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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública - Mestrado
LUCIANA SOARES DE MEDEIROS
AS LEIS DO DESEJO
- Bioética e Direito de Acesso ao Serviço de Reprodução
Humana Assistida -
Florianópolis
2007
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LUCIANA SOARES DE MEDEIROS
AS LEIS DO DESEJO
- Bioética e Direito de Acesso ao Serviço de Reprodução Humana Assistida -
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em
Saúde Pública, Programa de Pós-Graduação em
Saúde Pública, Centro de Ciências da Saúde,
Universidade Federal de Santa Catarina, como
requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.
Área de Concentração: Ciências Humanas e Políticas
Públicas em Saúde
Linha de pesquisa: Bioética
Orientadora: Profª Drª Marta Inez Machado Verdi
Florianópolis
2007
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MEDEIROS, Luciana S.
As leis do desejo – Bioética e Direito de Acesso ao Serviço de Reprodução Humana
Assistida / Luciana Soares de Medeiros. Florianópolis: UFSC, 2007.
170 f.: il; 31 cm.
Orientadora: Profª Drª Marta Inez Machado Verdi
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública
da Universidade Federal de Santa Catarina – PPGSP-UFSC – Área de Concentração: Ciências
Humanas e Políticas Públicas em Saúde.
Direito de Acesso, Reprodução Humana Assistida, Bioética, Bioética Cotidiana
AGRADECIMENTOS
Aos que me ajudaram;
Aos que apenas o tentaram;
Aos que tentaram atrapalhar;
Aos que lograram fazê-lo;
Aos que sumiram diante dos olhos, mas permanecem intactos na lembrança;
Aos que ficaram por perto, mas distantes em vínculo e entrega;
À minha constante perplexidade e inquietação, motores do meu estímulo diante da
vida e suas questões;
À minha impotência diante de como essa mesma vida se apresenta: por vezes doce e
delicada, por vezes cruel e impiedosa;
À minha consciência de não precisar sempre estar no controle;
À minha necessidade de manter-me em um mínimo de autocontrole;
À continuidade descontínua dos meus pensamentos e atos;
Às minhas inerentes contradições, que me fazem ser quem eu sou, que me tornam
esse ser tão complexo e único, que por mais que todas estas características me
componham, não podem absolutamente definir quem sou eu em Essência.
À tudo o que já vivi;
À tudo o que deixei de viver;
À tudo o que ainda espero, acredito e desejo viver;
Meu mais que sincero “Muito Obrigado!”, por formarem o contexto onde insiro a
minha existência.
“A vida que me ensinaram
Como uma vida normal
Tinha trabalho, dinheiro, família, filhos e tal
Era tudo tão perfeito
Se tudo fosse só isso
Mas isso é menos do que tudo
É menos do que eu preciso”
(Educação Sentimental II – Kid Abelha)
RESUMO
Este estudo teve como objetivo avaliar como se configura o Direito de Acesso ao Serviço de
Reprodução Humana Assistida (RHA), em especial no Sistema Único de Saúde (SUS). O
estudo foi desenvolvido através de pesquisa documental, em fontes oficiais do Governo
Federal em suas vias impressa e eletrônica. A pesquisa selecionou os documentos que
compunham o que havia no Governo sobre RHA, tendo sido encontrados 15 (quinze) Projetos
de Lei, 2 (duas) Resoluções, 1 (uma) Portaria, 1 (uma) Lei e 1 (uma) Nota Técnica. Estes
documentos são definidos como documentos oficiais e publicações parlamentares. A partir
dos critérios da Análise de Conteúdo foi realizada a seleção - dentro deste material -dos que
iriam compor o “corpus” de análise, restando então 1 (uma) Portaria e 6 (seis) Projetos de Lei.
Estes foram separados em três áreas temáticas: Acesso a quê?; Acesso para quem?; e
Condições e critérios de acesso. Estes grandes temas foram detalhados em categorias
específicas, reveladoras de núcleos de sentido, que foram explorados ao longo da pesquisa.
Esta revelou que o direito de acesso presente nos documentos oficiais é excludente, restritivo,
e moralmente induzido por uma categoria profissional e suas arbitrariedades. A articulação
dos sentidos revelados no corpus analisado com os referenciais da Bioética Cotidiana foi de
extrema relevância para trabalharmos as visões de família que se fazem legitimadas através
dessas propostas de regulamentação, assim como as questões éticas intrínsecas à formulação
dos próprios textos destas. Faz-se necessário articular a formulação destas propostas de
regulamentação do serviço não somente à visão médica já fortemente arraigada, mas também
às outras áreas do conhecimento que já possuem material de discussão abrangente sobre a
temática, que entretanto parece ser ignorado nos textos analisados. As visões advindas destes
textos nos remetem à noção de família tradicional, nuclear, com forte acento patriarcal,
modelo este já não mais hegemônico em nossa sociedade, e social e juridicamente
ultrapassado por novas concepções familiares que também reivindicam visibilidade e
legitimidade pelo Estado. O estudo pretende ser mais uma possibilidade de reflexão sobre as
questões que envolvem o direito de acesso ao serviço de RHA, partindo do olhar bioético, que
mostra-se adequado a uma discussão dentro da Saúde Pública, por partilhar com ela a
possibilidade de olhar multi e interdisciplinar.
Palavras-chave: Direito de acesso aos serviços de saúde; Reprodução Humana Assistida, SUS,
Bioética Cotidiana, Saúde Pública.
ABSTRACT
The objective of this study is to evaluate how is configured the Right of Access to the
Assisted Human Reproduction Service (AHRS), especially inside the Single Health System.
The study was developed through documentary research in official sources of the Brazilian
Federal Government, in its printed and electronic ways. The research selected the
governmental documents about AHRS: 15 (fifteen) Projects of Law, 2 (two) Resolutions, 1
(one) Government directive, 1 (one) Law and 1 (one) Technique Note. These documents are
defined as official documents and parliamentary publications. From the criteria of the
Analysis of Content were chosen the documents to compose the “corpus” of analysis,
remaining then 1 (one) Government directive and 6 (six) Projects of Law. These had been
separated in three thematic areas: Access to what?; Access to whom?; and Conditions and
criteria of access. These great subjects had been detailed in specific categories, revealing
nucleus of meaning that had been explored throughout the research. This revealed that the
right of access in official documents is exclusive, restrictive, and morally induced by a
professional category and its iniquities. The joint of these nucleus of meaning with the
Everyday Bioethics was of extreme relevance to deal with the different kinds of family that
are being legitimated through these proposals of regulation, as well as the ethical questions
intrinsic to the formulation of these texts. It is necessary to articulate the formulation of these
proposals of regulation of the service not only to the medical vision already strong, but also
the other areas of knowledge that have already enough material about this theme, that
however seem to be ignored in the analyzed texts. These texts remit us to the idea of
traditional, nuclear family, with strong patriarchal structure, model not anymore hegemonic in
our society, and social and legally surpassed by new familiar conceptions that also demand
visibility and legitimacy from the State. The study intends to be one more possibility of
reflection about the questions that involve the right of access to the AHRS from the Everyday
Bioethics issues which seem to be adequate to a discussion inside the Public Health area, for
sharing with it the possibility of a multi and interdisciplinary look.
Keywords: Right of Access to the Health Service; Assisted Human Reproduction, SUS,
Everyday Bioethics, Public Health.
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE TABELAS
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
1. INTRODUÇÃO................................................................................................................14
2. REVISAO DA LITERATURA........................................................................................20
2.1 Família e Reprodução Humana Assistida............................................................20
2.1.1 Família: conceito e classificações...................................................................20
2.1.2 Questões da contemporaneidade e suas raízes históricas...............................24
2.2 Reprodução Humana Assistida e Direito de Acesso à Saúde .............................31
2.2.1 Terminologia empregada e Técnicas de RHA.................................................33
2.2.1 Acesso e serviço público de saúde no Brasil...................................................36
2.2.3 Tecnologia Reprodutiva como Direito Humano Fundamental.......................38
2.3 Bioética, Direitos Humanos e RHA.......................................................................41
3. PERCURSO METODOLÓGICO ...................................................................................52
3.1 Tipo de estudo.........................................................................................................52
3.2 Coleta de dados......................................................................................................53
3.3 Análise dos dados...................................................................................................55
3.3.1 Pré-análise ...................................................................................................56
3.3.2 Categorização dos dados .............................................................................58
3.3.2.1 “ACESSO A QUÊ?” .............................................................................60
3.3.2.2 “ACESSO PARA QUEM?”...................................................................60
3.3.2.3 “CONDIÇÕES E CRITÉRIOS DE ACESSO”......................................61
3.4 Considerações éticas em Pesquisa.........................................................................64
4. O OLHAR BIOÉTICO SOBRE A CONFIGURAÇÃO DO DIREITO DE ACESSO....66
4.1 Direito de Acesso.....................................................................................................66
4.1.1.Tema 1: Acesso a quê?....................................................................................66
4.1.2 Tema 2: Acesso para quem?............................................................................68
4.1.3 Tema 3: Condições e critérios de acesso ........................................................70
4.2 Complexidade da discussão – a imbricação de temas.........................................74
4.2.1 Gênese dos documentos analisados – ética médica como lei federal(!?)....75
4.2.2 Indiscriminação de termos abafando sentidos.............................................79
4.2.3 Medicalização definindo o direito de acesso ...............................................82
4.2.4 Controle de corpos e intervenção na mulher ...............................................85
4.2.5 A família revelada pelo texto........................................................................88
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................91
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................95
APÊNDICE - ARTIGO: “Direito de acesso ao serviço de Reprodução Humana Assistida –
Discussões bioéticas”
ANEXOS
A – PRT/MS 426/05
B – PL 2.855/97
C – PL 4.665/01
D – PL 1.135/03
E – PL 1.184/03
F – PL 2.061/03
G – PL 5.624/05
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 – “Corpus” de análise ........................................................................................57
FIGURA 2 - “Corpus”: Temas, Categorias e Subcategorias................................................59
FIGURA 3 – Núcleos de Sentido ........................................................................................62
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 –
Algumas unidades de sentido nos documentos que compõem o “corpus’ de análise..........63
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AMM – Associação Médica Mundial
CEP - Comitê de Ética em Pesquisa
CIOMS - Conselho para as Organizações Internacionais de Ciências Médicas
CNS - Conselho Nacional de Saúde – CNS
CONEP - Comissão Nacional de Ética em Pesquisa
FIV – Fertilização In vitro
IA – Inseminação Artificial
OMS – Organização Mundial de Saúde
ONU – Organização das Nações Unidas
PAISM – Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher
PL – Projeto de Lei
PRT – Portaria
RHA – Reprodução Humana Assistida
SUS – Sistema Único de Saúde
TR – Tecnologia Reprodutiva
14
1. INTRODUÇÃO
No ano de 2002, a televisão brasileira exibia uma telenovela
1
cujo tema central era a
clonagem de seres humanos. As tecnologias reprodutivas chegam ali ao auge de sua
exposição na vida da população brasileira. Embora a reprodução humana já tenha sido
exposta anos antes ao abordar a barriga de aluguel, somente quando o tema clonagem vem à
tona é que de fato há um choque e provocam-se discussões sobre a ética envolvida no
procedimento. Realidade e ficção se misturam, dando ao público leigo informações
controversas (GROSSI, PORTO e TAMANINI, 2003, p. 53), e explodindo na mídia notas de
pesquisadores tentando assumir a “paternidade” da suposta nova conquista científica.
Ficcional ou não, a questão da clonagem humana é a ponta de uma área de desenvolvimento
científico não tão nova quanto se pode pensar: a área das técnicas de Reprodução Humana
Assistida (RHA).
Datam do século XVIII os primeiros relatos de experimentos científicos envolvendo
o contato de fluido seminal e óvulo, e as experiências de inseminação artificial se seguem por
todo o século XIX, com casos, por exemplo, de inserção de esperma na vagina ou no útero, ou
de inseminação bem sucedida em esposa cujo marido possuía baixa mobilidade dos
espermatozóides (DOSSIÊ..., 2003, p.7). O grande “boom” no desenvolvimento da genética
ocorre com a descoberta do DNA, e o complexo envolvimento entre reprodução e genética é
ampliado (BERLINGUER, 2004, p. 13; GROSSI, PORTO e TAMANINI, 2003, p.19),
suscitando discussões nos campos médico e legal, considerando que além de representar a
inclusão de mais uma técnica médica, as tecnologias reprodutivas estabelecem um momento
de ruptura importante para a instituição “família”.
Ainda no campo da ciência, os experimentos com seres humanos continuam sendo
avançados ao longo do século XX e o desenvolvimento dos estudos chega, por volta dos anos
50, às técnicas de fertilização in vitro, ou seja, a fecundação fora do corpo, com posterior
inserção de um embrião no útero da futura gestante. As tentativas em humanos são relatadas
oficialmente a partir dos anos 70 (DOSSIÊ..., 2003, p.8), e o primeiro caso de gestação pós
fertilização in vitro bem sucedido e conhecido mundialmente vem da Inglaterra em 1978, com
o nascimento de Louise Brown.
1
Entre 2001 e 2002 a Rede Globo de Televisão exibia em horário “nobre” (21h) a telenovela O Clone, de autoria de Glória Peres. Anos
antes (1990/91), outra obra da mesma autora foi exibida pela emissora às 18h: a telenovela Barriga de aluguel, que concentrou suas
discussões públicas sobre quem devia ficar legalmente como o bebê gerado. Em O Clone, são retomadas as discussões acerca das relações
entre pesquisador e usuário, dando ênfase nas questões éticas presentes. A discussão proposta pela novelista aproveitava o momento mundial
de suposta revelação do nascimento do primeiro clone humano, fato até hoje ainda não confirmado.
15
Contudo, o avanço das técnicas não se deu dentro de considerações éticas já vigentes
no campo científico em todo o mundo. Os primeiros experimentos relatados de fertilização in
vitro foram feitos sem consentimento de comitês de ética dos governos onde os estudos são
realizados, acarretando ônus para as participantes dos mesmos (BERLINGUER, 2004, p.24;
DOSSIÊ..., 2003, p.18; GROSSI, PORTO e TAMANINI, 2003, p.35). O desacordo com a
ética em pesquisa também é presente nos estudos realizados no Brasil, chegando à mídia em
1982 após a morte de uma mulher em São Paulo durante um treinamento de fertilização in
vitro realizado por uma equipe médica australiana (DOSSIÊ..., 2003, p.9). Os estudos
prosseguem até os dias de hoje, os avanços são cada vez maiores no campo das técnicas de
RHA, entretanto, estas chegam a ser disponibilizadas à população sem as devidas precauções
na realização de seus experimentos, além de não abordarem os riscos que oferecem aos
usuários (BERLINGUER, 2004, p.34).
Paradoxalmente, embora as descobertas científicas confirmem a necessidade do
contato do óvulo com o fluido seminal para que seja possível a fecundação em mamíferos, por
outro lado permitem que a reprodução humana seja feita independentemente do ato sexual
(CARVALHO, 1997, p.32; GROSSI, PORTO e TAMANINI, 2003, p.22), possibilitando,
assim, a emergência de novas configurações familiares, bastante visíveis na
contemporaneidade.
Neste contexto, os avanços no campo de estudos sobre a reprodução humana seguem
as reivindicações sociais por rupturas no modelo hegemônico de formação de família
(SEGALEN, 1981, p.123-125, 127, 132-137). A destituição do vínculo entre reprodução e ato
sexual acompanha as idéias de direitos de contracepção, escolhas livres de matrimônios e
momentos para procriar ou não, assim como de rompimento do vínculo conjugal (LOYOLA,
2003, p.877, 879). A possibilidade de formação de famílias com filhos fruto de processo de
RHA se insere neste rol de rupturas do modelo de família tradicional (NEDER, 1994, p.27),
não sendo mais “vista como organizada por normas ‘dadas’, mas, sim, fruto de contínuas
negociações e acordos entre seus membros e, nesse sentido, sua duração no tempo depende da
duração dos acordos” (CARVALHO, 1997, p. 37).
Com a possibilidade de novas formações familiares, estas passam a exigir
legitimidade pelo Estado, o que nos leva à necessidade de verificação do aparato legal que
serve de suporte para estas novas famílias, em especial as advindas com as técnicas de RHA.
No Brasil, o primeiro caso bem sucedido é exposto na mídia em 1984, e de lá para cá pouco
se avançou no campo de dispositivos de regulação dos procedimentos técnicos. Somente em
1992 o Conselho Federal de Medicina (CFM) adota como norma uma resolução (Resolução
16
nº 1.358/92) visando estruturar e uniformizar os procedimentos de RHA, e embora neste
momento o Sistema Único de Saúde (SUS) já tenha sido implantado (a partir de 1990 com as
Leis 8.080 e 8.142), ainda não se fala em inserção das técnicas nos serviços públicos
disponíveis à população. Em 1993 surge a primeira proposta de legislação, um tímido esforço
sem reflexão mais profunda sobre o que propõe, apenas reproduzindo o texto e visando
transformar em lei a resolução do CFM. Este projeto, assim como outros, já está arquivado,
mas boa parte dos que foram surgindo nos últimos 13 anos ainda encontra-se em tramitação.
Deste cenário, surge a inquietação que move este estudo: perceber como se
configura o aparato regulador das técnicas de RHA no serviço público de saúde, e o que se
revela através das características expostas sobre o direito de acesso à este serviço. A
inquietação inicial nos leva à pergunta que norteia a pesquisa: “Quais as implicações éticas
relativas ao direito de acesso ao serviço de RHA reveladas a partir da configuração deste
direito em documentos oficiais e publicações parlamentares?”. Analisar estas implicações
éticas a partir do referencial da Bioética Cotidiana é o objetivo deste estudo.
Talvez possamos com isso pensar o que estamos legitimando através desta
“permissão” para acessar o serviço, que tipo de família está sendo reforçada através destas
propostas, e que relações se estabelecem entre os sujeitos, o Estado e a Medicina. Como
reforça Jurandir Freire Costa no prefácio do livro de Catonné (2001, p.7):
o limite do permitido e do proibido não está inscrito em lugar nenhum, de
maneira definitiva. [...] Tudo está permanentemente sujeito a revisão, pois
cada sociedade inventa a sexualidade que pode inventar. [...] Como todo
costume sexual é historicamente determinado, não há como dizer, de uma
vez por todas, o que é certo ou errado.
Assim, sendo inventada e reinventada por cada sociedade ao longo do tempo, a
sexualidade - e tudo o que a circunda - passa a ser regida por leis. Sejam estas, por exemplo,
os costumes que definem o “certo” e “errado” – e se diferenciam de acordo com o grupo
analisado - ou leis escritas, do campo do direito, algo mais formal e regulador direto de toda
uma população, há alguma instância reguladora dos direitos e deveres das pessoas,
interferindo direta ou indiretamente nas possibilidades de realização de seus desejos.
Este estudo, então, pretende desde a sua introdução permitir ao leitor uma visão da
amplitude do tema proposto. As dificuldades inerentes a todo trabalho de pesquisa podem ser
evidenciadas desde o início, tendo-se em conta a abrangência de focos que a temática
17
abordada permite seguir. O texto introdutório aqui destacado serve como abertura para apenas
uma das possíveis alternativas de trabalho com o tema e os documentos analisados, sendo
então vital conhecer a estrutura que compõe este estudo, de forma a tornar o mais explícito
quanto seja possível o que se deseja abordar e discutir durante todo texto subseqüente.
O capítulo 2 traz toda a revisão de literatura necessária para compreender a
discussão trazida posteriormente. Se primeiro subtítulo é “Família e Reprodução Humana
Assistida” detalha as diferentes configurações possíveis para o grupo familiar, fazendo um
breve discurso sobre a história da família na sociedade ocidental, e mais especificamente na
sociedade brasileira. O capítulo segue destacando a inserção de diferentes instâncias de
regulação na esfera familiar, ao longo da história, como a Igreja, o Estado e a Ciência. A
partir dessa discussão, o texto entra na temática da Reprodução Humana Assistida e o
direito de acesso à saúde, descrevendo suas técnicas, sua atual condição no ambiente jurídico
brasileiro, e sua vinculação com o Planejamento Familiar, de onde o texto se ancora para a
reflexão sobre o acesso à Reprodução Humana Assistida como um direito humano
fundamental. Baseado neste ponto, o capítulo termina com o subtítulo Bioética, Direitos
humanos e RHA, que descreve o referencial teórico adotado para análise dos documentos
presentes neste trabalho, e para a compreensão deste referencial, o capitulo faz uma definição
breve de bioética, detalhando as questões de direitos humanos, o nascimento do termo, e os
conflitos éticos presentes em experimentos envolvendo seres humanos, tanto num contexto
mais abrangente, como no específico sobre RHA. Junto à bioética de uma forma geral, é
destacada a linha base dentro dela, que serve de suporte para as discussões posteriores, sendo
esta a Bioética Cotidiana, definida suas noções, sua visão de infertilidade e seu
posicionamento quanto ao papel do Estado na questão de RHA.
Assim, o capítulo 3, que segue esta revisão, intitulado Percurso Metodológico,
detalha o passo a passo para a realização deste estudo desde sua fase mais primária, a de
definição e descrição do tipo de estudo, da técnica de coleta do material, o tipo de material
coletado, e a técnica para tratamento deste material. O capítulo segue detalhando as fases de
tratamento destes dados coletados, de acordo com a Análise de Conteúdo, descrevendo as
etapas de pré-análise, leitura flutuante, constituição do “corpus” e categorização do material
coletado. Definidas as categorias de análise, são detalhadas as formas que os temas se
constituíram, para poderem ser visualizadas as categorias trabalhadas. Estas foram analisadas
pelo referencial teórico da Bioética Cotidiana, trabalho este que foi separado e detalhado no
último capítulo desta dissertação. O capítulo de metodologia tem seu término com a descrição
dos procedimentos éticos envolvidos na presente obra.
18
O capítulo final trata dos documentos analisados, neste momento não apenas
pontuando a composição dos temas, mas detalhando-os e ao mesmo tempo já introduzindo
alguns questionamentos, de forma a situar o leitor na discussão propriamente dita, que segue
no mesmo capítulo. Na seqüência de detalhamento dos temas dentro do corpus de análise, é
feita uma discussão por grandes núcleos de sentido evidenciados ao longo da análise, sendo
estes já articulados com referenciais da bioética cotidiana, assim como de outras vertentes de
estudo dentro da bioética que se mostram profícuas para o embasamento do estudo. Neste
sentido, a Bioética é direcionada para tratar questões cotidianas, mas não é entendida como
uma via segmentada de estudo, podendo ser perfeitamente articuladas às discussões presentes
na Bioética Cotidiana, visões da Bioética Feminista, por exemplo.
Dentro deste prisma, a discussão perfaz o caminho desde a gênese dos documentos
coletados, passando pelo uso da terminologia empregada nestes documentos como revelador
de sentidos presentes nas questões de medicalização do direito de acesso à RHA, que por sua
vez reforça o controle dos corpos objetos de intervenção, e traz para a discussão a
reformulação dos papéis sociais de homem e mulher, assim como do próprio conceito de
família.
O estudo é finalizado ponderando as considerações realizadas em seu corpo, e
vislumbrando possibilidades de articulação do olhar bioético com as temáticas já abordadas, e
em especial à questão da Saúde Pública, no tocante ao direito de acesso ao serviço de RHA
especificamente no SUS. Mais que buscar respostas fechadas para os pontos aqui ressaltados,
o trabalho tem por objetivo ampliar as discussões já iniciadas por diferentes áreas do saber,
introduzindo mais questionamentos dentro do possível e já presente nesta temática.
20
2. REVISAO DA LITERATURA
“Vivemos num período de transição onde as quebras de valores tradicionais provocam uma organização, nos
meios micro e macro socioculturais. As transições no meio micro-social referem-se à família: tarefas, valores e
tradições que a ela se vinculam; ao macro-social seriam as questões éticas, políticas e morais da sociedade.
Assim, instaura -se uma busca na redefinição dos papéis homem/mulher na sociedade (macro) e nos papéis
pai/mãe na família (micro), acompanhada de incertezas, inquietações, angústias, etc., que geram conflitos entre:
passado/presente, certo/incerto, pois a familiaridade com os valores antigos/passados nos coloca numa posição
confortável de ‘previsibilidade’ que por sua vez, é oposta ao novo imprevisível”
(Alvim)
2.1 Família e Reprodução Humana Assistida
2.1.1 Família: conceito e classificações
Família é um tema que por si só já causa algum tipo de inquietação entre quem se
propõe a compreendê-la, seja pelas complexas relações que se estabelecem em seu interior,
seja pela própria reformulação que seu conceito vem sofrendo ao longo do tempo, em especial
no último século.
Falar de família esteja ela em qualquer parte do mundo, sem ao menos tentar
compreender sua constituição, sua sustentação histórica, e suas alterações de acordo com os
interesses das sociedades de cada época, a tornam uma abstração, sendo influenciada sua
avaliação em função de arbitrariedades conduzidas por nossos valores morais.
Algumas rupturas na estrutura familiar vão sendo feitas ao longo do século XX,
iniciando-se, por exemplo, com as possibilidades de escolhas livres de parceiros, passando
pela legalização do divórcio, e mais recentemente pelo reconhecimento das uniões estáveis.
Em meio a estas rupturas vão surgindo novas formas de se conceber a família, o que leva
também a uma longa e árdua discussão sobre ela estar ou não em “crise”.
Tentar explicar o que é família é, para alguns autores, tentar definir o óbvio
(PRADO, 1985, p.7). Mas este óbvio não é o mesmo para todos, e diante das inúmeras
possibilidades de configuração surge a necessidade de, antes mesmo de falarmos em Família,
definirmos de que família nos referimos.
21
A noção comum de família, encontrada até mesmo nos dicionários, a indica como a
união de pessoas aparentadas, de mesmo sangue ou não (como em casos de adoção, que em
geral vivem na mesma casa, tendo sua configuração básica definida por “Pai-Mãe-Filhos”.
Esta configuração de família descreve a chamada família NUCLEAR, ou tradicional, de
acordo com a literatura. Contudo, esta não é a única possibilidade de classificação que a idéia
do que seja família nos permite realizar.
Ademais da família nuclear, podemos classificá-la também - como propõe Danda
Prado (1985) – como conjugal, extensa, natural, de origem ou reprodução. A família
CONJUGAL é composta apenas por um casal. No texto da referida autora não há aparente
restrição a casais heterossexuais apenas, o que nos permite vislumbrar esta categoria como
passível de diferentes formações, sejam elas: um casal formado por um homem e uma mulher;
casal formado por dois homens; e casal formado por duas mulheres. Estas podem então ser
compreendidas como variações da chamada família conjugal.
A família EXTENSA compõe-se de mais de duas gerações coabitando, o que
corresponderia, por exemplo, à inserção de avós na composição nuclear de família. A família
NATURAL, ou incompleta, é a de base nuclear, porém faltando ou o pai ou a mãe. A família
de ORIGEM é a família de onde os “pais” (na formação nuclear) vieram, ou seja: pais, mãe e
irmãos do “pai”, e pai, mãe e irmãos da “mãe”. A família de REPRODUÇÃO é a formada por
um dois indivíduos adultos, e os filhos de um deles.
A classificação anteriormente detalhada não é exclusiva da autora supracitada.
Outras classificações são encontradas na literatura sobre família, algumas apenas trocando a
denominação exposta por Prado, como no caso das famílias naturais, também chamadas de
monoparentais; ou incorporando algum novo elemento à alguma classificação feita por ela,
como no caso das famílias de reprodução, também chamadas de “recasamentos”, sendo estes
diferenciados daquelas pela existência ou não de filhos das relações anteriores.
Nitschke (1999), por exemplo, traz para debate uma rigorosa definição que
estabelece fatores para classificação da família em diferentes tipos. Estes fatores seriam: legal,
biológico, social e psicológico. O fator legal limita a família aos vínculos de sangue, adoção,
tutela ou casamento. O fator biológico a restringe à rede familiar biológica e à família de
procriação. O fator social permite entender como família qualquer grupo de pessoas que
vivam juntas, como moradores de pensionatos, ou conventos, por exemplo. O fator
psicológico permite entender como família qualquer grupo com laços emocionais muito
fortes, que se auto defina como uma família, como por exemplo, amigos.
22
Fukui (1998, p. 15-17) traz a possibilidade de pensar a família a partir de três
ângulos diferentes: condições materiais de vida, instituição e valor. A família pensada sob o
ângulo das condições de vida pode ser vista como uma unidade doméstica, como no passado,
onde sua ocupação primordial era a manutenção da vida; ou como uma unidade de renda e
consumo, onde o trabalho de cada indivíduo é a base para sua manutenção, que seria a
característica da família na sociedade atual.
Pensada enquanto instituição, a família é tida como um conjunto de regras e normas,
percebidas pelos costumes de uma sociedade, sendo historicamente constituída. Pensada
como um conjunto de valores, a família possui imagens e representações de como é e deve
ser, dentro de cada sociedade. A autora destaca que na sociedade ocidental, “como ser uma
família” foi tarefa em princípio da Igreja, depois do Estado, e também da Ciência. Estas
instâncias regulam os comportamentos, que são modificados ao longo da história.
Fukui (1998, p. 17) ainda postula a possibilidade de divisão de grupos familiares
segundo os parâmetros de composição e ciclo de vida. A composição seria definida tendo
como critério a família como unidade doméstica, e nesta categoria estariam as famílias
biparentais, monoparentais, ampliadas, entre outras. O ciclo de vida usaria a idade dos
componentes da família para subdividi-la, como por exemplo, unidades familiares com filhos
pequenos, ou com filhos adolescentes, entre outros.
Dessa forma, percebemos que vão surgindo
2
classificações diversas, como as já
citadas famílias monoparentais (pai e filhos, ou mãe e filhos), as famílias extensas (mais de
duas gerações coabitando), os recasamentos (com ou sem filhos destas uniões), e também os
casais sem filhos, as uniões homossexuais, os filhos concebidos por técnicas médicas de
fertilização ou por adoção. Enfim, diversas configurações que extrapolam o conceito de
família tradicional.
Os filhos, que em determinado momento histórico passaram a ser o principal
objetivo para a constituição da família, hoje já não são um motivo suficiente em si mesmo
para garantir a existência (e manutenção) desta. A opção por constituir uma família sem filhos
[...] tem sido apontada como uma marca de contextos igualitários modernos
(ou pós-modernos), transformando a esfera da reprodução também em uma
questão de "escolha". Se entre os casais heterossexuais é presumido que
tenham filhos, a "opção" permite que não os tenham (TARNOVSKI, 2004).
2
Não quero com esta afirmação supor que nos períodos históricos anteriores estas possibilidades de formação familiar fossem inexistentes,
mas sim ponderar que em dados momentos históricos certas formações familiares são hegemônicas, não dando espaço para a visibilidade de
outras. Atualmente, entretanto, não se pode deixar de perceber as novas formações familiares, tendo-se em vista a sua multiplicidade e a
visibilidade que foram reivindicando (e conseguindo) ao longo dos últimos anos.
23
O sistema familiar mostra-se, assim, distante do monolitismo pregado socialmente
como padrão, evidenciando diversas formas de relações possíveis entre as gerações e os sexos
(MITCHELL, 1984, p.272). As possibilidades de concepção do que seja família são
ampliadas, e todo este processo anteriormente comentado não se dá fora do contexto das
mudanças sóciopolíticas que vêm ocorrendo em uma maior escala, em nível mundial.
Entretanto, não se pode deixar de destacar que é marcante a presença do modelo nuclear de
família como o modelo vigente, privilegiado e “aceitável” dentro de nossa sociedade ocidental
(BRAGA e AMAZONAS, 2005, p.11), ainda que todas as demais possibilidades de
reconfiguração do grupo familiar, como algumas anteriormente expostas, estejam presentes
concomitantemente ao modelo nuclear.
Por outro lado, estas diferentes formas de existir vão também exigindo
reconhecimento legal, fazendo com que o aparelho jurídico se reavalie, pois “sua existência
modifica o modelo de família conjugal presente na lei” (FUKUI, 1998, p.18).
Toda sociedade requer e requererá um certo grau de reconhecimento social
institucionalizado das relações interpessoais. Porém, não há nenhuma razão
pela qual deva existir uma única forma de experiência legitima e uma
multidão de experiências não legitimadas (MITCHELL, 1984, p. 273).
Neste sentido, embora tenha adquirido uma relativa autonomia sobre as suas
possibilidades de configuração, a família continua sendo a menor célula social, em termos de
organização, e é através dela que “o Estado pode exercer um controle sobre os indivíduos,
impondo-lhes diferentes responsabilidades, conforme cada momento histórico” (PRADO,
1985, p.23). Para melhor compreender essa inserção do Estado nas vidas familiares, faremos
um breve retrospecto da família em nossa sociedade.
24
2.1.2 Questões da contemporaneidade e suas raízes históricas
A estrutura social em que a família se insere atinge e define suas características e
também suas modificações. “Buscar entender o significado de família implica admitir que esta
sofre transformações e adaptações importantes em função da época, da cultura, das condições
sociais, das crenças e valores” (CIAMPONE, 1998, p. 25).
A sociedade brasileira em seu período colonial possuía uma estrutura patriarcal.
Nela, família era algo vinculado e somente constituído através do casamento, que limitava-se
a um ato estritamente político, onde os sistemas de aliança garantiam a manutenção e
transmissão do patrimônio. Não havia, neste contexto, espaço para o afeto entre os cônjuges,
menos ainda para a escolha livre de seu parceiro. A reconstrução histórica da família na
sociedade brasileira durante o período colonial feita por Jurandir F. Costa no livro “Ordem
Médica e Norma Familiar” (1999), por exemplo, nos remete a uma contextualização
importante para a compreensão de como ela se estabelece tal como a conhecemos nos dias de
hoje.
Naquele momento, estabelecem-se as junções necessárias entre Estado, Medicina e
Família, e pode-se perceber como a Medicina e seu saber se estruturam como necessários e
promotores de mudanças sociais, a partir da rearticulação de todo o ambiente familiar da
época. A análise feita no decorrer da obra nos permite perceber as relações de poder entre
Medicina e Estado, de forma que denota-se que o poder adquirido pelo saber médico ao longo
do tempo serve não apenas para legitimá-lo enquanto saber, enquanto determinante de
práticas e posturas sociais, mas também para servir aos interesses do Estado. Este pode ser
percebido, por vezes, como servindo de pano de fundo para as relações entre Medicina e
Família.
As ideologias que eclodiam na Europa em fins de século XIX clamando uma maior
libertação do ser humano, atingem a sociedade brasileira no início do século XX (D’INCAO,
1989, p.89), e a partir daí começam a surgir alterações importantes no “Ser” família. Essas
mudanças na visão de homem e de mundo fazem com que a família enquanto instituição
procure reestruturar-se, adequando novos e velhos costumes e valores às alterações na
estrutura social.
O “amor” entra em cena, trazendo os desejos dos indivíduos ao primeiro plano das
relações e vinculando-se à idéia de casamento. Neste momento, este “amor” é dessexualizado
25
(não se fixa ao “amor-livre”, à uma liberação sexual) e direcionado para a procriação. A
família passa então a ser aquela constituída de seres que se amam e desejam viver juntos, com
a finalidade de procriar.
O vínculo familiar, através do laço conjugal, passou a não mais servir para,
preponderantemente, evidenciar ascendências e garantir linhagens e
transmissão patrimonial, mas sim, a servir como modelo aos cuidados sobre
a criança, a fim de garantir o indivíduo saudável, adulto (BRAGA e
AMAZONAS, 2005, p. 12).
O “amor” passa a direcionar a criação dos filhos, no sentido de ser ele
responsabilizado por sustentar ideais de submissão feminina e reclusão ao lar para criação da
prole, assim como de naturalizar o suposto vínculo mãe-filho expresso no ideal de “amor
materno”, onde a mãe deve anular-se em prol dos filhos e, conseqüentemente, da estrutura
familiar.
A família então recebe o “amor” como seu novo componente e, a partir desta sua
nova configuração, reconfiguram-se também os papéis sociais de homem e mulher. Entretanto
ressaltamos que ainda assim muito não se modificou na estrutura familiar valorizada e
difundida pela Igreja: ela se mantinha com uma base conjugal, indissolúvel e monogâmica
(FUKUI, 1998, p.18). Até este momento pode-se perceber a influência da visão cristã de
composição e estrutura familiar. Mesmo sofrendo alterações dentro desta estrutura, a base
para sua sustentação ainda é a relação Pai-Mãe, com as definições acima pontuadas
(CATONNÉ, 2001, p. 24-25; 44-75).
Aos poucos, vai sendo deixada “de lado” a escolha do parceiro pelas famílias, com o
intuito de aumento e/ou manutenção de patrimônio familiar, sem vinculação afetiva entre os
cônjuges. Mas embora o indivíduo comece a se colocar como autor de suas próprias escolhas
afetivas, estas ainda mantêm estreito laço com a moral cristã, não sendo desvinculadas da
noção de casamento, muito menos da sexualidade procriativa. O diferencial aqui pode ser
percebido por não mais haver a necessidade de se pensar o casamento somente para a
manutenção patrimonial, muito menos por intermédio das famílias de origem dos cônjuges, e
sim pela abertura de uma nova possibilidade, qual seja a de escolha do próprio parceiro.
Esse “amor”, assim, passa a ser vinculado à idéia de casamento, deixando de ser
associado exclusivamente às relações extraconjugais. Este mesmo amor, que sustenta o
casamento e redireciona os papéis sociais de homem e mulher, trás consigo também o
26
paradoxo de ser algo nascente com a boa convivência entre os cônjuges, o que se “garante”
com a escolha certa do parceiro, atendendo assim – através de escolhas individuais – às
expectativas sociais e familiares (D’INCAO, 1989, p. 90-91).
Nestes contextos anteriormente expostos, as reconstruções da estrutura social
influenciando na reconfiguração da família contam também com a interferência direta ou
indireta de saberes e poderes que coexistem neste processo: a Medicina e o Estado. Veremos
como estes por vezes se alternam ou coincidem em suas inserções no âmbito familiar.
A redefinição do papel da mulher, a partir da idéia de “amor” anteriormente
detalhada, pode ser destacada como de suma importância para a inserção de Medicina e
Estado na célula familiar (BRAGA e AMAZONAS, 2005, p. 12). Esta, como diz Prado
(1985, p. 23), “é não só um tecido fundamental de relações mas também um conjunto de
papéis socialmente definidos”. Cabe à mulher, dentro desta célula familiar, o cuidado com a
prole, e a dedicação máxima à manutenção desta estrutura familiar “estável”. Esta visão
perdura mesmo após o período de Proclamação da República (1889), e com a influência
destas novas visões européias de homem e mundo, anteriormente comentadas, é reforçada a
posição social da mulher como suporte familiar. Então a mulher da nova República não seria
mais a dócil sinhazinha, mas se configuraria sim como uma mulher
educada para desempenhar o papel de mãe[...] e de suporte do homem para
que este pudesse enfrentar a labuta do trabalho fora de casa. A ‘boa esposa’
e ‘boa mãe’ deveria ser prendada e deveria ir à escola, aprender a ler e
escrever para bem desempenhar sua missão como educadora (NEDER,
2000, p.31).
Enquanto o Estado define sua expectativa com relação às famílias, ainda sob uma
forte ótica cristã, a medicina se insere determinando as práticas “corretas”, em um primeiro
momento quando a mãe esgotou todas suas possibilidades naturais, e em seguida, pontuando –
e conseqüentemente estabelecendo uma classificação de certo e errado – o que ela deve ou
não fazer em cada situação (COSTA, 1999). O não cumprimento destas normativas fica então
caracterizado como uma não adequação ao papel social de “boa mãe” e “esposa”, sendo a
família caracterizada como “desajustada”, fora do padrão socialmente aceito de família.
O fator social passa aqui a ser dominante sobre o natural (PRADO, 1985, p. 12). O
poder do Estado sobre as famílias, tendo nestes exemplos a Medicina como via, destaca uma
qualidade que permanece: o controle dos corpos. Através do discurso médico passa-se de uma
27
visão anterior de controle de corpos com a idéia de evitar sífilis (SEGALEN, 1981) – trazendo
no seu bojo o discurso moral sobre a prostituição – a um controle de corpos via sexualidade,
AIDS, e definições de cuidados com doentes, velhos, crianças, etc. Amparado pelo discurso
médico, o Estado assume então funções destinadas à família, controlando-a.
