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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ
ROOSEVELT ARRAES
A IDÉIA E O IDEAL DE SOCIEDADE BEM-ORDENADA
NO LIBERALISMO POLÍTICO DE JOHN RAWLS
CURITIBA
2006
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ROOSEVELT ARRAES
A IDÉIA E O IDEAL DE SOCIEDADE BEM-ORDENADA
NO LIBERALISMO POLÍTICO DE JOHN RAWLS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação: Mestrado em Filosofia da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná, como requisito
para obtenção do grau de mestre.
Orientador: Prof. Dr. César Augusto Ramos.
CURITIBA
2006
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ROOSEVELT ARRAES
A IDÉIA E O IDEAL DE SOCIEDADE BEM-ORDENADA
NO LIBERALISMO POLÍTICO DE JOHN RAWLS
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação: Mestrado em Filosofia da
Pontifícia Universidade Católica do Paraná,
como requisito para obtenção do grau de
mestre.
COMSSÃO EXAMINADORA
Prof. Dr. César Augusto Ramos
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Prof
a
Dr
a
Cecília Caballero Lois
Universidade Federal de Santa Catarina
Prof. Dr. Alessandro Pinzani
Universidade Federal de Santa Catarina
Curitiba, ___ de ________________ de 2006.
2
Aos meus filhos
Pedro e João.
3
AGRADECIMENTOS
Tudo o que foi produzido ao longo destes últimos dois anos, cujo resultado final é a dissertação
que segue, se deve ao esforço de muitas pessoas que me ajudaram com o seu mais sincero empenho. Por isso,
esses agradecimentos representam duas satisfações. Uma é minha, mais íntima: a sensação de ter
“finalizado” o texto, mesmo que ainda imperfeito. A outra é de poder manifestar minha gratidão àqueles que
me ampararam. Sou grato a minha “família maior” (a família Mello), que me incentivou em todas as
empreitadas, mesmo nas mais incertas. Agradeço aos meus pais (Agostinho e Terezinha) e irmão (Delano)
que, mesmo distantes, se fizeram presentes com seu amor incondicional. Um agradecimento especial a minha
mãe, que, com sua acurada sensibilidade, nunca desistiu da árdua tarefa de me aconselhar com suas palavras
respeitosas e seus sábios silêncios.
Não poderia deixar de agradecer aos meus amigos Rogério, Rodrigo e Vinicius, que, numa
verdadeira demonstração de companheirismo, sacrificaram seus interesses pessoais para socorrerem-me nas
atividades diárias do nosso escritório de advocacia. Sem eles, certamente, não teria concluído esta tarefa.
Agradeço também aos meus “amigos quase-irmãos” Djaci (o mais velho), que introduziu a filosofia em minha
vida, e Jean (o mais novo), que me acompanha como “guardião”. Igualmente agradeço aos amigos Jorge,
Luiz Gustavo, Juliano (Bernert), José Carlos (Zé Carlos), Vitor, Valmor (Toni), Savério e Walter pela
presença nos momentos em que me encontrava extenuado. Em especial, agradeço ao amigo Milton de
Azevedo Campos, pelo exemplo de vida, que me inspirou nesta caminhada.
Aos professores do mestrado da Pontifícia Universidade Católica do Paraná minha sincera
gratidão, especialmente ao Prof. Dr. Bortolo Valle, que me lançou o desafio de escrever este texto. Aos meus
companheiros de mestrado, em especial ao Cláudio e ao Rogério (Xavier), agradeço pelas discussões
instrutivas e instigantes compartilhadas fora da academia. Da mesma forma, agradeço a todos os amigos do
Núcleo de Prática Jurídica das Faculdades Curitiba, especialmente às professoras Nádia Regina de
Carvalho Mikos e Glécia Palmeira Peixoto, e a todos os meus alunos e ex-alunos das Faculdades Curitiba,
cujas perguntas, indignações e reflexões contribuíram diretamente para o avanço de alguns pontos da
dissertação. Merecem agradecimentos especiais os acadêmicos Diogo Fernando Arbigaus e Rita de Cássia
Mader Nobre Machado que, voluntária e desinteressadamente, me auxiliaram na correção do texto para a
qualificação. Agradeço aos professores doutores Vera Karam Chueiri e César Candiotto pelos apontamentos
preciosos efetuados na qualificação e aos professores doutores Cecília Caballero Lois e Alessandro Pinzani
pelas observações críticas feitas na banca, as quais me motivam a aprofundar este estudo. Agradeço também
às professoras Déborah Scheidt, Karyn Cavalheiro, Maria Amélia Kuelhas Moreira e Renata Maria Santos
Ferreira, que efetuaram as revisões do texto. Não posso deixar de mencionar o apoio da Associação de
Ensino Novo Ateneu, que confiou no meu trabalho e contribuiu para o aperfeiçoamento dos meus
conhecimentos.
Agradeço a Deus, ouvinte das minhas orações solitárias.
Ao Prof. Dr. César Augusto Ramos minha gratidão pela confiança e pela sapiência de encontrar a
exata medida e a ocasião correta para intervir sem cercear, para advertir sem constranger, pelo cuidado e
respeito, pela compreensão, pela elegante sinceridade, pelo afinco com que conduziu minha orientação. Ser
por ele orientado é um privilégio do qual me orgulho. Por fim, agradeço à minha esposa Larissa, por ter
dividido comigo o fardo dos momentos difíceis que enfrentei. Sua presença foi, é e será indispensável na
minha trajetória. A ela, que amo, o maior agradecimento.
4
“Mesmo entre pessoas racionais e imparciais,
parece que aqueles que depositam maior confiança em suas próprias opiniões
não têm mais probabilidades de estar certos.”
(RAWLS).
5
RESUMO
Convicto de que existem respostas aos problemas fundamentais da justiça na
cultura pública moderna, John Rawls, utilizando-se de procedimento teórico, oferece
princípios aplicáveis às sociedades democráticas. Seu empreendimento intelectual,
ao negar a pretensão de verdade e fundamentos metafísicos ou epistemológicos,
almeja estabelecer um ponto de vista abstrato e razoável para ordenação dos
valores da igualdade e da liberdade e para a realização futura do ideal de perfeição
democrática. Para arranjar essas questões, o filósofo utiliza de concepções-
modelos, inclusive a do procedimento da posição original, para esclarecer e justificar
publicamente os princípios propostos. A meta é ordenar bem a estrutura sica da
sociedade por princípios que os cidadãos razoáveis escolhem, reconhecem e
honram voluntariamente, a partir da idéia organizadora de sociedade como sistema
eqüitativo de cooperação. Inicialmente, esse ideal normativo foi interpretado
criticamente como se os cidadãos dessa sociedade não compartilhassem fins
comuns. Atento a essas objeções, especialmente dos comunitaristas, Rawls, inicia,
na década de 80, algumas reformulações e esclarecimentos sobre aspectos
conceituais de sua teoria da justiça como eqüidade, que são consolidados no
Liberalismo Político. As revisões acentuam a distinção entre racional e razoável, de
consenso sobreposto, de concepção de justiça restrita ao domínio político e introduz
a idéia de fato do pluralismo razoável. Com isso, o filósofo insiste que o ideal de
sociedade bem-ordenada não se confunde com os das associações ou das
comunidades, que sua proposta empenha-se em alcançar um consenso teórico
(por sobreposição) sobre os valores e as virtudes políticas dos cidadãos, para que
os seus assuntos e conflitos práticos sejam reduzidos a um patamar razoável e para
que eles realizem não seu bem particular (individual, associativo ou comunitário),
mas o bem-comum da justiça, que é o de partilhar instituições justas que os
reconcilia com o seu mundo social.
Palavras-chave: Teoria da justiça como eqüidade; idéia e ideal de sociedade bem-
ordenada; concepção política e razoável de justiça; consenso sobreposto; sociedade
política.
6
ABSTRACT
Convinced that there are solutions for the basic problems related to justice in the
public modern culture, John Rawls, adopting a theoretical procedure, offers
applicable principles for democratic societies. His intellectual project denies the
pretension of truth and metaphysical or epistemological fundaments and thus intends
to establish an abstract and reasonable point of view for ordering the values of
equality and liberty and for the future accomplishment of the ideal of democratic
perfection. To sort these questions, the philosopher makes use of conceptions-
models, which include the procedure of the original position to publicly clarify and to
justify those principles. The objective is to properly order the basic structure of
society through principles that reasonable citizens voluntarily choose, recognize and
honor, departing from the idea of society as well-ordered and as an equitable system
of cooperation. Initially, this normative ideal was critically interpreted as if the citizens
of this society did not share common ends. Aware of these objections, especially
from the so-called “communitarianists”, in the nineteen-eighties Rawls initiates some
reformulations and clarifications on conceptual aspects of his theory of justice as
fairness that become consolidated in Political Liberalism. The revisions intensify the
distinction between rational and reasonable, of overlapping consensus, of the
conception of justice as restricted to the political domain, and introduce the ideas of
the fact of reasonable pluralism. Along these lines the philosopher insists that the
ideal of a well-ordered society is different from the ones pertaining associations or
communities, as he aims at reaching a theoretical consensus (through overlapping)
on the matter of values and political virtues of citizens, so that their practical affairs
and conflicts are reduced to reasonable situations and they can attain not only their
own well-being (individual, associative or communitarian), but also the benefit of
justice, which allows them to share just institutions, able to reconcile them with their
social world.
Key words: Theory of justice as fairness; idea and ideal of well-ordered society;
political and reasonable conception of justice; overlapping consensus; political
society
7
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................
1
2 A CULTURA PÚBLICA MODERNA NA VISÃO DE RAWLS: TEORIA,
FILOSOFIA POLÍTICA E FATOS GERAIS............................................................
7
2.1 Uma teoria sobre a cultura pública moderna...............................................
7
2.2 Condições, conseqüências e fundamentos da opção teórica de Rawls...
10
2.3 Estratégias metodológicas, funções da filosofia política e categorias da
teoria da justiça.....................................................................................................
22
2.4 Limites formais e materiais da teoria da justiça..........................................
37
2.4.1 Limites formais dos princípios de justiça........................................................
37
2.4.2 Os “fatos” e as “circunstâncias” da justiça ou as “limitações materiais” ao
conceito de justiça...................................................................................................
40
3 AS CONCEPÇÕES-MODELOS..........................................................................
46
3.1 A concepção-modelo de pessoa...................................................................
49
3.2 A concepção-modelo de sociedade..............................................................
55
3.2.1 A idéia de sociedade como sistema eqüitativo de cooperação.....................
55
3.2.2 A idéia de sociedade bem-ordenada.............................................................
62
3.3 A estrutura básica da sociedade...................................................................
65
3.4 A estrutura e a modelação da posição original...........................................
69
3.5 A seleção dos princípios de justiça..............................................................
75
4 A EFETIVAÇÃO DO IDEAL POLÍTICO DE SOCIEDADE BEM-ORDENADA...
82
4.1 Noção inicial e aprimoramentos conceituais...............................................
83
4.2. Como uma sociedade bem-ordenada é possível........................................
87
4.2.1 O consenso sobreposto como base da unidade social................................. 87
4.2.2 Uma união social de uniões sociais...............................................................
96
4.2.3 A aquisição do senso de justiça e a amizade cívica......................................
101
4.3 Associação, comunidade e sociedade política............................................
106
5 CONCLUSÃO......................................................................................................
116
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................
120
1 INTRODUÇÃO
A justiça é uma das noções mais prestigiosas do nosso universo espiritual.
Seja-se crente ou incréu, conservador ou revolucionário, cada qual invoca a
justiça, e ninguém ousa renegá-la. A aspiração à justiça caracteriza as
objurgações dos profetas judeus e as reflexões dos filósofos gregos. Invoca-
se a justiça para proteger a ordem estabelecida e para justificar as
reviravoltas revolucionárias. Nesse sentido, a justiça é um valor universal.
(PERELMAN)
Em nome do valor universal da justiça os homens, desejando um mundo
melhor, justificam suas ações, sejam elas quais forem, para remover os óbices à sua
consecução: pereat mundus, fiat justitia.
1
Embora seja um valor universal, o conceito de “justiça” é confuso e recorre-se
às mais variadas fontes para embasá-lo, tais como: o costume; os precedentes; a lei
(seja ela proveniente da vontade do povo, da vontade do indivíduo, da vontade da
nação, da vontade divina ou de uma necessidade racional superior); o ideal de “bem
comum”; ou princípios procedimentais, entre outras.
Mesmo conhecendo-se algumas fontes, o que caracteriza a ocupação dos
filósofos que pensam o tema é mais o dissenso que o consenso. “Assim, a justiça é
a virtude de práticas nas quais interesses concorrentes, e as pessoas se sentem
habilitadas a impor seus direitos umas às outras.” (RAWLS, 2002a, p. 140). É que,
se todos observassem irrestritamente os comandos de qualquer das fontes
supracitadas, é provável que a discussão sobre a justiça sequer existisse, pois,
diante da unanimidade, dissolvem-se as indignações, os questionamentos, as
críticas. Mas, a motivação dessa “unanimidade” é sabidamente problemática e
aventa uma série de questões relativas ao uso da força muitas vezes eficaz, mas
poucas vezes legítima para sua obtenção. Quiçá por isso mesmo é que,
historicamente, nenhum conceito de justiça mostrou-se suficientemente perene.
Talvez, dessa constatação, uma resposta cética à possibilidade de um
consenso sobre justiça fosse a maneira mais convincente de se portar perante o
problema. Essa não é a opção de John Rawls. Apesar dos reiterados abusos
praticados de maneira ordenada contra a humanidade, especialmente em períodos
recentes, e das diferenças incomensuráveis e irreconciliáveis entre as várias
doutrinas morais, religiosas e filosóficas, que caracterizam as sociedades
1
Que o mundo pereça, mas faça-se a justiça.
2
democráticas modernas, o autor acredita e tem a convicção teórica de que ordenar
bem a sociedade, segundo princípios de justiça pública, é uma tarefa viável.
É justamente essa preocupação com a ordenação da sociedade que constitui
a tônica deste trabalho, razão pela qual seu objetivo principal será investigar a
interpretação, o fundamentado e as características da idéia (concepção-modelo) e
do ideal de sociedade bem-ordenada, indicando quais planos teóricos esse conceito
ocupa na obra de John Rawls, e como ele foi aprimorado a partir da publicação de
Uma Teoria da Justiça, em 1971, para se ajustar ao “fato do pluralismo razoável” e,
assim, tornar-se mais realista e estável. Este aprimoramento será destacado porque
a idéia de sociedade bem-ordenada foi interpretada inicialmente como uma visão
marcadamente formal, em que os cidadãos não possuiriam fins comuns, servindo a
cooperação social somente para realização de fins privados e, conforme afirmaram
alguns autores comunitaristas, essa seria uma visão insuficiente da unidade social,
que concebe o político com um papel estritamente instrumental.
O problema central consiste, então, em perquirir em que medida a idéia e o
ideal de sociedade bem-ordenada contemplam uma base para a unidade social com
fins que podem ser compartilhados por cidadãos razoáveis de uma sociedade
democrática moderna. A hipótese é que Rawls efetivamente formula um ideal de
sociedade bem-ordenada que assume a realização não de fins particulares, mas
de fins políticos comuns, respondendo aos desafios decorrentes do reconhecimento
do “fato do pluralismo razoável”.
Tal empreendimento pode ser útil para explorar a proposta de um autor que
oferece respostas para alguns problemas enfrentados pelas sociedades
democráticas modernas, especialmente sobre a maneira de arranjar os valores da
igualdade e da liberdade, e de como justificar a reforma das instituições políticas e
sociais que enfrentam dificuldades para legitimarem suas regras e promoverem uma
forma razoável de cooperação social.
A expectativa deste esforço não é ambiciosa e não pretende discutir pontos
específicos acerca dessas reformas. Mesmo assim, a par disso e ciente da
descrença das pessoas quanto à possibilidade uma sociedade mais justa, os
argumentos aqui lançados esperam demonstrar, de maneira geral, que a
interpretação rawlsiana da idéia e do ideal de sociedade bem-ordenada, entendidos
num sentido político, mostram-se como uma base orientadora de mudanças
institucionais que nos aproximaria do ideal de perfeição democrática.
3
Para realizar esse desígnio, a dissertação foi dividida em três capítulos, os
quais guardam certa semelhança com a estrutura metodológica sugerida pelo
próprio autor, nas considerações finais explicativas de Uma Teoria da Justiça (§87),
como um caminho instrutivo para lidar com a complexa gama de temas que
permeiam sua obra. Contudo, o intento não consiste em repetir o andamento
metodológico de Uma Teoria da Justiça, mas balizar o tema segundo uma ordem de
tratamento, que se tornou mais clara depois da publicação dessa obra
2
, e que segue
determinados planos, aqui denominados: a) o plano dos pressupostos factuais e
teórico-metodológicos; b) o plano da prescrição institucional; e, c) o plano da
viabilidade da teoria.
3
No primeiro capítulo tratar-se-á das características e conseqüências gerais da
opção teórico-argumentativa do filósofo para a construção/seleção dos princípios de
justiça, a sua maneira de compreender a filosofia política, a seleção e descrição dos
“fatos” e “circunstâncias” gerais da cultura pública e algumas de suas “idéias
intuitivas”, as quais constituem a matriz da tradição moderna. Nesse capítulo, tratar-
2
Kukathas e Pettit, em Rawls: uma teoria da justiça e seus críticos sugerem a divisão da obra do
autor em fases. A primeira fase é inaugurada com a publicação de Uma Teoria da Justiça, de 1971 e
que segue até a publicação das conferências Tanner e as conferências Dewey. A segunda segue-se
dos artigos publicados a partir de 1985. Em que pese esta divisão, os referidos comentadores
destacam que: “Ao distinguir dois ‘passos’, não temos a intenção de sugerir a existência de uma
interrupção decisiva no pensamento de Rawls: temas que dominam os seus artigos mais recentes
também se encontram nas conferências Dewey, por exemplo.” (KUKATHAS, 1995, p. 143).
Acompanhando em alguns pontos esta interpretação, procurar-se-á apresentar o pensamento
rawlsiano enfatizando mais a sua unidade do que suas eventuais rupturas.
3
Esses três planos transparecem em vários momentos da obra rawlsiana, sobretudo, a partir da
década de 80, e que culminam no Liberalismo Político. “Nossa esperança é que exista uma vontade
comum de chegar a um acordo e que as pessoas compartilhem uma quantidade suficiente de idéias
subjacentes, de princípios implicitamente respeitados, a fim de que o esforço para encontrar uma
solução esteja relativamente alicerçado. O papel da filosofia política na cultura pública das
democracias é, então, definir e tornar explícitas essas noções e esses princípios que compartimos
[sic] e que estão, ao que parece, latentes no senso comum; ou então se, como freqüentemente
acontece, o senso comum se mostra hesitante e incerto, sem saber o que pensar, ela deve propor-lhe
certas concepções e certos princípios que estão no cerne de suas convicções e de suas tradições
históricas mais importantes.” (RAWLS, 2002b, p. 50). Neste excerto, transparece a divisão e a relação
dos dois primeiros planos: a) o primeiro, no qual se identificam as idéias implícitas da cultura pública
(senso-comum) compartilhadas pelas pessoas; e b) o segundo, no qual a filosofia política deve atuar
oferecendo (prescrevendo) concepções e princípios que organizem tais idéias implícitas. No
Liberalismo Político, Rawls intensifica a argumentação acerca da viabilidade e da estabilidade da
teoria da justiça, as quais estarão agregadas ao terceiro plano. Para Rawls: “[...] o problema da
estabilidade desempenhou um papel muito pouco importante na história da filosofia moral” (RAWLS,
2000a, p. 25), isso porque: A intolerância era aceita como uma condição da ordem e estabilidade
sociais. O enfraquecimento dessa idéia ajuda a preparar o terreno para as instituições liberais.”
(RAWLS, 2000, p. 33). Nestas passagens Rawls indica que o reconhecimento do fato do pluralismo
demanda que a sua teoria seja avaliada também neste terceiro plano. No prefácio à edição francesa
de Justice et mocratie, o autor refere-se ao caráter da estabilidade de uma sociedade-bem
ordenada, proposta em Uma Teoria da Justiça, como sendo “irrealista” e que devia ser reformulada.
(RAWLS, 2002, p. X)
4
se-á do ponto de partida rawlsiano, ou seja, “[...] a noção da própria cultura blica
como fundo comum de idéias e princípios básicos implicitamente reconhecidos.”
(RAWLS, 2000a, p. 50).
Incluem-se o delineamento das diferentes estratégias metodológicas do
construtivismo político rawlsiano (estratégia da “evasão” ou da “esquiva”, estratégia
do “equilíbrio reflexivo”, estratégia do abstracionismo concreto), das categorias
teóricas das concepções-modelos (idealidade, representacionismo, normativismo e
idealização), do fundamento da teoria da justiça e das funções da filosofia política
(função prática de ordenação para resolução de conflitos, função de orientação dos
cidadãos, função de reconciliação dos cidadãos com seu mundo social e a função
realística-utópica), além dos limites formais (universalidade, generalidade,
publicidade, coerência e terminatividade) e materiais do conceito de justiça (fato do
pluralismo, escassez moderada de bens e necessidade de cooperação social).
Cumpre notar que os temas desse plano são recorrentes na obra do autor e
funcionam como fios entrelaçados na sua rede argumentativa, auxiliando a entender
em que sentido a sua teoria é normativa e política.
No segundo capítulo, vinculado ao plano da “prescrição institucional”,
apresentar-se-á a “justificativa” e a “legitimação” (o porquê) dos valores políticos
explicitados nos dois princípios de justiça, a partir das concepções-modelos (de
pessoa, de sociedade como sistema eqüitativo de cooperação, de sociedade bem-
ordenada, de estrutura sica da sociedade e da posição original), engendradas
num procedimentalismo de caráter contratualista. É a tarefa de ordenar idealmente
os fatos e idéias selecionadas no primeiro plano em modelos teóricos que,
arranjados adequadamente, ou seja numa concepção política de justiça, oferecem o
conteúdo (primeira questão fundamental) dos princípios de justiça a serem
comparados com os de outras propostas teóricas que se dedicam ao tema. Assim,
objetiva-se demonstrar na segunda parte, “[...] que a teoria proposta corresponde
melhor do que outras doutrinas [...] aos pontos estabelecidos de nossas convicções
ponderadas, levando-nos a revisar e ampliar nossos juízos de modo que [...] nos
parecem mais satisfatórios.” (RAWLS, 2002a, p. 645-6). Dessa maneira, propõe
Rawls que “[...] devemos buscar uma maneira de organizar idéias e princípios
conhecidos numa concepção de justiça política que expresse essas idéias e
princípios de um modo diferente do anterior.” (RAWLS, 2000a, p. 51).
5
No terceiro capítulo, atrelado ao plano da viabilidade,
4
será discutido “como
seria” possível a concretização do ideal de sociedade bem-ordenada, destacando-se
em que sentido ela é um ideal político. Trata-se de investigar em que medida tal
proposta é utópica e realística e como pode ser amadurecida ao longo do tempo,
como forma de reconciliar os cidadãos de uma democracia constitucional moderna
com o seu mundo social. Tais preocupações são centrais no liberalismo político
rawlsiano:
[...] o liberalismo político procura uma concepção política de justiça que,
assim esperamos, possa conquistar o apoio de um consenso sobreposto
que abarque as doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis de uma
sociedade regulada por ela. A conquista desse apoio permitirá responder à
nossa segunda questão fundamental: como os cidadãos, que continuam
profundamente divididos em relação à doutrinas religiosas, filosóficas e
morais, mantêm, apesar disso, uma sociedade democrática justa e estável?
(RAWLS, 2000a, p. 52)
4
A questão da viabilidade era uma preocupação do autor em Uma Teoria da Justiça: “por fim,
verificamos, na terceira parte, se a justiça como eqüidade é uma concepção viável.” (RAWLS, 2002a,
p. 646). O plano da viabilidade indicado aqui não deve ser entendido para a eficácia presente, mas
para a eficácia futura da teoria ideal. Rawls interpreta como exemplo de teoria da justiça que prioriza
a eficácia presente o utilitarismo clássico de Bentham, Sidgwick, Edgeworth e Pigou: “Eu gostaria
agora de destacar alguns aspectos da concepção de justiça como eqüidade comparando-a à
concepção de justiça no utilitarismo clássico representado por Bentham e Sidgwick, e sua
contrapartida na economia do bem-estar. Esta concepção incorpora justiça à benevolência e a última,
por sua vez, ao mais eficiente projeto de instituições para promover o bem-estar geral. Justiça é uma
espécie de eficiência.” (RAWLS, 2001b, p 64) (nossa tradução). Rawls prefere formular princípios que
se engajem num projeto histórico que não dependa de um princípio único, abrangente e
preestabelecido de justiça, como o faz o utilitarismo clássico. Não há, portanto uma revelação prévia
sobre o que seja a característica essencial da natureza ou da psicologia humana que determinariam
quais as reivindicações legítimas que deveriam ser maximizadas eficazmente no momento presente.
“Portanto, o problema não é como especificar uma medida precisa de algum atributo psicológico ou
outro que esteja disponível somente para a ciência. Mais exatamente, é um problema moral e prático.
O essencial é entender o problema quando confrontado ao contexto filosófico apropriado.” (RAWLS,
2001b, p. 386-7) (nossa tradução). Então, os questionamentos pertencentes a esse plano (da
viabilidade) ocupam-se em saber se, dadas certas características presentes da cultura pública
moderna, que inclui a dificuldade de lidar com os valores doutrinários morais, religiosos e filosóficos
incomensuráveis de caráter social, é razoável supor que, no futuro, a sociedade será mais justa. Para
Rawls, a sociedade presente não é bem-ordenada, tampouco justa como deveria ser. Por isso, sem
uma reforma progressiva das instituições presentes não é possível estabelecer, só com o que o
temos hoje, uma forma de justiça ao mesmo tempo eficaz e estável. Assim, o que se denominou aqui
como eficácia concentra-se nos problemas relativos à viabilidade e à estabilidade da ordenação da
sociedade para o futuro, e não para sua aplicação imediata e total no presente, mediante alguma
forma de justiça alocativa, que considere todas as circunstâncias de uma sociedade real (presente).
Note-se que nesse plano ainda caberia apresentar, além das questões sobre a viabilidade e a
estabilidade do ideal de uma sociedade bem-ordenada para uma democracia constitucional perfeita,
a descrição das instituições que concretizariam esta sociedade, a qual Rawls denomina de
“democracia de cidadãos-proprietários” ou “socialismo liberal”. Mas, essa descrição não é o objetivo
do trabalho e somente será mencionada quando estritamente necessário para ilustrar a interpretação
do ideal da sociedade bem-ordenada. De igual sorte, os problemas da regra da maioria, da legislação
injusta, da justificativa da desobediência civil, da objeção de consciência, dos limites da tolerância em
relação aos intolerantes, relativos ao tratamento da eficácia dos princípios ideais de justiça numa
sociedade real (quase justa) que não os satisfaça completamente (teoria não-ideal), não serão
discutidos.
6
A divisão dos capítulos segue dos planos teóricos porque a construção teórica
de Rawls possui conceitos que se interpenetram e, às vezes, assumem papéis
diferentes ou ampliados em cada momento da sua exposição. É o que ocorre, por
exemplo, com as concepções de “pessoae de “sociedade”, que aparecem na obra,
ora para constituírem as concepções-modelos (pessoas racionais situadas na
posição original e sociedade como sistema eqüitativo de cooperação), ora para
explicarem as condições de uma sociedade idealmente justa (cidadãos razoáveis e
cooperativos que reconhecem os mesmos princípios de justiça numa sociedade
bem-ordenada). Aliás, o objeto deste estudo (a sociedade bem-ordenada), como o
próprio título sugere, pertence a dois planos: o plano da prescrição institucional
(idéia) e o plano da viabilidade (ideal). Daí a importância desta separação em
planos, a qual conduzirá a outras que surgirão no texto e servirão para organizar os
conceitos formulados pelo autor. Impõe ponderar, também, que essa organização
segue dedutivamente, de maneira que o primeiro capítulo limita os demais e deve
ser compreendido como o primeiro passo à resposta da questão apresentada.
7
2 A CULTURA PÚBLICA MODERNA NA VISÃO DE RAWLS: TEORIA,
FILOSOFIA POLÍTICA E FATOS GERAIS
2.1 Uma teoria sobre a cultura pública moderna
Na filosofia prática atual não consenso acerca da maneira de avaliar e
solver os problemas da justiça,
5
de maneira que a via teórica de Rawls não é única,
tampouco é privilegiada. Mais: não aparente razão de desempate entre as
correntes que negam a possibilidade da justiça, nas circunstâncias históricas e
sociais atuais, e aquelas que a afirmam. Aliás, mesmo entre os que propõem regras
e princípios de justiça, não há acordo sobre a melhor maneira de legitimá-los.
Aqueles que negam a possibilidade da justiça afirmam que o sistema teórico-
normativo de Rawls é incapaz de estabelecer os princípios ou as bases sociais
legítimas para instituições justas, porque sua visão: a) ignora que a estrutura de
poder é extremamente sutil e fragmentada, não podendo ser ordenada; b) não é
suficiente para romper com o arranjo institucional existente, que tenciona a
manutenção do status quo, de tal maneira que seus opositores são neutralizados por
intermédio de estratégias disciplinadoras (dificultadoras) do uso do espaço blico
de debate e do acesso às instituições que asseguram a igual consideração das
reivindicações dos cidadãos; c) mesmo que ordenasse a sociedade segundo
preceitos normativos justificáveis publicamente, em última instância, a decisão final,
acerca de seus rumos, sempre seria arbitrária e o embate político (com vencedores
e perdedores) inevitável.
Pode-se notar que tais críticas deslocam o papel da filosofia política do
questionamento sobre a ordenação legítima das instituições da sociedade para a
5
Oliveira pontua os dilemas contemporâneos das discussões sobre a justiça, afirmando que:
“Quando abordamos hoje problemas de ética e filosofia política, duas questões de fundamentação
são inevitavelmente levantadas; 1) Pressupomos uma concepção normativa de moral (como o fazem
Hare, Habermas, Rawls, Apel e todos os herdeiros da racionalidade modernista) ou refutamos a
possibilidade de estabelecer um fundamento normativo de moralidade e obrigação política (como o
sugerem Foucault, Luhmann e pós-modernos)? 2) Pressupomos um procedimento universalizável ou
devemos partir de contextos localizados (ou de tradições), na tentativa de articular um discurso
racional, coerente e defensável sobre ética e política? Este debate tem oposto, na América do Norte e
na Europa, universalistas (Habermas, Rawls, Apel, Kohlbert, neokantianos em geral) e comunitaristas
(Taylor, MacIntyre, Arendt, Heller, marxistas, neo-hegelianos e neo-aristotélicos em geral). Enquanto
a primeira questão tem sido caracterizada pelo aporético dialogue de sourds entre modernistas e pós-
modernos, a segunda não tem sido menos polêmica nas reivindicações do que está afinal em jogo no
debate entre universalistas e comunitaristas, a saber, a própria concepção de uma moral
universalizável e prescritiva em constante conflito com os aspectos contingentes das formas de vida
sociais e suas relações políticas.” (OLIVEIRA, 1999, p. 164)
8
avaliação e o entendimento de como tais instituições se formaram historicamente e
como efetivamente funcionam numa sociedade real. Em vez de validade e
legitimidade, as palavras de ordem são governabilidade e eficiência. A filosofia
política não é pensada a partir da “validade” (para daí sugerir-se o exercício legítimo
do poder), mas para desvelar os discursos o-públicos, porém eficazes, do poder.
O que se prioriza não é o “por quê?”, o “dever-ser”, a “norma reconhecida
publicamente”, o “ideal de justiça”, a “meta final”, a “teoria”, mas, o “como”, o
“controle”, o “conflito”, as “práticas”, o “discurso não-declarado” que efetivamente
produz e é produzido pelos diversos agentes que compõem a sociedade. Percebe-
se, neste breve apontamento, que as perguntas e as preocupações destes críticos
pouco se comunicam com as de Rawls, de maneira que estabelecer um diálogo
entre eles não é tarefa fácil.
Entre os que afirmam a possibilidade da justiça política e social, aqueles
(especialmente os autores alinhados ao comunitarismo)
6
que criticam Rawls porque
sua opção teórica seria formal, fundamentada em procedimento abstrato, ficcional,
que opera com categorias procedimentais que procuram regular uma realidade
histórica profundamente contraditória, e naturalmente contextualizada, e refratária a
princípios considerados ideais e universais. Mesmo entre os autores que
compartilham dos mesmos pressupostos teóricos que Rawls, atribuindo tratamento
semelhante aos fatos gerais e às idéias intuitivas da cultura pública moderna,
divergências acerca da organização da prioridade destes fatos e idéias, bem como
sobre o conteúdo e a forma dos princípios de justiça propostos. É o que ocorre, por
exemplo, com relação às correntes utilitaristas, libertárias e intuicionistas.
De qualquer modo, e ressalvadas as muitas diferenças, os embates entre os
que afirmam a possibilidade da justiça têm um ponto comum: a preocupação de
validação das regras de justiça que regerão a convivência humana.
7
Rawls, ao seu
6
Essa é uma rotulação genérica e pouco precisa sobre o posicionamento de autores como Charles
Taylor, Alasdair MacIntyre, Michael Walzer, Michael Sandel e outros. De qualquer sorte, como não se
objetiva delinear a crítica profundamente, faz-se essa referência como maneira de exemplificar
algumas das maneiras de refletir sobre a justiça. De qualquer modo, “muitas são as divergências que
separam liberais e comunitaristas. Tratando-se de Uma Teoria da Justiça, podemos dizer que elas
giram à volta da concepção do sujeito, da racionalidade, da sociedade, da relação da política com a
moral e finalmente do alcance, universalista ou não, de uma teoria política. Mais sucintamente, o
pensamento comunitarista volta a pôr em questão o conceito rawlsiano de subjectividade, os seus
atributos, bem como o tipo de comunidade humana a que daria lugar uma sociedade fundada nesses
atributos.” (RENAUT, 2000, p. 328).
7
Charles Taylor e Alasdair MacIntyre orientam-se, acentuadamente, por uma análise histórica da
sociedade. Porém, para eles, propor uma forma de regulação legítima, mesmo que contextual,
9
modo, se filia e dialoga com os críticos e opositores que comungam esse mesmo
ponto de partida. Porém, para ele, tal empreendimento de validação torna-se mais
esclarecedor com o recurso metodológico do procedimentalismo
8
e com o uso das
concepções-modelos, as quais permitiriam resolver as controvérsias mais profundas
entre as doutrinas morais, religiosas e filosóficas abrangentes, até que um ponto
razoável de acordo potico sobre a justiça fosse alcançado.
Como se procurará demonstrar a seguir, a formatação destas concepções-
modelos e a construção/seleção dos princípios de justiça não são absolutamente
teóricos, uma vez que Rawls pretende alicerçá-los nos pontos mais característicos
do senso-comum da cultura pública moderna.
9
Dessa forma, seu trabalho seria o de
esclarecer os elementos comuns desta cultura, harmonizando-a numa visão
coerente e adequada sob o ponto de vista de todos os cidadãos num regime
democrático-constitucional, em vez de revelar algo que estaria oculto, ou ofuscado
em práticas não reconhecidas publicamente. Com a apresentação das limitações,
condições e características gerais da teoria e da filosofia política, indicar-se-á a
maneira mais concisa e elaborada como Rawls interpreta estes elementos comuns
também é uma tarefa relevante. O próprio MacIntyre destaca este viés no prefácio de seu livro Justiça
de quem? Qual racionalidade?: “Isso me permitiu preencher uma outra lacuna de After Virtue, que foi
destacada por vários críticos que não compreenderam esse livro ao representá-lo como uma defesa
‘da moralidade das virtudes’, como uma alternativa ‘à moralidade das regras’. Esses críticos não
perceberam o modo no qual qualquer moralidade das virtudes foi considerada como exigindo, em
contrapartida, ‘uma moralidade de leis’ (After Virtue, segunda edição, pp. 150-152), uma moralidade
tal que “saber como aplicar a lei é possível para alguém que possui a virtude da justiça” (p. 152).
Uma preocupação central dessa seqüência a After Virtue é a natureza da conexão entre justiça e
leis.” (MACINTYRE, 2001, p. 7.). Daí afirmar, nesse sentido (e talvez em outros poucos assuntos),
que este autor divide a mesma preocupação de Rawls, qual seja, a de identificar o fundamento de
justiça das regras que regem a conduta do homem em sociedade.
8
A posição original é o procedimento utilizado por Rawls para a seleção dos princípios de justiça.
Como procedimento de representação, trata-se de um instrumental teórico que organiza idéias,
ideais, princípios intuitivos. É por meio dela que se torna possível “[...] um processo racional de
deliberação nas condições ideais e não históricas, que exprimem certos cerceamentos razoáveis”
(RAWLS, 2002b, p. 23), cujo objetivo é estabelecer uma estrutura de pensamento dentro da qual se
possa identificar os fatos que são relevantes de um ponto de vista apropriado e determinar seu peso
enquanto razões.” (RAWLS, 2000a, p. 169). As categorias e estratégias metodológicas que envolvem
esse procedimentalismo serão tratados a seguir, em tópico específico.
9
A preocupação de esclarecer as idéias existentes no senso-comum acompanha Rawls desde
seus primeiros escritos. Nesse sentido, leia-se a seguinte passagem do texto Outline of a decision
procedure for ethics, de 1951: “O próximo objetivo, então, no desenvolvimento do presente método, é
descobrir e formular uma explicação que seja satisfatória, de modo geral, em relação à gama
completa dos julgamentos ponderados de juízes morais competentes, como são feitos dia após dia na
vida real, e como são encontrados incorporados aos muitos ditames da moralidade do senso-comum,
em vários aspectos de procedimento legal, e assim por diante.” (RAWLS, 2001b, p. 7) (nossa
tradução). O que se deve perceber é que nas revisões, iniciadas no começo da década de 80, o autor
passou a preocupar-se em esclarecer a interpretação de dois fatos especiais do senso-comum da
cultura pública: o fato do pluralismo e a necessidade da cooperação social.
10
da tradição moderna, ela mesma constituída por outras tradições (ou doutrinas
abrangentes).
10
2.2 Condições, conseqüências e fundamentos da opção teórica de Rawls
Ao optar por pensar o tema da justiça usando-se de recurso teórico, é
necessário considerar alguns condicionamentos, visto que, genericamente, “teoria” é
uma explicação racional e sistemática de uma realidade complexa.
11
Desdobrando-se a afirmação inicial, tem-se, por exemplo, a diferenciação
entre “o que se apresenta” (fato) e a demonstração de como ele se manifesta
(causalidade/necessidade) ou deveria se manifestar (resultado esperado de uma
ação voluntária). Se a teoria tem por objeto a natureza, sua preocupação pode ser,
por exemplo, descrever como “aquilo que existe” funciona e se relaciona com outras
coisas regularmente. Todavia, se a teoria tem por objeto a conduta humana, as
possibilidades se ampliam. Pode-se pretender descrever a conduta humana
individual ou grupal, buscando-se identificar certa regularidade nos comportamentos,
como na antropologia ou na sociologia (teoria científica). Por outro lado, a conduta
humana também pode ser objeto de investigação em outras bases, ou seja, não
sob o ponto de vista descritivo, mas, também, sob o enfoque da
10
Quando o filósofo refere-se à tradição moderna, entenda-se o seguinte: “Penso, aqui, na tradição
da filosofia moral como sendo ela mesma uma família de tradições, tais como as tradições do direito
natural e das escolas do senso moral, das escolas do intuicionismo racional e do utilitarismo. O que
faz de todas essas tradições partes de uma única tradição abrangente é que elas se utilizam de um
vocabulário e uma terminologia cuja compreensão lhes é comum. Além disso, refutam e adaptam-se
às visões e argumentos umas das outras, de modo que as trocas entre elas são, em parte, uma
discussão ponderada que conduz a um ulterior desenvolvimento.” (RAWLS, 2005, p. 14.). Neste
excerto, sugere-se que a cultura pública moderna, termo recorrente nos textos do autor, constitui uma
base mais elevada e comum às várias tradições modernas, cujos conteúdos são dados por doutrinas
morais, religiosas e filosóficas abrangentes. Para Rawls, esta família de tradições possui fatos e
idéias latentes que, se organizados numa visão política, podem oferecer princípios de justiça
aceitáveis. Neste capítulo, e na apresentação da idéia de consenso sobreposto no terceiro capítulo,
procurar-se-á indicar como esta visão política seria capaz de estabelecer um ponto de vista comum
entre as várias correntes que se preocupam com a validação da justiça para as regras de convivência
humana numa democracia moderna.
