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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-graduação em Literaturas de Língua Portuguesa
COBRAR E INVADIR
Rubem Fonseca, Marçal Aquino, Beto Brant e a violência
na ficção brasileira contemporânea
Marcelo Antonio Ribas Hauck
Belo Horizonte
2008
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Marcelo Antonio Ribas Hauck
COBRAR E INVADIR
Rubem Fonseca, Marçal Aquino, Beto Brant e a violência
na ficção brasileira contemporânea
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação
em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título
de Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa
.
Belo Horizonte
2008
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Hauck, Marcelo Antônio Ribas
F363p Cobrar e invadir : Rubem Fonseca, Marçal Aquino, Beto Brant e a violência
na ficção brasileira contemporânea / Marcelo Antônio Ribas Hauck. Belo
Horizonte, 2008.
93f.
Orientadora: Ivete Lara Camargos Walty
Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Letras.
1. Violência na literatura. 2. Fonseca, Rubem, 1925-. 3. Aquino, Marçal,
1958- 4. Brant, Beto. 5. Cinema. I. Walty, Ivete Lara Camargos. II.
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação
em Letras. III. Título.
CDU: 869.0(81).09
Marcelo Antonio Ribas Hauck
Cobrar e invadir Rubem Fonseca, Marçal Aquino, Beto Brant e a violência na ficção
brasileira contemporânea
Dissertação defendida publicamente no Programa de Pós-graduação em Letras da PUC
MINAS e aprovada pela seguinte Comissão Examinadora:
______________________________________________________
Profª. Drª Maria das Graças Rodrigues Paulino – UFMG
______________________________________________________
Prof. Dr. Márcio de Vasconcellos Serelle – PUC MINAS
______________________________________________________
Profª. Drª. Ivete Lara Camargos Walty (Orientadora) – PUC MINAS
Belo Horizonte, _____ de ____________________ de ________ .
Prof. Dr. Hugo Mari
Coordenador do Programa de Pós-graduação em Letras
da PUC MINAS
Para todos.
AGRADECIMENTOS
De maneira especial, o afeto e o aprendizado de minha orientadora, Profª Drª Ivete
Lara Camargos Walty, pelas várias revisões do trabalho e por me aceitar pessoalmente,
quando muito poderia ter sido resolvido através do universo virtual.
À Profª. Drª Maria Nazareth Soares Fonseca, outra orientadora que tive, pelo
aprendizado que me proporcionou durante o estágio docente, experiência extremamente
gratificante e prazerosa que foi desenvolvida ao seu lado.
A minha mãe, que, apesar de sempre me querer por perto, tolerava minhas ausências.
A Camila, pelo apoio, compreensão, paciência e amor nesse período de forte
turbulência.
Ao Professor Fábio Figueiredo Camargo, que desde a graduação tanto me ensina,
auxilia e ouve.
A todos que me apoiaram.
Externo ainda minha sincera gratidão aos professores, amigos e funcionários da PUC
Minas.
À CAPES, pela bolsa de estudo.
Um agradecimento especial a todos que foram contra.
Você não acha que isto denota uma preocupação mórbida com a morte?
Pode ser também uma preocupação saudável com a vida, o que no fundo é a mesma
coisa.
Rubem Fonseca
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo analisar a representação da violência e suas relações com o
espaço, na arte contemporânea, através de dois textos, O Cobrador, de autoria de Rubem
Fonseca, e O invasor, textos fílmico e literário, de Beto Brant e Marçal Aquino,
respectivamente. No primeiro momento, procurou-se mostrar como o conto de Fonseca
trabalha as relações de violência, levando em conta as configurações do espaço no texto. Em
seguida, foram analisadas as mesmas configurações espaciais nos textos de Brant e Aquino.
No terceiro e último capítulo, procurou-se inverter o foco da pesquisa, e, ao invés de serem
analisados os espaços nos textos, investigou-se como e qual é o lugar que esses textos ocupam
dentro do panorama da literatura e do cinema nacionais, averiguando as possíveis tensões e
diálogos que propõem entre si e com os textos considerados canônicos por nossa cultura.
Palavras-chave: Rubem Fonseca, Marçal Aquino, Beto Brant, literatura, cinema, violência,
espaço.
ABSTRACT
This work aims to analyze the representation of violence and its relations with space in
contemporary art, through the study of two texts: 'O Cobrador', by Rubem Fonseca, and 'O
Invasor', literary text and movie by Beto Brant and Marçal Aquino respectively. First of all,
we take a look at how Fonseca’s short story deals with violence relations and space
configurations in the text. Then, we analyze the same space configurations in texts by Brant
and Aquino. In the third and final chapter, we invert the focus of the research and instead of
analyzing the spaces in the texts, we investigate how and which place these texts occupy in
the national literary and cinema scenario, examining the possible tensions and dialogs they
propose among themselves and with texts considered canonical by our culture.
Key-words: Rubem Fonseca, Marçal Aquino, Beto Brant, literature, cinema, violence, space.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................9
1 O ESPAÇO NO TEXTO – O COBRADOR......................................................................13
2 O ESPAÇO NO TEXTO.....................................................................................................27
2.1 O invasor – Texto literário...............................................................................................27
2.1.1 Invasão em via de mão dupla.........................................................................................27
2.2 O invasor – Texto fílmico.................................................................................................33
2.2.1 Múltiplas invasões ..........................................................................................................33
2.3 Música intrusa – A invasão do espaço narrativo...........................................................46
2.4 Outras Invasões – Paulo Miklos e Sabotage...................................................................56
3 O ESPAÇO DO TEXTO – O COBRADOR......................................................................60
3.1 O estupro do Cânone........................................................................................................60
3.2 O Espaço do texto – O invasor, texto literário...............................................................70
3.2.1 Continuidade de um legado nefasto..............................................................................70
3.3 O espaço do texto – O invasor, texto fílmico ..................................................................76
3.3.1 Violentando a tradição audiovisual ...............................................................................76
4 CONCLUSÃO......................................................................................................................81
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................85
REFERÊNCIAS VIRTUAIS.................................................................................................89
REFERÊNCIAS FÍLMICAS ................................................................................................90
CRÉDITOS E FONTES DAS IMAGENS ...........................................................................91
9
INTRODUÇÃO
Este trabalho é fruto de inquietações frente à violência que vem ocorrendo na
sociedade brasileira, à maneira como ela é vista e, mais ainda, à forma como ela é
representada pelas artes contemporâneas – nesse caso, a literatura e o cinema.
Três obras foram selecionadas para que se pudesse pensar tal violência. São elas: O
Cobrador, conto de autoria de Rubem Fonseca; O invasor, novela de autoria do escritor
Marçal Aquino, além de outra versão para a mesma história lida no livro de Aquino, porém
em versão fílmica, dirigida por Beto Brant.
Rubem Fonseca, autor que dispensa apresentações, lançou mais de duas dezenas de
títulos e é um consagrado, porém também polêmico, escritor brasileiro. O conto que será
trabalhado foi retirado da coletânea Contos Reunidos, mas foi primeiramente publicado no
livro O Cobrador, em 1979.
Marçal Aquino, escritor e roteirista de cinema, conseguiu excelente aceitação de seus
textos no mercado literário, angariando vários prêmios e se firmando como um importante
escritor da chamada geração 90. O invasor foi publicado em 2002 para ser lançado
juntamente com o filme de mesmo nome, roteirizado por uma parceria entre o próprio
Aquino, Beto Brant e Renato Ciasca.
Beto Brant é cineasta e parceiro de longa data de Marçal Aquino. Antes de começar a
fazer cinema, fez videoclipes e alguns curtas-metragens e estreou na produção de longas-
metragens em 1997 com o lançamento do filme Os matadores, cujo roteiro, de autoria de
Marçal Aquino, marca o início da parceria entre o escritor e o cineasta que, posteriormente,
trabalhariam em outros filmes, como Ação entre amigos (1998) e O invasor (2002), terceiro
longa-metragem de Beto Brant, considerado por muitos especialistas um dos pontos altos do
chamado Cinema da Retomada.
As obras dos três artistas, brevemente expostas, servirão de campo investigativo, para
que, em diálogo com textos de importantes teóricos, sejam examinadas as representações da
violência na arte brasileira contemporânea, que todas têm como parte importante de sua
tessitura a violência e o crime. Além disso, acredita-se haver uma espécie de continuidade na
relação entre os agentes da violência pertencentes a classes sociais distintas, que foi iniciada
no texto de 1979 e se intensifica na história contada por Aquino e Brant, o que justifica de
maneira mais veemente a escolha de tais obras para a composição desta pesquisa.
10
No primeiro capítulo, busca-se mostrar que, diferentemente do que se pode imaginar, a
literatura brasileira, muito, possui como incômoda aliada e parceira a violência,
conforme aponta Karl Erik Schollhammer (2000, p. 237). Para o teórico, “desde o
naturalismo, até a década de 40, a literatura girava em torno da violência cometida contra as
sociedades do continente: a conquista, a ocupação e exploração, a aniquilação da cultura
indígena, a escravidão, o imperialismo, a luta pela independência” [...] Após se mostrar essa
“antiga” relação da violência com a literatura brasileira, será introduzido o conceito de espaço
de Milton Santos, um conceito que se mostrará intensamente proveitoso e que acompanhará a
análise de todos os textos aqui estudados. As configurações espaciais da violência, portanto,
serão a linha que norteará toda a discussão a que se propõe; por um lado, analisar o espaço no
texto, ou seja, a forma como os personagens e as “coisas” ocupam o espaço dentro da história
que é narrada, e, por outro, verificar qual é o espaço que tais textos literários e fílmico
ocupam nas histórias da literatura e do cinema brasileiro. Após essas considerações iniciais,
será focado o olhar especificamente na questão do espaço no texto O Cobrador. Com o
suporte de teóricos nem sempre relacionados à análise literária, como Dominique Wolton,
Jürgen Habermas, Viviane Forrester e Hélio Pellegrino, entre outros, buscar-se-á mostrar
como o texto literário representa a sociedade brasileira e a violência que cerca, atinge e/ou
envolve cidadãos pertencentes a todas as classes sociais nas urbes contemporâneas. Faz-se
necessário enfatizar que grande parte da vasta bibliografia crítica sobre Rubem Fonseca e
mais especificamente sobre O Cobrador foi consultada, entretanto apenas aquilo que pareceu
intimamente relacionado à questão que aqui se propõe trabalhar foi aproveitado.
No capítulo 2, após rápida exposição acerca da trama que envolve a história O
invasor, em texto literário e fílmico, serão analisadas as configurações espaciais no texto
literário de Marçal Aquino, e, ainda, apresentado o que se pretende: uma nova leitura sobre a
questão de quem seria o invasor da história. Todas as críticas lidas, sem exceção, apontavam o
Invasor representado no texto como sendo um dos personagens, porém é possível ver tal
invasão como uma questão um tanto quanto mais complexa, conforme se propõe no capítulo
em questão. Será discutida, ainda, a questão da violência, agora em rede, que está sendo
constituída em nossa sociedade e, conseqüentemente, representada na literatura brasileira
recente.
Em seguida, será analisado O invasor em sua versão fílmica. Antes de se iniciar a
análise do filme propriamente dito, optou-se por expor uma idiossincrasia importante no que
se refere ao processo de gênese dessa história tanto a respeito do texto fílmico quanto do
literário –, tendo em vista que este não se deu de forma “natural”, ou seja, uma “simples”
11
adaptação de um texto literário para o cinema, como geralmente acontece. Essa parte,
intitulada “Múltiplas invasões”, deveria conter apenas a análise do texto fílmico, evidenciando
as relações de violência ali representadas. Entretanto, apesar de este item ter seu foco
principal no texto fílmico, em alguns momentos, análises e comparações com o texto literário
serão efetuadas, objetivando maior esclarecimento dos propósitos que se intenciona alcançar.
A sobreposição, no mesmo item, da análise dos textos cinematográfico e literário procede,
também, pelo fato de que é esse o espaço no qual se discutirá uma importante diferença entre
os pontos de vista de cada uma das narrativas. A diferença de pontos de vista narrativos
(primeira pessoa no texto literário e uma outra, diferente, no cinematográfico), como será
mostrada, vai permitir que se tenha acesso, ao assistir ao filme, a espaços que a novela não
permite visualizar. Cenas do filme serão analisadas com o intuito de se evidenciar como a
violência dos grandes centros urbanos brasileiros vem se estruturando em forma de uma rede
cujos fios já se encontram emaranhados de tal maneira, que se torna difícil a detecção de onde
essa violência tem início. Essa parte do texto foi cuidadosamente ilustrada com cenas do filme
para que se tornem mais nítidas e facilmente compreensíveis as discussões a que se propõe.
O próximo passo a ser discutido diz respeito a um aspecto altamente relevante dentro
do processo narrativo do filme: as canções que compõem a trilha sonora de O invasor. Ainda,
como essa história parece remeter tudo a um estado constante de invasão, será discutida a
presença, no filme, dos músicos Paulo Miklos e Sabotage.
A partir do terceiro capítulo, pretende-se contextualizar historicamente os três textos
dentro da história da literatura e do cinema brasileiro, ou seja, a análise passará a focar o
espaço do texto. Primeiramente, o foco recairá em três importantes manuais da história da
literatura brasileira escritos por Nelson Wernek Sodré, Afrânio Coutinho e Alfredo Bosi.
Nesses manuais, serão analisados os períodos que se acredita ter certa aproximação temática
com os textos ficcionais aqui trabalhados O Realismo e, conseqüentemente, o Naturalismo.
A pesquisa efetuada nesses manuais tem o intuito de dar suporte teórico para que se possa
tentar enquadrar, mesmo que rapidamente, os textos em questão na trajetória das letras no
Brasil. Esse também será o espaço para se discutir qual seria a transgressão proposta pelo
texto de Fonseca, em sua relação com o decreto que censurou o livro Feliz ano novo. Para
isso, com a ajuda da teoria de Terry Eagleton, tentar-se-á analisar a linguagem literária
proposta pelo texto fonsequiano. Há ciência de que vários outros fatores, não abordados nessa
parte deste texto, levam um texto literário a ser enquadrado em uma ou outra parte da história
da literatura e que vários desses fatores podem ser foco de análise. Entretanto, não existe uma
pretensão classificatória exaustiva, mas sim trabalhar a questão da violência e, mais
12
especificamente, da linguagem “violenta” utilizada pelo autor na composição de O
Cobrador.
Com o apoio teórico de Tânia Pellegrini e, principalmente, de Antonio Candido,
pretende-se analisar a alteração do ponto de vista da narrativa da terceira pessoa – que
caracterizava o texto Realista/Naturalista para a primeira. Essa análise pretenderá verificar
se tal alteração apenas muda o ponto de vista através do qual o leitor tem acesso ao “fato”
narrado ou se ela é geradora de novas possibilidades de leitura e, conseqüentemente, de
ampliação de significados. Outro aspecto importante que será ressaltado nesse capítulo é a
idéia de continuidade proposta para O invasor em relação ao seu antecessor, O Cobrador.
Finalmente, procurar-se-á situar o texto fílmico aqui trabalhado dentro da história do
cinema brasileiro e, mais especificamente, dentro daquilo que se convencionou chamar de
Cinema da Retomada. Para isso, será discutido como o filme de Beto Brant se utiliza da
linguagem televisiva e/ou do videoclipe geralmente associada ao comercialismo e feito
um rápido contraponto com o Cinema Novo e algumas questões apontadas por Glauber Rocha
em seu texto A estética da fome.
Enfim, essas são as coordenadas que regem o diálogo proposto entre o texto de Rubem
Fonseca e os de Marçal Aquino e Beto Brant.
13
1 O ESPAÇO NO TEXTO – O COBRADOR
Onde todos são culpados, ninguém o é.
Hannah Arendt
A questão da violência, visível e pulsante, parece difícil de ser decomposta, como o
cadáver de uma frase do livro O invasor, de autoria de Marçal Aquino – “Há certos cadáveres
que, por razões que ignoramos, não se decompõem.” (AQUINO, 2002, p. 32). A narrativa
ficcional na contemporaneidade tem-se utilizado, com considerável freqüência, do tema da
violência, explicitada em atos extremamente desumanos e com uma densa carga de crueldade.
Muito se perguntou e se respondeu a respeito dessa violência, entretanto,
conforme afirma Blanchot (2001, p.44), em A conversa infinita, [...] a questão não se
prossegue na resposta, ao contrário, ela é concluída pela resposta e nela fechada”, mas “[...]
somente a resposta, respondendo, deve retomar em si a essência da questão, que não é extinta
por aquilo que lhe responde.” Considerando as palavras do autor, concluiu-se que toda
resposta carrega uma semente de pergunta. Respostas são sempre colocadas em xeque e
geram novas e instigantes questões, e talvez por isso mesmo, mas não somente, ainda
muito sobre a violência em obras ficcionais a ser discutido. As narrativas contemporâneas que
abordam a questão da violência tornam-se elas próprias cadáveres que, como no texto de
Aquino, se recusam a se decompor.
A violência, matéria bastante recorrente também no cinema contemporâneo, mais do
que tema, se faz linguagem, ato de comunicação, como explica Rondelli, ao tratar da
violência na mídia.
[...] a violência aparece não só como mero fenômeno de agressão física, mas
também como linguagem, como ato de comunicação. Não por qualquer decisão
consciente de suas vítimas ou praticantes, mas por ser a expressão limite de conflitos
para cuja solução não se pode contar com as formas institucionalizadas de
negociação política ou jurídica legítimas. (RONDELLI, 2000, p. 147)
Para Pellegrini (2004), a literatura brasileira representa a violência desde suas origens,
seja na prosa, seja na poesia. Sempre houve violência na história do Brasil e,
conseqüentemente, na representação literária das realidades de determinados momentos: na
colonização, o aniquilamento dos índios, nas ditaduras, a tortura e o exílio etc.
Alguns teóricos, ao se referirem à violência na representação ficcional brasileira, dão
como exemplos:
14
1. A literatura naturalista, sua violência representada pelos “espaços de exclusão”
1
, como
“os cortiços” e as “casas de pensão”. (Aluísio Azevedo) (PELLEGRINI, 2004, p. 19)
2. O regionalismo e a violência representada pela “temática do cangaço, das lutas entre
vaqueiros, jagunços e, de modo geral, dos heróis justiceiros do sertão.” (Graciliano
Ramos, Guimarães Rosa) (SCHOLLHAMMER, 2000, p. 239)
3. A época da ditadura militar e os textos dos escritores da chamada “geração pós-64”,
que tratam de temas como tortura, esquadrão da morte, memórias do cárcere.
(Fernando Gabeira, Caio Fernando Abreu) (SÜSSEKIND, 2004, p. 73-81)
A partir dos breves exemplos anteriores, pode-se perguntar como essa parceira da
literatura brasileira a violência vem sendo representada na literatura contemporânea. Para
tentar, pois, continuar traçando essa linha temporal/representacional da configuração narrativa
da violência na ficção contemporânea, observando como ela se constitui no discurso e como
discurso, estão sendo focados três diferentes textos: O Cobrador, de Rubem Fonseca; O
invasor, de Marçal Aquino, e, também, O invasor, em versão fílmica dirigida pelo cineasta
Beto Brant.
Interessa investigar o espaço como elemento/ferramenta que suporte à análise dos
textos em questão, que este se faz elemento integrador e revelador de relações
sociopolíticas aí presentes.
Por isso mesmo, esse espaço que se está investigando não é e nem poderia ser o
espaço meramente geográfico, o cenário por onde transitam as personagens, que, em um
texto, o espaço “quase nunca se reduz ao denotado.” (LINS, apud WALTY, 1985, p. 86).
Considerando tal conceito como útil operador de leitura dos textos analisados, faz-se
necessário, então, tentar definir o que ou de que é constituído esse espaço.
Santos (1997), um importante geógrafo brasileiro, aponta para essa multiplicidade
indefinida no que se refere ao conceito de espaço dentro do campo de pensamento da
geografia. Há espaços geográficos, econômicos, sociológicos, comerciais, nacionais, mundiais
1
É importante observar que o termo exclusão utilizado pela autora e também por nós não circula no tempo de
produção das obras citadas no item 1. Nesse sentido, faz-se necessário esclarecer esse termo bastante recorrente
neste texto: exclusão. Sabe-se que tal termo pode ser de significação ambígua e causador de polêmicas
dependendo da forma como é abordado e, por essa razão, é necessário deixar claro com que significado ele é
aqui adotado. Goméz (1999, p. 154), em seu texto Globalização da política: mitos, realidade e dilemas, afirma
que um “aumento do fenômeno da exclusão social e espacial” e caracteriza os participantes deste fenômeno
como sendo “[...] grupos e categorias sociais, zonas, países e até continentes que, rapidamente, tornaram-se
irrelevantes porque não conseguem integrar-se à dinâmica da economia mundial [...].” Tal definição é bastante
apropriada pelo fato de considerar não apenas a exclusão de grupos e categorias sociais mas também a exclusão
com relação ao espaço, dialogando assim de maneira pertinente com a reflexão proposta, tendo em vista que este
trabalho tem íntima relação, como já foi dito, com o caráter espacial nos e dos textos em foco.
15
etc. Para ele, indivíduos diferentes e, por isso mesmo, várias percepções sobre a mesma
coisa. Admitindo essa multiplicidade no que se refere ao conceito de espaço, o autor define:
[...] o espaço não é nem uma coisa, nem um sistema de coisas, senão uma realidade
relacional: coisas e relações juntas. Eis porque sua definição não pode ser
encontrada senão em relação a outras realidades: a natureza e a sociedade,
mediatizadas pelo trabalho. [...] O espaço deve ser considerado como um conjunto
indissociável de que participam, de um lado, certo arranjo de objetos geográficos,
objetos naturais e objetos sociais, e, de outro, a vida que os preenche e que os anima,
ou seja, a sociedade em movimento. (SANTOS, 1997, p. 26)
Observa-se, portanto, no conceito do geógrafo, a ênfase na força relacional. Nesse
sentido, ressalte-se, por exemplo, como o texto vai mostrar o protagonista do conto O
Cobrador como um excluído. Seu posicionamento social é percebido não simplesmente pelos
espaços geográficos que ocupa e por onde transita, mas também pelas situações que vive, pela
rede de relacionamentos que compõe a sua trajetória. Ele mora em um quarto que não se sabe
se é alugado, se é “de favor”, em um sobrado que pertence a uma senhora doente. Estudou
num colégio que “foi o mais noturno de todos os colégios do mundo, tão ruim que não existe
mais, foi demolido. Até a rua onde ele ficava foi demolida.” (FONSECA, 1994, p. 494). Ou
seja, ele não possui uma moradia “digna”, não teve acesso à educação de qualidade,
reduzindo-se ele mesmo a uma ruína. Além disso, a trajetória desse personagem é permeada
por encontros com pessoas de “corpos cariados”
2
(cf. LISPECTOR, 1998, p. 61) como uma
mulher que o “apanhou na ruae com quem bebia “uísque ordinário”; uma mulher de “peitos
murchos e chatos, os bicos passas gigantes que alguém tinha pisado; coxas flácidas com
nódulos de celulite, gelatina estragada com pedaços de frutas podres.” (FONSECA, 1994,
p. 495). A dona Clotilde, proprietária do sobrado onde ele mora, é uma mulher que está de
cama três anos e que tem “a bunda seca como uma folha velha e amassada de papel de
arroz.” (FONSECA, 1994, p. 500). Seu espaço é, pois, o das ruínas sociais, seja o lugar em
que mora e por onde transita, sejam as pessoas com quem se relaciona.