Sea cual sea su nivel social, toda familia sufre este encasillamiento; sin
embargo, algunas están más encasilladas que otras, porque no se conforman
a la norma. El estado se arroga entonces el derecho de intervenir en su
funcionamiento. De condicionadas se convierten en controladas (Ibid, p.
236).
Dessa forma, Estado e Medicina vão, ao longo da história, se fundindo à célula
familiar, auxiliando na reconfiguração dos papéis sociais de pai e mãe, homem e mulher. Se
fundem a ponto de tornarem-se determinantes de condutas (a alimentação “correta”, a vida
sexual “sadia”, a criação “educada” dos filhos) e passam a assumir responsabilidades que um
dia já foram exclusivas da família (PRADO, 1985, p.12), como a segurança, os cuidados com
a higiene e saúde, a escolarização, o cuidado com idosos, dentre outros. Por outro lado,
também a vigiam, e a tornam submissa a leis e normas (SEGALEN, 1981, p.235).
A sociedade vai também sofrendo outras rupturas ao longo da história, como as
escolhas livres de parceiros, o divórcio, as uniões estáveis (SEGALEN, 1981; FUKUI, 1998).
A família pode ser percebida nos dias atuais como não mais uma formação tradicional,
estanque, uma idéia única, que desconsidera e desvaloriza as formações diferentes da sua
versão nuclear. Esta não deixa de existir, mas passa a dar espaço e existir em conjunto com
novas configurações, novas formas de se conceber um grupo familiar. Essa coexistência pode
ser talvez devida à introdução na teia social da idéia de reconhecimento do outro como igual,
por ser outro indivíduo, e não mais somente a partir de uma posição hierárquica definida por
algum ponto de diferenciação entre seus membros, como sexo e idade, por exemplo
(FIGUEIRA, 1987, p. 16; COELHO, S., 2000, p. 13). Contudo, estas mudanças não se dão de
forma instantânea, são gradativas, e nem tudo o que parece exigir uma modificação, a tem
necessariamente bem aceita, quando realizada. Como coloca Figueira (1987, p. 12):
Além disso, estamos cada vez mais atentos para o fato de que nem tudo do
nosso passado pode ser deixado completamente para trás, que não podemos
nos tornar completa e simplesmente “modernos” da noite para o dia.
Os carros se modernizam todo ano e os modelos de família, comportamento
e identidade pessoal também. Mas se é possível trocar de carro sem sentir
28
saudade, adaptando-se ao novo modelo sem ter conflitos, o mesmo não é
possível quando são modelos e ideais de família que se sucedem
rapidamente.
Apesar de possuírem um efeito gradativo, como vimos acima, estas rupturas
promovem mudanças nos valores sociais, e conseqüentemente nas representações da família.
Rompem-se os laços que vinculavam Sexualidade-Reprodução, Reprodução-Casamento e
Sexualidade-Casamento. No campo social da constituição do que seja família, são
evidenciadas as “novas” e diversificadas formações familiares, como as descritas no início do
presente capítulo. No campo jurídico, ainda baseado no modelo cristão de família (FUKUI,
1998, p. 18), vão sendo necessárias reavaliações ao se olhar para a instituição familiar após o
rompimento dos laços acima pontuados. A partir destes, respectivamente, pode-se perceber a
autonomia familiar em controlar seu número de componentes e assim planejar-se; deixam de
existir filhos ilegítimos; e passam a ser reconhecidas as uniões consensuais como detentoras
de direitos.
Isto posto, reconhecem-se as múltiplas formas de grupos familiares
evidenciando o quanto segmentos da população brasileira estavam longe de
cumprir o modelo conjugal, Uniões múltiplas, filhos de várias uniões
convivendo na mesma unidade domestica, mães adolescentes, pais casados
que vivem separados são reconhecidos como situações de fato que estão a
exigir políticas específicas de atendimento diferenciado (Ibid, p. 20).
Com esta complexa rede de relações perpassando sua configuração, a família vai
sendo “desestruturada”, no sentido de perder a própria condição de resolver seus conflitos
internos e estabelecer seus valores particulares (COSTA, 1999, p.11).
A interferência do Estado aparenta ser uma “via de mão dupla”, onde ao mesmo
tempo em que este determina o que é certo e errado nas questões internas aos grupos
familiares, estes por sua vez reclamam seus direitos de acesso aos “serviços” propostos pelo
mesmo Estado que os controla, estreitando assim sua própria capacidade de estabelecer regras
internas de convivência e manutenção do grupo (GROSSI, PORTO e TAMANINI, 2003, p.
23). Cria-se uma espécie de “dependência”, como se fosse tarefa do Estado intervir em toda e
qualquer espécie de dificuldade que o grupo familiar possa vir a enfrentar.
Neste aspecto, a autonomia aqui postulada para o planejamento familiar inclui,
quando necessária e solicitada pelos membros da família, a intervenção do Estado para
29
promovê-la. A reprodução
3
, embora venha com o passar dos anos sendo descolada
4
da idéia
de família (BRAGA e AMAZONAS, 2005. p. 12), ainda é uma expectativa social exclusiva
das formações familiares - não sendo estas formações substituídas pelo Estado ou pela
Medicina - mas podendo, por outro lado, ser viabilizada por estas instâncias através da adoção
ou de tecnologias reprodutivas.
A liberdade sexual confere ao indivíduo autonomia sobre suas decisões acerca da
sexualidade, estando esta desvinculada da questão procriativa (BERLINGUER, 2004, p. 17).
A reprodução torna-se aqui, com esta caracterização, um direito a ser adquirido através das
novas tecnologias. Contudo, o Estado estabelece algumas regras para a aquisição deste direito,
conforme discutiremos posteriormente. Antes disso, necessitamos conhecer a visão de família
presente na lei maior que rege nosso Estado: a Constituição Federal.
A leitura do conceito de família nos permite visualizar a existência de um conceito
romano e patriarcal influenciando a construção das legislações modernas. Mais
especificamente na situação brasileira, há uma clara influência da Igreja na formulação do
conceito de família presente nas leis, até ser aprovado o divórcio em 1977 (CARVALHO,
1997, p. 97, 98).
A Constituição brasileira ao longo de sua existência sofreu alterações consideráveis
neste aspecto. Manteve-se durante quase todo o século XX ligada à visão de família nuclear
cristã, monogâmica, indissolúvel, sendo esta a visão de família “legítima” (Ibid, p.98). O
Código Civil a acompanha, e em seu texto deixa explícita a não legitimidade das uniões de
fato, hoje denominadas uniões estáveis, além do reconhecimento do poder paterno como
máximo na unidade familiar. A partir deste quadro, são realizados os trabalhos da Constituinte
de 1988, que como um marco na evolução do conceito de família, incorporam à este a união
estável, e igualam os direitos entre os cônjuges (Ibid, p. 100).
Diferentemente do direito anterior, erigido sobre o casamento e vocacionado
à proteção da entidade familiar dele decorrente, única ungida com a
legitimidade, o direito atual, como assinalado, tem com núcleo valores
constitucionais, cuja realização confere substância à dignidade humana
(LOYOLA, 2005, p. 146)
3
Não me restrinjo aqui aos laços de consangüinidade, mas sim ao desejo de ter filhos, podendo também ser considerada a adoção.
4
Embora não totalmente descolada, mas a liberdade sexual permite uma desvinculação da sexualidade com a procriação, e destas com a
formação de famílias.
30
Pela Constituição Federal de 1988 (Título VII, Cap. VII, art. 226), a família é,
então, definida como a base da sociedade, devendo ser protegida pelo Estado. Para esta
proteção ocorrer, são reconhecidas como unidades familiares: o casamento civil; a união
estável entre o homem e a mulher; e qualquer um dos pais e seus descendentes. Sobre o
planejamento familiar, a Constituição expressa que ele é de livre decisão do casal, e o Estado
deve “propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada
qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas” (Título VII, Cap. VII,
art, 226 § 7º).
O Código Civil, aqui, passa a se configurar como algo em desacordo com os
pressupostos constitucionais, que nesta nova fase incorpora pontos importantes da vida
privada, antes área restrita à regulação pelo Direito Civil. Com essa constitucionalização do
Direito Civil, o Código Civil é revisto e sua nova formulação é aprovada em 2002,
incorporando os dados acima expostos sobre família, já presentes na Constituição Federal de
1988 (LOYOLA, 2005, p. 144).
31
2.2 Reprodução Humana Assistida (RHA) e direito de acesso à saúde
A partir desta disjunção entre Sexualidade e Reprodução, o século XX tem como um
de seus destaques a influência direta da medicina no domínio da sexualidade dos indivíduos.
Esta pode ser evidenciada tanto pelo advento das técnicas de contracepção, que separam o
exercício sexual da procriação; como pelo das novas tecnologias conceptivas, que evidenciam
a desvinculação total entre sexo e reprodução.
Do ponto de vista tecnológico, poderíamos acrescentar ainda a verdadeira
revolução representada pela pílula anticoncepcional e, mais recentemente,
pela inseminação artificial e pela fecundação in vitro, permitindo desvincular
tecnicamente não somente sexualidade (enquanto domínio do prazer) e
reprodução, mas o próprio sexo desse processo (LOYOLA, 2003, p. 878).
Ou, como diz Catonné (2001, p. 20):
A questão da procriação foi inteiramente renovada há pouco tempo.
Certamente, pode-se ter relações sexuais sem visar a procriação, e isto muito
antes da era moderna da contracepção. Hoje, porém, as duas noções estão
completamente separadas. O acesso maciço aos métodos anticoncepcionais
torna possível, para cada um, a livre escolha quando ao nascimento e ao
número de filhos que se deseja. Além disso, e, inversamente, a tecnologia
moderna (dita “procriação médica assistida”) permite procriar sem ato
sexual.
Desvincular Sexo e Reprodução, entretanto, não significa deixar estas categorias
isoladas, mas sim inserir neste contexto as práticas médicas como apoio à reprodução com
total distância do ato sexual (Ibid, p. 86). Aqui, mais uma vez, destaca-se a questão do
controle, visto que passa para as mãos dos detentores do saber médico o controle dos corpos
dessexualizados onde serão realizadas as intervenções necessárias.
O poder médico de decidir sobre a vida e até sobre a morte das pessoas,
denomina-se de medicalização. Vivemos ainda uma época em que a
medicalização da vida e da morte são fatos incontestes.
[...]
A medicalização é um instrumento de poder político, de apresentar e traduzir
velhos conceitos com novas roupagens, pois às vezes reflete todo um
processo de EVITAR a saúde e de PROMOVER a doença (OLIVEIRA, F.,
2002, p. 17).
32
Sexo e reprodução, embora ainda possuam ligação, não são mais compreendidos
como pré-condição para a existência um do outro. Suas relações vão sendo alteradas de
acordo com as alterações ocorridas também na sociedade onde estão inseridos.
As normas que comandam as relações entre sexualidade e reprodução em
seus diferentes momentos estão relacionadas com as formas de organização
social, de divisão sexual do trabalho, com os sistemas de representação e, em
particular, com as relações entre os sexos. Dependendo da configuração
desses aspectos num dado momento, é possível falar mesmo em diferentes
modelos de reprodução (LOYOLA, 2003, p. 877).
Embora façam parte das atualmente denominadas “Novas Tecnologias
Reprodutivas”, as intervenções e estudos acerca da reprodução humana têm seu início em
séculos atrás e acompanham o desenvolvimento científico e tecnológico crescente ao longo da
história. As primeiras experiências relatadas na literatura datam de 1770, na Itália, ao ser
descoberta a necessidade do contato entre óvulo e fluido seminal para realizar-se a
fecundação. Estes primeiros experimentos ainda são realizados apenas em animais, mas já
permitem o conhecimento da necessidade de participação dos dois sexos na procriação de
mamíferos, ainda que o reconhecimento desta postulação como verdade dentro da ciência
ocidental moderna só tenha sido feito em 1906 (DOSSIÊ..., 2003, p. 7; OLIVEIRA, F.,
2004a, p. 51-53).
Os experimentos em humanos são registrados a partir de 1791, na Inglaterra, com o
recurso da Inseminação Artificial, e a primeira gestação resultante das técnicas é registrada
como de 1799. Embora simples, frente ao conhecimento acumulado na atualidade
(OLIVEIRA, F., 2002, p. 38), estes primeiros experimentos demarcam períodos importantes
na história do desenvolvimento científico e tecnológico, assim como na da sociedade
ocidental, onde vem sendo descrito.
Num salto histórico, até o século XX, temos o desenvolvimento da genética como
área privilegiada de estudos dentro das ciências biológicas:
A descoberta científica do código genético foi comparada, em escala de
grandeza, ao impacto da descoberta da fissão do átomo e desencadeou um
grande interesse pela experimentação laboratorial. Nesse sentido, inicia-se
um processo complexo e imbricado entre reprodução e genética.
[...]
Os avanços no campo da reprodução dos seres vivos, nos reinos vegetal ou
animal e, logo, humano, são possíveis graças aos avanços próprios da
33
biologia, da bioquímica, da genética, da biologia molecular, da informática.
Esta última permitindo processar volumosas informações em tempo cada vez
menor (DOSSIÊ..., 2003, p. 8).
Nesta perspectiva, prosseguem os experimentos, e na década de 1950 é realizada a
primeira fecundação usando esperma congelado no processo de inseminação artificial. As
técnicas de fertilização in vitro têm seu início também nos anos 50, mas ainda restritas às
testagens em animais. Realizadas em humanos, só há registro público a partir dos anos 70. “O
movimento feminista, que inseriu a igualdade dos direitos à sexualidade em seu programa
emancipador, facilitará uma larga utilização destas técnicas” (CATONNÉ, 2001, p. 79).
Louise Brown nasce em 1978 e fica conhecida como o primeiro caso bem sucedido
de fecundação in vitro, sendo exaustivamente explorada na imprensa e até os dias de hoje uma
referência mundial quando se fala em tecnologias reprodutivas conceptivas (OLIVEIRA, F.,
2004a, p. 53). Nos anos 80 são descritas as primeiras experiências bem sucedidas a partir de
embriões congelados, e nos anos 90 as técnicas de RHA e diversas tecnologias do campo da
genética são mais desenvolvidas, ampliando os procedimentos especializados neste campo
médico.
2.2.1 Terminologia empregada e Técnicas de RHA
Com os avanços nos estudos sobre reprodução humana e as possibilidades técnicas
de viabilizá-la, surge então uma nova e peculiar forma de se constituir uma família com filhos
através da Biotecnologia (GROSSI, PORTO e TAMANINI, 2003, p. 18-19). Esta é entendida
como
o conjunto das técnicas e processos biológicos que possibilita a utilização
da matéria viva para degradar, sintetizar, e produzir outros materiais. A
biotecnologia, de qualquer tipo, é sempre uma manipulação da constituição
dos seres vivos: acrescentando, diminuindo, suprimindo temporariamente,
ou abolindo uma característica aparente ou interna. A biotecnologia que
manipula os genes chama-se engenharia genética ou bioengenharia
(OLIVEIRA,
F., 2002, p.18).
A mesma autora ainda acrescenta que
34
[...] as biotecnologias surgiram da tradição hibridista e é correto afirmar
que, incluindo a manipulação genética, são tão antigas quanto a história da
humanidade. Elas podem ser classificadas em tradicionais e modernas. AS
primeiras, as antigas biotécnicas, são descobertas resultantes de observação,
experimentação, erros e acertos e da paciência de escolher e preservar
‘resultados’ que pareciam ‘melhores’. Não há dúvida de que constituíram
saberes fundamentais à preservação e à continuidade da espécie humana.
As biotécnicas modernas (clonagem, engenharia genética, genômica, e
proteômica) resultam de processos de manipulação biológica (que não
manipula a molécula da vida, o DNA – ácido desoxirribonucléico) ou de
manipulação genética (que manipula o DNA), também denominada
engenharia genética (OLIVEIRA,
F., 2004b, p.101-102).
A partir destas definições, tomamos como necessário definir também outras
terminologias empregadas ao longo do texto, para facilitar a compreensão do leitor sobre o
que está sendo discutido. Embora haja diferença da compreensão das terminologias
“reprodução” e “procriação”, adotaremos a seguinte padronização para este trabalho: o ato de
procriar envolve a união de dois seres distintos originando um terceiro, não idêntico a nenhum
dos que lhe deram origem, ou seja, não é uma cópia dos mesmos, apenas semelhante à eles. A
reprodução, por outro lado, implica possuir constituição genética idêntica à do ser que lhe deu
origem (OLIVEIRA, F., 2002, p. 18-19). Contudo, para elaboração deste estudo, não foi
alterada a nomenclatura presente na literatura específica ou nos documentos coletados e
analisados. Reprodução é aqui empregada no mesmo sentido acima descrito para Procriação,
não sendo intencionada nenhuma diferenciação quando da utilização de um ou outro termo
(OLIVEIRA, F., 2004, p. 154).
Seguindo a mesma proposta, quando falamos em infertilidade ou esterilidade, as
empregaremos com o mesmo sentido: o de incapacidade de procriar, ainda que no uso
cotidiano a primeira seja utilizada para quem já nasceu com esta incapacidade ou a adquiriu
por alguma doença, e a segunda seja empregada para casos onde há intervenções cirúrgicas ou
químicas que a tenham produzido (GROSSI, PORTO e TAMANINI, 2003, p. 42;
OLIVEIRA, F., 2002, p. 19). A diferenciação será retomada somente na discussão dos
documentos analisados, por enquanto cabendo o uso destas com o mesmo sentido geral.
Feitos os esclarecimentos, voltamos à caracterização da reprodução humana
viabilizada pela tecnologia. Como coloca Luna (2005, p. 396): “novas tecnologias
reprodutivas ou técnicas de reprodução assistida são procedimentos da medicina de
reprodução humana que substituem o ato sexual na concepção”. Contudo, faz-se necessário
diferenciar o que se entende por Novas Tecnologias Reprodutivas, em face de - como se
35
percebe na citação acima - estas tecnologias serem compreendidas pelo senso comum como
apenas as técnicas de RHA.
As Novas Tecnologias Reprodutivas podem, segundo os estudiosos e especialistas
na área (AHUMADA e outros, 1998; DOSSIÊ..., 2003; LUNA, 2005), ser subdivididas em:
- Tecnologias Reprodutivas Contraceptivas – como exemplo temos o DIU, os
implantes, as pílulas e vacinas anticonceptivas, dentre outros;
- Tecnologias Reprodutivas Conceptivas – aqui encaixam-se os procedimentos de
fecundação ou fertilização in vitro, dentre outras técnicas.
Dentro desta perspectiva, a RHA é enquadrada no rol de Tecnologias Reprodutivas
Conceptivas, e ainda, quando falamos em RHA estamos aqui nos referindo às técnicas de
manuseio de gametas e embriões, com posterior transferência destes para a pessoa que solicita
este serviço. As técnicas utilizadas, disponíveis tanto no serviço público de saúde quanto no
privado são, em suma:
- Inseminação Intra-uterina Æ é realizada uma estimulação ovariana (através de
medicamentos) e no momento adequado inserido o esperma no útero;
- Fertilização “In VitroÆ são colhidos o óvulo e o esperma, realizada a fecundação
em laboratório e em seguida implantados os embriões no útero.
Ademais destas técnicas, são considerados procedimentos de Reprodução Assistida:
micromanipulação de gametas (ICSI), congelamento de gametas e/ou embriões,
descongelamento de embriões, e biópsia pré-implantação embrionária (AHUMADA e outros,
1998, p.21; DOSSIÊ..., 2003, p.12-13; LUNA, 2005, p. 396).
Ambas as técnicas expostas acima possuem especificidades que não serão aqui
detalhadas por não fazerem parte de nosso objeto de análise nesta proposta. O que se deseja
aqui é perceber que o serviço público de saúde já as incorporou ao seu rol de serviços
disponibilizados para a população (em maior parte nos hospitais universitários), ainda que não
haja até o momento legislação específica para regulamentar esta prática. Com esta
disponibilização iremos nos ater a partir deste momento na caracterização do acesso ao
serviço de RHA.
36
2.2.2 Acesso e serviço público de saúde no Brasil
A saúde no Brasil acompanha as alterações sociais num contexto mundial, e passa
também por suas transformações, buscando responder às questões de otimização de recursos e
atendimento das necessidades da população, inseridas num país em crise econômica e em
processo de redemocratização (MENDES, 1993, p.31).
Em fins dos anos 70 e início dos 80, diversos países, inclusive o Brasil,
questionavam as saídas para o setor público decorrentes de severa crise
econômica que tingia as nações e que exigiam um redimensionamento do
papel do Estado.
No Brasil, essas questões foram debatidas ao longo dos anos 80 e 90, e em
relação à política de saúde, optou-se pela ampliação da participação
democrática e da garantia dos direitos de cidadania, mediante conformação
de um sistema de saúde com características universalizantes, de cunho
igualitarista, sustentado pela idéia de justiça social (VIANA, FAUSTO e
LIMA, 2003, p.58).
Os modelos de atenção à saúde vão, então, sendo alterados, até se chegar ao que
conhecemos hoje como SUS - Sistema Único de Saúde, criado após intensos anos de debate,
tendo como marco a 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), e “que tem como pressupostos
a universalidade, eqüidade, integralidade, hierarquização e controle social” (ROS, 2006, p.58)
O SUS é sustentado pela Constituição Federal de 1988 (Título VIII, capítulo II,
seção II) e pelas Leis 8.080/90 e 8.142/90, criadas para que os artigos da Constituição
pudessem entrar em vigor, embora tenham sido aprovadas somente dois anos depois desta
(MENDES, 1993, p. 47). Para a proposta que era o SUS funcionar de fato, foram definidas
também normas operacionais básicas (NOB’s), a partir das discussões já na 9ª Conferencia
Nacional de Saúde, esta somente em 1992 (ROS, 2006, p.58-59).
Em suma, caracterizam-se nestes textos supracitados os direitos e deveres dos
cidadãos no campo da saúde, e os deveres do Estado para com estes. Tem-se como premissa
para a saúde o “estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário
[grifo nosso] às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação” (Lei
8.080, Título I, artigo 2º, § 1º). Cabe ao Estado promover este acesso, assim como
regulamentar, fiscalizar e controlar os serviços que disponibiliza através do SUS. Dessa
forma,
37
o conceito de saúde assegurado na legislação brasileira constitui-se como
um direito da cidadania a ser garantido pelo Estado e a universalidade da
atenção implica, necessariamente, a formulação de um modelo social ético e
equânime norteado pela inclusão social e solidariedade humana (ASSIS,
2003, p.816).
O conceito de acesso, assim como sua terminologia (ex.: “acesso” ou
“acessibilidade”), é variável com o tempo, contexto e autores (TRAVASSOS, 2004, p.191).
Neste estudo o termo acesso é empregado enquanto ato de ingressar, sendo então um
indicativo do grau de facilidade com que os cidadãos obtêm cuidados de saúde. Para
compreender como se caracteriza o acesso ao serviço de RHA dentro do sistema público de
saúde no Brasil, foi analisado o que há de documentação oficial que viabilize este serviço. A
busca por este material se deu em Arquivos Públicos Nacionais, com acesso impresso ou via
Internet, conforme detalhado no capítulo de metodologia.
Ainda sobre o acesso aos serviços de saúde de uma forma geral, nos textos da
Constituição referentes à saúde e ao SUS (Título VIII, Cap. II, seção II, art. 196) e na Lei
8.080/90 (Título I, art 2º, § 1º) também estão expressos o dever do Estado em garantir o
acesso “universal e igualitário” às ações e serviços de saúde. A Lei 8.080/90 (Título II, Cap.
II, art. 7º) destaca ainda que a universalidade de acesso aos serviços em todos os níveis de
assistência, assim como a igualdade desta assistência, sem preconceitos ou privilégios, fazem
parte dos princípios e diretrizes do SUS.
Embora o acesso dentro do panorama apresentado seja, por lei, destinado a todos os
cidadãos na prática convivemos com “acessos seletivos, excludentes e focalizados [...]
havendo, portanto, um descompasso entre a legislação e a legitimidade social” (ASSIS, 2003,
p. 816). O acesso específico ao serviço de RHA não destoa desta primeira avaliação. Não
havendo até o momento uma regulamentação a partir das diretrizes do SUS, seu
direcionamento é dado em concordância com os pressupostos da Resolução nº 1.358/92 do
CFM.
Sendo um documento normativo da classe médica, a resolução por si só não se torna
suficiente para abarcar todas as necessidades de regulamentação que surgem a partir da
disponibilização do serviço de RHA, tanto no setor público quanto no privado, como forma de
“proteção de direitos e interesses dos envolvidos” (DINIZ, 2003, p.13). Com isso, pressupõe-
se que a avaliação de quem possa ter acesso a este serviço pode ser pautada nas
arbitrariedades e julgamentos morais dos executores da técnica (DINIZ e COSTA, 2001,
p.184; DOSSIÊ..., 2003, p. 40-41).
38
Torna-se necessário, a partir deste momento, identificar e compreender, com base
nos documentos oficiais do Governo Federal, como este percebe as questões relativas à
formação de família e ao planejamento da mesma. Consideramos que somente a partir deste
primeiro levantamento é que poderemos posteriormente identificar se o acesso ao modelo de
família com filhos, disponibilizado a partir do uso de técnicas de RHA, está ou não em
concordância com os pressupostos constitucionais sobre o planejamento e formação familiar.
2.2.3 Tecnologia Reprodutiva como Direito Humano Fundamental
O direito a um acesso igualitário às técnicas de RHA encaixa-se também nas
questões referentes aos direitos sexuais e reprodutivos, que guardam com os movimentos
sociais um vínculo estreito (BUGLIONE, 2001, p. 6, 8), em especial o movimento feminista.
As feministas e a igreja são atores incansáveis nas discussões sobre o
Planejamento Familiar, colocando-se, na maioria das vezes como
antagonistas e, ao mesmo tempo, fazendo com que as políticas
governamentais sejam mais explícitas (COELHO, E., 2000, p. 54).
Este movimento faz parte da articulação que historicamente reivindica e garante (em
1983) a promoção junto ao Estado brasileiro de uma política de planejamento familiar
embutida no que se chamou PAISM – Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher. A
partir destas reivindicações é trazida à tona a necessidade de percepção da mulher não
somente como tendo a reprodução por objetivo de vida, mas sim tornando esta capacidade um
exercício de cidadania (BUGLIONE, 2001, p. 10). O PAISM, entretanto, não é implantado
efetivamente, não sai de fato do papel, salvo experimentos isolados bem sucedidos
(COELHO, E., 2000, p. 55).
O Estado, assim, altera suas nomenclaturas, de “controle de natalidade” para
“planejamento familiar”, o que reforça esta desvinculação da reprodução com a figura da
mulher, enquanto disposição inata. As demandas feministas têm um longo alcance dentro da
estrutura social, alterando assim o papel da mulher na sociedade e a visão da família dentro
dos dispostos oficiais sobre direitos civis, em especial do direito à saúde. Estas demandas são
reiteradas com as alterações presentes na Constituição de 1988 e também na Convenção do
39
Cairo
5
em 1994, onde é construída a linguagem dos direitos sexuais e reprodutivos, apartada
de condicionamentos religiosos.
Pode-se afirmar que os direitos reprodutivos correspondem ao conjunto dos
direitos básicos relacionados ao livre exercício da sexualidade e da
reprodução humana, circulando no universo dos direitos civis e políticos,
quando se referem a liberdade, autonomia, integridade etc, e aos direitos
econômicos, sociais e culturais quando se referem às políticas do Estado.
Esse conceito compreende o acesso a um serviço de saúde que assegure
informação, educação e meios, tanto para o controle da natalidade, quanto
para a procriação sem riscos para a saúde. A partir desta percepção
incorpora-se ao princípio de que, na vida reprodutiva, existem direitos a
serem respeitados, mantidos ou ampliados. Isso implica em obrigações
positivas para promover o acesso à informação e aos meios necessários para
viabilizar as escolhas. O conceito de direitos reprodutivos não é meramente
explicativo, eis que imputa responsabilidades, ações diretas ao Estado. Já no
caso dos direitos sexuais, pode-se falar, ainda, em obrigações negativas,
significa que o Estado, além de ter que coibir práticas discriminatórias que
restrinjam o exercício do direito à livre orientação sexual (tanto no âmbito
estatal quando das relações sociais), não deve regular a sexualidade, bem
como as práticas sexuais (BUGLIONE, 2001, p.12-13).
Seguindo este raciocínio, a Lei 9.263/96, que trata especificamente sobre o
planejamento familiar, entende-o como um “conjunto de ações de regulação de fecundidade
que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo
homem ou pelo casal” (Cap. I, art. 2º), orientando-se, assim, para a garantia do acesso
igualitário às técnicas disponíveis.
A vinculação necessária entre saúde reprodutiva e direito reprodutivo, entretanto,
ainda não é algo presente nos dispositivos legais, ao menos não de forma clara, tendo-se em
vista que o conteúdo dos documentos presentes até o momento permite diferentes
interpretações e significados. A dificuldade em estabelecer esta nova compreensão talvez se
deva à complexa conjugação das necessidades que compõem o universo dos direitos
reprodutivos, qual seja a de conciliar direitos sociais (coletivos) com o campo da saúde, e esta
conciliação ser ainda conjugada com a conciliação de direitos individuais e o campo da
autonomia dos indivíduos (BUGLIONE, 2001, p.16).
Ainda, percebendo os direitos reprodutivos como direitos humanos fundamentais – e
dentre estes direitos, o próprio planejamento familiar, assim declarado e reconhecido pela
ONU – Organização das Nações Unidas, desde 1968 (COELHO, E., 2000, p. 56), tendo sido
5
Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento
40
transformado em Lei no Brasil somente em 1996, o que ressalta a dificuldade na articulação
entre saúde e direito acima descrita – os colocamos como inerentes à condição humana, e
protegemos a dignidade humana das ações do Estado e de indivíduos:
O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem
por finalidade básica o respeito à sua dignidade, por meio de sua proteção
contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas
de vida e desenvolvimento da personalidade humana pode ser definido como
direitos humanos fundamentais (MORAES, A., 2003).
Estes sendo respeitados podem enfim constituir um Estado de Direito Democrático.
Assim, consoante com Débora Diniz (2003, p. 14), ponderamos aqui que talvez “a maneira
mais razoável e não discriminatória de fundamentar a elegibilidade às técnicas reprodutivas
seria deslocá-las do campo da saúde e aproximá-las do campo dos direitos fundamentais, em
especial do direito ao planejamento familiar”.
O princípio da paternidade responsável foi eleito, ao lado do princípio da
dignidade humana, como fundamento do direito ao planejamento familiar,
submetido à livre decisão do casal. Trata-se de norma inovadora entre nós,
que assegura a denominada ‘autonomia reprodutiva’, a qual tem sido objeto
de profundos debates no âmbito internacional.
Essa autonomia, compreendida na categoria dos direitos humanos, pode ser
entendida como ‘o direito à escolha reprodutiva’, ou seja, a liberdade de
decidir ‘se’ e ‘quando’ reproduzir, ensejando aí também incluir o ‘como’
reproduzir-se, relacionado ao emprego das técnicas de reprodução assistida
(LOYOLA, 2005, p. 149)
41
2.3 Bioética, Direitos Humanos e RHA
Embora já existam produções que regulamentam os experimentos com humanos
num nível mundial, não se pode dizer que há respeito de fato ao que se estabelece no papel. E
a própria historia comprova este dado, com as conseqüentes revelações de não cumprimento
dos determinantes éticos nas pesquisas – nestas encontram-se também as específicas sobre
tecnologias reprodutivas – em diferentes partes do mundo. Com isto, vai sendo criado um
movimento em prol desta ética no campo das biociências (OLIVEIRA, F., 2002, p.9), e a
Bioética vai surgir então de forma a inaugurar a participação social nas discussões da
biociência, até então quase que exclusivamente destinadas às corporações da área da saúde
(OLIVEIRA, F., 2004a, p. 83). Tem-se na literatura o registro da década de 1970 como o
momento de surgimento do termo Bioética, com as conotações a seguir.
Van Rensselaer Potter, nos EUA, é historicamente referido como o primeiro a fazer
uso do termo bioética, usando-o no sentido de um campo de estudo para promover a
adaptação do homem ao seu meio ambiente, prolongando a sobrevivência humana numa
sociedade aceitável (ANJOS, 2001, p. 19; GARRAFA, 1995, p. 14; OLIVEIRA, F., 2002, p.
9). Sua preocupação é em face de um novo – e em constante mutação – ambiente social,
resultado da incessante interferência humana nos processos biológicos e tecnológicos.
Embora Potter seja considerado o “pai” do termo bioética, é creditada a André
Hellegers, holandês também residente nos EUA, a mais ampla divulgação do termo. Hellegers
vai compreender a bioética como campo de estudo, mas também com movimento social.
Como
campo de estudo, envolveria não somente as ciências biológicas, mas também as
sociais, além das inúmeras possibilidades de visões éticas. Como
movimento social,
compreendia que suas questões trazidas para debate envolviam a congregação de diferentes
instituições sociais, como a academia, as ciências biomédicas e os governos (ANJOS, 2001,
p.19). Entretanto, sua visão de bioética como movimento social ainda era vinculada à questão
de campo de estudo, de disciplina, e não como campo de ação. Neste aspecto, a visão de
Potter é percebida como mais aproximada da noção de movimento social enquanto prática, e
enquanto envolvimento macro, global (OLIVEIRA, F., 2002, p. 9).
A bioética fica então conhecida por um forte vínculo à academia e à noção de
disciplina voltada para discussões dentro das ciências biomédicas, como se fosse possível
desarticular estas discussões de seu contexto social específico. É, assim, compreendida e
42
limitada a uma questão de ética biomédica (ANJOS, 2001, p. 18, 20). Contemporaneamente,
podemos compreendê-la como uma instância de permanente reflexão sobre a ação humana,
uma ética da vida – etimologicamente falando (OLIVEIRA, F., 2002 e 2004a), um
campo do saber ético e da moral, reajustado ao cenário contemporâneo, que
busca a análise de valores e do agir humanos que decorrem dos fatos,
eventos, problemas e desafios provenientes do desenvolvimento da ciência
e da tecnologia na área da biologia, genética, meio ambiente, medicina,
biotecnologia e setores afins (DOSSIÊ...2003, p. 32)
e que, ainda, incorpore uma visão multidisciplinar, incluindo saberes além dos supracitados,
como “a filosofia, o direito, a teologia, a antropologia, a ciência política, a economia”
(GARRAFA, 1995, p. 15), entre outros tantos quanto sejam possíveis de se articular.
Seus enfoques, enquanto disciplina e movimento social, continuam sendo percebidos
ao promover a criação de sociedade, comitês e afins, nas áreas profissional e governamental
de pesquisa, e ao refletir as necessidades da sociedade civil (DOSSIÊ..., 2003, p. 32-33).
Pode-se, contudo, destacar que as relações entre seus dois enfoques permanecem entrelaçadas,
tendo-se em vista que como movimento social demanda estudos para definições teóricas e
normativas, e como disciplina, promove subsídios para as ações da prática (OLIVEIRA, F.,
2002, p. 9).
Essa dupla face (disciplina e movimento social – Movimento Bioético)
confere à bioética a peculiaridade de ser, ao mesmo tempo, reflexão (sobre
as implicações sociais, econômicas, políticas e éticas dos novos saberes
biológicos) e ação (objetivando estabelecer um novo contrato social entre
sociedade, cientistas, profissionais de saúde e governos) sobre as questões
do presente e as perspectivas de futuro (OLIVEIRA,
F., 2004a, p. 75).
Embora esteja comumente vinculada a questões do campo médico, a bioética pode
ser percebida como algo mais abrangente. Suas questões, assim, podem ser então
compreendidas para muito além das discussões estritamente éticas dentro da área biomédica,
podendo também incluir “assuntos de saúde pública, preocupações sobre população, genética,
meio ambiente sanitário, praticas e tecnologias reprodutivas, saúde e bem-estar animal e
semelhantes” (REICH apud ANJOS, 2001, ano, p. 21). Uma compreensão mais apurada da
43
importância das discussões bioéticas pode ser obtida a partir dos adventos históricos que
corroboraram para a definição dos direitos humanos fundamentais.
A II Guerra Mundial, representada pelo nazismo e seus experimentos com seres
humanos, demarca um impactante momento na história da humanidade, assim como nos
conceitos de ética e direitos humanos. A crueldade dos experimentos e a não consideração do
outro – o não ariano – como digno trazem à tona discussões ainda hoje não encerradas a
respeito dos limites da ciência, da intolerância às diferenças, do respeito aos direitos humanos,
para citar apenas alguns dos aspectos que pairam na superfície do tema abordado. Como um
marco histórico, cria-se o Tribunal de Nuremberg em 1945 (OLIVEIRA, 2004a, p. 81), que
lida com este evento de forma a ter ali material mais que suficiente para criar o Código de
Nuremberg (1947), onde são definidos os pontos orientadores da ética na pesquisa em seres
humanos (GONÇALVES, GARCIA e VERDI, 2006, p. 336; OLIVEIRA, 2002, p. 9), desde
que:
tenha como pilares a utilidade, a inocuidade e a autodecisão da pessoa que
participa da experiência. Baseia-se na afirmativa de que nenhuma
experimentação poderá visar objetivos políticos, eugênicos ou bélicos.
Refere-se ainda às condições de realização das pesquisas e diz que nenhuma
experimentação poderá ser levada a cabo sob condições de crueldade e
tortura e que ‘os interesses da pessoa devem prevalecer sobre os interesses
da ciência e da sociedade’.
Historicamente, as corporações médicas têm dedicado atenção especial às
questões éticas e participaram da elaboração de códigos, declarações e
procedimentos que orientam a conduta profissional na área de saúde. São
princípios universais, válidos em qualquer lugar, e é sempre com base neles
que cada país faz suas leis civis e penais. (OLIVEIRA, F., 2004a, p. 82).
Em dezembro de 1948 – ou seja, apenas um ano após a definição dos termos do
Código de Nuremberg – é proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esta
proclamação merece destaque por congregar os votos dos então 56 (cinqüenta e seis) Estados
que compunham a Assembléia Geral da ONU naquele período, e a despeito de diferenças
culturais existentes, o texto é aprovado sem receber nenhum voto em contrário (48 a favor e 8
abstenções) (GREGORI, [s/d] a). Ela serve de base, a partir de sua proclamação, para a
elaboração de outras espécies de cartas e tratados que se voltam à proteção dos Direitos
Humanos, como os anteriormente já citados (HOGEMANN, 2002) e, “se é verdade que outras
cartas de direito precederam a Declaração Universal, não é menos correto observar que este
44
foi o primeiro documento que estabeleceu um ideal comum a ser atingido por todos os povos
e nações” (GREGORI, [s/d] b).
A dignidade inerente à todo ser humano é a base de seu texto, e ela protege os
direitos do homem até mesmo de uma possível violação por parte de seu Estado.
Seria inimaginável hoje que Estados ou governantes possam encontrar
argumentos defensáveis para negar o direito à vida, liberdade, segurança da
pessoa, ou proteção contra a escravidão, trabalho forçado, tortura,
discriminação racial. Os direitos à alimentação, saúde, trabalho e seguridade
social são igualmente básicos para qualquer concepção plausível de uma
dignidade humana igualitária. A universalidade, é portanto, uma presunção
inicial em que se fundam os direitos humanos (GREGORI, [s/d] a).
Os Direitos Humanos são, então, convergidos em uma denominação única, a de
Direitos Fundamentais, e tornam-se a base da grande maioria das sociedades pelo mundo.
Estes direitos passam historicamente por diversas gerações, indo dos direitos individuais, no
século XVII, com a transição do sistema feudal para o capitalismo; passando pelos direitos
coletivos, que englobam direitos sociais, econômicos e políticos, com o desenvolvimento de
uma sociedade burguesa; até chegar aos direitos dos povos, requeridos por lutas e
transformações sócio-politico-econômicas nos últimos três séculos (HOGEMANN, 2002). A
Declaração Universal dos Direitos Humanos surge neste terceiro contexto geracional, a partir
da II Guerra Mundial e da necessidade criada de se estabelecer valores fundamentais para a
proteção universal da dignidade humana.
