
para se pensar uma subjetividade. Ver-se-á como Deleuze encontra no
pensamento de Bergson rica fonte para afirmar a realidade virtual desse plano e
do tempo que lhe é próprio; imaginado por esse autor como uma pura
multiplicidade virtual que se atualiza em estados de coisa ou estados vividos.
Afirmada a realidade desse plano, pode-se, a partir de então, voltar a pensar
sujeito e objeto fora do “abrigo” da tradição. A crítica deleuziana mostra, ainda,
que Descartes tivera papel fundamental como criador de uma vertente da imagem
do pensamento levada a cabo como abrigo pelas filosofias da reflexão. Tal
imagem se constitui a partir de uma subsunção da imanência ao interior de uma
consciência pura, de um sujeito pensante. Será mostrado como a partir de
Descartes, e com Kant e Husserl como aqueles que permaneceram presos à
imagem dogmática, o plano de imanência é tratado como um campo da
consciência. Estabelecida a crítica, será evidenciada a necessidade última do
pensamento deleuziano de reafirmar esse plano após destituir a posição de
fundamento assumida pela consciência. Apartado de qualquer forma de
consciência o campo transcendental se mostra, então, como uma vida de pura
imanência; e as terminologias subjetivas dão lugar às novas terminologias
deleuzianas.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 1
CAPÍTULO I – O CAMPO PRÉVIO DA IMANÊNCIA
Sujeito e Campo transcendental ................................................................................ 9
O tempo do virtual ou a síntese transcendental de um passado puro ................
24
Virtualidade e imanência ............................................................................................ 34
CAPÍTULO II – A CRÍTICA AO PLANO DO SUJEITO
Descartes e o Cogito como começo em filosofia ................................................ 49
O Eu rachado, o eu passivo. ...................................................................................... 72
As Meditações de Husserl: continuidade na imagem do pensamento ...............
96
CAPÍTULO III – SUBJETIVIDADE NÔMADE
Uma vida de pura imanência ................................................................................... 108
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 129
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ................................................................................. 136
1
INTRODUÇÃO
Tomar Gilles Deleuze pelas conclusões de seus textos é sempre uma
experiência recompensadora para qualquer um que se propõe enredar nas malhas
de seu pensamento. E o próprio autor atenta de modo particular para essa
necessidade no prólogo de Diferença e Repetição
1
(1968). Sendo assim, o
presente trabalho se posiciona nesse sentido e inicia-se duplamente pela parte
conclusiva de um texto igualmente conclusivo em muitos aspectos do pensamento
de Deleuze. Esse texto é Do caos ao cérebro”, apresentado como a conclusão de
O que é a filosofia? escrito em 1992 em uma parceria com Félix Guattari
2
. Evocar
o caráter conclusivo desse texto não implica, de modo nenhum, apontar uma
possível finalização na filosofia de Deleuze, mas, muito mais, fixar um importante
ponto como incitação à investigação do percurso de seu pensamento; um ponto
que convida a um olhar panorâmico sobre os momentos dispersos de uma história
marcada, sobretudo, pela crítica à subjetividade moderna. Trata-se, por fim, de
1
Cf. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2000, p.35. É
freqüentemente dito que os prefácios devem ser lidos apenas no fim e que as conclusões,
inversamente, devem ser lidas no início. Isto é verdadeiro a respeito de nosso livro (...)”. Sempre
que possível esse trabalho fará referência às traduções disponíveis em língua portuguesa.
2
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado Jr. e
Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. Vale lembrar aqui que algumas abordagens
dessa obra já estão presentes em outras obras e textos esparsos do autor. Caso de Les conditions
de la question: qu'est-ce que la philosophie?, texto publicado em 1990 na revista Chimères nº8,
cujo subtítulo, como se pode notar, é homônimo do texto escrito com Guattari.
2
seguir, a partir de um trecho sobremodo conclusivo, o “fio de Ariadne” que conduz
a argumentação aesse importante ponto de síntese crítica. Se por vez houver
confusão em relação ao caminho tomado, sentir-se-á bem por ter permanecido,
por pouco que seja, no meio de um grande pensamento como o de Deleuze.
O que se observa nos últimos textos escritos por esse pensador é algo
como um “balanço-programa” de uma vida dedicada à filosofia, balanço esse, não
de um percurso pessoal, mas também da própria filosofia. Longe de ser um
retorno à fase “monográfica” para estabelecer um balanço de sua “história da
filosofia”, é, mais que isso, uma espécie de nostalgia em que se pode colocar
verdadeiramente a questão da necessidade de se pensar uma filosofia da filosofia.
É bem esse o caso de O que é a filosofia?, que parece apontar à primeira vista
para um certo apaziguamento, obviamente incomum no pensamento deleuziano,
entre ele e a tradição filosófica ou a ciência. Tal apaziguamento mostra ser, no
entanto, aparente, na medida em que o leitor avança no texto e que o autor o faz
rever com olhos desconfiados certos arquétipos de filosofia. É assim ao longo do
texto e, mais especificamente, nessa parte intitulada Do caos ao rebro. Com
efeito, é nesse texto que se encontra a insólita afirmação de que:
Mesmo o cogito é uma opinião, no máximo uma Urdoxa,
enquanto não se extrair dele as variações inseparáveis, que dele
fazem um conceito; enquanto se renuncia a encontrar nele um
guarda-sol ou um abrigo; quando se deixa de supor uma
imanência que se faria por ele mesmo (Deleuze e Guattari, 1992:
267).
Emendada, em seguida, com a prescrição de que ao contrário, é preciso colocá-
lo sobre um plano de imanência ao qual pertence e que o conduz ao pleno mar
3
(Deleuze e Guattari, 1992: 267) ou, o que no mesmo segundo sua metáfora, à
variabilidade caótica de um campo impessoal, a-subjetivo. E é precisamente esse
ponto da obra de Deleuze que anima a pesquisa aqui empreendida.
De todo modo, a impressão inicial que se tem ao estar diante dessa
assertiva é de que o autor, ao que parece, lança um desafio sem antes ter
apontado qualquer direção para sua realização. É possível notar, no entanto, que
a investigação da recorrência do tema do cogito no conjunto dos textos de
Deleuze, não apenas auxilia na atenuação das dificuldades, mas também permite
supor certa continuidade argumentativa, no sentido de construção de uma posição
muito bem estabelecida em relação a esse conceito. Posição essa que parece ir
efetivando-se paulatinamente na obra do filósofo, se deixando conhecer mais
claramente e de maneira razoavelmente explícita em seu livro de 1992, assim
como, no último texto por ele escrito intitulado A imanência: uma vida...”. O que
corrobora com a posição assumida aqui de que a afirmação feita acima aparece
muito mais como “fechamento” de uma série de retomadas críticas ao longo do
conjunto de sua obra do que como uma invocação de “exemplo” de traçado de
plano e criação de conceito.
Certamente é notável que se tenha como primeiro “Exemplo”, na série de
exemplos apresentados no texto, uma análise do cogito sob a perspectiva da
criação de conceito em filosofia. No entanto, um levantamento do referido conceito
na obra de Deleuze abre uma possibilidade da retomada deste sobre outra
perspectiva: a história de uma desnaturação da imanência ou ilusão que
acompanha uma imagem do pensamento. Algo presente, como se pode ver, até
4
mesmo quando o cogito é colocado como “exemplo” no texto de Deleuze e
Guattari.
3
Importa observar que, se se atenta neste presente trabalho ao cogito
como começo em Descartes é, sobretudo, pela relevância que este tem para
todos os pensadores que, de uma forma ou de outra, adentraram no campo das
filosofias da consciência; mesmo aqueles que se opondo ao mestre francês, não
deixaram de ter nele um importante interlocutor. Vale ressaltar, ainda, que, se
Deleuze coloca em vários momentos de sua obra o problema do cogito como
começo em filosofia, é mais em conformidade com as discussões em voga na
filosofia contemporânea, do que como caráter original de seu pensamento. Sua
originalidade estará, muito mais, na forma escolhida para abordagem de um
comum problema.
Sem entrar, aqui, nas especificidades assumidas em cada interpretação,
sabe-se bem, que o cogito cartesiano es na origem de uma filosofia da
consciência. Nele, o fundamento da verdade torna-se imanente à subjetividade
humana. E é justamente essa condição assumida que permite dizer que quando
se pretende, como Deleuze o fez, adentrar nesse campo de problemas, nada mais
genuíno do que fazê-lo passando pelo autor das meditações e pelo seu mais
repercussivo conceito.
4
Ver-se-á, enfim, que a posição assumida por Deleuze em
relação ao cogito traz consigo conseqüências importantes dentro da crítica à
3
Em atenção a essa questão, ver: ALLIEZ, Eric. A assinatura do mundo: o que é a filosofia de
Deleuze e Guattari. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994, p. 15-16.
4
Conforme a essa posição, Alliez, comentando Deleuze, afirma que: “É Descartes que
encontramos na primeira desaceleração asseverando em seguida que seria “Inútil citar aqui
Schelling, Hegel, Husserl ou Heidegger: é a partir de Descartes que a história a que pertencemos
lança a questão da filosofia, subordinando o seu exercício a este ‘ponto singular onde o conceito e
a criação se remetem um ao outro” ( Alliez, 1994: 12).
5
filosofia do sujeito tal como fora implantada na modernidade e retomada na
fenomenologia de Husserl. Nas palavras de Bento Prado Júnior, essa consistiria
fundamentalmente numa crítica ao:
Sujeito essencialmente representativo e submetido ao regime de
identidade, arque unificadora e ntese prévia da experiência
capaz de exorcizar toda forma de diferença rebelde. Trata-se de
inverter a linha de pensamento, para levá-la para algo como um
camporévio, pré-subjetivo e pré-objetivo.
5
Posta a semente da discussão, divisar-se-á espontaneamente nesse
trabalho algumas questões que incitam essa investigação. Questões tais como: o
que reside na base da denúncia deleuziana do cogito em sua formulação primeira
por Descartes e sua posterior retomada pela tradição das filosofias do sujeito? O
que significa, para Deleuze, colocar o cogito sobre um plano de imanência”? E
por último, e não menos importante, quais as conseqüências dessa revisão do
lugar do cogito, ou antes, o cogito como lugar? Estas questões serão abordadas,
aqui, menos enquanto busca de abarcadoras respostas, mas como nova forma de
colocação de um problema que parece persistir na filosofia, principalmente em
estudos apontados na primeira metade do século XX, acerca do que deveria
constituir um campo transcendental pré-subjetivo e pré-objetivo, que no
pensamento Deleuze assumirá, no limite, o nome de plano de imanência. Campo
esse que será utilizado por Deleuze para denunciar que há, a partir da formulação
do Cogito, toda uma história de subversão da idéia de imanência calcada em uma
imagem subjetiva do pensamento.
5
PRADO JÚNIOR, Bento. A Idéia de “plano de imanência” in: Gilles Deleuze: uma vida
filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000, p.34.
6
Dito isso, essa pesquisa buscará, como possibilidade de abordagem do
tema, estender o alcance da afirmação de Deleuze em O que é a filosofia?,
revisitando uma linha argumentativa que percorre seus textos. Estabelecido o
caminho, a composição do trabalho passa a ter três momentos: (1) investigação
dos argumentos de Deleuze que defendem um campo transcendental pré-
subjetivo como condição para se pesar a gênese subjetiva; (2) apresentação da
crítica deleuziana ao primeiro princípio das filosofias do sujeito, partindo do
primado do Cogito como começo em filosofia; (3) re-Afirmação da idéia de plano
de imanência e análise dos conceitos envoltos nesse plano, assim como, das
novas terminologias que substituem as idéias de subjetividade e consciência.
No primeiro capítulo investiga-se no pensamento de Deleuze, sua
intenção de determinar um campo transcendental ou plano de imanência como
condição prévia, anterior tanto a sujeitos como objetos. Vê-se que uma das
principais preocupações demonstradas por Deleuze foi a de traçar um caminho
que proporcione uma inversão das filosofias da reflexão baseadas na primazia do
sujeito. Para realização desse projeto ele irá fixar-se na idéia primeira de tal
campo transcendental a partir do qual se divisará um plano fundamental, livre de
qualquer forma de consciência. Intenta-se, ainda, mostrar como um puro plano de
imanência e os acontecimentos imanentes que o povoam devem, para Deleuze,
ser imaginados, na sua liberdade, enquanto virtualidade. O trabalho visa mostrar,
ainda, como a partir de Bergson, uma ultrapassagem da experiência perceptiva,
fundada no presente como local da percepção imediata, conduzirá à experiência
de um plano transcendental que tem o passado puro como condição do avanço do
tempo. Se por um lado tem-se como evidente a realidade de um presente
7
atualmente dado, por outro deve-se assegurar, também, a realidade do passado e
das imagens-lembrança em uma dimensão que, mesmo sendo virtual, não deixa
de ser real, de compor o real em seu quadro dinâmico. Ver-se-á o modo pelo qual,
de acordo com Deleuze, essa conservação do passado como ele é em si em uma
lembrança pura, como pura virtualidade, é a base para o estatuto próprio de uma
ontologia. A partir daí são apresentadas as implicações dos conceitos de virtual e
atual trabalhados na obra de Deleuze, buscando ampliar a compreensão da crítica
do autor à subjetividade, principalmente aquela concebida pelo idealismo clássico
(forma da identidade, supressora das multiplicidades, do móvel, enfim, do
indeterminado). O foco da análise deleuziana é, como contraponto a essa
instância ideal de determinação, a proposta de novos modos de vida atualizados a
partir de um campo de virtualidades.
O segundo capítulo, intitulado O plano do sujeito, opera uma análise, no
momento inicial, do campo problemático ao qual o Cogito é apresentado por
Descartes como solução, resultante ou ponto de partida. Esta análise será
entrecortada pelas reincidentes críticas à Descartes encontradas ao longo das
obras de Deleuze, principalmente, no que diz respeito à constituição de um sujeito
fundante na modernidade, de uma arque unificadora: o começo em filosofia.
Investiga-se, ainda, a argumentação de Deleuze acerca da passagem do cogito
cartesiano ao cogito kantiano, para, por fim, serem tratadas as implicações da
inserção do tempo puro como instância capaz de rachar” o Cogito substancial
cartesiano. Volta-se a atenção, ainda, para as críticas dispensadas por Deleuze à
fenomenologia de Husserl como mantenedora de uma imagem do pensamento
iniciada em Descartes e que inverte a lógica da imanência fazendo desta uma
8
imanência a uma consciência constituinte. O núcleo do capítulo, entretanto, está
na investigação da crítica deleuziana à idéia de fundamento, e com ela o cogito
como começo em filosofia. Crítica essa que conduz ao problema lançado por
Deleuze de um a-fundamento (effondement) do sujeito, que colocará a
necessidade de se afirmar um campo transcendental, no limite um plano de
imanência, de caráter pré-subjetivo e pré-objetivo, como um fundo “atrás” de todo
fundado. “Atrás” inclusive, da própria gênese subjetiva.
O terceiro capítulo, por sua vez, fundamentado na análise do texto A
imanência: uma vida..., tem por fim analisar os possíveis desdobramentos
implicados na afirmação a respeito do estatuto do cogito em O que é a filosofia?.
Como se pode ver nesse texto, Deleuze afirma que, para o cogito assumir o
estatuto de conceito, é “preciso colocá-lo sobre um plano de imanência ao qual
pertence (...) (Deleuze e Guattari, 1992: 267). Mas ainda é possível falar de
subjetividade ou alguma outra forma de individuação no interior de um plano de
imanência? Por fim, esse capítulo intenta, ainda, trazer à discussão os conceitos
de “subjetividade nômade”, “modos de existência”, “hecceidadee “uma vida” que,
juntamente com outros conceitos, formam uma terminologia alternativa frente às
formulações clássicas que acompanham as filosofias do sujeito.
9
CAPÍTULO I – O CAMPO PRÉVIO DA IMANÊNCIA
Sujeito e Campo transcendental
É notório o fato de que o empirismo transcendental de Deleuze abriga no
seu cerne o projeto de determinar um campo transcendental ou plano de
imanência como condição prévia para se pensar a “gênese” ou atualização de
sujeitos e objetos. Em Lógica do Sentido ver-se-á uma concisa caracterização
desse projeto: “Procuramos determinar um campo transcendental impessoal e pré-
individual, que não se parece com os campos empíricos correspondentes e que
não se confunde, entretanto, com uma profundidade indiferenciada. (Deleuze,
1998: 105). O que importa esclarecer, contudo, é que essa proposta de um campo
prévio da experiência não tem sua origem no pensamento do próprio de Deleuze.
Esse tema remonta a discussões anteriormente dadas, como bem o mostrou
Bento Prado Jr. em Presença e campo transcendental, escrito em 1965, publicado
em 1989
6
. Bento Prado mostra nesse texto que algumas controvérsias entorno do
tema foram levadas a termo entre M. Guéroult e Hyppolite, principalmente a
6
Cf. PRADO JÚNIOR, Bento. Presença e campo transcendental Consciência e negatividade
na filosofia de Bergson. 1ª ed. São Paulo, EDUSP, 1989, p. 132-134; 145-146.
10
despeito das questões que envolvem o aparecimento da tese desse campo pré-
subjetivo e pré-objetivo (Fichte ou Bergson?). Sua exposição mostra que, por um
lado, na posição defendida por Hyppolite, tem-se a sugestão de que a origem de
um tal campo anterior (neutro) aos desdobramentos das teses e das oposições
metafísicas (realismo-idealismo), estaria ligado ao pensamento de Fichte, onde
seria possível encontrar uma formulação dentro da qual o próprio “eu
transcendental” é gerado a partir de um campo pré-objetivo e pré-subjetivo (Prado
Jr, 1989: 132). Por outro lado, tomando uma posição diversa, encontrar-se-á
Guéroult, para o qual, o desenvolvimento de tal campo teria sua razão de ser nas
figuras de Berkeley e Bergson. De todo modo, Bento Prado propõe, fundamentado
em Goldschmidt, que o próprio Hyppolite provavelmente teria em mente Matéria e
Memória, de Bergson, ao tratar a constituição da subjetividade a partir de um
campo transcendental pré-subjetivo (Prado Jr, 1989: 133). Independente do
resultado dessa contenda e da origem última dessa idéia parece bem razoável
pensar que Deleuze tenha encontrado em Bergson, mais especificamente no
primeiro capítulo de Matéria e Memória, uma rica fonte para seus conceitos de
campo transcendental e de plano de imanência, que é Bergson (e, salvo
diferenças, Sartre) que se encontra sempre referido quando há exposições desses
termos no texto deleuziano.
Dito isso, ver-se que a determinação de um tal campo transcendental
fica desdobrada em dois propósitos na ontologia deleuziana
7
. Por um lado, o
7
Existem fortes controvérsias acerca da existência ou não de uma Ontologia em Deleuze. François
Zourabichvili chega a firmar que todos que falam de ontologia a propósito de Deleuze cometem
um contra-senso completo, ouo sabem o que significa ontologia”. In ZOURABICHVILI. Deleuze
e a questão da literaridade. Educação & Sociedade, Campinas, vol. 26, n. 93, p. 1309-1321,
11
campo transcendental, atendendo a um propósito crítico, possibilita a Deleuze
esquivar-se da sombra de uma tradição que se apega a uma imagem do
pensamento ou modelo de recognição presente, comumente, em uma corrente
dogmática da filosofia seguida por pensadores como Descartes, Kant, Hegel,
indo até mesmo à fenomenologia de Husserl. Segundo esse autor, as filosofias
baseadas nessa imagem do pensamento acabaram valorizando, essencializando
ou universalizando a recognição como modelo, desconsiderando o caráter
meramente estatuário de uma convenção assumida por uma tradição do
pensamento filosófico.
8
Essa crítica mostra como a imagem do pensamento vê-se
vítima de uma falácia de autoridade que decalca o transcendental dos caracteres
empírico, não se abrindo, portanto, ao puro terreno do transcendental: condição de
possibilidade da experiência real. E a partir daí segue-se, de acordo com Deleuze,
a reificação do bom senso e do senso comum. Por outro lado, o desvelamento ou
determinação de um tal campo transcendental possibilita a esse autor uma segura
abordagem da gênese ou da atualização que envolve indivíduos, sujeitos e
objetos; assim como, expõe o modo pelo qual, segundo sua crítica, o
transcendental é decalcado do empírico; finalmente, traça a fecunda linha que
envolve a criação de novos modos de vida: palavra de ordem na filosofia
Set./Dez. 2005, p.1316. Esta posição não é corroborada por Alain Badiou em Deleuze: O Clamor
do Ser. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. Tampouco é a posição assumida por Eladio Craia em:
Deleuze e a Ontologia. In. Gilles Deleuze e a questão da técnica. Campinas: Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas, UNICAMP, 2003, Tese (doutorado), p.97-183. Onde se pode ver a afirmação
incisiva de que “Deleuze postula uma ontologia. Dita ontologia é uma das mais ricas em densidade
e rigorosidade especulativa, bem como uma das mais prolíficas em conseqüências filosóficas dos
últimos anos. Poder-se-ia dizer que a ontologia deleuziana acrescenta uma nova dimensão
reflexiva à recaracterização da interrogação pelo Ser, e, portanto de toda a preocupação ontológica
operada na filosofia do século XX a partir do pensamento de Heidegger”.
8
Embora reiterada em outros locais, a crítica de Deleuze à recognição como um modelo do
pensamento filosófico aparece mais detidamente em A Imagem do Pensamento, Capitulo III de
Diferença e Repetição.
12
deleuziana.
Ao descrever seu campo transcendental como um campo transcendental,
fica claro em Deleuze, a intenção de manter um vínculo inicial, pelo menos no que
diz respeito à adoção num primeiro momento da terminologia, com o trabalho de
Descartes, Kant e o idealismo alemão pós-kantiano, assim como, com a
fenomenologia de Husserl. Muito embora a passagem desse campo
transcendental ao plano de imanência implique uma nova opção terminológica ou
conceitual, além, é claro, de uma mudança significativa do ponto de vista de uma
radicalização da crítica às filosofias da consciência, como deverá ser apontado
ainda aqui. Sabe-se muito bem que para descrever algo como transcendental é
preciso assinalá-lo de modo a justificar a possibilidade de uma forma de
experiência. Tal tradição é iniciada com Descartes, o descobridor do domínio
seguro da auto-afirmação do “Eu penso”. Vê-se, pois, que, em virtude de o Eu
penso, logo sou” não ser uma verdade que pode ser derivada da experiência,
deve ser referido, portanto, como transcendental. Porque a certeza do “Eu penso”
não é a certeza da proposição representacional na qual o referente e o ato de
referenciação são distintos, este deve ser entendido como uma forma de
afetividade, auto-reflexão, ou auto-afecção. Note-se que diferentes proposições
representacionais existem sempre onde uma fenda entre o ato de referência e
o que é referenciado, no entanto, Descartes parece conceber as proposições
transcendentais em termos de uma identidade entre o referente e o ato de
referência. De todo modo, a partir de Descartes, e passando pelo idealismo
alemão e pela fenomenologia, pertencentes à tradição apontada por Deleuze,
todos levam a cabo uma reflexão na direção tal que a existência é determinada de
13
maneira a conter universalidade e necessidade para todas as consciências. À
prática da filosofia transcendental, então, alia-se a prática de um modo de reflexão
hábil a justificar a crença na existência da consciência, fundada na certeza do “Eu
penso”. Desse modo, uma filosofia que não esteja de acordo, que se ponha na
contramão e que não se faça legitimada em termos de uma imanência da
existência à consciência, será referida como especulativa; e mais ainda, uma
filosofia que rejeite essa possibilidade de conhecimento será apontada
negativamente como cética. Tais formas de filosofia serão consideradas
dogmáticas na medida em que se esforçam em conceber a existência como
estando fora da consciência ou em si mesma.
9
Mas numa oposição a essa forma do pensamento, em Diferença e
Repetição Deleuze i apresentar uma crítica dizendo que A diferença não é o
diverso. O diverso é dado. Mas a diferença é aquilo pelo qual o dado é dado. É
aquilo pelo qual o dado é dado como diverso. A diferença não é o fenômeno, mas
o númeno mais próximo do fenômeno(Deleuze, 2000: 361). Em outras palavras,
a diferença é mais profunda que o diverso presente. O diverso é múltiplo, distinto,
diferente, muitos, porém forma uma multiplicidade extensiva, espacial,
sucessiva, cronológica, dada; a diferença forma, ao contrário, uma multiplicidade
intensiva, intensa, de coexistência, virtual, na qual o dado é dado como diverso e
na qual o diverso tem sua razão suficiente como relação diferencial. A diferença se
no dado, é o mais próximo do que difere, contudo não pode estar dada em si
mesma porque é um diferir, um continuum heterogêneo, uma variação sem
9
Para a compreensão dos fundamentos da crítica ao ceticismo e ao dogmatismo ver: KANT,
Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. A. Morujão, Lisboa: Fundação C. Gulbenkian, 2001,
BXXXI-BXXXVII.
14
identidade. Uma diferença em si mesma, uma multiplicidade diferencial em si
mesma, à qual a multiplicidade do diverso é imanente, é a imanência, um mundo
intenso. Note-se que, aqui, a diferença em Deleuze aparece como homônimo
deste campo transcendental; e o diverso, como é o caso, nomeia de outra forma, o
campo empírico correspondente. Afirmar, consequentemente, que essa diferença
não é o dado, mas aquilo pelo qual o dado é dado é, também, afirmar que a
diferença é o transcendental; e é esta, a condição sob a qual a experiência real é
constituída mediante atualizações.
10
A existência imanente, aqui, não está
fundada em uma forma qualquer de consciência, mas é a própria diferença
transcendental.
Em um apontamento posterior, em Lógica do Sentido, Deleuze retoma a
idéia de campo transcendental afirmando que:
Este campo não pode ser determinado como o de uma
consciência: apesar da tentativa de Sartre, não podemos
conservar a consciência como meio ao mesmo tempo em que
recusamos a forma da pessoa e o ponto de vista da individuação.
Uma consciência não é nada sem síntese de unificação, mas não
ntese de unificação de consciência sem forma do Eu ou
ponto de vista da individuação (Ego) (Deleuze, 1998: 105).
10
Deleuze caracteriza tal projeto em Diferença e repetição em termos da determinação das
condições da experiência real em contraposição à experiência possível. Nas palavras do próprio
Deleuze: “Opusemos a representação a uma formação de outra natureza. Os conceitos
elementares da representação são as categorias definidas como condições da experiência
possível. Mas estas são muito gerais, muito amplas para o real. A rede é tão frouxa que os maiores
peixes passam através dela. Então, não é de se admirar que a Estética se cinda em dois domínios
irredutíveis, o da teoria do sensível, que retém do real a conformidade com a experiência
possível, e o da teoria do belo, que recolhe a realidade do real na medida em que ela se reflete em
outra parte. Tudo muda quando determinamos as condições da experiência real, que não são mais
amplas que o condicionado e que, por natureza, diferem das categorias: os dois sentidos da
Estética se confundem a tal ponto que o ser do sensível se revela na obra de arte ao mesmo
tempo em que a obra de arte aparece como experimentação” (Deleuze, 2000: 138-139).
15
Precisamente aqui nessa caracterização do campo transcendental, surge
a questão que conduz à intricada rede de conceitos deleuziana. Ao contrário de
outros pensadores como Descartes, Kant e Husserl, apóstolos de uma tradição da
filosofia do sujeito que consideram que imanência é imanência a um sujeito
pensante, Deleuze rejeita essa posição e afirma contrapositivamente que
imanência é somente imanência a si mesmo; se fosse imanente a algo, seria
transcendência e não mais imanência.
Deleuze retoma esse ponto novamente em Cinema I, onde, comparando
Husserl e Bergson, ele afirma que, cada um tem seu próprio grito de guerra: toda
consciência é consciência de algo (Husserl), ou ainda mais forte, toda consciência
é algo (Bergson)” (Deleuze, 1985: 89-90). Tem-se que, o ato de tomada de
consciência é secundário. É a relação imediata entre cada coisa como devir que
permite que uma consciência venha a se desenvolver. E é esse o sentido da
oposição sugerida por Deleuze entre a tendência fenomenológica e a de Bergson.
Ele chama a atenção, ainda, para o fato de que a consciência não pertence a um
sujeito, mas, ao contrário, o sujeito pertence à consciência. Porém, se imanência é
somente imanência a si mesma e não a uma subjetividade transcendental, com
que direito, então, Deleuze afirma a existência de algo como a imanência? E este
campo transcendental não teria ares de uma hipótese especulativa que pressupõe
a existência de um conhecimento afastado da nossa consciência, afastado da
certeza do “Eu penso”? Ora, como se sabe, o rigor e a certeza são as marcas
maiores das filosofias da reflexão nas quais as afirmações são medidas pela
imanência do “Eu penso”, e é justamente aqui que Deleuze parece transgredir
essa exigência ao falar de um domínio da experiência que precede a auto-
16
imanência da subjetividade transcendental, sua auto-posição.
11
As perguntas
ecoam: que direito tem o autor de afirmar tal imanência? Seria o pensamento de
Deleuze mais um sistema especulativo sem a devida base e condenado a existir
como um castelo em nuvens flutuantes? A posição assumida nesse trabalho é
exatamente a contrária: tais aferições parecem ser infundadas. A intenção é
mostrar, justamente, que a forma com que ele chega à idéia de um campo
transcendental a partir da própria problemática transcendental kantiana, por si só,
torna vazia a distinção entre crítico e especulativo. Como é possível notar, a
abordagem deleuziana dessa questão aparece fundamentada na dimensão
experiencial do tempo.
Um melhor entendimento dessa questão requer, no entanto, a obtenção
de uma imagem inicial do que consiste isso que está sendo chamado de campo
transcendental, para, posteriormente, apreender como o campo transcendental
aparece partilhando uma relação peculiar com o tempo. Nas delimitações a
agora vistas, o campo transcendental aparece como um plano de imanência
impessoal e pré-individual que não assemelha com seu campo empírico
correspondente; não é um abismo indiferenciado; e precede sujeito e objeto como
condição prévia. Mas esta caracterização permanece, ainda, excessivamente
vaga. Observa-se, na argumentação de Deleuze em Lógica do Sentido, uma
elaboração adicional do campo transcendental:
11
Como na conclusão de O que é a Filosofia, na qual Deleuze alerta: Mesmo o cogito é uma
opinião (...)” (Deleuze, 1992: 267).
17
O que não é nem individual nem pessoal, ao contrário, são as
emissões de singularidades enquanto se fazem sobre uma
superfície inconsciente e gozam de um princípio móvel imanente
de auto-unificação por distribuição nômade, que se distingue
radicalmente das distribuições fixas e sedentárias como
condições de sínteses de consciência. As singularidades são os
verdadeiros acontecimentos transcendentais... Longe de serem
individuais ou pessoais, as singularidades presidem à gênese dos
indivíduos e das pessoas: elas se repartem em um ‘potencial’ que
não comporta por si mesmo nem Ego (moi) individual, nem EU
(je) pessoal, mas que os produz atualizando-se, efetuando-se, as
figuras dessa atualização não se parecendo em nada ao potencial
efetuado (Deleuze, 1998: 105).
