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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM LETRAS
FLÁVIO HENRIQUE MENEZES DA SILVA
DESMUNDO, DE ANA MIRANDA: A RECONSTRUÇÃO FICCIONAL DA
HISTÓRIA DO BRASIL COLONIAL
JOAÕ PESSOA
2008
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DESMUNDO, DE ANA MIRANDA: A RECONSTRUÇÃO FICCIONAL DA
HISTÓRIA DO BRASIL COLONIAL
FLÁVIO HENRIQUE MENEZES DA SILVA
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Letras da Universidade
Federal da Paraíba como parte dos
requisitos para conclusão do curso de
Mestrado em Letras.
Área de concentração: Literatura e Cultura
Linha de pesquisa: Memória e produção
cultural
Orientadora: Professora Doutora Liane
Schneider
JOÃO PESSOA
2008
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EXAME DE DISSERTAÇÃO
SILVA, Flávio Henrique Menezes da.
Desmundo, de Ana Miranda: a
reconstrução ficcional da história do
Brasil colonial.
Dissertação (Mestrado em Letras - Área
de concentração: Literatura e Cultura),
Programa de Pós-graduação em Letras
da Universidade Federal da Paraíba.
BANCA EXAMINADORA
Professora Doutora Liane Schneider (UFPB/PPGL)
Orientadora Acadêmica
Profa. Dra. Marta Pragana Dantas (PPGL/UFPB) Examinadora
Profa. Dra Lúcia Sander (Pesquisadora/ Brasília) Examinadora
Professor Doutor Élio Flores – UFPB/PPGH (Suplente)
Examinada a Dissertação
Conceito: ________________________
Em: ____/____/2008
4
Aos meus pais, em especial a minha
mãe, que sempre acreditou na
educação; a minha esposa, constante
incentivadora, à Liane Schneider, pela
generosidade, competência e paciência.
5
Agradeço ao PPGL, principalmente aos
professores Milton Marques, Beliza
Áurea, Diógenes Maciel, Arturo Gouveia,
Valéria Andrade, Elisalva Dantas e Liane
Schneider; à banca de qualificação,
professores Élio Flores e Marta P.
Dantas, pela valiosa colaboração.
6
RESUMO
Esta dissertação enfoca não as relações entre o fato e
a ficção, mas busca, através de uma leitura apoiada nas
teorias pós-coloniais e sobre o gênero narrativo, focalizar
a representação do sujeito feminino em Desmundo,
romance da Ana Miranda, que pretende recontar a vinda
de jovens virgens portuguesas para as terras brasileiras
de então. São observadas não as fronteiras entre a
história e a literatura, que a autora se utiliza de um
contexto histórico demarcado, mas também a
representação da personagem Oribela, marcando o pólo
feminino do sistema de gênero que aparece ao longo do
romance. Nossa análise propõe examinar como Miranda,
através da voz narrativa, representa o feminino nesse
contexto histórico dos primeiros anos do Brasil colônia e
de que forma a história é apresentada sob novos ângulos,
pelo suposto olhar de uma mulher da época, transposto
pela mão de uma escritora brasileira contemporânea.
Palavras-chave: Literatura, História, Pós-colonialismo,
gênero, Desmundo.
7
ABSTRACT
The present study deals with the relations established
between fact and fiction, proposing a reading of the novel
Desmundo, by Ana Miranda, based on postcolonial
theories as well as on theories on the narrative genre. The
representation of the female protagonist, Oribela, gives us
an opportunity to imagine Brazilian colonial times through
the eyes of this woman, a creation of Miranda. Not only
the frontiers between history and literature are here
examined, but the feminine pole of colonial gender system
are recreated and closely analyzed, mainly through the
narrative voice and the effects it creates.
Keywords: Literature, History, Postcolonial, gender,
Desmundo.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................... 09
1. DIÁLOGO ENTRE A LITERATURA E A HISTÓRIA........................................ 16
1.1. Enfocando e contextualizando definições de literatura............................16
1.1.1. Fronteiras entre o fato e a ficção.................................................. 19
1.1.2. A literatura de reconstrução da história...................................... 23
1.2. Estabelecendo o diálogo histórico-literário............................................... 25
1.2.1. As narrativas das histórias............................................................ 29
2. AS TEORIAS PÓS-COLONIAIS E AS REESCRITURAS DAS NARRATIVAS
............................................................................................................................... 38
2.1 O pós-colonialismo: uma breve reflexão.....................................................38
2.2 Um olhar pós-colonial sobre a reescritura do Brasil do período colonial
................................................................................................................................48
2.3 O lugar do gênero no território pós-colonial de Desmundo......................51
3. VOZ NARRATIVA, FOCALIZAÇÃO E O FEMININO EM DESMUNDO........... 54
3.1 A posição do narrador e a focalização interna em Desmundo................. 55
3.2 O feminino reapresentado pela perspectiva de Ana Miranda: surge uma
história de resistência......................................................................................... 61
3.2.1 O feminino e a sexualidade na colônia.......................................... 66
3.3 A religião como fonte de controle e domínio no período colonial............ 73
3.4 O Brasil em desmundo: uma terra, um povo.............................................. 77
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................. 82
4.1 Apontamentos finais..................................................................................... 83
4.2 E por fim(...) .................................................................................................. 86
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................... 89
9
INTRODUÇÃO
A literatura enquanto arte da palavra escrita, ao longo de séculos e em muitas
sociedades, vem exercendo, além de grande fascínio, muitas discussões. Uma arte
notadamente com um grande poder de manipulação, seja do tempo, das idéias, do
imaginário e da própria história da humanidade.
A obra literária assume o papel de marco de possibilidades e, enquanto
criação influenciadora exerce no imaginário o poder de despertar o interesse,
criando seu próprio leitor. Ao se ler um poema, um conto, uma novela, um romance,
etc., nos é dada a oportunidade de uma tomada de decisão, sem dúvida,
participamos da feitura da obra. E se essa obra é uma releitura da história de uma
nação observamos claramente que os limites do real e da ficção são
verdadeiramente tênues.
A presente dissertação busca estabelecer e identificar esses laços tênues
através da leitura do romance contemporâneo Desmundo, de Ana Miranda, com o
embasamento principal das teorias pós-coloniais, apresentadas aqui como
estratégia de releitura da história a partir de perspectivas que foram freqüentemente
excluídas dos relatos oficiais. Entende-se o enredo oficial como aqueles que são
amplamente e pedagogicamente explanados pelos livros didáticos do Ensino
Fundamental e Médio.
Considerando a representação que a autora faz das relações estabelecidas
entre os sujeitos no período colonial, apontamos críticas e questionamentos quanto
à construção do enredo oficial sobre o estabelecimento da nação brasileira. Assim,
acreditamos que, através de novas histórias sobre a formação do Brasil e sobre as
organizações sociais da época da colonização portuguesa, como as apresentadas
em Desmundo, poderemos colaborar com análises e estudos desenvolvidos em
várias áreas a partir de perspectivas comprometidas com a revisão do que foi
definido como hegemônico e homogêneo na construção da identidade nacional.
Uma vez que nos ocupamos de investigar um dado momento histórico, que é
a vinda das primeiras mulheres brancas para o Brasil, sob a perspectiva de uma
obra literária nos é proposto o desafio de entender de que maneira as fronteiras
entre a história e a literatura parecem apagar-se no momento em que confrontamos
os limites entre fato e ficção.
10
É importante fazer a ressalva de que, apesar de profícua (e por isso mesmo),
a discussão sobre a constituição do discurso histórico em si seabordada apenas
como fonte inspiradora do texto ficcional. Isso porque essa é uma questão polêmica
entre os próprios historiadores e, portanto, necessitaria de conhecimentos
específicos e profundos dos estudos da história que não nos parecem tão
fundamentais aos nossos propósitos. O que vai nos interessar, neste momento, é
como a literatura pode preencher as lacunas, através da ficção, daquilo que não foi
devidamente registrado.
Observaremos como é construído o diálogo entre a ficção e a história nas
letras de uma autora brasileira contemporânea, vendo a reconstrução de um mundo
o Brasil colonial a partir do olhar de uma personagem que veio para o Brasil
como membro do grupo de colonizadores, que era portuguesa, mas que, devido
ao seu sexo e sua classe social, identificou-se muito mais com os colonizados
locais, em um ambiente privado controlado por arranjos patriarcais. Uma discussão
entre os níveis e os locais de poder marcados por gênero e culturas diferentes nos
instigam a aprofundar nosso estudo sobre Desmundo.
É a partir de um olhar consciente quanto às relações entre diferentes
unidades culturais na contemporaneidade que percebemos as narrativas como um
possível lócus de resistência a sistemas homogeneizantes, tão comuns no período
colonial e que ainda persistem na era globalizada. Desse modo, a partir de tais
perspectivas críticas e teóricas comprometidas com revisões da história política e
cultural, acreditamos ser possível uma aproximação de textos literários como o do
nosso corpus de análise com a história, buscando reler, sob a óptica de movimentos
transversais, transnacionais e transculturais, formas distintas e inovadoras que
conseguem perturbar as relações estabelecidas de dominação e resistência,
possibilitando um deslocamento e reposicionamento do conhecimento e até do
imaginário.
Portanto, antes da análise do romance Desmundo faz-se necessário, no
primeiro capítulo, Diálogo entre a Literatura e a História, uma reflexão sobre o fazer
literário e o ler a obra literária, reconhecendo que durante o passar dos anos a forma
de se olhar, de se ler, de se analisar uma obra literária mudou de forma
considerável. Transportar-nos-emos para lugares, personagens, situações, fatos
históricos narrados, recontados, recriados. Como já afirmamos não entramos no
11
mérito de indicar a literatura como uma mímese da realidade, ou como diriam os
deterministas produto do meio. Apontamos sim, a vertente pós-colonial, que
disponibiliza uma leitura da história pela literatura. Obras e estudos que não visam
destruir, desmoralizar, desmerecer, contestar o cânone, mas sim, ouvir e dar voz a
outras histórias da História. A literatura assume, portanto, o papel de ser uma
importante representação alternativa no que se refere às visões mais hegemônicas
de um passado que começa a ser revisitado e recontado.
Ainda no primeiro capítulo sugerimos uma discussão sobre uma história que
reflita sobre a própria legitimação da história e que aponte nas narrativas uma leitura
de uma série de fatos, conjuntos, acontecidos num passado, remoto ou não,
“recorrendo a supostas leis causais, mediante a exploração das similaridades
metafóricas entre os conjuntos de acontecimentos reais e as estruturas
convencionais das nossas ficções”. (WHITE, 2001:108). Daí, montamos nosso
diálogo com a Nova História, uma história que, enquanto disciplina, perdeu de vista
as suas origens na imaginação literária e, no empenho de parecer científica e
objetiva, reprimiu e negou a si própria sua maior fonte de vigor e renovação. Ao
fazer a historiografia recuar uma vez mais até sua íntima conexão com a sua base
narrativa, discutiremos não o papel da História, muito menos o papel da Literatura
como construtoras do fato histórico. Visamos, sim, concatenar as idéias de uma
Nova História com as teorias literárias pós-coloniais.
Observamos uma crescente redefinição epistemológica operada no campo do
saber histórico, o que estimula este diálogo de discursos entre a história e a
literatura no âmbito pós-colonial. Uma reelaboração e um repensar crítico do
passado através das narrativas de ficção, em que os narradores surgem de
maneiras extremamente múltiplas e complexas dentro de um mundo que não pode
mais ser visto de uma só perspectiva, é o contexto com o qual nos propomos
trabalhar.
É no segundo capítulo A teoria Pós-colonial e a reescritura das narrativas que
teceremos um olhar para a questão da construção da identidade no mundo colonial,
através das várias representações afirmadas e repetidas. Teoria esta, que, a
princípio, traduz-se num conjunto de análises econômicas, sociológicas e políticas
sobre a construção de novos Estados, com suas rupturas e continuidades em
relação ao sistema colonial e sua inserção no sistema mundial. numa segunda
12
acepção, essa surge como um recorte culturalista, apoiando-nos nos estudos
culturais, lingüísticos e literários, usando a exegese textual para uma crítica implícita
e explícita.
A história, que aparece em tempos pós-coloniais, passa a ser repensada
enquanto criação humana com estruturas e práticas sociais que podem ser
compreendidas como textos sociais, à medida que todo acesso ao passado se
via texto. Este diálogo com o passado é mediado por uma visão presente, no caso a
literatura, através da narrativa de histórias.
No terceiro e último capítulo Voz narrativa, focalização e o feminino em
Desmundo, nos entregamos à leitura do romance e é que encontramos a
personagem Oribela, jovem branca que não reconhece a nova terra como um lugar
definido e seu, vivendo constantemente o conflito de querer retornar à pátria, onde
ironicamente também não dispunha de privilégios. Ela não está em Portugal e
tampouco no Brasil, a terra recém descoberta. Assim, Oribela passa a estar
vinculada a lugar nenhum, sendo o sujeito no entre-lugar.
E sobre essa personagem central, deve ser destacado o fato de ser essa uma
mulher cujo destino não foi escolhido por vontade própria. Uma vez que o romance
destaca essa condição da personagem. A trajetória de Oribela exemplifica o papel
da mulher européia na nova Colônia a submissão ao homem e à religião católica.
No entanto, pelo fato de o livro ser narrado na primeira pessoa, Ana Miranda nos
possibilita imaginar o que pensaria aquela mulher do século XV.
Observando as marcas textuais ao longo das dez partes e cento e setenta e
nove capítulos de Desmundo, veremos o feminino representado numa história de
resistência, conforme será detalhado no terceiro capítulo.
É claro que muitos outros aspectos poderiam ser aprofundados a questão
da linguagem no romance, por exemplo. No entanto, acreditamos que este seria um
tema mais ligado à análise da produção da autora como um todo, não diretamente
ligado à questão da intersecção entre a literatura e a história metodologia
escolhida para nortear o presente trabalho.
Outro aspecto que pretendemos problematizar, por meio do olhar de Oribela,
é a visão que se tinha do Brasil como paraíso natureza exuberante, terra fértil o
que surge em oposição às dificuldades enfrentadas pelos colonizadores no início do
século XVI, tanto nos relatos históricos quanto em Desmundo. Assim a fala de
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Oribela, em diversos momentos da narrativa, questiona o chamado mito inaugural e
lança um novo olhar sobre a formação do povo brasileiro em sua origem. Além
disso, em Desmundo, presença de personagens históricos verídicos, o que
contribui para deixar clara a intenção de mesclar história e ficção por parte da
autora.
Estudaremos a obra de uma escritora contemporânea que aborda questões
como a história do Brasil, numa narrativa carregada de sensibilidade que conta a
trajetória de uma mulher que, conforme vamos discutir ao longo do trabalho é um
sujeito marcado – Oribela, na colônia, é vista como membro do colonizador europeu;
mas, aos olhos dos portugueses, é subalterna, por ser mulher, órfã e sem ninguém
por ela.
Certamente a literatura é um espaço oportunizador de debates, de
questionamentos da chamada história oficial, bem como uma possibilidade de um
resgate de nomes esquecidos ou marginalizados de nossa história cultural. Essa
perspectiva histórica, tão marcadamente presente na narrativa ficcional
contemporânea de Ana Miranda, faz com que este estudo se insira, a nosso ver,
com propriedade, na linha de pesquisa do PPGL/UFPB ‘Memória e produção
cultural’
Ana Miranda nasceu em Fortaleza, Ceará, em 1951, e mudou-se para o Rio
de Janeiro aos cinco anos de idade. Em 1959, foi para Brasília onde seu pai,
engenheiro, foi contratado para trabalhar na construção da capital. Em 1969, voltou
para o Rio de Janeiro com o objetivo de estudar Artes e, em 1978, iniciou sua
trajetória literária ao publicar o livro de poesias Anjos e demônios. Em 1983, lançou
o segundo livro de poemas: Celebrações do outro.
O primeiro romance da autora, Boca do inferno (1989), uma recriação
histórica e literária do Brasil colonial, tem como personagem central o poeta
Gregório de Matos Guerra. Por essa obra, publicada em diversos países (França,
Inglaterra, Estados Unidos, Argentina, Noruega, Espanha, Suécia, Dinamarca,
Holanda e Alemanha), Ana Miranda recebeu o prêmio Jabuti, em 1990.
O segundo romance, O retrato do rei, narrativa da Guerra dos Emboabas na
região do ouro nas Minas Gerais do culo XVIII, foi publicado em 1991. Depois
dele, a autora escreveu Sem pecado (1993), sua única obra de ficção sem vínculos
com fatos históricos. Em 1995, Ana Miranda lançou A última quimera, que tem como
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personagem central o poeta Augusto dos Anjos e, como contexto histórico, o Rio de
Janeiro do final do século XIX e início do XX.
Em 1996, são publicados Desmundo, mais um romance de ficção histórica, e
a novela Clarice, da coleção “Perfis do Rio”, da editora Relume Dumará. Em 1997, a
autora retorna à ficção histórica com Amrik, sobre imigrantes libaneses na São Paulo
do fim do século XIX. Seu último romance foi Dias e dias (2002), cujo personagem
central é Feliciana e o poeta Gonçalves Dias.
Ana Miranda publicou ainda uma coletânea de poemas, da qual foi
organizadora, intitulada Que seja em segredo (1998); o livro de contos Noturnos
(1999); crônicas em Deus dará (2003) e as poesias de Prece a uma aldeia perdida
(2004). Há, ainda, o livro Flor do cerrado: Brasília (2004), sua estréia na literatura
infanto-juvenil, na qual ela se volta para sua infância e narra passagens da
construção da nova capital sob a ótica e as observações de uma garota de oito
anos.
Desde 1998, a autora escreve artigos para a revista Caros amigos e desde
2004 é cronista do Correio Brasiliense. Vale ressaltar que o jornal O Globo, de 5 de
setembro de 1998, publicou uma lista, elaborada por escritores, críticos e
intelectuais, dos cem melhores romances do século em língua portuguesa, na qual
Boca do inferno foi incluído.
Ana Miranda evidencia, em cada obra, estabelecimento de padrões, assim
como vislumbra contrapontos. Esse movimento dialético motiva o seu procedimento
narrativo. No caso de Desmundo, a autora evidencia o processo histórico da
fundação do Brasil e estabelece como contraponto, a visão do paraíso contraditada
pela personagem Oribela. Veremos como isso acontece no capítulo dedicado ao
estudo desta obra, especificamente. No projeto de leitura que enxergamos na obra
de Ana Miranda é possível notar que ela checou as molduras da história do Brasil,
dentro das quais estaria o padrão, relacionado ao processo oficial e dominante de
fundação do Brasil. Os contrapontos se constituiriam em parte de uma estratégia
com o objetivo de criar fissuras nas molduras da história, quando se tematizam as
mulheres, os poetas, os subalternos.
Como vimos, Ana Miranda escreve, além de romances, poesia, crônicas,
ensaios, contos, novelas e artigos. Neste trabalho, vamos nos ater somente ao
romance Desmundo, pois é nele que encontraremos nitidamente o diálogo entre e
ficção e a história.
15
No estudo que desenvolvemos, obviamente trabalharemos principalmente
com a produção do romance ficcional de fundo histórico, freqüentemente
desenvolvido por Ana Miranda. Acreditamos, dessa forma, aproximar questões
bastante contemporâneas que interessam o país, como a representação da voz
feminina, a releitura pós-colonial, além de revisitar fatos da fundação da nação
brasileira. No próximo capítulo, portanto, damos início a essas discussões,
percorrendo o terreno em que a literatura e a história se encontram
16
1 DIÁLOGO ENTRE A LITERATURA E A HISTÓRIA
A relação entre realidade e ficção não deixará de nos
atormentar, até ao estágio da representação histórica do
passado... e, por mais que seja a determinação do
ficcional, por mais que saibamos que não é o uso de
recursos literários que favorece ou prejudica uma obra
como historiográfica, ainda assim não conseguiremos
separar totalmente as escritas da história e da ficção’.
(Ricoeur)
1.1. Enfocando e contextualizando definições de literatura.
Literatura (Do lat. litteratura.] S.f. 1. Arte de compor ou escrever
trabalhos artísticos em prosa ou verso. 2. O conjunto de trabalhos
literários dum país ou duma época. 3. Os homens de letras: A
literatura brasileira fez-se representar no colóquio de Lisboa. 4. A vida
literária. 5. A carreira das letras. 6. Conjunto de conhecimentos
relativos às obras ou aos autores literários: estudante de literatura
brasileira; manual de literatura portuguesa. 7. Qualquer dos usos
estéticos da linguagem: literatura oral [p.v.] 8. Fam. Irrealidade, ficção:
Sonhador, tudo quanto diz é literatura. 9. Bibliografia: é bem
extensa a literatura da sica nuclear. 10. Conjunto de escritores de
propaganda de um produto industrial. (Dicionário eletrônico
Michaelis)
O conceito de literatura, como se percebe pela amplitude de significados
atrelados ao verbete que compõe nossa epígrafe, compreende uma vasta gama de
contextos possíveis dentro do universo literário ou das Letras. Algo que é discutido
por Terry Eagleton (2003:5) na obra Teoria da Literatura: uma introdução, quando o
termo literatura é associado pelo autor ao “estranhamento” ou à “desfamiliarização”,
ao desvio lingüístico, à desordem gramatical. Nesse sentido, o que torna a literatura
distinta de outras formas de discurso é a especificidade da linguagem; é “o fato de
ela ‘deformar’ a linguagem comum de várias maneiras”.