Esta universalidade, deve-se destacar, não exclui os direitos de liberdade individual,
pelo contrário, garante aos indivíduos reconhecimento de seus direitos fundamentais pela sua
condição única de ser humanos, independente de a qual Estado pertençam, não apagando
também as diferenças ou desejando uniformizar e subordinar os indivíduos, mas sim
respeitando sua diversidade, inerente à condição humana, reforçando-a a valorizando-a. A
garantia destes direitos visaria restringir as possíveis arbitrariedades dos Estados que possam
por conseguinte privar os indivíduos do direito à sua liberdade fundamental. Acordando as
bases estabelecidas na Declaração, os Estados se comprometem a rever suas legislações e
praticas com relação aos direitos humanos, e tomar medidas de proteção e promoção destes
direitos e das liberdades fundamentais (NDIAYE, 1998, p. 49-50).
Assim, a declaração não deve ser “entendida apenas como uma abstração. É
proposta que envolve um compromisso a ser implementado por todos os Povos que o
45
assumiram perante a História” (PEREIRA JUNIOR, 1998, p. 813), e neste sentido, pode-se
dizer que
defesa e promoção dos direitos humanos [...] ganharam o estatuto de tema
global, e como tal, componente essencial da governabilidade da ordem
mundial e da legitimidade dos Estados. São temas que reconciliam a ética
com a política, a aspiração dos cidadãos com a responsabilidade dos
Estados e da comunidade internacional (OLIVEIRA, R., 1998, p.989).
Desde o Tribunal de Nuremberg já fica prevista a incorporação de novos casos para
discussão e a confecção de novas normas que se façam necessárias, e ao longo da história o
Código de Nuremberg vem servindo de base para que instituições como a AMM – Associação
Médica Mundial – e a OMS – Organização Mundial de Saúde – aprovem instrumentos como
a Declaração sobre Pesquisas Biomédicas
6
(em 1962, pela AMM), a Proposta de Diretrizes
Internacionais para a Pesquisa Biomédica envolvendo Seres Humanos (1982), as Diretrizes
Internacionais para a Revisão Ética dos Estudos Epidemiológicos (1991) e as Diretrizes
Internacionais para Pesquisas Biomédicas envolvendo Seres Humanos (1993), estas últimas
pela OMS em parceria com o CIOMS – Conselho para as Organizações Internacionais de
Ciências Médicas (OLIVEIRA, F., 2004a, p. 82-83).
No contexto brasileiro, as preocupações com pesquisas que incorporem seres
humanos como objeto de intervenção e a ética envolvendo-as, somente são levadas a termo a
partir da criação pelo Conselho Nacional de Saúde – CNS – da Resolução 01/88, em 1988,
uma compilação de normas disciplinando este tipo de pesquisa, e em 1996, da Resolução
196/96, contendo diretrizes para regulamentar as pesquisas com seres humanos, e criando os
Comitês de Ética em Pesquisa – CEP’s - e a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa –
CONEP (GONÇALVES, GARCIA e VERDI, 2006, p. 336).
Compreendendo a bioética como um campo multidisciplinar, que visa analisar os
valores e ações do homem decorrentes de questões “provenientes do desenvolvimento da
ciência e da tecnologia na área da biologia, genética, meio ambiente, medicina, biotecnologia
e setores afins” (DOSSIÊ..., 2003, p. 32), e considerando as diversas indagações que a RHA
suscita, convém fazermos um aparte e explicitarmos o caminho teórico escolhido para
buscarmos as respostas às indagações presentes neste estudo. As diferentes possibilidades de
fundamentação teórica desta discussão encerram variadas concepções de ser humano e
6
Revisada em 1964 – Helsinque, 1975 – Tóquio, 1981 – Manila, 1983 – Veneza, 1989 – Hong Kong, e 2000 – Edimburgo.
46
mundo, que por sua vez delimitam quais valores são tidos como universais, devendo ser
respeitados.
Ao falarmos neste estudo sobre tecnologias reprodutivas, o campo de novas técnicas
que surge remete a questões onde a Bioética de Situações Limite encaixa-se de forma mais
adequada como referencial de análise. Com o mesmo objeto de estudo, se mudarmos o foco
para a questão dos direitos de cidadania que conferem aos indivíduos o acesso ao serviço de
saúde em questão, estamos lidando com uma situação cotidiana, coletiva, onde a Bioética
Cotidiana mostra-se mais profícua para fundamentar a discussão - que é a que este trabalho se
propõe a realizar. A Bioética Cotidiana, então, refere-se aos “comportamentos e às idéias de
cada pessoa” (BERLINGUER, 1993, p. 19), contudo esta idéia não deve ser compreendida
como forma restritiva de seu campo de atuação, ela não se isola em explorar questões
individuais, como pode parecer a um primeiro olhar menos atento, mas pode sim pensar
questões de coletividade que interferem na vida de cada indivíduo, o que a faz harmônica com
as idéias estabelecidas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, no que se refere a
pensar de forma universal, protegendo a dignidade humana e sua liberdade fundamental.
Partindo da possibilidade de regulação consciente da própria reprodução, o homem
se depara na contemporaneidade com as mudanças nas fronteiras da ciência, e com as
influências destas mudanças no contexto social. A liberdade de procriação permite uma
redefinição de como nos inserimos no mundo, reconfigurando nossos papéis dentro da
sociedade a partir da recusa da procriação enquanto um dever (BERLINGUER, 2004, p. 14-
15). Esta recusa implica, por conseguinte, no afastamento do modelo tradicional cristão de
família nuclear.
Há distinções entre as discussões bioéticas acerca da RHA, sobre ela representar não
somente liberdade como também direito à procriação, e o que se pondera é que os elementos
envolvidos na questão (como nascimento, relações entre indivíduos, afetividade) são de
discussão árdua, podendo ser distorcidos pela lei e a intervenção do Estado. Um outro foco de
discussão é o que tenta perceber se a RHA é de fato um direito, para quem e em quais
condições, concordando com os objetivos de análise desta proposta de trabalho. Há aqui o
consenso de “não ser privado arbitrariamente de tais faculdades” (BERLINGUER, 2004, p.
18), o que nos permite refletir de imediato sobre o estado atual do acesso ao serviço de RHA.
Muitas são as possibilidades de atribuição de valor à fertilidade, visando restringi-la,
e dentre elas podemos destacar o conceito de infertilidade, ou esterilidade. Entendido em seu
sentido mais estrito ou mais amplo, alteram-se as percepções sobre quem pode ou não ter
acesso às tecnologias de RHA. Expandindo o conceito, poderiam ser inseridas nele causas
47
psicológicas e sociais, e não somente as clínicas, que refletem somente seu sentido estrito
(DINIZ, 2003, p. 13).
A Bioética Cotidiana não busca atribuição de valores morais negativos para qualquer
tipo de esterilidade/infertilidade. Segundo Berlinguer (2004, p.24.25) a dificuldade de procriar
só passa a ser vista como um problema moral quando “constitui um dano para o indivíduo”.
Sua reflexão segue-se com a consideração de que passa a existir uma “responsabilidade social
quando ações do tipo preventivo ou curativo são possíveis e não são postas em
funcionamento”.
Embora use o termo livre-escolha ao invés de autonomia, as reflexões propostas por
este autor acerca da RHA circundam este princípio ao considerar o desejo por uma
“maternidade e uma paternidade, fundadas sobre a gestação materna e a descendência
genética (mesmo parcial)” (BERLINGUER, 2004, p.33) como parte do patrimônio cultural
contemporâneo, sendo sua negação um limite à liberdade de escolha de cada indivíduo.
Contudo, ele pondera que a RHA pode não somente aumentar a liberdade de escolha, como
também tornar o homem dependente das técnicas médicas, tanto corporal como mentalmente.
Conforme anteriormente colocado, o nascimento da bioética pode ser encontrado
sendo descrito na literatura a partir das crescentes denúncias a respeito de pesquisas realizadas
tendo seres humanos como objetos de intervenção, onde estes estariam sendo colocados em
situações de vulnerabilidade, o que acarretaria desacordo aos padrões éticos já reconhecidos e
vigentes num contexto mundial, no referente às pesquisas com seres humanos.
Os casos que incitaram estas denúncias são em sua maior parte provenientes dos
EUA, onde podem ser destacados os seguintes (GONÇALVES, GARCIA e VERDI, 2006, p.
335): em 1963, em Nova York, idosos doentes têm células cancerosas vivas injetadas em seus
corpos; entre 1950 e 1970 é conduzida, também em Nova York, uma pesquisa que injeta um
tipo de vírus da hepatite em crianças com retardamento mental; e o que talvez seja o caso
mais emblemático da história, entre 1940 e 1972, em Tuskegee, Alabama, é realizado um
estudo com negros sifilíticos, que foram deixados sem acesso aos tratamentos possíveis,
mesmo depois da descoberta da penicilina em 1945, com o único propósito de estudar o ciclo
de evolução natural da doença.
Pelas datas dos casos citados, percebe-se a já existência de definições internacionais
no referente à ética em pesquisas, mas esta existência não garantia sua realização de fato,
gerando o conflito e demandando respostas para que fossem evitados futuramente abusos
como os acima descritos. No campo da RHA mais especificamente, não muito se diferenciam
os experimentos dos promotores de revolta e demanda por regulação já expostos aqui. As
48
técnicas são amplamente estudadas e difundidas, os avanços no campo biomédico são
notórios e geram crescente demanda por mais estudos e também por acesso às descobertas.
Neste aspecto, a avidez por solucionar uma questão antes delegada a desígnios
divinos, a partir dos contextos religiosos fortemente arraigados nas sociedades onde se
desenvolvem estes estudos, faz do homem um novo “Deus’, o homem-cientista nesse
momento se interpõe entre a visão da religião e o resto da humanidade, como um novo elo
criador, um facilitador e, por vezes, criador de outro ser humano (OLIVEIRA, F., 2004b, p.
181). Nesta “brincadeira” de ser seu próprio Deus, experimentos vão sendo realizados, em
total desacordo com os estabelecimentos reguladores das pesquisas em seres humanos de cada
país.
A divulgação oficial de experimentos envolvendo humanos, no campo da RHA, é
primeiramente datada de 1970, com as técnicas iniciais de Fertilização In vitro (DOSSIÊ...,
2003, p. 8), mas já retomamos no contexto histórico sobre a reprodução humana que os
primeiros experimentos de fato são encontrados na historia já no século XVIII. Contudo, os
experimentos realizados após a criação das normativas reguladoras da pesquisa com seres
humanos passam a ser tornados públicos apenas a partir de 1970.
Apesar de esta data ser a referência, alguns autores levantam a discussão sobre ser a
partir do nazismo e seus estudos sobre reprodução e genética o início concreto de
experimentos com seres humanos (OLIVEIRA, F. 2004 b, p. 55), absolutamente sem critérios
éticos como os pensados a posteriori, no exposto sobre o Código de Nuremberg. Ressalte-se
aqui, que Hitler associava seus ideais racistas à noção de cientificidade, sendo, portanto, seus
experimentos compreendidos como propósitos em prol da ciência (REZENDE, 2006), ainda
que ele os tivesse apenas para proveito de seus próprios ideais eugênicos. Aparte os horrores
provocados pelo nazismo e suas práticas, foram em seus campos de concentração que se
desenvolveram as bases teóricas e práticas das hoje denominadas Novas Tecnologias
Reprodutivas (OLIVEIRA, F., 2002, p. 17).
Conforme já mencionamos neste estudo, Louise Brown torna-se caso notório e
referência mundial de sucesso das técnicas empregadas (DOSSIÊ..., 2003, p. 9; OLIVEIRA,
F., 2004a p.53), embora tenha sido realizado em desacordo com as orientações éticas em
vigor da Grã-Bretanha.
Esses cientistas trabalharam absolutamente conscientes de que tais
investigações envolviam alguns procedimentos inseguros, inclusive para
animais não humanos, conforme parecer do Conselho Britânico de
49
Investigações Médicas que não concedeu verbas para a referida pesquisa
(OLIVEIRA, F., 2002, p. 18).
A despeito de ter sido realizada fora do contexto ético vigente em seu país de
origem, o sucesso da aplicação da técnica, originando a criança desejada pelos pais acarreta
um tipo de corrida pelo acesso às novas descobertas, que não deixa de fora experimentos
realizados também aqui no Brasil. Fica registrado como marcante a morte de uma mulher em
São Paulo, em 1982, literalmente usada como cobaia em um “treinamento” de Fertilização In
vitro ministrado por uma equipe médica australiana à uma equipe brasileira, sendo este o
primeiro caso registrado mundialmente como óbito decorrente de prática de tecnologia
reprodutiva (DOSSIÊ..., 2003, p. 9; OLIVEIRA, F., 2004a, p. 54).
Os experimentos mais recentes revelam questões para além das referentes ao uso
inicial das técnicas, incluindo o abuso das tecnologias já estabelecidas, como nos diagnósticos
cada vez mais freqüentes de gestações múltiplas, com casos de até nove bebês, resultantes de
aplicação de técnicas de RHA, além de gestações em mulheres acima de 50 e até 60 anos
também estarem se tornando rotina nos noticiários (DOSSIÊ..., 2003, p. 23; OLIVEIRA, F.,
2002, p. 14, 16; OLIVEIRA, 2004a, p. 56). Estas novas formas de uso das tecnologias
demandam, por conseguinte, mais debates e estudos aprofundados sobre os componentes
éticos envolvidos estarem sendo violados ou não, e em que condições devem e podem ser
repensados, de forma que não se restrinjam ao papel, podendo ser detectados na prática.
Diante deste contexto, ao Estado caberia o estabelecimento de leis que favorecessem
“a convivência civil e o respeito às decisões de cada um” (BERLINGUER, 2004, p.36, 65),
entretanto não é algo simples estabelecer uma legislação adequada às situações refletidas pela
Bioética Cotidiana, tendo-se em vista que os campos das abordagens éticas e legais não
devem ser confundidos. “Para as situações cotidianas [...] a legislação é freqüentemente dúbia
e, pior, em muitas ocasiões é simplesmente omissa”, diz Garrafa (1995, p. 28). Berlinguer
reforça essa questão quando menciona a inseminação artificial e a ausência de normas
jurídicas e de serviços adequados, podendo ela ser executada sem “garantias científicas, sem
amparo jurídico, com inconvenientes de ordem prática e moral” (1993, p. 48).
Assim, sendo um procedimento de alta complexidade técnica, e que exige grande
responsabilidade por parte dos envolvidos, faz-se necessário que o poder público elabore uma
legislação “específica por pessoas que entendam profundamente do assunto, com a finalidade
de evitar os abusos e, dessa forma, possa-se manter os seus propósitos como uma conduta
eticamente confiável e, conseqüentemente, aceitável pela sociedade” (DINIZ e COSTA, 2001,
50
p. 186). Diante desta necessidade, buscamos explorar os documentos analisados, de forma a
perceber como vêm sendo constituídos os textos referentes à RHA no Estado brasileiro, e o
que eles denotam sobre as questões éticas que perpassam todo seu contexto.
52
3. PERCURSO METODOLÓGICO
O percurso metodológico escolhido para a realização desta proposta foi se
compondo de forma a englobar elementos que possibilitassem o direcionamento da pesquisa
para seu objetivo, qual seja o de refletir sobre o “direito de acesso ao serviço de reprodução
humana assistida no Brasil”, tendo como referencial de análise a Bioética Cotidiana.
Na confecção do trabalho de imediato fez-se necessário o resgate histórico sobre as
técnicas de reprodução humana, assim como também - ao longo já das primeiras etapas de
construção da proposta – foram se destacando e exigindo uma atenção especial as noções de
“família” e “planejamento familiar”, sob a ótica do Estado Brasileiro. Os pontos que
obtiveram destaque durante a coleta e posterior análise do material foram explorados dentro
das definições da proposta de trabalho, restringindo-se o foco ao “direito de acesso”, sem
desconsiderar, entretanto, a relevância dos demais pontos de discussão que foram se
evidenciando durante a leitura do material coletado.
Operacionalmente, este material foi lido para que os dados fossem ordenados, e em
seguida classificados a partir da consideração de sua relevância, sendo então transformados
em categorias específicas, que na etapa final de análise foram articuladas aos referenciais
teóricos da Bioética Cotidiana, de forma a responder às questões da pesquisa. Esta, assim, tem
a configuração descrita como em seguida:
3.1 Tipo de estudo
A proposta deste trabalho é de um estudo qualitativo, descritivo. A escolha por uma
pesquisa qualitativa se deu por sua preocupação em “compreender e explicar a dinâmica das
relações sociais que, por sua vez, são depositárias de crenças, valores, atitudes e hábitos”
(MINAYO, 1994, p.24). Neste tipo de pesquisa, é “a presença ou a ausência de uma dada
característica de conteúdo ou de um conjunto de características num determinado fragmento
de mensagem que é tomado em consideração” (BARDIN, 1977, p. 21).
O estudo é também delineado como descritivo por sua concepção interna focar-se
em um nível de interpretação que é a descrição da questão, sem aprofundar-se em todos os
53
elementos que compõem seu cenário, em suma, seu propósito é o de “observar, descrever e
explorar aspectos de uma situação” (POLIT e HUNGLER, 1995, p.119).
Como técnica de pesquisa de documentação indireta, para se levantar dados sobre o
campo de interesse, foi utilizada a pesquisa documental. As fontes primárias, ou documentos
– onde foi coletado o material para análise – foram os Arquivos Públicos Nacionais em suas
formas impressa (publicações oficiais) e digital (via Internet), em especial: Imprensa Nacional
http://www.in.gov.br; Câmara dos deputados http://www.camara.gov.br; Senado Federal
http://www.senado.gov.br; Ministério da Saúde http://www.saude.gov.br.
3.2 Coleta de dados
A busca por material impresso revelou-se de acesso difícil e irregular, sendo assim, a
pesquisa seguiu-se pela busca digital, que mostrou-se mais produtiva. Deve-se ressaltar aqui
que os portais do Governo Federal visitados para busca de material mostraram-se de bastante
utilidade, fácil acesso de navegação, assim como de acesso aos documentos oficiais
publicados.
Com a grande qualidade de produção das páginas visitadas, a pesquisa via internet
realizou-se de forma ágil, precisa e simples. Todas as publicações impressas já se
encontravam disponíveis via internet, o que permitiu mais segurança na coleta destes dados
via web. Para a coleta, foi definida a busca por todo tipo de material oficial que versasse sobre
“Reprodução Humana Assistida”, “Reprodução Assistida”, “Reprodução Humana”,
“Inseminação Artificial’, ou “Fertilização ‘In vitro’”, não sendo feita nenhuma restrição por
data de publicação ou tipo de documento, por exemplo. Com a pesquisa realizada por estes
unitermos, a abrangência de material a ser coletado seria, a princípio, maior.
Os tipos de documentos coletados podem então ser definidos como:
1) Documentos oficiais – leis, portarias, ofícios, relatórios, etc.;
2) Publicações parlamentares – atas, debates, documentos, projetos de lei, impressos,
relatórios, etc (LAKATOS e MARCONI, 2005, p. 176-178).
Neste primeiro levantamento foram encontrados os seguintes documentos e
publicações parlamentares:
54
Projetos de lei (PL’s):
o 5624/05 - Cria Programa de Reprodução Assistida no SUS e dá outras
providências;
o 4889/05 - Estabelece normas e critérios para o funcionamento de Clínicas de
Reprodução Humana;
o 4686/04 - Introduz art. 1.597-A à Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que
institui o Código Civil, assegurando o direito ao reconhecimento da origem
genética do ser gerado a partir de reprodução assistida, disciplina a sucessão e
o vínculo parental, nas condições que menciona;
o 4555/04 - Dispõe sobre a obrigatoriedade da Natureza Pública dos Bancos de
Cordão Umbilical e Placentário e do Armazenamento de Embriões resultantes
da Fertilização Assistida e dá outras providências;
o 2061/03 - Disciplina o uso de técnicas de Reprodução Humana Assistida como
um dos componentes auxiliares no processo de procriação, em serviços de
saúde, estabelece penalidades e dá outras providências;
o 1184/03 - Dispõe sobre a Reprodução Assistida;
o 1135/03 - Dispõe sobre a Reprodução Humana Assistida. Definindo normas
para realização de inseminação artificial, fertilização "in vitro", barriga de
aluguel e criopreservação de gametas e pré-embriões;
o 120/03 – Dispõe sobre a investigação de paternidade de pessoas nascidas de
técnicas de reprodução assistida. Permitindo à pessoa nascida de técnica de
reprodução assistida saber sobre a identidade de seu pai ou mãe biológicos;
o 4665/01 - Dispõe sobre a autorização da fertilização humana "in vitro" para os
casais comprovadamente incapazes de gerar filhos pelo processo natural de
fertilização e dá outras providências;
o 2655/01 - Autoriza o Governo do Estado do Rio de Janeiro, através da
Secretaria de Estado de Saúde, a implantar clínica especializada em reprodução
assistida e dá outras providências;
o 90/01 (subst) - Dispõe sobre a Reprodução Assistida;
o 90/99 (subst) - Dispõe sobre a Procriação Medicamente Assistida;
o 90/99 - Dispõe sobre a Reprodução Assistida;
o 2855/97 - Dispõe sobre a utilização de técnicas de reprodução humana
assistida e dá outras providências;
o 3638/93 - Institui normas para a utilização de técnicas de reprodução assistida.
55
Resolução nº 303/00 do Conselho Nacional de Saúde - norma complementar para a
área de Reprodução Humana, estabelecendo sub áreas que devem ser analisadas na
Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e delegando aos Comitês de Ética
em Pesquisa (CEPs) a análise de outros projetos da área temática;
Resolução nº 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina – sobre normas éticas para
a utilização das técnicas de Reprodução Assistida;
Portaria nº 426/05 do Ministério da Saúde - institui no SUS a Política Nacional de
Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida;
Lei 9.263/96 – Dispõe sobre o Planejamento Familiar;
Nota Técnica da Comissão sobre Acesso e Uso do Genoma Humano (Ministério
da Saúde) em parceria com membros do Projeto Ghente (apoiado pela
FIOCRUZ) - discutem os projetos de lei em tramitação e apresentam contribuições
para a futura legislação sobre Reprodução Humana Assistida.
3.3 Análise dos dados
Os documentos coletados foram trabalhados a partir das técnicas de Análise de
Conteúdo, descritas como
um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando obter, por
procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo da
mensagens, indicadores (quantitativos ou não), que permitam a inferência
de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis
inferidas), destas mensagens (BARDIN, 1977, p.42).
As fases de tratamento destes dados coletados englobam as seguintes etapas: pré-
análise, leitura flutuante, constituição do “corpus” e categorização do material coletado. Após
a categorização é possível iniciar a análise dos temas e categorias estabelecidos.
Ressalte-se que foi utilizada especificamente a Análise de Conteúdo Temática, que
visa a busca do sentido ou dos sentidos de um texto. Retiram-se as categorias mais
significativas, organizando-as em seguida em temas, ou unidades de análise, e percebendo
como estes se articulam dentro do discurso presente nos documentos coletados. A
56
interpretação - procedimento inerente nas fases de análise - entendida como uma produção de
sentidos, é o que possibilita a busca por esses sentidos no texto coletado.
Apelar para estes instrumentos de investigação laboriosa de documentos, é
situar-se ao lado daqueles que, de Durkhein a P. Bourdieu passando por
Bachelard, querem dizer não ‘à ilusão da transparência’ dos factos sociais,
recusando ou tentando afastar os perigos da compreensão espontânea
(BARDIN, 1977, p. 28).
3.3.1 Pré-análise
A pesquisa passou por diferentes fases, até chegar aos documentos finais de fato
analisados. Os conteúdos a serem analisados foram organizados de acordo com Bardin
(1977), que estabelece como constitutiva da fase de pré-análise as etapas de: escolha de
documentos, leitura flutuante e preparação do material de análise. Essa fase é descrita como
“um período de intuições, mas, tem por objetivo tornar operacionais e sistematizar as idéias
iniciais de maneira a conduzir um esquema preciso do desenvolvimento das operações
sucessivas, num plano de análise” (BARDIN, 1977, p. 95).
Diante deste primeiro levantamento foi feita uma seleção dos documentos mais
pertinentes para a realização desta proposta. A leitura flutuante se fez necessária para
destacar, dentro do material selecionado sobre a temática estudada, os documentos que de fato
referiam-se em algum momento ao acesso ao serviço de RHA. Foram descartados os textos
que não tratavam do tema objeto de análise.
Assim, ao final desta etapa de leitura flutuante, foram selecionados a Portaria/MS
426/05, em vigência até a presente data, e os projetos de lei, tendo-se em vista que é somente
a partir da aprovação de uma lei específica que o acesso ao serviço de reprodução humana
receberá um direcionamento claro e válido em todo território nacional, além do já
previamente estabelecido pela portaria, que refere-se estritamente ao SUS. O
acompanhamento do andamento dos PL’s foi possível através da rede do governo na internet,
o que permitiu reduzirmos ainda mais o número do material coletado, em função do
arquivamento de algumas propostas, e também da não adequação de algumas ementas ao foco
de nosso estudo, como já explicitado acima.
57
Desta forma, com a exploração deste material, dos 20 (vinte) documentos
encontrados na primeira seleção de material sobre o tema Reprodução Humana Assistida, o
“corpus” de análise foi restrito a 15 (quinze) Projetos de Lei e a Portaria/MS 426/05. Com
este material, foi realizada nova leitura para seleção dos textos adequados ao tema específico
da pesquisa. Durante este processo foram sendo descartados os projetos arquivados e os não
específicos sobre o tema. Os passíveis de análise para esta proposta reduziram-se, assim, ao
PL 1.184/03, que possui os apensos indicados na Figura 1 e à Portaria/MS 426/05.
Descartando-se os apensos da PL 1.184/03 que não são relativos à temática
pesquisada, temos no total 6 (seis) PL’s (dos 15 [quinze] encontrados inicialmente) e a
Portaria 426/05 que podem servir de objeto de análise para discutirmos a configuração do
direito de acesso ao Serviço de Reprodução Humana Assistida. Estes 6 (seis) PL’s e a Portaria
constituem portanto o “corpus” que é o “conjunto de documentos tidos em conta para serem
submetidos aos procedimentos analíticos” (BARDIN, 1977, p. 96-97)
PRT/MS 426/05
PL 1.184/03
PL 2.855/97
PL 4.664/01
PL 6296/02
PL 120/03
PL 2.061/03
PL 4.889/05
PL 5.624/05
PL 4.665/01
PL 1.135/03
PL 4.686/04
Figura 1: “Corpus” de análise
7
As regras utilizadas para o estabelecimento deste “Corpus” aqui trabalhado
obedeceram às propostas por Bardin (1977, p. 97-98) como sendo de exaustividade,
representatividade, homogeneidade e pertinência.
7
Os PL’s nos quadros em branco não estão sendo analisados por versarem sobre temáticas fora da proposta deste trabalho.
58
A exaustividade refere-se à utilização de todo material possível de ser inserido no
bloco de material a ser analisado. Ela pode ser observada quando da coleta dos 20 (vinte)
primeiros documentos encontrados a partir dos unitermos definidos para busca. Não foi
deixado de fora da leitura nenhum material coletado que contivesse os termos selecionados.
A representatividade vai tratar da amostra a ser analisada e sua representatividade
no universo inicial coletado. Assim, percebemos esta regra sendo utilizada quando dos 20
(vinte) documentos iniciais ficamos com 7 (sete) para análise de fato. Foram compor o
“corpus” todos os documentos que versavam sobre a temática a ser analisada sendo, portanto,
uma amostra rigorosa por ser representativa de seu universo, podendo ser generalizado seu
resultado.
A homogeneidade refere-se à obediência a critérios precisos na escolha dos
documentos, e pode ser percebida quando da definição dos critérios para a escolha do material
coletado, ao definirmos os unitermos para a busca, os locais para busca e as formas de
exclusão ou não de cada documento.
A pertinência refere-se à adequação dos documentos ao objetivo de análise do
trabalho, o que é evidenciado pelos próprios documentos coletados e listados anteriormente.
Dos demais documentos coletados, ainda são considerados – não para análise, mas
para embasamento da discussão – a Resolução do CFM, que serviu de base para a criação dos
PL’s, em sua maioria; a Lei 9.263/96, escolhida como ponto de ancoragem da discussão a ser
apresentada posteriormente; além da Nota Técnica do MS e Projeto Ghente, que auxilia no
pensar a questão a partir do olhar da Bioética.
3.3.2 Categorização dos dados
A fase seguinte, onde o material é preparado para ser analisado, é identificada por
Bardin (1977) como de categorização, onde os elementos que formam um conjunto são
diferenciados para poderem ser classificados. São diferenciados para que sejam estabelecidas
as categorias, e em seguida repartidos à medida que forem sendo encontrados.
Partindo da leitura dos documentos analisados, os dados que compunham o Direito
de Acesso ao Serviço de Reprodução Humana Assistida foram se destacando e configurando
os 3 (três) temas mais amplos utilizados, denominados como:
59
- Acesso a quê? – o que está sendo possibilitado de ser acessado;
- Acesso para quem? – a quem se destina este acesso;
- Condições e critérios de acesso – como e quando ele é disponibilizado, em que
situações, etc.
A partir da configuração destes 3 (três) grandes temas, puderam ser criadas
categorias e subcategorias de análise, conforme ilustra a figura 2.
“Corpus”
Acesso a quê?
Acesso para quem?
Condições e
critérios de acesso
Casal
Técnicas de RHA Pré-requisitos
RHA no SUS
Exceções
Casados no civil
Em união estável
Homem
Mulher
Usuário do SUS
Figura 2. “Corpus”: Temas, Categorias e Subcategorias
A categorização destes elementos obedeceu às regras descritas por Bardin (1977, p.
120) como exclusão mútua, homogeneidade, pertinência, objetividade e produtividade.
A exclusão mútua objetiva a não existência de um elemento em mais de uma
divisão, ele não pode ter dois ou mais aspectos para ser classificado em mais de uma
categoria. A homogeneidade prevê que a organização dos elementos deve ser direcionada por
um único princípio.
A pertinência refere-se à adequação da categoria ao material coletado e ao
referencial teórico escolhido. A objetividade trata de codificar da mesma forma as diferentes
partes de um mesmo material, contando para isso com a clareza de definição das variáveis
60
para inserir os dados em tais categorias. Por fim, a produtividade vai trabalhar com a
produção fértil ou não que o conjunto de categorias estabelecidas fornece.
As categorias de análise foram se estabelecendo a partir dos grandes temas
encontrados, que se compuseram conforme as seguintes descrições:
3.3.2.1 “ACESSO A QUÊ?”
A definição do primeiro tema foi possibilitada desde uma primeira leitura do
material coletado. De imediato os documentos definem o que está sendo tratado em seu corpo
de texto, o que permitiu a configuração do primeiro tema com certa facilidade. Esta
facilidade, entretanto, não o torna um tema de categorização simples e/ou de pouca
importância.
A leitura exaustiva dos documentos e a atenção às regras de categorização
anteriormente expostas necessitaram ser realizadas com grande intensidade para evitar
categorias sobrepostas, ou também o uso desnecessário de subcategorias.
Com este foco, foram denominadas “Técnicas e RHA” e “RHA no SUS” as
categorias que melhor definem o tema “Acesso a quê?”. Na tabela 1, com os documentos em
separado tendo algumas de suas características evidenciadas, podem ser percebidas algumas
das formas utilizadas nos textos para descrever os dados que compõem este tema.
3.3.2.2 “ACESSO PARA QUEM?”
Após a identificação do que está sendo permitido ser acessado na documentação
analisada, o tema a ganhar destaque foi denominado “Acesso para quem?”. Aqui foram de
extrema relevância as regras definidas por Bardin (1977), pois as categorias foram sendo
definidas tanto pela sua presença excessiva no texto dos documentos analisados (caso da
categoria “mulher”) como pela sua ausência no mesmo (caso da categoria “homem”).
A ausência da categoria “Homem” nos textos já era sentida desde a primeira leitura
dos 20 (vinte) documentos iniciais coletados. Em todos eles não havia referência a homens
como passíveis de acessar os serviços e técnicas de RHA, excetuando-se o PL 2.061/03, que
61
destacou-se neste tema justamente por ser o único dos 7 documentos de composição do
“corpus” de análise a referir-se à possibilidade de um homem ter acesso à RHA.
A categoria “Mulher” em uma primeira leitura menos criteriosa poderia se
evidenciar como a única nos textos. Com uma leitura mais minuciosa pode-se, contudo,
perceber que sua presença nos textos dá margem para a criação da categoria Casal e suas
subcategorias, em função de no detalhamento dos documentos surgirem restrições às
mulheres casadas ou em união estável. Somente o PL 4.665/01 e a PRT/MS 426/05 referem-
se diretamente ao Casal enquanto categoria.
A categoria “Usuário do SUS” surge a princípio do destaque no texto do acesso a
“pessoas” inférteis ou doentes. Estas poderiam a princípio compor uma categoria, mas a
adequação às regras de categorização novamente nos remeteu a uma leitura mais criteriosa. O
termo “pessoas” não define se são homens ou mulheres que podem acessar, ficando então
subentendido que ambos possuem esse direito. Como não há no texto evidências que
contradigam esta possibilidade, mas por outro lado há a clara definição que estas “pessoas” a
que os textos se referem são os usuários do SUS, essa última denominação foi preferida para
designar uma categoria.
3.3.2.3 “CONDIÇÕES E CRITÉRIOS DE ACESSO”
Apesar de já ter sido definido o que estava sendo acessado no texto dos documentos
avaliados, na leitura do detalhamento das propostas ficam evidenciadas algumas situações
onde o acesso se tornava restrito. Para poder acessar as categorias destacadas no tema
“Acesso a quê?” alguns requisitos precisavam ser preenchidos, o que permitiu a criação de
mais um grande tema de análise, denominado “Condições e critérios de acesso”. Nestas
condições e critérios foram inseridos pré-requisitos e exceções.
Os pré-requisitos para se poder acessar o que o documento disponibiliza são
considerados a partir de trechos dos textos onde são percebidas definições como: ser infértil,
ter indicação médica para usar o serviço, já ter tentado todas as demais alternativas de auxílio
à procriação, dentre outros.
As exceções são definidas a partir de trechos onde são destacados os casos onde não
podem ser acessados os itens propostos nos documentos, exceto diante de algumas condições
extraordinárias, tais como: não pode ser utilizada a RHA para ser feita seleção de sexo ou
62
demais características – exceto quando para evitar doenças genéticas ou hereditárias; não
pode ser feita gestação de substituição – exceto quando da impossibilidade de gestação
(comprovada medicamente) por parte da receptora da técnica.
3.3.2.4 NÚCLEOS DE SENTIDO
Após a delimitação das grandes áreas temáticas, sua categorização e
subcategorização, foram revelados núcleos de sentido, os quais são compreendidos como
temáticas para análise ao final do trabalho. Abaixo a figura 3 permite vislumbrar os 5 (cinco)
núcleos levantados como propícios para a discussão aqui desejada.
Figura 3: Núcleos de sentido
A tabela a seguir (Tabela 1) detalha o material analisado, com os documentos em
separado, possibilitando a visualização dos temas, e os sentidos – que permitiram a
emergência dos núcleos para análise, expostos acima - que puderam ser captados a partir dos
trechos de textos que foram delineando-os, durante o processo de categorização dos
documentos contidos no “corpus” de análise.
63
64
3.4 Considerações éticas na pesquisa
Por ser uma pesquisa com material apenas documental e de acesso público, não
houve risco ético quanto ao tratamento com seres humanos, tendo-se em vista que não foram
realizadas entrevistas ou qualquer outra forma de contato direto ou indireto com os autores
dos documentos analisados. Não há, por conseguinte, risco potencial, individual ou coletivo
para nenhuma das partes.
O estudo compromete-se a estimular o debate público do tema abordado, sem incitar
ataques pessoais aos formuladores dos documentos analisados, visando manter a discussão no
âmbito da avaliação do conteúdo deste material.
Com a exposição pública dos dados avaliados através de publicação em periódico de
circulação nacional, apresentação em congressos, seminários e demais eventos, sejam eles
específicos ou não do campo da Saúde Pública, buscaremos expandir a discussão,
promovendo um intercâmbio de informações com outras áreas do saber.
66
4. O OLHAR BIOÉTICO SOBRE A CONFIGURAÇÃO DO DIREITO DE
ACESSO
4.1 Direito de Acesso
Na etapa de categorização dos dados, conforme descrito no capítulo de metodologia
deste estudo, foram identificados os temas que surgiam a partir da leitura exaustiva e atenta
do material coletado. Nesta busca pelos sentidos presentes nos textos, extraindo dali os
significados possíveis para a caracterização do direito de acesso ao serviço de RHA, os
grandes temas foram se evidenciando como estruturais para compor esta caracterização, e,
neste sentido, não conseguimos compreender outra composição melhor para debater o tema de
estudo do que a que o próprio texto faz surgir, que identificamos por: Acesso a quê?, Acesso
para quem?, e Condições e critérios de acesso.
Detalharemos os sentidos vislumbrados nestes grandes temas, destacando suas
categorias, de forma que possamos já levantar alguns questionamentos diante de cada área
temática aqui detalhada. Seguiremos a discussão com a compreensão da complexidade do
estudo, diante do entrelaçamento das áreas temáticas, que será em seguida vinculada aos
referenciais teóricos para podermos embasar algumas considerações.
4.1.1 Tema 1: Acesso a quê?
A primeira grande área temática é evidenciada a partir das diferenças dentro dos
textos, sobre o que está sendo discutido em seu corpo. O destaque é a princípio óbvio, pela
caracterização de estar tratando de “Reprodução Humana Assistida”, ou a “Acesso às
tecnologias de RHA no serviço público de saúde”. Pela definição a partir do que é obvio e que
salta do texto, o grande tema se divide então em duas partes: podem ser acessados tanto
técnicas de RHA, como especificamente estar sendo tratado o acesso às técnicas e serviços de
RHA no SUS.
67
A um primeiro olhar menos atento, a área temática em si não representaria grande
ponto de discussão, entretanto, esmiuçando os documentos analisados, já se evidencia o
primeiro problema presente nestes: uma aparente falta de conhecimento específico, técnico,
por parte de quem estrutura a proposta. Ou seja, embora se evidencie desde a ementa de
alguns PL’s que o texto se debruçará, por exemplo, sobre a RHA (e assim ela sendo entendida
como um todo de variadas técnicas possíveis), dentro de seu corpo de texto o referencial do
escritor restringe esta RHA a alguma de suas técnicas, como a fertilização in vitro, por
exemplo, como se esta técnica fosse sinônimo de RHA, esquecendo-se das variadas
especificidades dentro do campo de RHA
8
.
Não parecendo, a princípio, também um grande equívoco para um olhar leigo, a
discordância entre o termo dentro do próprio texto proposto para tornar-se lei, regulando
então todo o trabalho em cima da RHA, poderia já de imediato causar danos futuros, pois
aprovada uma lei onde em seu texto aparece RHA, mas é especificada apenas Fertilização in
vitro, como no exemplo citado, como ficaria o direito de acesso às demais técnicas existentes
dentro do campo de RHA? E ainda, já existindo uma portaria, vigente até a presente data, que
dispõe sobre o Programa de RHA no SUS, como se comportariam as instâncias que lidam
com todo o processo de acesso ao serviço de RHA - quais sejam elas o direito e a medicina,
representados respectivamente por seus profissionais tanto na confecção de autorizações para
acesso, como na prática diária do serviço de RHA – diante da aprovação de alguma lei que
restrinja o direito de acesso a apenas uma das muitas possibilidades técnicas existentes e já
disponibilizadas até o momento?
Se pensarmos ainda um pouco mais além do direito de acesso ao serviço de RHA no
SUS, teremos que no serviço privado, cujas novidades em termos de possibilidades técnicas
são evidenciadas a cada momento pela mídia, a legislação também incidiria, mas como
poderia ser pensada uma regulação de algo que já possui tantas alternativas técnicas
disponibilizadas, e vislumbradas pela ótica do poder de consumo? Embora não seja o foco de
discussão deste trabalho, não podemos esquecer da existência deste setor de serviço de saúde,
e sua forte influência e consolidação em nossa estrutura social. Estes são, assim, apenas
alguns - dos muitos possíveis - questionamentos que espontaneamente surgem já no primeiro
e mais aparente aspecto de todo o “corpus” analisado.