Eis a relação entre campo transcendental e tempo: os acontecimentos
comportam em si uma simultaneidade do tempo, que divide o presente
constantemente em passado e futuro, arrastando-o nas duas direções ao mesmo
tempo (puro devir).
12
Este é o estatuto dos acontecimentos: estão sempre em vias
de ser ou ocorrera, mas nunca o flagrados no momento mesmo de sua
efetuação.
13
Deve-se notar, acima de tudo, que as “singularidades nomádicas” que
povoam o campo transcendental são definidas em termos de potencialidade ou
virtualidades o que justifica a maneira pela qual elas estão aptas à presidir sobre a
individuação no processo de atualização. Seguindo esse raciocínio Deleuze
esclarece:
O que é um acontecimento ideal? É uma singularidade. Ou
melhor: é um conjunto de singularidades, de pontos singulares
que caracterizam uma curva matemática, um estado de coisa
físico, uma pessoa psicológica e moral. São pontos de retrocesso,
de inflexão etc.; desfiladeiros, nós, núcleos, centros; pontos de
12
Cf. Primeira Série de Paradoxos: Do Puro Devir, em (Deleuze, 1998: 1-3)
13
Leia-se: E o angustiante do acontecimento puro está, justamente, em que ele é alguma coisa
que acaba de ocorrer e que vai se passar, ao mesmo tempo, nunca alguma coisa que se passa. O
X` de que sentimos que isto acaba de se passar, é o objeto da “novidade”; e o X`que sempre vai se
passar é o objeto do conto. O acontecimento puro é conto e novidade, jamais atualidade (Deleuze,
1998: 65-66).
18
fusão, de condensação, de ebulição etc. pontos de choro e de
alegria, de doença e de saúde, de esperança e de angústia,
pontos ‘sensíveis’, como se diz (Deleuze, 1998: 55).
Em todos esses exemplos, a idéia de uma espécie de energia potencial
sendo transmitida possibilitará uma explicação, por parte de Deleuze, da gênese
ou atualização, no sentido de individuação, de sujeito e objeto à partir do campo
transcendental. Estas singularidades contêm em si o potencial para uma nova e
criativa forma de atualização do indivíduo, devido, entre outras, a ambas as
dimensões energético e temporal e à auto-unificação que delas advém.
14
Em A
imanência: uma vida, Deleuze i clarear ainda mais esse conceito de campo
transcendental quando diz que esse ele não pode ser tomado como o elemento da
sensação, por um empirismo simples, sobretudo por ser a sensação somente um
corte na corrente de consciência absoluta. Para ele, por mais próximas que duas
sensações estejam, uma em relação à outra, é, antes, a passagem de uma à outra
como devir que revela toda a potência de um empirismo transcendental que
caracteriza o campo em questão (Deleuze, 1997: 15).
O que se observa nesse argumento, e isso se repete em outros textos, é
como Deleuze aproxima seu campo transcendental do conceito de duração (no
sentido bergsoniano)
15
, e como esse tem uma força virtual própria na forma do
14
Sobre a atualização, (Deleuze, 1998: 113-130).
15
Invertendo uma lógica da percepção que parte de dentro para fora e que se alarga e se perde no
mundo exterior, a experiência interna da duração contrai-se “da periferia para o centro” revelando
uma sucessão de estados que se animam numa “continuidade de escoamento” sempre
prolongáveis uns nos outros. Pode-se notar que é toda uma nova “imagem” marcada pelos signos
da duração, em oposição ao procedimento espacializador da análise, que está em jogo nas
definições da experiência intuitiva dos estados internos; experiência propriamente metafísica, vale
ressaltar. Aliás, sem entrar aqui em maiores aprofundamentos, pode-se afirmar que a idéia de
duração é vital para o desenvolvimento do pensamento metafísico de Bergson. Ela está presente
como condição de possibilidade, na medida em que a intuição nos coloca em contato diretamente
com a parte movente do real, com o tempo em seu escoar constante. In BERGSON, H. Introdução
19
intervalo originado do movimento de uma sensação para outra. Além de Espinosa,
a vertigem da imanência da qual tantos filósofos tentam escapar, Bergson
também, segundo ele, teria permanecido naquele plano, pré-subjetivo e pré-
objetivo, anterior as querelas levadas a termo pelas dicotomias sujeito/objeto,
realismo/idealismo.
O principio de Matéria e Memória traça um plano que recorta o
caos, ao mesmo tempo movimento infinito de uma matéria que
não para de se propagar e a imagem de um pensamento que não
para de fazer proliferar por toda parte uma pura consciência de
direito (não é a imanência que é imanência ‘a’ consciência, mas o
inverso) (Deleuze e Guattari, 1992: 66-65).
Não obstante, tão internamente coerente como a enunciação de um
campo transcendental em Deleuze, dir-se-á que sujeitos, indivíduos ou pessoas
possuem existência, de tal modo que se torna difícil, de imediato, aceitar uma
relação com esse campo transcendental. E é, sobretudo, essa condição de auto-
proteção como existência individuada, característica marcante da subjetividade,
que reforça a necessidade de se considerar a relevância dessa surpreendente
descrição do campo transcendental no pensamento deleuziano. Para fugir a uma
possível posição dogmático-especulativa, o autor francês busca apoio,
surpreendentemente, na crítica kantiana. Ele atenta, como será visto, para a
maneira pela qual o sujeito a partir de Kant, o Eu penso”, é, ele mesmo, rachado
ou fendido pela forma pura do tempo, fazendo entrever, nas suas fendas, toda a
força de um campo transcendental, muito embora, segundo Deleuze, o autor
à Metafísica. In: O Pensamento e o Movente: ensaios e conferências. Trad. Bento Prado Neto.
São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.188-189. Ademais, explorar extensivamente, aqui, o conceito
de duração, exigiria um desvio sobremodo longo.
20
alemão não tenha permanecido nesse campo pelo recurso à forma sintetizante de
uma subjetividade constituinte.
Vale notar que há, ainda, um outro nome que aparece ligado á idéia de
campo transcendental ou plano de imanência no empirismo transcendental de
Deleuze, a saber: eterno retorno
16
. No eterno retorno assistir-se-á, segundo a
crítica deleuziana em Diferença e Repetição, um a-fundamento ou descoberta de
um fundo atrás de outro fundo, que ultrapassa o fundamento em direção a um
sem-fundo, a-fundamento universal que gira em si mesmo e faz retornar o por-
vir
17
(Deleuze, 2000: 137;172). E em outro momento Deleuze apresenta de forma
concisa sua retomada do eterno retorno e suas implicações dentro da perspectiva
descrita, afirmando que:
(...) a identidade não é primeira, que ela existe como princípio,
mas como segundo princípio, como algo tornado princípio, que
ela gira em torno do Diferente, tal é a natureza de uma revolução
copernicana que abre à diferença a possibilidade de seu conceito
próprio, em vez de mantê-la sob a dominação de um conceito em
geral já posto como idêntico. Com o eterno retorno, Nietzsche não
queria dizer outra coisa. O eterno retorno não pode significar o
retorno do idêntico, pois ele supõe, ao contrário, um mundo (o da
vontade de potência) em que todas as identidades prévias são
abolidas e dissolvidas. Retornar é o ser, mas somente o ser do
devir. O eterno retorno não faz ‘o mesmo’ retornar, mas o retornar
constitui o único Mesmo do que devem. Retornar é o devir-
idêntico do próprio devir. (Deleuze, 2000: 100)
Parece importante recompor, aqui, então, todas as determinações que
Deleuze atribui ao campo transcendental quando da descrição do eterno retorno:
16
controvérsias acerca da interpretação desse conceito por Deleuze dentro da história da
filosofia. A solução, longe de resolver a controvérsia, está muito mais em tomar esse conceito na
obra do autor francês dentro da idéia de colagem na filosofia. Cf. MACHADO, Roberto. Deleuze e
a filosofia. Rio de Janeiro: Graal, 1990, 15-16.
17
Uma crítica ao fundamento assim como à impossibilidade de um ponto de partida, pode ser visto
em Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 289.
21
primeiro, ele afirma que o eterno retorno é o devir-idêntico do diferente trata-se
aqui de uma alusão do autor ao processo de individuação que tem lugar como
resultado da atualização de singularidades-acontecimentos. Segundo, esta
diferença que aparece precedendo o idêntico não é outra coisa senão a diferença
interna, a multiplicidade duracional, a diferença sem negação, negatividade ou
carência que caracteriza a corrente do tempo. Finalmente, em terceiro lugar nessa
rememoração, divisa-se essa diferença interna precedente, que pode ser
identificada, de forma imediata, através de uma aproximação com as idéias
deleuzianas de acontecimento ou singularidades. Em outras palavras, o eterno
retorno é a identidade das diferenças livres que circulam na natureza imanente. O
eterno retorno é o Mesmo do “caosmos” (caos constituído), porém um Mesmo que
se diz do que diverge, formando novos mundos, ele não é nada além do que o
caos, potência de afirmar o caos(Deleuze, 1998: 269). Esta é a razão que leva a
pensar que o eterno retorno terá em Deleuze mais importância como característica
da natureza imanente que como instância de decisão ética. O eterno retorno é
mais uma instância cosmológica do que ética, e serve para dar um dinamismo à
univocidade, para fazer da univocidade não uma afirmação do ser, mas uma
afirmação que se afirma constantemente, constituindo essa afirmação da
afirmação seu ser mesmo. Por fim, o que afirma o eterno retorno é a consistência
da diferença caótica da natureza imanente.
E levando adiante o exame da natureza do campo transcendental, o
caminho que Deleuze toma para sua maior elucidação advém, como fora dito, do
pensamento de Kant. Eis o que diz o autor em Diferença e Repetição:
22
se o eterno retorno é o pensamento mais elevado, isto é, o mais
intenso, é porque sua extrema coerência, no ponto mais alto,
exclui a coerência de um sujeito pensante..., Convém que nos
interessemos menos por aquilo que se passa antes e depois de
Kant... momento furtivo fulgurante que nem mesmo em Kant se
prolonga, que se prolonga ainda menos no pós-kantismo... pois,
quando Kant põe em questão a teologia racional, ele introduz, no
mesmo lance, uma espécie de desequilíbrio de fissura ou de
rachadura, uma alienação de direito, insuperável de direito, no Eu
puro do Eu penso: o sujeito se pode representar sua própria
espontaneidade como sendo a de um Outro, invocando, com isto,
em última instância, uma misteriosa coerência, que exclui a sua
própria, a do mundo e a de Deus. Cogito para um eu dissolvido: o
Eu do "Eu penso" comporta, em sua essência, uma receptividade
de intuição em relação à qual, desde então, Eu é um outro.
(Deleuze, 2000: 125-126)
A dimensão de Kant a que Deleuze se refere aqui pode ser encontrada na
Dedução transcendental e nos Paralogismos na Crítica da Razão Pura. Kant
mostra ali que o eu não pode ser tratado como uma relação imediata de
espontaneidade por ele mesmo de maneira que poderia se colocar diretamente
diante de sua própria realidade numenal, mas, ao invés disso, o eu também é uma
aparência no interior do tempo interno da consciência e somente pressupõe a
espontaneidade do “Eu penso. Portanto, como fora postulado a espontaneidade
do “Eu penso somente no fluxo do tempo interno da consciência, o Eu torna-se,
por si mesmo, Outro, não podendo, com isso, afirmar por mais tempo a certeza
imediata do eu que Descartes a este desejou atribuir. No mais, o que há, todavia,
de surpreendente no comentário de Deleuze sobre Kant, é o modo pelo qual ele
contrapõe ao sujeito kantiano dissolvido, o eterno retorno ele mesmo e, matatis
mutandis, o campo transcendental.
Retomando a questão, esse ponto é sublinhado em Diferença e
Repetição, onde Deleuze afirma que o fundamento da crítica dirigida por Kant ao
23
Cogito cartesiano consiste em objetar contra este que é impossível fazer com que
a determinação incida diretamente sobre o indeterminado e, citando Kant
18
, ele
completa: Na consciência de mim mesmo, no simples pensamento, sou o próprio
ser, mas deste ser ainda nada me é dado para o pensamento”. O
encaminhamento desta argumentação mostra que Kant acrescenta o tempo como
terceiro valor lógico como a forma pela qual o indeterminado (eu sou) é
determinado (pela determinação Eu penso). E é justamente esse terceiro valor
lógico, o tempo, segundo Deleuze, que faz da lógica uma instância transcendental,
que coloca Kant no puro terreno da diferença transcendental. Com efeito, é aqui
que Kant descobre essa diferença, a diferença interna que relaciona a priori o ser
e o pensamento um ao outro”. Ele a encontra entre a determinação e o que ela
determina:
As conseqüências disto são extremas: minha existência
indeterminada pode ser determinada no tempo, como a
existência de um fenômeno, de um sujeito fenomênico, passivo
ou receptivo, aparecendo no tempo... mas somente como a
afecção de um eu passivo que sente seu próprio pensamento,
sua própria inteligência, aquilo pelo qual ele diz EU, exercer-se
nele e sobre ele, mas não por ele. (Deleuze, 2000: 164)
Em resumo, muda-se de uma consciência pessoal do tempo para o tempo
impessoal do campo transcendental. Com essa diferença interna constituindo o
determinável através da relação do indeterminado (“Eu sou”) com o
completamente determinado (“Eu penso”), remeter-se-á, salvo engano, à diferença
transcendental que caracteriza a duração e que Deleuze atribui ao campo
18
Referência à Observação geral relativa à passagem da psicologia racional para a cosmologia
constante no Capitulo I, Livro Segundo da Dialética Transcendental na Crítica da Razão Pura,
B429.
24
transcendental. Parece possível dizer que, aqui nos comentários dessa dissolução
do sujeito em Kant, está, precisamente, a argumentação que redime Deleuze de
uma possível crítica de que a sua filosofia recairia numa especulação dogmática.
Assim, a constituição fundamental do conceito de campo transcendental em
Deleuze deriva da observação da passividade do sujeito para com ele mesmo, da
maneira com a qual ele se torna Outro para si mesmo e da maneira com a qual ele
é no tempo e não o tempo é nele. Tais observações possibilitam a Deleuze
manter, simultaneamente, que a percepção dessa idéia pode ser atingida somente
através de uma meditação sobre o sujeito, mas que essa mesma idéia excede
todo primado do sujeito. O tempo não está no sujeito, mas o sujeito está no tempo.
Isto é suficiente para trazer a terceira revolução copernicana na qual o sujeito não
é o primeiro termo da reflexão transcendental, apesar de ser aquele com o qual a
reflexão transcendental deve iniciar. Como resultado deste retorno do sujeito ao
interior do tempo, pode-se, agora, conceber a imanência como imanência a si
mesma e por si mesma, e não mais como imanência a uma consciência.
O tempo do virtual ou a síntese transcendental de um passado puro
Sabe-se bem que ao longo da obra deleuziana sempre uma profunda
admiração pelo pensamento de Bergson. Com efeito, Deleuze encontrará nesse
autor o interlocutor primeiro no que tange ao termo virtual.
19
E como será
explicitado, esse termo é fundamental para entender o quadro geral da
19
Ver, por exemplo, A distinção do virtual e do possível em Diferença e Repetição, p. 346-347.
25
composição de sua idéia de campo transcendental e de plano de imanência já
que, como ele afirma em A imanência: uma vida..., o plano de imanência é em si
mesmo virtual
20
. E há, certamente, toda uma relação com o tempo envolvida
nesse ínterim, como bem o mostrou Peter Pál Pelbart.
21
Vê-se, de fato, que quase
todos que se propõem a ler Bergson encontram inevitavelmente na sua filosofia a
idéia de um tempo contínuo que tem a passagem como marca maior.
22
E é
certamente esse, para Deleuze, um dos pontos fundamentais da atratividade da
filosofia bergsoniana. Mesmo porque, pensar o devir sempre foi o projeto da
filosofia deleuziana e é justamente do pensador da duração que ele herda grande
parte do repertório conceitual que anima sua empresa.
Apesar da idéia de tempo e suas implicações serem uma constante no
conjunto da sua obra, é principalmente em Matéria e Memória que Bergson leva
às mais altas conseqüências sua exposição, sobretudo no que diz respeito à
presença do tempo no âmbito da constituição de um campo anterior às teses
idealistas e realistas. Campo esse que é condição para se pensar uma gênese”
da subjetividade fundada no elemento de uma expansão qualitativa, interna, da
retenção temporal: da duração, da multiplicidade não atual.
Isto posto, o que se busca mostrar, aqui, é o modo pelo qual, no terceiro
capítulo do referido texto, Bergson, através de uma ultrapassagem da experiência
perceptiva fundada no presente como local da percepção imediata, conduz a um
20
DELEUZE, Gilles. A imanência: uma vida..., p.18.
21
É bem esclarecedora a apresentação desse tema da obra de Deleuze e sua relação com o texto
de Bergson em “Bergson e a diferença”, Parte I, Capítulo 2 da tese de Peter l Pelbart: O tempo
não-reconciliado: imagens de tempo em Deleuze. São Paulo: USP-FFLCH, 1996. Tese Publicada
posteriormente como: O tempo não-reconciliado. São Paulo: Perspectiva, 2004.
22
Sobre essa idéia do decorrer do tempo como princípio de toda a concepção bergsoniana do
tempo, ver o artigo de WORMS, Frederic. A concepção bergsoniana do tempo. In: Dois Pontos,
Vol. 1, número 1, 2004.
26
plano que é transcendental que mantém o “passado puro” como condição do
avanço do tempo: fator primordial para se pensar o porvir. Tratar-se-ia, aqui, para
Deleuze, de uma ultrapassagem da experiência em direção às condições da
experiência, mas sob a distinção de que nessa sua ntese transcendental de um
passado puro”, conforme os termos deleuzianos empregados em Diferença e
Repetição, Bergson não se detém numa investigação das condições da
experiência possível, mas adentra mesmo no campo da experiência real;
fundamento do empirismo transcendental levado a termo no pensamento
deleuziano.
Para início da exposição faz-se necessário, antes de qualquer coisa, ater
a um ponto fundamental da diferenciação feita por Bergson entre matéria e
memória, percepção e lembrança pura, presente e passado. Para ele, o que
entre esses duplos, longe de ser uma diferença de grau, é, mais que isso, uma
diferença de natureza.
23
Perguntar-se-á: quais as implicações dessa
diferenciação? E mais ainda, estabelecida a diferença como diferença de
natureza, qual a novidade introduzida por Bergson no estudo da relação entre
esses duplos?
Para ensaiar uma maneira de compreender o que se acaba de afirmar,
assume-se como ponto de partida que é possível perceber características comuns
nos elementos que fazem com que cada um dos termos que compõem os duplos
acima citados difira de natureza de seu par correlato. Por conseguinte, os esforços
concentrarão no último desses, a saber: presente e passado, mostrando o que
23
Sobre a temática da diferença na obra de Bergson, Cf. leitura de DELEUZE, Gilles. La
conception de la différence chez Bergson. In: Les études bergsoniennes. Paris: Presses
Universitaires de France, 1956, Vol. IV.
27
concerne a cada um dentro de uma teoria geral da percepção concreta que,
segundo Bergson, seria síntese viva da percepção pura e da memória pura.
Aquela marcando um campo primeiro, ideal de direito, e esta implicando em um
primeiro termo da gênese possível de uma consciência.
Tomar-se-á de início a idéia de que “Meu presente é sensório-motor.
Essa tese e todas as suas implicações são, conforme se pode notar, o centro
nevrálgico ao qual conduz os dois primeiros capítulos de Matéria e Memória. Mas
o que exatamente quer dizer isso? Nas palavras de Bergson:
Meu presente, portanto, é sensação e movimento ao mesmo
tempo; e, já que meu presente forma um todo indiviso, esse
movimento deve estar ligado a essa sensação, deve prolongá-la
em ação. Donde concluo que meu presente consiste num sistema
combinado de sensação e movimento. (Bergson, 1999: 161-162)
Entendido assim, esse indivisível presente tem uma de suas faces
apoiada sobre o passado imediato que, por ser constituído por uma sucessão
muito longa de estímulos elementares, é, por si só, sensação. Sua outra face ele
inclina em direção ao futuro como “momento” próprio da atividade, prolongando,
de forma a efetivar num movimento, sensação em ação.
Dando continuidade à análise da proposição anterior, Bergson leva a uma
segunda tese que afirma ser o “meu presente” “a consciência que tenho de meu
corpo” (Bergson, 1999:162). Meu corpo aparece aqui como instância que
experimenta sensações e ao mesmo tempo executa movimentos. Centro de ação
ou estado atual do devir, meu corpoocupa o centro de um mundo material que é
o próprio momento presente constituído em virtude de um corte quase instantâneo
28
efetuado pela percepção na massa real em vias de escoamento. Bergson
argumenta ainda que, por ocupar lugar no espaço e por não poder haver no
mesmo lugar várias coisas ao mesmo tempo, esse conjunto de sensações e
movimentos pode ser um conjunto determinado. Retomando nas palavras de
Bergson:
nosso corpo ocupa o centro dele [do mundo material]; ele é,
desse mundo material, aquilo que sentimos diretamente decorrer;
em seu estado atual consiste a atualidade de nosso presente. Se
a matéria, enquanto extensão no espaço, deve ser definida, em
nossa opinião, como presente que não cessa de recomeçar,
nosso presente, inversamente, é a própria materialidade de nossa
existência, ou seja, um conjunto de sensações e de movimentos,
nada mais. (Bergson, 1999:162)
Com efeito, sabe-se, com Bergson, que as sensações atuais são aquilo
que ocupa porções determinadas da superfície de “meu corpo, portanto é da
ordem do presente. Mas o que dizer da lembrança pura, e com ela o passado,
que não diz respeito a nenhuma parte de “meu corpo? Diz-se inicialmente da
lembrança pura, assim como do passado, que ela é “inextensiva e impotente”; não
participa da sensação, esta mesma, extensiva e localizada; conserva-se em
estado de latência como pura virtualidade
24
. A lembrança pura e o passado são de
24
É notável a importância da tese bergsoniana da conservação em estado latente da lembrança
pura, na medida em que essa parece ser para ele a condição para se considerar a possibilidade
dos estados psicológicos inconscientes. Nas suas palavras: “Nossa repugnância em conceber
estados psicológicos inconscientes se deve sobretudo a tomarmos a consciência como
propriedade essencial dos estados psicológicos, de sorte que um estado psicológico não poderia
deixar de ser consciente sem deixar de existir. Mas, se a consciência não é mais que a marca
característica do presente, ou seja, do atualmente vivido, ou seja, enfim, do que age, então o que
não age poderá deixar de pertencer à consciência sem deixar necessariamente de existir de algum
modo. Em outras palavras, no domínio psicológico, a consciência não seria sinônimo de existência
mas apenas de ação real ou de eficácia imediata, e , achando-se assim limitada à extensão desse
termo, haveria menos dificuldade em se representar um estado psicológico inconsciente, isto é, em
suma, impotente” (Bergson, 1999: 165).
29
natureza virtual, só se dirigindo à sensação quando mudam de natureza e se
fazem atuais, mas, justamente aí, não mais são lembrança pura e passado, e
sim, lembrança atualizada em imagem e um presente que convida o passado a
abandonar sua inércia e inserir-se em uma ação útil. Portanto, segundo Bergson,
as imagens atualmente presentes em nossa percepção não são a totalidade da
matéria.
Afirmada a existência virtual da lembrança pura e do passado, deve-se
considerar a possibilidade real de dois tipos de percepção segundo Bergson: a
percepção atual que abarca todos os objetos simultâneos no espaço e a
percepção virtual formada pela disposição de nossas lembranças sucessivas
escalonadas no tempo. A primeira representada por uma linha vertical CI, cujo
extremo toca ao centro a linha horizontal AB da segunda. A questão é que para
Bergson, há uma dificuldade de afirmar a realidade das percepções virtuais, já que
uma consciência, localizada no entre-dois desses planos, parece poder perceber
somente a ponta presente atualmente à consciência, ficando toda a totalidade de
nosso passado fora do campo da percepção presente. Muito embora, apesar de
não se poder perceber também a totalidade dos objetos simultâneos no espaço
representado pela linha AB, não se hesita ao afirmar sua existência. Vejamos aqui
uma passagem que procura esclarecer essa questão:
os objetos escalonados ao longo dessa linha AB representam a
nossos olhos o que iremos perceber, enquanto a linha CI contém
apenas o que já foi percebido. Ora, o passado não tem mais
interesse para nós; ele esgotou sua ação possível, ou só voltará a
ter influência tomando emprestada a vitalidade da percepção
presente. Ao contrário, o futuro imediato consiste numa ação
iminente, numa energia ainda não despendida. A parte não
30
percebida do universo material, carregada de promessas e
ameaças, tem portanto para nós uma realidade que não pode e
nem deve ter os períodos atualmente não percebidos de nossa
existência passada. Mas essa distinção, inteiramente relativa à
utilidade prática e às necessidades materiais da vida, adquire em
nosso espírito a forma cada vez mais nítida de uma distinção
metafísica. (Bergson, 1999: 168)
É dentro deste contexto na obra de Bergson que Deleuze, em Diferença e
Repetição, apresenta o que, para ele, vem ser a segunda síntese do tempo ou a
síntese da memória. Deleuze invoca uma imagem do tempo operando uma
primeira síntese, a do hábito, como síntese de um presente vivo, local da
passagem do tempo, que contrai uns nos outros os instantes sucessivos
independentes; passado e futuro sendo pertencentes a esse presente: o passado
sob a forma de uma retenção contraente dos instantes precedentes e o futuro
como expectativa e antecipação na contração. E, para além da segunda síntese, a
da memória, que será tratada diretamente no texto, tem a terceira síntese do
tempo que traz toda a força de Tânatos e que conduz à forma vazia do tempo.
25
Logo, para além de uma primeira síntese habitual do tempo que funda um
presente vivo como contração de instantes (duração psicológica), temos a síntese
da Memória como fundamento de toda síntese possível do tempo, e que faz com
que o presente passe e impede que este seja co-extensivo ao tempo: o Habito é
a síntese originária do tempo que constitui a vida do presente que passa; a
25
A apresentação das três nteses do tempo é o conteúdo do segundo capítulo de Diferença e
Repetição. Deleuze afirma ali que “... o presente e o passado, nesta última síntese do tempo, são
apenas dimensões do futuro: o passado, como condição, e o presente, como agente. A primeira
síntese, a do hábito, constituía o tempo como um presente vivo, numa fundação passiva da qual
dependia o passado e o futuro. A segunda ntese, a da memória, constituía o tempo como um
passado puro, do ponto de vista de um fundamento que faz com que o presente passe e dele
advenha um outro. Mas, na terceira síntese, o presente é apenas um ator, um autor, um agente
destinado a apagar-se; e o passado é apenas uma condição operando por falta” (Deleuze, 2000:
173-174). Para maiores aprofundamentos na caracterização dessas sínteses do tempo, ver O
tempo da diferença. In (Pelbart, 2004:119-128).
31
Memória é a síntese fundamental do tempo que constitui o ser do passado (o que
faz passar o presente) (Deleuze, 2000: 155-156). E aqui se deve entender por
memória a faculdade transcendental de um passado puro, não menos inventiva do
que rememorativa. Retomando, a ntese passiva da memória constitui o passado
puro (virtual) no tempo e faz do antigo presente e do atual os dois elementos
assimétricos deste passado como tal. E é justamente por isso que é possível falar
de uma síntese transcendental de um passado puro o marcante para Deleuze
em Matéria e Memória.
Deleuze destaca ainda uma série de paradoxos constitutivos de um
passado puro. O primeiro é o paradoxo da contemporaneidade do passado com o
presente que ele foi. O segundo é o da coexistência, em que cada atual presente
não é senão o passado inteiro em seu estado mais contraído, por isso pode-se
dizer que o passado não é uma dimensão do tempo, mas sim a síntese do tempo
inteiro. O terceiro paradoxo é o da preexistência, ele complementa os dois
anteriores e faz com que o elemento puro do passado em geral preexista ao
presente que passa como condição para sua contração. Assim, para Deleuze, “A
síntese passiva transcendental diz respeito a este passado puro do triplo ponto de
vista da contemporaneidade, da coexistência e da preexistência” e “o presente
designa o grau mais contraído de um passado inteiro, que é em si como uma
totalidade coexistente” (Deleuze, 2000: 159).
Para Deleuze, o problema de se afirmar o ser do passado estaria no fato
de não se levar em conta sua diferença de natureza, e não de grau, em relação ao
presente. Por esse engano atribuí-se o ser ao presente, fazendo do passado
aquilo que não é mais; concebe-se mesmo ele, como a degradação do presente.
32
Mas é justamente o presente que não é mais, é ele o puro devir, sempre fora de
si; ele não é, mas age, é ativo, é útil
26
(Pelbart, 1996: 52). O passado que cessou
de agir, de ser útil, em contrapartida, é o único que é, é o em-si do ser que se
conserva, contrariamente ao presente, que este sim se consome e se coloca fora
de si. Deleuze considera, ainda, que essa conservação do passado, como ele é
em si em uma lembrança pura (virtual), é o estatuto próprio de uma ontologia, ao
contrário do caráter meramente psicológico do presente. Desse ponto de vista, a
memória, por sua vez, não é pensada como sendo interior a nós, nós é que somos
“interiores” a uma gigantesca Memória, imemorial e ontológica, Virtual e
inconsciente. Como mostra Peter Pál Pelbart, em seu comentário sobre o tempo
em Deleuze,
(...) quando buscamos uma lembrança, damos um salto no
passado para encontrá-la, mas no passado que não está em nós,
nesse passado eterno, elemento ontológico, condição para a
passagem de todo o presente particular. Salto na ontologia, no
ser em si, no ser em si do passado, Memória imemorial ou
ontológica. É que o passado não vem depois de ter sido presente,
nem pode ser reconstituído pelo novo presente do qual ele é
agora passado. Se assim fosse entre percepção e lembrança não
haveria mais que uma diferença de grau, e não de natureza.
(Pelbart, 1996: 53)
Vê-se distinguido aqui, através da análise da diferença de natureza entre
passado e presente, de um lado, o nível transcendental ou ontológico e, do outro,
o nível empírico ou psicológico. Para Deleuze o que está em evidência nessa
distinção é a forma com que o pensamento bergsoniano implica um salto na
26
Pode ser vista uma apresentação desse tópico da obra de Deleuze e sua relação com o texto de
Bergson em Bergson e a Diferença constante em Peter Pál Pelbart. O tempo não-reconciliado,
1996.