A literatura passa a impor, de fato, uma consciência dramática da linguagem,
que torna os objetos mais perceptíveis”, transformando e intensificando a
linguagem, que se afasta natural e conseqüentemente da fala comum. O discurso
17
literário distancia-se, tornando estranha a linguagem padrão, o que “paradoxalmente
nos leva a vivenciar experiências de maneira mais íntima, mais intensa”
(EAGLETON, 2003:5).
Ainda citando o relato de Eagleton (2003:6), vemos que os formalistas
consideravam a linguagem literária como um conjunto de desvios da norma, uma
espécie de “violência lingüística: a literatura como uma forma ‘especial’ de
linguagem, em contraste com a linguagem ‘comum’, que habitualmente usamos”.
Contudo, é pertinente ressaltar que para se identificar um desvio, um
estranhamento, é necessário que se possa também, se não antes, identificar a
norma, o padrão de uso da qual ela se afasta. Sendo também necessário mencionar
que não um consenso quanto ao conceito dessa dita linguagem comum, dada a
sua diversidade de manifestações e de percepções.
Uma vez que a expressão, a forma de discurso, por mais simplória ou
corriqueira, utilizada por um acadêmico defina-se, como “comum”, ela não será
expressa da mesma maneira que seria por um vendedor ambulante em suas tarefas
diárias. Daí a idéia de que existe uma única linguagem “normal”, uma moeda
corrente unificadora, é mera ilusão. que “qualquer linguagem em uso consiste de
uma variedade muito complexa de discursos, diferenciados segundo a classe,
região, gênero, situação, etc.” (EAGLETON, 2003:6), todos discursos jamais
poderiam ser simplesmente unificados em uma comunidade lingüística homogênea
única. O que para alguns é plausível considerar como norma, para outros poderá
significar um desvio.
Ainda segundo os formalistas russos a “estranheza” de um texto não é
garantia que o mesmo fora ou simplesmente será sempre “estranho”; eles
reconheciam que “as normas e os desvios se modificavam de um contexto social ou
histórico para outro”. (EAGLETON, 2003:7) Aquilo que convencionalmente fora
estipulado como literário, pode perfeitamente, não afirmando com que freqüência
isso poderá acontecer, deixar de ser literário com o passar do tempo ou
simplesmente não ser absorvido e apreendido como literatura por estudiosos de
outra nação, outra língua, outros costumes, etc.:
Nenhuma obra, e nenhuma avaliação atual dela, pode ser
simplesmente estendida a novos grupos de pessoas sem que, nesse
18
processo, sofra modificações, talvez quase imperceptíveis. E essa é
uma das razões pelas quais o ato de se classificar algo como literatura
é extremamente instável. (EAGLETON, 2003:17)
Portanto, afirmar que a categoria “literatura” é “objetiva” não passa de uma
ilusão de que ela seja eterna e imutável. De acordo com Eagleton (2003:14-15)
“qualquer coisa pode ser literatura, e qualquer coisa que é considerada literatura,
inalterável e inquestionavelmente Shakespeare, por exemplo –, pode deixar de sê-
lo”.
Por outro lado, a literatura é um produto, uma instituição que faz uso de
mecanismos sociais para expressar-se, exercendo, portanto, uma função de caráter
social. Segundo René Wellek e Austin Warren (2003:213) na obra Teoria da
literatura e metodologia dos estudos literários, a literatura “’representa’ a ‘vida’, e a
‘vida’ em grande medida é uma realidade social”.
O estudo da literatura necessita obviamente de um caráter científico, pois
segundo Wellek e Warren (2003:36), que “contemplamos uma base racional para
o estudo da literatura, devemos concluir a possibilidade de um estudo sistemático e
integrado” da mesma. Assim, a literatura como disciplina não pode jamais mesmo
que sua matéria seja o não-concreto, o metafísico, o ficcional – esquecer que
quaisquer “estudos devem estar amparados em termos intelectuais, assimilados a
um esquema coerente que tem de ser racional para ser conhecimento” (WELLEK e
WARREN, 2003:3).
Visaremos elaborar um estudo fundindo elementos do texto, no caso sendo
bem específico a fala de Oribela com o contexto o período da colonização
brasileira procurando não cair no determinismo tão típico do século XIX,
representado, segundo Wellek e Warren (2003:129), na famosa tríade de Taine -
‘raça’, ‘meio’ e ‘momento’, o que levaria, na prática, a um estudo exclusivamente do
‘meio’. O intrínseco, estrutural interessa sim, mas o contextual é que lhe os
contornos de identidade, de pertencimento e é nessa fusão que nos apoiaremos
para o estudo do texto que analisaremos.
Uma vez que a literatura, de acordo com Wellek e Warren (2003: 130),
19
(...) pode ser ligada a situações econômicas, políticas e sociais
concretas de maneira bem menos direta. Naturalmente, inter-
relações entre todas as esferas das atividades humanas. Por fim,
podemos estabelecer certa ligação entre os modos de produção e a
literatura, já que um sistema econômico geralmente implica algum
sistema de poder (...). Mas essas relações podem ser tortuosas e
oblíquas.
Uma obra literária e, conseqüentemente, o conceito do que é a literatura, não
pode e não deve ser limitada por análises, estudos ou críticas específicas ou pelo
menos essas não devem se considerar como absolutas ou finais. O objeto literário
precede o estudo, ou seja, ele existe como construção de um(a) autor(a) e será (ou
não) apropriado a partir do momento da leitura e da posterior crítica, apropriação
essa que se dá a partir dos mais diversos pontos de vista.
1.1.1. Fronteiras entre o fato e a ficção
Aristóteles afirmava no século IV a.C. que a arte literária é mimese (imitação);
ou seja, é a arte que imita pela palavra. Em sua Arte Poética (2005: 43), defende
que o historiador e o poeta não se diferenciam um do outro por um escrever em
prosa e o outro em verso, e sim, esses se distinguem “porque um escreveu o que
aconteceu e o outro, o que poderia ter acontecido”. Ainda segundo Aristóteles, não
cabe ao poeta narrar exatamente o que aconteceu, mas sim o que poderia ter
acontecido, “o possível, segundo a verossimilhança ou necessidade(2005:43). O
poder de criar, de imaginar, de apresentar algo de forma original ou recriada está no
bojo do fazer literário.
Segundo Antonio Candido, em seu ensaio “A personagem do romance”, a
criação literária repousa exatamente sobre o seguinte paradoxo - como pode uma
ficção ‘ser’? Como pode existir o que não existe? Candido acredita que o “problema
da verossimilhança no romance depende desta possibilidade de um ser fictício, isto
é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunicar a impressão da mais lídima
verdade existencial” (2005:55). Assim, a literatura nos auxiliaria a compreender ou
pelo menos buscar aprofundar nossa visão da própria vida ou pelo menos
20
enriquecer nossas possibilidades de análise da realidade. Contudo, as linhas que
separam o terreno do concreto e do ficcional não se apagariam, já que, para Lukács
(1961) o Homo fictus não é equivalente ao Homo sapiens, pois vive segundo as
mesmas linhas de ação e sensibilidade, mas numa proporção diferente e conforme
avaliação também diferente. Portanto, para aquele autor o ser humano que permeia
a ficção de forma recriada, representada, obviamente é um reflexo desse, mas um
reflexo que não traz a mesma imagem, e sim, apenas uma lembrança daquela.
É da obra e a partir dela que surgem as discussões, e é nessa ótica que
concatenamos nossa proposta de análise com a afirmação de Antonio Candido
(2000:4) quando, em Literatura e sociedade: estudos de teoria e de história literária,
o mesmo defende: “[que] o elemento histórico-social possui, em si mesmo,
significado para a estrutura da obra. Contudo, não é, nesse momento, nosso
interesse discutir a legitimidade do texto, da teoria, da crítica ou das mais diversas
formas de pensamentos e de análise da literatura, seja enquanto ciência seja
enquanto texto. Interessa-nos, sim, no pensamento de Candido (2000), o fato de
que, ao formular a dialética entre texto e contexto, que “sabemos, ainda que o
externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas
como elemento que desempenha certo papel na constituição da estrutura, tornando-
se, portanto, interno”.
O termo ficção é geralmente contraposto à verdade histórica e historiográfica.
O que entendemos como ficcional é o que se opõe ao ‘real’, ao factual. Todavia, no
âmbito da literatura, a ficção adota uma imitação das coisas, dos homens e dos
fatos, chegando a confundir-se com o que se tinha como ‘realidade’. A literatura e
sua ligação com a ficção, segundo Luiz Costa Lima (2006) no prefácio da obra
História, ficção e literatura, consiste em entender que “A ilusão nasce do mundo; a
linguagem o mantém opaco ou devassável. Devassável por operadores ou conceitos
instrumentos cognitivos; ou metaforicamente devassável pela ficção, no caso da
arte verbal”.
J. M. de Sousa Nunes define ‘ficção’ em um dicionário eletrônico de termos
literários da seguinte forma:
Na linguagem comum, ‘ficção’ significa quase sempre invenção, obra
da fantasia ou da imaginação, fabricação fabular, lenda ou mito. É,
21
pois, uma palavra geralmente oposta a ‘fatos’ e a ‘realidade’.
Genericamente, o termo significa, em conformidade, afirmação sem
fundamento, narrativa forjada, falsificação, dissimulação, fingimento;
ou, mais especificamente, histórias, contos, novelas, romances da
invenção de um escritor, de uma época, de uma literatura. Os
adjetivos ‘fictício’ ou ficcional’, aplicados aos textos literários,
sobretudo narrativos, não têm, contudo, a mesma carga pejorativa
ainda hoje associada, por exemplo, ao termo ‘fictício’, na medida em
que convenham na valoração estética desses textos.
o autor do termo “Literário, literatura”, assinala uma dupla acepção para o
mesmo:
No uso geral da linguagem, literatura hoje designa, na verdade, os
textos (escritos), pelos quais em princípio se pensa nos textos
publicados ou também e apenas na totalidade dos textos de que se
tem por adequada a recepção estética e que forma prioritariamente o
objeto dos estudos literários (Literaturwissenschaft) em primeiro
lugar, os textos ficcionais, imaginativos, “a literatura de arte”. Ademais,
literatura é uma designação para a totalidade de escritos sobre um
certo ramo do saber ou certo tema (sinônimo para literatura
especializada ou bibliografia [...]. (RESENBERG, 2001:665)
E quanto à criação do fictício, Anatol Rosenfeld, no ensaio “Literatura e
Personagem” (2005:15), afirma “que este mundo fictício ou mimético, que
freqüentemente reflete momentos selecionados e transfigurados da realidade
empírica exterior à obra” torna-se, sim, representativo para algo que está além da
realidade empírica, mas “imanente à obra”. Segundo Rosenfeld (2005), uma das
mais visíveis diferenças entre textos de ficção e outros textos reside no fato de que,
no primeiro tipo:
(...) as orações projetam contextos objectuais e, através destes, seres
e mundos puramente intencionais, que não se referem, a não ser de
modo indireto, a seres também intencionais (onticamente autônomos),
ou seja, a objetos determinados que independem do texto. (p.17)
22
Roberto Acízelo de Souza, ao discutir se deveríamos ou não considerar
alguns traços como característicos da literatura, em seu verbete sobre literatura no
dicionário de termos literários já mencionado, coloca que:
(...) não obstante fortes indícios se não evidências históricos
contrários à crença de que é recente o empenho teórico-analítico de
isolar uma linguagem particular cuja modalidade própria é ser
'literária' (Cf. Foucault), é certo que o século XX tem-se revelado
pródigo na proposição de teses acerca da suposta especificidade do
discurso literário. Produziram-se, assim, diversos esforços para a
depreensão dos traços que seriam próprios e definidores da
literatura, por oposição a quaisquer outras manifestações verbais.
Entre esses traços, num plano muitíssimo esquemático, cremos que
é lícito dizer que avultam os conceitos de ficção e literariedade, cuja
manifestação num texto sinalizaria para sua pertinência ao campo
da literatura.
Vale destacar que se o objeto literário foi de definição aparentemente mais
simples até um passado recente, a partir da consolidação de novas abordagens
críticas, que passam a se interessar por novos objetos produtos como história em
quadrinhos, literatura oral, diários, biografias, entre outros tal definição
inevitavelmente extrapolou os limites anteriormente convencionados. Textos
produzidos por autores não imediatamente definidos como canônicos, entre esses,
autoras mulheres, negros, indígenas, homossexuais, passaram a ser foco de
estudos literários, trazendo a representação de novos objetos, e abordados através
de novas perspectivas. Esses autores perceberam que o discurso dominante não
era único possível, o que de acordo com Eagleton, (2003:15) está atrelado ao fato
de que:
O chamado “cânone literário”, a “grande tradição” inquestionada da
“literatura nacional”, tenha de ser reconhecida como um constructo,
modelado por determinadas pessoas, por motivos particulares, e num
determinado momento.
Através da produção de novos textos, vários autores buscaram modificar ou
questionar as noções prévias do que se definiu historicamente como literatura - pelo
23
menos no que se refere à literatura de “alto padrão” ou a “alta literatura”, uma vez
que a definição de literatura “resulta do fato de serem notoriamente variáveis os
juízos de valor” (EAGLETON, 2003:15).
Em conseqüência disso, uma forte vertente revisionista do que fora escrito
anteriormente foi desenvolvida, levando em conta elementos ou textos que haviam
sido desconsiderados devido a compreensões muito restritivas quanto ao que
deveria fazer parte do universo literário. Isso gerou um forte debate sobre a própria
natureza dos cânones literários e sua dependência de certas estruturas de valor
culturalmente específicas e uma vez reconhecidas as incertezas de tais padrões, é
sabido e também aceito que certos grupos sociais foram injustamente excluídos
destas “seleções”.
As delimitações de terreno também não estariam tão seguras após a
inclusão de tantas outras vozes, e segundo Eagleton (2003:329) “deixamos de estar
absolutamente seguros quanto ao ponto onde começa a alta cultura e onde termina
a cultura popular”. Ou seja, os terrenos de produção literária passam a estar mais
abertos a re-inscrições, releituras inclusive no que se refere a valor e tradição.
1.1.2. A literatura e a reconstrução da história
Embora o nosso foco de pesquisa não tenha por pretensão apresentar uma
história das variações do termo literatura, as anotações precedentes o úteis ao
mostrar que literatura nunca teve um sentido unívoco e certamente muito ainda será
trilhado no caminho dessas discussões. Nossa idéia é, sim, construir uma análise a
partir de uma narrativa que se identifica com os impulsos pós-coloniais, fazendo uma
releitura das narrativas canonizadas. Para tanto nos debruçaremos sobre a obra
Desmundo, de Ana Miranda, narrativa que encena os primeiros anos da experiência
vivida ao longo da colonização portuguesa no Brasil. Discutindo a representação que
a autora faz das relações estabelecidas entre os sujeitos no período colonial,
interessando-nos apontar as críticas e os questionamentos quanto à construção do
enredo oficial sobre o estabelecimento da nação brasileira através de releituras
históricas e literárias.
24
E é o ato de revisitar o passado oficial, no caso, o Brasil colônia, os fatos reais
que ocorreram, ou seja, a importação de jovens órfãs, que nos faz perceber, em
concordância com Hugo Achugar em seu ensaio A escritura da história ou a
propósito das funções da nação (2003:36), que:
As reescrituras e as ficcionalizações da gesta independista,
posteriores aos feitos históricos, estão relacionadas com os processos
históricos e sociais, e com as novas leituras que se produzem das
histórias nacionais [...]
E, no caso de Desmundo, somos de fato, convidados a rever, entre outros
elementos, a composição populacional do Brasil colônia, procurando imaginar as
razões para os movimentos migratórios que aconteceram por aqui. uma
construção de personagens ricos em verossimilhança, explorando aspectos
referentes à religiosidade, à sexualidade, ao amor, à nova terra, à existência
feminina imersa em arranjos patriarcais que se mostram semelhantes tanto no
“Velho” quanto no “Novo Mundo”, sociedades organizadas de acordo com as regras
patriarcais aqui e lá.
Na revisão desse passado é que percebemos estar implícita, de certo modo,
a afirmação de que frente ao legado de um único relato da história próprio da
História Positivista e do discurso canônico deve-se sim, postular a multiplicidade
de relatos e de sujeitos. Segundo Achugar (2003:39) o que “ocorre, no entanto,
uma revisão do relato histórico, implícita na releitura do passado, [que] se no
meio de um processo econômico, político e cultural que foi chamado de
globalização”, o que vem corroborar com a afirmação de Eagleton (2003:17) “Todas
as obras literárias, em outras palavras, são ‘reescritas’, mesmo que
inconscientemente, pelas sociedades que as lêem; na verdade, não releitura de
uma obra que não seja também uma ‘reescritura’.
25
1.2 – Estabelecendo o diálogo histórico-literário
Podemos definir o conceito de história como sendo o
desencadeamento geral das ações humanas, ou seja, são os fatos
que se sucedem ininterruptamente, de modo a constituírem uma
corrente contínua. Enfim, a palavra história refere-se especialmente
ao conhecimento sistematizado dos eventos principais relativos à
humanidade ou a uma parte dela. (Cristina Machado de Oliveira em
Filosofia virtual)
Se a narrativa ficcional pode utilizar informações recolhidas no campo da
história, o inverso também é possível. Hayden White ocupou-se, na década de 70,
do estudo da influência do texto ficcional nas narrativas históricas do século XIX. Ao
revelar que os textos históricos eram narrativas, possibilitou uma rie de
conclusões acerca do texto histórico, entre elas, a de que os historiadores
constroem uma versão para o passado, ou seja, a história é vista enquanto uma
construção, o que aproxima historiadores e ficcionistas, na medida em que ambos
constroem, em seus textos, uma versão, uma possível história para um momento
determinado.
Conforme Peter Burke, desde a Antigüidade, a história tem sido escrita de
variadas formas que se caracterizam por uma estrutura narrativa, como, por
exemplo, as crônicas, textos que narraram a história de acontecimentos políticos e
militares, ou seja, a história dos “grandes homens”.
Os historiadores, ao longo dos tempos, têm utilizado várias fontes de
informação para construir a sucessão dos processos históricos, como, por exemplo,
escritos, gravações, entrevistas (história oral) e achados arqueológicos. Algumas
abordagens, métodos de leitura e análise, são mais freqüentes em certos períodos
do que em outros e o estudo da história, assim como o estudo de outras áreas do
conhecimento, tamm acaba apresentando costumes e modismos. É importante ter
em mente que o historiador procura, no presente, “respostas sobre o passado”, ou
seja, é influenciado pelo presente, como nos afirma Ricardo da Costa (2004) em seu
ensaio “O conhecimento histórico e a compreensão do passado: o historiador e a
arqueologia das palavras”.
Apesar da idéia de uma história com significância específica, uma história que
tem como método ir aos arquivos sem qualquer preconcepção, observar os
26
documentos, estudá-los e em seguida escrever um relato acerca dos
acontecimentos indicados nos documentos, nos parecer inaceitável hoje em dia, ela
era predominante no século XIX, sob o reforço do empirismo e sob o otimismo
iluminista. De acordo com Lima (2006:17), o historiador tinha sua profissionalização
“determinada por uma concepção documentalista, em que um empirismo
ingenuamente objetivo ocupava o lugar de qualquer teorização.”
A história, assim como a literatura, oficial foi freqüentemente formatada por
uma visão atrelada ao poder que é a perspectiva de quem domina ou de quem
governa. Assim, essa se torna uma visão unilateral, que seleciona os pontos de seu
interesse para se afirmar, minimizando ou mesmo eliminando qualquer dado que
possa lhe contradizer. As grandes narrativas da história foram construídas dessa
forma, eliminando nuances de sua heterogeneidade intrínseca e de sua natureza
polifônica.
Obviamente sempre houve contra-discursos, que muitas vezes passavam
despercebidos devido às relações de poder. Segundo Hugo Achugar, (2003:59) “a
escritura dos excluídos não teve o mesmo poder que a dos habitantes privilegiados
da ‘cidade letrada’, mas nem por isso deixou de existir.” Portanto, a partir do instante
e dependendo do ângulo pelo qual a história é revisitada, outras vozes dissonantes
podem certamente ser recuperadas ou trazidas à visibilidade. Aliás, vale mencionar
que o mesmo pode ser afirmado no que se refere ao discurso literário, já que
também nem todas as vozes e sujeitos tiveram oportunidades iguais de
representação.
No decorrer dos tempos a história se apresentou pelo menos de três formas,
sendo que do simples registro à analise científica houve um longo processo. Com
base em Costa e sua organização dessas fases (2004), inicialmente apontamos a
História Narrativa ou Episódica onde o narrador contenta-se em apresentar os
acontecimentos sem preocupações com as causas, os resultados ou a própria
veracidade dos fatos. Também não é empregado nessa vertente qualquer processo
metodológico.
Em seguida, ainda segundo Costa, destacamos a História Pragmática que
se ocupa em expor os acontecimentos com visível preocupação didática. O
historiador quer mudar os costumes políticos, corrigir seus contemporâneos, e o
caminho que utiliza é o de apontar os erros do passado. Os gregos Heródoto e
27
Tucídides e o romano Cícero representam esta concepção. E é desde Heródoto e,
sobretudo, Tucídides, segundo Lima (2006:21) que:
A escrita da história tem por aporia a verdade do que houve. Se se lhe
retira essa prerrogativa, ela perde sua função. Torna-se por isso
particularmente difícil ao historiador não considerar prova aporética o
que resulta do uso de suas ferramentas operacionais.