8
Referência ao exposto no texto do PL 1135/03 (Anexo D), cuja ementa difere do detalhamento presente no corpo do texto. As incoerências
podem ser encontradas em outros PL’s, como o PL 1184/03, por exemplo, que na ementa expressa “RHA”, e no corpo do texto refere-se
apenas a duas possibilidades dentro da RHA, quais sejam a Inseminação Artificial e a Fertilização In Vitro.
68
4.1.2 Tema 2: Acesso para quem?
O segundo grande tema inicialmente poderia ser considerado a única referência para
análise, se pensássemos em trabalhar apenas com quem tem direito de acesso ao serviço de
RHA. Entretanto, a opção tomada para estudo foi a de ampliar o foco para a compreensão da
configuração do direito de acesso, sem restringi-la a quem teria esse direito, de forma que essa
configuração espontaneamente indicasse os pontos principais de discussão. Assim, novamente
a leitura exaustiva se fez vital para a compreensão dos sentidos que o texto naturalmente
ressaltaria. Também neste tema não houve diferença do ocorrido no tema anterior: o que
parecia evidente e simples a um primeiro olhar, se mostrou revelador de possibilidades árduas
de discussão, conforme tentaremos abordar neste momento.
O primeiro item que se faz presente nos textos analisados é, sem possibilidade de
dúvida, a destinação do acesso para a mulher. Em quase todos os projetos analisados o texto
refere-se de imediato à ela como quem teria o direito de acessar o que o texto dispõe.
Contudo, embora possa parecer um tipo de avanço, por não especificar que mulher é essa que
teria acesso ao disposto no texto, a continuação das leituras desfaz esta primeira impressão. A
mulher ali descrita, pode sim ser a mulher solteira, não discriminada por sua condição de
solteira como impossibilitada de ser mãe, mas não é a mulher por si só, que os textos se
referem. A mulher solteira pode acessar, e sendo casada ou em união estável, torna-se
necessária a autorização do cônjuge ou companheiro, para que ela tenha acesso ao que for que
o texto disponibilize
9
.
Dessa forma, o acesso não fica assim tão disponível para a mulher como pareceria
de imediato. Estaria ela já de início dependente da autorização de mais um agente externo,
além do legislador, e também do médico responsável pela aplicação das técnicas. Nesse
sentido, surge a partir da categoria mulher, a categoria casal, já subdividida em: casais em
união estável, ou casais em união civil. Embora pudesse ser compreendida como uma
subcategoria da primeira, a categoria casal pode ser uma categoria por si só, visto que suas
subdivisões diferenciam de imediato o acesso da mulher, não sendo mais esse acesso à mulher
em si, como no caso da mulher solteira, mas para uma mulher a partir de pré-condições dentro
de uma relação marital.
9
Como exemplo, o texto do PL 1135/03 (Anexo D), no Cap. II, Art 9º: “Toda mulher, capaz nos termos da lei (...) pode ser receptora das
técnicas de reprodução assistida(...)”, e na seqüência, coloca em Parágrafo Único: “Estando casada ou em união estável, será necessária a
aprovação do cônjuge ou do companheiro (...)”. O mesmo dado se repete em outros PL’s além deste.
69
À esta categoria soma-se também o disposto na PRT/MS vigente (Anexo A), de
acesso ao programa de RHA no SUS, onde a expressão casal é literalmente exposta,
compondo assim a categoria isolada. Contudo, em ambos os casos que a compõem, destaca-se
que o objeto de intervenção das técnicas é ainda a mulher, mesmo em condição de casal. Não
se fala abertamente em intervenções no homem desse casal, o que já é um primeiro ponto a
ser discutido, além de se falar em casal enquanto associação HOMEM-MULHER, não sendo
pensada outra forma de composição de casal.
De todos os documentos analisados, apenas um deles, o PL 2031/03 (Anexo F), fala
em acesso ao homem (Art 8º: “São beneficiários desta lei todo homem e mulher (...)”), e a
existência de apenas uma indicação se faz por si só reveladora de sentido, configurando uma
categoria própria, com suas problemáticas peculiares. Os textos são divergentes em se
tratando de gestação de substituição, e nesse sentido, seria de grande importância uma
discussão mais aprofundada e minuciosa desta questão, pois sua negação não contribui para
pensar o acesso de forma universal, ainda em uma primeira avaliação. A gestação de
substituição seria a forma possível de um homem – a princípio o solteiro – ter acesso ao filho,
este compreendido como o produto do serviço de RHA. Não há referências de acesso ao
homem em caso dele compor um casal, neste caso a referência é a mulher como objeto de
intervenção, como já anteriormente exposto. Entretanto, ressalte-se novamente que embora
não seja objeto de intervenção, o homem é aqui objeto de interdição do acesso dessa mulher,
caso não esteja em concordância com a mesma.
Uma quarta e última categoria surge a partir de propostas de regulação específica
para o serviço no SUS, onde quem tem direito de acesso passa a ser descrito como “pessoa”,
sem definição de gênero para discriminá-la. Dessa forma, fica implícita a possibilidade de
ambos os sexos terem acesso ao serviço, em quaisquer que sejam seus estados civis, o que
representaria uma perspectiva bastante abrangente sobre quem tem direito de acesso ao
serviço. A limitação, aqui, se faz a partir da postulação de “pessoa” enquanto aquela usuária
do SUS, conforme expresso no PL 5634/05 (Anexo G), deixando de fora os que buscam o
serviço no âmbito privado. Aprovada esta proposta de legislação, novamente vem à tona o
questionamento, de como fica o procedimento de regulação e fiscalização dos mesmos
serviços no setor privado?
As categorias vislumbradas nesta área temática não necessariamente são obtidas a
partir de um mesmo texto, o que nos permite pensar também que diante da aprovação como
lei, de algum dos materiais analisados, umas categorias estariam sendo legitimadas, em
detrimento de outras. Se pegarmos apenas a primeira categoria como exemplo, teríamos já de
70
início bastante material para discussão, tendo-se em vista que aprovada uma legislação que
destina à mulher o acesso, mas em seguida o restringe ao poder de decisão de um cônjuge,
ainda que seja o corpo dela o objeto de intervenção, seria de fato este acesso igualitário? E
ainda, que tipo de família estaria sendo legitimada a partir desta aprovação? Englobaria os
modelos de família que compõem nossa sociedade contemporânea? Retornaria ao modelo
nuclear de família? O que poderia ser inferido diante destes sentidos que saltam dos textos
nesse tema? Estas poderiam ser as perguntas iniciais que o disposto nesta área temática nos
permite vislumbrar.
4.1.3 Tema 3: Condições e critérios de acesso
A terceira e última grande área temática que surge a partir da leitura do “corpus” de
análise, define condições e critérios de inclusão e, por conseguinte, exclusão para se acessar o
que os textos propõem. Nesta temática, foram visualizadas duas grandes categorias, que
englobam os dispostos nos textos: Pré-requisitos, e Condições de exceção.
Os pré-requisitos para se ter acesso ao disposto nos textos são denotados em
disposições onde se destacam: a) a necessidade de comprovação de esterilidade/infertilidade
para ter direito ao acesso; b) o uso ineficaz de outras formas de terapêuticas para facilitar a
procriação, para somente após estes insucessos poder ser entendido como tendo o direito de
acessar o que o documento estiver propondo; e c) o direito de acesso se dá diante da
possibilidade de êxito na aplicação das técnicas, o que inclui a ausência de risco para a mulher
e a criança
10
.
Nesta primeira categoria, algumas questões podem já ser vislumbradas. A primeira e
mais latente, é a de que somente possuindo uma incapacidade natural se pode acessar sejam as
técnicas de RHA, sejam estas no SUS mais especificamente. Esta disposição já coloca nas
mãos do saber médico a definição de quem pode ou não ter esse direito de acesso, ficando de
fora as pessoas que não possuem infertilidade/esterilidade medicamente comprovada. Não
somente impossibilitando o uso da livre escolha dos sujeitos para decidirem as formas de
conceber seus filhos dentro das possibilidades existentes e proporcionadas também pelo
10
Trechos dos textos que corroboram estas situações caracterizadas como pré-requisitos para se ter acesso podem ser encontrados em
diferentes documentos dentre os analisados. Como exemplo, podemos pontuar no
Item “a”: PRT/MS 426/05 (Anexo A), PL 2855/97 (Anexo
B), PL 4665/01 (Anexo C), PL 1135/03 (Anexo D), PL 1184/03 (Anexo E); no
Item “b”: PL 2855/97 (Anexo B), PL 1135/03 (Anexo D), PL
1184/03 (Anexo E), PL 2061/03 (Anexo F); e no
Item “c”: PL 2855/97 (Anexo B), PL 2061/03 (Anexo F).
71
Estado, esta definição também não permite pensar o direito de acesso a homossexuais, por
exemplo, entendendo que não necessariamente por ser homossexual a pessoa em questão
apresentará também incapacidade orgânica de procriar.
No caso da homossexualidade feminina, historicamente constatada como invisível
em diversas situações, há a possibilidade de ter o direito de acesso, desde que seja
infértil/estéril, e passando-se por mulher solteira, caso possua uma companheira. O caso
masculino já não seria tão rápido de se resolver, tendo-se em vista que sendo ou não infértil, a
gestação de substituição necessitaria ser incluída para ele ter direito de fato ao acesso. Em
ambos os casos, somente a partir da infertilidade/esterilidade haveria alguma chance de se
pensar em ter direito de acessar o serviço de RHA.
A esterilidade/infertilidade só não é compreendida como requisito inicial para se ter
o direito de acesso, quando outra característica se sobrepõe à ela, qual seja esta a de portador
de doenças genéticas e/ou infecto-contagiosas. Ainda assim, permanece no campo do saber
médico a definição de quem se insere ou não neste quadro.
O direito de acesso também teria como pré-requisito o uso já comprovado de outras
técnicas com insucesso. Novamente coloca-se na mão do detentor do saber médico a
definição de quem tem ou não direito de acessar a RHA. Não somente reitera-se aqui o
disposto anteriormente sobre o papel decisivo do médico no processo, como também
desconsidera-se o desgaste físico e psicológico dos detentores do direito de acesso a qualquer
que seja a proposição do texto. Torna-se o direito de acesso não somente restrito pela
infertilidade/esterilidade biologicamente existente e medicamente atestada, mas também pela
insistência em técnicas outras de insucesso comprovado, para somente na seqüência acessar a
técnica “efetiva” em si. Dificulta-se assim o caminho para este acesso, mantendo na mão do
médico a definição de quem tem o direito à ele.
Para complementar a supremacia do saber médico na definição deste detentor de
direitos no acesso à RHA, cabe também à ele definir se e em que situações há garantia real de
sucesso quando da aplicação da técnica de RHA a ser usada, e assim não causar risco para a
mulher e a criança fruto da técnica. Assim, questionamos o que se considera como êxito
nestas propostas, e se de fato há como prevê-lo. Se o êxito se referir à efetiva gestação
resultante do uso das técnicas, há como se garantir ausência de risco para mãe e criança,
considerando-se os riscos inerentes à qualquer gestação?
Mais uma vez, também, não se menciona o homem como passível de deter este
direito de acesso, tendo-se nestas disposições o corpo da mulher podendo ser claramente
72
percebido como o objeto de intervenção
11
. Entretanto, ele não é excluído do processo,
enquanto for necessário o espermatozóide para a fecundação ocorrer. Neste sentido, está ele
assim de fato excluído das possibilidades de correr risco no processo de aplicação das técnicas
de RHA, ainda que a intervenção maior seja realizada no corpo da mulher? Como pré-
requisitos também se encaixam as limitações a ter o direito de acesso somente em clínicas
autorizadas pelo MS - Ministério da Saúde, ou na rede do SUS (vide a PRT/MS 426/05 –
Anexo A - e o PL5624/05 – Anexo G), o que configuram aqui a regulação do Estado também
ao local onde se terá direito de acesso.
As chamadas condições de exceção configuram a segunda categoria dentro desta
temática, e seu sentido é expresso a partir de disposições que primeiro impedem o direito de
acesso, somente autorizando-o quando alguma situação considerada mais importante se fizer
presente. Nesta categoria são incluídas as situações onde não é permitida a seleção de sexo ou
outras características do futuro embrião, exceto diante da possibilidade de com estas seleções
serem então evitadas doenças genéticas ou hereditárias; e também o uso da gestação de
substituição, quando a receptora da técnica for impossibilitada por algum problema médico.
Nestas condições de exceção, os documentos analisados são divergentes, e embora
configurem este bloco, não podemos dizer que expressam estas questões sob a mesma
perspectiva. Alguns documentos expressamente proíbem seleção de sexo ou demais
características, ignorando com isso os casos onde as doenças genéticas ou hereditárias tornam
inviável a procriação tida como “natural”. Dessa forma, sendo aprovado algum deste
documento como lei, como ficam as pessoas que necessitam do uso das técnicas para gerar
um filho sem que ele corra o risco de ser acometido da mesma doença? Que dispositivos terão
em se tratando de desejarem um filho biológico? Serão estas pessoas destinadas a não ter o
direito de acesso à RHA, tendo somente na adoção a alternativa para terem filhos? Como se
comportará o programa de RHA já em vigência no momento, que incorpora esse controle de
doenças nas suas condições de acesso?
Compreendemos que neste ponto de discussão há um cuidado por parte dos
documentos em não proporcionar um espaço para legitimação de práticas eugênicas,
conforme é expresso abertamente no PL2855/97 (Anexo B), por exemplo, quando postula
como infração o uso da “técnica de RHA com fins eugênicos”. Entretanto, ao estabelecerem
condições de exceção a possibilidades de uso em casos de doenças genéticas ou hereditárias,
11
Como exemplo, podemos citar o PL 1184/03 (Anexo E), que dispõe no Cap I, Art 1º “Esta Lei regulamente o uso das técnicas de
Reprodução Assistida (RA) (...), no organismo de mulheres receptoras”.
73
sem a especificação de que doenças estão sendo consideradas, não permaneceria em aberto a
possibilidade de prática eugênica?
Os demais documentos que vinculam a seleção de características e sexo ao controle
de doenças, nos permitem refletir também sobre outras questões além das acima citadas. Indo
mais além, como regular esta seleção de características a partir de doenças prévias no setor
privado também, que alardeia na mídia impressa e televisiva casais “felizes” que usaram dos
recursos da RHA para realizarem o desejo por um filho de determinado sexo em detrimento
de outro? E a partir deste disposto, como também não permitir esta seleção no setor público,
em função do desejo por um filho de determinado sexo, se houver permissão, ou pouca – ou
nenhuma – regulação desta prática no setor privado? O que está em avaliação nestas questões
de seleção de sexo e características, quando se interpõem os setores público e privado de
saúde: os riscos para a saúde do futuro bebê?; o desejo dos pais por um filho de um sexo e não
de outro?; a RHA como um bem de consumo, onde “regalias” no direito de acesso às técnicas
mais sofisticadas seriam restritas aos que pudessem por elas pagar?; todas, nenhuma, ou
alguma outra além das alternativas levantadas? Enfim, apenas algumas das possíveis reflexões
iniciadas por uma das partes que compõem esta categoria.
A outra composição desta categoria é a gestação de substituição, ora proibida, ora
permitida. Quando proibida, como já mencionamos anteriormente, exclui automaticamente a
possibilidade de um homem ter o direito de acesso sozinho e direto às técnicas de RH, ficando
ele restrito a um vínculo conjugal para poder ser caracterizado como detentor do direito de
acessar a RHA. Exclui também a possibilidade de uma receptora da técnica, que por algum
motivo não seja capaz de levar adiante ou mesmo iniciar a gestação, tenha direito de acessar o
mesmo serviço. Por outro lado, quando permitida, restringe o acesso à essas mulheres com
comprovação médica de impossibilidade de gerar o próprio filho no ventre, não vislumbrando
outra condição para o uso da gestação de substituição. Aqui, a sujeição ao saber médico
permanece e se reforça, assim como a visão de somente ter a mulher como objeto de
intervenção das técnicas de RHA.
A portaria em vigência acerca da Política de Atenção Integral à RHA no SUS é
omissa na questão da gestação de substituição, abordando apenas a possibilidade de controle
de doenças por transmissão vertical ou horizontal. Nesse sentido, poderíamos entender que o
acesso à esta alternativa de gestação é algo em aberto no momento, podendo ser permitido ou
proibido de acordo com os interesses dos envolvidos? E, ainda, que este pode a qualquer
momento ser proibido ou permitido de fato, com a aprovação como lei de algum dos PL’s
acima comentados? Além disso, há alguma regulação do tema no setor privado? Havendo ou
74
não, diante da aprovação de uma lei específica, que incidirá nos dois setores de saúde, público
e privado, existe alguma forma de equiparação dos direitos de acesso nos dois setores, ou
novamente fica-se diante do questionamento proposto no caso da seleção de sexo, do direito
de acesso vinculado ao poder de consumo?
4.2 Complexidade da discussão – a imbricação de temas
Não bastassem as inúmeras questões que vão sendo levantadas diante da análise dos
temas surgidos do “corpus” definido, as relações entre as categorias que compõem esses
temas dificultam ainda mais a discussão dos mesmos. As áreas temáticas, embora
tecnicamente separadas para categorização e posterior análise, não são áreas estanques,
isoladas ou estáticas. São, na verdade, temáticas interrelacionadas, com detalhes que as
diferenciam ou assemelham, e de complexa separação para análise em alguns momentos.
Didaticamente pode-se separar as categorias para levantar as questões de forma mais clara
para o leitor, mas ainda assim, não podemos deixar de ressaltar que estas mesmas categorias e
subcategorias estão o tempo inteiro em relação umas com as outras. Os sentidos vislumbrados
a partir destas também, e por vezes dentro da mesma categoria estes sentidos já possuem
alguma interrelaçao que torna sua análise por vezes árdua.
Entretanto, não é proposta deste trabalho esgotar as possibilidades de
questionamento, ou de análise e discussão destes, muito pelo contrário, o intuito é de levantar
questões, discutindo-as na medida do possível dentro dos referenciais teóricos escolhidos, e
deixar ao leitor a possibilidade de concordância ou não com as discussões levantadas, assim
como de levantar outras ainda, que permitam aprofundar ainda mais o que for aqui proposto,
assim com a própria discussão maior em torno da RHA.
O interesse maior é contribuir para uma discussão bioética de como se comporta
essa configuração do direito de acesso ao serviço de RHA, em especial no SUS. Aqui vale
mais um aparte, pois embora estejamos dando maior atenção ao serviço de RHA no SUS, de
forma a perceber como se concebe este direito dentro da política pública, não podemos deixar
de olhar para o que já existe no setor privado, em face também dele ser o grande responsável
pela disseminação das informações sobre RHA na mídia, e dessa forma levando esta
possibilidade de reprodução ao conhecimento da população em geral. Mesmo não sendo
75
objeto de análise, a RHA no setor privado de saúde não nos escapa na discussão, servindo por
vezes de ponto para ancoragem de alguns questionamentos importantes, diante do fato de
estarmos analisando primordialmente projetos de lei, que sendo aprovados regulamentarão o
serviço nos dois setores de saúde.
A partir destas proposições, passaremos agora a um novo momento neste trabalho,
onde olharemos as mesmas questões e sentidos levantados do “corpus” composto para análise,
buscando enfatizar as discussões com um olhar da bioética, em especial da bioética cotidiana.
Nesta seção, serão discutidos os sentidos anteriormente levantados a partir dos textos dos
documentos analisados, de forma a articulá-los com referenciais de análise dentro da Bioética,
em especial a Bioética Cotidiana.
Para tanto, foram isolados grandes núcleos de sentido a partir do detalhamento
realizado na seção anterior que vão, ao longo da leitura e revisão das temáticas já abordadas,
se evidenciando como constitutivos desse direito de acesso ao serviço de RHA, neste trabalho
tomado como objeto para uma discussão minimamente mais aprofundada de sua
caracterização. Aqui não estão separados os blocos de discussão a partir das áreas temáticas,
como na seção anterior, mas sim por grandes núcleos de sentido que englobam em seu
conjunto pontos que perpassam as três áreas temáticas exploradas, conforme explicitamos ao
ressaltar a complexidade da discussão a partir do entrelaçamento entre estas áreas.
4.2.1 Gênese dos documentos analisados – ética médica como lei
federal(!?)
Dos documentos componentes de nosso “corpus” de análise, apenas um não é um
Projeto de Lei, a PRT/MS 426/05. Os demais são PL’s oriundos de um mesmo documento
base: a Resolução 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina. Esta resolução tem por
finalidade estabelecer determinantes éticos para guiar as ações do médico dentro do contexto
das tecnologias de RHA. Enquanto normativa da classe médica, não há qualquer
constrangimento quanto ao seu texto ou sua efetivação, entretanto, o texto que a constitui é
copiado para ser transformado em Projeto de Lei, o 3.638/93, primeira proposta legislativa
sobre o tema RHA. Salvo mínimas alterações no texto da Resolução do CFM, este PL inicial
é uma cópia do mesmo, e embora não componha o corpus de análise por não mais estar sendo
76
objeto de avaliação para transformar-se em uma lei federal, seu texto serve de base para os
PL’s que o sucedem, alguns também usando o corpo de texto quase na íntegra, alterando um
ou outro aspecto de sua constituição. Embora outros PL’s não possam ser também
considerados cópias deste, o tem como base para sugerirem alterações.
Neste sentido, entramos no primeiro ponto a ser discutido nesta seção: o documento
do CFM é um normativo da categoria médica, e como tal cabe somente à esta categoria
avaliá-lo e estabelecer sua pertinência ou não dentro do contexto de suas práticas. Contudo,
sua utilização como texto base para um PL, que por intuito inerente à sua constituição
pretende ser feito Lei, estaria adequada ao que já vimos até o momento sobre respeito aos
direitos de liberdade dos indivíduos, no que concerne ao fato de estar sendo desejada a
transformação de moralidades de uma categoria profissional em Lei Federal (GUILHEM e
PRADO, 2001, p. 116), que passariam a incidir sobre toda uma população, independente de
pertencerem ou não à esta mesma categoria? Seria a categoria médica, então, a única instância
social a ter capacidade e, com esta, poder de definir os critérios para acessar o serviço de
RHA, ainda aqui independente de ser no SUS ou no setor privado?
Considerando estes questionamentos, podemos nos remeter à própria constituição da
medicina e dos médicos enquanto categoria
12
, arraigada por um paternalismo que tem no
princípio bioético da Beneficência sua coluna de sustentação. Ordenados pelo juramento
hipocrático, crêem ser capazes de fazer o bem ao outro, a partir de sua própria avaliação
profissional do que seja este bem, a despeito do que este outro que irá receber o bem formula
a respeito de tal ato.
Portanto, há na medicina hipocrática uma beneficência verticalmente
paternalista que não permite ao paciente – objetivo maior do ato
médico – sequer manifestar o seu interesse em recebê-la, pois parece
estar implícito no julgamento do profissional de medicina que,
tratando-se de uma ação benfeitora, não haveria porque recusá-la – o
que torna a beneficência médica, muitas vezes, um paternalismo
impositivo e cerceador da autonomia do paciente (DRUMOND, 2004,
p. 159-160).
Revisitando os princípios postulados por Beauchamp e Childress observa-se que a
beneficência refere-se a uma “ação realizada em benefício de outros” (2002, p. 282), e seu
12
Trazendo para debate sobre a assistência médica as estratégias da “compaixão” e do “utilitarismo” Caponi (2000) – em um trabalho mais
aprofundado e diferenciado da proposta deste estudo – nos leva a refletir sobre a gênese dessas práticas assistenciais e seus limites éticos e
políticos. A partir de uma análise histórica a autora nos permite vislumbrar não somente as práticas assistenciais dos séculos XVIII e XIX,
mas também: sua repercussão nas práticas atuais; a possível fundamentação para compreender o arraigamento destas em nossa sociedade e,
ainda, possibilidades de modificação das estruturas existentes.
77
princípio refere-se à “obrigação moral de agir em benefício de outros” (Ibid). No âmbito da
prática médica, a beneficência é tomada como reguladora desta prática, e aqui é entendida
como sendo uma beneficência específica desta categoria, o que significa que o médico tem
então a “obrigação” de ajudar o outro, este é assim o objetivo, o fundamento e a justificação
para suas práticas. Nesta linha de pensamento, então, a beneficência passa a servir de
sustentação para que a assistência em saúde em geral, e a classe médica em particular, se
apóiem em seus próprios julgamentos para definir as necessidades e os tratamentos de seus
pacientes.
As mudanças nos contextos sociais mundiais vão alterando a configuração também
do que se compreende como prática médica (DRUMOND, 2004, p. 160), pois passam a
inserir em suas discussões o direito de liberdade de escolha dos indivíduos, chocando então a
visão paternalista com a visão de direito de autonomia. Concordamos com Beauchamp e
Childress quando eles refletem sobre não ser este um debate que deva ser simplificado à
contraposição Beneficência X Respeito à Autonomia, devendo, por outro lado, ser pensado
sob um prisma conciliatório dos dois princípios, considerando que o primeiro “fornece a meta
e o fundamento primordiais da medicina e da assistência à saúde, enquanto o respeito à
autonomia [...] estabelece os limites morais das ações dos profissionais ao buscar essa meta”
(BEAUCHAMP e CHILDRESS, 2002, p. 297).
Agregando à esta discussão, o cumprimento dos acordos estabelecidos pelos Estados
para respeito aos direitos fundamentais dos indivíduos (HOGEMANN, 2002), estaria assim
também o Estado brasileiro respeitando estas Declarações de Direitos Humanos ao colocar
um limite ao ato médico de interferir na vida privada através de uma Lei Federal. Dessa
forma, um propósito de transformação de normativas éticas da classe médica em lei se
contrapõe não somente ao próprio principio bioético de beneficência, mas tamm à noção de
autonomia associada à este princípio, que se entende aqui como liberdade de escolha, no olhar
da Bioética Cotidiana, e que atende ao respeito à dignidade inerente à condição humana,
postulado pelos Direitos Humanos Universais já proclamados desde 1948.
Em outro sentido, também torna a categoria médica pesando sobre os indivíduos
com a mesma força que a Igreja sempre se mostrou presente na formulação do nosso Estado,
ainda que este se pretenda laico. A Igreja não se afasta desta discussão, tendo dentro dos
membros do poder legislativo seus representantes, presentes nos debates sobre os termos
contidos nos PL’s específicos sobre RHA, assim como nas comissões por onde o mesmo
passa durante o processo legislativo. Aqui, misturam-se os espaços de visões religiosas,
médicas e de formulação de regulação para toda a população. Discutir a prevalência de um
78
olhar sobre o outro é algo difícil, complexo, pois como coloca Berlinguer (2004, p. 127)
embora cada um tenha “valores e interesses diferentes”, estes não se anulam, “pois podem
todos apresentar suas justificativas”, e todas legítimas. Entretanto, tratando-se de olhar sob a
ótica da regulação de um Estado sobre seus cidadãos, o que deve prevalecer nesta discussão
ao se compreender a formulação de uma legislação: os princípios de universalidade e respeito
aos direitos fundamentais dos cidadãos, acordado pelo Estado ao se comprometer com o
cumprimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ou a incidência de perspectivas
religiosas ou corporativistas sobre a formulação de políticas e normativas para estes mesmos
cidadãos, não importando se fazem eles parte ou não destas instâncias?
Pela ótica da própria constituição do Estado Democrático de Direito, a primeira
proposição seria a que deveria nortear a formulação de proposições legislativas. Neste Estado,
seu poder é limitado “pelo Direito; mas não só: o poder da vontade do particular, em suas
relações com outros particulares, também o está” (MORAES, M., 1999, p. 104), o que reforça
o compromisso acima descrito, e como ainda prossegue a autora, “limita-o não apenas a
eventual norma imperativa, contida nas leis ordinárias, mas, sobretudo, os princípios
constitucionais de solidariedade social e dignidade humana que se espraiam por todo o
ordenamento civil, infraconstitucional”.
Entretanto, simplesmente ao buscarmos a gênese dos documentos aqui analisados, já
nos deparamos com a incongruência de sua composição a partir de uma normativa da ética
médica. Aprovando-se um PL baseado neste corpo de texto, estaríamos transformando a ética
médica em Lei Federal, esta devendo então ser reguladora de toda uma sociedade. Baseada
num princípio paternalista, “sempre envolve alguma forma de interferência ou recusa em
aceitar as preferências de uma outra pessoa acerca do seu próprio bem. Os atos paternalistas
geralmente envolvem força ou coerção, por um lado, ou mentiras e manipulação ou ocultação
de informações, por outro” (BEAUCHAMP e CHILDRESS, 2002, p. 298). Nesta abordagem,
não há atenção à livre escolha do indivíduo, então, o que estamos discutindo, senão um
mesmo retrocesso nos dispositivos éticos e também legislativos?
Sendo o direito de ter filhos reconhecido como um direito fundamental, se este
envolver outras pessoas além dos pais e seus futuros filhos,
como os profissionais da medicina como intermediadores, há
necessidade de que a sociedade esteja envolvida e que reflita sobre as
condições em que poderá autorizar o recurso à reprodução artificial,
definindo quais as responsabilidades dos envolvidos nestas práticas
(BRAUNER, 2003).
79
4.2.2 Indiscriminação de termos abafando sentidos
Nestes textos temos outro ponto a avaliar, a partir da questão da cópia direta do texto
do CFM: os PL’s subseqüentes ao de 93 apresentam algumas variações em seus corpos de
texto, mas antes mesmo de discutirmos o peso do saber médico sendo mantido e reiterado
também nestes PL’s, chama-nos atenção um dado que poderia passar despercebido, não fosse
a leitura minuciosa de todo o “corpus”. Este dado é a aparente falta de clareza técnica por
parte do legislador sobre o que está propondo.
Embora esta inferência possa causar a princípio algum estranhamento, ela se faz
notar a partir da leitura dos PL’s em seqüência. Os termos são por vezes copiados e
reproduzidos ao longo das proposições, e embora alguns dos propositores façam parte da
classe médica, demonstram não ter sempre coerência sobre o que estão propondo, ao
introduzir um dado já na ementa do projeto, e na seqüência do texto referirem-se a outra coisa
como, por exemplo apenas a uma da muitas técnicas existentes de RHA (como ocorre, por
exemplo, no PL 4665/01 – Anexo C). O texto que pretende tornar-se Lei, deveria ser
constituído com a clareza do que se está propondo regular, e no caso de tratar de RHA, e em
seguida reduzir seu acesso a uma determinada técnica, não faz com que o PL atinja seu
objetivo, o de regular a área de RHA, assim como abre espaço para discussões sobre as áreas
não inseridas na regulamentação. Não somente incoerência dentro do mesmo texto, fazem-se
presentes também PL’s que tratam de apenas uma técnica em específico. Havendo a
necessidade de criar uma legislação especifica que abarque toda a área que a RHA engloba, a
aprovação, ou antes, a mesma confecção de uma proposta sobre apenas um de seus muitos
aspectos, revela-se esforço limitador do campo de debate, para não dizer desnecessário.
Convém ressaltar que, como já anteriormente disposto por Diniz e Costa (2001, p.
186) a não existência de regulamentação das práticas a respeito da RHA permite que
arbitrariedades pautadas em valores morais interfiram no processo de determinação do direito
de acesso à estas técnicas, o que demanda que pessoas capacitadas a discutir o assunto se
insiram na confecção de proposições legislativas. Pensada neste âmbito, convém então
explorarmos nesta questão que também não se mostra profícua a confecção de um PL por
parte de quem não compreende (ou não tem atenção devida a todos os detalhes envolvidos) o
material que está propondo regulamentar. Quanto a isto, não há aqui a crença de ser
necessária a supremacia do saber médico para formular este tipo de proposta, muito pelo
80
contrário, cremos que esta é sim de grande valor para a confecção de um texto coerente com
as reais dimensões técnicas dentro do que se propõe regulamentar, mas não é a única
possibilidade de reflexão, podendo então ser congregados diferentes saberes neste mesmo
documento.
As diferentes áreas do saber já apresentam inúmeros trabalhos a respeito das
Tecnologias Reprodutivas, sejam estas as conceptivas ou contraceptivas, cada trabalho com
seu foco específico, mas todos visando ampliar e contribuir para os debates a respeito desta
regulamentação que se faz necessária. Entretanto, as discordâncias presentes dentro dos textos
apresentados aqui como objeto de análise, ou na comparação de um com outro, nos faz
questionar se todo estes trabalhos já produzidos até hoje vêm de alguma forma sendo
considerados para o aprofundamento dos debates e posterior confecção dos PL’s. Em uma
avaliação inicial, parece-nos que as produções não encontraram ainda eco dentro dos
representantes da sociedade no poder legislativo, o que infelizmente caracteriza uma “lacuna
ética significativa, já que, no processo de elaboração, a prioridade esteve direcionada a
consultores da área técnica, em detrimento de outros grupos envolvidos” (GUILHEM e
PRADO, 2001, p. 118).
Mais especificamente sobre as discussões bioéticas dentro deste campo, estas
embora existentes, tem suas ponderações quase ausentes nas discussões legislativas,
demonstrando que
questões relacionadas à saúde sexual e reprodutiva de mulheres e homens,
que se transformam em projetos de lei (como é o caso do aborto e do
planejamento familiar, por exemplo), não têm merecido uma discussão
ampliada no que se refere às diferentes moralidades que permeiam a
sociedade brasileira e, ainda, sobre as redes relacionais e hierárquicas que
contribuem para a manutenção de iniqüidades neste campo. Em um contexto
democrático, o espaço legislativo deveria transformar-se no locus
privilegiado para a construção coletiva e o exercício de pressupostos
fundamentais ao discurso argumentativo da Bioética, entre os quais o
respeito às diferenças e a prática da tolerância (Ibid, p. 120)
Outro ponto importante usado de forma indiscriminada reporta-nos ao termo
infertilidade. A presunção de direito de acesso é dada a quem de início é considerado infértil,
sendo este termo considerado estritamente um conceito biomédico. Assentam-se as propostas
de legislação, e também a PRT/MS 426/05 (Anexo A) que já instala a Política de Atenção
Integral à RHA no SUS, à noção de infertilidade medicamente comprovada, ou seja, a
81
dificuldade, ou impossibilidade de procriar. Não há, contudo expansão deste termo além do
sentido médico. Usado em seu sentido estreito, fica na mão do médico
13
novamente o poder de
definição de quem tem direito a acessar o serviço, e traz-nos um ponto de discussão
interessante, ao pensarmos que aqui (exceto na PRT/MS), mulheres solteiras podem ter acesso
ao serviço, desde que comprovadamente inférteis. Este conceito engloba também o de
esterilidade, enquanto uma forma de infertilidade orgânica ou medicamente produzida. Ainda
que por uma causa estrita de infertilidade, o acesso permitido à mulher solteira parece um
pequeno esforço em reconhecer um tipo de entidade familiar bastante presente na nossa
sociedade contemporânea, as monoparentais, contudo, o primeiro olhar pode ser descoberto
como não tão ampliador assim, pois não há incorporação do homem solteiro como detentor
desse mesmo direito (DINIZ, 2003, p. 14). Sua consideração como detentor do direito de
acesso envolveria a discussão da possibilidade de gestação de substituição.
Ainda sobre os sentidos da infertilidade presentes nos documentos analisados, se
expandirmos nossa visão sobre sua definição, entendendo-a simplesmente como uma ausência
de filhos por motivos indesejados, poderemos incorporar à noção de elegível para ter o direito
de acesso às técnicas, toda pessoa que não tenha filhos e não necessariamente possua
problemas clínicos de infertilidade, ou seja, mulheres solteiras não-inférteis, homossexuais,
casais sem diagnóstico de infertilidade, mas que não conseguem ter seus filhos, dentre outras
possibilidades (Ibid, p. 13).
Embora durante todo este trabalho tenhamos por questão prática definido o uso dos
termos esterilidade e infertilidade no mesmo sentido, não podemos deixar de ressaltar que
estes encerram questões muito mais amplas do que uma simples definição médica, quando
estabelecidos como critério para se ter o direito de acessar um serviço de saúde. Esta
discussão do uso do termo encontra-se intrinsecamente relacionada à medicalização de todo o
processo de RHA, desde a definição de quem tem direito de acesso, até à aplicação efetiva das
técnicas, conforme discutiremos na seqüência.
13
Neste aspecto, podemos perceber claramente a partir de trechos como os seguintes: “(...) participação médica no processo de procriação
notadamente ante a esterilidade ou infertilidade humana” (PL 2855/97 – Anexo B); “(...) casais comprovadamente incapazes de gerar filhos
pelo processo natural de fertilização” (PL 4665/01 – Anexo C); “A utilização das técnicas de Reprodução Assistida será permitida (...) nos
casos em que: (...) I – exista indicação médica para o emprego da Reprodução Assistida” (PL 1184/03 – Anexo E)
82
4.2.3 Medicalização definindo o direito de acesso
Acompanhando o tema anterior, temos a palavra do médico como decisiva em todo
o processo de acesso às técnicas, desde a definição de quem pode acessar o serviço, até os
detalhes internos do processo de aplicação das mesmas. Helman (2003, p. 153) nos coloca que
o conceito de medicalização consiste na apropriação pela área médica de questões e
problemas que não eram anteriormente definidos como parte de sua jurisdição, dentre eles
“fenômenos como as várias etapas do ciclo vital feminino (menstruação, gravidez, parto e
menopausa), assim como velhice, infelicidade, solidão, isolamento social, além das
conseqüências de problemas sociais maiores como pobreza ou desemprego”.
Sob este aspecto, embora não seja parte de nosso referencial de análise, nos convém
ressaltar a relevância dos estudos de Michel Foucault acerca destas práticas assistenciais
sendo utilizadas como estratégias próprias de uma sociedade disciplinar. O autor pode ser,
então, considerado senão o precursor, mas um importante estudioso da noção de
medicalização e das questões de poder e saber que vão entrelaçando e tornando mais
complexas as relações entre Medicina (e seus saberes e práticas), Estado e Sociedade
14
.
Com a decisão sobre todo o processo dentro da RHA, desde a definição do direito de
acesso ao serviço até a aplicação concreta da técnica, sendo colocada na mão do médico e seu
saber, o Estado outorga esta categoria como sua legítima representante. Aqui, percebemos que
muito não se difere das relações intrínsecas entre Estado e Medicina presentes em nossa
sociedade desde o período colonial (e quem sabe mesmo antes desse período) já anteriormente
aqui comentadas (COSTA, 1999), onde estes vão em conjunto se inserindo na célula familiar,
e estabelecendo suas formas de controle.
Mais uma vez nos vemos diante desta relação complexa, onde por vezes parece-nos
difícil perceber onde estas duas instâncias se diferenciam. Não temos aqui dúvida quanto ao
prestígio que a classe médica e seu saber gozam em nossa sociedade. Os avanços
tecnológicos, por sua vez, só fazem aumentar este prestígio, entretanto, será que este mesmo
prestígio é suficiente para garantir ao saber médico o poder de decisão sobre o processo de
construção de uma proposta de regulamentação sobre a RHA? (Conforme discutimos
anteriormente, há neste sentido a clareza da falta de inserção de outros saberes nesta
14
Do próprio autor, destacamos “Microfísica do poder” e os três volumes da “História da Sexualidade”. Reforçamos aqui que neste estudo
não temos como foco de discussão a medicalização em si, embora ela receba destaque por se configurar em um ponto propulsor de debates a
partir da análise do material coletado. O conceito encerra um debate próprio, em face de sua complexidade, e havendo interesse em
empreender estudos específicos sobre ele, uma discussão mais aprofundada da genealogia da assistência médica, trazendo Foucault com um
dos autores base para a problematização desejada, é encontrada na obra de Sandra Caponi “Da compaixão à solidariedade” (vide referências).
83
formulação). E, ainda, tem o saber médico o direito de isoladamente definir quem está apto ou
não a ter acesso ao serviço?