33
ontologia. Sai-se, com efeito de um presente que é psicológico para se colocar no
ser em si do passado que é pura ontologia. É certo que, em função da utilidade, é
preciso que se opere um movimento vetorialmente inverso quando a lembrança
ganha existência psicológica e se insere no presente forçando a atualização, mas
mudando de natureza. Nesse processo de “psicologização”, de virtual, passa a
lembrança ao estado atual; acontece pouco a pouco uma encarnação do passado
que sai do seu Ser impassível e se insere no nível empírico (Deleuze, 1999: 43-
44). Há, como se pode notar, a descrição de um passado em geral que não se
confunde com um passado particular de um presente que foi, mas apresenta-se
mesmo como um elemento ontológico a partir do qual se pode pensar a passagem
do tempo, a passagem de todo presente particular mediante atualização.
Mas o que dizer da consciência psicológica nesse processo todo?
Responde Deleuze:
A consciência psicológica não nasceu ainda (...) A invocação da
lembrança é esse salto pelo qual instalo-me no virtual, no
passado, em certa região do passado, em tal ou qual nível de
contração. Acreditamos que essa invocação exprima a dimensão
propriamente ontológica do homem, ou melhor, da memória (...)
Mas nossa lembrança permanece ainda em estado virtual (...) sob
a invocação do presente, as lembranças não têm a ineficácia
(...) essa atualização tem toda sorte de aspectos, de etapas e de
graus distintos. Mas, através dessas etapas e desses graus, é a
atualização (e somente ela) que constitui a consciência
psicológica (Deleuze, 1999: 49).
Esse é o sentido da revolução operada por Bergson: parte-se logo de início do
passado puro (virtual) e da lembrança para daí se dirigir ao presente particular
(atual) e à percepção.
34
Virtualidade e imanência
Para um bom entendimento do quadro geral da argumentação deleuziana
acerca da constituição de novos “modos de vida” em detrimento de uma forma Eu,
um ego, é preciso atentar, ainda, para o texto L’Actuel et le Virtuel
27
. Nesse
pequeno texto, o autor expõe de forma substancial alguns de seus principais
conceitos, dentre eles, o par que compõe o título: atual e virtual
28
. Esses dois
conceitos permitem dar continuidade a um esboço cartográfico do plano de
imanência, assim como pensar os movimentos infinitos que o perpassam. -se,
pois, que na filosofia de Deleuze, a virtualidade pode ser identificada sem maior
problema com suas idéias de singularidades pré-individuais, com hecceidades e
com o acontecimento. O próprio plano de imanência, como campo intensivo de
individuação, estaria, pois, composto por virtualidades.
27
DELEUZE, Gilles. L’Actuel et le Virtuel. Éd. Flammarion, 1996. Traduzido e anexo à ALLIEZ,
Eric. Deleuze filosofia virtual. Trad. Heloisa B.S. Rocha São Paulo: Ed. 34, 1996. Apresentada
como a versão modificada da palestra que encerrou a homenagem organizada pelo colégio
Internacional de Estudos Filosóficos Trasdiciplináres em 5 de dezembro de 1995, no Rio de
Janeiro (Centro Cultural Banco do Brasil): “Gilles Deleuze: uma vida filosófica”. Neste texto pode-se
ver melhor apresentada a visão deleuziana dos conceitos atual e virtual, muito embora sejam
constantemente retratados em outras obras do autor. Os trabalhos de Alliez foram certamente
pioneiros na exposição desse conceito na obra de Deleuze.
28
Vê-se mesmo que, “Os conceitos de atual e virtual atravessam a obra filosófica de Gilles
Deleuze, desde os trabalhos sobre Henri Bergson até seu último escrito, ‘A imanência: uma vida....
A partir desses conceitos, Deleuze elaborará uma ontologia na medida em que entre o virtual e
o atual um processo positivo de diferenciação, ou seja, uma produção da multiplicidade atual a
partir da multiplicidade virtual do ser, que ele passará a designar por plano de imanência. Ali, o
próprio pensamento se constitui como possibilidade de pensar, sem que haja um eu por trás da
ação de pensar, sem que haja a individuação de um sujeito e de um objeto. Os seres singulares
(multiplicidade atual) seriam fluxos que se recortam do plano de imanência (multiplicidade virtual),
que se conjugam com outros fluxos, são relações pré-subjetivas, multiplicidades que devem e só
se produzirão como singularidades como resultado dessas interações de forças”. In. FORNAZARI,
Sandro Kobol. O bergsonismo de Gilles Deleuze. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia, São
Paulo, v. 27, n. 2, p. 31-50, 2004.
35
Dando seguimento à exposição, é possível ver a partir de Deleuze que, na
gênese do “sujeito” (assim como do objeto) no plano real considerado, o puro
plano de imanência, a atualização de suas virtualidades aparece como fator sine
qua non; a cada individuação acontecida em virtude da atualização desse em
instâncias individuais, “estados de coisas” ou estados vividos, acontece uma
renovação de suas virtualidades formando assim um ciclo de movimentos que irá
permear a “vida” do sujeito em sua constituição no interior do plano de imanência.
Essa distinção se confirma no texto O atual e o virtual”, onde Deleuze diz que
Todo atual rodeia-se de círculos sempre renovados de virtualidades, cada um
emitindo um outro, e todos rodeando e reagindo sobre o atual (Deleuze, 1996:
49); perfazendo um ciclo de individuação que escape de uma determinação como
processo, mas que aponte para um movimento efetivo (individuação criativa) do
objeto em estados presentes, comportando em si o devir como sua realidade.
Essa é a imagem do movimento que a tudo subsume; e nesse sentido, afirma o
autor: não lugar nenhum para um sujeito e um objeto (...) O que está em
movimento é o próprio horizonte: o horizonte relativo de distancia quando o sujeito
avança, mas o horizonte absoluto, nós estamos nele sempre e já, no plano de
imanência” (Deleuze e Guattari, 1992: 54).
Mas antes de tratar diretamente dos conceitos de atual e virtual, permitir-
se-á, aqui, uma digressão significativa rumo à crítica deleuziana à idéia em sua
formulação clássica. Se por um lado a exposição dos conceitos de virtual e atual
implica um esforço por parte de Deleuze de pensar um mundo em movimento, por
outro a crítica à idéia em sua formulação clássica, por sua vez, trás uma denúncia
da tentativa no interior pensamento filosófico de parar o movimento imanente
36
mediante uma busca do universal transcendente
29
. Em Diferença e Repetição,
Deleuze irá apontar o idealismo de origem clássica como um dos principais
mecanismos de tentativa de estatização e determinação de sujeitos e objetos
individuais (interrupção do fluxo dinâmico implicado no processo de atualização).
Segundo o autor, a proposta idealista cria recortes no caos-devir, estabelecendo
um campo de possíveis a serem realizados, tenta-se construir uma representação
do sujeito como ele poderia ser e não como ele é efetivamente, em sua natureza
plural e suas velocidades infinitas: subsunção da atualização pela realização, do
virtual pelo possível. A abstração das representações ideais agem diretamente no
sentido de estancar o movimento ou o escoamento do real. Com isso, ignora-se a
diferença como fator integrante da composição do processo de individuação em
detrimento da tentativa de realização de uma representação idealizada, construída
num plano de determinações sem levar em conta um plano de imanência sobre o
qual deveria estar assentado.
Assim, antes de referir ao atual como manifestação pontual do sujeito e ao
seu feixe indeterminado de potencialidades a que se chama virtual, atentar-se-á
para o ideal, carregado de absolutismo e determinação, numa tentativa de expiar
este conceito de seu tratamento tradicional que o faz horizonte transcendente.
No desenvolvimento de sua crítica, é na filosofia nietzscheana que
Deleuze vai encontrar um espelho para o trato com uma tradição fundada no ideal
de representação. Na crítica dispensada a Sócrates e Platão
30
, exposta grosso
29
Cf. “Exemplo III” em (Deleuze e Guattari, 1992:61-67).
30
Cf. Crepúsculo dos Ídolos, O problema de Sócrates” in NIETZSCHE. Obras incompletas. Trad.
Rubens Rodrigues Torres Filho. Nova Cultural, 1999. Sintetizado nesse texto, o tema da crítica ao
projeto idealista Socrático-Platônico é recorrente na obra nietzscheana.
37
modo aqui, Nietzsche argumenta que, no pensamento desses autores, o sentido
de existência não está na própria existência no mundo, mas para além desta
numa unidade transcendente; a existência fundamenta-se num ideal de verdade
absoluta, no ideal de virtude, situado fora do “real” num espaço de representações
perfeitas que fundamentará uma imagem necessária para direcionar o homem
para o caminho do “bem supremo”. Ao que parece, é bem esse o sentido da
interpretação deleuziana da relação entre o platonismo e seus sucessores e a
imanência, conforme se vê na afirmação de que, com Platão,
Em vez de um plano de imanência constituir o Uno-Todo, a
imanência está “no” Uno, de tal modo que um outro Uno, desta
vez transcendente, se superpõe àquele no qual a imanência se
estende ou ao qual ela se atribui: sempre um Uno para além do
Uno, será a fórmula dos neoplatônicos. (Deleuze e Guattari, 1992:
62)
A partir de Deleuze, é possível dizer que a busca de valores abstratos
pelo homem socrático-platônico o coloca fora da realidade imanente em direção a
uma unidade transcendente ideal, representativa; tem-se, pois, que esse homem é
tirado de uma realidade fugidia que leva em conta a mudança, o devir, para ser
lançado num plano perfeito ou “mundo das idéias” onde o devir se interrompe no
ideal de essência (forma de anterioridade). Voltando-se para o pensamento
nietzscheano, ver-se-á que o trato para com o homem dispensado pelo
pensamento socrático-platônico se dá, sobretudo, por ignorar que a fatalidade de
seu ser não é dissociável da fatalidade de tudo aquilo que foi e que será. Ele não
é a conseqüência de um propósito próprio, de uma vontade, de um fim, com ele
não é feito o ensaio de alcançar um ideal de homemou um ideal de felicidade
38
ou um ideal de moralidadeé um absurdo querer arremessar sua essência em
direção a algum fim (Nietzsche, 1999, § 8).
Da perspectiva da interpretação apresentada acima é possível dizer que o
pensamento socrático-platônico, incitaria o “abandono” da existência num plano
imanente, composto de movimentos infinitos, pela busca de um plano
transcendente ou “supra-sensível”, onde não qualquer movimento e onde é
possível uma representação absoluta, imutável. Trata-se aqui, como insiste
Deleuze, de uma tentativa de parar o movimento para conduzir a imanência a um
universal transcendente.
Desde que se pare o movimento do infinito, a transcendência
desce, ela disso se aproveita para ressurgir, erguer-se
novamente, reassumir todo seu relevo. As três espécies de
Universais, contemplação, reflexão, comunicação, são como três
idades da filosofia, a Eidéica, a Crítica e a Fenomenológica, que
não se separam da história de uma longa ilusão. (Deleuze e
Guattari, 1992: 65)
Promovendo um salto na história da filosofia, mas continuando o fio
condutor dessa argumentação, encontrar-se-á em Deleuze uma forte crítica
também ao pensamento hegeliano como forte eco da imagem do pensamento que
marca o idealismo platônico. Essa crítica ao Hegel é, no fundo, a crítica a uma
tradição filosófica (cujas raízes se encontrariam em Platão, mas que englobaria
ainda Descartes e Kant) incapaz de escapar das amarras de um pensamento da
representação e de alcançar a identidade imediata. Impossibilidade, que no caso
da doutrina hegeliana, consistiria em criticar a representação, em insistir em seus
limites, contradições e antinomias, insistir na negatividade que tais limites e
39
contradições acarretam, mas sem ser capaz de pôr uma outra ordem positiva em
seu lugar, sem ser capaz de realmente ultrapassar as dicotomias e os lugares que
o pensamento articula (essência/aparência, necessidade/contingência,
objetividade/subjetividade, forma/conteúdo). Uma impossibilidade de ultrapassar
os lugares que Deleuze chama de nomos sedentário. Platão, Descartes, Kant e
Hegel: filósofos do nomos sedentário, que representam uma imagem tradicional
da filosofia como filosofia da representação. o basta propor uma nova
representação e, como Hegel, permanecer no falso movimento, no movimento
lógico abstrato; a representação é já mediação (Deleuze, 2000: 52).
Parece mesmo que Hegel toma por ponto de partida a idéia presente no
pensamento platônico, se resguardando apenas de evitar o caráter abstrato das
idéias platônicas” (Hegel, 1993: 67). Com isso, esse autor apresenta uma proposta
de ideal que busca pôr-se como mediação entre dois extremos, que segundo ele
são a generalidade metafísica e a particularidade da determinação real. Assim,
para ele, a idéia não é indeterminada e com o ideal abstrato, desprovido de
individualidade, mas é antes concreta em si, sendo essa também uma totalidade
de determinações, podendo ser “belo” o que tiver uma adequação direta da
idéia à realidade objetiva, sendo que, na conformidade com o conceito, a
existência exterior é verdade; caso contrário, não deixa ela certamente de ser uma
manifestação que, em vez de construir a Realidade do conceito, lhe permanece
alheia.” (Hegel, 1993: 68)
E é justamente numa possível adequação entre a idéia e a realidade
objetiva que o projeto desse ideal hegeliano se diferencia da concepção socrático-
platônica. Em Hegel é possível que o ideal de um objeto se realize na realidade
40
objetiva“, e citando Schiller, ele diz mesmo que todo homem individual contém o
germe do homem ideal. Partindo desta concepção é possível afirmar que o
pensador alemão proclama a idéia como a verdade e o real por excelência e a
educação estética como mediadora no despojamento do caráter abstrato da idéia,
em detrimento de uma representação na realidade objetiva que é a natureza como
tal. Para ele, em relação ao verdadeiro conteúdo, o conteúdo ideal do objeto, nada
se deve obliterar e tudo se deve manifestar e desenvolver para que a alma e a
substância do objeto escolhido apareçam com maior nitidez e a sua representação
individual obtenha uma perfeição completa (Hegel, 1993: 165).
Para Deleuze essa idéia hegeliana, como em Platão salvo as distinções
internas, é uma idéia acabada, completa e universal, e o comporta em si
qualquer possibilidade de vir-a-ser ou de uma diferenciação interna.
Apresentando sua posição, Deleuze em contrapartida diz que pensar a
mediação da idéia como teoria da representação, tal como é apontado a partir do
pensamento platônico, não dá conta de uma teoria geral do conceito já que,
segundo ele, a heterogeneidade ou um olhar sobre a diferença no platonismo
seria
dominado pela idéia de uma distinção a ser feita entre "a coisa
mesma" e os simulacros. Em vez de pensar a diferença em si
mesma, ele a relaciona com um fundamento, subordina-a ao
mesmo e introduz a mediação sob uma forma mítica. Reverter o
platonismo significa o seguinte: recusar o primado de um original
sobre a cópia, de um modelo sobre a imagem. (Deleuze, 2000:
136)
Pensando o mundo a partir das noções de identidade e semelhança, e de
41
uma busca pela conformidade com a idéia, a diferença seria conduzida como
meros simulacros, destoando em terceiro grau da essência ou do ideal de
representação. Aqui, o que é uma espécie de seleção das boas imagensem
detrimento das más imagens”, na tentativa de supressão da diferença ou dos
simulacros. Eis, segundo Deleuze a grande decisão, que é uma decisão moral
do platonismo: a de subordinar a diferença às potências do Mesmo e do
Semelhante, supostamente iniciais, a de declarar a diferença impensável em si
mesma e de remetê-la, juntamente com os simulacros ao oceano sem fundo
(Deleuze, 2000: 221). O autor mostra, contudo, que a diferença existe, ou melhor,
insiste ou subsiste em um inegável devir do mundo.
no que concerne a Hegel, um dos focos principais da crítica deleuziana
se em relação ao movimento. Pensar o mundo a partir de uma mediação
abstrata da idéia implicaria na permanência no falso movimento, no movimento
lógico abstrato.
Denunciado como aquele que propõe um movimento do conceito
abstrato em vez do movimento da physis e da psiquê, Hegel
substitui a verdadeira relação do singular e do universal na idéia
pela relação abstrata do singular com o conceito em geral. Ele
permanece, pois, no elemento refletido da “representação”, na
simples generalidade. (Deleuze, 2000: 54)
De acordo com Deleuze o postulado deste idealismo clássico é a
supressão das multiplicidades pela identidade, do móvel pelo imóvel, do
indeterminado enquanto diferença por uma instância ideal de determinação, de
representação.
Em contrapartida à forma clássica, Deleuze apresenta o ideal como
42
síntese das diferenças presentes na característica constitutiva de uma
singularidade. Esta síntese ou este formado pelas diferenças é, em sua
essência, indeterminado, não podendo assim ser tomado como norte. O autor
argumenta que é possível determinar indiretamente o objeto da idéia
promovendo uma analogia entre esta idéia e os objetos da experiência aos quais
ela confere unidade, mas que lhe propõe em troca uma determinação análoga às
relações que eles mantêm entre si. Ele completa o argumento esclarecendo:
A Idéia apresenta, portanto, três momentos: indeterminada em
seu objeto, determinável em relação aos objetos da experiência,
contendo o ideal de uma determinação infinita em relação aos
conceitos do entendimento. É evidente que a Idéia retoma aqui os
três aspectos do Cogito: o Eu sou, como existência
indeterminada; o tempo, como forma sob a qual esta existência é
determinável; o Eu penso, como determinação. As Idéias são
exatamente os pensamentos do Cogito, as diferenciais do
pensamento. E assim como o Cogito remete a um Eu rachado
rachado de um extremo a outro pela forma do tempo que o
atravessa. (Deleuze, 2000: 285-286)
Em suma, para o autor a determinação da idéia é possível através da
análise das próprias diferenças que são formadoras desta idéia. De certo modo, é
como se se prolongasse a singularidade do sujeito ou do objeto até a vizinhança
de outra singularidade, e com isso percebesse que para além do individual, para
além do particular, assim com do geral, não há um universal abstrato: o que é pré-
individual é a própria singularidade” (Deleuze, 2000: 295).
É importante salientar, diante disso, que a crítica à noção de determinação
ideal é fundamentalmente direcionada às noções clássicas de ideal como
produção de norte (campos de possíveis fechados como proposta de realização)
ou processo de homogeneização ou generalização da realidade, em contrapartida
43
à noção de diferenciação criadora defendida por Deleuze. Assim apresentada, a
idéia “reformulada” por Deleuze aparece como uma possibilidade de diferença
interna no conceito.
A questão que se impõe, portanto a Deleuze, consiste em saber como
romper com o falso movimento, o movimento lógico abstrato, rompendo com o
Mesmo e o Semelhante: fundamento das ilusões que acompanham a imagem
dogmática do pensamento. É precisamente aqui que entra em cena o par virtual-
atual e suas relações na composição do quadro dinâmico implicado pelo plano de
imanência. Vale lembrar, que esses conceitos perfazem uma constante nos textos
deleuzianos constituindo, conforme se vê, a articulação do movimento.
O primeiro, o virtual, tem sua origem no radical latino virtus, remete ao
termo potência e encerra em si a idéia de um conjunto ilimitado de possibilidades
de atualização que acompanham o sujeito ou o objeto no seu escoamento real.
A dimensão virtual considerada por Deleuze, ao contrário das definições
do senso comum, não se opõe ao real, mas é essa mesma o próprio real que não
se tornou atual, mas que se insere continuamente segundo um ciclo de
atualizações que vai do virtual ao atual. O autor utiliza o virtual com o intuito de
significar uma espécie de campo múltiplo de tendências que acompanha um
estado de coisas, um sujeito ou um objeto em seu processo de atualização. E se
se observar atentamente os termos empregados ver-se-á que, é como se cada
sujeito ou cada objeto guardasse sobre sua individuação atual em um tempo e
espaço considerados, um campo infinito de potências para além do tempo pontual
em que se insere, o que leva em consideração a sobrevivência de uma
44
multiplicidade virtual no “interior” de um plano de imanência. Multiplicidade esta
que o suspende do instante, inserindo-o num continun
31
, numa duração qualitativa
de um tempo aiônico. E é relevante chamar a atenção, aqui, para as duas formas
do tempo que Deleuze propõe, duas leituras do tempo, ambas complexas e que
se excluem mutuamente: Por um lado têm-se o tempo como Cronos, que se
apresenta como presente sempre limitado, que mede a ação dos corpos como
causas e o estado de suas misturas em profundidade tempo do atual. Por outro,
têm-se Aion, o passado e o futuro essencialmente ilimitados, que recolhem à
superfície os acontecimentos incorporais enquanto efeitos tempo do virtual
(Deleuze, 1998: 64). Apoiado nessas leituras do tempo, diz Deleuze:
Os virtuais comunicam imediatamente por cima dos atuais que os
separa. Os dois aspectos do tempo, a imagem atual do presente
que passa e a imagem virtual do passado que se conserva,
distinguem-se na atualização, tendo simultaneamente um limite
inassinalável, mas intercambiam-se na cristalização (...).
(Deleuze, 1996: 55)
Para ensaiar uma maneira melhor de entender o conceito de virtual no
pensamento deleuziano tomar-se-á da geometria a figura de um cone.
32
Neste
cone, ter-se-á visualizado o que seria esse conceito se, para tanto, considerar o
atual ou ”os estados vividos” ou “estado de coisas”, como sendo o vértice do cone
(a ponta), e o virtual como sendo toda a área considerada do vértice à base. De
31
Este conceito de Cuntinun e as distinções entre os tempos do virtual e do atual, tão caros ao
Deleuze, também aparecem em alguns textos de Bergson, quando ele trata da percepção e das
“imagens lembranças” a que remete esta percepção. Cf. BERGSON, Henri. Matéria e Memória:
ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução de Paulo Neves. Ed. São Paulo:
Martins Fontes 1999. Capítulos II e III.
32
Em um sentido bem particular, Bergson fora o primeiro a invocar tal imagem do cone para
simbolizar uma dinâmica de atualizações calcada na afirmação de uma memória virtual em sua
relação com o presente como local da ação atual em Matéria e Memória.
45
acordo com essa imagem, o atual, par correlato do virtual, se constituiria, então, a
partir do processo de atualização ou individuação do virtual. Ele aparece como um
ponto que convida as multiplicidades contidas no plano virtual a uma espécie de
renúncia às suas velocidades infinitas de composição: o virtual atualizando
cristaliza-se.
Importa dizer ainda que, para Deleuze, qualquer tentativa de
representação, classificação ou apreensão no tempo (cronológico), qualquer forma
de determinação pessoal, só é possível quando acontece a atualização em
estados de coisa ou estados vividos, ficando o virtual por isso, fora das estruturas
analíticas da investigação científica assim como das filosofias da representação. A
multiplicidade do virtual é escorregadia ao entendimento científico e
representativo, justamente por nunca se fazer totalmente atual, mas continun. É
possível dizer que esta seja da ordem do indeterminado e do atemporal, isto é, de
um tempo que não se reconcilia enquanto determinação pessoal. Assim, uma
partícula atual emitiria e absorveria virtuais mais ou menos próximos, de diferentes
ordens. Leia-se:
Eles são ditos virtuais à medida que sua emissão e absorção, sua
criação e destruição acontecem num tempo menor do que o
mínimo de tempo contínuo pensável, e à medida que essa
brevidade os mantém, conseqüentemente, sob um princípio de
incerteza ou indeterminação. (Deleuze, 1996: 49)
Pode-se muito bem afirmar, então, que o fato de haver no virtual, durante
quase todo o tempo, uma não-presença que acompanha a sua composição, não
justifica inferir daí que nele não existência, posto haver um tempo incorporal,
46
Aion, a partir do qual ele se mostra real. Mesmo não possuindo um , enquanto
presença estanque, o virtual existe ou “acontece”, subsiste no movimento continuo
da realidade. De acordo com essa imagem, o que Deleuze mostra com o conceito
de virtual é que para cada estado de coisas, cada sujeito em sua atualidade, tem-
se um feixe inapreensível de multiplicidades que o conduz ao movimento, ao vir-a-
ser. Podendo esse atual tornar-se nômade, possuindo infinitas direções que
frustrarão um modelo determinante como proposta para construção de uma
identidade, de uma pessoalidade, no limite, de uma determinação subjetiva
centrada na forma Eu.
Variações sobre o mesmo tema, os conceitos de virtual e atual possuem
notadamente suas diferenças específicas, sendo mais evidente no que tange ao
sentido “vetorial” da dinâmica deleuziana da individuação que acompanha sujeito
e objeto no plano de imanência. Muito embora a explanação sobre o virtual no
autor apareça constantemente acompanhada de referências ao atual, não
podendo, com efeito, um desses conceitos ser expresso sem que se faça forçoso
remeter imediatamente ao outro. Contudo, não se deve perder de vista que
mesmo havendo “coexistência”, a distinção se faz importante.
O atual, ao contrário do virtual que não se estaciona temporalmente, tem
sua existência definida por um presente que passa (Deleuze, 1996: 55), mas
passa enquanto sucessão de estados presentes que esgota todo o tempo
cronológico (psicológico) do sujeito. E como presente, o atual se faz a própria
individualidade constituída pelo processo de atualização. Aqui o vetor de
referência de direção (atual-virtualização) se inverte, e os largos ciclos que
compõem a extensão do virtual se estreitam até a cristalização total, então o atual
47
cai para fora do plano como fruto; constitui um indivíduo; determina-se enquanto
ponto ordinário. É desta forma que o atual aparece como complemento ou o
produto, o objeto da atualização. Tem-se que, se por sua vez, o atual se dissolve
no plano de imanência fundando um novo campo de virtualidades, por outro lado,
o movimento inverso também se impõe: quando os círculos se
estreitam, e o virtual aproxima-se do atual para dele distinguir-se
cada vez menos. Atinge-se um circuito interior que reúne tão-
somente o objeto atual e sua imagem virtual: uma partícula atual
tem seu duplo virtual (...). (Deleuze, 1996: 53)
Como já foi mostrado anteriormente, “o atual e o virtual coexistem, e
entram num estreito circuito que nos reconduz constantemente de um a outro
(Deleuze, 1996: 53). Esta “oscilação”, segundo Deleuze, é o que induz sujeito e
objeto ao movimento, à criação, à ação, ao fazer-se outro: toda uma implicação
em novos modos de vida, novos estados vividos e novos estados de coisa.
Entrementes, é preciso ter ciência que a proposta de recriação de novos
modos de vida tem sempre como impasse dois fatores: de um lado, a construção
da imagem moderna de homem marcada pelo postulado do sujeito como centro,
assentada sobre uma formulação cientificista e reducionista que tem este homem
como determinado, pessoalizado, possuidor de um ego; e de outro, a criação de
modelos pré-estabelecidos de homem ideal (ideal de realização), numa espécie de
construção determinante de uma identidade possível, sendo ambas visões
incompletas e sempre fundadas na imagem dogmática do pensamento, segundo
Deleuze. Subvertendo essas visões, a proposta deleuziana acarreta uma
demolição da idéia de eu substancial, centrado, assim como, dos moldes
48
idealistas de representação. Abre-se espaço para um eu composto por uma
pluralidade de forças, por uma natureza múltipla: não mais um Eu, mas antes, um
Nós. A efetivação atual de um eu é, a cada instante, entrecortado por uma gama
imensurável de afetos e relações de natureza puramente física ou metafísica que
o lança num instante seguinte como um outro.
Pensar a subjetividade a partir desses conceitos deleuzianos conduz à
afirmação da multiplicidade como condição de uma natureza plural de
intensidades nômades, fala-se agora de singularidades, hecceidades, uma vida...
contraposta ao modelo clássico da determinação individual constituída a partir da
idéia de Eu pessoal, Cogito, um sujeito como fundamento e princípio, um ego. É
toda uma nova “cartografia” inaugurada e conduzida por Deleuze. Com efeito, é
nessa perspectiva que se pode pensar a subjetividade como índice de uma pura
multiplicidade: a partir do movimento. Tão somente a partir do movimento é que se
afirma o campo de virtualidades como estrutura participativa no processo de
individuação. Por fim, vale notar que a atualização do virtual não é o desvelamento
de um conteúdo prévio, mas uma heterogênese irredutível à atualidade a que
lugar. As linhas constitutivas dessa dinâmica da atualização formam um sistema
de interpenetração que se dá em um meio que é a diferença mesma. Revela em
conseqüência a dimensão temporal do real, o fato de que o universo está em
regime de criação, ou seja, de inovação constante. Se tudo é atual, o presente é o
todo. Ao contrário, se é virtual, a presença se plurifica, cabe à imaginação e ao
futuro abri-la.
49
CAPÍTULO II – A CRÍTICA AO PLANO DO SUJEITO
"O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste...”
(Drummond)
Descartes e o Cogito como começo em filosofia
O cogito, como todo grande conceito filosófico, responde
fundamentalmente às condições de um problema enunciado de tal forma que ele,
inevitavelmente, se faz necessário. Ao tratar de uma formulação tão arraigada
quanto o cogito, corre-se sempre o risco de recair numa crítica exaustivamente
apontada ou conduzir, de forma leviana, uma injustiça contra seu autor. Mas, se é
certo que ao se por em tal empresa deve-se evitar ser conduzido por pseudo-
objeções, é certo, também, que não se pode contentar em ver nele um abrigo
como o fazem as filosofias do sujeito com heranças cartesianas. Deleuze é,
certamente, um dos que não se satisfaz em encontrar no cogito “um guarda-sol ou
50
um abrigo (Deleuze e Guattari, 1992: 267) segundo suas próprias metáforas.
Encontra-se nos textos de Deleuze, desde Empirismo e Subjetividade tese de
mestrado, dirigida por Jean Hyppolite, sobre David Hume, publicada em 1953
uma profunda atenção, por vez acompanhada de certo melindre, no trato com
esse conceito
33
. Mais ainda, essa obra permite entrever também “um método”, ou
antes, um apanhado de procedimentos verdadeiramente filosóficos para colocar,
sem maiores riscos do que os já inevitáveis, a questão da legitimidade do cogito
enquanto conceito fundamental (o começo em filosofia).
E ver-se-á, pois, que estas posições metodológicas” de Deleuze
apresentadas em seu primeiro livro servirão de orientação para praticamente
todas as suas incursões no interior da história da filosofia. É possível observar nas
suas exposições que cada filosofia e isso inclui particularmente a cartesiana é
animada por uma forma de questão capaz de engendrar tanto uma série
determinada de problemas quanto o que Deleuze chamará posteriormente de
imagem do pensamento, ou seja, um plano de pressupostos tacitamente implícitos
e não-problematizados que fornece o campo de enunciação de uma questão
filosófica
34
. De todo modo, ante uma questão filosófica não se pode contrapor um
estado de coisas de acordo com Deleuze. Não se deve objetar, por exemplo: esta
filosofia não é válida por as coisas não serem assim. Trata-se apenas de saber se
33
Conforme se pode ver nas considerações sobre “o sentido geral das objeções constantemente
feitas a Descartes, Kant, Hegel etc.” in. DELEUZE, Gilles. Empirismo e subjetividade: ensaio
sobre a natureza humana segundo Hume. São Paulo: Ed. 34, 2001, p.119-121.