Depois, se firma a História Científica que passa a preocupar-se “com a
verdade, com o método, com a análise crítica de causas e conseqüências, tempo e
espaço” (Cf. Costa). Esta concepção se define a partir da mentalidade oriunda das
idéias filosóficas que nortearam a Revolução Francesa de 1789. Tomou corpo com a
discussão dialética (de Hegel e Karl Marx) do século XIX e se consolidou com as
teses de Leopold Von Ranke, criador do Rankeanismo, que contestava o chamado
"Positivismo Histórico”. É nesse período que a disciplina historiográfica encontra
amplo reconhecimento e se institucionaliza.
Chegamos, assim, à “nova história”, expressão que, segundo Peter Burke
(1992) em ‘Abertura: a nova história, seu passado seu futuro’ começa a consolidar-
se quando pensadores franceses fundam uma revista de estudos - os Annales:
économies, societés, civilisations, propiciando um rompimento com o culto aos
heróis e a atribuição da ação histórica aos chamados homens ilustres,
representantes das elites poderosas. Para estes estudiosos da chamada la nouvelle
histoire, o cotidiano, a arte, os afazeres do povo e a psicologia social são elementos
fundamentais para a compreensão das transformações empreendidas pela
humanidade.
Para estabelecer um contraste entre a antiga e a nova história, Burke (1992)
elabora seis pontos. Em primeiro lugar, destaca que, “de acordo com o paradigma
tradicional, a história diz respeito à política” (p.10). A nova história, contudo, é a
história escrita como uma reação deliberada contra esse paradigma, interessada por
toda atividade humana. “O que previamente era considerado imutável é agora
encarado como uma ‘construção cultural’, sujeita a variações, tanto no tempo quanto
no espaço(p.11). A base filosófica da nova história “é a idéia de que a realidade é
social ou culturalmente constituída” (p.11). Burke (1992) menciona, em segundo
28
lugar, um grupo de historiadores tradicionais que “pensam na história como
essencialmente uma narrativa dos acontecimentos, enquanto a nova história está
mais preocupada com a análise das estruturas” (p.12). Em terceiro lugar, enquanto a
história tradicional oferece uma ‘visão de cima’, fundamentada nos grandes homens
– governantes, ditadores, religiosos, alguém de projeção nacional ou mundial –
responsáveis por feitos e envolvidos em grandes fatos, a nova história prioriza a
‘visão de baixo’, o que em outras palavras indica que, de acordo com Burke, há uma
valorização das “opiniões das pessoas comuns e com sua experiência da mudança
social” (1992:13). Em quarto lugar temos, de um lado, segundo o paradigma
tradicional, uma história que deve ser baseada em documentos, registros oficiais,
arquivos, levando-nos a entender que tanto:
Os positivistas de antes e de agora tinham e têm pelo menos o mérito
de, ao excluir a questão da linguagem, serem econômicos. Conforme
seu critério, o historiador concentra sua atenção na coleta de
documentos, na pesquisa de arquivos, na descoberta de novas fontes.
(LIMA, 2006:46)
A história ‘vista de baixo’ questiona alguns paradigmas da história oficial, uma
vez que limitações não na veracidade dos documentos, mas sim na quantidade
ou representatividade dos que permaneceram. Conforme Burke, quanto menor o
número de documentos, mais tendenciosa e limitada fica a narração do fato. Em
quinto lugar surge o contraste entre os questionamentos elaborados pela história
tradicional e a que se opôs a essa:
Esse modelo de explicação histórica foi criticado por historiadores
mais recentes em vários campos, principalmente porque falha na
avaliação da variedade de questionamentos dos historiadores, com
freqüência preocupados, tanto com os movimentos coletivos, quanto
com as ações individuais, tanto com as tendências, quanto com os
acontecimentos. (BURKE, 1992:14)
Por fim, o sexto aspecto mencionado por Burke indica que, para o paradigma
tradicional, a história é objetiva, tendo o historiador como tarefa apresentar aos
29
leitores os fatos como eles realmente aconteceram, tendo como principal objetivo
retirar do seu discurso todo e qualquer traço do fictício, ou simplesmente do
imaginável, não fazendo uso das técnicas literárias. De acordo com a nova história
este é um ideal irreal e “por mais que lutemos arduamente para evitar os
preconceitos associados a cor, credo, classe ou sexo, não podemos evitar olhar o
passado de um ponto de vista particular” (BURKER:1992:15). Portanto, o olhar do
historiador, ainda que esse busque a imparcialidade, tenderá a ser moldado pelas
experiências e interesses deste.
1.2.1. As narrativas das histórias
Atualmente entende-se que uma narrativa histórica, como defende Joan Scott
(1992:65) em “História das Mulheres”, tem significativas variações “dependendo de
quem a relata.” Portanto, o discurso histórico passa a depender também do sujeito
que o produz, de forma que ambigüidades e polissemias puderam vir à tona, o que,
ao nosso ver, apenas enriquecem o conjunto de relatos históricos.
Para revisar o passado histórico de uma nação, de um povo, de um dado
período da humanidade, a fim de entender o presente e projetar o futuro, é
necessário muito mais do que uma leitura dos fatos ou uma simples revisitação de
lugares, textos, documentos, obras de arte, testemunhos, cartas que atestem uma
verdade histórica. A reflexão sobre o passado, seja ele imediato ou longínquo,
sugere uma reflexão das muitas situações envolvidas e o mais adequado seria
perceber que há uma multiplicidade e uma grande diversidade de dados e de formas
de abordar tais dados. Passamos a uma “nova reação contra a drástica separação
entre as expressões historiográfica e poética.” (LIMA, 2006:16)
O ato de revisar implica refletir sobre as muitas situações e possibilidades
inerentes ao ser humano. É mais do que buscar uma explicação mecânica ou causal
para os acontecimentos. Como Hugo Achugar (2003:39) sugere,
A revisão do passado levou e, de certo modo, está pressuposta na
afirmação de que ao legado de um único relato da história – o
30
próprio do projeto da modernidade deve se postular a
multiplicidade de relatos e de sujeitos.
O primeiro passo necessário seria definir qual linha utilizar nessa revisão,
dada a abrangência sugerida por Achugar, uma vez que a revisão do relato histórico
implica na releitura do passado, ocorrendo em meio a um processo econômico,
político e cultural.
O caráter múltiplo e diverso com que os passados são evocados está
motivado pela pluralidade dos sujeitos que realizam a reconstrução do
seu próprio passado, assim como o passado dos outros. Nesse
sentido, a reflexão sobre o passado coletivo ou sobre os passados
coletivos está estritamente ligada à problemática da memória.
(2003:40)
A história, enquanto ciência realista por excelência se contrapôs à ficção
como o estudo do real versus o estudo do meramente imaginável. Hayden White no
ensaio “As ficções da representação factual” (2001:141) afirma-nos que “os
historiadores continuavam a acreditar que interpretações diferentes do mesmo
conjunto de eventos eram função de distorções ideológicas ou dados factuais
inadequados”. Portanto, diferentes interpretações nada teriam a ver com o olhar do
historiador, sujeito que não era percebido como marcado por seu sexo, sua raça,
sua classe.
Outro aspecto que se torna pertinente mencionar e discutir é que toda história
fez ou faz uso de elementos estruturais de uma narrativa, que usa palavras e
enredos para construir sua versão dos fatos. Embora, para muitos historiadores, a
contribuição do discurso literário é menos direta, pois o ficcional gera uma
“metáfora” do conhecimento.
A estrutura de enredo de uma narrativa histórica (como as coisas se
revelaram o que são) e o argumento formal ou a explicação do motivo
por que as coisas aconteceram ou se revelaram o que são, são
prefigurados pela descrição original (dos ‘fatos’ a serem explicados)
numa determinada modalidade predominante do uso da linguagem:
metáfora, metonímia, sinédoque ou ironia”. (WHITE, 2001:144)
31
A narratividade que une os discursos históricos e literários compostos por
palavras, história, enredos, deixa claro que a leitura do mundo, dos eventos e das
pessoas, seja histórica ou ficcional, configura-se sempre como uma tomada de
posição e de uma codificação que faz uso de uma “linguagem comum [que] tem as
suas próprias formas de determinismo terminológico, representadas pelas figuras de
linguagem sem as quais o discurso em si é impossível” (WHITE, 2001:151). Há uma
distinção e uma mútua necessidade das escritas tanto da história, como da
literatura: a seu modo, cada uma delas contém um dispositivo que as capacita a lidar
com a realidade. (LIMA, 2006:40)
White (2001:137) faz uma leitura aberta ao diálogo entre esses dois
discursos, interessado em analisar como esses se relacionam com formas de narrar
e consolidar versões:
O problema não é a natureza dos tipos de eventos com que se
ocupam historiadores e escritores imaginativos. O que nos deveria
interessar na discussão da “literatura do fato” ou, como preferi chamar,
das “ficções da representação factual”, é o grau em que o discurso do
historiador e o do escritor imaginativo se sobrepõem, se assemelham
ou se correspondem mutuamente.
Os acontecimentos e a forma explícita através da qual nos referimos aos fatos
(dos mais corriqueiros, como o que nos relata sobre a ida de uma dona de casa à
feira livre para comprar frutas e verduras, aos ditos “feitos de grande repercussão
política e social”, como uma denúncia de corrupção ou a invasão de um país, etc.)
são convertidos em estória pela “supressão ou subordinação de alguns deles e pelo
realce de outros, por caracterização, repetição do motivo, variação do tom e do
ponto de vista, estratégias descritivas alternativas e assim por diante” (WHITE,
2001:100). Em suma, aparecem no discurso histórico muitas técnicas que
normalmente habitam o processo de construção do enredo de um romance, de um
conto ou de uma peça. Sendo perfeitamente coerente não se negar “que o relato de
uma experiência cotidiana pode se configurar de maneira romanesca (ou fabulosa),
trágica, cômica ou satírica”. (LIMA, 2006:19)
32
O poder de produzir história cresce com a descoberta e, acima de tudo, a
valorização, das possíveis estruturas de enredo que podem ser utilizadas para
conferir ou mesmo atestar sentidos diferentes aos conjuntos de eventos passados, o
que certamente são estratégias que estão contidas na escrita de ficção.
Mas como a história, enquanto discurso científico, encara a possibilidade de
perda de sua condição de pensamento autônomo e autolegitimador? White
(2001:41) nos antecipa que:
É bem possível que a tarefa mais difícil que a atual geração de
historiadores é chamada a realizar seja expor o caráter historicamente
condicionado da disciplina histórica, presidir à dissolução da
reivindicação de autonomia que a história mantém com respeito às
demais disciplinas e promover a assimilação da história a um tipo
superior de investigação intelectual que, por estar fundada numa
percepção mais das semelhanças entre a arte e a ciência que das
suas diferenças, não pode ser adequadamente assinada nem por uma
nem por outra.
White (2001) procura estabelecer o atual papel da história discutindo o
mesmo como um problema de discurso. A história deve ser elucidativa, mas não
hermética, uma vez que não explicações únicas e definitivas. Por mais que se
tenham dados coletados e documentos ilustrativos, esses não podem ser verificados
na realidade concreta, pois a permanência de uma visão da história certamente
silenciou outras tantas, não havendo inclusive possibilidades de qualquer verificação
in loco em momentos posteriores.
Dessa forma os dados do passado que permaneceram não tem status
absoluto e podem, sim, ser questionados. Afinal, como nos lembra White, toda
história é tendenciosa e interessada em uma versão:
Escolhemos o nosso passado da mesma forma que escolhemos o
nosso futuro. Portanto, o passado histórico, como os nossos diversos
passados pessoais, é no melhor dos casos um mito que justifica o
nosso jogo num futuro específico, e no pior, uma mentira, uma
racionalização retrospectiva daquilo que de fato nos tornamos
mediante nossas escolhas. (WHITE, 2001:51)
33
É importante para os estudiosos da literatura, estabelecer um diálogo com os
historiadores, uma relação discutida por Walter Benjamin (1980:72) no seu ensaio
“O narrador”:
O historiador vê-se compelido a explicar de uma outra maneira os
acontecimentos que registra; ele não pode satisfazer-se
absolutamente em apenas mostrá-los como modelares da evolução do
mundo. É exatamente isto, por outro lado, o que faz o cronista, e
especialmente o seu representante clássico, o cronista da história
medieval, precursor dos historiadores modernos.
Historiadores que, segundo White (2001:57), são os quais “[...] demonstram
atualmente interesse pelos mais recentes avanços técnicos e metodológicos” no que
se refere a sua produção textual. White ainda defende que somente aqueles
historiadores que vêem: “[...] a natureza puramente provisória das suas
caracterizações dos acontecimentos, dos agentes e das atividades encontradas no
registro histórico sempre incompleto” (WHITE, 2001:98) conseguem produzir algo
menos parcial. Afinal de contas, a tentativa de se instaurar uma história definitiva,
que se baseie em fatos sujeitos a questionamentos é falaciosa, apesar de os fatos
históricos tenderem a ser vistos pelo senso comum de modo bastante peculiar,
como eventos imutáveis e consensuais dos quais se podem extrair significados
absolutos, o que para qualquer observador atento é questionável.
Os fatos históricos jamais falam por si, e sim, são sempre interpretados. Um
relato inevitavelmente traz uma visão parcial subjetiva e de teor provisório, o qual faz
uso de elementos literários para o escrito histórico:
Antes da Revolução Francesa, a historiografia era considerada
convencionalmente uma arte literária. Mais especificamente, era tida
como um ramo da retórica, com sua natureza “fictícia” geralmente
reconhecida. Conquanto os teóricos do século XVIII distinguissem um
tanto rigidamente (e nem sempre com uma adequada justificativa
filosófica) entre “fato” e “fantasia, em geral não havia na historiografia
uma representação dos fatos não-desvirtuada por elementos de
fantasia. Embora admitissem a necessidade geral de relatos históricos
que tratassem de eventos reais, e não imaginários, os teóricos desde
34
Bayle até Voltaire e de Mably reconheciam a inevitabilidade de um
recurso a técnicas ficcionais de representação de eventos reais no
discurso histórico. (WHITE, 2003:139)
Um historiador pode selecionar um evento para estudo que passe totalmente
despercebido por outro, ou seja, não apenas a interpretação é pessoal, mas a
própria escolha dos fatos. E ainda que os historiadores busquem uma linguagem
cientificamente precisa, Moisés (2005:166) afirma que:
Cada texto é produto de uma interpretação particular: mesmo fato
histórico (admitindo que a expressão ‘fato histórico’ guarde sentido
unívoco) pode ser divisado de múltiplas formas. E o texto que cada
historiador elabora com vistas a exprimir sua interpretação, exibe
marcas de subjetividade, talvez inalienável ao processo histórico.
Assim sendo, um historiador poderia reescrever a história da Segunda Guerra
Mundial segundo o ponto de vista das Testemunhas de Jeová, dos homossexuais,
dos ciganos ou dos negros, grupos que também sofreram preconceito, ao invés de
darmos voz quase que exclusivamente ao ponto de vista dos Judeus. Quem sabe
ainda poderíamos revisar a invasão norte americana, nos primeiros anos do século
XXI, no Iraque ou Afeganistão sob a ótica dos iraquianos ou afegãos. O mesmo no
que se refere às histórias dos países africanos, da Índia, e de tantas outras
realidades discursivamente reconstruídas. Poder-se-ia ainda, e são incontáveis as
possibilidades sob essa perspectiva, reescrever a história do Brasil pela ‘lente’ dos
milhares de índios que foram expulsos de suas terras desde a chegada dos
colonizadores; dos escravos negros trazidos nos porões dos navios; dos imigrantes
europeus ou dos asiáticos; dos nossos vizinhos latino-americanos; dos que para
foram deportados ainda no processo de colonização ladrões, assassinos, órfãs,
etc. Poderíamos somar a estas, a história do Brasil paulista relatada pela
perspectiva dos nordestinos radicados em São Paulo, fugidos da seca; o Brasil do
norte e da borracha, o Brasil do café, o Brasil do leite, o Brasil do Impeachment, o
Brasil da cana-de-açúcar, os inúmeros brasis revisitados por incontáveis
perspectivas. Todas essas possibilidades remetem ao "fato" de que a visão sobre a
história depende da interpretação. Ou seja, da escolha própria (por vezes
35
determinista) que alguém faz e sob que ângulo ou perspectiva esse sujeito quer
rever tais eventos. Assim,
[o] modo como uma determinada situação histórica deve ser
configurada depende da sutileza com que o historiador harmoniza a
estrutura específica do enredo com o conjunto de acontecimentos
históricos aos quais deseja conferir um sentido particular. Trata-se
essencialmente de uma operação literária, vale dizer, criadora de
ficção. E chamá-la assim não deprecia de forma alguma o status das
narrativas históricas como fornecedoras de conhecimento. (WHITE,
2001:102)
Achamos, sim, pertinente elaborar uma revisão do atual discurso da história,
uma vez que um dos nossos principais objetivos, senão o principal, é o de testificar a
possibilidade de reler, rever, e escrever enredos ditos históricos sob a ótica ficcional,
quer essa se coadune com as representações consolidadas historicamente ou
não. Essa visão não estará baseada necessariamente em fotos, documentos, fatos
comprovados, etc., podendo, sim, dialogar com versões oficiais, muitas vezes
expondo contradições.
Consideramos a possibilidade de um diálogo conflituoso que partiremos do
discurso da margem (o termo marginal está concatenado à idéia de uma oposição
ao canônico, central, uma vez que os discursos dominantes são os que têm ocupado
os espaços da conquista, do domínio, do oficial). A história dos oprimidos, por
exemplo, surge no momento em que o passado é revisitado - um passado que, ao
ser descortinado, lança aos estudos contemporâneos a idéia de que a história não é
composta pelo acontecimento. O fato em si não é história. A história é uma narrativa
que imprime um discurso. Assim, essa não ocorre de forma definitiva e exaustiva,
mas sim, ela é o que se diz a cerca dos acontecimentos.
De acordo com Burke (1992:348), visões retrospectivas, cortes e alternâncias
de um dado evento histórico,
(...) são técnicas que podem ser utilizadas de uma maneira superficial,
antes para sufocar do que para iluminar, mas podem também ajudar
os historiadores em sua difícil tarefa de revelar o relacionamento entre
36
os acontecimentos e as estruturas e apresentar pontos de vista
múltiplos.
Em contrapartida, grande parte da ficção moderna gira em torno da tentativa
de libertar o homem ocidental da tirania de uma consciência histórica, buscando
dialogar coerentemente, mesmo que não de forma harmoniosa, dadas as
peculiaridades e distinções tanto da História quanto da Literatura.
Propomo-nos a realizar uma análise, uma reflexão comparativa - contrastiva
entre a literatura e a história. A construção de um diálogo que coloque episódios da
história não na categoria das narrações (entendendo que considerar a história
como uma ficção que compartilha com a literatura as mesmas estratégias e
procedimentos, não é despojá-la de seu valor de conhecimento, todavia, certos de
que ainda que escreva em forma literária, o historiador não faz literatura.), mas
também, identificada com quaisquer que sejam os relatos, sejam de história ou de
ficção, o que segundo Lima (2006:37), “[o] uso rígido dos critérios de exterioridade e
de interioridade da construção textual é prejudicial tanto ao objeto historiográfico
quanto ao ficcional”.
Quando se quer apontar a diferença entre ficção e história, entre literatura e
fato, relaciona-se inevitavelmente a idéia de certa correspondência entre o narrado e
o que realmente ocorreu. Ao mesmo tempo, somos bem conscientes de que esta
reconstrução é uma construção distinta do curso dos acontecimentos relatados, seja
na ficção como também na história.
A questão que se mostra central não é o caráter ficcional ou não de
determinado testemunho, ou relato histórico, mas sim a necessidade de destrinchar
a especificidade de cada testemunho, entender as múltiplas facetas do que foi
relatado.
Não queremos ler, nem pensar de forma essencialista ou idealista; nas
relações, na construção do diálogo entre literatura e história, o que realmente nos
interessa é inserir autores e obras literárias específicas em processos históricos
determinados, fatos vividos e concretizados, mas que o estão cauterizados,
uma vez que surge um novo olhar, uma nova leitura, uma reconstrução do momento
histórico revisitado. Salvo afirmar, se outrora não deixamos claro, que a história
importa-nos enquanto estudioso de literatura.
37
Visto sob esta perspectiva entendemos que se outrora houve um
distanciamento da história das narrativas é concebível compreender
conseqüentemente que essas práticas que são discutidas não indicam que houve
um ressurgimento da narrativa dentro da construção da história uma vez que
segundo Chartier (2001:131) “Como poderia de fato, haver ‘ressurgimento’ ou
retorno ali onde jamais houve nem partida nem abandono?” Existiu sim um
“deslocamento” (CHARTIER, 2001:131) o que de forma mais direta tem a ver com a
preferência que fora outorgada a certas formas de narração em detrimento de
outras, mais tradicionais, ou comumente tidas como convencionais ou canônicas.
Deslocamento que possibilita dentro da casa da ficção a construção de narrações
históricas que reconstroem passados históricos. Posição que mostra-nos que
“qualquer exame de determinada forma épica tem de referir-se à relação entre essa
forma e a historiografia” (BENJAMIN, 1980:71).
Levantamos esse debate e essas considerações sobre a relação estabelecida
entre esses dois campos do saber o histórico e o literário de forma a como que
suavizar nossa entrada na discussão de conceitos referentes ao pós-colonial, que
será desenvolvido no capítulo seguinte. Sem dúvida, o pós-colonial traz em seu bojo
formas inovadoras de olhar para fatos do passado e do presente, identificando
relações de poder, de interesse e as circunstâncias que marcaram e determinaram
certas visões de mundo em detrimento de outras. Parece-nos que a partir de tais
concepções poderemos ler e interpretar Desmundo de forma bem mais produtiva.