A relação do protagonista do conto com as pessoas de classes sociais superiores à dele
praticamente acontece através de seus atos violentos, quando “justiça os granfas”,
conforme ele mesmo afirma ao comentar uma reportagem no jornal sobre um casal que ele
havia assassinado: o casal que eu justicei [...] os granfas que eu despachei” (FONSECA,
1994, p. 499). A relação do Cobrador com as classes mais elevadas da sociedade, portanto,
acontece nesse espaço de violência, a não ser quando encontra Ana, personagem que é um
caso à parte, conforme será discutido mais adiante. Veja-se que, ao exibir o Cobrador como
2
Aproveitamos o termo corpos cariados cunhado por Clarice Lispector em A hora da estrela (1998).
16
vítima social, a narrativa inverte os sinais: as timas da violência pessoas pertencentes à
classe dominante, bacanas com roupa de tenista e que andam de Mercedes, casal jovem e
elegante com viagem marcada para Paris, executivos são mostradas como os verdadeiros
criminosos. Outro apontamento no texto, que sugere que o protagonista ocupa o espaço do
excluído, mas não do submisso, pode ser constatado conforme algumas estrofes de um dos
seus poemas (ele se intitula poeta) nomeado “Novos Cheiros de Buceta com U”:
não sei por que me lepravam [...]
quando não se tem dinheiro
é bom ter músculos
e ódio.
(FONSECA, 1994, p. 495)
O poema em primeira pessoa mostra a escrita como, também, um elemento de ódio e
resistência.
Sendo assim, ao se observar a trajetória desse personagem dentro da narrativa,
percebe-se uma certa repulsa entre dois extremos, de um lado o Cobrador e sua fúria
enlouquecida e do outro as pessoas pertencentes à classe social dominante.
De um lado o
Cobrador, sujeito que se acha no direito de cobrar dos ricos aquilo que lhe devem; do outro,
os ricos que concentram as riquezas em seu poder, criando, assim, uma legião de excluídos.
É tida a dicotomização dos espaços por onde transitam o Cobrador e suas vítimas.
Por exemplo:
Da rua vejo a festa na Vieira Souto, as mulheres de vestido longo, os homens de
roupas negras. [...] Da calçada vejo os garçons servindo champanha francesa.
(FONSECA, 1994, p. 495/496, grifo nosso).
Se se prestar atenção aos espaços duas vezes realçados pelo narrador-personagem,
percebe-se o lugar que ocupam o Cobrador e a classe abastada da sociedade, suas vítimas. Ele
da calçada, ele da rua. O espaço ocupado pelo Cobrador é o espaço do excluído, o
espaço da rua, que é praticamente o único que acolhe a legião de excluídos. Entre a
rua/calçada de onde o Cobrador as pessoas na Vieira Souto, avenida de um conhecido
bairro de classe alta do Rio de Janeiro, uma barreira que não pode ser vista “a olho nu”.
Não possibilidades de interação entre os dois espaços. O Cobrador não pode fazer parte
daquele ambiente onde acontece a festa, até porque sua posição de excluído impede que
penetre num mundo onde se admira uma língua que cria barreiras na comunicação, a língua
francesa: “Essa gente gosta de champanha francesa, vestidos franceses, língua francesa.”
17
(FONSECA, 1994, p. 495/496). O espaço da incomunicabilidade entre as classes pode ser
pensado através desse aparente galicismo ostentado por aqueles de quem o protagonista quer
cobrar aquilo que lhe devem.
Essa estrutura social dicotomizada, apresentada no conto de Fonseca (1994), evidencia
uma voz autoral que denuncia uma estarrecedora desigualdade social, a qual, juntamente com
outros fatores, faz com que a criminalidade e a violência se intensifiquem, conforme aponta
Pellegrino (1984, p.7):
[...] a injustiça impera e a iniqüidade governa; quando a corrupção pulula e a
impunidade se instala; quando a miséria de milhões se defronta com a aviltante
ostentação de pouquíssimos; quando ocorre tudo isto que no presente momento
define e estigmatiza a sociedade brasileira, então a criminalidade desfralda a sua
bandeira perversa, e se torna a denúncia de uma estrutura social também perversa.
No texto, a voz do autor implícito, fazendo-se ouvir através da voz que é dada ao
Cobrador, denuncia, de maneira sutil, essa concentração de riquezas na mão daqueles que são
assassinados. A seguir, algumas passagens que ilustram tal relação.
O Cobrador, quando captura um casal que sai de uma festa, sente seu ódio aumentando
ao ouvir o que o homem lhe diz: “Nós não lhe fizemos nada.” E o Cobrador responde com a
seguinte questão: “Não fizeram?” E ele mesmo responde: “Só rindo.” (FONSECA, 1994, p.
496). No momento em que o Cobrador escuta do homem rico que esse não lhe fez nada, ele é
inundado por uma onda de ódio, o que revela uma violência que acontece em dois sentidos. O
“bacana” pode não ter feito nada com o Cobrador naquele exato momento, mas faz parte de
um sistema responsável pela distribuição da renda, que faz concentrar muita riqueza em
algumas mãos, deixando pobres, excluídas tantas outras pessoas. Essa poderia ser considerada
uma violência dos “bacanas” contra os pobres. O Cobrador, lido como representação da classe
menos privilegiada financeiramente, reage a essa violência matando, estuprando, cometendo
vários tipos de violência física contra os indivíduos pertencentes a classes superiores à dele.
Outro momento do texto em que essa relação pode ser percebida é quando ele captura
um homem que está saindo de uma casa de massagens. O Cobrador diz que “[...] o mundo
está cheio de ladrões, eles também são, que ninguém os pega.” (FONSECA, 1994, p. 501).
Esse discurso reafirma a questão apresentada no exemplo anterior sobre a concentração de
renda. Eles “roubam” dos pobres ao concentrarem a riqueza em apenas um lado da sociedade
dicotomizada, o deles. Além disso, o fato de esses ladrões não serem pegos nos faz pensar na
relação de corrupção que também é um dos fatores responsáveis pela violência, de acordo
com Pellegrino (1984).
18
Citando a teoria freudiana e a questão da Lei da Cultura, Pellegrino (1984) afirma que
cada pessoa, através do complexo de Édipo, aceita as regras do jogo da sociedade em uma
relação de deveres e direitos, a criança renuncia ao princípio de prazer e adere ao princípio da
realidade. O pacto edípico que aqui se instala é de mão dupla; o indivíduo abre mão da mãe,
mas tem direito a outras mulheres. Assim também ocorre com o que o psicanalista chama de
pacto social: o trabalho, fruto da renúncia ao princípio do prazer, leva à conquista do mínimo
necessário à preservação da subsistência e da dignidade do cidadão. Assim, se esse pacto não
é cumprido por parte da sociedade, um descumprimento que ofende o senso de eqüidade e
justiça desse cidadão. Surge, então, a revolta com conseqüente ruptura também do pacto
edípico. O recalque da Lei da Cultura é, então, rompido, devido ao não-cumprimento da parte
que cabe à sociedade. Os impulsos/desejos, antes contidos, afloram em forma de homicídio,
estupro, roubo, enfim violência. Essa forma enlouquecida de cobrar da sociedade tudo aquilo
que estão lhe devendo (“tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, sanduíche de
mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol.” [FONSECA, 1994, p.
493]) pode ser vista como a ruptura do personagem com a Lei da Cultura, conforme apontado
por Pellegrino (1984).
Outra interessante visão sobre o dicotomismo acerca dos espaços ocupados pelos
excluídos e pela classe social mais abastada diz respeito não mais aos espaços geográfico e
social, como nos exemplos anteriores, mas a um espaço de total invisibilidade por parte da
sociedade que opta por deixar fantasmagóricos esses seres pertencentes ao universo da
exclusão. Veja-se, por exemplo, a cena em que o Cobrador vai comprar uma arma de um
muambeiro e, quando ele está com a arma na mão, diz ao muambeiro que quer comprar
também um rádio:
O muambeiro voltou carregando um rádio de pilha. É japonês, ele disse.
Liga para eu ouvir o som.
Ele ligou.
Mais alto, eu pedi.
Ele aumentou o volume.
Puf. Acho que ele morreu logo no primeiro tiro. Dei mais dois tiros para ouvir o
puf, puf. (FONSECA, 1994, p. 493)
Poucos minutos antes de matar o muambeiro, o Cobrador matara um “sujeito de
Mercedes [...] um sujeito que tinha ido jogar tênis num daqueles clubes bacanas que tem por
ali.” (FONSECA, 1994, p. 492). O espaço da invisibilidade a que se faz referência não diz
respeito de forma direta às mortes dessas duas pessoas, mas à forma como elas são tratadas
pela sociedade e pelos meios de comunicação. Conforme indica o narrador.
19
Leio os jornais. A morte do muambeiro da Cruzada nem foi noticiada. O bacana do
Mercedes com roupa de tenista morreu no Miguel Couto e os jornais dizem que foi
assaltado pelo bandido Boca Larga. Só rindo. (FONSECA, 1994, p. 495)
Da mesma forma que estão separados no âmbito do espaço geográfico e social
rua/calçada X apartamento em Ipanema também estão dentro do espaço da notícia. Não se
noticia a morte do muambeiro, mas se sensacionaliza a morte do “bacana da Mercedes”.
Novamente percebe-se a dicotomização e a impossibilidade de os diferentes personagens
ocuparem os mesmos espaços, sejam eles geográficos ou simbólicos. Dessa maneira, ao olhar
da mídia, o excluído torna-se invisível, evidenciando que os meios de comunicação
[...] agem como construtores privilegiados de representações sociais [...] Estas
representações se realizam através da produção de significados que não nomeiam
e classificam a prática social, mas, a partir dessa nomeação, passam mesmo a
organizá-la [...] (RONDELLI, 2000, p. 150)
A mídia
3
, apesar de sensacionalizar, espetacularizar e banalizar, tem potencial para
convocar outros atores sociais a um posicionamento em relação aos fatos. Se a morte do
muambeiro não é retratada pelos jornais, não a construção de uma representação social,
não produção de significado, não nomeação, classificação e, conseqüentemente, não se
amplia o debate a respeito dessa prática social denominada violência, incluindo, nesse caso, a
violência de um excluído contra aquele que poderíamos chamar de seu “par”. Assim,
confirma-se o pressuposto de Rondelli (2000, p. 150), de que também é visivelmente nula a
violência praticada contra o excluído.
Nesse sentido, vale lembrar Telles (2001), quando, usando o conceito de paisagem
utilizado por Süssekind (1990), discorre sobre a naturalização da pobreza no Brasil. Diz a
socióloga:
[...] Num registro ou no outro, a pobreza é encenada como algo externo a um mundo
propriamente social. Fruto de exclusões múltiplas, parece armar um cenário no qual
desaparece como problema que diz respeito aos parâmetros que regem as relações
sociais. Nessas formas de encenação pública, a pobreza é transformada em paisagem
que lembra a todos o atraso do país, atraso que haverá de ser, algum dia, absorvido
pelas forças civilizatórias do progresso. Paisagem que rememora as origens e que
projeta no futuro as possibilidades de sua redenção, a pobreza não se atualiza como
presente, ou melhor, na imagem do atraso, aparece como sinal de uma ausência.
3
Faz-se necessário esclarecer que o termo mídia, apesar de bastante complexo e de abarcar, na
contemporaneidade, uma numerosa quantidade de ferramentas e suportes, incluindo a própria literatura, faz
referência, neste trabalho, mais diretamente aos jornais, telejornais e comerciais de TV.
20
Como paisagem, essa pobreza pode provocar a compaixão, mas não a indignação
moral diante de uma regra de justiça, que tenha sido violada. (TELLES, 2001, p.
32).
Não se costuma perceber a legião de excluídos que têm como espaço de moradia a
própria rua e as favelas com moradias que beiram o desumano. Mas, ao contrário, esses
excluídos, invisíveis ao olhar midiático, banidos, repudiados, em ruínas
estão lá, apertados, encarcerados, incluídos até a medula! Eles são absorvidos,
devorados, relegados para sempre, deportados, repudiados, banidos, submissos e
decaídos, mas tão incômodos: uns chatos! Jamais completamente, não, jamais
suficientemente expulsos. Incluídos, demasiado incluídos, e em descrédito.
(FORRESTER, 1997, p. 15)
Ao se analisar o personagem Cobrador e comparando-o com o excluído/incluído
discutido por Forrester (1997), percebem-se dois pontos: um que condiz com o texto teórico e
outro que o contradiz, como se verá a seguir.
Sim, o Cobrador, como foi apontado, é um excluído, foi banido, repudiado, foi
decaído do carrossel do trabalho e, conseqüentemente, da roda do consumo. Não pode
consumir os bens que a TV, os comerciais e propagandas insistem em afirmar que ele deve
possuir; está proibido de freqüentar os mesmos espaços que as classes superiores à dele, foi
impedido de ter uma educação de qualidade etc.
O Cobrador, porém, não se tornou um dos submissos apontados pela autora. Esse
personagem, na verdade, tornou-se o chato ironicamente sugerido por ela, um sujeito que vem
“incomodar” a sociedade com sua cobrança sempre acompanhada de ações extremamente
violentas.
Não tendo aceitado a posição de submisso, ele, pelo contrário, pode ser considerado o
excluído incluído até a medula, termo que esboça de forma bastante peculiar o ingresso
violento do Cobrador na sociedade. Ele “incomoda” ao incluir-se através de seus atos de
barbárie. Desrecalcado pelo não-cumprimento conforme discutido –, por parte da
sociedade, daquilo que Pellegrino (1984) chamou de pacto social, o protagonista do conto é
ofendido em seu senso de eqüidade e justiça, expressando sua revolta em forma de homicídio,
estupro, roubo e violência.
Apesar de a visão midiática optar por não visualizar aqueles excluídos, uma
considerável parte da literatura brasileira contemporânea, por outro lado, estampa-os,
trazendo-os à tona, socando nosso estômago, esfaqueando nossa suposta “paz”, fazendo com
que arregalemos os olhos como se todos fossem personagem de um filme de Hitchcock
21
prestes a ser atacado por um assassino, devido a tamanha e terrível brutalidade. Atente-se,
porém, para o fato de que a violência estampada refere-se não apenas à brutalidade e à
crueldade efetuadas pelo Cobrador, mas também àquela praticada por parte do lado abastado
da sociedade, ou mais do que isso, à praticada pela própria ordem social. A literatura
brasileira contemporânea torna-os, então, personagens que “reproduzem sua linguagem
cotidiana característica e essas vozes se fazem literatura, denunciando um modo de vida
absurdamente miserável. Sabe-se que a palavra denúncia é pouco “querida” dentro dos
estudos da arte, mas, em um país como o Brasil, ela torna-se quase que obrigatoriamente parte
da produção artística, produção que, muitas vezes, traz essa marca praticamente indelével de
nossa sociedade, seja através do processo de enunciado, seja através do processo de
enunciação, como será explicitado mais à frente. Santiago (2004, p. 66) alerta para essa
característica anfíbia ou híbrida da literatura brasileira contemporânea. Afirma ele:
Por um lado o trabalho literário busca dramatizar objetivamente a necessidade do
resgate dos miseráveis a fim de elevá-los à condição de seres humanos (já não digo à
condição de cidadãos) e, por outro lado, procura avançar, pela escolha para
personagens da literatura de pessoas do círculo social dos autores uma análise da
burguesia econômica nos seus desacertos e injustiças seculares. Dessa dupla e
antípoda tônica ideológica [...] advém o caráter anfíbio de nossa literatura.
O escritor (ou pelo menos uma considerável parte deles), no fazer literário brasileiro
contemporâneo, muitas vezes não se desvencilha de seu teor político e denunciador, mas nem
por isso deixa-se influenciar pura e simplesmente por esse fator. Ou seja, ele abarca a causa
política, mas, se utilizando de recursos artísticos, não deixa que sua escrita se infle com puro
teor panfletário. Esse, talvez, seja o caso do texto de Rubem Fonseca. Buscam-se, neste
capítulo, os espaços no texto, um viés provavelmente mais voltado para o lado político,
conforme apontado por Santiago (2004), porém, mais adiante, tentar-se-á explicitar, através
da análise dos espaços do texto e de suas características metalingüísticas, o que faz dele bem
como do(s) texto(s) de Marçal Aquino e de Beto Brant obras também crivadas com artifícios
artísticos.
O conflito dos espaços sociais é representado de forma dicotômica, como no exemplo
já citado, entre a rua onde fica o Cobrador e o apartamento onde se passa a festa dos
afortunados. Não há possibilidade de penetração por parte do Cobrador, metáfora que
representa toda uma classe de excluídos que têm o desejo desaprisionado em virtude da
ruptura do pacto social. O espaço da classe abastada não pode, enfim, ser penetrado pelo
outro. Além das barreiras antes explicitadas, outras barreiras invisíveis “a olho nu” são os
22
comerciais de TV que o Cobrador utiliza para poder aumentar seu ódio “quando minha
cólera está diminuindo e eu perco a vontade de cobrar eu sento na frente da televisão e em
pouco tempo meu ódio volta.” (FONSECA, 1994, p. 493). Os espaços midiáticos, como se
pode perceber, da mesma forma que deixam os excluídos e a violência contra estes
praticamente invisíveis, têm outro papel maléfico na relação entre o Cobrador e o mundo,
pois, assim como o jornal, que pôde ser lido como o espaço da invisibilidade social, o
noticia a morte do muambeiro, outro agente midiático, os anúncios de TV, podem representar
o espaço social ao qual têm real acesso os pertencentes às classes sociais “superiores”. Ele
não tem acesso à “realidade perfeita” vendida pela propaganda televisiva, como se pode
conferir no trecho que se segue.
Quero muito pegar uma camarada que faz anúncio de uísque. Ele está todo
vestidinho, bonitinho, todo sanforizado, abraçado com uma loura reluzente, e joga
pedrinhas de gelo num copo e sorri com todos os dentes, os dentes dele são certinhos
e verdadeiros, e eu quero pegar ele e com a navalha cortar os dois lados da bochecha
até as orelhas, e aqueles dentes branquinhos vão ficar todos de fora num sorriso de
caveira vermelha. Agora esali sorrindo, e logo beija a loura na boca. Não perde
por esperar. (FONSECA, 1994, p. 494)
Em uma sociedade de consumismo desenfreado, a TV e os comerciais, que servem
como mola propulsora para reanimar o ódio enfurecido do Cobrador, vendem “modelos de
vida que tudo o impede de imitar”. (FORRESTER,1997, p. 64). Sendo membro de uma classe
social que está impedida de imitar os modelos impostos pela televisão, como o acesso a bens
de “consumo obrigatório”, pois não tem como comprá-los, o Cobrador volta às ruas para
cobrar aquilo que lhe devem.
Como se pode observar, sendo impossibilitado de consumir o que o sistema valida
como essencial, tendo camuflada a violência exercida contra ele, e permanecendo no cerne de
um conflito dicotômico dos espaços sociais, o personagem só se faz ouvir quando tem sua voz
inserida na obra de arte.
ainda uma personagem de extrema importância e que merece destaque em nossa
discussão acerca dos espaços no conto. Ana é um caso à parte nas relações sociais do
Cobrador, pois ela pertence a uma classe social superior à dele, ao espaço daqueles
privilegiados financeiramente. Ela deveria ser uma daquelas pessoas sobre quem o Cobrador
executaria sua função cobradora, no entanto isso não acontece. Ana, no conto, lembra-nos
uma musa romântica. Ela é como uma “princesa” inatingível para uma pessoa como o
Cobrador; mas eles se conhecem na praia e o Cobrador acredita que “na praia somos todos
iguais, nós os fodidos e eles” (FONSECA, 1994, p. 499), abrindo assim a possibilidade de
23
haver algo entre eles. Ana é uma mulher linda, “o cabelo dela é fino e tratado, o seu tórax é
esbelto, os seios pequenos, as coxas são sólidas e redondas e musculosas e sua bunda é feita
de dois hemisférios rijos. Corpo de bailarina.” (FONSECA, 1994, p. 499). Além de ser
belíssima, Ana mora em um apartamento em um prédio de mármore de frente para a praia de
Ipanema. Uma princesa “com o cabelo muito preto, o rosto branco, parece uma fotografia”
(FONSECA, 1994, p. 500), presa em sua torre de mármore, inatingível para um pobre
desdentado como o Cobrador. Porém, o autor subverte a estética aparentemente romântica
desse momento do conto ao torná-la plenamente “atingível”. A inacessibilidade entre esses
dois corpos pertencentes a classes sociais distintas desaparece. O Cobrador, assim como um
príncipe de contos de fadas, salva Ana, que diz a ele: “minha vida não tem sentido, pensei
em me matar”. (FONSECA, 1994, p. 500). A partir do relacionamento com o personagem-
título, ela encontra sentido para sua vida, sai de casa, vai morar com ele e juntos vão
intensificar a violência. Mas seria então o amor uma forma de superação das diferenças
sociais?
Essa personagem representa uma peça fundamental dentro da construção dessa
narrativa fonsequiana. Ana é um nome do qual o próprio Cobrador diz gostar: “Gosto de Ana,
palindrômico.” (FONSECA, 1994, p. 499). O caráter ambíguo dessa personagem é
exacerbado por esse formato palindrômico de seu nome. E ela, com know-how de quem
pertence ao “lado de lá”, ao espaço de quem sabe muito bem fazer escorrer por todas as
frestas a violência, mesmo que de forma mais “silenciosa”, torna-se a educadora de seu novo
parceiro. Em vários momentos, o narrador-personagem explicita esse caráter “didático” de
Ana: “Ana me ajudou a ver. [...] Ana me ensinou a usar explosivos e acho que agora estou
preparado para essa mudança de escala. [...] Agora eu sei, Ana me ensinou.” (FONSECA,
1994, p. 503, 504). Ela começa a instruir o amante e juntos passarão a não mais executar
pessoas uma a uma; explodirão supermercados, explodirão pessoas, mudando de escala,
conforme aponta o Cobrador. Ou seja, o teor acusador do conto, que inverte o senso comum
de que somente o pobre seria aquele que comete o ato violento, mais uma vez fica ampliado,
tendo em vista que é a personagem pertencente à classe social dominante, com sua
“docência”, que vai intensificar o poderio destrutivo do Cobrador. Essa Ana palindrômica
pode representar a via de mão dupla que é expressa no conto. A violência ocorre e é
executada de forma dicotômica, ou seja, tanto no sentido dos ricos contra os pobres quanto no
sentido inverso. É uma violência que ocorre dos dois lados dessa sociedade vista como
dicotomizada. A junção entre esses membros de classes sociais distintas simboliza essa
violência que é praticada não apenas pelo lado miserável da sociedade, mas pelo lado
24
abastado também. Pode-se perguntar se, dessa forma, a dicotomia seria relativizada, pelo
menos do ponto de vista do autor implícito, pois é com a ajuda dessa burguesa que as ações
do Cobrador vão tornar-se mais eficientes, aumentando seu raio de atuação e de matança. Tal
postura evidenciaria a experiência que a burguesia tem de sobra, a de fazer com que o seu
produto atinja um número cada vez maior de clientes. Nesse caso, o produto será a explosão
de corpos que devem pagar aquilo que devem. O amor? O amor como forma de superação das
diferenças sociais? Não. O amor como uma espécie de rede que começa a se constituir para
que se potencialize a violência. Essa violência em rede que será explorada de maneira mais
explicitada a partir da análise de O invasor.