11
Para Rawls, uma teoria da filosofia prática possui pontos formais comuns com uma teoria científica,
razão pela qual se procurará seguir esta linha na apresentação da teoria da justiça, contudo,
ressalvando suas peculiaridades. Rawls afirma: O procedimento é, de alguma forma, análogo a
evidenciar uma proposição ou teoria nas ciências reais, exceto que em discussões morais tentamos
validar ou invalidar uma decisão e a ação a ela conseqüente, dadas as circunstâncias e os interesses
em conflito (não atos de acreditar, dada uma proposição ou teoria e sua evidência) e o critério que
utilizamos são os princípios de justiça (e o as regras da lógica indutiva).” (RAWLS, 2000b, p. 18)
(nossa tradução).
11
motivação/justificação da ação. Nessa perspectiva, que constitui um dos temas
centrais da filosofia prática, questiona-se: como o agir humano livre, racional e
razoável deveria ser (dever) ou estaria legitimado a se realizar (direito)?
12
Embora esses comentários não reflitam univocamente o que se entende por
“teoria”, são constatáveis alguns pontos relativamente incontroversos que servem
para esclarecer, introdutoriamente, o propósito de Rawls. Tais pontos são os
seguintes: a) uma teoria usa da abstração para explicar a realidade, recortando-a e
apresentando-a num plano racional (modelo) cujos elementos deixam de ser “fatos
complexos” e passam a ser “razões simples e necessárias”; b) a explicação é
apresentada de forma ordenada, ou seja, normativamente (a legalidade, nesse
sentido, é o oposto da irracionalidade, do caos, do acaso, ou da arbitrariedade); c) a
explicação será verdadeira se a hipótese ou se o modelo teórico “sempre”
representar a referência fática adequadamente, ou será razoável se ela sustentar-se
estavelmente ao longo do tempo, sem impor exigências inaceitáveis ao bom-senso
dos cidadãos.
Rawls reconhece a necessidade de incorporar as características (a)
(abstracionismo formal) e (b) (ordenação) na teoria da justiça e na sua forma de
compreender a filosofia política. Aliás, quando se tratar das limitações formais ao
conceito de justiça e de algumas funções da filosofia política, esta admissão ficará
mais evidenciada, especialmente porque os princípios de justiça seguirão, quanto ao
seu enunciado, tais características e limitações, embora seja necessário observar
algumas especificidades decorrentes dos fundamentos normativos e políticos
utilizados pelo autor.
Entretanto, o filósofo se afasta da pretensão de obter uma teoria verdadeira
(primeira parte da característica [c]), que, para ele, dadas as “dificuldades da
razão” ou os “limites do juízo” (burdens of reason), essa seria uma tarefa infrutífera.
É que, primeiramente, a “verdade” é um dos principais objetos de crítica de teorias
12
Em face das várias possibilidades de respostas, é adequado dividir (ou organizar prioritariamente)
os deveres/direitos entre aqueles que a pessoa tem em relação a si, em relação a outras pessoas
privadas, em relação a grupos familiares, em relação a comunidades ou a associações em razão da
afinidade, em relação às instituições sociais, em relação à humanidade e em relação ao meio-
ambiente. Essas subdivisões remetem às várias disciplinas da filosofia prática (ex: filosofia moral,
política e jurídica), consideradas em cada campo do pensamento segundo sua aplicação ao espaço
público ou privado, às afinidades e às lealdades exigidas, à possibilidade elementar da existência,
etc. Essa distinção se mostrará útil na consideração da espécie de direitos/deveres que devem ser
considerados na concepção político-liberal de John Rawls sobre o que seja o objeto de uma
sociedade bem-ordenada.
12
contemporâneas sobre a validade do conhecimento teórico, especialmente o
científico. A aferição da verdade foi deslocada para diversos campos da investigação
humana. A verdade acerca do “fato” (da referência ou do “mundo”, como pode ser
denominado também) transitou da sensibilidade/racionalidade para a linguagem e
para a validação pragmática, de tal forma que, mesmo nas ciências naturais, é, no
mínimo, controverso infirmar um conceito unívoco. Por isso, “A concepção política
[...] prescinde do conceito de verdade.” (RAWLS, 2000a, p. 139).
Em segundo lugar, porque as discussões relativas aos paradigmas da ciência
ou dos problemas da linguagem para expressar/designar (proposição) um objeto
(referência) pertencem preponderantemente à filosofia da ciência, cujas pretensões
de verdade ou críticas a tal possibilidade o podem ser transpostas à filosofia
prática para fundamentar suficientemente as bases de princípios de justiça. É
evidente que é possível admitir a necessidade de tolerância e de respeito tuo a
partir das críticas dirigidas à epistemologia, segundo as quais, por exemplo, as
pretensões de verdade não devem ser ambiciosas e, que, por conseguinte, ninguém
está autorizado a impor seu ponto de vista a partir de um fundamento científico.
Contudo, tais críticas apresentam somente alguns dos aspectos das polêmicas
atuais de como ordenar bem uma sociedade, deixando de solver conflitos
decorrentes da necessidade de priorizar as reivindicações intersubjetivas e de
avaliar as crenças e projetos de vida das pessoas e de suas associações e
comunidades. É que “mesmo quando concordamos inteiramente com os tipos de
consideração que são relevantes, podemos discordar a respeito de sua importância
relativa e, assim, chegar a julgamentos diferentes.” (RAWLS, 2002a, p. 100).
Diante das diferenças e das dificuldades de se aplicar a pretensão de verdade
científica ao campo da validade normativa do dever-ser, poder-se-ia insistir em
ampará-la (a verdade sobre os valores da sociedade ou da comunidade) no domínio
da filosofia prática.
Para Rawls, no entanto, nenhuma doutrina racional da tradição moderna seria
capaz de alcançar a pretensão de verdade a partir de suas próprias bases
(epistemológicas ou metafísicas), sem que recorresse ao uso da autoridade, o que,
em última instância, macularia o ideal seminal de uma democracia, que é o de
conciliar interesses individuais e coletivos. É que a noção de “verdade”, aplicada à
filosofia prática, em vez de proporcionar a solução dos conflitos valorativos, na
verdade, os acirraria ainda mais. Isso não ocorreria porque as pessoas são
13
relutantes ou insensatas, mas porque, mesmo que se esforçassem em compreender
os pontos de vista umas das outras, o confronto entre valores incomensuráveis e
intraduzíveis produziria desacordos invencíveis. Nesse sentido, Rawls nega a
possibilidade de se estabelecer uma teoria da justiça cujos fundamentos sejam
epistemológicos ou metafísicos. Por isso, sua teoria deixa de operar com algumas
categorias tradicionalmente vinculadas a essa forma de compreender a verdade,
para defender a idéia de razoabilidade.
Essas observações são necessárias porque poderia parecer que essa
concepção depende de pretensões filosóficas o que, na realidade, desejo
evitar, como a pretensão a uma verdade universal ou que dizem respeito à
natureza e à identidade essenciais da pessoa. Tenho por objetivo mostrar
aqui que minha teoria não precisa disso. (RAWLS, 2002b, p. 201)
Portanto, em vez de insistir na identificação de valores a partir de uma
doutrina filosófica, moral ou religiosa abrangente de bem racional (rational),
13
cujas
proposições regulariam a vida das pessoas e de suas instituições a partir de
princípios com fundamentos epistemológicos ou metafísicos que resultariam em
“verdade”, Rawls prefere propor uma teoria filosófica da justiça de caráter político
(political), restrita a esse domínio, cujas proposições devem regular somente a
identidade pública das pessoas e de suas instituições, a partir de princípios
“razoáveis” (reasonable), embasados na cultura pública moderna, que é viável e que
pode dar azo à convivência pacífica e tolerante de outras tantas doutrinas razoáveis.
A substituição do verdadeiro pelo razoável decorre da própria tarefa que a
filosofia política assumiu em nossa época. Para Rawls, a filosofia política moderna
possui pretensões diferentes da filosofia política de outros momentos históricos. Em
outros períodos ela estava fundida com a filosofia moral e jurídica, visto que todas
elas possuíam um fundamento supremo único (sumo bem). Exemplificando esse tipo
de visão, na avaliação da filosofia grega, o autor afirma que eles (os gregos do
período socrático):
[…] viam a conduta virtuosa como um tipo de bem a que se deve dar um
lugar ao lado de outros bens da vida boa, e procuravam uma concepção de
13
Em Rawls, pelo menos duas noções de racionalidade. Uma é a racionalidade das doutrinas
abrangentes, cujo conteúdo é incapaz de alcançar um consenso sobreposto, porquanto seu objetivo é
oferecer valores verdadeiros para a justiça. A outra é a das partes na concepção-modelo da posição
original. Esse tipo de racionalidade, formal e normativa, é limitada por um procedimento razoável, cujo
objetivo é construir os princípios de justiça que serão objeto de um consenso sobreposto.
14
sumo bem que servisse como uma base para julgar como isso poderia ser
feito de maneira razoável. (RAWLS, 2005, p. 7)
Diferentemente, na filosofia prática moderna uma fratura entre a filosofia
política e a filosofia moral, determinada pelas características do processo histórico
iniciado com a Reforma, no século XVI – que culminou na idéia de tolerância
religiosa e na proteção da liberdade de consciência e com o sucesso do
constitucionalismo liberal e de suas instituições livres, que propiciaram o
aparecimento e a evolução de diferentes doutrinas morais, religiosas e filosóficas.
Tal processo que dá origem à idéia de pluralismo moral, religioso e filosófico cinde a
filosofia prática
14
de maneira tal que, nas atuais circunstâncias, para Rawls, não é
possível estabelecer um consenso sobre a justiça sem lidar com as dificuldades
resultantes desta peculiaridade moderna.
Ao abandonar-se a pretensão de verdade e o fundamento metafísico ou
epistemológico para a teoria da justiça, prepara-se “[...] o terreno para a idéia de
justificação razoável enquanto problema prático [...]” (RAWLS, 2000a, p. 89), que
a filosofia (ou qualquer outra forma de conhecimento) deixa de ter a última palavra
sobre os valores ordenadores da sociedade. Com isso, ao aplicar-se a idéia de
tolerância e de democracia à própria filosofia, admitindo que ela sozinha é incapaz
de estabelecer a base dos valores do nosso mundo social, tem-se a necessidade de
conduzi-la ao espaço público onde sesubmetida à avaliação dos cidadãos que
pretendem estabelecer os termos da cooperação social razoável.
Assim, juntamente com a renúncia à pretensão de verdade, o autor afirma
que o fundamento de sua teoria não depende de uma concepção racional de bem,
mas de uma concepção razoável (segunda parte da característica [c]).
15
Com a
14
Tal cisão não quer dizer que a filosofia política se tornou independente da filosofia moral, porquanto
ela continua se valendo, por exemplo, das mesmas maneiras de aferir a correção de suas assertivas,
laborando com a mesma estrutura teórica que abaliza a prolação de juízos acerca de ações que
possam ser consideradas boas/justas ou más/injustas. A cisão diz respeito ao tipo de problema, ao
tipo de fundamento utilizado para embasar uma e outra e ao objeto que elas regulam. Segundo
Rawls, a filosofia política é um subdomínio especial do reino de todos os valores, de maneira que:
“[...] nem a filosofia política nem a teoria da justiça como eqüidade são, nesse sentido, filosofia moral
aplicada. A filosofia política possui suas próprias características e problemas distintos. [...].” (RAWLS,
2003, p. 19). A filosofia política para Rawls ocupa-se restritamente do problema de como ordenar a
igual liberdade, mediante fundamentação de caráter político e normativo para regular a estrutura
básica da sociedade (objeto).
15
Rawls diferencia o razoável do verdadeiro e do racional. Na primeira distinção (razoável/verdadeiro)
ele nega a possibilidade de uma doutrina abrangente fundamentar, sozinha, os termos da justiça. Na
segunda distinção (razoável/racional) ele sustenta que, na ausência de um fundamento verdadeiro,
as pessoas necessitam recorrer ao senso de justiça, a sua virtude da razoabilidade, para fixarem um
15
abertura da filosofia à crítica e à justificação pública, deixa-se de extrair a força dos
argumentos sobre os princípios de justiça a partir da evidência de uma natureza
humana transcendental ou de alguma forma privilegiada de psicologia humana, para
encontrá-la nas razões que visam estabelecer um ponto de acordo político que é
distinto das concepções racionais de bem das pessoas. Com diz Rawls, esse ponto
de acordo (razoável) é apreendido a partir de exemplos cotidianos que indicam
quando as pessoas revelam um posicionamento parcial que não se justifica
publicamente.
O que distingue o razoável do racional? Na linguagem do dia-a-dia,
percebemos que uma diferença e exemplos comuns revelam-na
imediatamente. Dizemos: ‘Sua proposta era perfeitamente racional, dadas
suas condições privilegiadas de barganha, mas, apesar disso, não tinha
nada de razoável, chegava a ser ultrajante’.” (RAWLS, 2000a, p. 92)
Para assim fundamentar uma teoria sobre a justiça, considera-se que as
pessoas que a formulam têm a virtude da razoabilidade e percebem que nem
sempre o que lhes é vantajoso poderá ser para as demais pessoas da sociedade.
Então, uma teoria razoável é aquela em que as pessoas, a despeito de desejarem
realizar suas concepções filosóficas, morais ou religiosas de bem racional, de
maneira inteligente, estão dispostas a raciocinar com os demais membros da
sociedade, acerca dos termos da justiça política e social, levando em conta “as
conseqüências de suas ações sobre a felicidade dos outros”. (RAWLS, 2000a, p.
92). Por conseguinte, a teoria deve ser construída publicamente por pessoas
consideradas livres e iguais, que se propõem a honrar os princípios de justiça
quando sabem que as demais também os honrarão, e que estabelecem termos
eqüitativos de cooperação que realizam um bem particular (racional) e um bem-
comum (razoável).
Perceba-se que o racional (rational) e o razoável (reasonable) relacionam-se
numa teoria assim compreendida, até porque eles são virtudes das pessoas que a
formulam. Portanto, estas características (racional e razoável) são complementares.
Apesar disso, o racional não se sustenta publicamente e não é estável, na cultura
pública moderna, da maneira que o razoável o é. Isso ocorreria porque o razoável
estabelece (ou pretende estabelecer) uma forma pública de cooperação e
acordo político sobre os princípios de justiça que satisfaça sua concepção particular de bem, sem
inviabilizar a dos demais, e que construa uma forma aceitável de cooperação social.
16
reciprocidade social que viabiliza e consegue a adesão de várias concepções de
bem que o racional não conseguiria. Por conta disso, afirma-se que uma teoria
razoável da justiça é prioritária em relação às concepções de bem (prioridade do
justo sobre o bem) (priority of the right), visto que ela as limita quanto ao que serão
as razões aceitas no espaço público para a ordenação das idéias intuitivas mais
fundamentais da cultura pública moderna.
16
Dessa feita, ao negar que sua teoria da justiça não deriva de uma concepção
filosófica, moral ou religiosa de bem racional, de fundamento metafísico ou
epistemológico, de caráter racional, Rawls considera que a justiça como eqüidade
(justice as fairness),
17
e a filosofia que a acompanha, é política,
18
entendendo-se
como tal o empreendimento prático de resolver, de maneira razoável, alguns
problemas que se apresentaram quando as pretensões clássicas sobre a verdade
dos valores da justiça foram abandonadas (porque insolúveis) e quando seus
16
O razoável se relaciona com vários temas no interior da teoria da justiça como eqüidade. Rawls
afirma que os princípios de justiça são razoáveis, porque decorrem de um procedimento justo e
razoável, que uma sociedade bem-ordenada é uma sociedade razoável, que o fim comum dos
cidadãos razoáveis de uma sociedade política é razoável, que as pessoas possuem o senso de
justiça, ou seja, a virtude da razoabilidade, e que se, aplicada uma psicologia razoável para avaliar a
viabilidade da justiça como eqüidade, podemos ter uma esperança razoável de que ela se
concretizará no futuro. Esses são alguns dos aspectos que o termo razoável é empregado pelo
filósofo. Porém, o que importa perceber é que todos esses pontos estão interligados e derivam
especialmente das características antes apresentadas, que expressarão sua força na delimitação da
posição original, conforme será apresentado no segundo capítulo. Sobre a importância do razoável
na definição dos princípios de justiça, leia-se o seguinte comentário do autor: “Dessa maneira, na
posição original, consideramos que o Razoável é expresso pelo conjunto dos cerceamentos aos
quais estão submetidas as deliberações dos parceiros (enquanto agentes racionais de um processo
de construção). Os representantes desses cerceamentos são a condição de publicidade, o véu de
ignorância e a simetria da situação dos parceiros uns em relação aos outros, bem como a estipulação
de que a estrutura básica seja o objeto primeiro da justiça.” (RAWLS, 2002b, p. 69).
17
Justiça como eqüidade” é nome que Rawls atribui a sua teoria, razão pela qual se utilizará dele no
texto para designar a proposta do filósofo.
18
Habermas menciona que pelo menos três sentidos para a idéia de “político” na teoria da justiça:
“Rawls emprega a expressão ‘político’ num triplo sentido. Até agora contemplamos o significado
especificamente teórico: uma concepção da justiça é política e não metafísica quando é neutra em
relação às concepções de mundo. Ademais, Rawls emprega a expressão ‘político’ no sentido corrente
para a classificação de assuntos de interesse público, daí que a filosofia política se limita à
justificação do marco institucional e da estrutura básica da sociedade. Ambas as significações
apontam finalmente a uma interessante união quando se fala dos ‘valores políticos’. ‘O político’
constitui neste terceiro sentido um fundo tanto para as convicções comuns dos cidadãos como para o
ponto de vista da delimitação regional de um objeto.” (HABERMAS, 2000, p. 67-8) (nossa tradução).
Nesta parte do trabalho a referência é feita ao primeiro sentido e, em alguma parte, ao segundo. No
segundo capítulo, as concepções-modelo constituem os assuntos de interesse público (segundo
sentido). Os princípios de justiça constituem o conteúdo do terceiro sentido do político. Observe-se,
contudo, que os “valores políticos”, expressos nos princípios selecionados, serão melhor
apresentados no terceiro capítulo com a indicação de como eles constituem o ideal de cidadão e de
sociedade bem-ordenada. Neste terceiro sentido, que será apresentada em conjunto com os dois
sentidos antes referidos sob a denominação de “domínio do político”, a própria idéia de “político”, em
razão das condições teóricas da justiça de Rawls, assume conotações peculiares.
17
fundamentos mais recorrentes (epistemológicos ou metafísicos) foram considerados
insuficientes para lidar com o “fato do pluralismo”.
Ao afirmar que sua teoria da justiça é uma teoria política,
19
Rawls quer dizer
que ela não se aplica a todos os objetos da filosofia prática e não regula todos os
aspectos da vida das pessoas. Ou seja, diferentemente de uma doutrina abrangente,
ela se aplica, exclusivamente, a um objeto especial que ele denomina de estrutura
básica da sociedade de uma democracia constitucional moderna. Além disso, essa
concepção política procura estabelecer uma base de acordo público mutuamente
aceitável para resolver os conflitos e problemas fundamentais da modernidade, uma
vez que:
Na história de qualquer sociedade períodos, por vezes até mesmo
períodos longos, durante os quais certas questões fundamentais são fontes
de ásperas controvérsias políticas que acarretam divisões, e parece então
difícil, se não impossível, encontrar qualquer base comum de acordo
político. (RAWLS, 2002b, p. 206)
Quais são estes conflitos e problemas políticos fundamentais? Para Rawls
são aqueles decorrentes do ideal democrático e da necessidade correlata de
arranjar coerentemente as várias liberdades, atribuindo-lhas aos cidadãos com
algum tipo de igualdade. Trata-se dos embates acerca dos arranjos de questões
constitucionais básicas e das maneiras de estabelecer a reciprocidade social que
possibilitariam a efetiva legitimação dos princípios e regras jurídicas pelos cidadãos
considerados livre e iguais:
Para simplificar, digamos que esse conflito, inserido na tradição do próprio
pensamento democrático, é o que existe entre a tradição de Locke, que
mais importância ao que Benjamin Constant chama de “liberdade dos
Modernos”, isto é, a liberdade de pensamento e de consciência, certos
direitos básicos da pessoa e da propriedade, e a tradição de Rousseau, que
põe a ênfase na liberdade dos Antigos”, ou seja, a igualdade das
liberdades políticas e os valores da vida pública. Esse contraste,
19
Na revisão introduzida no artigo A teoria da justiça como eqüidade: uma teoria política, e não-
metafísica”, de 1983, Rawls alerta para a necessidade de compreender a justiça como eqüidade
como uma teoria razoável (e não verdadeira): “Constituía portanto um erro (e uma fonte de graves
mal-entendidos) descrever a teoria da justiça como uma parte da teoria da escolha racional (ver TJ,
pp. 18 e 649-50). O que eu deveria ter dito é que a concepção da justiça como eqüidade utiliza uma
análise da escolha racional, porém submetida a condições razoáveis, para descrever as deliberações
dos parceiros, representativos de pessoas livres e iguais tudo isso no âmbito de uma concepção
política da justiça que é também, claro está, uma concepção moral. Na realidade, não se trata de
tentar derivar o conteúdo da justiça de uma estrutura que utilizaria como única idéia normativa a idéia
do racional.” (RAWLS, 2002b, p. 222).
18
obviamente, é vago e historicamente inexato, mas pode servir para fixar as
idéias. (RAWLS, 2002b, p. 207)
A dificuldade é que, na base da mesma cultura, pode-se encontrar afirmações
opostas quanto a este conflito. Noutros termos, “A cultura pública não é isenta de
ambigüidades: contém uma variedade de possíveis idéias organizadoras que podem
ser usadas, diferentes idéias de liberdade e igualdade, e idéias distintas de
sociedade.” (RAWLS, 2003, p. 35-6).
Um exemplo desse conflito é gerado pela maneira de se compreender como o
direito deve ser legitimado numa democracia e qual o papel do Estado neste
processo. Ou seja, pode-se dizer que uma democracia representativa, que assegura
formalmente a igualdade do exercício dos direitos políticos, realmente legitima suas
regras? Ou essa maneira de compreender a igualdade do exercício dos direitos e
das liberdades políticas não é suficiente para tanto? Nesse caso, deveria o Estado
promover alguma forma de bem-estar social para garantir o exercício efetivo dessas
liberdades? Supondo que tal garantia ao exercício dos direitos fosse desejável,
porque o Estado deveria ser o seu promotor? Organizando-se bem as liberdades
individuais e a economia e educando-se os indivíduos para o exercício esclarecido
de suas liberdades não se alcançaria o mesmo objetivo, porém por uma via
diferente?
A discussão é interminável e não motivo para que essas doutrinas, a partir
de seus próprios preceitos, alcancem um ponto de acordo. É que elas, por serem
abrangentes, estruturam-se sobre reivindicações morais que, se refutadas ou
negadas, desvirtuam o que lhes é mais característico. Como esta é uma questão de
identidade para essas concepções, Rawls pensa ser pouco provável que alguma
renúncia, em relação à organização entre os valores da igualdade e da liberdade,
seja efetuada por qualquer uma delas. Daí a afirmação de que “não existe, expresso
de maneira que reúna a aprovação geral, um acordo satisfatório a respeito das
idéias de liberdade e igualdade implícitas na cultura pública das democracias.”
(RAWLS, 2002b, p. 49).
Em face disso, o autor assevera que os conflitos fundamentais profundos,
acerca desse arranjo, podem ser respondidos pela justiça como eqüidade, pelo fato
de se tratar de uma teoria política (não-metafísica e não-epistemológica), que tenta
resolver o problema dessa ordenação de valores sem embrenhar-se nas
concepções morais que os sustentam. Com isso, sua teoria assumiria um papel de
19
neutralidade (neutrality)
20
em relação às concepções de mundo que originaram os
conflitos insolúveis acima sugeridos.
Ao assumir uma posição eqüidistante, a teoria da justiça busca estabelecer
um ponto de vista, propriamente político, que ordene as razões apresentadas de
parte a parte, tomando em conta as idéias intuitivas da modernidade, que são
comuns a ambos os lados. Por conseguinte, ao situar a teoria como política, ativa-se
uma maneira diferenciada não só de formular a pergunta sobre a justiça, mas
também uma nova forma de respondê-la. Isso quer dizer que:
O que discutimos aqui é uma outra fonte de conflito: como as diferentes
doutrinas filosóficas e morais entendem as exigências antagônicas da
liberdade e da igualdade, a ordem de prioridade entre elas e seu peso
relativo, e como se deve justificar uma determinada maneira de ordená-las.
(RAWLS, 2003, p. 3)
A exigência de neutralidade e a elevação do grau de abstração da teoria
determinam que os valores da liberdade e da igualdade sejam arranjados de
maneira independente, sem favorecer as tradições que as amparam, para que se
apresente uma resposta capaz de consenso. Tal propósito somente será alcançado
mediante a valoração política das idéias fundamentais utilizadas por tais tradições.
21
20
A noção de neutralidade (ou não-neutralidade) em Rawls deve ser compreendida em três sentidos:
a) o teórico-processual; b) o de objetivo; e, c) o de efeito ou influência. Essa discussão será
apresentada adiante.
21
No item 2.1 afirmou-se que Rawls avalia os elementos comuns da tradição moderna (ocidental) e
que ela é composta de diversas tradições da filosofia moral que utilizam de um vocabulário e de uma
terminologia comum, permitindo a refutação e a adaptação de umas em relação às outras, num
processo progressivo de desenvolvimento teórico. Impõe esclarecer que essas tradições teóricas
refletem, especialmente, sobre o papel dos indivíduos e de suas instituições na constituição de uma
sociedade justa. Assim, ao tratar da cultura pública moderna que deve ser ordenada, o filósofo refere-
se diretamente aos conflitos e aos ajustes que estas “tradições de pensamento” podem sofrer para
promover-se um consenso teórico sobre justiça. Em face disso, deve-se destacar que o autor não
pretende se aprofundar numa investigação antropológica, sociológica ou histórica (tradição cultural)
que sirva para evidenciar as formas de viver de um povo. Na verdade, várias destas circunstâncias
são simplesmente pressupostas para que a investigação sobre a justiça seja primordialmente de
caráter institucional, ou seja de determinação de como a estrutura básica (instituições) de uma
sociedade moderna, considerada liberal, deva ser ordenada. Então, a “cultura pública moderna” a que
o autor faz, recorrentemente, menção não diz tanto respeito, por exemplo, aos usos e costumes de
uma comunidade, mas às várias “tradições de pensamento” que se formaram e serviram para formar
as instituições liberais, ou seja, as instituições que se organizam num governo constitucional,
democrático, plural, que respeita as liberdades básicas dos cidadãos. Parece evidente que alguma
base histórica deva ser compartilhada por um povo, sendo verossímil crer que algumas “afinidades
comuns” devam existir para motivar-se os cidadãos de uma sociedade real (não ordenada
institucionalmente) a dela continuarem participando. Mas, essas “afinidades comuns”, que Rawls
considera no Direito dos povos como sendo aquelas vinculadas à idéia de nacionalidade definidas por
J.S. Mill “(...) a identidade de antecedentes políticos: a posse de histórica nacional, e conseqüente
comunidade de recordações; orgulho e humilhações coletivos, prazer e sofrimento, vinculados aos
mesmos acidentes do passado. (MILL, 1958, p.198) não são suficientes para ordenarem bem
20
Essa “valoração” teórica efetuada na esfera do político é feita por Rawls por
intermédio das concepções-modelos.
Mas, a eqüidistância e a neutralidade da teoria da justiça devem ser
cuidadosamente caracterizadas. O tipo de neutralidade da justiça como eqüidade
não é absoluta, ou seja, ela não é indiferente ao contexto social, histórico e cultura
das sociedades democráticas modernas. Na verdade, esse contexto constitui-se de
idéias intuitivas fundamentais, que serão ordenadas numa visão coerente pelos
princípios de justiça. Daí a advertência do filósofo sobre o uso e os vários sentidos
que a noção de neutralidade pode incorporar, alguns dos quais são compatíveis com
suas idéias, enquanto outros não são:
[...] vou utilizar como fio condutor o conceito bem conhecido de
neutralidade. Acredito, não obstante, que os conceitos de ‘neutro’ e de
‘neutralidadesão pouco felizes. Algumas das suas conotações se prestam
à confusão, outras sugerem princípios inteiramente irrealistas. (RAWLS,
2002b, p. 307)
Portanto, nesse primeiro sentido (cultural), a teoria rawlsiana não é neutra
(nem independente de qualquer concepção filosófica),
22
porque assume como
pressuposto os processos históricos da tradição democrática moderna que
influenciam materialmente seu conteúdo, por exemplo, ao considerar as pessoas
morais como livres e iguais e a sociedade como um sistema eqüitativo de
cooperação. Logo, em que pese a teoria rawlsiana utilizar-se da posição original
(original position) para seleção dos princípios de justiça, isso não autoriza dizer que
este procedimento é neutro, como se ele visasse “ser legitimado ou justificado sem
sociedade. Dizendo de outro modo, é necessário produzir uma outra forma de afinidade, que pode
ser realizada numa sociedade bem-ordenada em que essas “tradições de pensamento” encontram
um ponto de acordo político (consenso sobreposto) sobre a maneira de organizar as instituições
públicas comuns. É como se, no momento presente, as sociedades liberais ocidentais estivessem a
meio caminho (umas mais outras menos) de promover uma forma de unidade social mais consistente
(alguma forma de consenso institucional sobre o arranjo da igualdade e da liberdade). Disso infere-se
que o propósito de Rawls é apresentar uma forma de ordenação institucional para sociedade liberais
que reforce estas “afinidades comuns” no âmbito institucional. Tais comentários servem para destacar
que o papel da cultura pública moderna é oferecer esse fundo institucional comum que foi construído
historicamente e fomenta a discussão das várias “tradições de pensamento”, que compartilham o
espaço blico de discussão das sociedades democráticas modernas. É em relação a essa “tradição
de pensamento” (ver nota 10), adotada pelo filósofo, que a justiça como eqüidade não é neutra, como
se verá ao longo do texto.
22
Como o próprio autor afirma a sua concepção possui matriz liberal, porque reconhece, por
exemplo, o fato do pluralismo, a necessidade da tolerância e da legitimação democrática das regras
públicas, mediante o uso da razão pública. Mas o liberalismo político rawlsiano não pode ser
confundido com outras versões de liberalismo abrangente. Daí a insistência do autor em afirmar que
“o contraste entre liberalismo político e liberalismo abrangente é claro e fundamental” (RAWLS, 2003,
p. 215).
21
recorrer a valores morais, mas no ximo a valores neutros como a imparcialidade,
a coerência e outras coisas afins.” (RAWLS, 2003a, p. 217). Ou seja, embora Rawls
valha-se de um procedimento puro (pure procedural justice)
23
para selecionar os
princípios de justiça (a posição original), em que as pessoas são consideradas livres
para realizarem em igualdade de condições suas concepções de bem, o resultado
do procedimento não é independente de seus pressupostos, tampouco deixa de
produzir efeitos sociais que, inevitavelmente, favorecerão uma ou outra concepção
de bem. Portanto, como afirma Rawls:
A teoria da justiça como eqüidade não é processualmente neutra, sem
ressalvas importantes. É evidente que seus princípios de justiça são
concretos e vão muito mais longe do que os valores processuais; o mesmo
acontece com suas concepções políticas da pessoa e da sociedade.
(RAWLS, 2002b, p. 308-9)
Essa maneira peculiar do autor compreender a neutralidade é melhor
entendida quando se apresentam alguns exemplos, que representam não a idéia
de neutralidade processual (antes apresentada), mas a idéia de neutralidade de
objetivo (neutrality of aim).
Nesse caso, a neutralidade [de objetivo] poderá significar, por exemplo:
1) que o Estado deve assegurar a todos os cidadãos uma oportunidade
igual de efetivar a sua concepção do bem, seja ela qual for, que adotaram
livremente;
2) que o Estado nada deve fazer que possa favorecer ou promover uma
doutrina abrangente particular mais do que outra ou proporcionar mais
assistência aos que a apoiarem;
3) que o Estado nada deve fazer que torne mais provável a adoção pelos
cidadãos de uma concepção particular mais do que outra, a menos que se
tomem disposições visando anular ou compensar os efeitos de medidas
desse tipo. (RAWLS, 2002b, p. 309-10)
No primeiro sentido, a teoria rawlsiana é neutra em relação a doutrinas
compatíveis com as idéias intuitivas da cultura pública moderna. Ou seja, quanto ao
objetivo, a justiça como eqüidade é neutra em relação a essas concepções
autorizadas, porque o procedimento puro anula qualquer possibilidade de
parcialidade ou de pessoalidade que as favoreça. Quanto ao segundo significado,
23
“[...] a posição original, tal como a descrevi, comporta um grau muito elevado de justiça
processualística pura. Isso quer dizer que, quaisquer que sejam os princípios selecionados pelos
parceiros da lista das escolhas possíveis, eles serão justos [...], significa que, em suas deliberações
os parceiros não precisam aplicar os princípios de justiça estabelecidos anteriormente, [...] não existe
instância exterior à perspectiva própria dos parceiros que os limite em nome de princípios anteriores e
independentes para julgar as questões de justiça.” (RAWLS, 2002b, p. 58-9).
22
tem-se que a justiça como eqüidade também é neutra, porquanto se a estrutura
básica da sociedade for regida por uma concepção política razoável de justiça, as
concepções de bem não serão favorecidas intencionalmente. No entanto, quanto ao
terceiro sentido no que diz respeito aos objetivos do Estado nos efeitos ou
influências (neutrality of effect) que uma determinada concepção de Estado possa
ter sobre os cidadãos - a teoria rawlsiana não é neutra, porque “é certamente
impossível que a estrutura básica de um regime constitucional justo não produza
efeitos importantes sobre a escolha das doutrinas abrangentes [...]” (RAWLS, 2002b,
p. 310).
Em face desses argumentos, pode-se inferir que a teoria da justiça rawlsiana
afirmar-se como processualmente pura na definição dos princípios de justiça, porém
condicionada pelas idéias fundamentais da cultura pública moderna.
Conseqüentemente, a teoria não é neutra ao pressupor elementos históricos e
culturais. Da mesma forma, ela não é absolutamente neutra quanto ao objetivo, pois
embora não vise favorecer uma doutrina em especial, ela limita quais concepções de
bem serão consideradas aceitáveis e compatíveis com os princípios de justiça. Se
ela não é neutra culturalmente e se os princípios de justiça refletem essa ausência
de neutralidade, tem-se que as influências que se produzirão na estrutura básica
sociedade serão inevitáveis, de maneira que não se poderão evitar perdas sociais
para aquelas doutrinas racionais que necessitam usar do poder político para se
sustentarem, negando, por exemplo, a liberdade de consciência e de pensamento.
De qualquer forma, ao afirmar que a sua opção teórica está condicionada aos
processos históricos da modernidade, propondo-se a responder às questões
fundamentais da cultura pública, Rawls pretende estabelecer um fundamento
razoável para a tolerância e para a reciprocidade social que seja razoável e que
possibilite a convivência pafica do maior número possível de concepções de bem.
2.3 Estratégias metodológicas, funções da filosofia política e categorias da
teoria da justiça
A escolha teórica de Rawls, como visto, é orientada pela condição histórica de
elementos que a filosofia política incorporou na cultura pública moderna. Já se
indicou que, por conta disso, a teoria da justiça deve abandonar a pretensão de
23
verdade e fundamentos epistemológicos ou metafísicos, para empenhar-se em
construir um consenso político sobre princípios embasados política e
normativamente. Importa agora detalhar quais são as estratégias metodológicas
utilizadas para realizar este objetivo, quais são as funções da filosofia política e
quais são as categorias desta teoria.
Por evidente, o conjunto dessas estratégias, categorias e funções da filosofia
política, assim como a divisão de planos (indicada na introdução), está agregado ao
construtivismo político rawlsiano (political constructivism). Esse método
(construtivismo político) pode ser brevemente descrito como:
[...] uma visão relativa à estrutura e conteúdo de uma concepção política.
Afirma ele que, depois de obtido o equilíbrio reflexivo, se isso vier a
acontecer, os princípios de justiça (o conteúdo) podem ser representados
como o resultado de um certo procedimento de construção (a estrutura).
Nesse procedimento, modelado de acordo com a posição original (I:4), os
agentes racionais, enquanto representantes dos cidadãos e sujeitos a
condições razoáveis, selecionam os princípios públicos de justiça que
devem regular a estrutura básica da sociedade. Esse procedimento, assim
conjecturamos, sintetiza todos os requisitos relevantes da razão prática e
mostra como os princípios de justiça resultam dos princípios da razão
prática conjugados às concepções de sociedade e pessoa, também elas
idéias da razão prática. (RAWLS, 2000a, p. 134)
Tal construtivismo é caracterizado pelo uso de um procedimento puro, porém
não-neutro que pretende identificar os princípios mais adequados à cultura pública
moderna. O procedimento é puro porque não adota um critério prévio de escolha
dos princípios de justiça. Entretanto, ele não é neutro, porquanto as concepções-
modelos que o compõem são constituídas a partir de uma cultura específica. Como
procedimento, ele utiliza-se da estratégia ou do “método da evasão” (method of
avoidance)
24
para reduzir o que será objeto do embate teórico, procurando um ponto
de vista que seja eqüidistante em relação às doutrinas que dividem o espaço
público. Trata-se de uma maneira de esquivar-se de conflitos insolúveis para
concentrar-se na justificação de uma base autônoma de valores para a vida pública.
Aplicando esse ‘método de esquiva’, como o podemos denominar,
esforçamo-nos, tanto quanto possível, para não afirmar nem negar
nenhuma opinião religiosa, filosófica ou moral, tampouco suas análises
24
A estratégia ou “método da evasão” pertence ao método construtivista que é único na teoria
rawlsiana da justiça, ou seja, parece mais apropriado falar em método construtivista e em estratégias
da não-conflitividade (evitamento ou esquiva), do equilíbrio ponderado (ou reflexivo) e do
abstracionismo concreto. Esta distinção busca apenas melhor organizar os vários elementos
constituintes do construtivismo político.
24
filosóficas da verdade e o status que elas atribuem aos valores. (RAWLS,
2002b, p. 267)
A idéia é que incumbe à filosofia política a função prática de enfocar questões
controversas e “[...] a despeito das aparências [...] descobrir alguma base subjacente
de acordo filosófico e moral” (RAWLS, 2003. p. 2), ou, ao menos, reduzir o confronto
para que o respeito mútuo se mantenha.
Uma vez diminuída a extensão do conflito teórico, cabe decidir como resolvê-
lo. Para Rawls, isso será alcançado pela representação procedimental que nós (eu e
você)
25
concebemos como razoável para a escolha dos princípios de justiça. Esse é
o papel da estratégia do “equilíbrio reflexivo” (reflective equilibrium), mediante o qual,
exemplificativamente, concordamos em estabelecer após ponderar tudo o que
consideramos importante para resolver o problema da justiça as condições
razoáveis da posição original, na qual se supõe que as pessoas independentemente
da influência de qualquer autoridade política, religiosa, étnica que se possa antepor
a seus juízos na decisão sobre as questões essenciais da cultura pública moderna,
possam deliberar como representantes de cidadãos iguais e livres, de acordo com o
princípio da legitimidade política, ou seja, apresentando os termos da cooperação
social “[...] de uma maneira que todos os cidadãos possam endossar publicamente
à luz de sua própria razão.” (RAWLS, 2003, p. 128).