38
2 AS TEORIAS PÓS-COLONIAIS E AS REESCRITURAS DAS NARRATIVAS
Uma característica principal das literaturas pós-coloniais é a
preocupação que essas têm com o lugar e o deslocamento. É aqui que
a crise de identidade pós-colonial ocorre – a preocupação com o
desenvolvimento ou recuperação de uma relação entre indivíduo e
lugar. (ASCHCROFT et al, 1989, nossa tradução)
O lugar e o deslocamento surgem como elemento de considerável
importância uma vez que o ato de não está no local de origem gera no indivíduo o
desconforto e a ansiedade do não sentir-se em lugar algum. E é por não reconhecer
a terra em que habita que o sujeito sente uma visível crise de identidade.
Estar desterritorializado, faz com que aquele que não se encontra em terra com
que se identifique, um ser “sem raízes”. As teorias pós-coloniais olham para as
reescrituras das narrativas como uma possível recuperação, senão, uma busca de
entendimento entre esse indivíduo deslocado e o lugar que ele habita.
2.1 . O pós-colonialismo: uma breve reflexão
O pós-colonialismo, ainda dando os seus primeiros passos no terreno teórico,
reivindicava para si um campo que anteriormente era conhecido como “Terceiro
Mundo”. E estavam inseridos países ou regiões que não faziam parte do eixo
político, econômico e cultural formado pelos países mais desenvolvidos.
O dito “Terceiro Mundo” compreendia os países em vias de desenvolvimento.
O termo foi criado durante a Guerra Fria quando dois blocos opostos um guiado
pelos Estados Unidos e outro pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
dominavam a política internacional. Dentro desse modelo bipolar, o “Terceiro
Mundo” era composto pelos países menos desenvolvidos em matéria econômica e
tecnológica, e que não pertenciam a nenhum bloco.
Embora as mudanças políticas e econômicas das décadas de 1980 e 1990
culminassem com o colapso do bloco soviético, o “Terceiro Mundo” continuou sendo
um termo útil para referir-se a um conjunto de países difíceis de classificar de outra
39
forma. Dois terços da população mundial estão nos países do “Terceiro Mundo” e se
encontram na América Latina, na África e na Ásia.
Segundo o escritor marxista oriundo da Martinica, Frantz Fanon, a expressão
“Terceiro Mundo” implicava conotações negativas e nem sempre era aceita pelos
países que recebiam esse rótulo. Daí o termo pós-colonial apareceu, portanto, como
uma possibilidade não só de anular as distinções do tipo “periferia-centro”, “colônia e
colonizador”, “terceiro mundo - primeiro mundo assim como tantos outros
binarismos que foram enraizados durante os séculos de dominação eurocêntrica,
mas também o de valorizar, toda e quaisquer manifestações que surgissem ou
estivessem atreladas a esses lugares.
Todavia, faz-se necessário neste momento, em primeiro lugar, mencionar a
origem do termo e o modo pelo qual atingiu um destaque, a ponto de tornar-se uma
vertente de estudos acadêmicos. Quanto ao prefixo “pós”, pode-se inferir que esse,
dentro do contexto do s-colonial, determine uma indicação de tempo. Pós-
colonialismo pressupõe, com certeza, o que ocorreu, ou ocorre após o colonialismo,
assinalando principalmente o período que ocorre após a emancipação política. E
embora não haja um consenso sobre o conteúdo do termo, apontamos que o
problema, na realidade, está na origem da definição temporal desse “pós”.
Obviamente as lutas pela independência implicaram e ainda implicam conflitos
advindos desse marco que se externa mais político do que econômico, cultural ou
lingüístico.
O que se pode dizer é que as referências ao termo ‘pós-colonial’ e suas
problematizações surgiram primeiramente entre os teóricos anglo-saxônicos (nos
EUA, Inglaterra e Austrália, bem como nas antigas colônias inglesas) e
multiplicaram-se também entre os intelectuais da diáspora do colonialismo francês e,
mais recentemente, do português e espanhol.
A teoria pós-colonial, segundo Eagleton (2003:234), não é apenas o produto
do
(...) multiculturalismo e da descolonização. Reflete também, uma
passagem histórica do nacionalismo revolucionário do Terceiro Mundo.
(...) o pós-colonialismo tem sido, entre outras coisas, exemplo de um
“culturalismo” exuberante que, de algum tempo pra cá, vem assolando
a teoria cultural no ocidente, enfatizando em demasia a dimensão
40
cultural da vida humana numa reação extremada e compreensível a
um biologismo ou economismo anterior.
Academicamente, o termo pós-colonialismo se reporta a uma série de
estudos centrados nos efeitos da colonização sobre as culturas e sociedades
colonizadas, devendo ser entendido em duas acepções principais, segundo Santos
(2001). A primeira é a de um período histórico que se sucede à independência das
colônias e uma segunda, que se configura de um conjunto de práticas e de
discursos que desconstroem a narrativa colonial, escrita pelo colonizador,
procurando substituí-la por narrativas escritas do ponto de vista do colonizado.
Nesta primeira acepção do termo as leituras estão concentradas no período
cronológico que sucede o momento em que é declarada a independência política de
uma nação que estivera sob o poder de uma outra nação colonizadora. O pós-
colonialismo, por esta ótica, busca analisar, compreender e direcionar os passos
dados por essas ex-colônias, agora nações declaradas independentes. Cabe-nos
mencionar que o processo de independência não é um corte cirúrgico simples, o
cordão umbilical dessas duas nações, colônia e colonizador, ainda persiste em
muitas instâncias e setores da sociedade, o que não necessariamente precisa
ocorrer de forma harmônica e negociada. As tensões, quando não explícitas,
continuam atuando nas entrelinhas das relações pós-independência entre nações ou
mesmo dentro da mesma nação, por grupos diversos, então já independentes.
na segunda acepção, uma busca patriótica e muitas vezes radical pela
identidade da nação. Um resgate do que fora perdido, esquecido ou destruído ao
longo dos anos de colonização. Seria então parte de uma reestruturação nacional,
uma tentativa de adequação à nova realidade por parte de uma sociedade
independente politicamente, mas ainda dependente em alguns outros setores. É
nesta acepção que a literatura passa a ter um papel importante, uma vez que é
através da construção de narrativas que visam reconstruir a história, ou dar
visibilidade às histórias antes silenciadas, ou mesmo esquecidas, que tais produções
participam da consolidação cultural das novas nações no plano da escrita.
É a história da nação pelo olhar do colonizado que passa a configurar
importante respaldo para a busca de uma identidade, agora não mais política e sim
intelectual, cultural, lingüística. A escrita dessa nova história prospera com a
41
descoberta de todas as possíveis estruturas de enredo que poderiam ser invocadas
para conferir sentidos diferentes aos conjuntos de eventos que foram sempre tidos
como oficiais e, portanto, únicos, soberanos, inquestionáveis. E essa nova
compreensão do passado aumenta precisamente no grau com que logramos
determinar até que ponto esse passado se adapta às estratégias de dotação e de
sentido que estão contidas, em suas formas mais puras, na arte literária.
Já de acordo com Slemon (1996), há três abordagens possíveis ou três
campos de pesquisa sobre o pós-colonial. Segundo ele, o primeiro campo seria uma
continuação do que se entendia pelos estudos literários dos países de língua
inglesa, agora ampliado. O segundo campo se ocuparia de investigar determinadas
subjetividades de modo geral inseridas na dita realidade Terceiro-mundista, mas
também presentes no Primeiro Mundo, como é o caso dos afro-descendentes e das
minorias étnicas. E por fim, a partir desses dois primeiros, surge uma abordagem
que estaria interessada em investigar as práticas discursivas de resistência anti-
colonial. Uma definição outrora mais restrita lugar a uma outra cada vez mais
ampla, uma que se distancia das contenções geográfico-nacionalistas:
Ao passo que o primeiro e o segundo desses campos críticos do pós-
colonialismo têm como unidades básicas culturas ou nações inteiras
(...) o terceiro campo crítico trata de identificar uma força social, o
colonialismo, e com a tentativa de compreender as resistências a essa
força, onde quer que estejam. (SLEMON, 1996:75)
De acordo com Slemon (1996), numa primeira abordagem o pós-colonial
privilegiaria os países hoje falantes de língua inglesa que foram subjugados pelo
poderio anglo-saxônico. Nações que foram colonizadas e que tiveram, além de seus
territórios anexados, suas culturas, seus costumes e suas línguas alteradas,
adaptadas ou mesmo extintas. Uma vez independentes politicamente, esses
passariam a ler as novas narrativas, construções literárias em língua inglesa, a
língua do colonizador, a partir de novas perspectivas. A área de estudos pós-
coloniais, por exemplo, nos EUA, surgiu de um interesse em autores de lugares
previamente colonizados, como Índia, Paquistão e África, os quais utilizaram a
língua do colonizador inglês para escrever sobre a opressão, a resistência e a
formação duma identidade cultural.
42
Na segunda acepção de Slemon (1996), o pós-colonial se desloca até as
instâncias que se configuram como minorias alocadas nas metrópoles que
colonizaram ou o suas nações. E na terceira e última abordagem, o interesse é
investigar as práticas discursivas de resistência colonial, esse colonial no termo mais
abrangente possível, o de poder opressor. Entram nesse leque todas as minorias e
construções voltadas a buscar por autoconhecimento no que se refere a suas
identidades tradicionais. Nessa esfera estariam incluídos indianos que estudaram
em Londres ou nos Estados Unidos e agora voltavam para sua pátria, mulheres e
sua luta pela igualdade social, comunidades quilombolas, negros afro-descendentes,
ou seja, quaisquer movimentos de resgate e de luta contra o poder dominante.
Para o antropólogo Miguel Vale de Almeida (2000), sobre o "pós-colonial",
devemos levar em consideração que:
O termo deverá ser aplicado ao período posterior ao colonialismo, mas
também posterior ao fracasso dos projetos nacionalistas e anti-
colonialistas aplicados logo após as independências; 2) o termo
deverá aplicar-se aos complexos de relações transnacionais entre ex-
colônias e ex-centro colonizadores; 3) todo o resto, como globalização,
settler societies, neocolonialismo, colonialismo interno, devem ser
tratados nos seus próprios termos (ALMEIDA, 2000:231).
O s-colonialismo passou a constituir-se numa corrente de pensamento a
partir do século passado. Uma corrente teórica e crítica que estaria procurando
desfazer ou desconstruir toda e qualquer prática eurocêntrica. Para Hall (2003),
"uma das contribuições do termo "pós-colonial" tem sido dirigir nossa atenção para o
fato de que a colonização nunca foi algo externo a sociedades das metrópoles
imperiais" (p.108). O termo não se restringe a descrever uma dada sociedade ou
época.
Ele relê a colonização como parte de um processo global
essencialmente transnacional e transcultural - e produz uma reescrita
descentrada, diaspórica, ou global, das grandes narrativas imperiais
do passado, centradas na nação. (HALL, 2003:109).
43
O s-colonial não é, portanto, uma forma de periodização de estágios ou
épocas. As lutas e os processos de descolonização seriam apenas um momento
distinto que reverte fundamentalmente à configuração política do estado e do poder.
Depreende-se, portanto, que o termo pós-colonial serve para contrastar a
sociedade atual com a anterior à independência, adequando-se mais à necessidade
de realçar uma nova leitura da colonização como parte de um processo global
transnacional e transcultural, incitando a elaboração de versões descentradas,
diaspóricas ou globais das grandes narrativas que revolvem em torno da nação.
Sistematizada mais amplamente nos anos 70, a teoria pós-colonial buscava
inicialmente abraçar todas as produções, preocupando-se com a preservação e
documentação da literatura produzida pelos povos colonizados e vistos pelo
“imperialismo”, conforme Bonnici (2000), como “selvagens”, “primitivos”, “incultos”,
“infiéis” e “inferiores”. É a partir dessa sistematização que a crítica pós-colonial
passa a observar as fontes alternativas construtoras de narrativas dos povos
colonizados, e analisando as distorções e manipulações na construção da história
produzidas segundo Bonnici (2000) pelo “imperialismo e mantidas pelo sistema
capitalista atual”. Os assim chamados estudos pós-coloniais focalizavam, portanto,
as manifestações culturais, entre elas a expressão literária, das nações que
conquistaram sua independência após um longo período de dominação política e
cultural.
Essas produções fundamentadas nas idéias de globalização, democratização
e contextualização, passaram a ocupar nos anos 80 e 90, na esfera acadêmica
internacional, mas, sobretudo nos Estados Unidos, grande espaço de discussões
teóricas, traçando as diretrizes dos estudos literários e humanísticos, que foram
acatadas por muitos como um campo profícuo de investigação, muito embora
tenham sido igualmente rejeitadas por outros tantos.
Vale mencionar as obras tidas como marcos iniciais, The Empire Writes Back:
Theory and Practice in Post-Colonial Literatures (1989), de Bill Ashcroft, Gareth
Griffiths e Helen Tiffin, que definem a teoria Pós-colonial como uma discussão sobre
migration, slavery, suppression, resistance, representation, difference,
race, gender, place, and responses to the influential master discourses
44
of imperial Europe... and the fundamental experiences of speaking and
writing by which all these come into being
1.
Ou seja, o que interessa inicialmente aos estudos pós-coloniais é a discussão
da influência que o colonialismo teve em certas regiões do mundo.
Outra obra fundamental é White Mythologies: Writing History and the West
(1990), de Robert Young. Ambas aparecem, segundo Bonnici (2000), como
parâmetros desse discurso, uma vez que tratam dos pressupostos filosóficos da
crítica pós-colonial:
O primeiro analisa os pressupostos filosóficos, a teoria literária
européia, a hegemonia da língua inglesa e as estratégias políticas do
império britânico (...) partindo de certas linhas filosóficas de Hegel e de
Sartre, o segundo livro aprecia a contribuição de críticos de renome
mundial como Spivak e Bhabha. (2000:11)
Logo em seguida faz-se necessário apontar Orientalismo (1978) e Cultura e
imperialismo (1993), de Edward Said, In Other Worlds (1987) e The Post-Colonial
Critic (1990), de Gayatri Spivak, como também Nation and Narration (1990), de Homi
Bhabha, obras que mudaram, segundo Bonnici (2000), o eixo da questão referente à
critica exclusivamente eurocêntrica, colaborando para que fossem formuladas
teorias para a análise do relacionamento imperialismo/colônias.
Uma nota importante é que não se pode negar que a fundamentação de
muitos autores pós-coloniais tem fortes elos com o s-estruturalismo e o
desconstrucionismo muito em voga na crítica literária européia das últimas décadas
(Cf. Bonnici, (2000). Ainda segundo o autor, a crítica pós-colonial que está enfocada,
no contexto atual, como uma abordagem alternativa “para compreender o
imperialismo e suas influências, como um fenômeno mundial, e em menor grau,
como um fenômeno localizado, descrevendo uma teoria s-colonial numa estética
pela qual os textos são lidos e interpretados politicamente, baseados na íntima
relação entre o discurso e o poder” (Bonnici, 2000:10).
1
“migração, escravidão, supressão, resistência, representação, diferença, raça, gênero, lugar e
respostas aos discursos oficiais da Europa imperial (...) e as experiências fundamentais da fala e
escrita através das quais tudo isso toma forma”.
45
O termo pós-colonial se refere, de modo geral, ao processo de
descolonização que marcou, mesmo que de formas muito diferentes, tanto os países
colonizados como aqueles que foram os colonizadores. Ou seja, o termo quer
enfatizar que a colonização nunca foi um fato “externo” às metrópoles imperiais,
estando inscrita nas suas próprias culturas – assim como as culturas imperiais
também se inscreveram nas culturas dos colonizados. Pensar nessa ambivalência
posta pelo encontro colonial implica, assim, em deslocar uma série de noções como
centro/ periferia, nós/eles, dentro/fora, rompendo com essas oposições binárias para
pensar as relações sociais de modo mais complexo, múltiplo e transversal.
Segundo Álvares (2000), a teoria pós-colonial,
(...) numa acepção inicial, traduz a sua herança crítica do Orientalismo
sob a forma duma prática interdisciplinar, passando pela Filosofia, pela
Historiografia, pelos Estudos Literários, pela Sociologia, pela
Antropologia e pelas Ciências Políticas. Os teóricos pós-coloniais
distinguem-se pela tentativa constante de repensar a estrutura
epistemológica das ciências humanas, estrutura essa que terá sido
moldada de acordo com padrões ocidentais que se tornaram
globalmente hegemônicos devido ao fato histórico do colonialismo.
Consistindo numa resposta da periferia ao centro, a Teoria Pós-
Colonial procura dar voz à alteridade que a «vontade de saber»
dominante tem vindo a assimilar dentro de si mesma, criando assim
paradoxalmente a exclusão dessa mesma alteridade. Pela ênfase
colocada na temática da alteridade, a Teoria Pós-Colonial tende a
transcender as conseqüências do colonialismo, servindo como frente
de combate a qualquer grupo que se sinta discriminado em relação à
norma prevalecente – seja esta étnica, social ou sexual -, e que
procure implementar uma política de identidade através da afirmação
da diferença. (p. 222)
É esse tipo de crítica à gica da colonização e do imperialismo, no que ela
tem de seminal para a constituição de outra hegemonia cultural e política, que o
pensamento pós-colonial busca privilegiar. Muitos desses autores surgiram na
esteira das lutas pela libertação nacional travadas nas décadas de 50 e 60,
sobretudo no Norte da África. Autores como Fanon (1963) e Memmi (1967)
denunciaram o colonialismo e o pós-colonialismo em suas variadas versões. A
descolonização para Fanon (1997)
46
Jamais passa despercebida porque atinge o ser, modifica
fundamentalmente o ser, transforma espectadores sobrecarregados de
inessencialidade em atores privilegiados, colhidos de modo quase
grandioso pela roda-viva da história. Introduz no ser um ritmo próprio,
transmitido por homens novos, uma nova linguagem, uma nova
humanidade. A descolonização é, na verdade, criação de homens
novos. Mas esta criação não recebe sua legitimidade de nenhum
poder sobrenatural; a 'coisa' colonizada se faz no processo mesmo
pelo qual se liberta (p.26-27).
É então que alguns escritores aparecem e tomam uma atitude de missionários
e interlocutores da razão, bem como de ‘agitadores sociais’, com a intenção de fazer
acordar o povo para a realidade que os rodeia, tentando incutir-lhes forças e ideais
para lutarem contra uma ordem estabelecida. É, portanto neste sentido que alguns
historiadores deste tema assumem a influência paradoxal do colonialismo. Este teve
um efeito desestabilizador na sociedade. O processo que ao início relegou o mundo
pós-colonial à margem, agiu no sentido inverso, fazendo nascer autores de grande
qualidade literária. Enfim, “Marginality thus became an unprecedented source of
creative energy”
2
Ashcroft, Griffith, Tiffin (1991)
A teoria pós-colonial tenta, nesta acepção, não perceber estes problemas,
mas colocá-los em debate. Os escritores pós-coloniais passam a assumir o papel de
não retratar a realidade pós-colonial como também a utilizar essa temática para
acordar e despertar sentimentos de patriotismo, de inconformismo, de revolta, de
mudança. Este caráter interventivo da literatura destes países é uma característica
das literaturas pós-coloniais, como destacam Ashcroft, Griffith e Tiffin (1991). Estes
autores afirmam ainda que o desenvolvimento da literatura pós-colonial passou por
várias fases, todas elas ligadas à percepção gradual de que era preciso fazer a
diferença do grande centro no que se referia à forma de relatar, de narrar, de
reconstruir enredos.
De fato, a ligação quase obrigatória ao centro do poder colonial fazia com que
os escritores coloniais escrevessem muitas vezes na língua do colonizador, e não na
sua língua materna. Além disso, inicialmente esses privilegiavam o centro, e não
aspectos específicos da região, nomeadamente da província, que talvez
reportassem melhor e mais fielmente a realidade do país.
2
a marginalidade torna-se uma fonte sem precedentes de energia criativa” (Ashcroft, Griffith, Tiffin,
1991)
47
Deste modo, com tantas especificidades próprias de países e regiões
definidas e marcadas como espaços do pós-colonial, não restam dúvidas que, tanto
a cultura como a literatura, adquirem características bastante diversas quando
produzidas nas terras conquistadas, invadidas. Assim, o estudo dos países e regiões
imersas na realidade pós-colonial torna-se premente para o entendimento de uma
cultura diferente. Desta cultura não pode estar dissociada a literatura. Esta é sempre
imprescindível para a caracterização da História de qualquer país, pois explícita ou
implicitamente, é detentora, ela própria, de História, conforme foi amplamente
discutido no primeiro capítulo desse estudo.
O s-colonial é, dessa forma, uma teoria que tomou grandes proporções,
dado seu forte apelo e identificação por parte de vozes das culturas e dos
segmentos sociais periféricos dentro da lógica imperialista. Essa busca de
“descentramento” é uma tentativa de “ouvir” as “margens”, incluindo-se aí, todas as
minorias raciais, as mulheres, os homossexuais, entre outros grupos.
Uma vez que o objetivo deste estudo não é a tentativa de justificar uma teoria, mas
sim o de tomá-la para leitura e análise de um objeto de estudo, não cabe aqui uma
tentativa de afirmação desta teoria, uma vez que partimos do princípio que muitos
outros estudos discutiram tal prerrogativa. Nosso trabalho é um trabalho crítico-
analítico, que dialoga com as várias teorias da contemporaneidade, entre essas,
aquelas derivadas dos estudos pós-coloniais. Glaúcia Renate Gonçalves é uma voz
dentro da academia brasileira, por exemplo, que defende “que a literatura pós-
colonial passou a ser não aquela das colônias ou ex-colônias, e sim a dos
colonizados – resguardadas suas especificidades” (2002:137). Nesse sentido, a
autora aponta uma visão mais afinada com a produção, com a leitura e releitura do
que com aspectos geográficos e políticos atrelados à definição da esfera pós-
colonial. Assim, todo sujeito pode escrever sobre a experiência da colonização a
partir de perspectivas que vão diferir de acordo com sua experiência particular
(prática ou teórica) sobre essa temática.