Como se pôde verificar nessa análise do conto O Cobrador, os espaços geográficos,
os sociais, os de informação, de comunicação e de consumo são, em determinado plano,
estabelecidos de forma dicotômica, evidenciando a impossibilidade de transposição, embora,
como visto no exemplo da relação entre o Cobrador e Ana, a transposição possa acontecer,
mas somente com o intuito de alargamento de uma rede de violência composta por agentes de
classes sociais distintas. A relação entre as classes é uma relação que só acontece através da
violência que cada parte exerce sobre a outra. O Cobrador executa suas vítimas e a classe
dominante priva-o de seu direito a uma vida digna; impede-o de ter acesso aos produtos que a
mídia impõe como bens que devem ser consumidos. É na rua que o Cobrador exerce sua
função cobrar. O Cobrador executa suas vítimas e a classe dominante priva-o de seu direito
a uma vida digna, impede-o de ter acesso aos produtos que a mídia impõe como bens que
devem ser consumidos. De qualquer maneira, não se trata de “avalizar” a violência do
excluído contra aquele que pertence a uma classe social superior a dele, mas de relativizar a
questão acerca de quem poderia ser considerado criminoso e vítima.
Justamente por se tratar da rua, pode-se perguntar como se configura o espaço público
no texto de Fonseca (1994) e como o próprio texto se insere no espaço público, visto como
lugar de intervenção política do cidadão.
Wolton (2004, p. 511) lembra, retomando Habermas, o conceito de espaço público
como
[...] a esfera intermediária que se constitui historicamente, no período das Luzes,
entre a sociedade civil e o Estado. É o lugar, acessível a todos os cidadãos, onde um
público se reúne para formular uma opinião pública. O intercâmbio discursivo de
posições racionais sobre problemas de interesse geral permite identificar uma
opinião pública. Essa “publicidade” é um meio de pressão à disposição dos cidadãos
para conter o poder do Estado.
25
Com relação ao conceito de espaço público aqui adotado, ainda é necessário dizer que
se em sua origem em países europeus este excluía grande parte dos cidadãos, os iletrados,
os pobres, no Brasil de hoje a situação é mais crítica. É preciso ainda lembrar que a mídia, que
poderia ser considerada uma expansão da rua e, conseqüentemente, do espaço público, acaba
por restringi-lo na medida em que se faz via de mão única, atuando sobre o indivíduo,
manipulando-o a serviço do consumo de bens e idéias.
A intervenção nesse espaço público, por acontecer sob a forma de intercâmbio
discursivo, exige que a voz do cidadão seja ouvida para que haja assim a discussão dos
problemas de interesse geral, entretanto, o protagonista do conto de Fonseca (1994), pelo fato
de ocupar o espaço do excluído, está impossibilitado de participar, de contribuir com a
discussão que ocorre (ou deveria ocorrer) em tal espaço e ao qual deveriam ter acesso todos
os cidadãos.
Portanto, tendo sufocada a sua voz, sendo sua “palavra muda”, lhe resta a violência
como forma de ação na sociedade, pois, conforme o pensamento de Arendt (1994), a
violência aparece como conseqüência do enfraquecimento da palavra. Onde a palavra não
atua mais, abre-se espaço para a violência. Para a estudiosa, é “o discurso o elemento
fundamental de distinção entre a vida humana e a vida animal.” (ARENDT, apud DUARTE,
1994, p. 94). O homem, privado de agir no espaço público através da palavra, da linguagem,
como é o caso do Cobrador, se obrigado a utilizar aquele que é o seu último recurso, a
violência. Não é sem razão que, para Arendt (1994), a violência brota da ausência de poder,
diz ela: “o domínio pela pura violência advém de onde o poder está sendo perdido.”
(ARENDT, 1994, p. 42). Mesmo que a autora se refira ao poder do Estado, vale lembrar que o
segmento social a que pertence o protagonista do conto não tem poder e nem voz. Assim, dá-
se a substituição da palavra pelo ato violento como pode ser percebido nos trechos a seguir
destacados.
Quando satisfaço meu ódio sou possuído por uma sensação de vitória, de euforia que
me vontade de dançar dou pequenos uivos, grunhidos, sons inarticulados [...]
como um selvagem ou um macaco. (FONSECA, 1994, p. 500)
E ainda, após degolar um jovem, diz o personagem: “Dei um grito alto que não era
nenhuma palavra, era um uivo comprido e forte, para que todos os bichos tremessem e
saíssem da frente.” (FONSECA, 1994, p. 497).
Conforme pode ser notado nos exemplos citados, após assassinar suas vítimas com
atos extremamente brutais, o narrador do conto se vê impossibilitado de proferir qualquer
26
palavra que faça parte daquilo que se poderia chamar de linguagem no sentido de um discurso
inteligível por nós, seres humanos. Fica, portanto, simbolizada a impenetrabilidade da
linguagem do Cobrador no espaço público que, conforme aponta o próprio narrador, a
substitui por ruídos selvagens, ruídos animais. Ou seja, os grunhidos e uivos selvagens podem
ser lidos como metáfora da não-penetração da voz do Cobrador no espaço público, e o seu
“discurso mudo” é, então, substituído pela violência.
Dessa maneira, podem-se perceber motivos pelos quais os pertencentes a classes
sociais altas são por ele atacados quando adentram a rua, o espaço público por excelência. No
espaço onde deveria acontecer o diálogo, acontece o ato de violência. Violentado pelo horror
econômico, desrecalcado pelo fato do não-cumprimento, por parte da sociedade, do pacto
social, invisível diante dos olhos da “grande” mídia, estimulado compulsivamente pelos
comerciais a consumir (e não poder), sendo sua voz impenetrável no espaço público, resta
ao excluído, ao Cobrador, a violência. Uma violência que se volta contra atos
“economicamente violentos”.
27
2 O ESPAÇO NO TEXTO
2.1 O invasor – Texto literário
2.1.1 Invasão em via de mão dupla
O(s) outro(s) textos com o(s) qual(is) se trabalhou, O invasor, textos literário e
fílmico já do século XXI, conta(m) a história de dois sócios – Ivan e Alaor (nome do
personagem na versão literária) / Giba (nome do personagem na versão fílmica) de uma
empresa de engenharia que, para conseguirem fechar um negócio sujo com o governo,
decidem contratar um matador de aluguel – Anísio – para que este assassine o terceiro sócio –
Estevão – que é contra o tal negócio.
Se comparada ao conto O Cobrador, percebe-se, na construção dessa história, seja em
texto literário seja em texto fílmico, uma diferença considerável em relação ao trespassar de
um espaço para o outro, o que já é prenunciado pelo título O invasor.
Vale ressaltar que o texto de Marçal Aquino é de 2001 e o de Rubem Fonseca fora
primeiramente publicado em 1979, o que altera a percepção da violência, como se procurará
mostrar. Por isso mesmo, parece que os conceitos de violência de Pellegrino (1984) e de
Arendt (apud DUARTE, 1994), usados para se estudar a relação dicotômica observada no
conto de Fonseca (1994), não seriam mais suficientes para analisar as relações entre os
espaços geográficos, físicos, simbólicos e entre os personagens do texto de Marçal Aquino.
O primeiro espaço analisado será o da própria invasão, pois uma primeira e desatenta
leitura pode conduzir a uma interpretação um tanto quanto ingênua, apesar de também válida,
em relação aos espaços que os personagens invadem. Quem, na verdade, invade o espaço do
outro, Anísio, o matador, ou os sócios também criminosos?
Apesar de Beto Brant e Marçal Aquino se referirem ao Invasor do texto como sendo
somente Anísio
4
, acredita-se em uma relação de invasão diferente, em uma leitura que,
levando em consideração o caráter relacional entre classes sociais distintas, sugere uma
ambigüidade no que se refere ao título do livro/filme.
4
Conforme pode ser conferido em entrevistas disponíveis na dissertação de mestrado de Alessandra de Souza
Mellet Brum, intitulada O processo de criação artística no filme O Invasor.
28
Sendo assim, pode-se ler o invasor sugerido no título como sendo Anísio, o matador
de aluguel, que ele, assassino que, após executar o terceiro sócio da empresa e sua esposa,
passa a “freqüentar” tal empresa sem ter sido autorizado, passa a freqüentar a casa do casal
assassinado em virtude de começar a se relacionar com Marina, filha de Estevão etc. No
decorrer da narrativa, porém, percebe-se que se trata de uma dupla invasão. Tanto os sócios
que contratam seus “serviços” quanto Anísio são invasores um do espaço do outro. Além
disso, outros personagens, como a filha do sócio assassinado e a amante de Ivan, também
percorrem espaços diversos, o que relativizaria uma percepção dicotômica do bem e do mal,
na narrativa. Será visto a seguir como algumas passagens do texto literário sugerem tal
invasão em via de mão dupla.
Na primeira cena do livro, quando se encontram pela primeira vez, os contratantes do
“serviço” e o contratado, uma pergunta dita por Anísio, quando quer saber qual é o nome de
cada um dos sócios Quem é quem?” (AQUINO, 2002, p. 8) pode ser lida levando-se em
consideração o caráter ambíguo que, muitas vezes, caracteriza o texto literário. Essa pergunta,
que pode ser interpretada simplesmente como o interesse do matador em saber quem é Alaor e
quem é Ivan, pode também simbolizar o cunho ambíguo do título do texto. Quem é o invasor?
Eu, o assassino, que estou sendo contratado por vocês ou vocês que invadem o “meu” lugar,
“um espaço medonho [...] sem nenhuma vocação para cartão postal” (AQUINO, 2002, p. 7)
conforme apontado por Ivan, o narrador da versão literária diferente daquele ao qual vocês
pertencem?
Além disso, os fregueses do bar no qual o encontro para a contratação dos “serviços”
de Anísio acontece, por alguns segundos, param para focar seus olhares nos dois personagens
que não pertenciam àquele lugar.
Merecemos uma rápida avaliação dos sujeitos que bebiam cerveja debruçados no
balcão [...] Os quatro homens que jogavam bilhar também nos olharam por um
instante, e depois retomaram sua conversa. (AQUINO, 2002, p. 8)
Logo em seguida, Anísio confirma que a presença de duas pessoas que não pertenciam
àquele espaço era facilmente percebida.
Quando vocês entraram, nem precisei olhar duas vezes, Anísio disse. Estava na cara
que eram os dois bacanas que eu estava esperando.
Mas você podia ter se enganado, eu comentei, provando a cerveja.
Nunca, Anísio ficou sério. Eu nunca erro. [...]
Como é que é isso?, Alaor perguntou. [...]
29
uma olhada no povo desse bar: tudo cara fodido, de pele manchada, cabelo
ruim, faltando dente, unha preta. Qualquer um é capaz de dizer que vocês não são
daqui. (AQUINO, 2002, p. 9)
Essa narrativa, que mostra as diferenças físicas entre as pessoas de classes sociais
diferentes, já aponta para a questão de que o invasor pode não ser apenas o matador que passa
a freqüentar o espaço dos “bacanas”, mas também os sócios que num primeiro momento
invadiram um espaço que não era o deles.
Fica assim bem caracterizada a distância social que separa os espaços desses três
personagens, que, no decorrer da narrativa, vão, no entanto, ser responsáveis por mostrar uma
rede de violência que penetra em praticamente todas as esferas de uma sociedade infectada
pela corrupção, roubo, consumismo, violência...
Será retomado um dos espaços do conto de Fonseca (1994) para se poder comparar a
diferença no trânsito dos personagens das duas histórias. Recorde-se a cena da festa que
acontece em um luxuoso apartamento localizado em Ipanema – já analisada quando se
investigou o conto de Fonseca (1994) no capítulo anterior. O Cobrador ocupa o espaço da rua
e está impossibilitado de freqüentar o interior do apartamento no qual acontece uma festa
particular, e quando um jovem casal sai do apartamento e transita pela rua é brutalmente
assassinado. O dicotomismo apontado em O Cobrador é relativizado no texto de Marçal
Aquino. Neste, os sócios “invadem” o espaço da periferia, por excelência o espaço do
excluído, quando vão contratar o “serviço” de Anísio. Em sentido contrário, Anísio, após
executar Estevão e sua mulher, Silvana, vai até a empresa de Alaor e Ivan levando as provas
do crime – “documentos, jóias, e cartões de crédito de Estevão e Silvana” (AQUINO, 2002, p.
70) –, pois conforme ele mesmo ironicamente diz: “Tem cliente que faz questão de receber
comprovante.” (AQUINO, 2002, p. 70). A penetração invasiva da empresa por parte de
Anísio se tornará mais clara ao se analisar essa passagem no texto fílmico, pois o texto
literário apenas sugere tal penetração como invasão, a não ser pelo fato de Anísio não ter sido
chamado ou convidado para ir até lá, o que fica mais visível na história filmada.
Depois desta “visita” de Anísio à empresa, os sócios “arranjam” o dinheiro e ele volta
para recebê-lo. Nesse momento, sua invasão fica caracterizada devido às atitudes de Anísio.
Primeiro ele tenta fazer com que os sócios guardem a segunda parte do pagamento pelo
serviço.
Anísio recebeu a pasta com o dinheiro das mãos de Alaor. Apalpou o conteúdo,
avaliou o peso, não conferiu. [...] ele pegou um maço de notas e guardou no bolso.
Então fez algo inesperado: deslizou a pasta sobre a mesa na minha direção. [...]
Vocês podem guardar pra mim?
30
Após essa frustrada tentativa de que eles guardassem seu dinheiro, Anísio tenta outra
investida, agora quase uma imposição, feita com muita ironia e de forma ameaçadora para que
ele trabalhasse na empresa.
Vocês podem precisar de mim outra vez.
Você não está entendendo, Anísio. Veja bem: Nós tivemos um problema aqui na
empresa, agora está tudo resolvido. Por que a gente iria precisar de você de novo?
[...]
Posso cuidar da segurança de vocês. [...]
Depois do que aconteceu com o sócio de vocês, não é bom pensar num segurança?
[...]
Estou oferecendo proteção porque gostei dos dois. Vocês não querem?
Espera aí, Anísio. Onde é que você quer chegar, afinal?
Em lugar nenhum. [..] Eu venho aqui na empresa, tomo conta da segurança, não
atrapalho ninguém. E se vocês precisarem de alguma coisa, é só falar comigo.
(AQUINO, 2002, p. 76)
E, após uma tensa discussão entre Ivan e Anísio, Alaor acaba cedendo, mesmo que
Ivan não concorde com tal decisão.
Vamos deixar Anísio fazer o que está propondo, Alaor disse. Ele pode ser útil aqui
na empresa.
Acho isso uma puta loucura, eu disse.
Calma, Alaor pressionou meu braço. Vamos ver o que acontece.
Começo amanhã. Hoje ainda tenho uma coisa pra resolver. Eu vou trabalhar direito,
vocês vão ver [...] (AQUINO, 2002, p. 76,77)
Os exemplos aqui destacados mostram justamente a relação de mútua invasão que
caracterizaria o texto de Aquino (2002), pois tanto os sócios invadem o espaço do matador de
aluguel, o espaço do crime quanto Anísio invade o espaço daqueles. Tais invasões sugerem
uma relação diferente daquela dicotomia vista no conto de Fonseca (1994). Uma espécie de
rede de violência em prol dos interesses individuais, privados, e da ambição que deve ser
saciada a qualquer custo passa a ser configurada. A relação entre esses três personagens é
apenas um dos fios da rede de violência conforme se verá no decorrer deste trabalho.
A violência, que no conto O Cobrador era operada pelo excluído contra o pertencente
à classe superior e também deste contra aquele, toma, na história de Marçal Aquilo, uma
forma mais aguda e representa uma relação mais perversa que ocorreria na sociedade
brasileira contemporânea. O conto de Fonseca (1994) parece prenunciar, através da relação
entre o Cobrador e Ana, uma rede de violência que vai se intensificar no decorrer do tempo na
sociedade brasileira e tal rede é representada nesse texto de Aquino (2002).
No texto literário, uma repetição de algumas palavras que, lidas como pertencentes
a um espaço semântico semelhante, sugerem a formação de uma rede de interesses que agrupa
31
agentes de classes sociais variadas como é o caso da relação entre os sócios e o assassino.
Seguem-se alguns desses trechos:
Quando abri a porta, Anísio veio em minha direção, com a mão estendida. Velhos
amigos. (AQUINO, 2002, p. 69)
Vocês não têm confiança em mim? [...]
Não é isso. (AQUINO, 2002, p. 71)
Eu sou amigo de vocês. Nunca prejudiquei nenhum amigo meu.
Tá bom, tá bom, Alaor consultou o relógio. (AQUINO, 2002, p. 71)
Confio em vocês. Anísio disse. [...]
Confio tanto que quero pedir um favor. (AQUINO, 2002, p. 74)
Vocês não querem a minha amizade, é isso?
Não dissemos nada. (AQUINO, 2002, p. 75)
Estou oferecendo proteção porque gostei dos dois. (AQUINO, 2002, p. 76)
Eu sou seu amigo, porra. (AQUINO, 2002, p. 76)
Só resta esperar para ver qual é a do nosso amigo. (AQUINO, 2002, p. 78)
Eu disse a ele que tinha uns amigos que podiam ajudar, Anísio comentou.
(AQUINO, 2002, p. 91)
E eu pensando que esses dois eram meus amigos...
Não é isso, Anísio, Alaor disse. (AQUINO, 2002, p. 92) (grifos nossos)
Na grande maioria das vezes em que Anísio, Alaor e Ivan se encontram, uma das
palavras destacadas amigo, confiança, confiar, gostar, amizade é utilizada nos diálogos.
Note-se que rias vezes Anísio refere-se aos novos “parceiros” como sendo seus amigos.
Ivan sempre se mostra incomodado com essa denominação e é o único que, em apenas uma
das vezes em que se encontram, nega tal relação – “Eu não quero ser seu amigo...” (AQUINO,
2002, p. 76). Em todos os outros encontros ou os sócios se calam e aceitam tal relação – “Não
dissemos nada.” (AQUINO, 2002, p. 75) ou até mesmo quando a palavra amigo está
inserida em uma frase de teor nitidamente negativo, Alaor relativiza essa negatividade – “E eu
pensando que esses dois eram meus amigos... Não é isso, Anísio, Alaor disse.” (AQUINO,
2002, p. 75) Todas essas palavras podem ser agrupadas em um espaço semântico que remete a
uma relação, conforme pode ser confirmado no dicionário Aurélio (1999), de estima, simpatia
ou camaradagem. Sendo assim, aquilo que era completamente hostil na relação do Cobrador
com suas vítimas passa a se tornar uma relação pautada no interesse individual. Trata-se,
obviamente, de um companheirismo sustentado pela falsidade, o que rege as relações entre
esses “parceiros”. Pode não ser uma relação efetivamente de amizade, mas tais palavras,
32
utilizadas com tanta freqüência nos diálogos entre esses personagens, simbolizam essa
ampliação da rede de violência urbana representada no texto O invasor.
A violência, portanto, ocupa um espaço no qual os interesses individuais, a ganância e
a corrupção são exacerbados. Vale tudo para se conseguir o que se deseja. O texto de Marçal
Aquino, utilizando-se de índices sutis ao longo do desenvolvimento da trama, vai mostrando
essa crescente e cada vez mais intensa violência. Por exemplo, Ivan, no decorrer da narrativa,
vai ficando cada vez mais atordoado e louco com toda a situação pela qual está passando e
bem no início de seu estado de loucura, no capítulo sete, quando está se embriagando em um
bar de São Paulo com o intuito de esquecer toda a estória sórdida “[...] eu estava bebendo
rápido demais. Queria ficar bêbado, esquecer. Não queria pensar.” (AQUINO, 2002, p. 65) –,
encontra Paula, uma bela jovem por quem se sente atraído e com quem passa a ter um
relacionamento afetivo. O que salta aos olhos no texto literário no que se refere à Paula é a
forma como ela é descrita. A minuciosa escolha das cores com as quais o texto literário a
“pinta” pode ser lida como um prenúncio de que algo terrível está para acontecer com o
narrador. Vejamos:
Era jovem ainda, alta, ruiva [...] (AQUINO, 2002, p. 66)
Paula dormia numa rede na área de entrada do chalé. Usava um biquíni vermelho
[...] O bico de seus seios aparecia em relevo no tecido vermelho. (AQUINO, 2002,
p. 73)
Os pêlos de seu púbis tinham o mesmo tom avermelhado de seus cabelos; os bicos
dos seios eram pequenos, rosados. (AQUINO, 2002, p. 105)
O rosto de Paula tornou-se afogueado. (AQUINO, 2002, p. 106)
A frase que Anísio pronunciou quando se levantou teve o impacto de um soco no
meu estômago:
Leva a ruivinha com você. (AQUINO, 2002, p. 112) (grifos nossos)
A personagem Paula é apresentada ao leitor como apenas uma amante de Ivan, porém,
no final da trama, ela se revelará uma prostituta que trabalhava em um prostíbulo cujos
proprietários são Alaor e o delegado Norberto, este um personagem que será revelado no final
da história como o delegado corrupto que indicou Anísio para os sócios. Pois bem, um
rastro de sangue simbolizado pela cor vermelha que quase sempre acompanha a representação
literária dessa personagem. A cor vermelha com a qual Paula é “pintada” durante toda a
narrativa pode ser lida simbolicamente como uma “pista” dada pelo texto de que ela também
ocupa um espaço da prática da violência. Vermelho está sempre relacionado ao sangue e,
33
conseqüentemente, ao ato violento. Ela também pertence ao espaço preenchido pela rede de
violência em expansão, tanto no texto literário quanto na sociedade que este representa.
Essa estrutura de prenúncio utilizada pelo autor, indicando que se trata de uma história
que não terá um final redentor para o narrador, pode ser percebida em várias partes da novela.
Outros indícios estariam presentes no capítulo dez, quando Ivan faz uma visita a sua mãe e
assim fica-se sabendo que seu pai havia se suicidado.
Quando achei que ela ia recolher-se outra vez ao mutismo, ela falou.
Você é igual ao seu pai.
Meu pai. Eu nunca descobrira o que o empurrou para o suicídio. [...]
No carro, depois, pensei muito na frase que minha mãe pronunciou quando me
despedi, beijando-a no rosto.
Seu pai era um homem fraco Ivan.
Ela não disse mais nada, e eu sabia que não adiantaria insistir. Eu era igualzinho a
meu pai. Um fraco. E estava apavorado. (AQUINO, 2002, p. 90, 91)
Ivan, já bastante atordoado, acaba por confirmar que ele realmente pertence a esse
espaço, o dos fracos. Mais uma vez é a estrutura de prenúncio que vai apontando para um
desfecho da história nada redentor.
É dessa maneira, portanto, que se percebem as relações entre os personagens na
história desenvolvida no livro de Aquino. Uma invasão que não acontece em apenas um
sentido, mas por uma via de duplo sentido, na qual a violência transita quase livremente. Uma
estrada que, independentemente do sentido que nela seja percorrido, o que se tem como ponto
de chegada é o abismo das mazelas sociais contemporâneas, não mais circunscritas ao espaço
do pobre, do excluído.
2.2 O invasor – Texto fílmico
2.2.1 Múltiplas invasões
Antes de iniciar a análise do texto fílmico, fazem-se necessários alguns
esclarecimentos importantes em relação à gênese dos textos e ao real objetivo no que diz
respeito ao interesse neste trabalho.
