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CÍCERO FÉLIX DE SOUSA
A invenção da verdade
As estratégias discursivas do
Correio da Paraíba nas eleições de 2006
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras do Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal da Paraíba, como
exigência para obtenção do grau de mestre.
Orientadora: Profª Drª Maria Angélica de Oliveira
João Pessoa, Paraíba (PB)
Março de 2008
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
A invenção da verdade
As estratégias discursivas do
Correio da Paraíba nas eleições de 2006
Mestrando: Cícero Félix
Orientadora: Profª Drª Maria Angélica de Oliveira
João Pessoa, Paraíba (PB)
Março, 2008
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CÍCERO FÉLIX DE SOUSA
A invenção da verdade
As estratégias discursivas do
Correio da Paraíba nas eleições de 2006
Banca examinadora:
__________________________________________________
Profª Drª Maria Angélica de Oliveira (orientadora)
__________________________________________________
Profª Drª Ivone Tavares Lucena (examinadora interna)
__________________________________________________
Profº Drº Luiz Custódio (examinador externo)
__________________________________________________
Profª Drª Mônica Nóbrega (suplente)
Dedicatória
Aos meus filhos.
Eu continuarei neles...
Agradecimentos
Gostaria de citar aqui todos os nomes,
lembrar de todos os rostos.
Fazer uma exposição da paciência
e compreensão que tiveram comigo
durante esse percurso que se interromperá, adiante,
com um ponto a ser continuado, espalhado, esquecido e talvez recuperado.
Ainda assim, esqueceria do faminto que desmanchou o lixo,
guardou alguns restos no bolso, sorriu
e acenou-me com um olhar de esperança num alvorecer melancólico.
Obrigado a todos...
Resumo
“A invenção da verdade” analisa articulações discursivas do jornal Correio da Paraíba
publicadas entre dezembro de 2005 e outubro de 2006. O objetivo é investigar como o
jornal se predispõe, no período eleitoral, sobretudo a partir de discursos autorizados, a
construir sentidos que beneficiem um candidato em detrimento de outro. A análise parte
de dois pressupostos teóricos: jornalismo e Análise do Discurso (AD) de linha francesa.
Os fundamentos jornalísticos que “garantem” objetividade e neutralidade na produção e
divulgação da notícia; e as premissas da AD de que não existe neutralidade na
linguagem e que as verdades são transitórias, compõem os principais dispositivos
teóricos desta análise. Sob a luz dessas epistemologias, verificou-se que o Correio da
Paraíba articulou estrategicamente o discurso para mostrar, pelas pesquisas, que o
candidato da oposição (Maranhão) era imbatível e que o candidato à reeleição (Cássio)
era um administrador apático e negligente e, ainda, atrelou reivindicações parlamentares
feitas pelo dono do jornal no lugar de senador da República à campanha do candidato
Maranhão. Com isso, a análise constatou que o Correio da Paraíba produziu sentidos
estrategicamente articulados para predispor o leitor-eleitor a acreditar em suas
“verdades”.
Palavras-chave: mídia, discurso, verdade, sentidos e eleição
Abstract
“The invention of the truth” analyses discursive articulation of Correio da Paraíba news,
published between december of 2005 and october of 2006. The objective is to
investigate how the news predisposes, in the electoral period, especially from authorized
speeches, to build senses which benefits one candidate in expense of the other. The
analysis starts form two theoric presuppositions: Journalism and Speech Analysis (SA)
of French line. The journalistic fundaments which guarantee objectivity and neutrality
in the production and divulgation of the news; and the premises of the SA that there
isn’t neutrality in the language and that the truths are transitional, composes the
principals theoric devices of this analysis. Under the light of this epistemology, was
found that the Correio da Paraíba strategically articulate the speech to show, by
research, that the opposition candidate (Maranhão) was unbeatable and the reelection
candidate (Cássio) was one apathetic administrator and negligent and, still, tied up
parliamentary claims made by the news’ owner in place of Republic Senator to the
Maranhão candidate campaign. With it, the analysis found that Correio da Paraíba
produced senses strategically articulated to predispose the reader-elector to believe in its
“truths”.
Keywords: media, speech, truth, senses and election.
8
Sumário
No princípio... continua o discurso ................................................................................... 9
1 ...................................................................................................................................... 12
Ser imparcial é ser parcial .............................................................................................. 12
1.1 Nos fios da história ............................................................................................... 15
1.2 Modelos e técnicas com sotaque estrangeiro ........................................................ 19
1.3 Objetividade e neutralidade: os fins justificam os meios ..................................... 27
1.4 Jornalismo acima de qualquer suspeita ................................................................ 31
2 ...................................................................................................................................... 41
Além das palavras ........................................................................................................... 41
2.1 A ordem é controlar o discurso ............................................................................ 43
2.2 E assim se fez o sujeito, consentido ..................................................................... 54
2.3 E assim se fez o sujeito, com sentido ................................................................... 59
2.4 O poder da verdade e a verdade do poder ............................................................ 66
3 ...................................................................................................................................... 73
A invenção da verdade ................................................................................................... 73
3.1 A vontade de um perfil ......................................................................................... 74
3.2 Estratégias de sedução .......................................................................................... 78
3.3 Pesquisa versus tempo .......................................................................................... 84
3.4 Além das pesquisas ............................................................................................... 95
Considerações ............................................................................................................... 111
Bibliografia ................................................................................................................... 114
Anexos .......................................................................................................................... 117
9
No princípio... continua o discurso
Costuma-se dizer que existe pelo menos um bom
motivo para se estudar Economia: não ser
enganado por economistas. Esse conselho vale
para os leitores: é bom conhecer jornalismo para,
pelo menos, não ser iludido pela imprensa. Aliás,
ninguém desconfia mais do que lê nos jornais do
que os próprios jornalistas, imaginando o que
pode estar por trás de cada notícia.
(“As armadilhas do poder, Bastidores da imprensa”, de
Gilberto Dimenstein)
Em “Como se faz análise de conjuntura”, o sociólogo e cientista político Herbert
de Souza alerta: não basta estar com a leitura dos jornais para entender o que está
ocorrendo em sua volta. É fundamental identificar os ingredientes, os atores e os
interesses em jogo para se tomar decisões baseadas em avaliações da situação, vistas
sob a ótica do interesse ou necessidade. Precipitar-se sobre uma notícia/informação
jornalística é um risco. A linguagem é opaca. É preciso, sobretudo, identificar em uma
rede de enunciados e dispersão de discursos, uma regularidade temática, um
emaranhado de correlações que, a partir de determinadas condições e contexto, tenham
possibilitado a emergência de determinados discursos. Os sentidos vão além da
materialidade lingüística e da pretensa imparcialidade dos jornais.
Numa época em que a informação virou moeda corrente na comunicação, o
sujeito fervilha movido pela velocidade metaforizada por um tempo reinventado para o
âmbito competitivo, onde só os vencedores permanecem de pé e os sonhos e as
esperanças convivem com a miséria, a violência, a instauração de novas doenças,
controles, regulamentações e desequilíbrios. Estar bem informado, atento aos
acontecimentos e às transformações sociais, aos avanços tecnológicos e
desenvolvimentos científicos é, sem dúvida, um diferencial nesta competição social.
Recorrer à mídia virou obrigação. Por ela circula um turbilhão de informação sobre a
vida, o homem, o mundo. A questão é: “Com que grau de confiabilidade devemos nos
debruçar sobre ela sabendo que a linguagem não é transparente e a lógica do mercado se
sobrepõe à lógica da informação?”.
10
A partir desse questionamento, decidimos analisar o Correio da Paraíba (sujeito-
CP). Jornal paraibano com maior tiragem diária, sobretudo aos domingos com o
acréscimo dos assinantes de fim de semana, o Correio da Paraíba circula todos os dias e
em todas as regiões do Estado. Com o objetivo de investigar como o jornal articula o
discurso nos enunciados das capas para construir sentidos no decorrer dos onze meses
que antecederam as eleições de 2006, levantamos as seguintes hipóteses: a) através de
discursos autorizados de institutos de pesquisa o Correio da Paraíba ratifica sua vontade
de verdade; b) as estratégias discursivas adotadas pelo jornal constituem sentidos para
afetar as pesquisas de intenção de voto; e, c) o Correio da Paraíba beneficia com sua
discursivização o sujeito-candidato-oposição (Maranhão) em detrimento do sujeito-
candidato-à-reeleição (Cássio).
Para realizar esta investigação dividimos nosso trabalho em três capítulos. Nos
dois primeiros apresentamos os principais conceitos teóricos e, no último, a análise de
39 jornais e uma revista.
No capítulo um (“Ser imparcial é ser parcial”), recuperamos os fundamentos
técnicos e teóricos, importados e adotados pelo jornalismo impresso brasileiro em
meados do século XX, que tinham por fim garantir a objetividade e neutralidade na
produção e divulgação de notícias. O lide e a pirâmide invertida, oriundos dos padrões
americanos e em voga até hoje, estabeleceram a base para consolidar a pretensa
imparcialidade do jornalismo que, pressupondo apenas refletir a realidade, credenciou
sua legitimidade social. No entanto, a transformação da notícia em mercadoria e o
desenvolvimento da imprensa em meio às relações de poder acabaram afetando seus
princípios de autonomia e ética profissional. Autores como Traquina, Sodré, Pena e
Hernandes dão suporte às abordagens teóricas e fornecem uma visão crítica da imprensa
na sociedade.
Os pressupostos teóricos da Análise do Discurso (AD) de linha francesa são
abordados no capítulo dois (“Além das palavras”). A AD surgiu na França nos anos
1960 e teve como marco inaugural a publicação do livro “Analyse Authomatique du
Discours”, de Michel Pêcheux, em 1969. Para a AD, não existe neutralidade na
linguagem, no discurso. Ponte entre o homem e a realidade, o discurso é o efeito de
sentidos em ação entre locutores, sujeitos sociais afetados pela língua, história,
condições de existência e de enunciação, movidos pela transitoriedade das verdades e
pela vigilância social estabelecida pelo discurso. O sujeito, para a AD, não é o empírico,
o individual, mas o ser social, que ocupa lugares vazios determinados pela sociedade.
11
Foucault, Bakhtin, Pêcheux, Charaudeau e Maingueneau compõem os principais
fundamentos das teorias sobre o discurso e a constituição do sujeito.
A análise, no último capítulo (“A invenção da verdade”), desenvolve-se sobre
três recortes que obedeceram ao critério de apresentar: a) enunciados oficiais; b)
pesquisas para Governo do Estado; e, c) enunciados que estabelecessem relações
(explícitas ou implícitas) entre o sujeito-candidato-oposição e o sujeito-candidato-à-
reeleição. Isto posto, dividimos a análise em cinco etapas. Na primeira, definimos o
ethos do sujeito-CP através de sua enunciação institucional, a exemplo do slogan
“Correio. A verdade em suas mãos” e do texto publicitário “Governantes passam.
Fica o nosso compromisso com a verdade”.
Na etapa seguinte analisamos as estratégias jornalísticas de arrebatação,
sustentação e fidelidade discursiva para seduzir o sujeito-leitor-eleitor e ratificar seu
ethos de ética e sinceridade. Na terceira etapa, no detemos em marcas significativas dos
enunciados da capa que, através da fala autorizada de institutos de pesquisa,
predispunham o sujeito-leitor-eleitor a acreditar na condição imbatível do sujeito-
candidato-oposição. Além das pesquisas contratadas pelo sujeito-CP ao Instituto
Consult (de 11, apenas seis foram publicadas), outras, realizadas inclusive por outros
meios de comunicação, veicularam em várias edições do jornal.
Na quarta etapa recortamos uma série de enunciados de capa e um texto no
interior do jornal e avaliamos como a imagem administrativa do governo atual,
personificada no candidato à reeleição Cássio, é construída a partir de discussões em
torno de reivindicações salariais dos servidores da educação e da segurança. Na última
etapa, acompanhamos o discurso de Roberto Cavalcanti ocupando lugares sociais
diferentes. Além de ocupar o lugar de empresário, como proprietário do jornal Correio
da Paraíba, ele ocupa também o lugar de político, como senador – vaga assumida após
Maranhão se afastar da senadoria para concorrer ao cargo do Governo do Estado.
Roberto Cavalcanti era seu 1º suplente.
Após chegar a determinados resultados, fizemos algumas considerações sobre o
poder de influência da mídia na sociedade e seu papel na formação sociopolítica do
sujeito no mundo atual. “Estar” efetivamente neste mundo, significa estar informado, no
mínimo, sobre a realidade construída e recortada pela mídia.
12
1
Ser imparcial é ser parcial
E muita ação! é o que mais se requer!
Vem ver a gente, e ver muito é o que se quer.
Se apresentardes quantidade à vista,
Para que se encha a multidão de pasmo,
Fareis também de muitos a conquista:
Amar-vos-ão com entusiasmo.
A massa só se empolga pela massa,
Cada um escolhe uma parcela assim;
Dai muito, a cada um dando algo que o satisfaça,
E gratos todos saem no fim.
Dai uma peça? é dá-la logo em peças!
Não falhareis numa iguaria dessas;
Tão fácil é inventar quão exibir o engodo.
De que vos serve apresentar o todo?
O público o esfrangalha mesmo, às pressas.
(O Diretor, personagem de Goethe, em “Fausto”, na
tradução de Jenny Klabin Segall)
Vivemos numa época em que a informação, possivelmente, nunca foi tão
valorizada. Do âmbito da curiosidade natural ela passou para o da efetiva necessidade.
A partir do século XX, considerado por alguns teóricos o da era da informação,
nascedouro da computação e da telecomunicação
1
, o número de canais e meios de
disponibilização de informação cresceu assustadoramente.
Desde a criação do processo tipográfico de Johann Gutenberg, em meados do
século XV, passando pelo código morse e telégrafo (aparelho que permitiu a primeira
comunicação à distância) de Samuel Finley Breese Morse, até chegar a Internet, o
acesso à informação se expandiu consideravelmente e, hoje, se constitui numa das
principais ferramentas para o exercício da cidadania. A questão é como decodificar,
absorver e selecionar a informação no meio de tanta informação.
1
Conforme artigo do professor Antonio Mendes da Silva Filho, publicado na revista Espaço Acadêmico,
publicado em julho de 2001 e acessado pelo endereço
www.espacoacademico.com.br/002/02col_mendes.htm, em 20 de abril de 2007.
13
Primeiro, é preciso compreender o que significa informação; depois, porque se
informar se tornou uma necessidade tão premente em nossos dias. Informação significa
dados, instrução, conteúdo a se informar, orientação, conhecimento sobre algo, etc. Nas
palavras de Patrick Charaudeau (2006a, p.33), informação é
(...) numa definição empírica mínima, a transmissão de um saber, com a ajuda
de uma determinada linguagem, por alguém que o possui a alguém que se
presume não possuí-lo. Assim se produziria um ato de transmissão que faria
com que o indivíduo passasse de um estado de ignorância a um estado de
saber, que o tiraria do desconhecido para mergulhá-lo no conhecido, e isso
graças à ação, a priori benévola, de alguém que, por essa razão, poderia ser
considerado um benfeitor.
A informação em si, como um signo isolado, fora da estrutura do sistema, não
tem valor. Ela só passa a ser significativa a partir de alguém, quando valorada por
alguém que a considere importante e a disponibilize através do sistema lingüístico de
comunicação, do processo de transmissão de saber, do ato de informar. E informar
implica em um “processo de produção de discurso em situação de comunicação”
(CHARAUDEAU, 2006a, p.34), independente do tipo de informação.
Grosso modo, podemos dizer que, dentro deste processo, temos: a informação
em si, o sujeito responsável por sua transmissão e o receptor. A informação em si, ou a
fonte de informação, “pode ser a própria realidade, ou qualquer indivíduo ou organismo
dispondo de informações” (CHARAUDEAU, 2006a, p.34). O receptor é o sujeito capaz
de registrar e decodificar a informação. Entre a informação em si e o receptor, temos a
mídia
2
, que toma para si a responsabilidade de mediador. O acesso à informação é um
direito inerente à condição de vida em sociedade, pois a informação é pertencente ou
destinada ao povo
3
. E se este direito é legítimo, o exercício de comunicar, de transmitir
aquilo que é de interesse social e coletivo pautado pela real ocorrência dos fatos também
é legítimo. A mídia, então, amparada por esse contrato social estabelecido pelo
empirismo, passa a ser o “espelho” da realidade; o condutor das “verdades”, o insone
cão de guarda que ladra aos cantos do mundo toda vez que fareja abusos
governamentais e demais abusos contra a sociedade.
2
O dicionário Aurélio registra mídia como o conjunto dos meios de comunicação, e que inclui,
indistintamente, diferentes veículos, recursos e técnicas, como, p. ex., jornal, rádio, televisão, cinema,
outdoor, página impressa, propaganda, mala-direta, balão inflável, anúncio em site da Internet, etc. No
nosso caso, mídia significa apenas as atividades voltadas para o jornalismo.
3
Baseado no Código de Ética dos jornalistas brasileiros. Votado em Congresso Nacional dos Jornalistas,
o código entrou em vigor desde 1987 e fixa normas de atuação profissional, suas relações com a
comunidade, com as fontes de informação e entre jornalistas.
14
A informação, o saber, o conhecimento, principalmente em nossos dias, é
fundamental para que o homem possa dar conta do mundo, compreender as coisas em
sua volta, encontrar explicações para aquilo que não entende. O homem precisa
constantemente se “alimentar” de informações, ele quer saber quem é o presidente,
quem é o governador que vai lhe representar, como anda a pesquisa sobre o tratamento
do câncer, como evitar a proliferação da dengue, como se chama o jogador que ganhou
o título de melhor do mundo, quem venceu a F1, quem morreu recentemente e quem foi
responsável pela criação da penicilina, como se defender da esperteza de um
comerciante, porque o rapaz saiu atirando em todo mundo, como os dias estão tão
quentes e as ondas tão altas, porque tantos furacões, tanta fome com tanta comida se
estragando, tanta água e tanta sede, quais são os horários das sessões do cinema, quem
vai se apresentar no teatro, quais os horários dos ônibus coletivos nos sábados e
domingos, como escolher um peixe sadio, como economizar no mercado...
O homem precisa tornar o mundo inteligível, precisa dessa garantia de
“estabilidade” das coisas. Saber significa comentar o mundo e hoje, sobretudo, significa
competitividade, diferença em uma prova de concurso, em uma entrevista admissional.
O saber permite ao homem ir e vir, lhe concede direitos, lhe permite transitar nas
cidades e compreender as estações do ano, lhe ajuda a decodificar os signos. Saber,
além de status, garante ao exercício da cidadania maior racionalidade. Tudo isto eleva a
responsabilidade da mídia, mas precisamente do fazer jornalismo e dos seus efeitos, um
dos temas centrais de nossa discussão.
Ao fazer um resgate histórico do jornalismo visto sob a ótica de alguns teóricos,
tem-se a impressão de que a técnica, ao longo dos anos, se sobrepôs às reflexões do
exercício jornalístico. A forma da notícia, durante largo tempo, foi uma preocupação
muito mais perene do que a ética e o conteúdo jornalístico. Só quando tais discussões
são levadas às academias, germina o debate sociológico, antropológico e filosófico
sobre esse mediar que conhecemos como veículos de comunicação. A estrutura do
jornalismo moderno que conhecemos no Brasil só começou a se consolidar em meados
do século XX, quando em alguns países da Europa e nos Estados Unidos esse processo
tem marco no século XIX.
No percurso deste capítulo vamos recuperar a história, expor reflexões e análises
de alguns teóricos e, sobretudo, apresentar modelos e técnicas que norteiam o
jornalismo e o pressupõe objetivo e neutro em “benefício” dos interesses sociais
coletivos.
15
1.1 Nos fios da história
Na Grécia antiga, relata Pena (2005), os debates destinados a questões ligadas à
cidadania eram realizados em praça ateniense até o fim da Cidade-Estado, quando a
esfera de discussão de coletividade é transferida a outros níveis. As características da
burguesia ascendente ocupam o espaço público e viabilizam a consolidação da imprensa
moderna. A partir daí, as causas públicas e os valores éticos vão ser, aos poucos,
substituídos pelas estratégias de mercado.
O jornalismo que conhecemos atualmente tem suas raízes e seu desenvolvimento
na democracia do século XIX, justifica o professor português Nelson Traquina (2005a).
Se na Revolução Francesa, século XVIII, os jornais eram identificados como armas de
luta política e defensores de suas causas, durante o século XIX,
sobretudo com a criação de um novo jornalismo – a chamada penny press
os jornais são encarados como um negócio que pode render lucros, apontando
com um objetivo fundamental o aumento das tiragens. Com o objetivo de
fornecer informação e não propaganda, os jornais oferecem um novo produto
– as notícias, baseadas nos “fatos” e não nas “opiniões” (TRAQUINA, 2005a,
p.34).
Na história universal do jornalismo, Traquina apresenta quatro fatores que
fizeram do século XIX a “época de ouro”
4
da imprensa:
1) a evolução do sistema econômico; 2) os avanços tecnológicos; 3) fatores
sociais; e 4) a evolução do sistema político no reconhecimento da liberdade
no rumo à democracia (TRAQUINA, 2005a, p.35).
Com a evolução do sistema econômico, os jornais conquistaram a independência
dos subsídios políticos e se tornaram um importante veículo para a publicidade. Depois,
com os avanços tecnológicos (telégrafo, tipografia), o processo de urbanização nas
futuras metrópoles do século XX (Londres, Paris e Nova Iorque) e a escolarização das
massas através das escolas públicas, a imprensa cresceu e se consolidou,
principalmente, como bandeira de luta pela liberdade e contra o poder político absoluto.
Diz Traquina (2005a, p.42-43),
4
Conceito de Traquina.
16
A afirmação da nova legitimidade jornalística ocorre perante o antagonismo
do poder político, inserido num processo secular em luta pela liberdade, e,
subseqüentemente, pela conquista de uma nova forma de governo: a
democracia. O poder absoluto é posto em causa e existe a procura de
caminhos alternativos, perante dúvidas sobre os benefícios e os custos de um
sistema de poder que tem como base a “opinião pública”, termo utilizado pela
primeira vez em 1744, embora sem um sentido político.
Nesse instante, o material jornalístico passa a ser o porta-voz dos interesses
públicos, a maior manifestação dos anseios da coletividade, o reflexo da “opinião
pública”, expressão resultante das filosofias liberais dos fins do século XVII e XVIII e
das teorias democráticas do século XIX. Segundo Jeremy Bentham, conforme citação
de Traquina (2005a), a opinião pública era parte integrante da teoria democrática do
Estado e importante instrumento de controle social. Numa opinião pública esclarecida
poder-se-ia encontrar um tribunal com “toda a sabedoria e toda a justiça da nação”. A
questão era como tornar essa opinião pública esclarecida, como alimentá-la, com que
dieta. A imprensa seria responsável por esse processo, respondeu Bentham, ao que o
historiador George Boyce emendou: “a imprensa atuaria como um elo indispensável
entre a opinião pública e as instituições governantes”.
Encontramos em Charaudeau (2006a, p.114) uma explicação mais detalhada de
opinião pública. Ele chama atenção para a relação entre a mídia e a sociedade, sobre o
que o primeiro pode dizer dos acontecimentos e o que o segundo quer saber:
(...) o “mundo a descrever” é o lugar onde se encontra o “acontecimento
bruto” e o processo de transformação consiste, para a instância midiática, em
fazer passar o acontecimento de um estado bruto (mas já interpretado), ao
estado de mundo midiático construído, isto é, de “notícia”; isso ocorre sob a
dependência do processo de transação, que consiste, para a instância
midiática, em construir a notícia em função de como ela imagina a instância
receptora, a qual, por sua vez, reinterpreta a notícia à sua maneira.
Ou seja, a comunicação é realizada através do duplo processo de transformação
e transação. Este contrato de comunicação gera o “espaço público” e constrói a “opinião
pública”. Desta forma os jornais vão conquistar a legitimidade dentro da sociedade. Sem
que ninguém pessoalmente determine, estabelecem-se as cláusulas contratuais entre o
jornal e o público, baseado no compromisso de “dizer a verdade”, de ser um guardião da
ética e da moral, combater, explicitar e apontar os abusos do poder, regular os excessos
e denunciar as opressões desse poder governamental constituído. Essa desconfiança em
17
relação ao “poder”
5
é, portanto, o principal ingrediente de legitimação para que os
jornais exprimam as queixas e injustiças sociais e assegurem a proteção contra a tirania.
Essa posição da imprensa
6
moderna em favor das liberdades civis, de um sistema
político democrático, sem restrições e censura, pela visibilização dos processos e táticas
de encobrimento e dissimulação dos governos em nome da razão do Estado prenunciado
por Kant (apud SODRÉ, 1996), garantia à imprensa o fortalecimento de sua
legitimidade.
Isso, naturalmente, foi sendo construído lentamente dentro do adiantamento das
horas, dentro de uma maturação social que passou pela Grécia antiga, pelas revoluções
Americana e Francesa, pela Declaração dos Direitos do Homem; pelo Barão de
Montesquieu, que defendia a República como a melhor forma de governo e a liberdade
de expressão fundamental; por Jean-Jacques Rousseau que, no livro O Contrato Social
(apud TRAQUINA, 2005a) avança no conceito que representa o “interesse público”:
Por si mesmo o povo será sempre bom, mas de modo algum o vê sempre por
si mesmo. A Vontade Geral tem sempre razão, mas o julgamento que a guia
nem sempre está informado... A informação pública leva à união da
compreensão e da obtage no corpo social (p.45).
Enfim, todo esse conjunto de acontecimentos e discursos veio contribuir para
tornar a liberdade um princípio sagrado e o jornalismo, um eminente poder dentro da
sociedade. Mas só em meados do século XX que o jornalismo brasileiro viria sentir os
efeitos dessa trajetória, diferentemente do que aconteceu em países europeus e nos
Estados Unidos. Por lá, o avanço da ordem capitalista, tecnológica e as lutas pela
liberdade rumo à democracia favoreceram sua estruturação já no século XIX.
Em estudos sobre a crônica no jornalismo brasileiro do século XIX, o professor
Welligton Pereira (1994) registra que a imprensa é inaugurada oficialmente em 1808,
com a publicação da Gazeta do Rio de Janeiro em 10 de setembro. Três meses depois
surgiria o Correio Brasiliense, editado em Londres por Hipólito da Costa. De modo
geral, o que se publicava nesse período era a palavra da corte, “as vozes do rei ou do
imperador”. Descreve Pereira (1994, p.48) que
5
Poder, aqui, tem o sentido restrito daquele exercido pelos governos. No capítulo seguinte
aprofundaremos o debate sobre o seu significado.
6
Entendida como conjunto de jornais e publicações congêneres.
18
Os jornais que atravessam todo o período histórico, que vai desde a época
colonial até o império, passando pela Primeira República, podem ser
considerados uma imprensa sem jornalismo, porque os fatos são veiculados
numa ordem quase inversa aos acontecimentos sociais. O que interessa é a
palavra dos poderosos, sejam da corte, sejam apadrinhados.
Em meados dos anos 90 do século XIX, inicia-se a etapa de modernização
daquilo que se inscrevia na história como jornalismo brasileiro. Nesse período,
abandona-se o modo artesanal de impressão e os jornais se preparam tecnicamente para
comercializar informações e divulgar a opinião dos grupos políticos que passam a
controlar a imprensa. Neste período, um grande contingente rural transfere-se para a
cidade e os jornais passam a atingir um público maior.
Chega o século XX e a expansão do capitalismo. As duas principais cidades do
país - São Paulo e Rio de Janeiro - estão a pleno vapor no desenvolvimento industrial.
Mas o jornalismo brasileiro não chega à maturidade. De acordo com Nélson Werneck
Sodré (apud PEREIRA, 1994, p.105),
A grande imprensa fez do tema político a tônica de sua matéria – tal como a
política era entendida e praticada na Velha República Oligárquica. O tema
político neutraliza a influência literária, mas não permite ainda a linguagem
jornalística, aquela que é específica, diferente da linguagem literária.
Paulatinamente, a crônica, que registrava os fatos com narrativas ainda
modeladas a estilo literário, começa a influenciar as formas do conteúdo jornalístico. O
papel do cronista na ampliação dos significados da informação jornalística no Brasil é
extremamente relevante. Diz Pereira (1994, p.107) que:
A grande contribuição se deu na tentativa de adequar os escritos jornalísticos
à realidade dos grandes centros urbanos, destruindo, completamente, o falso
lirismo que ainda atravessa boa parte das informações construídas através dos
jornais.
Com o cronista inicia-se a evolução da linguagem jornalística no Brasil. Logo,
algumas modificações começam a figurar no material publicado, a exemplo da
observação da realidade e coleta de informações, do aprofundamento, da humanização e
da reconstituição histórica, da descrição de ambientes e de fatos, do repórter como
narrador, etc. Surge, daí, a necessidade de sistematizar as informações e distribuí-las
organizadamente nas páginas, de uma linguagem que privilegiasse a informação. O
19
jornalismo brasileiro começava a se render a modelos e técnicas do jornalismo
ocidental. Mas esse é um tema para o próximo tópico.
1.2 Modelos e técnicas com sotaque estrangeiro
No final dos anos 50 do século passado, desenvolvem-se no Brasil estudos e
classificação dos gêneros jornalísticos. Duas categorias importadas dos Estados Unidos
estabeleciam a estrutura técnico-editorial: Jornalismo Opinativo e Jornalismo
Interpretativo. Na primeira, encontra-se a política da empresa jornalística, sua opinião
sobre os fatos e a opinião de colaboradores e articulistas; na segunda, um material
aprofundado e detalhado; nele o jornalista identifica, seleciona e submete os dados a
uma seleção crítica para a divulgação. Para Pereira (1994, p.115)
No exercício dessas categorias, se desenvolve todo um conjunto de
mensagens, através de modalidades narrativas, nos quais prevalece a voz de
um narrador. Este sintetiza as diferenças conceituais que perpassam pelo
processo da informação.
Essas categorias “podem ser definidas como um conjunto de procedimentos
técnicos que servem para orientar o fluxo da informação no jornalismo impresso”
(PEREIRA, 1994, p.116). Cada uma delas, acrescentando a categoria Jornalismo
Informativo, reúne uma série de gêneros
7
. Em sua obra, Pereira adota a classificação de
Luiz Beltrão como a referência bibliográfica que prevalece para os estudos do
jornalismo (PEREIRA, 1994, p.118). Para o Informativo, temos os gêneros: notícia,
reportagem, história de interesse humano, informação pela imagem; para o
Interpretativo: reportagem com profundidade; para o Opinativo: editorial, artigo,
crônica, opinião ilustrada, opinião do leitor.
Para o professor José Marques de Melo, com relação às especificidades dos
gêneros, vale lembrar que
Beltrão não se ateve à natureza de cada um (estilo/estrutura/narrativa/técnica
de codificação), mas obedeceu ao senso comum que rege a própria atividade
profissional estabelecendo limites e distinções entre “matérias”
(in
PEREIRA, 1994, p.118).
7
Para Bakhtin (2000), denominam-se gêneros discursivos os tipos relativamente estáveis de enunciados,
vinculados a unidades temáticas que exigem uma determinada forma, estilo, padrão.