Compreendemos que a elaboração de propostas que visem regulamentar qualquer
pratica, seja ela no campo da saúde ou não, é algo árduo, e não simplificado, e não somente
no Brasil este debate legislativo se dá de forma difícil, tendo-se em vista que regular este
acesso incide em questões “centrais de nossa vida social e familiar” (DINIZ, 2003, p. 11). Ao
Estado cabe conjugar princípios universais, sem com isso impedir a existência e expressão de
direitos individuais; ao mesmo tempo, deve ele também fornecer às suas pessoas os
“benefícios advindos de áreas que ele mesmo dá especial proteção” (PALUDO, 2001) e
estímulo ao desenvolvimento. Contudo, estando este mesmo Estado dando ao médico o poder
de decisão sobre o acesso a um serviço destinado à toda uma população, não estaria ele não
apenas destinando a um saber socialmente constituído o papel de legislador (que cabe à ele) -
como se assim ele se eximisse de qualquer responsabilidade sobre a temática - mas também
produzindo mais uma via de interferência (pelas mãos da medicina) nas vidas privadas,
excluindo o indivíduo do direito de decidir sobre suas próprias questões fundamentais?
Esta interferência pode ser mais aguçada quando nos deparamos com a necessidade
presente nos documentos analisados de aval do médico para acessar o serviço, através da
definição de quem se encaixa nos critérios de infertilidade ou não. Para a OMS “a
infertilidade é a incapacidade que um casal tem de conceber após um ano de relacionamento
sexual sem uso de medidas contraceptivas” (OLIVEIRA, F. 2004a, p.59). Contudo, ainda
assim faz-se necessário comprovar também
15
tentativas exaustivas e mal sucedidas por outros
métodos, antes de se tornar elegível para ter acesso a um serviço que faz parte do corpo de
direitos fundamentais dos indivíduos. Neste âmbito, se restringirmos o sentido de infertilidade
apenas como problema médico, e como tal solucionado via tecnologias reprodutivas, não
serão colocadas em discussão no acesso a serviços de saúde as possibilidades de tratamento
de causas de infertilidade que “podem ser prevenidas, como doenças sexualmente
transmissíveis (DSTs), poluição, pobreza, trabalho insalubre, aditivos químicos, hormônios,
dispositivo intra-uterino (DIU), infecção pós-parto e esterilização precoce de mulheres
(BRAZ, 2005, p. 171), que teriam um impacto mais abrangente do que as técnicas de RHA
em si.
A não consideração destes direitos de definição da própria procriação como direitos
fundamentais encontra-se associada à não consideração da liberdade de escolha dos
15
Vide a frase mais usada em quase todos os documentos analisados: “quando outras terapêuticas tenham sido consideradas ineficazes”.
84
indivíduos como presente também neste aspecto procriativo. A liberdade de procriar,
entendida como uma liberdade positiva (MORI, 2001, p. 57) compreende a idéia de o
indivíduo ter seus filhos quando decide tê-los, o que se choca com a noção de controle médico
como primordial para o direito de acessar uma das formas de se colocar esta liberdade
positiva em prática. Na mesma direção, Berlinguer (2004, p.15) vai um pouco mais adiante,
quando nos relembra que a procriação é enormemente associada à religião, e assim, à sua
visão de procriar como um dever, dentro de seu conceito de família. Continua este autor
ampliando a discussão quando pondera que compreender a procriação enquanto algo passível
de associação à liberdade de escolha dos indivíduos, é considerá-la não mais um dever, não
mais uma obrigação, como nos ditames religiosos, mas sim uma face da liberdade de escolha,
que implica também a liberdade de não procriar.
O referido autor (Ibid, p.17) considera complexa a associação da liberdade de
procriação como encerrando também direitos de procriação, ponderando que as expressões
autônomas dos indivíduos podem ser distorcidas pelas leis e intervenções do Estado. Sua
postulação é o que de fato encontramos diante da análise dos documentos aqui apresentados,
sendo evidenciado como um tema controverso, quando necessita ao mesmo tempo estabelecer
os direitos de acesso à RHA sem com isso desconsiderar algum aspecto das liberdades e
expressões individuais. Nesta discussão, transformar o direito de acesso em algo dificultado
por um determinado critério definido por apenas uma categoria profissional, sem levar em
conta os próprios indivíduos objeto de intervenção, nos remete de volta à visão paternalista já
aqui discutida, e nos revela um intenso controle dos corpos em questão, em especial o corpo
da mulher. Sobre esta visão de quem é elegível para acessar as técnicas de RHA, Diniz e
Costa (2005, p. 1) reforçam que
foi somente com o início do debate legislativo em diferentes países latino-
americanos que o tema da elegibilidade foi seriamente enfrentado como uma
das questões centrais à regulamentação do uso e acesso às tecnologias.
Nesta
passagem de um tema médico para a uma questão política, o foco das
atenções também se modificou. Se nos anos 1990, a grande questão em
torno das tecnologias reprodutivas era sobre a biossegurança dos
procedimentos, nos anos 2000, a controvérsia é eminentemente moral.
Assim, nos atentaremos agora à questão do corpo da mulher, que como objeto da
intervenção médica revela sentidos além do que uma possível idéia inicial de discriminação
por gênero, conforme discutiremos a seguir.
85
4.2.4 Controle de corpos e intervenção na mulher
Conforme já discutimos em diferentes pontos ao longo deste trabalho, a mulher é
foco da intervenção médica no tocante às tecnologias de RHA, entretanto a presença do
homem se faz indispensável, tanto para a fecundação, como para a permissão a que essa
mulher se torne de fato objeto da intervenção, tendo-se em vista que se ela não é solteira,
necessita do consentimento do parceiro para tornar-se detentora de um direito já discutido
aqui como inerente à condição humana. Sobre o papel do homem neste processo, Diniz e
Costa (2005, p.6) nos trazem que
na verdade, é a ideologia naturalista da reprodução pautada na
heterossexualidade que é protegida pelas tecnologias conceptivas ao
requerer a presença masculina na reprodução. A exigência moral é do
cumprimento das convenções de gênero assentadas no discurso sobre o
natural, em que assim como óvulos e espermas são necessários à
fecundação, mulheres e homens à reprodução social. Neste sentido, se o
diagnóstico de infertilidade sem causa aparente poderia ser uma porta aberta
para a negociação da infecundidade involuntária e não estritamente do corpo
estéril como critério de elegibilidade às técnicas, não é desta maneira que o
debate político nos anos 2000 vem se desenhando em alguns países da
América Latina, onde a tendência é restringir o acesso a casais
heterossexuais.
Além disso, com a possibilidade de interdição da mulher pelo parceiro, voltamos
aqui a uma noção de sociedade patriarcal, fundada no papel social do homem como
primordial, e como palavra final nas relações homem-mulher, além de destoar dos princípios
contidos na própria lei de planejamento familiar, onde a igualdade de direitos se expressa
neste campo (CARVALHO, 1997, p.31-32, 98-99). Que igualdade se revela ao tornar um dos
indivíduos controlado pelo jugo do outro? Se direitos e deveres não são de fato expressos
como podendo ser exercidos igualmente, ferimos aqui os princípios constitucionais, e também
os dispostos na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
O uso da tecnologia médica para alcançar o objetivo de ser mãe expõe a
mulher a uma forma perversa de medicalização e mercantilização da
procriação. Ou seja, vivemos sob a ótica da ‘medicina do desejo’, que
fragiliza e submete ‘cada vez mais as pacientes à supervalorização da
biotécnica’ e que se apóia em um discurso positivo, sustentado pela
utilização da generosidade profissional e eficácia dos procedimentos. Fica
evidente a contraposição que se estabelece entre a hegemonia cientificista da
86
medicina reprodutiva, que engendra e ao mesmo tempo responde à demanda
de filhos, e os interesses das mulheres no âmbito social, político e de seu
poder pessoal frente ao processo de tomada de decisão quanto ao exercício
da maternidade (GUILHEM e PRADO, 2001, p. 114).
Neste sentido a mulher é percebida como tendo o papel inato de procriadora, não
sendo dada a atenção devida às novas configurações de seu papel na sociedade, o que é
reforçado por Berlinguer (2004, p. 14) quando comenta que “no passado, a procriação sem
intervalos, da puberdade à menopausa [...], constituíra para a mulher um dos principais
empecilhos para o seu pleno desenvolvimento como sujeito humano em todas as várias
dimensões”. Guilhem e Prado (2001, p 120-121) comentam aqui que colocar a noção de
direito de reprodução como justificando o procedimento nos serviços públicos, e com eles o
acesso à mulher, “traduz-se em uma falácia. Isso acontece exatamente porque os profissionais
resumem o universo de direitos das mulheres à questão da reprodução, que em grande parte é
vista sob a ótica da técnica, hierarquizando de forma distorcida esses direitos”. Este dado fica
evidenciado também nos documentos analisados
16
, onde a procriação não é novamente
percebida como uma escolha livre dos indivíduos, mas sim uma função naturalizada, e agora
também medicalizada.
A medicalização da reprodução humana é um dos grandes temas que suscita
a discussão no âmbito da Bioética e do Biodireito, tendo em vista que as
modernas técnicas de reprodução humana podem oferecer a maternidade
tanto às mulheres estéreis, quanto àquelas que já atingiram a menopausa,
mulheres lésbicas e, mesmo, a chance de maternidade às mulheres virgens.
Tendo havido a quebra da tradição histórica e social da maternidade ao se
separar a reprodução da sexualidade e ainda, a desvinculação da maternidade
dos limites e imposições traçados pela tradição e biologia humana, houve a
revalorização da maternidade enquanto vocação do feminino. (BRAUNER,
2003)
Concordamos com a postulação de Berlinguer quando este coloca em debate não
somente a questão de ampliação da liberdade de escolhas sobre como procriar, promovidas
pelos adventos das tecnologias reprodutivas, mas também sobre a crescente dependência
corporal de uma “medicina altamente invasiva, a qual privilegia o remédio rápido e técnico”
(2004, p. 34). Entretanto, este remédio rápido e técnico vem também permeado de valores
morais, e embora torne o corpo – primordialmente o feminino – dependente da tecnologia, o
16
Em trechos como no PL 1135/03 (Anexo D): “riscos mínimos à paciente”, “a receptora”, ou no PL 1184/03 (Anexo E): “organismo da
mulher receptora”. A naturalização da procriação como algo inerente à condição da mulher, e neste momento sendo também função
medicalizada, é reforçada também nos dispostos sobre a gestação de substituição, onde alguns textos que a permitem restringem esta
permissão somente em casos onde a doadora genética é impossibilitada, e esta impossibilidade é comprovada medicamente, como no PL
1135/03 (Anexo D).
87
faz para reforçar valores sociais tradicionais não mais hegemônicos, pois já dividem espaço
na sociedade com novas formulações dos papéis de homem e mulher, assim com da visão de
família contemporânea.
Esta disposição se deve também à não inserção do homem solteiro como foco de
discussão, deixando-o de lado não somente na questão de direitos fundamentais sobre acesso
a serviço e escolhas de formas de procriação, mas também negando a possibilidade de
existência de famílias monoparentais formadas por eles. A discussão sobre a possibilidade ou
negação da gestação de substituição é um ponto dentro dos documentos analisados que
merece maiores aprofundamentos em posteriores propostas de trabalho, em face de
encerrarem controvérsias religiosas e morais a um tema que acaba por negar um direito
inerente ao homem, assim como também negar a existência de uma possibilidade de formação
familiar já disposta na própria Constituição Federal como legítima, privilegiando a formação
tradicional de família.
Neste aspecto de constituição de leis, Berlinguer (2004, p. 36) também nos faz
permite pensar sobre a complexidade de formulação de regulações de uma sociedade, quando
postula que
as leis devem refletir e, em certa medida, orientar uma sociedade pluralista,
que seja baseada no inseparável binômio liberdade/responsabilidade, e assim
não podem estabelecer vínculos, que não apresentem um fundamento
racional demonstrado, como a idéia de que a derivação genética direta de
dois genitores legalmente unidos seja a única que pode dar felicidade aos
filhos. O Estado, todavia, não pode limitar-se a declarar lícito tudo aquilo
que as ciências biomédicas tornam factível, ou a registrar a existência de
diversas ‘comunidades morais’, como sustenta H. T. Engelhardt, que sejam
autônomas entre elas e dotadas cada uma de regras próprias.
Diante desta discussão, seguiremos para a finalização desta seção, com as visões
presentes nos documentos analisados acerca das formações familiares.
88
4.2.5 A família revelada pelo texto
Quando após toda a reflexão feita até o momento, nos deparamos com a família,
pano de fundo e conceito presente em todo o processo de discussão aqui encerrada, podemos
de fato nos dizer surpresos com o que podemos retirar dos documentos analisados.
Considerando a reflexão já estabelecida no capitulo de revisão de literatura, na parte
específica sobre a família, a análise dos PL’s nos evidencia um modelo familiar especifico
sendo legitimado: o modelo nuclear, com os seus requintes históricos - que vinham ao longo
das transformações da sociedade sendo alterados em muitos sentidos com o apoio de
movimentos sociais importantes (DINIZ e BUGLIONE, 2002 p. 56-57) - ao trazer de volta o
poder do pai sobre o restante da família, o papel da mulher como procriadora inata, a família
monogâmica, procriativa, centrada nos filhos como razão de existência enquanto instituição.
Além destes detalhes, a família reforçada aqui é o “padrão da família heterossexual, elegendo
como possíveis usuários das TRs os casais e mulheres inférteis” (GUILHEM e PRADO,
2001, p. 118).
Já discutimos até aqui a não percepção das formações familiares monoparentais
masculinas como aceitas, sendo somente a feminina uma possibilidade concreta, o que está
diretamente articulado com a noção de reprodução como capacidade natural e final da mulher.
Entretanto, se a formação monoparental feminina é algo indicado como aceitável pela
sociedade, e legitimado também via RHA, abre-se o espaço para também a
monoparentalidade masculina reivindicar sua legitimidade, possibilitada somente via gestação
de substituição (DINIZ e BUGLIONE, 2002, p. 30).
Não somente esta possível formação familiar é excluída, mas também as
possibilidades de vínculo conjugal homossexual tornam-se não passíveis de enquadramento
no que se refere aos prováveis detentores do direito de acesso ao serviço de RHA. As
propostas legislativas parecem querer cegar-se diante das transformações do modelo de
família já visíveis na nossa sociedade, e a Portaria que institui no SUS um programa concreto
de trabalho em cima das questões de RHA, reduz essa família à composta pelo casal infértil
17
.
Dessa forma, concordamos com Diniz e Costa, (2005, p. 6) quando consideram que “as
tecnologias conceptivas vêm se constituindo em um campo garantidor da ideologia naturalista
17
PRT/MS 426/05, trechos como: Art 2º , II – “(...) problemas de infertilidade em casais em sua vida fértil”; III – (...) tanto para casais com
infertilidade, como para aqueles que se beneficiem desses recursos para o controle da transmissão vertical e/ou horizontal de doenças”.
89
e da moral heterossexual para a constituição de famílias e exercício da parentalidade, valores
expressos na categoria casal infértil”.
Conforme já discutimos, sendo a formação familiar um direito fundamental de livre
escolha do indivíduo (BERLINGUER, 2004; BUGLIONE, 2001; LOYOLA, 2005), podemos
dizer também que esta escolha já se percebe de início comprometida, diante da não
possibilidade de todos serem entendidos como legítimos detentores do direito de acesso ao
serviço específico de RHA. E ainda, não somente é aqui legitimado pela sociedade o modelo
tradicional, nuclear de família, como também se pode compreender que os casais enquadrados
como detentores desse direito de acesso, antes de terem efetivamente realizado a aplicação
das técnicas, não se encaixavam no modelo familiar aceito, somente conseguindo este intento
através da intervenção da ciência, ou seja, a prática médica proporcionaria a “adequação
social” de pessoas antes não completamente inseridas nos critérios de família aceitável e
legitimado pelo Estado.
Em uma sociedade culturalmente lastreada em uma base familiar, composta
por pais e filhos, a reprodução assistida possibilitou a correção legítima do
‘desvio’ social de ausência de filhos concretizando a medicalização de
fenômenos antes restritos à intimidade do casal, como a fertilização.( DINIZ
e BUGLIONE, 2002, p.23)
A família aceita a partir dos documentos analisados
18
é não somente a família
nuclear, mas a família nuclear medicamente constituída - ou reparada, se entendermos como
uma reparação o ato médico de “tornar fértil” o casal infértil – pois podemos dizer que “de
condição social, a infertilidade tornou-se um quadro clínico passível de ser controlado pela
ciência” (Ibid, p.10).
18
Tanto nos trechos da PRT/MS 426/05, expressos na nota anterior, como também em alguns PL’s, como por exemplo o 4665/01 (Anexo C),
que já em sua ementa postula a “autorização da fertilização humana ‘in vitro’ para os casais comprovadamente incapazes de gerar filhos pelo
processo natural de fertilização”
91
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todo o exposto neste trabalho, podemos considerar que a ciência
proporciona através das tecnologias reprodutivas, em especial as de RHA, uma nova
possibilidade de se constituir a família, considerada célula mínima da sociedade.
Possibilitando que não apenas a adoção seja alternativa única, mas uma das opções possíveis
para pessoas com impossibilidade de procriar, as técnicas de RHA representam um avanço, e
mesmo não tendo sido constituídas a partir de um enquadramento correto dentro das questões
éticas vigentes mundialmente para a pesquisa científica envolvendo seres humanos, tornam-se
– em boa parte com a ajuda da mídia – objeto de reivindicação por parte da população
diretamente afetada por ela, que passa a demandá-la enquanto um direito adquirido, um
direito fundamental. As técnicas possíveis são relativamente antigas, se comparadas ao tempo
de aplicação em nosso país, e as discussões sobre sua regulamentação em termos de legislação
são ainda mais recentes que sua inserção nas práticas médicas brasileiras.
A vigência de uma normativa dentro da categoria médica é para esta um referencial
de procedimentos éticos a seguir, entretanto, não é material suficiente para ser considerado
único olhar sobre a questão.
Se por um lado a medicina nos proporciona este avanço, por outro lado a
falta de legislação específica causa um risco aos médicos que as praticam,
aos pacientes que destas técnicas se utilizam e aos filhos gerados por meio
delas, uma vez que não havendo norma jurídica não há como pleitear e
proteger direitos e deveres, o que torna imprescindível sua normatização de
forma clara e responsável. Assim, apesar de a reprodução assistida ser uma
realidade social e científica, a mesma não existe no mundo jurídico [...].
Esta omissão legal é desvantajosa e muitas vezes até mesmo lesiva,
causando lacunas preocupantes, já que as clínicas de reprodução estão
praticando e aplicando as técnicas, muitas vezes de forma indiscriminada
(CLEMENTE, 2006, p.219).
O desejo por filhos é retomado como forte função das formações familiares, desta
vez extremamente biologizado e medicalizado. O Estado, enquanto omisso na criação de uma
lei própria, acaba por legitimar ao saber médico o papel de regulador destas práticas e, por
conseguinte, deste reforço ao laço genético como primordial para as relações de parentesco.
Os esforços em propor projetos não variam desta primeira avaliação, e a prática tomada pelo
92
governo especificamente no setor público de saúde restringe mais ainda este laço à
consangüinidade e à nuclearidade da família. Não somente um retrocesso ético e legal, esta
posição também nos permite pensar que as questões relativas à RHA ao não incorporarem o
setor privado no campo de regulação, o deixam livre para autoregular-se, o que dificulta
também um controle social efetivo neste setor e, além disto, ao restringir no setor público o
acesso a casais com problemas medicamente comprovados de infertilidade, restringem neste
setor o direito de acesso, tornando o desejo por filhos um objeto de consumo, disponível em
suas mais variadas possibilidades somente aos que puderem por ele pagar, tendo-se em vista
que os que escapam da noção de “casal infértil” não se tornariam legítimos detentores de
direito de acesso, segundo a própria PRT/MS 426/05 em vigência no momento (GUILHEM e
PRADO, 2001, p. 114).
Diante da complexidade da temática abordada, temos que uma regulamentação do
uso das técnicas de RHA se faz necessária, em função de evitar não somente os abusos nos
determinantes éticos envolvidos em seu processo, historicamente comprovados, como
também na prevalência de arbitrariedades morais sobre os direitos fundamentais dos
indivíduos (BERLINGUER, 2004, P. 40). Embora caiba ao Estado formular leis que
regulamentem as práticas, e que se disponham a fiscalizar as atividades já existentes, a
intervenção de saberes e práticas nesta formulação se faz visível, em especial o saber médico.
Embora não acreditemos aqui que este deva ser desconsiderado, outros saberes - e estudos
aprofundados provenientes destas áreas – já são reconhecidos dentro da temática das Novas
Tecnologias Reprodutivas, em especial as de RHA, e podem e devem ser levados em conta
quando da preparação de um documento que incidirá sobre toda uma população.
Neste aspecto, o documento que se encontra em vigência é ainda restritivo e
discriminatório, voltando-se para uma formulação de família não mais hegemônica em nossa
sociedade, mas que se torna legitimada e reforçada como a única sob proteção do Estado,
ainda que este próprio tenha em suas bases Constitucionais o modelo monoparental como
outra possibilidade. Este mesmo texto constitucional ainda é limitador das possibilidades de
configuração de família existentes em nossa sociedade, e estas têm ao longo dos últimos anos
adquirido visibilidade e demandado respeito a seus direitos. A formulação de uma legislação
que incorpore o direito de acesso ao serviço pode e deve ser aprofundada e expandida, de
forma que este direito possa ser caracterizado como subvertendo os padrões morais acima
descritos (DINIZ e BUGLIONE, 2002, p.17), e não apenas mantendo a ordem moral vigente,
que não incorpora a variedade de possibilidades que os indivíduos possuem, e muitas vezes já
colocam em pratica, a despeito de respaldo legal para torná-las aceitas socialmente.
93
Destacamos aqui, que não somente o tema proposto neste trabalho é de articulação
complexa, assim também parece ser o processo legislativo. Da aplicação das técnicas no país -
destacando-se o primeiro caso a ganhar notoriedade mundial em 1982 justamente por sua
incoerência com procedimentos éticos vigentes no mundo, levando à óbito uma mulher
utilizada como cobaia para treinamento de técnicas de RHA - até a primeira articulação sobre
a temática, na resolução do CFM em 1992, temos 10 (dez) anos no mínimo de defasagem. No
ano seguinte, surge a primeira proposição legislativa, e de 1993 até hoje ainda não há uma
legislação específica sobre a RHA no país. Além disso, a primeira efetivação destas técnicas
sendo disponibilizadas no SUS só se dá em 2005, apenas 2 (dois) anos atrás, e ainda assim
carregando uma visão de acesso restritivo e excludente, pois expressa uma concepção de
família tradicional, religiosamente enraizada em nossa sociedade, como reconhecida pelo
Estado.
Os projetos em tramitação permanecem arquivados, passam por comissões diversas,
são reavaliados, mas não compreendem ainda um esforço suficiente para abarcar as demandas
que se criam a partir da disponibilização das técnicas de RHA. A despeito dos 14 (quatorze)
anos que separam o primeiro PL deste presente estudo, ponderamos se de fato não é melhor
que sejam eles retirados mesmo de pauta, levados novamente à discussão pública, sendo
melhor embasados, aprofundados e discutidos de modo interdisciplinar, por mais áreas do
saber e da sociedade em geral, para somente a partir daí serem novamente levados a
consideração dentro do processo legislativo. Neste sentido, também concordamos que
o grande desafio não está somente na regulamentação devida destas leis, é
necessário que se leve a quem verdadeiramente precisa as informações
necessárias, porque de nada adianta somente a lei perfeita, o ordenamento
jurídico moderno e atualizado se não houver conscientização social
daqueles que delas precisam (CLEMENTE, 2006, p. 228).
Assim, consideramos que as leis (ou ainda mesmo os Projetos de Lei) que
regulamentam o desejo por filhos, neste caso os adquiridos via RHA, necessitam ser mais
embasadas, mais profundamente discutidas, tanto do lado técnico, proporcionado pelo saber
médico, como pelas áreas de saberes e práticas presentes em nossa sociedade (como a
bioética, a sociologia, os movimentos sociais, dentre outros), de forma que possam ser
articuladas as diferentes visões sobre a temática, e não sejam limitados os esforços a noções
arbitrárias, moralistas e restritivas.
94
Neste rol de saberes, a Bioética mostra-se bastante importante como espaço de
reflexão, pois é fruto de uma sociedade democrática, e pretende direcionar suas reflexões para
a “garantia da dignidade humana e dos direitos dos cidadãos enquanto usuários desses
serviços” (FORTES e ZOBOLI, 2003, p11) de saúde que especificamente aqui estamos
tratando. É uma abordagem multi e interdisciplinar, e neste sentido se aproxima da abordagem
de Saúde Pública, como campo que agrega múltiplos agentes para desenvolver “suas
atividades de investigação e de intervenção no processo saúde-doença” (Ibid, p. 15).
As ações em Saúde Pública podem ser percebidas como realizáveis em todos os
níveis de complexidade presentes no serviço de saúde, na forma como ele se compõe em
nosso país, em especial no SUS. Considerando a saúde como resultante de diferentes fatores –
dentre eles condições de trabalho, meio ambiente, lazer, etc., não só a prática de assistência à
saúde é compreendida como passível de análise pela Saúde Pública, mas também pode nela
ser inserido o processo de formulação de regulamentação de serviços de saúde, que envolvem
não somente questões biomédicas, mas sociais.
Desta forma, ações em Saúde Pública voltadas para o serviço de RHA, que tamm
perpassam todos os níveis de complexidade do setor de saúde, são plenamente concebíveis
como articuladas e passíveis de reflexão pela bioética. Esta insere-se como mais uma
possibilidade de aprofundamento das visões possíveis dentro do campo vasto de atuação da
Saúde Pública (Ibid, p. 52), e neste sentido, é extremamente adequada como proposta de
reflexão sobre a configuração do direito de acesso ao serviço de RHA, especialmente no SUS
– este ancorado em princípios caros às reflexões bioéticas, como universalidade e eqüidade – ,
que envolve o entrelaçamento de questões não somente de saúde, como vimos ao longo deste
estudo, mas também jurídicas, morais, éticas, e religiosas, dentre outras que possam ser
percebidas.
Finalizando, o que se concebe como foco durante toda a trajetória deste trabalho, é a
percepção de como se estruturam as discussões propiciadas a partir da configuração do objeto
de estudo. Visamos aqui, a partir do olhar Bioético, contribuir para a ampliação das reflexões
acerca do alcance e da garantia dos direitos fundamentais dos indivíduos, parte vital da
composição do direito de cidadania, que é nada mais é do que a própria dimensão ética das
políticas públicas.
95
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Artigo confeccionado para submissão a periódico científico.
DIREITO DE ACESSO AO SERVIÇO DE REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA
– DISCUSSÕES BIOÉTICAS –
Autoras:
Luciana Soares de Medeiros
Psicóloga (UERJ)
Mestre em Saúde Pública (UFSC)
Especializando-se em Psicologia Clínica – Gestalt-Terapia (Instituto Gestalten)
lsmedeiros@gmail.com
Marta Inez Machado Verdi
Enfermeira (UFSC)
Doutora em Enfermagem (UFSC/Università di Roma La Sapienza)
Professora e Vice-Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública –
PPGSP/UFSC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE PÚBLICA - PPGSP-UFSC
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
Campus Universitário – Trindade
Florianópolis – SC
CEP 88040-970
Tel.: (048) 3331-9847 - FAX.: (048) 3331-9542
DIREITO DE ACESSO AO SERVIÇO DE REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA
– DISCUSSÕES BIOÉTICAS –
RESUMO:
Este artigo resume estudo que teve como objetivo avaliar como se configura o Direito de
Acesso ao Serviço de Reprodução Humana Assistida (RHA). A pesquisa documental foi
realizada em fontes oficiais do Governo Federal A partir dos critérios da Análise de Conteúdo
foram analisados 6 Projetos de Lei e 1 Portaria, separados em 3 áreas temáticas: Acesso a
quê?; Acesso para quem?; e Condições e critérios de acesso; reveladoras dos núcleos de
sentido aqui analisados. A pesquisa revelou que o direito de acesso presente nos documentos
oficiais é excludente, restritivo, e moralmente induzido por uma categoria profissional e suas
arbitrariedades. A articulação com os referenciais da Bioética Cotidiana foi relevante para
trabalharmos as visões de família que se fazem legitimadas através dessas propostas de
regulamentação, assim como as questões éticas intrínsecas à formulação dos próprios textos
destas. Os textos nos remetem à noção de família tradicional, nuclear e patriarcal, modelo este
já não mais hegemônico em nossa sociedade, e social e juridicamente ultrapassado por novas
concepções familiares que também reivindicam visibilidade e legitimidade pelo Estado. O
estudo pretende ser mais uma possibilidade de reflexão sobre as questões que envolvem o
direito de acesso ao serviço de RHA, partindo do olhar bioético.
PALAVRAS-CHAVE: Direito de Acesso; Reprodução Humana Assistida, Bioética
Cotidiana; Serviço de Saúde.
ABSTRACT:
The objective of this study is to evaluate how is configured the Right of Access to the
Assisted Human Reproduction Service (AHRS). It was developed through documentary
research in official sources of the Brazilian Federal Government. From the criteria of the
Analysis of Content were analyzed 1 Government directive and 6 Projects of Law. These had
been separated in three thematic areas: Access to what?; Access to whom?; and Conditions
and criteria of access; revealing nucleus of meaning that had been explored throughout the
research. This revealed that the right of access in official documents is exclusive, restrictive,
and morally induced by a professional category and its iniquities. The joint of these nucleus of
meaning with the Everyday Bioethics was of extreme relevance to deal with the different
kinds of family that are being legitimated through these proposals of regulation, as well as the
ethical questions intrinsic to the formulation of these texts. These texts remit us to the idea of
traditional, nuclear family, with strong patriarchal structure, model not anymore hegemonic in
our society, and social and legally surpassed by new familiar conceptions that also demand
visibility and legitimacy from the State. The study intends to be one more possibility of
reflection about the questions that involve the right of access to the AHRS from the Everyday
Bioethics issues.
KEYWORDS: Right of Access to the Health Service; Assisted Human Reproduction,
Everyday Bioethics.
INTRODUÇÃO
Datam do século XVIII os primeiros relatos de experimentos científicos envolvendo
o contato de fluido seminal e óvulo, e as experiências de inseminação artificial se seguem por
todo o século XIX, com casos, por exemplo, de inserção de esperma na vagina ou no útero, ou
de inseminação bem sucedida em esposa cujo marido possuía baixa mobilidade dos
espermatozóides
1
.
Embora as descobertas científicas confirmem a necessidade do contato do óvulo
com o fluido seminal para que seja possível a fecundação em mamíferos, por outro lado
permitem que a reprodução humana seja feita independentemente do ato sexual,
possibilitando, assim, a emergência de novas configurações familiares, bastante visíveis na
contemporaneidade. O grande “boom” no desenvolvimento da genética ocorre com a
descoberta do DNA, e o complexo envolvimento entre reprodução e genética é ampliado
2, 3
,
suscitando discussões nos campos médico e legal, considerando que além de representar a
inclusão de mais uma técnica médica, as Tecnologias Reprodutivas (TR’s) – contraceptivas
ou conceptivas, e dentre estas especificamente as de Reprodução Humana Assistida (RHA)
(em especial as técnicas de Inseminação artificial e Fertilização In Vitro) - estabelecem um
momento de ruptura importante para a instituição “família”.
A destituição do vínculo entre reprodução e ato sexual acompanha as idéias de
direitos de contracepção, escolhas livres de matrimônios e momentos para procriar ou não,
assim como de rompimento do vínculo conjugal
4
. A possibilidade de formação de famílias
com filhos fruto de processo de RHA se insere neste rol de rupturas do modelo de família
tradicional
5
, não sendo mais “vista como organizada por normas ‘dadas’, mas, sim, fruto de
contínuas negociações e acordos entre seus membros e, nesse sentido, sua duração no tempo
depende da duração dos acordos”
6
.
Com a possibilidade de novas formações familiares, estas passam a exigir
legitimidade pelo Estado, o que nos leva à necessidade de verificação do aparato legal que
serve de suporte para estas novas famílias, em especial as advindas com as técnicas de RHA.
No Brasil, o primeiro caso bem sucedido é exposto na mídia em 1984, e de lá para cá pouco
se avançou no campo de dispositivos de regulação dos procedimentos técnicos. Somente em
1992 o Conselho Federal de Medicina (CFM) adota como norma uma resolução (Res. nº
1.358/92) visando estruturar e uniformizar os procedimentos de RHA, e embora neste
momento o Sistema Único de Saúde (SUS) já tenha sido implantado (a partir de 1990 com as
Leis 8.080 e 8.142), ainda não se fala em inserção das técnicas nos serviços públicos
disponíveis à população.
Em 1993 surge a primeira proposta de legislação, ummido esforço aparentando
reflexão com pouca profundidade sobre o que propõe, apenas reproduzindo o texto e visando
transformar em lei a resolução do CFM. Este projeto, assim como outros, já está arquivado,
mas boa parte dos PL’s que foram surgindo nos últimos 13 anos ainda encontra-se em
tramitação.
Deste cenário, surge a inquietação que move o estudo de onde se origina o presente
artigo: perceber como se configura o aparato regulador das técnicas de RHA no serviço
público de saúde, e o que se revela através das características expostas sobre o direito de
acesso à este serviço. A inquietação inicial nos leva à pergunta que norteia a pesquisa: “Quais
as implicações éticas relativas ao direito de acesso ao serviço de RHA reveladas a partir da
configuração deste direito em documentos oficiais e publicações parlamentares?”. Analisar
estas implicações éticas a partir do referencial da Bioética Cotidiana é o objetivo deste
estudo.
METODOLOGIA
A proposta deste trabalho é de um estudo qualitativo, descritivo. Como técnica de
pesquisa de documentação indireta, para se levantar dados sobre o campo de interesse, foi
utilizada a pesquisa documental. As fontes primárias, ou documentos – onde foi coletado o
material para análise – foram os Arquivos Públicos Nacionais em suas formas impressa
(publicações oficiais) e digital (via Internet), em especial: Imprensa Nacional
http://www.in.gov.br; Câmara dos deputados http://www.camara.gov.br; Senado Federal
http://www.senado.gov.br; Ministério da Saúde http://www.saude.gov.br. Na etapa final,
compuseram o “corpus” de análise a Portaria/MS (PRT/MS) 426/05 e o Projeto de Lei (PL)
1.184/03 com seus apensos: PL 2.855/97, PL 4.665/01, PL 1.135/03, PL 2.061/03 e PL
5.624/05.
Os conteúdos analisados foram organizados e trabalhados de acordo com a Análise
de Conteúdo proposta por Bardin
7
. Operacionalmente, o material foi lido para que os dados
fossem ordenados, e em seguida classificados a partir da consideração de sua relevância,
sendo então agrupados em 3 (três) grandes áreas temáticas – Acesso a quê?; Acesso para
quem?; e Condições e critérios de acesso – e em seguida transformados em categorias
específicas de onde foram retirados os núcleos de sentido que serão neste artigo explicitados,
que na etapa final de análise foram articulados aos referenciais teóricos da Bioética Cotidiana,
de forma a responder às questões da pesquisa.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Ética médica como lei federal e indiscriminação de termos abafando sentidos
Dos documentos componentes de nosso “corpus” de análise, apenas um não é um
Projeto de Lei, a PRT/MS 426/05. Os demais são PL’s oriundos de um mesmo documento
base: a Resolução 1.358/92 do CFM - Conselho Federal de Medicina. Salvo mínimas
alterações no texto da Resolução do CFM, o PL 3.638/93 (primeiro da série de PL’s que
versam sobre Reprodução Humana Assistida) é uma cópia do mesmo. Apesar de não compor
o corpus de análise por não estar mais sendo objeto de avaliação para transformar-se em uma
lei federal, seu texto serve de base para os PL’s que o sucedem, e embora outros PL’s não
possam ser também considerados cópias deste, o tem como base para sugerirem alterações.
Neste sentido, entramos no primeiro ponto a ser discutido nesta seção: o documento
do CFM é um normativo da categoria médica, e como tal cabe somente à esta categoria
avaliá-lo e estabelecer sua pertinência ou não dentro do contexto de suas práticas.
Transformá-lo em base de um PL não seria, então, transformar as moralidades de uma
categoria profissional em Lei Federal? Seria a categoria médica, assim, a única instância
social a ter capacidade e, com esta, poder de definir os critérios para acessar o serviço de
RHA, ainda aqui independente de ser no SUS ou no setor privado?
Considerando estes questionamentos, podemos nos remeter à própria constituição da
medicina e dos médicos enquanto categoria, arraigada por um paternalismo que tem no
princípio bioético da Beneficência sua coluna de sustentação. Ordenados pelo juramento
hipocrático, crêem ser capazes de fazer o bem ao outro, a partir de sua própria avaliação
profissional do que seja este bem, a despeito do que este outro que irá receber o bem formula
a respeito de tal ato
8
.
A beneficência refere-se a uma “ação realizada em benefício de outros”
9
, e seu
princípio refere-se à “obrigação moral de agir em benefício de outros”
9
. No âmbito da prática
médica, a beneficência é tomada como reguladora desta prática, e aqui é entendida como
sendo uma beneficência específica desta categoria, o que significa que o médico tem então a
“obrigação” de ajudar o outro, este é assim o objetivo, o fundamento e a justificação para suas
práticas. Nesta linha de pensamento, então, a beneficência passa a servir de sustentação para
que a assistência em saúde em geral, e a classe médica em particular, se apóiem em seus
próprios julgamentos para definir as necessidades e os tratamentos de seus pacientes.
Contudo, as mudanças nos contextos sociais mundiais vão alterando a configuração
também do que se compreende como prática médica
8
pois passam a inserir em suas
discussões o direito de liberdade de escolha dos indivíduos, chocando então a visão
paternalista com a visão de direito de autonomia. Este debate não deve ser simplificado à
contraposição Beneficência X Respeito à Autonomia, mas sim sob um prisma conciliatório
dos dois princípios, considerando que o primeiro “fornece a meta e o fundamento primordiais
da medicina e da assistência à saúde, enquanto o respeito à autonomia [...] estabelece os
limites morais das ações dos profissionais ao buscar essa meta”
9
.
Agregando à esta discussão, o cumprimento dos acordos estabelecidos pelos Estados
para respeito aos direitos fundamentais dos indivíduos
10
, estaria assim também o Estado
brasileiro respeitando estas Declarações de Direitos Humanos ao colocar um limite ao ato
médico de interferir na vida privada através de uma Lei Federal. Dessa forma, um propósito
de transformação de normativas éticas da classe médica em lei se contrapõe não somente ao
próprio principio bioético de beneficência, mas também à noção de autonomia associada à
este princípio, que se entende aqui como liberdade de escolha, no olhar da Bioética Cotidiana,
e que atende ao respeito à dignidade inerente à condição humana, postulado pelos Direitos
Humanos Universais já proclamados desde 1948.
Em outro sentido, também torna a categoria médica pesando sobre os indivíduos
com a mesma força que a Igreja sempre se mostrou presente na formulação do nosso Estado,
ainda que este se pretenda laico. A Igreja não se afasta desta discussão, tendo dentro dos
membros do poder legislativo seus representantes, presentes nos debates sobre os termos
contidos nos PL’s específicos sobre RHA, assim como nas comissões por onde o mesmo
passa durante o processo legislativo. Aqui, misturam-se os espaços de visões religiosas,
médicas e de formulação de regulação para toda a população.
Discutir a prevalência de um olhar sobre o outro é algo difícil, complexo, pois como
coloca Berlinguer
2
embora cada um tenha “valores e interesses diferentes”, estes não se
anulam, “pois podem todos apresentar suas justificativas”, e todas legítimas. Entretanto,
tratando-se de olhar sob a ótica da regulação de um Estado sobre seus cidadãos, o que deve
prevalecer nesta discussão ao se compreender a formulação de uma legislação: os princípios
de universalidade e respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos, acordado pelo Estado ao
se comprometer com o cumprimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ou a
incidência de perspectivas religiosas ou corporativistas sobre a formulação de políticas e
normativas para estes mesmos cidadãos, não importando se fazem eles parte ou não destas
instâncias?