34
Uma abordagem da questão da imagem do pensamento pode ser vista em Nova Imagem do
Pensamento in DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Tradução de Edmundo F. Dias e Ruth J.
Dias. Rio de Janeiro, Editora Rio, 1976, p.85-91; ed. Orig. Nietzsche et la philosophie. Paris:
PUF, 1962. Mas é certamente no capítulo A Imagem do Pensamento de Diferença e repetição,
publicado em 1968 que Deleuze traçará um quadro geral dos pressupostos que animam uma tal
imagem.
51
é rigorosa ou não, boa ou não, a questão que deixa as coisas de tal forma
(Deleuze, 2001: 119-121). Dessa perspectiva, é preciso estar atento, quando na
execução de uma crítica a qualquer conceito, à natureza do problema respondido
por esse. O que constitui, como se sabe, seu fundamento e estrutura. Que
Deleuze certamente preza por isso pode-se ver na sua pedagogia do conceito que
envolve todo um balanço das condições de criação como fatores de momentos
que permanecem singulares
35
.
Tomando daí uma orientação, surge a necessidade de se voltar, pelo
menos nesse momento, ao problema do cogito como conceito fundamental, já que
se trata aqui de acompanhar a crítica dispensada por Deleuze às filosofias do
sujeito. Importa dizer, ainda, que essa abordagem a partir de Deleuze não tem a
pretensão de estabelecer um juízo de validade sobre o cogito, mas investigar as
condições de sua enunciação como problema: o problema do começo ou do
fundamento em filosofia.
Para exposição de um primeiro momento dessa abordagem evitar-se-á,
por motivos óbvios de interesse, maiores aprofundamentos do que o necessário
entorno das discussões empreendidas na história da filosofia sobre o Cogito.
Orientado nesse sentido então, o que se procura fazer aqui é seguir, como uma
breve aproximação, alguns argumentos de Descartes anunciados no Discurso do
Método e retomados mais profundamente nas Meditações, principalmente na
Meditação Segunda.
35
Para maiores esclarecimentos da pedagogia do conceito” em Deleuze, ver, O que é a Filosofia,
p. 20-28; e ainda, comentário de Alliez em A assinatura do mundo, p.12.
52
Ver-se-á que o Cogito marca o primeiro momento em que o sujeito,
empenhando-se até o fim na busca de uma verdade para satisfazer a exigência
racional de evidência absoluta, encontra o seu caminho: o cogito como verdade
inaugural. No limite, parece possível dizer, com Descartes, que se “todos os que
se aplicam seriamente na realização do bom-senso”
36
, pelo menos uma vez na
vida fizerem essa redução, chegarão ao cogito como verdade inaugural.
Pode-se ver essa orientação de seu pensamento na Quarta Parte do
Discurso do Método, onde Descartes, buscando seu progresso no conhecimento
da verdade e indo em direção a um fundamento suficientemente firme para o
conhecimento, chega ao eu penso, logo existo (o Cogito) como começo em sua
filosofia. Embora enunciado com um aspecto de raciocínio, pelo caráter
necessário da cópula apresentada (“logo”), o cogito, aqui, pode ser tomado como
uma constatação de fato. E de fato, o autor constata que pondo “tudo” aquilo
acerca do qual se pudesse imaginar (pensar) a menor dúvida em suspenso,
restar-lhe-ia somente o eu que pensavacomo verdade que resiste ao inquérito,
como “alguma coisa” verdadeiramente existente. A dúvida, a que se pretende
lançar o autor, tem como objetivo último rechaçar todas aquelas opiniões “falsas”
que se fundamentavam em um terreno pouco firme, devido a sua incerteza. Mas
embora tivesse procedido assim, afirma Descartes, a verdade do “eu penso, logo
existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos
36
Cf. Regra VIII. In. DESCARTES, René. Regras para a orientação do espírito. Tradução de
Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. “Se alguém se propuser como questão
examinar todas as verdades para cujo conhecimento basta a razão humana e parece-me que
isso deve ser feito uma vez na vida por todos os que se empenham seriamente em alcançar a
sabedoria seguramente encontrará, de acordo com as regras fornecidas, que nenhum
conhecimento pode preceder o do entendimento, que é dele que depende o conhecimento de
tudo o mais, e não o inverso”.
53
céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem
escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava”.
37
O pensador do cogito procede segundo a ordem de afastar do âmbito da
consideração filosófica qualquer coisa acerca da qual se puder imaginar a menor
dúvida. Procedendo desse modo, a redução cartesiana exclui, de fato, toda e
qualquer verdade que não tenha sido ainda constituída mediante evidência
fundamentada numa certeza subjetiva efetivamente vivida na atualidade do cogito.
De acordo com essa imagem, o objetivo da redução cartesiana seria não o de
fazer com que os conhecimentos mais certos substituam o conjunto dos
dubitáveis, mas sim, instaurar o caminho único para toda e qualquer verdade
possível.
O que de representar dificuldade de primeira grandeza na
interpretação dos textos cartesianos é que essa redução e com ela as diferentes
interpretações possíveis do cogito convivem lado a lado e se entrecruzam
38
. Essa
37
Cf. DESCARTES. Discurso do método. São Paulo: Abril Cultural, 1973 (Col. Os Pensadores)
p.54.
38
É interessante notar na interpretação de Michel Henry como ele direciona a leitura dos textos de
Descartes segundo duas reduções: a galileniana e a fenomenológica. A primeira dessas reduções,
a galileniana, deve determinar as regras que devem ser seguidas pelo espírito para que possa
descobrir a verdade, conhecendo de forma objetiva o mundo. Em outra direção, temos a redução
fenomenológica que remete diretamente à condição interna de possibilidade da essência da
verdade. A primeira diz respeito à forma pela qual podemos conhecer objetivamente o mundo
natural, mediante redução deste às propriedades mensuráveis, passíveis de serem
operacionalizadas matematicamente. Já a segunda, a fenomenológica, que pode ser referida como
ontológica, tem o papel de elucidar o modo de manifestação que possibilita a apreensão da
essência de todo conhecimento possível. Segundo Henry, com a redução fenomenológica
Descartes não afasta apenas, de maneira explícita, toda interpretação do ser a partir do ente e
como ser do ente. Descartes faz com que uma disciplina inteiramente nova e que não será mais
desenvolvida depois dele, os primeiros passos, disciplina que chamamos de fenomenologia
material”. Cf. HENRY, Michel. La généalogie de la psychanalyse. Paris: P. U. F., 1985, p. 262. Ver-
se-á, ainda, que uma interpretação da dupla redução permite estabelecer dois caminhos
interpretativos do cogito ergo sum. De um lado, tem o caminho que o toma como realização do tipo
exemplar de uma proposição verdadeira, de outro, enquanto fundamento da manifestação interna
da essência transcendental da verdade. O que se pode observar na argumentação de Michel
Henry é que, numa direção oposta à interpretação comum, que tem o cogito como forma de
54
posição é confirmada nas Meditações, onde, tanto a interpretação do cogito à luz
de uma anterioridade absoluta da manifestação imanente da vida egológica a si, e
portanto da realidade do eu, antes da efetuação de qualquer consciência e
independentemente dela, quanto a que faz do cogito uma verdade exemplar que
funciona como telos das outras efetuações da consciência evidente sendo, como
tal, a condição da verdade dos conceitos relativos ao conhecimento ôntico em
geral, convivem lado a lado. De todo modo, no entanto, é mediante essa redução
que a subjetividade humana vê-se conduzida pela primeira vez à posição
ontológica de fundamento absoluto da manifestação.
Em uma breve digressão, vale notar, ainda, como Deleuze na Terceira
Série de Lógica do Sentido, ao tratar da natureza da proposição, traça um
importante quadro de suas dimensões internas e com elas a manifestação.
Segundo ele, na relação da proposição comumente chamada de manifestação,
que se constitui a partir da relação da proposição ao sujeito que fala e que se
exprime, encontramos o desejo como causalidade interna de uma imagem, de
modo que, o que se busca verificar é a existência do objeto ou estados de coisas
correspondentes a essa imagem mental. Correlativamente, temos ainda a crença
(Urdoxa), que se constitui como a espera desse objeto ou estados de coisas,
evidência primeira, ele afirma que o cogito, do ponto de vista epistemológico seria, dentre tantas
verdades racionais possíveis, somente a mais certa delas; não podendo assumir jamais o papel de
fundamento de toda a verdade possível. “Precisamente porque permitiu à consciência se elevar, do
interior do seu ser singular, à ordem da racionalidade, (o cogito) permanece sendo esse ideal de
uma busca que se realizou pela primeira vez, confirmando uma finalidade definida: a obtenção
de conteúdos que possam se prevalecer do título de “verdades”. Cf. HENRY, Michel. L'Essence
de la manifestation. Paris: P. U. F., 1990, p. 12. E por fim, para Henry, a dificuldade da leitura dos
grandes textos filosóficos de Descartes diz respeito ao fato de que neles a redução galileniana e
sua contra-redução, a saber, a redução fenomenológica, se entrecruzam constantemente segundo
o jogo dos objetivos perseguidos, de modo que ainda é difícil ao leitor de hoje, apesar de tantos
comentários esclarecedores, dissociar essas duas reduções e pensá-las cada uma em seu sentido
próprio”. HENRY, Michel. Descartes et la question de la technique. In: GRIMALDI, N. et MARION
J-L. (Org.). Le discours et sa méthode. Paris: P. U. F., 1987, p. 287.
55
enquanto sua existência deve ser produzida por uma causalidade externa. Não
segundo Deleuze, um primado da designação em relação à manifestação, já que a
última é que, justamente, torna possível o estabelecimento das associações
próprias da designação. Deleuze aponta na lingüística a confirmação dessa
posição, chamando a atenção para os manifestantes de base, mais
especificamente o Eu como o manifestante privilegiado, que serve de princípio à
toda designação possível. É justamente nessa relação que se assiste, portanto, à
entrada do regime do eu, do subjetivo. Enfim, para o autor,
(...) da designação à manifestação se produz um deslocamento
de valores lógicos, representado pelo Cogito: não mais o
verdadeiro e o falso, mas a verdade e o engano. Na análise
célebre do pedaço de cera, Descartes não busca de forma
nenhuma o que permanece na cera, problema que nem chega a
colocar neste texto, mas mostra como o Eu manifestado no Cogito
fundamenta o juízo de designação segundo o qual a cera é
identificada (Deleuze, 1998: 14-15).
Deleuze se refere aqui ao experimento do pedaço de cera levado a termo por
Descartes na Meditação Segunda
39
. Esse experimento é um símbolo claro do
caráter fugaz das propriedades materiais, segundo o autor do cogito. Nenhum dos
aspectos de conjunto, nenhuma das sensações imediatas possíveis de obter da
cera são permanentes. Basta aproximá-lo do fogo para que sua consistência, sua
forma, sua cor, suas suntuosidades, seu odor, vacilem e se transformem. Este
experimento prova, segundo Descartes, a inconstância das qualidades objetivas.
É, por si só, uma fonte de dúvidas.
39
Cf. DESCARTES. Meditações, p.104-105.
56
Retomando o Discurso do Método, tendo Descartes chegado ao primeiro
princípio indubitável do ponto de vista da existência (o Cogito), passa ao exame da
natureza desse existente encontrado. Ele constata logo que a essência do mesmo
é apenas “o pensar”, não tendo sua existência qualquer dependência em relação
às coisas materiais, nem mesmo ao corpo, conforme se pode ver na afirmação de
que esse eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do
corpo e, mesmo, que é mais fácil de conhecer do que ele, e ainda que este nada
fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é(Descartes, 1973: 55). É possível ver
nesse momento, a postulação por parte de Descartes da substancialidade da alma
como puro pensamento e de sua natureza puramente intelectual: heterogeneidade
da res cogitans em relação à res extensa.
Tendo encontrado, assim, sua primeira proposição verdadeira e certa,
passa Descartes em revista às condições da certeza desta verdade. Cambia, pois,
o autor, das condições da certeza do cogito às condições da certeza em geral.
Como se pode notar, as condições da veracidade do eu penso, logo existo
funda-se na clareza de que para pensar é preciso existir”. A partir dai tem-se que
toda e qualquer coisa que é concebida clara e mui distintamente é também
verdadeira de acordo com a regra geral adotada para o cogito, embora se tenha
maior ou menor dificuldade de aferição do seu caráter verdadeiro conforme a
natureza da coisa investigada.
Permitir-se-á, aqui, ensaiar um breve comentário dos elementos obtidos
no presente itinerário e, ao mesmo tempo, delinear os pontos que serão
retomados como crítica por Deleuze à filosofia de Descartes. Na argumentação
empreendida, vê-se que, sob qualquer forma que é tomado, o "Eu penso" surge
57
como certeza absoluta, livre de pressupostos de verdade, o que, sem maiores
objeções, o exime de qualquer dúvida. De fato, se se tem em mente que a
possibilidade da dúvida tem seu fundamento, conforme Descartes, na essência da
verdade objetiva, ou seja, sobre o horizonte da consciência e, por derivação,
incide sobre tudo que se mostra como tal a partir da visibilidade (objetividade)
desse horizonte de presença, e que não qualquer relação implicada no "Eu
penso" entre um pensamento (do sujeito) e um objeto, sem maiores dificuldades,
pode-se concluir do exposto a certeza do eu penso por todo tempo quanto eu
penso. Daí se extrai, portanto, a indubitabilidade da própria efetuação imanente
dos atos da consciência em geral, ou mais especificamente, do ato de pensar. De
todo modo, vale dizer que, o ego, no Cogito, acede imediatamente aos atos da
subjetividade no sentido em que não depende da fenomenalidade do campo de
presença aberto pela consciência para se assegurar da sua própria existência.
Continuando a exposição a partir do próprio Descartes, ver-se-á que seus
argumentos se repetem mais uma vez e de forma mais detida nas Meditações.
Numa direção semelhante à apresentada no Discurso do Método, logo na primeira
das Meditações, o autor “aplica” seu método da dúvida, tomando como falso
qualquer coisa que se apresente como duvidosa ou como enganadora, qualquer
coisa acerca da qual se tenha alguma vez enganado. Nas suas palavras, o
menor motivo de dúvida que eu nelas encontrar bastará para me levar a rejeitá-la
todas(Descartes, 1973: 93); Este é, como se pode ver, um princípio básico da
dúvida hiperbólica, isto é, sistemática e generalizada. Essa rejeição ele a tece
primeiramente sobre as percepções sensíveis primeiro grau da dúvida e, em
seguida, sobre todo o conhecimento sensível em geral segundo grau da dúvida.
58
Por fim, utiliza o seu terceiro argumento invocando um “artifício psicológico”
implicado na figura de um Deus enganador ou, no limite, um gênio maligno, cujo
papel metodológico serviria para demonstrar que aquilo que resiste aos
argumentos anteriores, a saber: os componentes da percepção, as “coisas
simples”, tais como: figura, quantidade, espaço e tempo, podem se apresentar
também como ilusórias. Segundo sua afirmação, pode ocorrer que Deus tenha
desejado que eu me engane todas as vazes em que faço a adição de dois mais
três, ou em que enumero os lados de um quadrado (...)”(Descartes, 1973: 95).
Mais uma vez, chega Descartes ao ponto em que tudo aquilo que até então fazia
parte de seu conhecimento, quando passado em revista, não resiste à dúvida e
não pode ser tomado como certeza, como possuindo existência verdadeira;
chega, assim, ao ponto de universalização da dúvida.
Retomando em seqüência sua Meditação, o autor se propõe, então, a se
afastar:
de tudo em que poderia imaginar a menor dúvida, da mesma
maneira como se eu soubesse que isto fosse absolutamente
falso; e continuarei sempre nesse caminho a que tenha
encontrado algo de certo, ou, pelo menos, se outra coisa não me
for possível, até que tenha aprendido certamente que não há
nada no mundo de certo. (Descartes, 1973: 99)
Ora, poder-se-ia perguntar se lhe restaria algo à que não se possa de
nenhum modo negar. A resposta para Descartes aparece na forma: há, um eu
que pensa”. E, enquanto pensa ser, não pode não ser pelo simples fato, antes
constatado no Discurso, de que para pensar, é preciso existir (Descartes, 1973:
55). Chega assim, o pensador francês, ao seu primeiro ponto indubitável, uma
59
verdade clara e distinta, a partir da qual torna-se possível reconstruir de forma
segura os alicerces do “edifício do conhecimento”.
Dando seguimento, passa Descartes à determinação da essência do “Eu”
recém descoberto. Investigando sobre a natureza do algo existente, do homem, o
autor passa em revista e constata que tudo o que se podia antes afirmar, que era
“um animal racional”, que era um corpo (uma “máquina”) composto por membros
que se apresentavam como verdades passíveis de conhecer mui distintamente,
está agora sujeito a engano em virtude da ação de um tal gênio poderoso e
ardiloso que emprega seu poder em provocar nesse que investiga toda sorte de
enganos. A essa altura, é inescapável que, da natureza antes considerada desse
“eu”, nada resiste salvo, pois, um atributo da alma, o “pensar”; e verifico aqui que
o pensamento é um atributo que me pertence; ele não pode ser separado de
mim. Eu sou, eu existo: isto é certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo o
tempo em que eu penso (Descartes, 1973: 101-102). Assim, de todas as
faculdades passadas em revista, seja do corpo ou da “alma”, somente o
pensamento resiste à ação exclusória da dúvida. Deste feito, refletindo sobre a
proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que
a anuncio ou que a concebo em meu espírito”, Descartes chega, enfim, à natureza
“daquilo que sou”: uma coisa que pensa”; podendo d iniciar sua cadeia de
razões tomando como partida a primeira verdade encontrada.
Não se pode negar, com efeito, que a questão da gênese do cogito implica
sempre insegurança no que diz respeito às sínteses conclusivas. Mas, deve-se ter
em mente, pelo menos aqui, que não se trata de concluir sobre o assunto, mas
sim de apresentá-lo para que se possa dar continuidade à investigação
60
empreendida no presente estudo. Em vista disso, parece possível dizer,
preparando o palco para a crítica deleuziana, que em Descartes o Cogito assume
o papel de primeiro princípio.
Aqui residiria a crítica fundamental dispensada por Deleuze a esse
conceito em sua formulação primária. Crítica que corresponde à colocação em
questão do problema do começo em filosofia. O que se confirma no capítulo
terceiro de Diferença e Repetição onde Deleuze invocará como exemplo, a
Segunda meditação de Descartes, e nela o modo como, por buscar eliminar todos
e quaisquer pressupostos objetivos, o autor evita a definição de homem como
animal racional
40
. A intenção de Descartes ao proceder assim pode ser vista como
uma tentativa de evitar um ciclo vicioso de pesquisa e definições que, em se
tratando de começo e de conseqüente eliminação de todos os pressupostos, é
preciso evitar definições que impliquem gênero e diferença. Como se sabe, definir
o homem como animal racional supõe explicitamente conhecidos os conceitos de
racional e de animal, o que certamente o é o caso. Vê-se que a solução, nessa
busca da primeira verdade livre de pressupostos na cadeia de razões, reside,
nesse momento fundamental das meditações, no cogito como o que se pode obter
sobre a natureza daquilo que sou.
41
O encaminhamento da crítica deleuziana mostra, porém, que Descartes
não escapa dos pressupostos objetivos ou explícitos sem que recaia nos
subjetivos ou implícitos que estariam ligados por um sentimento e remeteriam o
eu puro do EU penso“ao eu empírico”. O problema dos pressupostos não é
40
Cf. (Deleuze, 2000: 225), em referência a DESCARTES. Meditações. p.100.
41
Nota 33 de Gérard Lebrun em DESCARTES, op. cit. p.102.
61
identificar os chamados pressupostos objetivos, mas os subjetivos. Estes são
como outra espécie de pressupostos em filosofia que estariam, segundo suas
palavras, envolvidos num sentimento em vez de o serem num conceito: supõe-se
que cada um saiba, sem conceito, o que significa eu, pensar, ser”. E é por isso
que o eu puro do EU penso deve ser tomado, segundo Deleuze, por uma
aparência de começo, sobretudo porque buscando esse começo radical (sem
pressupostos), remeteu todos os seus pressupostos ao eu empírico (Deleuze,
2000: 225). Logo, a questão que se evidência para Deleuze consiste em saber
como isso se dá, ou melhor, como o eu puro do Eu penso advém aparência de
começo”. Parece, contudo, que para o filósofo a resposta a essas questões não
implica maiores dificuldades se se atentar para a forma “toda a gente sabe
assumida pelos pressupostos subjetivos. Leia-se:
Toda a gente sabe, antes do conceito e de um modo pré-
filosófico... toda a gente sabe o que significa pensar e ser... de
modo que, quando o filósofo diz "Eu penso, logo sou", ele pode
supor que esteja implicitamente compreendido o universal de
suas premissas, o que ser e pensar querem dizer... e ninguém
pode negar que duvidar seja pensar e, pensar, ser... Toda a gente
sabe, ninguém pode negar, é a forma da representação e o
discurso do representante. Quando a Filosofia assegura seu
começo com pressupostos implícitos ou subjetivos, ela pode,
portanto, bancar a inocente, pois nada guardou, salvo, é verdade,
o essencial, isto é, a forma deste discurso. (Deleuze, 2000: 226)
Esta pressuposição, ao se basear em um sentimento que se remete ao eu
empírico ao invés de uma definição conceitual põe em cheque a validade esse
começo da filosofia de Descartes e em virtude disso faz com que o eu puro do Eu
penso possa ser tomado como aparência de começo verdadeiro. Esta
pressuposição subjetiva toda a gente sabepode ser vista como a forma que a
62
representação toma enquanto sustentáculo de uma imagem de pensamento
levada a cabo pelo pensador do cogito.
É sob esse ponto de vista que o plano traçado por Descartes envolve uma
compreensão subjetiva e implícita suposta pelo Eu penso como primeiro princípio.
Para ensaiar uma outra maneira de compreender o que se acaba de afirmar,
tome-se o sentido da afirmação feita por Deleuze em O que é a filosofia de que o
plano cartesiano necessário à criação do conceito de cogito exige uma mudança
singular de sentido que assuma um sentido subjetivo
42
. E ainda nessa mesma
direção, tomem-se os argumentos apresentados por Deleuze na Terceira Série de
Lógica do Sentido quando, na análise do ciclo da proposição formado pela
designação, pela manifestação e pela significação, chega-se mais uma vez ao
momento do Eu como manifestante de base. Afirma Deleuze: “(...) é o Eu que
começa em termos absolutos ... deste ponto de vista, as significações conceituais
não valem e não se desenvolvem por si mesmas: elas permanecem
subentendidas pelo Eu” (Deleuze, 1998: 16). O Eu aqui, aparece tendo uma
significação idêntica à sua manifestação, ele apresenta a si mesmo como dotado
de uma significação imediatamente compreendida. Assim, segundo o pensador da
diferença, Descartes teria podido contrapor à definição do homem como animal
racional a sua própria determinação como Cogito. Se afastando assim das
armadilhas da proliferação infinita da determinação conceitual. Com efeito, se na
primeira forma de determinação uma exigência do desenvolvimento explícito
dos conceitos significados (que é animal? O que é racional?), no segundo caso,
42
Cf. (Deleuze: 1992: 39,44,57,71,83)
63
determinando o homem como Cogito, Descartes chega a uma definição que seria
compreendida de modo imediato, no momento mesmo em que for proferida.
Tal mudança de sentido consistirá então numa recusa dos pressupostos
explícitos onde cada conceito remete, irremediavelmente, a outros conceitos
perfazendo uma reiteração infinita (animal-racional, por exemplo). Descartes se
coloca assim, do lado do Eudoxo, o homem particular dotado apenas de seu
pensamento natural, evitando o Epistemon, o homem pervertido pelas
generalidades de seu tempo
43
. Dentro desse plano, o que se exige é somente uma
espécie de compreensão pré-filosófica fundada na idéia de que todo mundo sabe
o que quer dizer pensar, ser, eu (sabe-se fazendo-o, sendo ou dizendo-o)
(Deleuze e Guattari, 1992: 39). E é essa nova distinção inaugurada por Descartes
dentro desse plano, que coloca o problema da exigência de um conceito primeiro
por onde começar para determinar a verdade como certeza subjetiva
absolutamente pura (“sem pressupostos”). A solução adotada é, justamente, o
cogito como começo livre de pressupostos. Apesar de todas as mudanças
posteriores que essa formulação irá sofrer não se pode negar, todavia, que o
estatuto do cogito como começo em filosofia tem, inegavelmente, a assinatura
desse pensador moderno
44
.
Para uma maior visibilidade da crítica deleuziana, ainda é preciso
compreender a que elo corresponde, no encaminhamento da argumentação em
43
Cf. (Deleuze 2000: 226-227). Sobre essa questão indica-se o comentário de MACHADO,
Roberto. Deleuze e a filosofia. Rio de Janeiro: Graal, 1990, p.129-130.
44
Vale ressaltar que, segundo Deleuze, também Nicolau de Cusa esteve “próximo do cogito”,
não o fazendo cristalizar-se por não possuir o plano próprio de sua constituição. Apesar de ambos
possuírem o “Idiota” como personagem conceitual que acompanha o cogito, o pensador privado
que forma o conceito com forças inatas que cada um possui de direito por sua conta (eu penso)”,
Descartes traçou o plano, inventou o personagem (o Idiota Eudoxo aquele que quer pensar
por si mesmo) e criou o cogito (Deleuze, 1992: 84).
64
sua totalidade, uma imagem do pensamentoatribuída a Descartes, denunciada
pelo autor ao tratar da questão do começo em filosofia. Trata-se de verificar,
dentro do que Deleuze denomina postulados da imagem dogmática do
pensamento”, qual é o papel do cogito.
Interessa aqui notar como a imagem do pensamento chamada
“dogmática” alude evidentemente a um dogma, que é a idéia da verdade como
fundamento. Esse é, como se pode ver, o sustentáculo dessa imagem que se
remete sempre à verdade como a uma falta, como a uma idéia abstrata e
invariante que atua como meta para a qual o pensamento sempre deve se dirigir.
Com isso, o pensamento postula algo externo a ele, uma realidade independente
de si na qual supostamente reside a verdade, porém, ao mesmo tempo, concebe a
si mesmo como capaz naturalmente de alcançá-lo. O pensador, desde o começo,
se encontra em uma relação de afinidade com aquilo que ele busca: bastando-lhe
somente querer para encontrar o caminho que o conduz ao verdadeiro. Na visão
de Deleuze:
Podemos denominar esta imagem do pensamento de imagem
dogmática ou ortodoxa, imagem moral. É certo que ela tem
variantes: assim, não é absolutamente do mesmo modo que os
"racionalistas" e os "empiristas" a supõem erigida. Ainda mais, os
filósofos, como veremos, sentem inúmeros arrependimentos e
aceitam esta imagem implícita acrescentando-lhe numerosos
traços vindos da reflexão explícita do conceito, que reagem a ela
e tendem a revertê-la. Todavia, ela resiste no implícito, mesmo
que o filósofo sublinhe que a verdade, no final das contas, não é
"uma coisa fácil de ser atingida", não é uma coisa "ao alcance de
todos". Eis por que não falamos desta ou daquela imagem do
pensamento, variável segundo as filosofias, mas de uma
Imagem em geral, que constitui o pressuposto subjetivo da
Filosofia em seu conjunto (Deleuze, 2000: 229).
65
Em relação a isso, o autor defende nos seus textos, desde o início, a necessidade
de construir uma “nova imagem do pensamento”
45
. Isto porque, segundo ele, a
imagem dogmática dominante está composta por forças que constrangem o
pensar a um determinado modo, segundo uma direção, de acordo com um regime
de produção que impossibilita o pensamento. Pensar é sempre pensar de outro
modo, e por isso é necessário produzir uma ruptura no pensamento fazendo
visível e enunciável outras formas. Na imagem dogmática do pensamento o
pensado se remete sempre ao previamente determinado que é a verdade: assistir-
se-á, pois, a uma reprodução, uma representação de algo que funciona como
fundamento primeiro caso do cogito. No entanto, antes da verdade estão,
segundo o autor, o sentido e o valor que nela se expressam, por isso o que mais
importa é a capacidade de construir sentido, criar os valores que são expressos na
verdade. A verdade não é, mas acontece como resultado de um cruzamento de
forças, fonte de toda produção de sentido e de valor. Deleuze mostra, por fim, que
uma imagem do pensamento só se constitui a partir de um conjunto de postulados
os postulados da imagem dogmática do pensamento” – que animam essa
imagem. Em Diferença e Repetição Deleuze mostra que são oito, os postulados
que formam a imagem dogmática do pensamento: 1º, postulado do princípio ou da
Cogitatio natura universalis; 2º, postulado do ideal ou do senso comum; 3º,
postulado do modelo ou da recognição; 4º, postulado do elemento ou da
representação; 5º, postulado do negativo ou do erro; 6º, postulado da função
45
Cf., por exemplo, Nova Imagem do Pensamento em Nietzsche e a Filosofia, publicado
originalmente em 1962, p.85-91.
66
lógica ou da proposição; 7º, postulado da modalidade ou das soluções; 8º,
postulado do fim ou do resultado, postulado do saber.
Se a imagem do pensamento se funda em seus postulados, ver-se-á que
a figura do cogito está quase sempre presente quando esses são apresentados.
Vale notar que Deleuze propõe nesse livro uma filosofia capaz de ser a crítica
radical da Imagem e dos “postulados” que ela implica, ou ainda, ser capaz de
operar uma “luta rigorosa contra a Imagem, denunciada como não-filosofia”
46
.
Embora possa ser relacionado à maioria desses postulados, Deleuze
parece apontar mais explicitamente alguns desses atuantes na construção da
Imagem inaugurada por Descartes. Ora, quando se comentava a questão do
começo no mestre francês, viu-se que ele remetia, inicialmente, ao postulado do
senso comum na forma toda gente sabe o que significa pensar. Assim, a forma
geral dessa representação estaria fundamentada no elemento do senso comum,
onde, parte-se da idéia de que toda gente sabe de forma natural ou que todos
saibam de forma implícita o que pensar quer dizer. Para Deleuze, tal forma de
argumentação preserva fundamentalmente a idéia de uma natureza reta e de uma
boa vontade da razão (Eudoxo e ortodoxia). Esse parece ser para Deleuze um dos
postulados mais importantes envolvidos na imagem do pensamento que irá fundar
toda uma “história” da subjetividade: concórdia das faculdades (concordia
facultatum), que seria também a história de um desvio categórico imposto à
46
(Deleuze, 2000: 229). A crítica da “Imagem” com suas ramificações profundas na tradição
filosófica francesa do século XX, será revista de certa forma por Deleuze nos anos 80, embora
mantendo a crítica à imagem dogmática do pensamento. Tal mudança se deve, principalmente,
graças à identificação de um novo regime de imagens vindo do cinema e, principalmente, da
pintura pós-abstrata, esta que, como a pintura de Francis Bacon, resgata a figura em sua potência
de não-figuração, em sua forma de disposição do que não se reconhece mais na sua própria
forma.