20
Até o começo do século XX os jornais brasileiros eram essencialmente
opinativos. Esclarece Pena (2005, p.41):
Não que a informação/notícia estivesse ausente das páginas. Mas a forma
como era apresentada é que era diferente. As reportagens não escondiam a
carga panfletária, defendendo explicitamente as posições dos jornais (e de
seus donos) sobre os mais variados temas. As narrativas eram mais retóricas
que informativas.
Para ilustrar essa explicação, Pena (2005) cita como exemplo clássico a briga em
1950, dos jornais “Tribuna da Imprensa”, de Carlos Lacerda, e “Última Hora”, de
Samuel Wainer. Ambos travaram uma briga política através dos jornais. O primeiro
criticava ferozmente o governo de Getúlio Vargas e o segundo, financiado pelo
presidente brasileiro, defendia-o com toda paixão.
Nessa época chega ao Brasil, através do jornalista Pompeu de Souza, um
conceito de produção de notícia bastante difundido na imprensa americana: o lead,
“relato sintético do acontecimento logo no começo do texto, respondendo às perguntas
básicas do leitor: o quê, quem, como, onde, quando e por quê” (PENA, 2005, p.42). Tal
definição, embora objetiva e prática, merece algumas observações. A função do lide
(adaptação portuguesa), além de estabelecer um modelo padrão de texto jornalístico, é
também fisgar o leitor, mantê-lo “preso” à notícia. E as respostas às perguntas do lide
são articuladas e distribuídas dentro de uma ordem que atraia a atenção do leitor. Pena
(2005, p.43) vai além e destaca outras características do lide:
(...)
apontar singularidade da história;
informar o que se sabe de mais novo sobre um acontecimento;
apresentar lugares e pessoas de importância para entendimento dos
fatos;
oferecer o contexto em que ocorreu o evento;
provocar no leitor o desejo de ler o restante da matéria;
articular de forma racional os diversos elementos constitutivos do
acontecimento;
resumir a história, da forma mais compacta possível, sem perder a
articulação.
Essas considerações, contudo, não podem perder a essência fundadora da
notícia, “que consiste no exercício de realizar a recomposição do acontecimento, a partir
dos elementos também constitutivos deste” (PENA, 2005, p.44).
21
Acontecimento é algo construído pelo olhar de quem percebe, captura e
transforma, significa o percebido em uma fala, um discurso através do seu filtro, de sua
interpretação. Para o jornalismo, a construção do acontecimento vai depender do seu
potencial de atualidade, de socialidade e de imprevisibilidade, conforme classificação
de Charaudeau (2006a, p.101).
A atualidade é avaliada segundo a distância que separa o momento de aparição
do acontecimento do momento da informação. A técnica jornalística de construção
desses acontecimentos dá ao leitor a ilusão de que o jornal foi testemunha ocular e de
que aquela é a única versão possível. Deve ser considerada ainda neste tópico a questão
da “proximidade” espacial. O acontecimento, quando situado em um ambiente próximo
do leitor, será mais “interessante” para ele, lhe causará mais curiosidade, ele se
identificará com o acontecido, se sentirá, inclusive, também testemunha daquilo que
aconteceu.
A sociabilidade deve ser considerada segundo a aptidão
(...) em representar o que acontece num mundo em que nada do que está
organizado coletivamente (a vida da comunidade) e nada do que toca o
destino dos homens pode ser estranho aos indivíduos que aí se inserem e que,
por conseguinte, estão implicados como cidadãos ou seres humanos. Trata-se,
para as mídias, de responder à condição de pregnância, o que as leva a
construir os universos de discurso do espaço público, configurando-os sob a
forma de rubricas: política, economia, esportes, cultura, ciências, religião etc.
(CHARAUDEAU, 2005, p. 102).
Quanto à imprevisibilidade, considera-se que o acontecimento veio perturbar a
tranqüilidade dos sistemas de expectativas do sujeito consumidor da informação. Deve-
se considerar ainda a aptidão do receptor em recategorizar seu sistema de
inteligibilidade e em redramatizar seu sistema emocional. Essas avaliações sobre o
acontecimento vão, pouco a pouco, desenhando o significado daquilo que se chama
notícia e os critérios para que assim possa ser chamada.
Vale, aqui, distinguir o significado de acontecimento no jornalismo e na Análise
do Discurso. Se para o jornalismo o acontecimento em si tem que apresentar
determinadas características (atualidade, sociabilidade e imprevisibilidade) para se
constituir em um discurso jornalístico, para a AD o acontecimento é o próprio discurso
em irrupção, fundando uma interpretação e construindo verdades através de recortes da
realidade.
22
Diariamente os jornais impressos publicam certa quantidade de notícias,
oferecidas em “amostras” na primeira página, lugar “exclusivo” para chamar a atenção
do leitor para as notícias “mais importantes” daquela edição. Diariamente vários
acontecimentos fazem parte da vida orgânica da sociedade, mas os jornais não dão conta
de todos eles e nem tudo é notícia. Para que um acontecimento seja notícia, se
transforme em discurso, ele tem que ter em si características próprias de uma notícia. E
ainda assim deve ser comparado com outros acontecimentos.
Os espaços dos jornais são limitados e a impressão obedece a uma ordem
industrial assujeitada ao tempo. Tudo isso deve ser considerado para se estabelecer o
que é notícia e se ela merece ou pode ser publicada. Ou seja, não basta ser
acontecimento, tem que ser notícia.
Em “Teoria de Jornalismo”, Pena (2005, p.70-71) faz referência a um livro de
Luiz Amaral no qual a revista americana “Collier’s Weekley” define a notícia como
“tudo que o público necessita saber, tudo que o público deseja falar (...) a inteligência
exata e oportuna dos acontecimentos, descobertas, opiniões e assuntos de todas as
categorias que interessam aos leitores”.
É comum se ouvir nos meios acadêmicos uma famosa definição de notícia criada
por Amus Cummings: “Se um cachorro morde o homem, não é notícia, mas se o
homem morde um cachorro, aí, então, é notícia, é sensacional” (PENA, 2005, p.90). À
primeira vista, parece uma definição lógica. Mas, considerada ao pé da letra, a frase é
imprecisa e equivocada. Se o cachorro que morder alguém for de uma personalidade
pública e o animal estiver com a vacinação atrasada ou se o cachorro for de “alguém
comum” mais a pessoa mordida for uma personalidade pública, o acontecimento é
notícia, sim. Definir a notícia não é uma tarefa fácil: “os teóricos dizem como a notícia
deve ser, mas não diz como ela realmente é” (ERBOLATO, 1991, p.53).
Para Muniz Sodré (1996, p.132), a notícia se constitui na tônica da informação
jornalística,
(...) relato jornalístico de acontecimentos tidos como relevantes para a
compreensão do cotidiano – é propriamente uma forma narrativa, ou seja, um
modo específico de se contar uma história. Os norte-americanos costumam
designá-la como news story, sem fazer distinção entre notícia breve e
reportagem.
23
Há uma teoria no jornalismo, segundo Pena (2005, p.71), chamada newsmaking,
“que considera o trabalho jornalístico a construção social da realidade”, e Sodré (1996,
p.133) explica:
Aventa-se mesmo a hipótese de que os fatos sociais – objeto da sociologia
desde seu começo no século passado – já não têm uma ontologia própria,
externa aos meios de comunicação de massa. Tal hipótese parte do
reconhecimento de que a realidade social dos indivíduos no mundo
contemporâneo é construída por fatos noticiosos, ou seja, de acontecimentos
jornalisticamente interpretados e, portanto, “transvalorizados” (para empregar
uma terminologia de fundo pragmatista) por um, sistema logotécnico. A
notícia converte-se, assim, numa tecnologia, não simplesmente cognitiva, mas
produtora do real – é história que cria história.
A partir dessa perspectiva, podemos dizer que o jornal é o espelho da realidade.
E através da notícia regula e administra os acontecimentos, exerce o controle discursivo
das reações sociais, dá visibilidade plena ao real e sugere a identificação entre ver e
crer. Presume-se, com isso, conforme Sodré (1996, p.133), que a notícia
(...) tranqüiliza a consciência do indivíduo inseguro em face da dispersão
humana na grande cidade, da vicissitude dos acontecimentos, da condição
precária da identidade no espaço urbano, do desconhecimento das causas, da
incidência trágica do acaso.
De certo modo, a produção jornalística organiza a sucessão das experiências
humanas no cotidiano. Encena a causalidade e registra a fatalidade. O jornalismo
espreita a vida cotidiana e a devolve em forma de notícia como seu registro mais puro.
“A notícia, enquanto narrativa e produto mais típico do jornalismo, implica uma
conexão de fatos e, portanto, certo tipo de organização racional da realidade” (SODRÉ,
1996, p.135).
Isto não quer dizer, ressalva Sodré (1996, p.135), que a notícia corresponda à
realidade dos fatos, mas que atende “à retórica organizadora da singularidade factual do
cotidiano, consagrada pela lógica comercial de um grupo logotécnico denominado
empresa jornalística” (p.135).
Alfredo Vizeu (apud PENA, 2005, p.74) considera sete os principais critérios de
noticiabilidade:
(...)
ser factual;
despertar o interesse do público
24
atingir o maior número de pessoas;
coisas inusitadas;
novidades;
personagens;
boas imagens.
Tal concepção só confirma o que Erbolato (1991) já havia dito: a notícia deve
ser recente, inédita, “verdadeira”, objetiva e de interesse público. O público deseja fatos
novos, o jornal redige sobre o que aconteceu ontem ou recentemente. O professor ainda
elenca critérios que, embora não se trate de uma unanimidade, motivam o público:
proximidade;
conseqüências;
humor;
raridade;
interesse pessoal;
interesse humano;
originalidade;
importância;
rivalidade;
política editorial do jornal;
oportunidade;
descobertas e invenções;
repercussão;
dinheiro;
sexo e idade;
utilidade;
confidências.
A visão que os jornalistas apresentam sobre a definição de notícia parte da
simples idéia de que o jornalista relata, capta e reproduz o acontecimento tal como um
espelho do real, embora ele seja “tão-somente” um mero mediador (TRAQUINA,
2005b).
Do século XVI até os dias atuais, os valores-notícia (critérios de noticiabilidade)
variaram pouco, levando-se em consideração as observações de Mitchell Stephens
25
(apud TRAQUINA, 2005b) sobre as “qualidades duradouras” da notícia: o
extraordinário, o insólito (“o homem que morde o cão”), o atual, a figura proeminente, o
ilegal, as guerras, a calamidade e a morte.
A primeira tentativa de identificar de forma sistemática os valores-notícia
(fatores que influenciam, caracterizam e notabilizam a notícia) é encontrada nos estudos
de Galtung e Ruge (apud TRAQUINA, 2005b), que enumeram doze valores-notícia:
1) freqüência, duração do acontecimento;
2) amplitude do evento;
3) clareza, falta de ambigüidade;
4) significância;
5) consonância, capacidade de inserir o “novo” numa “velha” idéia;
6) o inesperado;
7) a continuidade, continuação de uma notícia já noticiabilizada;
8) composição;
9) referência a nações de elite;
10) referências a pessoas de elite, proeminência do ator, fala autorizada
(esta última inserção nossa);
11) personalização, personagens;
12) negatividade, segundo a máxima “bad news is good news” (p.69-70).
Dos doze, alguns merecem atenção: negatividade, por exemplo. Por que uma
notícia ruim é uma notícia boa? Entenda-se notícia ruim como notícias que tratam de
tragédias, mortes, guerras, acidentes, escândalos. São mais comuns nas editorias de
polícia. Notícia boa, neste caso, não é aquela que causa conforto e perspectiva de um
futuro tranqüilo ao leitor (exemplos: “O petróleo é uma fonte inesgotável de energia”,
“Os preços das mercadorias não vão subir mais”, etc.). Notícia que trata de positividade
não vende. Por isso muitos jornais insistirem nas manchetes assuntos policiais,
escândalos políticos, acidentes de trânsito, etc. Por isso muitos jornais serem chamados
de sensacionalistas por explorarem a emoção do leitor através de recursos gráficos
(fotos, ilustrações, infográficos) e textos chocantes.
Os autores explicam que a questão não é que as notícias negativas são preferidas
em relação às positivas, os motivos realçados por esse valor são outros. Vejamos alguns
fatores:
a) as notícias negativas satisfazem melhor o critério de freqüência; b) as
notícias negativas são mais facilmente consensuais e inequívocas no sentido
de que haverá acordo acerca da interpretação do acontecimento como
negativo; c) as notícias negativas são mais consonantes com, pelo menos,
algumas pré-imagens dominantes do nosso tempo; e d) as notícias negativas
são mais inesperadas do que as positivas, tanto no sentido de que os
26
acontecimentos referidos são mais raros, como no sentido de que são menos
previsíveis (TRAQUINA, 2005b, p.72/73).
Já o valor-notícia personalização, ligado freqüentemente à dramatização, parece
ser um dos mais considerados e presentes nas notícias. O que seriam as notícias sem os
atores? Quando personalidades-chave, pessoas públicas (presidente da câmara,
vereador, governador, padre, presidente de uma instituição respeitável, etc.) estão
envolvidas no acontecimento, esse valor é realçado. Há casos em que as organizações
(governo, instituição, ONGs, clubes de futebol) são personificadas pelos atores
envolvidos. O envolvimento de uma personalidade pública pode ser determinante para
se julgar se aquilo é ou não noticiável. Em fins da década de 60 e início da de 70,
estudos realizados por Herbert Gans (apud TRAQUINA, 2005b) sobre os telejornais de
três principais cadeias norte-americanas (CBS, ABC e NBC) e sobre as revistas de
informação Newsweek e Time, revelaram que o primeiro-lugar do valor-notícia foi a
notoriedade (ou personalidades). A taxa de freqüência das pessoas conhecidas nos
noticiários variou entre 70% e 85%. As pessoas não conhecidas só são notícia quando
participam de manifestações, greves; quando são vítimas de tragédias, transgressores
das leis e da moral.
Outra consideração sobre notícias: elas são perecíveis. Quase sempre a obsessão
pelo presente é privilegiada em detrimento do aprofundamento, da elaboração e
planejamento. Diz Traquina (2005b, p.37) que
O imediatismo age como medida de combate à deterioração do valor da
informação. Os membros da comunidade jornalística querem as notícias tão
“quentes” quanto possível, de preferência “em primeira mão”. Notícias
“frias” são notícias “velhas”, que deixaram de ser notícias.
O fator tempo, portanto, é o eixo central da produção jornalística. Atualidade, é
uma palavra que define ou torna reconhecível uma notícia que, por natureza, é efêmera.
Charaudeau (2006a, p.134) explica que
O tempo só se impõe ao homem através do filtro de seu imaginário e, para as
mídias, através do imaginário da urgência. Urgência na transmissão da
informação que faz com que, uma vez concluído o ato, produz-se um vazio
que deve ser preenchido o mais rapidamente possível por uma outra urgência;
assim, de vazios em urgências constrói-se atualidade com uma sucessão de
notícias novas, num avançar sem fim, e mesmo por antecipação.
27
Esse vazio do qual fala Charaudeau se refere à necessidade de saber do homem
moderno. “Na sociedade capitalista, o conhecimento (o saber) é sempre vendido como
instrumento de vantagem competitiva” (HERNANDES, 2006, p.41). Charaudeau
(2006a, p.43) explica que o saber é resultado da construção humana através do exercício
da linguagem. O homem necessita do saber para dar conta do mundo, para poder
decidir, descrevê-lo, contá-lo ou explicá-lo, e nisso tanto pode aderir ao saber como
tomar distância dele. “Esse conjunto de atividades discursivas configura os sistemas de
interpretação do mundo sem os quais não há significação possível”.
É oportuno salientar que todas as técnicas e teorias constituintes na produção do
material jornalístico funcionam em conformidade com a política editorial da empresa,
“que pode influenciar diretamente o processo de seleção dos acontecimentos por
diversas formas” (TRAQUINA, 2005b, p.93) e determinar o tratamento e formatação da
apresentação da notícia. A neutralidade, portanto, manifesta-se relativa diante desse
quadro em que os interesses da política editorial do veículo de comunicação pode se
chocar com os interesses coletivos de informação, como veremos a seguir.
1.3 Objetividade e neutralidade: os fins justificam os meios
Um marco na história do jornalismo brasileiro em meados do século XX foi a
modernização estilística da estrutura narrativa da notícia. Até então as notícias eram
redigidas com extensas aberturas e pouca objetividade. Essa forma de redação,
conhecida como “nariz-de-cera”, retardava o acesso do leitor às principais informações
da notícia preparando seu espírito para o porvir. Eis que o Brasil importa uma técnica de
apresentação das matérias que ficou conhecida como pirâmide invertida, que
possivelmente teve origem em 1861, em um jornal nova-iorquino.
A pirâmide invertida vinha justificar o modelo de jornalismo no qual a base
estava no topo, e não no sopé. Esse padrão hierarquizava a informação em ordem
decrescente, de acordo com seus valores. Assim como o lide, a pirâmide invertida tinha
por fim fundar a objetividade no jornalismo brasileiro. No entanto, mesmo com a
sistematização de procedimentos e determinação de conceitos, a subjetividade era
inevitável em todos os parâmetros.
Pena (2005) lembra que alguns críticos citam Tucídides (469 a 396 a.C.) como o
primeiro a levantar polêmica sobre o assunto, ao considerar que um mesmo fato pode
28
ser descrito de vários modos. Para a AD isso acontece porque cada sujeito fala de um
lugar social, numa determinada ordem discursiva, a partir da mobilização e operação de
sentidos. No capítulo seguinte daremos profundidade à discussão.
A discussão em torno da objetividade permanece até os dias atuais e revela um
problema de interpretação. Pena (2005, p.50) explica:
A objetividade é definida em oposição à subjetividade, o que é um grande
erro, pois ela surge não para negá-la, mas sim por reconhecer a sua
inevitabilidade. Seu verdadeiro significado está ligado à idéia de que os fatos
são construídos de forma tão complexa que não se pode cultuá-los como a
expressão absoluta da realidade. Pelo contrário, é preciso desconfiar desses
fatos e criar um método que assegure algum rigor científico ao reportá-los
8
.
Para o professor Michael Schudson (apud PENA, 2005, p.50), o conceito de
objetividade se desenvolve a partir de três motivos:
(...) 1) a partir do ceticismo da sociedade americana no começo do século
XX, influenciada pelo crescimento da psicanálise, que faz duras críticas à
razão; 2) pelo nascimento do profissional de relações públicas, capaz de
produzir fatos para beneficiar determinadas empresas; e, principalmente, 3)
a influência da propaganda, cuja eficácia foi provada ao levar a opinião
pública americana a ficar a favor da entrada daquele país na Primeira
Guerra Mundial.
Para melhor esclarecer as origens da objetividade, Pena (2005, p.50) diz que ela
(...) surge porque há uma percepção de que os fatos são subjetivos, ou seja,
construídos a partir da mediação de um indivíduo, que tem preconceitos,
ideologias, carências, interesses pessoais ou organizacionais e outras
idiossincrasias.
Na opinião de Hernandes (2006, p.30), a objetividade
é um dos recursos jornalísticos para se tentar “apagar” o modo pelo qual a
realidade foi filtrada a partir do sistema de valores do jornal que, como
empresa ou parte de um conglomerado de informação, não quer se revelar
como um ator social atuante interessado nos aspectos sociopolíticos e nas
conseqüências do que noticia.
Diante de tal dificuldade na produção da notícia, recorre-se ao lide e à pirâmide
invertida, para fortalecer a objetividade na transmissão da informação. Estabelece-se
8
Negrito do autor.
29
ainda, a necessidade de ouvir os dois lados da história e valorizar mais as declarações do
que os fatos. Tais métodos estadunidenses, incorporados e naturalizados no jornalismo
brasileiro, são intensificados nos anos 50 e “responsáveis” pela “criação de manuais de
redação, dos mitos de objetividade e imparcialidade”
9
.
O primeiro jornal a adotar um manual foi o Diário Carioca. Hoje, vários jornais
dispõem de manuais para orientar seus profissionais, a exemplo do O Estado de S.
Paulo, Correio Brasiliense e Folha de S. Paulo. Logo no início do capítulo
“Procedimentos”, o manual da Folha, considerado o jornal de maior circulação e
influência no Brasil
10
, trata o material noticioso como “mercadoria-informação”,
definição que realça como a notícia está relacionada ao capitalismo. Sobre o que possa
interessar ao leitor, diz o manual que
São assuntos de incontestável interesse geral os acontecimentos que podem
modificar as estruturas políticas, econômicas e culturais de uma cidade, de
um país ou do mundo, afetando a história de uma comunidade, de um povo
ou de toda a humanidade – como a queda do Muro de Berlim, o impeachment
de um presidente, a eleição de um prefeito (PAULO, 2001, p.22).
Ainda em “Procedimentos”, o manual sublinha que “a busca da objetividade
jornalística e o distanciamento crítico são fundamentais para garantir a lucidez quanto
ao fato e seus desdobramentos concretos” (PAULO, 2001, p.22). Mais na frente,
assevera que “não existe objetividade em jornalismo”, e que
Ao escolher um assunto, redigir um texto e editá-lo, o jornalista toma
decisões em larga medida subjetivas, influenciadas por suas posições
pessoais, hábitos e emoções. Isso não o exime, porém, da obrigação de ser o
mais objetivo possível. Para relatar um fato com fidelidade, reproduzir a
forma, as circunstâncias e as repercussões, o jornalista precisa encarar o fato
com distanciamento e frieza, o que não significa apatia nem desinteresse.
(PAULO, 2001, p.45).
O que existe é um esforço, uma busca possível para, se não for, pelo menos
parecer objetivo.
O jornalista pertence a uma comunidade interpretativa, como diz Traquina
(2005b), portanto a interpretação pode ser múltipla. Sobre essa possibilidade, o manual
9
Do site Fazendo mídia, visitado em http://www.fazendomedia.com/fmoutros/materia0009.htm no dia 18
de abril de 2007.
10
Conforme material publicado na edição de 4 de janeiro de 2005, disponível em
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi0401200511.htm.
30
da Folha recomenda que uma “boa” reportagem exige cruzamento de informações, uma
prática baseada no conceito “de que todo fato comporta mais de uma versão e de que o
julgamento desse fato não compete ao jornalista, mas ao leitor”. A ausência de um dos
enfoques sugere desleixo do jornalista, negligência do jornal:
Cruzar informações e ouvir o outro lado permite, ainda, que o jornalista não
endosse versões interessadas, que visem a manipulação da opinião pública,
nem o erro que possa ser cometido por pessoas, instituições, empresas ou
grupos. É sempre importante perguntar-se a quem uma notícia vai interessar,
a quem ela traz prejuízos e quem dela se beneficia. São perguntas que ajudam
a esclarecer o jogo de interesses por detrás dos fatos (PAULO, 2001, p.27).
O manual alerta ainda para os perigos de se publicar uma acusação, pois pode
transmitir aparência de veracidade e implicar em julgamento com a chancela do jornal.
Em 1994, a negligência da imprensa policial que não ouviu todas as partes envolvidas e
se restringiu a confiar nas declarações do delegado que cuidava do caso, gerou danos
morais e econômicos irreparáveis aos proprietários da Escola Fundamental de Base,
acusados pela polícia de produzir filmes pornográficos com os alunos
11
. A versão do
delegado foi aceita e amplamente divulgada pelos veículos de comunicação. Mais tarde,
a Justiça provou que as acusações eram inverídicas, mas não podia voltar o tempo. A
vida social dos proprietários da escola já não era a mesma. A escola foi fechada.
A objetividade pode ser considerada uma “estratégia” adotada pelos jornalistas
para evitar eventuais processos; ou um “recurso técnico”, exigido pelos jornais para
melhor lidar com a pressão do tempo e para sugerir um posicionamento neutro. Por isso
a notícia escrita em terceira pessoa, como se o próprio assunto se apresentasse ao
público pessoalmente; o uso de aspas, para indicar que a frase não é do jornal nem do
jornalista; a utilização da pirâmide invertida e do lide. Mas será que tudo isso garante a
neutralidade do jornalismo? A imparcialidade é um fato ou uma invenção? É o que
discutiremos no tópico seguinte.
11
Da monografia interdisciplinar apresentado à Faculdade de Comunicação da Mackenzie, São Paulo,
para obtenção do bacharelado em jornalismo de Gustavo Guedes Brigatto, Paulo Rodrigo Ranieri Dias
Martinho Pinto e Thiago Rafael Domenici. Acessado em 19 de abril de 2007, no endereço
http://escola.base.sites.uol.com.br/monografia.pdf.
31
1.4 Jornalismo acima de qualquer suspeita
Tratamos até aqui da constituição e consolidação da legitimidade do jornalismo
na sociedade e dos cuidados (técnicas) que ele se cerca para parecer o mais objetivo
possível e, sobretudo, neutro. Um espelho que só reflete o “real”, sem maquiagens nem
privilégios. Uma balança equilibrada, sem vícios. Relata os acontecimentos como “eles
são” acima de qualquer interesse, qualquer motivação empresarial ou ideológica, acima
de qualquer intenção oculta. Sempre em favor da coletividade, da sociedade que lhe dá
crédito e autonomia. Será? Bem, independente de qualquer conclusão que se possa
chegar, uma coisa é certa: as empresas de comunicação estão inseridas em uma ordem
econômica, dependem da circulação do capital, do lucro, do faturamento, das vendas.
Para expandir essa discussão, observemos os quatro sujeitos do discurso
jornalístico apontados pelo professor Nilton Hernandes (2006): 1) o jornal, 2) os
profissionais que fazem o jornal (os jornalistas, por exemplo), 3) os personagens que
aparecem nas notícias e 4) o leitor, público consumidor do produto jornalístico.
No primeiro sujeito inclui-se o proprietário ou proprietários, personificados
através da marca do jornal, que é representada, conforme Hernandes (2006, p.46), por
uma logomarca, que
(...) é uma espécie de “casca”, ou corpo oco, que vai se “enchendo”,
tornando-se “carne” pelo que enuncia, pelo modo de enunciar, e pelo que a
própria empresa que a detém enuncia sobre ela, notadamente por meio de
publicidades. Jornais, como qualquer outro produto da sociedade moderna,
são pensados como marcas para que possam assumir e ter identidades
administrativas.
Com os avanços tecnológicos na área de comunicação e a crescente oferta de
informação os “consumidores” têm se tornado cada vez mais “infiéis”. Isto constitui
uma problemática corrente entre o sujeito-leitor (consumidor), o sujeito-jornal (marca) e
a notícia (mercadoria).
A marca tem por função estabelecer uma identificação e relacionamento com seu
consumidor. Ela é individual em seus aspectos gráficos e contribui para o processo de
decisão do consumidor. A marca, marca, traz benefícios (prestígio) e projeta a
personalidade (status social). O sujeito-jornal, portanto, como marca, busca dar
satisfações ao sujeito-leitor, busca a fidelidade do consumidor. A satisfação e fidelidade
são determinadas pela vontade de saber, pela necessidade de estar bem informado e
32
estar com “a melhor informação”, com aquela que apresenta “equilíbrio e
imparcialidade” depositados nas notícias.
Seguindo a teoria da objetividade e neutralidade, a marca, que identifica o
sujeito-jornal, dificilmente assume um “eu” que enuncia, discursa e se refere a si como
“ele”. Os enunciados se manifestam como “vozes sociais”, é a própria realidade que
fala, mesmo tendo passado pela instância de perceptividade e interpretatividade do
sujeito-jornalista e pela orientação editorial do veículo; independente das técnicas
jornalistas de seleção, apuração e elaboração da notícia. Afinal, todo veículo de
comunicação tem uma política editorial, uma linha que deve ser seguida pelo
profissional, que determina o enfoque da notícia e a forma como ela deve ser
apresentada (se manchete da página ou do jornal, se notícia secundária, se deve ser
acompanhada de foto, etc.). Sua manifestação mais explícita é encontrada na pauta
entregue diariamente ao sujeito-jornalista, que funciona como roteiro prévio para o
desenvolvimento do material noticioso e reflete exatamente a linha editorial do veículo
de comunicação.
Assim como qualquer marca desenvolve estratégias publicitárias para vender seu
produto, o sujeito-jornal também desenvolve estratégias para garantir audiência e
credibilidade junto ao sujeito-leitor. No caso do sujeito-jornal a estratégia é discursiva.
Independente da linguagem noticiosa, quer seja verbal ou não, o fim é mesmo:
convencer o consumidor de “suas verdades”. Este processo de convencimento, atração e
sedução, acontece de várias maneiras e se dá da pauta até a organização visual do
conteúdo na página. Mas ele inicia, efetivamente, com a marca.
Geralmente os jornais utilizam slogans agregados à marca. Eles constituem
valores para personalizar o veículo e tentam predispor o sujeito-leitor a avaliar
positivamente as unidades noticiosas (HERNANDES, 2006). Tudo isso parte,
naturalmente, do dever que o consumidor tem de estar bem informado – lembremos: o
conhecimento é sempre vendido como vantagem competitiva. Para a AD, o saber
produz efeitos de poder e subjetividade que criam a individualidade do sujeito, induz a
verdades.
O consumidor tem consciência das possibilidades crescentes de escolha.
Escolher pode significar também perder. Em uma escolha, pode haver maior ou menor
satisfação. Consumir significa absorver bens em benefício próprio! O jornal é concebido
para ser uma máquina eficiente de atração do público-alvo (sujeito-leitor visado). “Sem
obter e manter a atenção, não há consumo” (HERNANDES, 2006, p. 47).
33
“Atrair”, “fisgar” o leitor logo a partir da marca é uma estratégia comum aos
jornais para despertar o consumo:
Em sociedade com crescentes ofertas de produtos e serviços, saturadas de
estímulos, a busca e a manutenção da atenção do consumidor se tornaram
vitais para a sobrevivência de qualquer negócio. Nenhum grande jornal é
exceção (HERNANDES, 2006, p.47).
Em entrevista cedida ao professor Antonio Queiroga, publicada no site do
Observatório da Imprensa
12
, o mestre português Nelson Traquina apresenta preocupação
sobre o tema acima e diz que os leitores, antes de consumidores, são cidadãos. Precisam
de “informações úteis” para cumprir o papel de cidadão. Diz ele que é preciso criticar
esse tipo de jornalismo que, por razões diversas, considera mais importante as vendas e
audiências.
Devemos aqui entender por “informação útil” aquela que tem por função prestar
um serviço ao cidadão. Exemplos: a) alertá-lo sobre a ameaça de epidemia da dengue,
b) informar o nome do novo ministro, c) apresentar as opções de diversão da cidade, d)
complementar o saber do leitor sobre a gestão pública de um governante e etc. Isto não
invalida a possibilidade de um veículo publicar algo com características de uma
informação útil quando ele quer apenas fazer o cidadão crer na importância de uma
notícia.
Por mais que persistam críticas sobre essa postura mercadológica dos veículos
de comunicação, o fator financeiro ainda é determinante. Em entrevista publicada no
Jornal ANJ
13
, da Associação Nacional dos Jornais, o executivo de consultoria de gestão
empresarial Fernando Portella disse que é preciso a obsessão com custos, lucros e
competitividade para que os “jornais” se fortaleçam no mercado: “A decisão sempre é
financeira”.