26
25
Quando tratar-se da concepção-modelo da pessoa far-se-á a distinção entre os vários pontos de
vista utilizados pelo autor na avaliação e construção da teoria da justiça. Neste momento, está se
tratando do ponto de vista inicial que “nós” (eu e você), e outras pessoas conscienciosas,
adotaríamos para tentar formular princípios de justiça aceitáveis para todos. Por isso, impõe observar
que, ao longo da dissertação, se recorrerá à distinção entre real, ideal e real-ordenado. Com relação
ao tratamento atribuído ao que seja “real”, impõe-se um esclarecimento. O “real” considerado para
construção da teoria da justiça é o “real-selecionado” por nós, que será considerado como “boas
razões” (ou razoáveis), escolhidas para serem conhecidas pelas partes na posição original e que não
estarão recobertas pelo véu de ignorância. Mas, esta seleção é feita a partir do “real-desordenado”,
que inclui qualquer fato ou argumentos que nós (eu e você) consideramos relevantes para
estabelecer as condições do procedimento razoável. As estratégias aqui indicadas servem justamente
para organizar esta realidade cultural que é contraditória e ambígua e transformá-la em razões
compreensíveis, a partir das quais se pode expressar o ideal de justiça que, se concretizado, deverá
ordenar a realidade. Neste sentido, quando se referir ao “real-ordenado”, entenda-se como a situação
em que os princípios de justiça estão concretizados em sociedade (isso ocorreria numa sociedade
bem-ordenada), depois de resolvidos os conflitos políticos importantes no plano ideal de validação.
26
Com propriedade, Habermas assim descreve o “equilíbrio reflexivo”: “A fim de dar embasamento às
idéias normativas estruturais, Rawls recorre ao assim chamado método do equilíbrio reflexivo. Assim,
obtém-se o conceito básico de pessoa moral e os demais conceitos básicos de cidadão politicamente
autônomo, de cooperação eqüitativa, de sociedade bem-ordenada, etc., pela via de uma reconstrução
de intuições provadas, isto é, de intuições que se encontram nas práticas e tradições de uma
sociedade democrática. O equilíbrio reflexivo se alcança então quando o filósofo se certifica de que
as questões envolvidas nas intuições reconstruídas e esclarecidas desse modo, não podem
rechaçá-las com boas razões.” (HABERMAS, 2000, p. 55) (nossa tradução). A expressão reflective
équilibrium (que aparece nas traduções como “equilíbrio reflexivo”, “equilíbrio ponderado”,
25
Por conta disso, o procedimento “[...] modela os princípios da razão prática
conjugados às concepções de sociedade e pessoas [...]” (RAWLS, 2000a, p. 141) e
“[...] representa a ordem de valores mais apropriada de um regime democrático.”
(RAWLS, 2000a, p. 141). A idéia do procedimento é de tornar coerentes diversas
idéias do senso-comum da cultura pública moderna (common sense knowledge) e
de organizá-las. Por isso, o autor afirma que:
[...] temos uma concepção política inteiramente filosófica quando esses
fatos estão coerentemente ligados entre si pelos conceitos e princípios
aceitáveis para nós depois de cuidadosa reflexão. Esses fatos básicos não
estão espalhados por como diversas unidades isoladas. Pois temos: a
tirania é injusta, a exploração é injusta, a perseguição religiosa é injusta, e
assim por diante. Procuramos organizar esses fatos ilimitadamente variados
numa concepção de justiça determinada pelos princípios que resultam de
um procedimento razoável de construção. (RAWLS, 2000a, p. 171)
Essas duas estratégias (evitamento e equilíbrio reflexivo) devem ser
compreendidas em conjunto com uma terceira. Trata-se da estratégia do
abstracionismo concreto, não entendida somente no sentido epistemológico (formal),
ou seja como uma maneira de separar características que se apresentam
regularmente na natureza construindo modelos teóricos, mas também como uma
forma de conceber as concepções-modelos (model-conceptions, abstract
conceptions, fundamental ideas) como elementos culturais (com conteúdo), situados
historicamente e passíveis de mensuração blica. Apresentando esta conciliação
na estratégia aqui denominada de “abstracionismo concreto ou real”,
27
leia-se o
argumento de Ramos, na comparação efetuada entre o abstracionismo hegeliano e
o rawlsiano:
“convicções ponderadas” ou “juízos refletidos”) é entendida por Rawls num sentido amplo e num
sentido estrito. No sentido estrito, referem-se às convicções pessoais sobre justiça que pessoas reais
possuem. Nesse sentido estrito, essas reflexões podem ser auto-contraditórias ou divergentes com as
de outras pessoas. Na posição original, o tipo de equilíbrio reflexivo utilizado é o amplo, cuja
pretensão é tornar mais coerente a idéia de justiça política comparando-a às diversas concepções de
justiça existentes, sem se impor alguma autoridade externa às pessoas para que isso seja possível, a
fim de encontrar qual delas (concepções) é mais razoável no sentido de ser aquela que menos
precise de revisões e ajustes a essas ponderações. Tais ponderações podem ser entendidas como
as que determinam ou permitem a concordância sobre a inclusão, na posição original, de certas
restrições ao conhecimento das condições sociais ou econômicas das pessoas e de suas condições
de barganha na escolha dos princípios de justiça (véu de ignorância), por se tratarem de pontos
razoáveis.
27
O filósofo não utiliza essa tipologia, referindo-se genericamente a “abstracionismo” e ao uso de
“concepções-abstratas” (ou concepções-modelos). Mas, o abstracionismo das concepções-modelos
não é formal, já que ele considera elementos históricos e culturais. Daí a opção pela nomenclatura
“abstracionismo concreto”.
26
Apesar das diferenças no uso metodológico do abstracionismo, tanto Hegel
como Rawls constroem um princípio normativo de pessoa que permite
pensá-la segundo um referencial histórico e institucional da nossa vida
social e política, no qual esse princípio adquire consistência material. Para o
primeiro, o formalismo da pessoa é um momento que o individualismo
(liberal) da modernidade retrata como uma necessidade histórica, mas que
atesta, ao mesmo tempo, uma insuficiência radical demonstrada pelo seu
abstracionismo [formal]. Para o segundo, o formalismo é uma construção
necessária para assegurar a validade histórica da democracia liberal, que
pode ser exprimida por princípios de justiça, os mais apropriados para a
estrutura básica da sociedade. (RAMOS, 2005a, p. 55)
Desta forma, o liberalismo político de Rawls parece ser o resultado do
espelhamento normativo da sociedade liberal moderna, no sentido de
construir e sistematizar as convicções básicas dessa sociedade, através de
um procedimento de abstração [concreto]. Esse procedimento se revela
pelo recurso do método das ‘concepções-modelos’ (sociedade bem
ordenada, pessoa moral e posição original), operando com idéias
‘reguladoras’ que devem se reconciliar com a realidade social e histórica
das sociedades liberais modernas. (RAMOS, 2005a, p. 62-63)
Como se vê, a função dessa estratégia é de ordenar e esclarecer idéias
históricas num procedimento puro e razoável que utiliza de concepções-modelos.
Então, o trabalho de abstração (work of abstraction) do autor não é uma forma de
sofisticação gratuita (não se trata de abstração pela abstração), mas de uma
maneira de preservar e assegurar o espaço ordenado de discussão pública sobre os
termos razoáveis de justiça para a sociedade, pois a opção contrária (a do embate
desordenado), segundo Rawls, somente pode ser sustentada pelo “fato da
opressão” (fact of oppression); quando se utiliza do poder político, econômico ou
institucional para eliminarem-se as controvérsias inerentes ao reconhecimento do
“fato do pluralismo” (fact of pluralism), o qual caracteriza uma sociedade democrática
moderna. Assevera o filósofo:
Alguns podem protestar contra o uso de tantas concepções abstratas.
Talvez seja necessário mostrar por que somos levados a concepções desse
tipo. Na filosofia política, o trabalho de abstração é acionado por conflitos
políticos profundos. [...] Voltamo-nos para a filosofia política quando nossas
percepções políticas compartilhadas, como diria Walzer, desmoronam, e
também quando estamos dilacerados interiormente. (RAWLS, 2000a, p. 88-
9)
Então, talvez assim seja possível pensar alguma teoria de justiça de caráter
teórico-convencional, em que ela ganha espaço não quando unanimidade sobre
valores, mas, justamente, quando se dissolvem “[...] as percepções compartilhadas
de menor generalidade” (RAWLS, 2000a, p. 90), ou seja, quando a maneira de
27
compreender as reivindicações individuais e as características do mundo social não
se sustentam.
Logo, o que é pretendido por Rawls, com a estratégia de abstração, é
evidenciar somente os valores políticos mais fundamentais da tradição moderna, que
necessitam de ordenação coerente.
28
Tais valores estão representados nas
concepções-modelos, elas mesmas constituindo abstrações dos elementos políticos
mais importantes na consideração da justiça política e social. Desta feita, não se
trata de investigar, por exemplo, todos os aspetos da vida da pessoa ou da
sociedade, mas, limitar a discussão ao que é considerado preponderante e
incontroversamente político na consideração da pessoa e da sociedade. O resultado
é que esta estratégia pode orientar-nos quanto aos “[...] princípios que permitem
identificar fins razoáveis e racionais [...] numa concepção bem articulada de uma
sociedade justa e razoável.” (RAWLS, 2003, p. 4). É nesse compasso que Rawls
pensa a função de ordenação e de orientação da filosofia política, a ser cumprida
com a formulação e ordenação das concepções-modelos.
Tais concepções, organizadas a partir das referidas estratégias em função da
tarefa prática de orientação da filosofia política moderna, têm características
comuns, as quais podem ser enumeradas nas seguintes categorias: idéia;
normatividade; representação; e idealização. São categorias que revelam em que
sentido a filosofia política rawlsiana pode ser entendida como realisticamente utópica
e reconciliadora. Antes, porém, de apresentar estas funções (função realística
utópica e função reconciliadora), é necessário descrever essas categorias.
Na obra do filósofo, o termo idéia pode referir-se às idéias intuitivas
29
ou
latentes na cultura pública moderna (senso-comum), que são objeto de investigação
28
O uso das concepções abstratas serve para “obter uma visão clara e ordenada de uma questão
considerada fundamental, enfocando os elementos que supomos ser mais significativos e relevantes
para determinar sua resposta mais adequada.” (RAWLS, 2003, p. 11). Para Rawls, portanto, é
essencial formular concepções idealizadas da sociedade e da pessoa, portanto necessariamente
abstratas, associadas àquelas idéias fundamentais, para encontrar uma concepção política da
justiça.” (RAWLS, 2000a, p. 69). A estratégia do abstracionismo consiste, portanto, na construção de
modelos que estão implícitos no senso comum da cultura pública moderna. Daí a ênfase ao autor ao
fato de que “a teoria da justiça como eqüidade tenta descobrir as idéias fundamentais (latentes no
bom senso) relativas à liberdade, à igualdade, à cooperação ideal e à pessoa formulando o que eu
chamarei de concepções-modelos.” (RAWLS, 2002b, 53).
29
Sobre o que autor entende por intuitivo, leiam-se os seguintes comentários: “Finalmente, requer-se
que o julgamento seja intuitivo com respeito a princípios éticos, isto é, que não deva ser determinado
por uma aplicação consciente de princípios na medida em que isso possa ser evidenciado por
introspecção. Pelo termo ‘intuitivo’ não quero dizer o mesmo que o expressado pelos termos
‘impulsivo’ e ‘instintivo’. Um julgamento intuitivo pode ser conseqüente a uma investigação completa
dos fatos do caso, e pode seguir uma série de reflexões sobre os possíveis efeitos de diferentes
28
teórica. Nessa acepção, o termo idéia intuitiva guarda relação com o significado de
“noção”. Ou seja, as idéias intuitivas são uma primeira base de princípios, ideais, e
processos históricos, que revelam características gerais e abstratas da
modernidade. E, onde elas são encontradas?
[...] voltamo-nos para a cultura pública moderna de uma sociedade
democrática, e para as tradições de interpretação de sua constituição e de
suas leis básicas, em busca de idéias familiares que possam ser
trabalhadas e transformadas numa concepção de justiça política. Supõe-se
que os cidadãos de uma sociedade democrática tenham pelo menos uma
compreensão implícita dessas idéias, o que se revela na discussão política
cotidiana, em debates sobre o significado e os fundamentos dos direitos e
liberdades constitucionais, e outras coisas afins. [...] Embora tais idéias o
costumem ser expressamente formuladas e seus significados não estejam
claramente demarcados, desempenham um papel fundamental no
pensamento político da sociedade e na interpretação que é dada a suas
instituições, por exemplo, por tribunais e em textos históricos ou outros tidos
como de importância duradoura. (RAWLS, 2003, p. 7-8)
O termo idéia pode referir-se também às idéias fundamentais ou idéias
modelos, ou concepções-modelos. Entendida dessa maneira, a idéia passa a ser
uma categoria racional e razoável da teoria da justiça e, no contexto em que é
apresentada, assume funções específicas para o arranjo dos princípios de justiça.
Portanto, fala-se em idéia fundamental, organizadora central ou diretiva (sociedade
como sistema eqüitativo de cooperação), idéia reguladora (sociedade bem-
ordenada), idéia unificadora (estrutura básica), idéia mediadora (posição original) e
idéia de pessoa moral como livre e igual. Cada uma dessas idéias tem elementos
característicos enunciados a partir das idéias intuitivas da cultura pública moderna.
Por se tratarem de categorias teóricas, as idéias fundamentais (ou
concepções-modelos) são organizadas e orientadas normativamente, ou seja, sua
função de esclarecimento se mediante a apresentação normativa de seus
elementos. Assim, por exemplo, a pessoa é representada normativamente como
igual e livre, supondo que esta seja uma característica moderna razoável e que o
acordo sobre princípios de justiça não seria possível sem a consideração irrevogável
dessa condição. Dito de outro modo, a normatividade da idéia de pessoa, seguindo
decisões, e até mesmo a aplicação de uma regra de bom-senso, como por exemplo, a de que as
promessas devem ser mantidas. O que é requerido é que o julgamento não seja determinado por um
uso sistemático e consciente de princípios éticos. A razão para esta restrição será evidente se
mantivermos em mente o objetivo da presente investigação, a saber, descrever um processo de
decisão pelo qual princípios, por intermédio do qual possamos justificar decisões morais específicas,
possam eles mesmos ser apresentados como sendo justificáveis.” (RAWLS, 2000b, p. 6) (nossa
tradução).
29
a característica do fundamento normativo da teoria da justiça, a considera
formalmente como devendo ser livre e igual. Embora na realidade isso não aconteça
em todas as situações, representar normativamente a pessoa condiciona os
princípios de justiça. Desconsidera-se que a pessoa vez ou outra não possui tais
atributos ou, mesmo que os tenha, não os exerça a contento por conta de limitações
pessoais, sociais, econômicas ou históricas.
A normatividade da idéia visa excluir, portanto, as contingências e os
resultados contraditórios acerca do arranjo dos princípios de justiça. Nesse
compasso, deve-se notar que a teoria rawlsiana da justiça apresenta duas idéias de
normatividade. A normatividade das concepções-modelos, mencionada acima, e a
normatividade da meta da justiça (os princípios).
Da primeira acepção decorre que a normatividade das concepções-modelos
indica que elas não são o sujeito ou a coisa “no mundo”, mas sim a representação
de como o sujeito ou a coisa deveriam ser quando submetidos a certas condições
(as condições razoáveis da cultura pública moderna).
Numa segunda acepção, a ordenação dessas concepções normativas, como
trabalho da teoria da justiça, visa construir e expressar os princípios de justiça, os
quais devem funcionar como base pública para organização e para construção
prática e possível de uma sociedade com instituições mais justas (dever-ser). Assim,
na medida em que as várias concepções-modelos vão se ajustando, especifica-se
cada vez mais o seu conteúdo político.
[...] partimos da idéia organizadora da sociedade como sistema eqüitativo de
cooperação, que vai se especificando mais à medida que detalhamos o que
acontece quando essa idéia se realiza plenamente (uma sociedade bem-
ordenada), e que ela se aplica (a estrutura básica). Expomos em seguida
como os termos eqüitativos de cooperação são determinados (pelas partes
na posição original) e explicamos como as pessoas engajadas na
cooperação devem ser consideradas (como cidadãos livres e iguais).
(RAWLS, 2003, p. 34-5)
Então tal conteúdo não é prévio, porquanto “não podemos afirmar de antemão
se a idéia de cooperação social, e suas idéias associadas, oferecerá as idéias
organizadoras de que necessitamos [...]” (RAWLS, 2003, p. 35). Mas, o equilíbrio e a
harmonização dessas idéias (concepções-modelos) dependem do uso das
estratégias metodológicas citadas, as quais se dirigem à realização de um ideal
político (não-metafísico ou epistemológico): o ideal de democracia perfeita.
30
Conforme a descrição normativa das idéias fundamentais é encadeada no
procedimento rawlsiano, com vistas a manter as condições da cultura pública
moderna, esse ideal vai sendo esclarecido e os princípios de justiça formulados.
Essas duas formas de normatividade da teoria da justiça têm caráter cogente
e terminativo e sustentam-se num âmbito de abstração superior ao plano jurídico e a
moral, ou seja situam-se no âmbito político, no sentido rawlsiano. Por se situarem
nessa esfera mais abstrata e geral de discussão (o político), tem-se uma maior
necessidade de justificação de seus princípios (maior que o exigido para o jurídico,
que é sobremodo instrumental, ou para o moral que abrange aspectos não-públicos
da vida das pessoas) como forma de se eliminar qualquer resquício de
arbitrariedade na sua decisão/escolha.
Rawls procura apresentar o seu liberalismo político mais restrito, tratando tão-
somente da ordenação destes valores da vida pública das pessoas, sem exigir
qualquer filiação prévia ou concepção preordenada de bem para normatização das
concepções-modelos e, por conseguinte, dos princípios de justiça.
Note-se que a normatividade (especialmente a dos princípios) não se ampara
num imperativo de cunho moral (nos moldes da autonomia da vontade para Kant),
que fundamenta a justiça da ação da pessoa no reforço da lei jurídica pública. A
normatividade tampouco deriva do costume, entendido como forma reconhecida
culturalmente de ordenação das ações de um grupo social, cuja força é extraída das
práticas incontroversas, passadas e presentes, de uma tradição, para qual a
justificativa pública nem sempre é necessária.
Como dito, o arranjo dessas idéias pretende esclarecer um ideal de justiça.
Tal ideal o é somente normativo, no sentido da perfeição platônica, que ao
embasar-se a teoria da justiça em idéias intuitivas da cultura pública moderna (e na
democracia ideal organizada para esta cultura), inclui-se historicidade em seus
preceitos mais gerais, negando-se que a perfeição democrática almejada possua
uma essência racional a ser apreendida e demonstrada. Com isso, tal
esclarecimento não depende somente de enunciar os elementos formais (idealidade)
das concepções-modelos. “A questão é que, seja qual for a idéia que escolhamos
como idéia organizadora central, ela não pode ser plenamente justificada por sua
própria razoabilidade intrínseca.” (RAWLS, 2003, p. 36.). Dada essa condição,
decorrente da própria característica da filosofia política moderna, as concepções-
modelos devem ainda ser arranjadas numa concepção de justiça política razoável
31
“[...] que se coaduna com nossas convicções ponderadas [...]” (RAWLS, 2003, p.
36). Mais: depois de arranjadas em princípios de justiça, deve-se submeter o
resultado desse procedimento à justificação blica mais ampla possível,
comparando-se os vários argumentos que o sustentam com “[...] as principais
concepções de justiça política encontradas em nossa tradição filosófica [...]”
(RAWLS, 2003, p. 43). Só aí o ideal de democracia perfeita alcançará seu conteúdo,
sem se impor arbitrariamente ou como uma necessidade racional.
30
Este ideal de conteúdo político e razoável, não-fundamentalista, é a meta da
justiça, um objetivo a ser alcançado e concretizado numa sociedade bem-ordenada
(o ideal de perfeição democrática). Nessa meta, inserem-se outros ideais, como o
decorrente da idéia de pessoa (definida na posição original para fins teóricos), que
se constitui no ideal de cidadão razoável e capaz de cooperação, e de sociedade
bem-ordenada, descrita como idéia reguladora, que se orienta para o ideal de
sociedade política bem-ordenada que alcança um consenso sobreposto.
Perceba-se que o ideal de perfeição democrática não pode ser confundido
nem com “ideologia”, nem com “ideal abrangente”. Rawls utiliza essa categoria para
esclarecer os cidadãos de uma sociedade democrática sobre como é possível
reformar suas instituições para que elas sejam mais justas. Ele faz isso por meio da
justificação pública dos princípios e das suas escolhas teóricas. Então, entendendo-
se “ideologia” no sentido comum de “ocultação de razões verdadeiras/razoáveis”,
para realização de algum propósito que não pode se tornar público, percebe-se o
nítido afastamento de Rawls em relação a essa categoria.
31
Ademais, o ideal rawlsiano não se alinha a qualquer forma de perfeição moral,
mas, tão-somente, àquela ordenação relativa à estrutura básica da sociedade e à
orientação da conduta da vida pública dos cidadãos, que não exijam anuência a uma
concepção específica e abrangente de bem, como o fazem as várias tradições do
jusnaturalismo, de Aristóteles a Santo Tomás de Aquino e Kant. Noutras palavras,
30
“A filosofia política, assim como os princípios da lógica, não pode impor-nos nossas convicções
refletidas. Se nos sentimos coagidos, talvez seja porque, ao refletir sobre a questão em pauta,
valores, princípios e normas são formulados e organizados de tal maneira a ser livremente
reconhecidos como aqueles que realmente aceitamos ou devemos aceitar. [...] Nosso sentimento de
coerção talvez resulte da surpresa com as conseqüências desses princípios e normas, com as
implicações de nosso livre reconhecimento.” (RAWLS, 2000a, p. 89). “É um erro pensar que as
concepções abstratas e os princípios gerais sempre se impõem em detrimento de nossos juízos mais
particulares.” (RAWLS, 2000a, p. 90).
31
“Em outras palavras, uma sociedade bem-ordenada não tem necessidade de uma ideologia para
alcançar a estabilidade, se se entender por ‘ideologia’ (no sentido de Marx) uma espécie de falsa
consciência ou de sistema mistificador de crenças públicas.” (RAWLS, 2002b, p. 85).
32
não se trata de um “ideal abrangente” de sociedade perfeita em termos de virtude
perfeita ou representação da organização coerente da essência humana, como se
houvesse uma finalidade última para cada decisão acerca do que seja bom/mau ou
justo/injusto (como se bem, justo e lícito fossem aspectos de uma mesma virtude
suprema).
32
Na verdade, sem questionar, por ora, a validade desse uso e procurando
preservar fielmente as afirmações do autor, pode-se dizer que sua visão de “ideal”
refere-se ao objetivo da justiça como eqüidade, isto é, no sentido de ordenar bem
uma sociedade real, historicamente situada na tradição das democracias modernas.
Isso só pode ser alcançado com o uso de princípios de justiça que, antes de
possuírem um sentido finalístico mais amplo de sociedade e de forma de vida (como
propõe algumas doutrinas do direito natural), são um passo para organização de
uma sociedade mais justa e legítima. Daí a afirmação de que o seu o ideal é
praticável.
Essa é uma maneira de ordenar razões, a partir de alguns fatos históricos
fundamentais, compartilhando-se dos valores mais importantes de uma sociedade
democrática. Nesse sentido, os princípios (juntamente com as idéias que os
compõem e o ideal que é almejado) não são neutros, posto não serem indiferentes
ao contexto social, econômico e cultural. Não pelo menos em relação às questões
fundamentais de justiça política, ou seja, no que diz respeito a fatos e circunstâncias
da justiça, que serão descritos a seguir. Por outro lado, como imposição necessária
a uma concepção democrática de justiça, os princípios são eqüidistantes em relação
às concepções de bem, que a justificativa pública é considerada como condição
necessária à preservação da igualdade dos sujeitos de direito. Tal eqüidistância dos
princípios de justiça é considerada por Rawls como uma característica histórica
marcante da democracia e do Estado de direito moderno, que deve constituir o ideal
de uma sociedade mais justa.
Por conseguinte, as categorias “idéia” e “ideal”, assim como o procedimento
de mediação escolhido, não são neutras em relação ao contexto histórico em que
32
MacIntyre evidencia essa perspectiva ao discutir a visão aristotélica sobre a racionalidade prática:
“Aristóteles diz que não deliberamos sobre os fins, mas também acha, obviamente, que raciocinamos
não-deliberativamente sobre os fins e sobre o fim primeiro que é a arché. Apenas à medida que tal
raciocínio fornece uma concepção racionalmente fundada da arché, podemos nos empenhar nas
tarefas de deliberação com confiança racional. Desse modo, a concepção de um bem supremo único,
embora talvez complexo, é central na compreensão aristotélica da racionalidade prática. Entretanto, é
exatamente essa concepção que a maioria, senão todos os filósofos morais recentes consideram
bastante implausível.” (MACINTYRE. 2001, p. 148).
33
são baseadas, mas são neutras (ou eqüidistantes) na consideração dos interesses
das partes na posição original (e, nesse sentido, são ahistóricas).
Para mediar e arranjar as idéias normativas (as concepções-modelos),
estabelece-se um ambiente artificial de representação. Dessa forma, a categoria
“representação” pode ser entendida como o artifício racional de projetar ou de
pensar a pessoa e a sociedade “como se” elas possuíssem as características e os
elementos razoáveis da concepção de justiça.
No pensamento de Rawls a palavra “representação” aparece com vários
usos, por exemplo, quando trata da posição original (como situação de escolha
inicial) e da pessoa (como cidadão representativo). Assim, no contexto do
procedimento da teoria ideal, representa-se a pessoa (enquanto concepção-modelo)
como livre e igual e submetida ao véu de ignorância. Da mesma maneira, na posição
original, tratam-se as partes como se fossem todas iguais e livres, nessas condições,
podendo deliberar sobre os princípios de justiça num ambiente que fosse justo ao
situá-las eqüitativamente.
Para ilustrar essa maneira de compreender o representacionismo, leia-se o
seguinte comentário de Ramos, ao discutir a elaboração da concepção-modelo de
pessoa:
Um segundo elemento importante na elaboração da idéia (política) de
pessoa consiste na distinção que ela contém em relação ao homem na sua
realidade natural, psicológica e social. Rawls propõe um tipo de pessoa que
seja compatível com as características da construção hipotética da posição
original. O sujeito que habita essa posição é a pessoa enquanto
representação do indivíduo que vive na sociedade.
O uso da idéia de representação contém um duplo significado: a) significa
alguém que se coloca no lugar do outro para desempenhar um papel, e b)
significa algo que é uma figuração ficcional. (RAMOS, 2003, p. 505)
Essa forma de representacionismo procedimental delimita quais são as
razões que serão consideradas como objeto de avaliação das pessoas na
construção dos princípios de justiça na posição original. Juntamente com a categoria
da normatividade, o representacionismo tem por função esclarecer o ideal da teoria
da justiça. A sua peculiaridade é que ele promove a mediação entre as concepções-
modelos de maneira a especificarem-se os princípios de justiça. Ou seja, conforme
se relacionam hipoteticamente os elementos das referidas concepções e atribui-se
conteúdo ao tipo de cooperação social desejável, especificam-se os princípios de
justiça com a conservação de todas as características das concepções-modelos
anteriormente formuladas normativamente.
34
Uma vez formuladas e arranjadas as concepções-modelos num procedimento
normativo de representação, os princípios de justiça razoáveis que constituem o
ideal da teoria justiça são enunciados. Mas, esse ideal, por ser apresentado como o
mais razoável,
33
assume dois encargos. O primeiro é de ser um ideal concretizável.
O segundo, é de ser um ideal reconciliador. O primeiro encargo incube à função
realística-utópica da filosofia e o segundo à função de reconciliação.
Para desincumbir-se do primeiro encargo, segundo Rawls, a filosofia política
deve propor um acordo sobre a justiça que seja ao mesmo tempo utópico (ideal) e
realístico. O elemento utópico constitui-se na esperança, na expectativa, na crença
de que uma sociedade justa é possível no futuro.
Nossa esperança para o futuro de nossa sociedade apóia-se na crença de
que o mundo social admite pelo menos uma ordem política decente, de tal
forma que um regime democrático razoavelmente justo, embora não
perfeito, seja possível. (RAWLS, 2003, p. 5-6)
Porém, o ideal da justiça não é tratado por Rawls somente como uma utopia
ou uma perspectiva romântica de algo que aconteceria num futuro qualquer “se”
algumas condições “imaginárias” estivessem presentes. O ponto de partida da teoria
da justiça é o das sociedades democráticas, organizadas num regime constitucional.
Daí a afirmação do filósofo de que “essa idéia de utopia realista é sumamente
institucional.” (RAWLS, 2001a, p. 21). Todavia, tais sociedades, a despeito de
possuírem instituições compatíveis com as idéias e valores da cultura pública
moderna não são bem-ordenadas, de maneira que o ideal de democracia perfeita
ainda está pendente de realização. Portanto, a proposta é utópica, mas pretende-se
realística, ou seja, intenta que as sociedades sejam mais justas, considerando-se as
limitações presentes. Trata-se do desafio de vencer o conservadorismo (status quo)
que possui potencial para ser melhorado, sem impor mudanças radicais,
desarrazoadas, que impliquem o uso da força (revolução). Assim, a teoria da justiça
como eqüidade é desafiada a resolver a tensão entre estas forças opostas, ou seja,
cabe a ela encontrar nas idéias intuitivas e nas instituições presentes o seu ponto de
partida, para, depois de ordená-las coerentemente, propor princípios de justiça que
33
Rawls apresenta os princípios de justiça como sendo os mais razoáveis a expressar o ideal de
perfeição democrática. “Em Uma teoria da justiça e no Liberalismo Político, esbocei as concepções
mais razoáveis de justiça para um regime democrático liberal e apresentei uma candidata ao título de
a mais razoável.” (RAWLS, 2001a, p. 168.)
35
possam ser incorporados e concretizados à estrutura básica dessas sociedades ao
longo do tempo.
Nesse sentido, a justiça como eqüidade é realisticamente utópica: testa os
limites do realisticamente praticável, isto é, até que ponto, no nosso mundo
(dadas suas leis e tendências), um regime democrático pode atingir a
completa realização de seus valores políticos pertinentes a perfeição
democrática se preferirem. (RAWLS, 2003, p. 18)
Para o filósofo, as idéias de eqüidade, mutualidade e cooperação expressas
nos princípios de justiça e de respeito tuo, tolerância e amizade cívica de
cidadãos que têm senso de justiça são o móvel para esta transição reformadora das
instituições presentes em direção ao ideal de justiça. Evidentemente, dificuldades
em saber em que medida este projeto histórico conduz-se à realização do seu ideal
ou à sua corrupção, de maneira que, a depender da sociedade real que se tome por
objeto, tendências tanto num sentido como em outro. Bem por isso, Rawls afirma
que “[...] problemas a respeito de como discernir os limites do praticável e quais
são, de fato, as condições de nosso mundo social.” (RAWLS, 2003, p. 6). Em vista
disso, o é possível saber, ao certo, qual a tendência dominante em uma
sociedade democrática. Contudo, à filosofia política não cabe somente pensar o
presente e conformar-se a ele, mas insistir na possibilidade de melhorá-lo a partir de
seus próprios ideais que os limites para essa concretização “[...] não são dados
pelo existente [...]” (RAWLS, 2003, p. 6) e, por isso, ao pensar-se tais ideais
razoavelmente, ou seja, ao oferecer-se uma base de acordo comum sobre a
cooperação social capaz de aceitabilidade por outros cidadãos razoáveis, possibilita-
se “[...] em maior ou menor grau, mudar as instituições políticas e sociais e muito
mais.” (RAWLS, 2003, p. 6). Essa capacidade (de uma esperança razoável) é que se
impõe aos cidadãos (nós, quando somos razoáveis) como conseqüência de pensar
a filosofia política como realista e utópica. Por isso, Rawls afirma
34
que:
[...] não devemos permitir que esses grandes males do passado e do
presente solapem a nossa esperança no futuro da nossa sociedade,
pertencente a uma Sociedade de Povos liberais e decentes ao redor do
mundo. Do contrário, a conduta errônea, má e demoníaca dos outros
também nos destrói e sela a sua vitória. Antes, devemos sustentar e
fortalecer a nossa esperança, desenvolvendo uma concepção razoável e
34
A passagem é extraída do texto “O direito dos povos”, mas, como se está tratando das funções
gerais da filosofia política rawlsiana, tem-se que esta maneira de descrever a utopia-realista é
integralmente aplicável a todos os assuntos da teoria da justiça.
36
funcional de direito político e justiça que se aplique às relação entre povos.
[...] Esse Direito é sustentado pelos interesses fundamentais das
democracias constitucionais e de outras sociedades decentes. Nossa
esperança deixa de ser um mero anseio e torna-se esperança razoável.”
(RAWLS, 2001a, p. 29-30, grifo nosso)
Nesse compasso, “a idéia de utopia realista reconcilia-nos com o nosso
mundo social, mostrando que é possível uma democracia constitucional
razoavelmente justa [...]” (RAWLS, 2001a, p. 167). Ou seja, é relevante o fato de se
poder pensar a possibilidade de uma sociedade mais justa, o que, per se, reconcilia
os cidadãos com o mundo social. Por conseguinte, mesmo que se tenha indicativos
de que o mundo social represente algumas perdas e seja, por vezes fonte de
desgosto e de frustração para os ideais de justiça, pode-se, ao menos acreditar:
[...] por boas razões, que é possível uma ordem política e social razoável
justa e capaz de sustentar a si mesma, [...] podemos ter a esperança
razoável de que nós ou outros, algum dia, em algum lugar, [...] podemos,
então, fazer algo por esta conquista. (RAWLS, 2001a, p. 168)
Nesse sentido, a filosofia política, assim compreendida, desarma os conflitos
acerca das questões fundamentais que permeiam a cultura pública moderna e
reconhece que uma sociedade democrática, razoavelmente plural, pode se
aproximar da idéia e do ideal de uma sociedade bem-ordenada. Isso é entendido
como uma tarefa realizável que pode concretizar esse ideal porque o mundo social
“[...] não precisa mais parecer desesperadamente hostil, um mundo no qual a
vontade de dominar e a crueldade opressivas, instigadas pelo preconceito e a
insanidade, tenham de prevalecer de modo inevitável.” (RAWLS, 2003, p. 53).
Com isso, pode-se pensar que o mundo social atual não é refratário ao ideal
de justiça e que há esperança de que os cidadãos podem reconciliarem-se com suas
instituições, na medida em que elas se tornam bem-ordenadas. Nesse sentido, a
tarefa de reconciliar os cidadãos, ao longo do tempo, com suas instituições é
concebida como processo de amadurecimento democrático de reformas sociais e
políticas que demanda paciência e perseverança e que deve ser compreendida de
maneira ampla. Ou seja, a reconciliação se com a superação da tensão existente
entre as instituições reais e presentes (real-desordenado) e as instituições ideais
(utopia) de uma sociedade política bem-ordenada (real-ordenado), com a resolução
dos embates sobre o arranjo e a prioridade dos valores da liberdade e da igualdade
e com a aproximação dos cidadãos dos ideais latentes em sua cultura pública.
37
2.4 Limites formais e materiais da teoria da justiça
As restrições formais e materiais da teoria da justiça são caracterizações
complementares às delimitações teóricas feitas até aqui e servem para indicar como
o filósofo procura conjugar, numa única visão teórica, aspectos formais e
universalistas e aspectos históricos que produzem o ambiente em que os princípios
de justiça devem ser selecionados.
2.4.1 Limites formais dos princípios de justiça
A característica normativa da teoria da justiça e seus aspectos procedimentais
formais impõem restrições formais ao conceito de bem, justo ou lícito (formal
conditions of justice), que são normalmente incontroversas e reconhecidas por
Rawls.
A essas restrições chamo de restrições do conceito de justo, visto que elas
se aplicam à escolha de todos os princípios éticos e não apenas aos
princípios da justiça. Se as partes tivessem de reconhecer princípios
também para as outras virtudes, essas restrições também se aplicariam.
(RAWLS, 2002a, p. 140-1)
A primeira dessas restrições é que os princípios teóricos devem ser gerais, ou
seja, exclui-se a referência a qualquer pessoa em especial ou grupo de pessoas,
tampouco se descrevem as circunstâncias sociais, políticas, econômicas, que
favoreçam a identificação delas.
35
Traduz-se, assim, uma característica marcante da
modernidade: os homens, invariavelmente, devem possuir um direito igual a terem
35
Essa característica (e as demais também), por si só, não define nenhum princípio de justiça em
particular apenas determinando a fórmula de sua enunciação. A sentença: “a cada um segundo sua
necessidade” ou “a cada qual segundo o seu mérito”, ou os preceitos normativos da declaração
universal dos direito humanos, que utilizam do termo todas as pessoas...” para atribuir direitos, são
gerais, porém, carecem de conteúdo. Embora tal condição se contraponha frontalmente a um estado
de estamentos, em que os direitos são desiguais em razão do reconhecimento de algum privilégio
social, ela nada diz sobre a concordância ou discordância em relação à justiça de algum princípio
ordenador da sociedade. É que a discordância maior, no debate da tradição liberal moderna, não se
dá tanto na formulação formal do princípio, mas no preenchimento de seu conteúdo.
38
direitos iguais (iguais direitos subjetivos para os sujeitos de direito considerados
formalmente iguais).
Em segundo lugar, os princípios devem ser universais,
36
devendo ser
aplicados a todas as pessoas de maneira compatível, o que exclui resultados auto-
contraditórios ou inconsistentes.
37
As duas primeiras condições m como restrição correlata a publicidade
(terceira restrição). Os princípios devem ser públicos no sentido de que as pessoas,
as quais eles serão aplicados, reconhecem-nos como válidos e aceitam seus
resultados.
38
Outra condição (a quarta) é que as reivindicações conflitantes das pessoas
devem ser ordenadas. Tais reivindicações normalmente se referem aos direitos
exercidos, abstenções e deveres exigidos de outras pessoas, grupos sociais ou
entidades públicas. Essa restrição considera inválida, por exemplo, a utilização da
força ou da esperteza para obtenção da resolução de algum conflito relativo à
distribuição de vantagens sociais, porque essas são forças arbitrárias e individuais
em que uma ou algumas pessoas, segundo sua própria determinação (arbítrio),
36
Esse ponto não é aprofundado por Rawls em Uma Teoria da Justiça, no tópico em que ele discute
essa condição. No entanto, a universalidade, usualmente, refere-se à abstração de circunstâncias
locais e históricas para consideração dos princípios de justiça. É nesse sentido que Kant pensa, por
exemplo, o imperativo categórico, quando afirma que: “São comandos para todos, que
desconsideram as inclinações, meramente porque e na medida em que todos são livres e dispõem de
razão prática; cada um não extrai instrução nas suas leis a partir da observação de si mesmo e de
sua natureza animal ou da percepção dos modos do mundo, o que acontece e como se comportam
os homens. [...] Em lugar disso, a razão ordena como cabe aos homens agir, mesmo que nenhum
exemplo disso possa ser encontrado [...]” (KANT, 2003b, p. 58). Entretanto, Rawls tem um impasse
difícil para tratar a “universalidade” dos princípios de justiça, porque sua proposta pretende restringir-
se à ordenação das sociedades democráticas modernas. Assim, a condição de universalidade
sofreria uma restrição contextual. Pode-se infirmar que esse problema fica mais aparente na
discussão acerca do direito dos povos, na qual o autor sugere regras para o relacionamento de povos
de tradições diferentes. Neste tema, Rawls, ao mesmo tempo em que sugere um respeito às
particularidades contextuais de cada povo, também “espraia” as características das sociedades
democráticas modernas para determinar como deveria ocorrer o relacionamento entre eles (os
povos), como que reabilitando a pretensão universalista kantiana.
37
Por exemplo, um princípio que ordenasse “todos têm o direito igual de fazerem o que bem
entenderem”, é falsamente genérico e universal, porque subordina a regra de justiça aplicável a todos
à vontade individual. Opções como essa não se encaixam na possibilidade de alguma teoria para a
filosofia prática na visão rawlsiana.