O risco de se propagar generalizações exacerbadas sobre a instância pós-
colonial deve ser severamente evitado. Perceber um teor de resistência no discurso,
por exemplo, das mulheres, dos índios, dos imigrantes, dos judeus, não nos fará
imediatamente concluir que todas essas realidades vivenciadas possam ser
agrupadas de forma harmônica. Houve diferentes tipos de colonização ao longo da
história e não pretendemos, de forma alguma, analisar nosso corpus a partir de
48
pretensões exageradamente amplas nosso contexto é o do Brasil, recriado por
uma autora brasileira específica – Ana Miranda.
2.2 – Um olhar pós-colonial sobre a reescritura do Brasil do período colonial.
Surge-nos uma pergunta não simples de ser respondida, e é a que melhor
cabe em nossas discussões a partir de agora. O Brasil é ou o pós-colonial? Uma
vez que a Independência do Brasil, segundo Ribeiro (2002), foi realizada ao redor
dos interesses de grupos sociais do Centro-Sul, que desenharam os contornos da
cidadania brasileira, claramente marcadas por relações de poder externas e
internas, a chamada ‘identidade nacional’ foi construída ao longo do século XIX
como realidade em movimento, nunca pronta e acabada.
A Independência do Brasil e a sua nacionalidade, de acordo com Costa
(1979), foi elaborada dentro de um processo que não remonta à crise do sistema
colonial, nem aos marcos clássicos apontados pela historiografia, tais como 1808, a
convocação da Constituinte, e os Manifestos de agosto de 1822, tanto o redigido por
Ledo quanto o escrito por José Bonifácio. um tom pedagógico em documentos e
em jornais do período, tais com o Correio do Rio de Janeiro e o Revérbero
Constitucional Fluminense, que frisavam, no segundo semestre de 1822 que a
separação era uma necessidade. De um lado, havia a urgência de convencimento
da opinião pública sobre a Independência; de outro, não havia a certeza do
significado real do gesto de rompimento efetuado por D. Pedro, não se sabia nem se
este daria certo, nem se teria o respaldo necessário dentro do próprio Brasil.
É óbvio que a construção da sociedade pós-independência brasileira não se
diferenciou muito da anterior. A independência política nacional, embora a luta por
tal fosse um desejo de muitos e das mais variadas classes sociais, com anseios nem
sempre homogêneos, foi um marco importantíssimo na construção da nação.
E, portanto, é notório concluir que a leitura do s-colonial no contexto
brasileiro o é com certeza a mesma utilizada por países africanos, pela Índia,
pelos países latino-americanos de língua espanhola. É, sim, necessária uma teoria
pós-colonial que investigue o impacto global do colonialismo sobre todos os
envolvidos em suas práticas dentro do território nacional. Procurando recuperar e
49
revalorizar saberes anteriormente subjugados, não como uma busca de mitos
autovalidantes, mas de oportunidades perdidas ou simplesmente não mais
conhecidas.
O desenvolvimento de literaturas pós-coloniais depende de dois fatores
importantes, que são, segundo Bonnici (2003), “a progressão gradual da
conscientização nacional e a convicção de serem diferentes do centro império”
(p.214).
Tivemos em nossa realidade literária, inúmeros relatos que ao longo do
século XVI e na Carta de Pero Vaz de Caminha foram sendo produzidos na
Colônia - textos, manuscritos, documentos que visavam apresentar à Metrópole o
perfil da nova descoberta. Foram relatórios, tratados, diários ou discussões de
problemas relativos à catequização produzidos pelos portugueses, jesuítas ou
leigos, textos esses que espelhavam o olhar de fora, ainda que produzido em solo
nacional.
Dentre a produção extensa:
[...] que o período legou, que destacar, além, de Caminha, o
Diálogo sobre a conversão do gentio (1557), de Manuel da Nóbrega, a
História da província de Santa Cruz, quem vulgarmente chamamos
Brasil (1576) e o Tratado da terra do Brasil (publicado somente em
1826), ambos de Pero Magalhães Gândavo, o Tratado descritivo do
Brasil em 1587, de Gabriel Soares de Souza, e os Tratados da terra e
gente do Brasil, Fernão Cardim. Esses textos revelam o espanto do
europeu diante do mundo desconhecido e da natureza peculiar e
exuberante; contam, admirados, do selvagem, de seus hábitos e de
sua vida (...). (SANCHEZ, 1984:78)
Reconhecendo a validação de episódios como esses, voltar-nos-emos agora
a encontrar algumas marcas textuais na casa da ficção que remontem, ou melhor,
que revejam mitos e histórias do passado e tragam à tona visões mais afinadas com
o local, com o nacional.
É o ato de revisitar o passado oficial, no caso o Brasil colônia, como nos
instiga Achugar (2003), que nos faz ver que reescrituras e ficcionalizações
posteriores aos processos históricos de independência estão relacionados com os
processos históricos sociais e com as novas abordagens e olhares sobre o que é
produzido da história nacional.
50
E é com a leitura do romance Desmundo, de Ana Miranda, embasada em
fundamentos da teoria e crítica pós-colonial, elementos textuais que implicam na
revisão das narrativas que construíram (e continuam construindo) a identidade
nacional, que buscamos discutir como ocorreram as representações desse momento
histórico específico, ou seja, as primeiras décadas da colonização portuguesa no
Brasil.
No caso do Brasil segundo Júnior (2001) um programa de colonização as
Capitanias Hereditárias começaria em 1532, e com ele o povoamento
sistemático por parte de europeus vindos da metrópole para a colônia tomaria forma
mais clara e que nas cartas de Nóbrega encontram-se também elementos muito
interessantes para a história do povo brasileiro, sob diversos pontos de vista.
Entre os fatos que mais prendem a atenção pode-se destacar: a luta
aguerrida entre cristãos e índios, o ódio dos cristãos e as calamidades que
cometiam contra os índios, o desamor dos povoadores à terra, a guerra que sofriam
os Jesuítas dos sacerdotes, que "tinham mais ofícios de demônios que de clérigos.
Destaca-se ainda a prejudicial população de degredados, a falta de mulheres
brancas que eram tão desejadas "que quaisquer farão muito bem à terra". "ainda
que fossem erradas porque casarão todas mui bem, contando que não sejam tais
que de todo tenham perdido a vergonha, a Deus e ao mundo."
Sendo assim, a temática tratada no romance Desmundo, convida-nos a rever
não a composição populacional do Brasil colônia, como também dá-nos traços
para reler a história dos movimentos migratórios que aconteceram por aqui e que
são amplamente divulgados pedagogicamente nos livros didáticos do Ensino
Fundamental e Médio.
Na narrativa do romance de Ana Miranda, dividida em dez capítulos e
disposta como um diário de uma adolescente é descrita sob o ponto de vista da
protagonista, Oribela de Mendo Curvo, um Brasil de quatro séculos atrás, descrições
de uma língua, seus costumes, seus temores o que nos permite reler a
representação de ação e de pensamento da época em que se iniciou o processo de
colonização do Brasil aos olhos de Miranda.
Levando-nos a analisar aspectos tais como os papéis de gênero, a
religiosidade, a sexualidade e a progressiva e necessária adaptação tanto à
geografia quanto aos costumes da nova terra por parte do europeu e principalmente
das órfãs “casadoiras para cá enviadas”.
51
2.3 – O lugar do gênero no território pós-colonial de Desmundo
Bonnici (2003) afirma que uma estreita relação entre os estudos pós-
coloniais e o feminismo. De fato inicialmente é perceptível uma analogia entre os
binarismos colonizador/colônia e patriarcalismo/feminismo. Assim como foi o homem
colonizado, “a mulher, nas sociedades pós-coloniais foi duplamente colonizada”
(p.213). Estudos que visam concatenar os discursos pós-coloniais e do feminismo
têm como objetivo integrar a mulher marginalizada à sociedade. Inicialmente esses
estudos buscavam substituir as estruturas de dominação, passando em seguida a
dialogar de forma menos conflituosa, uma vez que foi centrado o objetivo de reler a
história e encontrar o lugar ocupado pela mulher ao longo desta.
Parece-nos fundamental aproximar as teorias feministas das pós-coloniais,
uma vez que um campo fértil nas relações, por vezes ambíguas, entre estes dois
movimentos. Partimos da perspectiva de que a cultura, na vida das nações que
lutam ou lutaram pela sua independência do imperialismo, tem um significado por
vezes distante das manchetes dos jornais dominicais. Conforme afirma Terry
Eagleton (2003), o imperialismo não é a exploração da força de trabalho barata,
das matérias-primas e dos mercados fáceis, mas o deslocamento de línguas e
costumes; não apenas a imposição de exércitos estrangeiros, mas também de
modos de sentir que lhes são estranhos e acabam sendo incorporados.
Enfim, feminismo e pós-colonialismo, duas teorias a priori de resistência, de
vozes marginais em relação às hegemonias, de sujeitos que sobrevivem nas
margens das definições dominantes de identidade e subjetividade, podem se
reforçar mutuamente através de trocas e diálogos alternativos, que procurem
enfocar aquele conhecimento e práticas que não têm estado no centro dos discursos
mundiais ao longo de séculos. Ambas as teorias refletem sobre a criação de
histórias alternativas, sobretudo as concernentes às reescrituras da história do
Brasil, de forma que nos levam também a refletir sobre como tal construção histórica
se deu, ao invés de lê-la como uma verdade absoluta. É o que Spivak (1994:197)
percebe como um refazer a história, negociando uma nova história”. Daí a
importância de tais análises que reavaliam o que foi contado ou pelo menos a
forma como tudo foi contado. Todas essas questões deverão guiar nossa análise do
52
romance em questão, enfocando principalmente a perspectiva de Oribela, nossa
protagonista, sobre a vida na nova terra.
Através da leitura do romance Desmundo, embasada num olhar que
considera aspectos de gênero e do âmbito da pós-colonialidade, acreditamos ser
possível a identificação de elementos textuais que implicam na revisão das
narrativas que construíram (e continuam construindo) a identidade nacional. O
sujeito feminino aqui insiste em lutar pelo poder de significar, exercendo uma política
de resistência.
Dentre os inúmeros episódios que compõem o romance Desmundo, faremos
um recorte específico com o objetivo de reler a história a partir das vozes menos
atreladas ao poder que participaram do processo de colonização. Assim, de acordo
com Spivak (1994), buscaremos uma negociação com as estruturas que produziram
o indivíduo como agente da história em uma pedagogia desconstrutivista que
pretende dar voz aos anteriormente silenciados.
É sob o olhar de uma adolescente que desvendaremos um pouco desse
episódio dito menor e esquecido da história do Brasil, que está relacionado á
importação de mulheres da Europa para as colônias. As órfãs foram para cá trazidas
com um único objetivo, e este bem explícito na carta de Manoel da Nóbrega a El-Rei
D. João datada de 1552:
que escrevi a Vossa Alteza a falta que nesta terra ha de mulheres,
com quem os homens casem e vivam em serviço de Nosso Senhor,
apartados dos pecados, em que agora vivem, mande Vossa Alteza
muitas orphãs, e si não houver muitas, venham de mistura dellas e
quaesquer, porque são tão desejadas as mulheres brancas cá, que
quaesquer farão cá muito bem à terra, e ellas se ganharão, e os
homens de cá aparta-se-hão do peccado.
Essa carta traz em seu conteúdo a explícita necessidade da “importação” de
mulheres brancas para garantir uma descendência legitimamente portuguesa aos
“donos” do Brasil, pois, sem elas, as diferenças entre o opressor e o oprimido
tenderiam a desaparecer nas gerações seguintes, herdeiras da nova terra, que
inevitavelmente se misturariam” aos locais através de relações sexuais e dos
prováveis filhos. Além disso, como negras e índias não eram,via de regra, cristãs,
53
qualquer relação com elas era vista como um atentado às regras de civilidade e de
religiosidade que justificavam os processos colonizatórios.
Por isso além da questão s-colonial, nos interessa o recorte de gênero,
uma vez que trabalhamos com uma autora brasileira, que dá voz a uma protagonista
portuguesa. É através do olhar feminino que a colônia é descrita nessa reconstrução
literária.
54
3 VOZ NARRATIVA, FOCALIZAÇÃO E O FEMININO EM DESMUNDO
É através da narrativa da personagem Oribela de Mendo Curvo que o leitor é
convidado a ingressar em formas de ação e de pensamento relativos ao período do
início da colonização brasileira, por meio do relato de uma protagonista fictícia,
exemplar do Homo fictus”, conforme Candido (2005). Assim, torna-se possível
pensar essa mulher, Oribela, e como sua vida dialoga com a de outros indivíduos
que viveram no século XVI, que, por sua vez, herdaram sua forma de ver o mundo a
partir de estruturas mentais construídas culturalmente ao longo dos séculos.
Em Desmundo as relações com a história já podem ser percebidas nas
“orelhas” do livro, nas ilustrações feitas pela autora, na referência à carta do padre
Manoel da Nóbrega, e na forma do texto propriamente dito. Sabe-se que a narrativa
ficcional não exige a pesquisa documental, essa que é uma atividade do historiador,
mas isto não impede que o escritor procure conhecer dados relativos ao assunto
sobre o qual se propõe escrever. E, no caso de Desmundo, em muitos momentos,
torna-se perceptível a descrição, assim como a narração de situações e costumes
que remontam a época da colonização e norteiam a escrita do texto; entretanto, não
se pode esquecer que a narrativa literária compromete-se com a estética, com a
poesia, com a ficção, e sua relação com o passado a ser focalizado é menos
pragmática e rígida do que uma revisão histórica seria.
No discurso ficcional há uma possibilidade de desestabilização do discurso da
história, e as histórias podem, então, ser narradas a partir de pontos de vista não
focalizados pelos discursos até então dominantes. Se, por exemplo, no que se refere
à história dos primeiros anos de colonização do Brasil, toda informação que obtemos
se através dos cronistas portugueses de acordo com Costa e Melo (1999), o
romance de Ana Miranda surge como uma leitura possível da história destes
momentos a partir de outro prisma, que é o da voz de uma órfã, acompanhando,
inclusive, o pensamento da personagem que é extremamente pontilhado por
crenças, medos e questionamentos diante do mundo/desmundo que a ela se
apresenta e do qual essa não pode escapar.
55
3.1. A posição do narrador e a focalização interna em Desmundo
Como dito anteriormente, a obra é narrada por uma mulher que conta parte
de sua história de vida mais especificamente, sobre o período em que era
adolescente a partir do momento em que chega ao Brasil, após semanas de
viagem no mar do século XVI, vindo de Portugal. Oribela de Mendo Curvo é uma
das órfãs que foram trazidas para a Nova Terra com a finalidade de serem
oferecidas para casamento com os colonizadores portugueses que habitavam as
terras brasileiras, conforme se observa na citação: “Ah, as órfãs. Vinde (...). Em
mim foi como se a terra tremera ou caíssem os dentes todos na mesma hora, feito
chegasse a carne aos ossos”.
3
(D, p.51).
Desmundo é, portanto, uma narrativa ficcional que passa a traduzir uma
história que não se quer imóvel no que se refere a tempo e deslocamento. Através
da voz da protagonista, o leitor ingressa em formas de ação e de pensamento da
época, deparando-se com aspectos tais como existência feminina, religiosidade,
amor e sexualidade vinculados à experiência das mulheres, tudo aos olhos de Ana
Miranda. Uma mulher, Oribela, vivendo dilemas e sentimentos contraditórios: ama e
odeia essa nova experiência, estando à frente de seu tempo e questionando as
instituições patriarcais.
Bakhtin (2003) diz-nos que o homem vivente se estabelece ativamente dentro
de si mesmo no mundo; “sua vida conscientizável” é a cada momento um agir: o ser
age através do ato, da palavra, do pensamento, do sentimento; eu vivo, eu me torno
um ato; A voz narrativa em Desmundo assume esse papel; o de agir, o de falar, o de
contar, o de passar, de condicionar, omitir, transmitir, o que, de acordo com Reis e
Lopes (1988, p. 63) está vinculado às funções
(...) do narrador [que] não se esgotam no ato de enunciação que lhe é
atribuído. Como protagonista da narração ele é detentor de uma voz
observável ao nível do enunciado por meio de intrusões, vestígios
mais ou menos discretos da sua subjetividade, que articulam uma
ideologia ou uma simples apreciação particular sobre os eventos
relatados e as personagens referidas.
3
Essa citação é tomada do romance Desmundo, de Ana Miranda, a referência completa fazendo parte da
bibliografia final. Doravante, qualquer citação do romance aparecerá como D, seguido do número de página.
56
A voz emitida pelo ato de enunciação é sim uma das atribuições da voz
narrativa; quando protagonista (homodiegético), é o(a) detentor(a) dessa voz.
Oribela nos impulsiona a sentir o drama vivido por uma adolescente, órfã, que após
o suicídio da mãe e a falência do pai é jogada num convento e depois levada para
uma terra distante, uma realidade tão diferente daquela que conhecia, levando uma
vida que jamais supusera existir. “Vi que nesta terra o mal entra nos pés de uma
Nossa Senhora e se aloja nas santas obras, quanto mais na escuridão do nosso
pensamento e nos enganos dos inimigos”. (D, p. 30)
Oribela surge como uma voz dissonante na narrativa, que passa a ecoar
angústia, sofrimento e pesares, o que pode ser percebido uma vez que essa
“desfeitura” do mundo fica evidente nas inúmeras palavras iniciadas com o prefixo
‘des’: desmundo, desbaratado, desatino, desmancho, desconcentrado, desespero,
destrato, desesperada, desentendida, desmelancolizado, desordenado,
desconsolado, desmando, desordem, desformidades, desmovido, desnudado,
desfalecido, desfeito, desfortunado, etc. Na verdade seu próximo vínculo e
comprometimento com essa desconstrução do mundo é que a tornam uma das
personagens mais interessantes de Ana Miranda. O desmanchar de um mundo nos
é apresentado pelo olhar de Oribela, permeado pela voz narrativa, e nos leva a
compreender que algo está sendo desfeito, desmontado, desnudado. Oribela de
Mendo Curvo está em um lugar que não reconhece, não se sentindo em lugar
algum. Esse lugar não é Portugal, sua terra natal, nem é o Brasil, sua terra de elio.
Oribela está em mundo dela, num típico entre-lugar. Um lugar, que de acordo
com Bhabha (2003), é marcado pelo
(...) habitar um espaço intermédio, como qualquer outro dicionário lhe
dirá. Mas residir “no além” é ainda, (...) ser parte de um tempo
revisionário, um retorno ao presente para redescrever nossa
contemporaneidade cultural; reinscrever nossa comunidade humana,
histórica; tocar o futuro em seu lado de cá. Nesse sentido então, o
espaço intermédio “além” torna-se um espaço de intervenção no aqui
e no agora. (p.27)
57
É por meio do relato dessa personagem que se torna possível pensar sobre a
experiência de tantos indivíduos que viveram no século XVI. O romance de Ana
Miranda oferece-nos uma leitura interessada na história das mentalidades da época
e aproveita para re-configurar e re-imaginar o que “parece” ter existido, que faz
parte da história oficial.
Logo nas primeiras linhas do romance nosso olhar é direcionado para
visualizar o contexto nacional a partir de um ponto externo que, aos poucos, se
aproxima do local, nacional.
A vista de uma colina distante tangeu dentro do meu coração música
de boas falas, com doçainas e violas d’arco, a ventura mais escondida
clareia a alma. Ali estava bem na frente a terra do Brasil, eu a via
pelos estores treliçados, lustrada pelo sol que deitava.(D, p.11)
Somos logo norteados a ver e a viver o drama deste que seria segundo Reis
e Lopes (1988), um “narrador homodiegético” (Homodiégétique narrador que, de
alguma forma, está presente na história), entendendo-se que este tipo de narrador
está vinculado a uma situação ou atitude específica, sua voz relatando suas próprias
experiências como personagem central da história.
Como já mencionado em capítulo anterior, a obra é dividida em dez capítulos.
O romance é narrado em primeira pessoa, o que segundo Massaud Moisés (1997)
sugere que:
O ficcionista abandona a visão macroscópica do Universo em favor
duma visão microscópica: não mais entender, nem reformar, mas
conhecer o homem no seu “eu” subterrâneo e procurar enriquecer o
leitor com o espetáculo das próprias mazelas. (MOISÉS, 1997, p.287).
Temos diante de nossos olhos uma narrativa que foi marcada pela
experiência modernista típica do século XX. Na verdade temos aí um recurso técnico
característico das narrativas objetivas, que os alemães chamam de erbte Rede”, os
franceses de “Lemonologue intérieur” e os ingleses de “stream of consciousness
Wellek e Warren (2003). Ou seja, ocorre aí uma imersão na vida interior e no
58
pensamento da personagem por parte do leitor. Além disso, vale lembrar que o
“narrador homodiegético” estrutura a “’perspectiva narrativa’, organiza o ‘tempo’,
manipulando diversos tipos de ‘distâncias’, etc.” Reis e Lopes (1988).
Oribela é uma adolescente que não se reconhece como pessoa neste mundo,
havendo constantes demonstrações de uma verdadeira ausência de mundo (ou
lugar nele) pra ela, o que faz com que ela torne-se e sinta-se um não-ser, por não se
identificar com as pessoas que no Brasil habitavam. E é o registro da utilização da
primeira pessoa gramatical em Desmundo que segundo Reis e Lopes (1988) define
a conseqüente coincidência entre narrador/protagonista.