Nestes documentos temos ainda outro ponto a avaliar a partir da questão da cópia
direta do texto do CFM: os PL’s subseqüentes ao de 93 apresentam algumas variações em
seus corpos de texto mas chama-nos atenção a aparente falta de clareza técnica por parte do
legislador sobre o que está propondo. Embora esta inferência possa causar algum
estranhamento, ela se faz notar a partir da leitura dos PL’s em seqüência. Os termos são por
vezes copiados e reproduzidos ao longo das proposições, e embora alguns dos propositores
façam parte da classe médica, demonstram não ter sempre coerência sobre o que estão
propondo. O texto que pretende tornar-se Lei deveria ser constituído com a clareza do que se
está propondo regular e no caso de, por exemplo, tratar de RHA de uma forma geral e em
seguida reduzir seu acesso a uma determinada técnica, não faz com que o PL atinja seu
objetivo, o de regular a área de RHA, assim como abre espaço para discussões sobre as
técnicas não inseridas na regulamentação.
Convém ressaltar que a não existência de regulamentação das práticas a respeito da
RHA permite que arbitrariedades pautadas em valores morais interfiram no processo de
determinação do direito de acesso à estas técnicas, o que demanda que pessoas capacitadas a
discutir o assunto se insiram na confecção de proposições legislativas
11
. Quanto a isto, não há
aqui a crença de ser necessária a supremacia do saber médico para formular este tipo de
proposta, muito pelo contrário. Cremos que esta é sim de grande valor para a confecção de um
texto coerente com as reais dimensões técnicas dentro do que se propõe regulamentar, mas
não é a única possibilidade de reflexão, podendo então ser congregados diferentes saberes
neste mesmo documento. Contudo, parece-nos que as produções já existentes não
encontraram ainda eco dentro dos representantes da sociedade no poder legislativo, o que
infelizmente caracteriza uma “lacuna ética significativa, já que, no processo de elaboração, a
prioridade esteve direcionada a consultores da área técnica, em detrimento de outros grupos
envolvidos”
12
.
Outro ponto importante usado de forma indiscriminada reporta-nos ao termo
infertilidade. A presunção de direito de acesso é dada a quem de início é considerado infértil,
sendo este termo considerado estritamente um conceito biomédico. Assentam-se as propostas
de legislação, e também a PRT/MS 426/05 que já instala a Política de Atenção Integral à
RHA no SUS, à noção de infertilidade medicamente comprovada, ou seja, a dificuldade, ou
impossibilidade de procriar. Não há, contudo, expansão deste termo além do sentido médico.
Usado em seu sentido estreito, fica na mão do médico novamente o poder de
definição de quem tem direito a acessar o serviço, e traz-nos um ponto de discussão
interessante, ao pensarmos que aqui, exceto na PRT/MS 426/05, mulheres solteiras podem ter
acesso ao serviço, desde que comprovadamente inférteis. Este conceito engloba também o de
esterilidade, enquanto uma forma de infertilidade orgânica ou medicamente produzida.
Ainda que por uma causa estrita de infertilidade, o acesso permitido à mulher
solteira parece um pequeno esforço em reconhecer um tipo de entidade familiar bastante
presente na nossa sociedade contemporânea, as monoparentais, contudo, o primeiro olhar
pode ser descoberto como não tão ampliador assim, pois não há incorporação do homem
solteiro como detentor desse mesmo direito
13
. Se expandirmos nossa visão sobre a definição
de infertilidade, entendendo-a simplesmente como uma ausência de filhos por motivos
indesejados, podemos incorporar à noção de elegível para ter o direito de acesso às técnicas,
toda pessoa que não tenha filhos e não necessariamente possua problemas clínicos de
infertilidade, ou seja, mulheres solteiras não-inférteis, homossexuais, casais sem diagnóstico
de infertilidade, mas que não conseguem ter seus filhos, dentre outras possibilidades que
revelam novas formas de se configurar o que entendemos por família, conforme discutiremos
a seguir.
A intervenção na mulher e a emergência de configurações familiares diversas.
A mulher é foco da intervenção médica no tocante às tecnologias de RHA,
entretanto a presença do homem se faz indispensável, tanto para a fecundação, como para a
permissão a que essa mulher se torne de fato objeto da intervenção. Tendo-se em vista que se
ela não é solteira, necessita do consentimento do parceiro para tornar-se detentora de um
direito já discutido aqui como inerente à condição humana, concordamos com Diniz e Costa
14
quando as autoras refletem sobre o papel do homem neste processo, nos trazendo que
na verdade, é a ideologia naturalista da reprodução pautada na
heterossexualidade que é protegida pelas tecnologias conceptivas ao
requerer a presença masculina na reprodução. A exigência moral é do
cumprimento das convenções de gênero assentadas no discurso sobre o
natural, em que assim como óvulos e espermas são necessários à
fecundação, mulheres e homens à reprodução social.
Além disso, com a possibilidade de interdição da mulher pelo parceiro, voltamos
aqui a uma noção de sociedade patriarcal, fundada no papel social do homem como
primordial, e como palavra final nas relações homem-mulher, além de destoar dos princípios
contidos na própria lei de planejamento familiar, onde a igualdade de direitos se expressa
neste campo
6
. Que igualdade se revela ao tornar um dos indivíduos em certo sentido
“limitado” pelo outro? Se direitos e deveres não são de fato expressos como podendo ser
exercidos igualmente, ferimos aqui os princípios constitucionais, e também os dispostos na
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paradoxalmente, conferir ao homem o direito de
negar-se a uma paternidade talvez não desejada por ele, é perfeitamente legítimo, dando dessa
forma voz a todas as partes envolvidas da relação familiar em questão.
Neste processo de medicalização do acesso à maternidade a mulher é percebida
como tendo o papel inato de procriadora, não sendo dada a atenção devida às novas
configurações de seu papel na sociedade Este dado é reforçado por Berlinguer
2
quando
comenta que “no passado, a procriação sem intervalos, da puberdade à menopausa [...],
constituíra para a mulher um dos principais empecilhos para o seu pleno desenvolvimento
como sujeito humano em todas as várias dimensões”. O mesmo autor também coloca em
debate não somente a questão de ampliação da liberdade de escolha sobre como procriar,
promovida pelos adventos das tecnologias reprodutivas, mas também sobre a crescente
dependência corporal de uma “medicina altamente invasiva, a qual privilegia o remédio
rápido e técnico”
2
. Este remédio rápido e técnico vem também permeado de valores morais, e
embora torne o corpo – primordialmente o feminino – dependente da tecnologia, o faz para
reforçar valores sociais tradicionais não mais hegemônicos, pois já dividem espaço na
sociedade com novas formulações dos papéis de homem e mulher, assim com da visão de
família contemporânea.
Quando nesta reflexão nos deparamos com a família, pano de fundo e conceito
presente em todo o processo de discussão aqui estabelecido, a análise dos PL’s nos evidencia
um modelo familiar especifico sendo legitimado: o modelo nuclear, trazendo de volta seus
requintes históricos, com o poder do pai sobre o restante da família, o papel da mulher como
procriadora inata, a família monogâmica, procriativa, centrada nos filhos como razão de
existência enquanto instituição. Além destes detalhes, a família reforçada aqui é o padrão da
família heterossexual, elegendo como possíveis usuários das TRs os casais e mulheres
inférteis”
12
.
Esta disposição se deve também à não inserção do homem solteiro como foco de
discussão, deixando-o de lado não somente na questão de direitos fundamentais sobre acesso
a serviço e escolhas de formas de procriação, mas também negando a possibilidade de
existência de famílias monoparentais formadas por eles. A discussão sobre a possibilidade ou
negação da gestação de substituição é um ponto dentro dos documentos analisados que
merece maiores aprofundamentos em posteriores propostas de trabalho, em face de
encerrarem controvérsias religiosas e morais em um tema que acaba por negar um direito
inerente ao homem, assim como também nega a existência de uma possibilidade de formação
familiar já disposta na própria Constituição Federal como legítima, privilegiando a formação
tradicional de família.
Neste aspecto de constituição de leis, Berlinguer
2
também nos permite pensar sobre
a complexidade de formulação de regulações de uma sociedade, quando postula que
as leis devem refletir e, em certa medida, orientar uma sociedade pluralista,
que seja baseada no inseparável binômio liberdade/responsabilidade, e assim
não podem estabelecer vínculos, que não apresentem um fundamento
racional demonstrado, como a idéia de que a derivação genética direta de
dois genitores legalmente unidos seja a única que pode dar felicidade aos
filhos. O Estado, todavia, não pode limitar-se a declarar lícito tudo aquilo
que as ciências biomédicas tornam factível, ou a registrar a existência de
diversas ‘comunidades morais’, como sustenta H. T. Engelhardt, que sejam
autônomas entre elas e dotadas cada uma de regras próprias.
Já discutimos até aqui a não percepção das formações familiares monoparentais
masculinas como aceitas, sendo somente a feminina uma possibilidade concreta, o que está
diretamente articulado com a noção de reprodução como capacidade natural e final da mulher.
Entretanto, se a formação monoparental feminina é algo indicado como aceitável pela
sociedade, e legitimado também via RHA, abre-se o espaço para também a
monoparentalidade masculina reivindicar sua legitimidade, possibilitada somente via gestação
de substituição
15
.
Não somente esta possível formação familiar é excluída, mas também as
possibilidades de vínculo conjugal homossexual tornam-se não passíveis de enquadramento
no que se refere aos prováveis detentores do direito de acesso ao serviço de RHA. As
propostas legislativas parecem querer cegar-se diante das transformações do modelo de
família já visíveis na nossa sociedade, e a Portaria que institui no SUS um programa concreto
de trabalho em cima das questões de RHA, reduz essa família à composta pelo casal infértil.
Dessa forma, concordamos com Diniz e Costa
14
quando consideram que “as tecnologias
conceptivas vêm se constituindo em um campo garantidor da ideologia naturalista e da moral
heterossexual para a constituição de famílias e exercício da parentalidade, valores expressos
na categoria casal infértil”.
Conforme já exposto, sendo a formação familiar um direito fundamental de livre
escolha do indivíduo
2, 16, 17
, podemos dizer também que esta escolha já se percebe de início
comprometida, diante da não possibilidade de todos serem entendidos como legítimos
detentores do direito de acesso ao serviço específico de RHA. E ainda, não somente é aqui
legitimado pela sociedade o modelo tradicional, nuclear de família, como também se pode
compreender que os casais enquadrados como detentores desse direito de acesso, antes de
terem efetivamente realizado a aplicação das técnicas, não se encaixavam no modelo familiar
aceito, somente conseguindo este intento através da intervenção da ciência, ou seja, a prática
médica proporcionaria a “adequação social” de pessoas que antes não estavam completamente
inseridas nos critérios de família aceitáveis e legitimados pelo Estado.
A família aceita a partir dos documentos analisados é não somente a família nuclear,
mas a família nuclear medicamente constituída - ou reparada, se entendermos como uma
reparação o ato médico de “tornar fértil” o casal infértil – pois podemos dizer que “de
condição social, a infertilidade tornou-se um quadro clínico passível de ser controlado pela
ciência”
15
.
Medicalização definindo o direito de acesso
Servindo de sustentação para todos os pontos de discussão aqui expostos, temos a
palavra do médico como decisiva em todo o processo de acesso às técnicas, desde a definição
de quem pode acessar o serviço, até os detalhes internos do processo de aplicação das
mesmas. Helman
18
nos coloca que o conceito de medicalização consiste na apropriação pela
área médica de questões e problemas que não eram anteriormente definidos como parte de sua
jurisdição. Com a decisão sobre todo o processo dentro da RHA sendo colocada na mão do
médico e seu saber, o Estado outorga esta categoria como sua legítima representante.
Mais uma vez nos vemos diante desta relação complexa, onde por vezes parece-nos
difícil perceber onde estas duas instâncias se diferenciam. Não temos aqui dúvida quanto ao
prestígio que a classe médica e seu saber gozam em nossa sociedade. Os avanços
tecnológicos, por sua vez, só fazem aumentar este prestígio, entretanto, será que este mesmo
prestígio é suficiente para garantir ao saber médico o poder de decisão sobre o processo de
construção de uma proposta de regulamentação sobre a RHA? E, ainda, tem o saber médico o
direito de isoladamente definir quem está apto ou não a ter acesso ao serviço?
Compreendemos que a elaboração de propostas que visem regulamentar qualquer pratica, seja
ela no campo da saúde ou não, é algo árduo e não simplificado, e não somente no Brasil este
debate legislativo se dá de forma difícil, tendo-se em vista que regular este acesso incide em
questões “centrais de nossa vida social e familiar”
13
.
Ao Estado cabe conjugar princípios universais, sem com isso impedir a existência e
expressão de direitos individuais; ao mesmo tempo, deve ele também fornecer às suas pessoas
os “benefícios advindos de áreas que ele mesmo dá especial proteção”
19
e estímulo ao
desenvolvimento. Contudo, estando este mesmo Estado dando ao médico o poder de decisão
sobre o acesso a um serviço destinado à toda uma população, não estaria ele não apenas
destinando a um saber socialmente constituído o papel de legislador (que cabe à ele) - como
se assim ele se eximisse de qualquer responsabilidade sobre a temática - mas também
produzindo mais uma via de interferência (pelas mãos da medicina) nas vidas privadas,
excluindo o indivíduo do direito de decidir sobre suas próprias questões fundamentais?
Além disso, deve-se comprovar também tentativas exaustivas e mal sucedidas por
outros métodos, e considerando que para a Organização Mundial de Saúde “a infertilidade é a
incapacidade que um casal tem de conceber após um ano de relacionamento sexual sem uso
de medidas contraceptivas”
20
, se restringirmos o sentido de infertilidade apenas como
problema médico, e como tal solucionado via tecnologias reprodutivas, não serão colocadas
em discussão no acesso a serviços de saúde as possibilidades de tratamento de causas de
infertilidade que “podem ser prevenidas, como doenças sexualmente transmissíveis (DSTs),
poluição, pobreza, trabalho insalubre, aditivos químicos, hormônios, dispositivo intra-uterino
(DIU), infecção pós-parto e esterilização precoce de mulheres”
21
, que teriam um impacto
mais abrangente do que as técnicas de RHA em si.
A não consideração deste direito de definição da própria procriação como direito
fundamental encontra-se associada à não consideração da liberdade de escolha dos indivíduos
como presente também neste aspecto procriativo. A liberdade de procriar, entendida como
uma liberdade positiva
22
compreende a idéia de o indivíduo ter seus filhos quando decide tê-
los, o que se choca com a noção de controle médico como primordial para o direito de acessar
uma das formas de se colocar esta liberdade positiva em prática.
Na mesma direção, Berlinguer
2
vai um pouco mais adiante, quando nos relembra
que a procriação é enormemente associada à religião, e assim, à sua visão de procriar como
um dever, dentro de seu conceito de família. Continua este autor ampliando a discussão
quando pondera que compreender a procriação enquanto algo passível de associação à
liberdade de escolha dos indivíduos, é considerá-la não mais um dever, não mais uma
obrigação, como nos ditames religiosos, mas sim uma face da liberdade de escolha, que
implica também a liberdade de não procriar.
O referido autor
2
considera complexa a associação da liberdade de procriação como
encerrando também direitos de procriação, ponderando que as expressões autônomas dos
indivíduos podem ser distorcidas pelas leis e intervenções do Estado. Sua postulação é o que
de fato encontramos diante da análise dos documentos aqui apresentados, sendo evidenciado
como um tema controverso, quando necessita ao mesmo tempo estabelecer os direitos de
acesso à RHA sem com isso desconsiderar algum aspecto das liberdades e expressões
individuais. Nesta discussão, transformar o direito de acesso em algo dificultado por um
determinado critério definido por apenas uma categoria profissional, sem levar em conta os
próprios indivíduos objeto de intervenção, nos remete de volta à visão paternalista já aqui
discutida, e nos revela um intenso controle dos corpos em questão, em especial o corpo da
mulher. Sobre esta visão de quem é elegível para acessar as técnicas de RHA, Diniz e Costa
14
reforçam que
foi somente com o início do debate legislativo em diferentes países latino-
americanos que o tema da elegibilidade foi seriamente enfrentado como uma
das questões centrais à regulamentação do uso e acesso às tecnologias.
Nesta
passagem de um tema médico para a uma questão política, o foco das
atenções também se modificou. Se nos anos 1990, a grande questão em
torno das tecnologias reprodutivas era sobre a biossegurança dos
procedimentos, nos anos 2000, a controvérsia é eminentemente moral.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todo o exposto neste trabalho, podemos considerar que a ciência
proporciona através das tecnologias reprodutivas, em especial as de RHA, uma nova
possibilidade de se constituir a família, considerada célula mínima da sociedade.
Possibilitando que não apenas a adoção seja alternativa única, mas uma das opções possíveis
para pessoas com impossibilidade de procriar, as técnicas de RHA representam um avanço.
Mesmo não tendo sido constituídas a partir de um enquadramento correto dentro das questões
éticas vigentes mundialmente para a pesquisa científica envolvendo seres humanos, tornam-se
– em boa parte com a ajuda da mídia – objeto de reivindicação por parte da população
diretamente afetada por ela, que passa a demandá-la enquanto um direito adquirido, um
direito fundamental.
As técnicas possíveis são relativamente antigas, se comparadas ao tempo de
aplicação em nosso país, e as discussões sobre sua regulamentação em termos de legislação
são ainda mais recentes que sua inserção nas práticas médicas brasileiras. A vigência de uma
normativa dentro da categoria médica é para esta um referencial de procedimentos éticos a
seguir, entretanto, não é material suficiente para ser considerado único olhar sobre a questão.
Se por um lado a medicina nos proporciona este avanço, por outro lado a
falta de legislação específica causa um risco aos médicos que as praticam,
aos pacientes que destas técnicas se utilizam e aos filhos gerados por meio
delas, uma vez que não havendo norma jurídica não há como pleitear e
proteger direitos e deveres, o que torna imprescindível sua normatização de
forma clara e responsável. Assim, apesar de a reprodução assistida ser uma
realidade social e científica, a mesma não existe no mundo jurídico.
23
O desejo por filhos é retomado como forte função das formações familiares, desta
vez extremamente biologizado e medicalizado. O Estado, enquanto omisso na criação de uma
lei própria, acaba por legitimar ao saber médico o papel de regulador destas práticas e, por
conseguinte, deste reforço ao laço genético como primordial para as relações de parentesco.
Os esforços em propor projetos não variam desta primeira avaliação, e a prática
tomada pelo governo especificamente no setor público de saúde restringe mais ainda este laço
à consangüinidade e à nuclearidade da família. Não somente um retrocesso ético e legal, esta
posição também nos permite pensar que as questões relativas à RHA ao não incorporarem o
setor privado no campo de regulação, o deixam livre para autoregular-se, o que dificulta
também um controle social efetivo neste setor. Além disto, ao restringir no setor público o
acesso a casais com problemas medicamente comprovados de infertilidade, restringem neste
setor o direito de acesso, tornando o desejo por filhos um objeto de consumo, disponível em
suas mais variadas possibilidades somente aos que puderem por ele pagar
12
.
Diante da complexidade da temática abordada, temos que uma regulamentação do
uso das técnicas de RHA se faz necessária, em função de evitar não somente os abusos nos
determinantes éticos envolvidos em seu processo, historicamente comprovados, como
também na prevalência de arbitrariedades morais sobre os direitos fundamentais dos
indivíduos
2
. Embora caiba ao Estado formular leis que regulamentem as práticas, e que se
disponham a fiscalizar as atividades já existentes, a intervenção de saberes e práticas nesta
formulação se faz visível, em especial o saber médico.
Embora não acreditemos aqui que este saber deva ser desconsiderado, outros saberes
– e estudos aprofundados provenientes destas áreas – já são reconhecidos dentro da temática
das Novas Tecnologias Reprodutivas, em especial as de RHA, e podem e devem ser levados
em conta quando da preparação de um documento que incidirá sobre toda uma população.
Neste aspecto, o documento que se encontra em vigência é ainda restritivo e
discriminatório, voltando-se para uma formulação de família não mais hegemônica em nossa
sociedade, mas que se torna legitimada e reforçada como a única sob proteção do Estado,
ainda que este próprio tenha em suas bases Constitucionais o modelo monoparental como
outra possibilidade. Este mesmo texto constitucional ainda é limitador das possibilidades de
configuração de família existentes em nossa sociedade, e estas têm ao longo dos últimos anos
adquirido visibilidade e demandado respeito a seus direitos.
A formulação de uma legislação que incorpore o direito de acesso ao serviço pode e
deve ser aprofundada e expandida, de forma que este direito possa ser caracterizado como
subvertendo os padrões morais acima descritos
15
, e não apenas mantendo a ordem moral
vigente, que não incorpora a variedade de possibilidades que os indivíduos possuem, e muitas
vezes já colocam em pratica, a despeito de respaldo legal para torná-las aceitas socialmente.
Destacamos aqui, que não somente o tema proposto neste trabalho é de articulação
complexa, assim também parece ser o processo legislativo. Da aplicação das técnicas no país,
em 1982, até a primeira articulação sobre a temática, na resolução do CFM em 1992, temos
10 (dez) anos no mínimo de defasagem. No ano seguinte, surge a primeira proposição
legislativa, e de 1993 até hoje ainda não há uma legislação específica sobre a RHA no país.
Além disso, a primeira efetivação destas técnicas sendo disponibilizadas no SUS só se dá em
2005, e ainda assim carregando uma visão de acesso restritivo e excludente, pois expressa
uma concepção de família tradicional, religiosamente enraizada em nossa sociedade, como
reconhecida pelo Estado.
Os projetos em tramitação permanecem arquivados, passam por comissões diversas,
são reavaliados, mas não compreendem ainda um esforço suficiente para abarcar as demandas
que se criam a partir da disponibilização das técnicas de RHA. A despeito dos 14 (quatorze)
anos que separam o primeiro PL deste presente estudo, ponderamos se de fato não é melhor
que sejam eles retirados mesmo de pauta, levados novamente à discussão pública, sendo
melhor embasados, aprofundados e discutidos de modo interdisciplinar, por mais áreas do
saber e da sociedade em geral, para somente a partir daí serem novamente levados a
consideração dentro do processo legislativo.
Assim, consideramos que as leis (ou ainda mesmo os Projetos de Lei) que
regulamentam o desejo por filhos, neste caso os adquiridos via RHA, necessitam ser mais
embasadas, mais profundamente discutidas, tanto do lado técnico, proporcionado pelo saber
médico, como pelas áreas de saberes e práticas presentes em nossa sociedade (como a
bioética, a sociologia, os movimentos sociais, dentre outros), de forma que possam ser
articuladas as diferentes visões sobre a temática, e não sejam limitados os esforços a noções
arbitrárias, moralistas e restritivas.
Neste rol de saberes, a Bioética mostra-se bastante importante como espaço de
reflexão, pois é fruto de uma sociedade democrática, e pretende direcionar suas reflexões para
a “garantia da dignidade humana e dos direitos dos cidadãos enquanto usuários desses
serviços”
24
de saúde que especificamente aqui estamos tratando. Finalizando, o que se
concebe como foco durante toda a trajetória deste trabalho, é a percepção de como se
estruturam as discussões propiciadas a partir da configuração do objeto de estudo. Visamos
aqui, a partir do olhar Bioético, contribuir para a ampliação das reflexões acerca do alcance e
da garantia dos direitos fundamentais dos indivíduos, parte vital da composição do direito de
cidadania, que é nada mais é do que a própria dimensão ética das políticas públicas.
REFERÊNCIAS
1. DOSSIÊ REPRODUÇAO HUMANA ASSISTIDA. Belo Horizonte: Rede Nacional
Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, 2003.
2. BERLINGUER, G. Bioética Cotidiana. Brasília: Ed UNB, 2004.
3. GROSSI, M. P.; PORTO, R. M.; TAMANINI, M. (orgs.) Novas Tecnologias Reprodutivas
Conceptivas: questões e desafios. Brasília: Letras Livres, 2003.
4. LOYOLA, M. A. Sexualidade e medicina: a revolução do século XX. Cadernos de Saúde
Pública, Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 875-884, 2003.
5. NEDER. G. Ajustando o foco das lentes: um novo olhar sobre a organização das famílias
no Brasil. In: KALOUSTIAN, S. M. (org) Família Brasileira: a base de tudo. Brasília:
UNICEF/Cortez, 1994, cap. 2, p. 26-45.
6. CARVALHO, M. C. B. (org) A família contemporânea em debate. São Paulo: Cortez,
1997.
7. BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.
8. DRUMOND, J. G. F. O princípio da beneficência na responsabilidade civil do médico.
Bioética, n. 12, 2004, p. 159-167.
9. BEAUCHAMP, T. e CHILDRESS, J. F. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Edições
Loyola, 2002.
10. HOGEMANN, E. R. R. S. Direitos humanos: sobre a universalidade rumo ao Direito
Internacional dos direitos Humanos. In: Enciclopédia Digital de Direitos Humanos, 2ª ed.
Natal: Dhnet – Rede Direitos Humanos e Cultura. 2002, CD-ROM.
11. DINIZ, D.; COSTA, S. I. F. Bioética – Ensaios. Brasília: Letras Livres, 2001.
12. GUILHEM, D.; PRADO, M. M. Bioética, legislação e tecnologias reprodutivas. Bioética,
Brasília, v. 9, nº 2, p.113-126, 2001.
13. DINIZ, D. Tecnologias reprodutivas conceptivas – o estado da arte do debate legislativo
brasileiro. Jornal Brasileiro de Reprodução Assistida, Rio de Janeiro, v.7, nº 3, nov/dez
2003, p. 10-19.
14. DINIZ, D.; COSTA, R. G. Infertilidade e Infecundidade: Acesso às Novas Tecnologias
Conceptivas. SérieAnis 37, Brasília, Letras Livres, p. 1-9, fev 2005.
15. DINIZ, D.; BUGLIONE, S. (orgs) Quem pode ter acesso às tecnologias reprodutivas?
Diferentes perspectivas do direito brasileiro. Brasília: Letras Livres, 2002.
16. BUGLIONE, S. Reprodução e sexualidade: uma questão de justiça. Jus Navigandi,
Teresina, ano 5, n. 49, fev. 2001. Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1855 Acesso em: 13 abr. 2007.
17. LOYOLA, M. A. (org) Bioética, reprodução e gênero na sociedade contemporânea. Rio
de Janeiro: ABEP. Brasília: Letras Livres, 2005.
18. HELMAN, C. G. Cultura, Saúde e Doença. Porto alegre: Artmed, 2003, cap 6, p. 146-
169.
19. PALUDO, A. C. Bioética e Direito: procriação artificial, dilemas ético-jurídicos. Jus
Navigandi, Teresina, nº 52, ano 6, nov 2001. Disponível em: http://www1.jus.com.br/
doutrina/texto.asp?id=2333 Acesso em: 15 abril 2005.
20. OLIVEIRA, F. Bioética – Uma face da cidadania. São Paulo: Ed. Moderna, 2004.
21. BRAZ, M. Bioética e Reprodução Humana. In: SCHRAMM, F. R.; BRAZ, M. (orgs)
Bioética e Saúde - Novos tempos para mulheres e crianças? Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz,
2005, p. 169-194.
22. MORI, M. Fecundação assistida e liberdade de procriação. Bioética, Brasília, v. 9, nº 2, p.
57-70, 2001.
23. CLEMENTE, A. P. P. (org.) Bioética no início da vida – Dilemas pensados de forma
transdisciplinar. Petrópolis: Ed. Vozes, 2006.
24. FORTES, P. A. C. e ZOBOLI, E. L.C. P. (orgs) Bioética e saúde pública. São Paulo:
Edições Loyola, 2003.
(L.S. Medeiros trabalhou na concepção e execução da pesquisa e na redação do texto final;
M.I.M. Verdi trabalhou na supervisão da pesquisa e da redação final)
ANEXO A - PORTARIA MS Nº 426, DE 22 DE MARÇO DE 2005.
Institui, no âmbito do SUS, a Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana
Assistida e dá outras providências.
O MINISTRO DE ESTADO DA SAÚDE, no uso de suas atribuições, e Considerando a
necessidade de estruturar no Sistema Único de Saúde - SUS uma rede de serviços
regionalizada e hierarquizada que permita atenção integral em reprodução humana assistida e
melhoria do acesso a esse atendimento especializado;
Considerando que a assistência em planejamento familiar deve incluir a oferta de todos os
métodos e técnicas para a concepção e a anticoncepção, cientificamente aceitos, de acordo
com a Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, que regula o § 7º do art. 226 da Constituição
Federal, que trata do planejamento familiar;
Considerando que, segundo a Organização Mundial da Saúde - OMS e sociedades
científicas, aproximadamente, 8% a 15% dos casais têm algum problema de infertilidade
durante sua vida fértil, sendo que a infertilidade se define como a ausência de gravidez após
12 (doze) meses de relações sexuais regulares, sem uso de contracepção;
Considerando que as técnicas de reprodução humana assistida contribuem para a
diminuição da transmissão vertical e/ou horizontal de doenças infecto-contagiosas, genéticas,
entre outras;
Considerando a necessidade de estabelecer mecanismos de regulação, fiscalização,
controle e avaliação da assistência prestada aos usuários; e Considerando a necessidade de
estabelecer os critérios mínimos para o credenciamento e a habilitação dos serviços de
referência de Média e Alta Complexidade em reprodução humana assistida na rede SUS,
resolve:
Art. 1º Instituir, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS, a Política Nacional de
Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida, a ser implantada em todas as unidades
federadas, respeitadas as competências das três esferas de gestão.
Art. 2º Determinar que a Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana
Assistida seja implantada de forma articulada entre o Ministério da Saúde, as Secretarias de
Estado de Saúde e as Secretarias Municipais de Saúde, permitindo:
I - organizar uma linha de cuidados integrais (promoção, prevenção, tratamento e
reabilitação) que perpasse todos os níveis de atenção, promovendo, dessa forma, a atenção por
intermédio de equipe multiprofissional, com atuação interdisciplinar;
II - identificar os determinantes e condicionantes dos principais problemas de infertilidade
em casais em sua vida fértil, e desenvolver ações transetoriais de responsabilidade pública,
sem excluir as responsabilidades de toda a sociedade;
III - definir critérios técnicos mínimos para o funcionamento, o monitoramento e a
avaliação dos serviços que realizam os procedimentos e técnicas de reprodução humana
assistida, necessários à viabilização da concepção, tanto para casais com infertilidade, como
para aqueles que se beneficiem desses recursos para o controle da transmissão vertical e/ou
horizontal de doenças;
IV - fomentar, coordenar e executar projetos estratégicos que visem ao estudo do custo-
efetividade, eficácia e qualidade, bem como a incorporação tecnológica na área da reprodução
humana assistida no Brasil;
V - promover intercâmbio com outros subsistemas de informações setoriais,
implementando e aperfeiçoando permanentemente a produção de dados e garantindo a
democratização das informações; e
VI - qualificar a assistência e promover a educação permanente dos profissionais de saúde
envolvidos com a implantação e a implementação da Política de Atenção Integral em
Reprodução Humana Assistida, em conformidade com os princípios da integralidade e da
Política Nacional de Humanização - PNH.
Art. 3º Definir que a Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana
Assistida, de que trata o artigo 1º desta Portaria, seja constituída a partir dos seguintes
componentes fundamentais:
I - Atenção Básica: é a porta de entrada para a identificação do casal infértil e na qual
devem ser realizados a anamnese, o exame clínico-ginecológico e um elenco de exames
complementares de diagnósticos básicos, afastando-se patologias, fatores concomitantes e
qualquer situação que interfira numa futura gestação e que ponham em risco a vida da mulher
ou do feto;
II - Média Complexidade: os serviços de referência de Média Complexidade estarão
habilitados a atender aos casos encaminhados pela Atenção Básica, realizando
acompanhamento psicossocial e os demais procedimentos do elenco deste nível de atenção, e
aos quais é facultativa e desejável, a realização de todos os procedimentos diagnósticos e
terapêuticos relativos à reprodução humana assistida, à exceção dos relacionados à
fertilização in vitro; e
III - Alta Complexidade: os serviços de referência de Alta Complexidade estarão
habilitados a atender aos casos encaminhados pela Média Complexidade, estando capacitados
para realizar todos os procedimentos de Média Complexidade, bem como a fertilização in
vitro e a inseminação artificial.
§ 1º A rede de atenção de Média e Alta Complexidade será composta por:
a) serviços de referência de Média e Alta Complexidade em reprodução humana assistida; e
b) serviços de Assistência Especializada - SAE que são de referência em DST/HIV/Aids.
§ 2º Os componentes descritos no caput deste artigo devem ser organizados segundo o
Plano Diretor de Regionalização - PDR de cada unidade federada e segundo os princípios e
diretrizes de universalidade, eqüidade, regionalização, hierarquização e integralidade da
atenção à saúde.
Art. 4º A regulamentação suplementar e complementar do disposto nesta Portaria ficará a
cargo dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, com o objetivo de regular a atenção
em reprodução humana assistida.
§ 1º A regulação, a fiscalização, o controle e a avaliação das ações de atenção em
reprodução humana assistida serão de competência das três esferas de governo.
§ 2º Os componentes do caput deste artigo deverão ser regulados por protocolos de
conduta, de referência e de contra-referência em todos os níveis de atenção que permitam o
aprimoramento da atenção, da regulação, do controle e da avaliação.
Art. 5º A capacitação e a educação permanente das equipes de saúde de todos os âmbitos
da atenção envolvendo os profissionais de nível superior e os de nível técnico, deverão ser
realizadas de acordo com as diretrizes do SUS e alicerçadas nos pólos de educação
permanente em saúde.
Art.6º Determinar à Secretaria de Atenção à Saúde - SAS, isoladamente ou em conjunto
com outras Secretarias do Ministério da Saúde, que adote todas as providências necessárias à
plena estruturação da Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana
Assistida, ora instituída.
Art. 7º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.
Publicada no Diário Oficial da União - Edição Número 56 de 23/03/2005
ANEXO B - PROJETO DE LEI Nº 2855, DE 1997.
Dispõe sobre a utilização de técnicas de reprodução humana assistida, e dá outras
providências.
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
TÍTULO I
Dos Princípios Gerais
Art 1º Esta lei regulamenta as técnicas e as condutas éticas sobre a Reprodução Humana
Assistida (RHA): Inseminação Artificial (IA), Fecundação "In Vitro" (FJV), Transferência de
pré-Embriões (TE), Transferência Intrabutária de Gametas (TIG) e outros métodos,
observados os princípios da eficiência e da beneficência.
Art 2º As técnicas de RHA têm por finalidade a participação médica no processo de
procriação notadamente ante a esterilidade ou infertilidade humana, quando outras
terapêuticas tenham sido consideradas ineficazes.
Art 3º A utilização das técnicas de RHA é permitida nos casos em que haja posssibilidade
concreta de êxito e não incorra em risco grave para saúde da mulher ou para a possível
descendência.
Art 4º Toda mulher capaz, independentemente de seu estado civil, poderá ser usuária das
técnicas de RHA, desde que tenha solicitado e concordado livre e conscientemente em
documento de consentimento informado.
Art 5º É obrigatória a informação completa à paciente ou casal sobre a técnica de RHA
proposta, especialmente sobre dados jurídicos, éticos, econômicos, biológicos, detalhamento
médico de procedimentos, os riscos e os resultados estatísticos obtidos no próprio serviço e
em serviço de referência.
§ 1° A informação prevista no caput é condição prévia para a assinatura da paciente ou do
casal de documento formal de consentimento informado escrito em formulário especial.
§ 2° A revogação do consentimento informado poderá ocorrer até o momento anterior à
realização da técnica de RHA.
Art 6° É vedada a utilização de técnica de RHA com finalidade:
I - de clonagem, entendida como a reprodução idêntica do código genético de um ser
humano;
II - de seleção de sexo ou de qualquer outra característica biológica;
III - eugênica.
Parágrafo único. A vedação prevista no inciso II deste artigo não se aplica nas situações
em que se objetive prevenir doenças.
Art 7º É proibida a fecundação de oócitos com qualquer outra finalidade que não seja a
procriação humana.
Art 8º A transferência de oócitos ou pré-embriões para receptora obedecerá aos métodos
considerados mais adequado para assegurar a gravidez.
Art 9º Em caso de gravidez múltipla, não será permitida a redução seletiva, exceto se
houver risco à vida da gestante.
TÍTULO II
Da doação e dos doadores
Art. 9 A doação de gametas ou pré-embriões será realizada mediante um contrato
gratuito, escrito formal e de caráter sigiloso entre os serviços que empregam técnicas de RHA
e os doadores, vedada qualquer forma de comercialização ou estímulo financeiro.
Parágrafo único. A quebra do sigilo sobre as condições dos doadores só será permitida
em decorrência de motivação médica, podendo ser fomecida informações exclusivamente
para equipe responsável pelo caso, preservada a identidade civil do doador.
Art 10 A doação de gametas só poderá ser revogada por infertilidade sobrevinda e se o
doador necessitar deles para procriação desde que ainda disponível no serviço médico.
Art 11 cabe ao serviço que emprega técnica de RHA a custódia dos dados de identidade
do doador, que deverão ser repassados para os serviços de controle regional e nacional.
Parágrafo único. os serviços médicos de RHA ficam obrigados a colher amostra de
material celular dos doadores, assim como manter registro dos seus dados clínicos e de suas
características fenotípicas, que serão permanentemente arquivados.
Art 12 O doador deve ser civilmente capaz e ter comprovadamente descartada qualquer
possibilidade de transmissão de doenças, especialmente as hereditárias.
Art 13 O serviço médico que emprega técnica de RHA fica responsável por impedir que
de um mesmo doador nasça mais de 2 filhos, num mesmo Estado, devendo, para tanto, manter
registro das gestações.
Art 14 A escolha do doador, para efeito de reprodução assistida, é de responsabilidade do
serviço médico, que deverá zelar para que as características fenotípicas e imunológicas se
aproximem ao máximo da receptora.
TÍTULO III
Da gestação de substituiçãoArt 15 A gestação de substituição é permitida nos casos em
que a futura mãe legal, por defeito congênito ou adquirido, não possa desenvolvê-la.
Art 16 A doação temporária do útero não poderá ter objetivo comercial ou lucrativo.
Art 17 É indispensável a autorização do Conselho Nacional de RHA para a doação
temporária do útero, salvo nos casos em que a doadora seja parente até 42 grau, consangüíneo
ou afim da futura mãe legal.
TÍTULO IV
Dos pais e dos filhos
Art 18 A filiação dos nascidos por RHA rege-se pelo disposto nesta lei e pela legislação
que disciplina a filiação em geral.
Art 19 Fica vedada a inscrição na certidão de nascimento de qualquer observação sobre a
condição genética do filho nascido por técnica de RHA.
Art 20 O registro civil não poderá ser questionado sob a alegação do filho ter nascido em
decorrência da utilização de técnica de RHA.
Art 21 A revelação da identidade do doador, no caso previsto no parágrafo único do
artigo 9°, parágrafo único, desta lei, não será motivo para determinação de nova filiação.
Art 22 É vedado o reconhecimento da paternidade, ou qualquer relação jurídica, no caso
de morte de esposo ou companheiro anterior à utilização médica de alguma técnica de RHA,
ressalvados os casos de manifestação prévia e expressa do casal.
TÍTULO V
Da Crioconservação
Art 23 Os serviços médicos especializados em RHA poderão crioconservar gametas e
pré-embriões.
Art 24 Os pré-embriões não utilizados a fresco serão crioconservados nos bancos
autorizados, por até cinco anos, salvo manifestação em contrário do casal responsável.
Art 25 Após cinco anos, os gametas ou pré-embriões ficarão à disposição dos bancos
correspondentes, que deverão descartá-los salvo para ser utilizado em experimentação,
observado o disposto no Título VII desta lei.
Art 26 O casal manifestará por escrito o destino que se dará aos pré-embriões a serem
crioconservados, em caso de morte de um dos pais ou de separação.
Art 27 Os pré-embriões em que sejam detectadas alterações genéticas que
cornprovadamente venham comprometer a vicB saudável da descendência serão descartados
após consentimento do casal.