34
É bastante idiossincrático o processo de gênese do filme (e também do livro) O
invasor. Por se tratar de uma produção híbrida texto que começa a ser escrito para se tornar
livro, passa a ser roteirizado para se tornar filme e finalmente é retomada a escrita com o
objetivo final de se produzir um texto literário –, acredita-se que as ferramentas teóricas que
geralmente são utilizadas para se falar a respeito das adaptações literárias para o cinema
seriam um tanto quanto problemáticas.
O caminho geralmente percorrido, no que diz respeito à produção de muitos filmes, é
o da literatura para o cinema. Contudo, o caso da produção cinematográfica que envolve O
invasor afastou-se desse “modo de produção”, tendo em vista que não seguiu o caminho
“natural” literatura-filme, conforme conta Aquino, autor do livro e do roteiro cinematográfico,
em entrevista concedida ao site www.weblivros.com.br:
"O Invasor" tem uma história cheia de incidentes. Comecei a escrever essa novela
no final de 97 e, no ano seguinte, tinha um terço do texto. Foi quando o Beto leu e
quis fazer um roteiro. Interrompi o livro e trabalhamos nisso nos dois anos
seguintes. Quando o roteiro ficou pronto, eu desisti do livro tinha resolvido todas
as pendências de trama no roteiro e não via graça em reproduzi-las em literatura. Me
desliguei emocionalmente do livro. Tanto que escrevi três outros livros nesse
intervalo. retomei a novela em 2001 e me deu um trabalho danado concluí-la. Fiz
isso graças aos estímulos do Beto para lançarmos um livro vinculado ao filme. "O
Invasor", que sai neste mês de abril pela Geração Editorial, é um livro híbrido: tem a
novela, o roteiro e um caderno de fotos (stills) do filme. Por sinal, mantive o roteiro
tal qual ele foi feito - não introduzi nenhuma das modificações que aconteceram no
momento da filmagem. Assim, o leitor terá condições de acompanhar com precisão
de detalhes o que acontece no processo de transposição de um livro para um roteiro
e do roteiro para um filme. (http://www.weblivros.com.br/entrevista/mar-al-aquino-
8.html – Acesso em: 31/10/2007)
Sendo assim, as ferramentas teóricas da tradução, que geralmente fundamentam os
textos sobre adaptação fílmica, não são suficientes para se trabalhar a questão da relação entre
as duas mídias e o processo de adaptação.
Além disso, vale reafirmar que a preocupação neste trabalho é menos tratar dos
processos de adaptação se é que assim podem ser conceituados das obras, que o de
investigar as relações, os espaços e as configurações da violência nas representações
ficcionais contemporâneas. Entretanto, apesar de este capítulo ter seu foco principal no texto
fílmico, em alguns momentos, análises e comparações com o texto literário serão efetuadas,
objetivando maior esclarecimento dos objetivos que se intenciona alcançar.
Na análise do texto fílmico, será priorizado aquilo que, de acordo com Stam (2000)
em seu texto sobre adaptação fílmica de obras literárias, Beyond fidelity: the dialogics of
35
adaptation –, é base desse tipo de narrativa. Ele diferencia as duas linguagens (literária e
fílmica), quando reflete sobre a adaptação, da seguinte maneira:
The shift from a single-track, uniquely verbal medium such as the novel, witch “has
only words to play with”, to a multitrack medium such as film, witch can play not
only with words (written and spoken), but also with theatrical performance, music,
sound effects, and moving photographic images […]
5
(STAM, 2000, p. 56)
Dessa maneira, a preocupação no que diz respeito à análise do filme O invasor é com
o aparato audiovisual desse texto. Ou seja, as análises serão baseadas não apenas nas palavras
utilizadas na tessitura do filme, sejam elas as utilizadas pelos personagens em forma de
diálogo, as que compõem as imagens como letreiros, placas, pichações... –, as letras das
músicas que compõem a trilha sonora etc. Além das palavras, a fotografia, a montagem, as
interpretações, efeitos sonoros etc. serão também foco de análise, sempre na busca pelas
realidades relacionais do espaço e as configurações da violência.
A primeira cena do filme mostra Ivan e Giba “invadindo” o espaço de Anísio. A cena
se passa em um botequim de subúrbio e o olhar de Anísio, que observa a chegada de seus
“clientes”, é representado por uma câmera subjetiva. A câmera subjetiva simula o olhar de
Anísio, personagem que está representado ali por sua fala e por essa simulação de seu olhar.
A impressão/efeito que se apresenta é justamente a de que os dois sócios invadem o espaço do
matador. Os bem-sucedidos financeiramente se juntam ao criminoso da periferia para
fazerem, juntos, jorrar o pus virulento da rede de violência. Além de sugerir a invasão, pelos
sócios, do espaço de Anísio, tal cena também inclui, de forma bastante criativa, porém
intensamente incômoda, o espectador nessa teia de maldade. Nagib (2002), numa brilhante
interpretação desse momento do filme, mostra que a rede de violência urbana atual
compreende todos, inclusive o espectador, que o fato de a cena ser filmada com câmera
subjetiva obriga Ivan e Giba a falarem com o olhar voltado para ela, criando, assim, um jogo
incômodo de troca de espaços, pois é como se o espectador fosse o assassino. Diz ela:
Para tornar verossímil essa trajetória inusitada, optou-se por um método “invasivo”
de fotografia e montagem. No primeiro plano-seqüência com câmera na mão e
rápidos movimentos de zoom os dois sócios que contratam o matador avançam para
a mera, encarando de frente o espectador, aqui, colocado no lugar do criminoso
(do qual não se tem contracampo), e combinam nervosos a execução do crime. O
espectador se torna, assim, um intruso junto com a mera, ela mesma um
5
A alteração de um track individual, uma mídia unicamente verbal como o romance, “que pode ser composto
apenas por palavras”, para uma mídia de track múltiplo como o filme, que pode ser composto não apenas por
palavras (escritas ou faladas), mas também por performance teatral, música, efeitos sonoros e imagens
fotográficas em movimento [...]
36
personagem que dialoga com os demais na altura dos olhos deles, virando-se e
balançando como um corpo vivo. (NAGIB, 2002, p. 4)
Cenas da contratação do “serviço”
se sabe como é, fisicamente, Anísio, quando, após o “serviço” feito, ou seja, após a
execução de Estevão ter sido consumada, ele vai até a construtora, o que representa
novamente uma invasão, porém em sentido contrário. O início da cena que mostra Anísio
“invadindo” a construtora também é toda executada com uma câmera subjetiva que exibe o
espanto de vários funcionários da empresa ao verem tal figura adentrando um ambiente que
não era freqüentado por um tipo de pessoa com gestos e trajes de alguém tido, através do
olhar estereotipado das pessoas, como um ser pertencente a outro universo que não aquele. Da
mesma maneira que os fregueses do bar da periferia percebiam que os dois sócios não
pertenciam àquele espaço conforme o capítulo no qual se analisou o texto literário –, os
funcionários da empresa de engenharia não reconhecem Anísio como sendo alguém
pertencente àquele lugar. Ele não pede permissão a ninguém, não fala com aqueles que o
encaram e nem com a secretária de Ivan que tenta se comunicar com ele.
Cenas da invasão de Anísio na empresa e a reação dos que lá se encontram
37
Dessa maneira, ele chega até o escritório de Ivan, e é permitido visualizar, em
frente à câmera, quem é Anísio.
Primeira aparição de Anísio no filme
Outra importante leitura que pode ser feita com relação à questão dessa invasão em
sentido duplo e contrário refere-se não propriamente à leitura das narrativas fílmica e/ou
literária em si, mas de algo que é geralmente percebido antes mesmo que o espectador ou o
leitor tenham contato com a história a ser contada, seja ela contada através de recursos
narrativos próprios da linguagem audiovisual, seja através de palavras. Um filme comercial
comercial no sentido de filme produzido com o intuito de ser exibido também no circuito
comercial das salas de cinema tanto do Brasil quanto de outros países, e não no sentido
pejorativo que o termo possa suscitar vem sempre “embalado” por um material de
divulgação, incluindo-se, aí, um cartaz, bem como todo livro publicado vem embalado por
uma capa, geralmente, na contemporaneidade, ilustrada de alguma maneira, seja um desenho,
uma fotografia etc. Pois bem, o caso do filme e do livro em questão não fugiu a essa regra e,
através de uma observação atenta dos dois materiais de divulgação (a capa de um livro é,
também, um artifício de publicidade), pode-se chegar a interessantes conclusões.
Cartaz do filme Capa do livro
38
Pode-se notar em cada uma das fotografias que compõem o material publicitário dos
dois produtos um personagem diferente sob o título O invasor. No material de divulgação do
cinema, tem-se a fotografia de Paulo Miklos, aquele que representa o papel de Anísio no
filme; na capa do livro, a situação se inverte, e a fotografia é do ator Marcos Ricca, que
interpreta o personagem Ivan no filme, insinuando que é ele o invasor. A posição do título
impresso sobre personagens diferentes, pertencentes a classes sociais diferentes, ambos
“atores” da violência, sugere e permite a afirmação dessa idéia de invasão que ocorre em via
de mão dupla. Mesmo antes de assistir ao filme ou ler o livro, o espectador/leitor, devido ao
contato com cada um dos materiais publicitários, pode começar a tirar suas conclusões
acerca de quem seria realmente o invasor nessa história sórdida de corrupção e violência.
Antes de continuar explorando os aspectos espaciais da obra fílmica, faz-se necessário
apontar mais um diferencial entre o ponto de vista desta em relação à literária. Optou-se por
fazer essa distinção dentro do espaço dedicado à análise do texto fílmico, pois se acredita que
a contraposição das alternativas narrativas escolhidas para contar a história em cada um dos
textos seria mais proveitosa e esclarecedora.
A história, no texto literário, é toda narrada do ponto de vista de Ivan. O livro é
narrado por ele em primeira pessoa e é através de suas impressões (ou até mesmo
“desimpressões”, pois se trata de um personagem que vai enlouquecendo aos poucos durante
a narrativa, tendo em vista o medo que passa a sentir e o descortinar da total “podridão” de
todos os espaços pelos quais transita e de todas as pessoas com as quais se relaciona), que se
acompanha o desenrolar da história. No filme, porém, a narração ocorre de maneira diferente
e tem-se acesso a outras cenas que não estão vinculadas à presença ou ao olhar de Ivan,
conforme apontado por Avellar (2007, p. 329)
[...] Marçal dedicou um pouco mais de atenção à Marina (ainda que ela pouco
apareça em destaque na imagem) além de criar um outro narrador. O filme não é
contado por Ivan ou por alguém que pensa e as coisas como ele. Temos um
narrador meio fora da história (ele também um invasor) que, com um misto de
sofrimento e ironia, acompanha Ivan, Gilberto e Anísio sem perder de vista a
brutalidade do meio em que vivem.
Essa diferença de pontos de vista narrativos permite que, acompanhando a história
contada através do viés cinematográfico, vislumbrem-se cenas que não estão “disponíveis” na
narrativa literária em virtude de se ter acesso à ação através das andanças e do olhar do
personagem Ivan. A estrutura narrativa do filme mostra outros espaços na medida em que
permite que se assista a cenas que não precisam estar obrigatoriamente vinculadas ao olhar do
39
narrador em primeira pessoa, como acontece no texto literário. Tem-se acesso, por exemplo, à
relação entre Anísio e Marina. A partir desse acesso mais amplo do espectador em relação ao
leitor, a possibilidade de se perceber outra invasão, talvez não uma invasão propriamente
dita, pois acontece de forma menos violenta, ou melhor, de forma consentida. Trata-se da
entrada de Marina no espaço de Anísio e a entrada de Anísio no espaço de Marina. O narrador
cinematográfico, meio “fora da história”, conforme sugere a leitura de Avellar (2007), além
de acompanhar Ivan, Gilberto e Anísio, também foca Marina e sua relação com o assassino,
pois narra
[...] sem tirar os olhos desta personagem escondida num canto da cena, à margem,
porque é assim mesmo que ela se quer, fora do centro: Marina filha de Estevão,
indiferente à morte dos pais, sem interesse na empresa que herdou, conformista,
desinteressada. (AVELLAR, 2007, p. 329)
Após executar o “serviço”, Anísio passa a freqüentar a empresa dos sócios e acaba
conhecendo Marina, filha de Estevão e Silvana, o casal por ele assassinado, e passam a ter um
relacionamento “afetivo”. No livro, o leitor tem acesso à relação dos dois através das
suspeitas de Ivan e de algumas pistas dadas por ele, como nos trechos a seguir:
Ambos fumavam. Marina ria de alguma coisa que ele contava. Anísio pegava com
intimidade no braço dela enquanto falavam. (AQUINO, 2002, p. 85)
Os cabelos dele e da garota que dirigia o carro estavam molhados. Como se os dois
também tivessem acabado de sair de um motel. Ele entrou na construtora sem me
ver. Ela arrancou o carro. Anísio e Marina. (AQUINO, 2002, p. 87)
Anísio está comendo a Marina, eu disse, sereno. (AQUINO, 2002, p. 93)
No texto literário, devido ao fato de a história ser contada por esse narrador em
primeira pessoa, o leitor é obrigado a se contentar com as especulações de uma mente, que se
encontra em processo de deterioração/enlouquecimento, a de Ivan. Não nenhum acesso ao
que Anísio e Marina fazem quando estão juntos, aonde vão ou se realmente vão a algum
lugar, se se drogam, se fazem sexo etc. Nada se sabe, pois, a respeito da relação entre esses
dois personagens, a não ser através daquilo que Ivan imagina que esteja acontecendo. Já no
filme, como o ponto de vista do narrador se altera, passa-se a ter acesso à relação dos dois
sem necessariamente se utilizar o “filtro” do olhar do narrador.
Essa mudança de foco narrativo permite analisar outros espaços pelos quais transitam
os personagens, como a cena em que Marina convida Anísio para darem uma volta e ele a
leva para “conhecer” a periferia. O ambiente calmo, limpo e silencioso da mansão alva de
40
Marina contrasta com a decadência do meio urbano onde vive Anísio. O contraste, no entanto,
é redimensionado para uma relação de continuidade entre a parte pobre e a abastada da cidade
a partir de algumas particularidades da cena. Da janela de uma pick-up luxuosa, dois seres
pertencentes a classes sociais distintas esboçam o início do que posteriormente se tornará um
relacionamento “afetivo”. O que se ouve na cena, a trilha sonora que a ambienta, é um rap
cantado pelo rapper Sabotage. No início da seqüência, o que se vê pela janela do carro é a
São Paulo rica, urbanizada, de altos e luxuosos prédios. Porém rapidamente essa paisagem se
modifica e o que passa a ser visto é a parte deteriorada da cidade casas com tijolos à vista,
lixo espalhado pelos cantos, uma senhora desdentada “chapada/colada” ao espaço no qual está
inserida e tão deteriorada quanto ele, ruas sem pavimentação, esgoto a céu aberto, ruas que
mais parecem becos etc.
A mansão de Marina
O casal de seres pertencentes a classes sociais distintas passeia pela cidade numa luxuosa pick-up
41
Da janela do carro, avista-se a São Paulo rica
Da janela do carro, avista-se a São Paulo pobre e a deterioração do espaço urbano
A montagem, conforme mostra Nagib (2006), contribui para que seja criada uma
espécie de atmosfera que dá impressão de interação entre os espaços da pobreza e da riqueza.
Nesse momento, graças aos saltos da montagem a favela parece uma continuação
natural do centro rico. A quebra da fronteira geográfica pelo corte brusco revela,
assim, a situação de comunhão estética em que se encontram as classes sociais do
Brasil, embora permaneçam economicamente apartadas. (NAGIB, 2006, p. 173)
O contraste entre o espaço cotidiano de Marina e o de Ivan nos relembra que a cidade
continua cindida, conforme apontado por Ventura (1994), porém em seus espaços
geográficos, não mais nos espaços de relações, como no caso desta análise, que mostra que as
relações de violência em rede passam a se organizar de forma diferente daquela como era
representada em O Cobrador. O passeio pela favela termina com a cena em que, após usarem
cocaína, Anísio e Marina fazem sexo no “paraíso do morro”, conforme dito por Anísio. Eles
estão no alto da favela e de cima contemplam a cidade, representada pelos vários pontos de
luz que são refletidos no horizonte.
42
A cidade vista do “Paraíso do Morro
Anísio e Marina compartilham o mesmo pó
Anísio e Marina passam a se relacionar sexualmente
Anísio está conseguindo ascensão. No alto ele já vivia, no alto do morro, mas agora é
chegada a hora de ascender financeiramente graças a sua relação com os bacanas Marina
(“afetivamente”) e Ivan e Giba, através da rede de violência urbana que compartilham.
A cena anterior ao início do passeio de Anísio e Marina mostra Giba e Ivan
conversando no alto de um prédio que está sendo construído pela empresa deles. A cena
termina com Ivan contemplando do alto a cidade lá embaixo.
A conversa entre Ivan e Giba Ivan contempla a cidade
43
Vale ressaltar que Giba e Anísio estão praticamente sozinhos no alto desse prédio e
que tal cena pode simbolizar que apenas os bem-sucedidos financeiramente ocupam os
espaços privilegiados da sociedade. No entanto, como visto no parágrafo anterior, Anísio e
Marina estão juntos no alto do morro, favela e “asfalto” juntos. Se antes Giba e Ivan eram os
únicos a estarem no topo, Anísio, relacionando-se com Marina através de sexo e drogas, e
com os sócios através da relação de cumplicidade, no que diz respeito ao crime cometido,
também está. A rede de violência e interesse que começou a ser formada com a contratação de
Anísio firma-se através da relação dele com Marina.
Anísio invade o espaço urbano de Marina e esta invade, mesmo que de forma
consentida, o espaço urbano de Anísio, o espaço do excluído. O trânsito das classes sociais
metaforiza, através da relação entre esses personagens bem como da relação deles com as
drogas, a cidade que, se ainda é cindida no espaço urbano, não é mais nas redes de interesse
que são formadas. Essa reflexão se tornará mais nítida a partir do próximo parágrafo, quando
serão analisadas as relações entre Anísio e os sócios da construtora.
Aquela enigmática e, ao mesmo tempo, esclarecedora pergunta do início do livro
Quem é quem? também mostra o caminho para o qual a sociedade brasileira caminhou no
que diz respeito à violência urbana. Os sócios de uma bem-sucedida empresa se fundem a um
matador profissional, à polícia corrupta e à rede de prostituição (Giba/Alaor e o delegado
Norberto são donos de um prostíbulo) para formarem essa rede de violência urbana
contemporânea.
Tanto a classe social a qual pertencem Ivan e Giba/Alaor quanto o sujeito pertencente
ao universo da periferia, Anísio, passam a ter acesso aos mesmos espaços. A violência em
rede passa a ser uma realidade e não é mais somente a questão da diferença social que faz
com que a violência penetre por várias frestas e se espalhe por cômodos, sejam eles apertados
e escuros de casas simples de periferia, seja de escritórios luxuosos ou apartamentos de classe
alta. Santos (1997), conforme visto anteriormente, diz da realidade relacional do espaço, do
espaço representado pela sociedade em movimento. O caráter relacional dentro do texto O
invasor é bastante significativo, que a violência parte, praticamente, de uma ação conjunta
entre cidadãos pertencentes a classes sociais distintas.
Uma outra cena que demonstra essa interação entre a favela e a classe alta é a cena em
que Ivan, completamente transtornado, bate seu carro e tem de andar por uma avenida cercada
por “barracos que escorrem no asfalto”. Além dessa invasão de espaços de duplo sentido, da
proximidade entre a favela e o “asfalto”, demonstrada na cena, na medida em que Ivan
44
caminha, a câmera, fazendo um jogo de aproximação e afastamento do personagem, ora
coloca-o em primeiríssimo plano, ora em plano americano, ora também em plano médio.
Primeiríssimo Plano
Plano Americano
Plano Médio
Em determinados momentos, é utilizado um recurso de focar/desfocar a cena: às vezes
o personagem, no primeiro plano, está bem focado, bem como a favela que está no segundo
plano. Quando a cena desfoca o rosto de Ivan, também é desfocada a imagem da favela, ou
seja, um está colado” no outro, a interação entre as classes está metaforazida nesse jogo de
focar e desfocar as imagens.
45
Desfocados – “Simbiose” entre a favela e o personagem
Focados – “Simbiose” entre a favela e o personagem
Como procurou-se mostrar neste capítulo, o filme se utiliza de diversos recursos para,
metaforicamente (e algumas vezes não metaforicamente também), sugerir que a violência na
46
sociedade brasileira contemporânea não é fruto de um agente que pertence a uma ou outra
classe social, ela está imbricada em todas as esferas. Além de praticamente tudo no filme
sugerir a invasão de mão dupla tão mencionada neste trabalho, a última cena analisada
demonstra uma “simbiose” entre as classes sociais que torna a violência um emaranhado de
extrema complexidade.
2.3 Música intrusa – A invasão do espaço narrativo
Não se pode analisar O invasor sem que se leve em consideração sua trilha sonora.
Esse aspecto do filme é bastante importante, pois é como se a trilha sonora funcionasse como
um “suporte” ao quesito imagético da narrativa. Nesse sentido, vale lembrar Stam (2000, p.
59), quando diferencia o texto literário do texto fílmico:
Each medium has its own specificity deriving from its respective materials of
expression. The novel has a single material of expression, the written word, whereas
the film has at least five tracks: moving photographic image, phonetic sound, music,
noises, and written materials.
6
Diferentemente do texto literário, que tem, conforme disse o autor, como único
recurso para se expressar a palavra escrita, o cinema possui algo que será chamado aqui de
aparato audiovisual, que são esses pelo menos cinco tracks dos quais ele fala. Um desses
cinco tracks será focalizado nesse item de análise, a música.
Ciasca (apud BRUM, 2003, p.169), parceiro de longa data de Beto Brant e produtor do
filme, diz: “Desde o começo a gente não queria um regente, amarrando todo o filme, a gente
queria que fosse quebrado, como é a cidade, como é o barulho, como é tudo.”
Essa característica de não optarem pela utilização de uma trilha sonora amarrando o
filme possibilitou que ele fosse “sonorizado” por músicas/canções de bandas de estilos e
gêneros bastante diversificados e com letras que participam não só da composição estrutural
da cena, como também narram algo que pode ser lido como uma extensão narrativa da própria
imagem, pois, além de darem o tom das cenas, narram como se fossem uma espécie de
narrador em off.
6
Cada mídia tem sua própria especificidade que é derivada de sua matéria de expressão. O romance tem uma
única matéria de expressão, a palavra escrita, enquanto o filme tem pelo menos cinco tracks: a imagem
fotográfica em movimento, o som fonético, a música, os ruídos, e o material escrito.
47
Sem adentrar na problemática dos rótulos, pode-se dizer que a trilha sonora do filme é
composta por músicas do gênero heavy metal, rap, rock, instrumental etc. A partir do
momento em que elas se tornaram parte integrante da narrativa fílmica de O invasor, passam
a ter um sentido redimensionado, tendo em vista o diálogo que proporcionam com a história,
não somente por sua composição rítmica, de tons etc. (que não será nosso foco nesse trabalho)
mas também porque se percebe que tais músicas, através de suas letras, invadem o espaço da
trama no filme e atuam também como o que se poderia chamar de “narradores invasores”.