12
Acesso realizado no dia 25 de abril de 2007, no endereço
http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/da200520032.htm
13
Edição 199, de fevereiro de 2006. O Jornal ANJ é da Associação Nacional de Jornais, fundada em 1979
com fins não econômicos e constituída por 129 sociedades jornalísticas de todo o país, entre elas o jornal
Correio da Paraíba. A associação, que tem sede em Brasília e disponibiliza seu conteúdo através do site
www.anj.org.br. tem por missão “defender a liberdade de expressão, do pensamento e da propaganda, o
funcionamento sem restrições da imprensa, observados os princípios de responsabilidade, e lutar pela
defesa dos direitos humanos, os valores da democracia representativa e a livre iniciativa”. Contudo, os
afiliados devem obedecer a um código de ética cujos preceitos destacamos: “Apurar e publicar a verdade
dos fatos de interesse público, não admitindo que sobre eles prevaleçam quaisquer interesses”.
34
Dentro da perspectiva acima, o leitor é visto apenas como um número
quantitativo e o jornal, um sujeito delegado pelo mercado. A notícia é pensada,
hierarquizada e apresentada a partir de seu impacto (HERNANDES, 2006).
Existe uma expressão contábil chamada “capital de giro”, que significa os
valores necessários para que a empresa faça seu negócio acontecer. Mas esses valores,
em si, não são suficientes para que o negócio aconteça e permaneça no mercado. Para
que o capital gire e a empresa continue em atividade, é preciso que as vendas sejam
constantes (em princípio) e crescentes (metas constantes), do contrário a empresa não
progride e vai à falência. Isto constitui um círculo vicioso no qual empresas e indústrias
estão inseridos. E se o mercado é extremamente competitivo e a conquista de novos
consumidores é cada vez mais difícil, a política de fidelidade é uma preocupação
corrente. Esta é uma ordem consolidada no mercado, e o jornal não escapa a ela. Por
isso ser comum em jornais campanhas de prêmios para atuais e novos assinantes. É uma
prática sorteio de carros e eletrodomésticos, descontos em shows, em supermercados,
em farmácias, brindes na compra de exemplares avulsos.
Esse círculo vicioso funciona conforme nossa ilustração abaixo, no sentido
horário:
35
Embora o gráfico apresente uma lógica mercadológica natural (estratégias,
vendas e lucros), ela se revela obsessiva e perversa. A busca pelo lucro obedece a uma
ambição “incontrolável”, insaciavelmente crescente. Esta é a ordem do capitalismo,
conforme as teorias de Marx que explicam o processo de formação de capital.
Partindo, portanto, dessas proposições, podemos afirmar que é um engodo um
jornal se dizer imparcial. A sobrevivência do jornal é condicionada, seu discurso é
condicionado. Como ser imparcial sem ceder à ordem mercadológica? Nenhum discurso
é imparcial, a linguagem não é neutra, muito menos pura. E isto independente da ordem
mercadológica, como veremos no próximo capítulo.
Quando dizemos que não há neutralidade na linguagem (o discurso é
responsável pela mediação entre a permanência e continuidade, deslocamento e
transformação do homem na realidade em que ele vive), dizemos que o homem é
afetado pela língua, pela história. Logo, a parcialidade do sujeito-jornal é patente. É,
pois, inútil,
(...) colocar o problema da informação em termos de fidelidade aos fatos ou a
uma fonte de informação. Nenhuma informação pode pretender, por
definição, à transparência, à neutralidade ou à factualidade. Sendo um ato de
transação, depende do tipo de alvo que o informador escolhe e da
coincidência ou não coincidência deste com o tipo de receptor que
interpretará a informação dada (CHARAUDEAU, 2006a, p.42).
Há um entendimento, conforme apresenta Traquina (2005a), que defende que a
comercialização da imprensa tornou o jornalismo independente dos laços políticos e o
transformou numa indústria na qual a notícia é vendida com o objetivo de lucros. Este
fato, além do posicionamento da imprensa em defesa da democracia, também veio
contribuir para consolidar a sua legitimidade.
O verbo crer vem do latim credere e é registrado no Aurélio (FERREIRA,
1999) como aquilo em que se tem confiança, se dá como verdadeiro. Quando cremos,
portanto, temos convicção íntima da verdade, da exatidão, da conformidade com o real.
Os sujeitos dão conta do mundo através dos saberes e crenças. Estas regulam as
práticas sociais que “apontam não apenas para os imaginários de referência dos
comportamentos (o que se deveria fazer ou não fazer), mas também para os imaginários
de justificativa desses comportamentos (se é do bem ou do mal)” (CHARAUDEAU,
2006a, p.46). As crenças, pois, dependem da interpretação:
36
(...) há sistemas que avaliam o possível e o provável dos comportamentos em
dadas situações, procedendo por hipóteses e verificações que permitem, em
seguida, fazer predições (...); outros há que apreciam os comportamentos
segundo um julgamento positivo ou negativo, em confronto com normas que
foram estabelecidas socialmente, procedendo afirmações que ganham valor
sob diferentes pontos de vista: ético (o que é bom ou mau), estético (o que é
belo ou feio), hedônico (o que é agradável ou desagradável), pragmático (o
que é útil ou inútil, eficaz ou ineficaz), sob a forma de julgamento mais ou
menos estereotipados que circulam na sociedade (intertextualidade) e que
representam os grupos que os instauram e servem de modelo de
conformidade social (o guia de saber se comportar e julgar)
(CHARAUDEAU, 2006a, p.46).
Inscritas numa notícia, portanto, as crenças fazem com que o sujeito-leitor
compartilhe os julgamentos sobre o mundo, instaurando-se aí a cumplicidade de um
saber. Desse modo, o sujeito-leitor é interpelado e obrigado a tomar uma posição de
acordo com a avaliação proposta no material noticioso e com base nas suas crenças e
em seus valores (formação ideológica).
A relação que o sujeito social tem com o real passa pelo processo de percepção-
construção. Desta mesma forma é produzido o material noticioso. As representações
sociais e a organização do real, dentro de normas e sistemas de valores, são a base para
essa produção noticiosa que conduz normas e valores. Com isso a imprensa pretende ser
o espelho da realidade e o documento diário do cotidiano social. Dentro das relações de
poder e de comunicação pretende ser “a verdade”, essa é a ordem do discurso
estabelecida.
Dada a propriedade de registro “instantâneo” dos fatos, o jornalismo incorporou
ao seu ofício a pretensão de escrever e reescrever a história a partir de sua formação
discursiva, implicada pela formação ideológica que forma a visão de mundo, constrói
conceitos de valores e de verdade. Aquilo que o jornal impresso diz, fica no papel,
documentado. E embora boa parte da população não leia jornal – para Erbolato (1991) o
jornal é um meio de comunicação das elites nos países de baixo nível econômico–, há
uma tendência em se acreditar no publicado como verdadeiro, que gera o efeito
multiplicador e expande o número de consumidores da informação jornalística.
O discurso do jornal não afeta apenas os sujeitos que têm acesso à palavra
escrita. Portanto, podemos classificá-los em leitores diretos e indiretos. Os diretos são
os assinantes diários ou assinantes só dos finais de semana, os que compram o jornal
nas bancas esporadicamente, os que lêem nas repartições onde trabalham, os que lêem
editorias específicas (esporte, política, cultura, variedade), os que lêem apenas as
37
manchetes da janela do coletivo nos jornais pendurados nas bancas, os que lêem as
manchetes e também as chamadas e legendas quando caminham pelas calçadas; e os
que lêem um jornal ou mais por dia. Os leitores indiretos são os que ficam sabendo das
notícias jornalísticas através de outros sujeitos. O jornal impresso, por ser impresso,
palpável e de fácil acesso, se constitui em um documento incontestável. É uma prova!
Tanto assim é entendido que os argumentos passam a ser justificados porque “deu no
jornal”. E se “deu no jornal” é verdade e esta verdade se multiplica. Inclusive através de
outras mídias (rádio, TV, internet) que invariavelmente fundamentam seus discursos
com o “documento-jornal”. Os teóricos de comunicação William L. Rivers e Wilbur
Schramm, autores de “Responsabilidade na Comunicação de Massa” explicam que
É particularmente evidente que o que sabemos sobre numerosos assuntos de
interesse público depende enormemente do que nos dizem os veículos de
comunicação. Somos sempre influenciados pelo jornalismo e incapazes de
evitar (apud ERBOLATO, 1991, p.51).
Na relação com o mundo o sujeito tem a necessidade de crer em verdades.
Crença e verdade estão intrinsecamente ligadas uma à outra. Para Charaudeau (2006a,
p.48-49),
Nas sociedades ocidentais, por exemplo, a verdade depende da crença de que
ela preexiste à sua manifestação, de que ela se encontra em estado de pureza e
inocência, e de que sua descoberta se faz ao término de uma pesquisa na qual
o homem seria, ao mesmo tempo, o agente (movido pelo desejo de saber) e o
beneficiário (ele descobre a resposta à pergunta: “quem sou eu?”). Nota-se
que essa questão da verdade está marcada pela contradição: a verdade seria
exterior ao homem, mas este só poderia atingi-la (finalmente construí-la)
através do seu sistema de crença. Ora o homem procura meios para fundar um
sistema de valores de verdade, ora ele se conforma com seus efeitos.
O valor de verdade é um recurso constantemente utilizado pela imprensa para
ratificar os argumentos expostos na notícia. Não é de ordem empírica, se realiza através
de construção e instrumentação científica, através de convenções, leis físicas, químicas,
matemáticas, biológicas. Trata-se de um “fenômeno” baseado em um conjunto de
técnicas de saber dizer, de saber comentar o mundo. É um saber erudito.
Comprovadamente a Terra é redonda, uma molécula de água é representada por H
2
O,
um quilômetro corresponde a mil metros, dois corpos não ocupam o mesmo espaço no
mesmo tempo; todo esse saber foi produzido por textos fundadores.
38
No jornalismo dissemos que valor de verdade é a manifestação de um discurso
autorizado. É um expediente usado pelo jornalismo para dizer ao leitor que quem está
falando não é o jornal, mas um especialista, um sujeito que está protegido por um saber
científico. Só o médico legista pode falar sobre a causa mortis, só o engenheiro detém
conhecimentos técnicos para explicar porque a barragem não suportou o volume de
água e estourou, só o Tribunal Regional Eleitoral pode impugnar uma candidatura, só o
juiz condena. A construção explicativa do discurso autorizado se quer exterior ao
homem.
Além do valor de verdade, temos também o efeito de verdade, que está mais
inclinado para o “acreditar” do que para o “ser verdadeiro”. Enquanto o primeiro se
baseia numa evidência, o segundo se baseia numa convicção. O efeito de verdade
(...) não existe pois, fora de um dispositivo enunciativo de influência
psicossocial, no qual cada um dos parceiros da troca verbal tenta fazer com
que o outro dê sua adesão a seu universo de pensamento e de verdade. O que
está em causa aqui não é tanto a busca de uma verdade em si, mas a busca e
“credibilidade”, isto é, aquilo que determina o “direito à palavra” dos seres
que comunicam, e as condições de validade da palavra emitida
(CHARAUDEAU, 2006a, p.49)
Cada jornal constrói uma verdade própria. A realidade não é fixa, imutável. Ela
é interpretável. Hernandes (2006, p.21) explica que verdade, realidade e ideologia estão
profundamente relacionados, e diz que
O rótulo de verdade ou de mentira colocado nos produtos dos jornais por
determinados grupos sociais tem quase sempre motivação política. Indicam,
na forma de sanção pública, que determinado recorte da realidade feito pelos
jornais reforça ou nega suas visões de mundo e estratégias de manutenção ou
busca de poder. Não raras vezes, o debate sobre a “veracidade” de um texto é
muito mais a exposição de uma crítica de motivação ideológica do que o
resultado de um exercício analítico.
Quem informa tem uma competência para informar. À imprensa é atribuída
credibilidade por admitir-se que ela dispõe de critérios de avaliação eficientes e justos
para julgar e separar o verdadeiro, confiável e autêntico, do falso, do engodo. Mas a
verdade é transitória, cultural e excludente, como veremos no capítulo seguinte.
Foucault (2006a, p.18) lembra um princípio grego que diz que “a aritmética pode bem
ser o assunto das cidades democráticas, pois ela ensina as relações de igualdade, mas
39
somente a geometria deve ser ensinada nas oligarquias, pois demonstra as proporções
nas desigualdades”.
É impossível falar de imprensa e verdade sem falar de poder, que é quem de fato
promove as interdições, exclusões e proibições sociais. Esta é a ordem do discurso, que
guarda em sua mais recôndita essência seus laços afetivos com o desejo e o poder. Isto,
de certa forma, turva a transparência do que é dito, daquele acontecimento: aquilo foi
dito com uma função e foi dito e controlado daquela forma porque não poderia ser de
outra. A imprensa disciplina e controla o mostrar. É uma instância tão reconhecida que
se criou no inconsciente coletivo a idéia de que para que algo seja, de fato, verdadeiro, é
preciso ser publicado em jornal.
A imprensa, através de técnicas de transmissão da “verdade” conquistou
prestígio e poder. Sodré (1996, p.67) explica que
Nessa luta contra o segredo do poder, a imprensa foi assumindo
progressivamente posições de poder, semelhantes, de certo modo, a
dispositivos de Estado. Sua capacidade de denunciar ocultamentos e
irregularidades colocava-a numa posição análoga à do Ministério Público,
com seus procuradores e promotores de justiça investidos do poder estatal de
denúncia jurídica. Igualmente, sua capacidade de suscitar ou de defender
causas públicas colocava-a em paralelo à ação de lideranças políticas ou de
empreendimentos de modernização social.
Com o princípio democrático do poder controlar o poder (o legislativo controla o
executivo e o judiciário, todos), a imprensa acabou por assumir o “Quarto Poder”, termo
usado pela primeira vez na França do final dos anos 20 do século XIX pelo deputado
McCaulay, em referência à Revolução Francesa (TRAQUINA, 2005a).
Assumir o “Quarto Poder” não significa necessariamente dizer que a partir daí
toda a imprensa rompeu com aquele modelo sobre o qual as linhas editoriais variavam
de acordo com os interesses de grupos políticos e econômicos. Com o fortalecimento do
capitalismo
(...) a imprensa, cada vez mais desenvolvida em termos empresariais, vai
alterando a sua função tradicional, coincidentemente quando o Estado muda o
seu tipo básico de legitimidade, o da racionalidade jurídica consubstanciada
em normas legais (SODRÉ, 1996, p.69).
A partir daí, o Estado passa a ser guiado pela lógica econômica e por um regime
de verdade cuja credibilidade é garantida pelas estatísticas. Os meios de comunicação
40
(...) adquirem um novo estatuto cultural e uma posição de poder sem
precedentes na História do mundo. Já não se trata mais da velha imprensa
como tribuna de uma consciência liberal, mas de um complexo integrado de
formas de expressão escrita, falada e imagística, suscetível de constituir uma
verdadeira estrutura de poder (SODRÉ, 1996, p.69).
A legitimidade do poder não pode prescindir de técnicas de transmissão da
“verdade”. Através desse processo de comunicação que forma e “alimenta” a opinião
pública, é natural que haja aí uma influência progressiva na participação política dos
cidadãos, quer “seja pela criação de uma realidade política despolitizada, pela
estimulação de técnicas plebiscitárias de sondagem da opinião pública ou então pela
simples conversão das campanhas eleitorais em táticas mercadológicas” (SODRÉ, 1996,
p.72). Uma coisa é certa, pelo poder/saber discursivo que a mídia tem, ela produz
sentidos e influencia sujeitos. Mas, para se compreender esse “fenômeno”, é preciso ir
além das palavras, numa arqueologia interminável sobre a constituição do sujeito
através do discurso.
41
2
Além das palavras
Você diz a verdade
e a verdade é seu dom de iludir.
(Trecho da canção “Dom de iludir”, de Caetano
Veloso)
Em um tempo não muito distante, os partidos políticos brasileiros eram
classificados em “de direita” e “de esquerda”. Os “de direita” aglutinavam os partidários
governistas e representavam o conservadorismo das oligarquias, das elites, dos
chamados coronéis, dos empresários, etc. Os “de esquerda”, inspirados pela teoria
socialista que priorizava os interesses coletivos sobre os individuais, representavam a
classe operária, os pobres, os excluídos, os marginalizados, e ainda contavam com a
simpatia de artistas, estudantes e intelectuais.
Em um tempo ainda mais remoto, conforme a história da democracia francesa,
“esquerda” e “direita” significavam mais um posicionamento referencial em relação à
presidência de uma assembléia do que uma posição social e convicção política. Havia
ainda “os do meio”, ou “moderados”. No Brasil contemporâneo, esses políticos “do
meio” ficaram conhecidos popularmente como “os de cima do muro”. Como não eram
contra nem a favor das decisões majoritárias, teoricamente eram neutros. Mas era uma
neutralidade que escondia, por trás do manto da oratória democrática, os interesses
deslizantes e sorrateiros que circulam pelos bastidores da política.
Hoje, falar em “esquerda” e “direita” já não é tão comum. O que está em voga é
“situação” (aqueles que apóiam o governo) e “oposição” (aqueles contrários ao
governo). Contudo, independente do momento e das definições, em qualquer dos casos
há um posicionamento. Quer seja contrário ou favorável. A língua, a história, a
ideologia; tudo interpela o homem. E este é instado a tomar decisões, a se manifestar.
Dessa forma se dá a experiência humana e ela começa, efetivamente, através da língua.
42
A questão é: quando alguém diz “eu sou neutro” ou “eu sou ateu” ele está realmente
sendo transparente, além do bem e do mal e acima de qualquer religião? A linguagem é
a manifestação metafórica dos nossos anseios, vontades, desejos, decisões; é um rio
para onde convergem a certeza das dúvidas e a dúvida das certezas, onde o equívoco e a
afetação são protegidos por uma lâmina tênue e frágil de uma transparência utópica,
irreal. A própria língua é um convite ao deslize, posto ser histórica, social e
interpretável.
Para a Análise do Discurso (AD), a linguagem materializa a ideologia, a língua e
a história. Não existe neutralidade na linguagem e esta é a mediação necessária entre o
homem e a realidade natural e social. Essa mediação é o discurso, que “torna possível
tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do
homem e da realidade em que ele vive” (ORLANDI, 2005, p.15). Diz Pêcheux (1988,
p.160) que
É a ideologia que fornece as evidências pelas quais ‘todo mundo sabe’ o que
é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve, etc.,
evidências que fazem com que uma palavra ou um enunciado ‘queiram dizer
o que realmente dizem’ e que mascaram, assim, sob a ‘transparência da
linguagem’, aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das
palavras e dos enunciados.
O sujeito, conforme conceito adotado pela AD, não é um indivíduo em si, mas
um sujeito social que ocupa um determinado lugar estabelecido e regrado pela
sociedade de acordo com as situações sócio-históricas. Ele é ao mesmo tempo livre e
submisso, “ele é capaz de uma liberdade sem limites e uma submissão sem falhas: pode
tudo dizer, contanto que se submeta à língua para sabê-la” (ORLANDI, 2005, p.50). Ou
seja, ele é constituído por um discurso que já emerge afetado pelas condições de
produção.
Quando nos propomos a analisar o discurso, não devemos nos limitar à
materialidade textual nem à sua função como mensagem. Estamos inclinados a pensar o
discurso além de sua superficialidade, pois nele temos uma relação de sujeitos e
sentidos e não uma simples transmissão de informação. É um equívoco, portanto, pensar
que o jornalismo, cujo discurso é nosso objeto de análise, tem por função simplesmente
transmitir informação. É isso que pretendemos mostrar após essa discussão sobre os
dispositivos teóricos da AD. Isto posto, cremos que é possível passar a conceitos
primordiais para fundamentar e nortear este trabalho.
43
2.1 A ordem é controlar o discurso
O discurso é o efeito de sentido entre locutores. Este sentido não é
simplesmente aquele que, de alguma forma, um locutor enunciou e o receptor decifrou.
O discurso é, sobretudo, uma produção social afetada pela história, pela língua, pelas
condições de emergências. Logo, a realização do efeito de sentido está condicionada a
certas circunstâncias. Diz Foucault (2006a) que, em toda sociedade, essa produção
social é controlada e selecionada, organizada e redistribuída através de procedimentos
que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar e domesticar seu
acontecimento aleatório, sua dimensão.
O sentido (ou os sentidos) contido em um discurso não está exclusivamente na
estrutura lingüística, no explícito, no presente. É preciso verificar a sua função
enunciativa, como e de que forma aquilo foi produzido no tempo e no espaço. O sentido
se faz até mesmo no silenciamento, na ausência, na exterioridade do dito, do não-dito,
no imaginário do sujeito, no implícito. Para apreendermos o sentido da chamada de capa
Mendigar vira ‘negócio’ com renda maior que a de professor”, publicada em 19 de
março de 2006 pelo jornal Correio da Paraíba, é preciso ir além das palavras. A AD não
busca simplesmente qual o sentido do texto, mas, sobretudo, como o texto/discurso faz
para dizer o que diz e sustentar suas “verdades”. É preciso, pois, ir em busca da data da
publicação, do dia; questionar em que condições de produção aqueles dizeres
emergiram e de que lugar institucional regulamentado; procurar entender porque a
palavra negócio está aspeada, porque a comparação entre mendigo e professor, porque
aqueles dizeres e não outros. Aliás, de qual professor trata a matéria? É de universidade,
de pré-escolar, de um cursinho de informática? Depois, tentar compreender como está
materializada no coletivo social a imagem do que seja um professor e um mendigo em
nossa sociedade; depois, ainda, trabalhar com esse suporte de enunciados e de
comunicação de massa que se chama jornal impresso, que usa tipografia e cores
variadas, que usa fotos e gráficos para reforçar uma informação, que “escolhe” publicar
uma notícia e não outra, que dá um enfoque X e não um Y, que dá um destaque a uma
chamada com letras garrafais e trata outra com discrição. Diria Shakespeare: There are
44
more things in heaven and earth, Horatio,/ Than are dreamt of in your phylosophy
14
.
No terceiro capítulo, retomaremos a discussão a cerca dos sentidos dessa chamada
jornalística.
Na explicação de Pêcheux (1990) discurso é estrutura e acontecimento.
Estrutura porque depende de procedimentos lingüísticos para sua manifestação e
acontecimento, porque, a partir das filiações históricas e da organização da memória, é
um momento de interpretação realizado pelo sujeito. Acrescenta ainda o filósofo francês
que
(...) todo discurso é o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-
históricas de identificação, na medida em que ele constitui ao mesmo tempo
um efeito dessas filiações e um trabalho (mais ou menos consciente,
deliberado, construído ou não, mas de todo modo atravessado pelas
determinações inconscientes) de deslocamento no espaço (...) (PÊCHEUX,
1990, p.56).
Por isso devemos estar atentos às singularidades do discurso, de seu
acontecimento, de sua existência. Quando falamos acontecimento, nos referimos a um
acontecimento de linguagem, à enunciação,o a um fato jornalístico como vimos no
capítulo anterior. Explica Foucault (2006a, p.57-58) que
Certamente o acontecimento não é nem substância nem acidente, nem
qualidade nem processo; o acontecimento não é da ordem dos corpos.
Entretanto, ele não é imaterial; é sempre no âmbito da materialidade que ele
se efetiva, que é efeito; ele possui seu lugar e consiste na relação,
coexistência, dispersão, recorte, acumulação, seleção de elementos materiais;
não é ato de propriedade de um corpo; produz-se como efeito de e em uma
dispersão material (...).
Não se trata, bem entendido, nem da sucessão dos instantes do tempo, nem da
pluralidade dos diversos sujeitos pensantes; trata-se de cesuras que rompem o
instante e dispersam o sujeito em uma pluralidade de posições e de funções
possíveis.
Não é o sujeito que temporaliza, mas o acontecimento. A temporalidade é
constituída por um presente que abre uma latência de futuro. O sujeito, através de suas
emoções e razões, de seu lugar social, de suas condições, interpreta o acontecimento e o
transforma em acontecimento discursivo, em enunciação.
Observemos a nossa seguinte ilustração:
14
Na tradução para o livro de “Viagens na Minha Terra”, do português Almeida Garrett, está: “Há mais
coisas no céu, há mais na terra/ Do que sonha a tua vã filosofia”.
45
Três elementos compõem esta ilustração partindo do centro para fora:
acontecimento (fato), sujeito e acontecimento discursivo. O acontecimento (fato) é
representado por um ícone que ocupa um espaço central e flui para todas as direções em
proporções e de maneiras diferentes. O sujeito é representado por um ícone com olhos
distintos e antenas captadoras trêmulas. Olhos e antenas são limitados a um ângulo de
direção. Outros ícones (coração, marcador de lugar, indicador de tempo e gráfico)
rodeiam o sujeito – melhor: ratificam as condições que constituem o sujeito. O
acontecimento discursivo é representado por um ícone disforme (o sujeito enunciador)
que fala a partir de seu lugar. A partir de uma posição social e condição de produção, o
sujeito observa, interpreta e gera o acontecimento discursivo.
Cada acontecimento discursivo é único. Mesmo que vários sujeitos presenciem
um fato na mesma hora, do mesmo ângulo, isto não constitui um só acontecimento
discursivo. Por isso é preciso estar pronto
para acolher cada momento do discurso em sua irrupção de acontecimentos,
nessa pontualidade em que aparece e nessa dispersão temporal que lhe
permite ser repetido, sabido, esquecido, transformado, apagado, até nos
menores traços, escondido bem longe de todos os olhares, na poeira dos
livros. Não é preciso remeter o discurso à longínqua presença da origem; é
preciso tratá-lo no jogo de sua instância (FOUCAULT, 2005, p.28).
Dizer que o mundo era redondo no século XV era um acontecimento, hoje, é
outro. De 13 de dezembro de 2005 a 28 de outubro de 2006, o Correio da Paraíba
publicou cerca de 20 pesquisas de opinião sobre as intenções de voto para o governo da
46
Paraíba. Cada pesquisa publicada constituiu um acontecimento discursivo. Vejamos
algumas:
Data Manchete
22/01/06 Consult: Maranhão lidera com 48,45% e Cássio tem 31,85%
19/02/06 Consult: Maranhão lidera com 47,25% e Cássio tem 35,10%
27/03/06 Consult: Maranhão lidera com 46,35% e Cássio tem 36,25%
Embora o texto seja repetido como uma fórmula fixa (há variação apenas dos
números), trata-se de acontecimentos discursivos distintos, irrompem em momentos
diferentes. A repetição do texto, o martelar silencioso do discurso, vai ratificando a
condição do candidato Maranhão que, na primeira pesquisa, é líder; na segunda,
continua líder; na terceira, permanece líder. O acontecimento jornalístico, baseado em
critérios que consideram novidade um fundamento para noticiabilidade, é “descartado”
pelo Correio da Paraíba. A variação percentual que mostra que o candidato Maranhão
caiu 2,1 pontos percentuais e o candidato Cássio subiu 4,4, da primeira para a terceira
pesquisa, parece irrelevante. No entanto, em jornalismo, quando se trata de divulgar
pesquisas (instrumentos sistemáticos e valorativos utilizados por grupos sociais para
indagar, averiguar, investigar ou buscar respostas para dadas situações) ou siglas
permanentes (dólar, bolsa de valores, inflação, custo de vida, cesta básica), é
procedimento recorrente destacar a variação referencial para ajudar a tornar a
informação inteligível para o leitor. Dizer que o dólar comercial fechou o dia em R$
2,20 é diferente de informar que ele teve uma queda ou uma alta em relação ao dia
anterior ou a outro período. O valor do dólar pode representar mudanças significativas
na vida do leitor: o preço do pãozinho, por exemplo, pode subir. Dizer que a inflação
está em 2% significa bom ou ruim? Se o jornal não disser que ela subiu ou desceu o
leitor ficará confuso. E no caso particular, sobre a intenção de voto do eleitor, a pesquisa
(ou pesquisas) tem como principal função apresentar a evolução do candidato dentro de
um determinado período/espaço.
Com isso, tem-se a impressão de que o Correio da Paraíba, ao “ignorar” a
variação percentual, trata as três pesquisas como um mesmo acontecimento jornalístico
(que veremos no capítulo seguinte). O movimento da opinião pública, que navega aos
balanços dos acontecimentos discursivos políticos presentes no período dedicado à
reflexão e escolha dos homens que vão administrar o estado, fica à margem das
considerações jornalísticas. Por isso ser fundamental observar as particularidades, as
47
singularidades da existência do discurso, que é constituído de uma seqüência de signos
na forma de enunciados.
Nem tudo pode ser dito em qualquer lugar e em qualquer hora. É preciso estar
atento aos procedimentos de regulação do discurso constituídos nas sociedades. O
sujeito, aparentemente, é livre, mas não é dono de seu dizer: ele pensa que conhece, que
sabe o que diz, mas há um espaço exterior e interior que o controla, um pré-construído
pensado e dito antes. O sujeito é, então, assujeitado. Mas não um assujeitamento radical.
Através do cruzamento entre ideologia e inconsciente, Pêcheux (1988, p.304) esclarece
que
(...) - não há dominação sem resistência: primado prático da luta de classes,
que significa que é preciso “ousar e revoltar”;
- ninguém pode pensar do lugar de quem quer que seja, primado prático do
inconsciente, que significa que é preciso suportar o que venha a ser pensado,
isto é, “ousar pensar por si mesmo”.
A disciplina, as normas, os métodos, as leis, os regimentos, os códigos, a ética,
os dogmas, as regras, as proibições; a sociedade regula todas as ações do sujeito como
se este estivesse no Panóptico
15
. Por isso as interdições, as exclusões, as punições. Em
“Hino de Duran”
16
, música de Chico Buarque, essas regulações são bastantes explícitas.
Vejamos:
Se tu falas muitas palavras sutis/ E gostas de senhas, sussurros, ardis
A lei tem ouvidos pra te delatar/ Nas pedras do teu próprio lar
Se trazes no bolso a contravenção/ Muambas, baganas e nem um tostão
A lei te vigia, bandido infeliz/ Com seus olhos de raio X
Se vives nas sombras, freqüentas porões/ Se tramas assaltas ou revoluções
A lei te procura amanhã de manhã/ Com seu faro de dobermann
E se definitivamente a sociedade só te tem desprezo e horror
E mesmo nas galeras és nocivo, és um estorvo, és um tumor
A lei fecha o livro, te pregam na cruz/ Depois chamam os urubus
Se pensas que burlas as normas penais/ Insuflas, agitas e gritas demais
A lei logo vai te abraçar, infrator/ Com seus braços de estivador
Se pensas que pensas etc.
15
O Panóptico é um modelo de casa de detenção de Jeremy Bentham, cuja arquitetura permitia
visibilidade constante e total do preso. Para Foucault, em “Vigiar e Punir” (2006c), isto assegurava o
funcionamento e manutenção do poder.
16
Do disco “Ópera do Malandro”, lançado em 1979 como trilha sonora de uma peça homônima.
48
O que é dito, portanto, é dito a partir de determinadas condições de
possibilidades, do contexto imediato, da história. Por isso um enunciado ser relacionado
a outro, por isso o sujeito poder ocupar lugares diferentes, realizar acontecimentos
discursivos diferentes; mas sempre dentro de uma dada prática discursiva, de um lugar
regulado e regulador. Vejamos a ilustração seguinte.
O ícone central, que se revela um tanto agitado, representa o sujeito afetado por
tudo aquilo (as instituições, os lugares sociais demarcados, a história, a língua) que
norteia e regula o discurso. “O contexto histórico-social, então, o contexto da
enunciação, constitui parte do sentido do discurso e não apenas um apêndice que pode
ou não ser considerado” (MUSSALIM, 2003, p.123).