TíTULO VI
Do Diagnóstico e do Tratamento
Art 28 Toda intervenção sobre pré-embrião "in vitro" deve ter a exclusiva finalidade de
fazer uma avaliação de sua viabilidade, detecção de doenças hereditárias, com o fim de tratá-
las ou impedir sua transmissão, condicionada ao prévio consentimento informado do casal.
Art 29 O diagnóstico e o tratamento de pré-embriões e de embriões não poderão ser
objetivos de seleção eugênica.
Art 30 O tempo máximo de desenvolvimento de pré-embriões "in vitro" será de 14 dias.
Parágrafo único. O Conselho Nacional de RHA adotará as atualizações que se fizerem
necessárias, caso surjam modificações cientificamente comprovadas.
TíTULO VII
Da investigação e experimeniação
Art 31 Os gametas humanos poderão ser objeto de investigação básica ou experimental,
exclusivamente para fins de aperfeiçoamento das técnicas de obtenção, amadurecimento de
oócitos crioconservação de óvulos.
§ 1° Os gametas usados na investigação ou experimentação não poderão ter por finalidade
a procriação.
§ 2° Nas investigações previstas no caput deste artigo, permite-se, no máximo, até duas
divisões celulares.
Art 32 A investigação ou experimentação em pré-embriões depende de consentimento dos
doares, do deferimento do Conselho Nacional de RHA e de apresentação prévia de projetos
ou protocolos que comprovem seu caráter exclusivamente diagnóstico, terapêutico ou
preventivo.
Parágrafo único. Não será permitida alteração do patrimõnio genético não patológico.
Art 33 A investigação ou experimentação em gamefas humanos ou pré-embriões deve se
enquadrar nas seguintes finalidades:
I - aperfeiçoar as técnicas de RHA a manipulações complementares, a crioconservação, o
descongelamento, o transporte, os critérios de viabilidade de pré-embriões obtidos "in vitro" e
a cronologia ótima para as transferências ao útero.
II - desenvolver estudos básicos sobre origem da vida humana, suas fases iniciais,
envelhecimento celular, divisão celular, diferenciação, organização celular e desenvolvimento
orgânico.
III - estudar a fertilidade e infertilidade masculina ou feminina. ovulação. fracasso no
desenvolvimento de oócitos, as anomalias dos gametas ou dos óvulos fecundados;
IV - conhecer a estrutura dos genes, cromossomos dos processos de diferenciação celular,
a contracepção ou anticoncepção conhecidas e a in fertilidade de causa imunológíca e
hormonal;
V - conhecer a origem do câncer e das enfermidades genéticas hereditárias.
Art 34 Os pré-embriões ou embriões abortados serão considerados mortos ou não viáveis,
sendo vedada sua transferência novamente ao útero, permitida sua utilização como objeto de
investigação ou experimentação, atendido o disposto no artigo anterior.
§ 1° É permitida a utilização de pré-embriões ou embriões humanos não viáveis para fins
farmacêutico, de diagnóstico, terapêutico ou científico, desde que previamente deferida pela
Comissão Nacional de RHA.
§ 2° Os protocolos ou projetos de experimentação em que sejam utilizados pré-embriões
humanos não viáveis "in vitro" deverão estar devidamente documentado sobre o material
embriológico a ser utilizado, procedência, prazos e objetivos que desejam observar.
Concluído o experimento, deverá ser encaminhada cópia do trabalho à Comissão de RA para
fins de comprovação e arquivo.
TÍTULO VIII
Dos serviços médicos em R H e das equipes biomédicas
Art 35 Os profissionais e serviços que realizam técnicas de RHA, assim como bancos de
recepção, conservação, distribuição de material biológico humano, além de se submeterem às
normas éticas dos respectivos conselhos. sujeitam-se ao disposto nesta lei e demais
dispositivos legais vigentes.
Art 36 O nível técnico dos profissionais será avaliado pelos seus respectivos Conselhos.
Art 37 Fica criada a Comissão Nacional de RHA vinculada ao Conselho Nacional de
Saúde, de caráter permanente, destinada à orientação das técnicas, elaboração de critérios de
funcionamento dos serviços públicos e privados de reprodução humana assistida e suas
competências.
§ 1° A Comissão terá funções delegadas para autorizar projetos com propósitos de
investigação e pesquisa de diagnóstico e terapêuticos.
§ 2° A composição da Comissão deve atender representação social paritária.
§ 3° A Comissão Nacional aprovará seu próprio regulamento interno.
§ 4° Os demais casos que envolvam técnica de RHA, não previstos nesta lei, serão
submetidos ao Conselho Nacional de RHA.
TÍTULO IX
Das infrações e das sanções
Art 38 Fecundar óvulos com finalidade distinta da procriação humana.
Pena: reclusão, de 1(um) a 3 (três) anos, e multa.
Art 39 Obter pré-embriões humanos por lavado uterino para qualquer fim.
Pena: reclusão de 1(um) a 3 (três) anos, e multa.
Art 40 Manter in vitro óvulos fecundados além do prazo cientificamente recomendado.
Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos. e multa.
Art 41 Comercializar ou Industrializar pré-embriões ou células germinativas.
Pena: reclusão de 1 (um) a 3(três) anos, e multa.
Art 42 Utilizar pré-embriões com fins cosméticos.
Art 43 Misturar sêmen de vários doadores ou óvulos de distintas mulheres para
fertilização "in vitro" ou transferência intratubária.
Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
Art 44 Transferir gametas ou pré-embriões para útero sem a devida garantia biológica ou
de vitalidade.
Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
Art 45 Revelar a identidade dos doadores.
Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
Art 46 Utilizar técnica de reprodução humana assistida com fins eugênicos, seleção racial
ou seleção de sexo.
Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos. e multa.
Art 47 Transferir ao útero pré-embriões, originários de óvulos de várias mulheres.
Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
Art 48 Intercambiar material genético com objetivo de produção de híbridos.
Pena: reclusão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, e multa.
Art 49 Transferir gametas ou pré-embriões humanos para útero de outra espécie ou
operação inversa.
Pena: reclusão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, e multa.
Art 50 Utilizar da engenharia genética e de outros procedimentos de RHA, com fins
militares ou para produzir armas biológicas ou exterminadoras da espécie humana.
Pena: reclusão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos. e multa.
Art 51 Clonar ser humano, por qualquer método.
Pena: reclusão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, e multa.
TÍTULO X
Das Disposições Finais
Art 52 Caberá ao Poder Executivo, no prazo de seis meses da promulgação desta lei,
dispor sobre:
I - normas técnicas e funcionais para autorização e homologação dos serviços públicos e
privados de RHA, bancos de gametas, pré-embriões, células, tecidos e órgãos de embriões-
fetos;
II - protocolos de informações sobre doadores, estudos e listagem de enfermidades
genéticas ou hereditárias que podem ser detectadas com diagnósticos pré-natal;
III - requisitos para autorização em caráter excepcional para experimentação com
gametas, pré-embriões, embriões ou aquelas que poderão ser delegadas ao Conselho
Nacional;
IV - normas para transporte de gametas pré-embriões e células germinativas entre
serviços.
Art 53 No prazo de um ano, a partir da promulgação desta lei, o Poder Executivo
constituirá registro nacional de doadores de gametas pré-embriões para fins de RHA, bem
corno cadastro de centros de serviços médicos dedicados à RHA.
JUSTIFICATIVA
Devido aos modernos avanços e descobertas científicas e tecnológicas, tanto na
biomedicina, como na biotecnologia, têm surgido novas técnicas, que possibilitam, cada vez
mais, a muitos casais inférteis ou estéreis a realização de antigos sonhos de virem a ter os seus
próprios filhos, utilizando-se das, permanentemente, inovadoras técnicas de reprodução
humana assistida.
O número de casais inférteis ou estéreis é muito significativo, sendo que em alguns países,
corno a Espanha, atinge índice próximo aos 10%. A estatística brasileira assemelha-se a esta
taxa. Destarte, pode-se vislumbrar o grande número de pessoas que poderia desmandar os
modernos métodos da reprodução humana assistida.
Os principais procedimentos disponíveis, no momento, são Inseminação Artificial (IA),
que pode ser feita com sêmen do esposo ou companheiro ou com sêmen de doador,
Fecundação In Vitro (FIV) com Transferência de Embriões (TE) e Transferência Infratubária
de Gametas (TIG).
O acelerado processo de pesquisa nesta área não nos permite estabelecer regras que
possam ser consideradas definitivas para a matéria. O mundo recentemente se assombrou com
a clonagem de animais, por método que prescinde do espermatozóide do macho, abrindo-se a
perspectiva técnica de se repetir processo semelhante no ser humano.
Este evento, que rompe barreiras existentes desde a origem do homem, trouxe para todo
planeta, com força máxima, a necessidade de estabelecer uma profunda reflexão sobre quais
seriam os caminhos e as perspectivas para toda a humanidade.
Se a complexidade e variedade de possibilidades originadas pelos métodos já conhecidos
de reprodução humana assistida estava a exigir uma profunda reflexão e disciplinamento de
sua utilização, agora, com a concreta possibilidade de se clonar o homem, esta questão se
tomou inadiável.
Este projeto procura, portanto, contribuir para o equacionamento adequado das múltiplas
questões que surgem a cada dia com o uso dessas novas técnicas. Não se teve a pretensão de
disciplinar todas as possibilidades futuras, ficando assim aberto alguns tópicos justamente
com objetivo da não amarrar ou invalidar novos procedimentos em estudo.
A ciência avança a passos largos e as normas jurídicas andam sempre atrasadas. Em um
tema como este, em que sérias convicções conservadoras, com certeza existentes, poderão
inviabilizar a prática da lei, devemos disciplinar sempre restringindo o que romper o
eticamente aceitável por nossa sociedade, ao mesmo tempo em que possibilitamos os avanços
da pesquisa no campo da Reprodução Humana Assistida (RHA).
Pouco se sabia, há pouco tempo, sobre estas técnicas hoje utilizadas no mundo todo. As
questões éticas, aqui falam forte e necessitam de regulamentação, caso contrário, por omissão
ou indiferença do governo e dos legisladores, passará, também, a vigorar a lei do
neoliberalismo biológico.
Há que se buscar o equilíbrio normativo que permita a um número cada vez maior de
brasileiros ter acesso aos serviços de reprodução humana assistida. Os valores éticos e morais
devem ser respeitados. O que for benéfico para o indivíduo e que não fira os valores maiores
da sociedade deve ser autorizado.
Estamos convencido de que não podemos engessar a ciência e a tecnologia, e de que a lei
tem de ter um visão de equilíbrio, para que não seja consumida rapidamente, como algo
descartável ou sazonal.
Não podemos cair, jamais, na extremada posição de tudo permitir, em nome da liberdade
de iniciativa no campo científico. Este direito deve ser sempre balizado pelo princípio
fundamental da dignidade da pessoa humana.
Mesmo entendendo que estes métodos tenham ainda baixos índices de êxito, custo
elevado para os pacientes e sejam extremamente estressantes, reconhece-se seu enorme valor
social, principalmente, quando aplicado para tratamento de casais inférteis, na ausência de
outras alternativas terapêuticas.
Ao lado deste reconhecimento e da satisfação de se constatar os avanços já obtidos com
estas técnicas e procedimentos, registrando-se a engenhosa capacidade criadora do ser
humano, surgem, também, as inquietações e incertezas do uso ostensivo e não regulamentado
destes métodos, trazendo questionamentos do uso liberal e suas conseqüências sociais, éticas
biomédicas e jurídicas.
São, pois, objetivos deste projeto de lei apoiar o avanço de técnica, ampliar o acesso aos
seus benefícios e regulamentar o uso, impedindo o surgimento de distorções que degenerem
as relações em sociedade e coloquem em risco a própria humanidade.
Diante do exposto, e pela extrema relevância da matéria, conclamamos os ilustres pares,
após intensos debates a aprovarem este projeto de lei.
ANEXO C – PROJETO DE LEI Nº 4665, DE 2001.
Dispõe sobre a autorização da fertilização humana “in vitro” para os casais
comprovadamente incapazes de gerar filhos pelo processo natural de fertilização e dá outras
providências.
O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º – É permitida a fertilização humana “in vitro” exclusivamente para os casos de
casais comprovadamente incapazes de gerar filhos pelo processo natural de fertilização
somente em clínicas devidamente autorizadas pelo Ministério da Saúde.
Art. 2º – Revogam-se as disposições em contrário.
Art. 3º – Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação.
JUSTIFICAÇÃO
Ter um filho é o caminho natural para a preservação da espécie, para a continuidade da
família, etc.. Porém, 8 milhões de casais brasileiros simplesmente não conseguem ter filhos
por métodos naturais. São inférteis por várias razões, o que os leva a recorrer a medicina e as
clínicas de reprodução assistida. A ciência já é capaz de vencer a batalha em 9 de cada 10
casos de infertilidade. A ousadia dos cientistas só é superada pela dos pais, dispostos a
tudo por um filho. Se um casal com esse problema, recorrer a uma dessas clínicas, já será
possível adotar uma criança, ainda na forma de embrião e trazê-la ao mundo num parto
perfeitamente normal.
Os anos 90 foram a década da reprodução assistida no Brasil. A maioria das 130 clínicas
existentes hoje no país surgiu nos últimos 10 anos. Só no ano passado foram realizadas 6000
tentativas de fertilização, das quais nasceram 2000 bebês, representando menos de 1% do total
de nascimentos. Na França, porém, quase a metade dos bebês é resultado do trabalho de
laboratório.
Após a implantação dos embriões necessários, o restante é congelado para, quem sabe um
dia, ser utilizado novamente pelo casal. Ocorre que a maioria desiste de ter mais filhos e estes
embriões permanecem congelados à disposição das clínicas e de algum casal que os queira
adotar. Será que a vontade de ter um filho lhes dá o direito de descartar os outros
embriões? – Antes de ser uma questão cultural, temos aqui uma questão humana e religiosa,
profundamente constituída, que está sendo tratada separadamente em outro projeto de lei.
Conto com o apoio dos meus Ilustres Pares para a aprovação, em primeiro lugar, do
presente projeto e, a seguir, dos outros que darão sequência a este.
Sala das Sessões, em 16 de maio de 2001.
ANEXO D - PROJETO DE LEI Nº 1135, DE 2003.
Dispõe sobre a reprodução humana assistida.
O Congresso Nacional decreta:
CAPÍTULO I
DOS PRINCÍPIOS GERAIS
Art. 1° A presente lei estabelece normas para o emprego de técnicas de reprodução
humana assistida, em todo o território nacional.
Art. 2° As técnicas de reprodução humana assistida têm a função de auxiliar na resolução
dos problemas de infertilidade humana, facilitando o processo de procriação quando outras
terapêuticas tenham sido ineficazes ou ineficientes.
Art. 3º Para os efeitos desta lei, entende-se por:
I – reprodução humana assistida: a intervenção médica no processo de procriação, com o
objetivo de resolução de problemas de infertilidade humana ou esterilidade, considerando
riscos mínimos à paciente ou o possível descendente;
I I - pré-embriões humanos: o resultado da união in vitro de gametas, previamente à sua
implantação no organismo receptor, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento;
III – beneficiários: as mulheres ou os casais que tenham solicitado o emprego da
reprodução assistida;
IV - consentimento livre e esclarecido: o ato pelo qual os beneficiários são informados
sobre a reprodução humana assistida e manifestam, em documento escrito, consentimento
para a sua realização.
Art. 4° O consentimento informado será obrigatório e extensivo aos pacientes inférteis,
doadores e depositantes de gametas e ou pré-embriões e seus cônjuges ou companheiros, se
houver.
§ 1° No documento de consentimento informado serão detalhadamente expostos os
aspectos médicos envolvendo todas as circunstâncias da aplicação de técnicas de reprodução
humana assistida, assim como os resultados estatísticos e probabilísticos à respeito da
efetividade e da incidência de efeitos indesejados, bem como dos riscos inerentes ao
tratamento.
§ 2° As informações devem também incluir aspectos de natureza biológica, jurídica, ética
e econômica.
§ 3° O documento de consentimento informado será em formulário especial, e estará
completo com a concordância, por escrito, da paciente ou do casal infértil.
§ 4° Constarão, ainda, no documento de consentimento informado, as condições em que o
doador ou depositante autoriza a utilização de seus gametas ou pré-embriões, inclusive
postumamente.
§ 5° O consentimento informado relacionado ao disposto no parágrafo anterior, será
também exigido do respectivo cônjuge ou da pessoa com quem viva o doador em união
estável.
Art. 5° As técnicas de reprodução assistida não devem ser aplicadas com a intenção de
selecionar o sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto quando se
trate de evitar doenças ligadas ao sexo ou determinada geneticamente à criança que venha a
nascer.
Art. 6° É proibida a fecundação de oócitos humanos com qualquer outra finalidade que
não seja a procriação humana.
Art. 7° O número de oócitos e pré-embriões a serem transferidos para a receptora não
deve ser superior a três, com o intuito de não aumentar os riscos já existentes de
multiparidade, respeitada a vontade da mulher receptora a cada ciclo reprodutivo.
Art. 8° Em caso de gravidezes múltiplas, decorrentes do uso de técnicas de reprodução
assistida, é proibida a utilização de procedimentos que visem a redução embrionária, salvo os
casos de risco de vida para a gestante.
CAPÍTULO II
DOS USUÁRIOS DA TÉCNICA DE REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA
Art. 9° Toda mulher, capaz nos termos da lei, que tenha solicitado e cuja indicação não se
afaste dos limites desta lei pode ser receptora das técnicas de reprodução assistida, desde que
tenha concordado de maneira livre e consciente em documento de consentimento informado.
Parágrafo único. Estando casada ou em união estável, será necessária a aprovação do
cônjuge ou do companheiro, em processo semelhante de consentimento informado.
CAPÍTULO III
DOS SERVIÇOS QUE APLICAM TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO HUMANA
ASSISTIDA
Art. 10. As clínicas, centros ou serviços que aplicam técnicas de reprodução assistida,
além de se submeterem às normas éticas dos respectivos Conselhos, são responsáveis pelo
controle de doenças infecto-contagiosas, coleta, manuseio, conservação, distribuição e
transferência de material biológico humano pare a usuária de técnicas de reprodução assistida,
devendo apresentar como requisitos mínimos:
I – responsável por todos os procedimentos médicos e laboratoriais executados, que será,
obrigatoriamente, um médico;
II – registro permanente das gestações, nascimentos e malformações de fetos ou
recém-nascidos, provenientes das diferentes técnicas de reprodução assistida aplicadas na
unidade, bem como dos procedimentos laboratoriais na manipulação de gametas e
pré-embriões;
III – registro permanente das provas diagnósticas a que é submetido o material biológico
humano que será transferido aos usuários das técnicas de reprodução assistida, com a
finalidade precípua de evitar a transmissão de doenças;
IV - registro de todas as informações referentes aos doadores, pelo prazo de cinqüenta
anos;
V - licença de funcionamento a ser expedida pelo órgão competente da administração
pública.
Parágrafo único. No caso de enceramento das atividades de uma unidade médica que
realiza reprodução humana assistida, seus responsáveis são obrigados a transferir os registros
e materiais restantes para órgão competente do Poder Público.
CAPÍTULO IV
DA DOAÇÃO DE GAMETAS OU PRÉ-EMBRIÕES
Art. 11. A doação de gametas ou pré-embriões obedecerá às seguintes condições:
I - nunca terá caráter lucrativo ou comercial;
II - os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa.
§ 1º Será mantido, obrigatoriamente, o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas
e pré-embriões, assim como dos receptores.
§ 2º Em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica,
podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do
doador.
§ 3º As clínicas, centros ou serviços que empregam a doação devem manter, de forma
permanente, um registro de dados clínicos de caráter geral, características fenotípicas e uma
amostra de material celular dos doadores.
§ 4º Na região de localização da unidade, o registro das gestações evitará que um doador
tenha produzido mais que duas gestações, de sexos diferentes, numa área de um milhão de
habitantes.
§ 5º A escolha dos doadores é de responsabilidade da unidade que, dentro do possível,
deverá garantir que o doador tenha a maior semelhança fenotípica e imunológica e a máxima
possibilidade de compatibilidade com a receptora.
§ 6º Não será permitido ao médico responsável pelas clínicas, unidades ou serviços, nem
aos integrantes da equipe multidisciplinar, que nelas prestam serviços, participar como
doadores nos programas de reprodução assistida, extensiva a proibição aos seus parentes até o
quarto grau.
CAPÍTULO V
DOS GAMETAS E PRÉ-EMBRIÕES
Art. 12. Os pré-embriões originados in vitro, anteriormente à sua implantação no
organismo da receptora, não são dotados de personalidade civil.
Art. 13. Os beneficiários são juridicamente responsáveis pela tutela do pré-embrião e seu
ulterior desenvolvimento no organismo receptor.
CAPÍTULO VI
DA CRIOPRESERVAÇÁO DE GAMETAS OU PRÉ-EMBRIÕES
Art. 14. As clínicas, centros ou serviços podem criopreservar espermatozóides, óvulos e
pré-embriões.
§ 1° O número total de pré-embriões produzidos em laboratório será comunicado aos
pacientes, para que se decida quantos pré-embriões serão transferidos a fresco, devendo o
excedente ser criopreservado, não podendo ser descartado ou destruído.
§ 2° Os beneficiários das técnicas de reprodução assistida, assim como os doadores e
depositantes, devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos
gametas e pré-embriões criopreservados, em caso de separação, divórcio, doenças graves ou
de falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los.
§ 3° Após três anos de criopreservação, os gametas ou pré-embriões ficarão à disposição
dos beneficiários das técnicas de reprodução assistida, doadores ou depositantes, que poderão
descartá-los ou doá-los, mantendo as finalidades desta lei.
§ 4° Os pré-embriões em que sejam detectadas alterações genéticas que comprovadamente
venham comprometer a vida saudável da descendência, serão descartados, após o
consentimento do casal.
CAPÍTULO VII
DO DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO DE PRÉ-EMBRIÕES
Art. 15. As técnicas de reprodução assistida também podem ser utilizadas na prevenção e
tratamento de doenças genéticas ou hereditárias, quando perfeitamente indicadas e com
suficientes garantias de diagnóstico e terapêutica.
§ 1° Toda intervenção sobre pré-embriões in vitro, com fins diagnósticos, não poderá ter
outra finalidade que a avaliação de sua viabilidade ou detecção de doenças hereditárias, sendo
obrigatório o consentimento informado do casal.
2° Toda intervenção com fins terapêuticos, sobre pré-embriões in vitro, não terá outra
finalidade que tratar uma doença ou impedir sua transmissão, com garantias reais de sucesso,
sendo obrigatório o consentimento informado do casal.
§ 3° O tempo máximo de desenvolvimento de pré-embriões in vitro será de quatorze dias.
CAPÍTULO VIII
SOBRE A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO (DOAÇÃO TEMPORÁRIA DO ÚTERO)
Art. 16. As clínicas, centros ou serviços de reprodução humana podem usar técnicas de
reprodução assistida para criar a situação identificada como gestação de substituição, desde
que exista um problema médico que impeça ou contra-indique a gestação na doadora
genética.
§ 1° As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética,
num parentesco até o segundo grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização ética do
Conselho Regional de Medicina.
§ 2° A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.
CAPÍTULO IX
DA FILIAÇÃO DA PROLE
Art. 17. Será atribuída aos beneficiários a condição de paternidade plena da criança
nascida mediante o emprego de técnica de reprodução assistida.
§ 1° A morte dos beneficiários não restabelece o poder parental dos pais biológicos.
§ 2° A pessoa nascida por processo de reprodução assistida e o doador terão acesso aos
registros do serviço de saúde, a qualquer tempo, para obter informações para transplante de
órgãos ou tecidos, garantido o segredo profissional e o sigilo da identidade civil dos doadores.
Art. 18. O doador e seus parentes biológicos não terão qualquer espécie de direito ou
vínculo, quanto à paternidade ou maternidade, em relação à pessoa nascida a partir do
emprego das técnicas de reprodução assistida, salvo os impedimentos matrimoniais elencados
na legislação civil.
Art. 19. Os serviços de saúde que realizam a reprodução assistida sujeitam-se, sem
prejuízo das competências de órgão da administração definido em regulamento, à fiscalização
do Ministério Público, com o objetivo de resguardar a saúde e a integridade física das pessoas
envolvidas, aplicando-se, no que couber, as disposições da Lei n° 8.069, de 13 de julho de
1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).
CAPÍTULO X
DAS INFRAÇÕES E SANÇÕES
Art. 20. As infrações às proibições desta lei serão consideradas infrações éticas e
administrativas.
§ 1º As infrações éticas serão disciplinadas em resolução pelos conselhos a que estão
subordinados os profissionais responsáveis pelas técnicas de reprodução assistida, que
também tratarão da aplicação das respectivas sanções.
§ 2º O órgão competente da administração pública estabelecerá as infrações
administrativas e procederá a respectiva fiscalização.
Art. 21. Aplicam-se todas as disposições da lei civil, para as faltas e violações ao disposto
nesta lei.
Art. 22. Constitui crime fecundar oócito humano, com finalidade distinta da procriação
humana.
Pena - reclusão de 3 (três) a 6(seis) anos, e multa.
Art. 23. Comercializar ou industrializar pré-embriões ou gametas humanos.
Pena - reclusão de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
Art. 24. Praticar a reprodução humana assistida sem a obtenção do consentimento livre e
esclarecido dos beneficiários, dos doadores, dos depositantes e de seus cônjuges ou
companheiros, se houver, na forma determinada nesta lei.
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
Art. 25. Revelar a identidade civil dos doadores aos beneficiários das técnicas de
reprodução assistida e ou revelar a identidade civil dos beneficiários das técnicas de
reprodução assistida aos doadores.
Pena - reclusão, de 1(um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Art. 26. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
JUSTIFICAÇÃO
O vertiginoso avanço das ciências biomédicas, especialmente no que tange ao domínio das
ciências da vida, em confronto com a desatualização e o ritmo, em geral mais lento, das
ciências jurídicas, obrigaram a apresentação da presente iniciativa, após profundas reflexões
de ordem ética e estudo de todas as propostas sobre o tema - que tem implicações concretas
para a evolução da medicina no Brasil - buscando acompanhar o que acontece no mundo mas
respeitando aos valores básicos da natureza, da vida social e do próprio homem.
Até o presente momento não há normativa legal para a utilização das técnicas de
reprodução assistida. O controle de tais práticas vem sendo basicamente informal, com
intervenção mínima do Direito. Ou seja, na ausência de lei que normatize o uso das técnicas
de reprodução assistida para alcançar a procriação, elas são permitidas, tendo um controle
apenas dos médicos e seu Conselho, bem como da sociedade, que busca tratamentos que
julgam aceitáveis, segundo seus valores sociais.
O primeiro bebê de proveta brasileiro, Ana Paula Caldeira, nasceu em 07 de outubro de
1984, há quase vinte anos. Até que a sociedade brasileira acreditasse nos efeitos dos novos
tratamentos para infertilidade, os cientistas avançaram em suas pesquisas sem que tivesse
havido uma preocupação social em regulamentar as novas técnicas. Nem poderia ser
diferente, pois caso contrário haveria um freio ao progresso.
Ao lado deste controle, denominado informal, temos normas constitucionais que sempre
devem ser observadas e devem ser também analisadas sob o enfoque da evolução ética e legal
da reprodução assistida. Como expressão primeira de tais normas temos vários direitos, dentre
os quais a inviolabilidade do direito à vida, o incentivo da pesquisa e do desenvolvimento
científico, a liberdade de consciência e de crença, e a liberdade da expressão de atividade
científica.
Por outro lado, no capítulo dedicado à família na Constituição Federal, está definido que,
fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o
planejamento familiar é livre decisão do casal, unido em matrimônio ou não, competindo ao
Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito.
O direito à procriação é, portanto, assegurado, sendo dever do Estado permitir o uso da
ciência e até incentivar para que o homem o alcance. Assim, a utilização das técnicas de
reprodução é entendida como direito que deve até ser assegurado pelo Estado.
Entretanto, essas técnicas encontram hoje poucas limitações legais e, por causa de seus
efeitos, provoca inúmeras controvérsias éticas e problemas no campo do direito da família.
Neste aspecto foi estudada a matéria e verificada a necessidade de uma lei que viabilize o
avanço da ciência sem chocar a sociedade, com um mínimo de controle legal, para assegurar
direitos fundamentais previstos na nossa Constituição Federal, bem como para evitar algumas
perplexidades no âmbito do Direito de Família.
Pretende-se com esta lei, assegurar o direito à procriação, o direito de se fundar uma
família. Foram deixadas de lado as questões que podem circundar a matéria, mas que
demandam maior rigor e maior preocupação social como a clonagem, que não representa
interesse médico e nem se justifica em matéria de reprodução humana assistida.
Por isso define-se o conceito de reprodução assistida legalmente, considerando-a a
participação médica no processo de procriação, definindo-se o pré-embrião sempre como
união dos gametas masculino e feminino.
Justifica-se a exclusão de temas ligados ao patrimônio genético, pois, diante do medo de
criação de aberrações e clones para fins contrários a ética e a moral, veio em 05 de janeiro de
1995, a Lei n.° 8.974, que impõe severas restrições ao uso das técnicas de engenharia
genética, entre as quais a manipulação de células germinais humanas. No entanto, verifica-se
que esta lei não regulamenta, nem se aplica às técnicas de reprodução assistida, motivo desta
iniciativa.
Observa-se que a classe médica brasileira acompanhou o mundo em matéria de
reprodução, mas sempre com a preocupação de usar a reprodução assistida apenas para
auxiliar a resolução dos problemas de esterilidade humana, facilitando o processo de
procriação, quando outras terapêuticas tenham sido ineficazes ou ineficientes.
Desde 1988 há o interesse da classe médica pela normatização dos tratamentos, com
destaque para a proibição, naquela época, da prática ou indicação de atos médicos
desnecessários, exigindo, ainda, em seu Código de Ética, o consentimento informado dos
pacientes para a realização dos procedimentos de fecundação artificial.
Ampliada a utilização das técnicas de reprodução assistida, a comunidade científica
determinou a instituição de normas éticas específicas através da Resolução CFM nº 1.358/92,
única disciplina sobre reprodução assistida vigente hoje.
Cioso observar que não há notícia de conflitos judiciais a respeito da matéria, o que bem
demonstra que a resolução do Conselho Federal de Medicina deve ser levada em conta.
Entretanto são necessários alguns ajustes, seja para ampliar o âmbito de proteção da norma,
seja para atualizá-la tendo em vista que a sociedade demanda maior modernização da lei.
Sabe-se que mesmo sendo praticamente inexistentes os conflitos, muitas são as dúvidas e
poucas as soluções não controvertidas, porque o assunto envolve questões como o início da
vida, a sadia qualidade de vida, a preservação de patrimônio genético e outras não menos
polêmicas como determinação de paternidade, descarte de embriões e, ainda, possibilidade de
utilização de sêmen congelado após a morte.
Justifica-se, assim, mais uma vez, a importância de legislar sobre a matéria.
Com relação ao consentimento informado, diante de sua importância fundamental para a
realização dos procedimentos, pretende-se impor seja ele documentado, de forma escrita e o
mais completo possível, com destaque para obrigação de ser firmado por todos os envolvidos
no tratamento.
Impôs-se a forma legal, para constituir prova em caso de eventual disputa judicial e
também para a garantia de todos os envolvidos. Por isso mesmo, no presente projeto foi
determinado que no documento conste o maior número de informações possíveis a respeito do
tratamento e suas conseqüências, até mesmo jurídicas.
Há também proibição de utilização das técnicas para fins de eugenia, sob pena de haver
infração à norma constitucional do artigo 225. Entretanto, diante da possibilidade que a
ciência tem de evitar doenças, mister se faz a previsão da exceção de forma expressa.
O projeto segue a mesma preocupação mundial em reduzir o número de gestações
múltiplas, o que é compatível com a limitação da transferência de embriões. A limitação a três
transferências evitaria as gestações múltiplas e extinguiria o risco da temida redução
embrionária. Temida, pois a redução embrionária significa verdadeiro aborto, com a
interrupção do desenvolvimento de um ou mais embriões já implantados no útero materno.
Observe-se que neste tópico foi seguida a orientação do Código Penal no que tange ao
aborto, proibindo-se expressamente a redução embrionária, com a ressalva idêntica ao Código
Penal para os casos de risco de vida para a gestante.
No projeto há ainda determinação expressa quanto aos usuários das técnicas de
reprodução assistida, respeitada a Constituição Federal no que tange à igualdade de acesso.
Outro ponto relevante refere-se aos serviços de saúde que aplicam as técnicas em exame,
com exigência de registros permanentes dos procedimentos para permitir o controle da
Administração Pública e previsão para o caso de encerramento das atividades, o que é
essencial, consideradas as conseqüências dos tratamentos.
No capítulo IV são impostos limites claros para as doações de gametas e pré-embriões,
mais uma vez com respeito à Constituição Federal que proíbe qualquer comercialização do
corpo humano (artigo 199, parágrafo 4°). No mesmo capítulo está previsto o anonimato entre
doadores e receptores de gametas e pré-embriões, a pedra fundamental dos tratamentos.
Este princípio adotado pela Resolução CFM nº 1.358/92 e utilizado até a presente data
sem nenhuma impugnação judicial ou manifestação social, foi escolhido para proteger a
criança nascida do procedimento, para que ela não se transforme em objeto de disputa entre o
doador e seus pais.
O anonimato é garantia da autonomia e do desenvolvimento normal da família fundada
por procriação assistida. Não se pode admitir que um casal que se submete ao tratamento
passe a vida inteire temeroso de ser importunado pelo doador, ou vice-versa.
Algumas situações podem ser imaginadas pare se calcular o prejuízo que a família teria
caso fosse permitida a revelação da identidade civil. Por exemplo, um doador de sêmen fica
acometido de um mal que o impede de ter filhos. Em razão disso, desespera-se e passa a
procurar a identidade da família beneficiada com seu sêmen para reclamar-lhe a prole.
Imagina-se o inverso. A criança nascida perde os pais (beneficiários do tratamento) ou por
qualquer motivo separa-se deles e passa a procurar o doador do gameta, importunando-o para
reclamar uma paternidade que o doador nunca desejou.
Na hierarquia de valores, a proteção da família sobrepuja o eventual direito do filho
nascido do tratamento conhecer sua origem via identidade civil do doador. Não se pretende
objetar que a criança oriunda do procedimento saiba de sua origem. Ela pode e deve saber do
procedimento que a gerou e até sua identidade genética. Pretende-se tão-somente evitar que
seja possível a revelação da identidade civil dos doadores e receptores, pois sabe-se que quem
doa sêmen ou óvulos o faz somente por altruísmo, sem nenhum interesse na paternidade.
Quem deposita sêmen num banco para doação não pretende nenhum tipo de vinculação
com a criança nascida de seu material genético. Hoje, indiscutivelmente, a paternidade é mais
afetiva e social do que biológica, pelo menos quando dissociada de relações sexuais, pelo que
não há como se sustentar que se conheça a identidade civil dos doadores.
O conhecimento da identidade civil nada tem a ver com a dignidade humana. No caso, há
mais dignidade em preservar a identidade civil dos doadores e receptores do que em revelar.
Ademais, qual o benefício que a revelação traria? Nenhum, certo que se pretende determinar
que não existe vínculo algum entre doadores e a prole nascida, não havendo nenhum tipo de
filiação.
Que se conheça a identidade genética em certos casos é possível e até necessário, em
casos de doenças, por exemplo. Mas a identidade civil é contrária ao melhor interesse da
criança. Salienta-se que, no mundo, a postura predominante é a da preservação do anonimato.
Onde se permite a revelação da identidade civil, como na Suécia, praticamente desapareceram
os doadores.
De se notar, ainda, que o segredo é, no caso, direito de personalidade dos doadores e
receptores e não pode ser divulgado. O acesso à informação é limitado pelo segredo, bem
maior que deve ser protegido pelo Direito.
Nesse âmbito da Medicina Reprodutiva vale citar o Juramento de Hipócrates, pai da
Medicina: "O que quer que eu veja ou ouça, no curso ou não de minha profissão, nos meus
encontros com os homens, se for algo que não deve ser publicado fora, eu jamais divulgarei,
considerando essas coisas segredos sagrados". O segredo médico é tão importante que é
protegido pelo Direito em todas as esferas - Civil, Penal e Administrativo.
Não fosse tal, para proteger os Direitos Humanos e as liberdades fundamentais, a
Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos dispõe, em seu artigo 7°,
que "Quaisquer dados genéticos associados a uma pessoa identificável e armazenados ou
processados para fins de pesquisa ou para qualquer outra finalidade devem ser mantidos em
sigilo, nas condições previstas em lei". Seguindo, no artigo 9°, diz que "as limitações ao sigilo
só poderão ser prescritas em lei, por razões de força maior , dentro dos marcos da legislação
pública internacional e da lei internacional de direitos humanos".
O direito de acesso à informação não é e não pode ser considerado como razão de força
maior, até porque, em se tratando de identidade civil, é contrário aos interesses da criança.
De outra parte, se a intenção da lei é prevenir casamentos consangüíneos, observa-se que a
questão foi abordada de maneira adequada pelo projeto, que apresentou solução sem que a
revelação da identidade civil fosse condição para tanto, limitando o número de doações.
Por fim, não se pode perder de vista que, mesmo com a imposição legal do anonimato
entre doadores e receptores de gametas, mais adequada à sociedade e adotada pelos países
mais desenvolvidos, a Constituição garante sempre o acesso ao Poder Judiciário. Em algum
caso excepcional, se procurado, o Poder Judiciário deverá avaliar a questão.
O projeto também pretende colocar uma pá de cal nas discussões em torno dos direitos
dos pré-embriões antes da implantação no organismo da receptora, ao excluir-lhes
expressamente a personalidade civil. E mais, para os proteger, determina quem fica
responsável juridicamente por eles.
Diante do avanço na medicina mundial, foi imperioso um capítulo a respeito do
congelamento de pré-embriões produzidos em laboratório.
A técnica de criopreservação de pré-embriões é relativamente nova, anunciada a primeira
utilização em 1983 na Austrália, e praticada como auxiliar nas técnicas de reprodução
assistida desde então na França, Grã-Bretanha, Portugal, Suécia, Suíça, Áustria, Dinamarca,
Estados Unidos e Espanha, dentre outros países, onde a preocupação legal limita-se à
proibição ou não do descarte ou destruição dos embriões congelados.
Até na Itália, país reconhecidamente religioso, com força da Igreja Católica, utiliza-se a
técnica de congelamento. É notório o alto custo da medicação, bem como a possibilidade de
insucesso na fertilização dos óvulos. O índice de fertilização é de cerca de 80% dos óvulos
inseminados e, dos fertilizados, somente 50% evoluem adequadamente para a transferência ao
útero materno. Usualmente o número de embriões é inferior ao de óvulos coletados. Desta
forma, devem ser fertilizados quantos óvulos forem coletados, para aumentar a chance dos
pacientes em cada ciclo reprodutivo.
Ressalte-se que os tratamentos estão sendo realizados sem que se tenha notícia de descarte
de embriões ou de problemas judiciais, desde 1984, quando nasceu o primeiro bebê, fruto de
fertilização in vitro no Brasil.
O que se pretende, portanto, com o capítulo da criopreservação é viabilizar os tratamentos
sem a limitação de produção de pré-embriões, acompanhando, ainda, os países desenvolvidos
no que tange ao uso da técnica de congelamento, que se sabe, através de pesquisas científicas,
não prejudicar os embriões. Muitas crianças saudáveis já nasceram de reprodução assistida
realizada com técnica de congelamento no Brasil e no mundo.
Seguindo a orientação do Conselho Federal de Medicina, pretende-se a proibição do
descarte ou destruição de embriões quando da produção, impondo-se em princípio o
congelamento.
Ainda do mesmo modo que no capítulo anterior, os beneficiários das técnicas,
responsáveis pela tutela do pré-embrião desde o princípio, devem prever tudo a respeito do
destino dos pré-embriões congelados, especialmente em casos de separação, divórcio, doenças
e morte.
A inovação deste projeto refere-se a um prazo para o congelamento e à previsão da
possibilidade dos beneficiários das técnicas e nunca os médicos ou serviços de optar pelo
descarte dos pré-embriões congelados e não utilizados neste prazo.