A história é narrada em tempo passado, o que nos sugere que um lapso
de tempo entre o que é narrado e o fato acontecido. Quanto a tais deslocamentos,
vale apontar o que dizem Reis e Lopes (1988:119).
O narrador autodiegético aparece então como entidade colocada num
tempo ulterior em relação à história que relata, entendida como
conjunto de eventos concluídos e inteiramente conhecidos. Sobrevêm
então uma distância temporal mais ou menos alargada entre o
passado da história e o presente da narração; dessa distância
temporal decorrem outras: ética, afetiva, moral, ideológica, etc., pois
que o sujeito que no presente recorda não é o mesmo que viveu os
fatos relatados.
Oribela nos narra no presente o que vivera no passado, o sendo possível
mensurar exatamente o tempo transcorrido entre um e outro. Ela nos narra o alívio e
as incertezas e inseguranças que não a abandonam ao aportar em terra firme:
“Amém, amém, mas nada podia eu compreender do mundo e do céu, meu modo era
esquivar e renegar” (D, p.12). A protagonista sabe que nesse novo território
várias formas de desvalorização que são impostas a tantos dos seus habitantes:
“Almas enganadas, mancebas de danado apetite, putinhas contritas” (D, p.14), todos
esses novos termos e visões que são acrescidas em seu vocabulário e visão de
mundo. Oribela expressa a falta de seu velho mundo, a dor por não estar mais
naquele lugar, Portugal, sabendo que “cada dia me fizeram mais distante de onde
fora eu arrancada com muita pena” (D, p.15), Reflete sobre sua própria existência:
“O mar nos deixa seus escravos, mar que não pode tomar porto e se fica sendo dele
inteiramente” (D, p.15).
59
Nas entrelinhas, Oribela não apenas expressa sua inadequação no novo
mundo, mas também faz denúncias sobre o comportamento duvidoso e ilícito dos
religiosos que conhece e do uso que esses fazem do poder: “Os soluços meus, as
falas do padre, sua piedade, suas turbações, seus beijos em meus lábios na
confissão, para perdão dos meus pecados, o cheiro de vinho e vômito em sua boca
(D, p.16). A posição do sujeito feminino era de total submissão ao poderio
masculino, uma submissão que não lhe conferia o mínimo poder sequer o de
denúncia contra os abusos sexuais sofridos.
O narrador reproduz de maneira artificial o tempo da experiência vivida, que é
o instante da chegada das órfãs ao Brasil, manipulando os ritmos em que ocorreram
os fatos e todas as atitudes cognitivas que os regeram. Dá-se o direito ou priva-se
do privilégio de revelar prematuramente os eventos posteriores ao tempo do que
está sendo narrado
4
, como vemos ao observar que Oribela tinha definido o seu
destino era uma mulher refletindo sobre a impossibilidade de realizar seus sonhos
de criança e de adolescente:
Aquele era o meu destino, não poder demandar de minha sorte, ser
lançada por baías, golfos, ilhas até o fim do mundo, que para mim
parecia o começo de tudo, era a distância, a manhã, a noite, o tempo
que passava e não passava, a viagem infernal feita dos olhos das
outras órfãs que me viam e descobriam, de meus enjôos, das náuseas
alheias, da cor do mar e seu mistério maior que o mundo. O mar,
lavrado pela natureza, o mar sobrepuja tudo, nos deixa feridos de
morte e de amor. (D, p.15)
Como apontado anteriormente, a narrativa é disposta sem nenhum diálogo
ou quaisquer manifestações ou participação ativa de outros personagens. O homem
que acaba tornando-se esposo de Oribela, Francisco de Albuquerque, o padre, a
índia Temericô, a e de Francisco, Ximeno Dias, todos são vistos e apresentados
sob a ótica de Oribela, que monta um perfil com traços psicológicos e físicos, o que
nos condiciona a vê-los como ela quer que nós os vejamos. Reis e Lopes (1988)
dizem-nos a respeito:
4
No Dicionário de teoria da narrativa, Carlos Reis e Ana Cristina, com base em Glowinski citam o seguinte:
“ao iniciar a história, o narrador detém um conhecimento absoluto dos assuntos, mas os revela gradualmente e
não de uma vez.”
60
Como é óbvio, a subjetividade projetada no enunciado remete para o
eu-personagem em ação e não para o eu-narrador; por outro lado,
mais do que em qualquer outra circunstância, a focalização interna da
personagem arrasta uma focalização externa sobre o que a rodeia.
Trata-se de uma limitação natural, que o campo da consciência do
narrador restringe-se forçosamente. (p.120)
5
Ao analisarmos o discurso narrativo de um narrador autodiegético,
normalmente tendemos a subordinar questões enunciadas a uma questão central –
que seria representada pela configuração ideológica, ética, emocional, etc. Oribela
protagoniza uma dupla aventura: a de ser uma heroína da história e a de ser
responsável pela sua narração.
O “narrador homodiegético” condiciona também o código das focalizações,
não esquecendo que quem narra é sempre o narrador; quem vê; quem detém a
focalização, é o focalizador e nem sempre as duas coisas se confundem
6
.
Procuramos identificar o narrador e a focalização na construção de um romance
contemporâneo uma vez que “a acrescida importância assumida pela focalização
interna cruza-se com a evolução do romance, sobretudo a partir da segunda metade
do século XIX” (REIS e LOPES, 1988:252).
Dentre os três tipos de focalização: a interna, a externa e a onisciente,
definimos a primeira como o ponto de vista utilizado pelo narrador de Desmundo.
Entenderemos a focalização interna fixa como uma modalidade específica de uma
perspectiva narrativa, o que corresponde à instituição do ponto de vista de uma
personagem inserida na ficção, o que inevitavelmente resulta numa restrição,
deliberada ou não, dos elementos informativos relatados, em função do universo de
limitação da personagem.
No caso de Oribela, temos um narrador-personagem que propomos
classificar como “narrador homodiegético” e que busca, desde o início de sua
narração, “Parte I” (D, p.9-31) nos condicionar a ver o que ele quer nos mostrar.
A utilização da focalização interna fixa (REIS e LOPES, 1988:251), identificável em
5
Citando Lanser, o Dicionário de teoria da narrativa transcreve: “Ele ou ela podem especular apenas do
exterior a propósito de outras mentes, e assim tudo o que este narrador limitado refere acerca de outras
personagens deve basear-se naquilo que ele pôde logicamente observar, conjecturar ou escutar”.
6
GENETTE, Gerard. O discurso da narrativa. Lisboa: Veja Universidade, s/d.
61
Oribela, tende a uma considerável valorização da corrente de consciência das
personagens, assim como podemos observar na seguinte passagem do capítulo
cinco:
(...) mas cada dia me fizeram mais distante de onde fora eu arrancada
com muita pena por serem meus pés quais umas abóboras nascidas
no chão, minhas mãos uns galhos que se vão à terra e a agarram por
baixo das pedras fundas. (D, p.15).
Vale destacar que aqui fica clara a imposição de sua vinda; essa o fora
escolha sua, que se possuíam raízes, essas estavam lá, em Portugal. E esse fato
é amplamente exposto pela narradora que descreve que essa atitude de tomar
mulheres como objetos, não era nada incomum à época, vide comentários históricos
e sociológicos produzidos mais tarde a partir de perspectivas que reestruturaram o
papel da mulher na colônia, assim como nos diz Araújo (2007):
No conjunto, o projeto educacional destacava a realização das
mulheres pelo casamento, tornando-as afinal hábeis na arte de
prender a seus maridos e filhos como por encanto, sem que elas
percebam a mão que as dirige nem as cadeias que as prendem. (p.51)
Mulheres que desempenhavam papéis atrelados aos costumes da época e
aos desejos e desmandos de uma sociedade patriarcal severa para com todos os
que não encaixassem no perfil socialmente convencionado, um sistema duro com
quem não fosse submisso as convenções, obediente aos homens e devotado a fé.
3.2. O feminino reapresentado pela perspectiva de Ana Miranda: surge uma
história de resistência
Os capítulos distribuídos como páginas de diário ao longo do romance
Desmundo apontam a parcialidade do que nos é narrado: o impressões,
62
desabafos, fluxos de uma consciência. Grande parte do que nos é narrado não
obedece a nenhuma pontuação coerente, os fatos imaginados e agora relembrados
são jogados numa seqüência muitas vezes incoerente.
ao longo da narrativa, de forma bem perceptível, os ecos do discurso
patriarcal, por diversas vezes, na voz da própria personagem narradora, que permite
as vozes de seu pai, da Velha, de Francisco de Albuquerque, de membros da Igreja,
a revelarem qual deveria ser o papel feminino. Um dos momentos em que se torna
perceptível de maneira mais enfática esta questão pode ser apreendido no
fragmento textual seguinte, que, apesar de longo, será mantido integralmente pela
riqueza de análise que nos propicia.
Ora ouvi, filhas minhas. Aquela que chamar de vadio seu homem deve
jurar que o disse em um acesso de cólera, nunca mais deixar os
cabelos soltos, mas atados, seja em turbante, seja trançado, não
morder o beiço, que é sinal de cólera, nem fungar com força, que é
desconfiança, nem afilar o nariz, que é desdém e nem encher as
bochechas de vento como a si dando realeza, nem alevantar os
ombros em indiferença e nem olhar para o céu que é recordação, nem
punho cerrado, que é ameaça. Tampouco a mão torcer, que é
despeito. Nem pá pá pá pá nem lari lará. Nem lengalengas nem
conversas com vizinho, seja ele quem for, ou cigano, nem jogos nem
danças de rua, nem olhar cão preto que pode ser chifrudo, deus te
chame que ninguém te chama cá, temperar legume com sal, não
apagar luz que alumia morto nem deitar as águas fora que é de
judaísmo, não pedir favores nem pôr os olhos no vizinho nem o corpo
na cama de outro, tem o esposo direito de acusar, para provar
inocência a esposa deve lavrar a mão num ferro de arado em brasa.
Açoite e língua furada àquela que arrenegar. Os esposos devem dar
panos às mulheres, mas nas festas reais, se lhes oferecer o
mercador um bom preço, que eles não façam obra alguma desde o
posto do sol até o sol saído e dia de domingo e a viver segundo o
capricho dos homens. Aqui do rei. E disse eu, Ora, hei, hei, não é
melhor morrer a ferro que viver com tantas cautelas? Ai, como sou,
olhasse a minha imperfeição, olhasse meu lugar, sem eira nem beira
nem folha de figueira (D. p. 67).
O fragmento textual, pertencente à terceira parte do romance, intitulada
“Casamento”, revela aspectos interessantes para nossa análise. Este fragmento
desdobra-se em dois discursos: o da Velha, que orienta as jovens cujos casamentos
se aproximam, e o de Oribela, a questionar tantas imposições nas duas últimas
frases. Oribela em determinado momento parece encurtar as orientações da Velha o
63
que gera uma grande ironia, chegando até a ridicularizar, quando, após tantas
regras, surge a frase: “Nem pá pá pá nem lari lará”. Os “nens“, proibindo tudo que se
imagine possível são tantos que nem precisam ser numerados, listados. Tudo que
envolva alguma criatividade ou prazer estará proibido após o casamento. Temos
notadamente marcas textuais de uma resistência. Uma desestabilização não
confrontadora, pois Oribela resmunga sozinha e pra si, uma tentativa de
desestabilizar o discurso oficial predominante.
As interdições impostas pela Velha representam o momento em que a autora
recorre às informações extraídas de textos referentes à história das mentalidades
para construir seu texto. É significativo observar, por exemplo, a reiteração da
conjunção coordenativa aditiva “nem” e do advérbio de negação “não”, para revelar
a quantidade de interdições a que uma mulher casada seria submetida.
Outro aspecto bastante significativo é a referência à normatização do corpo
representada, no texto, pelo fato de as interdições estarem ligadas a partes do
corpo, em seqüência: cabelos, beiço, nariz, bochechas, ombros, olhos, punhos,
mãos, língua e, por fim, novamente, o corpo todo. Nada pertenceria totalmente à
mulher: nem sua alma, nem seu corpo.
Oribela também identifica a condição da mulher “selvagem” como
aparentemente diferente da sua, mas logo percebe que a submissão era algo que
transcendia o mundo civilizado. “Bugres da terra vendiam suas fêmeas nuas, mas
assim que veio um padre da Companhia na rua, as esconderam, não dos outros
padres” (D, p.39); Outros questionamentos surgem como, por exemplo, “por que
andavam nus”? (D, p.40) e descrições das índias como “almas enganadas,
mancebas de danado apetite, putinhas contritas,” (D, p.14). Cenas da falta de pudor
a que tanto encantava e causava ojeriza aos ditos civilizados: “E vi um extravagante
dentre eles, a se encostar numa libidinosa que lhe fez inchar a parte, tanto que
parecia um bruto.” (D, p.39). Talvez destacar tanta diferença entre brancas e
indígenas seja uma forma de tentar explorar o fato de que toda mulher
independente de raça, credo, cor não tinha voz própria naquele contexto,
principalmente as órfãs, que nem escolheram seus maridos nem o lugar onde
viveriam.
Ao longo da viagem de vinda ao Brasil Oribela descreve seu desejo de sair
logo daquela nau, uma vez que passara semanas numa viagem muito difícil,
64
almejando por um sonhado sossego e conforto, mas não estava tão certa do que a
aguardava em terra firme:
Atinava eu que ia beber água fresca, água fresca, água fresca, água
fresca, águafrescaáguafresca larari la (...) ia eu ter cama onde
pudesse estirar minhas pernas e sem me acordarem cotovelos
alheios, nem medo, nem suor, nem vacas batendo os chifres nas
cavernas, será? (D, p.11)
Todavia a necessidade de respirar novos ares e sentir-se livre sobrepunha-se
naquele instante ao medo e às incertezas daquela nova terra, como se um lado seu
apostasse que sua sorte mudaria:
Ia tirar de mim o cheiro de podre, vestir camisa limpa, lavar o sal da
pele, comer fruta da árvore, carne assada, esquentar as mãos num
fogão de lenha, assentar à mesa, adeus ferrugem, adeus carne de
porco na banha, ai um pão quente, um ceitil de cerejas, tudo parecia
alta maravilha. (D, p.12)
Oribela logo percebe que o mundo que encontra não é sua terra, sua gente,
seu lugar, sentindo desejo de voltar pra casa, um desejo que a persegue,
motivando-a por grande parte do romance, seja em seus pensamentos, seus sonhos
ou ao longo de suas tentativas frustradas de fuga e de embarque em alguma nau
que a levasse de volta para casa:
Aquele era o meu destino, não poder demandar de minha sorte, ser
lançada por baías, golfos, ilhas até o fim do mundo, que pra mim
parecia o começo de tudo, era a distância, a manhã, a noite, o tempo
que passava e não passava, a viagem infernal feita dos olhos das
outras órfãs que me viam e descobriam, de meus enjôos, das náuseas
alheias, da cor do mar e seu mistério maior que o mundo. (D, p.15)
Oribela apresenta-nos sua condição de órfã, destacando sua dor por não
estar em seu mundo, em Portugal. Sentimento este que a motiva a querer voltar
65
para casa, convivendo com a impossibilidade de realizar tal desejo. Um desejo que é
desfeito várias vezes e dentre elas quando Oribela foge pela última vez e se
esconde na casa de Ximeno e este afirma que não seria possível embarcar, pois a
nau partira, “mas ia eu tomar a nau Patifa e tratar de embarcar como passageira,
tudo era certo assim disse o mouro que se fora a nau uns poucos dias antes, se
fizera à vela com muita festa e regozijo.” (D, p.165)
É óbvio aqui o fato de que essas mulheres vieram para o Brasil de forma
forçada, independente de suas vontades, já que estavam inseridas nos grupos
vulneráveis, definidos como sem propriedade, sem voz, sem poder de decisão:
As órfãs faziam sinal-da-cruz, iam arranjar marido bom e principal, ou
então uns fideputas desdentados, trolocutores surdos, furtamalões,
bêbados, cornos, condes Barlengas [...] Mas ordenara a rainha, que
seriam uns gentilhomens. (D, p.21)
Oribela é dada ao sobrinho do governador, como se a seguir: “disse o
padre ser eu pura e virgem donzela criada em mosteiro de freiras (...) de alma que
se podia amansar como se faz a um cavalo” (D, p.56) Sendo essa uma prática
comum, as mulheres estavam submetidas aos desmandos de seus donos, e ao
menor sinal de desobediência ou “se era defeituosa, deixasse a pão e água que me
ia alimpar, como me houvera ferrado para vender por moura e ferro no pé” (D, p.56).
A órfã que demonstrara em outras situações seu lado arredio é
apresentada como uma esposa que não ofereceria nenhum risco, “e que não fazia
mal ser [eu] tão cheia de diversas opiniões e bravezas” (D, p.56). Oribela que a tudo
assiste tem ímpeto de mulher que não se deixa domar a coragem; assim, através de
sua voz sabemos que “o homem me veio a mirar e no rosto lhe cuspi” (D, p.56).
O que vem a chamar a atenção ao que se segue na narrativa é o
comportamento dos que presenciam tal ato vil de indisciplina e os castigos aplicados
àquela “demoninhada”.
Oh como és parva. Uma perdida! Decho que praga, tão bom homem
parece ele e tu uma frouxa, rabugenta, pé-de-ferro, regateira baça,
demoninhada, pardeus, forte birra é esta que tomas contigo, ora vai-te,
66
eramá, como te amofinas, mexeriqueira e sonsa, que rosto de mau
pesar para casarem contigo, tinhosa, que cheiras a raposa, rastro de
burra, torta defumada. (D, p.57)
Além dos desaforos e humilhação, Oribela é castigada fisicamente, o que
mostra claramente a condição no que concerne a falta de liberdade ou de escolha
da mulher na época:
E d’arrancada deu com uma vara. No sacrário me fez em joelhos rezar
por perdão de minha rebeldia, me deu pancadas nas mãos até ver
sangue, que não doeu tanto e foi murmurar mais castigos com outros
padres. Tornei a cela, fosse a uma cova para ser enterrada viva não
estaria eu tão cara de coruja, com nojo muito verdadeiro e suspiros
verdadeiros. (D, p.57)
Ao sentir na pele e na mente as dores dos maus-tratos físicos e psicológicos
Oribela percebe “(...) mas nada podia [eu] compreender do mundo e do céu”. (D,
p.12) e que sempre fora daquela forma ao lembrar-se de seu pai e de suas palavras
“Que besta és tu e de asas, feito uma galinha que quer avoar e não pode”. (D, p.57)
De acordo com Araújo (2007:53) “O ideal do adestramento completo,
definitivo, perfeito, jamais foi alcançado por completo. A igreja bem que tentava
domar os pensamentos e os sentimentos, muitas vezes até com algum sucesso”. A
igreja e os poderes patriarcais dominantes exerciam enorme controle, ou pelo
menos tentativas de manipulação sobre as mulheres, o que notadamente dava certo
uma vez que as mesmas estavam inseridas numa relação desigual. O poder estava
atrelado à cultura do patriarcado, o qual usava esses privilégios para impor o
respeito e controlar os que estavam sob sua égide.
3.2.1 O feminino e a sexualidade na colônia
A influência da Igreja era grande e exercia enorme pressão sobre o
adestramento e controle da sexualidade feminina. Baseada numa leitura facetada da
67
bíblia, a mulher ideal era a que se aproximasse da Virgem Maria e se distanciasse
de Eva, início do pecado. Na leitura do capítulo dois da primeira das cartas de Paulo
a Timóteo, temos os versículos que por muito tempo e ainda hoje o utilizados em
muitas sociedades cristãs para guiar a criação de mulheres:
9 Que do mesmo modo as mulheres se ataviem em traje honesto, com
pudor e modéstia, não com tranças, ou com ouro, ou pérolas, ou
vestidos preciosos,10 Mas (como convém a mulheres que fazem
profissão de servir a Deus) com boas obras. 11 A mulher aprenda em
silêncio, com toda a sujeição. 12 Não permitindo, porém, que a mulher
ensine, nem use de autoridade sobre o marido, mas que esteja em
silêncio.13 Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva.14 E Adão
não foi enganado, mas a mulher, sendo enganada, caiu em
transgressão.15 Salvar-se-á, porém, dando à luz filhos, se permanecer
com modéstia na fé, no amor e na santificação.
Portanto, toda família deveria moldar suas mulheres e segundo Araújo
(2007:46), “nunca se perdia a oportunidade de lembrar às mulheres o terrível mito do
Éden, reafirmado e sempre presente na história humana”. Segundo tais narrativas,
Eva era a mulher predisposta ao pecado e que não deveria andar sozinha, não tinha
capacidade de fazer suas próprias escolhas, uma vez que, por ela, o pecado entrou
no mundo, quando fora seduzida pela serpente, assim como encontramos no
terceiro capítulo do livro do Gênesis 6 E viu a mulher que aquela árvore era boa
para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento;
tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu com ela”.
Nesse contexto religioso e opressor da época, as mulheres impossibilitadas
de sentir prazer no casamento, conviviam com a dualidade própria dos desejos da
carne, o que tornava comum entre os hábitos das mulheres na colônia a
masturbação, o homossexualismo e traição, de acordo com de acordo com Araújo
(2007:73)
A sexualidade feminina na época colonial manifestava-se sob vários
aspectos, sempre esgueirando-se pelos desvãos de uma sociedade
misógina e suportando a culpa do pecado a ela atribuído pela Igreja. A
mulher podia ser mãe, irmã, filha, religiosa, mas de modo algum
amante.