Na ilustração, setas apontam para e retornam do sujeito. Há um diálogo
permanente entre ele e o lugar social ocupado. Este lugar é disciplinador, controla a
produção do discurso, “fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de
uma reatualização permanente das regras” (FOUCAULT, 2006a, p.36). O discurso não
é propriedade do sujeito, mas desse lugar. Quem fala, fala de algum lugar. Quem fala,
tem um status, um poder, uma competência para falar, um domínio de um saber. Isto
compreende um sistema de diferenciação e de relações, divisão de atribuições,
subordinação, complementaridade funcional. O lugar constitui um campo qualificável
49
(FOUCAULT, 2005). O médico, o engenheiro civil, o eletricista, o cozinheiro, o
governador, o economista; todos são qualificados e estão autorizados por uma
legitimação e regulação social para desempenhar e falar a partir de suas funções nos
locais pertinentes: quem pode prescrever uma receita é um médico, quem pode
responder pela construção de um prédio é um engenheiro, etc. Em seu lugar
determinado, o sujeito se apropria de uma “presunçosa” verdade (melhor: vontade de
verdade) garantida por sua posição, saber e lugar social.
A função de um instituto de pesquisa, por exemplo, é coletar dados e apresentar
resultados, conforme a ordem social. Já a função do jornal é informar. Assim, este, se
valendo daquele e se eximindo de qualquer responsabilidade, credita a informação
veiculado aos sujeitos autorizados, protegido pelo dito popular de que “portador não
merece pancadas”, pois é apenas o “portador”, o “informador”, “um instrumento à
serviço da democratização da informação”; mas pode ser também o “boateiro”, o
“fofoqueiro”, “o falastrão”, “o correio da má-notícia”.
Quando o jornal Correio da Paraíba estampa “Consult: Maranhão lidera com
48,45% e Cássio tem 31,85%, estrategicamente se apóia numa estrutura lingüística,
numa técnica jornalística que o distancia da informação para atribuí-la a uma instituição
social e cientificamente legitimada. Não se trata de uma informação de alguém
qualquer. Trata-se de um instituto “já conhecido no Estado e em todo Nordeste”,
esclarece o jornal em matéria da página A3 de 13 de dezembro de 2005.
Não é qualquer sujeito que pode ocupar qualquer lugar a qualquer hora. Esta é a
ordem do discurso, uma organização social que disponibiliza uma infinidade de lugares
para as mais variadas necessidades. Um médico, quando no hospital, é um profissional
com habilidades compatíveis com o lugar; quando em casa, seu lugar é de chefe de
família, na fila de um banco, é de cliente, no volante de um carro, de motorista... e assim
por diante, mas ele continua sendo médico, um sujeito social regulado pela ordem do
discurso.
No jornalismo, os lugares sociais e seus ocupantes são fundamentais para
ratificar e legitimar a função do jornalismo e suas informações. É de acordo com a
sentença de um juiz que o jornal pode dizer que o réu foi condenado ou absolvido; é o
parecer médico que vai atestar a causa mortis; ouvir especialistas sobre o aquecimento
do planeta ou economistas sobre a inflação dá credibilidade à informação.
O discurso é “um conjunto em que podem ser determinadas a dispersão do
sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo” (FOUCAULT, 2005, p.61), um
50
espaço exterior em que se desenvolve uma rede de lugares distintos, uma rede de
práticas discursivas diferentes.
Quando Foucault fala da descontinuidade do sujeito e da dispersão, ele se afasta,
rompe com as noções históricas tradicionais de continuidade, cronologia, linearidade,
soberania do sujeito. Sua sintonia é com a Nova História
17
. Por isso frisamos, logo no
início deste capítulo, a importância de se observar o discurso em sua irrupção, o local, a
data, circunstâncias, enfim, as singularidades de sua emergência. É preciso, pois,
sacudir a quietude das formas prévias da continuidade: além de uma lógica e ingênua
regularidade do dito, há um não-dito, um já-dito; controles implícitos que fundamentam
dizeres a partir de instâncias e condições.
Quanto à dispersão, trata-se das diversas posições ocupadas pelo sujeito e
reveladas pela discursividade própria de cada lugar, chamada de formação discursiva
(FD). Explica Foucault (2005, p.43) que
No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados,
semelhante sistema de dispersão e no caso em que entre os objetos, os tipos
de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma
regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos,
transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação
discursiva – evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições e
conseqüências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão, tais
como “ciência”, ou “ideologia”, ou “teoria”, ou “domínio da objetividade”.
Notemos que ao invés de ideologia, ou formação ideológica, Foucault (2006b,
p.7) prefere “regras de formação” como as condições de existência de uma repartição
discursiva, pois “a ideologia está em posição secundária com relação a alguma coisa que
deve funcionar para ela como infra-estrutura ou determinação econômica, material,
etc.”, concepções predominantes nas teorias marxistas.
As formações discursivas manifestam uma inseparável ligação com o desejo e o
poder nas suas micro-lutas e micro poderes, pois onde há poder, há resistência e luta.
Para Foucault (2006a, p.10), “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas
ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos
17
Movimento francês de renovação dos estudos históricos, que muda a concepção do “sujeito da
História”. O foco é a história das atividades humanas, e não só políticas. Não apenas os envolvidos em
grandes acontecimentos merecem atenção. Todos os homens merecem atenção. É a história vista de
baixo, fragmentada em documentos vistos como monumentos a serem investigados através de
procedimentos arqueológicos. Diz Sargentini (2004, p.85) que a Nova História “considera as questões
sociais e culturais, que levam o historiador a observar as relações de poder, já que a difusão cultural tem
como mediadores grupos sociais possuidores de um discurso dominante e de poder”.
51
queremos apoderar”. O discurso é lugar de conflito, arena de lutas, de disputa; e esses
enfretamentos revelam a necessidade de demarcação de território, de conquista, de
dominação... de poder. Embora tenhamos adotado para este trabalho o conceito
foucaultiano de formação discursiva, vale aqui mostrar a de Pêcheux (apud
GREGOLIN, 2001, p.17), feita a partir da leitura de Althusser sobre Marx:
(...) o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não
existe ‘em si mesma’ (isto é, em sua relação transparente à literalidade do
significante), mas é determinada pelas posições ideológicas colocadas em
jogo no processo social histórico em que as palavras, expressões e
proposições são produzidas (isto é, reproduzidas). Poderíamos resumir essa
tese dizendo: as palavras, expressões, proposições, etc. mudam de sentido
segundo as posições daqueles que as empregam, o que significa que elas
tomam seus sentidos em referência a essas posições, isto é, em referência às
formações ideológicas nas quais essas posições se inscrevem. Chamaremos,
então, formação discursiva aquilo que, em uma formação ideológica dada,
isto é, a partir de uma posição dada em uma conjuntura dada, determinada
pelo estado da luta de classes, determina ‘o que pode e deve ser dito’.
O marxismo oficial, como descreve Miotello (2005), entendia ideologia como
“falsa consciência”, escurecimento e não-percepção das contradições das classes sociais
promovidas pelas forças dominantes – a ideologia “ocultava” a realidade social. Tal
concepção levou Althusser a formular conceitos sobre mecanismos de controle social,
dentre eles os aparelhos ideológicos do Estado (AIE), que teoricamente garantiam a
dominação da classe dominante através da reprodução das condições materiais. E o
discurso, observou Mussalim (2003), se constituiu em um “aparelho ideológico”, pois
nele se manifestam os embates entre os lugares sociais.
O Círculo de Bakhtin
18
também releu o conceito marxista de ideologia e o
colocou ao lado de uma outra concepção, chamada de ideologia do cotidiano. Esta, se
constituía “nos encontros casuais e fortuitos, no lugar do nascedouro dos sistemas de
referência, na proximidade social com as condições de produção e reprodução da vida”
(MIOTELLO, 2005, p.69). Em 1930, Voloshinov, intelectual do Círculo de Bakhtin, fez
a única definição dada por alguém do Círculo sobre ideologia: trata-se de um conjunto
dos reflexos e interpretações da realidade social e se expressa através das palavras ou
formas sígnicas, é uma expressão de uma tomada de posição determinada (MIOTELLO,
2005, p.69). Portanto, todo signo é ideológico, porque é valorativo, parte de um ponto
18
Trata-se de um grupo de intelectuais que se reuniu de 1919 a 1920 para discutir idéias, reflexões sobre
a linguagem.
52
de vista, de um lugar determinado sócio-historicamente, caracterizado pela organização
e a regulação das relações histórico-materiais dos homens.
Se, por um lado, as formações discursivas revelam uma regularidade temática e
enunciativa, por outro, revelam os sentidos no entremeio do interdiscurso (memória
discursiva) e intradiscurso (aquilo que dizemos em dado momento, em dadas
condições). O interdiscurso, conceito base da construção teórica de Pêcheux, “designa o
espaço discursivo e ideológico no qual se desenvolvem as formações discursivas em
função de relações de dominação, subordinação, contradição” (GREGOLIN, 2001,
p.18). Trata-se da realidade fornecida a cada sujeito, impondo-dissimulando seu
assujeitamento sob a aparência da autonomia; é um conjunto de formulações feitas e já
esquecidas, mas que permanece a circular nos discursos. Sempre a determinar os
dizeres.
Seguindo os vestígios do discurso, encontramos ainda a paráfrase e a
polissemia. É o jogo entre o mesmo e o diferente, como diz Orlandi (2005). Tanto
repetimos, retornamos ao mesmo espaço de dizer, como nos deslocamos no processo de
significação. Isto vem atestar a qualidade de heterogeneidade do discurso. Por isso “a
palavra é a arena onde se confrontam os valores sociais contraditórios e, por isso, os
conflitos da língua refletem os conflitos de classe no interior do sistema”
(GRIGOLETTO, 2005, p.117). Por isso o sujeito ser afetado pela ideologia, pois ele faz
uso do signo, das palavras.
Quando falamos em heterogeneidade, falamos na incompletude da língua, do
discurso, do sujeito; todos tomados pelas relações dialógicas (teoria de Bakhtin que
compreende os espaços de tensão entre vozes sociais). Se há diálogo, há presença do
outro. Um outro não necessariamente presente, face a face. Um outro que se apresenta
de formas variadas. Diz Grigolleto (2005, p.121) que
(...) ao introduzirmos na nossa fala a palavra do outro, inevitavelmente a
revestimos com algo de novo, com nossa compreensão com nossa avaliação,
a partir da nossa inscrição em uma ordem social. Portanto, o sujeito nunca
está na origem do que diz e, a cada novo dizer, a sua palavra é determinada
social e ideologicamente.
Authier-Revuz (1990) classifica heterogeneidade em mostrada e constitutiva.
A primeira é dividida em marcada (discurso indireto, aspas, etc.) e não-marcada
(ironia, imitação, etc.). A segunda é apoiada em três discussões teóricas: a) o
dialogismo de Bakhtin, para o qual as palavras são “carregadas”, atravessas por palavras
53
de outros, b) o interdiscurso, que postula o funcionamento do discurso regulado pelo
exterior e c) a psicanálise, que entende a fala como fundamentalmente heterogênea e o
sujeito dividido – sob as palavras, “outras palavras” são ditas.
Embora se apresentem sob ordens diferentes, ambas (mostrada e constitutiva)
se conjugam na construção dos sentidos do discurso. O discurso é heterogêneo porque
comporta outros discursos, porque comporta em seu interior contradições, diferentes
posições-sujeito. O efeito de unidade de discurso, de homogeneidade é uma simulação,
“que está baseada nas evidências de que o sujeito é a origem do dizer e que o sentido é
literal, transparente” (GRIGOLETTO, 2005, p.125).
Essas marcas de heterogeneidade são corriqueiras no discurso jornalístico.
Vozes do jornal, do jornalista, do entrevistado, do especialista, do cientista, do popular;
inúmeras vozes estão sempre se entrecruzando e resultando notícias, que voltam a se
entrecruzar sucessivamente com outras vozes. Em 9 de julho de 2006 o Correio da
Paraíba trouxe a manchete “Déficit habitacional cresce 15% e faltam 160 mil casas
na PB”. Neste caso, o título “esconde” a heterogeneidade discursiva. O Correio assume
a informação como se fosse ele que estivesse falando, como se fosse “proprietário”
daquela “verdade” revelada na unidade do discurso no título. No entanto, ao ler a
matéria encontram-se “segundo dados do Ministério das Cidades”, “para o
Governo”, “conforme secretário”. Trata-se de um momento de explicitação da
heterogeneidade mostrada. No entanto, é comum também encontrar essa característica
discursiva logo na manchete do jornal ou nos demais títulos. Se voltarmos aos exemplos
das pesquisas citados atrás, veremos que logo no início o Correio fala mais pela voz do
instituto: “Consult: Maranhão lidera com 48,45% e Cássio tem 31,85%”. O jornal
fala, mas o crédito da informação não é seu, pertence a outra instância discursiva, a
outra voz autorizada, legitimada socialmente. Mas por que o jornal se apropria de um
discurso em um momento e em outro não? No terceiro capítulo aprofundaremos essa
discussão.
Historicamente a legitimização do jornalismo se deu sobre a ilusão de
transparência, do sentido único da materialidade textual, da neutralidade. Uma ilusão...
a possibilidade do controle do discurso não é uma possibilidade, é uma realidade que
está além das palavras.
54
2.2 E assim se fez o sujeito, consentido
Esse modo de ilusão do sujeito ganha forma e força a partir do regime
democrático adotado em alguns países em fins do século XIX e início do XX. Antes, a
ilusão consistia na fé religiosa, na bondade dos soberanos, cujo ideal de vida moral
reprimia o erro, a falta, o pecado; ou em nome de uma felicidade futura inatingível neste
mundo, ou, como prêmio, “no outro”; tudo, em função dos interesses protegidos pelos
binômios “bem” e “mal” e “bom” e “mau”, como observa Nietzsche (S/D, p.25):
Foram os próprios “bons”, os homens nobres, os poderosos, aqueles que
ocupam uma posição de destaque e têm a alma elevada que julgaram e
fixaram a si e a seu agir como “bom”, ou seja, “de primeira ordem”, em
oposição a tudo o que é baixo, mesquinho, comum e plebeu. Foi esse pathos
da distância que os levou a arrogar-se por primeiros o direito de criar valores,
de forjar nomes de valores: que lhes importava a utilidade.
Com a democracia, sistema político em que o governo é escolhido pelo povo
através de eleições regulares e em condições de sufrágio universal e sob garantias
mútuas de respeito aos resultados, criou-se a ficção da igualdade de todos perante o
poder constitucionalizado, como bem observou Wanderley Guilherme dos Santos
19
.
Desse modo, espalhou-se o princípio de que “o poder emana do povo, pelo povo e para
o povo” e legitimava-se o poder democrático.
E o sujeito? Bem, naturalizado nesse novo modelo de sociedade, vale-se dos
direitos civis, políticos e sociais constitutivos da cidadania. Fruto dos séculos XVIII e
XIX, os direitos civis garantiam a igualdade, propriedade, liberdade, expressão, etc.; os
políticos, os direitos individuais exercidos coletivamente, a liberdade de associação, de
organização política, sindical, o sufrágio universal, etc.; os sociais, consolidados em
meados do século XX, garantiam o acesso ao bem-estar coletivo, a seguridade social, o
trabalho, o salário, as férias, as jornadas fixas, a educação, a segurança, a habitação, o
lazer, o acesso à cultura, o transporte, etc. Diz Foucault (2006b, p.289) que o objetivo
do governo não é certamente governar, “mas melhorar a sorte da população, aumentar
sua riqueza, sua duração de vida, sua saúde, etc.”.
O sujeito, portanto, “senhor” da liberdade de informação e expressão; do seu
poder de voto; de sua instrução acadêmica; das legislações o protege de governantes que
19
Em artigo publicado na revista Continente Multicultural, ano IV, nº 47, novembro de 2004, página 16.
Trata-se de um excerto de palestra de Wanderley Guilherme dos Santos publicada originalmente na
Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 36, 1998.
55
“desconhecem” o objetivo final do governo; enfim, “senhor” de todos esses saberes que
o reveste com a sólida armadura dos direitos humanos e sociais e das certezas
epistemológicas; possivelmente o sujeito se sente menos instável e vulnerável ao
assujeitamento social. Contudo, não devemos esquecer que: a) não há dominação sem
resistência e b) o sujeito não é autônomo. Ele não age sem a intervenção das forças
sociais, não transita sem os famigerados olhos do big brother a “invadir seus
pensamentos” e a policiar seus atos como uma sombra constante e opressora. A
condição de libertação do sujeito é a sua submissão à sociedade. “A coerção social é (...)
a força emancipadora, e a única esperança de liberdade a que um humano pode
razoavelmente aspirar” (BAUMAN, 2001, p.27). Assim se forma o sujeito, consentido.
A constituição do sujeito, efetivamente, dá-se por uma série de concessões
travestidas de liberdade, de uma autonomia utópica, de uma felicidade subjetivamente
ficcional. Dá-se, inclusive, pelo duelo do ser e não ser. O sujeito é livre, mas não é. Sua
liberdade é a dependência, concessão e punição. As charges abaixo, publicadas na
revista “Caros Amigos”, em 15 de novembro de 2002, ilustram bem esse assunto:
Ora, mas de que sujeito estamos falando aqui? Do individualizado? Do sujeito
marxista, constituinte e soberano da história? Não. Do sujeito do discurso, um sujeito
56
perpetuamente preso ao cordão umbilical social que assegura o alimento constitutivo de
sua formação. Alimento este que, depois de ruminado, retorna ao turbilhão da sociedade
em cumprimento ao contrato de convivência coletiva, que prevê responsabilidades para
méritos e deméritos, direitos e obrigações, posturas “politicamente corretas”. É
importante enfatizar ainda que não estamos falando de um indivíduo, mas de lugares
sociais que determinam os sujeitos.
A condição de vida desse sujeito é a incompletude. Assim como a linguagem,
ele está em um constante processo de formação, disperso em um mundo cuja
durabilidade é descartável, cuja velocidade é atordoante e cuja distância não se mede em
metros, mas em competência de dispositivos tecnológicos. Se a pouco tempo se dizia
que alguém era deficiente por apresentar uma deficiência física ou psíquica, hoje “o
correto” é dizer portador de necessidades especiais; ao invés de negros,
afrodescendentes; de prostitutas, profissionais do sexo; de empregado, colaborador; de
dona-de-casa, administradora do lar; de velhos, idosos, turma da terceira idade e, mais
recentemente, turma da melhor idade e etc. Mudanças possibilitadas porque as verdades
são transitórias e a opacidade é nata, guarda sentidos que escapam às evidências e
carregam em si histórias e conflitos sociais.
A todo instante, com o passar do tempo e com a disseminação na mídia das
evoluções e revoluções dos movimentos cotidianos, o sujeito busca um pertencimento e
circula pelos lugares sociais estabilizados e institucionais. Seu discurso é polissêmico,
posto ser atravessado pelo interdiscurso, pela ordem social, pelo já-dito inscrito na
história e esquecido, adormecido e “iguanizado”; pelos discursos de outros que circulam
e se enlaçam nesse emaranhado de enunciados que surge através da linguagem. Seu
pertencimento a uma nacionalidade, a uma língua, a um modelo de sociedade, a uma
religião, a uma identidade volátil, numa construção permanente de desconstrução, a uma
educação, a uma família, a grupos sociais, a sindicatos; fragmentos constitutivos da
natureza heterogênica do sujeito.
O sujeito racionalizado pelo cartesianismo, individual, senhor do seu nariz e de
sua razão pela propriedade inequívoca de pensar e capacidade de significar sua
existência, teoricamente constituinte; este sujeito, logo, não existe. O que existe é um
sujeito social, constituído, forjado “por longos, árduos e conflituosos acontecimentos
discursivos, epistêmicos e práticos” (ARAÚJO, 2001, p.89), no decorrer do espaço e do
tempo, através da história dos saberes.
57
Esta compreensão ganhou corpo com Foucault que, durante 20 anos de estudos,
buscou construir uma história do presente que tinha o sujeito como tema. A esse
apanhado teórico deu-se nome de arqueogenealogia do sujeito, método que encontrou
na arqueologia e genealogia meios para observar as práticas objetivadoras,
discursivas e subjetivadoras que acabariam por tornar o ser humano (o indivíduo) em
sujeito constituído, em sujeito do discurso, assujeitado às movências das práticas e
formações discursivas.
De posse desse método arqueogenealógico, o mestre francês iça para o campo
filosófico as práticas discursivas, as disciplinas entranhadas na história que deram lugar
a saberes e conquistaram status de ciência; e começa a analisar o modo como as
sociedades ocidentais realizavam suas experiências, como os homens se relacionavam
dentro de padrões sociais e como o conhecimento se constituía em poder e estabelecia
suas regras.
Em meados do século XVIII o homem objetivado é inscrito para o saber. “A
grande novidade epistêmica é que a vida, o trabalho e a linguagem têm cada qual sua
própria historicidade”, diz Araújo (2001, p.101), que acrescenta: o homem
(...) aparece quando surgem a biologia que o mostra como organismo vivo, a
vida tendo suas próprias condições de evolução; a economia que o mostra
como produtor, cujo trabalho depende do seu modo de produção e a filologia
que o mostra como falante, tendo cada língua suas regras próprias (ARAÚJO,
2001, p.103).
Essas formas finitas (vida, fala e trabalho) são as condições empíricas do
conhecimento e se reproduzem como tendo uma história própria, condicionando o
homem nesse percurso interminável do tempo. Tais formas se apresentam como em um
lago turvo, confuso, a despejar em cascata um mar de interrogação: o homem trabalha,
mas o fruto deste trabalho não lhe pertence, pois lhe é “naturalmente” imposto; ele fala,
dá sentido às coisas através das palavras, mas estas são enunciadas conforme regras,
quer gramaticais, quer estabelecidas por lugares sociais; o homem é vivo quando
pulsante e consciente, revestido por um tecido biológico, mas está fadado à morte, pois
a força da vida ultrapassa a experiência imediata. O que nos permite conhecer, o que faz
do homem, homem (seu trabalho, sua vida e sua fala), escorrega por entre os dedos,
foge pelas frestas do exercício do saber, esconde-se nas lacunas que ficam para trás
quando pensamos avançar.
58
Toda essa prática objetivadora, todo saber científico não explica a dispersão do
homem na sociedade ocidental, as ligações entre verdade e poder, o desenvolvimento
das forças sociais, das populações, das ciências humanas, da governabilidade, das
escolas, do direito, da medicina, das práticas disciplinares, dos aparelhos e instituições
que produziam efeitos sobre os corpos e geravam sentidos.
Para Araújo (2001, p.89), essas ciências dissolveram o homem:
(...) mostrando o que e pelo que ele é objetivado, então, na verdade o homem
enquanto tal, não existe. (...) Significa que o ser humano tem acesso a si
através de saberes, não importando seu conteúdo ou sua relação com a
cientificidade no contexto da arqueogenealogia.
Contudo, para se compreender os saberes e conseqüentemente a dispersão do
homem, ou melhor, do sujeito (o homem agora deixa de ser visto como indivíduo e dá
lugar ao sujeito social) é preciso, antes, compreender a linguagem. É através da
linguagem que respondemos, que falamos quem somos, que indicamos os sentidos, que
explicamos os signos, que damos significados aos objetos, que entendemos o mundo. A
linguagem é a manifestação das condições de produção discursiva. E se assim o é, o
dizer é determinado, e a constituição do sujeito passa pela linguagem. A linguagem
conduz e reproduz valores sociais, empresta identidade, regula, normaliza o sujeito. Em
tempo: estamos falando aqui da linguagem manifestada no discurso e materializada pelo
texto.
Com a genealogia, diz Araújo (2001), Foucault evidencia que o sujeito, além de
objetivado por práticas epistêmicas, é também por práticas disciplinares, requisitadas
pelo novo modelo de produção de riqueza do capitalismo nascente que, através de
técnicas de poder, tornava o sujeito em força produtiva. Tratava-se de um modelo
econômico não-estático que, assim como o sujeito, seria algo amplamente adaptável. Ou
seja, o sujeito é algo em permanente construção através das práticas discursivas de cada
época, de cada momento.
O discurso, portanto, não é apenas um conjunto de regras lingüísticas, “faz parte
de um jogo, de jogos estratégicos de ação e reação, alvo de luta, objeto de polêmicas”
(ARAÚJO, 2001, p.110), e só é proferido porque está em uma ordem consentida. O
lugar do sujeito é vazio, até ser ocupado por alguém com condições normatizadas por
instituições sociais e legais. Condições essas que, reguladas pelas práticas discursivas
que emergem no tempo, legitimam a posição do sujeito. Na história da democracia nos
59
séculos XVII e XVIII na sociedade ocidental, por exemplo, o lugar do sujeito-eleitor era
ocupado pelo sujeito casado, masculino, adulto, com um elevado nível de renda,
religioso e branco. Hoje, precisamente no Brasil, o lugar desse sujeito-eleitor é ocupado
por sujeitos maiores de 16 anos, independente da renda, sexo ou cor.
A determinação do discurso acontece porque a sociedade disciplina, produz
verdades e normaliza práticas, comportamentos. Com isso nasceram as clínicas, as
prisões, as escolas, os manicômios. Tudo dentro de uma ordem e classificação. Com
isso, a doença deixa de ser uma condição humana natural ou mística para ser uma
conseqüência social; pode ser tratada, evitada e as epidemias, controladas; o marginal
passa a ser isolado da sociedade, e sua punição um exemplo, um alerta; os loucos, os
anormais, afastados dos normais; as escolas, minúsculos observatórios sociais, a ensinar
condutas de caráter, técnicas de si, subjetivações “que levam o sujeito a relacionar-se
com seu corpo e sua alma e a modelar-se de acordo com instruções que lhe são
oferecidas” (GREGOLIN, 2004, p.143) para se viver bem e vencer na sociedade
competitiva. “As disciplinas funcionam cada vez mais como técnicas que fabricam
indivíduos úteis” (FOUCAULT, 2006, p.174), que o domesticam e evidenciam na
sociedade certas relações de saber e poder. Por isso o sujeito não pode dizer nem fazer
qualquer coisa em qualquer lugar. O discurso, além de disciplinado, também disciplina,
procedimento sem o qual seria difícil o controle social e produtivo.
A formação do sujeito na extensão infinda da história é concebida pelos saberes
que produzem verdades; que vêm de determinadas condições políticas e de relações de
poder controladas pelos discursos a partir de saberes. Ou seja, a disciplina é garantida
pelo poder, e suas verdades estabilizadas pelos saberes. Assim se faz o sujeito,
consentido, embora também se faça com sentido. É o que veremos.
2.3 E assim se fez o sujeito, com sentido
A discursivização é um processo de travessia de sentidos entre sujeitos,
fundamenta a realidade e dá sentido à existência. Seria inconcebível o sujeito reduzido a
si, sem o outro. É um homem falando que encontramos no mundo, um homem falando
com outro homem, para outro (BENVENISTE, 1988, p.286). Quando o sujeito-jornal
fala, por exemplo, fala para outro sujeito, o sujeito-leitor. Sua “intenção” é comunicar
60
algo, informar sobre o que aconteceu ontem, o que vai acontecer hoje ou amanhã ou o
que pode acontecer depois.
Um sujeito só existe em relação ao outro, ninguém é herói de si mesmo. Relata
Bakhtin (2000, p.43), sobre a contemplação do homem fora de si, que
Por mais perto de mim que possa estar esse outro, sempre verei e saberei algo
que ele próprio, na posição que ocupa, e que o situa fora de mim e à minha
frente, não pode ver: as partes de seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar
– a cabeça, o rosto, a expressão do rosto –, o mundo ao qual ele dá as costas,
toda uma série de objetos e de relações que, em função da respectiva relação
em que podemos situar-nos, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele.
Diz ainda o filósofo que o excedente da visão com relação ao outro instaura uma
esfera particular, “conjunto de atos internos ou externos que só eu posso pré-formar a
respeito desse outro e que o completam justamente onde ele não pode completar-se”
(BAKHTIN, 2000, p.44). O sujeito, em vida, não pode vivenciar os acontecimentos de
seu nascimento nem de sua morte. E só fazem sentido quando situados no tempo
crônico (contínuo, socializado), enunciados pelos opostos “antes” e “depois”,
ratificados pelo tempo lingüístico (presente, passado) e experimentado pelo outro. O
sujeito é incapaz de vivenciar a imagem do mundo onde viveu quando não está mais
nele. Ou seja, o homem não pode estar antes de seu nascimento nem depois de sua
morte. O outro, este sim, que está de fora, é que pode dar uma imagem acabada deste
homem (AMORIM, 2006). Apenas o outro, arremata Bakhtin (2000, p.120),
(...) torna possível a alegria que sentirei ao encontrá-lo, ao estar com ele, o
pesar que sentirei ao deixá-lo, a dor que sentirei ao perdê-lo; e é somente com
ele que posso encontrar-me e somente dele que posso separar-me no espaço
temporal.
A existência do eu só faz sentido a partir do outro, que me faz de objeto para
manifestar seu ponto de vista, sua visão de mundo sob a ótica de seu lugar. Conforme
tradução que Brait (2003, p.19) fez de Holquist: “o que vemos é governado pelo modo
como vemos e este é determinado pelo lugar de onde vemos”. Certamente, a visão que
um sociólogo terá sobre um homem que nasceu e morreu na favela não é a mesma de
seu amigo de dois meses, nem do de dois anos, que também não é a mesma de seu filho
nem de sua mãe e nem de seu pai. O que sou ou que serei para eles resultará de
compreensões variadas, de experiências, de dadas formações discursivas, de efeitos de
sentidos que formaram neles discursos sobre mim. O outro, por princípio, é opaco,
61
“opacidade que contradiz inteiramente o valor de ‘transparência’ que se afirma nas
formas atuais de comunicação” (AMORIM, 2006, p.107).
Além desse outro exterior, também constitui o sujeito os sentidos do Outro,
localizado no inconsciente. Este Outro foi teorizado por Lacan a partir de releitura da
psicanálise de Freud, para quem o sujeito era dividido entre o consciente e o
inconsciente. Recorrendo ao estruturalismo lingüístico, Lacan, então, assume que o
inconsciente se estrutura como uma linguagem, como cadeia de significantes,
(...) que se repete e interfere no discurso efetivo, como se houvesse sempre,
sob as palavras, outras palavra, como se o discurso fosse sempre atravessado
pelo discurso do Outro, do inconsciente. (...) O inconsciente é o lugar
desconhecido, estranho, de onde emana o discurso do pai, da família, da lei,
enfim, do Outro e em relação ao qual o sujeito se define, ganha identidade.
Assim, o sujeito é visto como uma representação – como ele se representa a
partir do discurso do pai, da família etc. –, sendo, portanto, da ordem da
linguagem (MUSSALIM, 2003, p.107).
A canção “Para Nóia”, composta e gravada por Raul Seixas no disco “Novo
Aeon”, em 1975, ilustra bem essa presença constante desse Outro latente:
Quando esqueço a hora de dormir
E de repente chega o amanhecer
Sinto uma culpa que eu não sei de que
Pergunto o que eu fiz?