38
Rawls afirma que: “É fácil perceber que a condição de publicidade está implícita na doutrina
kantiana do imperativo categórico, na medida em que este exige que atuemos de acordo com
princípios que, como pessoas racionais, estaríamos dispostos a elaborar como leis para o reino dos
objetivos.” (RAWLS, 2002a, p. 144). Essa referência à publicidade de princípios, ao que parece, o
deve ser atribuída somente à Kant, dado que mesmo a cláusula egoísta do contrato hobbesiano e as
formulações de J. Locke exigem a publicidade como condição racional para os princípios morais ou
de justiça. Na verdade, a publicidade desses comandos é condição da racionalidade-igual das partes
situadas no contrato social, pouco importando se a motivação das partes é egoísta, altruísta,
interessada em seu resultado próprio ou não. Talvez o que os diferencie seja o grau de publicidade
que determina o resultado do contrato e a natureza dos benefícios nele existentes.
39
arvoram-se em obter o proveito do esforço de muitos, que teriam expectativas
legítimas de reclamá-los em seu favor.
A quinta, e última, exige que os princípios sejam terminativos. Noutros termos,
os princípios gerais, universais, públicos e ordenadores devem ser a última instância
de decisão sobre as reivindicações conflitantes, sobrepondo-se às reivindicações da
lei, do costume ou de outras regras e convenções.
A essa maneira de delimitar os princípios podem ser agregadas outras
considerações, como faz Perelman, de que o princípio ou, como ele o chama, “a
regra da justiça”, somente é formalmente justa quando alguma discriminação nela
introduzida é justificada por critérios publicamente reconhecidos.
Perelman resume seus apontamentos acerca da regra de justiça organizando-
os da maneira a seguir indicada, sendo que três delas, não obstante se refiram a
conceitos próprios do pensamento desse autor (e.g. auditório universal), satisfazem,
de certa maneira, o propósito dessa apresentação:
Um ato é injusto se não é conforme à regra de justiça, a não ser que se
justifique o desvio em relação a essa regra com considerações de eqüidade.
Uma regra é injusta quando é arbitrária, quando constitui um desvio
injustificado em relação aos costumes e aos precedentes, quando introduz
distinções arbitrárias.
Uma distinção é arbitrária quando não é justificada racionalmente. Os
critérios e os valores utilizados no processo de justificação serão irracionais
se manifestarem um posicionamento parcial, se constituírem uma defesa de
interesses particulares, inaceitável para o auditório universal. (PERELMAN,
1996, p. 205)
Por evidente, a discussão acerca do que seja equânime ou qual seja o critério
racional para justificar a “diferenciação” ou “equalização” entre pessoas ou grupos é
controvertida e é isso, propriamente, que constitui o ponto central das doutrinas que
debatem o tema justiça. Dizendo de outro modo, um princípio, formalmente
considerado, é neutro porque sua generalidade, universalidade e publicidade, em
princípio, não dizem nada e não justificam o seu conteúdo. Daí que as limitações
formais sobre o conceito de justo podem ser comuns a tradições filosóficas
diferentes, como são as de Rawls e de Perelman.
39
39
Perelman, ao recuperar algumas visões aristotélicas acerca do justo legal e da eqüidade, situa a
discussão da justiça em torno do que ele denomina de “regras de justiça”. Tais regras são
orientadoras da argumentação das pessoas no espaço público e têm como limitadores materiais os
costumes e os precedentes. Rawls, em alguma medida, altera essa maneira de pontuar a resposta
sobre a justiça. Apesar disso, a constatação é que, ao menos quanto aos aspectos formais, as
40
Essas condições, que caracterizam um Estado de direito (the rule of law)
40
e
formatam os dois princípios rawlsianos de justiça, são comuns às varias teorias da
filosofia prática, sendo utilizadas de maneira relativamente incontroversa, razão pela
qual Rawls as reconhece como pertencentes ao fundo cultural público da tradição
moderna.
2.4.2 Os “fatos” e as “circunstâncias” da justiça ou as “limitações materiais” ao
conceito de justiça
É imprescindível esclarecer inicialmente que, se a generalidade, a
universalidade e as demais características formais dos princípios de justiça são
amplamente aceitáveis, o mesmo não ocorre com o que Rawls considera como
sendo as “circunstâncias objetivas e subjetivas da justiça (circumstances of
justice).
41
A aceitação do que seja fato incontroverso ou circunstância que mereça
ser considerada ou ignorada pode alterar o conteúdo dos princípios de justiça.
Assim, de acordo com as escolhas feitas, diferentes posições (às vezes conflitantes)
sobre a justiça são construídas. Por isso, tais “fatos” e “circunstâncias” constituem
um dos pontos considerados pela crítica comunitária, não tanto com relação à
interpretação dos ideais e valores neles implicitamente contidos, mas quanto a sua
escolha para figurarem como “limitadores materiais” dos princípios de justiça.
restrições normativas decorrentes do uso de alguma teoria são aplicáveis tanto às “regras de justiça”
(Perelman) quanto aos “princípios de justiça” (Rawls). Daí a referência a essas limitações
constituírem fatos gerais incontroversos da cultura moderna.
40
A idéia de estado de direito limita a visão substancial de justiça de Rawls, porém não se resume às
limitações formais acima citadas, já que outras garantias, decorrentes da organização legislativa de
uma sociedade, vinculam-se à definição estável, segura e prévia do espaço da liberdade e do
ambiente de incidência do dever jurídico. Como mencionado, a discussão sobre a
racionalidade/razoabilidade da lei não é tratada nessa esfera, de maneira que essa consideração
não elimina o “arbítrio” na constituição da lei, ou a visão de que ela é um instrumento de poder sem
fins últimos que deve ser interpretada e reinterpretada. Portanto, as exigências apresentadas, embora
sejam indispensáveis à caracterização de um estado de direito ideal, dependem, para Rawls, de uma
justificativa democrática razoável acerca de seu fundamento.
41
“As circunstâncias da justiça refletem as condições históricas sob as quais as sociedades
democráticas contemporâneas existem. Isso inclui o que poderíamos chamar de circunstâncias
objetivas de escassez moderada de bens e a necessidade de cooperação social para que todos
tenham um padrão de vida decente. De especial importância são também as circunstâncias que
refletem o fato de que, numa sociedade democrática moderna, os cidadãos afirmam doutrinas
abrangentes diferentes, ou até incomensuráveis e irreconciliáveis, embora razoáveis, à luz das quais
entendem suas concepções de bem. Nisso consiste o fato do pluralismo razoável.” (RAWLS, 2003, p.
118).
41
A nomenclatura “limites materiais” da justiça não é utilizada por Rawls em
momento algum, porque isso poderia conduzir a princípios de justiça decorrentes de
alguma doutrina abrangente (por exemplo, alguma forma de utilitarismo clássico que
tome a preocupação da ordenação da distribuição de renda como problema
prioritário a ser sanado), o que seria rechaçado por ele de plano. Para manter a
coerência com essa preocupação do autor, utilizar-se-á essa nomenclatura o-só
para designar algumas circunstâncias que retiram a “neutralidade” histórico-cultural
da teoria da justiça e que caracterizam uma sociedade democrática moderna. Uma
delas é menos controversa. As outras, como o “fato do pluralismo” e a “necessidade
de cooperação”, nem tanto. Importa agora apresentar a interpretação rawlsiana de
tais fatos e circunstâncias da justiça.
Atente-se que a filosofia política da teoria rawlsiana da justiça toma esses
fatos como necessários e condicionantes da resolução dos conflitos e problemas
fundamentais da cultura pública moderna. Essa é a condição para que a pergunta
inicial proposta pelo Liberalismo Político seja respondida:
[...] qual é a concepção de justiça mais apta a especificar os termos
eqüitativos de cooperação social entre cidadãos considerados livres e
iguais, e membros plenamente cooperativos da sociedade durante toda a
vida, de uma geração até a seguinte? (RAWLS, 2000a, p. 45)
Para o autor, uma sociedade pode ser justa se for considerada como um
sistema eqüitativo de cooperação em que os cidadãos sejam efetivamente
considerados livres, iguais e cooperativos, pois, de maneira diversa, não se levariam
a sério as conquistas do mundo moderno ocidental.
Entretanto, os termos de cooperação devem levar em conta o “fato do
pluralismo” (fact of pluralism),
42
que reproduz o dado de que “a cultura política de
uma sociedade democrática é sempre marcada pela diversidade de doutrinas
religiosas, filosóficas e morais conflitantes e irreconciliáveis.” (RAWLS, 2000a, p. 45).
Essas várias doutrinas, embora possam encontrar pontos de convergências entre si,
em alguns pontos nucleares o irredutíveis e incomensuráveis, razão pela qual o
debate entre elas não pode resultar senão no “fato da opressão” em que:
42
Rawls faz uma distinção entre o “fato do pluralismo” simples e o razoável. O simples é conhecido
na posição original e o razoável, no consenso sobreposto (ver tópicos finais do segundo capítulo e o
terceiro capítulo).
42
[...] a adesão coletiva continuada a apenas uma doutrina abrangente só se
mantém pelo uso opressivo do poder do Estado, com todos os seus crimes
oficiais e as inevitáveis brutalidades e crueldades, seguidas da corrupção da
religião, filosofia e ciência. (RAWLS, 2003, p. 47)
É justamente para evitar esse conflito e para propor uma reconciliação dos
cidadãos com as instituições sociais que o filósofo afirma o “fato do pluralismo” como
dado de interpretação e constituição de sua concepção de justiça. O “fato do
pluralismo” (circunstância subjetiva), assim entendido, demanda reconhecer que a
tradição democrática considera as pessoas como livres e iguais para formularem
suas concepções de bem e de justiça, de acordo com suas próprias convicções, sem
que, para isso, devam considerar os riscos ou as facilidades da adesão a uma
doutrina moral abrangente de bem ou de justo (comprehensive doctrine),
oficialmente reconhecida pela sociedade em que vivem.
43
Mas, reconhecer tal fato e a conseqüente concepção de pessoa a ele atrelada
não basta para um projeto efetivo de sociedade justa, que considerar os cidadãos
como fontes iguais de reivindicações legítimas e razoáveis, por si só, não assegura
que eles efetivamente exercerão essas capacidades em sociedade. Aliás, esse é o
dilema do liberalismo clássico que, embora atribua formalmente liberdades e direitos
iguais a todos os seres considerados racionais, tem dificuldades de resolver o
problema das desigualdades sociais e econômicas injustas. Como garantir uma
sociedade mais justa se, por exemplo, parte de seus integrantes vivem com
alimentação e saneamento básico precários, sem educação e saúde pública de
qualidade? Como exigir que cidadãos que vivem nessas condições realizem seus
projetos de vida ou participem das decisões importantes do poder político?
Essas circunstâncias sociais, que são realidade em muitos países pobres,
muitas vezes não decorrem propriamente da miserabilidade de toda a população ou
do governo, mas sim da má-distribuição da renda e da desorganização da economia,
que é, como se diz recorrentemente, comandada por grupos privilegiados que têm
poder de “barganhar” as “regras do jogo” as regras jurídicas materializadas pública
e coercitivamente.
43
“Considero que uma concepção moral é geral quando se aplica a uma ampla variedade de temas
de apreciação (em última análise, a todos os temas possíveis) e que ela é abrangente quando
compreende concepções daquilo que constitui o valor da vida humana, ideais da virtude pessoal e do
caráter e de tudo o que pertence a essa ordem, que nos deve informar sobre a nossa conduta (em
última análise, sobre a nossa vida em seu conjunto). Numerosas doutrinas religiosas e filosóficas
tendem a ser gerais e inteiramente abrangentes.” (RAWLS, 2002b, p. 250).
43
No entanto, os bens produzidos em sociedade (ao menos os mais
importantes para uma vida decente de qualquer cidadão), embora escassos e
limitados (portanto, sujeitos às variações econômicas e às relações de troca a ela
inerentes), não são suficientemente raros, de maneira a justificar que só uns poucos,
por um critério qualquer, os mereçam. Esse pressuposto fático da teoria da justiça é
denominado de escassez moderada de bens (primeira circunstância objetiva).
No âmbito teórico, Rawls pensa em sociedades cuja produção de bens seja
regular e possível e que a aquisição de bens e serviços básicos seja acessível a
qualquer cidadão que se proponha a ingressar no sistema de cooperação social de
uma sociedade bem-ordenada.
Pode-se refutar a aceitação desse pressuposto alegando-se que ele existiria
somente nas sociedades em que produção abundante de bens (e.g. sociedade
americana) e que, para países pobres, os problemas de ordenação e correção das
desigualdades sociais seriam insolúveis.
Ao contrário do que possa parecer inicialmente, segundo o filósofo, as
exigências da justiça como eqüidade não são grandes. Não um patamar
econômico ou algum conjunto de índices e de médias econômicas produtivas que
um país deva atingir para que sua população viva numa sociedade mais justa
aliás, esse tipo de exigência mais se aproxima da proposta do utilitarismo clássico,
que é criticado pelo autor. Para a justiça como eqüidade, basta que a sociedade não
esteja em guerra civil ou militar, que seja produtiva e que a distribuição dos bens e
direitos seja eqüitativa, garantindo-se o exercício das faculdades morais das
pessoas (capacidade de ter alguma concepção de bem e de justiça).
Ilustra a plausibilidade dessa circunstância a averiguação de que, no Brasil, a
produção de bens e serviços é suficiente para manter todas as pessoas da
população em condições dignas de vida, o que só o acontece em razão da má-
organização de parte das instituições da estrutura básica da sociedade.
Antes de mencionar a segunda circunstância objetiva, é importante fazer uma
outra observação acerca das sugestões de se aproximar a teoria da justiça como
eqüidade e a organização da sociedade norte-americana. É evidente que Rawls
pensa a teoria da justiça a partir de seu contexto social e histórico. Todavia, quando
ele pressupõe o fato do pluralismo, embora pareça evidente que os EUA sejam a
base de seu modelo histórico de sociedade tolerante, deve-se considerá-lo com
cautela, já que esse país possui graves problemas de discriminação racial negativa.
44
Tais observações servem para reforçar o fato de que o filósofo americano
está pensando em um grau de abstração diferenciado que não circunstancia essa ou
aquela sociedade, mas procura interpretar da melhor forma o modelo constitucional
democrático da modernidade, que deve estar situado numa sociedade que reúna
condições favoráveis não institucionais, mas históricas e culturais para que seja
mais justa. Abalizando esse comentário leia-se o seguinte comentário do autor:
A Alemanha, entre 1870 e 1945, é um exemplo de um país em que existiam
condições razoavelmente favoráveis econômicas, tecnológicas, fartura de
recursos, cidadãos educados etc. –, mas que ao mesmo tempo faltava a
vontade política de um regime diplomático. Poder-se-ia dizer o mesmo
sobre os Estados Unidos hoje, caso concluamos que nosso regime
constitucional é, em grande medida, democrático apenas na forma.
(RAWLS, 2003, p. 143)
A segunda circunstância objetiva é a necessidade de cooperação social para
que todos tenham um padrão de vida decente. Não basta que a sociedade viva em
paz, que produza bens e assegure direitos/liberdades iguais aos seus cidadãos,
pois, se eles não contribuírem mutuamente para uma sociedade mais justa, a
estipulação de direitos e a divisão de bens tende a tornar-se injusta ao logo do
tempo.
Para Rawls, é fato incontroverso da psicologia social que as pessoas, quando
em sociedade, valem-se do princípio da “reciprocidade” para nortearem suas ações.
Essa reciprocidade supõe uma cooperação que é intermediária das idéias de
benefício mútuo e de altruísmo e que oferece possibilidades de ganhos às pessoas
que dela participarem.
Essa idéia de cooperação é o que fornecerá a estabilidade para justiça como
eqüidade e o se restringe simplesmente a questões econômicas (bens materiais),
mas, deve ser percebida, especialmente, na realização dos valores políticos
(comensuráveis no sentido de pertencerem a uma mesma tradição e não no sentido
econômico) de uma democracia constitucional ideal.
Essas (três) circunstâncias da justiça (subjetiva: fato do pluralismo; objetivas:
escassez moderada de bens e necessidade de cooperação social) se desdobram
em outras que serão comentadas ao longo do trabalho.
O que impõe perceber é que as definições iniciais deste capítulo não
resolvem o problema da ordenação da sociedade. Mas, a partir desse ponto das
características da teoria, da filosofia política e das limitações, condições e fatos
45
gerais antes citados é que a teoria da justiça de Rawls se destaca, porquanto, no
intento de explicitar e explicar as idéias intuitivas fundamentais da cultura pública,
“entram em cena” as chamadas “concepções-modelos”, que pretendem fornecer
uma visão auto-sustentada de justiça e justificar o enunciado dos dois princípios da
justiça como eqüidade.
46
3 AS CONCEPÇÕES-MODELOS
A justiça como eqüidade afirma-se como política ao fundamentar-se em uma
concepção pública que revê o próprio significado do conceito de político, atribuindo-
lhe a tarefa de constituir um consenso sobreposto, ou seja, um acordo teórico sobre
princípios de justiça que harmonizariam as questões fundamentais do ideal
democrático moderno. Esse acordo sobre os princípios de justiça depende de uma
base objetiva de fatos, idéias e princípios públicos da cultura pública moderna que
sejam suscetíveis de comparação e avaliação e que possam formar uma concepção
de justiça política. Esse substrato cultural é organizado em concepções-modelos que
ajudam a mediar as ambigüidades e conflitos decorrentes da tradição moderna,
tornando-a clara e objetiva. Nesse sentido, como afirmado no capítulo I, as
concepções-modelos fazem parte das estratégias metodológicas do construtivismo
político rawlsiano e servem, num primeiro momento, ao propósito prático de
orientação e ordenação dos princípios de justiça e de esclarecimento e
compreensão pública do que está em jogo na resolução das referidas questões
fundamentais.
Pode-se dizer que, conceitualmente, as “concepções-modelos” são as idéias
fundamentais modelares das idéias intuitivas da cultura pública moderna. Se, por um
lado, são hipóteses abstratas que representam normativamente a realidade da
referida cultura, por outro, são modelos que representam as características gerais
dessa base histórica e cultural. Rawls apresenta como idéias modelares a pessoa, a
sociedade, a posição original e a estrutura básica da sociedade. Ao fazer essa
escolha, o autor contempla os pontos conflituosos da justiça e indica em que âmbito
eles devem ser resolvidos. Exemplificativamente, apresenta-se a concepção-modelo
de pessoa para organizarem-se as reivindicações individuais, a de sociedade para
representar as reivindicações coletivas, a de posição original para mediar o conflito
entre as duas primeiras e a de estrutura sica da sociedade para indicar o
ambiente em que a solução, decorrente da referida mediação, deverá ser aplicada.
Como mencionado, tais concepções constituem idéias abstratas que
representam o que se tem de comum na cultura pública moderna sobre a
consideração da pessoa e da sociedade. Nesse sentido, as concepções-modelos
são abstrações das idéias intuitivas da referida cultura e “isoladas, [...] não
47
desempenham papel algum que pudesse fixar ou limitar a sua utilização e, assim, as
suas propriedades permanecem vagas e indeterminadas.” (RAWLS, 2002b, p. 139).
Logo, essa primeira formulação das concepções-modelos é formal e normativa e
pode ser extraída de doutrinas abrangentes razoáveis
44
ou das práticas das
instituições públicas democráticas de um regime constitucional. Por evidente, as
concepções-modelos não revelam nenhum valor especial ou peculiar acerca de
como se deva entender a vida humana,
45
mas concentram as principais
considerações relativas à igualdade e à liberdade das pessoas, à tolerância aplicada
à filosofia e à idéia de que a sociedade é um empreendimento de cooperação
mútua. Por isso, é possível analisá-las (as concepções-modelos) em conjunto,
entendendo-as como procedimento público para o esclarecimento teórico da
ordenação de princípios de justiça.
Isso fixado, o passo seguinte “[...] se desenrola no âmbito dessas
concepções, que é necessário precisar a fim de obter uma interpretação pública
aceitável daquilo que são a liberdade e a igualdade.” (RAWLS, 2002b, p. 53). Ou
seja, considerando que as várias idéias políticas sobre a consideração da pessoa e
da sociedade, que estão latentes na cultura blica moderna, são ambíguas e, às
44
Rawls cita exemplos de doutrinas abrangentes de origem moral diferentes e irreconciliáveis que, a
despeito de seus fundamentos religiosos, aceitariam a idéia política de pessoas morais livres e iguais.
Isso é ilustrado na interpretação de An-Na’im sobre o islamismo, com relação à admissão da igual-
liberdade vinculada a um regime constitucional (ver §3º de Idéia de razão pública revisitada).
45
Questões importantes e difíceis relativas ao direito à vida humana, tais como a extensão desse
direito, a possibilidade de sua relativização em razão de intervenções artificiais (aborto, eutanásia,
etc.) ou as condições naturais e ambientais necessárias à sua manutenção (meio-ambiente
equilibrado), não são discutidos par Rawls, embora, vez ou outra, estes assuntos sejam comentados.
Na verdade, as referidas idéias intuitivas ligam-se mais à ordenação da igual-liberdade ou da
liberdade-igual, as quais constituem direitos “posteriores” à existência. Trata-se de direitos que se
agregam à designação da “vida digna”, e que são necessários a validar, por assim dizer, a condição
de ser humano. Por isso, seu campo de aplicação é relativamente mais fácil de situar do que as
discussões relativas ao aborto, por exemplo, em que os opositores sequer concordam sobre qual
seria o plano comum de valores (se o moral, o religioso, o social, o científico, o filosófico, o político,
etc.). Aliás, quando Rawls sugere a lista de bens primários, que serão distribuídos/regulados, os itens
relativos à existência humana e à base fática necessária a ela (ex: meio ambiente) não são
considerados, dado o caráter polêmico que os envolve. Muitas questões relativas à proteção ao meio-
ambiente não encontram “ponto de acordo” quando, e.g., desastres ecológicos podem acontecer.
Noutras palavras, “arranjaras questões relativas à prioridade do meio-ambiente são tão difíceis que
o autor não as toma como tarefa primordial da teoria da justiça. É claro que o assunto é de extrema
importância e que o filósofo o ignora isso. Mas, como o meio-ambiente não está circunscrito pela
estrutura básica da sociedade (as instituições humanas artificiais) a discussão sobre seu arranjo, em
boa parte, está além do alcance da justiça. Nesse sentido, Rawls toma a discussão dos
deveres/direitos relativos ao arranjo da igualdade/liberdade indicando em que campo de batalha”
(restrito) eles serão avaliados. Esses valores não são discutidos preponderantemente nem no campo
moral, nem no social, nem no cultural, nem no econômico, mas no que o autor denomina de “domínio
do político” e da filosofia política.
48
vezes, contraditórias,
46
faz-se necessário utilizar um procedimento legítimo
(expresso na posição original) que estabeleça as bases das razões que deverão ser
consideradas como efetivamente válidas e capazes de construírem os princípios de
justiça. Com isso, pode-se estabelecer:
[...] um ponto de vista social corretamente construído [...] publicamente
compartido [sic] pelos cidadãos de uma sociedade bem ordenada, [...]
reconhecidos por eles como vigentes no que diz respeito às reivindicações
dos indivíduos e das associações. (RAWLS, 2002b, p. 137)
Portanto, enunciar formal e racionalmente as concepções de pessoa, de
sociedade e de estrutura básica serve para que a concepção-modelo da posição
original desempenhe sua função mediadora, sem pressupor qualquer doutrina moral,
filosófica ou religiosa abrangente, ou alguma contingência que afete a razoabilidade
de um acordo hipotético sobre princípios de justiça.
Esclarecida essa base objetiva de avaliação, incumbe ao procedimento
ordenar as concepções-modelos numa visão coerente de justiça que considere
todas as limitações e exigências da filosofia política e dos fatos gerais da cultura
pública moderna que limitam, formal e materialmente, o conceito de justiça
(conforme capítulo I) para que os princípios de justiça sejam selecionados em
congruência com sua base histórica. Tal ordenação será comentada ao final deste
capítulo com a apresentação dos propalados princípios de justiça.
Como mencionado, os valores políticos devem ser expressos a partir de uma
base política normativa. Esta é a função das concepções-modelos. Elas formam a
46
São exemplos de idéias intuitivas derivadas que motivam as modelações das funções da filosofia
política, das categorias teóricas da justiça e dos fatos admitidos como limitadores (formais e
materiais) dos princípios de justiça, o seguintes enunciados: “Cada pessoa possui uma inviolabilidade
fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa
razão, a justiça nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior partilhado
por outros.” (RAWLS, 2002a, p. 4). Essa idéia é apresentada com outras de igual força e
consideração para a constituição das concepções-modelos, tais como: “[...] embora uma sociedade
seja um empreendimento cooperativo visando vantagens mútuas, ela é tipicamente marcada por um
conflito bem como por uma identidade de interesses.” (RAWLS, 2002a, p. 4). Leia-se o seguinte
exemplo de idéia intuitiva que motivará a constituição do procedimento da posição original: “Nossa
noção intuitiva é que essa estrutura contém várias posições sociais e que homens nascidos em
condições diferentes têm expectativas de vida diferentes, determinadas, em parte, pelo sistema
político, bem como pelas circunstâncias econômicas e sociais. Assim as instituições da sociedade
favorecem certos pontos de partida mais que outros. [...] É a essas desigualdades, supostamente
inevitáveis na estrutura básica de qualquer sociedade, que os princípios da justiça social devem ser
aplicados em primeiro lugar.” (RAWLS, 2002a, p. 8). “Assim parece razoável e geralmente aceitável
que ninguém deva ser favorecido ou desfavorecido pela sorte natural ou por circunstâncias sociais
em decorrência da escolha de princípios.” (RAWLS, 2002a, p. 20).
49
objetividade que a teoria utilizará para esclarecer seus princípios, fixando o conteúdo
e o contorno do ideal da sociedade política bem-ordenada.
3.1 A concepção-modelo de pessoa
A descrição das concepções-modelos partirá da concepção de pessoa e se
seguida pela de sociedade, de estrutura básica e de posição original e, com isso,
apresentar-se-á a escolha dos princípios de justiça. Na apresentação das
concepções-modelos, quando necessário, far-se-ão distinções iniciais entre os níveis
de argumentação utilizados por Rawls para a seleção dos princípios de justiça. É
que as concepções são utilizadas em diversos momentos de sua argumentação e
uma visualização menos atenta, que não distinga o plano teórico ao qual a
argumentação se refere, pode produzir equívocos interpretativos.
Seguindo essa precaução, inicialmente é necessário distinguir as várias
formas que Rawls considera a pessoa.
É importante distinguir três pontos de vista: o das partes na posição original,
o dos cidadãos numa sociedade-bem ordenada e, finalmente, o nosso o
seu e o meu, que estamos formulando a idéia de justiça como eqüidade e
examinando-a enquanto concepção política de justiça. (RAWLS, 2000a, p.
71)
No primeiro ponto de vista, a argumentação dirige-se à
fundamentação/validação da teoria da justiça como eqüidade e, sob a ótica
normativa, a pessoa é considera igual, livre e capaz de determinar racionalmente a
sua concepção de bem e, sob condições razoáveis, os termos de um acordo político
sobre princípios que orientam a atribuição de direitos/deveres e de bens a todos
participantes da cooperação social. Pensar a pessoa como racionalmente autônoma
e formalmente igual, serve como base argumentativa para determinação do
consenso construído a partir da posição original.
No segundo ponto de vista, a pessoa é representada por Rawls como cidadão
de uma sociedade bem-ordenada por princípios públicos de justiça. Nesse contexto,
a investigação filosófica dirige-se às exigências dos princípios validados na posição
original e dos valores contidos no acordo político hipoteticamente celebrado. A
discussão das “virtudes políticas”, dos deveres/direitos em relação à estrutura básica
50
da sociedade e dos compromissos que formam a identidade pública da pessoa,
entendida como plenamente autônoma, é apresentada neste ponto.
uma terceira forma de considerar a pessoa. Diz respeito, não à
validação da teoria da justiça, mas à discussão sobre ela ser um empreendimento
aceitável, dentre outros possíveis, para ordenar uma sociedade. Trata-se do que o
autor denomina “nosso ponto de vista” (o meu e o seu). É sob essa ótica que se
discute a legitimidade dos princípios de justiça (selecionados com o auxílio das duas
outras formas de interpretar a pessoa) e o seu funcionamento prático, sua
estabilidade e eficácia, ou seja a sua capacidade de reformar as instituições
existentes, em comparação com os outros princípios de justiça que concorrem no
espaço de debate público. É, como Rawls menciona, a posição das pessoas reais
que avaliam criticamente a sua proposta.
O que de diferente nestes pontos de vista ou nestas formas de considerar
a pessoa é o grau de publicidade que lhes está acessível. Na posição original são
públicos e conhecidos, exemplificativamente: os fatos e circunstâncias gerais da
justiça; as crenças (ou fatos) gerais da cultura pública; os métodos de investigação e
as formas de raciocino; e a idéia de partes (pessoas) recobertas pelo “véu de
ignorância”.
Mediante estas restrições ao conhecimento das pessoas na posição original,
pode-se dizer que elas não possuem uma autonomia plena, mas, somente, uma
autonomia parcial, racional e artificial. Daí compreender porque Rawls as considera
como ficções no procedimento da posição original. Nesse sentido, a pessoa (como
idéia, ou concepção-modelo) é descrita, estritamente, como possuidora de
faculdades intelectuais e morais, expressas:
[...] no exercício da capacidade de formular, revisar e procurar concretizar
uma concepção de bem, e de deliberar de acordo com ela. Expressa-se
também na capacidade de entrar em acordo com outros (quando restrições
razoáveis se apresentam). (RAWLS, 2000a, p. 117)
Essa restrição à publicidade refere-se a uma escolha anterior das regras que
norteiam esse procedimento, as quais também são públicas e especificadas do
ponto de vista real (o nosso), no qual evitam-se os conflitos desnecessários acerca
de questões que não sejam fundamentais para os propósitos da teoria da justiça.
51
Uma vez estabelecidas e aceitas essas condições públicas, as pessoas (você
e eu) são capazes de pensar “como se fossem as partes na posição original”
47
e,
submetendo-se à restrição da publicidade previamente aceita (porque razoáveis),
estão aptas a, racionalmente, organizarem os princípios de justiça que refletem
aquelas ponderações razoáveis feitas inicialmente. Assim, a razoabilidade não está
na parte (ou na pessoa representativa), mas nos termos e condições que as pessoas
reais estabelecem quando raciocinam como cidadãos razoáveis, que escolhem a
posição original para mediar seus conflitos políticos. Essa razoabilidade, imposta
pelas pessoas reais, deverá possibilitar que os cidadãos, na sociedade bem-
ordenada, desenvolvam e orientem-se pelo “senso de justiça”, pelo sentimento de
que dividem um bem que lhes é comum. Perceba-se que a idéia de cidadãos na
sociedade bem-ordenada, do ponto de vista dessa justificação plena, deveria ser o
das pessoas reais (nós). Melhor dizendo, os cidadãos razoáveis o a descrição
ideal das pessoas reais, imaginando-se que elas pudessem viver numa sociedade
bem-ordenada.
Note-se que a visão rawlsiana de pessoa é normativa e política (e não
metafísica ou psicológica). É normativa porque a pessoa é considerada formalmente
livre e igual,
48
figurando como centro de reivindicações de bens primários,
independentemente da ponderação dos desejos particulares ou dos padrões de
escolha racional. É política porque a pessoa é pensada não segundo as suas
idiossincrasias culturais ou antropológicas, mas como cidadão razoável e
consciencioso, capaz de honrar as exigências dos princípios de justiça selecionados
e aceitos publicamente.
À primeira vista, estas formas de considerar a pessoa podem parecer
opostas, pois uma concepção normativa é necessariamente construída para
47
“[...] a argumentação das partes é uma representação das premissas para a concepção pública de
justiça [...]. Isso pressupõe que, quando do estabelecimento da posição original, estipulamos que as
partes devem argumentar com base apenas em crenças gerais compartilhadas pelos cidadãos em
geral, como parte de seu conhecimento público.” (RAWLS, 2000a, p. 114).
48
De maneira geral, pode-se dizer que a Declaração Universal dos Direitos Humanos indica bem a
referência feita por Rawls ao aspecto normativo da pessoa. Leia-se a redação de alguns artigos:
“Artigo I: Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e
consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade. Artigo II: Toda
pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem
distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra
natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.”
(ORGANIZAÇÃO, 2005). Mas, o propósito do filósofo não é identificar essa matriz de direitos e a
maneira de encarar a pessoa, mas de ordenar esses vários preceitos numa visão coerente. Com essa
ordenação é que se obtém o arranjo e o conteúdo destes direitos e deveres do cidadãos.
52
realização de certos propósitos em que a consideração acerca dos contextos
culturais, econômicos e sociais são abstraídos,
49
ao passo que uma concepção
política da pessoa pode remeter a tradições que vêem o homem como
necessariamente ser político, enraizado numa comunidade histórica.
Mas, para Rawls, essa contradição é aparente. Na verdade a concepção
normativa é complementada pela idéia política de cidadão razoável. A face
normativa da pessoa reflete a idéia de que ela possui uma identidade moral,
filosófica ou religiosa não-pública que organiza (as vezes mais, as vezes menos) seu
projeto de vida boa, a faceta política representa a idéia de que ela possui uma
identidade pública comum que é dividida com outras pessoas no espaço público de
uma sociedade bem-ordenada.
Esses dois tipos de engajamento – político e o-político – constituem a
identidade moral da pessoa, porém, uma (a política) deve ser estável, razoável e
harmoniosa em relação às demais pessoas, enquanto a outra (não-política,
decorrente da adesão a uma doutrina moral abrangente), em razão da sua forma de
racionalidade, muitas vezes, por ser incomensurável e conflitante com outras formas
de identidade pessoal, está sujeita à discordância e ao conflito.
Tal conflito, dado o fato do pluralismo, deve ser aceitável socialmente (ele é
inevitável), porque as pessoas entendem e acreditam no que seja digno de tentar
realizar no mundo social, seja individualmente, seja em associações ou em
comunidades, e somente podem ser restringidas quando as concepções das
doutrinas abrangentes que elas professam violar as suas identidades políticas, por
exemplo, quando prega-se alguma forma intolerante de sociabilidade que suprima a
condição de igual-liberdade de alguma pessoa ou grupo de pessoas. Nesse sentido,
as virtudes e os deveres de cidadania limitam a identidade não-pública (ou não-
política) das pessoas quando esta (identidade) extrapolar os limites dos princípios de
justiça.
Feitas estas distinções sobre os “pontos de vista” e sobre a publicidade a eles
vinculada, seguir-se-á na descrição da pessoa como “habitante” (hipotético) da
posição original, ou seja, tratar-se-á somente da sua característica normativa.
Na perspectiva normativa, tomam-se as pessoas como plenamente capazes
de se envolverem na cooperação social, porque possuem as “faculdades da razão”
49
Os filósofos chamados comunitaristas descordam dessa visão “desencarnada” da pessoa, de um
“eu” deontológico na análise crítica de Michael Sandel (cf. SANDEL, 1992).
53
(a capacidade de julgamento, pensamento e inferência) e as “duas faculdades
morais” (moral powers), que são compreendidas como a aptidão de terem um senso
de justiça (ou seja a aptidão de compreenderem, aplicarem e agirem, segundo
princípios razoáveis de justiça pública, com os quais concordam voluntariamente) e
como a habilidade de formarem uma concepção do bem (sendo capazes de
ordenarem fins últimos, revisá-los e refutá-los para a consecução de projetos de vida
digna).
As pessoas são consideradas iguais porque devem compartilhar os valores
políticos comuns que regerão a estrutura básica da sociedade (princípios de justiça)
e porque são fontes iguais de reivindicação do seu próprio bem ou do grupo social
ao qual pertencem. Em outras palavras: as pessoas possuem “as duas faculdades
morais” (capacidade de ter um senso de justiça e de ter um senso de bem) e, por
isso, são consideradas formalmente iguais. É em razão desta igualdade que seus
representantes devem ser situados igualmente na posição original.
50
Também são
vistas como capazes de participarem de uma vida plenamente cooperativa, quando
compartilham a mesma concepção de justiça que as motivam a afirmar e a praticar
justiça mutuamente.
Tal igualdade, formalmente considerada, exclui qualquer determinação a priori
de princípios, valores e objetivos comuns entre as pessoas.
51
Logo, considerar a
pessoa como vinculada a uma concepção abrangente de bem (em que ela somente
seja igual se “encarnada” numa certa cultura, comunidade ou associação), além de
ignorar o fato do pluralismo, exclui o direito correlato da igualdade jurídica e da igual
consideração das reivindicações de cada qual às instituições da estrutura básica da
sociedade.
52
50
Rawls entende que a maneira de situar as partes na posição original, por meio de uma igualdade
formal, é a maneira menos controversa de obter um acordo sobre justiça, quando esta discussão é
realizada em termos hipotéticos.
51
Essa definição procedimental (restrição à inclusão prévia de um tipo de natureza humana” ou de
valores comunitários prévios ao acordo sobre os princípios de justiça) não quer dizer que a definição
da pessoa seja neutra. Na verdade ela é definida, como afirmado, a partir dos vários elementos da
cultura pública moderna, que são mais característicos e publicamente reconhecidos. Dizendo de outro
modo, a concepção de pessoa de Rawls: “[...] é elaborada a partir da maneira como os cidadãos são
vistos na cultura política pública de uma sociedade democrática, em seus textos políticos básicos
(constituições e declarações de direitos humanos), e na tradição histórica da interpretação desses
textos. Para encontrar essas interpretações não olhamos somente para os tribunais, partidos políticos
e homens de estado, mas também para a literatura sobre direito constitucional e jurisprudência, e
para os escritos mais duradouros de todo tipo relacionados com a filosofia política de uma
sociedade.” (RAWLS, 2003, p. 27).
52
Uma idéia assemelhada a essa é apresentada por Ronald Dworkin: “O governo deve tratar aqueles
a quem governa com consideração, isto é, como seres humanos capazes de sofrimento e de
54
Além de iguais, as pessoas são consideradas livres no sentido de serem
capazes de afirmar uma concepção de bem, de revisá-la ou de abandoná-la, por
motivos racionais ou razoáveis, sem que, para isso, percam sua identidade pública.
Noutros termos, as pessoas são livres para modificarem suas identidades morais
não-políticas sem que essa alteração nas relações de afeto, devoção e lealdade
para com certa doutrina religiosa, moral ou filosófica, de alguma comunidade ou
associação, exclua seu direito de serem consideradas iguais no arranjo social e de
receberem os benefícios da cooperação social justa. Nesse sentido, para Rawls:
Não há perda alguma do que podemos chamar de sua identidade pública ou
institucional, nem de sua identidade em termos de lei fundamental. Em
geral, ainda conservam os mesmos direitos e deveres básicos, o donos
da mesma propriedade e podem fazer as mesmas exigências [...]. (RAWLS,
2000a, p. 73)
Anote-se que o tipo de liberdade atribuída às pessoas não é absoluto, pois,
ela (a liberdade, ou melhor as liberdades sicas) é limitada pela identidade política
(e pelos valores políticos dos princípios de justiça a ela atrelados), e pela identidade
não-política (ou seja pelo o que o autor denomina de limitações racionais
decorrentes da adoção de uma concepção de bem).