Assim, as letras das músicas que compõem a trilha sonora de O invasor estão em
permanente diálogo com as imagens na tela e com a trama do filme, redimensionando as
potencialidades significativas deste e ocupando um espaço na narrativa de fundamental
importância.
Uma das viradas significativas no filme acontece quando o espectador tem acesso à
cena que mostra o local onde Estevão e Silvana foram assassinados. Além de todo o aparato
audiovisual que narra a cena (como a fotografia, os ruídos, a interpretação dos atores, os
posicionamentos de câmera etc.), um elemento que parece literalmente invadi-la. Trata-se
da música “Ninguém Presta”, da banda paulista Tolerância Zero. Vale ressaltar que Beto
Brant foi o diretor do videoclipe dessa música que, inclusive, está disponível nos extras do
DVD. Em meio a berros e urros desesperados, guitarras distorcidas e ritmo acelerado, é
possível ouvir a ácida letra que compõe tal música, conforme se segue.
Bem-vindo ao Pesadelo da
Realidade
Você não consegue fugir
Da estupidez algo grita em sua
Mente
Falando daquela puta
Vadia, grampeada por todos
É como um prego em seu olho
Não tente se esconder do medíocre
Que é
É tudo insano todos são doentes
Eu você a vadia todos doentes
Ninguém Presta
Bem-vindo ao Pesadelo da
Realidade
Eu Você a Vadia Ninguém Presta
(http://www.toleranciazero.com/ - Acesso em: 15/01/2008)
A cena mostra Ivan e Giba chegando ao local do crime, um terreno baldio escuro. Os
sócios se abraçam simulando desespero. Giba, num ato de extremo cinismo, chora, abraça o
48
pai de Estevão, mostra-se surpreso com a situação. Ivan, apesar de não “encenar” tanto quanto
Giba, ainda assim, abraça o sócio e o pai de Estevão, num gesto também insolente.
Cenas do cinismo dos sócios perante a descoberta dos corpos de Estevão e de Silvânia
Conforme narra a música do grupo Tolerância Zero, ninguém nessa história presta. O
pesadelo da realidade é justamente o fato de “ninguém prestar” na sociedade contemporânea.
Todos são agentes da rede de violência contemporânea – “eu, você a vadia, ninguém presta”–,
seja o assassino da periferia, seja o ganancioso empresário que quer enriquecer a qualquer
custo, seja o funcionário corrupto do governo com o qual Ivan e Giba/Alaor queriam fechar o
negócio ilícito, seja o delegado dono de prostíbulo etc. Tais personagens o, pois , metáforas
que representariam a participação de agentes de todas as classes sociais na rede de violência
urbana que atravessa a sociedade brasileira contemporânea.
Trata-se de uma violência sem rosto, conforme aponta uma outra música, de autoria do
próprio Paulo Miklos, que é quem interpreta Anísio no filme. Quando Ivan se encontra
bastante amedrontado e abalado psicologicamente, resolve comprar uma arma. Para adquirir a
arma, ele recorre a alguém que parece ser não mais que um conhecido seu. Ivan vai até um
local, presumivelmente uma boate ou um bar/café, conforme pode ser percebido pelas
palavras escritas na frente do local: “Na mata café”.
49
Local onde Ivan encontra com aquele que mediará a compra da arma
Um dos manobristas do local, sujeito “bem aparentado”, aproxima-se do carro e,
abrindo a porta, convida Ivan para entrar. Este agradece e diz que, na verdade, está precisando
é de um favor e pede ajuda ao manobrista. A cena seguinte apresenta Ivan e o manobrista
entrando em um bar e, no desfecho de tal cena, descobre-se que o manobrista foi quem
mediou a comercialização ilegal do revólver para o empresário. Tal cena apresenta uma
interessante possibilidade de leitura no que diz respeito à interação entre música e trama. Mais
uma vez, percebe-se a música e, mais incisivamente, a sua letra, como um “narrador invasor”.
A imagem apresenta Ivan, em companhia do manobrista, estacionando o carro em frente ao
bar onde a compra da arma será efetivada. A cena é filmada em um longo plano-seqüência,
que vai apresentando ao espectador o bar e seus freqüentadores. A câmera acompanha Ivan,
que aos poucos parece ficar perturbado com a música, que vai aumentando de volume na
medida em ele se aproxima do palco, onde um personagem de traços faciais orientais canta
uma música em português.
Cena do personagem que canta a música “Orgia”
Enquanto Ivan se aproxima do palco, a câmera passa a enquadrar os clientes desse bar
que aparenta ser uma casa de caraoquê. Apesar de a grande maioria dos clientes, assim como
o cantor, terem traços orientais, percebem-se outros com traços nada orientais, como é caso de
50
uma garota de cabelos pretos e blusa azul, acomodada logo na primeira mesa filmada, e do
casal formado por um senhor de terno e uma garota loura.
Cena que mostra a diversidade dos vários rostos que compõem a clientela do bar.
São vários rostos os que compõem a clientela do bar. As imagens dessa cena são
acompanhadas pela música “Orgia”, de autoria de Paulo Miklos. A letra diz o seguinte:
Não tenho nome
Eu tenho sede
Alimenta a tua fantasia
Eu tenho fome
Eu tenho em mente
Uma grande orgia
Tudo o que eu mais quero
Você não tem
O que você tem
É só do que eu preciso
Tudo o que você sempre quis
Eu não sou
Do que você precisa
É só o que eu sou
51
Não tenho rosto
Nada do que você possa
Se lembrar depois
Só o gosto
destas cenas
que fazem você vibrar
(http://letras.terra.com.br/paulo-miklos/237232/
Acesso em: 15/01/2008)
Mais uma vez, esse “narrador sonoro” invade a cena e alerta o espectador sobre o
caráter de rede que constitui a violência urbana nas grandes cidades brasileiras. A letra da
música, principalmente seu refrão e a imagem mostrada na tela, fundem-se em ampliação de
significados. Antes, viu-se que a música do grupo Tolerância Zero afirmou, (re)narrou aquilo
que a imagem e as ações dos personagens indicavam, que ninguém presta nessa história de
personagens amorais. Agora, todos os vários rostos dos clientes do bar, de fisionomias
diferentes, demoradamente enquadrados pela câmera, representam metaforicamente o rosto da
violência. Ou seja, se todos os rostos, tanto os rostos de diferentes fisionomias dos vários
clientes do bar, quanto os rostos dos diversos personagens que compõem a trama do filme são
os rostos da violência, nenhum o é. O refrão da música composta por Paulo Miklos mostra
exatamente essa faceta da violência, sem fisionomia definida e sem nome, como é dito no seu
primeiro verso. Ela não tem rosto, não tem nome, é inominável, indetectável no que diz
respeito à busca por caracteres físicos que determinem o agente da violência e o espaço que
esse ocupa na sociedade contemporânea. Esse agente tanto pode ser um matador de aluguel,
um político corrupto, como um bem-sucedido empresário, ou, o que é mais grave, um
emaranhado formado pela ação conjunta de todos esses agentes. A violência é executada por
todos os rostos, por quaisquer nomes que habitam quaisquer espaços dos centros urbanos
contemporâneos. O sem-rosto apresentado no refrão da música pode ser lido justamente como
o rosto da própria violência. a interação entre as mais diversas camadas sociais, cada um
com seus rostos e nomes distintos, sendo todos agentes da violência, movidos pela busca do
prazer imediato. De acordo com Carvalho (2000, p. 53):
[...] estabiliza-se um padrão de interação entre pessoas honestas e infratores que
facilita a propagação social do desregramento, as infrações de oportunidade, e um
trânsito, enfim, barato e generalizado entre o mundo legal e o mundo do crime.
Não se pode afirmar, contudo, que Giba e Ivan são personagens que representam
pessoas honestas, afinal são eles que, primeiramente, invadem o espaço do matador para
contratarem seus serviços. Mas eles são personagens que até o momento da “infração”
52
pertenciam a uma classe que se julga honesta. Porém, ao se juntarem a Anísio, simbolizaram
essa generalização do trânsito entre os espaços do mundo legal e do mundo do crime,
desfigurando, assim, o rosto, a fisionomia da violência, conforme apontado pela letra da
música de Paulo Miklos, transformando em uma grande orgia a violência presente na urbe
moderna.
Há, ainda, um trecho do filme no qual Ivan, arrependido do trato que tinham feito com
Anísio, procura o sócio com o intuito de convencê-lo a desistir do plano. Ao contrário, Giba,
com sua retórica inflamada, acaba por convencê-lo a desistir de cancelar o acerto feito com o
assassino. Eis o discurso de Giba:
Giba: Ivan, põe uma coisa na cabeça. O Estevão não é santo. Se a gente bobear ele
põe no nosso rabo, porra! Vem cá, uma olhada no Cícero. [Cícero é um
empregado deles que se encontra no lado contrário da rua onde estão conversando
os sócios] Parece um sujeito inofensivo, né? Mas você acha que ele está contente em
ser o que é? Ele é o encarregado da obra, manda na peãozada, tem poder. Mas é
claro que ele não está contente com isso. Ele quer mais, como todo mundo, e se tiver
uma oportunidade, ele vai aproveitar. Você tem alguma vida? O mundo é assim,
meu velho. O Cícero pode ter até aquela cara de sonso, mas se precisar ele vira
bicho. Ele te respeita porque sabe que você tem mais poder do que ele. Mas é
bom não facilitar com essa gente. No fundo, esse povo quer o seu carro, querem o
seu cargo, o seu dinheiro, as suas roupas, querem comer a sua mulher, Ivan! É ter
uma chance. É isso que a gente vai fazer com o Estevão, vamos aproveitar a nossa
oportunidade antes que ele faça isso primeiro.
Esse discurso proferido por Giba pode ser considerado como uma “infração de
oportunidade” da maneira como aponta Carvalho (2000) no trecho citado. Segundo o
personagem, todas as pessoas, eles, os empregados peões da obra, geralmente gente pobre e
humilde assassinos etc. agirão da mesma maneira, utilizarão a violência quando
vislumbrarem uma possibilidade de melhora. A melhora sobre a qual fala Giba não menciona,
em nenhum momento, uma melhora coletiva, uma busca por igualdade, mas uma melhora
meramente financeira, que possibilitará ao indivíduo consumir mais e mais. Se, no passado,
agia-se violentamente em busca de um mundo melhor para todos, em busca de uma igualdade,
se havia uma “idealização romântica e simplista dos anos 60, quando era comum atribuir ao
criminoso funções políticas nobres” (SOARES, 2000, p. 23), se era comum a “idéia do bom
bandido, herói de seu povo, vingador de sua classe, que enfrentava as forças do capitalismo e
da propriedade privada nos mais diversos fronts(SOARES, 2000, p. 24), mesmo que se
possa relativizar tal percepção do ato violento e/ou criminoso, não se pode negar o caráter
individualista e competitivo que marca as relações nos textos como O invasor, quando se age
com o pensamento na melhoria e no beneficiamento pessoal e não coletivo, mesmo que,
53
paradoxalmente, em rede. Por isso mesmo, importa realçar ainda, de acordo com o
pensamento de Carvalho (2000), que as novas abordagens que estudam a questão da violência
atual consideram
[...] as redes estabelecidas pelo crime e analisam a violência urbana como uma
relação social que tem demonstrado capacidade de organizar e articular esferas cada
vez mais amplas da sociedade [...] Enfim, pode-se dizer que a discussão sobre a
violência urbana no Brasil tem abandonado a preocupação estrita com os nexos
entre a pobreza e o crime e apontado para questões mais amplas – a delinqüência, o
desregramento e a generalização social de práticas violentas derivadas de causas
igualmente complexas como, por exemplo, [...] a insociabilidade que tem presidido
o processo de individuação nos grandes centros urbanos do país. (CARVALHO,
2000, p. 53, 54)
Ou seja, o crime e, conseqüentemente, a violência são disseminados em forma de rede,
da qual fazem parte membros das mais diversas camadas sociais que têm uma “circulação
entre diferentes ‘mundos’ que ali se interagem.” (CARVALHO, 2000, p. 53)
Existe, ainda, algo que se apresenta como uma terrível contradição afinal, as redes
geralmente se constroem em busca de uma finalidade que seja comum a um determinado
grupo de pessoas. A rede de violência urbana contemporânea, entretanto, é formulada para
que se alimente esse processo de individuação nos grandes centros urbanos do Brasil, no caso
do filme em questão, marcado pela ambição, pela cobiça.
Ainda sobre a interação entre a imagem e a música de Paulo Miklos, é visível o
desconforto de Ivan ao escutá-la. À medida que se aproxima do palco, ele parece tornar-se
“hipnotizado” por ela e é sugerido ao espectador, através da interpretação de Marcos Ricca,
que Ivan se identifica com a música que está sendo cantada, é como se ela fosse cantada para
ele. Tal sugestão torna-se ainda mais nítida quando o cantor com traços orientais, ao vociferar
os versos, aponta diretamente para Ivan.
O cantor aponta para Ivan enquanto canta A reação de Ivan perante a música
54
A fome apresentada na primeira estrofe da música metaforiza a ambição que pode
ser saciada através de uma grande orgia, a qual pode ser lida como uma orgia da violência
urbana, que é fruto de todas as esferas da sociedade, inclusive daquela da qual Ivan é parte
integrante. Tudo o que Ivan e Giba precisavam, um matador de aluguel para solucionar os
problemas com Estevam e fecharem o negócio ilícito com o governo, Anísio tem, porém tudo
o que eles sempre quiseram – alguém que “simplesmente” executasse o “serviço”, recebesse o
pagamento e depois desaparecesse Anísio não era, pois invadiu o espaço da empresa deles e
passou a se relacionar com a filha do casal morto e a extorquir dinheiro deles, como na cena
em que o matador leva um amigo rapper para conseguir um “financiamento” para a gravação
de um cd. Esse é o intrincado jogo de necessidade e desejo, expresso na letra da música que
representa o círculo vicioso de violência do qual Ivan passou a fazer parte assim que
consentiu em entrar no plano de assassinar Estevam, esse jogo para o qual não é mais possível
vislumbrar uma saída e que o atormenta constantemente.
Outro ponto que vale a pena ser realçado no que diz respeito à música dentro do filme
refere-se ao espaço de atuação que a inserção nas mídias de gêneros como o heavy metal e o
rap exercem.
Bentes e Herschmann (2002) discutem sobre como as imagens e a sonoridade de
estilos musicais, antes “criminalizados”, ganham nova força quando adentram outros espaços
midiáticos, mais especificamente, quando adentram o espaço do cinema. Segundo os autores,
houve uma inicial “criminalização” e uma posterior incorporação dessas manifestações
culturais pela mídia. Essa incorporação midiática da
batida e das letras pesadas que falam de tráfico de drogas, de culturas e de
informação, de preconceito racial e social, de pobreza ganham um sentido mais
sociopolítico [...] Oscilando entre a condenação e glamourização no mercado, na
passagem da música às imagens, do baile encravado no morro ou na periferia às
telas da TV e do cinema, temos a emergência de novos sujeitos sociais portadores de
um discurso: “Marginais midiáticos” que vêm se afirmando na cena cultural.
(BENTES; HERSHMANN, 2000)
O filme de Beto Brant, portanto, ao utilizar músicas de autores “marginalizados
midiaticamente”, promove essas expressões culturais e as coloca em diálogo com as imagens
na tela, fazendo justamente com que esses discursos, através da visibilidade adquirida com
essa relação música/filme, invadam o espaço público numa tentativa de promover o diálogo.
Para se usar um termo dos próprios autores do artigo, trata-se de uma espécie de
contradiscurso que vem, de certa maneira, neutralizar (ou ao menos fazer com que sejam
debatidos) o discurso incriminatório dos noticiários. Utilizar o rap como os do Sabotage e do
55
Pavilhão 9 e o heavy metal “marginal e sujo” do Tolerância Zero, na composição sonora de
O invasor, visibilidade a esses estilos musicais e faz com que a música cantada por tais
jovens passe a ser tratada
dentro de um novo contexto, mais amplo, em que as culturas “das favelas” aparecem
não simplesmente como subprodutos da violência social do país [...] O novo
contexto começa a ser configurado com o acirramento do debate nacional sobre a
violência urbana [...] (BENTES; HERSCHMANN, 2000)
Dessa maneira, mais uma rede de “violência” passa a ser configurada, que,
diferentemente da rede de violência urbana mencionada até aqui, é uma rede que prima pela
“violência” do discurso, ou melhor, do contradiscurso, conforme apontado por Bentes e
Herschmann (2000), que quer fazer reaflorar o espaço público por excelência, que é o espaço
para o debate de idéias, geralmente, contrárias. Assim como os personagens invasores da
trama eram pertencentes a classes sociais diferentes e se invadiam mutuamente, neste outro
nível, o da interação entre os diferentes agentes do filme, no que se refere, por exemplo, à
questão da trilha sonora que compõe essa obra cinematográfica, também uma invasão de
classes sociais distintas. Trata-se, porém, de uma invasão com “fins” bem mais benéficos para
a sociedade, pois (re)possibilita o debate no espaço público. Sabe-se que Beto Brant é oriundo
de uma classe que ele mesmo chama de burguesa, como se pode conferir na entrevista por ele
concedida e com as seguintes palavras a finaliza:
É um filme que me perturbou totalmente, porque eu sou igual a todo mundo, eu
também faço parte, sou um burguês de formação, estudei em escola particular,
universidade e tudo mais [...] (BRANT, apud BRUM, 2003, p. 119)
Ele se considera, portanto, alguém pertencente a uma classe social “mais elevada” em
relação, por exemplo, a Sabotage um de seus mais importantes parceiros na reestruturação de
vários diálogos do roteiro e aquele que possui maior quantidade de canções participantes da
trilha sonora do filme. Também através de um trecho de uma entrevista concedida por
Sabotage (apud BRUM, 2003), fica reafirmada a diferença em relação aos espaços ocupados
por ele e Brant dentro dos variados patamares no que diz respeito às classes sociais no Brasil.
Na entrevista, ele diz:
[...] eu vivo numa favela onde você é amigo do soldado do morro, do traficante, do
crente, você é amigo do...você não sabe o potencial daquelas pessoas, porque sem
estudo, baixa renda, sem trabalho, fica, difícil né, e você aprende na dura como
sobreviver. Eu venho daquele mundo, tanto é que hoje tem alguns sobreviventes que
56
estudaram comigo, uns viraram traficantes, outros viraram polícia [...]
(SABOTAGE, apud BRUM, 2003, p. 120)
Ou seja, é na interação entre esses dois mundos, o de Brant e o de Sabotage, na
invasão mútua de duas experiências diferentes, que surgem idéias para melhor ser composto o
filme, desvelando as redes estabelecidas pelo crime e pela violência urbana, que têm
capacidade de organizar esferas mais amplas da sociedade, conforme apontou Carvalho
(2000). Felizmente também articulam indivíduos que, através da arte, se interagem e se
“invadem”, tentando, assim, que o debate volte a ser marca do espaço público. Sabotage
passa, através da inserção de sua música na trilha sonora do filme, e da interação com o
“burguês” Brant, de objeto a sujeito do discurso
7
.
2.4 Outras Invasões – Paulo Miklos e Sabotage
Como o foco deste trabalho é tratar a violência e suas configurações espaciais, nesta
parte do texto, ao invés de optar pelo detalhamento da interpretação dos atores e analisar a
importância desses e de seus personagens, dar-se-á destaque para o que se apresenta como
uma outra invasão operada no campo da realização do filme. Trata-se das participações de
Paulo Miklos e Sabotage.
Uma das mais importantes e talvez a mais perigosa devido ao risco que se corria
das decisões tomadas por Beto Brant na realização de O invasor foi a de se escolher para
contracenar com consagrados atores brasileiros como Marcos Ricca, Alexandre Borges e
Malu Mader – e além de contracenar, protagonizar, juntamente com Marcos Ricca – o
integrante da banda de rock Titãs, Paulo Miklos. Trata-se de uma escolha amplamente
audaciosa, tendo em vista que Miklos não possuía nenhuma formação e nem experiência nas
artes cênicas. Esta foi a primeira vez que trabalhou como ator. Inclusive, Marçal Aquino, em
entrevista, comenta o risco de tal decisão ter sido tomada por Brant.
[...] Beto (Brant) tem um projeto cinematográfico na cabeça, tem um instinto
artístico muito pronunciado... quem é que ia cismar que o Paulo Miklos ia ser ator?
Se me dissessem hoje que alguém ia contratar o Paulo Miklos para fazer um filme
eu ia achar loucura [...]. Não tem escapatória, se ele for mal, o filme vai mal.
(AQUINO, apud BRUM, 2003, p. 192)
7
Assim como nos diz Bentes e Herschmann no já citado O espetáculo do contradiscurso.
57
Entretanto, essa foi a decisão tomada por Brant. E uma escolha muito bem acertada,
graças à qualidade da atuação do músico, avalizada pelos prêmios que ganhou, como o
prêmio especial do júri para ator revelação, no Festival de Brasília, e o prêmio de melhor ator
coadjuvante, no Festival de Cinema Brasileiro de Miami.
Um dos aspectos que parece intrigar em O invasor é o caráter de ousadia, para o qual
a obra se mostrou aberta desde o início. A invasão não ocorre apenas no plano do enunciado –
através da trama que apresenta sujeitos pertencentes a classes sociais distintas que invadem
um o espaço do outro –, mas também no plano de realização da obra, como é o caso da
escolha desse músico como um dos protagonistas do filme, um invasor do espaço que
supostamente deveria “pertencer” a um ator.
Além de Miklos, outra importante invasão no que diz respeito ao processo de
realização do filme foi efetuada pelo rapper Sabotage
8
. Assim como o integrante da banda
Titãs, Sabotage é um músico que também participa do filme. Porém, a participação de
Sabotage acontece de maneira um tanto quanto diferente da de Miklos, principalmente pelo
fato de esse rapper interpretar a si mesmo.
Alguns dias após ser aceito como segurança da empresa pelos sócios Giba e Ivan,
Anísio leva um amigo rapper até a construtora com o intuito de conseguirem dinheiro para
financiarem a gravação de um cd. O rapper amigo de Anísio que aparece na cena é Sabotage.
Para Nagib (2006, p. 174), esta é uma “cena magnífica e a mais documental do filme em que
(Anísio) impõe a Ivan e Gilberto a arte inventiva e engajada de Sabotage.” O tom documental
sugerido pela estudiosa reside no fato de o rapper Sabotage entrar no filme sem representar
papel algum, ou melhor, representando ele mesmo, cantando um rap de sua autoria e que está
gravado em um dos seus discos. Trata-se do “real” invadindo o espaço do ficcional.
O rap que eu canto na cena é do meu outro disco, essa é uma música que eu não
canto, a galera é que canta... Esta música eu mostro a denúncia da favela, o Beto
falou eu queria fazer este clip, é muito incrível o que você fala. (SABOTAGE apud
BRUM, 2003, p. 128)
8
Como este é um trabalho que tem como um de seus focos a violência, achamos conveniente citar que
“Sabotage morreu no dia 24 de janeiro de 2003, assassinado com quatro tiros quando estava a caminho de sua
casa, na zona sul de São Paulo.” (BRUM, 2003, p. 65)
58
Sabotage em cena: o “real” invade o ficcional
Além da participação na cena, Sabotage promoveu outra invasão importantíssima para
dar verossimilhança ao personagem Anísio. Ele reescreveu várias partes do roteiro que
indicavam as falas de Anísio. O rapper da periferia invade o espaço antes ocupado pelo bem-
sucedido escritor Marçal Aquino para assim adequar os diálogos do personagem à linguagem
do universo da periferia que esse personagem representa.