Meu coração não diz
Eu sinto medo
Se eu vejo um papel qualquer no chão
Tremo, corro e apanho para esconder
Medo de ter sido uma anotação que eu fiz
Que não se possa ler
E eu gosto de escrever
Mas, mas eu sinto medo
Tinha tanto medo de sair da cama à noite pro banheiro
Medo de saber que não estava ali sozinho porque sempre
Sempre, sempre
Eu estava com Deus
Eu tava sempre com Deus...
Minha mãe me disse há um tempo atrás
Onde você for Deus vai atrás
Deus vê sempre tudo que cê faz
Mas eu não via Deus
Achava assombração
Mas, mas eu tinha medo
62
Vacilava sempre a ficar nu lá no chuveiro, com vergonha
Com vergonha de saber que tinha alguém ali comigo
Vendo fazer tudo que se faz dentro dum banheiro
Dedico esta canção
Para Nóia
Com amor e com medo
A presença do Outro na vida desse eu que o compositor revela na música é
onipresente, assustador, temível. Até a dedicação, embora indique coragem e amor para
revelar seus temores na composição, é feita com medo. Talvez receando um castigo dos
pais ou de Deus por dar vazão aos seus desejos, sentimentos, pensamentos. Esse eu
manifesta a força da educação judaico-cristã, um Deus/vigia incansável, guardião da
razão e dos “verdadeiros” valores morais, o juiz sem falha, o imaculado detentor da
correção e senhor da vida eterna.
No entanto, tudo (o pai, a mãe, o padre, o mais velho, a moral, a religião, o
medo, a própria imagem de Deus) foi e vem sendo construído aos galopes compassados
dos relógios, ao ritmo quase imperceptível do movimento da Terra, ao repetido acender
do sol e apagar da lua, ao inquietante e perturbado movimento das ondas dos
desenvolvimentos humanos. Ninguém está a salvo das formações e práticas discursivas
que deixa no tempo o sulco de sua passagem e continua a singrar pelo enviesado corpo
social. Isto quer dizer que, se o sujeito é afetado pela língua, pela história; se sua
constituição é consentida pelas condições e possibilidades sociais disponíveis ou
impostas; isso só ocorre através dos efeitos de sentidos inoculados no discurso. Diz
Orlandi (2005, p.53) que
o sujeito significa em condições determinadas, impelido, de um lado, pela
língua e, de outro, pelo mundo, pela sua experiência, por fatos que reclamam
sentidos, e também por sua memória discursiva, por um saber/poder/dever
dizer, em que os fatos fazem sentido por se inscreverem em formações
discursivas que representam no discurso as injunções ideológicas.
Os possíveis sentidos de um discurso são demarcados, preestabelecidos pelas
identidades de cada formação discursiva. Os sentidos de um discurso religioso são
diferentes dos de um científico, dos de um gestor da saúde pública. O que não quer dizer
que eles não se entrelacem para construir uma “verdade” pretendida. Lembremos da
heterogeneidade discursiva, dos dizeres autorizados e suas ratificações.
63
O sentido não existe em si e nem antes da constituição do discurso, tampouco é
único. Mas é possível que um sujeito, intencionalmente, se antecipe a outro para
experimentar os efeitos de seu discurso. A isso a AD chama de mecanismo de
antecipação, que “regula a argumentação, de tal forma que o sujeito dirá de um modo
ou de outro, segundo o efeito que pensa produzir em seu ouvinte” (ORLANDI, 2005,
p.39). A interpretação, portanto, como resultado de efeito de sentido e não simplesmente
como um processo de decodificação, não é linear, embora o sujeito interprete a partir da
materialidade discursiva do texto.
O discurso religioso católico, cujos sentidos constituem obediência a Deus e às
leis impressas na Bíblia para uma vida eterna no paraíso, vai de encontro ao uso do
preservativo, independente das fraquezas dos homens e da gravidade da contração das
DSTs (doenças sexualmente transmissíveis). A ordem do discurso religioso é a
fidelidade, a exclusividade da relação sexual no matrimônio. “O que Deus uniu o
homem não separa”. Contudo, não se pode afirmar que todos os católicos, mesmo sendo
católicos e tementes a Deus, comunguem dessa orientação religiosa. Outros discursos
sobre o mesmo assunto, condutores de outras “verdades”, provenientes de outros
lugares sociais estabilizados e com sentidos demarcados, acabam por interferir nos
sentidos produzidos no sujeito. “Longe de ser um autômato passivo, o sujeito vive numa
constante tensão entre a aceitação e a recusa do poder, numa espécie de batalha entre
relutância do querer e a intransitividade da liberdade” (GREGOLIN, 2003a, p.103). Ou
seja, quando falamos de produção e efeitos de sentidos, estamos falando também de
relações de poder, de saberes e verdades que circulam pelas sociedades. O que ratifica a
heterogeneidade na formação do sujeito, no seu discurso. Logo, o discurso científico
atravessa o religioso, pois está provado que a Aids não tem cura, mata. Prevenir é o
melhor remédio. E este discurso científico, também atravessa o político, o econômico.
Por isso se desenvolver campanhas publicitárias, educativas e didáticas sobre o modo
mais seguro para se evitar o contágio do HIV. A saúde pública tem um custo alto para
os governos.
A movência dos sentidos, as interpretações; todas as relações estabelecidas pelo
sujeito ocorrem a partir de sua vivência social, de sua experiência na
contemporaneidade. A leitura é um espaço de controle, lugar de possibilidades de
criação de novos sentidos, é movimento que pode constituir um lugar para a
subjetividade do leitor. Um texto só se completa quando é lido, meditado, tocado com
64
os olhos, sentido pelos dedos, postos à prova do tempo para constituírem a armadura da
conduta cotidiana (MILANEZ, 2004).
A frase de “Some words may hide others”
20
, de William Shakespeare, trata das
várias possibilidades de leituras escondidas nas próprias palavras, nos dizeres, no que
não é dito mas o é, de alguma forma. Para Gregolin (2003b), a interpretação não se
limita à decodificação dos signos, nem se restringe aos desvendamentos de sentidos
exteriores, são as duas coisas: leitura dos vestígios que envolvem os sentidos e que leva
a outros textos. Os sentidos nunca são definitivos, sempre deixam aberturas para o
movimento da contradição, do deslocamento e da polêmica.
Até dezembro de 2007 o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) disponibilizava em
seu site um spot (breve mensagem publicitária) para ser veiculado em rádio. O texto,
que era introduzido após gritos de torcida de futebol (“É! Campeão!”) e de palavras de
ordem, dizia o seguinte:
Você sempre pôde dizer o que pensa, mas sem o título de eleitor você não
será ouvido. Se você tem 16 ou 17 anos você já pode votar. Procure um
cartório eleitoral na sua cidade, com documento de identidade com foto e
comprovante de endereço. Faça seu título de eleitor. Seja ouvido. Decida o
futuro de seu país. Justiça Eleitoral. (negrito nosso)
Em uma rápida leitura, podemos dizer que a Justiça Eleitoral está convocando
jovens entre 16 e 17 para tirar o título de eleitor e, sobretudo, votar. As evidências dos
sentidos encontrados nesse discurso giram em torno do processo democrático das
eleições, da necessidade de se participar da escolha dos representantes públicos, da
importância de se opinar sobre o futuro da cidade, do estado, do país através do voto.
Mas outros sentidos são reclamados e escapam à superfície do texto, fogem pelo
sumidouro da materialidade lingüística.
Podemos iniciar essa discussão em torno de duas frases: “Você sempre pôde
dizer o que pensa” e “você já pode votar”. A primeira frase é sustentada, reafirmada
pela liberdade de expressão e de reivindicação que o sujeito tem, como em um campo
de futebol ou em uma passeata. Contudo, silencia a condição histórica do sujeito que,
cerceado por regimes autoritários, nem sempre pôde dizer aquilo que pensava. Em
1968, por exemplo, o presidente-general Costa e Silva assinou o Ato Institucional nº 5
(AI-5) que
20
Tradução: “Algumas palavras podem esconder outras”, do filme “Arthur et les Minimoys”.
65
(...) conferia ao Executivo um poder praticamente ilimitado para cassar
mandatos políticos, decretar o recesso do Congresso, determinar medidas
repressivas, impor estado de sítio ou de emergência, e até suspender as
mínimas garantias individuais (o direito de locomoção, por exemplo)
(ARBEX JR., 1997, p.39).
A palavra sempre, portanto, que o Aurélio (FERREIRA, 1999) grafa como em
todo o tempo, em qualquer ocasião, todo o tempo passado ou futuro, continuamente,
constantemente, sem cessar, apaga parte da história e se inscreve contraditoriamente no
discurso para motivar a aquisição de um documento e garantir a voz do cidadão, do
eleitor. Ora, se ele sempre pôde dizer o que pensa, por que precisa do título de eleitor
para ser ouvido? Porque é obrigado por lei, sentido que está além da materialidade do
texto, subscrito naquilo que não aparece, naquilo que efetivamente não é dito.
Na segunda frase encontram-se também vestígios do tempo, da história da
democracia brasileira. Os sentidos do já pode remontam um tempo em que não se podia
(oposição, inclusive, ao sempre pôde), e que agora se pode, basta ter entre 16 e 17
anos. Este já pode, também, presume uma espontaneidade, uma vez que o jovem nessa
faixa etária não é obrigado a votar, mas é uma espontaneidade motivada pelo fato de
que só votando ele pode ser ouvido. O que nos leva a crer que o jovem, por mais que
grite sua rebeldia e dê vazão a seus hormônios irrequietos, ele não é ouvido. Até
completar 18 anos, seus pais é que respondem pelos seus atos. O gesto de votar,
portanto, se confunde com a maioridade, com o respeito, responsabilidades, direito e
deveres inerentes à idade adulta.
A campanha do TSE ainda chama atenção para o poder que constitui o voto
(“Decida o futuro de seu país”), mas silencia o direito do eleitor votar nulo, em branco
ou cancelar seu voto. Em outras palavras: se você não votar em alguém, você também
não será ouvido. Enfim, vários outros efeitos de sentidos podem ser encontrados nesse
discurso da Justiça Eleitoral, como se a representatividade fosse plena e o eleitor fizesse
as opções essenciais dentro de um governo, como se o eleitor detivesse o controle de
todos os mecanismos e os recortes estatísticos de uma administração pública. Mas aí já
seria uma outra análise. Continuemos.
Somos leitores da realidade e fazemos essa leitura através das formas simbólicas
de representação. Tudo, no fundo, é interpretação. Um símbolo, em si, é uma
interpretação de outros símbolos. Dessa forma, ao sentir/ler/interpretar a realidade, o
66
homem constrói seu saber. Mas é um saber dependente da realidade que se lhe oferece,
que se lhe impõe. Ou seja, o homem
(...) não pode pensar a si próprio senão mediante as representações que ele se
dá. O homem é, portanto, ao mesmo tempo, sujeito e objeto, conhecedor do
mundo e por este conhecido, “soberano súdito, espectador observado”
(CHARAUDEAU, 2006b, p.191).
A produção e cristalização dessas representações têm se tornado cada vez mais
intensas e eficientes com a mídia, pois ela é uma das mais fundamentais instâncias de
constituição de representações imaginárias, que objetiva e naturaliza o mundo, constrói
e propaga “verdades” (FILHO, 2004). Assim, a mídia acabou por se consolidar como
um importante mediador entre o leitor e a realidade, servindo de “espelho” da realidade.
No entanto, “o que os textos da mídia oferecem não é a realidade, mas uma construção
que permite ao leitor produzir formas simbólicas de representação da sua relação com a
realidade concreta” (GREGOLIN, 2003a, p.97). Edifica-se, dessa maneira, o imaginário
social, onde indivíduos reproduzem imagens e se percebem em relação a si e em relação
a outros; onde manifestam suas aspirações, medos, esperanças; onde organizam seu
passado, presente e futuro. Dessa forma, ocorre a materialização dos sentidos nos
sujeitos.
Por hora, cremos que o exposto já serve para sinalizar como os sentidos vão
constituindo o sujeito (consentido e com sentido), que vive nessa constante tensão entre
a aceitação do poder e a insubmissão da liberdade, embalado pelas “verdades”
empíricas e epistemológicas que forjam sua frágil armadura para a batalha do convívio
coletivo. “Verdades” essas, que trataremos a seguir.
2.4 O poder da verdade e a verdade do poder
Podemos iniciar este tópico com algumas frases que nos parecem corriqueiras na
sociedade: “É verdade, eu vi no jornal”, “Quem manda aqui em casa, sou eu”, “Só Deus
tem o poder de julgar” e “Procure um advogado pra defender seus direitos”. O
encadeamento entre as verdades na constituição de saberes e nas relações de poder é
patente nessas frases. O jornal, o chefe de família (independente se homem, mulher, pai,
mãe, filho, filha, parente qualquer ou simplesmente um responsável), Deus (às vezes
67
também tratado como Jesus Cristo) e o advogado; todos representam lugares
legitimados pela sociedade para manifestar determinada ordem de poder com disciplina,
regulação e distribuição de informação. Mas, afinal, o que é “poder”? Diz Ruiz (2004)
que se trata de uma palavra que todo mundo entende, mas ninguém consegue explicar e
tentar defini-la já é uma pretensão de poder. O poder, em si, não existe. O que existe são
relações e efeitos de poder e não devem ser vistos como mecanismos repressores.
Explica Foucault (2006b, p7-8) que
Quando se define os efeitos do poder pela repressão, tem-se uma concepção
puramente jurídica deste mesmo poder; identifica-se o poder a uma lei que
diz não. (...) Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a
não ser dizer não você acredita que seria obedecido? O que faz com que o
poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como
uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao
prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede
produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância
negativa que tem por função reprimir.
Isso quer dizer que o poder são micro-lutas desenvolvidas e espalhadas na
topografia social que transcendem a noção marxista de “luta de classe” (GREGOLIN,
2004). O poder circula, nunca está localizado aqui ou ali nem está nas mãos de alguns
(FOUCAULT, 2006b). O sujeito não é detentor do poder, mas está sempre em posição
de exercê-lo ou de sofrer sua ação. Para funcionar, o poder precisa formar, organizar e
colocar em circulação saberes que, com seus “discursos verdadeiros”, afetam os modos
de subjetivação e determinam o sujeito. Tal subjetivação – condição necessária para que
se viva socialmente com uma identidade definida –, conforme Ruiz (2004), pode ser
definida como um dispositivo que estimula a constituição autônoma e a capacidade do
sujeito de definir seu desejo, seu estilo de vida e pretensa individualidade. Pode,
também, pelo contrário, ser definida como um dispositivo de poder que o controla no
seio da sociedade disciplinar, com o objetivo de tornar mais eficiente o funcionamento
das instituições e garantir a estabilidade e a produtividade do sistema. Desse modo,
(...) somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar
tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer em função dos
discursos verdadeiros (...) (FOUCAULT, 2006b, p.180).
“Discursos verdadeiros” são aqueles proferidos por sujeitos autorizados, que
desfrutam de uma condição privilegiada de poder para “falar”. Tais discursos são
68
gerados pela “verdade”, que é transitória, histórica, social e produz efeitos
regulamentados de poder. A verdade é própria de cada sociedade, que decide os tipos de
discursos e como eles devem funcionar como verdadeiros; que cria mecanismos para
distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos e técnicas para obter as verdades e
estatuto do sujeito do dizer verdadeiro (FOUCAULT, 2006b).
Ano passado, em comemoração aos seus 10 anos, a TV Futura divulgou três
filmes publicitários que enfatizavam os efeitos de poder e as verdades que circularam e
ainda circulam na nossa sociedade. O primeiro filme, “Verdades”, trazia o seguinte
texto:
Já foi dito que a Terra era o centro do universo e que era o Sol que girava ao
seu redor. Já disseram que virgens deveriam ser sacrificadas, que livros não
poderiam ser lidos e bruxas mereciam ser caçadas. Já foi dito que o homem
era incapaz de voar ou de chegar ao fundo do oceano. Já foi dito que negros
não poderiam entrar, que judeus não poderiam sair e que só os brancos teriam
o direito de ir e vir. Já disseram que gênios eram loucos e que loucos eram
brilhantes. Já foi dito que mulheres não deveriam votar e que
microorganismos eram lendas e curas eram impossíveis. Já disseram que a
televisão seria apenas mais um eletrodoméstico na sua vida. Futura, o canal
que liga você.
Sustentado por imagens que materializa o assunto abordado em cada frase, o
filme, pouco a pouco, desperta sentidos que tentam convencer o sujeito que a TV Futura
deixa, de fato, o telespectador “ligado”, “antenado” com o mundo, porque ela tem a
consciência de que os discursos podem ser verdadeiros para determinadas épocas e para
outras, não; para determinados sujeitos e para outros, não. A verdade absoluta não
existe. Vejamos o que diz o segundo filme, “Pensamentos”:
Você pode pensar muitas coisas. Pode achar que nada supera o capitalismo ou
ter certeza de que o comunismo é a única saída. Você pode pensar que
existem vários deuses, um, nenhum ou que eles eram astronautas. Você pode
ter várias teorias da conspiração. Pode saber quem matou Keneddy, acreditar
que a viagem à Lua foi uma grande farsa ou que Elvis está vivo. Você pode
pensar que a televisão é mais um eletrodoméstico na sua vida ou que é uma
das maiores invenções da humanidade. Você pode pensar muitas coisas, a
única coisa que você não pode fazer é não pensar. Futura, o canal que liga
você.
Do início ao fim o enunciado insiste na idéia de que “você pode pensar...”, que
cada sujeito “é livre” para pensar uma coisa ou outra, desde que baseado em saberes
69
estabilizados na sociedade (sistemas políticos, economia, religião, ciência, tecnologia),
condição esta que percorre o fio discursivo de modo discreto. A liberdade é uma
condição de submissão à constituição histórica do sujeito, controlada pelo status do
lugar social e pelo lugar desconhecido do inconsciente.
No terceiro filme, “Condenados”, assim como nos anteriores, o enunciado faz
referência a fatos controversos que ficaram registrados na história, só que destacando
personagens e ações:
Galileu pensou que a Terra girava em torno do Sol, acabou condenado. Joana
D’Arc queria unificar a França, terminou na fogueira. Robespierre pensou
que podia ser igual e livre, foi parar na guilhotina. Tiradentes queria o Brasil
independente, foi condenado à forca. Sorte sua viver numa época em que
você é livre pra pensar. Futura, o canal que liga você.
A verdade não existe fora do poder nem sem poder (FOUCAULT, 2006b). Ela é
construída historicamente e é atravessada por interesses. A verdade do astrônomo e
físico italiano Galileu Galilei (1564-1642) era uma afronta ao poder soberano exercido
pela Igreja Católica, que defendia uma verdade baseada na obediência e no controle dos
fiéis: Deus era o centro do universo (teocentrismo), portanto tudo girava em torno Dele.
Os ideais de Joana D’Arc viraram fumaça e os de Robespierre e de Tiradentes
silenciados em praça pública, pois contradiziam os discursos verdadeiros e interesses de
outras forças de poder.
Hoje, o saber pensado por Galileu foi naturalizado; a França, mesmo com suas
diferenças territoriais, é um país unificado e realizou a revolução que originou os
direitos fundamentais do homem (igualdade, liberdade e fraternidade); o Brasil é um
país independente. A verdade não é imóvel, transita, sofre alteração, desaparece ou é
resgatada no rumo da história e está intrinsecamente ligada ao poder.
Vale enfatizar o resgate que a mídia faz da história para atualizar o presente e
estabelecer com o sujeito uma relação social estreita, quase familiar, embora vários
sentidos escapem à idéia de que viver numa época em que pensar não é motivo para
condenação é “ter sorte”. A atual situação histórica e o próprio sujeito é fruto da sorte,
para o enunciador, e não o resultado de um processo de lutas e polêmicas, de digladio
discursivo e de sepultamento de sonhos.
Um outro exemplo sobre os efeitos de poder do discurso verdadeiro pode ser
encontrado no slogan do jornal Correio da Paraíba: “Correio: A verdade em suas
mãos”. Segundo Maingueneau (2002, p.171), o slogan “se destina, acima de tudo, a
70
fixar na memória dos consumidores potenciais a associação entre uma marca [Correio
da Paraíba] e um argumento persuasivo para a compra”. Geralmente é uma frase curta e
está sempre ancorada na própria situação de enunciação. Note-se como o slogan do
Correio exclui a possibilidade do falso, do erro em seu produto. “A verdade, sob esse
ponto de vista, avalia-se através de um dizer, logo, é uma questão que pode ser tratada
segundo determinadas oposições” (CHARAUDEAU, 2006a, p.88). Ao invés de dizer o
que não aconteceu diz o que aconteceu; ao invés de mascarar a intenção (mentira ou
segredo) diz a intenção oculta; ao invés de fornecer explicações sem prova oferece com
prova (CHARAUDEAU, 2006a, p.88). Cabe ao sujeito-jornal, autenticar os fatos e
descrevê-los de maneira verossímil, sugerir as causas e justificar as explicações, “fazer
crer na coincidência, sem filtragens nem falsas aparências, entre o que é dito e os fatos
descritos” (CHARAUDEAU, 2006a, p.88). Com “Correio: A verdade em suas
mãos”, o jornal assume o compromisso de perseguir as condições de veracidade para
oferecer “a” notícia cordialmente e comodamente às mãos do sujeito-leitor; supõe uma
relação de transparência e reforça sua credibilidade baseada no saber jornalístico de
imparcialidade e objetividade. Ou seja, com tal slogan o Correio diz: “Olha a verdade
aí. Essa é a realidade”.
Do ponto de vista do domínio lingüístico, verdadeiro e falso constituem
significados opostos. Mas, se a verdade em si não existe como existiria o falso? Sobre
esse caso, Foucault (2006a, p.14) explica o seguinte:
(...) se nos situarmos no nível de uma proposição, no interior de um discurso,
a separação entre o verdadeiro e o falso não é nem arbitrária, nem
modificável, nem institucional, nem violenta. Mas se nos situamos em outra
escala, se levantamos a questão de saber qual foi, qual é constantemente,
através de nossos discursos, essa vontade de verdade que atravessou tantos
séculos de nossa história, ou qual é, em sua forma muito geral, o tipo de
separação que rege nossa vontade de saber, então é talvez algo como um
sistema de exclusão (sistema histórico, institucionalmente constrangedor) que
vemos desenhar-se.
Isso quer dizer que o que existe não é a verdade, e sim uma “vontade de
verdade”, prodigiosa maquinaria que exclui todos aqueles (os “falsos”) contrários a ela
(ver enunciado do 3º filme da TV Futura), apoiada sobre um suporte institucional que
controla, valoriza, distribui, reparte e atribui o saber (FOUCAULT, 2006a). Através de
um conjunto de práticas pedagógicas dos saberes, das experiências e contratos sociais,
das titulações, dos prêmios, dos livros, das bibliotecas, dos cursos e treinamentos e,
71
sobretudo, através dos meios de comunicação essa vontade de verdade vai sendo
consolidada, reforçada e reconduzida no seio da sociedade. Com a circulação daquilo
que é definido como verdadeiro, o sujeito, “convencido” do seu livre arbítrio, faz suas
adesões e procura se inserir nos modos produtivos do poder para satisfazer seus próprios
interesses e buscar vantagens (Ruiz, 2004). Isto, é claro, a partir de uma ética - conjunto
de regras e valores prescritos pelas instituições sociais.
Para Ruiz (2004, p.105), “a lógica da verdade não cede espaço para
interpretações”, assim se apresenta em forma de poder, estrutura saberes e confecciona
discursos. Por isso
Os discursos verdadeiros se impõem como elementos de poder que delimitam
a conduta dos indivíduos, definem os horizontes das sociedades e classificam
as práticas culturais. A verdade (única ou universal) perde sua máscara de
inocência para mostrar seu “verdadeiro” rosto autoritário quando se constitui
no símbolo que uniformiza as condutas e padroniza o modo de ser das
subjetividades e das culturas. (RUIZ, 2004, p.105).
Todos aqueles que contornam ou se dispõem contrários ao discurso verdadeiro
são qualificados de irracionais, interditados; suas práticas são reprovadas. O discurso
verdadeiro classifica, “o poder da verdade ajusta o sujeito (o sujeita) a um modo
determinado (limitado) de ver e entender o mundo. Sua cosmovisão passa a ser o modo
verdadeiro de ser” (RUIZ, 2004, p.106).
Em outras palavras, podemos dizer que o poder (efeitos ou relações de poder
exercidos pela força ou persuasão) controla, disciplina o sujeito. Exercido como
persuasão, diz Ruiz (2004, p.52), “procura o consentimento, busca o adestramento dos
indivíduos e tem como objetivo sua colaboração ativa com os mecanismos do sistema”.
No mundo atual, dito globalizado, essa forma de controle e vigilância “não tem”
fronteiras nem fixidez. Trata-se de controles móveis que, de algum modo, vai de
encontro à arquimetáfora do poder moderno utilizado por Foucault em seus estudos: o
Panóptico. Este modelo se sustentava na limitação do espaço, na manutenção do fluxo
do tempo e da rotina para garantir a dominação. No entanto, os dominadores acabavam
reféns do próprio modelo, presos no exercício da vigília. Para Bauman (2001), hoje, o
poder se move com a velocidade de um sinal eletrônico. Não importa mais onde está
quem dá a ordem. O espaço que separa o “próximo” do “distante”, o selvagem do
civilizado e ordenado está próximo de desaparecer. O estágio presente, como queira a
história classificar, é pós-Panóptico. Assevera ele que
72
As principais técnicas do poder são agora a fuga, a astúcia, o desvio e a
evitação, a efetiva rejeição de qualquer confinamento territorial, com os
complicados corolários de construção e manutenção da ordem, e com a
responsabilidade pelas conseqüências de tudo, bem como com a necessidade
de arcar com os custos (BAUMAN, 2001, p.18).
Por todos os lugares, somos vigiados por câmeras que espreitam nossos passos,
atentas ao nosso vacilo, à nossa fraqueza. Enquanto isso, os discursos verdadeiros vão
nos orientando a não sair da linha. Em janeiro deste ano, a revista Veja (edição 2042,
ano 41, número 1) trouxe na capa a manchete “REGRAS”, questionando o porquê de a
vida ter passado a ser regulada por elas (como se só fosse a partir de agora) e orientando
sobre as que funcionam para: liderar, educar filhos, se dar bem no trabalho, superar uma
separação, melhorar a vida sexual e não abandonar a dieta. As dicas, cercada de
verdades sustentadas e autenticadas por saberes inscritos em livros de auto-ajuda,
sujeitam os seres sociais a determinados comportamentos, posturas, falas; subjetivações
que garantem uma “felicidade”, um bem-estar social.
As atuais relações de força que prevalecem em nossa sociedade tendem mais à
“abertura” do controle contínuo que ao fechamento descontínuo das instituições
disciplinares. Na educação, por exemplo,
(...) é possível facilmente observar que sua promoção é cada vez menos um
conjunto de ações realizadas em meio fechado, distinto do ambiente
profissional; instaura-se a exigência da formação continuada tanto para o
operário-aluno quanto para o executivo-universitário, visto que numa
sociedade de controle nunca se termina nada. (...) “toda hora é hora/todo lugar
é lugar de/para aprender” (FILHO, 2004, p.145).
Podemos dizer, portanto, para concluir este capítulo, que o discurso é a principal
ferramenta de poder, como jogo estratégico e polêmico (dominação, luta, esquiva, etc.),
um espaço em que saber e poder se articulam (quem fala, fala de algum lugar, a partir
de um direito reconhecido institucionalmente) (GREGOLIN, 2001, p.14). Eis o poder
da verdade – melhor: da vontade de verdade. E saber como se dá essa vontade na
discursivização da imprensa paraibana, é nosso próximo desafio.
73
3
A invenção da verdade
Quarta, 10 de agosto de 1921 – Mas como é que
se pode chegar à verdade? Troquei o Daily News
pelo Morning Post. As proporções do mundo
tornam-se logo totalmente diferentes. (...) Posso
eu perguntar: o que é a verdade?
(“Diário”, de Virgínia Woolf)
Nos dois capítulos anteriores foram apresentadas breves análises a partir de
saberes centrados no jornalismo impresso e na Análise de Discurso de linha francesa.
Agora, iniciamos, efetivamente, o capítulo da análise das estratégias discursivas do
Correio da Paraíba nas eleições de 2006.
Há, no jornalismo, um método chamado teoria do espelho, baseado na idéia de
que as notícias são como são porque refletem a realidade. No entanto, se fôssemos partir
dos fundamentos óticos da física para compreender esse processo, chegaríamos à
conclusão de que o reflexo é relativo e que a realidade não corresponde a uma única
explicação, a uma única apreensão. Só para lembrar, existem espelhos planos e
esféricos. Em qualquer um deles há distorção do que é refletido (PENA, 2005). Nos
planos, por exemplo, a imagem já aparece invertida. Portanto, o simples argumento de
que a linguagem não é transparente, bastaria para refutar a teoria do espelho, bem
como a teoria da neutralidade (imparcialidade). O jornalismo é, antes de tudo, a
construção de uma suposta realidade. “Os próprios jornalistas estruturam representações
do que supõem ser a realidade no interior de suas rotinas produtivas e dos limites dos
próprios veículos de informação” (PENA, 2005, p.128).
De qualquer modo, os jornais não abrem mão da idéia de que as notícias
refletem a realidade. Isso lhes dá legitimidade, credibilidade e pressupõe
imparcialidade. Afinal, os jornais são “limitados por procedimentos profissionais e
74
dotados de um saber de narração baseado em método científico que garante o relato
objetivo dos fatos” (PENA, 2005, p.126).
Com uma legitimidade já construída, sobretudo pelo ethos assumido nos
embates da consolidação dos sistemas democráticos, o jornal tornou-se o mediador dos
acontecimentos discursivos e, por conseguinte, porta-voz da sociedade, privilégio
próprio de sua posição de enunciador.
Ethos representa a personalidade do enunciador e legitima sua maneira de dizer,
explica Maingueneau (2002, p.99), para quem o universo de sentido do discurso tanto é
propiciado pelo ethos como pela maneira de dizer, que remete a uma maneira de ser, “à
participação imaginária em uma experiência vivida” e “o poder de persuasão de um
discurso consiste em parte em levar o leitor a se identificar com a movimentação de um
corpo investido de valores socialmente especificados”. Ou seja,
A qualidade do ethos remete, com efeito, à imagem desse “fiador” que, por
meio de sua fala, confere a si próprio uma identidade compatível com o
mundo que ele deverá construir em seu enunciado (MAINGUENEAU, 2002,
p.99).
Diante de tais explicações, como poderemos definir o ethos do Correio da
Paraíba? É o que veremos a seguir.
3.1 A vontade de um perfil
Inicialmente, consideremos alguns elementos para falar da construção do ethos
do Correio da Paraíba – melhor: do sujeito-CP. Fundado em 1953 por Teotônio Neto, o
CP é hoje o único jornal paraibano que circula todos os dias da semana. Tem a maior
tiragem, sobretudo aos domingos, e é comercializado em todas as regiões. Embora a
prática discursiva do seu material noticioso diário constitua sua formação discursiva,
decidimos inicialmente defini-la pelo ethos de seus enunciados institucionais. Para isso,
escolhemos três:
1) “Jornalismo com ética e paixão”, inscrito na capa no canto esquerdo
superior, logo abaixo do nome do jornal;
2) “Correio: A verdade em suas mãos”, slogan oficial que já discutimos no
capítulo anterior e que mais marca o ethos do jornal por sua expansiva
75
presença no âmbito social (pinturas de muro, bancas de revistas, fiteiros,
camisetas, adesivos de táxis e etc.) e nos desfechos de publicidades
institucionais veiculados no próprio jornal ou em rádio e TV e,
3) “Governantes passam. Fica o nosso compromisso com a verdade” e
“Para ser um jornal de verdade, é preciso ter coragem e
imparcialidade”, veiculados na propaganda abaixo, publicada no dia 1 de
abril de 2006, na página A2.
