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desabafos, fluxos de uma consciência. Grande parte do que nos é narrado não
obedece a nenhuma pontuação coerente, os fatos imaginados e agora relembrados
são jogados numa seqüência muitas vezes incoerente.
Há ao longo da narrativa, de forma bem perceptível, os ecos do discurso
patriarcal, por diversas vezes, na voz da própria personagem narradora, que permite
as vozes de seu pai, da Velha, de Francisco de Albuquerque, de membros da Igreja,
a revelarem qual deveria ser o papel feminino. Um dos momentos em que se torna
perceptível de maneira mais enfática esta questão pode ser apreendido no
fragmento textual seguinte, que, apesar de longo, será mantido integralmente pela
riqueza de análise que nos propicia.
Ora ouvi, filhas minhas. Aquela que chamar de vadio seu homem deve
jurar que o disse em um acesso de cólera, nunca mais deixar os
cabelos soltos, mas atados, seja em turbante, seja trançado, não
morder o beiço, que é sinal de cólera, nem fungar com força, que é
desconfiança, nem afilar o nariz, que é desdém e nem encher as
bochechas de vento como a si dando realeza, nem alevantar os
ombros em indiferença e nem olhar para o céu que é recordação, nem
punho cerrado, que é ameaça. Tampouco a mão torcer, que é
despeito. Nem pá pá pá pá nem lari lará. Nem lengalengas nem
conversas com vizinho, seja ele quem for, ou cigano, nem jogos nem
danças de rua, nem olhar cão preto que pode ser chifrudo, deus te
chame lá que ninguém te chama cá, temperar legume com sal, não
apagar luz que alumia morto nem deitar as águas fora que é de
judaísmo, não pedir favores nem pôr os olhos no vizinho nem o corpo
na cama de outro, tem o esposo direito de acusar, para provar
inocência a esposa deve lavrar a mão num ferro de arado em brasa.
Açoite e língua furada àquela que arrenegar. Os esposos devem dar
panos às mulheres, mas só nas festas reais, se lhes oferecer o
mercador um bom preço, que eles não façam obra alguma desde o
posto do sol até o sol saído e dia de domingo e a viver segundo o
capricho dos homens. Aqui do rei. E disse eu, Ora, hei, hei, não é
melhor morrer a ferro que viver com tantas cautelas? Ai, como sou,
olhasse a minha imperfeição, olhasse meu lugar, sem eira nem beira
nem folha de figueira (D. p. 67).
O fragmento textual, pertencente à terceira parte do romance, intitulada
“Casamento”, revela aspectos interessantes para nossa análise. Este fragmento
desdobra-se em dois discursos: o da Velha, que orienta as jovens cujos casamentos
se aproximam, e o de Oribela, a questionar tantas imposições nas duas últimas
frases. Oribela em determinado momento parece encurtar as orientações da Velha o