67
imanência a partir da modernidade. Esse desvio é marcado pela “fórmula”:
imanência é suposta ser imanente a uma consciência pura, a um sujeito pensante.
Pode-se ver, de acordo com Deleuze, que o sentido do cogito como começo:
exprime a unidade de todas as faculdades no sujeito; exprime,
pois, a possibilidade de todas as faculdades se referirem a uma
forma de objeto que reflita a identidade subjetiva; ele dá, assim,
um conceito filosófico ao pressuposto do senso comum, ele é o
senso comum tornado filosófico (Deleuze, 2000: 231-232).
O que logo se observa, no entanto, é que o postulado do senso comum
não está sozinho nessa fundação. Como complemento do senso comum divisar-
se-á o postulado do bom senso como outra metade da doxa: repartição que
garante essa concórdia. Do senso comum, diz-se que ele é uma função, faculdade
de identificação que faz com que uma diversidade possa ser reunida na forma do
Mesmo, instância capaz de subsumir faculdades diversas da alma em uma
unidade que diz: Eu, é um só e mesmo eu que percebe, imagina, lembra-se, sabe
etc (Deleuze e Guattari, 1992: 80).
47
o seu outro par correlato na doxa, o bom
senso, é aquele que determina que as faculdades contribuam em cada caso. Do
Eu puro, que é o ponto de vista do senso comum aos eus empíricos que é o ponto
de vista do bom senso, o que se é a passagem da norma de identidade à
norma da partilha. Mais detidamente, se o cogito, dando um conceito filosófico ao
pressuposto do senso comum, garante a unidade de todas as faculdades no
sujeito e a possibilidade delas se referirem a uma forma de objeto que espelhe a
identidade subjetiva, o bom senso será o que garante a qualificação dos objetos
47
Para maiores aprofundamentos na exposição do bom senso e senso comum como as duas
metades da doxa, segundo Deleuze, ver Décima Série de Lógica do Sentido, p.77-84.
68
como este ou aquele (repartição universal), ele estabelece a parte das coisas
(Deleuze, 2000: 365). Acordando com essa imagem, pode-se ainda dizer que ele
é a
d
eterminação do mais diferenciado e do menos diferenciado e a instituição da
direção que leva do primeiro ao segundo (orientação da flecha), sustentando uma
unidade na identificação e entrando em correlação com outro dos postulados: o da
recognição como exercício concordante de todas as faculdades. Vê-se bem isso
em Descartes (é sempre o mesmo pedaço de cera...), “é o mesmo que vejo, que
toco, que imagino e, enfim, é o mesmo que sempre acreditei ter estado no
começo”.
48
A partir dessas indicações, pode-se concluir com Deleuze que, no
cogito em sua formulação primeira,
(...) é a identidade do Eu no Eu penso que funda a concordância
de todas as faculdades e seu acordo na forma de um objeto
suposto como sendo o Mesmo. Objetar-se-á que nunca nos
encontramos diante de um objeto formal, objeto qualquer
universal, mas sempre diante deste ou daquele objeto, recortado
e especificado num emprego determinado das faculdades. Mas é
aqui que se deve fazer com que intervenha a diferença precisa de
duas instâncias complementares, senso comum e bom senso (...)
(Deleuze, 2000: 232).
Assim, a questão para Deleuze consiste não em fazer visíveis essas
duas instâncias mas também mostrar como as mesmas se completam de maneira
inteiramente necessária ao constituir as duas metades de doxa. E parece
importante reconstituir aqui, como este filósofo, ao buscar o lugar do sentido em
sua Lógica do Sentido, opõe-se, justamente, à doxa nas suas duas formas
divisadas, ou seja: bom senso e senso comum. O bom senso, além de determinar
uma direção, isto é: o sentido único, ele determina, antes de tudo, o princípio de
48
DESCARTES, apud (Deleuze, 2000: 231).
69
um sentido único geral, de forma que esse princípio faz com que seja escolhida
uma direção em preferência de outra. Estabelecendo uma direção, ele se torna
senso único, que implica a concepção de uma ordem a partir da qual se deve
escolher uma direção e nela se fixar para atingir o verdadeiro. o senso comum
é a instância capaz de referir o diverso à forma de identidade de um sujeito, à
forma de permanência de um objeto ou de um mundo. Assim, a linguagem opera
por determinações de significação: manifesta pessoas e relaciona nomes, designa
objetos, classes, propriedades, significados, segundo uma ordem fixa. D a
importância do non-sense e do paradoxo, para Deleuze, como o que destrói esse
bom senso, esse senso comum, o sentido único, desfazendo a identidade
(DELEUZE, 1998: p.78-80).
Ainda dentro das considerações sobre os postulados da imagem
dogmática do pensamento, Deleuze volta ao problema do cogito como começo em
filosofia quando, em um outro momento em Diferença e Repetição, assinala que
mesmo aparentemente opondo-se à dialética, Descartes, como partidário de um
método matemático de análise, conserva dela o essencial, a saber, o ideal de uma
combinatória ou de um cálculo dos problemas
49
. Delineia-se outra forma de
possibilidade, propriamente matemática - geométrica ou algébrica, em vez de
recorrer à forma lógica do possível.
Os problemas continuam, pois, a ser decalcados sobre
proposições correspondentes e a ser avaliados de acordo com a
possibilidade de receberem uma solução. Mais precisamente, de
um ponto de vista geométrico e sintético, os problemas são
49
Cf. (Descartes, 1999: Regra XII e XIII).
70
inferidos de proposições de um tipo particular chamadas teoremas
(Deleuze, 2000: 270).
Segundo seu pensamento a geometria clássica grega, e com ela os herdeiros de
seu método tenderiam, assim, a, por um lado, subordinar os problemas aos
próprios teoremas, e por outro limitar os problemas em proveito dos teoremas eles
mesmos. Toma-se esse partido, sobretudo, porque os teoremas parecem exprimir
e desenvolver as propriedades da essência simples, diferentemente dos
problemas que concernem somente aos acontecimentos e às afecções que dão
testemunho de uma degradação, de uma projeção da essência na imaginação
(Deleuze, 2000: 270).
Aqui, a prática de uma investigação genealógica da questão dos
fundamentos, e com ela o cogito, vê-se obscurecida, sobretudo, pela constatação
de que o ponto de vista da gênese é forçosamente relegado a um plano inferior:
Exime-se de mostrar o que uma coisa é e por que ela é, para, agindo por
raciocínios negativos, indiretos e por absurdo, tal como procedera Euclides,
demonstrar o que uma coisa não pode ser. Tem-se como modus operandi, a
empresa de sempre proceder segundo uma redução dos problemas à forma das
proposições capazes de lhes servir de casos de solução. Uma passagem de
Descartes em seu Discurso do Método ilustra a abordagem da questão por
Deleuze:
E como, efetivamente, ouso dizer que a exata observação desses
poucos preceitos que eu escolhera me deu tal facilidade de
deslindar todas as questões às quais se estendem essas duas
ciências [geometria e álgebra], que, (...) tendo começado pelas
mais simples e mais gerais, e constituindo cada verdade que eu
71
achava uma regra que me servia em seguida para achar outras,
não consegui resolver muitas que julgava antes muito difíceis,
como me pareceu também, perto do fim, que podia determinar,
mesmo naquelas que ignorava, por quais meios e até onde seria
possível resolvê-las (Descartes, 1973:
48; 54
).
Tal método, conforme observado, conduz inevitavelmente em Descartes, ao cogito
como fundamento de sua Filosofia: “(...) o primeiro princípio da Filosofia que
procurava”. Cai-se sempre nas ilusões natural e filosófica, a primeira decalcando
os problemas sobre as proposições e a segunda, a derivada, fazendo crer que a
verdade de um problema reside tão somente na possibilidade dele receber uma
solução (Deleuze, 2000: 269). Trata-se, com esse método, de estabelecer um
regulamento para a colaboração das faculdades, trata-se de um violento
adestramentomanifestado no senso comum e realizado em uma Cogitatio natura
que espelharia uma decisão já antes anteposta pelo pensador. O estatuto do
método cartesiano (a busca do claro e distinto), segundo Deleuze, estaria
fundamentado numa busca de resolução de problemas tidos como dados, nunca
em uma invenção e constituição de problemas ou compreensão das questões.
Torna-se secundário e subordinado o papel das regras concernentes às questões
e aos problemas. Decalcam-se os problemas sobre as proposições do senso
comum, e sobre a possibilidade lógica de receber soluções. Como isso, Descartes
permanece ligado, por um ponto em comum, à dialética aristotélica, pois apesar
de seus avanços o cálculo dos problemas e das questões continua a ser inferido
de um cálculo das proposições simples’ tidas como prévias; sempre o postulado
da imagem dogmática”. (Deleuze, 2000: 271)
72
O final do trecho citado acima permite ver bem um dos pontos-chave da
contraposição deleuziana ao cogito cartesiano. O que está em evidência são
sempre os postulados da imagem dogmática do pensamento, que esmagam o
pensamento sob uma imagem que é a do Mesmo e do Semelhante na
representação, mas que trai profundamente o que significa pensar” (Deleuze,
2000: 281).
50
Para Deleuze, Descartes, o pensador do cogito, inaugura uma
variante da Imagem em geral do pensamento, fundada no elemento puro da
representação e da recognição, tendo o senso comum e o bom senso como a
determinação do pensamento puro: cogitatio natura universalis, a partir do qual a
filosofia pode ter seu ponto de partida assegurado.
O Eu rachado, o eu passivo.
A passagem do Cogito cartesiano ao cogitokantiano é outro momento
particularmente importante na crítica deleuziana da subjetividade. Segundo seu
argumento, a passagem de um momento a outro do referido conceito é
operada à custa da inserção de um novo componente entre o eu penso” e o “eu
sou”, a saber: o tempo. Ele afirma que em Descartes, A determinação (eu penso)
implica uma existência indeterminada (eu sou, pois "para pensar é preciso ser") - e
a determina, precisamente, como a existência de um ser pensante: penso, logo
50
Abrir-se-ia uma longa discussão se se pretendesse, aqui, investigar a forma pela qual Descartes
é continuador de uma imagem dogmática do pensamento, o que não é pertinente à temática
central dessa pesquisa. Sobre a Imagem anterior a Descartes, fundada em outros elementos ver,
(Deleuze e Guattari, 1992: 67-68).
73
sou, sou uma coisa que pensa(Deleuze 2000: 164). reside um problema, pois,
de acordo Deleuze, o autor do cogito não poderia concluir: eu sou uma coisa que
pensa” porque mesmo que seja verdade que “eu penso” é uma determinação, esta
determina uma existência indeterminada, a saber, “eu sou”. Decartes fez, portanto,
de modo sobressaltado, a passagem de um momento a outro. Todavia é
necessário que seja explicitado de que modo a existência indeterminada é
determinável. Retomando, de acordo com Deleuze, o mestre francês teria
acreditado que a determinação poderia atuar diretamente sobre o indeterminado,
e como “eu penso” a determinação implicava “eu sou” a existência
indeterminada concluía: eu sou uma coisa que pensa”. No entanto quando ele
diz “sou”, a existência indeterminada implicada na determinação penso”, não diz
de que forma a existência indeterminada é determinável.
Tomando a questão a partir de Kant, Deleuze propõe que a existência
indeterminada pode ser determinada no espaço e no tempo, aparecendo no
tempo, como forma da receptividade (“eu”, enquanto subjetividade, “me
reconheço” no tempo psicologia racional). Vê-se, pois, que se o cogito de
Descartes opera com a determinação (“eu penso”) e a existência indeterminada
(“eu sou”) como com dois valores lógicos, em Kant, entre esses dois aparecerá o
tempo como determinável, ou, antes, a forma sob a qual a existência
indeterminada é determinável pelo eu penso”, (Deleuze 2000: 164). Mais
detidamente, segundo Deleuze, a crítica kantiana objetaria que, sem um terceiro
operador que fizesse incidir a determinação no indeterminado, ser-lhe-ia
impossível operar a passagem, pois, mesmo que haja uma evidente implicação
entre “eu penso” e algo indeterminado (eu sou), nada é dito, como se vê, sobre
74
como o indeterminado é determinável pela determinação.
51
A solução em Kant
consiste em apresentar, de fato, o tempo como a forma pela qual a existência
indeterminada é determinável pelo “eu penso (como um eu que aparece no
tempo, tempo esse que por sua vez é tomado aqui como mediador). Assim, o “eu
sou”, enquanto substância (o indeterminado), não pode ser determinado
diretamente; o que pode ser determinado é, tão somente, o eu que aparece no
tempo. Conforme se pode ver nessa nota constante na “Analítica”:
O eu penso expressa o acto de determinar a minha existência. A
existência é, pois, assim, dada, mas não ainda a maneira pela
qual devo determiná-la, isto é, pôr em mim o diverso que lhe
pertence. Para tal requer-se uma intuição de si mesmo, que tem
por fundamento uma forma dada a priori, isto é, o tempo que é
sensível e pertence à receptividade do determinável
52
(Kant,
1997: A158).
O que aqui, para Deleuze, é o fazer da lógica uma instância
transcendental (Deleuze 2000: 164).
Segundo o autor francês, Kant descobre um
domínio que é o da pura diferença, diferença interna que, longe de ser uma
diferença empírica entre duas determinações, uma diferença exterior que separa,
é uma diferença transcendental entre a determinação e o que ela determina. Ser e
pensamento são, aqui, relacionados um ao outro de modo a priori nessa
“Diferença” interna.
51
Deleuze faz alusão aqui a Observação geral relativa à passagem da psicologia racional para a
cosmologia constante no Capitulo I, Livro Segundo da Dialética Transcendental. In. KANT,
Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de A. Morujão. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1997.
52
Este tema é exposto na “Analítica” § 25, especialmente na nota sobre a determinação da minha
existência, p.159.
75
Deleuze segue sua argumentação apontando que a partir daí começaria
uma longa e inesgotável história: “EU é um outro ou o paradoxo do sentido
íntimo, que, se em Descartes a espontaneidade da qual tenho consciência no
Eu penso pode ser compreendida como atributo de um ser substancial e
espontâneo, em Kant tal não pode acontecer. No autor alemão, essa
espontaneidade aparece como afeição de um eu passivo que sente seu próprio
pensamento, sua própria inteligência, aquilo pelo qual ele diz EU, exercer-se nele
e sobre ele, mas não por ele” (Deleuze 2000: 165). Tem-se, com efeito, que se em
Descartes a existência está dada, não se esclarece, contudo, a maneira pela qual
ela é determinada. Para que isso ocorra é preciso a intuição de si mesmo, quer
dizer, a receptividade, que tem por fundamento uma forma, ou seja, o tempo que
pertence à receptividade (o tempo é a forma pela qual “a existência” é
determinável). Então não posso determinar “minha existência” como a de um ser
espontâneo, só posso representar a espontaneidade do ato de pensar ou de
determinação, e essa existência é determinável na intuição como a de um ser
receptivo.
53
Retomando, a existência não é determinável a não ser no tempo como
a existência de um ser receptivo, o qual, desde então, representa para si sua
própria espontaneidade como a de um outro eu
54
.
Se em Decartes o cogito aparecia como pleno, envolto por Deus e pela
infinitude, em Kant, com a finitude constituinte sobre suas duas articulações,
espontaneidade e receptividade (apercepção e percepção), aparece
53
Cf. (Kant, 1997: § 25).
54
Com efeito, afirma Kant:A estética transcendental não pode contar entre os seus dados a priori o conceito
de mudança; porque não é o próprio tempo que muda, apenas muda algo que está no tempo. Para isso
requer-se a percepção de uma certa existência e da sucessão de suas determinações, por conseguinte a
experiência” (Kant, 1997: B58).
76
verdadeiramente os índices de uma fenda no interior do Cogito, a saber: de um
lado o “eu penso” espontaneidade determina a existência, mas a existência
é determinável, por outro lado, como a de um ser receptivo. Então “eu” ser
receptivo “represento minha espontaneidade” como a operação de um “outro
sobre mim”.
Não se pode deixar de mencionar aqui um outro texto posterior de
expressivo nome: Sur quatre formules poétiques qui pourraient résumer la
philosophie kantienne
55
, no qual Deleuze reapresenta o tema dessa passagem
logo no início da segunda e possivelmente mais importante fórmula,
mostrando que como resultado da revolução inaugurada por Kant tem-se que,
retomando a fórmula de Rimbaud, Je est un autre”. Ora, como entender essa
afirmação de Deleuze à luz da passagem do Cogito cartesiano para o cogito
kantiano? Deleuze explica que se por um lado o “moi”(eu) torna-se passivo ou
receptivo experimentando mudanças no tempo, por outro “Je”(Eu) aparece como
ato que opera nteses do tempo e do que nele se passa, distribuindo a cada
instante o presente, o passado e o futuro. O “Je” e o “moisão pois separados
pela linha do tempo que os relaciona um ao outro, mas sob a condição. de uma
diferença fundamental.
56
Com efeito, se em Descartes pode ser dito que Eu
penso, logo, eu sou, eu sou uma coisa que pensa, em Kant, por outro lado, tal
proposição não se aplica, não podendo mesmo a existência ser determinada como
a de um ser ativo e espontâneo. Deleuze introduz aqui, então, o conceito de um
55
DELEUZE, Gilles. Sur quatre formules poétiques qui pourraient résumer la philosophie
kantienne”. Philosophie 9, 1986, Ed. Minuit. Tradução do francês por Andréa Estevão. Extraído
de Carlos Henrique Escobar (org), Dossier Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon Editorial, 1991.
56
Segunda (II) das “Quatro fórmulas (...)”.
77
“eu” que está em constante mudança: um “moi receptivo que experimenta
mudanças no espaço-tempo (o eu da percepção). Em contraposição, há um “Je”
que conduz à ntese do tempo, por estabelecer o que é o presente, passado e
futuro de cada instante: o “Eu penso” (o eu da apercepção pura). Deleuze
considera que pela concepção de tempo, então, é estabelecida uma distinção no
interior do sujeito que revela as duas faces do Ego (na terminologia deleuziana
“Je” e “moi”). Assim, a constituição do sujeito seria caracterizada, com efeito, por
essas duas formas que, por um lado, faz como que ele seja receptivo, afetado
(forma da intuição) e, por outro, seja, simultaneamente, determinante, espontâneo
(forma do pensamento). Mas cada “eu” depende do outro, como se pode ver:
Eu sou separado de mim mesmo pela forma do tempo, e portanto
eu sou um, porque o ‘Je’ afeta necessariamente essa forma
operando sua síntese, e porque o ‘moi’ é necessariamente
afetado como conteúdo nessa forma. A forma do determinável faz
com que o ‘moi’ determinado se represente na determinação
como um Outro. É como um duplo desvio do ‘Je’ e do ‘moi’ no
tempo que os relaciona um ao outro, os dobra um no outro. É o fio
do tempo (Ibidem).
Vê-se porque, segundo Deleuze, em Kant o tempo passa para o interior do
sujeito, distinguindo um Eu puro (forma) e um eu passivo, resultantes da “fenda”
revelada pelo fio do tempo. E passando para o interior, a própria “interioridade” do
sujeito é dobrada, cindida pelo tempo de forma a nunca atingir um fim em seu
desdobramento, pois, com efeito, o tempo não tem fim. O tempo, como Deleuze o
vê, é constituído por “uma vertigem, uma oscilação.
Esclarecendo ainda mais as perguntas: em que consiste a ruptura, do
ponto de vista da subjetividade, de Kant com Descartes? Qual é a diferença entre
78
o cogito kantiano e o Cogito cartesiano?
Deleuze responde de uma vez: a
forma do tempo, a minha existência indeterminada pode ser determinada no
tempo, como a existência de um fenômeno, de um sujeito fenomênico, passivo ou
receptivo, aparecendo no tempo (Deleuze, 2000: 164-165). Essa “iniciativa” de
introduzir a forma do tempo é para Deleuze a grande decisão da filosofia
transcendental de Kant. Dizer isso significaria apontar que em Kant o sujeito
pensante não é uma substância, ele não pode ser determinado como coisa
pensante. Ele será pura forma, forma de aparição de tudo que aparece. Em outros
termos, ele é a condição de aparição de tudo aquilo que aparece no espaço e no
tempo. Forma vazia, ele condiciona toda aparição. E é possível afirmar, assim,
que é como unidade da apercepção transcendental
57
que o eu penso acompanha
necessariamente toda representação, unidade essa que tem sua razão na própria
constituição da objetividade do objeto por envolver a representação deste no
tempo e no espaço. Com efeito, a apercepção transcendental é a forma da
representação "eu penso", necessária para que qualquer representação passe a
pertencer ao sujeito epistêmico
58
. Assim sendo, o conhecimento objetivo
determina que as representações sejam concebidas como pertencentes a um
sujeito uno (apercepção). Kant parece mostrar que a unidade sintética da
consciência aparece, portanto, como uma condição para todo conhecimento
válido, não somente “para mim”, quando no intuito de conhecer um objeto, mas, a
partir dela, toda intuição deve estar a fim de tornar-se objeto “para mim”, pois, se
57
Cf. Da unidade originariamente sintética apercepção. In (Kant, 1997: § 16)
58
Nota à A117.
79
assim não fosse, se não houvesse essa ntese, o múltiplo (a diversidade dada
pela intuição) não poderia ser reunido numa consciência.
Faz-se necessário, aqui, ater por um momento aos pontos referidos por
Deleuze na obra de Kant. A diversidade dos conceitos referidos pelo autor francês,
presentes na Crítica kantiana, aparece, como se pode ver, principalmente no
Segundo Capítulo da Analítica Transcendental.
Ver-se-á, de fato, que nesse referido texto o autor alemão indica a tarefa
de uma Dedução Transcendental das Categorias, que consiste em justificar a
legitimidade dos conceitos puros a priori, referidos a objetos que o procedem de
nenhuma experiência (A85). Se trata de uma tarefa crítica, posto que tem a
pretensão de romper o “circulo vicioso” a que se encontra preso o velho recurso
dogmático, consistente na justificação (petição) de princípio do argumento
demonstrado, o qual, não obstante, se considera legítimo como meio para a
demonstração. Por outro lado, para Kant tal justificação da legitimidade dos
conceitos puros consiste em fazer compreensível o modo pelo qual o
entendimento pode referir-se, a priori, a objetos
59
; e os seus limites e alcances
quanto à produção de conhecimento e a relação com a sensibilidade. O que
permite, por sua vez, fazer compreensível a validade objetiva de seus conceitos
puros a priori, e estabelecer assim, a origem desses conhecimentos (A128).
Em relação ao propósito expresso a que Kant atribui à Dedução
Transcendental..., a justificação da validade objetiva dos conceitos puros
representa, por sua vez, a condição que legitima o uso empírico dos mesmos,
59
Esta Dedução, segundo Deleuze, qualifica o princípio de uma submissão necessária dos dados
da experiência às representações a priori e, correlativamente, de uma aplicação necessária das
representações a priori à experiência” (Deleuze, 1987: 13).
80
assim como também representa a justificação dos limites desta validade. Em todo
caso, a Dedução Transcendental... é parte indispensável da justificação do
conhecimento objetivo, além de evidenciar à consciência crítica seus próprios
condicionamentos intrínsecos.
De fato, Kant atribui, nas categorias, a própria constituição do
entendimento como lei de unidade sintética de todos os fenômenos (A128); isto é,
enquanto fundamento originário de toda experiência possível, no qual se articulam
de modo necessário e objetivo a forma da experiência. E sobre as categorias,
afirma Deleuze em A filosofia crítica de Kant:
O entendimento dispõe de conceitos a priori que se chamam
categorias; se perguntarmos como é que as categorias se
definem, veremos que são ao mesmo tempo representações da
unidade da consciência e, como tais, predicados do objeto
qualquer. Por exemplo, nem todos os objetos são vermelhos, e os
que o são não o são necessariamente; mas não objeto que
não seja necessariamente substância, causa e efeito de outra
coisa, que não esteja em relação recíproca com outra coisa. A
categoria confere assim à síntese da imaginação uma unidade
sem a qual esta nos não proporcionaria conhecimento algum
propriamente dito. Em suma, podemos dizer o que incumbe ao
entendimento: não é a própria síntese, mas a unidade da síntese
e as expressões desta unidade. (Deleuze, 1987: 15-16)
Entrementes, o propósito aqui não consiste em examinar a origem ou as
operações das categorias, mas, muito mais, os significados da apercepção
transcendental nesse contexto. Aja visto que, na análise da passagem do cogito
cartesiano para o kantiano, Deleuze encontra nesse último um eu penso como
unidade da apercepção transcendental que acompanha necessariamente toda
representação possível. Ver-se-á que tanto a concepção kantiana das categorias,
como a relativa à apercepção transcendental se encontram integradas em um
81
esforço comum para mostrar a origem sintética do conhecimento. É possível
perceber na Dedução Transcendental uma preocupação maior, por parte de Kant,
em justificar a validade objetiva dos conceitos, isto é, de deduzir sua validade em
e através da síntese do conhecimento objetivo, a qual se realiza mediante uma
série de operações (funções), entre as quais as categorias poderiam, segundo
“nosso juízo”, considerar-se como uma espécie de núcleo operacional, cuja
necessidade emana da própria justificação do conhecimento.
A questão pra Kant é: como conceber o conhecimento objetivo, se no
próprio sujeito não estivesse dada a possibilidade de conhecer um objeto da
experiência? E esta questão pode ser remetida por sua vez à outra: em que
consiste a possibilidade do conhecimento objetivo (A125)? A mesma se apóia, em
sua formulação, no reconhecimento de determinadas condições sem as quais o
conhecimento objetivo não seria possível. Daí poder dizer que a Dedução
Transcendental expõe as condições de possibilidades do conhecimento; e estas
condições, enquanto independentes dos objetos da experiência, têm sua
justificação transcendental (Kant, 1997: §13).
Para Kant, as categorias, por si só, não podem produzir conhecimentos
(como tampouco pode proporcioná-los sua mera combinação). O conhecimento só
pode ser produzido quando algo sensível é dado (pela intuição sensível) através
da apreensão e reprodução do diverso, sob as formas da intuição (o espaço e o
tempo). Tampouco a sensibilidade, por si só, pode proporcionar a ligação do
diverso, pois a sensibilidade é receptividade passiva de nossa capacidade de
82
conhecer, não pode realizar nenhuma atividade.
60
Em todo caso, a síntese
(imaginação/entendimento) como atividade pode proporcionar esta ligação, porém
ela resulta de um ato da espontaneidade do conhecimento; uma “operação” do
mesmo. Nesse sentido, afirma Kant:
Se chamarmos sensibilidade à receptividade de nosso espírito em
receber representações (receptividade) na medida em que de
algum modo é afectado, o entendimento é, em contrapartida, a
capacidade de produzir representações ou a espontaneidade do
conhecimento (Kant, 1997: A51; B75).
A Dedução Transcendental justifica o papel do entendimento na “produção” de
conhecimento, ao mesmo tempo propõe que os conceitos puros do entendimento
(categorias) são regras para a produção (unidade das sínteses), em virtude das
quais esta atividade refere (remete) à apercepção todo o diverso intuitivamente
dado. Isto é: as categorias são regras de ntese para a apercepção (e não
normas de ordenamento da experiência na síntese do múltiplo). Se trata, então,
de formas de conexão (ligação) do entendimento com a autoconsciência
(apercepção transcendental).
A primeira referência à apercepção na Dedução Transcendental na Crítica
da razão pura aparece na Passagem à dedução transcendental das categorias
(A94), quando se faz alusão às fontes originárias que “contêm” aquelas condições
60
De fato, como afirma Deleuze em A Filosofias Crítica de Kant: “Os fenômenos não são
aparências, mas também não são produtos da nossa atividade. Afetam-nos na medida em que
somos sujeitos passivos e receptivos. Podem ser-nos submetidos, precisamente porque não se
trata de coisas em si. Mas como o serão, sabendo-se que não somos nós que os produzimos?
Como é que um sujeito passivo pode ter, por outro lado, uma faculdade ativa de tal ordem que as
afecções que ele experimenta sejam necessariamente submetidas a esta faculdade? Em Kant, o
problema da relação do sujeito e do objeto tende, pois, a interiorizar-se: converte-se no problema
de uma relação entre faculdades subjetivas que diferem em natureza (sensibilidade receptiva e
entendimento ativo)” (Deleuze, 1987: 14)
83
de possibilidade de toda experiência. Sem serem derivadas de nenhuma outra
“faculdade” ou capacidade do espírito; possui mesmo um caráter originário. A
partir daí são tratadas as três fontes subjetivas do conhecimento: os sentidos, a
imaginação e, finalmente, a apercepção.
Segundo Kant, estas fontes subjetivas do conhecimento são, em si
mesmas, empíricas e a priori
61
: empíricas, quanto a sua “aplicação aos fenômenos
dados” (A115); a priori, enquanto fundam a possibilidade deste uso empírico
mesmo; isto é, o sensível, onde tem lugar a percepção, envolve a totalidade de
nossas faculdades cognitivas; a totalidade das fontes subjetivas do conhecimento
e a integralidade das condições de possibilidade de toda experiência contida
nelas. É por isso que a noção de fonte subjetiva do conhecimento adquire em Kant
um novo significado em relação às precedentes concepções racionalistas ou
empiristas: O autor alemão fundamenta uma concepção totalizadora das
faculdades cognitivas humanas, de acordo com sua concepção (sistemática) da
razão omnicompreensiva. De todo modo, esta “dupla condição”, empírica e a
priori, das faculdades cognitivas humanas, também afeta a percepção (como
percepção sensível e como percepção pura ou sentido interno).
61
Em Dos princípios de uma dedução transcendental em geral, Kant se refere a dois tipos
diferentes de conceitos, em correspondência com as fontes subjetivas: aqueles que são adquiridos
por meio da experiência e da reflexão sobre esta”, cuja justificação não requer uma legitimação
transcendental, mas meramente empírica (dedução empírica); e outro, destinado a um uso puro a
priori (A85); este é independente de toda experiência, cuja justificação não pode realiza-se
empiricamente mas de modo transcendental. Tais conceitos são os de espaço e tempo, como
formas da sensibilidade, e as categorias, como conceitos do enteendimento. Logo em seguida
reconhece que desses conceitos (espaço, tempo categorias), “como de todo conhecimento, se
pode buscar não o princípio de sua possibilidade, mas as causas ocasionais da sua produção”, e
indica que as impressões dos sentidos representam a “primeira ocasião” para que se manifeste
toda a faculdade de conhecimento e para constituir a experiência (A86).