Maingueneau (2002, p.98) explica que “o texto escrito possui, mesmo quando o
denega, um tom que dá autoridade ao que é dito”. Isso permite ao leitor construir uma
representação do corpo do enunciador. Não um corpo físico, tampouco de um autor
efetivo, mas “uma instância subjetiva que desempenha o papel de fiador do que é dito”
(MAINGUENEAU, 2002, p.98). A partir dos sentidos e das marcas textuais
significativas como ética, paixão, verdade, coragem, imparcialidade e compromisso,
presentes nos enunciados, ocorre uma comunhão, adesão do sujeito-leitor que acaba por
construir um caráter e uma corporalidade do sujeito fiador (sujeito-CP), provenientes
“de um conjunto difuso de representações sociais valorizadas ou desvalorizadas, sobre
as quais se apóia a enunciação que, por sua vez, pode confirmá-las ou modificá-las”
(MAINGUENEAU, 2002, p.99).
76
Desse modo, o sujeito-CP circula (corporalidade) no espaço social a desfrutar de
um ethos forjado pela ética (caráter) e outros códigos de valores estabelecidos pela
sociedade; valores estes que são, pretensamente, estendidos aos enunciados noticiosos
(veja reproduções de notícias na publicidade) em processo de construção de uma
realidade “escolhida” e publicada diariamente como a única possível.
Como sugere Foucault (2005), é preciso, pois, ir em busca do que se diz no que
está dito, estabelecer suas correlações com outros enunciados que podem estar ligados a
este, compreender sua estreiteza, singularidade e condições que o fizeram emergir. Por
isso, cabem algumas considerações sobre os enunciados constituintes da publicidade do
sujeito-CP.
Quando o sujeito-CP diz “Governantes passam”, ele não quer apenas chamar
atenção para o sistema político democrático que permite a escolha dos governantes de
quatro em quatro anos, basta verificar a frase seguinte: “Fica o nosso compromisso
com a verdade”. Pela materialidade lingüística podemos afirmar que o enunciador tenta
mostrar que governantes e compromisso com a verdade são oponentes, divergentes,
incompatíveis. Enquanto um transita (passam) o outro estaciona (fica). O
compromisso do sujeito-CP não é com o passageiro, o efêmero, mas com o estável, o
seguro. No entanto, escapa ao enunciado a memória discursiva e os sentidos do
provérbio que diz “Vão-se os anéis, ficam os dedos”. Uma coisa não exclui a outra. O
não ir dos anéis não quer dizer que os dedos não fiquem, nem o ir dos anéis signifique
que outros não possam vir a adornar os dedos. Ou seja, a temporalidade do governante
não é, em si, uma condição para haver compromisso com a verdade. Contudo,
diferente do enunciado “Jornalismo com ética e paixão” que tem espaço e local cativo
na capa do sujeito-CP (embora ele represente para a AD um novo acontecimento
discursivo a cada edição, a cada leitura, para cada sujeito), os enunciados apresentados
na publicidade estão inscritos em um momento específico, com um propósito definido e
objetivo ordenado para “esclarecer” e “modificar” algo que não está explícito, mas que
se encontra no contexto social e atende à lei da pertinência do discurso
21
. Eis porque
comparar a capa de 7 de setembro de 1999 com a de 29 de março de 2006. Recuperando
o passado, o sujeito-CP constrói o presente. Em 1999, quem governava o Estado era
José Maranhão e naquele momento, 2006, é Cássio Cunha Lima. Adversários políticos,
21
Conforme Maingueneau (2002, p.34), a lei de pertinência “estipula que uma enunciação deve ser
maximamente adequada ao contexto em que acontece: deve interessar ao destinatário, fornecendo-lhe
informações que modifiquem a situação”.
77
eles são os mais fortes prováveis candidatos ao Governo do Estado. Conforme quatro
pesquisas da Consult publicadas até aquela data pelo sujeito-CP, Maranhão, senador e
ex-governador por dois mandatos seguidos, aparecia na frente de Cássio. Podemos
dizer, então, que o momento político e o debate em torno da preferência do eleitor
permitiram que essa publicidade pudesse ser mostrada com aqueles enunciados,
manifestando a vontade de verdade do sujeito-CP de ser imparcial, nem dependia de
governo em 1999 e nem depende de governo agora. No entanto, dias antes, ele havia
publicado as seguintes notícias:
Data de
publicação
Manchete (M)/Chamada (C)
Quinta,
23/03
Professores param e PMs saem
às ruas em JP por reajuste salarial (M)
Segunda,
27/03
PMs terão assembléia e farão
vigília no Palácio da Redenção (C)
Terça,
28/03
PMS REJEITAM AUMENTO DE 5%, SAEM
ÀS RUAS E INICIAM VIGÍLIA NA PRAÇA (C)
Quarta,
29/03
Policiais civis aderem à luta dos
PMs por reajuste e ameaçam greve (M)
Quinta,
30/03
PMs impedem abastecimento
de viaturas e mantêm vigília (C)
Sábado,
01/04
Sem acordo, PMs mantêm vigília
e professores iniciam greve na 2ª (M)
Note-se que a tensão entre policiais/professores e Governo do Estado
(representado por Cássio) presentes nos enunciados acima também ofereceram
condições para a emergência da publicidade. Embora faça parte dos procedimentos
jornalísticos oferecer tratamento igual às partes envolvidas, principalmente se tratando
de notícias sobre greve, paralisação ou negociação trabalhista, esse equilíbrio passou
longe dos enunciados/manchetes. Apenas um lado dessa tensão foi apresentado, o lado
em que ficam os policiais e os professores e o outro, o do governo, foi omitido. O
sujeito reconstrói seu sentido a partir de indicações presentes no enunciado.
Compreendê-lo demanda mobilização de saberes diversos, “fazer hipóteses, raciocinar,
construindo um contexto que não é um dado preestabelecido e estável”
(MAINGUENEAU, 2002, p.20).
Se formos examinar a publicidade com mais atenção, perceberemos que os
enunciados das capas comparadas também constituem sentidos e escapam à proposta de
78
neutralidade dos enunciados institucionais, mas configuram a formação discursiva do
sujeito-CP. Enquanto a manchete da capa de 7 de setembro de 1999 diz “PMs decidem
fazer greve e Governo diz que punirá”, a de 29 de março de 2006, publicada dois dias
antes da publicidade, diz “Policiais civis aderem à luta dos PMs por reajuste e
ameaçam greve”. Em 1999 o enunciado mostra um governo austero, decisivo, forte,
que “punirá” quem fizer greve. Já no enunciado de 2006, assim como nos demais da
tabela acima, o governo inexiste, a mobilização dos servidores é crescente, além dos
PMs, agora são os policiais civis que “aderem à luta”. Curiosamente, no dia da
veiculação da publicidade (01/04), abaixo da manchete o sujeito-CP exibiu uma foto
mostrando os professores mobilizados com uma faixa na qual se lia “FRACÁSSIO”,
expressão que remetia o sujeito-leitor-eleitor às palavras fracasso e Cássio,
denunciando apatia do governo atual representado pelo governante Cássio. Ou seja, a
segurança e a educação do estado “estavam” em um caos. O dialogismo estabelecido
entre todos esses enunciados e a mobilização da vontade de verdade do sujeito-CP,
através de sua formação discursiva, vão gerando sentidos e construindo no sujeito-
leitor-eleitor uma imagem negativa do período atual (2006), um período de eleição, e
uma imagem positiva do período anterior (1999).
Enfim, a enunciação institucional (“Governantes passam. Fica o nosso
compromisso com a verdade”, “Para ser um jornal de verdade, é preciso ter
coragem e imparcialidade. Correio: A verdade em suas mãos.”) constrói um ethos
baseado em princípios de objetividade, neutralidade e virtude, a prática discursiva dos
enunciados noticiosos presentes na publicidade e nos dias precedentes a elas o destrói,
consolidando um posicionamento parcial do sujeito-CP. Toda esta prática vem
consolidar os pontos de incompatibilidade e de equivalência do sistema de formação
discursiva do sujeito-CP. E embora pareça incoerente a convivência entre esses dois
pontos, ambos “são formados da mesma maneira e a partir das mesmas regras; suas
condições de aparecimento são idênticas; situam-se em um mesmo nível” (Foucault,
2005, p.73). Um complementa o outro.
3.2 Estratégias de sedução
Não é exagero afirmar que o jornalismo exerce um poder estratégico pois regula,
disciplina e controla pela maneira de mostrar (Gomes, 2003). O material noticioso
79
publicado diariamente pelos jornais é resultado de um processo de escolha, de uma
realidade filtrada. Essa competência para “definir” o que deve ou não ser publicado e
como, e este espaço de escritura para o qual se pode sempre retornar, rememorar e
recompor, elevou o discurso jornalístico ao patamar de monumento
22
, muitas vezes
utilizado por cientistas sociais como “documento” ou por quem procura recuperar a
memória do passado. Mas é possível confiar na “verdade” de tais registros?
Acompanhemos as publicações de dois dias do Jornal da Paraíba (JP) e Correio da
Paraíba (CP):
Domingo, 19 de fevereiro de 2006
Manchete JP*:
ELEIÇÕES 2006
Disputa para governador: Vox Populi
aponta diferença de apenas 9 pontos*
Manchete CP:
3ª PESQUISA PARA GOVERNO
Consult: Maranhão lidera com
47,25% e Cássio tem 35,10%
*José Maranhão tem 46% e Cássio Cunha Lima, 37%.
Domingo, 3 de setembro de 2006
Manchete JP*:
IBOPE
Cássio lidera disputa com 5 pontos
percentuais à frente de Maranhão*
Manchete CP:
GUERRA DE PESQUISAS: IBOPE ESTAVA PROIBIDO PELO TRE
IstoÉ diz que Maranhão tem
46,2% e Cássio está com 41,3%
*Cássio tem 47% e Maranhão, 42%.
Pela proximidade dos números de fevereiro (em média, Maranhão tem
preferência para cerca de 46,5% dos entrevistados e Cássio, para 36%), supõe-se que os
dois institutos (Vox Populi e Consult) demonstraram uma excelente sintonia com a real
opinião pública do momento, documentada para a história pelos dois jornais. Mas, com
a discrepância e inversão dos números de setembro, o que supor? Que os dois institutos
não são confiáveis? Que os dois jornais não são confiáveis? Chegar a real opinião do
22
De acordo com definição de Foucault (2005), “a história, em sua forma tradicional, se dispunha a
‘memorizar’ os monumentos do passado, transformá-los em documentos e fazer falarem estes rastros que,
por si mesmos, raramente são verbais, ou que dizem em silêncio coisa diversa do que dizem; em nossos
dias, a história é o que transforma os documentos em monumentos e que desdobra, onde se decifravam
rastros deixados pelos homens, onde se tentava reconhecer em profundidade o que tinham sido, uma
massa de elementos que devem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados,
organizados em conjuntos” (p.8)
80
momento através dos dados documentados pelos dois jornais será impossível. Mas uma
coisa é certa, o jornalismo registra “acontecimentos” que vão construindo a história,
mas sempre a partir de determinadas vontades de verdade.
Mas não se trata aqui de fazer análise comparativa. Os exemplos acima servem
apenas para ilustrar os questionamentos feitos por Foucault (2005, p.31) sobre as
unidades do discurso: “(...) como apareceu um determinado enunciado, e não outro em
seu lugar?”, “(...) que singular existência é esta que vem à tona no que se diz e em
nenhuma outra parte?”. É o que vamos tentar descobrir com as próximas análises no
discurso do sujeito-CP a partir de 13 de dezembro de 2005, data em que ele se antecipou
aos outros veículos de comunicação do estado e publicou a 1ª pesquisa da opinião
pública sobre o pleito que se avizinhava com o seguinte texto, na página A3:
CORREIO fará 11 pesquisas
O levantamento de intenções de votos publicados hoje é o primeiro de
uma série de 11 pesquisas contratadas pelo Sistema CORREIO de
Comunicação à Consult Pesquisa, instituto de Natal (RN), já conhecido no
Estado e em todo Nordeste pelas pesquisas realizadas em eleições anteriores.
A Consult fez pesquisas para o CORREIO na eleição para governador,
em 2002, e no pleito para prefeito em diversos municípios, sempre
apresentando extraordinária margem de acerto.
As pesquisas serão realizadas e publicadas todos os meses, até as
eleições de 1º de outubro do próximo ano, sendo que em setembro, mês que
antecede o pleito, serão divulgados dois levantamentos eleitorais no Estado.
O CORREIO contratou pesquisas de intenções de voto para governador
e para senador. A consulta para o Senado será publicada na edição de
amanhã.
As pesquisas têm o objetivo de identificar junto à população do Estado,
em toda sua área geográfica, a evolução das intenções de voto para o Governo
do Estado e para o Senado, a avaliação das administrações estadual e federal,
o levantamento dos maiores problemas enfrentados pela população e o
comportamento político em relação às eleições gerais de 2006.
Com as pesquisas, o CORREIO pretende, além de garantir informação
de qualidade aos seus leitores, contribuir para o debate político-eleitoral e a
consolidação da democracia no Estado.
Histórico
O Instituto Consult Pesquisa foi criado em 1987 e tem atuado nas áreas
de pesquisas quantitativas, pesquisas de mercados, de opinião pública e de
análises sócio-econômicas.
Além disso, exerce atividades nas áreas de consultoria estatística,
consultoria política, programa de ações municipais e análise de dados.
A empresa é filiada à Associação Brasileira das Empresas de Pesquisas
(Abep) e o Conselho Regional de Estatística. O responsável pela Consult é o
estatístico Paulo de Tarso Teixeira Ferreira.
81
De acordo com o discurso jornalístico da notícia acima, fizemos o seguinte
esquema de análise que pretende ratificar o ethos de virtude (sinceridade e fidelidade
com o sujeito-leitor) do sujeito-CP:
Tópico Argumentação
Objetivo geral
(justificativa)
“O CORREIO pretende garantir informação de qualidade aos
seus leitores, contribuir para o debate político-eleitoral e a
consolidação da democracia no Estado” face às eleições gerais de
2006.
Objetivos
específicos*
(problematização)
Publicar 11 pesquisas;
Identificar “a evolução das intenções de voto para o Governo
do Estado e para o Senado”;
Avaliar as administrações estadual e federal;
Levantar os “maiores problemas enfrentados pela população e
o comportamento político em relação às eleições”.
Divulgação
“As pesquisas serão realizadas e publicadas todos os meses, até
as eleições de 1º de outubro do próximo ano, sendo que em
setembro, mês que antecede o pleito, serão divulgados dois
levantamentos”.
Competência
(fundamentação)
As 11 pesquisas foram “contratadas pelo Sistema CORREIO
de Comunicação à Consult Pesquisa, instituto de Natal (RN),
já conhecido no Estado e em todo Nordeste pelas pesquisas
realizadas em eleições anteriores. (...) sempre apresentando
extraordinária margem de acerto”;
A Consult é filiada à Abep e ao CRE.
*Embora figure entre os objetivos específicos, as pesquisas de intenção de voto para o Senado e avaliação da
administração federal não fazem parte do corpus desse trabalho.
Note-se que o texto obedece a dois princípios (objetividade e neutralidade) que
confirmam seu compromisso social de informador, estratégia que visa cooptar o sujeito-
leitor-eleitor. A ação política “determina a vida social ao organizá-la tendo em vista a
obtenção do bem comum” (CHARAUDEAU, 2006b, p.17), portanto, em um período
pré-eleitoreiro, se dispor a levantar os “problemas enfrentados pela população” e
sinalizar a preferência de intenção de voto com pesquisas autorizadas, agregam ao
sujeito-CP valores sedutores que atraem o sujeito-leitor-eleitor. Contudo, os sentidos
são escorregadios e, até mesmo, traiçoeiros.
Quando o sujeito-CP diz que pretende (verbo no presente) garantir (verbo no
futuro) é porque há um querer, um desejo, uma ambição de se conquistar algo
(qualidade) no futuro. Logo, se se pretende conquistar, é porque não se tem. Contudo,
mesmo pressupondo-se que atualmente essa “qualidade” não é garantida, o sujeito-
82
leitor-eleitor é estimulado pelo sujeito-CP pela pretensão de contribuir, de oferecer
qualidade, de se preocupar com os leitores/eleitores, pela pretensão e coragem de
efetivar o debate político em suas páginas antes dos outros sujeitos-jornais. Pretensões
que, inclusive, serão reforçadas e garantidas por um instituto que sempre apresentou
“extraordinária margem de acerto”.
A partir dessas observações, passa-se a notar que a formação discursiva do
sujeito-CP manifestada pelo ethos da sua enunciação institucional é estratégica para
gerenciar a atenção do sujeito-leitor-eleitor e instaurar nele um estímulo de engajamento
e fidelização. Ou seja, o discurso de fiador da ética, de compromissado com a “verdade”
é um simulacro para interesses que se escondem na opacidade do material noticioso
diário.
A mídia é responsável pelas escolhas que opera, mas elas não dependem apenas
de procedimentos de noticiabilidade, “a instância de informação é submissa à lei
implacável da captação: é preciso seduzir o público” (CHARAUDEAU, 2006b, p.283)
através de estratégias discursivas que atraiam atenção, cative interesse e solicite
emoção.
As principais coerções dos veículos jornalísticos são as estratégias de
arrebatamento, sustentação e fidelização (HERNANDES, 2006). Produzir no sujeito
uma curiosidade instantânea e não racionalizada é a primeira tarefa do sujeito-jornal.
Esse arrebatamento se dá pela instauração de uma novidade de ordem sensível das
notícias, que impõem ao sujeito um querer-saber na forma de um querer-entender. As
manchetes, chamadas e fotos são as principais armas de captação de atenção do sujeito.
Elas tanto provocam o arrebatamento como geram interesse em conhecer mais detalhes
da notícia (sustentação). Explica Hernandes (2006, p.53) que
Uma boa manchete é um pedaço de uma narrativa que clama por completude.
Como isso foi acontecer? O que acontecerá depois? Toda manchete
implicitamente faz um convite: “Saiba agora!” Podemos dizer que a
satisfação de conhecer a “história toda”, ou, pelo menos os detalhes da
narrativa no momento específico da edição, é uma das expectativas
associadas à manchete.
As três estratégias de coerções acima podem ser verificadas na edição de 13 de
dezembro de 2005 do sujeito-CP, com a manchete
1ª PESQUISA PARA O GOVERNO DA PB:
Consult aponta Cássio com 32,3% e Maranhão com 46,3%”. Tal manchete,
acompanhada de um gráfico tipo pizza mostrando a divisão, em fatias, da opinião do
83
paraibano sobre, até então, os possíveis candidatos ao Governo do Estado, era
sustentada pelo seguinte texto:
O CORREIO divulga a primeira pesquisa para o Governo da Paraíba. O
Instituto Consult, que está entre os mais conceituados do Nordeste, aponta
José Maranhão (PMDB) com 46,3%, Cássio Cunha Lima (PSDB) com 32,3%
e o petista Frei Anastácio, com 3%. Não sabe e Nenhum deles somam 18,4%
dos entrevistados.
Só a manchete, em si, por sua característica jornalística já arrebata a atenção do
sujeito-leitor-eleitor. Isso sem falar da novidade: uma pesquisa de intenção de voto para
governador, quando ainda sequer se tinha candidato legalmente constituído e,
sobretudo, a 11 meses da eleição. Ora, a manchete convida a saber mais, a sustentar o
sujeito-leitor-eleitor. Trata-se da “primeira” pesquisa, outras virão, conforme o texto
“CORREIO fará 11 pesquisas”.
Tais considerações, no entanto, não esgotam os sentidos despertados.
Lembremos dos locais sociais constituídos, da própria constituição do sujeito, das regras
de formação que estabelecem as condições de existência dos discursos, das práticas que
determinam as formações discursivas. Constata Gregolin (2003a, p.96) que
(...) a mídia produz sentido por meio de um insistente retorno de figuras, de
síntese-narrativas, de representações que constituem o imaginário social.
Fazendo circular essas figuras, ela constrói uma “história do presente”,
simulando acontecimentos-em-curso que vêm eivados de signos do passado.
Com a iniciativa de realizar tais pesquisas, o sujeito-CP, assumindo seu lugar na
instância midiática, evidencia os principais atores (Maranhão e Cássio) da instância
política em questão para que a instância cidadã (sujeito-leitor-eleitor) fique alerta para a
escolha de seus atores. Aliás, os atores de um jogo político já conhecido.
Nos anos 1990, o poder político do estado esteve concentrado nas mãos do
PMDB. Na época eram filiados ao partido Ronaldo Cunha Lima, Cássio Cunha Lima,
José Maranhão, Cícero Lucena, Antonio Mariz e Roberto Paulino, entre outros.
Vencedor das eleições de 1989, Ronaldo Cunha Lima assumiu o governo em 1990, mas
saiu antes de completar os quatro anos. Seu vice, Cícero Lucena, assume no primeiro
trimestre de 1994, ano em que Antonio Mariz seria eleito. Em 1995, Mariz morre antes
de completar um ano de mandato e José Maranhão é empossado novo governador.
Desentendimentos entre Ronaldo Cunha Lima e José Maranhão, em 1998, provocam
84
um racha no PMDB. O acirramento fica acentuado nas convenções para decidir quem
iria ser o candidato do partido ao governo. Depois de um polêmico e controvertido
processo de disputa entre Cássio e Maranhão, este conquista o direito de ser o candidato
e vence as eleições. Em 2002, Maranhão se afasta para concorrer ao Senado. Seu vice,
Roberto Paulino, que seria o candidato do PMDB ao Governo do Estado assume a
administração estadual. Cássio, agora filiado ao PSDB, disputa com Paulino e é eleito.
Maranhão vai para o Senado e o PMDB perde a hegemonia política de 12 anos.
Quando o sujeito-CP decide, portanto, debater a sucessão governamental do
estado entre Maranhão e Cássio, seu discurso, naturalmente, filia-se à memória política
dos dois candidatos, líderes na preferência popular nas pesquisas realizadas pelo sujeito-
CP. Mas isso é assunto para o outro tópico.
3.3 Pesquisa versus tempo
A totalidade dos sentidos materializados nos textos que a mídia faz circular na
sociedade é inapreensível (GREGOLIN, 2003a). O efeito de coerência e unidade de
discurso é agenciado por estratégias discursivas dos jornais que gerenciam a atenção,
exercem um poder de controle e influência através do fazer saber, fazer pensar, fazer
sentir e geram opinião. Esta, pertence ao domínio do crer, à qual o sujeito adere de
maneira não racional. Explica Charaudeau (2006a, p.122) que
A opinião assemelha-se à crença, pelo movimento de ser a favor ou contra,
mas dela se distingue pelo cálculo de probabilidade que não existe na crença
e que faz com que a opinião resulte de um julgamento hipotético a respeito de
uma posição favorável/desfavorável e não sobre um ato de adesão/rejeição.
A partir dessa reflexão, o mestre francês expõe a dificuldade de falar da opinião
pública do ponto de vista da mídia, que a trata como “uma entidade mais ou menos
homogênea, quando resulta de um entrecruzamento entre conhecimentos e crenças de
um lado, opiniões e apreciações de outro” (CHARAUDEAU, 2006a, p.123).
Em um período eleitoral, principalmente com a proximidade do pleito, a opinião
pública é consultada várias vezes devido a sua vulnerabilidade aos acontecimentos
discursivos, aos embates políticos em ebulição, às notícias veiculadas pelas instâncias
midiáticas. Trata-se de um jogo onde não há inocentes, em que todos mudam sob a
85
influência de todos, “a opinião sob a influência das mídias, as mídias sob influência da
política e da opinião, o político sob influência das mídias e da opinião”
(CHARAUDEAU, 2006b, p.25).
Isto posto, passemos aos compromissos do sujeito-CP manifestados na matéria
“CORREIO fará 11 pesquisas”: realizar pesquisas até 1 de outubro para sondar a
opinião pública sobre as intenções de voto para governador, avaliar a administração
estadual e levantar os principais problemas da população. Eis que, sem nenhum
esclarecimento público, a avaliação da administração estadual só foi publicada em
dezembro de 2005 e janeiro de 2006 e a série de 11 pesquisas contratadas a Consult pelo
Sistema Correio de Comunicação foi interrompida na 6ª edição, em 13 de junho de
2006, sem realizar um levantamento estatístico sobre os principais problemas sociais do
estado.
Vejamos abaixo a tabela com as pesquisas:
Data de
publicação
Manchete (M)/Chamada (C)
Diferença
pró-Maranhão
Data de
realização
Terça,
13/12/05
1ª PESQUISA PARA O GOVERNO DA PB
Consult aponta Cássio com
32,3% e Maranhão com 46,3% (M)
14%
Entre 7 e 10/12
Quinta,
15/12/05
CONSULT: MARANHÃO VENCE CÁSSIO
NAS 4 REGIÕES DA PB, MAS PERDE EM CG
(C)
Sábado,
17/12/05
CONSULT: 51,3% APROVAM O GOVERNO
DE CÁSSIO E 41,8% O DE LULA, NA PB (C)
Domingo,
22/01/06
2ª PESQUISA PARA O GOVERNO
Consult: Maranhão lidera com
48,45% e Cássio tem 31,85% (M)
16,6%
Entre 15 e 19/01
Terça,
24/01/06
CONSULT: MARANHÃO LIDERA EM
TODAS AS REGIÕES E SÓ PERDE EM CG (C)
Sábado,
28/01/06
CONSULT: 46,95% APROVAM GOVERNO
DE CÁSSIO E 47,6%, O DE LULA, NA PB (C)
Domingo,
19/02/06
3ª PESQUISA PARA O GOVERNO
Consult: Maranhão lidera com
47,25% e Cássio tem 35,10% (M)
12,15%
Entre 12 e 16/02
Terça,
21/02/06
CONSULT: MARANHÃO LIDERA
EM 6 REGIÕES E CÁSSIO EM CG (C)
Segunda,
27/03/06
4ª PESQUISA PARA O GOVERNO
Consult: Maranhão lidera com
46,35% e Cássio tem 36,25% (M)
10,1%
Entre 17 e 20/03
Terça,
02/05/06
5ª PESQUISA CORREIO-CONSULT
Maranhão tem 48% e abre 12,25%
pontos de Cássio, que tem 35,75% (M)
12,25
Entre 22 e 25/04
86
Quinta,
04/05/06
CONSULT: MARANHÃO GANHA EM
6 REGIÕES E CÁSSIO, EM CAMPINA (C)
Terça,
13/06/06
Consult: Maranhão tem 44,95%,
Cássio 37,75% e Zé Neto, 1,25% (M)
7,2
Entre 26 e 29/05
Para analisar os acontecimentos discursivos das seis pesquisas acima
consideremos três aspectos: atualidade, presente e repetição e diferença percentual.
Todos eles se entrecruzam para constituir sentidos no sujeito-leitor-eleitor. Explica
Hernandes (2006, p.55) que o funcionamento da estratégia de sustentação depende da
proximidade temporal, “qualquer jornal precisa fazer seu consumidor acreditar que as
notícias divulgadas são atuais”.
Para o professor-doutor em Semiótica,
O efeito de atualidade é essa instauração, pelos jornais, de um presente
“elástico”, com diferentes durações. Só que esse alongamento do tempo
tem uma missão clara: deve fazer uma unidade noticiosa parecer
“presentificada”, vibrante, pelo menos no período estipulado de consumo da
edição do jornal (HERNANDES, 2006, p.55).
Observemos agora as datas de publicação e realização das pesquisas divulgadas
pelo sujeito-CP. A coleta de dados da primeira pesquisa aconteceu em 4 dias (7, 8, 9 e
10 de dezembro) e começou a ser publicada três dias depois (dia 13), mantendo-se
estrategicamente “atualizada” até o dia 17. Embora o que nos interesse aqui sejam as
pesquisas voltadas para os dois atores (Cássio e Maranhão) que encabeçam a disputa
pela governança do Estado, vale aqui mostrar como o sujeito-CP dilatou o tempo e
atualizou a consulta popular em 5 dias de publicação:
13 de dezembro, terça-feira – Sete dias depois de iniciadas as consultas
23
,
encerradas dia 10, o sujeito-CP divulga a 1ª pesquisa de intenção de voto
para Governo do Estado. Sobre o gráfico, a pergunta: “Se a eleição para
governador da Paraíba fosse hoje, em qual desses candidatos o(a) Sr.(a)
votaria?”
24
. Estrategicamente o sujeito-CP elimina a distância entre o
realizar e o divulgar a pesquisa com o hoje da pergunta, que instaura um
23
Consideramos a pesquisa a partir de seu primeiro dia de consulta, uma vez que a opinião pública é
instável e pode ser afetada a qualquer momento.
24
Como se trata de uma sondagem de opinião pública é fundamental enfatizar para o consultado na hora
da coleta de dados a condição se a eleição fosse hoje, de modo que ele possa responder a partir das
circunstâncias daquele momento, o que não significa que sua opinião será mantida até dia da eleição.
87
novo tempo e amplia a validade da pesquisa para produzir sentidos de que
naquele momento a opinião pública é aquela;
14 de dezembro, quarta-feira – Oito dias depois de iniciadas as consultas,
o sujeito-CP divulga a 1ª pesquisa para o Senado na Paraíba. Sobre o gráfico,
novamente a pergunta estimulada: “Se a eleição para senador da Paraíba
fosse hoje, em qual desses candidatos o(a) Sr.(a) votaria?”. Agora, além
de atualizar a pesquisa com o hoje, o sujeito-CP o faz também com a
mudança do foco de intenção de voto;
15 de dezembro, quinta-feira – Nove dias depois de iniciadas as consultas,
o sujeito-CP atualiza os dados da pesquisa divulgados no dia 13,
reinterpreta-os e re-significa-os ao apresentar a sondagem de opinião por
região. Mais uma vez repete a pergunta que reforça a atualidade da notícia:
“Se a eleição para governador da Paraíba fosse hoje, em qual desses
candidatos o(a) Sr.(a) votaria?”;
16 de dezembro, sexta-feira – Dez dias depois de iniciadas as consultas, a
pesquisa para o Senado publicada dia 14 também é atualizada e re-
significada para mostrar as intenções de voto por região. Novamente, a
pergunta estimulada: “Se a eleição para senador da Paraíba fosse hoje,
em qual desses candidatos o(a) Sr.(a) votaria?”;
17 de dezembro, sábado – Onze dias depois de iniciadas as consultas, outra
informação da pesquisa é revelada para atualizar a notícia. Agora trata-se da
aprovação ou desaprovação dos governos estadual e federal.