Ainda, com relação à base da concepção de pessoa, segundo Rawls:
É possível distinguir como particularmente significativos muitos aspectos
diferentes da nossa natureza, em função de nossa meta e do nosso ponto
de vista. A utilização de expressões como homo politicus, homo
oeconomicus e homo faber demonstra esse fato. A meta da teoria da justiça
como eqüidade é elaborar uma concepção de justiça política e social, em
harmonia com as convicções e tradições mais enraizadas de um Estado
Moderno. [...] Essa concepção não deve ser confundida com um ideal de
vida pessoal (por exemplo, um ideal de amizade), nem com um ideal
partilhado pelos membros de uma associação, e menos ainda com um ideal
moral tal como o ideal estóico do Sábio. (RAWLS, 2002b, p. 155-6)
Dessa feita, a concepção de pessoa não é interpretada como se o indivíduo
devesse receber estímulo especial das instituições públicas para realizar seus
objetivos particulares, ou para favorecer o florescimento de uma identidade cultural
comunitária, tampouco que seja absolutamente determinado por forças exteriores
frustração, e com respeito, isto é, como seres humanos capazes de formar concepções inteligentes
sobre o modo como suas vidas devem ser vividas, e de agir de acordo com elas. O governo deve não
somente tratar as pessoas com consideração e respeito, mas com igual consideração e igual
respeito.” (DWORKIN, 2002, p. 419)
55
que compilam o seu espaço de liberdade para um “mundo interior”. Ao contrário, a
concepção de pessoa funciona como uma construção teórica particular e restrita à
constatação de alguns fatos incontroversos acerca da vida moderna, organizada no
Estado constitucional democrático de direito, em que as circunstâncias da justiça
estão presentes. Noutras palavras, a preocupação de Rawls é identificar pontos
comuns de reivindicações das pessoas reais, as quais, analisadas abstratamente
(ou seja, sem especificar circunstâncias conflitantes entre as várias doutrinas
abrangentes), servem para deduzir que cada uma delas, para terem uma vida
decente, devem ser reconhecidas igualmente como autenticadoras de uma
concepção de bem e de justiça (as duas faculdades morais) e que, por serem
capazes de razoabilidade, podem estabelecer um termo de convivência comum, que
não seja prioritariamente determinado por razões econômicas, sociais ou naturais
preexistentes à definição dos princípios de justiça.
3.2 A concepção-modelo de sociedade
3.2.1 A idéia de sociedade como sistema eqüitativo de cooperação
Inicialmente, Rawls sugere que uma sociedade é:
[...] uma associação mais ou menos auto-suficiente de pessoas que em
suas relações mútuas reconhecem certas regras de conduta como
obrigatórias e que, na maioria das vezes, agem de acordo com elas.
Suponhamos também que essas regras especifiquem um sistema de
cooperação concebido para promover o bem dos que fazem parte dela.
Então, embora uma sociedade seja um empreendimento cooperativo
visando vantagens mútuas, ela é tipicamente marcada por um conflito bem
como por uma identidade de interesses. (RAWLS, 2002a, p. 4)
Nesse sentido, a sociedade é considerada, genericamente, como uma união
de pessoas vinculadas por alguma forma de afinidade, que tem sua estabilidade nas
regras blicas obrigatórias (ordem pública). Pode-se dizer também que essas
regras (que atribuem deveres e direitos) oferecem alguma forma de vantagem mútua
para os seus integrantes, que, apesar disso, nem sempre evita o conflito entre
diferentes concepções de bem.
56
É para organizar essa primeira idéia intuitiva, que Rawls utiliza a concepção
de sociedade como sistema eqüitativo de cooperação (society as a fair system of
cooperation), em que as pessoas livres e iguais estão dispostas a cooperar, se
reconhecerem publicamente os mesmos princípios de justiça. Cumpre notar que a
“sociedade como sistema eqüitativo de cooperação” é uma idéia organizadora,
53
enquanto que a “sociedade bem-ordenada” é uma idéia reguladora.
Pode-se pensar que a idéia organizadora da sociedade está embasada numa
doutrina moral abrangente, em que a concepção de mérito moral, em sentido
estrito,
54
ocupa uma função central para a atribuição de direitos e para a distribuição
de bens. Com isso, o mérito individual é previamente determinado pelas instituições
que valorizam e estimulam o indivíduo a realizar seu papel social, reforçando-se a
ordem existente. Numa sociedade assim, um plano de virtudes (e.g. modelo de
conduta honrada), cuja prática reiterada realiza o “bem da sociedade”. Esse “bem da
sociedade” é tão importante que sacrifícios de bens particulares, ou a renúncia ao
“amor-próprio”, são justificáveis.
55
Tal perspectiva forma um vínculo interpessoal
“forte” (a força da tradição), no sentido que a motivação da ação das pessoas não se
em razão de uma determinação jurídica que lhe é externa (lei estatal), mas de
uma orientação cultural e histórica (sustentadora de costumes publicamente
renovados) que lhes é anterior e incorporada. Então, tal opção (e.g. fundamentada
em alguma forma de meritocracia ou de perfeição moral)
56
pode revelar-se
53
“A idéia mais fundamental nessa concepção de justiça é a idéia de sociedade como um sistema
eqüitativo de cooperação social que se perpetua de uma geração para a outra (Teoria, §1). Esta é a
idéia organizadora central que utilizamos para tentar desenvolver uma concepção política de justiça
para um regime democrático.” (RAWLS, 2003, p. 7)
54
Rawls faz uma distinção entre mérito moral em sentido amplo e em sentido estrito. Num sentido
estrito, o mérito é visto como dependente de uma doutrina moral abrangente e vincula-se à
concepção de honra. Num sentido amplo, ela pode se referir também a direitos e a expectativas
legítimas. É nesse segundo sentido, que a justiça como eqüidade trata os problemas de justiça
distributiva, substituindo a concepção de mérito em sentido estrito pela de direitos e expectativas
legítimas, substanciadas pelos princípios de justiça, as quais garantem a titularidade da satisfação
das reivindicações das pessoas.
55
Essa idéia de bem deriva, de certa forma, da concepção de “liberdade dos antigos”, que “[...]
consistia em exercer coletiva, mas diretamente, várias partes da soberania inteira, em deliberar na
praça pública sobre a guerra e a paz, em concluir com os estrangeiros tratados de aliança, em votar
as leis, em pronunciar julgamentos, em examinar as contas, os atos, a gestão dos magistrados; em
fazê-los comparecer diante de todo um povo, em acusá-los de delitos, em condená-los ou absolvê-
los; mas, ao mesmo tempo em que consistia nisso o que os antigos chamavam de liberdade, eles
admitiam, como compatível com ela, a submissão completa do indivíduo à autoridade do todo.”
(CONSTANT, 1985, p. 11)
56
Esse ideal de perfeição moral está presente, por exemplo, na doutrina aristotélica, conforme §50 de
Uma Teoria da Justiça. Nesse sentido, leia-se a interpretação que Rawls faz do perfeccionismo: “[...]
trata-se do princípio unido de uma teoria teleológica que dirige a sociedade a organizar as instituições
e a definir os deveres e obrigações dos indivíduos de modo a maximizar a perfeição das realizações
57
incompatível, por exemplo, com o fato do pluralismo e com a idéia intuitiva da
inviolabilidade da pessoa.
Mas, para Rawls, embora se possa afirmar que uma sociedade, na discussão
política sobre os fundamentos constitucionais e sobre as questões básicas de justiça
social, seja marcada por alguma cultura ou tradição preponderante, ela não é uma
ordem social com uma ordem natural fixa ou uma hierarquia institucional justificada
por valores religiosos ou aristocráticos (decorrentes de uma doutrina abrangente),
unanimemente reconhecidos.
Essa perspectiva (que prioriza a “força” da tradição) produz afinidade e
solidariedade entre as pessoas que comungam da mesma doutrina filosófica,
religiosa ou moral. Entretanto, ela é fonte de conflitos insolúveis que podem ser
resolvidos, em seus pontos discordantes mais profundos, com o uso da força (fato
da opressão), especialmente quando ela (a doutrina) é incomensurável e não pode
ser conciliada com outras que dividam o mesmo espaço público.
Por outro lado, para formular uma idéia organizadora de sociedade, pode-se
utilizar da idéia de igual liberdade, dividindo-se as opções disponíveis entre aquelas
que privilegiam a liberdade (no sentido negativo, também conhecido como “liberdade
dos modernos”) ou a igualdade. Ou, melhor situando a problemática, pode-se dizer
que, nesse âmbito “De um lado estão aqueles que consideram que os homens são
mais iguais que desiguais, de outro, aqueles que consideram que são mais
desiguais que iguais.” (BOBBIO, 2001, p. 121)
Os que atribuem importância relevada à liberdade individual situam-na como
inata, no sentido de que:
[...] a liberdade dos homens submetidos a um governo consiste em possuir
uma regra permanente à qual deve obedecer, comum a todos os membros
daquela sociedade e instituída pelo poder legislativo nela estabelecido. É a
liberdade de seguir minha própria vontade em todas as coisas não
prescritas por esta regra; e não estar sujeito à vontade inconstante, incerta,
desconhecida e arbitrária de outro homem. (LOCKE, 2001, p. 95)
Para eles, as liberdades individuais têm primazia na consideração dos direitos
da pessoa e na limitação dos poderes públicos, de maneira que a sociedade é vista
humanas na arte, na ciência e na cultura. [...] As exigências da perfeição sobrepõem às fortes
reivindicações da liberdade.” (RAWLS, 2002a, p. 359). Essa doutrina abrangente é rejeitada por
Rawls, no sentido de que ela não pode fornecer um ponto de vista político aceitável pelas pessoas na
posição original.
58
como um empreendimento vinculado pela regra jurídica (lei como imperativo
racional), que delimita (formalmente) o espaço privado e possibilita a convivência
pacífica da vontade livre de todos com todos. Embora esse esquema possua várias
versões (como por exemplo a do liberalismo clássico e a do
libertarismo/neoliberalismo), em que cada qual organiza as regras jurídicas de
maneira diversa, pode-se dizer, genericamente, que as características aqui
apresentadas lhes são comuns. Assim, os princípios de justiça derivados dessa
concepção tendem a estabelecer formas de propriedade e de organização da
economia, derivados de uma concepção moral de cunho individualista, em que o
empreendimento social não é visualizado como “cooperação”, mas como uma
“competição ordenada” com neutralidade que, ao longo do tempo, dependendo do
esforço de cada um, promove a melhoria de vida de todos. A objeção é que essa
forma de pensar a liberdade, na ordenação da sociedade “é hostil a certos modos de
vida e favorece os valores da autonomia e da individualidade, e se opõe aos da
comunidade e da fidelidade associativa.” (RAWLS, 2003, p. 216-7), de maneira que
a própria inviolabilidade da dignidade da pessoa não está garantida.
Já outros sustentam que o direito mais elementar do homem, anterior a
qualquer distinção artificial, social e historicamente construída, é a igualdade, que
deve ser reforçada para que todos possam exercer suas liberdades de maneira
efetiva e solidária.
O que geralmente caracteriza as ideologias igualitárias é o acento colocado
no homem como ser genérico (ou seja, como ser que pertence a um
determinado genus) e, por conseguinte, nas características comuns a todos
os pertencentes ao genus e não tanto nas características individuais pelas
quais um homem se distingue do outro; [...] Conforme o acento seja
colocado nas desigualdades econômicas ou nas políticas [...], as doutrinas
igualitárias se distinguem em socialistas (ou comunistas) e anarquistas. As
primeiras buscam a igualdade política através da igualdade econômica,
enquanto as segundas percorrem o caminho inverso. (BOBBIO, 1996, p. 37-
8)
Entre as objeções que poderiam ser apresentadas a esta opção, tem-se que
ela encontra dificuldades em lidar com a proteção das liberdades básicas individuais.
Outras alternativas propõem mediar o arranjo entre liberdade e igualdade
deslocando a discussão para a investigação acerca da adequada distribuição de
bens primários, de maneira a garantir um mínimo social, a partir do qual as pessoas
59
possam realizar suas pontecialidades. Tal propósito (característico do utilitarismo
clássico)
57
tem a idéia central de que:
[...] a sociedade está ordenada de forma correta e, portanto, justa, quando
suas instituições mais importantes estão planejadas de modo a conseguir o
maior saldo líquido de satisfação obtido a partir da soma das participações
individuais de todos os seus membros. (RAWLS, 2002a, p. 25)
Outra forma de considerar o arranjo da justiça é a do intuicionismo, que
pretende, por meio de um equilíbrio (mais refletido e mais geral) considerado na
discussão de situações concretas, solver pontos atinentes ao bem-estar, ao salário
justo, aos impostos e às formas de punição, etc. Para Rawls, “[...] o intuicionismo
recorre a um conjunto irredutível de princípios básicos que devemos pesar e
comparar perguntando-nos qual equilíbrio, em nosso entendimento mais refletido é
justo.” (RAWLS, 2002, pp. 36-7).
As dificuldades teóricas dessas duas últimas opções (utilitarismo clássico e
intuicionismo) é que, segundo Rawls, elas não fornecem critérios consistentes sobre
a prioridade dos princípios de justiça, de maneira que o resultado da ordenação,
decorrente da aplicação dessas doutrinas abrangentes, não eliminaria a
possibilidade, por exemplo, de ofensa a direitos individuais quando interesses
relativos ao “bem-estar” pudessem ser ampliados.
Mais comparações poderiam ser efetuadas, admitindo-se a inviolabilidade
prioritária da pessoa (como aquelas que Rawls faz com a substituição do princípio
da diferença pelo princípio da utilidade média), para daí arranjar as desigualdades
sociais. Mas, por enquanto, esse rol de opções, que está disponível no espaço
público da cultura pública moderna, é suficiente para apresentar os principais contra-
exemplos e o conflito existente entre as concepções que privilegiam a “liberdade dos
antigos” ou a “liberdade dos modernos”, a soberania popular ou a autonomia
privada, o direito natural à liberdade ou à igualdade e ao bem-estar comum.
57
Impõe ressalvar que a crítica não se aplica ao pensamento de John Stuart Mill, considerado por
Rawls um liberal da liberdade, ao lado de Kant e Hegel. Nesse sentido, leia-se o seguinte comentário
do autor: “O mesmo vale para todo liberalismo da liberdade, seja de Kant, de J. S. Mill ou de Uma
Teoria da Justiça [...]. O liberalismo dos utilitaristas (clássicos) Bentham, James Mill e Sidgwick é
distinto do liberalismo da liberdade.” (Rawls, 2005, p. 420.) O utilitarismo tomado como ponto de
partida da crítica rawlsiana é o clássico, especialmente o de Bentham e Sidgwick. Tais formas de
utilitarismo clássico, segundo Rawls, não estabelecem de maneira consistente a prioridade das
liberdades básicas e ainda: “[...] exige mais dos menos favorecidos que o princípio de diferença exige
dos mais favorecidos. Com efeito, exigir isso dos menos favorecidos pareceria uma demanda
extrema.” (RAWLS, 2003, p. 179).
60
Rawls pretende resolver estes conflitos políticos fundamentais evitando
embrenhar-se na particularidade de cada uma destas doutrinas. Ele não pretende
decidir qual delas é mais verdadeira, tampouco deseja declarar qual delas deve
sagrar-se “vitoriosa” no debate público. Ao contrário, ao preocupar-se em resolver o
referido conflito, ele as considera integrantes da cultura pública moderna, com igual
valor político. A partir daí, procura-se “descobrir alguma base subjacente de acordo
filosófico e moral” (RAWLS, 2003, p. 2), para que se mantenha a cooperação social
e a base do respeito mútuo entre os cidadãos. Essa acordo razoável, para Rawls,
pode ser obtido mediante a idéia de cooperação social, que seria a mais adequada
para arranjar coerentemente o ideal de uma democracia constitucional, em que os
cidadãos são considerados, invariavelmente, como livres e iguais.
Esta idéia central possui três aspectos essenciais, quais sejam:
a) A cooperação é distinta da mera atividade socialmente coordenada,
como, por exemplo, a atividade organizada pelas ordens decretadas por
uma autoridade central. A cooperação é guiada por regras e procedimentos
publicamente reconhecidos, aceitos pelos indivíduos que cooperam e por
eles considerados reguladores adequados de sua conduta. (RAWLS,
2000a, p. 58) (nesse sentido, os termos de cooperação não se restringem a
termos de competição justa);
b) A cooperação pressupõe termos eqüitativos. São os termos que cada
participante pode razoavelmente aceitar, desde que todos os outros os
aceitem. Termos eqüitativos de cooperação implicam uma idéia de
reciprocidade: todos os que estão envolvidos na cooperação e que fazem
sua parte como as regras e procedimentos exigem devem beneficiar-se da
forma apropriada, estimando-se isso por um padrão adequado de
cooperação [...] de modo que os benefícios produzidos pelos esforços de
todos são distribuídos eqüitativamente e compartilhados de uma geração
até a seguinte. (RAWLS, 2000a, p. 58-9) (assim as exigências da
cooperação são menores que as de outras formas de solidariedade,
próprias de doutrinas que priorizam alguma forma de interesse coletivo);
c) A idéia de cooperação social requer uma idéia de vantagem racional ou
do bem de cada participante. Essa idéia de bem especifica o que aqueles
envolvidos na cooperação, sejam indivíduos, famílias, associações, ou até
mesmo governos de diferentes povos, estão tentando conseguir, quando o
projeto é considerado de seu ponto de vista. (RAWLS, 2000a, p. 59)
A primeira noção (a), relativa à cooperação regulada por um procedimento
aceito publicamente, não exige a competição entre pessoas ou grupos para que eles
realizem suas formas particulares de bem e para se alcance um bem maior.
Também não demanda alguma espécie de truísmo ou de solidariedade muito
exigente, identificado com algum bem superior de caráter social. Tampouco exige a
realização de um cálculo utilitário de preferências racionais comuns, para os quais
61
um governo central, ou alguma autoridade (imparcial), fosse necessário para mediar
e arbitrar as reivindicações concorrentes.
Na verdade, essas perspectivas são formas alternativas à teoria da justiça
das quais Rawls tenta se esquivar (ao menos no plano da teoria ideal), que sua
proposta é oferecer uma perspectiva alternativa, aceitável e viável ao liberalismo
clássico, ao neoliberalismo, ao utilitarismo, entre outras doutrinas que dividem o
debate atual sobre a justiça, sem que, para isso, se sobrecarregue o indivíduo com
exigências decorrentes de alguma doutrina moral abrangente.
O segundo elemento (b) a ser comentado é que a cooperação é possível
porque está agregada à idéia de que a reciprocidade (reciprocity) entre as pessoas,
não reclamando que elas abdiquem de parte de seu bem racional, a o ser quando
sua perspectiva particular impossibilite a justiça pública. Rawls acredita que o bem
racional de alguns só será incompatível com essa concepção de reciprocidade se as
pessoas professarem uma doutrina intolerante, ou se negarem suas condições de
sociabilidade. Essa suposição é calcada no fato de que as pessoas, mesmo
preferindo formas específicas de “bem”, que nem sempre são compatíveis entre si,
tendem a não tolerarem-se mutuamente, mas a estabelecer uma base comum de
convivência, quando todas vêem a sociedade como um empreendimento público
que viabiliza os vários projetos de vida de cada um, sem excluir o “bem” racional dos
demais.
um dado interessante a ser considerado nesse ponto. É que, embora o
campo de abrangência do critério do que seja “bem” e “mal” varie de acordo com as
perspectivas das doutrinas abrangentes professadas pelas pessoas, parece
razoável supor que elas não estarão interessadas em obstar as condutas que lhes
pareçam “imorais”, quando tais condutas não inviabilizem seus projetos de vida
(mutually disinterested). Então a possibilidade de convivência o está inviabilizada,
pois, Rawls supõe que o o-favorecimento de alguma forma de “moralidade”, na
seleção dos princípios de justiça, constitui um motivo razoável para determinar a
aceitabilidade da reciprocidade, entendida como aplicável estritamente à
organização das questões políticas.
Essa reciprocidade, ou mutualidade, só é possível numa sociedade bem-
ordenada, em que não motivo razoável para se desconfiar de que o arranjo
institucional não funcione de acordo com os princípios públicos de justiça. É que,
para o filósofo, na opção contrária (sociedade mal-ordenada) “não alternativa à
62
cooperação social, exceto a aquiescência ressentida e contra a vontade, ou a
resistência e a guerra civil.” (RAWLS, 2000a, p. 356)
Vê-se, em suma, que os termos da cooperação social, ao serem elaborados a
partir da idéia de reciprocidade, não exigem a renúncia do próprio bem para
satisfazer um outro que seria superior, tampouco pretendem mediar “egoísmos”, ou
mesmo dividirem bens racionais simetricamente para a satisfação de necessidades
básicas. Ao contrário, a idéia de reciprocidade pode ser entendida como mediadora
entre as exigências altruístas (imparciais) e as individualistas (benefício mútuo). Com
ela, preserva-se a idéia de bem racional da pessoa (terceiro elemento (c) da idéia de
cooperação), que está vinculada à auto-estima e à possibilidade de se afirmar e
realizar algum projeto de vida, com dignidade, no plano individual e no plano coletivo
(das associações, comunidades e relações familiares).
Portanto, dizer que a idéia organizadora central da sociedade é o “sistema
eqüitativo de cooperação”, significa dizer que se pretende oferecer uma visão
coerente, que ordene as principais instituições sociais, cujos termos são
estabelecidos por cidadãos livres e iguais, em que a participação é vista por eles
como mutuamente vantajosa (cooperação) ao garantir-se o seu bem racional
(concepção de bem) e o bem-comum razoável (da sociedade bem-ordenada).
58
3.2.2 A idéia de sociedade bem-ordenada
Esta é a idéia tomada como central neste trabalho. Ela é articulada com a
concepção de pessoa e é correlata da idéia fundamental da sociedade como
58
Ilustrativamente, Rawls sugere alguns regimes político-sociais que se amoldariam a idéia de
cooperação social, antes exposta. Isso ocorreria no que o autor denomina de “democracia de
cidadãos-proprietários”, em que “[...] as instituições de fundo da democracia de cidadãos-proprietários
trabalham no sentido de dispersar a posse de riqueza e capital, impedindo que uma pequena parte da
sociedade controle a economia, e, indiretamente, também a vida política. [...] A democracia de
cidadãos-proprietários evita isso, não pela redistribuição de renda àqueles com menos ao fim de cada
período, por assim dizer, mas sim garantindo a difusão da propriedade de recursos produtivos e de
capital humano (isto é, educação e treinamento de capacidades) no início de cada período, tudo isso
tendo como pano de fundo a igualdade eqüitativa de oportunidade.” (RAWLS, 2003, p. 196-7). Ou
num “socialismo-liberal”. “No socialismo, como é a sociedade que é proprietária dos meios de
produção, supomos que, da mesma maneira que o poder político é compartilhado com um grande
número de partidos democráticos, o poder econômico está diluído entre empresas, como quando, por
exemplo, a direção e gerência de uma empresa é eleita por sua força de trabalho ou até está nas
mãos desta. Em contraste com uma economia centralizada de um socialismo de estado, no
socialismo liberal, as empresas desenvolvem suas atividades num sistema de mercados competitivos
livres e eficientes. A livre escolha de ocupação também está garantida.” (RAWLS, 2003, p. 195-6).
63
sistema eqüitativo de cooperação. Enquanto a idéia de sistema eqüitativo de
cooperação procura esclarecer, formalmente, o porquê de se adotar a idéia de
reciprocidade, a idéia de sociedade bem-ordenada pretende indicar, também
formalmente (ou seja, sem definir o conteúdo dos princípios de justiça que a
regulará), sob quais condições ela será considerada justa.
Para Rawls, a sociedade bem-ordenada (well-ordered society) é a meta da
justiça. Mas essa não é uma preocupação original. Na verdade, a inquietação
quanto com a boa ordenação da sociedade é comum a outras pretensões filosóficas,
que consideram a necessidade de unidade social. Nesse sentido, o diálogo
apresentado por Platão, na República, entre Glauco e Sócrates é significativo:
Sócrates - Começaremos, então, por perguntar qual é para a sociedade civil
o sumo bem, o que o legislador deve colimar como fim de suas leis, e qual
é, por outro lado, o maior dos males. Veremos, depois, se esta comunidade,
tal qual a estabelecemos, nos conduz a esse supremo bem e nos afasta
desse máximo dos males.
Glauco – Não se poderia dizê-lo melhor.
Sócrates Haverá para o Estado mal maior que o que o divide contra si
mesmo? Por outro lado, haverá bem comparável ao que, estreitando os
laços de união entre seus membros, o torna uno?
Glauco – Certo que não.
Sócrates Que se pode imaginar de mais adequado a formar e fomentar
esta união, que a comunhão e solidariedade dos cidadãos no prazer e na
dor, alegrados ou entristecidos igualmente pelos acontecimentos venturosos
ou desgraçados?
Glauco – Nada, por certo.
Sócrates Não é, ao contrário, o egoísmo, o agente de dissolução, quando
uns se alegram ao passo que outros se afligem em face dos mesmo
acontecimentos públicos?
Glauco – Sem dúvida. (PLATÃO, 1994, p. 193)
Formalmente considerando, a idéia de sociedade bem-ordenada de Rawls, se
aproxima, em parte, da esboçada no referido diálogo. Para isso verificar, leiam-se os
três elementos características desta concepção-modelo:
a) Primeiro, e implícito na idéia de uma concepção pública de justiça, trata-
se de uma sociedade na qual cada um aceita, e sabe que os demais
também aceitam, a mesma concepção política de justiça (e, portanto, os
mesmos princípios de justiça política). (RAWLS, 2003, p. 11); b) Segundo, e
implícito na idéia de regulação efetiva por uma concepção pública de
justiça, todos sabem, ou por bons motivos acreditam, que a estrutura básica
da sociedade [...] respeita esses princípios de justiça. (RAWLS, 2003, p. 12);
c) Terceiro, e também implícito na idéia de regulação efetiva, os cidadãos
têm um senso normalmente efetivo de justiça, ou seja, um senso que lhes
permite entender e aplicar os princípios de justiça publicamente
reconhecidos, e, de modo geral, agir de acordo com o que sua posição na
sociedade, com seus deveres e obrigações, o exige. (RAWLS, 2003, p. 12)
64
Porém, diferentemente da preocupação platônica, Rawls pretende obter a
unidade social voluntariamente, mediante um acordo contratual, utilizando das idéias
de posição original (original position) e de consenso sobreposto (overlapping
consensus), sem fazer uso de uma concepção abrangente de bem (como a de
Platão). Nestas condições, é que se supõe a possibilidade de, na modernidade,
obter-se uma sociedade bem-ordenada.
Assim, o filósofo pondera que esta sociedade deve possibilitar uma base de
unidade social, sendo necessário estabelecer “[...] um ponto de vista aceito por
todos, a partir do qual os cidadãos podem arbitrar suas exigências de justiça política,
seja em relação a suas instituições políticas ou aos demais cidadãos.(RAWLS,
2003 p. 12). O objetivo é produzir a afinidade entre os cidadãos num sentido forte”,
sem, ao mesmo tempo, vinculá-los a concepções abrangentes. Isso seria alcançado
porque os cidadãos possuem uma identidade blica que os vincula a um
compromisso político comum de afirmar e exercer a mesma concepção política de
justiça (political conception of justice).
A unidade social, entendida dessa maneira, visa equacionar as dificuldades
decorrentes da aceitação do pluralismo de doutrinas irreconciliáveis, que é um dado
histórico que não tende a desaparecer em contextos sociais que asseguram as
liberdades básicas e instituições livres (caso das sociedades democráticas
modernas).
Descreve-se a concepção-modelo, sob análise, com os citados elementos,
porque numa sociedade em que as pessoas não estão motivadas a aceitar
princípios de justiça blica comuns, seja porque eles não são claros
suficientemente, seja porque seus governantes não os levam a sério, a opção
resultante é a -vontade, a desconfiança, o descrédito, a não-cooperação, e a
priorização da defesa e da ampliação do campo de interesses privados. Numa
situação tal, em que um governo se organiza com mais de uma medida para
atribuição de direitos e deveres aos cidadãos e a seus grupo sociais ou que a
medida não é suficientemente clara, os problemas da justiça se tornam praticamente
insolúveis, que confusão quanto à noção de mérito/direito/expectativas
legítimas.
Por fim, deve-se considerar que a idéia formal de sociedade bem-ordenada
ganha conteúdo depois definidos os termos da cooperação social (princípios de
65
justiça). A partir daí ela passa a ser uma idéia normativa (reguladora) de uma
democracia constitucional que pretende ser concretizada como ideal político de
sociedade bem-ordenada, que será delineado no terceiro capítulo.
3.3 A estrutura básica da sociedade
O ideal de justiça rawlsiano é produzir uma sociedade bem-ordenada por
princípios de justiça, acerca das questões constitucionais fundamentais (liberdades
básicas) e de justiça social (igualdade/diferença), que sejam reciprocamente
reconhecidos. Segundo ele, representa-se a maneira mais razoável de formular esse
ideal com a idéia de “sociedade como sistema eqüitativo de cooperação”, que
considera as pessoas livres e iguais.
Tem-se o ideal (sociedade política bem-ordenada), a idéia organizadora-
central da cultura pública moderna (sistema eqüitativo de cooperação) e as pessoas
como agentes livres e iguais. Mas, qual objeto será ordenado por essas
concepções?
No item 2.2 fez-se referência a uma divisão entre os âmbitos de incidência de
direitos/deveres, dividindo-os entre os que se referem: a) à própria pessoa; b) à
outra pessoa privada; b) a grupos familiares, comunidades ou associações, em
razão da afinidade; c) às instituições políticas e sociais; d) à humanidade; e, e) ao
meio ambiente.
Tomando-se alguns desses direitos/deveres como prioritários para a
organização da sociedade, ter-se-á princípios de justiça com formas e conteúdos
diferentes. Essa priorização pode ser denominada de objeto de incidência da idéia
de justiça. Além desse elemento limitador, dois outros a serem considerados: o
espacial e o temporal.
Em face do que se comentou na apresentação da idéia de sociedade como
sistema eqüitativo de cooperação, percebe-se que Rawls pretende “[...] equilibrar os
dois tipos de razões morais.” (VITA, 2000, p. 30). Assim, de um lado, ele atribui
prioridade “[...] às liberdades civis políticas em face de considerações de igualdade
distributiva e de utilidade geral [...]” (VITA, 2000, p. 30) e, de outro, concebe:
66
[...] instituições substancialmente mais igualitárias do que as que hoje
conhecemos e que, ainda assim, não façam exigências motivacionais que
não são razoáveis esperar que os indivíduos possam honrar. (VITA, 2000,
p. 37)
A preocupação em equilibrar estas razões, tomando a estrutura básica da
sociedade (basic strcuture) como objeto primário da justiça, deve-se ao fato que ela
pode tanto viabilizar, quanto inviabilizar a realização dos projetos de vida boa dos
cidadãos. Rawls, pondera, aliás, que grande parte dos debates modernos sobre a
maneira de ordenar bem a sociedade decorrem da preocupação com os efeitos
deste objeto. Como destaca o autor:
Que tal questão é realmente fundamental, comprova-o o fato de ter sido
foco da crítica liberal à aristocracia nos séculos XVII e XVIII, da crítica
socialista à democracia liberal constitucional dos séculos XIX e XX e, no
presente momento, do conflito entre liberalismo e conservantismo a respeito
do direito à propriedade privada e da legitimidade (em contraposição à
eficiência) das medidas políticas sociais ligadas ao que passou a ser
chamado de welfare state. É essa questão que determina os limites iniciais
da questão. (RAWLS, 2000a, p. 65)
Mas, qual é a descrição feita por Rawls desse objeto, que fomenta,
historicamente, a divisão política e social? Para ele, trata-se da:
[...] maneira como as principais instituições políticas e sociais da sociedade
interagem formando um sistema de cooperação social, e a maneira como
distribuem direitos e deveres básicos e determinam a divisão das vantagens
provenientes da cooperação social no transcurso do tempo (Teoria, §2). A
Constituição política com um judiciário independente, as formas legalmente
reconhecidas de propriedade e a estrutura da economia (na forma, por
exemplo, de um sistema de mercados competitivos com propriedade
privada dos meios de produção), bem como, de certa forma, a família, tudo
isso faz parte da estrutura básica. A estrutura básica é o contexto social de
fundo dentro do qual as atividades de associações e indivíduos ocorrem.
Uma estrutura básica justa garante o que denominamos de justiça de fundo
[background justice]. (RAWLS, 2003, p. 14)
Esta opção de tomar a estrutura básica da sociedade como objeto primário da
justiça atribui caráter social ao contratualismo rawlsiano, já que ela (a estrutura
básica) é pensada como o instrumento da cooperação social e como preservadora
das liberdades básicas individuais. Por conseguinte, à proposta do autor não se
aplica a crítica feita aos libertários (para os quais a estrutura básica da sociedade
não ocupa uma função essencial na realização da justiça, que a função do Estado
e de suas agências é regular as atividades individuais para promover a igualdade
formal de oportunidades) e à efetuada aos utilitaristas clássicos (de que é exigível da
67
estrutura básica a realização de um mínimo social para a promoção da maximização
do bem-estar de todos, podendo sacrificar-se alguns interesses particulares quando
isso for necessário), que seu intento é o de mediar as reivindicações de bem
individual e comum.
Note-se que a concepção-modelo de estrutura básica da sociedade não
ocupa o espaço da sociedade civil, mas, preponderantemente, o do Estado e da
economia. Quando se diz que a teoria da justiça como eqüidade é política, quer ser
dizer também que o seu objeto imediato de regulação é o arranjo das instituições
públicas, especialmente, como mencionado, o Estado e a economia.
59
Então, o elemento que poderá motivar a união social e que deverá ser
julgado, em primeiro lugar, na atribuição e na divisão de direitos/deveres aos
cidadãos e às suas associações/comunidades, é a estrutura básica da sociedade.
Como mencionado inicialmente, esse objeto de incidência da justiça é limitado
em dois sentidos: a) espacial; e, b) temporal.
Quanto ao limite espacial, Rawls indica haver três níveis de consideração da
justiça: a) o da justiça local, cujos princípios se aplicam diretamente às instituições e
associações não-públicas; b) o da justiça doméstica, em que eles incidem na
estrutura básica da sociedade; e, c) o da justiça global, em que eles são aplicáveis
ao direito internacional. Pelo considerado anteriormente, infere-se que o nível de
aplicação do objeto primário da justiça é o doméstico. No entanto, isso não exclui a
regulação secundária dos outros níveis. Tanto é assim, que o filósofo sugere que os
princípios de justiça são primeiramente aplicáveis à estrutura básica, depois aos
indivíduos e suas associações e comunidades, e, por último, às considerações
acerca da justiça entre os povos.
Ao restringir a argumentação à justiça doméstica, evitam-se as dificuldades
de lidar com os indivíduos que não possuam meios institucionais para apresentarem
59
A delimitação destes espaços (público e não-público) serve para indicar sobre qual deles os
princípios de justiça incidirão com maior intensidade. O que se pode dizer como propriamente público
é o âmbito regulador dos princípios de justiça, ou seja o “domínio do político”, do acordo razoável que
deve constituir o consenso sobreposto que afetará a estrutura básica da sociedade. Contudo, isso
não exclui que espaços, muitas vezes considerados não-públicos, não sejam por eles afetados. Um
exemplo disso é o que ocorre com associações (como as igrejas e as universidades) e com a
instituição da família, as quais compõem a estrutura básica da sociedade e estão limitadas pelos
valores do “domínio do político” (embora tais valores políticos não se apliquem à “vida interna” dessas
instituições da estrutura básica). Nesse sentido, Rawls assevera que “uma concepção política não
nega a existência de outros valores que se aplicam às associações, à família e à pessoa; tampouco
que os valores políticos são totalmente separados desses valores e sem qualquer relação com eles.”
(RAWLS, 2003, p. 260-1).
68
suas reivindicações. É que uma sociedade só será considerada democrática se
todas as pessoas puderem exercer suas duas “faculdades morais” de maneira
efetiva.
Quanto ao limite temporal, o conceito está limitado a questões e problemas
presentes para a justiça, não havendo margem para solução de questões em
alguma ocasião no futuro. Nesse sentido, o arranjo da estrutura básica não prioriza,
inicialmente, a discussão sobre a impossibilidade das pessoas não serem
cooperativas num certo momento (como os deficientes por razão de doenças ou
acidentes temporários, etc.). Também se exclui dessa definição inicial, por exemplo,
a necessidade de estabelecer alguma forma de atendimento médico normal ou de
poupança que se deveria efetuar para garantir a vida das gerações futuras (justiça
entre gerações). Essas limitações são feitas para que a estrutura básica não seja
arranjada de acordo com um rol de necessidades básicas (como o faz utilitarismo
clássico), mas sim à luz da atribuição e distribuição de bens primários compatíveis
com a idéia de cooperação social.
60
A maneira de elencar os bens primários (primary goods) e de priorizá-los
numa visão coerente de justiça política, compatível com a proteção dos direitos
humanos, permite promover o citado “meio-termo” (entre autonomia privada bem
não-público – e, soberania popular – bem-comum), de maneira que, para isso, deixa-
se de antepor, na decisão acerca dos princípios de justiça que serão organizados na
60
O utilitarismo utiliza a idéia de bens primários para estabelecer uma base comum de comparação
entre as reivindicações individuais. Rawls os utiliza com o mesmo objetivo, porém, a lista adiante
apresentada, não deriva de uma concepção de pessoa, originária de uma doutrina abrangente, mas
de uma concepção política que a considera (a pessoa) como um cidadão (ideal) de uma sociedade
democrática bem-ordenada. Sobre essa discussão não se tecerão comentários e, por isso, restringir-
se-á a elencá-los. Repita-se: a lista de bens primários é construída a partir de uma perspectiva
política (portanto, não-psicológica, não-social, não-histórica, não-metafísica), que visa identificar como
os planos racionais de vida, das pessoas livres e iguais e normalmente cooperativas, poderiam ser
satisfeitos numa sociedade bem-ordenada. É sobre eles que recaem as escolhas das pessoas
representativas na posição original, na definição dos princípios de justiça para ordenar a estrutura
básica da sociedade. A lista não é exaustiva, mas pode ser enunciada da seguinte maneira:
“Distinguimos cinco tipos de bens primários: (I) Os direitos e liberdade básicos: as liberdades de
pensamento e de consciência, e todas as demais (§13). Esses direitos e liberdades são condições
institucionais essenciais para o adequado desenvolvimento e exercício pleno e consciente das duas
faculdades morais [nos dois casos fundamentais] (§13.4). (II) As liberdades de movimento e de livre
escolha de ocupação sobre um fundo de oportunidades diversificadas, oportunidades estas que
propiciam a busca de uma variedade de objetivos e tornam possíveis as decisões de revê-los e
alterá-los. (III) Os poderes e prerrogativas de cargos e posições de autoridade e responsabilidade.
(IV) Renda e riqueza, entendidas como meios polivantes (que têm valor de troca) geralmente
necessários para atingir uma ampla gama de objetivos, sejam eles quais forem. (V) As bases sociais
do auto-respeito, entendidas como aqueles aspectos das instituições básicas normalmente essenciais
para que os cidadãos possam ter um senso vívido de seu valor enquanto pessoas, e serem capazes
de levar adiante seus objetivos com autoconfiança.” (RAWLS, 2003, p. 82-3).
69
posição original, qualquer necessidade que possa determinar a prevalência de
alguma doutrina abrangente de bem (por exemplo, a doutrina utilitarista clássica, que
sugere a distribuição de riquezas no tratamento das necessidades).
É evidente que as questões relativas a um “mínimo social”, à justiça entre
gerações e à proteção das pessoas que não podem participar da cooperação social
por motivos alheios às suas vontades não deixam de ser problemas importantes a
serem resolvidos pela justiça como eqüidade. Porém, tal solução deve ser pensada
a partir dos termos de cooperação expressos nos princípios de justiça política e não
a partir de uma doutrina abrangente, como antes mencionado, que não é passível de
conquistar a adesão de outras doutrinas abrangentes.
61
3.4 A estrutura e a modelação da posição original
Partindo da idéia organizadora central da sociedade como sistema eqüitativo
de cooperação entre pessoas livres e iguais, a questão que se coloca agora é saber
quais seriam os termos que regulariam a estrutura básica de uma sociedade bem-
ordenada.
Estes termos não são definidos a partir de uma lei divina, ou de uma lei
natural anterior,
62
mas, por meio de “[...] um acordo entre cidadãos livres e iguais
unidos pela cooperação, à luz do que eles consideram ser suas vantagens
recíprocas, ou seu bem [...].” (RAWLS, 2003, p. 20).
A idéia de acordo sobre os termos de cooperação social aproxima-se,
exemplificativamente, da teoria clássica do contrato social de John Locke. Porém,
dela se diferencia em alguns aspectos. Enquanto a teoria lockeana possui uma base
individualista que favorece uma doutrina abrangente (o liberalismo clássico) e que
determina uma forma de governo político, o contratualismo rawlsiano é mais abstrato
(ou seja, por ser fundamentado politicamente, entendendo-se como tal, a
61
Na apresentação da posição original, verificar-se-á que esses problemas circunstanciais não estão
situados na sua primeira etapa, mas poderão ser incluídas nas etapas posteriores em que o véu de
ignorância” é menos espesso.