68
Oribela tem de um lado o esposo, homem a quem foi atrelada sob as bênçãos
de Deus e da Igreja. Francisco de Albuquerque é sobrinho de Brites de Albuquerque.
Nascido em uma aldeia, vivera com os pais num estábulo. Fora um pobre mercador
que, com o objetivo de enriquecer, arrendara uma colônia. Agora tinha terras,
mesmo à custa de fome e sofrimento. Enamorara-se instantaneamente por Oribela e
embora rejeitado, pagaria por ela quantas vacas custasse. Tinha um semblante
grave e severo, seu aspecto era degradante: faltavam-lhe dentes, tinha pernas finas,
nariz quebrado, olhos tristes, pele rechaçada, cabelos imundos, mas um coração e
generosidade inigualáveis. Durante o pouco tempo de casamento, dedicou-se
inteiramente à esposa, porém, envolvia-se sexualmente com as “naturais”(índias),
por despeito à rejeição de Oribela, rejeição até compreensível, uma vez que a
própria narradora diz-nos que quanto “mais olhava o rosto de Francisco de
Albuquerque, sua sobrancelha, seu nariz, seu queixo, mais sofria. Sua mão a tocar a
minha mão, dava náusea”. (D, p.75).
Oribela é adolescente sonhadora por não exercer sobre si a liberdade que
almeja. Uma jovem que sofre com as contradições do desejo, do prazer no sexo.
Uma mulher que mal era capaz de conhecer seu próprio corpo:
Meu pai mandava turvar a água do banho com leite para não ver o
meu corpo de criança, uma vez alevantei da gameleira e ele me
castigou com tantas vergastadas que verti sangue pela boca. Água
nas mãos e na fuça, fidalga. Água no mais, puta. (D, p.43)
Para as mulheres o simples fato de querer tomar banho e sentir alívio no
corpo era sinal de pecado, uma vez que indicava calor demais e descontrole.
Além disso, as práticas de higiene não eram muito valorizadas e eram consideradas
como desnecessárias. Isso é mencionado por Oribela em seus pensamentos:
Na viagem para estas terras muitas vezes me dera um ímpeto de
banhar, estando minha pele crestada de sal como peixe seco e minhas
dobras em feridas dolorosas de calor, nem tanto por haver caído
chuva demais, nas costas de cá, de que eu banhara no convés as
mãos e as fuças ficando uma melhoria nas minhas náuseas. Uma
69
água que me veio amenizando e consolando as partes interiores,
refresco, mas um segredo que eu devia guardar (...). (D, p.43)
Como tudo era proibido a essas mulheres mulheres eram sujeitos sem
família, sem protetores o prazer relacionado ao ato sexual também era algo que
lhes negado. A primeira e traumatizante relação sexual de Oribela é ato que se
concretiza assim como fora estipulado, através de dor e momentos de tortura:
Umas vacas na sala. Para deitar, um monte de feno, mas a mim foi
segurando Francisco de Albuquerque e derrubando (p.76) Logo se
tornou num cachorro que vi sobre uma cadela de rua, um ganso numa
gansa, no Mendo Curvo, ou um padre na freira (...) que eu estava a
temer de me quebrar os ossos e rasgar pela metade (...) Ele me abriu,
explorou e olhando no lume a cor do molhado, de sangue, abanando a
cabeça disse. Verdade disseste e agora és minha. (D, p.77)
O seu homem agora exerce poder total sobre ela, exibe com orgulho pra si
mesmo o sangue que escorre de sua vagina, prêmio merecido; está feliz por ela ter
falado a verdade sobre sua virgindade, seu corpo pertence a ele. Aparentemente
Oribela seguiu aquilo que era “o estereótipo, o bom modelo, o comportamento que
esse esperava no despertar da sexualidade feminina” (Araújo, 2007:45).
A Igreja era atrelada ao Estado e juntas essas instituições exerciam grande
controle na vida dos habitantes e, sobretudo, na vida das mulheres, assim como nos
descreve Araújo (2007:45):
Das leis do Estado e da Igreja, com freqüência bastante duras, à
vigilância inquieta de pais, irmãos, tios, tutores, e à coerção informal,
mas forte, de velhos costumes misóginos, tudo confluía para o mesmo
objetivo: abafar a sexualidade feminina que, ao rebentar as amarras,
ameaçava o equilíbrio doméstico, a segurança do grupo social e a
própria ordem das instituições civis e eclesiásticas.
A alma de Oribela é o que Francisco nunca conseguiu possuir, assim como
não lhe tirou o desejo de voltar pra casa. Em sua última fuga ela vai parar na casa
do mouro que, não entendendo o comportamento daquela mulher, pergunta se essa
70
não amava seu marido, ao que ela prontamente lhe responde: “O que é amar? É ter
a pessoa tão dentro de nós tão fundo e num incomportável grilhão que dela
sentimos marcar a fogo e basta fechar os olhos para ver em si” (D, p.178).
Oribela no seu primeiro contato com o mouro passa a sentir com intensidade
certa atração quando o vê, mas entra em grande conflito ao perceber o que está
sentido; nota-se que todo conflito está atrelado às convenções da Igreja e não aos
laços do matrimônio – Oribela estava traindo Deus e sua fé, e não ao seu esposo:
Mas no escuro de meu coração a vista dele se marcara, que dela me
não podia livrar, fechando as vistas ou abrindo, de temor do blasfemo
de alguma maldita seita, espírito atalaiado, estava ele dentro de mim
ardendo como um feiticeiro, os mais desumanos e cruéis inimigos que
nunca se viu no mundo (D, p.29)
Ximeno é um navegador, homem simples, rústico e independente, que leva
uma vida solitária, pois não tem família ou parentes. Acolhe Oribela após sua última
e frustrada tentativa de fuga, jurando protegê-la da ira do marido. Aos olhos dela ele
é uma fonte inesgotável de conhecimento, sabedor dos mistérios do mundo e
guarda respostas para todas as suas indagações, fazendo-a perceber sua completa
ignorância.
E perguntei se o sonho era verdade ou mentira. O sonho é como uma
estrela sombria, de natureza tenebrosa, um longo inverno, mas onde
se podem avistar coisas admiráveis que nossos olhos abertos não
podem mostrar. E onde ficava o mundo dos sonhos? O mundo dos
sonhos ficava dentro de nós? Isso ele disse não saber, disse não
saber tudo, saber quase nada. E que mais que ele, devia saber eu, por
modo de minha fuça muito curiosa como de um gato. (D, p.173)
Ainda que reduzida e fascinada, a figura do mouro causa-lhe certo temor,
pois Ximeno é muçulmano, mais uma vez algo proibido pela igreja cristã.
Estava a casa do Ximeno escura, os lumes apagados, uma luz de lua
peregrina pintava às avessas o mundo, do escuro ao claro, assim
71
como o sol fizera as sobras fazia a lua as luzes e avistei no catre o
Ximeno adormecido, desnudo de suas vestes, descalçado dos
sapatos, eram seus pés de gente, fosse naquela noite, nas outras não
se sabia. Mas assim o vi. Era tal que atraiu em tudo que em mim e
lhe fui sentir a boca, ele despertou e me tomou em seus braços num
desatino e grandíssimo ímpeto, correndo com as mãos pelo meu
corpo. (D, p.171)
Mas Oribela não entende esse sentimento e deixa transparecer as marcas de
uma vida de repressão ao sentir-se culpada e pecadora por ter amado outro homem
que não o seu marido, ter deitado e se entregado a um mouro:
Um grande pecado que devia eu de dar suplício ao corpo, minha
unhas afiei na parede e raspei a minha pele dela tirando sangue
numas trilhas infernais, sem lágrimas ou gemidos, a pagar com minha
dor a dela e vinha ele a bafejar, ai amor, eu bem vejo o teu coração
dando saltos, ilusão da língua, toques de mãos, união de corações, a
nos saírem pela boca resplendores de fogo e vivia eu disso,
sacramentada ao Ximeno, dele sendo toda possuída, a suspeitar que
era o demo, ele, que me precipitava nos fingimentos, a ungir meu peito
de abismos, a apertar os meus pulsos, lançar aos estímulos carnais,
ah, Deus que me salvasse, a quem podia eu confessar? (D, p.187)
Vemos em Oribela a reconstrução de uma sexualidade que passou por
séculos de opressão e submissão, uma personagem que na ficção remonta a
certeza de que:
Aquelas mulheres hoje são pó, são nada, ao contrário de sua dor, seu
momento de prazer, seu sentir, que nos chegam aos pedaços, mas
com a mesma força da paixão que comoveu, agitou e incitou os
corações a reinventarem a cada situação a velha arte de seduzir
(ARAÚJO, 2007:73)
A dualidade gerada pelo não reconhecer em si mesma os limites de seu corpo
faz com que Oribela viva a ambigüidade de sua própria existência: “Um prazer
perseverante tragando minhas tentações para vencer minhas malícias, inferno
glorioso” (D, p. 179). Percebe-se aqui uma atração incontrolável pelo que lhe fora
72
proibido, o sexo voluntário, o desejo escolhido, o que está inevitavelmente atrelado à
culpa cristã.
Após sua primeira e frustrada tentativa de fuga Oribela sente o maior dos
castigos, superior aos maus tratos e humilhações do padre, ao quase estupro sofrido
na praia quando descoberta “meu assombro e revolta se faziam poucas em frente ao
poder deles, que o segundo veio querer trabalhar sobre mim” (D, p.111). Maior até
que o fato de ter sido amarrada como um animal e levada caminhando acasa
puxada por Francisco “sem olhar atrás os olhos, para ver se eu me arrastava ou
caminhava” (D, p.113). O desmundo para a protagonista começa a solidificar-se.
Oribela de volta a fortaleza dentro da selva, está mais distante do mar e
conseqüentemente das naus que poderia levá-la para casa, ela passa a sentir no
isolamento forçado e imposto seu maior desespero, sua maior dor. Ela se diante
do desmundo. Um lugar estranho, desconhecido e que ela não sabia identificar,
longe dos seus, longe de qualquer coisa que reconhecesse. Francisco “depois de
estar um pouco pensativo alevantou e se foi, mandando a natural que falava em
minha língua tratar dos meus pés”. (D, p.113) Depois de alguns dias no cárcere
pede perdão e liberdade o que prontamente lhe é negado uma vez que “liberdade
em mim era espada na mão de menino e ali fiquei no catre (D, p,113).
O desmundo surge como a única alternativa de vida para Oribela e é nele que
ele percebe que o ser mulher e suas aflições independiam de classe ou raça.
logo uma identificação com as selvagens:
Nesse tempo se deu de minha amizade se encantar por uma natural,
de cor muito baça, bons dentes brancos e miúdos, alegre rosto, pés
pequenos, cabelo aparado e que me falava a língua com a rudeza dos
matos e modos de animais silvestres. (D. p,119)
Um entre-lugar que a envolve e a modifica uma vez que ela percebe-se igual
a Temericô:
Eu pintava o rosto de urucum, comia do prato das naturais e me
desnudava nos dias quentes, deixava os chicos chuparem meus
peitos, dançava, de modo que dona Branca veio baixar umas regras,
antes que virasse eu uma bárbara da selva e me metesse a comer
carne humana. (D, p.127)
73
Presa no ambiente selvagem, a única maneira de sobreviver não aceitando a
realidade que a cerca, é identificando-se com o que lhe é diferente: “E nenhum
coração que vive em paz pode ser verdadeiro, pois, não existe paz, senão de iludir a
si”. (D, p, 135). Uma vida de constante dor e maus tratos começa a atingir sua alma:
“Meu esposo muito me maltrata, põe em tormento, açoite, manteiga quente nos pés,
vive tentado do Demo, mal pode dormir de tanto sofrer as malignidades de sua
alma”. (D, p.166) Oribela passa a perder as esperanças: “Este mundo é um desterro
e nós, estrangeiros”. (D, p.181). Como vimos o romance Desmundo remete-nos à
aspectos da história do Brasil e da condição feminina na época colonial.
3.3. A religião como fonte de controle e domínio no período colonial
A religião é um tema recorrente ao longo de todo o período das invasões
européias, bem como na obra que analisamos. A visão católica do mundo aponta,
muitas vezes, para os comportamentos típicos da imposição, poderio e desmandos
dos eclesiásticos. Oribela faz denúncias de abusos sexuais como mencionado e
todas essas imagens nos fazem reconhecer as óbvias contradições entre o que os
religiosos pregavam e suas práticas. Em Desmundo, quando nos é afirmado que
“por três maneiras chegavam a Deus, pelo amor, pelo temor e pelo trabalho” (D,
p.17), fica claro o quanto o olhar sobre a religiosidade não é nada idealizado,
igualando-a a outras áreas produtivas da vida.
Nunca deixou de haver as celebrações da igreja, fosse à chuva ou
tempestade, fosse calmaria, perto das ilhas, longe delas, em meio ao
mar manso ou bravo, fomos todos criados na santa fé, (...) mas ainda
assim cegados pela turvação e ignorância do pensamento, da mente,
lançados aos perigos temporais, (...) a serviço de Deus uma metade e
a outra a serviço do Diabo. (D, p.17)
74
um grande medo do castigo divino por parte não de Oribela, mas de
muitos dos habitantes do Brasil colônia representados no romance de Miranda, e a
hipérbole seguinte representa a enormidade do medo:
(...) ia o pai mandar muitas setas de fogo, gemidos, chamas de enxofre
que nunca acabam de queimar, tal que o ímpeto de um rio de lágrimas
não poderia apagar. (D, p. 50)
.....
(...) um dia Deus alagaria o velho mundo com as águas do céu em que
se afogaria todo o gênero humano como se matasse uma vaca brava
e a terra ficaria deserta, restando os que tinham vindo ao novo país e
quem aqui fosse o mais forte seria o rei do mundo (D, p.85).
A forte religiosidade dos portugueses e principalmente o poder exercido nas
vidas das pessoas pela igreja católica apostólica romana está bem declarada na
Carta de Pero Vaz de Caminha a El-R D. Manuel sobre o Achamento do Brasil: “Ao
domjngo de pascoela la manhaã detremj nou ocapitam dhir ouuir misa e
preegaçam na quele jlheo. E mandou atodolos capitaães que se corejesem nos
batees e fosem co ele e asy foy feito
7
”. (p.47)
Uma instituição poderosa, capaz de determinar inclusive os destinos pessoais
em nome dos interesses da igreja. Uma igreja dotada de líderes e fiéis dispostos a
fazer de tudo para a revitalização e a expansão da católica, uma vez que
declarada a Reforma Protestante, muito espaço político, territorial e econômico havia
se perdido “pero omjlhor fuito que neela se pode fazer me pareçe que sera saluar
esta jemte e esta deue seer aprincipal semente que vosa alteza em ela deue
lamçar.
8
” (p.81)
Tal visão religiosa da época despertava numa coletividade o o medo,
mas muitas crendices. Os mistérios da terra tão pouco ‘descoberta’ desvendava-
7
Atualização lingüística “Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão de ir ouvir
missa e pregação naquele ilhéu. Mandou a todos os capitães que se aprestassem nos batéis e
fossem com ele. E assim foi feito”. (p.101)
8
Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve
ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar”. (p.118)
75
se enigmática tornando-se comuns superstições, crendices que ressurgem na
recriação da colonial desenvolvida por Ana Miranda:
E naqueles países se vive mais de trezentos anos e sendo muito
felizes, sem dores, nem merencórias, nem angústias de tristezas, nem
fome. homens de cauda, que andam de quatro. [...] por um tipo de
óleo que se esfregavam, semelhando ao podre, a estrume, a gruta e
de quem diziam dar uma febre muito maligna se as fodessem nos dias
de lua (D, p.39).
Que havia o temor de sermos sete, dízimo do diabo, número de filho
asinino, sete adros, sete pedras, desacerto, sangre, que sete órfãs
eram sete cadelas ladrando à lua feito primo d’Isac Nafú, sete cabras
que às almas más das sepulturas demoviam, que vinha o pecado
lamber de noite. (D, p.27)
Isobela, Tareja, Pollonia, Urraca e Bernardinha são as órfãs que
acompanharam Oribela na viagem, enviadas de Portugal ao Brasil com a mesma
finalidade. Conforme as crendices da época, mulheres numa embarcação eram
sinônimo de mau agouro e poderiam trazer desgraça, ainda mais no número de
sete. Por esta razão, Isobela, para proteger suas companheiras e atenuar a
tripulação masculina, atenta contra a própria vida, atirando-se ao mar. Antes, deixa
seu par de sapatos à Oribela, que não dispunha de um.
A religião e conseqüentemente Deus para a Oribela assume a característica
de um ser tirano, que tem como Seu porta voz os homens com poderes de aplicar-
lhe castigos e de sufocar seus desejos pessoais:
Que viera o bispo para acirrar as disputas e com ele trouxera uma
corja de padres famélicos, de feia tirania, nenhuma fé e maquinavam
seus pecados de luxúria com peito insolente. Diziam ser o padre da
nau escória e serem da universidade mas era bom e que havia neste
país uma rocha onde passara são Tomé, que diziam Zomé e ficaram
as marcas de seus pés ali figuradas, para onde ia o povo aos
domingos refrescar. A terra dava uvas, mas as formigas comiam. (D,
p.45)
76
Oribela aparentemente considera as intenções dos religiosos como
interesseiras, egoístas, o que gera na protagonista e, pelo seu olhar, em todos os
que viviam sob a égide dessa casta religiosa, constantes contradições entre o querer
e o fazer, entre o sonhar e o pecar. Além disso, essa era uma leitura fechada de
religiosidade, onde não havia espaço para qualquer outra opção ou prática, quer por
parte dos nativos, quer de outros povos. Logo abaixo temos uma citação de
Desmundo referente a como se comportavam os tementes da fé católica para com
os de outras religiões, e em específico Ximeno Dias, o mouro:
Convertidos por Mafamede, cegos e bestiais, pondo sua crença em
ser a virtude o deleite da carne, a vingança contra os inimigos, a
valentia e ter cada homem mulheres entre esposas, amantes,
varredeiras, escravas e embostadoras. A mentira vem do pai da
mentira. E diziam haver reinos e reinos só de mouros em muitos
países, onde viviam eles em seus costumeiros pecados. Do mouro
corri as vistas para fora, a modo de não agasalhar em minha
lembrança a efígie de uma alma parida pelo Maomé. (D, p.29)
Ironicamente era o mouro, o dito “filho do demo”, que detinha a maior
consciência religiosa da vila. Homem que não exercia poderes religiosos, mas que
vivia uma religião fervorosa e voltada para uma busca e um encontro com o Criador,
um homem sem superstições, ou mandingas, feitiçarias, ocultismos, e toda prática
mundana, comuns à época:
Não existiam nem homens com patas de cabra, nem sereias que
encantassem, nem orelhas que iam até o chão, nem éguas prenhadas
pelo vento, nem pedras que viravam fumo aos raios da lua, nem gente
com duas línguas, uma perguntando e outra respondendo, nem ilhas
de mulheres sem homens, embora houvesse algumas de homens sem
mulheres, nem figueiras que davam laranjas, que o mundo e a
natureza eram de uma ordem perfeita, tudo fora designado por um
criador e tudo se parecia, embora nada fosse igual e que todos os
homens de todos os países eram filhos do mesmo pai. (D, p.171)
Podemos ver, pela voz da narradora, a compreensão que o mouro tinha de
Deus, um Deus que não existia para Oribela, uma vez que assim fora ensinada e
dogmatizada: “Assim meu peito tremeu, de ter entendido estar ele me querendo
77
converter ao catecismo de sua maldita seita e tapei os meus ouvidos, ao que ele se
calou arrependido” (D, p.171).
3.4 O BRASIL EM DESMUNDO: UMA TERRA, UM POVO
Não pode minha consciência aprovar as desculpas que se buscam
para capturar os Brasis, porque nunca se achou pai no Brasil que
vendesse filho verdadeiro, porque os amam grandissimamente. Os
que dizem que se vendem a si mesmos, fazem-no ou porque não
entendem que coisa é vender a liberdade, ou são induzidos com
mentiras e enganos e às vezes com muitos açoites, e assim os
pobres, achando-se alcançados, fogem e querem ir morrer por estes
matos, antes de sofrer tão grave cativeiro à mão de tais inimigos.
(Manoel da Nóbrega)
Na segunda parte do romance, intitulada “A terra”, Oribela narra os seus
primeiros dias nas terras do Brasil, dias que antecedem o seu casamento. Ela é
alojada juntamente com as outras em “uma casa de moças do gentio paridas ou
também órfãs, de padres, nos levaram” (...) (D, p.41). E já na travessia da baía até a
casa de hospedagem, a jovem observa e nos narra, sobre o povo, sobre a terra,
sobre costumes de uma nação, um recontar sob o ponto de vista da adolescente. Ao
mesmo tempo em que percebe que também, ela e as outra moças, são observadas
pelo povo da terra: “de umas frestas das janelas se viam sombras de gente nos
espreitando, deviam ser as mulheres do lugar, tivessem birra de nós, de trás da
casa, ó sol, feito umas galinhas chocas” (D, p.35). Fala irônica da personagem que
sente, por ser branca ou recém chegada da corte, ares de superioridade dada a sua
civilidade, algo que será desmistificado logo nos seus primeiros dias na colônia.