84
Com efeito, pode-se ver a classificação da percepção em dois tipos ou
classes: 1ª, como apercepção empírica (sentido interno), porquanto representa
empiricamente os fenômenos (A107;A115) na consciência empírica da identidade
das representações na reprodução dos fenômenos (segundo a imaginação
empírica), em virtude dos quais estas representações reprodutivas foram dadas;
tal consciência (empírica) da identidade é denominada por Kant reconhecimento;
2ª, por sua vez, a apercepção transcendental funda a possibilidade (A107;A115);
da consciência empírica
62
; isto é, da identidade integral de si mesmo em todas as
representações possíveis. Por conseguinte, a apercepção transcendental “atua”
como o fundamento interno de toda conexão de representações, cuja necessária
convergência nesse fundamento recebe nele a unidade do conhecimento para
uma experiência possível (A116).
Porém, a consciência (apercepção) empírica tem uma relação necessária
com a consciência (apercepção) transcendental, autoconsciência (apercepção
originária)
63
, pois todas as intuições não são nada para nós e não nos dizem
respeito algum, se não puderem ser recebidas na consciência (...) somente por
esse meio é possível o conhecimento (A116). Kant considera que “temos” de
modo a priori consciência da identidade integral de “nos mesmos” com respeito a
62
Sem entrar aqui em maiores aprofundamentos, interessa notar que Kant, ao que parece, deixa
transparecer uma possibilidade da unidade dos eus(moi e Je) destingidos por Deleuze quando
mostra a cisão sofrida pelo cogito substancial cartesiano, mediante inserção do tempo entre o Eu
penso (a determinação) e o eu sou (o indeterminado). que toda a percepção tem por
fundamento a priori a intuição pura (...) e a consciência empírica a apercepção pura, isto é, a
completa identidade consigo mesma em todas as representações possíveis (Kant, 1997: A116).
De todo modo, no entanto, a forma subjetiva, que é objeto da crítica deleuziana, é mantida em uma
identidade integral de si.
63
Cf. nota de Kant, onde se pode ler: “Toda consciência empírica têm, porém, uma relação
necessária a uma consciência transcendental (que precede toda a experiência particular), a saber,
a consciência de mim próprio como apercepção originária” (Kant, 1997: A117).
85
toda as representações que possam pertencer alguma vez à “nosso
conhecimento”, o qual constitui uma condição necessária de possibilidade de
todas as representações. Refere-se a essa tal condição como princípio
transcendental da unidade de todo o diverso das nossas representações
também do diverso da intuição (A116) que se torna, pois, válido em relação a
todas as “nossas faculdades” cognitivas atuando com isso como princípio das
formas da intuição sensível (espaço e tempo), nas quais o autor alemão,
originalmente, havia feito repousar o fundamento (imediato) da unidade do
múltiplo. Porém segundo Kant, esta unidade de todo o diverso, dado nas
representações de um sujeito, é unidade sintética, motivo pelo qual a apercepção
transcendental constituí, assim, o princípio da unidade sintética do diverso em
toda intuição possível (A117).
Por conseguinte, a apercepção transcendental não funda na unidade
transcendental da consciência a possibilidade da unidade do diverso, como
também atua como princípio de todo uso do entendimento, enquanto síntese da
diversidade do múltiplo sensível. Por sua vez, a síntese da diversidade da intuição
define propriamente a outra das fontes (e faculdades) subjetivas ou do
conhecimento humano: a imaginação, que sendo condição transcendental do
conhecimento atua como faculdade “produtiva” a priori. Faz-se referência, aqui,
como se pode ver, à imaginação pura, que possibilita a unidade do “diverso da
intuição, por um lado, com a condição da unidade necessária da apercepção pura,
de outro” (A124); possibilita a ligação entre entendimento e sensibilidade. Ao
mesmo tempo, Kant aponta que a apercepção transcendental deve acompanhar
todas as “nossas representações”, que, por sua vez, devem remeter-se à
86
imaginação pura, porquanto em si mesma, a síntese (a priori) da imaginação é
sensível (como ligação do dado na intuição pela imaginação reprodutiva). O que
significa que a imaginação é uma faculdade fundamental da alma humana (A124),
como faculdade intelectual e “produtiva”. Assim, a imaginação é a faculdade que
liga o múltiplo da intuição sensível, mas que depende do entendimento pela
unidade de sua síntese intelectual, e da sensibilidade pela diversidade da
apreensão (A120; A124).
Kant se refere ao entendimento puro (A119) para definir a unidade da
apercepção (unidade transcendental da consciência) com relação à síntese
transcendental da imaginação, assim como a possibilidade desta última enquanto
ela o se funda na imaginação (meramente reprodutiva), mas em certos
conhecimentos puros a priori que contêm a unidade necessária da síntese pura da
imaginação com respeito a todos os fenômenos possíveis. De todo modo, o
entendimento puro denota relação de todo uso empírico do entendimento com
respeito à imaginação pura como faculdade intelectual, em virtude de sua
necessária relação com o caráter omnicompreensivo da apercepção
transcendental.
Do que foi exposto até aqui, cabe averiguar se a apercepção
transcendental faz parte do entendimento ou ele excede os limites do
entendimento puro.
Kant indica que o objeto não é exterior às “nossas” faculdades de
conhecimento, pois os fenômenos mesmos não são mais do que representações
sensíveis que devem ser consideradas em si mesmas em vista de objetos (A104).
Nesse sentido, as categorias são regras do entendimento, este denominado por
87
Kant como “faculdade das regras”
64
. Esta faculdade não é resultado (empírico) da
comparação dos fenômenos, mas constitui, isso sim, uma faculdade a priori que
confere aos fenômenos sua legitimidade, tornando possível a experiência. Ao
mesmo tempo, como experiência possível todos os fenômenos se encontram a
priori, como possibilidade formal no entendimento, pois este último é fonte das leis
naturais e, portanto, da unidade formal da natureza (A127).
Segundo Kant, a apercepção transcendental se apresenta como condição
de possibilidade de uma autoconsciência humana e como sujeito transcendental
dos pensamentos, conhecido só em virtude dos pensamentos que são seus
predicados, sem os quais não poderíamos ter dele nem o menor conceito;
apresenta-se também como princípio transcendental da unidade do conhecimento
e como princípio do uso empírico do conhecimento (na síntese da representação
em virtude da imaginação). Porém, na Dedução Transcendental a tese kantiana
da apercepção transcendental diz respeito, especificamente, ao entendimento
(pois a justificação da legitimidade das categorias apela ao que poderíamos
denominar “descrição fenomenológica” das formas de nteses mediante as quais
“opera” o entendimento).
Kant conferiu, finalmente, à unidade da apercepção, a condição de
principio transcendental da conformidade necessária de todos os fenômenos às
leis numa experiência, pois todas as leis empíricas são determinações
particulares das leis puras do entendimento, a parti das quais, e por cuja norma,
64
Cf. (Kant, 1997: A126); e ainda em, Do juízo transcendental em geral. Se é definido o
entendimento como a faculdade de regras, a faculdade de julgar será a capacidade de subsumir a
regras, isto é, de discernir se algo se encontra subordinado a dada regra ou não (casus datae
legis)” (Kant, 1997:177).
88
são antes de tudo possíveis, e os fenômenos recebem uma forma de lei
(A127;A128). Com efeito, se o entendimento é a faculdade legislativa a priori de
toda a experiência possível, a apercepção transcendental é o fundamento
(transcendental ou a priori em relação a toda experiência) do caráter necessário
da sujeição às leis de todo fenômeno dado empiricamente e, por conseguinte, o
fundamento transcendental de todo uso empírico do entendimento.
Esta unidade da apercepção não pode ser outra coisa senão a unidade
da consciência, a qual, por sua vez, não pode ser senão transcendental enquanto
condição de possibilidade não somente da experiência, mas do próprio
conhecimento objetivo e do entendimento mesmo, conforme se pode ver nessa
afirmação:
Somos nós próprios que introduzimos, portanto, a ordem e a
regularidade nos fenômenos, que chamamos natureza, e que não
se poderiam encontrar, se nós ou a natureza do nosso espírito,
não as introduzíssemos originalmente. Com efeito, essa unidade
da natureza deve ser uma unidade necessária, isto é, certa a
priori, da ligação dos fenômenos. Mas como poderíamos produzir
a priori uma unidade sintética, se, nas fontes originais de
conhecimento do nosso espírito, não estivessem contidos a priori
princípios subjetivos dessa unidade e se essas condições
subjetivas não fossem, ao mesmo tempo, objetivamente válidas,
visto serem os princípios I da possibilidade de conhecer em geral
um objeto na experiência? (Kant, 1997: A125-126)
Voltando entrementes, para a crítica dispensada por Deleuze, temos que
Kant passaria, dentro desse quadro, de um Eu como substância infinita, para eu
finito sintético. Muda-se, com efeito, de um “Eu penso, eu sou” (o Cogito
cartesiano) para uma “verdadeira fórmula (sintética) do cogito”: penso e,
pensando-me, penso o objeto qualquer ao qual se refere uma diversidade
representada” (Deleuze, 1987: 15).
89
A questão para Deleuze é que, reconhecida a mudança de um eu
substancial para um eu sintético, que se tomar como duvidosa sua importância
do ponto de vista de um rompimento com uma imagem do pensamento que
subjuga a filosofia da diferença à forma do Mesmo no pensamento. O autor
argumenta que, pouco importa que se conceba a identidade como analítica ou
sintética, pois em ambos os casos a diferença, condição para uma verdadeira
filosofia da diferença, é reduzida ao negativo e subordinada ao idêntico. Ele
afirma, por fim, que a unidade e a identidade da substância divina são na verdade
a única garantia do Eu uno e idêntico, e Deus se conserva enquanto se guarda o
Eu. Eu finito sintético ou substância divina analítica são a mesma coisa(Deleuze,
2000: 125).
Numa breve digressão sobre a idéia de uma filosofia da diferença
defendida acima, tem-se que, segundo Deleuze, as coisas diferem, tanto de si
mesmas como de outras coisas, que o devir é real, o campo é real, e é real o
mundo onde diferem; de fato, se as coisas diferem e são imanentes, a imanência
mesma tem que ser a diferença, a diferenciação em que diferem, dado que a
imanência não é imanente à outra coisa. Que as coisas diferem e que são
imanentes quer dizer que a imanência, a que são imanentes, não pode ser nem
uma identidade sintética nem uma profundidade indiferenciada. Concebida desse
modo, a imanência não seria outra coisa senão o “mundo da representação”, um
“Mesmo preexistente” (Deleuze, 2000: 474-475), que compreenderia a diferença
como diferença conceitual, abstrata e vazia. Contra um mundo preexistente às
coisas e que serve a estas de modelo ou telos, empreende Deleuze uma grande
batalha, animado por uma inversão das imagens do pensamento (inversão do
90
platonismo e por que não dizer, do cartesianismo) e pondo em jogo os conceitos
nos quais se alicerçam as filosofias da representação.
Voltando a questão da análise deleuziana da passagem do Cogito
cartesiano ao cogito kantiano, ver-se-á, ainda, que o pensador alemão, nesse
momento preciso de sua filosofia, chega ao terreno da diferença, da diferença
transcendental atinge a imanência –, mas não suporta permanecer lá. Kant, ao
restaurar uma forma da identidade sintética, teria encontrado, assim, um meio
moderno de salvar a transcendência em um Sujeito ao qual o campo de
imanência é atribuído por pertencer a um eu que se representa necessariamente
um tal sujeito (reflexão) (Deleuze e Guattari, 1992: 64). Ele adentrou por pouco
tempo na mais alta potência do pensamento, mas se subordinou posteriormente à
forma da identidade, do Mesmo, enfim, à experiência possível, permanecendo
com isso no elemento puro da representação. Tendo descoberto o prodigioso
domínio do transcendental, Kant não conduz sua filosofia até o subterrâneo desse
domínio (pura imanência) e decalca as estruturas ditas transcendentais sobre os
atos empíricos da consciência psicológica, induzindo com isso a síntese
transcendental da apreensão, de uma preensão empírica correspondente
65
. De
todo modo, apesar de reconhecer toda a potência da doutrina kantiana, Deleuze
ainda o tem como aquele que permanece subordinado aos postulados da imagem
do pensamento, principalmente o da recognição, concordância das faculdades,
fundada no sujeito pensante tido como universal e se exercendo sobre o objeto
65
Cf. MACHADO, Roberto. Deleuze e a filosofia. Rio de Janeiro: Graal, 1990,132. Kant
determina o transcendental por analogia com a vida psicológica. E teria sido inclusive para ocultar
esse procedimento psicologista tão evidente de decalque do transcendental sobre o empírico que
Kant teria suprimido esse texto na segunda edição da Critica da razão pura, passando diretamente
à síntese da recognição.
91
qualquer, e do senso comum e do bom senso que toma o pensar como o exercício
natural de uma faculdade, uma boa vontade e uma natureza reta para o
pensamento.
66
Assim, tal como apontado em Descartes, em Kant também parece
possível identificar, de acordo com Deleuze, a atuação dos postulados da imagem
dogmática do pensamento nas suas diversas formas. Buscando a presença
desses na doutrina kantiana ver-se-á que pelo primeiro, o Cogitatio natura
universalis, o pensador assume de forma implícita a afeição do pensamento
natural para com a verdade mediante dois aspectos: uma boa vontade daquele
que pensa, aliado a uma natureza reta do próprio pensamento. Ou seja, parte-se
da idéia que todo mundo saiba de forma implícita o que pensar quer dizer, aja
vista todos pensarem naturalmente. Vê-se aqui a manifestação da representação
como instância fundamental da imagem do pensamento. Ela aparece aqui sob sua
forma mais geral, fundada no pressuposto do senso comum como natureza reta
do pensamento e boa vontade do pensador.
nesse sentido, o pensamento conceitual filosófico tem como
pressuposto implícito uma Imagem do pensamento pré-filosófica e
natural, tirada do elemento puro do senso comum. Segundo essa
imagem, o pensamento está em afinidade com o verdadeiro,
possui formalmente o verdadeiro e quer materialmente o
verdadeiro (Deleuze, 2000: 228).
mediante o segundo postulado, o ideal do senso comum, opera-se
uma dada distribuição do empírico e do transcendental. Este postulado por sua
66
Cf. Capitulo I, Relação das faculdades na crítica da razão pura, in DELEUZE, Gilles. A filosofia
crítica de Kant. Tradução de Geminiano Franco. Lisboa: Edições 70, 1987, p.19-34.
92
vez está calcado na representação, sob os dois aspectos apontados
anteriormente. Essa distribuição, através do modelo da recognição como exercício
acordante das faculdades se exercendo sobre um suposto objeto tido como o
mesmo, se incute na imagem do pensamento. O reconhecimento de um objeto
é levado a termo quando o seu dado é referido ao conjunto das faculdades.
Tomado como modelo do conhecimento, a recognição torna indispensável a
exigência de um princípio subjetivo, uma colaboração das faculdades, ou seja, um
senso comum fundado na concordância das faculdades é exigido como
pressuposto do conhecimento. Entrementes, para o pensador francês, a forma da
identidade do objeto coloca a exigência do pressuposto implícito de que existe
uma unidade no sujeito pensante do qual todas as faculdades devem ser modos.
Vê-se, com isso, que no respeitante à recognição surgem duas instâncias
que se completam como modelo de conhecimento: o senso comum como princípio
da identidade, como Eu puro, e o bom senso que age determinando que as
faculdades contribuam segundo cada caso: norma da partilha. De um lado, tem-se
o senso comum construindo a identidade do eu e dos objetos nele, do outro o bom
senso determinando o modo pelo qual deve ocorrer a colaboração das faculdades
na “construção” desses referidos objetos.
o terceiro postulado, o do modelo da recognição, universaliza a doxa
elevando-a ao nível racional, que é pela recognição que se mantém a forma do
senso comum como concórdia das faculdades fundadas no sujeito pensante
tomado como universal e se exercendo sobre o objeto qualquer. Abstrai-se, aqui,
o conteúdo da doxa, mas mantém dela o essencial, o uso das faculdades que a
ela corresponde. Esse modelo de construção do conhecimento baseado numa
93
concordância das faculdades, em um reconhecimento operado pela
representação, é apresentado por Deleuze sob uma forte interpretação crítica.
Deleuze mostra ainda que as sínteses são índice do uso contribuinte das
faculdades pensantes, na medida que estas se expressam na forma do objeto
qualquer como correlato do eu penso ao qual referem o conjunto das faculdades.
Deleuze adverte que há, porém, um único momento na filosofia do autor
alemão em que é descoberto o exercício legítimo de uma faculdade: é no sublime
onde a imaginação encontra seu próprio limite e é forçada, coagida a atingir seu
máximo. Sofrida uma coerção por parte do sublime, essa “violência” é transmitida
ao pensamento fazendo-o, por sua vez, pensar o supra-sensível. Afirma Roberto
Machado, no juízo do sublime a relação entre as faculdades se diretamente
entre a imaginação e a razão. E se essa relação não está marcada pelo prazer
[concórdia das faculdades] mas também por dor, desprazer, é que, neste caso, a
razão força a imaginação a atingir o seu ximo(Machado, 1990: 111). Aqui, o
pensamento e a imaginação são tomados por uma discordância fundamental,
discordância essa que funda, na violência recíproca, um novo tipo de acordo: um
acordo discordante, a partir do qual é possível brotar um novo tipo de
pensamento, um pensamento da diferença, da criação, que foge à recognição
como modelo, evita o mesmo.
De todo modo, contra Kant Deleuze argumenta, ainda, que tendo
chegado a um ponto possível de reversão da imagem ortodoxa do pensamento,
marcado pela substituição do eu substancial pelo eu fendido pela corrente do
tempo, ele não renuncia ao pressuposto implícito da cogitatio natura universalis,
mantendo assim o pensamento preso a um senso comum, a uma natureza reta do
94
pensar. De todo modo, mediante a recognição o pensamento se preenche com
uma imagem de si mesmo, do que significa pensar, na qual ele se reconhece e
reconhece as coisas. O que para Deleuze, no entanto, não significa o próprio
pensar.
(…) Nota-se a que ponto a crítica kantiana é finalmente
respeitosa: nunca o conhecimento, a Moral, a reflexão, a fé, são
postos em questão, julgando-se que correspondam a interesses
naturais da razão, mas somente o uso das faculdades, que é
declarado legítimo ou não de acordo com este ou aquele desses
interesses. Em toda a parte, o modelo variável da recognição fixa
o bom uso, numa concórdia das faculdades determinada por uma
faculdade dominante sob um senso comum (…) (Deleuze, 2000:
237).
Para uma melhor compreensão dessa crítica é preciso ter em mente que Deleuze
relaciona a recognição (e seu modelo de pensamento) a uma abordagem moral do
próprio pensamento. Posto assim, ver-se-á que para o autor um pensamento que
reconhece uma verdade pressuposta (que se limita a uma boa vontade do
pensador e ao modelo de recognição), é tido como um pensamento que se
conforma com os sentidos e valores fixados, não ansiando verdadeiramente por
uma revolução do ponto de vista dos fundamentos em que se assenta. Como se
pode ver, A recognição não acopla somente um Eu suposto unitário e um objeto
qualquer correlato, mas também incide sobre valores, e valores estabelecidos
(Pelbart, 2004: 64). Mesmo tendo em conta o que tange ao reconhecimento na
percepção, o autor francês considera, contudo, que o papel do pensamento não
deve se fechar no reconhecer, mas deve se abri para a criação. Assim, os objetos
95
da recognição dão pleno emprego às faculdades, contudo isso não subsume de
modo nenhum o exercício do pensamento.
Por fim, a falha na doutrina kantiana aparece, segundo Deleuze, na
presunção de uma boa vontade do pensador aliado a crença numa natureza reta
do pensamento, que fazem com que Kant determine as estruturas transcendentais
do pensamento tomando para tal o decalque dos atos empíricos da consciência. A
partir daí, a síntese transcendental da apreensão é induzida através de uma
apreensão empírica, o que torna o modelo especulativo insuficiente
67
.
Pode-se observar, finalmente, que os postulados da imagem dogmática
nos quais Deleuze sempre identifica os esquematismos envoltos no cogito, mais
ou menos explícitos em Descartes ou Kant, conduzem, deste modo, ao que ele
chama de “ilusão transcendental” que recobre-se com uma ‘imagem’ composta
de postulados que desnaturam seu exercício e sua gênese. Estes postulados
culminam na posição de um sujeito pensante idêntico, como princípio de
identidade para o conceito em geral(Deleuze, 2000: 424). De qualquer modo,
uma liberação das potências da diferença dependeria assim de uma dobra nessa
razão suficiente, de uma dobra nesse fundamento que sempre espreita o
pensamento, fazendo mostrar todo um sem-fundo subjetivo e objetivo que marca
o ato de pensar. É por isso que vez por outra Deleuze reencontra autores como
Bergson e Espinosa como aqueles que permaneceram num puro plano de
67
Cf. (Machado, 1990: 132).
96
imanência e não foram seduzidos pela imagem do pensamento que pressupõe
uma forma subjetiva que subsume o mundo no seu ato de pensar.
68
As Meditações de Husserl: continuidade na imagem do pensamento
Embora de maneira esparsa, há certamente uma grande presença de
Husserl no pensamento de Deleuze, marcada, sobretudo, por uma relação de
admiração e desconfiança”. Admiração pela força dos conceitos engendrados e
desconfiança no que diz respeito à continuidade em uma imagem do pensamento
antes denunciada e que teve sua gênese em Descartes.
69
Vê-se mesmo que,
sob as mais variadas formas em que é retomada, a crítica dirigida por Deleuze à
fenomenologia de Husserl tem por base as questões envoltas na constituição da
subjetividade transcendental e a posição assumida pelo filósofo alemão como um
dos últimos pensadores a fazer uma filosofia do sujeito
70
.
Para exposição das questões que animam a crítica deleuziana ao
68
Na afirmação de Roberto Machado, A relação entre criação de conceito e tradição filosófica,
como a realiza Deleuze, consiste em erigir o modelo – ou o processo – de pensamento de
determinados filósofos como condição de seu modo singular de filosofar. Assim, o privilégio de
determinados filósofos em seus estudos monográficos e a tentativa de construir um “espaço ideal”
diferente do representado por Platão, Aristóteles, Descartes, Hegel, ... que se organiza
segundo outros princípios e pretende escapar dos pressupostos em que se acredita estar fundada
a filosofia; é o projeto de criar, a partir de filósofos passiveis de entrar em relação, em
comunicação, em ressonância num mesmo espaço conceitos que expressem ou tornem possível
um novo pensamento, ou que tornem o pensamento de novo possível. MACHADO, Roberto.
Deleuze e a filosofia. Rio de Janeiro: Graal, 1990, p. 13.
69
E não se trata simplesmente, aqui, de dizer que uma continuidade em Husserl das teses do
cartesianismo.
70
Cf. JARDIM, Alex F. C. Como sair da ilha da minha consciência: Gilles Deleuze e uma crítica
à subjetividade transcendental em Edmund Husserl. São Carlos: Centro de Educação e Ciências
Humanas, UFSCar, 2007, p. 23. Tese (Doutorado em Filosofia), p.4. Esse tema é desenvolvido
largamente nesse texto.
97
pensamento desse filósofo, pelo menos no respeitante a permanência na imagem
do pensamento que envolve as filosofias da consciência, voltar-se-á a atenção
para as Meditações Cartesianas. A escolha desse texto específico para
abordagem no presente trabalho se dá por ser esse um texto emblemático, ao que
tudo indica, do idealismo transcendental do autor alemão. É possível perceber
bem isso na afirmação de que:
Se o ser depende da consciência e é o produto da intencionalidade,
aqui uma decisão idealista sobre o próprio sentido do ser,
decisão que se manifesta de forma mais completa nas Meditações
Cartesianas, onde o mundo não é apenas para mim’ mas retira
todo seu estatuto de ser “de mim” (Moura, 1989: 13).
Dito isso, o que interessa notar aqui é como logo no primeiro parágrafo
das suas Meditações, Husserl anuncia a fenomenologia transcendental deixando
claro o apreço e a dívida com Descartes no que concerne à elaboração de uma
filosofia transcendental que, salvo as distinções posteriores, terá um papel
fundamental para construção de sua doutrina. Com efeito, Husserl verá em
Descartes, como dito nas Meditações Cartesianas, a inauguração de um tipo novo
da filosofia, na qual o objetivismo ingênuo é substituído pelo subjetivismo
transcendental. Toda a história da filosofia posterior será marcada por isso. E é,
ainda, em conformidade com essa posição que se pode reafirmar que:
Husserl se situa na tradição filosófica como devedor” do
pensamento moderno, basta vermos a introdução das Meditações
Cartesianas, quando Husserl assume a sua dívida para com
Descartes em uma conferência dada na Sorbonne. O que não o
impede de assumir também, a seu modo, o desenvolvimento de
uma crítica, quando ele radicaliza as exigências do cartesianismo,
98
e insinua-se na contemporaneidade filosófica
71
.
E seguindo a exposição, o autor alemão apresenta a seqüência dos
pensamentos de Descartes nas meditações: tal obra objetiva uma reforma total
da filosofia para fazer dela uma ciência com fundamentos absolutos”, uma “ciência
universal(Husserl, 2001: 20). Husserl mostra que para reconstrução do edifício
que corresponderia a tal idéia de filosofia, o mestre francês volta-se para o sujeito
como o que se poderia obter como alicerce. E esse nero de meditação
desenvolvido por Descartes deve, segundo o autor alemão, orientar todo aquele
que pretende fazer filosofia (um dos motivos pelo qual Deleuze irá apontar a
fenomenologia de Husserl como uma permanência na imagem dogmática do
pensamento inaugurada por Descartes). O voltar-se para si é o primeiro e
necessário movimento do filósofo rumo ao saber verdadeiro. Essas meditações
desempenham o protótipo do gênero de meditações necessárias a todo filósofo
que começa sua obra, meditações que sozinhas podem dar origem a uma
filosofia (Husserl, 2001: 20). Como se vê, aqui está antevista por Husserl sua
intenção de transformar a filosofia transcendental orientada para o sujeito, em uma
fenomenologia transcendental.
Aqui, tal qual no mestre francês, é através da dúvida que se delineia o
caminho pelo qual é possível um voltar-se para o eu. por meio da dúvida como
método é possível suspender o juízo de existência acerca de tudo aquilo que
apresentar a menor possibilidade de engano: a universalização da dúvida
71
(Jardim, 2007: 23). É nesse sentido, sem dúvida, que Husserl interpretará Descartes - apesar de
um rompimento necessário para seu pensamento - fazendo dele o “patriarca da fenomenologia: “o
filósofo que deve ser venerado pela fenomenologia ... como um verdadeiro patriarca", é Descartes,
o "maior pensador da França” (HUSSERL. Conferências de Paris, p. 9).
99
metódica. Husserl conduz, então, ao ponto neurálgico das meditações em que o
sujeito que medita retém a si próprio como ego puro de suas cogitationes
(Husserl, 2001: 21). Partindo de uma solipsismo inicial esse “eu”, em sua
interioridade pura, busca agora a afirmação da exterioridade objetiva. Ver-se-á,
pois, em Descartes, o recurso à Deus como condição do mundo objetivo, de um
dualismo das substâncias.
Husserl considera, ainda, que as meditações de Descartes em virtude de
seu retorno ao ego cogito, marcaram época na filosofia; inaugura um novo tipo de
filosofia (Husserl, 2001: 22). Tratar-se-ia de uma mudança radical de um
objetivismo ingênuo para um subjetivismo transcendental que tenderia para uma
forma definitiva, a qual ele, Husserl, seria chamado a colaborar. O autor chega
mesmo a se perguntar se
O único renascimento realmente fecundo não consistiria em
ressuscitar as Meditações Cartesianas, não, é claro, para adotá-
las integralmente, mas para desvelar já de início o significado
profundo de um retorno radical ao ego cogito puro, e fazer reviver
em seguida os valores eternos que dele decorrem? É, pelo
menos, o caminho que conduziu à fenomenologia transcendental
(Husserl, 2001: 23-24).
Dando seguimento às suas Meditações, Rumo ao Ego Transcendental, tal
como procedera Descartes, Husserl convida o filósofo a partir em busca de uma
ciência universal possuidora de fundamentos absolutos
72
. Para tanto é necessário
colocar de lado as “convicções admitidas até aqui(Husserl, 2001: 25). No limite, é
72
Em uma análise da crítica à subjetividade transcendental em Husserl empreendida no
pensamento de Deleuze, JARDIM, Alex F. C. encontra o tema da busca do “ponto adequado e não
aleatório onde pudesse se ancorar todo princípio”. Como se sabe pelas palavras do próprio
Husserl, é em Descartes que está a origem dessa busca e desse ponto (Jardim, 2007: 69).
100
preciso colocar em dúvida até mesmo a possibilidade dessa ciência de
fundamentos absolutos. Para prosseguir sua empreitada, Husserl toma
emprestado das ciências sua idéia geral de ciência, tendo em mente que agora
pode tomá-la como hipotética.
73
Nesse primeiro instante não se trata de tomar as ciências existentes como
ponto de partida, o que importa é a pretensão dessas ciências, onde está
implicada a idéia de ciência verdadeira (Husserl, 2001: 27). É importante, aqui,
conhecer o sentido da argumentação do autor: trata-se de reconhecer o relevante
papel da fundamentação dos julgamentos na ciência. Fundamentando (provando),
pode-se perceber uma verdade concebida previamente como sendo a mesma que
sobrevém posteriormente. Essa se torna conhecimento. Analisando mais
detidamente o sentido desse conhecimento, tem-se, no que concerne ao acordo
de nosso julgamento com a coisa julgada, de um lado a presunção de que a coisa
existe e é de tal forma, e de outro a evidência como julgamento intencional muito
particular. Por fim, na evidência, a coisa ou o ‘fato’ não é somente ‘vista’, de
maneira distante e inadequada; ela própria está presente diante de nós, e o sujeito
que julga tem dela uma consciência imanente” (Husserl, 2001: 28).
Segue-se que, a idéia cartesiana de uma ciência universal é reduzida ao
mesmo ideal que guia todas as ciências em sua tendência à universalidade. Na
evidência alcança-se a coisa ou o fato em si. Podendo mesmo a evidência ser
mais ou menos perfeita, conforme se “aproxima” de seu objeto. Importa notar,
ainda, que a ciência, ao contrário da vida cotidiana que se contenta com verdades
relativas, quer verdades válidas de uma vez por todas e para todos”. A partir daí,
73
Contrariamente a Descartes que parte de um ideal geométrico.