62
Rawls imagina outras possibilidades de escolha sobre como ter princípios de justiça, as quais
podem ser construídas de maneiras diferentes, na medida em que se alteram a concepção de
pessoa, sua racionalidade, o tipo de idéia organizadora central da sociedade e o tipo objeto primário
da justiça. Exemplos dessas opções podem ser encontrados no §25 de Uma Teoria da Justiça.
70
argumentação que nega privilegiar qualquer doutrina abrangente). Portanto, é
decididamente hipotético e ahistórico:
(I) É hipotético na medida em que nos perguntamos o que as partes
(conforme foram descritas) poderiam acordar, ou acordariam, e não o que
acordaram.
(ll) É ahistórico na medida em que não supomos que o acordo tenha sido
concertado alguma vez ou venha a ser celebrado. E mesmo que o fosse,
isso não faria nenhuma diferença. (RAWLS, 2003, p. 23)
Por que o acordo precisar ter estas condições?
Primeiramente porque não faz sentido falar em um contrato social público e
real sobre princípios de justiça que seriam legitimados por todos os cidadãos num
processo de democracia direta. É fato que além das dificuldades instrumentais e do
grau de profundidade que a questão envolve, ainda as dificuldades decorrentes
do fato do pluralismo e dos conflitos morais insolúveis que o acompanham. Da
mesma maneira, o modelo representativo não oferece melhores condições de obter
um acordo legítimo, já que o sistema eleitoral, não poucas vezes, o desconfigura.
63
Em segundo lugar, porque o acordo sobre os termos de cooperação social
deve ser unânime, ou seja, dada a extensão e a importância da definição dos
princípios de justiça, eles devem ser legitimados por todos os cidadãos razoáveis, o
que só poder ser alcançado no plano teórico. Mas, que acordo é este?
Será que essa posição é uma assembléia geral que inclui num determinado
momento todas as pessoas que vivem num certo tempo? Não. Será uma
reunião de todas as pessoas existentes ou possíveis? Certamente não.
Podemos, por assim dizer, entrar nela e, em caso afirmativo, quando?
Podemos entrar nela em qualquer momento. Como? (RAWLS, 2003, p. 122)
O próprio autor responde que nela entramos “por meio do raciocínio,
respeitando as restrições do modelo, citando apenas razões admitidas por essas
restrições.“ (RAWLS, 2003, p. 122). Por conta disso, o acordo na posição original
(original position) deve ser entendido como “[...] um procedimento de representação
63
Nesse sentido, leia-se o comentário de Rawls sobre os efeitos de um sistema eleitoral que
assegura a igualdade formal do direito de votar e de ser votado: “Em Buckley, a Corte corre o risco de
endossar a visão de que uma representação eqüitativa é aquela que corresponde à representação
segundo a influência exercida efetivamente. De acordo com essa visão, a democracia é uma espécie
de competição regulada entre as classes econômicas e os grupos de interesses, na qual é apropriado
que o resultado reflita a capacidade e a disposição de cada qual usar seus recursos financeiros e
seus talentos, reconhecidamente muito desiguais, para fazer sentir sua influência.” (RAWLS, 2000a,
p. 418-9).
71
ou um experimento mental para os propósitos de esclarecimento público [...]”
(RAWLS, 2003, p. 24). Isso quer dizer que a posição original não existe histórica e
materialmente. Ela existe somente como idéia, como categoria teórica que tem a
função de mediar conflitos e de selecionar princípios. Mas, nem por isso ela deixa de
ser modelada por nós, de acordo como o que consideramos razoável. Ela será tão
mais plausível quanto mais se aproximar das tendências do mundo social e dos
fatos e crenças gerais da cultura pública moderna.
Logo, somos nós (eu e você)
64
que estabelecemos como a posição original
será criada. E fazemos isso porque somos capazes de pensar neste acordo (temos
as condições, neste momento, de fazer isso), ou seja somos capazes de conceber
um “[...] dever de civilidade pública, que nos leva [...] a argumentar dentro dos limites
estabelecidos pelo princípio de legitimidade quando se trata de elementos
constitucionais essenciais [...]” (RAWLS, 2003, p. 129-30). Para tanto, urge que,
antes de estabelecer os princípios de justiça, concordemos sobre o que sejam estes
limites à legitimação das questões básicas da justiça. Devemos, portanto, concordar
primeiro sobre “[...] as diretrizes da discussão pública e sobre que critérios decidem
que informações e conhecimentos são relevantes na discussão de questões
políticas [...]” (RAWLS, 2003, p. 126).
Assim, evitando os conflitos insolúveis que envolvam nossas convicções
morais pessoais, podemos, por meio das estratégias metodológicas referidas no
capítulo I, fixar as condições mutuamente aceitas para a construção de um segundo
acordo: o acordo sobre os princípios de justiça. Desse modo, o primeiro acordo
teórico por s alcançado é o que firma as bases da validade do segundo acordo
sobre os princípios de justiça e assegura que eles serão legitimados teoricamente.
Sem o primeiro, o segundo não pode se constituir. Portanto, as condições aceitas no
primeiro vinculam o resultado do segundo.
Nesse primeiro, supõe-se que reconhecemos e aceitamos os fatos gerais da
cultura pública, as características da filosofia política moderna (entre outros aspectos
gerais da tradição moderna, comentados no primeiro capítulo), de maneira que é
razoável supor que: a) somos capazes de aceitar discutir a ordenação da igualdade
e da liberdade em um nível de abstração (político) que não comprometa as nossas
64
Esclarece-se, inicialmente, que, neste item e no próximo, opta-se, de maneira mais recorrente, pela
alternância de vozes, visto que Rawls também usa desta estratégia para construir sua interlocução
com o leitor e para dar verossimilhança a suas hipóteses.
72
crenças particulares sobre como devemos ter uma vida boa; b) se pretendemos
obter um acordo, estamos dispostos a honrá-lo se o constituirmos legitimamente; c)
podemos ter um acordo legítimo se ele for reciprocamente vantajoso, excluindo-
se as tentativas de se impor suas cláusulas pela força (coação) ou pela fraude; d) na
decisão do pacto, não devemos discriminar as pessoas em razão de sua cor, religião
ou opção sexual, etc, ou não devemos atribuir mais chances a alguns de definir as
cláusulas que afetarão a vida de todos, a partir de uma posição privilegiada na
estrutura básica da sociedade, ou seja, “[...] parece razoável e geralmente aceitável
que ninguém deva ser favorecido ou desfavorecido pela sorte natural ou por
circunstâncias sociais em decorrência da escolha de princípios.” (RAWLS, 2002a, p.
20).
Como é de supor não é possível um acordo válido e tão profundo, a o ser
hipoteticamente. Ou seja, tal acordo não é viável senão na posição original. Como
ela é uma idéia que estamos estipulando, podemos também condicionar seus
objetivos e muito mais. Assim, podemos estipular condições de igualdade, definindo
que as pessoas (parties) que deliberarão sobre os princípios de justiça estarão
equitativamente (ou simetricamente) situadas, de maneira que o princípio da
legitimidade democrática esteja assegurado. Por conta disso, parece natural que
devamos abstrair algumas circunstâncias que deturpariam as condições que
aceitamos como razoáveis, tais como aquelas que dizem respeito a “[...] posições
vantajosas de negociação que, com o passar do tempo, inevitavelmente surgem em
qualquer sociedade como resultado de tendências sociais e históricas cumulativas.”
(RAWLS, 2003, p. 22). Mas, não é só isso que é abstraído, ou que deve ser
ignorado para que as condições razoáveis sejam mantidas. É que, dado o fato do
pluralismo, não é crível que haja acordo se as partes que deliberarão na posição
original conhecerem as concepções particulares de bem (incomensurável) que os
seus representados professam, de forma que “[...] não se permite que as partes
conheçam as posições sociais ou as doutrinas abrangentes específicas das pessoas
que elas representam.” (RAWLS, 2003, p. 21). Além disso, e pelo mesmo motivo,
“[...] as partes ignoram a raça e grupo étnico, sexo ou outros dons naturais como a
força e a inteligência das pessoas.” (RAWLS, 2003, p. 21-2). Tudo isso se deve ao
fato de que o é possível alcançar qualquer tipo de acordo a partir de razões que
não sejam públicas, comensuráveis e amplamente aceitas. Rawls afirma que:
73
[...] se somos razoáveis, uma de nossas convicções mais ponderadas é que
o fato de, digamos, ocuparmos uma determinada posição social não é uma
boa razão para aceitarmos, ou esperar que os outros aceitem, uma
concepção de justiça que favoreça os que ocupam essa posição. Se somos
ricos, ou pobres, não podemos esperar que todos os outros aceitem uma
estrutura básica que favoreça os ricos ou os pobres, simplesmente por essa
razão. Para modelar esta e outras convicções semelhantes, não permitimos
que as partes conheçam a posição social das pessoas que elas
representam. A mesma idéia se estende a outros atributos das pessoas por
meio do véu de ignorância. (RAWLS, 2003, p. 25)
Com isso, mediante este procedimento de abstração, que Rawls dá o nome
de “véu de ignorância” (veil of ignorance), estabelecemos condições eqüitativas para
as partes e restrições aceitáveis para as razões com base nas quais elas poderão
propor os princípios de justiça, para uma sociedade bem-ordenada. Noutras
palavras, essa modelação é o fator razoável que limita as concepções racionais das
pessoas fictícias que habitam a posição original. Daí a afirmação que “[...] o razoável
tem prioridade sobre o racional e o subordina inteiramente. Essa prioridade expressa
a prioridade do justo [...]” (RAWLS, 2003, p. 115).
Recapitule-se. Rawls tem uma esperança razoável (realística utópica) de que
as pessoas de “carne e osso” (nós – eu e você) podem reconhecer as idéias
intuitivas da cultura pública moderna e ordená-las coerentemente para resolver,
legitimamente, o conflito acerca do arranjo da igualdade e da liberdade. Para solvê-
lo, é necessário abandonar as discussões insuperáveis e procurar fixar um ponto de
acordo razoável, que seja capaz de alcançar um acordo unânime. Tal acordo é
possível teoricamente, em elevado grau de abstração. Para que ele o perca seus
pressupostos culturais, utilizamos de várias concepções-modelos que, organizadas
adequadamente, possibilitam a escolha dos princípios de justiça mais razoáveis para
reger o mundo social de uma democracia constitucional ideal. Ou seja, a partir de
um ponto de vista real (o nosso), estipulam-se as características e os elementos das
concepções-modelos (primeiro acordo). Nessa primeira fase, reconhece-se que os
cidadãos livres e iguais são capazes de honrar princípios de justiça. Isso porque,
toma-se como fato geral da psicologia (razoável) que pessoas que vivem em
sociedades justas tendem a cumprir os termos de cooperação que a regulam.
65
65
Nesta etapa da definição ideal a razoável dos princípios de justiça as partes na posição original não
levam em conta os efeitos do que Rawls denomina de “psicologias especiais” e dos anseios
individuais de dominação, inveja, má-vontade, etc. Tais circunstâncias somente são consideradas na
avaliação final teoria da justiça, ou seja, quando é testada sua estabilidade. As psicologias especiais
são descartadas na discussão ideal dos princípios porque elas não contém idéias ou ideais políticos e
não oferecem nenhum tipo justificativa para cooperação social. Poder-se-ia dizer, por exemplo, que,
74
Portanto, a partir do ponto de vista real, pode-se pensar que não é absurdo supor
que numa sociedade ideal (bem-ordenada) os cidadãos se comportem dessa
maneira. Desse ponto de vista, também se reconhece, em contrapartida, que os
cidadãos também têm interesses de ordem moral, religiosa e filosófica que são
conflituosos. É justamente por isso (por haver reivindicações conflitantes, que podem
ser harmonizadas quanto a questões fundamentais) que se cria um procedimento de
representação modelador de todos os pressupostos razoáveis até aqui admitidos.
Depois de as pessoas reais (eu e você) concordarem em pensar como
cidadãos ideais de uma sociedade bem-ordenada, que pretendem estabelecer os
termos de cooperação social e reconhecer os limites razoáveis para o acordo sobre
estes termos, dá-se mais um passo em direção ao ponto mais abstrato em que
todos, unanimemente, chegariam ao consenso. Nesta última etapa, as pessoas
reais, refletindo como cidadãos razoáveis, escolhem a posição original como o
ambiente para que os seus representantes artificiais (as pessoas na posição original)
escolham os princípios.
Além disso, as pessoas reais, pensando como cidadãos ideais, estabelecem
quais são as condições para que seus representantes, na posição original, façam a
escolha mais razoável. Isso é feito, ao situá-los (os representantes) equitativamente
e ao reduzir, com o emprego do “véu de ignorância”, o que por eles seconhecido
e considerado como fatos e razões a serem avaliados. Permanece transparente para
eles somente os elementos mais característicos da cultura pública moderna, entre os
quais, uma lista de bens primários e um menu de princípios, além de todas as
limitações e condições até agora aceitas.
por motivos psicológicos comprovados, os homens usualmente são egoístas e que a unidade social
somente é possível por conveniência quando vantagens recíprocas. Ora, se isso fosse aceito,
pressupor-se-ia que os cidadãos seriam incapazes de ter uma concepção de bem, ou seja não
possuiriam interesses superiores. Seus objetivos se restringiriam a pensar no seu próprio bem. Para
Rawls, isto está descartado na construção da teoria da justiça, que ele pressupõe que nós somos
capazes de pensar no bem racional dos cidadãos e no bem razoável dos termos de cooperação
social. Se a posição original é o experimento hipotético em que podemos considerar tudo que de
mais justo e razoável nas idéias da cultura pública moderna, porque deveríamos incluir o que não é
justo nem razoável (como o egoísmo e os ideais não-públicos)? Se se pode pensar no que é mais
justo, porque pensar no que pode ser menos justo, se concordamos em investigar a justiça”? É por
parecer um contra-senso, então, que Rawls não inclui as psicologias especiais como elemento
conhecido das partes na posição original. Evidentemente, que elas são consideradas. Porém, não
para definir os princípios de justiça, mas para testar ou mostrar se tais princípios servem para
cidadãos razoáveis. Talvez se conclua que os princípios de justiça são muito exigentes e que o nem
cidadãos razoáveis, nem o mundo social estão preparados para realizá-los futuramente. Mas isto é
uma outra questão, ou seja uma questão de estabilidade e viabilidade dos princípios, que será
considerada no terceiro capítulo.
75
Com isso, está preparado o ambiente para se produzir um segundo acordo: o
acordo sobre os termos razoáveis de cooperação para uma sociedade cooperativa
que considera seus cidadãos como livres e iguais.
Mas, por que precisamos disso tudo? Não se poderia dispensar o aparato
teórico e discutir os problemas da justiça a partir da realidade “nua e crua”? Segundo
Audard, esta não é uma boa opção, já que:
Apenas raramente somos essas pessoas racionais e livres, imparciais e
objetivas, mas o único meio de saber onde está a justiça nos casos
particulares, sem fazer intervir princípios transcendentes nem verdades
reveladas e autoritárias, é adotar o ponto de vista desses contratantes
imaginários e artificiais numa situação original ideal e raciocinar segundo os
princípios que eles escolheriam. (AUDARD, 2002, p. XXXIII)
A descrição feita até aqui não realizou a autonomia plena dos cidadãos,
que, de maneira geral, somente se apresentou o primeiro acordo sobre a estrutura e
a modelação da posição original.
3.5 A seleção dos princípios de justiça
Aceitos os argumentos apresentados no capítulo I, temos que as concepções-
modelos auxiliam a estabelecer os princípios de justiça (first principles of justice).
Assim, podemos constituir o conteúdo dos termos eqüitativos da cooperação para
regular a estrutura básica da sociedade em que os cidadãos são considerados livres
e iguais e que podem viver numa sociedade bem-ordenada, na qual todos sabem e
agem de acordo com os princípios de justiça selecionados voluntariamente.
Fazemos isso para responder à questão política fundamental para o ideal de
perfeição democrática, que é o de arranjar os valores da igualdade e da liberdade
numa concepção de justiça aceita unanimemente. A posição original é a concepção-
modelo que pretende viabilizar esse anseio. Uma vez acertados os termos razoáveis
da posição original (item 3.4) e considerada a descrição das partes, o tipo de
motivação moral que elas têm, o objeto da justiça e o tipo de sociedade na qual
serão aplicados os princípios, resta, então, selecioná-los.
O procedimento de seleção se a partir de uma lista de bens primários
estipulados como base de comparação entre a reivindicação das pessoas e
76
mediante a apresentação de um menu de princípios de justiça. Assim, as partes, na
posição original, conhecendo somente os fatos gerais da cultura pública moderna e
as referidas opções, comprometidas na defesa dos cidadãos que elas representam,
optam pelos princípios comuns de justiça mais razoáveis.
66
Dentre as opções possíveis, Rawls acredita que dois seriam os princípios
selecionados, cuja redação é a seguinte:
a. Todas as pessoas têm igual direito a um projeto inteiramente
satisfatório de direitos e liberdades básicas iguais para todos, projeto este
compatível com todos os demais; e, neste projeto, as liberdades políticas, e
somente estas, deverão ter seu valor eqüitativo garantido.
b. As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois
requisitos; primeiro, devem estar vinculadas a posições e cargos abertos a
todos, em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades; e, segundo,
devem representar o maior benefício possível aos membros menos
privilegiados da sociedade. (RAWLS, 2000a, p. 47-8)
66
Aqui cabe enfatizar a distinção entre “racional” e “razoável”. Esses termos são complementares e
referem-se às qualidades ou às virtudes da pessoa na consideração da realização de seus fins
últimos. As pessoas não são só racionais e não são vistas, na posição original, como somente
importando-se com os seus fins últimos, ou como o seu benefício próprio, porque assim “os agente
racionais tornam-se quase psicopatas quando seus interesses se resumem a benefícios para si
próprios.” (RAWLS, 2000a, p. 95). As pessoas são racionais na consideração sobre o seu senso de
“bem” e são razoáveis com relação ao senso de “justiça”. Com relação ao “bem”, ao menos
parcialmente, pretendem afirmar alguma “forma verdadeira” de princípio de ão que normalmente
não é público da maneira como o razoável é, ou seja, quanto à maneira como é apresentada sua
justificativa pública. quanto ao “justo” propõem uma “forma verossímil” de valores públicos
aceitáveis por todos os cidadãos razoáveis, reconhecendo que, por mais racionais e consistentes que
sejam suas razões, elas não tem mais chance de serem mais verdadeiras na formação de um
consenso sobre justiça (limites do juízo). Portanto: “As pessoas são razoáveis em um aspecto básico
quando, entre iguais, por exemplo, estão dispostas a propor princípios e critérios como termos
eqüitativos de cooperação e a submeter-se voluntariamente a eles, dada a garantia de que os outros
farão o mesmo. Entendem que essas normas são razoáveis a todos e, por isso, as consideram
justificáveis para todos, dispondo-se a discutir os termos eqüitativos que outros propuserem.”
(RAWLS, 2000a, p. 93). Como já mencionado no tópico que trata da concepção-modelo da sociedade
como sistema eqüitativo de cooperação as idéias de benefício mútuo e de altruísmo estão presentes
na teoria rawlsiana da justiça, unidas na idéia de “reciprocidade”. uma conciliação entre elas,
posto que as pessoas não são vistas só como razoáveis, nem como racionais, mas como
possuindo ambas as características. Sobre esse aspecto (conciliação) impõe considerar que o
razoável ocupa a função limitadora e reguladora para determinação dos princípios de justiça em
relação ao racional. Trata-se do que Rawls denomina de prioridade do justo em relação ao bem. Isso
se evidencia na organização da posição original em que se considera que os termos razoáveis estão
expressos e limitam o procedimento da posição original, situando, a partir daí, as pessoas, que são
consideradas como autônomas no sentido racional e, portanto, de maneira parcial. Somente depois
de deliberados os princípios de justiça, a partir dessas restrições que estabelecem o campo do
razoável, é que os cidadãos (não mais as pessoas) são considerados possuidores de autonomia
plena, ou seja, não de autonomia racional. É a partir daí, com os princípios estabelecidos para
ordenação da sociedade, que são pensadas, por exemplo, as instituições básicas da sociedade e as
virtudes cívicas. Assim: “Essa sociedade razoável não é uma sociedade de santos nem uma
sociedade de egoístas. É parte de nosso mundo humano comum, não de um mundo que julgamos de
tanta virtude que acabamos por considerá-lo fora do nosso alcance. No entanto, a faculdade moral
que está por trás da capacidade de propor ou de aceitar, e, depois, de motivar-se a agir em
conformidade com os termos eqüitativos de cooperação por seu próprio valor intrínseco é, mesmo
assim, uma virtude social essencial.” (RAWLS, 2000a, p. 98).
77
Note-se que a descrição das concepções-modelos, por si só, exclui princípios
que violariam a idéia de cidadãos iguais e livres, por exemplo. Apesar dessa
exclusão, outros princípios concorrem com os antes selecionados. Ilustrativamente,
poder-se-ia sugerir que um princípio que estabelece um mínimo social seria
compatível com as idéias até aqui sugeridas. A despeito disso, o filósofo argumenta
que tal princípio pode ensejar que as liberdades dos cidadãos ingressem na agenda
política das partes na posição original e que possam se tornar objeto de negociação.
No entanto, as liberdades básicas o consideradas como indispensáveis para que
a condição de deliberação e de exercício da razão blica seja exercida, de maneira
que seu sacrifício é injustificável, dada a suscetibilidade à violação ao princípio da
legitimidade do poder político, exigido numa democracia ideal.
Com isso, as partes selecionam o primeiro princípio (das liberdades básicas
iguais) como prioritário em relação ao segundo (lexical), para garantir o exercício das
duas faculdades morais, que elas são indispensáveis para o acordo político sobre
os elementos constitucionais essenciais (constitutional essentials), entre os quais, a
definição de como os cidadãos legitimarão suas leis e decidirão como distribuirão os
bens obtidos na cooperação social. Rawls assevera que:
Esses direitos e liberdades básicas protegem e garantem o campo de ão
necessário para o exercício das duas faculdades morais nos dois casos
fundamentais [...]: ou seja, o primeiro caso fundamental é o exercício dessas
faculdades para julgar a justiça das instituições básicas e das políticas
sociais; ao passo que o segundo é o exercício dessas faculdades na
tentativa de realizar nossa concepção do bem. Exercitar nossas faculdades
morais é essencial para nós enquanto cidadãos livres e iguais. (RAWLS,
2003, p. 64)
Ao se firmar, por exemplo, o valor eqüitativo das liberdades políticas,
assegura-se que todos os cidadãos possam, com iguais condições, influenciar as
decisões do governo e nele ocupar funções, independentemente de sua posição
social ou econômica, de maneira que nenhum bem econômico oferecido às partes
pode justificar que elas deixem de ter este igual poder democrático de legitimar as
regras públicas.
Por evidente, não se pode ignorar os efeitos da estrutura básica da sociedade
na vida dos indivíduos e de suas associações e comunidades, ao longo do tempo,
pois ela afeta a capacidade que eles possuem de conservar o referido poder de
78
legitimação. Por isso, uma vez protegidas prioritariamente as liberdades básicas, é
necessário estabelecer alguma forma de arranjo social que assegure não ocorrer
“[...] concentração excessiva da propriedade e da riqueza, sobretudo aquela que
leva à dominação política.” (RAWLS, 2003, p. 62).
Para que a idéia de igualdade democrática não pereça, urge fixar alguma
forma de distribuição de bens sociais e econômicos compatível com a proteção das
referidas liberdades básicas. É fato que algumas circunstâncias sociais limitam a
possibilidade de que todos os cidadãos tenham todos os bens primários de maneira
igual (no sentido material), especialmente aqueles vinculados às oportunidades
sociais, à renda e à riqueza. Então, embora a proteção das liberdades básicas iguais
seja essencial e inegociável, isso não ocorre com os bens citados acima, de maneira
que algum tipo de “perda” social será inevitável. Mas, qual será o tipo de igualdade
aceitável para o acesso a esses bens, ou quando a diferenciação entre os cidadãos
será legítima?
Na posição original, as partes estão situadas eqüitativamente, de maneira que
tal condição pode ser quebrada mediante uma justificativa mutuamente aceita
pelos contratantes. Ou seja, aplicando-se a idéia de reciprocidade, releva-se a
igualdade inicial, desde que todos os contratantes com isso concordem. Assim,
“tomando a igualdade como a base de comparação, aqueles que ganharam mais
devem tê-lo feito em termos que são justificáveis aos olhos daqueles que ganharam
o mínimo.” (RAWLS, 2002a, p. 163)
Em face disso, as pessoas que eventualmente sejam menos favorecidas na
distribuição desses bens primários possuem um poder de veto. Dito de outro modo,
se não for possível alcançar uma igual vantagem social, porque a igualdade material
de oportunidades (primeira parte do segundo princípio) o lhe garantiu, até porque
os cargos e posições sociais que ela oferece são escassos, é razoável supor que as
partes escolheriam alguma forma de proteção ao bem de seus representados (os
cidadãos), com o princípio da diferença (difference principle) (segunda parte do
segundo princípio). Logo, evitar-se-ia, por exemplo, que “[...] quando somos menos
afortunados, temos de aceitar as maiores vantagens dos outros como uma razão
suficiente para termos expectativas mais baixas ao longo de toda a nossa vida.”
(RAWLS, 2002a, p. 193).
Com relação à divisão desses bens primários, em vez de igualdade, utiliza-se
a idéia de reciprocidade (presente nas condições razoáveis estipuladas para a
79
deliberação das partes) e de vantagens mútuas razoáveis estabelecidas
eqüitativamente na posição original.
Escolhidos dessa maneira, os princípios de justiça passam a constituir a base
de respeito mútuo dos cidadãos que dividirão não a vida boa (e racional) que
cada um, a sua maneira, pretende realizar individual e socialmente, mas um bem-
comum razoável, que é o de ter regras comuns de cooperação, que ordenam a
estrutura básica de uma sociedade ordenada, ao longo da história, e tende a realizar
seu ideal político de reconciliar os cidadãos com o seu mundo social.
Esta é uma apresentação muito sucinta dos dois princípios de justiça. Foram
omitidas as comparações que o autor faz com o princípio da utilidade média restrita,
entre outras, tampouco se esgotou a interpretação das liberdades básicas e do
princípio da igualdade de oportunidades e da diferença. Na verdade, alguns desses
aspectos serão tratados no próximo capítulo, quando forem pertinentes.
Em que pese a abreviação argumentativa, é necessário considerar que
ambos os princípios têm valores políticos e visam o mesmo propósito que é o de
estabelecer as bases da cooperação social, que possibilite a concretização do ideal
de perfeição democrática. Isso é feito primeiro teoricamente, na primeira etapa da
posição original (aquela que de se tratou até agora, para a escolha dos princípios de
justiça). Depois, na medida em que o véu de ignorância se torna menos espesso,
especificam-se mais os dois princípios. Dessa feita, na medida em que os princípios
são aplicados na prática, ou seja, historicamente, eles vão assumindo os contornos
do ambiente real que passam a ordenar.
Numa segunda etapa (destinada ao legislador constituinte ou aos delegados,
como Rawls os denomina), definem-se as liberdades e direitos básicos
67
de uma
67
Embora o segundo princípio de justiça seja definido na primeira etapa da posição original, ele só
será incorporado às instituições sociais na terceira etapa. É que os princípios distributivos não são
compatíveis com o grau de rigidez e estabilidade que uma constituição deveria exigir. Aqui Rawls
parece pensar numa constituição duradoura como a americana, razão pela qual, numa carta política
pensada nessas circunstâncias, não seria conveniente incluir princípios de justiça distributiva
pensados num certo contexto, que poderiam sofrer alterações que demandassem alterações
relativamente ágeis pelo governo, por exemplo com relação à política econômica e os programas
sociais, de maneira que uma discussão para emendar a constituição poderia causar prejuízos sociais
irreparáveis. Aliás, parece aplicável à situação mencionada, como exemplo histórico que abaliza a
cautela de Rawls, a implantação do New Deal nos Estados Unidos, durante a crise das primeiras
décadas do século passado, em que o então presidente foi acusado de violação de certos direitos
constitucionais, relativos à regra de justiça distributiva. Ademais, a regra de distribuição depende,
sobremodo, de como determinada doutrina entende o direito à propriedade. Dessa maneira, com a
inclusão de tal princípio na constituição, é provável que certo tipo de organização social seja
favorecida em detrimento de outra que fosse mais adequada ao contexto da sociedade. É para evitar
conflitos e não para negar a importância dos bens primários relativos ao acesso à renda e à riqueza,
80
constituição democrática. Eles devem ser assegurados, por meio de um
procedimento político formal (e.g. igualdade do valor do voto) e materialmente justo
(igual possibilidade de influenciar e de participar diretamente das decisões políticas
importantes) para que a confecção de uma legislação justa seja possível. Da mesma
forma, outras liberdades básicas, vinculadas à proteção da concepção de bem dos
cidadãos, e as garantias próprias do Estado de direito devem ser asseguradas
formalmente (direitos negativos), para se constituir uma base efetiva e juridicamente
protegida de respeito mútuo.
Na terceira etapa, delimita-se a aplicação do segundo princípio ao plano
legislativo infraconstitucional e escolhem-se as políticas públicas apropriadas á
concretização da reciprocidade social. Assim, os legisladores ordinários ou
derivados, estabelecem a maneira de acesso à propriedade e aos meios de
produção, de acordo com o contexto histórico e social em que vivem.
68
Por fim, na quarta etapa, a judiciária, em que todas as informações estão
acessíveis às partes, define-se a aplicação dos princípios de justiça, considerando-
se todas as circunstâncias sociais e econômicas que serão avaliadas como justas ou
injustas a partir da definição das etapas anteriores. Mesmo com mais informações
nessa etapa o grau de discricionariedade (liberdade para tomar uma decisão,
segundo a amplitude das regras que as norteiam) para decidirem-se os conflitos
sociais é menor, porque limitado pelos princípios de justiça, pela constituição e pela
legislação infraconstitucional.
69
Esta seria a última etapa de concretização dos ideais
de uma sociedade bem-ordenada.
que Rawls não atribui a qualidade de “pública” ou de “privada” à propriedade nas duas primeiras
etapas da posição original (seleção dos princípios e formulação da constituição), possibilitando que
os cidadãos representativos, na terceira etapa do procedimento, decidam sobre esse assunto.
68
Rawls não trata o direito à propriedade privada como natural, como uma condição de atribuição de
valor e dignidade à pessoa. Pelo contrário, a consideração da propriedade é tratada de maneira mais
abstrata e restringe-se à constatação de que uma sociedade em que divisão entre trabalho e
meios de produção, em que tais bens necessitam ser produzidos em massa para que sejam
suficientes ao consumo, o que importa é o acesso à manutenção material da integridade física e
moral das pessoas, pouco importando como isso possa ser feito, se pela propriedade privada ou
social. Essa é a forma encontrada pelo autor para evitar os impasses insolúveis entre socialismo e
capitalismo.
69
Embora a obra de Rawls não seja direcionada propriamente aos especialistas das áreas jurídicas,
não se pode descuidar que suas considerações estão impregnadas de orientações interpretativas
para solução de conflitos sociais levados ao Judiciário. Para ilustrar uma dessas sugestões, basta
notar que o autor, ao tratar da importância das liberdades políticas, indica que os valores da
sociedade política devem ser considerados preponderantes em relação a outros, de ordem privada.
Tais questões não o facilmente solvíveis, que uma série de valores e circunstâncias necessitam
ser sopesados, especialmente quando o conflito envolve liberdades básicas iguais; mesmo assim,
não se pode ignorar a relevância do auxílio oferecido pelo autor.
81
Com isso, finaliza-se uma parte da apresentação da teoria. vários
esclarecimentos, repostas e objeções feitas a Rawls que não serão aqui
comentados.
70
Deixando estas questões de lado, importa agora investigar como as
idéias organizadas pela teoria podem se tornar práticas para bem ordenarem uma
sociedade.
70
Como referência, convém ressaltar a importância de algumas objeções. O próprio Rawls admitiu
que: “[...] Nas revisões feitas em 1975, tentei retirar certas deficiências da edição em língua inglesa.
[...] uma das mais sérias deficiências era a explicação da liberdade, cujos pontos fracos foram
apontados por H.L.A. Hart em sua discussão crítica feita em 1973. [...] fiz revisões para esclarecer
várias da dificuldades notadas por Hart. [...] Uma versão melhor pode ser encontrada em um ensaio
de 1982, intitulado Basic “Liberties and Their Priority [...]. Uma outra deficiência séria da edição
original em língua inglesa foi a análise dos bens primários. [...] fiz revisões para expressar essa
mudança de visão, mas essas revisões ficam aquém da exposição mais completa que fiz num ensaio
posterior, também de 1982, intitulado “Social Utility and Primary Goods”. (RAWLS, 2002a, p. XIV e
XVI). Ainda: “Para os que têm certa familiaridade com Teoria, as principais mudanças são de três
tipos; primeiro, mudança na formulação e no conteúdo dos dois princípios de justiça usados na teoria
da justiça como eqüidade; segundo, mudanças na organização do argumento a favor desses
princípios a partir da posição original; e, terceiro, mudanças em como a própria teoria da justiça como
eqüidade deve ser entendida: notadamente, como uma concepção política de justiça e não como
parte de uma doutrina moral abrangente.” (RAWLS, 2003, p. XVII).
82
4 A EFETIVAÇÃO DO IDEAL POLÍTICO DE SOCIEDADE BEM-ORDENADA
Para se efetivar o ideal político da justiça como eqüidade numa sociedade
bem-ordenada, é necessário avaliá-lo no plano da viabilidade (futura). Isso quer
dizer que uma concepção de justiça que não se preocupe com essa questão, de
duas, uma: ou é só utópica, porque não apresenta qualquer razão que faça crer que
ela se realizará em algum momento na história; ou é opressiva, porque supõe que
poderá se utilizar do poder político do público para impor seus termos.
Ao contrário, perguntando-se pela estabilidade e viabilidade de uma
concepção de justiça, investigando se ela se sustenta diante das tendências do
mundo real, é preocupar-se com a sua praticidade e com a sua legitimidade. Para
Rawls, uma concepção política liberal necessita desse tipo de avaliação porque não
pode impor-se pela força aos cidadãos razoáveis, tampouco pode ser impraticável.
De que adiantaria esforçar-se em justificar e legitimar os princípios na posição
original, se não fosse para esperar a adesão voluntária dos cidadãos razoáveis? Se
não fosse para obter uma adesão consensual, seria mais fácil e eficaz (no presente)
impor princípios à força! Por outro lado, de que valeria esmerar-se em justificar e
tentar implantar uma concepção de justiça que seria irrealizável, ou seja que fosse
absolutamente utópica e impraticável porque não os cidadãos, mas o próprio
mundo social não acenaria que tal concepção aconteceria na prática?
Então, o teste da “estabilidade” (stability) dos dois princípios de justiça,
escolhidos na posição original, completa o argumento em seu favor, ou seja, indica
se eles são praticáveis e se vale à pena se esforçar para que eles se efetivem. Por
evidente, o teste o pode ser feito diretamente numa sociedade democrática neste
momento, que agora ela não está bem-ordenada e, por isso, não se pode dizer se
os princípios ideais de justiça seriam cumpridos. Dizendo de outro modo, se fosse
para usar um princípio de justiça que justificasse o que existe, bastava encontrar
um motivo para o conformismo geral. Em vez disso, o que se averiguará é se “o
senso de justiça dos cidadãos, dado que seu caráter e seus interesses se formaram
numa estrutura básica justa, é forte o bastante para resistir às usuais tendências à
injustiça.” (RAWLS, 2003, p. 264). Ou seja, a capacidade da concepção de justiça de
se auto-sustentar será medida pela partes (na própria posição original), que
perguntam:
83
[...] se as pessoas que crescem numa sociedade bem-ordenada pelos dois
princípios de justiça [...] adquirem um senso de justiça suficientemente forte
e eficaz para que possam normalmente concordar com dispositivos justos e
não sejam levadas a agir por outros motivos, por exemplo, pela inveja e pelo
desprezo sociais, por uma vontade de dominar ou por uma tendência a se
submeter. Caso adquiram um senso de justiça suficientemente forte e não
pendam para o lado oposto por causa destas atitudes especiais, então o
resultado da primeira parte do argumento se vê confirmado e o argumento a
favor dos dois princípios está completo. (RAWLS, 2003, p. 258)
Além disso, as partes perguntam se:
[...] em vista dos fatos gerais que caracterizam a cultura política de uma
democracia, e em particular o fato do pluralismo razoável, a concepção
política pode ser alvo de um consenso sobreposto. (RAWLS, 2003, p. 259)
Assim, a estabilidade e a viabilidade dos princípios de justiça será confirmada
se eles forem resistentes às atitudes e psicologias especiais e se oferecerem um
ponto de vista efetivamente legítimo, que conquiste o que Rawls denomina de
consenso sobreposto. Se a resposta for positiva, deixa-se o ambiente abstrato da
posição original, seguindo-se o questionamento: o que se pode fazer, a partir do que
se tem neste momento, na história das sociedades democráticas modernas, para
que o ideal de uma sociedade política bem-ordenada por princípios razoáveis de
justiça seja concretizado?
Neste capítulo, procurar-se-á responder essas questões, primeiramente,
apresentando os fatos e idéias básicas que as envolvem, para depois apresentar o
argumento do filósofo de como, gradualmente, uma sociedade democrática pode ser
bem-ordenada e como, na mesma intensidade, os cidadãos podem adquirir o senso
de justiça. Por fim, tratar-se-á dos vários argumentos apresentados na dissertação
para concluir em que sentido uma sociedade bem-ordenada é política e como ela é
uma proposta realisticamente utópica, que pode ser amadurecida ao longo do
tempo, como forma de reconciliar os cidadãos, de uma democracia constitucional
moderna, com o seu mundo social.
4.1 Noção inicial e aprimoramentos conceituais
Relembre-se que Rawls segue a seqüência real/ideal/real-ordenado na
condução dos seus argumentos. A “pessoa” e a “sociedade” são pensadas nesta
84
tripla perspectiva. A perspectiva real (a nossa - “presente”), a da idéia/ideal
(abstrata), e a real-ordenada (“histórica futura”). A concepção-modelo da sociedade
bem-ordenada pertence tanto ao plano da prescrição institucional (idéia/ideal)
quanto ao plano da viabilidade (real-ordenado). Como concepção-modelo, ela é uma
idéia formal reguladora, que as partes consideram na posição original. Ainda no
plano abstrato, a idéia ganha conteúdo quando são definidos os termos da
cooperação social. Com isso, ela passa a ser um ideal de sociedade entendida como
sistema eqüitativo de cooperação. A partir daí, o ideal político de sociedade bem-
ordenada assume o papel de mediar a idealidade dos termos políticos da
cooperação social (definidos no procedimento hipotético da posição original) com a
realidade, que pode ser reformada viavelmente a partir desse ponto de vista.
Portanto, a função “realística utópica da filosofia política tem seu ponto alto na
apresentação desse ideal que, como dito, não ocupa um papel somente regulador
na teoria da justiça, mas uma função prática de orientação para a reforma da
estrutura básica da sociedade existente a ser efetivada ao longo do tempo.
A “sociedade bem-ordenada” é a meta da teoria da justiça, sendo conceituada
por Rawls como “aquela estruturada para promover o bem de seus membros e
efetivamente regulada por uma concepção comum de justiça.” (RAWLS, 2002a, p.
504).
O conceito, além de simples e genérico, é aberto, porquanto, não especifica:
a) o que deva ser ordenado para promover o bem dos membros da sociedade; b)
quem são os membros dignos de se beneficiarem do bem da sociedade e quais são
seus direitos e deveres à luz da concepção comum de justiça; c) quais são os
termos comuns da justiça; d) para qual sociedade ou cultura seria aplicável; e) como
essa meta seria atingida e qual a sua natureza; f) como essa referência comum da
justiça seria possível; e, g) o que motivaria seus cidadãos a agirem segundo seus
preceitos.