Há, portanto, um diálogo que acontece não apenas depois que o filme é lançado e
discussões a seu respeito começam a acontecer
9
, mas desde sua criação. Assim, a “invasão
violenta” do filme de que metaforicamente se fala é fruto de um diálogo entre pessoas de
classes sociais distintas, que “abrem” seu espaço para que o outro o ocupe, como é o caso de
Beto Brant e Marçal Aquino, em sua relação com Sabotage através da reescrita de diálogos e
da inserção de sua imagem dentro da narrativa fílmica. A interação, a “simbiose” entre favela
e personagem que se mostrou ao se analisar a cena em que Ivan, após bater seu carro, caminha
atordoado por uma avenida cercada pelas casas da periferia, ressurge neste ponto, porém de
maneira diferente. Sabotage conquista seu espaço no filme devido ao seu talento e ao
9
Beto Brant, em entrevista disponível na dissertação de mestrado de Alessandra de Souza Mellet Brum (2003),
diz: “Grandes articulistas dos jornais, colunistas falaram muito... O Jabor, Walter Salles, Marcelo Coelho. Todo
mundo colocou e é que é bacana. Ninguém ficou falando o filme... ficou inserindo o filme no contexto de
filme, cinema novo, cinema brasileiro, transcendeu esta questão do cinema, passou a discutir uma coisa pública.
E isso, eu achei genial no filme. Ele saiu da tela e as pessoas...os filmes estão todos abertos no final. Então,
termina O Invasor e a pessoa sai com ele pensando, não está terminada a história. Conclui-se uma idéia, mas não
terminou a história dos personagens. Uma coisa que eu sempre fujo é o da conclusão moral, que conclusão moral
tem o filme? Não sei. Eu até tenho a minha conclusão moral, mas eu acho que o bom é justamente sair do filme e
se posicionar. Muitas pessoas falaram para mim que saíram do filme e disseram: eu não vou para casa dormir, eu
vou para o bar.” p. 110,111.
59
conhecimento que possui sobre a linguagem coloquial da periferia. Dessa maneira, integra a
equipe que construiu o filme e interage com pessoas de esferas sociais diferentes da dele.
No Brasil contemporâneo, onde uma infinidade de parcerias e de interações entre
diversos setores, aquela “circulação entre diferentes ‘mundos’ que [...] interagem”
(CARVALHO, 2000, p. 53), a análise da escolha e da atuação de Paulo Miklos no filme e a
participação de Sabotage na trilha sonora e na escrita do roteiro bem como na sua “atuação”
são redimensionadas para além da violência urbana propriamente dita. A invasão agora é a de
músicos no universo da construção daquilo que se chama cinema. Paulo Miklos “invade/toma
o lugar” que seria, naturalmente, de um ator e realiza um trabalho surpreendente. Sabotage
invade o espaço do roteirista e do personagem e faz sua voz ser ouvida. Os músicos invadem
os espaços do ator, do personagem do roteirista bem como a música invade o espaço do
narrador cinematográfico tradicional, conforme apontado no item anterior.
60
3 O ESPAÇO DO TEXTO – O COBRADOR
3.1 O estupro do cânone
Rubem Fonseca ocupa um lugar de destaque dentro da literatura brasileira
contemporânea, tendo em vista o caráter subversivo e precursor de seus textos. Ele é,
juntamente com Dalton Trevisan e João Antônio, entre outros, um dos principais responsáveis
pelo surgimento de novos axiomas que até hoje são utilizados quando o assunto diz respeito à
violência em textos literários contemporâneos. Termos como feroz e brutalista foram
cunhados por importantes teóricos da literatura de nosso país – (cf. CANDIDO, 1987, p. 211;
BOSI, 1975, p. 18) para se referir a textos que expõem grande carga de brutalidade, violência
e ferocidade. Vale lembrar, entretanto, que a literatura “violenta” “soca o estômago” (cf.
LAJOLO; ZILBERMAN, 1997, p. 55) não apenas da sociedade, dos leitores
10
, através de seu
poder enunciativo, mas ela também se autoviolenta e se autoflagela através de processos de
enunciação. Ela se brutaliza, fere-se através de processos que tensionam modos operandi
antes considerados canônicos. E é através dessa autoflagelação, da autoviolentação que se
renova a linguagem, que se cria e se recria constantemente a literatura e seus modos de
expressão. É este o caso de Rubem Fonseca.
Não se pode esquecer que o viés teórico sobre considerações espaciais diz respeito ao
espaço como uma realidade relacional; portanto, para se refletir sobre tal questão, faz-se
necessário retornar um pouco no tempo e revisitar formas literárias de momentos anteriores,
como o realismo e o naturalismo brasileiro, para que se possa colocar em diálogo diferentes
enunciações, e, dessa forma, evidenciar essa realidade relacional do espaço ocupado pelos
textos analisados na história da literatura contemporânea.
Como nosso foco são os textos de Rubem Fonseca, Marçal Aquino e Beto Brant, o
“passeio” por outras obras se dará apenas como referência para a discussão desses textos. Elas
serão apenas pontos de mediação para que seja analisada a trajetória desses textos dentro da
narrativa ficcional brasileira.
10
A esse respeito não podemos deixar de mencionar o texto de Graça Paulino, “O leitor violentado” 1980,
publicado na época da publicação de Feliz ano novo. Esclarecemos que só tomamos conhecimento desse texto na
fase final de elaboração da dissertação.
61
Será feita, então, uma viagem no tempo com o intuito de se visualizar como eram
caracterizados/classificados importantes textos e autores de uma época da produção literária
brasileira chamada Realismo. A opção por se comparar, guardando as devidas diferenças de
contexto, os textos de Fonseca e Aquino especificamente com esse período é porque suas
obras têm uma afinidade temática, o que não quer dizer que sejam textos que usufruam
processos enunciativos iguais ou mesmo semelhantes.
Primeiramente, faz-se necessário esclarecer que as pesquisas efetuadas em três
consagrados manuais da história da literatura brasileira
11
permitiram uma valiosa observação
que é conveniente ressaltar antes de adentrar nas análises das obras ficcionais em discussão
neste trabalho.
Há uma sobreposição das escolas Realista e Naturalista no que se refere a esse período
da nossa história cultural. Naturalismo e Realismo são, muitas vezes, consideradas escolas
sobrepostas em sua contemporaneidade. Sodré (1982) chega, até mesmo, a não apontar em
seu livro uma parte que seria dedicada ao Realismo. Há, após o Romantismo, um breve
capítulo intitulado “Reação Anti-Romântica: A Crítica”, segue com “O Episódio Naturalista”,
e seqüência com “o Regionalismo”, ou seja, não existe destaque para uma escola que
poderia ser considerada a Realista.
Na história da literatura de Coutinho (1969), mais uma vez percebe-se Realismo e
Naturalismo como escolas sobrepostas em sua contemporaneidade. O autor inclui ainda, nesse
momento, o parnasianismo, estilo que não é foco das atenções neste trabalho. Nela,
diferentemente do que acontece na história escrita por Sodré (1969), há uma referência
específica ao Realismo, ainda que não haja um capítulo dedicado exclusivamente a tal escola.
Apenas em Bosi (1994), encontra-se um capítulo intitulado Realismo. O autor,
entretanto, insere o Naturalismo nesse capítulo, o que mostra, mais uma vez, a sobreposição
sobre a qual se falou, pelo menos no que diz respeito à questão cronológica dessas escolas.
Como se de perceber, será preciso comparar os textos desta análise não apenas com
aqueles pertencentes ao Realismo, mas também com aqueles pertencentes ao Naturalismo,
tendo em vista esse caráter de sobreposição presente nos escritos desta época de produção
literária.
Serão vistos a seguir alguns pontos de análises importantes do pensamento desses
autores de histórias da literatura brasileira.
11
Os manuais pesquisados foram: BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. (1994);
COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. (1969); SODRÉ, Nelson Werneck. História da Literatura
Brasileira Seus Fundamentos Econômicos. (1969); SODRÈ, Nelson Werneck. História da literatura
brasileira. (1982).
62
Para Sodré, pensador marxista, dois aspectos são indispensáveis para se estudar
qualquer literatura: o meio cósmico [físico] e o povo, porque “tudo traz a marca indelével da
sociedade”. (SODRÉ, 1982, p. 2). Para o autor, a literatura estaria, então, intimamente
relacionada com aquilo que ocorre no campo social e econômico.
Há, na época em estudo, uma agitação de idéias, promovida principalmente, de acordo
com Sodré (1982), por Tobias Barreto e lvio Romero. Essa agitação esboçava uma
aproximação do pensamento em relação ao meio, essencial para a composição de uma
literatura. É nesse momento então que começa a existir a possibilidade para expressar “a
literatura como uma das manifestações da sociedade.” (SODRÉ, 1969, p.365) Porém, nem
tudo corria bem, pois um pecado cometido pelos naturalistas, de acordo com o autor, era a
valorização da forma divorciada do conteúdo, acarretando o “distanciamento da obra de arte
do público.” (SODRÉ, 1969, p. 383). O virtuosismo formal e a cópia da mera superficialidade
são problemas da escola naturalista apontados pelo crítico. Nesse ponto de vista, o
Naturalismo brasileiro não alcança ressonância na sociedade do país, não atende aos anseios
do meio cósmico, não representa a sociedade brasileira justamente por incorporar de forma
muito radical os problemas tipicamente europeus dos naturalistas de além mar. Mas algo
que se salva a descrição de costumes, diz o autor. É a descrição minuciosa dos costumes
brasileiros do final do século XIX, que ele considera a virtude no naturalismo brasileiro.
Coutinho (1969) afirma que o que o leva a considerar uma escola quase nada tem a
ver com a questão cronológica, mas com os caracteres específicos de cada movimento, “seu
estilo, suas idéias diretoras, suas concepções filosóficas, estéticas e poéticas, seus programas,
seus representantes mais típicos, suas obras.” (COUTINHO, 1969, p. 1). Naturalismo e
Realismo são para ele:
[...] revoltas contra o subjetivismo romântico, (que) participam do mesmo espírito de
precisão e objetividade científica, de exatidão na descrição, de apelo à minúcia, de
culto ao fato, de rigor e economia de linguagem, de amor à forma, e distingue o
Realismo do Naturalismo o aparato cientificista desse último, sua união à biologia e
ao determinismo da herança e do ambiente. (COUTINHO, 1969, p. 5)
Para Coutinho (1969), o realismo, que deriva da palavra real
12
, é contrário ao
idealismo, pois tende à realidade tal como ela é e não como deveria ser. Esse estilo, optando
pela “captação” documental dos fatos, abandona a subjetividade do artista.
12
Conhecemos a complexidade dos termos real e realidade, mas optamos por mantê-los como usados pelos
autores, sem nos determos na discussão conceitual.
63
Especificamente sobre o Naturalismo, o autor afirma que, como já diz a própria
palavra, significa a doutrina para a qual o que possui explicações válidas são as leis científicas
e não as teológicas. O sujeito, o homem, nada era senão uma máquina guiada pela ação das
leis físicas e químicas, pela hereditariedade, pelo meio físico e social, determinado pela
influência do meio.
O autor da terceira obra aqui analisada vai, assim como Sodré (1982), afirmar que é do
crescente distanciamento da subjetividade romântica que surge o Realismo. Alguns dos
valores estéticos aos quais se submete o escritor realista são a religião da forma, [...] o
cuidado estilístico, a vontade de criar algo novo, imperecível. Há um extremo valor pessimista
oriundo da influência do pensamento determinista nas obras de tal escola e aquilo que seria o
Realismo começa a tomar ares Naturalistas no romance e no conto, a partir do momento em
que os personagens estão submetidos ao “destino cego das ‘leis naturais’”. (BOSI, 1994, p.
168). O autor, talvez por ter optado escrever uma história concisa, conforme o próprio tulo
de sua obra confirma, tenta abarcar, de uma vez, aquilo que poderia ser chamado de
literatura realista-naturalista-parnasiana, assim definida por ele:
[...] trata-se de uma grande mancha pardacenta que se alonga aos nossos olhos: cinza
como o cotidiano do homem burguês; cinza como a eterna repetição dos
mecanismos de seu comportamento; cinza como a vida das cidades que então se
unificava em todo o Ocidente. É a moral cinzenta do fatalismo que se destila na
prosa de Aluísio Azevedo, de Raul Pompéia, de Adolfo Caminha [...] (BOSI,1994,
p. 168)
São essas as características mais marcantes das escolas Realista e Naturalista, segundo
esses importantes escritores brasileiros que se aventuraram na tessitura crítica acerca das
letras produzidas em nossa terra. Todos são unânimes em apontar Aluísio Azevedo como o
maior de nossos Naturalistas e O Cortiço como o mais bem elaborado texto da escola. Além
dele, Machado de Assis, apesar de praticamente não ter sido citado por Sodré, é considerado
por Bosi (1994, p. 174) o “ponto mais alto e mais equilibrado da prosa realista brasileira [...]”,
e sobre ele Coutinho (1969, p. 13) diz: “produziu desde o começo da década de 80 [...] as
mais elevadas e independentes expressões da nossa ficção, [...] imprimindo um vigor novo na
literatura do Brasil.”
São, portanto, trechos dos textos dos autores mencionados que servirão de referência
para a comparação com os textos de Fonseca e Aquino. Temos ciência de que outros
momentos e fatores, não abordados nesta parte deste texto, poderiam ser levados em
consideração. Entretanto, não uma pretensão classificatória exaustiva, mas a de se fazer
64
dialogar esses textos no que se refere à questão da linguagem “violenta” utilizada pelo autor
na composição de O Cobrador.
O Cobrador, texto denominado brutalista, também aponta para aquela característica
da qual nos fala Sodré (1982), aquela possibilidade da literatura em relação direta com a
sociedade, e é através da representação da sociedade dicotomizada, como se mostrou no
capítulo 1, que Fonseca (1994) discute as questões dos aglomerados urbanos contemporâneos;
através das exclusões e das relações de violência (e também de “amor”). Em contato com o
texto, o leitor se emancipa (cf. ZILBERMAN, 1989, p. 49, 50), passando a estar apto a
visualizar a sociedade de forma diferente daquela como estava “habituado” a ver.
Há, então, entranhado em O Cobrador, aquela relação íntima entre a literatura e o que
ocorre no campo social e econômico, tão valorizada dentro da concepção literária estampada
na história da literatura brasileira assinada por Sodré (1982). Além disso, o “pecado”
cometido por autores realistas e naturalistas, ainda dentro da concepção do autor, que era a
incorporação radical de problemas típicos dos escritores naturalistas europeus, não parece ser
mais parte integrante dos escritos do texto de Fonseca em questão. Mais do que isso, é
justamente que se sua ruptura com as obras dadas como realistas de então. Justamente
porque é a realidade brasileira, sua dicotomização conforme apontado, as distâncias sociais e
econômicas, a corrida consumista, a precária escolaridade da população pobre etc., fatores
geradores de violência na sociedade brasileira, que estão representadas e podem ser lidas em
O Cobrador, ou seja, problemas típicos do povo. Se Sodré (1982) acreditava haver um
distanciamento entre obra e público naquela época, esse distanciamento parece agora, se não
inexistente, ao menos encurtado, já que o texto representa um Rio de Janeiro atordoado pela
violência urbana.
Se a proximidade ou o não-distanciamento dos problemas de além mar (questão essa
que nem se coloca mais), apontados como crítica pelo historiador, não configuram uma
questão no que diz respeito ao texto de Fonseca, o que dizer acerca da contextualização de O
Cobrador no que se refere à virtude a descrição dos costumes da época de tais escolas
apontada pelo crítico? Se, no Realismo e no Naturalismo do século XIX, isso era uma virtude,
também em Fonseca ela parece ser. É certo que, mais que descrição, a caracterização de
costumes no texto em questão refere-se a uma estrutura agigantada, uma espécie de
representação de “macrocostumes”, que revela e permite a visualização de uma estrutura de
fissura da sociedade brasileira contemporânea. Tal fissura bane pessoas e as encarcera em
espaços de exclusão, impedindo-as de transitar livremente pelos diversos espaços da cidade,
como é o caso da cena na qual o Cobrador ocupa o espaço da rua e ameaça as pessoas da
65
classe de maior poder aquisitivo, dada como superior. Da mesma maneira, o Cobrador está
proibido de freqüentar o espaço da festa na Vieira Souto e também de freqüentar os espaços
de consumo através da violenta concentração de renda em poder de uma minoria, conforme se
tentou mostrar no capítulo 1. Não se trata, portanto, de uma mera caracterização de costumes,
mas da representação de uma sociedade que se encontra em estado patológico, além, é claro,
de uma ruptura com uma linguagem antes considerada canônica e que traz para o universo
literário a voz cotidiana, ou, mais do que isso, a voz abafada dos excluídos.
No que se refere à revolta contra o subjetivismo romântico à qual se refere Coutinho
(1969), pode-se dizer que Fonseca, em O Cobrador, ao invés de tentar desesperadamente
fugir da estética Romântica, como os autores Realistas/Naturalistas do século XIX (o que nem
faria sentido), a utiliza de forma bastante irônica, como a trabalhada inserção no texto
da personagem Ana Palindrômica, a qual remete àquela musa romântica alva, bela, de cabelos
negros finos, belo corpo, que tem como morada uma “torre” alta de mármore, e que, dentro da
estética do romantismo, seria inatingível ao sujeito da plebe. Essa musa, no entanto, torna-se a
parceira sexual e “criminal” do protagonista do conto. O texto representaria, então, uma
realidade analisada do ponto de vista do escritor, tendo a situação social do país e de seus
habitantes como referência para a criação literária, diferentemente do idealismo, do “como
deveria ser”, característica marcante da literatura romântica, ou do enfoque do que seria a
realidade, sem a percepção de seus bastidores, como no caso do realismo/naturalismo do
século XIX.
Como o foco deste trabalho é a violência, serão comparadas duas passagens que a
representam: uma extraída de um trecho do texto Memórias Póstumas de Brás Cubas, de
autoria de Machado de Assis e outra extraída de O Cobrador.
A primeira é a cena em que Brás Cubas, quando criança, “cavalga seu cavalinho,
Prudêncio.”
Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos
no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso,
com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e êle
obedecia, algumas vezes gemendo, mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando
muito, um “ai, nhonhô!” ao que eu retorquia: “Cala a ca, bêsta!” (ASSIS,
1970, p. 22, grifos nossos)
A segunda é a cena do estupro, quando o Cobrador invade o apartamento de uma
mulher que pertence a uma classe social superior à dele. Apesar de se ter afirmado a
impossibilidade de o Cobrador penetrar no espaço daquele que pertence a uma classe social
66
superior à dele, na cena citada a seguir, ele consegue acesso a um apartamento de alguém
pertencente àquela classe. Porém, o protagonista do texto obtém sucesso devido ao fato de
que se “fantasia”, fazendo-se passar por um bombeiro.
Tira a roupa.
Não vou tirar a roupa, ela disse, a cabeça erguida.
Estão me devendo xarope, meia, cinema filé mignon e buceta. Anda logo. Dei-lhe
um murro na cabeça. Ela caiu na cama, uma marca vermelha na cara. Não tiro.
Arranquei a camisola, a calcinha. Ela estava sem sutiã. Abri-lhe as pernas. Coloquei
o meu joelho sobre as suas coxas. Ela tinha uma pentelheira vasta e negra. Ficou
quieta, com os olhos fechados. Entrar naquela floresta escura não foi fácil, A buceta
era apertada e seca. Curvei-me, abri a vagina e cuspi dentro, grossas cusparadas.
Mesmo assim não foi fácil, sentia meu pau esfolando. Deu um gemido quando enfiei
o cacete com toda força até o fim. Enquanto enfiava e tirava o pau eu lambia os
peitos dela, a orelha, o pescoço, passava o dedo de leve no seu cu, alisava sua bunda.
Meu pau começou a ficar lubrificado pelos sucos da sua vagina, agora morna e
viscosa.
Como já não tinha medo de mim, ou porque tinha medo de mim, gozou primeiro do
que eu. Com o resto da porra que saía do meu pau fiz um círculo em volta do
umbigo dela, Vê se não abre mais a porta pro bombeiro, eu disse antes de ir embora.
(FONSECA, 1994, p. 498, grifos nossos)
Quais seriam as realidades relacionais entre tais passagens selecionadas? Não apenas
relações de aproximação, mas também de distanciamento. Ambas são cenas que representam
uma violência vil. As duas vítimas, a criança do texto de Machado e a mulher do texto de
Fonseca apenas gemem ao sofrerem a brutalidade dos atos de perversidade aos quais estão
submetidos. O garoto rico cavalga outro ser humano, o estuprador “cavalga” a mulher rica;
ambas as timas se calam perante a perversidade dos atos de violência. Os dois agentes,
agora invertidos, usam “paus” (a varinha do pequeno Brás Cubas e o órgão sexual do
Cobrador) em seus atos sórdidos. Como se pode notar, os dois textos estão carregados de uma
violência brutal, porém nunca foram atribuídos aos escritos Machadianos adjetivos como
feroz ou brutalista. Uma gigantesca diferença entre os dois textos pode ser percebida através
do distanciamento proporcionado pela análise da questão do ato de vestir/despir, que é uma
das diferenças perceptíveis quando comparados os dois excertos (e também a mudança dos
agentes). Brás Cubas, ainda uma criança, veste seu “cavalinho”, outra criança, com um cordel
que usará como rédea; o Cobrador despe sua vítima que está prestes a ser estuprada.
Metaforicamente, o ato de vestir/despir diz muito sobre esses dois textos. Enquanto um texto
utiliza recursos que “vestem” a brutalidade dos fatos, o outro a exacerba, a escancara, despe o
texto e deixa a violência representada de forma direta, “nua”. O narrador de Memórias
Póstumas de Brás Cubas, como se sabe, é o próprio Brás Cubas, porém ele é um defunto
que narra as suas andanças do tempo em que ainda era vivo. Apesar de ser ele mesmo quem
67
narra os fatos, e de narrá-los em primeira pessoa, há nessa narrativa certo distanciamento, pois
se trata de um episódio ocorrido em um passado longínquo, a infância que é rememorada pelo
espectro narrador; tempo lúdico e inocente da vida das pessoas. Há, portanto, um narrador
mais distanciado do fato devido ao tipo de representação escolhido por Machado. Trata-se da
ficção em estado de assunção da representação. Em O Cobrador, esse distanciamento
praticamente inexiste, percebe-se a cena no calor do momento em que ela acontece. Essa é
“apenas” mais uma cena que se acompanha ao transitar, juntamente com o Cobrador, pelos
espaços por ele percorridos à medida que são viradas as poucas ginas que compõem o
conto.
É como se o leitor sofresse com o estupro juntamente com a estuprada. É como se ele
também fosse violentado
13
, não apenas pelo narrar da cena, mas, principalmente, através de
como essa cena é narrada. O campo lexical, por exemplo, é extremamente diferente daquele
utilizado por Machado. Pellegrini (2006, p. 6)
afirma sobre o texto fonsequiano:
O tipo de representação da violência consolidado por Fonseca, com seu estilo
característico, que, entre outras coisas, absorve o antigo coloquialismo do
submundo, em uma versão chula e descarnada, revela uma crueza sem compaixão
em relação ao homem, até então inédita na ficção brasileira.