101
Husserl tem em mãos um primeiro princípio metódico, a saber: nem emitir nem
admitir como válido nenhum julgamento se não o obtido a partir da evidência, ou
seja, de forma tal que as coisas e os fatos em questão sejam apresentados em si.
O que está em foco aqui é a descoberta e a possível implicação de uma ordem
sistemática de conhecimentos, e conhecimentos verdadeiros. Como se pode ver,
a busca dessa ordem expõe, ainda, uma importante questão para Husserl, a
saber: quais são as verdades primeiras em si que deverão e poderão sustentar
todo o edifício da ciência universal? (Husserl, 2001:30-32). Com esse problema
levantado, mostra Husserl que todo o edifício de uma ciência universal deve ser
sustentado por verdades primeiras, evidentes, apodicticas, em si.
Vale dizer ainda que, com a utilização da evidência, ao se voltar a
estabelecer um ponto de partida absolutamente seguro, fundamenta-se um
edifício inteiro de conhecimento universal. Tal é o princípio metódico da evidência
apodítica que exclui toda a dúvida. Husserl verifica ainda, que a evidência da
existência do mundo não é apodítica a ponto de excluir a possibilidade de tornar-
se duvidosa a realidade do mundo ou a possibilidade de sua inexistência. Vê-se
mesmo que a validade da existência do mundo exterior se funda em uma
experiência ingênua e a crítica cartesiana, pela dúvida metódica, provara que o
conjunto da experiência do mundo pode revelar-se e parece haver se revelado em
Descartes como ilusão, como “sonho universal”. Como não podemos, sem
contestação, considerá-la [a evidência do mundo] como apodictica (Husserl,
2001: 35), tem-se em decorrência disso que a existência do mundo não pode se
apresentar como fundamento apodítico para uma filosofia universal. Somente o
cogito entendido com Ego Sum Cogituns, como o eu puro e suas cogitationes
102
pode ser, com efeito, a base da evidência apodítica.
De fato, a existência natural do mundo do qual posso falar
pressupõe, como uma existência em si anterior, a do ego puro e
de suas cogitationes. O domínio de experiência natural, portanto,
só tem uma autoridade de segunda categoria e pressupõe sempre
o domínio transcendental. É por isso que o esforço
fenomenológico fundamental, ou seja, a εποχη transcendental, na
medida em que nos leva a esse domínio original, chama-se
redução fenomenológica transcendental. (Husserl, 2001: 39).
Pois bem, com o descobrimento do ego transcendental ou consciência
como fundamento da “realidade”, chega Husserl a uma etapa mais claramente
idealista de seu pensamento iniciada na obra Lógica formal e transcendental
74
,
mas agora exposta de forma mais explicita nas suas Meditações.
Como se sabe, Husserl introduz o tema do eu transcendental como
princípio universal da nova ciência partindo do pressuposto de Descartes, porém,
causando uma polêmica reação contra sua interpretação. É notável que Descartes
assinalara bem o começo da filosofia transcendental moderna. A sua crítica à
experiência conduziu ao resultado de que o pressuposto ingênuo sobre o mundo
deve anular-se e todo conhecimento objetivo deve fundar-se num único dado
apodítico: ego cogito. Contudo, esse começo cartesiano com o grande
descobrimento da subjetividade transcendental foi em seguida acompanhado por
uma confusão funesta que conduz ao realismo. Descartes tomou esse eu puro por
uma substantia cogitans distinta, por um axioma de onde se pode partir por
dedução, procedendo “ordine geométrico” de modo semelhante às ciências
74
Cf. MOURA. Crítica da razão na fenomenologia, p.13.
103
geométricas
75
. Daí tratou de inferir deste, por um procedimento dedutivo e
mediante o pressuposto ingênuo e a priori da causalidade, o resto do mundo: a
substância infinita e as substâncias finitas do mundo fora da minha própria
substância anímica. Tendo descoberto o mais importante, tendo chegado ao
primeiro termo da ciência verdadeira, Decartes aliena seu sentido mais certo e não
atinge com isso o sentido último da subjetividade transcendental. Ao interpretar o
ego como subtantia cogitans, que é a mente ou a alma humana, ponto de partida
para inferir por dedução causal outras substâncias, Descartes cometeu um grande
erro, convertendo-se em pai do chamado realismo transcendental”. Não
compreendeu o sentido da subjetividade transcendental e não obteve os mais
altos resultados possíveis daí. Não teria, assim, atravessado as portas que leva à
filosofia transcendental verdadeira (Husserl, 2001: 42). O erro ocorre, segundo
Husserl, na confusão do ego com a realidade do eu enquanto alma humana
formando parte do mundo espacial. Descartes não viu que toda a exterioridade
tem de antemão seu lugar na interioridade pura do ego enquanto pólo intencional
da experiência. (Husserl, 2001: 41-42)
Com efeito, o sentido do eu transcendental expresso no cartesiano ego
cogito se alcança mediante mudança através do método da epoché
(εποχη)
fenomenológica, que é suspensão universal (inibição, invalidação) de todas as
posições tomadas ante o mundo objetivo. A redução transcendental invalida a
crença na realidade que é inerente à experiência, e o mundo se limita a ser para
nós uma mera pretensão de realidade”. -se, pois, que a epoché é o método
radical e universal por meio do qual “me apreendo” como eu puro como a vida de
75
Op. cit. p.27.
104
“minha consciência” que me é própria, na qual o mundo objetivo inteiro é “para
mim...”; não é absolutamente nada mais que o mundo presente na consciência e
válido “para mim como cogito. Assim, obtenho a mim mesmo como ego puro
com a corrente pura de “minhas” cogitationes (Husserl, 2001: 43).
Este eu transcendental não é, portanto, objeto de experiência natural ou
empírica; se obtém somente através da redução universal da epoché que invalida
ou elimina toda crença do mundo natural: Este eu que me resta em virtude de
semelhante epoché... não é uma parte do mundo”, mediante a epoché
fenomenológica
Reduzo meu eu humano natural e minha vida psíquica domínio
de minha experiência psicológica interna a meu eu
transcendental e fenomenológico (...). O mundo objetivo, que
existe para mim (...) com todos os seus objetos encontra em mim
mesmo, como disse acima, todo o sentido e todo o valor
existencial que tem para mim; ele os encontra no meu eu
transcendental, que revela a εποχη fenomenológica
transcendental. (Husserl, 2001: 43).
Aqui, a redução fenomenológica já não é um simples colocar entre
parênteses ou abstenção metódica; ela se convertera em redução transcendental
que, ao que parece, é real e elimina a realidade exterior do mundo, a qual se
transforma em simples correlato intencional da experiência transcendental do eu.
Com efeito, a redução fenomenológica é o método, ou a porta de entrada,
mediante a qual se chega ao estudo da consciência pura, que é o objeto de
estudo da fenomenologia pura ou transcendental.
Sobre a “continuidade” do cartesianismo em Husserl, o que se pode dizer é
que Descartes, diferentemente de Husserl, não apresentara o tema da filosofia
105
como o estudo do cogito, seu feito fora outro; a saber, apresentar pela primeira
vez a radical importância do cogito na constituição do conhecimento dando a esse
o status de fundamento ou primeiro princípio. Claro está que o motivo de uma
retomada, mas também o índice de uma diferença, fundamentam-se no fato de
que o estudo do cogito [Husserl] pressupõe a demonstração de tal importância
[Descartes]. Logo, Descartes se propõe desenvolver a segunda das questões,
ficando a primeira ao encargo de Husserl e da sua fenomenologia.
Esse sobrevôo permite chegar, afinal, à posição de Husserl em relação à
redução fenomenológica: “É preciso de inicio perder o mundo pela εποχη
[epoché], para reencontrá-lo em seguida numa tomada de consciência universal
de si mesmo. Noli foras ire, disse Santo Agostinho, in te redi, in interiore homine
habitat veritas”.
76
Vê-se, pois, que, em Diferença e Repetição, Deleuze põe em
questão esse modo de se posicionar das filosofias da consciência afirmando que
nelas
o pensamento é traído pela imagem dogmática e no postulado
das proposições, segundo o qual a Filosofia encontraria um
começo numa primeira proposição da consciência, Cogito. Mas
talvez Cogito seja o nome que não tem sentido, nem outro objeto
76
Não vá para fora, dentro, no interior do homem habita a verdade”. Essa frase ilustra bem a
afirmação de Alex Fabiano acerca das pretensões de Husserl nas Meditações Cartesianas: marca
o triunfo total da interioridade sobre a exterioridade, do transcendental sobre o transcendente. A
fenomenologia como uma “ciência do ego” pensará as estruturas compreensiveis do mundo,
aquelas que se apresentam ao meu entendimento enquanto ligadas ao “ego cogito”, numa unidade
sistemática com o próprio ego, substrato de todos os atos intencionais; origem e elemento
constituinte do mundo. Husserl mostra sua noção de ipseidade, pensando um Eu Transcendental
que não se mistura ou se confunde com aquilo que ele constitui. Esse “eu monadológico” traça um
itinerário curioso entre dois “eus”. O eu, como resultado da redução transcendental e o “outro” eu,
como pólo de “habitus” no mundo. Essa estratégia husserliana pretende ir muito além da idéia de
criar uma necessidade de movimento “dos fatos às essências puras”, muito mais que isso, ela quer
garantir a “implicação” de todos os fatos às essências e essa última, à subjetividade
transcendental” (Jardim, 2007:37-38).
106
a não ser a regressão indefinida como potência de reiteração (eu
penso que eu penso que eu penso...). Toda proposição da
consciência implica um inconsciente do pensamento puro, que
constitui a esfera do sentido, onde se regressa ao infinito.
(Deleuze, 2000: 263)
De Descartes a Husserl, passando por Kant, é expressa uma impotência
em se desvencilhar da forma do senso comum, como uma faculdade originária
que se encarrega de dar conta da identidade do objeto (Deleuze, 1998: 100). E o
fundamento da crítica deleuziana a Husserl aparece na idéia de que este concebe
o transcendental como Pessoa ou Ego: ainda estaria preso à imagem dogmática
do pensamento que orienta o pensamento rumo à idéia de identidade, de
substância pensante, de uma razão unificadora (Jardim, 2007: 40). Deleuze afirma
por fim que Husserl concebe a imanência como a de um fluxo do vivido na
subjetividade, mas como todo este vivido, puro e mesmo selvagem, não pertence
inteiramente ao eu que a representa para si, é nas regiões de não-pertença que se
restabelece, no horizonte, algo de transcendente (Deleuze e Guattari, 1992: 64).
Mais uma vez, segundo o autor, essa inversão faz parte de uma história de uma
ilusão. Se em Descartes e em Kant era uma ilusão fundada no Universal de
reflexão, no caso de Husserl será o Universal de comunicação. Cai-se sempre na
sedução da transcendência evitando a “pedra de toque incandescente” que é a
imanência.
Diante do que fora exposto, pode-se dizer que a partir de Descartes, e
tendo sido retomada por Husserl, passa à situação uma imagem do pensamento
onde a imanência é revertida de modo a se tornar imanente a um sujeito
pensante, a uma consciência pura: sempre o “abrigo” do cogito segundo a
107
metáfora deleuziana. Para o autor da filosofia da diferença, a solução ou a forma
de “salvar” a imanência estaria, acima de tudo, na suposição de um campo
transcendental impessoal, pré-individual, não tendo a forma de uma consciência
pessoal sintética ou de uma identidade subjetiva o sujeito ao contrário sendo
sempre constituído(Deleuze, 1998: 101), e constituído no interior e a partir desse
campo, vale dizer. Esse é o fundamento de um empirismo radical (empirismo
transcendental) no pensamento de Deleuze, onde não há um fluxo do vivido
imanente a um sujeito, o que são acontecimentos singulares no interior de um
plano impessoal, um campo sem sujeito, que se atualizam em estado de coisa ou
estados vividos: o plano de imanência atualizando torna-se Sujeito e Objeto.
108
CAPÍTULO III – SUBJETIVIDADE NÔMADE
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
(Pessoa)
Uma vida de pura imanência
Estabelecida a crítica, qual seria então a mais inteirada fórmula
deleuziana para se pensar a gênese da subjetividade? Uma resposta, ao que
parece, vem de modo mais completo, tardiamente, em A imanência: uma
vida...
77
, publicado na revista Philosophie em um número dedicado à sua obra
dois meses antes de sua morte em novembro de 1995. Trata-se de um texto curto,
sobremodo sintético, no qual Deleuze parece adotar o tom de pequeno testamento
de sua filosofia; escrito em um estilo filosófico muito denso, abordando várias
questões fundamentais de sua reflexão; particularmente sobre o sentido do
transcendental e do conceito de imanência tal como ele o concebe. Traça, ainda
77
DELEUZE, Gilles. “L’immanence: une vie...”. Philosophie Nº. 47, Paris: Les Éditions de Minuit,
setembro, 1995, pp.3-7. Trad. Jorge Vasconcelos, et.al. In. Gilles Deleuze, imagens de um
filósofo da imanência. Vasconcellos, J. e Fragoso, M. A. R. (org). Londrina: UEL, 1997.
109
nesse texto, uma relação com a idéia de uma vida...como opção dentro de sua
crítica aos conceitos que acompanham uma filosofia do sujeito, conceitos de
identidade, consciência e outras formas de determinações individuais ou pessoais.
Por fim, Deleuze busca na definição de campo transcendental, sua sutil distinção
em relação ao plano de imanência, revelando este último como imanência
absoluta e finalmente, vida, como “uma vida...”.
Nesse referido texto, têm-se, logo de início, a questão: “O que é um
campo transcendental?a qual o autor coloca como se o fizesse pela primeira vez.
A verdade é que a preocupação com tal campo aparece desde sempre ao longo
de sua obra. Contudo, além de uma dispersão do tema nos textos, o que dificulta
qualquer síntese conceitual, a própria idéia de campo transcendental se torna
sobremodo difusa por assumir nomes diversos conforme o enfoque específico de
um momento ou outro de seu pensamento. Isso é mostrado também, como se
pode ver, pelo atento comentário intitulado O Alfabeto do Pensamento, feito por
José Gil como prólogo da edição portuguesa de Diferença e Repetição:
Este campo onde circulam, se organizam” ou se dispõe as
intensidades forma um campo transcendental que Deleuze
denominará sucessivamente “spatium” (Diferença e Repetição),
“superfície metafísica” (Lógica do Sentido), “plano de
consistência” ou “corpo sem órgãos” (Anti-Édipo), ou ainda, “plano
de imanência” ou “planómeno” (Mil Platôs)
78
78
O Alfabeto do Pensamento”, prefácio de José Gil. In. DELEUZE. Diferença e Repetição.
Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2000, p.27. A dispersão desse tema na obra e a diversidade dos
termos correlatos podem ser notados também em ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de
Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004, 39-47.
110
De todo modo, algumas resposta possíveis à questão levantada aparecem em um
momento ou outro dos demais textos do autor, antes da resposta dada em seu
último artigo. Trata-se, aqui, de procurar insistir sobre alguns dados que
reaparecem continuamente na obra de Deleuze e que permitem, mesmo em meio
à variação de seu vocabulário, delinear os “contornos” do conceito em foco. É o
caso, por exemplo, de Lógica do Sentido, onde se pode acompanhar a
argumentação de Deleuze quando ele se serve da idéia de um campo
transcendental o qual ele contrapõe, ali, a um sujeito transcendental que mantém,
segundo o autor, uma forma fortemente personalizada. O que se pode observar é
que, no referido texto, essa subjetividade é evidenciada pela manifestação tomada
como uma dimensão da proposição que atua no posicionamento de um sujeito
transcendental que conserva a forma da pessoa, da consciência pessoal e da
identidade subjetiva e que se contenta em decalcar o transcendental a partir dos
caracteres do empírico” (Deleuze, 1998: 101).
Contra essa forma de “gênese” o autor contrapõe a idéia, nesse texto
retirada de Sartre em seu artigo de 1937, intitulado A transcendência do Ego
79
, de
um campo transcendental “impessoal ou pré-individual” no qual tanto o Eu como o
Ego aparecem como produto. Deleuze leva ainda mais longe a tese sartreana por
79
SARTRE, Jean-Paul. La Transcendence de l'Ego. Paris, J. Vrin, l936. Vale notar como, nos
vários momentos em que Deleuze trata desse campo, aparece, quase sempre, o nome de Sartre
ligado à sua constituição. Sabe-se muito bem que para Deleuze, Sartre não teria atingido um
“fundo” de imanência absoluta, mas certamente devolveu à imanência seus direitos (Deleuze,
1992: 65). Daí, entre outros, o motivo da afirmação: Il a été mon maître”, expressão que título
ao artigo publicado na Arts, 28, novembro de 1964 e republicado em DELEUZE, Gilles. L’île
deserte et autres textes. Textes et entretiens, 1953-1974. Paris: Les Éditions de Minuit, 2002,
pp109-113. Leia-se ainda nesse texto: “Quem, na época, soube dizer algo de novo além de
Sartre ? Quem nos ensinou novas maneiras de pensar ? Por mais brilhante e profunda que tenha
sido, a obra de Merleau-Ponty era professoral e dependia daquela de Sartre em muitos aspectos.
(Sartre assimilava de bom grado a existência do homem ao não-ser de um “buraco” no mundo :
pequenos lagos de nada, dizia”.
111
considerar que este não conduzira seu pensamento até as suas últimas
conseqüências”, que, para ele, seria liberar este campo do estatuto de uma
consciência mesmo sendo verdade que no texto de Sartre ela apareça como
irrefletida, não-tética. Consciência essa que deve, então, unificar-se por si mesma
e sem Eu, através de um jogo de intencionalidades ou retenções puras(Deleuze,
1998: 102). De qualquer modo, esse campo aparece para o filósofo como um
campo transcendental impessoal sem a forma de uma consciência pessoal
operadora de sínteses (ou até mesmo forma geral e individual) ou de uma
identidade subjetiva. Acerca desse campo transcendental ele se pergunta por fim:
tratar-se-ia, então, de um poço sem fundo, um abismo indiferenciado? Ao que
responde categoricamente: “tudo o desmente”. E para isso recorre, para constituir
a superfície de um tal campo, à idéia de singularidades como determinação
diferencial, logo de antigenealidades, que são entretanto impessoais e pré-
individuais”, e que dão testemunho de toda a “potência genética” de um verdadeiro
campo transcendental (Deleuze, 1998: 102).
No limite, o que Deleuze quer dizer, e isso pode ser visto também em
Diferença e Repetição, é que as filosofias da consciência e seu modelo de
pensamento marcado pela forma da representação começaram a ligar a
individuação à forma do Eu e à matéria do eu. E a partir daí têm-se o Eu como a
forma de individuação superior, ou mais ainda, o princípio de recognição e
identificação para todo juízo de individualidade que incida sobre as coisas: ‘é a
mesma cera’”
80
. Mais detidamente, para que se torne possível a representação é
preciso que toda individualidade seja pessoal (Eu) e que toda a singularidade seja
80
Em referência a Descartes. Meditações, p.104.
112
individual (Eu). Assim considerado, se se pára de postular Eu, compromete-se a
individuação, o que, por derivação, coloca em cheque toda singularidade possível.
Daí a ilusão no interior da filosofia quando ela representa esse campo
transcendental como um “sem fundo” desprovido de diferença, ausente de
individualidade e singularidade: a “ilusão-limite” da representação, sua “ilusão
interna” que a diferença “formiga” nele, nesse mundo de individuações
impessoais e de singularidades pré-individuais (Deleuze, 2000: 439-440).
Continuando a questão a que se propõe analisar “O que é um campo
transcendental?” Deleuze, em “A imanência: uma vida...”, responde: ele (o
campo) não se remete a um sujeito nem pertence a um objeto, sendo mesmo pré-
objetivo e pré-subjetivo; ele (o campo) é pura corrente da consciência a-subjetiva,
consciência pré-reflexiva impessoal, duração qualitativa da consciência sem eu. O
que se pode ver aqui nessas aproximações do autor é que desde já, e não no
parágrafo seguinte, onde uma nota em referência a Matéria e memória, a
presença de Bergson se faz sentir no estabelecimento de seu campo
transcendental. E Deleuze não o nega como se pode notar na afirmação de que:
O princípio de Matière et memoire traça um plano que corta o caos(Deleuze e
Guattari, 1992: 66). De todo modo, a semelhança que se pode notar entre Deleuze
e Bergson não deve ofuscar as diferenças importantes entre o pensamento de
ambos. Mas não se pode, contudo, deixar de mencionar aqui, como o próprio
Deleuze o faz em vários momentos de sua obra, a influência do pensador da
duração na formulação de alguns dos conceitos deleuzianos. Como se sabe, o
plano a que se refere Deleuze na passagem acima diz respeito ao conjunto infinito
de imagens-movimento agindo e reagindo umas sobre as outras; onde aparecem
113
posteriormente, imagens muito especiais que podem ser chamadas imagens
viventes ou matéria vivente que apresenta um intervalo de movimento, uma
demora na relação estímulo ação que insere a indeterminação no seio da matéria.
Esse é, certamente, o ponto de gênese de qualquer idéia de consciência mais ou
menos desenvolvida conforme a linha de evolução da vida descrita na obra
bergsoniana.
Mas de fato, sobre o posicionamento de um campo transcendental, deve-
se perguntar se não é esse o sentido da “redução bergsoniana”? Tomando aqui
emprestado o termo “redução” usado por Bento Prado Junior e por Merleau-
Ponty
81
. “Redução” essa que, para Bento Prado, seria a abertura de um campo a
um tempo pré-subjetivo e pré-objetivo, campo da pura presença que conduziria
a experiência ao seu termo mais radical. Posição certamente confortável, anterior
às dicotomias entre sujeito e objeto, entre representação e coisa, assim como das
aporias daí advindas que ora lança o pensamento rumo a um idealismo
exacerbado ora o submete a um realismo tacanho. Seja como for, o campo
transcendental em Deleuze revela-se como um empirismo radical
82
que não se
81
Leia-se: Se a redução bergsoniana instaura, também como veremos, um campo de experiência
transcendental, não será no interior de uma subjetividade constituinte. Pelo contrário, (...)
assistiremos, no interior do campo transcendental, ao nascimento da própria subjetividade. Cf.
PRADO JÚNIOR, Bento. Presença e campo transcendental Consciência e negatividade na
filosofia de Bergson. 1ª ed. São Paulo, EDUSP, 1989, pp.145-146; e ainda, Uma vez que aqui é
com uma não-coincidência que coincido, a experiência é suscetível de estender-se para além do
ser particular que sou. A intuição de minha duração é a aprendizagem de uma maneira geral de
ver, o princípio de uma espécie de redução bergsoniana que reconsidera todas as coisas sub
specie durationis - tanto o que se chama sujeito quanto o que se chama objeto, e mesmo o que se
chama espaço.” Cf. MERLEAU-PONTY. M. Bergson fazendo-se. Signos. Ed. Martins Fontes, São
Paulo, 1986, p. 203-204.
82
Sobre isso afirma Deleuze: Eis por que o transcendental está sujeito a um empirismo superior,
único capaz de explorar seu domínio e suas regiões, pois, contrariamente ao que acreditava Kant,
ele não pode ser induzido das formas empíricas ordinárias tais como elas aparecem sob a
determinação do senso comum. (...) o empirismo transcendental é o único meio de não decalcar o
transcendental sobre as figuras do empirismo” (Deleuze, 2000: 245-246).
114
remete a objeto ou sujeito tampouco se reduz a um fluxo do vivido imanente à
forma da subjetividade e muito menos se individualiza em um eu pessoal. O
empirismo transcendental, como Deleuze o chama, opõe-se a um mundo onde
sujeitos e objetos perfazem pares inseparáveis a partir dos quais o real é dado a
conhecer. É, antes, um sobrevôo imanente de um campo sem sujeito ou, como na
metáfora de Bento Prado em relação ao sistema de imagens em Matéria e
Memória, é um espetáculo sem espectador
83
: Pura consciência imediata sem
objeto nem eu.
Mas consciência só de direito, adverte também Deleuze, de fato, a
consciência é quando produz, mediante uma transcendência em relação ao
plano, um sujeito e um objeto: consciência de algo. Trata-se, aqui, da inserção no
interior do plano de centros de individuação e sistemas individuais, mônadas e
pontos de vista(Deleuze, 1998: 102). Imanente ao plano nada pode revelar essa
consciência imediata que só se exprime refletindo-se num sujeito que a remete ao
objeto.
Destarte, a questão para Deleuze é que não se pode conservar a forma
de uma consciência para esse campo, mesmo sendo essa consciência impessoal
definida por intencionalidades e retenções puras que conserva como suposição a
idéia de centros de individuação. De todo modo, Deleuze extrai de Bergson uma
fonte intensiva para a ontologia, uma revitalização da ontologia que tem muito a
ver tanto com a virtualidade como com o conceito de multiplicidade heterogênea.
Porém, em Deleuze, se trata efetivamente de uma ontologia da vida..., sem
consciência nem sujeito, não de uma “fenomenologia” da vivência pessoal, da
83
PRADO JÚNIOR. Presença e campo transcendental, p.146.
115
duração intuída em nosso “eu profundo”, como em Bergson. Em uma operação
paralela a que Deleuze submeteu o campo transcendental de Sartre, subtrai agora
da corrente da consciência todo subjetivismo, convertendo-a em uma corrente de
consciência a-subjetiva. Daí a necessidade de desenvolver todas as
conseqüências de uma tese que conduza ao puro plano de imanência livre do
estatuto da consciência.
O que se observa na continuidade dos argumentos de Deleuze é que do
campo transcendental ao puro plano de imanência, do campo transcendental que
se define pela pura consciência imediata, sem mim ao puro plano de imanência
que se define pela ausência completa da consciência mesmo a irrefletida e
imediata –, a passagem só é feita, como se pode ver, pelo “expurgar” de qualquer
forma da consciência
84
. Pois, no seu dizer,
Na ausência de consciência, o campo transcendental, escapando
de toda transcendência tanto do sujeito quanto do objeto, definir-
se-á como um puro plano de imanência. A imanência absoluta é
nela mesma: ela não está em alguma coisa, dentro de alguma
coisa, ela não depende de um objeto nem pertence a um sujeito
(Deleuze, 1997: p. 16).
84
Ainda que fale de consciência, o que o texto deleuziano nos parece querer apontar é para a
dissolução inequívoca de quaisquer resquícios de uma consciência intencional – a consciência não
cria, inventa, produz ou mesmo intui a coisa ela é coisa. Dai o campo, por isso "um" campo: um
campo transcendental”. In. VASCONCELLOS, Jorge. Imanência e vida, considerações
preliminares acerca da idéia de plano de imanência em Gilles Deleuze. Princípios Revista de
Filosofia, Natal - RN, v. 5, n. 6, p.115-122. Complementando a posição, esse momento da filosofia
de Deleuze pode ser visto como um gesto que, "arrancando o sujeito do terreno do Cogito e da
consciência, o arraiga no da vida, mas de uma vida que, enquanto essencialmente errar, vai além
das vivências e da intencionalidade da fenomenologia" In AGAMBEN, Giorgio. A imanência
absoluta. In. Gilles Deleuze: uma vida filosófica. Alliez, Eric (Org.) São Paulo: Ed. 34, 2000, pp.
169-192.
116
E parece ser em vista de uma “liberação” da imanência do primado de uma
consciência constituinte que Deleuze, já em Lógica do Sentido, dava sinais da
orientação de seu pensamento e de sua crítica às filosofias do sujeito. Leia-se:
purgar o campo transcendental de toda semelhança permanece a tarefa de uma
filosofia que não quer cair nas armadilhas da consciência ou do cogito(Deleuze,
1998: 128).
O que o autor indica, aqui, como se pode notar, é que remeter a
imanência seja a um objeto qualquer, seja a uma subjetividade constituinte, só faz
com que o terreno do transcendental sofra uma “desnaturação”. Por um lado,
“reduplicando o empírico” e, por outro, deformando a imagem da pura imanência
subvertendo-a ao interior de um transcendente (sujeito ou objeto). O que,
entretanto, marca, acima de tudo, a estratégia argumentativa deleuziana é a
certeza de que a imanência desse campo não pode ser remetida a nada, a
nenhum conceito. Muito pelo contrário, é no interior deste campo que se assiste a
verdadeira criação de conceitos assim como a nese possível de qualquer forma
de subjetividade. Posição está, tomada também em O que é a filosofia?, conforme
se pode ver pela afirmação a seguir:
Você não conhecerá nada por conceitos se você não os tiver de
início criado, isto é, construído numa intuição que lhes é própria:
um campo, um plano, um solo, que não se confunde com eles,
mas que abriga seus germes e os personagens que os cultivam
(Deleuze e Guattari, 1992: 15).
Assim, o plano de imanência aparece como “suporte” dos conceitos e os conceitos
aparecem como aquilo que ladrilha” o plano. É todo um construtivismo se
insinuando nessa idéia deleuziana: criar conceito e traçar um plano. Assim, contra
117
uma imagem do pensamento antes denunciada como dogmática, e que
subsumia o ato de pensar no próprio pensamento a partir de uma identidade
estabelecida entre ser e pensamento, Deleuze apresenta essa sua “nova imagem
do pensamento”: o plano de imanência onde é possível ver toda a elasticidade dos
conceitos criados, mas à custa da fluidez do meio que este “povoa”. É
importante, aqui, perceber que não a auto-posição de um conceito (a exemplo
do cogito) no qual a imanência vai encontrar a fórmula moderna de seu desvio
categórico: a imanência é imanente a uma consciência pura
85
. Aqui, o plano de
imanência é imanente a si mesmo e não se define por um sujeito capaz de o
conter nem por qualquer conceito capaz de o subsumir. O que se vê, acima de
tudo, é um esforço de descrição de um campo sem a presença de um sujeito
tutelar.
Atingindo esse terreno, passa Deleuze às suas possíveis definições. O
que é uma pura imanência então? Responde peremptoriamente: “UMA VIDA,
nada mais”, ou, o que é mais completo, “uma vida...” como se pode ver no título A
imanência: uma vida...”. Mas, mais uma vez, a resposta não é tão simples como
se pode imaginar de início. Primeiramente pelo artigo indefinido “uma” que
acompanha a resposta
86
. Aqui, entre os termos “imanência” e “vida” aparece,
como se pode ver, a ligação por esse artigo. O uma” usado indica, mais que uma
85
Conforme a fórmula de ALLIEZ, Eric. A Assinatura do Mundo, p.16.
86
Que certamente não aparece aqui gratuitamente como indicara Deleuze no “Abecedário”: Eu
sempre insisti no fato de que não se entende o sentido do artigo indefinido. "Uma" criança
espancada, "um" cavalo chicoteado. Não quer dizer "eu". O artigo indefinido é de uma extrema
riqueza.Ver, ainda, o comentário de Jorge Vasconcellos: O artigo indefinido "uma" e a conjunção
"e" nos deixa ver uma linha diretiva que procura privilegiar as singularidades plurais ao invés das
totalizações genéricas: o "uma" no lugar do "a", o "e" em vez do "é", excede em muito uma escolha
estilística”. In. VASCONCELLOS. Imanência e vida..., p.116. Por fim, uma análise dessa questão é
desenvolvida em AGAMBEN. A imanência absoluta, pp. 169-192.