Parte do substrato deste conceito é extraída da concatenação das
concepções-modelos já especificadas no capítulo II. Então, o que é ordenado é a (a)
estrutura básica da sociedade, (b) para promover o bem dos cidadãos razoáveis e
cooperativos, cujos direitos e deveres estão expressos harmonicamente (c) nos dois
princípios de justiça, (d) os quais são aplicáveis a uma sociedade democrática
moderna.
85
Para completar a resposta de maneira ampla, indicando o que constituiriam
os elementos (e), (f) e (g) do “ideal praticável” e quais seriam as condições
favoráveis a sua realização, ou seja, as condições sociais e históricas compatíveis
com os fatos gerais da cultura pública moderna, é indispensável introduzir outras
idéias correlatas à de sociedade bem-ordenada, as quais foram melhor estruturadas
depois da publicação de Uma Teoria da Justiça (1971), especialmente nas revisões
e reformulações iniciadas a partir da década de 80 e nas conferências que formam o
Liberalismo Político (1993).
Em Uma Teoria da Justiça a formulação do conceito e do ideal de sociedade
bem-ordenada aproximava-se do que Rawls denominou posteriormente, no
Liberalismo Político, de “associação”, cuja proposição era incompatível com o
contexto democrático. Noutras palavras, na primeira versão da obra, não estavam
claros, por exemplo, os conceitos de tolerância e de pluralismo, de maneira que nela
não se evidenciava a distinção entre a justiça como eqüidade e outras doutrinas
filosóficas abrangentes (especialmente a liberal clássica ou a utilitarista). Assim,
poder-se-ia pensar a teoria da justiça com a pretensão de obter a adesão de outras
doutrinas morais de um modo o desejado, ou seja, a partir da idéia de um bem
único racional e verdadeiro (como propunha Platão, Aristóteles e alguns pensadores
da tradição cristã, tais como, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino). Mais:
supôs-se que a descrição da racionalidade das partes (na posição original) e o
procedimentalismo utilizado, na verdade, indicavam que elas não dividiam nenhum
fim comum e que, por isso, estariam absolutamente descomprometidas com o senso
de justiça que regularia a sociedade.
71
Daí a crítica de que uma teoria assim
apresentada “[...] não tem objetivos universais, coletivos, mas existe apenas para
servir aos fins particulares e privados de seus membros individuais, daquilo que
Hegel chama de sociedade civil.” (RAWLS, 2005, p. 419).
71
Sobre essa maneira de entender a sociedade, a partir do ponto de vista individual (ou atomista),
Taylor lembra que: “Há uma família de teorias liberais hoje muito popular, para não dizer dominante,
no mundo anglófono que denominarei ‘procedimental’. Ela a sociedade como uma associação de
indivíduos, cada um dos quais tem uma concepção de uma vida boa ou válida e,
correspondentemente, um plano de vida. A função da sociedade deve ser facilitar esse plano de vida
o máximo possível e seguir algum princípio de igualdade. Isto é, a facilitação não deve ser
discriminatória, embora haja evidentemente margem para um sério questionamento sobre o
significado exato disso: sobre se a facilitação deve buscar a igualdade de resultados, de recursos, de
oportunidades, de capacidades ou de que quer que seja. Muitos autores parecem concordar com a
proposição de que o princípio da igualdade ou da não-discriminação seria desrespeitado se a
sociedades esposasse ela mesma alguma concepção da vida boa.” (TAYLOR, 2000, p. 202).
86
Todavia, com as referidas revisões e reformulações, a justiça como eqüidade
passou a ser interpretada acentuadamente num sentido político, que foi sendo
esclarecido ao longo dos anos, a partir das “Dewey Lectures”, e recebeu uma forma
mais precisa e definitiva no Liberalismo Político e no texto A idéia de razão pública
revisitada,
72
com o reforço da restrição da teoria da justiça ao âmbito das sociedades
democráticas modernas e com a inclusão das distinções teóricas mais elaboradas
entre “racional e razoável”, “pluralismo simples e pluralismo razoável” e das idéias
de “domínio do político”, de “justificativa pública” e de “consenso sobreposto”.
O conjunto dessas idéias e distinções serve para corrigir o que Rawls
considerava um grave erro de Uma Teoria da Justiça, em que a sociedade bem-
ordenada era apresentada de maneira pouco realista, porque não esclarecia que a
tradição liberal, inaugurada historicamente com a Reforma Protestante e suas
conseqüências,
73
é marcada pela pluralidade de doutrinas abrangentes, razoáveis e
incompatíveis entre si, que tende a persistir ao longo do tempo. Assim, para ele, a
apresentação original da idéia de sociedade bem-ordenada não levava em conta o
“pluralismo” como “[...] o resultado normal do exercício da razão humana dentro da
estrutura das instituições livres de um regime democrático constitucional” (RAWLS,
2000a, p. 24). Assim, era necessário enfatizar que o propósito regulador da justiça
referia-se a questões políticas essenciais sem, de um lado, exigir a retidão
(rightness) dos cidadãos em relação a questões não-públicas das suas vidas, e, de
outro, sem desprezar que eles possuem uma identidade pública comum que se
realiza quando os interesses comuns da justiça são satisfeitos. Em face disso, a
justiça como eqüidade passou a ser interpretada como uma concepção política de
justiça (political conception of justice) politicamente liberal (liberalismo político) e não
como parte de uma doutrina abrangente (um liberalismo moral ou de qualquer outro
tipo).
72
A edição brasileira apresenta o título “A idéia de razão pública revista, contudo, o título, no idioma
original, é: “The idea of public reason revisited”. Como esse texto foi originalmente formulado em
forma de conferência e reunido no Liberalismo Político (ver conferência VI), sendo posteriormente
mais detalhado, sem alterações importantes, parece mais adequado dizer que ele foi “revisitado” e
não “revisto”.
73
“Até as guerras de religião dos séculos XVI e XVII, os termos eqüitativos de cooperação social
eram estreitamente delimitados; a cooperação social baseada no respeito mútuo era considerada
impossível entre pessoas de credos diferentes ou (segundo minha terminologia) com pessoas que
sustentam uma concepção do bem fundamentalmente diferente.” (RAWLS, 2002b, p. 238). Essas
guerras estabeleceram, segundo Rawls, uma base exemplar para a tolerância que esem evolução
e pode servir como fato geral para modelar as nossas idéias e expectativas acerca da base social do
respeito mútuo.
87
Antecipa-se que os argumentos expostos ao longo desse capítulo visam
esclarecer que uma sociedade bem-ordenada deve ser compreendida como um
ideal regulador (e) da estrutura básica de uma sociedade democrática, organizada
num Estado constitucional de direito, que reconhece o pluralismo de doutrinas
abrangentes e razoáveis como condição permanente da sua cultura pública
moderna e que atribui aos princípios de justiça, públicos e reciprocamente
reconhecidos, (d) o papel de oferecer a base razoável da unidade social, (f) a partir
de uma concepção política (restrita) de justiça, auto-sustentada e peculiarmente
neutra, que possibilita a avaliação eqüitativa das reivindicações dos cidadãos e que
(g) os motiva a cumprir os termos da cooperação social ao longo do tempo.
Cumpre aprofundar, por conseguinte, alguns pontos caracterizadores desse
ideal para que ele se torne praticável. Para tanto, a discussão objetivará elucidar: (i)
em que sentido a base da unidade social (consenso sobreposto) tem natureza
política e consegue ser razoável e auto-sustentada (autônoma); ii) como os
cidadãos, idealmente concebidos, adquirem o senso de justiça e as virtudes da
cooperação social ao longo do tempo numa sociedade bem-ordenada; (iii) qual a
caracterização dessa sociedade (se associação, comunidade ou sociedade política).
4.2 Como uma sociedade bem-ordenada é possível
4.2.1 O consenso sobreposto como base da unidade social
Para entender em que sentido uma sociedade bem-ordenada é uma união
social de uniões sociais, é necessário responder várias questões prévias, algumas
delas mencionadas. Assim, pergunta-se: a) por que se deve considerar o
pluralismo para averiguar se uma concepção liberal de justiça é estável?; b) quais as
características desse pluralismo?; c) por que utilizar da idéia de consenso
sobreposto (overlapping consensus)?; d) em que sentido esse consenso é político?
e) como é possível a união social numa sociedade bem-ordenada ao longo do
tempo?
Como afirmado no capítulo I, o fato do pluralismo é uma circunstância
subjetiva da justiça que não pode ser ignorada, porque ele é um marco histórico
importante na filosofia política moderna. Por conta disso, a teoria da justiça, ao
88
afirmar estar enraizada nos traços mais característicos da cultura blica moderna,
não poderia simplesmente ignorá-lo. Bem por isso, tal fato foi considerado pelas
partes na posição original (não estava recoberto pelo “véu de ignorância”). No
entanto, ele foi considerado na sua modalidade simples, ou seja, na apresentação
da posição original, não se diferenciou o fato do pluralismo simples e o fato do
pluralismo razoável, até porque naquele “[...] primeiro estágio, o contraste entre os
dois pluralismos não afeta o conteúdo da justiça como eqüidade.” (RAWLS, 2000a,
p. 109).
Porém, na avaliação da estabilidade, o que deve ser considerado é que o
pluralismo que se modelou na história recente das sociedades modernas o é
simples, mas razoável. Significa que a justiça como eqüidade não tem que lidar
somente com doutrinas racionais irreconciliáveis, mas com doutrinas que, além de
racionais, são também razoáveis, porém irreconciliáveis. Rawls destaca:
Que uma democracia seja marcada pelo fato do pluralismo como tal não é
de surpreender, pois sempre existem muitas visões não-razoáveis. Mas que
também existam muitas doutrinas abrangentes razoáveis professadas por
pessoas razoáveis pode parecer surpreendente, pois gostamos de pensar
que a razão leva à verdade e de pensar na verdade como uma só. (RAWLS,
2000a, p. 108)
Portanto, o desafio é obter a unidade social, acerca dos princípios de justiça,
não só diante do fato do pluralismo simples, mas do “pluralismo razoável” em que os
cidadãos avaliam a possibilidade de submeterem suas visões pessoais de bem
racional e de justiça, que sabem serem controversas e irreconciliáveis, aos princípios
propostos no âmbito de uma sociedade democrática bem-ordenada. Mais que
irreconciliáveis, ao ponderar que as doutrinas professadas pelos cidadãos são
razoáveis, deve-se reconhecer que, a priori, eles não terão nenhum motivo para
abandoná-las, já que suas crenças (razoáveis) não são:
[...] apenas o resultado de interesses pessoais e de classe, ou da tendência
compreensível das pessoas de verem o mundo político segundo um ponto
de vista limitado. Em vez disso, são, em parte, o produto da razão prática
livre, no contexto de instituições livres. (RAWLS, 2000a, p. 80)
Então, tais doutrinas têm uma força tal que não pode ser ignorada por uma
concepção de justiça que pretende obter a adesão voluntária dos cidadãos
razoáveis. A par disso, e para não negar a importância da diversidade advinda do
89
reconhecimento do pluralismo, não se deve interpretá-lo como algo negativo ou
destrutivo da união social, como se eliminá-lo, pelo esclarecimento de alguma
doutrina abrangente desejável ou verdadeira, fosse possível. Ao contrário: ele é uma
das principais caractesticas da cultura pública moderna, constituindo o fundamento
perene do liberalismo político (circunstância subjetiva da justiça).
Aliás, o seu contrário é o “fato da opressão”, decorrente da constatação de
que “se consideramos a sociedade política uma comunidade unida pela aceitação de
uma única doutrina abrangente, então o uso opressivo do poder estatal faz-se
necessário para essa comunhão política”. (RAWLS, 2000a, p. 81)
Tal opressão pode ser constatada de maneira mais clara em regimes
religiosos fundamentalistas, em que a liberdade de consciência é autorizada desde
que se professe a doutrina religiosa reconhecida pelo Estado, ou em ditaduras em
que a idéia (ou ideologia) do bem-comum é projetada e afirmada pela autoridade
máxima da “nação”, de maneira que as restrições às liberdades de manifestação, de
pensamento, de imprensa, entre outras, que são vinculadas ao exercício informado e
amplo de qualquer doutrina filosófica, moral ou religiosa, são justificadas
publicamente, argumentando que aqueles que estão contra o ideal da nação estão
contra o ideal de todos na nação.
Uma maneira mais sutil também pode ser visualizada como opressiva quando
a autoridade estatal desempenha alguma forma de “censura velada” ao argumento
de que há “perigo claro e presente” de instabilidade institucional, por conta da
“apologia” a certas manifestações políticas.
74
Nenhuma dessas justificativas para
74
Essa idéia é discutida por Rawls quanto trata das liberdades básicas, especificando alguns
exemplos históricos dados pela Corte Americana no tratamento a candidatados vinculados ao partido
socialista, em que, em alguns casos, estendeu-se à regra do “perigo claro e presente” para promover
alguma forma de censura ao exercício das liberdades básicas no contexto democrático. Essa
discussão, que não será apresentada integralmente aqui, serviria muito propriamente para
demonstrar como os discursos acerca da segurança nacional ou da estabilidade institucional a cada
dia justificam a restrição ao exercício das liberdades básicas. Em alguns países desenvolvidos, a
justificativa para as restrições é a ameaça do terrorismo, às vezes acompanhada dos problemas
sociais “nas regiões sensíveis”, cujas populações não possuem perspectivas de participarem da
cooperação social. Nos países “em desenvolvimento” o discurso é o da insegurança institucional
provocada pela criminalidade organizada” que, “normalmente” se ordena nas tais “regiões sensíveis”
(as favelas!). Assim, diante do argumento de combater-se o “terrorismo”, o “vandalismo” ou a
“criminalidade organizada”, autoriza-se não a vigilância reforçada daqueles que potencialmente
seriam os promotores da “desordem” e da “instabilidade institucional”, mas também a violação de
direitos e garantias individuais com: a criminalização de condutas normalmente consideradas como
de “pequeno potencial ofensivo” (vide a política criminal “Tolerância Zero” empreendida pelo famoso
prefeito nova-iorquino Rudolph Giulliani); a tolerância à prorrogação do prazo de prisões cautelares
(provisórias); a inobservâncias às garantias do devido processo legal (due process of law),
especialmente quanto à atribuição do ônus da prova. Tais ações das autoridades públicas indicam
que, infeliz e gradativamente, alguns países têm priorizado o papel repressivo e policialesco do
90
atuação do governo é razoável, tampouco podem ser utilizadas no espaço público
de uma sociedade que leva a sério o ideal de uma democracia constitucional.
Aliás, mesmo uma sociedade ordenada por uma doutrina abrangente e
razoável necessitaria do uso da força estatal para desempenhar o controle efetivo de
seus objetivos, de forma que, mesmo ela, não deixaria de ser, em algum sentido,
opressiva.
75
Portanto, mesmo em tal hipótese, não se poderia alcançar um consenso
sobreposto razoável, porquanto sua base não seria uma visão neutra e auto-
sustentada que ofereceria um ponto comum aceitável para todos os cidadãos da
sociedade. Daí a constatação, que será desenvolvida mais adiante, de que o
consenso sobreposto não é construído a partir de alguma ou algumas doutrinas
abrangentes e razoáveis, mas a partir da própria concepção política de justiça, a
qual oferece a base da unidade social.
Perceba-se que o pluralismo razoável faz dupla exigência. É necessário
justificar-se toda e qualquer reivindicação sobre a justiça, sem se impor a vontade
parcial de alguém ou de algum grupo pela força, e deve-se alcançar um consenso
sobreposto, o que só é possível num:
[...] regime democrático duradouro e seguro, não dividido por tendências
doutrinárias conflitantes e classes sociais hostis, deve ser apoiado,
voluntária e livremente, ao menos por uma maioria substancial de seus
cidadãos politicamente ativos. [...] isso significa que, para servir de base
pública de justificação de um regime constitucional, uma concepção política
de justiça deve ser uma concepção que possa ser endossada por doutrinas
abrangentes e razoáveis muito diferentes e opostas. (RAWLS, 2000a, p. 81)
Nesse regime, todos os cidadãos devem ser livres para escolherem e
justificarem suas reivindicações, mas deve haver também alguma forma de proteção
à liberdade política, para que ela não se sujeite aos seus próprios efeitos. Por
conseguinte, isso significa:
[...] que uma liberdade básica pode ser limitada ou negada em benefício
de outra ou outras liberdades básicas, e nunca em favor de um bem público
maior entendido como um saldo quido maior de vantagens sociais e
econômicas para a sociedade como um todo. (RAWLS, 2003, p. 156)
Estado, em vez do seu papel integrador, vinculado à justiça política e social, que ele deveria assumir
para que a sociedade fosse melhor para todos.
75
“O mesmo se aplica, a meu ver, a toda doutrina filosófica e moral abrangente e razoável, seja ou
não religiosa. Uma sociedade unida por uma forma razoável de utilitarismo, ou pelo liberalismo
razoável de Kant ou Mill, necessitaria igualmente das sanções do poder estatal para se manter.”
(RALWS, 2000a, p. 81).
91
Noutras palavras, deve haver alguma base mínima de direitos e garantias
fundamentais que assegure que a condição da liberdade seja exercida pelos
cidadãos. Daí à necessidade de que a sociedade democrática submeta-se a um
regime constitucional.
Democracia e constitucionalismo constituem um binômio da modernidade,
pois, ao mesmo tempo em que o poder político (democrático) é “[...] o poder dos
cidadãos iguais como corpo coletivo” (RAWLS, 2003, p. 260), ele é também o poder
que deve ser, em alguma medida, limitado. Então, democracia e regime
constitucional são idéias complementares. Se a democracia é caracterizada pela
consideração dos cidadãos como livres e iguais, em que eles, uns em relação aos
outros, aceitam que todos detêm a mesma capacidade e poder para delimitarem o
espaço e o âmbito de suas liberdades básicas, por meio de uma regra jurídica
(estatal e pública), o regime constitucional é marcado pela proteção ou pela
característica da limitação da atuação do Estado em relação à esfera de liberdade
individual. Um Estado constitucional se opõe à idéia de um Estado totalitário, em que
o princípio da legalidade não é tomado no sentido estrito, ou seja, no sentido de que
a ele compete fazer somente o que a lei expressamente determina.
Tomando o regime constitucional como fato geral da cultura pública, a ser
incorporado ao ideal de uma sociedade bem-ordenada, tem-se um contrapeso às
doutrinas que priorizam a liberdade como autodeterminação, porquanto algumas
liberdades básicas devem ser minimamente protegidas pelo Estado, seja em relação
aos eventuais conflitos existentes entre as pessoas, seja em relação (especialmente)
à atuação dele próprio.
76
76
A idéia de um regime constitucional pode ser interpretada de diversas outras maneiras, que não a
contemplada aqui. Por exemplo, pode-se entender a maneira de pensar o constitucionalismo no
sentido empregado por Carl Schmitt. Diz-se que: “Franqueando os limites da lucidez, C. Schmitt
concluiu, pela sua parte, pela irracionalidade intrínseca do político como tal e pelo seu inevitável
abandono ao carisma do leader ou do chefe.” (RENAUT, 2000, p. 130). Contudo, como explanado
no início do capítulo I, essa não é maneira que Rawls utiliza para pensar o político ou o
constitucionalismo. Da mesma maneira, poder-se-ia sugerir que a versão rawlsiana restringe-se à
proteção de alguns direitos e garantias fundamentais individuais e que o constitucionalismo atual
inclui não um aspecto limitador e negativo de atuação do Estado (o que está bem caracterizado no
texto), mas também um aspecto positivo de prestação estatal na promoção de alguma forma de bem
coletivo (direitos sociais, por exemplo). Sem dúvida que o segundo aspecto do constitucionalismo é
importante. Tanto é que Rawls propõe uma forma de ordenação desses direitos nos princípios de
justiça. Contudo, essas questões de delimitação de como funcionará a constituição (por exemplo,
sobre qual tipo de igualdade ela atribuirá a proteção dos direitos e garantias fundamentais e os
direitos sociais) é determinado na terceira etapa da posição original, na qual o véu de ignorância
não é tão espesso. Melhor esclarecendo, a caracterização genérica feita aqui se refere à idéia de
constitucionalismo que estaria acessível às partes na primeira etapa da posição original e, por isso,
sob a perspectiva ideal de uma democracia constitucional. Daí a justificativa de o inserir, nesse
92
O reconhecimento do fato do pluralismo razoável e de seus corolários traz
conseqüências profundas para a interpretação do sentido em que a teoria da justiça
como eqüidade é política. Como afirmado no item 2.2. do capítulo I, a despretensão
com relação à verdade última sobre valores políticos (e a introdução da idéia de
razoável), o distanciamento dos fundamentos metafísicos ou epistemológicos para a
filosofia política e a necessidade de submeter a própria filosofia à justificação pública
indicam que o âmbito da justiça é o das questões efetivamente públicas e
mensuráveis. Ponderou-se que a “matéria-prima” do político seriam as idéias, ideais
e fatos gerais da cultura pública moderna que, ordenados e justificados
publicamente de maneira a produzir um acordo razoável (para o que se utilizou das
concepções-modelos e do procedimento da posição original) sobre princípios de
justiça, regulariam somente a identidade pública dos cidadãos e suas instituições
mais importantes (a estrutura básica da sociedade).
Tudo isso sugere que os efeitos do pluralismo, entre os quais a restrição do
objeto de incidência da justiça e o abandono da pretensão de verdade para os
valores políticos, esvaziariam as duas categorias centrais do político:
77
o conflito e o
acordo. Conflito e acordo perderiam sua intensidade, quando se supõe que insistir
no conflito é desgastar-se desnecessariamente e que nada mais que um acordo
mínimo de respeito mútuo seria possível, o se podendo alcançar um consenso
mais profundo sobre os termos da justiça. Isso realmente pode ser admitido, quando
se interpreta o pluralismo no sentido simples. Porém, Rawls não pensa o pluralismo
somente neste sentido. Para ele, a despeito dessa impressão inicial, é possível
compreender as categorias “conflito” e “acordo” de maneira diferente (razoável),
quando ambas estão submetidas ao espaço de justificação pública.
Ao submetê-las ao espaço público, pressupõe-se alguma forma de
subordinação e renúncia da resolução dos conflitos e das disputas no espaço não-
público (notadamente arbitrário sob o ponto de vista particular das partes
envolvidas), em que a necessidade de justificativa é escassa, uma vez que a
apresentação de razões intersubjetivas tem por fim a adesão momentânea de
ponto, a discussão acerca da classificação das normais constitucionais (se programáticas, de eficácia
plena ou contida) e dos direitos sociais.
77
O termo político” aparece vinculado à idéia de domínio político”, entendido como o âmbito da
filosofia restrito, aos “valores políticos”, ao “consenso político” de uma sociedade bem-ordenada,
entre outras idéias e categorias da teoria da justiça. Quando o autor utiliza o termo “política”, ao que
parece, refere-se às relações reais e cotidianas no exercício do poder político institucional, como
aquele que ocorre no embate entre partidos políticos na proposição e execução de políticas públicas.
93
parcerias e acordos, que perduram enquanto as partes perceberem, com relativa
clareza, as vantagens advindas do pacto entre elas celebrado, o se exigindo
nenhuma afinidade prévia ou um compromisso posterior ao seu termo.
O fato é que, ao expor tanto o conflito quanto a possibilidade de acordo
político ao espaço público, transfigura-se o próprio sentido que estas categorias
assumem. Com isso (com a submissão do político, integralmente ao espaço
público), Rawls sugere que elas podem ser reconciliadas. Pode-se falar então, como
sugere Audard, de uma bipolaridade do político (conflito e consenso) que “[...] não
pode reduzir o político exclusivamente a uma dessas dimensões.” (AUDARD, 2002,
p. XIX).
Rawls preocupa-se em lidar com essa aparente contradição, decorrente da
referida bipolaridade. Por isso, o filósofo pretende ordenar o próprio conceito de
político, pontuando o que nele há de “razoável”, para indicar como os conflitos
racionais, embora inevitáveis com relação a questões morais, filosóficas ou
religiosas, que se mostram inarredáveis no presente, podem encontrar um ponto de
vista comum e aceitável com relação a questões fundamentais para a ordenação de
uma sociedade mais justa. Assim, o político e suas categorias não são interpretados
como racionais (muito menos como irracionais), porém como razoáveis.
Por isso:
[...] o construtivismo político não critica as concepções religiosas, filosóficas
ou metafísicas da verdade dos julgamentos morais e de sua validade. A
razoabilidade é o seu padrão de correção, e, dados seus objetivos políticos,
não é necessário ir além disso. (RAWLS, 2000a, p. 174)
Nesse compasso, tanto o conflito sobre as questões fundamentais quanto o
acordo que eventualmente possa ser alcançado devem ser postos em um patamar
razoável para sua decisão. Isso seria viabilizado pela teoria da justiça como
eqüidade. Deste modo, em vez de lançar os cidadãos e suas associações e
comunidades no espaço público à sua própria sorte (ou seja, dependentes da sua
capacidade retórica, da sua influência social e econômica), para aí medirem suas
“forças”, estabelece-se, primeiramente, um acordo peculiarmente neutro, razoável e
teórico para preparar o ambiente blico para o conflito e para a possibilidade do
acordo.
78
78
“Rawls não faz desaparecer o conceito do político, mas [...] tenta adaptá-lo ao que chama de “fato
do pluralismo” ou, como poderíamos dizer, do multiculturalismo, destacando o campo do político do
das doutrinas filosóficas, morais ou religiosas particulares, que tiveram a tendência de querer dominá-
94
Quando se tomam os argumentos de uma doutrina irracional para estabelecer
os termos da cooperação social, tem-se um tipo de conflito que resulta
necessariamente no emprego da força, o que impossibilita estabelecer qualquer
espécie de acordo. Quando tal conflito é fundado em doutrinas racionais (plena ou
parcialmente abrangentes), em que cada uma delas não diminui os espaços de suas
reivindicações e pretendem dominar o espaço público sozinhas, a solução é dada ou
pela derrota ou pela desistência. Isso é evidenciado no dia-a-dia da política
partidária que:
[...] em boa parte dos debates [...] notam-se as marcas da beligerância. Elas
consistem em alinhar tropas e intimidar o outro lado, que passa a ter de
aumentar seus efetivos ou recuar. O pensamento que se encontra por trás
disso é que ter caráter é ter convicções firmes e estar pronto para proclamá-
las de modo desafiador aos outros. Ser é confrontar-se. (RAWLS, 2003, p.
166)
Por outro lado, quando doutrinas racionais concordam em conviver
pacificamente, respeitando as proposições umas das outras, desde que não se
pretenda discutir seus fundamentos, porque disso decorre uma vantagem recíproca,
tem-se a possibilidade de acordo racional, próprio de um pluralismo simples, que
não estabelece qualquer tipo de finalidade comum, ou afinidade (“vínculo forte”)
entre os cidadãos que as professam.
Assim sendo, a base da unidade social, para Rawls, não é alcançada nem
pelo conflito entre as doutrinas irracionais ou racionais, nem pelo acordo que elas
possam estabelecer por conveniência ou para obtenção de vantagens mútuas
momentâneas. Aliás, mesmo doutrinas razoáveis e abragentes, como “[...] um
liberalismo do tipo de Kant ou Mill [...]” (RAWLS, 2003, p. 277), que endossam a
tolerância e aceitam as liberdades fundamentais de um regime constitucional, não
poderiam oferecer princípios de justiça, para regular a vida blica de uma
sociedade democrática moderna, de maneira perene, e conquistar a anuência de
outras doutrinas, que elas (as doutrinas abrangentes e razoáveis) professam uma
ampla gama “[...] de valores não-políticos lado a lado com os valores políticos da
justiça como eqüidade.” (RAWLS, 2003, p. 277).
lo, sem, contudo, o identificar, como certos representantes do liberalismo o fizeram, como um
conjunto de trocas puramente instrumentais e neutrasdo ponto de vista moral.” (AUDARD, 2002, p.
XIII-XIV)
95
A unidade social almejada por Rawls, substanciada na idéia de consenso
sobreposto, que reconhece o fato do pluralismo razoável e suas conseqüências,
indica que ela, para ser estável e “forte”, o pode ser alcançada no conflito
(irracional ou racional) ou num acordo racional, ou mesmo por uma doutrina
abrangente e razoável. Tanto o conflito quanto o acordo devem ser postos no plano
do razoável, ou seja, como questões públicas reciprocamente reconhecidas pelos
cidadãos, que concordam sobre os termos da cooperação social livremente, sem
abandonarem suas convicções não-públicas sobre o bem. Este é o propósito da
justiça como eqüidade, que, segundo Rawls, é alcançado porque sua concepção de
justiça é restrita ao domínio político, formulada de modo a conciliar e ordenar os
aspectos abstratos razoáveis
79
capazes de conquistarem a anuência de outras
doutrinas que sejam razoáveis que defendam, em alguma parte, valores políticos
compatíveis com as idéias de uma democracia constitucional.
Então, a justiça como eqüidade, ao delimitar o político ao espaço público,
condiciona que o conflito seja reduzido a uma base razoável de temas e idéias
comensuráveis que possibilitem um acordo sobre princípios de justiça. Esse conflito
é resolvido no plano teórico, com o uso da posição original. O resultado do
procedimento é um acordo teórico razoável sobre princípios de justiça que regulam
os assuntos públicos da estrutura básica da justiça. Como o acordo não é
abrangente e não pretende resolver todos os conflitos de uma sociedade bem-
ordenada,
80
ele pode conquistar a anuência de outras doutrinas abragentes e
razoáveis e se sustentar ao longo do tempo, sem questionar a verdade ou falsidade
79
Sobre a distinção entre uma doutrina abrangente razoável e uma doutrina restrita razoável
(abstrata), leia-se o seguinte comentário do filósofo: “Há uma distinção entre visões gerais e
abrangentes e visões abstratas. Quando a justiça como eqüidade parte da idéia fundamental de
sociedade enquanto um sistema eqüitativo de cooperação e passa a elaborar essa idéia, pode-se
dizer que a concepção resultante de justiça política é abstrata. É abstrata da mesma forma que o são
a concepção de um mercado perfeitamente competitivo, ou de um equilíbrio econômico geral: isto é,
ela seleciona certos aspectos como especialmente significativos da perspectiva da justiça política e
ignora outros. Mas que a concepção resultante seja geral e abrangente, tal como usei esses termos,
é uma outra questão. Acredito que os conflitos implícitos no fato do pluralismo razoável forçam a
filosofia política a apresentar concepções de justiça que são abstratas, para poder atingir seus
objetivos (I:8.2); mas os mesmos conflitos impedem essas concepções de serem gerais e
abrangentes.” (RAWLS, 2000a, p. 201, n. 20).
80
Note-se: pensar o ideal político da justiça “como se fosse” possível a existência de uma sociedade
bem-ordenada e, por exemplo, supor que nela “as sanções coercitivas raramente são aplicadas, se é
que alguma vez o são (já que se supõe que nela os delitos são muito raros), e que não é necessário
autorizar legalmente sanções severas” (RAWLS, 2002b, p. 84-5), não autoriza inferir que o político,
para Rawls, tenha seu termo num momento futuro da história, como se em alguma ocasião todos os
conflitos deixassem de existir. O político, no âmbito teórico, não é a solução final para todo e qualquer
conflito, como comentado, mas apenas uma forma de preparar outros conflitos que surgirão nas
práticas sociais.
96
das doutrinas que a ele aderem, sendo, neste sentido, neutro. O resultado disso
tudo seria o “consenso sobreposto”.
4.2.2 Uma união social de uniões sociais
Segue-se que a idéia de consenso sobreposto tem características específicas
e, embora não apresente a pretensão de verdade, almeja firmar um vínculo forte
entre os cidadãos, estabelecendo fins comuns que eles sentem orgulho de honrar.
Nesse sentido, um consenso sobreposto diferencia-se de um modus vivendi,
81
porque sua pretensão de estabilidade não deve se dissolver sob a ameaça de
alguma das partes sobrepujar a outra. Daí sua condição de estabilidade exigir que
haja um “senso de justiça forte” entre os cidadãos, que os motive a agir de acordo
com os princípios de justiça, cujas bases são mais profundas e justificadas
(publicamente) que as de um modus vivendi. É que é razoável supor (num contexto
democrático) que os cidadãos desejam uma garantia de que seus projetos de vida
não estejam sujeitos a variações sociais, políticas e econômicas determinadas por
outros com poderes e prerrogativas superiores aos seus. Consideradas as limitações
dos princípios de justiça, essa “superioridade” de poderes e prerrogativas será
injustificável se o estiver vinculada a uma sólida base de respeito mútuo em que,
por exemplo, governantes e governados sintam-se igualmente submetidos e
igualmente protegidos pelos mesmos princípios de justiça que estabelecem os
termos da cooperação social. Entretanto, essa condição não é assegurada num
modus vivendi, que ele não se estende, por exemplo, a questões de acesso à
renda e à riqueza, tampouco limita a influência do poder econômico no poder
político.
Diferentemente, um consenso sobreposto sem utilizar de idéias que se
apóiam em argumentos estritamente racionais com pretensão de verdade, e sem, ao
mesmo tempo, ser indiferente ou cético busca seu fundamento em idéias
81
“A expressão modus vivendi é usada, freqüentemente, para caracterizar um tratado entre dois
Estados cujos objetivos e interesses nacionais conduzem ao conflito. Ao negociar um tratado, seria
sensato e prudente para cada Estado garantir que o acordo proposto represente um ponto de
equilíbrio, isto é, que os termos e condições do tratado sejam formulados de tal maneira que seja de
conhecimento blico não ser vantajoso a nenhum dos dois violá-los. O tratado poderá então ser
assinado, porque cada um considerará ser de interesse nacional fazê-lo, o que inclui o interesse de
cada um em manter a reputação de um Estado que respeita tratados.” (RAWLS, 2000a, p. 193).
97
compatíveis com o “fato do pluralismo razoável”. Tal consenso não almeja um bem
racional único que inclui, na possibilidade de realizar seus objetivos, o “fato da
opressão”
82
. Ele aspira um acordo político, teórico e abstrato que extrai sua força
daquelas idéias intuitivas, princípios e ideais da cultura pública, considerados
razoáveis e verossímeis, abstendo-se de avaliar, ao menos diretamente, a validade
intrínseca dos valores não-públicos das doutrinas abragentes. Por conseguinte:
[...] a idéia é que, numa democracia constitucional, a concepção pública de
justiça deveria ser, tanto quanto possível, independente de doutrinas
religiosas e filosóficas sujeitas a controvérsias. (RAWLS, 2002b, p. 202)
Assim, o âmbito do consenso sobreposto refere-se tão-somente aos temas
políticos que marcam a cultura pública moderna de uma sociedade democrática (ex:
a ordenação da igualdade e da liberdade; o estabelecimento das regras de
reciprocidade econômica e das iguais oportunidades de acesso a cargos e posições
sociais; as bases do respeito-mútuo e da tolerância), afastando-se das discussões
internas das doutrinas racionais.
Um “consenso sobreposto” também difere de um “consenso constitucional”,
83
que é mais restrito e mais superficial e que não discute todos os aspectos
necessários ao arranjo das instituições básicas da sociedade. Porém, mesmo sendo
mais superficial e restrito, o consenso constitucional é uma etapa histórica
necessária à efetivação do consenso sobreposto.
A sugestão de como isso ocorreria se desenvolve em dois estágios (do mais
restrito e superficial, para o mais amplo e profundo). No primeiro, parte-se de uma
“constituição moderna real”, para um “consenso constitucional” e, no segundo, de
82
“Alguns talvez não se contentem com isso; podem replicar que, apesar de todas essas afirmações,
uma concepção política de justiça pode expressar indiferença ou ceticismo. Caso contrário, não
poderia ignorar as questões religiosas, filosóficas e morais fundamentais, porque elas são
politicamente difíceis de resolver, ou podem mostrar-se insolúveis. Podem dizer que certas verdades
dizem respeito a coisas tão importantes que as diferenças sobre elas têm de ser resolvidas, mesmo
que isso signifique guerra civil.” (RAWLS, 2000a, p. 197).
83
“No consenso constitucional, uma constituição que satisfaz certos princípios básicos estabelece
procedimentos eleitorais democráticos para moderar a rivalidade política no interior da sociedade.
Essa rivalidade diz respeito não apenas àquela entre as classes e interesses, mas também àquelas
que envolvem favorecer determinados princípios liberais em detrimento de outros, quaisquer que
sejam as razões disso. Embora haja concordância sobre certas liberdades e direitos políticos
fundamentais sobre o direito de voto, a liberdade de expressão e de associação política, e tudo o
mais que os procedimentos eleitorais e legislativos da democracia requerem –, há discordância entre
aqueles que defendem princípios liberais com respeito ao conteúdo e aos limites mais exatos desses
direitos e liberdades, bem como com respeito a que outros direitos e liberdades devem ser
considerados fundamentais e, por conseguinte, merecem proteção legal, quando não proteção
constitucional.” (RAWLS, 2000a, p. 205-6).
98
um consenso constitucional para um “consenso sobreposto”, num processo de
amadurecimento prático do ideal democrático (da perfeição democrática). Noutros
termos, nessas etapas parte-se do que se tem na realidade de sociedades
democráticas, organizadas por uma carta constitucional, e pergunta-se quais seriam
os passos necessários para se alcançarem os estágios seguintes, ou, o que se pode
realizar para que o ideal político da sociedade bem-ordenada seja concretizado.
No primeiro estágio (para o consenso constitucional), a pergunta é assim
apresentada:
Como criar um consenso constitucional? Suponha que, num certo momento,
devido a diversas contingências e eventos históricos, certos princípios
liberais de justiça são aceitos como um simples modus vivendi e estão
incorporados às instituições políticas existentes. Essa aceitação surgiu,
digamos, de forma muito semelhante à aceitação do princípio de tolerância,
enquanto um modus vivendi, depois da Reforma: no início, com relutância,
mas, mesmo assim, como a única alternativa viável à guerra civil
interminável e destrutiva. Nossa questão é, então, a seguinte: como é que,
com o passar do tempo, a aquiescência inicial a uma constituição que
satisfaça esses princípios liberais de justiça se desenvolve e se transforma
num consenso constitucional, no qual esses próprios princípios são
endossados? (RAWLS, 2000a, p. 206)
Assim, tomando como ponto de partida uma constituição real moderna que
ofereça uma base mínima e genérica de proteção a algumas liberdades básicas,
tem-se que os cidadãos poderão aderir a ela por diversos motivos diferentes,
podendo levar em conta não só a perspectiva das doutrinas abrangentes que
professam, mas os interesses pessoais e de seus grupos de longo prazo, ou o
costume e a tradição aos quais pertencem.
Ocorre que somente esse estágio não elimina a possibilidade de instabilidade
(já que esse acordo inicial é firmado tão-somente como modus vivendi), sendo
necessário especificar melhor, por exemplo, as liberdades básicas (e assim retirá-las
do âmbito do cálculo das vantagens sociais) determinando suas prioridades e
definindo as normas da competição política. Isso é necessário para que os vários
cidadãos e grupos tenham a garantia de que os antagonismos (abandonados em
prol da elaboração da constituição) não ressurjam e que os grupos não retomem a
esperança de conquistarem uma posição mais favorável na sociedade em
detrimento de outros, ao menos quanto aos pontos já decididos.
Outro passo para um consenso constitucional ocorrerá se a constituição real
conseguir sustentar, ao longo do tempo, as condições antes citadas, quando, então,
99
os cidadãos passarão a confiar nas instituições elaboradas a partir de sua carta
política e serão encorajados a agir segundo suas regras.