Oribela logo percebe que as órfãs eram tal quais as mulheres daquela terra. A
aproximação se dá aos poucos:
Filhas dos demos, mas os olhos que se punham em nós destarte,
neste país, não eram mais vazios, avistavam curiosos e as gentes até
queriam saber nossos nomes, feito agora fôssemos de carne e alma,
humanas. (D, p.42)
78
As jovens tão esperadas haviam finalmente chegado, e cabe a nós destacar a
narração que se segue, pois se trata de algo raro em toda a narrativa, que é o fato
de Oribela sentir-se bem por estar naquela terra - é o olhar de uma mulher que vivia
sob jugos, um olhar diferenciado e raro para as condições que ela mesma se coloca:
Celebrei em segredo a cegueira daqueles homens tão precisados, por
dentro de mim sentia uma ninfa, falada no pregão feito fidalga, bofé,
adeus à condição pesada e dura, um altivo coração me vinha, a eu ser
um aljôfar que nas conchas nasce, meu orgulho despejado, que havia
dentro de cada uma de nós, desfeita que fosse, um coração que lhe no
peito não cabia e se fogo no coração, água nos olhos. Apenas
mulheres, órfãs, podres, mas tratadas como as italianas, as de pura
pele e claros olhos e sem buços, que cheiravam como flores e
brilhavam como o raio do sol, rainhas do purgatório, deusas dos
infernos, cassandras dos desterros, flores de desertos. (D, p.42)
O sentimento de superioridade sentido por Oribela no instante em que se
sente desejada, na verdade, soa como uma tentativa de esquecer ou simplesmente
ocultar a sua condição de menina órfã, sem ninguém que dela tomasse conta ou a
protegesse. Essa esfera fantasiosa, embora a necessidade daqueles homens de
mulheres brancas fosse algo notório, logo se desfaz. Oribela é mulher e, portanto
sujeito subordinado aos desmandos do poder patriarcal.
Quanto às edificações, temos a baía, que servia de porto, pequenas
habitações, ruas estreitas, pequenas fortificações, capelas e igrejas em construções,
casas de taipa e barro: “capelas nos topos ainda sem torres nem sinos, (...) Numas
moradias de pedra e outras casas a serviço do rei, bem cerradas as portas” (D,
p.35):
Casas se erguiam por escravos que pilavam nos pilões a taipa
feito taipeiros, arrastavam pedras, batiam martelos (...). A
cidade sem ter divisa de antiguidade, como que em ruínas,
fosse velho o lugar, ficava por trás de umas palmeiras de frutos
verdes, tâmaras, parreiras, laranjais em flor, nela espalhados
cheiros de bom odor desvestido e defumado de seu mau fedor,
assim como ver de olhos tonteados pelo mar é qual a bebedice
do amor e seus pecados e beberagens que embebedam e
todas as coisas nos parecem boas. Ao longe umas searas
79
como de trigo e umas fumaças saindo de bocas de chaminés
na mata. Currais. (D, p.35)
Portanto, aqui se vê, à primeira vista, um mundo que se faz, que se constrói.
Tudo está em processo, mas parecendo decadente, antigo. É o início da
colonização, do fincamento das primeiras estacas da dita civilização naquela terra
selvagem.
Comportamentos e trocas comuns na relação metrópole e colônia são
descritos, tais como o pagamento de impostos e tributos sobre o açúcar e o
movimento de bens da terra sendo levados:
Assinalaram aos naturais que embarcassem o açúcar, o que fizeram.
[...] E se a soma do açúcar era de mais de mil caixas. [...] E se
carregarão os quintos do rei. Iam gatos, papagaios e uns bugios
pequenos, no mais, se não havia especiarias, liberdade e franquia
para todos. (D, p.38).
Oribela descreve também práticas sociais da colônia, as quais lhe são
totalmente estranhas, que estão imersas em um mundo selvagem, de uma
selvageria diferente da que ela jamais sonhara:
Qué aqui? Umas povoações não fortificadas, não podendo resistir a
afrontas, vivendo os moradores tão atemorizados que deixavam suas
coisas metidas em sacos para correrem ao mato à vista de qualquer
vela, ou para o mar ao grito de um bugre. (D, p.19)
A subordinação da colônia à coroa portuguesa é descrita de forma jocosa:
“Distante era este país, nem sabiam estar morto ou vivo o rei, mas diziam ser aqui
terra de Sua Alteza, a seus reais pés estivesse e amássemos” (D, p.48). Além disso,
a jovem também se sente estranha e tenta entender o tipo de pessoas que vinham
da Metrópole para o Brasil:
80
Do que haviam trazido, que gente vinha, donde vinha e quantas eram
as pessoas passageiras e as que ia ficar, veio o meirinho saber, [...]
eram ladrões, chatins cobiçosos [...] almas penadas e os que queriam
forçar as mulheres com desonestidade, matar, saquear casas (D, p.22)
A população para transportada é apresentada de forma a não valorizar
qualquer passado, como sujeitos sem ética, sem princípios, quase tão selvagens
quanto os selvagens da nova terra. Muitos são os referencias que nos norteiam a
compreendermos, pelos olhos de Oribela, quem foram os primeiros habitantes
estrangeiros do Brasil, inclusive suas hierarquias de poder:
para mandara a coroa suas armadas, o galeão Velho e outros
mercantes, governador-geral, ouvidor-geral e ajudadores, provedor-
mor, alcaide-mor e mandara mil homens de peleja, mil cavalos, mil
vacas de leite, casados e suas mulheres e filhos, mancebos, forçados,
cafres, uma escrava moura que muito bem casou, fidalgos e tantas
coisas, quatro galeotas armadas e grossa artilharia para enfrentar os
corsários e os bárbaros da terra, que os franceses semeavam entre os
bárbaros suas heresias da Alemania, as de Calvino que recebia
meninos do gentio que iam ser mestres da tais heresias entre seu
povo e que os franceses se iam confederam com o Turco prometendo
lhe dar esta terra para aqui fazerem suas naus com a madeira daqui e
que viviam os índios ladrando, atirando suas flechas e vinham os
padres da Companhia para fazer sod bárbaros cristãos e lhes mostrar
as entranhas do amor. Muita força do braço e algum deleito. Disso fora
feita esta cidade. (...) Quantos iam ficar no Brasil? Os que fossem ficar
submetessem suas vidas a Deus, suas almas aos padres, sua sorte ao
vento e sua mercadorias ao governado. (D, p.48)
Destacamos no trecho acima a referência relatada, por Oribela, do fato que
foi a tentativa de uma influência francesa, ao que historicamente conhecemos pela
tentativa fracassada de se fundar uma colônia no Rio de Janeiro, chamada de
França-antártica (1555 1560), movimento liderado por Nicolas Durand de
Villegagnon, além da menção aos catorze calvinistas que vêm ao Brasil, dentre eles
o mais notável na história nacional, que é o sapateiro Jean de Léry.
Verdade é que em pouco mais de cinqüenta anos, os nativos mesmo com a
chegada dos portugueses e dos padres, pareciam não ter mudado seus velhos
81
hábitos de selvagens: “Por que andavam nus?” (D, p.40). Oribela sente o mesmo
encanto que Caminha. O encanto com que o escrivão narra com surpresa e sem
malícia a nudez das mulheres:
E huua daquelas moças era toda timta defumdo acjma daquela timtura
aqual certo era ta bem feita e tam rredeonda e sua vergonha que ela
tijnha tam graciosa que amujtas molheres de nossa trra vendolhe
taaes feições fezera vergonha por nun teerem asua comeela. (p.45)
9
A voz de Oribela parece aqui ecoar a de Caminha, falando das mesmas
sensações e surpresas daquele,
Por meus brios e horrores, não despreguei os olhares das naturais,
sem defeitos de natureza que lhes pudessem pôr e os cabelos da
cabeça como se forrados de martas, não pude deixar de levar o olhar
a suas vergonhas em cima, como embaixo, sabendo ser assim
também eu, era como fora eu desnudada, aver em um espelho. (D,
p.39)
Contudo, a visão da jovem surge ambígua, ora se assemelhando com a do
escrivão da esquadra que primeiro nessas terras aportou, ora identificando-se com a
nudez observada, e consequentemente, sentindo certa aproximação em relação
àquelas. É por vê-las nuas que Oribela aproxima-se das naturais. Uma semelhança
que surge como um reflexo, apesar de todas as diferenças imagináveis entre índias
da época e jovens portuguesas.
9
E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem feita e tão redonda,
e sua vergonha que Lea não tinha, tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições,
fizera vergonha, por não terem a sua como ela.
82
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
(...) as narrativas históricas. Elas conseguem dar sentido a conjuntos
de acontecimentos passados, além e acima de qualquer compreensão
que forneçam, recorrendo a supostas leis causais, mediante a
expploração das similaridades metafóricas entre os conjuntos de
acontecimentos reais e as estruturas convencionais das nossas
ficções. (WHITE, 2001:108)
Nós, sujeitos sociais, gostamos sempre de uma boa história; vivemos
contando-as, escutando-as. Elas fazem parte da nossa vida, do nosso cotidiano, dos
nossos sonhos. As histórias são parte inerente à vida humana, seres esses que
sentem necessidade de ouvir e relatar, não os fatos, mas também aquilo que
permeia a imaginação.
Onde quer que estejamos estamos envoltos por histórias; são os nossos
filhos que as contam, quando chegam da escola, em intermináveis descrições de
suas brincadeiras ou brigas com colegas, são os boatos de uma traição da vizinha
com o mecânico, são os políticos envolvidos em mais um escândalo, é o que
aconteceu no final de semana. sempre o relato, seja de coisas pequenas fatos
de um cotidiano que aparecem fúteis e dispensáveis ou os grandes fatos
estes que mudam uma economia ou a forma de governo de toda uma nação. A
narrativa, a arte de contar o que acontece, faz parte da vida do ser humano e marca
sua existência, dando significado a essa.
Como seres imersos em culturas específicas, mas que dialogam com outras.
Somos muitas vezes levados a refletir sobre o que realmente aconteceu, naquele
dia, naquela época, naquele evento. Sabemos que tais respostas não são simples,
seja qual for a temática, pois nem sempre se documentam, se registram os fatos
exatamente como aconteceram ou esses são registrados apenas por um olhar. O
certo é que sabemos aquilo que nos dizem e da forma como nos contam o
ocorrido.
Vimos que a história oficial é seletiva, ocupada muitas vezes exclusivamente
com os grandes eventos, com os grandes homens, selecionando, ou melhor,
excluindo outros que fazem também parte da mesma história, estando apenas do
outro lado, nos bastidores, nas margens, podendo visualizar uma situação
83
totalmente diferente a partir de suas posições diferenciadas. Na verdade, é sabido
que para criar uma homogeneidade, uma sensação de pertencimento, as
sociedades criam histórias comuns e as legitimam através de relatos constantes.
O talento humano de criar, de recriar, de adaptar algo também se manifesta
através da reescritura de eventos e momentos, através da ficção, enfim, é nesses
novos contares que a História realmente se aproxima de s, pois não temos
apenas o que narrado de um rei, de um ditador, de um herói de guerra, mas sim, a
vida relatada de e por sujeitos comuns, por pessoas simples, ou simplesmente por
sujeitos que têm um olhar divergente sobre tudo que nos foi informado como versão
única. Foi nesse caminho e com essa curiosidade que nos aproximamos, ao longo
desse trabalho, do romance Desmundo.
4.1 APONTAMENTOS FINAIS
Desde os primeiro momentos em que tivemos contato, inicialmente através do
filme e, depois, pela leitura do romance, sucessivas formas de narrar que nos
aproximaram desse enredo, enxergamos na obra de Ana Miranda não só um terreno
fértil para a leitura e a investigação, mas, sobretudo para a análise do diálogo entre
a literatura e a história. Foi exatamente isso que encontramos mas não apenas
isso Desmundo não busca questionar as verdades históricas, nem modificá-las, e
sim, surge como uma contribuição para alimentar a questão da busca da identidade
nacional ao longo dos tempos algo que vem do passado e se estende até o
momento presente, sendo a imaginação parte estrutural de tal compreensão.
Dessa forma, pudemos conhecer um pouco mais sobre a(s) história(s)
(inclusive a tida como oficial) do país – que a autora, em alguns casos, faz
questão de nos levar ao Brasil colônia, utilizando documentos históricos
reconhecidos: a carta do padre Manoel da Nóbrega, por exemplo, citando e incluindo
em seu livro ficcional personagens reais, demonstrando extensa pesquisa lingüística
da época.
Por meio da sensível narrativa da protagonista, confrontamos a visão
idealizada da descoberta e povoação do “novo mundo” com as vicissitudes daqueles
que aqui chegavam e se deparavam com uma diferente visão do paraíso prometido,
84
presente no inconsciente da civilização dominante ao longo das relações Império x
Colônia. Voltamos ao Brasil do período colonial, utopia do desconhecido, que
permeou o imaginário dos europeus, gerando grandes fantasias desde os primeiros
relatos de Caminha, entre os de outros cronistas e viajantes.
Um novo mundo, um novo Éden, o paraíso perdido. E é que se configura o
antagonismo de um mundo que, para Oribela de Mendo Curvo, não passava de um
desmundo, uma “distopia”, um lugar que não era, nem de longe, o que havia
imaginado e idealizado. Os selvagens, se no primeiro momento lembravam pureza
ou ingenuidade, aos olhos de Oribela crescem como contaminados pelo mundo
colonial viciado, perdendo seu exotismo natural, até mesmo a fauna e a flora sendo
desidealizadas.
O desmundo, mostrado sob a perspectiva da experiência feminina de Oribela,
é, segundo Simone Schmidt (2004: 200), “uma espécie de contra-visão do paraíso,
ou seja, desconstrói através das experiências de violência, desamparo e
desigualdade narradas por Oribela – a visão paradisíaca do novo mundo”. Em
Desmundo, o “novo mundosurge como um ambiente hostil, como a sombra do
paraíso das Américas, um lugar que exclui e oprime uma grande parte da população
e, como vimos no romance, principalmente daqueles a quem supostamente acolhe.
O Brasil desconstruído é visto como um lugar diferente do esperado não apenas por
Oribela, membro daquele grupo de colonizadores, mas por vários conquistadores,
religiosos e até mesmo para os nativos, expostos a um ambiente que, através de
relações de poder e exploração, implícitas no mundo colonial, destroem expectativas
de mudanças positivas.
Vimos, através da leitura desse romance, uma voz feminina que narra sua
experiência de exílio, exílio que, segundo Said (2003:54), é um “termo (...) que traz
consigo um toque de solidão e espiritualidade”, e que, de acordo com Schmidt
(2004: 198),
[É] vivenciado como desterritorialização, perda, mas também como
exclusão, ou seja, como condição de quem perde pouco porque quase
nada tem a perder. Porque o que marca, em primeiro lugar, a condição
das moças órfãs que desembarcaram na terra nova é a ausência de
todo o direito, de qualquer posse ou vontade sua.
85
Oribela externa, numa narrativa coberta de sofrimento, a certeza de que
quando embarcara naquele navio, tendo lhe sido imposto aquele destino, a total falta
de opção e escolha a que teve de se submeter juntamente com as outras virgens. O
exílio não é de sua terra natal “onde florescem amendoeiras a perder de vista e
entre elas as oliveiras” (D, p.52); é, sim, um exílio do próprio ser, que não exerce
poder sobre si, pois está entregue aos mandos dos homens:
Angústia, paixão, merencória, suor, arre lá, uxte morena, darmos
nossa mão e se gabarem de nós, nosso corpo emagrecido, em mau
estado, nossa alma tinhosa perdida em labirintos, a armar pelejas
pelas bocas e pelos ouvidos, nossas unhas sujas, carnes para serem
gastadas, umas tristezas escondidas, ciúmes e inveja, enganos, este
era o nosso enxoval. (D, p.24)
O fato de ser branca, algo raro no território colonial, conferiu à Oribela a
“benção” do casamento, algo que, mesmo contra sua vontade, acaba lhe dando um
lugar, conforme Schmidt (2004), “de destaque social, de arremedo”: “Que
ajuntassem os da mão direita com as da mão esquerda, fossem em suas vidas,
jazeados de caridade, pasmados da majestade do matrimônio divino. A fazer filhos
abençoados de alvura na pele” (D, p.73). O que se depreende de tal trecho é a
subordinação do gênero à raça. A personagem, mesmo branca, encontra-se no
desmundo, sujeita a situações impostas que estão ligadas ao seu papel de mulher.
O único destaque do qual pode gozar é o de ser esposa, não importa de quem, de
alguém (um português) que lhe teto, comida, e o que deve fazer em troca é dar
seu corpo e, se possível, filhos brancos. Se não fosse pela preocupação tão forte
com a mestiçagem, e com a degradação da “raça”, talvez nunca virgens brancas
teriam vindo para o Brasil colônia, que para a mera procriação as indígenas e/ou
africanas serviriam. Contudo, na mentalidade européia da época, garantir prole de
aspecto diferente dos nativos seria fundamental, algo que implicaria na manutenção
dos direitos e poderes dos europeus.
86
4.2 E, POR FIM...
De fato, uma das funções da ficção histórica parece ter sido o preenchimento
das lacunas deixadas forçosamente pelo discurso histórico. Os textos que assumem
e que chamam para si o papel de trazer à tona histórias e mais histórias imaginadas
ou possíveis dos fatos demonstra um quê de coragem ao repensar o passado por
outros prismas. A leitura de um romance como Desmundo permite ao leitor
conhecer, ou reconhecer, um momento fundamental da história do Brasil; mas tal
reconhecimento se de maneira crítica e reflexiva. É como aprender um pouco
mais da história e, ao mesmo tempo, questionar aquilo que saamos sobre ela,
olhando para um passado nem tão afastado, que a ficção nos proporciona uma
possibilidade de ver mais intimamente o passado recriado, através de personagens
e enredos que nos envolvem e com os quais nos identificamos.
Sabemos que cada romance é passível de análises diversas, cada uma
segundo a abordagem pretendida, e também que, sob novas óticas, é possível
direcionar vários pontos sugestivos e consistentes de um texto ou contexto. A partir
do momento em que os estudiosos da literatura se debruçam sobre importantes
acontecimentos históricos do Brasil, resgatam não alguns noveis da história do
país, mas também outros subtópicos podem surgir e crescer aos olhos do/a leitor/a.
Esses(as) têm a oportunidade de ter acesso e de conhecer melhor esta história – ou
o que dela ainda não se conhecia, pois não fora relatado ou fora simplesmente
omitido e pensar suas origens e os caminhos que nos trouxeram até o momento
presente.
Ao estudioso da literatura o romance de Ana Miranda oferece um diálogo que
se estabelece entre o discurso literário e o discurso histórico, assim como suscita
perguntas do tipo: por que a literatura se aproxima tão frequentemente da história?
Até que ponto um discurso interfere no outro? Acreditamos que essas perguntas, se
não foram respondidas aqui, foram ao menos discutidas e estudadas, devendo
ecoar para além do que pudemos produzir nesse momento.
Outro enriquecimento que nos ficou da produção deste trabalho foi o contato
com a obra de uma escritora ainda não muito conhecida do blico leitor, mas que
vem apresentando um conjunto de romances e contos importantes no panorama
atual da literatura brasileira. Acreditamos, dessa forma, colaborar com a ampliação
87
do que se entende por literatura brasileira na atualidade. Ana Miranda vem tendo
sua obra mais e mais estudada por alguns teóricos da literatura, principalmente
desde o lançamento de seu primeiro romance, Boca do inferno, o que legitima nossa
afirmação.
Acreditamos que um dos maiores desafios que Miranda nos apresenta é
narrar o mundo colonial sob o ponto de vista de uma mulher, o que representaria
uma ruptura com os paradigmas de representação da história da época. Oribela
narra os fatos, acrescentando a eles seus questionamentos, suas dúvidas, suas
expectativas, suas discordâncias. É por meio de suas interferências que o leitor é
levado a questionar a história de nossas origens enquanto nação, e dos que fizeram
parte dessa história, buscando uma melhor compreensão dos fatos de nosso
passado. A voz feminina, portanto, tem claras marcas do discurso que questiona
convenções. Talvez Oribela não pudesse contar a história dessa forma (ou não seria
ouvida) caso não tivéssemos vivenciado tantas mudanças e conquistas feministas.
Ainda que Miranda não tenha compromissos com o feminismo, sua protagonista
traduz uma jovem questionadora, que hoje, nesse novo século, consegue
expressar seu deslocamento dentro do mundo colonial e patriarcal.
Finalmente, vale fazer menção a tantas narrativas da história que não foram
contadas, que foram omitidas, suprimidas ou alteradas; que somente através de
outros discursos e formas de acesso, tais como a ficção, podem ressurgir com
grande carga de verossimilhança, indicando possibilidades de revisão e
identificação. Desmundo, ao trazer os primeiros anos do Brasil colônia à baila, se
propõe a mudar (mudança ligada à um novo olhar e não ao de se rasgar o que foi
dito) a história contada, ano após ano, em livros escolares ou por professores
ligados a instituições desse país. Sua narrativa de ficção apenas dá voz e alma a
histórias que poderiam ter embasado, confirmando ou questionando, o que
aprendemos a identificar como parte de nossa identidade cultural. Esperamos, com
nosso estudo, ter colaborado com a ampla discussão sobre identidade e produção
cultural, que são o foco da linha de pesquisa em que nosso trabalho se insere dentro
do Programa de Pós-graduação em Letras. Com certeza, Oribela, como protagonista
do romance, ainda merecerá várias análises, sob diferentes enfoques, a fim de
desvendar a riqueza que a personagem traz ao romance e à temática trabalhada,
que temos certeza não estar esgotada após nossa contribuição. A desfeitura do
Brasil colonial, contudo, ficou certamente mais visível ao longo do Desmundo de
88
Miranda; esperamos ter colaborado para que essa desconstrução permita que
construções outras do Brasil também venham cada vez mais à tona.
89
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