É exatamente isso que se observa no excerto em questão. Diferentemente do texto de
Machado, Fonseca se utiliza de um campo lexical composto desse coloquialismo que era
considerado como do submundo. Acredita-se que essa crueza sem compaixão do homem em
relação ao homem estava presente, sim, no texto machadiano, aqui usado como ponto de
referência para a discussão deste trabalho, mas o caráter explícito dessa crueza é que é
avultado no outro texto. Além disso, ainda uma mudança do agente da violência. É como
se o escravo se revoltasse e cobrasse a sua dívida acumulada em séculos.
É ainda como se Fonseca atendesse aos anseios da multidão que se aglomera em volta
do grumete assassinado no final de O Bom-Crioulo, texto naturalista, de autoria de Caminha
(2003). No final desse livro, o protagonista chamado Bom-Crioulo assassina seu ex-amante,
um grumete que fora por muito tempo seu companheiro. Após o assassinato, a multidão se
amontoava em volta dos ex-amantes e acompanhava a briga entre os dois, pois “todos
queriam ‘ver o cadáver’, analisar o ferimento, meter o nariz na chaga [...]” (CAMINHA,
2003, p. 118). Se era isso que todos queriam, conforme apontado pelo narrador de O Bom-
Crioulo, é isso que O Cobrador oferece, a chaga, o ferimento de uma sociedade em estado
13
Reitere-se que a expressão leitor violentado foi usada por Graça Paulino em texto referente a Rubem Fonseca
datado de 1980.
68
patológico, em que todos podem enfiar seus narizes. Então, o leitor, ao “fuçar” as chagas e os
ferimentos, tem a possibilidade de se emancipar (cf. ZILBERMAN, 1989, p. 49, 50) perante a
sociedade ao seu redor, pois passa a estar apto a visualizar a sociedade de forma diferente
daquela como estava “habituado” a ver. O Cobrador estupra a mulher, estupra o leitor e
estupra a própria literatura, pois subverte o conceito das belas letras, trazendo para dentro da
literatura um universo lexical bizarro em relação aos clássicos. Palavras e expressões como
“pentelheira vasta e negra”, “buceta seca” (assim mesmo grafada com u), “porra”, “pau”,
“mijo” “cacete” (referindo-se ao órgão genital masculino), “cu”, etc. adquiriram, depois de
Fonseca, permissão para adentrarem o mundo da literatura considerada canônica. Assim como
o estuprador despe a sua vítima, o conto despe a linguagem literária através da utilização do
chulo, do vulgar, das vozes cotidianas dos excluídos. É que as vozes dos excluídos, que, sem
o amparo de outros mecanismos culturais, são incapazes de penetrar determinados espaços da
sociedade, vozes mudas que não conseguem se fazer ouvir, adquirem potencial sonoro através
da sua representação literária. Sem a amplificação adquirida através da arte, no caso desse
texto, a arte literária, a voz do excluído estaria confinada ao silêncio da mudez.
O caso da trajetória dos textos de Rubem Fonseca no caminho da inserção destes no
universo da literatura é bastante peculiar, também, no que diz respeito ao som adquirido pela
voz excluída e que, a partir da publicação de seus contos
14
, passa a ser ouvida. Será retomado
o caso do livro Feliz ano novo, que, apesar de não ser especificamente aquele que contém o
conto com o qual se trabalhou aqui, serve como ilustração para a discussão que se segue a
respeito de uma tentativa de (re)inclusão no espaço do diálogo de uma voz abafada
culturalmente. Esse livro foi lançado, de acordo com Silva (1980), em 1975 e foi reimpresso
mais duas vezes, a primeira em fevereiro de 1976 e a segunda em junho do mesmo ano,
porém
[...] o Sr. Ministro da Justiça, através da portaria de no 8.401-B, de 15 de dezembro
de 1976, proibiu sua publicação em todo o território nacional, determinando ainda a
apreensão de todos os exemplares postos à venda, alegando que Feliz ano novo
exteriorizava matéria contrária à moral e aos bons costumes. (SILVA, 1980, p. 18)
A partir de dezembro de 1976, portanto, estava censurado o livro Feliz ano novo.
Rubem Fonseca, porém, entrou com um recurso reclamando a ilegalidade do ato e a comissão
de censura, ao ser chamada para esclarecer o porquê da proibição do livro, elaborou um
documento que diz:
14
Obviamente outros autores também têm “responsabilidade” nesta potencialidade sonora da voz do excluído,
como os já citados João Antônio e Dalton Trevisan, entre outros.
69
Feliz ano novo retrata em quase toda sua totalidade, personagens portadores de
complexos, vícios e taras, com o intuito de enfocar a face obscura da sociedade na
prática da delinqüência, suborno, latrocínio e homicídio, sem qualquer referência a
sanção, utilizando linguagem bastante popular e onde a pornografia foi largamente
empregada, com rápidas alusões desmerecedoras aos responsáveis pelos destinos do
Brasil e ao trabalho censório. (apud, SILVA, 1980, p. 19, grifo nosso)
O texto do autor incomoda, talvez, o propriamente, pelo fato de ser considerado
pornográfico (pelos órgãos de censura, claro), mas por descortinar as chagas de uma
sociedade, ela sim patológica, que a todo custo queria ser mantida encoberta. Entretanto, o
que mais interessa no trecho citado é o fato de o documento destacar como um dos problemas
do texto fonsequiano a utilização de linguagem bastante popular. Não se trata de uma
linguagem “apenas” popular, ela é bastante popular conforme o próprio texto a ela se refere.
A voz popular abarcada pela literatura, de acordo com o ponto de vista da censura, é um
problema que deve ser combatido. uma nítida vontade de que essa voz permaneça
abafada, porém o universo literário, ao acolhê-la, faz com que o que antes era mudez se torne
gritos ferozes e brutalistas. Se antes a voz da pobreza, da desigualdade e da exclusão não se
fazia ouvir, ela agora ressoa nos ouvidos daqueles que a queriam muda. A literatura serviu,
nesse caso e momento, de amplificadora dessa voz, que passa a ocupar um espaço que antes
só poderia ser ocupado pelos “altos escalões das belas letras”. Além de essa linguagem tornar-
se, também ela, belas letras, passa a fazer parte daquele espaço de discussão, de diálogo, do
espaço público. É certo que, nesse período da história brasileira, o espaço público estava
sendo assassinado, mas Rubens Fonseca, vários anos depois, conseguiu que seu livro voltasse
a freqüentar as prateleiras das lojas e pudesse novamente fazer parte do universo de leituras
possíveis.
Dando continuidade à questão da violência proporcionada pela linguagem no texto do
autor, pode-se levar em consideração uma importante característica apontada por Eagleton
(2006), quando tenta especificar o que seria a literatura. O teórico traça de maneira breve, mas
bastante interessante, uma linha temporal que mostra como, de tempos em tempos, aquilo
considerado literatura vai se alterando. Em suas explicações sobre tal assunto, menciona uma
importante vertente teórica russa do início do século XX, o Formalismo. Segundo ele, os
formalistas
[...] consideravam a linguagem literária como um conjunto de desvios da norma,
uma espécie de violência lingüística: a literatura é uma forma “especial” de
linguagem, em contraste com a linguagem “comum”, que usamos habitualmente.
(EAGLETON, 2006, p. 6,7)
70
No conto estudado, a linguagem literária seria, ao contrário, justamente o ato violento
de tratar a norma considerada “comum”. O uso da linguagem do cotidiano, do chulo ou do
vulgar, conforme já mencionado, não seria um ato violento em relação à literatura, pois não
seria considerado literatura, entretanto o que Rubem Fonseca faz é exatamente trazer para o
universo literário a fala comum e cotidiana e fazer dela material de tensão literária. A
violência se faz, na linguagem literária desse escritor, de forma nitidamente inversa àquela
considerada pelos formalistas, pois, se o que os formalistas propunham era a violentação da
linguagem “comum”, Rubem Fonseca, em sentido contrário, violenta o cânone na medida em
que traz personagens “comuns” e suas falas e linguagem “comum” para compor os seus
textos.
3.2 O Espaço do texto – O invasor, texto literário
3.2.1 Continuidade de um legado nefasto
Iniciando a discussão acerca de qual seria o espaço ocupado pelo texto literário de
Marçal Aquino na história da literatura brasileira, foram revisitadas algumas questões que
envolvem o texto antes analisado, O Cobrador, pois, não sem razão, os dois textos foram
escolhidos acredita-se em uma espécie de continuação de uma história na outra. Preferiu-se
deixar uma parte da análise do conto de Rubem Fonseca, que poderia (ou até mesmo deveria)
estar presente no capítulo no qual se discutiu o espaço em que estaria inserido tal autor e seus
textos na história da literatura brasileira, para esta parte do trabalho, tendo em vista que seria
este um interessante ponto de partida para se tentar localizar o espaço que ocuparia dentro da
história da literatura brasileira a novela de autoria de Marçal Aquino aqui trabalhada, O
invasor. Trata-se da questão da narrativa em primeira pessoa dos textos considerados por
Candido como ferozes ou ultra-realistas (1989, p. 211-212).
Este consagrado teórico da literatura brasileira aponta o distanciamento proporcionado
pela utilização da terceira pessoa como sendo um ato de “cautela” utilizado pelos escritores
dos textos naturalistas e realistas do século XIX, que almejavam preservar a distância entre
eles – escritores – e seus personagens populares:
71
Na tradição naturalista o narrador em terceira pessoa tentava identificar-se ao nível
do personagem popular através do discurso indireto livre. [...] Usava a linguagem
culta no discurso indireto (que o definia) e incorporava entre aspas a linguagem
popular no discurso direto (que definia o outro); no indireto livre, depois de tudo
definido, esboçava uma prudente fusão. [...] O desejo de preservar a distância social
levava o escritor, malgrado a simpatia literária, a definir a sua posição superior,
tratando de maneira paternalista a linguagem e os temas do povo. Por isso se
encastelava na terceira pessoa, que define o ponto de vista do realismo tradicional.
(CANDIDO, 1989, p. 213)
Porém, esse distanciamento parece ofuscar-se na literatura de Rubem Fonseca e em
especial no conto aqui analisado, pois conforme apontado quando se analisou, por exemplo, a
cena do estupro da garota no prédio – trabalhada no item 3.1 –, observou-se que ela é
totalmente narrada em primeira pessoa pelo próprio Cobrador, o agente da violência naquele
determinado momento. Outro exemplo é a passagem em que o Cobrador mata um elegante
jovem que sai de uma festa na Vieira Souto.
Ajoelha, eu disse.
Ele ajoelhou.
[...]
Curva a cabeça, mandei.
Ele curvou. Levantei alto o facão, seguro nas duas mãos, vi as estrelas no céu, a
noite imensa, o firmamento infinito e desci o facão, estrela de aço, com toda a minha
força, bem no meio do pescoço dele.
A cabeça não caiu e ele tentou levantar-se, se debatendo como se fosse uma galinha
tonta nas mãos de uma cozinheira incompetente. Dei-lhe outro golpe e mais outro e
outro e a cabeça não rolava. Ele tinha desmaiado ou morrido com a porra da cabeça
presa no pescoço. Botei o corpo sobre o ra-lama do carro. O pescoço ficou numa
boa posição.Concentrei-me como um atleta que vai dar um salto mortal. Dessa vez,
enquanto o facão fazia seu curto percurso mutilante zunindo fendendo o ar, eu sabia
que ia conseguir o que queria. Brock! A cabeça saiu rolando pela areia. (FONSECA,
1994, p. 497)
Se, na tradição naturalista, havia uma lacuna entre narrador e fato narrado, em O
Cobrador esse distanciamento, se não chega a ser completamente anulado, minimiza-se de
forma aguda. A simpatia literária almejada pelo autor naturalista/realista do século XIX, que
se distanciava do fato narrado, praticamente desaparece. Ainda se na tradição, conforme
apontado por Candido (1989), havia a utilização de aspas para indicar a linguagem popular,
no conto analisado, devido justamente ao fato de o texto ser narrado em primeira pessoa, esse
recurso (ou outros como o travessão, a separação em linhas diferentes etc.) não se faz
necessário. No trecho abaixo, percebe-se quase que uma sobreposição entre as falas do
Cobrador, de sua vítima e da matéria narrada.
Deve haver um engano, ela disse, nós não precisamos de bombeiro. Tirei o cobra
de dentro da caixa. Precisa, sim, é bom ficarem quietas senão mato as duas. Tem
72
mais alguém em casa? O Marido estava trabalhando e o menino no colégio.
Amarrei a empregada, fechei a sua boca com esparadrapo. Levei a dona pro quarto.
(FONSECA, 1994, p. 498, grifos nossos.)
Dessa maneira, o que acontece na estrutura desse conto é justamente o inverso daquilo
que fazia o escritor realista/naturalista do passado de nossas letras. Ao invés de se encastelar
na terceira pessoa, proporcionando um distanciamento entre autor e personagem, Rubem
Fonseca bem como outros autores a ele contemporâneos buscam um caminho inverso, criando
uma espécie de confusão que aparenta ser um tipo de fusão entre autor e personagem.
O esforço do escritor atual é inverso. Ele deseja apagar as distâncias sociais,
identificando-se com a matéria popular. Por isso usa a primeira pessoa como recurso
para confundir autor e personagem, adotando uma espécie de discurso direto
permanente e desconvencionalizado. (CANDIDO, 1989, p. 213)
Isso intensifica ainda mais essa “confusão” sobre a qual fala o autor e amplia a
questão, já mencionada, da voz do excluído, pois, sob o aval de um grande escritor, amplia-se
o raio de alcance do som que antes era o silêncio da “voz do sem voz”.
Não há, portanto, uma terceira pessoa intermediando fato e narração. Sobre essa
minimização da distância, o autor diz ainda:
Talvez esse tipo de feroz realismo se perfaça melhor na narrativa em primeira pessoa
[...] A brutalidade da ação é transmitida pela brutalidade de seu agente
(personagem), ao qual se identifica a voz narrativa, que assim descarta qualquer
interrupção ou contraste crítico entre narrador e matéria narrada. (CANDIDO, 1989,
p. 212, 213)
Exposto isto, pode-se então adentrar o espaço que ocuparia a novela de Marçal Aquino
dentro desse caminho das letras brasileiras que se procurou traçar. foi dito aqui que uma
das diferenças entre a narrativa fílmica e literária de O invasor está justamente na questão do
ponto de vista da narração de um e outro textos. Após a conclusão do filme, Aquino se
desinteressou pela continuação da escrita do livro (Beto Brant insistia para que ele o
finalizasse), pois, segundo ele mesmo, afirma:
[...] eu parei o livro abandonei o livro, não queria mais fazer o livro, porque no
roteiro foram solucionadas todas as pendências dramáticas, eu de certa maneira
conduzindo a feitura do roteiro, resolvi todas as pendências de trama, eu sabia o
segredo da história [...]
(AQUINO, apud. BRUM, 2003, p. 177)
O alento para retomar a escrita do livro veio justamente da possibilidade de continuar
escrevendo-o em primeira pessoa.
73
[...] o que interessava era o desafio de não poder alterar o foco narrativo, trabalhar na
primeira pessoa, eu não quis mudar, eu poderia fazer na terceira o que me daria a
onipresença do narrador e eu poderia, por exemplo, mostrar mais ou menos o que o
filme mostra, o desafio era não sair desse foco narrativo, então esse sujeito pode
falar daquilo que ele viu ou soube, então tem muita coisa que tem no texto que não
tem no roteiro e filme, o filme tem muita coisa também que não tem no livro, então
na hora de publicar a graça tava aí [...] (AQUINO, apud. BRUM, 2003, p. 179)
O texto literário de Aquino manteria, considerando uma linha de raciocínio dentro da
história da literatura brasileira, essa ruptura proporcionada pela qualidade aproximativa que a
utilização da primeira pessoa proporciona, de acordo com o pensamento de Candido (1989).
Por outro lado, o narrador de O invasor, ao invés de ser um personagem pertencente à classe
social excluída, é um empresário bem-sucedido, e é através de sua percepção, que vai se
tornando cada vez mais insana à medida que a história vai se desenrolando, que o leitor
acompanha a trama contada no livro. Escritores pertencentes a essa vertente “ultra-realista”
“primam quando usam esta técnica, mas quando passam à terceira pessoa ou descrevem
situações da sua classe social, a força parece cair.” (CANDIDO, 1989, p. 213). Parece difícil
afirmar que a força do texto literário de Marçal Aquino caia apenas pelo fato de seu livro ser
narrado a partir do ponto de visa de um personagem que pertence a uma classe social mais
próxima à dele, porém o livro aparenta ser menos rico em termos de possibilidades de leitura
se comparado ao filme realizado por Brant. Contanto, vale ressaltar que Ivan, apesar de
pertencente a uma classe social superior à dos excluídos, é tão “bandido” quanto Anísio ou
Alaor.
Além da característica de a narrativa assumir o ponto de vista da primeira pessoa,
característica esta que passou a ser muito utilizada por escritores “ultra-realistas”, o texto de
Aquino a impressão de ocupar um espaço de diálogo com o texto de Fonseca, quase como
uma continuidade deste. O texto fonsequiano é considerado uma espécie de modelo
“brutalista/feroz” para os autores que viriam a publicar textos desta natureza após o
surgimento “do grande mestre do conto”, como é chamado por Candido (1989, p. 211),
conforme se pode conferir nos escritos de Pellegrini (2005, p. 138): “Rubem Fonseca ainda é
o mais festejado representante dessa vertente, tendo se tornado uma espécie de matriz da qual
emana uma linhagem de ‘novíssimos’ autores contemporâneos dedicados a tematizar todos os
tipos de violência [...]”.
Ao se observar a relação entre o Cobrador e Ana e o desfecho final do conto, que é
sustentado por um “não-desfecho”, mas pela abertura para uma nova história que se inicia,
como se verá a seguir, e ao se posicionar tais observações em contraponto às relações entre os
74
personagens da novela de Aquino, esta poderá ser visualizada como uma continuação possível
para o conto algo como um futuro social que se encontrava “premonizado” no conto de
Fonseca. Raciocinando dessa maneira, pelo menos dois itens possibilitam pensar a novela de
Aquino como continuação da história contada nessa espécie de matriz, que seria O
Cobrador:
a) a aliança entre personagens pertencentes a classes sociais distintas com o intuito de
prática da violência Ana Palindrômica aliando-se ao Cobrador, bem como Alaor e
Ivan aliando-se a Anísio;
b) a finalização de O Cobrador através de um “não-desfecho”.
São essas duas linhas de pensamento que se tentará amarrar para situar o texto de
Marçal Aquino dentro da história da literatura brasileira contemporânea.
No final do conto, configurada a “parceria” entre Ana e o Cobrador, este último,
numa espécie de solilóquio, apresenta ao leitor os planos para a “ação” de Natal do casal, se
despede das armas que o acompanhavam quando ainda “trabalhava” sozinho e relata os
projetos futuros de ampliação do leque de abordagem de seus atos violentos.
No Baile de Natal mataremos os que pudermos. [...] Escolhemos para iniciar a nova
fase os compristas nojentos de um supermercado da zona sul. Serão mortos por uma
bomba de alto poder explosivo. Adeus meu facão, adeus meu punhal, meu rifle, meu
Colt Cobra, adeus minha Magnum. Hoje será o último dia que vocês serão usados.
Beijo meu facão. (FONSECA, 1994, p. 504, grifos nossos)
É interessante perceber que o discurso do Cobrador passa a ser proferido, em alguns
momentos, na primeira pessoa do plural, conforme destacado no trecho acima. Tal mudança é
significativa, pois aponta para a associação entre duas classes sociais diferentes que, juntas, se
tornam um agente da violência mais poderoso e com maior poder de destruição. Não apenas o
Cobrador discursa a respeito da interação das duas classes, também Ana o faz. Diz ela ao
Cobrador: “O mundo inteiro saberá quem é você, quem somos nós [...]” (FONSECA, 1994,
p. 504, grifos nossos). O verbo saber, conjugado no futuro do presente, indica que a aliança
provavelmente vingará, além disso, o somos nós, proferido por Ana, vai exatamente ao
encontro da primeira pessoa do plural utilizado pelo Cobrador. Está representado, portanto, o
sacramento da aliança.
Além de toda essa questão da aliança entre as classes bem representada no conto, o
fato de ele ser finalizado com um “não-desfecho”. Trata-se de um “não-desfecho” devido ao
75
fato de a história terminar com referência a uma nova história que começará a ser escrita a
partir daquele momento.
Ponho as armas numa mala. Ana atira o bem quanto eu, não sabe manejar o
facão, mas essa arma agora é obsoleta. Damos alogo a Dona Clotilde. Botamos a
mala no carro. Vamos ao Baile de Natal. Não faltará cerveja, nem perus. Nem
sangue. Fecha-se um ciclo em minha vida e abre-se outro. (FONSECA, 1994,
p. 504)
Essa é a parte final do conto. Após o sacramento da aliança entre os dois personagens
bons atiradores –, estes se despedem de Dona Clotilde, metaforizando o abandono da vida
que até ali levavam, e vão juntos começar um novo ciclo de existência ao qual o leitor não
tem acesso. Não se sabe se eles foram bem-sucedidos em sua “empreitada”, se foram presos
ou até mesmo mortos, mas isso não importa. O que importa é que essa matriz fonsequiana
rendeu frutos brutalistas, como é o exemplo da história de Anísio e os sócios da empreiteira
contada na novela de Aquino. A aliança representada no conto é elevada à décima potência e
a rede de violência urbana atinge, em O invasor, um nível de entrelaçamento tamanho que
não se sabe mais onde se encontra o fio inicial desse emaranhado. A história de aliança
aconteceu de forma extraordinária na novela, porém uma aliança pútrida. O casal do conto
pode ser lido, então, como o início de uma aliança entre as classes sociais, mas, ao invés de
ser uma aliança em direção à construção de espaço mais justo e igualitário, muito pelo
contrário, o intuito é apenas de fazer valer a ganância e o interesse individual. O novo ciclo de
existência que se abre para o narrador do conto é também aberto para a literatura brasileira e
tem continuidade em vários autores posteriores à Rubem Fonseca, entre eles Marçal Aquino.
Quase tudo nessa história sórdida é invasão. Assim como foram mostrados os vários
níveis de invasão possíveis ao se “dissecar” o filme e também o seu processo de gênese, a
literatura também se deixa invadir. A literatura brasileira contemporânea, ao invés de se
sustentar “apenas” em palavras, muitas vezes joga com outras mídias e se constrói a partir
dessas invasões. Temos o caso, por exemplo, do livro de contos de Marcelino Freire, Angu de
Sangue, que mistura seus textos a várias fotografias que vão compondo significados
juntamente com o material narrado por palavras. O próprio Marçal Aquino tem livros
ilustrados por Ulisses Bôscolo de Paula caso de Cabeça a prêmio e Famílias
terrivelmente felizes e tais ilustrações, diferentemente do que acontecia, por exemplo, em
edições de livros infanto-juvenis, nos quais as ilustrações eram representações de alguma
parte considerada significativa do texto escrito, nos livros de Aquino podem servir como
ampliadores de significados, ao serem lidos juntamente com o texto escrito, o que seria
76
substância para outro trabalho. A invasão à qual se fez referência, a respeito da novela de
Aquino aqui estudada, acontece à medida que cenas do filme são inseridas no livro, lugar
antes pertencente somente ao texto escrito. Uma outra invasão ocorre devido ao fato de o livro
conter, além dos citados texto literário e imagens do filme, o roteiro original. Ou seja, tudo
nesse trabalho parece envolver nessa atmosfera de invasão e violência.