A estratégia do sujeito-CP em atualizar uma mesma pesquisa várias vezes e em
novos tempos e oferecê-la ao sujeito-leitor-eleitor em porções diárias é adotada em
todos os levantamentos, embora para efeito de análise escolhemos apenas os que se
referem diretamente aos candidatos ao Governo do Estado. Vejamos:
2ª pesquisa – Realizada entre 15 e 19/01 (cinco dias) e publicada em 22, 24
e 28/01, foi atualizada em até 14 dias após o primeiro dia de consulta;
3ª pesquisa – Realizada entre 12 e 16/02 (cinco dias) e publicada em 19 e
21/02, foi atualizada em até 10 dias depois do primeiro dia de consulta;
88
4ª pesquisa – Realizada entre 17 e 20/03 (quatro dias) e publicada em 27/03,
foi atualizada 11 dias após o primeiro dia de consulta;
5ª pesquisa – Realizada entre 22 e 25/04 (quatro dias) e publicada em 02 e
04/05, foi atualizada em até 13 dias depois do primeiro dia de consulta;
6ª pesquisa – Realizada entre 26 e 29 (quatro dias) e publicada em 13/06, foi
atualizada 19 dias depois do primeiro dia de consulta.
Todo esse processo de manipulação do tempo, através do sujeito-CP, expõe uma
das vias do controle da instância midiática como geradora de acontecimentos
discursivos independente de ocorrências de fatos; expõe o poder sobre o tempo que é
coletivizado e imposto ao sujeito. Pelo controle, então, a mídia acaba por assumir a
posição de vigilante, espalhando-se por entre vários outros mecanismos sociais de
vigilância em nossa sociedade, que vão desde câmeras instaladas em prédios, halls, ruas
e avenidas, elevadores, praças, bancos, rodovias, postos de gasolina, supermercados,
farmácias, bancas de revista, sinais de trânsito... até as “estatísticas e os sistemas que
são usados para aferir e modelar o cotidiano” (GREGOLIN, 2003a, p.104).
A invenção do relógio foi fundamental para consolidação do tempo social e
individual. Ele criou a obediência, a disciplina, constituiu a concepção autônoma e
metaforizou a organização social (GREGOLIN, 2003a): “tempo é ouro”, “não posso
perder tempo”, “preciso ganhar tempo”, “um dia é muito pouco”, “corro contra o
tempo”, etc. Dessa forma, o tempo filtrado pelos ponteiros da máquina ganha nova
divisão, nova cadência orquestrada pela batuta da mídia.
Além de prender a atenção do sujeito-leitor-eleitor atualizando uma informação
que estatisticamente não é mais confiável, o sujeito-CP vai ratificando a posição
“incontestável” do candidato Maranhão por uma repetição discursiva que mais uma vez,
e de uma outra forma, funda um novo tempo referencial para o sujeito-leitor-eleitor.
Atentemos à classificação abaixo com negrito nosso:
Quinta, 15/12/05 Chamada: “CONSULT: MARANHÃO VENCE CÁSSIO NAS 4
REGIÕES DA PB, MAS PERDE EM CG
;
Domingo, 22/01;06 – Manchete: “Consult: Maranhão lidera com 48,45% e
Cássio tem 31,85%”;
Terça, 24/01/06 – Chamada:
“CONSULT: MARANHÃO LIDERA EM TODAS AS
REGIÕES E SÓ PERDE EM CG
;
89
Domingo, 19/02/06 – Manchete: “Consult: Maranhão lidera com 47,25% e
Cássio tem 35,10%;
Terça, 21/02/06 – Chamada: “CONSULT: MARANHÃO LIDERA EM 6
REGIÕES E CÁSSIO EM CG”
;
Segunda, 27/03/06 – Manchete: “Consult: Maranhão lidera com 46,35% e
Cássio tem 36,25%”;
Quinta, 04/05/06 – Chamada: “CONSULT: MARANHÃO GANHA EM 6
REGIÕES E CÁSSIO, EM CAMPINA”
.
A frase “Maranhão lidera”, que é veiculada pela primeira vez em janeiro, é
repetida 4 vezes até março de 2006, em um processo discursivo de re-significação e
confirmação de que a preferência popular está determinada, como atestam as outras
notícias com as frases “Maranhão vence” (dezembro de 2005) e “Maranhão ganha”
(maio de 2006). O verbo no presente (lidera, vence e ganha), do ponto de vista
lingüístico, sugere ao leitor que o acontecimento está em andamento naquele momento
de referência que é o presente, o agora fundamental para o efeito de atualidade
(HERNANDES, 2006). Essa supremacia de Maranhão, administrada pelo sujeito-CP,
além de marcar o tempo social, também marca o espaço social. Note-se que em quatro
notícias (dezembro de 2005, janeiro, fevereiro e março de 2006) Maranhão “vence”,
“lidera” ou “ganha em 6 regiões”
25
, “só perde em CG”. Mas por que só perde em CG
(Campina Grande)? Aliás, por que comparar as 6 regiões do estado a Campina Grande?
Por que Cássio só ganha lá? Que correlações interdiscursivas podemos encontrar além
das materialidades dos enunciados em questão? Bem, Cássio nasceu e construiu sua
história política em Campina Grande, onde foi prefeito por três vezes (1989, 1996 e
1999). Dizer que Cássio só ganha, ou só lidera em CG, conforme pressuposto da lei do
discurso e a força do dito no não-dito, é sugerir que sua força política não se expandiu,
não criou raízes fora de sua cidade, mesmo tendo exercido o cargo de deputado federal
duas vezes (1986 e 1994).
Se, por um lado, o sujeito-CP se esforçou em atualizar as pesquisas para
elastecer sua validade estatística, por outro, “não deu atenção” àquilo que, de acordo
25
Inicialmente, na pesquisa de 15 de dezembro de 2005, o sujeito-CP se refere a apenas 4 regiões da
Paraíba: Mata Paraibana, Agreste, Borborema e Sertão, excetuando-se João Pessoa, Grande João Pessoa e
Campina Grande. Em 24 de janeiro de 2006, refere-se a todas as regiões; e a partir daí fala em 6 regiões:
João Pessoa e Grande João Pessoa como uma, Campina Grande como outra, mais Mata Paraibana,
Agreste, Borborema e Sertão.
90
com procedimentos jornalísticos, de fato, reunia elementos para noticiabilidade: a
evolução das intenções de voto. Com exceção do levantamento publicado no dia 2 de
maio de 2006 (“Maranhão tem 48% e abre 12,25% pontos de Cássio, que tem
35,75%”), nenhum outro teve sua evolução considerada discursivamente pelo sujeito-
CP, nem em manchete nem em chamada de capa. Acompanhemos o gráfico abaixo:
De um levantamento para outro, percebe-se a oscilação da opinião pública
consultada e nos permite a seguinte leitura:
a) a diferença entre os dois candidatos é mais acentuada na 2ª pesquisa. Daí por
diante essa diferença diminui, pois o candidato Cássio sobe na preferência
do eleitor, ao contrário de Maranhão;
b) na 5ª pesquisa, o candidato Maranhão sobe (embora não chegue aos
patamares dos dois levantamentos iniciais), único momento em que o
sujeito-CP discute a diferença na capa;
c) na 6ª pesquisa, os números não são favoráveis a Maranhão: a diferença, que
já havia chegado a 16,6% (2ª pesquisa, janeiro de 2006), cai para 7,2%.
Enfim, “a evolução das intenções de voto para o Governo do Estado”,
registrada no texto “CORREIO fará 11 pesquisas”, foi “engolida” pela ênfase que o
sujeito-CP deu ao tempo presente inaugurado a cada edição (“Se a eleição fosse
91
hoje...”, “Maranhão vence Cássio...”, “Maranhão lidera...”, “Maranhão ganha em
seis regiões...”) durante a publicação das seis pesquisas. Mas por que seis se eram 11?
Curiosamente, em 22 de agosto de 2006, 70 dias depois do sujeito-CP publicar a
6ª pesquisa contratada pelo Sistema Correio de Comunicação a Consult, o sujeito-O
Norte
26
traz a manchete PESQUISA CONSULT/FEMIPE-PB: 42,5% (Cássio C. Lima) x 38,0%
(José Maranhão)”, destacando os números e as fotos dos dois candidatos em lados opostos,
posicionados de acordo com os percentuais. Tratava-se da primeira sondagem de
opinião pública, depois de registradas as candidaturas no TRE (Tribunal Regional
Eleitoral), realizada entre os dias 15 e 18 de agosto pelo Instituto Consult
Pesquisa/Federação das Micro Empresas e Empresas de Pequeno Porte (PB). Na página
A3, do sujeito-O Norte, um gráfico mostrava a evolução dos percentuais a partir dos
levantamentos divulgados pelo sujeito-CP, embora em nenhum local se fizesse
referência a esse fato.
Os motivos de um provável rompimento entre o contratante (Sistema Correio de
Comunicação) e o contratado (Instituto Consult) ou entre o contratado (Instituto
Consult) e o contratante (Sistema Correio de Comunicação); a “transparência” do
sujeito-CP em compartilhar com o sujeito-leitor-eleitor a contratação das pesquisas e o
silenciamento marcado pelo rompimento das publicações e, sobretudo, a nova
perspectiva do levantamento veiculado pelo sujeito-O Norte mostrando o candidato
Cássio em primeiro lugar; tudo isso povoou com uma pluralidade de sentidos o
imaginário coletivo, mantendo para sempre a certeza da dúvida e a dúvida da certeza
sobre o que “verdadeiramente” causou o rompimento e o silenciamento das publicações
da Consult no sujeito-CP. “Além de qualquer começo aparente há sempre uma origem
secreta – tão secreta e tão originária que dela jamais poderemos nos reapoderar
inteiramente” (FOUCAULT, 2005, p.27).
Em 24 de agosto de 2006, “ignorando” completamente esse episódio e o
compromisso firmado em “CORREIO fará 11 pesquisas”, o sujeito-CP reinicia a
publicação de novos levantamentos, mas desta vez sem endossar a credibilidade dos
institutos, como fez com a Consult (“já conhecido no Estado e em todo Nordeste
pelas pesquisas realizadas em eleições anteriores. (...) sempre apresentando
extraordinária margem de acerto”).
26
Trata-se de outro jornal paraibano de circulação estadual.
92
Dos nove levantamentos publicados, quatro foram contratados/realizadas pela
IstoÉ/Databrain, três pela Federação Brasileira de Administradores/Instituto Índice
(RN), uma pela Central Única dos Trabalhados da Paraíba (CUT-PB)/Instituto Axioma,
de Campina Grande, e outra pela TV Cabo Branco/Ibope. Vamos a elas:
Data de
publicação
Manchete (M)/Chamada (C) Data de realização
Quinta,
24/08
CUT: Maranhão tem 46,3% e Cássio, 40,3% (C)
Entre 19 e 21/08, realizada
pelo instituto Axioma
Domingo,
03/09
GUERRA DE PESQUISAS: IBOPE ESTAVA
PROIBIDO PELO TRE
IstoÉ diz que Maranhão tem
46,2% e Cássio está com 41,3% (M)
O jornal não revela a data de
coleta de dados. Trata-se de
uma pesquisa que seria
veiculada na edição de 06/09
da revista IstoÉ, portanto o
sujeito-CP se antecipou em
três dias à publicação da
revista
Sexta
22/09
ISTOÉ: MARANHÃO LIDERA DISPUTA
COM 46,3% E CÁSSIO TEM 43,3% (C)
Pesquisa divulgada no site da
revista no dia anterior,
realizada entre 17 e 19/09
Sexta,
29/09
Pesquisa da IstoÉ diz que Maranhão
lidera com 45,6% e Cássio tem 43,3% (C)
Pesquisa divulgada no site da
revista no dia anterior,
realizada entre 24 e 26/09
Domingo,
01/10
PESQUISAS DATABRAIN, ÍNDICE E IBOPE
Maranhão surge como favorito,
mas Cássio ainda crê em vitória
Globonews mostra peemedebista com 51%
contra 47% do tucano, mas TV Cabo Branco
não divulgou (M)
Dia da eleição. Do lado
esquerdo da capa fotos de
Alckmim, Cássio e Cícero
(ambos com olhar distantes) e
à direita: Maranhão, Ney
(ambos olhando para frente
com ar descontraído) e Lula
com os dois polegares em
sinal de positivo.
Quarta,
25/10
ÍNDICE: JOSÉ MARANHÃO LIDERA
COM 49,9% E CÁSSIO TEM 46,9% (C)
Contratada pela Federação
Brasileira de Administradores
(Febrad), foi realizada entre os
dias 18 e 19/10.
Sábado,
28/10
Pesquisa Índice aponta Maranhão
com 48,3% e Cássio, 44,1% dos votos
Véspera da eleição do 2º
turno. Pesquisa contratada
pela Federação Brasileira de
Administradores (FBA) foi
realizada entre os dias 25 e
26/10.
Note-se que, apesar das pesquisas não fazerem parte do pacote assumido pelo
sujeito-CP, elas são tratadas estrategicamente como as outras. Ou seja, a insistente
repetição “Maranhão lidera”, presente em três das pesquisas acima e em várias das já
publicadas, “denunciam” a parcialidade do sujeito-CP em favor do candidato Maranhão
que, mais que liderar, “surge como favorito” para Databrain, Índice e Ibope. A Cássio
93
resta “ainda” a crença. Mas dois acontecimentos discursivos das pesquisas acima
merecem ser destacadas sob forma de interrogação:
1ª) Por que o sujeito-CP destaca na manchete de 03/09 (“IstoÉ diz que
Maranhão tem 46,2% e Cássio está com 41,3%”) o antetítulo “GUERRA DE
PESQUISAS: IBOPE ESTAVA PROIBIDO PELO TRE”
?
Com certeza, há uma disputa entre “verdades” de pesquisas e descrédito nas do
Ibope. Senão, vejamos. O que significa esse “IBOPE ESTAVA PROIBIDO”? Significa
apenas que o Ibope não está mais proibido? Se o sujeito-leitor-eleitor desse enunciado
passasse à leitura do texto da manchete, teria a seguinte explicação: “O TRE proibiu a
divulgação do Ibope, que não entregou informações sobre cidades e bairros onde
ouviu eleitores”. No entanto, isso não explica tudo, nem o “ESTAVA”. Conforme a
pertinência da lei do discurso “uma enunciação deve ser maximamente adequada ao
contexto em que acontece” (Maingueneau, 2002, p.34). Portanto, para se compreender
esse “ESTAVA” é preciso recuperar as condições e o contexto que possibilitaram o
surgimento desse enunciado. No dia 1 de setembro, o sujeito-TV Cabo Branco exibiu
em seu noticiário da noite, “JPB – 2ª edição”, números de uma pesquisa do Ibope que
mostravam Cássio com 47% e Maranhão com 42%. Ou seja, quando o sujeito-CP diz
que o “IBOPE ESTAVA PROIBIDO PELO TRE” ele quer dizer que, além da pesquisa não
merecer crédito, o sujeito-TV Cabo Branco cometeu um ato ilícito ao publicar uma
pesquisa proibida pelo Tribunal Regional Eleitoral. Ao produzir sentidos de
desconfiança sobre os números do Ibope e o sujeito-TV Cabo Branco, ele impõe “seu
compromisso com a verdade” ao mostrar uma pesquisa, esta sim, autorizada pelo
TRE: “IstoÉ diz que Maranhão tem 46,2% e Cássio está com 41,3%”
27
. Note-se
que, de uma pesquisa para outra, não só os candidatos mudam de lugar, mas os números
(praticamente idênticos). Desta forma o sujeito-CP continua, com sua discursividade
“verdadeira” confirmando a liderança irrefutável de Maranhão, que “tem” (condição
estável, positiva), enquanto Cássio apenas “está” (condição instável, negativa).
27
Esta pesquisa foi publicada na revista IstoÉ de 6 de setembro de 2006, e o Correio da Paraíba a
publicou em 3 de setembro de 2006. A edição da IstoÉ circulou, exclusivamente na Paraíba, com uma
orelha externa com a seguinte chamada: “Denúncia – Paraíba: Cícero Lucena acusado de desviar R$ 100
milhões”. Após a matéria nas páginas 48/49 com uma foto em baixa resolução de Cícero Lucena (PSDB),
candidato ao Senado, conversando com Cássio (PSDB), curiosamente a revista apresentou quatro
pesquisas de quatro estados distintos: Paraíba, Tocantis, Rio Grande do Norte e Paraná (nessa ordem). As
pesquisas surgiram do “nada”, sem nenhuma nota de abertura. Aparentemente elas não atendiam a
nenhum critério jornalístico, tipo “nesta edição publicamos os números do Nordeste, semana que vem do
Sul...”, ou “a cada semana publicaremos quatro pesquisas de regiões variadas”, etc.
94
2ª) Por que o sujeito-CP destaca na manchete de 01/10 (“Maranhão surge
como favorito, mas Cássio ainda crê em vitória”) o antetítulo “PESQUISAS
DATARAIN, ÍNDICE E IBOPE”
seguido do subtítulo Globonews mostra peemedebista
com 51% contra 47% do tucano, mas TV Cabo Branco não divulgou?
Porque para os três institutos, inclusive até para o Ibope, Maranhão é
“favorito”. Mas isso não justifica esse até. Vamos ao texto da capa:
Pesquisas Databrain, Índice e até do Ibope mostram o senador José
Maranhão como favorito na disputa pelo Governo da Paraíba. Contratada pela
TV Cabo Branco, a pesquisa Ibope foi liberada pelo TSE, mas não foi
divulgada na Paraíba. Segundo quadro mostrado pela Globonews,
Maranhão teria 51% da preferência do eleitorado, contra 47% de Cássio.
Esquema especial do TRE prevê que os eleitos para o Governo do Estado e
Senado serão conhecidos até as 19h00. (negrito nosso)
Se antes a pesquisa do Ibope divulgada pelo sujeito-TV Cabo Branco “não
merecia” crédito por estar proibida pelo TRE, agora, não é sua liberação pelo TSE que a
torna merecedora de crédito, e sim a sua não-divulgação pelo sujeito-TV Cabo Branco.
O sujeito-CP não usa os números dos institutos Databrain (Maranhão, 45,6% e Cássio,
43,3%) e Índice (Maranhão, 45,7% e Cássio, 42,3%) na capa, que em tese apresentam
empate técnico, mas os do Ibope. Na página A3, sob o título “Divulgação feita na
madrugada”, a explicação:
Os números da última pesquisa Ibope na Paraíba foram divulgados por
acaso. A Folha Online publicou notícia ontem segundo a qual a Globonews
(TV) apresentou em sua tela, na madrugada deste sábado, imagens de um
gráfico de uma pesquisa de intenção de voto enquanto o locutor lia uma
notícia sobre a queda do avião da Gol.
No gráfico da tela da televisão, segundo notícia da Folha Online,
aparecia em destaque a palavra “Maranhão”, dando a impressão de que
se referia ao Estado do Maranhão, mas os nomes dos candidatos eram os
do Estado da Paraíba – Zé Maranhão e Cássio.
Conforme o gráfico, Maranhão apareceria na pesquisa Ibope com 51%
das intenções de voto e Cássio com 47%. O item “Outros” registra 2%.
A pesquisa Ibope havia sido contratada pela TV Cabo Branco e
registrada com o número 25/2006, mas sua divulgação foi suspensa pelo TRE
na manhã da sexta-feira; liberada no início da noite por força de recurso do
próprio Ibope e de liminar concedida pelo TRE, e novamente proibida pelo
TSE durante a madrugada da sexta-feira para o sábado. Apesar de ficar
liberada para divulgação por um período de cerca de seis horas, a pesquisa
não foi publicada.
Neste sábado, o TSE novamente tratou da questão da divulgação da
pesquisa do Ibope na Paraíba apreciando um agravo do próprio instituto. A
95
decisão da corte superior da Justiça Eleitoral foi liberar a pesquisa para
divulgação. Mais uma vez, os contratantes não tomaram a iniciativa do
recurso nem divulgaram os resultados da pesquisa em seus programas
jornalísticos, apesar da liberação. (...) (negrito nosso)
O que aparentemente poderia despertar desconfiança, para o sujeito-CP
funcionou como credibilidade. A estranha divulgação “por acaso”, “na madrugada”,
em uma TV fechada, repercutida em veículo eletrônico (Folha Online), foi usada pelo
sujeito-CP para causar um efeito de verdade e fortalecer os dados da pesquisa.
Toda a prática discursiva adotada durante a publicação das pesquisas sustentadas
por um saber matemático, manifestou a vontade do sujeito-CP em cristalizar a verdade
de que o candidato Maranhão era imbatível, pois em “até” pesquisa do Ibope ele surgia
como “favorito”. Enquanto esses sentidos circulavam captando atenção e constituindo
opiniões no sujeito-leitor-eleitor, outros discursos, produzidos por acontecimentos
“reais” da vida orgânica do estado, se encarregavam de “construir” a “maneira de ser e
de atuar” do governo atual, representado pelo candidato a reeleição Cássio. É o que
veremos no tópico seguinte.
3.4 Além das pesquisas
O principal desafio da mídia “é regulamentar a circulação da informação, de
modo que esta atinja o maior número de cidadãos e, ao dizer-lhes respeito, permita-lhes
uma opinião”, explica Charaudeau (2006b, p.28), para quem
(...) a linguagem, em virtude do fenômeno de circulação dos discursos, é o
que permite que se constituam espaços de discussão, de persuasão e de
sedução nos quais se elaboram o pensamento e a ação políticos
(CHARAUDEAU, 2006b, p.39)
A instância midiática freqüentemente acusa/denuncia os poderes públicos (lugar
da instância política) para justificar seu lugar na construção da opinião pública, na
instância cidadã, e esta, por sua vez, reivindica, interpela e sanciona os representantes
do povo em nome de uma idealização do bem-estar comum, promovido pela instância
política, que exerce o poder da ação para efetivar e garantir os direitos sociais coletivos.
Estabelece-se aí, as relações de poderes entre as três instâncias. Há, ainda, a da instância
96
adversária, que se encontra no mesmo lugar (ou aspira o mesmo lugar de decisão, de
ação, de poder, de manipulação) da instância política e
(...) deve propor ao cidadão um projeto de sociedade ideal, deve tornar-se
fidedigna e tentar persuadi-lo da legitimidade da sua posição. A única
diferença em relação à instância precedente reside no fato de que, estando ela
na oposição, isto é, despojada do poder, mas representando, ao mesmo tempo,
uma parcela da opinião cidadã, é levada a produzir um discurso sistemático
de crítica ao poder vigente, que lhe é simetricamente retribuído
(CHARAUDEAU, 2006b, p.58)
Portadora de imaginários sociais que têm influências sobre as opiniões, a mídia
recorre a certas técnicas para descrever, narrar, dramatizar e produzir movimentos
emocionais de simpatia, antipatia e compaixão (CHARAUDEAU, 2006b). Na verdade,
o discurso jornalístico produzido pela mídia, diz Pinto (2002, p.88), é um simulacro
interesseiro, produzido com o objetivo de ser a última palavra. As identidades e relações
sociais são construídas pela narração da mídia, que distribui afetos a serviço da sedução
e cooptação.
Vejamos, a partir de agora, como o sujeito-CP articula um discurso jornalístico
“verdadeiro” para re-significar estrategicamente o desempenho do atual governo
(representado pelo candidato Cássio). Inicialmente, analisemos os enunciados da tabela
abaixo, que dialogam entre si para construir sentidos sobre a situação da Educação (um
dos pilares da administração pública) no Estado. Acompanhemos:
TABELA EDUCAÇÃO
Data de
publicação
Manchete (M)/Chamada (C)
Sexta,
17/03
Estado oferece 5% de reajuste a
professor e muda aposentadoria (M)
Sábado,
18/03
Professores rejeitam 5%, fazem
nova proposta e param por 3 dias (M)
Domingo,
19/03
MENDIGAR VIRA “NEGÓCIO” COM
RENDA MAIOR QUE A DE PROFESSOR
(C)
No primeiro enunciado, compreende-se que o estado propõe aos professores,
naquele momento - através do efeito de atualidade e atualização do dia anterior -,
reajuste salarial e mudança no modelo de aposentadoria em vigor. No segundo, os
professores rejeitam a proposta. Os discursos de ação e reação, como principais assuntos
97
(manchete) do sujeito-CP, são distribuídos e passam a circular na sociedade colocando
em voga proposta e recusa de reajuste salarial dos professores da rede estadual. Eis que
no domingo, o sujeito-CP traz na capa a sub-manchete “MENDIGAR VIRA ‘NEGÓCIO’
COM RENDA MAIOR QUE A DE PROFESSOR”.
Não se trata de um dia qualquer. O
domingo é o dia de maior tiragem do sujeito-CP, de maior número de assinantes; os
suplementos são multiplicados, o número de páginas aumentado e reportagens especiais
são mais freqüentes.
A produção de sentido – resultado dos valores atribuídos pelo discurso – é um
processo em construção permanente a afetar e forjar o sujeito ao longo de sua
existência. Os sentidos do enunciado MENDIGAR VIRA ‘NEGÓCIO’ COM RENDA
MAIOR QUE A DE PROFESSOR
, portanto, não emanam apenas das indicações materiais
do texto. São interdiscursivos e dialógicos. Tal enunciado emergiu dentro de uma
regularidade de enunciados, dentro de um contexto de discussão sobre reajuste da
remuneração do corpo docente estadual. A imagem social que se tem de um mendigo
em nada se aproxima com a de um professor. Enquanto o primeiro é excluído e
interditado socialmente, segregado por suas condições físicas, psíquicas e econômicas,
entregue ao “acaso” da compaixão e filantropia; o segundo tem fluxo consentido, com
status próprio daquele que ocupa um lugar social legitimado e amparado por leis
trabalhistas, com autoridade para ensinar e formar sujeitos. Como se vê, duas imagens
distantes, mas estrategicamente aproximadas pelo sujeito-CP, que oferece ao sujeito-
leitor-eleitor sentidos para, pelo menos, duas interpretações:
a) a mendicância é uma alternativa de trabalho mais rentável que a de
professor;
b) a situação do professor do estado está tão degradante quanto a de um
mendigo.
Vamos ao texto da capa, ao principal e à série de títulos das matérias que se
estendeu por quatro páginas (B1 a B4):
Mendigar tornou-se um grande negócio, gerando renda, em alguns
casos, maior que a de um professor do Estado. Há mendigos que ganham
perto de R$ 700. Na Capital, mulheres obrigam crianças a pedirem esmolas
nas ruas e fiscalizam “serviço”. Alguns mendigos fingem deficiências e até
simulam ataques epilépticos. (negrito nosso)
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B1 – Antetítulo/Manchete/Texto:
PROFISSÃO: MENDIGO
Pedintes ganham mais do que professor
A pobreza, o desemprego e o analfabetismo na Paraíba estão
contribuindo para aumentar a “indústria da mendicância”. Crianças, adultos e
idosos estão migrando de municípios paraibanos (como Bayeux, Santa Rita,
Mamanguape e Patos) e até do Estado de Pernambuco para pedir esmolas nas
ruas de João Pessoa. As crianças são obrigadas pelos pais a mendigar e parte
delas acaba na prostituição ou aliciadas pelo tráfico de drogas. Mães usam os
filhos para comover as pessoas em troca de receber “alguns trocados” e
muitas delas, chegam até a “emprestar” seus bebês para que outras mulheres
também façam o mesmo. Já idosos aposentados e adultos que não precisariam
estar pedindo nas ruas, abusam da boa-fé das pessoas fazendo “teatro”,
mentindo e simulando doenças para arrancar dinheiro.
A “profissão mendigo” não precisa diploma e muitas pessoas se
aproveitam disso para conseguir dinheiro. Um senhor que se diz mendigo e
pede esmolas no Centro da Capital, revelou que é aposentado, tem casa
própria, paga empregada e fatura pelo menos R$ 375,00 por mês, pedindo
nas ruas. “Peço esmola de segunda a sábado porque não dá para viver só
com o dinheiro da aposentadoria. Apuro mixaria, R$ 10,00 ou R$ 15,00 por
dia”, revelou Antônio de Brito, 80 anos.
A renda média mensal de Seu Antônio é de R$ 675,00 incluindo o
dinheiro da aposentadoria e das esmolas. Ele confessou que pede esmolas
há 26 anos. “Chego aqui às 8h00 e vou embora para casa às 7h00 da noite”,
revelou, segurando uma placa, onde estava escrito que é doente dos nervos,
teve trombose e é epilético. Seu Antônio ganha mais que um professor da
rede pública de ensino do Estado, com nível superior e início de carreira,
que tem um salário médio de 540,00 (já incluindo a gratificação). Segundo
o presidente da Associação dos Professores em Licenciatura Plena da Paraíba,
Francisco Fernandes, o salário médio de um professor com mestrado, em
final de carreira, é de R$ 700,00. (negrito nosso)
B2 – Manchete: “Mulheres obrigam crianças a pedirem esmolas nas
ruas” (sic);
Títulos de coordenadas: “Usar menores para pedir é crime”
“Maioria não é da Capital”
“Família de garota é desestruturada”
B3 – Manchete: “Mendigos fingem deficiências e simulam ataques
epiléticos”;
Títulos de coordenadas: “Jornalista foi enganada em JP”
“Ajuda do Governo Federal vicia”
99
B4 – Manchete: “‘População alimenta ciclo vicioso’, diz Secretária”;
Título de coordenada: “JP fará mapa de exclusão”
Enquanto a sub-manchete afirma que MENDIGAR VIRA ‘NEGÓCIO’ COM
RENDA MAIOR QUE A DE PROFESSOR
, o texto logo abaixo ressalva que “em alguns
casos” mendigos “ganham perto de R$ 700”. O que foi dito inicialmente como
“regra”, virou exceção. Depois, o texto da B1 esclarece: “Um senhor que se diz
mendigo (...) é aposentado, tem casa própria, paga empregada e fatura pelo menos
R$ 375,00 por mês, pedindo nas ruas”, enquanto “um professor da rede pública de
ensino do Estado”
tem um salário médio de R$ 540. Se a linguagem, em si, é opaca,
neste caso, além de sua inerente opacidade, ela constrói uma incoerência pela falta de
objetividade e “imprecisão” das informações, “escapadas” aos sentidos de
interpretações pretendidas pelo sujeito-CP. Não se trata de alguns casos nem de um
caso de mendicância, mas de um aposentado que se diz mendigo. Portanto, o parâmetro
criado pelo sujeito-CP é nulo, não existe. Em nenhum momento, contrariando a sub-
manchete e texto da capa, o texto da B1 diz que mendigar é mais rentável que
professorar, mas que alguns adultos, a exemplo do Seu Antônio, cuja renda mensal
chega a R$ 675 com a aposentadoria, abusam da boa-fé para “arrancar” dinheiro das
pessoas. E se os enunciados da capa não são condizentes com o texto da B1, a manchete
(“Pedintes ganham mais do que professor”) da própria B1 também não o é, porque
não se trata de “pedintes”. No entanto, entre o antetítulo (
“PROFISSÃO: MENDIGO”),
cuja finalidade é introduzir o assunto, e o texto, há coerência, pois o primeiro sugere que
a reportagem vai tratar da mendicância, o que acaba sendo confirmado.