Essa questão está em ampla discussão no mundo, não havendo consenso. Aqueles países
onde tiveram início tais tratamentos depararam-se com a problemática mais cedo. Na
Inglaterra, onde nasceu o primeiro bebê de proveta do mundo (1978), em 1996, foram
destruídos três mil pré-embriões congelados não utilizados e abandonados pelos beneficiários
das técnicas. Alguns países já determinaram obrigatório o descarte.
De se notar que não é crime o descarte de pré-embriões congelados, primeiro porque não
há ainda uma pessoa, não se enquadrando a hipótese no crime de homicídio, segundo porque
não há gestação, não se podendo falar em aborto.
O descarte de pré-embriões pela vontade expressa e única dos beneficiários não pode
sequer ser considerado contrário à ética, pois atende os requisitos da autonomia, beneficência
e justiça. Ora, o pré-embrião antes da implantação no organismo da receptora não tem
autonomia, a autonomia e responsabilidade são dos beneficiários que devem lhe determinar o
destino. Se o casal ou mulher não quer mais filhos e não deseja doá-los a um casal infértil,
deve-se obrigá-los a manter os pré-embriões congelados pelo resto da vida, arcando com as
despesas do banco? Com que justificativa?
A maioria dos países que legislaram sobre o assunto, determinaram um prazo máximo
para o congelamento e permitiram o descarte pela vontade dos beneficiários.
Atente-se para a existência de um parecer do Conselho Federal de Medicina nesse sentido,
enviado pelo ofício nº 7.597/99, em resposta a uma consulta protocolada naquele órgão sob o
número 6065/99.
Nos capítulos seguintes, foi mantida a orientação do Conselho Federal de Medicina para o
diagnóstico e tratamento de pré-embriões e para a gestação de substituição, equacionados os
problemas de acordo com os atuais conhecimentos científicos, bem como com a Lei da
Biossegurança e nossa Constituição Federal.
Capítulo próprio foi criado para a questão da filiação, acompanhando-se aqueles que
criaram o novo Código Civil, mas de uma forma mais ampla, com previsão de soluções para
hipóteses ainda não possíveis em 1975 (data do projeto do Código Civil). Foi garantida à
revelação dos dados genéticos e mantidas as considerações quanto à identidade civil para os
casos de transplante de órgão e tecidos.
Pretende-se, ainda, sujeitar os serviços que realizam reprodução à fiscalização do
Ministério Público, especialmente diante do interesse das pessoas envolvidas, com o objetivo
de resguardar a saúde e a integridade física.
Por fim, seguindo a tendência mundial de utilizar o Direito Penal tão somente em último
caso, para não haver uma banalização e assim, conseguir uma real eficácia exclusivamente
nos casos em que necessário (ultima ratio), foram criminalizadas apenas quatro condutas,
deixando-se a punição das demais infrações para os Direitos Civil e Administrativo, bem
como para os órgãos de classe a que estão sujeitos os infratores, o que se entende suficiente
para impor limites e coibir abusos, considerada a utilização na prática desde antes de 1984,
sem notícia de conflitos judiciais a respeito da questão.
Sendo estas as considerações pertinentes nesta oportunidade e pela extrema relevância da
matéria, conclamo os ilustres pares a aprovar este projeto de lei.
Sala das Sessões,
ANEXO E – PROJETO DE LEI Nº 1184, DE 2003.
Dispõe sobre a Reprodução Assistida.
O Congresso Nacional decreta:
CAPÍTULO I
DOS PRINCÍPIOS GERAIS
Art. 1º Esta Lei regulamenta o uso das técnicas de Reprodução Assistida (RA) para a
implantação artificial de gametas ou embriões humanos, fertilizados in vitro, no organismo de
mulheres receptoras.
Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, atribui-se a denominação de:
I – embriões humanos: ao resultado da união in vitro de gametas, previamente à sua
implantação no organismo receptor, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento;
II – beneficiários: às mulheres ou aos casais que tenham solicitado o emprego da
Reprodução Assistida;
III – consentimento livre e esclarecido: ao ato pelo qual os beneficiários são esclarecidos
sobre a Reprodução Assistida e manifestam, em documento, consentimento para a sua
realização, conforme disposto no Capítulo II desta Lei.
Art. 2º A utilização das técnicas de Reprodução Assistida será permitida, na forma autorizada
nesta Lei e em seus regulamentos, nos casos em que se verifique infertilidade e para a
prevenção de doenças genéticas ligadas ao sexo, e desde que:
I – exista indicação médica para o emprego da Reprodução Assistida, consideradas as
demais possibilidades terapêuticas disponíveis, segundo o disposto em regulamento;
II – a receptora da técnica seja uma mulher civilmente capaz, nos termos da lei, que tenha
solicitado o tratamento de maneira livre, consciente e informada, em documento de
consentimento livre e esclarecido, a ser elaborado conforme o disposto no Capítulo II desta
Lei;
III – a receptora da técnica seja apta, física e psicologicamente, após avaliação que leve
em conta sua idade e outros critérios estabelecidos em regulamento;
IV – o doador seja considerado apto física e mentalmente, por meio de exames clínicos e
complementares que se façam necessários.
Parágrafo único. Caso não se diagnostique causa definida para a situação de infertilidade,
observar-se-á, antes da utilização da Reprodução Assistida, prazo mínimo de espera, que será
estabelecido em regulamento e levará em conta a idade da mulher receptora.
Art. 3º É proibida a gestação de substituição.
CAPÍTULO II
DO CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Art. 4º O consentimento livre e esclarecido será obrigatório para ambos os beneficiários, nos
casos em que a beneficiária seja uma mulher casada ou em união estável, vedada a
manifestação da vontade por procurador, e será formalizado em instrumento particular, que
conterá necessariamente os seguintes esclarecimentos:
I – a indicação médica para o emprego de Reprodução Assistida, no caso específico, com
manifestação expressa dos beneficiários da falta de interesse na adoção de criança ou
adolescente;
II – os aspectos técnicos, as implicações médicas das diferentes fases das modalidades de
Reprodução Assistida disponíveis e os custos envolvidos em cada uma delas;
III – os dados estatísticos referentes à efetividade dos resultados obtidos no serviço de
saúde onde se realizará o procedimento de Reprodução Assistida;
IV – os resultados estatísticos e probabilísticos acerca da incidência e prevalência dos
efeitos indesejados nas técnicas de Reprodução Assistida, em geral e no serviço de saúde onde
esta será realizada;
V – as implicações jurídicas da utilização de Reprodução Assistida;
VI – os procedimentos autorizados pelos beneficiários, inclusive o número de embriões a
serem produzidos, observado o limite disposto no art. 13 desta Lei;
VII – as condições em que o doador ou depositante autoriza a utilização de seus gametas,
inclusive postumamente;
VIII – demais requisitos estabelecidos em regulamento.
§ 1º O consentimento mencionado neste artigo será também exigido do doador e de seu
cônjuge ou da pessoa com quem viva em união estável e será firmado conforme as normas
regulamentadoras, as quais especificarão as informações mínimas que lhes serão transmitidas.
§ 2º No caso do § 1º, as informações mencionadas devem incluir todas as implicações
decorrentes do ato de doar, inclusive a possibilidade de a identificação do doador vir a ser
conhecida.
CAPÍTULO III
DOS SERVIÇOS DE SAÚDE E PROFISSIONAIS
Art. 5º Os serviços de saúde que realizam a Reprodução Assistida são responsáveis:
I – pela elaboração, em cada caso, de laudo com a indicação da necessidade e
oportunidade para o emprego da técnica de Reprodução Assistida;
II – pelo recebimento de doações e pelas fases de coleta, manuseio, controle de doenças
infecto-contagiosas, conservação, distribuição e transferência do material biológico humano
utilizado na Reprodução Assistida, vedando-se a transferência de sêmen doado a fresco;
III – pelo registro de todas as informações relativas aos doadores e aos casos em que foi
utilizada a Reprodução Assistida, pelo prazo de 50 (cinqüenta) anos;
IV – pela obtenção do consentimento livre e esclarecido dos beneficiários de Reprodução
Assistida, doadores e respectivos cônjuges ou companheiros em união estável, na forma
definida no Capítulo II desta Lei;
V – pelos procedimentos médicos e laboratoriais executados;
VI – pela obtenção do Certificado de Qualidade em Biossegurança junto ao órgão
competente;
VII – pela obtenção de licença de funcionamento a ser expedida pelo órgão competente da
administração, definido em regulamento.
Parágrafo único. As responsabilidades estabelecidas neste artigo não excluem outras, de
caráter complementar, a serem estabelecidas em regulamento.
Art. 6º Para obter a licença de funcionamento, os serviços de saúde que realizam Reprodução
Assistida devem cumprir os seguintes requisitos mínimos:
I – funcionar sob a direção de um profissional médico, devidamente capacitado para
realizar a Reprodução Assistida, que se responsabilizará por todos os procedimentos médicos
e laboratoriais executados;
II – dispor de equipes multiprofissionais, recursos técnicos e materiais compatíveis com o
nível de complexidade exigido pelo processo de Reprodução Assistida;
III – dispor de registro de todos os casos em que tenha sido empregada a Reprodução
Assistida, ocorra ou não gravidez, pelo prazo de 50 (cinqüenta) anos;
IV – dispor de registro dos doadores e das provas diagnósticas realizadas, pelo prazo de
50 (cinqüenta) anos após o emprego do material biológico;
V – encaminhar relatório semestral de suas atividades ao órgão competente definido em
regulamento.
§ 1º A licença mencionada no caput deste artigo será válida por até 3 (três) anos,
renovável ao término de cada período, desde que obtido ou mantido o Certificado de
Qualidade em Biossegurança, podendo ser revogada em virtude do descumprimento de
qualquer disposição desta Lei ou de seu regulamento.
§ 2º O registro citado no inciso III deste artigo deverá conter a identificação dos
beneficiários e doadores, as técnicas utilizadas, a pré-seleção sexual, quando imprescindível,
na forma do art. 15 desta Lei, a ocorrência ou não de gravidez, o desenvolvimento das
gestações, os nascimentos, as malformações de fetos ou recém-nascidos e outros dados
definidos em regulamento.
§ 3º Em relação aos doadores, o registro citado no inciso IV deste artigo deverá conter a
identidade civil, os dados clínicos de caráter geral, foto acompanhada das características
fenotípicas e uma amostra de material celular.
§ 4º As informações de que trata este artigo são consideradas sigilosas, salvo nos casos
especificados nesta Lei.
§ 5º No caso de encerramento das atividades, os serviços de saúde transferirão os registros
para o órgão competente do Poder Público, determinado no regulamento.
CAPÍTULO IV
DAS DOAÇÕES
Art. 7º Será permitida a doação de gametas, sob a responsabilidade dos serviços de saúde que
praticam a Reprodução Assistida, vedadas a remuneração e a cobrança por esse material, a
qualquer título.
§ 1º Não será permitida a doação quando houver risco de dano para a saúde do doador,
levando-se em consideração suas condições físicas e mentais.
§ 2º O doador de gameta é obrigado a declarar:
I – não haver doado gameta anteriormente;
II – as doenças de que tem conhecimento ser portador, inclusive os antecedentes
familiares, no que diz respeito a doenças genético-hereditárias e outras.
§ 3º Poderá ser estabelecida idade limite para os doadores, com base em critérios que
busquem garantir a qualidade dos gametas doados, quando da regulamentação desta Lei.
§ 4º Os gametas doados e não-utilizados serão mantidos congelados até que se dê o êxito
da gestação, após o quê proceder-se-á ao descarte dos mesmos, de forma a garantir que o
doador beneficiará apenas uma única receptora.
Art. 8º Os serviços de saúde que praticam a Reprodução Assistida estarão obrigados a zelar
pelo sigilo da doação, impedindo que doadores e beneficiários venham a conhecer
reciprocamente suas identidades, e pelo sigilo absoluto das informações sobre a pessoa
nascida por processo de Reprodução Assistida.
Art. 9º O sigilo estabelecido no art. 8º poderá ser quebrado nos casos autorizados nesta Lei,
obrigando-se o serviço de saúde responsável pelo emprego da Reprodução Assistida a
fornecer as informações solicitadas, mantido o segredo profissional e, quando possível, o
anonimato.
§ 1º A pessoa nascida por processo de Reprodução Assistida terá acesso, a qualquer
tempo, diretamente ou por meio de representante legal, e desde que manifeste sua vontade,
livre, consciente e esclarecida, a todas as informações sobre o processo que o gerou, inclusive
à identidade civil do doador, obrigando-se o serviço de saúde responsável a fornecer as
informações solicitadas, mantidos os segredos profissional e de justiça.
§ 2º Quando razões médicas ou jurídicas indicarem ser necessário, para a vida ou a saúde
da pessoa gerada por processo de Reprodução Assistida, ou para oposição de impedimento do
casamento, obter informações genéticas relativas ao doador, essas deverão ser fornecidas ao
médico solicitante, que guardará o devido segredo profissional, ou ao oficial do registro civil
ou a quem presidir a celebração do casamento, que notificará os nubentes e procederá na
forma da legislação civil.
§ 3º No caso de motivação médica, autorizado no § 2º, resguardar-se-á a identidade civil
do doador mesmo que o médico venha a entrevistá-lo para obter maiores informações sobre
sua saúde.
Art. 10. A escolha dos doadores será de responsabilidade do serviço de saúde que pratica a
Reprodução Assistida e deverá assegurar a compatibilidade imunológica entre doador e
receptor.
Art. 11. Não poderão ser doadores os dirigentes, funcionários e membros de equipes, ou seus
parentes até o quarto grau, de serviço de saúde no qual se realize a Reprodução Assistida.
Parágrafo único. As pessoas absolutamente incapazes não poderão ser doadoras de
gametas.
Art. 12. O Titular do Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais fica obrigado a
comunicar ao órgão competente previsto no art. 5º, incisos VI e VII, até o dia 10 de cada mês,
o registro dos óbitos ocorridos no mês imediatamente anterior, devendo da relação constar a
filiação, a data e o local de nascimento da pessoa falecida.
§ 1º No caso de não haver sido registrado nenhum óbito, deverá o Titular do Cartório de
Registro Civil de Pessoas Naturais comunicar esse fato ao referido órgão no prazo estipulado
no caput deste artigo.
§ 2º A falta de comunicação na época própria, bem como o envio de informações inexatas,
sujeitará o Titular de Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais a multa variável de R$
636,17 (seiscentos e trinta e seis reais e dezessete centavos) a R$ 63.617,35 (sessenta e três
mil, seiscentos e dezessete reais e trinta e cinco centavos), na forma do regulamento.
§ 3º A comunicação deverá ser feita por meio de formulários para cadastramento de óbito,
conforme modelo aprovado em regulamento.
§ 4º Deverão constar, além dos dados referentes à identificação do Cartório de Registro
Civil de Pessoas Naturais, pelo menos uma das seguintes informações relativas à pessoa
falecida:
I – número de inscrição do PIS/Pasep;
II – número de inscrição do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, se contribuinte
individual, ou número de benefício previdenciário - NB, se a pessoa falecida for titular de
qualquer benefício pago pelo INSS;
III – número do CPF;
IV – número de registro de Carteira de Identidade e respectivo órgão emissor;
V – número do título de eleitor;
VI – número do registro de nascimento ou casamento, com informação do livro, da folha e
do termo;
VII – número e série da Carteira de Trabalho.
CAPÍTULO V
DOS GAMETAS E EMBRIÕES
Art. 13. Na execução da técnica de Reprodução Assistida, poderão ser produzidos e
transferidos até 2 (dois) embriões, respeitada a vontade da mulher receptora, a cada ciclo
reprodutivo.
§ 1º Serão obrigatoriamente transferidos a fresco todos os embriões obtidos, obedecido ao
critério definido no caput deste artigo.
§ 2º Os embriões originados in vitro, anteriormente à sua implantação no organismo da
receptora, não são dotados de personalidade civil.
§ 3º Os beneficiários são juridicamente responsáveis pela tutela do embrião e seu ulterior
desenvolvimento no organismo receptor.
§ 4º São facultadas a pesquisa e experimentação com embriões transferidos e
espontaneamente abortados, desde que haja autorização expressa dos beneficiários.
§ 5º O tempo máximo de desenvolvimento de embriões in vitro será definido em
regulamento.
Art. 14. Os serviços de saúde são autorizados a preservar gametas humanos, doados ou
depositados apenas para armazenamento, pelos métodos e prazos definidos em regulamento.
§ 1º Os gametas depositados apenas para armazenamento serão entregues somente à
pessoa depositante, não podendo ser destruídos sem sua autorização.
§ 2º É obrigatório o descarte de gametas:
I – quando solicitado pelo depositante;
II – quando houver previsão no documento de consentimento livre e esclarecido;
III – nos casos de falecimento do depositante, salvo se houver manifestação de sua
vontade, expressa em documento de consentimento livre e esclarecido ou em testamento,
permitindo a utilização póstuma de seus gametas.
Art. 15. A pré-seleção sexual será permitida nas situações clínicas que apresentarem risco
genético de doenças relacionadas ao sexo, conforme se dispuser em regulamento.
CAPÍTULO VI
DA FILIAÇÃO DA CRIANÇA
Art. 16. Será atribuída aos beneficiários a condição de paternidade plena da criança nascida
mediante o emprego de técnica de Reprodução Assistida.
§ 1º A morte dos beneficiários não restabelece o poder parental dos pais biológicos.
§ 2º A pessoa nascida por processo de Reprodução Assistida e o doador terão acesso aos
registros do serviço de saúde, a qualquer tempo, para obter informações para transplante de
órgãos ou tecidos, garantido o segredo profissional e, sempre que possível, o anonimato.
§ 3º O acesso mencionado no § 2º estender-se-á até os parentes de 2º grau do doador e da
pessoa nascida por processo de Reprodução Assistida.
Art. 17. O doador e seus parentes biológicos não terão qualquer espécie de direito ou vínculo,
quanto à paternidade ou maternidade, em relação à pessoa nascida a partir do emprego das
técnicas de Reprodução Assistida, salvo os impedimentos matrimoniais elencados na
legislação civil.
Art. 18. Os serviços de saúde que realizam a Reprodução Assistida sujeitam-se, sem prejuízo
das competências de órgão da administração definido em regulamento, à fiscalização do
Ministério Público, com o objetivo de resguardar a saúde e a integridade física das pessoas
envolvidas, aplicando-se, no que couber, as disposições da Lei nº 8.069, de 13 de julho de
1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).
CAPÍTULO VII
DAS INFRAÇÕES E PENALIDADES
Art. 19. Constituem crimes:
I – praticar a Reprodução Assistida sem estar habilitado para a atividade:
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa;
II – praticar a Reprodução Assistida sem obter o consentimento livre e esclarecido dos
beneficiários e dos doadores na forma determinada nesta Lei ou em desacordo com os termos
constantes do documento de consentimento por eles assinado:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa;
III – participar do procedimento de gestação de substituição, na condição de beneficiário,
intermediário ou executor da técnica:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa;
IV – fornecer gametas depositados apenas para armazenamento a qualquer pessoa que não
o próprio depositante, ou empregar esses gametas sem sua prévia autorização:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa;
V – deixar de manter as informações exigidas na forma especificada, não as fornecer nas
situações previstas ou divulgá-las a outrem nos casos não autorizados, consoante as
determinações desta Lei:
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa;
VI – utilizar gametas de doadores ou depositantes sabidamente falecidos, salvo na
hipótese em que tenha sido autorizada, em documento de consentimento livre e esclarecido,
ou em testamento, a utilização póstuma de seus gametas:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa;
VII – implantar mais de 2 (dois) embriões na mulher receptora:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa;
VIII – realizar a pré-seleção sexual de gametas ou embriões, ressalvado o disposto nesta
Lei:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa;
IX – produzir embriões além da quantidade permitida:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa;
X – armazenar ou ceder embriões, ressalvados os casos em que a implantação seja contra-
indicada:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa;
XI – deixar o médico de implantar na mulher receptora os embriões produzidos, exceto no
caso de contra-indicação médica:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa;
XII – descartar embrião antes da implantação no organismo receptor:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa;
XIII – utilizar gameta:
a) doado por dirigente, funcionário ou membro de equipe do serviço de saúde em que se
realize a Reprodução Assistida, ou seus parentes até o quarto grau;
b) de pessoa incapaz;
c) de que tem ciência ser de um mesmo doador, para mais de um beneficiário;
d) sem que tenham sido os beneficiários ou doadores submetidos ao controle de doenças
infecto-contagiosas e a outros exames complementares:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
Parágrafo único. Ao aplicar as medidas previstas neste artigo, o juiz considerará a
natureza e a gravidade do delito e a periculosidade do agente.
Art. 20. Constituem crimes:
I – intervir sobre gametas ou embriões in vitro com finalidade diferente das permitidas
nesta Lei:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa;
II – utilizar o médico do próprio gameta para realizar a Reprodução Assistida, exceto na
qualidade de beneficiário:
Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos, e multa;
III – omitir o doador dados ou fornecimento de informação falsa ou incorreta sobre
qualquer aspecto relacionado ao ato de doar:
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa;
IV – praticar o médico redução embrionária, com consentimento, após a implantação no
organismo da receptora, salvo nos casos em que houver risco de vida para a mulher:
Pena – reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos;
V – praticar o médico redução embrionária, sem consentimento, após a implantação no
organismo da receptora, salvo nos casos em que houver risco de vida para a mulher:
Pena – reclusão de 3 (três) a 10 (dez) anos.
Parágrafo único. As penas cominadas nos incisos IV e V deste artigo são aumentadas de
1/3 (um terço), se, em conseqüência do procedimento redutor, a receptora sofre lesão corporal
de natureza grave; e são duplicadas, se, pela mesma causa, lhe sobrevém a morte.
Art. 21. A prática de qualquer uma das condutas arroladas neste Capítulo acarretará a perda da
licença do estabelecimento de Reprodução Assistida, sem prejuízo das demais sanções legais
cabíveis.
CAPÍTULO VIII
DAS DISPOSIÇÕES FINAIS
Art. 22. Os embriões conservados até a data de entrada em vigor desta Lei poderão ser doados
exclusivamente para fins reprodutivos, com o consentimento prévio dos primeiros
beneficiários, respeitados os dispositivos do Capítulo IV.
Parágrafo único. Presume-se autorizada a doação se, no prazo de 60 (sessenta) dias, os
primeiros beneficiários não se manifestarem em contrário.
Art. 23. O Poder Público promoverá campanhas de incentivo à utilização, por pessoas
inférteis ou não, dos embriões preservados e armazenados até a data de publicação desta Lei,
preferencialmente ao seu descarte.
Art. 24. O Poder Público organizará um cadastro nacional de informações sobre a prática da
Reprodução Assistida em todo o território, com a finalidade de organizar estatísticas e tornar
disponíveis os dados sobre o quantitativo dos procedimentos realizados, a incidência e
prevalência dos efeitos indesejados e demais complicações, os serviços de saúde e os
profissionais que a realizam e demais informações consideradas apropriadas, segundo se
dispuser em regulamento.
Art. 25. A Lei nº 8.974, de 5 de janeiro de 1995, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 8º-
A:
“Art. 8º-A. São vedados, na atividade com humanos, os experimentos de clonagem
radical através de qualquer técnica de genetecnologia.”
Art. 26. O art. 13 da Lei nº 8.974, de 1995, passa a vigorar acrescido do seguinte inciso
IV, renumerando-se os demais:
“Art. 13. .....................................................................................................
....................................................................................................................
IV – realizar experimentos de clonagem humana radical através de qualquer técnica
de genetecnologia;
.........................................................................................................” (NR)
Art. 27. Esta Lei entra em vigor 180 (cento e oitenta) dias a partir da data de sua publicação.
Senado Federal, em junho de 2003
ANEXO F - PROJETO DE LEI Nº 2061, DE 2003
Disciplina o uso de técnicas de Reprodução Humana Assistida como um dos componentes
auxiliares no processo de procriação, em serviços de saúde, estabelece penalidades e dá outras
providências.
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1° As técnicas de Reprodução Humana Assistida poderão ser utilizadas como um dos
componentes auxiliares na resolução dos problemas de infertilidade humana, através dos
serviços de saúde, públicos e privados, como forma de facilitar o processo de procriação,
quando outras terapêuticas tenham sido ineficazes ou ineficientes para solução da situação de
infertilidade.
Art. 2° As técnicas de Reprodução Humana Assistida poderão ser utilizadas desde que
exista probabilidade efetiva de sucesso, e não incorra em risco grave de saúde para a mulher e
para o possível nascituro.
Art. 3º Compete ao Conselho Municipal de Saúde, ou na falta deste ao Conselho Estadual
de Saúde, da localidade em que esteja localizado o estabelecimento que realizar os
procedimentos de Reprodução Assistida , dispor sobre a instituição de Comissão de Ética para
acompanhamento dos dispositivos desta Lei.
§ Único A Comissão de Ética terá competência para acompanhar os procedimentos objeto
desta lei em instituições públicas ou privadas, podendo ser única, ou específica por
estabelecimento.
Art. 4° O consentimento informado é obrigatório e extensivo aos receptores e doadores,
por meio de documento escrito, testemunhado e acompanhado pela Comissão de Ética.
§ 1° As informações necessárias ao consentimento de que trata o caput compreenderão, no
mínimo:
I – Os aspectos médicos envolvendo todas as circunstâncias da aplicação das técnicas de
Reprodução Humana Assistida, os quais serão detalhadamente expostos, assim como os
resultados já obtidos naquela unidade de tratamento com as técnicas propostas.
II – Os dados de caráter biológico, psicológico, jurídico, econômico, ético e social;bem
como da experimentação, sua eficácia e sua eficiência.
§ 2° O documento de consentimento informado será efetuado em formulário especial e
estará completo com a concordância, por escrito dos receptores e doadores e assinado por pelo
menos um membro do Conselho de Ética com competência sobre da Unidade.
Art. 5° É vedado o uso das técnicas de Reprodução Humana Assistida com a intenção de
selecionar o sexo, ou qualquer outra característica biológica ou étnica do futuro nascituro,
exceto quando se trate de evitar doenças.
Art. 6° É proibida a fecundação de oócitos humanos com qualquer outra finalidade que
não seja a procriação humana.
Art. 7° É vedada a transferência de oócitos e pré-embriões em número superior a quatro,
com o intuito de não aumentar os riscos pré-existentes de multiparidade.
§ Único O número de oócitos e pré-embriões a serem transferidos poderá ser reduzido em
função da melhoria das técnicas cientificamente aceitas de procriação assistida.
Art. 8° São beneficiários desta lei todo homem e mulher – doador e receptor – capazes
nos termos da lei, que tenham concordado de maneira livre e consciente em documento de
consentimento informado.
Art. 9° As Unidades de Saúde, públicas ou privadas, que aplicarem técnicas de
Reprodução Humana Assistida são responsáveis pelo controle de doenças infecto-contagiosas,
coleta, manuseio, conservação, distribuição e transferência de material biológico humano para
os usuários – doadores e receptores – e para o possível nascituro, devendo apresentar como
requisitos mínimos para funcionamento:
I – um responsável por todos os procedimentos médicos e laboratoriais executados, que
será, obrigatoriamente, um médico;
II – registro permanente, obtido através de informações observadas ou relatadas por fonte
competente das gestações, nascimentos e mal-formações de fetos ou recém-nascidos,
provenientes das diferentes técnicas de Reprodução Humana Assistida aplicadas na unidade
em apreço, bem como dos procedimentos laboratoriais na manipulação de oócitos e pré-
embriões;
III – registro permanente das provas diagnósticas a que é submetido o material biológico
humano que será transferido aos usuários das técnicas de Reprodução Humana Assistida, com
a finalidade precípua de evitar a transmissão de doenças.
Art. 10 A doação de oócitos ou embriões obedecerá às seguintes condições:
I – a doação é um ato de solidariedade humana, sendo vedado sua realização com
qualquer caráter lucrativo ou comercial;
II – os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa, salvo em
situação de doação homóloga ou heteróloga consentida, sendo necessária a aprovação de
ambos, após processo semelhante de consentimento informado.
III – obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de oócitos e
pré-embriões, assim como de doadores e receptores heterólogos consentidos, ressalvadas as
situações especiais de motivação médica, nas quais as informações sobre doador e receptor
poderão ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando a identidade civil de
ambos.
IV – as unidades de saúde que realizarem doação de oócitos e pré-embriões devem
manter, de forma permanente, um registro de dados clínicos de caráter geral, características
fenotípicas e uma amostra de material celular dos doadores;
V – na região de localização da unidade de Reprodução Humana Assistida o registro das
gestações evitará que um doador tenha produzido mais que 2 (duas) gestações, de sexos
diferentes, numa área de um milhão de habitantes;
VI – a escolha dos doadores é de responsabilidade da unidade que detém o conhecimento
técnico científico que, dentro do possível, no consentimento informado, propiciará ao receptor
a escolha, buscando garantir que o doador tenha a maior semelhança fenotípica e imunológica
e a máxima possibilidade de compatibilidade com a receptora.
VII – É vedado ao médico responsável pela unidade de saúde, aos integrantes da equipe
multidisciplinar, aos demais servidores que prestam serviços na respectiva unidade de saúde,
bem como aos servidores das demais unidades aplicadoras de técnicas de Reprodução
Humana Assistida, participarem como doadores.
Art. 11 - As unidades de reprodução humana assistida poderão criopreservar
espermatozóides, óvulos e pré-embriões.
§ 1º - O número total de embriões produzidos em laboratório será comunicado a cada
pessoa receptora, de per si interessada, para que se decida quantos embriões serão transferidos
a fresco, podendo o excedente ser criopreservado.
§ 2º - No momento da criopreservação, os doadores e receptores devem expressar sua
vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos pré-embriões criopreservados, e
condições de sua doação em casos de doenças graves ou de falecimento de um deles ou de
ambos.
Art. 12 As técnicas de procriação assistida também podem ser utilizadas na prevenção e
tratamento de doenças genéticas ou hereditárias, quando científica e eticamente indicadas e
com suficientes garantias de diagnóstico e terapêutica.
§ 1º Toda intervenção sobre pré-embriões "in vitro", com fins diagnósticos, não poderá ter
outra finalidade que a avaliação de sua viabilidade ou detecção de doenças genéticas ou
hereditárias, sendo obrigatório o consentimento informado de doadores ou receptores.
§ 2º Toda intervenção com fins terapêuticos, sobre pré-embriões "in vitro", não terá outra
finalidade que tratar uma doença ou impedir sua transmissão, com garantias reais de sucesso,
sendo obrigatório o consentimento informado dos doadores e receptores.
§ 3º O tempo máximo de desenvolvimento de pré-embriões "in vitro", será de quatorze
dias.
Art. 13 As unidades de Reprodução Humana Assistida podem usar técnicas para criarem
a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico
que impeça ou contra-indique a gestação na doadora genética.
§ Único Na doação temporária do útero é vedado qualquer caráter lucrativo ou comercial.
Art. 14 À Comissão de Ética das unidades de Reprodução Humana Assistida, sempre que
solicitado, compete testemunhar o consentimento informado, acompanhar, avaliar e prestar
informações e esclarecimentos ao Conselho de Saúde e ao Gestor do Sistema Único de Saúde
do local onde estiver localizado o estabelecimento, sobre as práticas das técnicas de
reprodução humana assistida das respectivas unidades de saúde públicas e privadas, nos
termos desta lei.
Art. 15 Cabe à instância gestora do Sistema Único de Saúde, guardado o seu nível de
competência e atribuições, cadastrar, fiscalizar e controlar as instituições e serviços que
realizam as técnicas de procriação assistida.
Art. 16 A instituição, pública ou privada, e profissionais de saúde que contrariarem o
disposto nesta lei, estão sujeitos às penalidades previstas na legislação civil e penal em vigor.
Art. 17 É facultado ao Poder Executivo da localidade onde estiver localizado o
estabelecimento, com interveniência da respectiva Secretaria de Saúde, celebrar convênios ou
outros instrumentos de cooperação na promoção da saúde e prevenção, com órgãos públicos
de qualquer esfera, bem como com universidades e organizações não governamentais, visando
ao acompanhamento, execução e avaliação das ações decorrentes desta lei.
Art. 18 O Poder Executivo regulamentará a presente lei no prazo de cento e oitenta dias,
contados da sua publicação.
Art. 19 Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 20 Revogam-se as disposições em contrário.
JUSTIFICAÇÃO
A Constituição Federal de 1988 e a Lei 8080/90 ao garantir o direito de cidadania,
garantem o direito à assistência social e à saúde a quem delas necessitarem de ações de
promoção e prevenção, bem como da assistência e da reabilitação.
O planejamento familiar é direito de todo o cidadão, observado o disposto na Constituição
e na lei.
Entende-se como planejamento familiar o conjunto das ações de regulação da fecundidade
que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo
homem ou pelo casal.
Na legislação brasileira é proibida a utilização das ações de planejamento familiar para
qualquer tipo de controle demográfico e étnico. O planejamento familiar é parte integrante do
conjunto de ações de atenção à mulher, ao homem ou ao casal, dentro de uma visão de
atendimento global e integral à saúde.
Neste contexto do direito de cidadania, também se encontra a situação de infertilidade
masculina e feminina que tem demandado os serviços de saúde, públicos e privados do país
com problemas relacionados ao direito de procriação.
A partir do momento em que ocorreu a procriação do primeiro bebê de proveta do mundo,
a polêmica situação da fertilização “in vitro” e das técnicas de reprodução humana assistida,
vem constituindo demandas de algumas pessoas na sociedade, em busca de soluções para
problemas de infertilidade e o desejo de procriar.
A infertilidade, segundo a Organização Mundial de Saúde é a incapacidade de procriar,
após um ano de relacionamento sexual sem uso de medidas contraceptivas. Segundo Donádio
(1987) 60%, dos casos são referentes à mulher, 40% ao homem e 20% ao casal.
A defesa democrática dos direitos reprodutivos inclui o acesso ao tratamento da
infertilidade – nos casos em ela é de fato uma doença – e a segurança destas terapias.
Foge à nossa competência ética “julgar” quem deve ter ou não uma prole, mas é uma
obrigação ética apoiar as pessoas em suas decisões em matéria de procriação e ampliar o
poder de decisão delas em questões de tamanha complexidade, bem como exigir segurança e
bem estar da atividade e dos produtos da ciência.
As causas da infertilidade, em mulheres e homens são desde causas anatômicas ou
biológicas a distúrbios emocionais, seqüelas de doenças infecciosas, neoplasias, questões
imunológicas e hormonais a problemas sociais e ambientais, incluindo ainda a esterilização
química, radioativa ou cirúrgica.
É legitimo dizer que a infertilidade é muito mais uma condição social que biológica. Além
do que está comprovado que a maior parte dos casos de infertilidade cura “com o tempo”. Em
que pese esta situação, o fato é que a procriação artificial começou com a inseminação
artificial, que consiste na introdução do sêmem no útero no período de ovulação. É
denominada de homóloga quando utiliza o sêmem do cônjuge ou companheiro e de
heteróloga quando o sêmem é de um doador, pressupondo que a mulher ovule; caso contrário
pode, também, haver doação de óvulo.
Desta fase, evoluiu-se para as técnicas de procriação assistida em conjunto de técnicas que
objetivam fazer com que uma mulher engravide, quando ela é infértil, ou seu companheiro, ou
ambos. A fertilização “in vitro” e a transferência de embriões, tornaram-se públicas no mundo
inteiro, surgindo a prestação destas técnicas a usuários, em unidades de saúde, de caráter
público e privado, no mundo em geral e no Brasil em particular.
Considerando que estas técnicas se utilizam da hiperestimulação hormonal, da
superovulação e do implante múltiplo e simultâneo de embriões, bem como de procedimentos
de retiradas de óvulos e espermatozóides, presume-se que tudo isto represente risco a
receptores e doadores, sem falar dos aspectos emocionais, mentais, culturais, éticos e sociais,
que podem ocorrer neste processo, com a saúde dos envolvidos e dos possíveis nascituros.
Em relação a nascituros, sabe-se que a prematuridade é três vezes superior aos
nascimentos concebidos naturalmente. A prematuridade está associada à gemelaridade que é
em torno de 20% dos nascimentos. Somam-se ainda os riscos da multiparidade.
Não há como deixar de admitir as possibilidades de manipulação do futuro ser e os riscos
que poderá representar, se não se levar em conta as implicações sociais e éticas envolvidas,
uma vez que dentre um certo número de embriões, alguns são escolhidos como viáveis, na
busca de eficácia, eficiência e segurança nas práticas utilizadas e resultados obtidos. É ainda
muito tênue o divisor entre o tratamento de infertilidade por meio da procriação assistida e da
experimentação.
A Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde: Normas de Ética em Pesquisa
Envolvendo Seres Humanos e a Resolução nº1358/92 do Conselho Federal de Medicina, não
são suficientes do ponto de vista das garantias e de segurança aos usuários de tais técnicas de
procriação assistida.
É com a intenção de ampliar a salvaguarda da cidadania sobre os benefícios e possíveis
efeitos colaterais da procriação assistida, que poderá surpreender os menos informados e
considerando que é justo e ético que as pessoas tenham o direito de decidir e de dar ou não o
consentimento informado, é que este projeto de lei se faz necessário na construção do controle
social, jurídico e ético sobre a ciência e a tecnologia.
É, também, dever do Estado, através do Sistema Único de Saúde e instâncias parceiras do
sistema educacional, técnicos e científicos, assegurar o livre exercício do planejamento
familiar, dentro da legalidade e das normas de funcionamento e mecanismos de fiscalização
estabelecidos pelas instâncias gestoras do Sistema Único de Saúde.
Esperamos que a presente proposta possa contar com o apoio dos nobres pares para sua
aprovação.
Sala das Sessões,
ANEXO G - PROJETO DE LEI Nº 5624 , DE 2005.
Cria Programa de Reprodução Assistida no Sistema Único de Saúde e dá outras providências.
O Congresso Nacional decreta:
Art 1
o
. – Fica instituído em todo território nacional, Programa de Reprodução Assistida
no Sistema Único de Saúde, a ser desenvolvido pelos estabelecimentos e conveniados ao
Ministério da Saúde;
Art 2
o
. – São objetivos do programa instituído no artigo anterior:
I – Introduzir a garantir a oferta de atendimento ao usuário que necessite de auxílio na
reprodução humana assistida;
II – Prestar auxílio, assistência e orientação especializada dos órgãos de saúde à pessoa
com problemas de fertilidade;
III – Desenvolver de projetos e ações destinados à garantia da saúde reprodutiva;
IV – Oferecer técnicas de reprodução assistida a pessoas portadoras de doenças genéticas
e infecto-contagiosas;
V – Oferecer atendimento destinado a procedimentos de atenção básica à alta
complexidade.
Art 3
o
. – Dentre as ações de auxílio, assistência e orientação, destacam-se:
I – A oferta de atendimento médico e laboratorial especializado na rede pública de saúde;
II – A oferta de atendimento assistencial, psicológico e terapêutico;
Art 4
o
. – Para a realização dos objetivos previstos neste Programa, o Poder Público
firmará convênios e parcerias com entidades públicas ou privadas, governamentais ou não-
governamentais, destinando-lhes, se necessário, aporte de recursos para a efetivação de suas
atividades;
Art 5
o
. –– Esta lei será regulamentada pelo Poder Executivo, no prazo de 180 dias de sua
publicação;
Art 6
o
. – Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas disposições em
contrário.
JUSTIFICATIVA
O presente projeto de lei destina-se a incluir na rede pública de atendimento à saúde,
programa específico de auxílio e atendimento à reprodução assistida, garantindo à pessoa com
problemas de fertilidade a devida atenção, auxílio e tratamento do Sistema único de Saúde;
Segundo a Organização Mundial da Saúde e sociedades científicas, entre 8% e 15% dos
casais têm algum problema de infertilidade definindo-se infertilidade como a incapacidade de
um casal engravidar após 12 meses de relações sexuais regulares sem uso de contracepção.
Com o intuito de elaborar uma política nacional para atenção integral em reprodução humana
assistida na rede SUS, o presente projeto destina-se a atender, sobretudo às pessoas, cuja
dificuldade econômico-financeira não permite atendimento, permitindo-lhes a garantia da
saúde reprodutiva, com o devido acompanhamento médico;
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