118
indeterminação de pessoa, uma determinabilidade transcendental: Um é sempre o
índice de uma multiplicidade: um acontecimento, uma singularidade, uma vida....
O artigo indefinido aparece nesse texto em toda sua potência, como índice do
transcendental, constituindo acontecimentos: como em um sorriso, um gesto, uma
ferida que não invocam somente uma encarnação” atual, espaço-temporal, em
estados de coisa, em uma determinação individual ou pessoal, mas um puro
sentido expresso; como o “sorriso sem gato”
87
no texto de Lewis Carroll. E é
preciso lembrar, tal como Deleuze o lembra em outro momento, que pessoas
psicológicas e morais são também feitas de singularidades pré-pessoais e que
seus sentimentos, seu pathos se constitui na vizinhança destas singularidades
(Deleuze, 1998: 58). Daí poder dizer que Uma vida tal como ele a concebe é a
vida como virtualidade, diferença, invenção de formas, potência impessoal,
beatitude. Pois,
o imanente que não é imanente a nada específico é ele mesmo
uma vida. Uma vida é a imanência da imanência, a imanência
absoluta (...) consciência imediata absoluta, cuja própria atividade
não se remete a um ser, mas não cessa de se colocar numa vida.
(...) O campo transcendental se define por um plano de
imanência, e o plano de imanência por uma vida. (Deleuze, 1997:
16-17)
Nesse excerto se destaca, está claro, a relação que estabelece Deleuze entre a
pura imanência e uma vida”. Para exemplificar sua idéia, Deleuze ibuscar em
87
Referência a um trecho de Alice de Lewis Carroll, quando um sorriso persiste quando o corpo
desapareceu, ou seja, o expresso “um sorriso” desvinculado da forma “gato”. O que invoca a idéia
dos acontecimentos singulares que não se subsumem a uma determinação pessoal, um eu. Os
acontecimentos puros e sem mistura brilham acima dos corpos misturados, acima de suas ações e
paixões emaranhadas”,
Cf. DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: Ed.34, 1997, pp.31-32.
E ainda, (Deleuze, 1998: 34).
119
um personagem de Charles Dickens a imagem de “uma vida”. Uma vida que
parece surgir em meio ao evento relatado no qual um canalha, um sujeito
malvado, ao ser trazido moribundo após um afogamento quase fatal fica aos
cuidados dos moradores que logo passam a ter para com ele um tipo de
prontidão, respeito e amor pelo seu menor sinal de vida. O autor nesse gesto
uma superação da pessoalidade inscrita no caráter do indivíduo, na vida do
indivíduo, que desperta nos seus benfeitores um tipo de reconhecimento de Uma
vida como uma vida impessoal, um puro acontecimento afastado dos acidentes da
vida interior e exterior: Uma vida impessoal entre a vida e a morte do sujeito, uma
centelha de vida dentro dele. Aqui, uma vida ultrapassa o sujeito que a recolhe.
Sentimento que o próprio calhorda partilha quando em seu estado mais debilitado,
mas que o abandona, e aos seus salvadores, à medida que este se recupera e
recobre sua consciência. Contudo, no momento em que não se vê, ali no leito,
mais do que uma vida impessoal, UMA VIDA, nada mais, alcança-se por fim esse
puro plano de imanência que é uma vida, uma vida nua, independente dos
acidentes individuais: “Homo tantum”, uma pura singularidade. A vida, aqui, não se
esgota em sua presença atual, nos organismos, ela pode ser imanente a si
mesma; a vida é a imanência mesma, no sentido de que é uma das dimensões
que possui a imanência em seu caráter absoluto. A essa altura, pode-se dizer da
imanência que ela é uma vida...”, e dessa diz-se que é uma hecceidade: não se
trata mais de individuação (o indivíduo aqui, no caso o mau sujeito, não existe),
porém de singularidade:
120
que não é mais individualizadora, mas singularizante: vida de pura
imanência, neutra, para além do bem e do mal, pois apenas o
sujeito que a encarna no meio das coisas a traduzia como boa ou
má. A vida de tal individualidade se apaga em prol da vida
singular imanente a um homem que não tem mais nome e que,
apesar disso, não se confunde com nenhum outro. Essência
singular, uma vida... (Deleuze, 1997: 17)
Se se observar atentamente os termos empregados por Deleuze na
expressão dessa idéia, notar-se-á que, a partir do exemplo tomado de Dickens,
uma vida como pura imanência é “liberada” de seus acidentes individuais por
força de uma situação extrema: a eminência de morte. Mas, segundo o próprio
Deleuze, não é somente nesse caso que se tem a possibilidade de se deparar
com uma vida. Ela está por toda parte, em todos os momentos que atravessam
esse ou aquele sujeito vivo, lembra ele, como nos bebês que mesmo não
possuindo individualidade (uma forma eu plenamente estabelecida) não deixa, no
entanto, de invocar singularidades em um sorriso, um gesto, uma careta,
acontecimentos que não são características subjetivas. Essa vida imanente,
indefinida, se atualiza em estados do sujeito e objeto, mas não se reduz a esses
estados atuais. Para além deles, toda a realidade do virtual que também a
compõe. É por isso que Deleuze pode dizer que:
Essa vida indefinida não tem, ela mesma, momentos, por mais
próximos que estejam uns dos outros, mas apenas entretempos,
entremomentos. Ela não sobrevém nem sucede, mas apresenta a
imensidão do tempo vazio em que se o acontecimento ainda
porvir e transcorrido, no absoluto de uma consciência imediata
(Deleuze, 1997: 17).
121
Não se pode negar, com efeito, que vista assim como indefinida, essa vida se
mostra para um observador menos atento, como um campo de pura
indeterminação, espécie de abismo indiferenciado, um nada negro indiferente.
Uma solução que se pode obter para essa questão consiste justamente em
identificar um caminho que vai de uma indeterminação subjetiva indeterminação
de pessoa a uma determinabilidade transcendental ou determinação de
imanência. E parece ser em vista do estabelecimento dessa possibilidade que
Deleuze afirma que Os indefinidos de uma vida perdem toda indeterminação à
medida que ocupam um plano de imanência ou, o que vem a dar no mesmo,
constituem os elementos de um campo transcendental(Deleuze, 1997: 17), o que
não acontece à vida individual, à pessoal, que não pode se separar nunca de suas
determinações empíricas, espaços-temporais. Mas, justamente por evitar
considerar a forma Eu como toda forma possível de individuação princípio de
recognição a partir do qual emana todo juízo de individualidade incidido sobre as
coisas –, o sem fundo em que se o argumento deleuziano corre o risco de ser
tomado, à primeira vista, como um “nada negro”. Contudo, conforme se pode
conferir nessa passagem de Lógica do Sentido:
O erro de todas as determinações do transcendental como
consciência é de conceber o transcendental à imagem e
semelhança daquilo que está incumbido de fundar. (...) É verdade
que esta exigência de definir o transcendental como consciência
originária é justificada, afirma-se, uma vez que as condições dos
objetos reais do conhecimento devem ser as mesmas que as
condições do conhecimento. (...) Mas esta exigência não parece
de forma nenhuma legítima. O que é comum à metafísica e à
filosofia transcendental é primeiramente esta alternativa que elas
nos impõem ou um fundo indiferenciado, sem-fundo, não-ser
informe, abismo sem diferenças e sem propriedades ou então
um ser soberanamente individuado, uma forma fortemente
122
personalizada. Fora deste Ser ou desta Forma, não tereis senão o
caos... Em outros termos, a metafísica e a filosofia transcendental
se entendem a fim de não conceberem singularidades
determináveis a não ser já aprisionadas em um Ego individual
(Moi) supremo ou um Eu pessoal (je) superior (Deleuze, 1998:
108-109).
Entrementes, vê-se que, do ponto de vista de uma determinação possível,
mas mantendo dissolvida a forma eu, o argumento do autor busca passar do
sujeito e seus caracteres que o determinam como pessoa aos acontecimentos
singulares, porém impessoais, no interior do plano de imanência: determinação
singular. Como no exemplo do moribundo ou, o que é melhor ainda, o dos bebês,
onde o autor deixa transparecer que uma vida singular pode abrir mão de toda
individualidade ou de outra concomitância que a individualize. Vê-se, pois, que
uma possível individuação no interior do plano ainda persiste, mas agora essa
individuação o é mais necessariamente de pessoa, mas de singularidade:
constitui uma hecceidade, uma particularidade não empírica fora do tempo
extensivo. Daí Deleuze poder afirmar que o artigo indefinido não é a
indeterminação da pessoa sem antes ser a determinação do singular. E mesmo
não sendo pessoal uma brisa, um dia, uma hora do dia, um riacho, um lugar, uma
batalha, uma doença ou uma individualidade não-pessoal
88
não deixa de possuir
uma determinação como singularidades, como hecceidades no interior de um
plano de imanência. Com efeito, o Um, o artigo indefinido tanto usado na
exposição deleuziana indica não o transcendente que pode conter a imanência,
mas o imanente contido num campo transcendental. Assim tomado, as
88
DELEUZE, Gilles. Signos e acontecimentos entrevista concedida a Raymond Bellour e
François Ewald. In ESCOBAR, Carlos Henrique. Dossiê Deleuze. Rio de Janeiro: Holon Editorial,
1991.
123
singularidades no interior do plano constituiriam verdadeiros acontecimentos
transcendentais, que longe de serem individuais ou pessoais, presidiriam
virtualmente a gênese dos indivíduos e das pessoas. A abordagem deleuziana
parece indicar ainda que só uma teoria dos pontos singulares estaria apta a
ultrapassar a síntese da pessoa e a análise do indivíduo, tais como elas se fazem
na consciência. Concluído por fim com a afirmação de que Quando se abre o
mundo pululante das singularidades anônimas e nômades, impessoais, pré-
individuais, pisamos, afinal, o campo do transcendental” (Deleuze, 1998: 105-106).
Outra observação que cumpre fazer, a partir da argumentação de
Deleuze, é que mesmo quando uma invocação de um transcendente que “cai
fora” do plano de imanência, ou que se atribui a ele, ainda sim se está “dentro” do
plano pelo simples fato de uma transcendência se constituir na corrente de
consciência imanente própria do campo transcendental. No limite, afirma o autor, a
transcendência é sempre um produto da imanência. Daí não se poder atribuir a
imanência a nada distinto de si mesma. Quando isso acontece é porque está
havendo uma confusão do plano com o conceito, de modo que o conceito se torna
um universal transcendente, e o plano, um atributo do conceito (Deleuze. 1992:
62). É toda uma desnaturação da imanência que se nesse momento e que não
faz mais que transformar a imanência em um “campo de fenômenos” secundário
em relação a um universal transcendente.
No mais, sabe-se muito bem da complexidade envolvida em qualquer
determinação do campo transcendental. O que fica claro, contudo, para Deleuze,
é o fato de ser impossível tomá-lo pela forma pessoal de um Eu, de uma unidade
sintética de apercepção, mesmo se conferirmos a essa unidade um alcance
124
universal (Deleuze, 1998: 108). Motivo pelo qual o autor empenha-se em uma
crítica à imagem ilusória” do plano de imanência tomando como ponto de partida
o campo transcendental, nele emprestado de Sartre, e conduzindo-o até as
últimas conseqüências; até o ponto em que não se pode conservar a forma de
uma consciência, mesmo que essa seja impessoal, imediata ou retenções puras
89
.
Por fim, Deleuze diz do plano de imanência, e de uma vida, que ele é em
si mesmo virtual. Note-se aqui o porquê da importância do termo virtual para o
pensamento deleuziano. Como fora visto anteriormente, ele é utilizado para
mostrar a sobrevivência dos caracteres singulares em um plano não atual que não
deixa, no entanto, de possuir uma plena realidade. Essas próprias singularidades
são em si mesmas, virtualidades, acontecimentos imanentes que se atualizam em
estados de coisas ou em um estado vivido. Afirma Deleuze,
O próprio plano de imanência se atualiza num Objeto e num
Sujeito aos quais ele se atribui. Enquanto eles são quase
inseparáveis de suas atualizações, o plano de imanência é em si
mesmo virtual, do mesmo modo que os acontecimentos que o
povoam são virtualidades (Deleuze, 1997: 19).
O autor segue mostrando que enquanto os acontecimentos virtuais retiram do
plano de imanência sua realidade, o plano, por sua vez, retira toda sua
virtualidade dos acontecimentos ou singularidades que o constitui. Só se pode
dizer de qualquer determinação individual ou pessoal que ela é, porque, em um
89
Cf. ALLIEZ, Éric. Da Impossibilidade da Fenomenologia: sobre a filosofia francesa
contemporânea. Trad. Raquel Prado e Bento Prado Junior. São Paulo: Editora 34, 1996, p.78.
Leia-se: Cabe destacar a homenagem prestada a Sartre para a idéia de um campo transcendental
impessoal que devolve à imanência seus direitos e permite falar de um plano de imanência como
de um empirismo radical dirigido contra a orientação “kantiana da fenomenologia husseliana,
leitmotiv da Transcendência do Ego; mas a tentativa sartreana aborta malgrado seu tom
jamesiano e bergsoniano”.
125
movimento dinâmico de atualização, as multiplicidades virtuais que constituem o
plano de imanência atualizam-se em um estado de coisa ou estado vivido. O
indivíduo, aqui, supõe uma convergência de singularidades, determinando uma
condição de “fechamento” sobre a qual se define uma identidade. Por fim, toda
subjetividade deriva de um campo transcendental constituído por singularidades
nômades e impessoais as quais mantêm entre elas relações de divergência e
disjunção no plano virtual que elas formam.
Dentro desse contexto, parece possível dizer que o campo transcendental
que Deleuze constrói visa fazer coexistir um conjunto de mundo incompossíveis
de acordo com uma relação de virtualidade mais que de possibilidade, do ser do
sensível mais que do sensível mesmo, do visível mais que sua condição. O
empirismo transcendental de Deleuze remete a um virtual que não é menos real
que o atual, porém sem se deixar apreender pelo caos desmedido de um abismo
indiferenciado.
Não é outro mundo que não esse o do fundamento; porque o mundo é um
caosmos
90
único e imanente, mas se trata, porém, de outra geografia, a das
singularidades pré-individuais e virtuais. O virtual não é protótipo do atual, as
virtualidades não o protótipos das individuações que geram. Motivo, como se
vê, de Deleuze conceber o transcendental ao longo de sua obra como
90
Em uma visão da fluidez dinâmica do mundo, afirma Deleuze: Não coisa que não perca sua
identidade, tal como ela é no conceito, e sua similitude, tal como ela é na representação, quando
se descobrem o espaço e o tempo dinâmicos de sua constituição atual. O ‘tipo colina’ é apenas um
escoamento em linhas paralelas; o ‘tipo costa, um nivelamento de camadas duras ao longo das
quais as rochas se escavam em direção perpendicular a das colinas; mas as rochas mais duras,
por sua vez, à escala do milhão de anos, que constitui o tempo de sua atualização, são matérias
fluidas que correm sob pressões muito frágeis exercidas sobre suas singularidades. Toda tipologia
é dramática, todo dinamismo é uma catástrofe. necessariamente algo de cruel nesse
nascimento de mundo que é o caosmos, nesses mundos de movimentos sem sujeito, de papéis
sem ator”. (Deleuze, 2000: 356-357)
126
singularidade pré-individual situada em um campo que não se parece com a
individuação que fundamenta como acontecimento que não se assemelha àquilo
que atravessa, como virtual que coexiste com o atual, porém cuja atualização é
uma diferenciação. Com efeito, todo o esforço de sua filosofia da diferença, de seu
empirismo transcendental e da “ontologia do virtual” se projeta na direção dos
transcendentais que são as singularidades pré-individuais em sua constante
produtividade, das hecceidades como modos de individuação que não procedem
nem por uma forma, nem por um sujeito, nem por uma consciência: não se deve
conceber a condição à imagem do condicionado, segundo o autor.
Desta maneira, o campo transcendental postulado pelo autor se mostra
como impessoal, pré-subjetivo e inconsciente. Ele se opõe ao Cogito substancial
cartesiano, às condições transcendentais kantianas e, finalmente, ao eu
transcendental da fenomenologia. E parece ser em virtude disso que Deleuze
acabará por referir-se a ele como “plano” de “imanência”, para diferenciá-lo das
conotações da palavra “campo” “transcendental”. Na afirmação de François
Zourabichvili:
O conceito de plano de imanência substitui o "campo
transcendental" oriundo das filosofias de Kant e de Husserl (sobre
esses dois autores, cf. LS, 14a e 17a séries, e QPh, 48-9). "Plano"
e não mais "campo": porque ele não é para um sujeito suposto
fora-de-campo ou no limite de um campo que se abra a partir de
si próprio segundo o modelo de um campo de percepção (cf. o
Ego transcendental da fenomenologia - ao contrário, o sujeito
constitui-se no dado, ou mais exatamente sobre o plano)
(Zourabichvili, 2004: 45).
127
Ele age assim para evitar, por fim, o termo “transcendental” que, como se sabe,
está estritamente relacionado com as formas a priori da experiência kantiana.
91
O
campo transcendental deleuziano não aceita pressuposto algum: nem um sujeito
doador de sentido nem condições a priori da experiência. Deleuze o chama, por
isso, plano de imanência para tornar evidente que nesse campo transcendental
nada é suposto de antemão. A imanência é absoluta, podendo, como
mostrado, ser imanente a si mesmo; porém ela é absoluta em dois sentidos:
imanência pura ou de “gênese estática” sendo não-formada –, e imanência do
que aparece das individuações formadas –, do atual, de uma “gênese dinâmica”
a respeito da qual atua como campo transcendental. O campo transcendental pré-
individual é um plano de imanência, porém o plano de imanência se define por sua
vez como uma potente vida não-orgânica, que transcende à vida organizada. O
pensador radicaliza o caráter impessoal desse campo transcendental, dado que
não lhe parece possível dar ao transcendental a forma pessoal ao modo de
Descartes, Kant ou de Husserl, nem sequer a pura forma da consciência. A
imanência do campo transcendental se refere simplesmente à vida ou Uma vida,
nada mais, como afirma Deleuze. E esta vida é uma essência singular mais que
individual: remete a Uma vida impessoal, referida pelo artigo indefinido, índice, por
sua vez, do transcendental, por oposição à dupla transcendência do Sujeito e do
Objeto. Vida imanente que dinamiza os acontecimentos, as hecceidades,
singularidades virtuais que se atualizam nos objetos e nos sujeitos individuais. Os
acontecimentos virtuais se atualizam em estados de coisa exteriores e em estados
91
ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004,
p.45-46
128
de vivência interior, porém pré-existem e determinam a esses. Deleuze se situa
desse modo em uma tradição não subjetivista, que recorre a aspectos pré-
subjetivos, pré-individuais e impessoais. Por fim, o que no plano de imanência
senão singularidades, forças impessoais, fragmentos não compostos e processos
que conduzirão à consciência e a sujeitos, a partir dos quais esses termos voltam
a ser possíveis fora de uma imagem dogmática do pensamento? O que existe
nesse mundo impessoal e intenso senão uma natureza selvagem animada por
uma vida não orgânica? A intensa vida impessoal é o que acontece sobre o plano
de imanência: multiplicidades que se formam, singularidades que se conectam,
processos ou devires que se desdobram. E a possibilidade de vida ou modos de
existência não podem inventar-se, senão sobre um plano de imanência (Deleuze e
Guattari, 1992: 96). O campo transcendental ou, no limite, o plano de imanência é
um mundo intenso das singularidades anônimas, o plano do ser pré-individual;
afastado da ilusão do cogito como “abrigo” ou fundamento. Finalmente, para além
do Cogito cartesiano, Eu penso, eu existo”, assim como do cogito kantiano,
penso e, pensando-me, penso o objeto qualquer ao qual se refere uma
diversidade representada”, um cogito na filosofia deleuziana, pensado sobre o
plano de imanência, soaria algo como sinto que me torno outro, logo eu era, logo
era eu!
92
.
92
DELEUZE apud (Zourabichvili, 2004: 45).
129
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo do tema da subjetividade na obra de Deleuze não pode
pretender nteses definitivas, no entanto permite ao menos traçar um esboço do
quadro conceitual que o acompanha. De tudo dito, o que fica como certeza após
essa aproximação é que ele buscou ser um crítico radical dos pressupostos
subjetivos que animam as “filosofias do sujeito” ou da consciência. Sempre
parecera inadmissível em seus textos pensar em um ponto privilegiado ou “centro”
a partir do qual a filosofia deve ter seu começo: um Cogito substancial, um sujeito
transcendental ou qualquer forma de consciência constituinte. E se para pensar é
preciso adotar um começo, na filosofia de Deleuze esse começo se na forma
de um plano de imanência que não admite centros de individuação, pontos de
vista ou de síntese, embora não possa ser tomado por abismo indiferenciado.
Deleuze sempre se distinguiu como um crítico dos pressupostos que
acompanham o ato de pensar e da imagem do pensamento daí advinda. Para ele
essa imagem não faz mais do que uma circumambulação entorno de si,
preenchendo o pensamento com uma imagem que é a de si mesmo. Esse autor
mostra, todavia, que caso se queira, apesar de tudo, falar ainda de começo, é
preciso uma crítica radical. Mas não do tipo que retorna ao “abrigo” da imagem do
130
pensamento reificando-a como uma Urdoxa. Nesse sentido é possível dizer que
Deleuze retoma a pretensão clássica e trata de encontrar um começo absoluto,
livre de pressupostos. Essa é a tarefa da filosofia deleuziana: se desvencilhar de
uma imagem dogmática do pensamento através de uma verdadeira crítica,
abrindo, assim, espaço para uma legítima criação de conceitos. Trata-se enfim, de
um esforço para se desembaraçar da doxa e alcançar um verdadeiro começo sem
qualquer forma de pressupostos, sejam os explícitos ou objetivos ou implícitos ou
subjetivos, estes os mais perigosos e subreptícios em filosofia. E isso, como se
pode ver, é feito através de uma “revolução” nas bases do pensamento para,
onde antes era lugar de uma consciência pessoal, de uma identidade subjetiva,
postular um plano impessoal, pré-subjetivo e pré-objetivo. Assim, o pensamento
de Deleuze traz certamente novos elementos e resgata ainda outros que dão
fôlego às críticas à subjetividade moderna e seus ecos contemporâneos.
Defende a necessidade de adoção de um empirismo radical calcado no
posicionamento de um campo prévio da experiência, anterior às teses e às
oposições metafísicas (idealismo-realismo). Esse campo deleuziano é afirmado
como uma saída possível para se esquivar do “abrigo” da tradição marcado,
sobretudo, por uma filosofia da representação fundada na recognição como
modelo (sou sempre o mesmo, é sempre o mesmo objeto...). Deleuze o apresenta
como campo da pura diferença em oposição a um campo empírico onde a
“diferença” é dada como mera oposição ou negação: constitui o diverso; e contra
esse diverso, que se remete somente à multiplicidade extensiva (quantitativa) da
experiência, o autor contrapõe a diferença intensiva (qualitativa), de
multiplicidades intensivas, na qual o próprio diverso tem sua razão suficiente como
131
relação diferencial. Vê-se que essa diferença apresentada é a própria imanência
de um campo transcendental no qual o dado é dado como diverso. Deleuze leva a
entender, ainda, que a imanência é somente imanência a si mesma e não a uma
subjetividade transcendental ou qualquer forma de consciência pessoal; e
qualquer tomada de consciência aparece, em função da imanência, como
secundária e derivada; uma consciência é “constituída” a partir do plano que a
abriga. O pensamento do autor conduz à idéia de que a composição fundamental
do conceito de campo transcendental deriva da observação da passividade do
sujeito para com ele mesmo e da maneira pela qual ele é no tempo e não o tempo
é nele. De qualquer forma, mesmo tendo começado sua meditação acerca da
problemática do transcendental a partir do sujeito, ele não reconhece nesse a
posição de primado endossada pelas filosofias da consciência. Quanto à realidade
de um tal campo transcendental, Deleuze se esforçará por mostrar que ele é, mas
afirma seu ser como pura virtualidade que se atualiza em estados vividos e
estados de coisa (sujeito e objeto). O conceito de virtual é utilizado por Deleuze
para mostrar a sobrevivência dos caracteres singulares pré-subjetivos e pré-
objetivos. Saindo das determinações de um campo empírico, o autor vai buscar
nesse conceito uma forma de determinabilidade transcendental sem perder, no
entanto, toda a importância de se manter coesa uma indeterminabilidade do ponto
de vista da individuação. Assim, Deleuze chega à formulação de que o próprio
plano de imanência enquanto campo intensivo é, em si mesmo, composto por
virtualidades que se atualizam seguindo um curso que lhe é próprio, constituindo,
a partir de si, sujeito e objeto: é real sem ser atual...”. Vê-se, pois, que é só a
partir do virtual e seu processo de atualização que o autor consegue dar conta dos
132
movimentos infinitos que perpassam o real. Não se trata mais de falar de uma
realização de uma Idéia ou essência no sentido da representação, mas sim, de
atualização das singularidades, dos acontecimentos que dão ao plano seu caráter
virtual, que o preenche. Razão pela qual Deleuze rechaça a definição de seu
plano como abismo indiferenciado, buscando, principalmente em Bergson, todo
um arcabouço conceitual para afirmar sua realidade ontológica.
Uma crítica contundente é dispensada a qualquer pensamento que adote
uma imagem subjetiva ou uma consciência como centro, “começo” ou “primeiro
princípio” em filosofia. Daí a forma belicosa com que sempre se referiu às
filosofias de Descartes, Kant e à fenomenologia de Husserl, acusadas, quase
sempre, de se manterem no “abrigo” de uma tradição que subjuga o exercício do
pensamento a uma imagem dogmática (e subjetiva) do que significa pensar.
Contra Descartes, exposto como aquele que “inaugurou” uma vertente da imagem
do pensamento calcada em pressupostos subjetivos, Deleuze manifesta um certo
“anticartesianismo” principalmente no que diz respeito ao posicionamento do
Cogito como ponto de partida ou base segura para os pretendentes da verdade.
Como visto, uma tal orientação ou imagem que incita essa forma de pensamento
alicerça seu conceito fundamental nas duas faces divisadas da doxa: bom senso e
senso comum, aliadas, é claro, aos outros “postulados” que animam essa imagem.
Em relação a Kant, Deleuze admite a potência do pensamento que o conduz às
portas” da Diferença (ao puro terreno do transcendental) através da descoberta do
tempo como mediador da auto-afirmação do sujeito; como o determinável a partir
do qual é possível rachar o Cogito substancial cartesiano em, por um lado, um Eu
rachado e, por outro, o eu passivo. No entanto o filósofo da diferença insiste que o
133
autor alemão teria se mantido preso à imagem subjetiva do pensamento quando,
no lugar do Cogito substancial, ele postula um sujeito transcendental que conserva
a forma de uma consciência pessoal, operadora de sínteses; inferindo, assim, as
três nteses transcendentais de sínteses psicológicas correspondentes.
Husserl aparece como aquele cuja filosofia também não conseguira se
desvencilhar da imagem subjetiva do pensamento. Deleuze aponta que esse autor
insere na noção de campo transcendental centros de individuação, mônadas, que
assumem importante posição ao lado do Eu como unidade sintética da
apercepção. Aqui, o campo transcendental é determinado, ainda, como o de uma
consciência constituinte. O fundamento da crítica deleuziana à fenomenologia
husserliana aparece, assim, na idéia de que ele concebe o transcendental como
consciência pessoal ou Ego: permanecendo, ainda, preso à imagem dogmática
que orienta o pensamento rumo à idéia de identidade, de substância pensante, de
uma razão unificadora. Por fim, em Husserl está evidente toda a sedução do
“abrigo” do cogito, segundo a metáfora deleuziana.
O autor mostra que é preciso expurgar a imagem subjetiva que
acompanha o pensamento para revelar um sem-fundo subjetivo por traz de
qualquer pretensão de fundamento ou começo em filosofia que se pelas vias
de uma consciência pessoal; para revelar o “fundo” de pura imanência atrás de
todo fundado; atrás, principalmente, da própria “gênese” subjetiva, mediante um a-
fundamento (effondement), uma revolução da imagem do pensamento. A empresa
deleuziana consiste, como se viu, na proposição de um empirismo transcendental
calcado na reafirmação de uma nova imagem do pensamento. Esta considerada,
agora, como um puro plano de imanência, livre de pressupostos subjetivos. Como
134
visto em A imanência: uma vida..., um dos textos mais emblemáticos da filosofia
deleuziana, é toda uma nova maneira de se pensar a gênese subjetiva ou objetiva
que está sendo defendida por Deleuze. Pode-se dividir essa gênese em quatro
atos: 1º, adoção de um campo transcendental que se caracteriza como pura
corrente da consciência a-subjetiva, pré-reflexiva, impessoal, que tem sua origem
no pensamento sartreano e bergsoniano; 2º, liberação desse campo de toda e
qualquer forma de consciência, mesmo a imediata, irrefletida ou pré-reflexiva,
revelando uma imanência absoluta, livre de qualquer atribuição seja a um sujeito
ou a um objeto, fazendo assim do campo transcendental um puro plano de
imanência; 3º, apresentação desse plano de imanência como uma vida...
indefinida, mas possuindo uma determinabilidade transcendental como
singularidade, hecceidade: uma vida de pura imanência feita de virtualidades,
acontecimentos; 4º, atualização dos virtuais de uma vida, das singularidade, dos
acontecimentos, em estados de coisas ou estados vividos, em objeto e sujeito:
razão pela qual é possível dizer que o próprio plano de imanência se torna um e
outro seguindo um fluxo que vai do virtual ao atual que o encarna.
Ao fim desse percurso, mantém-se ainda uma possibilidade de meditação
acerca do sujeito a partir do pensamento deleuziano. É certo que não para tomá-lo
como fundamento, que não se pode querer dar ao condicionado o status de
condição. De uma forma que lhe é própria, Deleuze convida àqueles que se
aproximam de sua obra aos grandes problemas da filosofia. A própria adoção de
um plano de imanência aparece como uma forte tentativa de evitar as aporias do
dualismo metafísico (realismo-idealismo, sujeito-objeto). A partir desse plano
Deleuze incitará uma revolução (uma terceira revolução copernicana?) nos
135
fundamentos subjetivos do pensamento filosófico: onde antes estava o sujeito,
agora está um plano impessoal, pré-subjetivo, que revela no seu interior toda
potência da verdadeira criação conceitual desembaraçada da doxa.
136
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