Explica Pena (2005, p.42) que o lide (ver tópico Objetividade e neutralidade: os
fins justificam os meios) “nada mais é que o relato sintético do acontecimento logo no
começo do texto”, complementando o interesse gerado pela manchete, cuja finalidade é
apresentar o núcleo da matéria. Pela leitura do primeiro parágrafo, onde teoricamente
reside o lide da matéria, compreende-se que o assunto-chave é a “PROFISSÃO:
MENDIGO”
: “Crianças, adultos e idosos estão migrando (...) até do Estado de
Pernambuco para pedir esmolas nas ruas de João Pessoa. As crianças são
obrigadas pelos pais a mendigar (...). Mães usam os filhos para comover as pessoas
(...). Já idosos aposentados e adultos que não precisariam (...), abusam da boa-fé
das pessoas fazendo ‘teatro’, mentindo e simulando doenças para arrancar
dinheiro”. No segundo parágrafo, o texto mostra o exemplo do aposentado e, no final
100
do terceiro e último parágrafo, é estabelecida a comparação entre o que Seu Antônio
ganha com esmolas e aposentadoria e a remuneração de um professor em início de
carreira.
A técnica jornalística chamada pirâmide invertida, recordemos, determina a
estrutura narrativa da notícia baseada
(...) em um relato que prioriza não a seqüência cronológica dos fatos, mas
escala em ordem decrescente os elementos mais importantes, na verdade, os
essenciais, em uma montagem que os hierarquiza de modo a apresentar
inicialmente os mais atraentes, terminando por aqueles de menor apelo
(PENA, 2005, p.48).
Mas o que está em jogo nesse caso não são as técnicas jornalísticas de estrutura
narrativa de notícia, nem o fato de em nenhum outro momento da reportagem haver
mais referência a salários de professor, e sim a motivação que levou tais enunciados a se
manifestarem na capa e no título da B1, em 19 de março, independente das publicações
dos dias 17 e 18. Pela própria materialidade do texto podemos dizer que não foi a
preocupação do sujeito-CP com a remuneração do docente no Estado que possibilitou a
emergência de tais enunciados, mas a “intencionalidade” de oferecer ao sujeito-leitor-
eleitor elementos “reais”, “verdadeiros”, que permitissem construir a imagem da
Educação no Estado, naquele momento. Lembremos que se trata de um ano de sucessão
governamental, cujo debate fora inaugurado pelo sujeito-CP lá em dezembro de 2005.
O embate entre servidor e governo, no entanto, não cessou com as
reivindicações dos professores. Outra categoria começava a se mobilizar, conforme
tabela abaixo:
TABELA SEGURANÇA
Data de
publicação
Manchete (M)/Chamada (C)
Quinta,
23/03
Professores param e PMs saem
às ruas em JP por reajuste salarial (M)
Segunda,
27/03
PMs terão assembléia e farão
vigília no Palácio da Redenção (C)
Terça,
28/03
PMs REJEITAM AUMENTO DE 5%, SAEM
ÀS RUAS E INICIAM VIGÍLIA NA PRAÇA
(C)
Quarta,
29/03
Policiais civis aderem à luta dos
PMs por reajuste e ameaçam greve (M)
Quinta,
30/03
PMs impedem abastecimento
de viaturas e mantêm vigília (C)
101
Sábado,
01/04
Sem acordo, PMs mantêm vigília
e professores iniciam greve na 2ª (M) + publicidade
Terça,
04/04
PMs garantem reajuste e acabam
vigília; magistério decide amanhã (M)
Se antes havia um “distúrbio” apenas na Educação porque professores ganhavam
menos que “pedintes”, conforme o sujeito-CP, agora também havia na Segurança.
Duas áreas estratégicas da administração pública estadual estavam em crise. Da
paralisação dos professores até o fim da vigília dos PMs foram 19 dias, pelo menos 10
matérias e, destas, seis manchetes. Com exceção do enunciado do dia 17 (“Estado
oferece 5% de reajuste a professor e muda aposentadoria”), que mostrava o governo
na mesa das negociações, todos os outros evidenciaram exclusivamente o movimento
dos servidores: professores param, PMs saem às ruas, PMs rejeitam aumento, PMs
farão vigília, PMs iniciam vigília, PMs mantêm vigília, policiais civis aderem à luta
dos PMs e ameaçam greve, PMs impedem abastecimento, professores iniciam
greve. Note-se a espetacularização do assunto, considerado pelo sujeito-CP como o
acontecimento jornalístico com mais atributos para a noticiabilidade. Explica
Charaudeau (2006b, p.295) que, não raro, o discurso midiático coloca a instância cidadã
em posição esquizofrênica, “seria desejado que se exprimisse racionalmente, mas só
suas emoções são solicitadas”. As mídias incitam a instância cidadã à impaciência:
Ao selecionar as notícias em função do que é julgado mais evidente na
atualidade, interpelando os políticos e destacando sua impotência ou sua
procrastinação, elas incentivam a instância cidadã a pedir resultados com
urgência, ao passo que se sabe que o tempo da ação política e jurídica não é o
das mídias, que trabalham com efêmero (CHARAUDEAU, 2006b, p.295).
Percebe-se, a partir daí, a “campanha” do sujeito-CP em dar visibilidade à
pressão dos servidores e à paralisação do governo, que foi silenciado, distanciado do
debate. Até sua proposta de escalonamento salarial e de anistia, que pôs fim à vigília
dos PMs, passou à margem da manchete de capa (“PMs garantem reajuste e acabam
vigília; magistério decide amanhã”) e do antetítulo/título da B1 (REAJUSTE
ESCALONA E ANISTIA
/Acordo encerra vigília de PMs”) em 4 de abril. Note que são
dois momentos distintos de produção de sentido de uma mesma notícia. Com o
apagamento do governo no primeiro enunciado, o sujeito-CP dá aos PMs e,
conseqüentemente, aos professores, uma autoridade que não é própria do lugar social
que eles ocupam. O Aurélio (Ferreira, 1999) registra a palavra garantir para se referir
102
àquele que pode responsabilizar-se por, afiançar, abonar. Pelo enunciado da capa
pressupõe-se que os PMs, numa decisão soberana, decidiram reajustar seus próprios
vencimentos e o magistério, decide (reajustar ou não) no dia seguinte. Ora, mas se
tinham esse poder por que estavam em vigília? Teriam eles, efetivamente, poder para
garantir, abonar, afiançar o reajuste de seus salários, como faz o poder Legislativo?
Não. Policiais e professores são grupos sindicalizados, e cabe ao sindicato, conforme
Art. 8º, incisos III e VI da Constituição Federal, “a defesa dos direitos e interesses
coletivos ou individuais da categoria” e participar das negociações coletivas de trabalho.
Portanto, nem PMs nem professores garantem reajuste, negociam. Quem pode
garantir, ainda dependendo da aprovação da Assembléia Legislativa, é o Governo do
Estado. A palavra garantem está sobre outra palavra, outro significado, um não-dito
que reclama no sujeito-leitor-eleitor outros sentidos. Já a manchete da página B1
(“Acordo encerra vigília de PMs”) recoloca os PMs no lugar socialmente estabilizado
de categoria sindical, mas ainda silencia o outro lado (governo) da negociação, como na
capa. Embora, neste caso, com o acordo fica implícita a concordância, a combinação
entre partes.
Vale ressaltar que, três dias antes dessa manchete, em 1 de abril, o sujeito-CP
veiculou a mídia institucional que discutimos no início deste capítulo (ver A vontade de
um perfil). A peça publicitária comparava duas capas do próprio sujeito-CP: uma
veiculada em 7 de setembro de 1999 (no segundo governo de Maranhão) e outra
recentemente, em 29 de março de 2006 (governo de Cássio). Recordemos o que diziam
os enunciados de cada uma
a) 1999 – “PMs decidem fazer greve e Governo diz que punirá”
b) 2006 – “Policiais civis aderem à luta dos PMs por reajuste e ameaçam
greve”
Embora se perceba no enunciado institucional (“Governantes passam. Fica o
nosso compromisso com a verdade”) uma vontade do sujeito-CP em ratificar sua
formação discursiva compromissada com a imparcialidade e com a verdade,
independente do governante, pelos enunciados das capas da publicidade escapam outros
sentidos, como discutimos no início deste capítulo. Em 1999 existe um governo forte,
que pune, em 2006 o governo é omisso, conforme regularidade discursiva presente em 9
103
de pelo menos 10 enunciados entre os dias 17 de março e 4 de abril, espetacularizados
pelo sujeito-CP.
Até este momento, a abordagem analítica foi apresentada em três etapas. Na
primeira, definimos o ethos do sujeito-CP através de enunciados oficiais. Na segunda,
acompanhamos o percurso discursivo das pesquisas contratadas e das veiculadas, e de
outras não-contratadas. Na terceira etapa, fizemos o recorte acima que, através das
estratégias discursivas do sujeito-CP, consistia em desenhar a imagem do governo pela
sua atuação em problemas nas áreas de educação e segurança. Agora, partimos para a
quarta etapa desta análise, empenhada em verificar como se manifesta o discurso do
sujeito Roberto Cavalcanti, proprietário do Sistema Correio de Comunicação, enquanto
empresário e senador.
Já foi dito que o lugar do sujeito é vazio, até que alguém com status e
competência devidos possa ocupá-lo. Quando dizemos isso, estamos nos referindo aos
lugares sociais estabilizados, de onde o sujeito obtém os discursos legitimados. Vejamos
abaixo o título/texto de capa publicado em 26 de abril de 2006:
Roberto Cavalcanti recebe homenagem da Gazeta Mercantil
Roberto Cavalcanti recebeu, ontem, em São Paulo, o título de
empresário setorial de “Comunicação” no País, pela segunda vez consecutiva.
O prêmio foi concedido pela Gazeta Mercantil. “Este é um trabalho que na
verdade premia uma equipe”, disse.
O texto deixa evidente que se trata do sujeito empresário, marcado por um
discurso próprio de quem ocupa este lugar social e atribui uma conquista ao empenho
de seus funcionários. Agora, passemos ao dia 2 de agosto. Na capa do sujeito-CP, a
chamada: “Roberto Cavalcanti toma posse no senado”. Trata-se de um momento em
que o empresário passa a ocupar outro lugar, o de senador da República. Vejamos o
título/sub-título/texto na página A2:
Roberto Cavalcanti é empossado em Brasília
Senador assume vaga de Maranhão e diz que tentará servir à PB com
persistência de nordestino
O empresário Roberto Cavalcanti Ribeiro (PRB) tomou posse, ontem,
no cargo de senador da República. Ele ocupou a vaga do senador José
Maranhão, que licenciou-se do cargo, por 122 dias, para se empenhar na
campanha pelo Governo da Paraíba.
104
(...) Roberto Cavalcanti foi levado ao plenário pelos senadores Marco
Maciel (PFL-PE), Marcelo Crivella (PRB-RJ), João Batista Motta (PSDB-
ES) e Ney Suassuna (PMDB-PB).
Juramento
Na mesa dos trabalhos, Roberto Cavalcanti fez o seguinte juramento:
“Prometo guardar a Constituição Federal e as leis do País, desempenhar fiel e
legalmente o mandato de senador que o povo me conferiu. E sustentar a
união, a integridade e a independência do Brasil”. (...)
Posse prestigiada
Várias personalidades paraibanas prestigiaram a posse de Roberto
Cavalcanti, a exemplo do próprio senador José Maranhão e de sua esposa, a
desembargadora Fátima Bezerra; o prefeito de João Pessoa, Ricardo
Coutinho, o vereador e candidato a vice-governador Luciano Cartaxo (PT), os
deputados federais Benjamin Maranhão (PMDB), Wilson Santiago (PMDB) e
Ricardo Rique (PSDB); o diretor do Banco do Nordeste e ex-prefeito de
Bananeiras, Augusto Bezerra; e o suplente de senador Robinson Koury
(PMDB).
A esposa do senador Roberto Cavalcanti, Sandra Moura, e os filhos,
Roberto Cavalcanti Filho, Beatriz e Alice Ribeiro, também participaram da
solenidade de posse, assim como a jornalista Lena Guimarães, editora-geral
do jornal CORREIO da Paraíba, dentre outras personalidades.
(...)
Em seu discurso, diz Cavalcanti como senador:
(...)
Tentarei servir ao meu povo com modéstia da minha origem e com a
persistência do nordestino. Não abandonarei meus caminhos, minhas trilhas,
minhas veredas.
Vim aqui para somar em favor do meu Estado, do Nordeste e do Brasil.
Nesta ordem e sempre nela. A Paraíba é o meu barco. Ele pode ser pequeno,
mas é o meu barco. Nele tenho navegado as águas que me refrescam e que me
conduzem. É dele que devo cuidar.
(...)
Note que o texto registra explicitamente a mudança do lugar de empresário (“O
empresário Roberto Cavalcanti (PRB) tomou posse...”) para o do senador (“A
esposa do senador Roberto Cavalcanti...”). O discurso do líder empresarial (“Este é
um trabalho que na verdade premia uma equipe”) de 26 de abril deu lugar ao do
político (“Tentarei servir ao meu povo com modéstia da minha origem e com a
persistência do nordestino”).
Explica Foucault (2005, p.75) que
(...) em nossas sociedades (e em muitas outras, sem dúvida) a propriedade do
discurso – entendida ao mesmo tempo como direito de falar, competência
105
para compreender, acesso lícito e imediato ao corpus dos enunciados já
formulados, capacidade, enfim, de investir esse discurso em decisões,
instituições ou práticas – está reservada de fato (às vezes mesmo, de modo
regulamentar) a um grupo determinado de indivíduos.
Desse modo, o discurso do senador Cavalcanti deve corresponder ao lugar
estabilizado de político, cuja palavra, para Charaudeau (2006b, p.23) se debate entre
uma verdade do dizer e uma verdade do fazer, “uma verdade da ação que se manifesta
por meio de uma palavra de decisão e uma verdade da discussão que se manifesta
mediante uma palavra de persuasão”. Ou seja, assim como a instância midiática, o
discurso político também apela para os imaginários sociais para encontrar eco nas
crenças da instância cidadã e conquistar sua adesão. Ele tenta cooptar a atenção do
sujeito-eleitor para suas verdades, que devem ser compartilhadas por toda sociedade.
Acompanhemos agora uma série de enunciados desencadeados pelo sujeito
Cavalcanti no lugar de senador:
LUGARES, SUJEITOS E DISCURSOS
Data de
publicação
Manchete (M)/Chamada (C)
Quinta,
10/08
SENADOR PEDE INCLUSÃO DA BACIA DE PETRÓLEO DA PB EM LICITAÇÃO
DA ANP
(C)
Sábado,
26/08
ALENCAR FAZ CAMPANHA COM PMDB E PROMETE LUTAR PELO
PETRÓLEO DA PB
(C)
Terça,
29/08
CAVALCANTI PEDE A MINISTÉRIO EXPLICAÇÃO SOBRE PETRÓLEO DA PB
(C)
Sexta,
29/09
CAVALCANTI DISCUTE COM MINISTRO PETRÓLEO DA PB
(C)
Quinta,
05/10
Lula atende Cavalcanti e manda ANP licitar petróleo da Paraíba (M)
Terça,
17/10
PRESIDENTE FALA PARA 35 MIL NO PARQUE DO POVO
Lula garante petróleo de Sousa
e fábrica de biodiesel para CG
No dia 10 de agosto o sujeito-CP veicula notícia na qual o senador Cavalcanti,
com a autoridade que lhe é pertinente, pede em plenário a reavaliação da ANP (Agência
Nacional do Petróleo) sobre a não inclusão da Bacia Continental Paraíba/Pernambuco
na 8ª Rodada de Licitação de Blocos Exploratórios. Diz o texto na página A14 que
Nós, nordestinos da Paraíba e do Pernambuco, fomos surpreendidos no
início desta semana (...). A resolução nº 3, de 18 de maio, do Conselho
Nacional de Política Energética publicada, no Diário Oficial da União,
106
determina que a ênfase seria dada ao gás natural e ao óleo leve, que, segundo
os próprios jornais e a própria ANP, é o tipo de óleo da bacia
Paraíba/Pernambuco. Aí seriam incluídos 284 blocos exploratórios de 14
setores e estava excluído o bloco Paraíba/Pernambuco”.
Para Cavalcanti, que é empresário, tal atitude da agência não faz
sentido, pois a inclusão dos dois estados, ou seja, mais um bloco o qual
viabilizaria a exploração de petróleo da Paraíba representaria apenas 0,0035%
do total da licitação, esse percentual não faria diferença para a ANP. Então
deixou a pergunta: por que não incluir mais um bloco? (negrito nosso)
Sabe-se que a instância política é fundada e legitimada pela instância cidadã
através dos mecanismos democráticos para a escolha dos representantes públicos e das
leis que estabelecem controle sobre o exercício de poder. Uma das estratégias do
discurso político é convencer a instância cidadã da pertinência de seu projeto político,
de modo a agregar em torno dele o maior número de adeptos. A partir daí o sujeito
político constrói para si uma imagem pluralizada de sua singularidade, não só porque
persuadiu certo número de adeptos, mas porque quer persuadir mais. De sua
singularidade ele fala como portador do plural: “ele é a voz de todos na sua voz, ao
mesmo tempo em que se dirige a todos como se fosse apenas o porta-voz de um
Terceiro, enunciador de um ideal social” (CHARAUDEAU, 2006b, p.80). Por isso o
uso do nós no discurso político de Cavalcanti como o guia das aspirações de todos
(“fomos surpreendidos”). Tal discurso seduz pela ilusão de igualdade e ao mesmo
tempo representa o feedback daquele que foi escolhido como representante. Logo, o
discurso de Cavalcanti envolve todos, “nordestinos da Paraíba e do Pernambuco”,
com o propósito de que bacia dos dois estados seja incluída, sim, nos blocos
exploratórios da ANP.
Em determinado momento de seu discurso, Cavalcanti, que também fala como
empresário, atribui a jornais o poder da verdade de que o óleo da bacia
Paraíba/Pernambuco é leve, condição assegurada pela própria ANP. Note como o jornal
se constitui em um documento comprobatório para fortalecer o discurso de Cavalcanti
nesse processo de cooptação para sua “luta” em torno do bem social da Paraíba. “Vim
aqui para somar em favor do meu Estado, do Nordeste e do Brasil. Nesta ordem e
sempre nela. A Paraíba é o meu barco”, foram suas palavras no discurso de posse.
No dia 26 de agosto, o sujeito-CP traz a seguinte chamada de capa com foto:
“ALENCAR FAZ CAMPANHA COM PMDB E PROMETE LUTAR PELO PETRÓLEO
DA PB”
. Se pusermos o enunciado da capa do dia 10 ao lado deste, perceberemos que
ambos dialogam entre si: no primeiro o “Senador [Cavalcanti] pede”, no segundo o
107
vice-presidente José Alencar “promete”. No entanto, o senador Cavalcanti não aparece
na capa, nem ele nem sua solicitação são mencionados. Sob a foto, em destaque na parte
superior à esquerda, a legenda: “O vice-presidente José Alencar foi recebido, no
aeroporto, pelo candidato do PMDB, José Maranhão e aliados de campanha”.
Abaixo da legenda, o texto da chamada:
Em visita à Capital, ontem, o vice-presidente José Alencar prometeu
lutar pela exploração do petróleo da região de Sousa e da costa paraibana. Ele
fez campanha com o PMDB e disse que José Maranhão, que disputa o
Governo da Paraíba, é o candidato do presidente Lula da Silva.
Embora o enunciado do título contenha um e separando e relacionando duas
ações (Alencar faz campanha e Alencar promete lutar) do mesmo sujeito, o contexto
material possibilita o sentido de que Alencar promete lutar pelo petróleo da PB em
campanha com o PMDB, cujo candidato José Maranhão, é candidato do presidente
Lula. A solicitação do senador Cavalcanti agora é re-significada no discurso do vice-
presidente que diz, ao lado do candidato Maranhão, na página A4: “Podem me mandar
qualquer coisa desse tipo que eu também sou paraibano”. No final do mesmo texto,
o senador que deu início à discussão sobre o tema aparece:
A inclusão da Paraíba no processo de licitação das bacias petrolíferas
foi reclamada pelo senador Roberto Cavalcanti, do partido de Alencar,
durante pronunciamento no Congresso Nacional.
Nos dias 29 de agosto e 29 de setembro a exploração do petróleo paraibano volta
a ser notícia no sujeito-CP, que destaca a atuação do senador Cavalcanti (“Cavalcanti
pede a Ministério explicação” e “Cavalcanti discute com ministro). No entanto, o
assunto ganha definitivamente uma conotação eleitoreira, já ensaiada na visita do vice-
presidente José Alencar ao estado, nas edições dos dias 5 e 17 de outubro do sujeito-CP.
Conotação esta que não se deu apenas pelos sentidos contidos no discurso, nem pelo
contexto e condições de emergência, mas também pela forma de expressão do sujeito-
CP.
No jornalismo impresso, as estratégias de gerenciamento de atenção dependem,
além do projeto editorial que reúne normas para produção e veiculação do material
noticioso, dos efeitos oferecidos pelos projetos gráficos, que acabam dando identidade
ao jornal pela caracterização e tamanhos de tipos, pelo posicionamento das imagens
108
(fotos, gráficos e ilustrações) e pela organização do conteúdo na página. Essa
plasticidade, aliada à manifestação verbal possibilitada pelas regras de formação
discursiva, é fundamental para a produção de sentidos. Segundo Hernandes (2006),
quatro leis regem a estratégia do plano de expressão no jornalismo:
O valor de uma unidade noticiosa é proporcional ao espaço a ela
concedido. Dar mais espaço valoriza a notícia;
Tudo o que estiver na parte de cima tem mais valor do que na parte de
baixo;
3ª – A máxima valorização espacial se dá na capa ou primeira página, onde o
enunciador informa o assunto ou assuntos que considera mais importantes
na edição;
O início de uma unidade noticiosa é o espaço mais valorizado (remete à
pirâmide invertida).
Logo, se partirmos dessas observações vamos perceber como o sujeito-CP
articulou todo o conjunto de técnicas jornalísticas e discursivas para transferir o
discurso do senador Cavalcanti para o plano de campanha do candidato Maranhão.
Observemos as capas abaixo.
Senador Cavalcanti em ação: capas dos dias 10 e 29 de agosto e 29 de setembro.
109
Candidato Maranhão em ação: capas dos dias 26 de agosto e 5 e 10 de outubro.
Note que o tratamento gráfico/editorial que o sujeito-CP dá ao assunto da
exploração do petróleo muda das três primeiras para as últimas capas. Nas capas onde o
senador Cavalcanti aparece como sujeito da ação, o espaço dedicado ao assunto é menor
e na parte inferior do sujeito-CP. Lembremos que o jornal é exposto e dobrado com a
parte de cima em destaque, nas bancas.
Nas demais capas, o sujeito-CP dá uma valorização maior ao assunto, sempre
em função da presença do candidato Maranhão em primeiro plano. Desse modo e
“sorrateiramente”, a exploração petrolífera da bacia paraibana, reivindicação
parlamentar do senador Cavalcanti, passa a ser atrelada à imagem/campanha do
candidato Maranhão. Até na capa que traz o enunciado “Lula atende Cavalcanti e
manda ANP licitar petróleo da Paraíba” a estratégica gráfica leva o sujeito-leitor-
eleitor a entender que Lula atende Maranhão, pois abaixo da manchete uma foto que
trata de outra notícia (“Presidente acerta comícios em JP, Campina e Patos”) mostra
Lula atendendo Maranhão e bancada aliada da campanha, com o senador Cavalcanti
deslocado, desfocado, no “sumidouro” do canto esquerdo da imagem (ver reprodução
abaixo). As estratégias jornalísticas de gerenciamento de atenção adotadas pelo sujeito-
CP estão além da materialidade lingüística. Elas contam com um suporte
gráfico/editorial que, aliado ao discurso, são mais “eficientes” na produção de sentido
no sujeito-leitor-eleitor.
110
Embora a manchete chame atenção para o fato de Lula atender Cavalcanti,
no plano central e foco da foto Lula está atendendo Maranhão.
111
Considerações
Pretensamente, ainda pensamos em colocar aí em cima o título “Conclusão”,
tomados pela ilusão de que podemos concluir, quando apenas colocamos um ponto de
descanso sobre as tarefas. Este ponto tem dois significados: um, de alívio, por se chegar
a um determinado lugar estabelecido como meta e outro, de inquietação, por estar certo
de que toda enunciação é lacunar.
Nós, sujeito humanos e sociais, somos um tabuleiro permanente de lacunas.
Sempre a buscar, incessantemente a buscar. Por mais que “selecionemos” o que nos
interessa no turbulento mar de informação a perder de vista, nunca estaremos satisfeitos.
Talvez, ao contrário, fiquemos desfeitos, cada vez mais fragmentados, afetados por
todos esses signos e ofertas variadas de realidades sustentadas por discursos
estabilizados, autorizados, verdadeiros; disseminados por uma mídia que necessita de
audiência, impõe verdades e constrói uma realidade própria.
O conjunto de matérias publicado pela mídia diariamente tem a pretensão de
representar o “real” metabolismo da vida cotidiana, mas o que representa, de fato, é a
exclusão de vários outros acontecimentos que compõem o processo de desenvolvimento
da história do sujeito. Ao aprisionar certos acontecimentos a um “real” de ordem
imaginária, a mídia produz sentidos “naturalizados” aliados a uma rede de filiações
(ética, verdade, lealdade, honestidade, etc.) discursivas sociais já cristalizadas. O relato
dos acontecimentos resulta da produção de leituras singulares motivada por interesses
escusos que têm como objetivo agendar e organizar o conhecimento do leitor.
A mídia tanto busca credibilidade (exibição) como cooptação (espetáculo). O
primeiro dá suporte ao segundo. Quando o sujeito-CP materializa seu ethos,
principalmente em discursos oficiais, na insistente condição de portador da verdade e da
ética, ele efetua a blindagem de seu noticiário contra qualquer suspeita e apaga, pelas
“evidências” da apuração e produção jornalísticas, dúvidas sobre suas vontades de
verdades que são diariamente levadas às mãos do sujeito-leitor-eleitor. O ethos,
teoricamente, camufla a inconsistência (caso da reportagem MENDIGAR VIRA
‘NEGÓCIO’ COM RENDA MAIOR QUE A DE PROFESSOR
) e a incoerência (caso da
matéria “PMs garantem reajuste e acabam vigília; magistério decide amanhã”).
112
Nas edições analisadas constatamos que, pelo poder que tem de controlar a
maneira de mostrar e de escolher o que mostrar, não apenas do ponto de vista
discursivo, mas considerando-se o conjunto gráfico-editorial, o sujeito-CP agenda as
preocupações de ordem política do sujeito-leitor-eleitor. De modo que, a partir do
tratamento estratégico dispensado às manchetes, sub-manchetes e chamadas de primeira
página se possa pensar e refletir sobre certos assuntos de determinada forma e não de
outra.
Através de pesquisas de opinião pública, independente de terem sido ou não
contratadas pelo Sistema Correio de Comunicação, o sujeito-CP ratifica pelo discurso
verdadeiro dos institutos a sua vontade de verdade de que o sujeito-candidato-oposição
é imbatível. Embora em alguns casos as pesquisas mostrem empate técnico ou
acentuada queda na diferença entre Cássio e Maranhão, para o sujeito-CP, Maranhão é
“sempre” líder. A instauração do tempo próprio da publicação inscrito na palavra
hoje” da pergunta estimulada (“Se a eleição para governador da Paraíba fosse hoje,
em qual desses candidatos o(a) Sr.(a) votaria?”) atualiza até pesquisa realizada há 19
dias, como se naquele momento a opinião pública fosse aquela.
Ao subtrair o governo da mesa de negociações com servidores nos enunciados
de capa publicados em série, o sujeito-CP produziu sentidos de apatia e omissão da
gestão atual, sugerindo um desinteresse administrativo às áreas de educação e
segurança. Nesse período, coincidentemente a diferença pró-Maranhão subiu de 10,1%
para 12,25%, da 4ª para a 5ª pesquisas da Consult.
A neutralidade, a imparcialidade e o compromisso com a verdade, alardeados
pelo sujeito-CP, quer seja sobre o amparo das técnicas jornalísticas ou dos princípios
éticos, pertencem ao domínio das aparências – melhor: das estratégias discursivas. Mas,
embora esta análise foque o discurso como principal responsável pela produção de
sentidos, os recursos gráficos usados na edição de uma página devem ser também
considerados para a busca de resultados dessa empreitada. Exemplo notório deste caso é
o jogo gráfico/discursivo em que o sujeito-CP “transfere” as reivindicações do senador
Cavalcanti sobre a exploração do petróleo na Paraíba para a campanha do candidato
Maranhão.
A cada análise realizada, descobrimos que o sujeito-CP, estrategicamente,
beneficiou o candidato Maranhão, se apoiando em verdades construídas, criadas,
inventadas com determinados propósitos, frutos de uma articulação discursiva própria
para se obter certos resultados políticos. Mas tal observação não esgota outras
113
possibilidades de discussões, outros debates que conjuguem o papel da imprensa na
formação sociopolítica do sujeito na sociedade. Desde que partamos sempre da idéia de
que a linguagem não é neutra, inocente.
Enfim, com este trabalho em torno do jogo de relações de poder marcado pelos
discursos jornalísticos pretensamente “imparciais” e pelas imposições das vontades de
verdades, cremos contribuir para uma leitura mais crítica dos discursos midiáticos. Esta
análise é uma palavra continuada, uma palavra a ser continuada; um sopro inquietante
em redemoinho sobre a poeira inerte que encobre os objetos discursivos, permitindo
outros brilhos, ângulos e cores escondidos atrás das palavras do cotidiano.
114
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117
Anexos
Discursos institucionais
Publicidade veiculada no dia 1 de abril de 2006, na página A2. Abaixo, slogan Jornalismo com ética e
paixão”, que circula diariamente nas capas do jornal.
118
Pesquisas: primeira contratada à Consult
Publicada entre os dias 13 e 17 de dezembro, com destaque para a frase da pergunta estimulada nos
levantamentos para Governo do Estado.
119
Pesquisas: segunda e terceira contratadas à Consult
Publicadas respectivamente nos dias. 22, 24 e 28 de janeiro e 19 e 21 de fevereiro de 2006.
120
Pesquisas: quarta, quinta e sexta contratadas à Consult
Publicadas respectivamente nos dias. 27 de março, 2 e 4 de maio e 13 de junho de 2006.
121
Pesquisas: outros institutos
Contratada pela CUT, a primeira foi publicada em 24 de agosto; a segunda, saiu no dia 2 de setembro, se
antecipando à publicação da revista que circulou com a data de 6 de setembro com uma “orelha”
exclusiva para Paraíba (destaque abaixo). A outra foi veiculada no dia 22 de setembro.
122
Pesquisas: outros institutos
Primeira capa, pesquisa da IstoÉ publicada em 29 de setembro; a outra, no dia 1 de outubro, dia da
eleição do primeiro turno, o jornal publicou três pesquisas; no dia 25 seguinte, publicou a segunda
pesquisa da Índice; no dia 28, a outra pesquisa da Índice. Os outros anexos se referem às publicações
dos dias 19 de fevereiro e 3 de setembro de 2006 do Jornal da Paraíba. O último anexo trata da pesquisa
da Consult publicada no dia 22 de agosto, pelo jornal O Norte.
123
Além das pesquisas: educação
Manchetes dos dias 17, 18 e 19 de março. Os demais anexos se referem à matéria do dia 19.
124
Além das pesquisas: segurança
Manchetes dos dias 23, 27, 28 29 e 30 de março e 1 e 4 de abril.
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