3.3 O espaço do texto – O invasor, texto fílmico
3.3.1 Violentando a tradição audiovisual
Assim como se procurou contextualizar os textos literários dentro da história da
literatura brasileira, faz-se necessário que tal contextualização também seja feita em relação
ao espaço ocupado pelo filme O invasor dentro da história do cinema brasileiro. Aqui, a
intenção não é traçar um amplo painel do cinema no Brasil, mas tentar perceber como esse
filme estaria encaixado no momento atual de produção cinematográfica, tendo em vista que
foi lançado em 2001
15
. Por isso, O invasor está inserido naquilo que se convencionou chamar
de Cinema da Retomada
16
. Para melhor se situar em relação à época que está sendo tratada e
em relação ao porquê de tal nomenclatura ter sido atribuída a tal momento da cinematografia
brasileira, deve-se fazer uma retomada alguns anos ao governo do Presidente Collor
que, como será visto, teve um gigantesco impacto na produção de filmes (melhor seria dizer
na quase “não-produção” de filmes) do período em questão. Sobre isso, diz Nagib (2002, p.
13):
Os dois primeiros anos da década de 90 estão certamente entre os piores da história
do cinema brasileiro. Logo após sua posse, Collor rebaixou o Ministério da Cultura
a Secretaria e extinguiu vários órgãos culturais, dentre eles, a Embrafilme, (Empresa
Brasileira de filmes S.A.), que já claudicava, mas permanecia como o principal
sustentáculo do cinema brasileiro. Em 1992, apenas dois filmes de longa-metragem
foram lançados no Brasil.
15
Conforme a ficha técnica do filme que consta no livro O invasor, de autoria de Marçal Aquino, p. 128.
16
Apesar de bastante difundida sob a alcunha de Cinema da Retomada, chamar esta fase de nossa produção
brasileira de retomada é um tanto quanto exagerado na visão de alguns críticos e cineastas. Para mais
informações sobre o assunto, ver: NAGIB, Lúcia. O cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos
anos 90. São Paulo: Ed. 34, 2002.
77
Oricchio (2003), porém, redimensiona o que se discursa a respeito da produção
cinematográfica desse período e afirma que, diferentemente do que é comumente dito a
produção de filmes no Brasil teria sido zero sim uma certa produção
17
. Portanto, mesmo
“na UTI o cinema brasileiro continuava a existir.” (ORICCHIO, 2003, p. 25) Em 1992,
acontece o impeachement de Fernando Collor e, em 1993 e também em 1994, três seleções
promovidas pelo Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro contemplaram um total de 90 projetos.
Em seguida, é aprovada a conhecida Lei do Audiovisual, o que vai fazer com que a produção
seja retomada, daí a alcunha de Cinema da Retomada. Oricchio (2003) estipula como sendo o
início do Cinema da Retomada o ano de 1995, pois “a partir de 1995, [...] são lançados rios
títulos, entre eles Carlota Joaquina, de Carla Camurati, que independentemente de qualidade
estética, funciona como uma espécie de marco zero da Retomada do cinema brasileiro.”
(ORICCHIO, 2003, p. 26).
Nagib (2006, p. 17) colhe depoimentos de cineastas que filmaram entre os anos de 94
e 98. Ela atesta ainda que “o ano de 1998 marca, ao mesmo tempo, o ápice da retomada e o
início de seu fim.” Oricchio (2003) marca como o fim dessa era o lançamento do polêmico
filme de Fernando Meirelles, Cidade de Deus, um fenômeno de bilheteria que atingiu a casa
dos 3,2 milhões de espectadores e dividiu radicalmente a crítica especializada. Alguns
teceram rasgados elogios, enquanto outros o massacraram.
Localizada sob essa denominação encontra-se uma variedade, uma diversidade
gigantesca de gêneros e estilos. São filmes que vão desde produções com viés descaradamente
comercial, como é o caso, por exemplo, dos filmes da Xuxa e Renato Aragão, até filmes
esteticamente mais ousados. “Há comédias, filmes políticos, obras de denúncia, de
entretenimento puro, filmes destinados ao público infantil, neochanchadas, policiais, épicos,
etc.” (ORICCHIO, 2003, p. 29) Um cinema heterogêneo, da diversidade, diferentemente, por
exemplo, do Cinema Novo, que possuía um ideal estético e também político mais homogêneo.
Numa época de déficit social brutal, os cineastas do Cinema Novo acreditavam saber quem
era o inimigo a ser combatido, ele era mais facilmente identificável
18
. Entretanto, essa
diversidade, característica visível do Cinema da Retomada é apenas aparente, segundo
Oricchio (2003). um fio que pode ser puxado, de acordo com o teórico, que deve ser
17
O crítico lista os 31 filmes que foram lançados entre 1990 e 1994. A lista dos títulos pode ser consultada no
livro: ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo: Ed. Estação
Liberdade, 2003. p. 26.
18
Oricchio (2003, p. 30-31) tenta explicar, através do chamado “fim das utopias”, que o homem dos anos 90
tornou-se mais livre para estabelecer sua própria agenda de prioridades e que o inimigo, na época do Cinema
Novo era claro na concepção dos cineastas de então: as elites econômicas, o regime militar e o imperialismo
norte-americano.
78
levado em consideração. Para ele, diferentemente da caracterização de um cinema da
diversidade, há, nos filmes desse período, um trabalho que ele chama de coletivo, pois, de
uma maneira ou de outra, esses filmes se debruçam sobre o país e tentam pensar o Brasil ao
longo dos anos de 1990 e do início dos 2000. A coletividade dessa produção estaria então
nesse pensar o próprio país, e isso se deu de maneiras diferentes.
Um grande número deles o fez de maneira explícita, debruçando-se diretamente
sobre os [nossos] “grandes problemas” [...]: a relação do país com sua história; a
problemática estrutura de classes, e sua relação com a violência; a relação com o
outro, com o estrangeiro. Mas esta “meditaçãosobre o Brasil aparece também, de
maneira oblíqua, mesmo quando o tema aparente dos filmes é uma história de amor,
o conflito com os pais ou uma trama criminal. (ORICCHIO, 2003, p. 232)
A busca, portanto, de uma identidade própria funcionaria como uma linha que
costuraria esses filmes, mesmo que, ao final desse processo de cosimento, se visualizasse
uma colcha feita de retalhos dos mais diferentes tipos de tecido.
Uma crítica feita ao Cinema da Retomada e que vai servir para se pensar o espaço de
O invasor dentro dessa produção contemporânea do cinema brasileiro remete àquele
considerado um ponto alto do cinema brasileiro, O Cinema Novo. É desnecessário dizer que
tal escola era avessa a todo e qualquer tipo de “comercialismo”, era abertamente contra ele.
Em A estética da fome, Rocha (1981) diz que o Cinema Novo está “onde houver um cineasta
disposto a enfrentar o comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecnicismo [...] o Cinema
Novo se marginaliza da indústria porque o compromisso do Cinema Industrial é com a
mentira e com a exploração.” (Rocha, 1981, p. 32).
A aversão ao cinema “industrial” proposta pela escola não se reflete em muitos dos
filmes da Retomada e isso é motivo de críticas ferozes. O teor dito comercial creditado a
vários desses filmes muitas vezes está relacionado ao diálogo que promovem com linguagens
convencionalmente consideradas de caráter comercial, como as linguagens e técnicas do
videoclipe, da publicidade e da televisão. Assim como é híbrida a escrita do livro e a
produção do filme, conforme procurou-se mostrar no item 2.2.1, também são híbridas as
técnicas, recursos e linguagens dos quais se utilizam vários filmes. O invasor é um caso que
demonstra bastante intensamente esse hibridismo que acompanha o fazer cinema brasileiro na
contemporaneidade.
Lusvarghi (2004) alerta para a relação que o filme tem com a linguagem do
videoclipe, como no exemplo da cena em que Marina e Anísio estão sob efeito de drogas em
uma boate. A cena, assim como todo o filme, é filmada com câmera na mão. Além disso, os
79
cortes da cena na boate são rápidos geralmente associados à MTV como se
acompanhassem o ritmo frenético da música eletrônica que está tocando. Além disso, a
imagem torna-se granulada como no momento em que acontece uma transa entre Anísio,
Marina e uma colega dela no banheiro da boate. Sobre ambientes como esses, diz:
[...] nas cenas de bares e prostíbulos, o inferno de Ivan, a característica de narrativa
em linguagem de videoclipe ganha um ar hipnótico, com granulações que lembram
alucinógenos e deixam o espectador novamente penetrar na intimidade dos
personagens. É assim na cena em que Marina atrai uma garota para transar com ela e
Anísio num banheiro sob o efeito do ecstasy. (LUSVARGHI, 2004, p. 4
)
Cenas granuladas de Marina, Anísio e uma colega se drogando e fazendo sexo em uma boate
Lusvarghi (2004) também mostra que o filme, além da linguagem do videoclipe,
utiliza-se de recursos da narrativa televisiva em sua composição. Vale ressaltar que o recurso
digital amplamente utilizado na produção do filme contribui muito para esse linguajar
televisivo.
Em O invasor, o efeito do tratamento digital das imagens, captadas pela mobilidade
de uma câmera 16 mm, é obviamente a de uma narrativa não-linear, que resulta num
realismo mais próximo da linguagem da televisão, traduzindo o sentimento de
presença ao vivo que o veículo simboliza no nosso imaginário, sem jamais perder,
no entanto, a noção de conflito. (LUSVARGHI, 2004, p. 8).
O que interessa ressaltar é o fato de que linguagens geralmente não relacionadas ao
cinema passaram a ser incorporadas por filmes da retomada como recurso narrativo
cinematográfico e não obrigatoriamente espetacularizam um determinado filme ou obra.
Logicamente, filmes dentro desse contexto que podem não ter usado tais linguagens de
forma tão criativa quanto Brant, e o que se obteve foram filmes que dialogam mais
especificamente com o espetáculo. Entretanto, através da análise da narrativa em O invasor,
percebe-se serem essas linguagens capazes de criar efeitos estéticos significativos, que servem
como interessante ponto de criação de significados. Como tudo nesse filme remete à invasão,
80
mais uma vez têm-se as linguagens da TV e do videoclipe funcionando também elas como
invasoras, que penetram no espaço do cinema canônico brasileiro, como o do Cinema Novo,
violentando-o e (re)criando um novo cinema interessantemente intitulado por Oricchio (2003)
de “Cinema Impuro”, devido justamente a esses hibridismos tão comuns em nossa
contemporaneidade.
O invasor estaria, portanto, encaixado na produção chamada Cinema da Retomada,
uma época de diversidade de estilos e gêneros que, buscando dialogar com linguagens
consideradas “não-cinematográficas” ou comerciais, volta-se tematicamente para o pensar os
problemas do Brasil. Um cinema que se reinventa e busca uma aproximação com o público,
mas, em determinados momentos, sem decair no mero comercialismo de mercado, apesar de
lidar, de maneira criativa, com linguagens características desse universo.
81
4 CONCLUSÃO
Procurou-se, neste trabalho, a partir de dois recortes iniciais básicos os espaços nas
obras e os espaços das obras – analisar a relação das obras de Rubem Fonseca, O Cobrador e
O invasor, tanto o texto literário, de autoria de Marçal Aquino, quanto o texto fílmico
dirigido por Beto Brant, com o contexto social e histórico nos quais estão inseridos.
O mais interessante e instigante durante a tessitura deste texto, que é reflexo de intensa
e desgastante, no entanto extremamente prazerosa pesquisa, é o fato de que esses dois recortes
iniciais básicos se subdividiram em vários outros instigantes pontos de reflexão possibilitados
devido à profícua definição de espaço, de autoria do teórico da geografia Milton Santos, que
leva em consideração não os espaços físicos ou geográficos, mas suas realidades
relacionais, o que ampliou o espectro de atuação do trabalho. Esse fato levou ao abandono da
exploração mais direta de outro aspecto da pesquisa, a questão do tempo nas narrativas, que
era a intenção quando da escrita do projeto, para focar especificamente a questão dessas
realidades relacionais e suas imbricações com a violência que assola os centros urbanos
contemporâneos.
Contrastando textos de diferentes épocas como O Cobrador, escrito por aquele que é
considerado um pioneiro na questão da representação explícita da violência das grandes
cidades nas letras brasileiras, com O invasor, texto de um escritor que a cada dia ganha mais
destaque dentro da ficção escrita de nosso país, pôde-se, através dos espaços analisados dentro
do texto e deste texto dentro da história da literatura e também do cinema, atestar a trajetória
da prática discursiva da violência na representação ficcional em algumas de nossas artes.
dois pontos principais que merecem ser destacados no que se refere à conclusão
que este trabalho apresenta e de certa maneira engloba as rias frentes de pesquisa
possibilitadas pelo conceito de Santos e a articulação deste com os outros teóricos que foram
utilizados como suporte para as discussões nos capítulos anteriores.
O primeiro ponto vem caracterizado pelo advérbio infelizmente e o segundo... bem, o
segundo será apresentado mais a frente. Infelizmente aquilo que se pode perceber ao observar
a trajetória da representação da violência urbana na literatura e no cinema é um
apodrecimento ainda maior dos valores devastados de uma faceta decadente do Brasil. No
texto de Fonseca, era possível visualizar uma sociedade que se optou por chamar de
dicotômica e que se encontrava cindida no que se refere à violência que ocorria em dois
extremos: a concentração de renda, observada com o apoio e suporte do texto de Pellegrino
82
(1984), como um ato de violência e causador de exclusão. E um outro ato de violência a
resposta agressiva à exclusão proporcionada por essa concentração de riquezas. Viu-se que o
rompimento do que Pellegrino (1984) chamou de pacto social entre esses sujeitos
pertencentes a classes sociais “opostas” faz com que o recalque da Lei da Cultura não mais
exerça poder sobre o desprivilegiado financeiramente, que tem seu senso de eqüidade e justiça
ferido. Em resposta à violência da exclusão, ao não-cumprimento do pacto social, e à
ineficácia do recalque da Lei da Cultura, são aflorados os impulsos/desejos, antes contidos,
em forma de homicídio, estupro, roubo e várias outras formas de violência.
No entanto, à medida que a análise avança para os outros textos focados, os de autoria
de Aquino e Brant, a história na qual ninguém presta, como é “sobre-narrado” no filme pela
música do Tolerância Zero, representa uma violência muito mais aguda, que é entrelaçada por
uma rede sórdida de interesses individuais. Aquilo que se chamou de “premonição” no texto
de Rubem Fonseca – o início de uma relação mais abrangente de classes sociais distintas, com
o intuito de aumentar o raio de ação da violência se confirma. Em O invasor, os
empresários bem-sucedidos são contratantes de um matador de aluguel que pertence ao
universo da periferia e este, após o serviço feito, junta-se aos sócios, passando a “trabalhar”
na empresa destes e, além disso, une-se à filha do casal assassinado, que pertence a uma
classe superior à dele, num jogo de sexo e drogas. As relações entre sujeitos pertencentes a
classes sociais diferentes poderiam ser positivas e produtivas; entretanto, nos textos de
Aquino e Brant, tais relações acontecem única e exclusivamente para fazerem valer os
interesses individuais.
Além da relação entre esses personagens, outros fios que demonstram a putrefação e a
patologia crônica de uma faceta da sociedade brasileira em franca decadência são: o delegado
rufião, que indica um assassino que seja “bom profissional”, o funcionário do governo, que é
corrupto, a prostituta, que se passa por namorada apenas para seguir os passos de Ivan. A
história simboliza justamente essa violência em rede que passou a compor a sociedade
brasileira contemporânea. Trata-se de uma violência sem face definida, conforme foi
apresentado durante a análise da música Orgia, de autoria de Paulo Miklos, que compõe uma
das cenas do filme. O rosto da violência sem face definida redimensiona a questão da
violência da forma como era representada no texto de Fonseca. A face desfigurada da
violência mostra, infelizmente, o quão agudo é o estado de patologia pelo qual passa a
sociedade brasileira.
O segundo e talvez mais importante elemento, porém impossível de ser detectado se
não fosse a descoberta anterior, pode ser acompanhado de um advérbio oposto àquele
83
sugerido para o primeiro ponto descrito no parágrafo anterior, a palavra felizmente. É que,
apesar de todo o problema apontado no texto de Rubem Fonseca e do visível niilismo da
segunda história analisada – uma sociedade cronicamente inviável
19
–, conseguiu-se visualizar
algo que ainda pode ser pensado como um certo tipo de saída. Para isso, faz-se necessário
concluir o que se observou no campo estético das obras em questão.
Como foi dito, a violência é parceira de longa data da literatura brasileira. Desde os
primórdios das letras, esta já representava questões que envolvem violência, como os espaços
de exclusão representados pelos cortiços e casas de pensão em Aluísio Azevedo, pela temática
do cangaço em Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, pelos temas da tortura no período da
ditadura militar em Fernando Gabeira e Caio Fernando Abreu, entre outros. Assim como é
parceira da literatura, é também do cinema, como em Glauber Rocha ou Nelson Pereira dos
Santos. A violência, porém, vem sendo representada de diferentes maneiras ao longo da
história da literatura e do cinema brasileiro. O que era chamado de submundo emerge e exibe-
se na superfície, desvelando outros bastidores, os das relações de poder.
Por isso mesmo, um importantíssimo ponto no que se refere à estética das obras em
questão diz respeito ao trabalho que estas promovem de ampliação da “voz do sem voz”. A
voz do excluído continuaria abafada, muda, se a arte não ousasse e a incluísse em seu labor. O
texto de Rubem Fonseca, como visto no item intitulado “O estupro do cânone”, utiliza-se do
vocabulário chulo, vulgar, ou simplesmente comum, de personagens pertencentes a classes
socialmente desprivilegiadas, ampliando, assim, o poder de alcance dessa voz antes excluída.
Esta ampliação, como procurou-se mostrar no item “Continuidade de um legado nefasto”,
acontece também através da utilização da primeira pessoa em detrimento da terceira
20
, o que
era mais comum nos textos Naturalistas/Realistas do século XIX. Sendo assim, como mostrou
Candido (1987), uma aparente confusão entre autor e personagem, a qual serve para dar
valor a uma voz que, sozinha, não consegue se fazer ouvida. Quando passa a ser parte da
matéria artística, como no caso do texto analisado, tal voz consegue o “aval” do grande
escritor e assim adentra o espaço público e o diálogo parece se reinstalar
21
.
na história contada por Aquino e Brant, outros são os artifícios utilizados que
permitem que a voz do excluído ressoe, seja ouvida e assim, quem sabe, promova o diálogo
19
Aproveitamos aqui o título de um filme dirigido por Sergi Bianchi e que representa a sociedade brasileira
como cronicamente inviável. Esse filme foi também foi lançado dentro do período chamado Cinema da
Retomada.
20
Atente-se para o fato de que simplesmente o uso da primeira pessoa não garante diversidade de vozes. Outras
estratégias textuais são levadas em conta na construção do processo dialógico.
21
Faz-se necessário lembrar aqui as produções de autores de segmentos sociais excluídos, como Esmeralda,
porque o dancei (2001), de Esmeralda Ortiz Capão pecado (2000) e Manual prático do ódio (2003), de
Ferréz, além de Literatura marginal (2005), organizada pelo mesmo autor.
84
sobre as mazelas de um Brasil tomado pela violência e por todo tipo de patologias sociais, são
eles: a utilização dos gêneros musicais excluídos da grande mídia na trilha sonora; a utilização
da chamada cena documental, quando o rapper Sabotage entra no filme, não representando
um personagem qualquer que poderia ser construído para que ele participasse do filme, mas
representando a si mesmo e cantando um rap de sua autoria; e, talvez a mais radical de todas
as tensões propostas pelo filme (e que não diz respeito ao filme propriamente dito mas ao seu
processo de gênese), Sabotage tem liberdade para reescrever vários diálogos que estavam
prontos no roteiro produzido por um renomado escritor.
Talvez se deva concordar com Pellegrini (2005, p.152), quando diz:
[...] é necessário buscar outras categorias de análise, não restritas a forma e estilo,
inclusive recorrendo ao aparato teórico de outras ciências, [...] para procurar
compreender o sentido e a função da produção cultural e da literatura
contemporâneas. [...] vamos perceber que de fato, trata-se de mudar a perspectiva,
abandonando uma definição romântica da função social da cultura baseada na idéia
de que esta deveria ser veículo da “graça, da beleza e da harmonia” [...] Algo como
um “positivamente negativo”.
Vê-se essa exposição de violências nas artes de hoje não como sua espetacularização
pelo menos no caso dos textos aqui estudados mas como um grito, que, ao ressoar nos
ouvidos, faz refletir e é capaz de fazer emancipar, ajudando a perceber o modo como a
sociedade está se estruturando na contemporaneidade.
85
REFERÊNCIAS
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Cesar Migliorin e Marta Luz. Elenco: Marieta Severo, Marco Nanini, Marcos Palmeira,
Ludmila Dayer.
CIDADE DE DEUS. São Paulo-Rio de Janeiro, 2002. Direção de Fernando Meirelles.
Roteiro: Bráulio Mantovani. Fotografia: Cesar Charlone. Montagem: Daniel Rezende. Elenco:
Alexandre Rodrigues, Leandro Firmino da Hora, Jonathan Haagensen, Felipe Haagensen,
Mateus Nachtergaele, Seu Jorge.
CRONICAMENTE INVIÁVEL. São Paulo 2000. Direção de Sérgio Biancchi. Roteiro:
Sérgio Biancchi e Gustavo Stainberg. Fotografia: Marcelo Coutinho. E Antonio Penido.
Montagem: Paulo sacramento. Elenco: Cecil Thiré, Betty Gofman, Daniel Dantas, Umberto
Magnani.
DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL. Rio de Janeiro, 1064. Direção de Glauber Rocha.
Roteiro: Glauber Rocha e Walter Lima Jr. Fotografia: Waldemar Lima. Elenco: Geraldo Del
Rey, Yoná Magalhães, Maurício do Valle, Othon Bastos, Lidio Silva, Sonia dos Humildes,
João Gama, Antonio Pinto, Milton Rosa, Roque Santos.
MATADORES, OS. São Paulo, 1997. Direção de Beto Brant. Roteiro, Beto Brant, Marçal
Aquino, Fernando Bonassi e Victor Navas. Fotografia: Marcelo Durst. Montagem: Willen
Dias. Elenco: Wolney de Assis, Murilo Benício, Chico Díaz, Maria Padilha.
91
CRÉDITOS E FONTES DAS IMAGENS
Todas as reproduções dos fotogramas, capturados do próprio filme, são do autor.
INVASOR, O. São Paulo, 2001. Direção de Beto Brant. Roteiro: Marçal Aquino, Beto Brant
e Renato Ciasca. Fotografia: Toca Seabra. Montagem: Manga Campion e Willen Dias.
Elenco: Marco Ricca, Alexandre Borges, Paulo Miklos, Malu Mader, Mariana Ximenes,
Chris Couto, George Freire, Tanah Correa, Jayme Del Cueto, Sabotage.
Cartaz do filme O Invasor, p. 37 –
<http://www.estacaovirtual.com/arquivo/mat2002/invasor.jpg> - Acesso em: 1º/01/2007
Capa do livro O Invasor, p. 37 –
http://br.geocities.com/marcal_aquino/NOTICIAS/img/invasorLIVRO2.jpg - Acesso em:
1º/01/2007
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