Todavia, como já dito, o “consenso sobreposto” é mais exigente que um
“consenso constitucional” porque mais profundo (exige princípios e ideais políticos
vinculados à idéia de pessoa e sociedade), mais específico (seu foco é uma
concepção política – restrita – de justiça) e mais extenso, uma vez que:
(..) vai além dos princípios políticos que instituem os procedimentos
democráticos, e inclui os princípios que abarcam a estrutura básica como
um todo; por isso, seus princípios também estabelecem certos direitos
substantivos, como a liberdade de consciência e pensamento, além da
igualdade eqüitativa de oportunidades e de princípios que atendam a certas
necessidades essenciais. (RAWLS, 2000a, p. 211)
Por conseguinte, a segunda questão (para o consenso sobreposto) será:
Quais são as forças que levam um consenso constitucional na direção de
um consenso sobreposto, mesmo supondo que um consenso sobreposto
pleno nunca será atingido, mas, na melhor das hipóteses, nos
aproximaremos dele? (RAWLS, 2000a, p. 212)
Partindo das mesmas bases da resposta dada para a formação do consenso
constitucional, no qual se supõe que um acordo entendido como modus vivendi
implicaria a organização das regras de competição eleitoral, Rawls acredita que:
[...] depois que um consenso constitucional está em vigor, os grupos
políticos são forçados a participar do fórum público de discussão política e
dirigir-se a outros grupos que não compartilham sua doutrina abrangente.
Esse fato torna racional para eles se afastar do círculo mais restrito de suas
próprias visões e desenvolver concepções políticas em cujos termos
possam explicar e justificar suas políticas preferidas a um público mais
amplo, de modo a reunir uma maioria a sua volta. Depois de fazer isso, são
levados a formular concepções políticas de justiça [...]. Essas concepções
fornecem a moeda corrente de discussão e uma base mais profunda para
explicar o significado e as implicações dos princípios de políticas que cada
grupo endossa. (RAWLS, 2000a, p. 212)
Essa necessidade de as doutrinas abrangentes voltarem-se para o espaço
público é o fator que as motivará a formar uma concepção pública de justiça que
fomente a discussão, num plano mais elevado e abstrato (a “moeda corrente de
discussão”), com outras doutrinas abrangentes. Ter-se-ia as condições para
determinar as várias reivindicações básicas de pessoas e de grupos, especialmente
quanto a uma legislação que melhor especifique não somente as liberdades de
100
consciência e pensamento, mas também de associação e de movimento, juntamente
com medidas que assegurem a satisfação das necessidades básicas de todos, para
que sejam membros cooperativos da sociedade e participem da vida política e
social. Tais reivindicações deverão constituir “cláusulas pétreas” (para usar um
termo corrente no direito constitucional) do “consenso sobreposto”, que elas são
garantias desejáveis pelos cidadãos, posto que:
há forças tendendo a emendar a constituição em certos aspectos para
abarcar outros elementos constitucionais essenciais, ou então
empenhando-se em aprovar a legislação necessária para obter um
resultado parecido. (RAWLS, 2000a, p. 214)
O resultado histórico desses estágios enraizaria as convicções comuns das
doutrinas abrangentes conflitantes sob bases aceitáveis em que os cidadãos, a partir
dos fundamentos das suas próprias doutrinas razoáveis, reforçariam os dois
princípios de justiça selecionados na posição original.
Admitindo-se que o potencial de publicização do político (e de suas
categorias) conduza a um acentuado senso de respeito mútuo e de reciprocidade, a
se formar entre os cidadãos razoáveis, pode-se afirmar que os referidos princípios
constituem uma proposta viável que tende a se concretizar.
84
Por conta disso, a
conjectura rawlsiana é de que:
[...] quanto menores forem as diferenças entre as concepções liberais,
quando corretamente baseadas nas idéias políticas fundamentais de uma
cultura pública democrática, e quanto mais compatíveis os interesses
subjacentes que as sustentam numa estrutura básica estável regulada por
elas, tanto menor será o leque de concepções liberais que definem o foco
do consenso. (RAWLS, 2000a, p. 215)
84
Não é demais insistir que os princípios de justiça pretendem ser aplicados numa sociedade que
reúna condições favoráveis à sua efetivação. Uma sociedade que está ameaçada por um inimigo
externo comum poderá mitigar ou deixar de aplicar os princípios de justiça se eles forem um óbice à
defesa nacional. O mesmo ocorreria se uma epidemia atingisse a população ativa desta sociedade ou
se ela se encontrasse numa situação de miserabilidade tal que sua produção não fosse suficiente
para satisfazer as necessidades mais básicas de sobrevivência, ou se estivesse na iminência de
sofrer com os efeitos de um impacto ambiental. Nestas situações, não é tolerável, mas razoável
esperar que os princípios de justiça não sejam aplicados, que existem outros valores mais
elementares a serem protegidos. Contudo, o que não é tolerável é que tal situação seja perpetuada
para se manter a justificativa de violação aos princípios. Vencidas essas mazelas, retoma-se a
preocupação com a aplicação dos princípios de justiça. Ou seja, éque se tenta descobrir: “[...] uma
área de concordância suficientemente ampla entre valores políticos e os outros valores que fazem
parte de um consenso sobreposto razoável.” (RAWLS, 2000a, p. 204). Em suma, é mediante
circunstâncias razoáveis que se enfrenta a questão da estabilidade. A última dificuldade que discuto
é que um consenso sobreposto acaba sendo utópico, isto é, não forças políticas, sociais ou
psicológicas suficientes, quer para gerá-lo (quando ele não existe), quer para torná-lo estável (quando
existe).” (RAWLS, 2000a, p. 205).
101
Ou seja, a aproximação de interesses subjacentes de concepções que
admitem a proteção das liberdades sicas,
85
revelada nos dois estágios do
consenso, é que, ao longo do tempo, formará o “consenso sobreposto” como base
da unidade social de várias doutrinas conflitantes, porém razoáveis: a união social
de uniões sociais.
4.2.3 A aquisição do senso de justiça e a amizade cívica
Como complemento à resposta sobre a base da unidade social, sua
viabilidade e estabilidade, cumpre considerar como os cidadãos de uma sociedade
bem-ordenada adquiririam seu senso de justiça num sentido forte (portanto, distinto
de um modus vivendi), que os motivassem a honrar seus deveres de civilidade
(duties of civility) determinados pela concepção pública de justiça e, assim,
reforçassem a mencionada base da unidade, num contexto social de uma sociedade
democrática marcada pelo fato do pluralismo razoável.
Como caracterizado, uma sociedade bem-ordenada é estruturada para
promover o bem de seus membros de maneira apropriada e mutuamente aceitável,
e tende a perdurar quando todos aceitam seus princípios e sabem que eles
efetivamente regulam a estrutura básica.
Nesse contexto, as instituições básicas da sociedade estimulam as virtudes
cooperativas da vida política, “[...] as virtudes de razoabilidade, senso de eqüidade,
espírito de compromisso e disposição para chegar a um meio-termo com os outros”
(RAWLS, 2003, p. 164), as quais constituem um grande bem público (juntamente
com a idéia de “consenso sobreposto”), que é construído ao longo do tempo. Um
bem que constitui uma vantagem para o cidadão como indivíduo e como membro de
uma sociedade justa, dado que a prática dessas virtudes constitui a base do respeito
mútuo.
Para explicar como tais virtudes seriam adquiridas e reproduzidas em
sociedade, Rawls toma como base algumas explicações psicológicas (razoáveis)
85
Não é que essas concepções sejam derivações do liberalismo clássico ou do libertarismo, por
exemplo, mas que reconhecem os fatos gerais que caracterizam a cultura pública moderna,
especialmente, o “fato do pluralismo” e os “limites do juízo”. Elas são liberais no sentido de serem
tolerantes e capazes de razoabilidade.
102
que se desenvolvem em três níveis, nos quais a idéia de reciprocidade, com certas
peculiaridades, está sempre presente e é suposta no contexto de instituições justas.
Trata-se das psicologias razoáveis aplicáveis à moralidade de autoridade, à
moralidade de grupo e à moralidade de princípios.
A primeira, denominada de “moralidade de autoridade”, é a desenvolvida na
relação entre pais e filhos, em que se sustenta que os filhos tendem a amar os pais,
caso esses manifestem primeiro o seu amor. Seria característico da criança não ter
condições de avaliar a validade de suas ações ou de justificá-las perante outras
pessoas, de maneira que, aqueles que ocupam posições de autoridade (no caso os
pais), deveriam orientá-las.
[...] dado que as instituições familiares são justas, e que os pais amam a
criança e expressam manifestamente esse amor preocupando-se com o seu
bem, então a criança, reconhecendo o amor evidente que sentem por ela,
aprende a amá-los. (RAWLS, 2002a, p. 544)
A segunda, chamada de “moralidade de grupo”, refere-se aos padrões morais
adequados ao papel do indivíduo nas várias associações às quais pertence (família,
escola, vizinhança). Esses padrões (que valoram as virtudes do bom filho, do bom
marido, da boa esposa, do bom aluno, do bom companheiro, do bom amigo, do bom
cidadão) são adquiridos de acordo com a aprovação ou reprovação que o grupo (ou
o membro que detém sua autoridade) exerce em relação ao indivíduo. Nesse
contexto, a pessoa sabe o seu papel nas associações à qual adere, aceitando não
os seus princípios e valores, mas as diferenças de direitos e deveres existentes
em razão da hierarquia nela preexistente. Assim:
[...] dado que a capacidade de uma pessoa para o sentimento de
companheirismo tornou-se uma realidade quando ela adquiriu vínculos de
acordo com a primeira lei, e dado que uma organização social é justa e esse
fato é publicamente reconhecido por todos, então essa pessoa desenvolve
laços de amizade e confiança em relação aos outros na associação, à
medida que estes, com evidente intenção, cumprem seus deveres e
obrigações, e correspondem aos ideais de sua situação. (RAWLS, 2002a, p.
544)
A terceira, designada de “moralidade de princípios”, é desenvolvida depois
que as duas anteriores foram efetivadas, referindo-se ao desejo de uma pessoa ser
justa, ou seja, de agir de forma justa e promover as instituições justas, preocupando-
se com interesses superiores relativos ao ideal da cooperação humana. Trata-se do
103
senso de justiça, entendido como um prolongamento do amor pela humanidade, não
no sentido da realização de deveres humanitários vinculados aos sentimentos de
compaixão ou benevolência (ou outras ações supra-rogatórias), mas no sentido de
se agir segundo os princípios razoáveis de justiça. Trata-se da aquisição de uma
identidade pública que é comum a todos os cidadãos de uma sociedade bem-
ordenada. Dessa forma:
[...] dado que a capacidade de uma pessoa para o sentimento de
companheirismo foi realizada quando ela criou vínculos de acordo com as
duas primeiras leis, e dado que as instituições de uma sociedade são justas
e esse fato é publicamente reconhecido por todos, então essa pessoa
adquire o senso de justiça correspondente, à medida que reconhece que ela
e aqueles por quem se interessa se beneficiam dessas organizações.
(RAWLS, 2002a, p. 544-5)
Ainda assim poder-se-ia insistir que a aquisição do senso de justiça nos
termos da “moralidade de princípios” seria utópica, seria demasiada exigente, ou
desnecessária, porque a “moralidade de grupo” é suficiente para prover os cidadãos
das virtudes necessárias para a cooperação social.
Para esclarecer esse ponto, introduzem-se algumas distinções entre os
conceitos aristotélicos de justiça (legal), de amizade e de eqüidade, comparando-os
aos de Rawls.
Para Aristóteles, a justiça é considerada a forma mais elevada da excelência
moral porque se refere à consideração das outras pessoas,
86
enquanto a lei é o
critério objetivo de determinação da ação justa. A eqüidade refere-se à aplicação
igualitária da lei não mediante uma ponderação formalista, mas na identificação
de intenção do legislador.
87
O exercício da eqüidade consiste em resgatar, para o
caso concreto, o senso de justiça que conduziu o legislador a estabelecer a
legislação. Nesse sentido, pretende-se não sustentar a lei, mas, mais que isso, a
justiça da lei, para que a paz nas relações entre as pessoas seja mantida.
86
“Então a justiça neste sentido é a excelência moral perfeita, embora não o seja de modo irrestrito,
mas em relação ao próximo. Portanto a justiça é freqüentemente considerada a mais elevada forma
de excelência moral, e ‘nem a estrela vespertina nem a matutina é tão maravilhosa’; e também se diz
proverbialmente que ‘na justiça se resume toda a excelência’. Com efeito, a justiça é a forma perfeita
de excelência moral porque ela é a prática efetiva da excelência moral perfeita. Ela é perfeita porque
as pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la não somente em relação a si
mesmas como também em relação ao próximo”. (ARISTÓTELES, 2001, p. 93)
87
“A justiça e a eqüidade o portanto a mesma coisa, embora a eqüidade seja melhor. O que cria o
problema é o fato de o eqüitativo ser justo, mas não o justo segundo a lei, e sim um corretivo da
justiça legal. A razão é que toda lei é de ordem geral, mas não é possível fazer uma afirmação
universal que seja correta em relação a certos casos particulares.” (ARISTÓTELES, 2001, p. 109)
104
A fonte mais importante para manutenção dessa paz, o é propriamente a
justiça (legal), mas sim a amizade entre os cidadãos (dadas a sua natureza social e
política e seu senso de comunidade), de modo que, onde prospera a amizade, a
justiça não é necessária, porque ela (a amizade) é o que constitui e mantém estáveis
os termos de cooperação social, que não exigem uma correlação simétrica como a
justiça exige.
88
Já, para Rawls, a justiça é determinada pelos termos teóricos de cooperação
de justiça e é prioritária em relação à amizade, entendida no sentido da “moralidade
de grupo”. Na verdade, Rawls interpreta a amizade aristotélica como existente no
ambiente da “moralidade de grupo”, a qual é insuficiente para os objetivos da sua
justiça como eqüidade.
Na justiça como eqüidade o tipo de amizade cívica dos cidadãos cooperativos
é mais exigente (assim como o consenso sobreposto o é em relação ao consenso
constitucional), porque requer que eles não considerem somente os interesses dos
grupos aos quais pertencem e com os quais possuem afinidade (proximidade), mas
também os outros cidadãos e aos outros grupos “distantes”, por assim dizer.
Para Rawls, a amizade cívica decorre da vontade dos cidadãos de realizarem
os seus fins políticos (e somente estes), expressos anteriormente pelos princípios de
justiça e não por uma concepção de bem predeterminada como a aristotélica.
Noutros termos, a amizade cívica rawlsiana (ou a inimizade) não é anterior ao
acordo sobre os princípios de justiça, mas posterior à sua definição, uma vez que
essa é uma condição decorrente do reconhecimento do fato do pluralismo
razoável”. Caso se antepusesse alguma forma de dever em relação aos amigos
(aqui entendido no sentido aristotélico), o acordo na posição original seria inviável.
Por fim, enquanto para Aristóteles a eqüidade tem como fonte o senso de
comunidade dos cidadãos, para assim corrigir as imperfeições do justo legal
(normativo), para Rawls, é justamente nos princípios de justiça (normativos) que se
encontra a eqüidade. Ou seja, para Rawls, a eqüidade não tem função
primordialmente corretiva, mas função preventiva. Dessa feita, os cidadãos que
praticam as virtudes estimuladas pela justiça como eqüidade desenvolvem um senso
88
“Mas a igualdade não aparece sob a mesma forma na esfera de ação da justiça e na amizade; com
efeito, na esfera da justiça o que é igual no sentido primordial é aquilo que é proporcional ao
merecimento, enquanto a igualdade quantitativa é secundária, mas na amizade a igualdade
quantitativa é primordial e a proporcionalidade ao merecimento é secundária.” (ARISTÓTELES, 2001,
p. 161)
105
de justiça, comprometendo-se com os termos que o eqüitativos (no sentido de
reciprocidade e de cooperação tua) e que tendem a se perpetuar numa
sociedade bem-ordenada.
A sugestão desses contrapontos e diferenciações pretende reforçar que
Rawls, ao levar em conta o fato do pluralismo razoável, necessitou oferecer uma
resposta diferenciada para dizer como é possível que os cidadãos das sociedades
democráticas, ao mesmo tempo em que professam doutrinas abrangentes
razoáveis, são capazes de aceitar e agir de acordo com princípios públicos de
justiça.
O esforço teórico rawlsiano, ao sustentar a aquisição do senso de justiça na
“moralidade de princípios”, serve para tornar mais realista a possibilidade de um
“consenso sobreposto”, que não pode se apoiar nos interesses dos cidadãos, que
são motivados somente pela “moralidade de grupo”. Noutras palavras, caso o
consenso sobreposto tomasse como base da motivação dos cidadãos a “moralidade
de grupo”, seu intento seria preponderantemente utópico, porque a unidade social
esperada, e a estabilidade de seus termos, não seria alcançada por essa via, que
não leva em conta o “fato do pluralismo razoável”.
Por outro lado, levando em conta os esclarecimentos e os tipos de virtudes
cívicas exigidas pela concepção de amizade rawlsiana, tem-se que, numa sociedade
bem-ordenada, elas não seriam severamente exigentes em relação a seus cidadãos,
visto que, sua base, como insistido, é a idéia de reciprocidade definida no
procedimento que conduz aos princípios de justiça selecionados pelos próprios
cidadãos razoáveis e capazes de cooperação.
89
Restaria detalhar quais seriam as maneiras de concretizar este ideal. Rawls
não se ocupa disso na teoria da justiça, porém sugere algumas providências. Para
89
Diante disso, Rawls acredita que, se realizadas as formas antes referidas de moralidade, é razoável
supor que a reciprocidade do amor entre pais e filhos, da fidelidade entre amigos e do senso de
justiça entre cidadãos resistirá às atitudes especiais (egoístas, anti-sociais). Ou seja, num contexto
de uma sociedade bem-ordenada a força dos valores políticos prevalece. Note-se que, como
afirmado anteriormente, a conduta dos cidadãos de uma sociedade bem-ordenada deve ser aquela
que as pessoas reais (eu e você) teriam caso vivessem numa sociedade bem-ordenada. Ora, se as
pessoas reais se empenham, de boa-vontade, em limitar e determinar os princípios razoáveis de
justiça no plano teórico, seguindo a exposição rawlsiana e se são capazes de agir segundo o que
consideram razoável, não é nada utópico supor que tais pessoas (nós), ao longo do tempo, tanto
mais as instituições reais se aproximem do “consenso sobreposto”, tenderão a serem virtuosas e se
aproximarem do ideal de cidadania sugerido por Rawls. É nesse sentido que o autor afirma que: “[...]
podemos pensar que o mundo não é em si mesmo inóspito à justiça política e a seu bem. Nosso
mundo social poderia ter sido diferente e esperança para aqueles que viverem em outro tempo e
lugar.” (RAWLS, 2003, p. 53).
106
ele, o primeiro esforço seria o de esclarecer as pessoas (reais) conscienciosas,
sobre os temas da filosofia política e sobre a necessidade de se estabelecer um
debate público razoável acerca da maneira de se viver numa sociedade moderna
justa. O passo seguinte seria o de educar as gerações presentes (crianças e
adultos). As crianças deveriam ser educadas para reconhecerem os fatos da cultura
pública moderna como algo que pertence ao contexto histórico da sociedade em que
nasceram e que elas podem ter uma vida decente neste mundo social.
90
Da mesma
forma, os adultos deveriam ser educados para honrarem seu dever de civilidade
quando se habilitassem a definir o destino comum da sociedade, ou seja, quando
atuassem no foro público.
91
Tudo isso, em conjunto, seria necessário para que as
reformas institucionais ocorressem gradativamente em direção a um consenso
sobreposto e à formação de um senso de justiça pelos cidadãos. Saber o quanto
disso foi ou será realizado é uma questão difícil, que não será discutida.
4.3 Associação, comunidade e sociedade política
Se uma sociedade bem-ordenada é capaz de alcançar um consenso
sobreposto, a partir de doutrinas divergentes e razoáveis, e se os seus cidadãos
conscienciosos realmente agem de acordo com os princípios de justiça por eles
selecionados, porque preferem realizar o seu bem e o bem da sociedade
(renunciado às atitudes especiais do egoísmo, da inveja, entre outras), então, para
90
Rawls sugere que seu liberalismo político “[...] exigiria que a educação das crianças incluísse
coisas como o conhecimento de seus direitos constitucionais e cívicos, de forma que, por exemplo,
elas saibam que a liberdade de consciência existe em sua sociedade e que a apostasia não é um
crime legal, tudo isso para garantir que a continuidade de sua filiação religiosa, quando atingem a
maturidade, não esteja baseada simplesmente na ignorância de seus direitos sicos ou no medo da
punição por ofensas que são assim consideradas dentro da sua seita religiosa. A educação das
crianças também deveria prepará-las para serem membros plenamente cooperativos da sociedade e
de permitir que provejam seu próprio sustento; também deveria estimular as virtudes políticas para
que queiram honrar os termos eqüitativos de cooperação social em suas relações com o resto da
sociedade.” (RAWLS, 2003, p. 221).
91
Por exemplo, quando atuam como “juízes, legisladores, executivos principais e outros funcionários
do governo, assim como candidatos a cargo público” (RAWLS, 2001a, p. 178), os cidadãos devem
explicar “[...] suas razões para sustentar posições políticas fundamentais em função da concepção
política de justiça que consideram como mais razoável.” (RAWLS, 2001a, p. 178). Quando não
ocupam essas funções “[...] os cidadãos devem pensar em si como se fossem legisladores, e
perguntar a si mesmos quais estatutos, sustentados por quais razões que satisfaçam o critério de
reciprocidade, pensariam ser mais razoável decretar. Quando firme e difundida, a disposição dos
cidadãos para se verem como legisladores ideais e repudiar os funcionários e candidatos a cargos
públicos que violem a razão pública é uma das razões políticas e sociais das democracias, e é vital
para que permaneça forte e vigorosa.” (RAWLS, 2001a, p. 178-9).
107
Rawls, o teste da estabilidade atingiu sua finalidade e a justiça como eqüidade pode
ser considerada uma concepção razoável, utópica e ao mesmo tempo realista,
porque indicativos presentes de que seja praticável ao longo da história. Assim,
na medida em que ela é empregada, o potencial da cultura pública moderna
reconcilia os cidadãos com o seu mundo social, que os considera como efetivamente
livres e iguais e que organiza seus ideais de cooperação, respeito mútuo e
reciprocidade. Esses ideais, na proporção em que são concretizados, realizam um
tipo de bem-comum que promove a unidade social entre os cidadãos, que passam a
dividir e a defender os mesmos interesses.
Se o ideal de sociedade bem-ordenada, entendido como sistema eqüitativo de
cooperação social é estável e conduz-se a um consenso sobreposto, resta saber
como ela deve ser caracterizada, se associação, comunidade, ou
sociedade/comunidade política.
Rawls define uma associação como um sistema aberto e incompleto no
sentido de que os indivíduos nela ingressam ou dela se retiram voluntariamente,
normalmente na idade da razão, aderindo a objetivos e fins últimos preestabelecidos
por outros indivíduos que ocupam lugar privilegiado em sua organização, sem que
haja necessidade de justificativa pública de todos os seus termos.
Uma comunidade tem características assemelhadas as da associação,
porém, é orientada por uma doutrina moral, filosófica ou religiosa abrangente que
indica o que seja bem/mal e justo/injusto.
Por definição, vamos considerar uma comunidade como um tipo especial de
associação, uma associação unida por uma doutrina abrangente, como uma
igreja, por exemplo. Os membros de outras associações têm
freqüentemente fins compartilhados, mas estes não constituem uma
doutrina abrangente e podem até ser puramente instrumentais. (RAWLS,
2000a, p. 84)
Para Rawls, uma sociedade democrática bem-ordenada não é nem uma
associação, nem uma comunidade, mas um sistema fechado e completo, no sentido
em que é auto-suficiente e tem espaço para todos os principais objetivos da vida
humana, ingressando-se nela pelo nascimento e saindo-se pela morte.
Para pertencer à sociedade (assim considerada) não exigência de
identificação prévia com princípios e valores pré-estabelecidos, bastando que se
considerem os cidadãos como livres, iguais e capazes de formular e/ou aderir à
108
concepção de justiça por eles selecionada voluntariamente, a partir de um
procedimento eqüitativo. Nela a condicionante é o uso da razão pública para a
justificação dos princípios de justiça e para a atribuição de direitos aos cidadãos,
para que um consenso sobreposto de valores políticos autônomos (porém não
absolutamente independentes de qualquer doutrina moral, religiosa ou filosófica
abrangente) seja possível e assegure uma sociedade mais justa. Por isso, não é
correto que se valha do poder político para impor visões religiosas, filosóficas ou
morais abrangentes, mesmo que racionais, que, nessas circunstâncias, a razão
pública não seria exercida de maneira ampla.
Então, a sociedade bem-ordenada diferencia-se das associações e das
comunidades, basicamente, por ser um sistema fechado e completo que pretende
um consenso político sobreposto acerca dos princípios de justiça.
Uma sociedade bem-ordenada, que têm valores políticos de justiça, não nega
os valores filosóficos, religiosos ou morais “não-públicos” (até porque os valores da
justiça são de caráter moral, porém pertencentes ao subdomínio do político), mas
compreende que, para assuntos públicos, tais valores (não-públicos) devem estar
subordinados aos valores políticos. Portanto, é verossímil supor que a teoria
rawlsiana da justiça valoriza certos sensos de “bem” em detrimento de outros,
especialmente aqueles considerados não-razoáveis porque insustentáveis
publicamente.
Apesar disso, os limites da justiça são bem restritos, que eles são
aplicáveis prioritariamente à vida pública dos cidadãos (identidade pública). A vida
privada (identidade não-pública) e os diversos modos de vida serão por eles
afetados quando os cidadãos não professarem, mas praticarem condutas
intolerantes, desarrazoadas e insensatas, incompatíveis com o “fato do pluralismo
razoável”, ao não reconhecerem, por exemplo, o igual exercício da liberdade de
consciência e os limites do juízo.
Numa sociedade democrática, o espaço público e o não-público estão
imbricados, relacionam-se e sofrem influências mútuas. Contudo, cada um deles
assume função preponderante segundo suas características. Na sociedade bem-
ordenada, o “político” é prioritário porque somente ele pode oferecer a base da
unidade social de maneira estável, de acordo com o ideal de uma democracia
constitucional.
109
Por isso, não é suficiente acreditar que a sociedade é mero instrumento para
realização da felicidade privada (ou uma associação para a realização de benefícios
privados tuos), em que bastaria ao Estado assegurar a igualdade (formal) “na lei”
e “perante a lei” para que os cidadãos, sozinhos, realizassem os seus planos de vida
ao longo do tempo. Insistir numa proposta assim é confiar sobremaneira na
capacidade de benevolência humana, desprezando-se fatos da psicologia social
razoável, vinculados à idéia de reciprocidade e mutualidade (que aparecem na idéia
de sociedade como sistema eqüitativo de cooperação), ignorando os problemas da
condição de nascimento das pessoas (e.g. a desigualdade na distribuição de
riquezas e de talentos) e insistindo na aceitação e adesão a uma teoria moral
abrangente, como fazem os liberais clássicos e, de certa maneira, os libertários.
Uma sociedade pensada parar garantir somente os fins não-públicos dos
cidadãos, segundo Rawls, tem dificuldades de organizar seus princípios que, se
eventualmente aceitos, não conseguirão se firmar durante muito tempo. Note-se:
sociedades organizadas sob essa perspectiva, via de regra, geram normas segundo
uma visão privatista em que o direito restringe-se à ordenação de fórmulas e formas
que sejam capazes de assegurar a integridade individual das pessoas e de seus
patrimônios particulares e de possibilitar o exercício igual (formalmente) desses
direitos subjetivos, em que o único dever cívico exigido (quando se exige) é o de
votar. Como afirma Berlin, em sociedades assim, o cidadão, ao pensar a liberdade,
“[...] preocupa-se principalmente com a área de controle, não com sua fonte.”
(BERLIN, 2002a, p. 238). Daí entender a crise de legitimidade do poder político em
países democráticos que adotam essa visão. Nessas circunstâncias, o poder político
está mais suscetível ao poder econômico do que ao debate público de projetos
governamentais. Uma sociedade que valoriza sobremaneira o indivíduo e seu
espaço o-público, por intermédio da proteção jurídico-estatal, sem considerar
outros aspectos de uma sociedade democrática e pluralista, ao menos no sentido
rawlsiano, não pode ser razoavelmente justa.
Por outro lado, não se tem melhor sorte ao encarar a sociedade como uma
comunidade baseada e unificada por numa doutrina religiosa, filosófica ou moral
(parcial ou plenamente) abrangente (em que a concepção de “bem” estende-se e é
também o “justo”), a qual seria o contraponto para o tipo de associação antes
sugerida. É que ela torna impossível a vivência do pluralismo razoável entre
doutrinas divergentes, uma vez que somente uma delas seria verdadeira e, por isso,
110
receberia uma chancela de confirmação supraindividual. É desse ideal de
comunidade que se aproxima da idéia de liberdade positiva, enunciada por Berlin,
em que o anseio de autodomínio ou de “ser senhor de si”, um sujeito e não um
objeto (instrumento dos próprios atos e não dos atos de outros), leva à necessidade
de identificação de um verdadeiro “eu” (coletivo) que é comum e concentra os
valores para a boa vida em sociedade, a qual está legitimada a coagir os indivíduos
que se desviarem desse ideal.
92
Nela, o uso da razão pública restringe-se aos
argumentos relativos à correta ou à incorreta interpretação da realidade ou da
doutrina abrangente reconhecida. A própria doutrina não pode ser debatida, que
ela deve ser tomada como evidente. Além disso, o status do indivíduo (particular) é
medido e conferido segundo a realização desses fins últimos, de maneira que a
prática continuada de atos virtuosos ou a afirmação desses valores comuns é que
conferem o critério de discriminação e o grau de privilégio cabível a cada um.
93
Então, dados os fatos e as circunstâncias da justiça apontadas por Rawls,
uma sociedade não pode ser bem organizada e justa se for assemelhada a uma
associação ou a uma comunidade, se não definir o espaço blico como âmbito da
unidade social, da reconciliação dos seus cidadãos com suas instituições justas e
com a cultura pública a qual pertencem – a cultura pública de origem histórica liberal,
mas que ainda deve ser esclarecida de maneira adequada para realizar o ideal de
uma democracia constitucional. Assim, as associações e as comunidades são vistas
pelo autor como partes integrantes da sociedade política, que devem ter seu espaço
garantido de vivência, porém, se subordinando ao senso de justiça.
Com isso, os valores políticos expressos pelos princípios de justiça, que
preservam o uso da razão pública e que conformam, de uma maneira mais geral, a
92
Esclarecendo esse ponto, leia-se o seguinte comentário de Berlin: “No presente, os dois eus podem
ser representados como que divididos por uma lacuna ainda maior; o eu real pode ser concebido
como algo mais amplo que o individual (como o termo é normalmente compreendido), como um
‘conjunto’ social do qual o indivíduo é um elemento ou aspecto: uma tribo, uma raça, uma Igreja, um
Estado, a grande sociedade dos vivos e mortos e dos nascituros. Essa identidade é então identificada
como um eu ‘verdadeiro’ que, impondo sua vontade coletiva ou ‘orgânica’ única sobre seus
recalcitrantes ‘membros’, alcança sua própria liberdade ‘mais elevada’ e, portanto, também a deles.”
(BERLIN, 2002a, p. 238.)
93
Poder-se-ia utilizar outras idéias organizadoras da sociedade, como as sugeridas no segundo
capítulo, item 3.2.1., para indicar em que sentido elas são entendidas como associações ou
comunidades, ou como incluem valores não-públicos para regular a estrutura básica da sociedade.
Ainda poder-se-ia sugerir comparações entre a teoria da justiça como eqüidade e propostas
comunitaristas como as de Walzer ou Taylor, que exigem um tanto de respeito aos elementos da
cultura pública moderna referidas por Rawls, como, por exemplo à tradição dos direitos humanos.
Mas, para simplificar, e não se desviar do enfoque do trabalho, indica-se que tais propostas oferecem
respostas que não compreendem a sociedade no sentido político que se delineará aqui, embora, em
alguma medida dela se aproxime por vias diferentes.
111
justificação pública e a legitimidade dos poderes instituídos e dos direitos atribuídos
aos cidadãos e às associações e comunidades, é que produzem a unidade social e
constituem o bem da sociedade política pensada por Rawls.
Nesse sentido, o filósofo esclarece:
Uma sociedade bem-ordenada, assim definida, não é, portanto, uma
sociedade privada, pois os cidadãos têm fins últimos em comum. Embora
seja verdade que eles não afirmam a mesma doutrina abrangente, afirmam
a mesma concepção política; e isso significa que eles compartilham um fim
político básico, de alta prioridade, ou seja, o fim de defender instituições
justas e serem, assim, justos uns com os outros, para não falar dos outros
fins que também têm de compartilhar e realizar em sua cooperação política.
Além do mais, numa sociedade bem-ordenada o fim da justiça política
inscreve-se entre os objetivos mais básicos dos cidadãos por meio dos
quais exprimem o tipo de pessoa que querem ser. Desta última observação,
infere-se que uma sociedade política é uma comunidade se agora
entendermos por comunidade uma sociedade, incluindo uma sociedade
política, cujos membros nesse caso, cidadãos compartilham certos fins
últimos aos quais atribuem alta prioridade, de tal forma que, ao proporem
para si mesmos o tipo de pessoas que querem ser, incluem esses fins como
essenciais. É claro que essas definições de comunidade não bastam para
que elas se concretizem; não passam de estipulações verbais. O que é
fundamental é que na sociedade bem-ordenada definida pela concepção
política de justiça os cidadãos se caracterizam por ter os fins últimos do tipo
necessário. (RAWLS, 2003, p. 284)
Dessa forma, a sociedade bem-ordenada, considerada como uma sociedade
política, realiza duas formas de bem que as associações e as comunidades podem
não alcançar. Um bem é individual - porquanto, possibilita que o cidadão realize
suas duas faculdades morais (de bem e de justiça), garantindo-se o respeito mútuo
por si e pelos outros e obtendo o reconhecimento público da sua condição de livre e
igual e outro é social que se torna possível manter, com êxito, instituições
democráticas razoavelmente justas por um longo período de tempo. Essas duas
formas de bem é que garantem a confiança dos indivíduos nas suas instituições,
realizando-se, assim, a função de reconciliação da filosofia política. Rawls destaca
que:
[...] quanto mais eles considerem a sua sociedade política um bem para eles
mesmos, tanto como corpo coletivo quanto como indivíduos, e quanto maior
seu apreço pela concepção política [...], menos serão incitados pelas
atitudes especiais da inveja, rancor, desejo de dominar e a tentação de
privar os outros de justiça. (RAWLS, 2003, p. 288)
112
Uma sociedade politicamente bem-ordenada não tem caráter messiânico ou
sagrado e a esperança nela depositada depende mais de sua capacidade de
resolver os conflitos mais importantes da cultura pública, a partir do ponto de vista
presente (de pessoas – eu e você – que têm interesses particulares, mas que
também pretendem se entender e se reconciliar com o mundo social existente). O
que Rawls afirma é a possibilidade de se viver numa sociedade mais tolerante e
democrática, em que as pessoas adquirem o senso de justiça e respeitam os termos
da cooperação social que elas entendem serem justos.
Mas, mesmo uma sociedade assim não é absolutamente imune a conflitos,
até porque novos problemas, neste momento inimagináveis, provavelmente surgirão.
Portanto, o legado do político, ou melhor, da visão ordenada do político, é
justamente possibilitar que tais problemas mantenham o foro comum (o espaço
público) para sua resolução. O que se perpetua é a maneira de resolver os conflitos
e não a sua solução. Ou seja, uma sociedade política não resolve todos os conflitos
e problemas sociais. Por mais que se adotem os princípios de justiça numa
sociedade real, e por mais pacífica e justa que ela se torne, as reivindicações
conflitantes dos cidadãos e de seus grupos sociais continuarão existindo. Em vista
disso, a pretensão é que a solução violenta e o uso arbitrário da força sejam cada
vez menos utilizados numa sociedade bem-ordenada, o que é feito com a
aproximação dos cidadãos do seu espaço público não porque se sentem
ameaçados ou coagidos, e.g. com a perda de benefícios sociais ou de direitos
(embora esse tipo de motivação até possa ser considerada quando se está muito
longe de um consenso sobreposto), mas porque vêem essa aproximação como algo
importante na vida social e na realização de sua identidade pública de cidadão.
O político, no sentido ideal que Rawls emprega, ao reduzir os conflitos
violentos a questões fundamentais a serem discutidas no espaço público, limita o
recurso à força, revitalizando o ideal democrático de legitimar materialmente seus
comandos (ou seja, com a participação efetiva dos seus cidadãos). Evidentemente
que o recurso à força não está descartado. Mas seu uso limitar-se-á a combater as
violações mais fundamentais ao senso de justiça dos cidadãos de uma sociedade
bem-ordenada. Logo, somente condutas intolerantes e irracionais serão sujeitadas
pela coação estatal. Somente o ódio à cooperação social será objeto, por exemplo,
do direito penal numa sociedade bem-ordenada.
113
Nesta sociedade, o espaço blico não é uma “arena” em que há vencedores
e perdedores, mas o ambiente em que os cidadãos, a partir de um ponto de vista
comum (oferecido pelos princípios de justiça e pelo senso de justiça que ele
oferece), decidem, eqüitativamente, as questões que precisam ser detalhadas na
sua legislação e nas políticas de seus governos. Por conseguinte, o conflito mais
intenso é resolvido primeiro no plano teórico para, depois de “amenizado”, ser
introduzido no plano prático e histórico da legislação, das políticas públicas e das
práticas judiciárias.
É necessário observar que Rawls não reduz o político ao acordo teórico, uma
vez que muitas discussões políticas permanecem em aberto e devem ser resolvidas
em discussões concretas, tais como a definição do tipo de propriedade dos meios-
de-produção que a sociedade reconhecerá como legítima (se pública ou privada), o
tipo de tributação, a forma de educação de seus cidadãos entre outras coisas.
Então, o procedimentalismo rawlsiano não “está a anunciar que o diálogo não vale
nada e que devemos procurar a acomodação prática de diferentes pontos de vista, e
não o intercâmbio intelectual sobre questões fundamentais.” (KUKATHAS, 1999, p.
177). Em vez disso, o diálogo, o debate e o conflito dele decorrentes permanecem,
porém limitados pelo que é razoável esperar de cidadãos que pretendem resolver
suas diferenças de maneira pacífica e tolerante. As armas deixam de ser bélicas e
passam a ser discursivas: a retórica; a persuasão; o convencimento. Tudo isso
poderá ser usado sob os limites razoáveis dos princípios de justiça.
Isso serve para que o objetivo comum seja constituir e preservar as
instituições justas numa sociedade democrática, num regime constitucional. A justiça
posta desta maneira considera a proximidade (e a amizade) dos cidadãos não pelo
seu nculo étnico, nem pelo seu vínculo econômico, religioso, mas pela vinculação
que têm com a tradição moderna, ordenada sob princípios de justiça, que produz um
bem-comum, o bem da sociedade bem-ordenada, o bem das instituições blicas
justas. A proximidade e a amizade se dão em termos cívicos e institucionais e a
reciprocidade se em relação a todas os cidadãos que participam e se favorecem
da cooperação social. Essa reciprocidade (num sentido positivo e benevolente), que
expressa as duas formas de bem da sociedade bem-ordenada (o bem para o
indivíduo e o bem para a coletividade) é, portanto, mais larga e pretende abranger,
de certa forma, a humanidade (vide O Direito dos Povos).
114
A sociedade bem-ordenada, se entendida no sentido político delineado por
Rawls, consegue realizar o bem racional (conflituoso) de seus integrantes, ao
mesmo tempo em que estabelece uma idéia de bem-comum (consenso) que todos
os seus membros (cidadãos razoáveis) sentem-se honrados em realizá-lo. É o bem
de viver numa sociedade bem-ordenada cujas instituições justas o admiradas e
reforçadas por seus membros.
Assim, estabelecer e dirigir com êxito instituições democráticas
suficientemente justas (ainda que sempre imperfeitas), e isso durante um
longo período, eventualmente reformando-as progressivamente ao longo de
gerações, malgrado as falhas prováveis e mesmo certas, representa um
bem social muito importante e como tal reconhecido. É o que revela o fato
de um povo poder referir-se a isso como uma das grandes realizações da
sua história. (RAWLS, 2002b, p. 323)
Esse bem político (da sociedade bem-ordenada) é metaforicamente ilustrado
por Rawls, na seguinte passagem:
Que esses bens políticos e sociais devem existir é tão evidente quanto o
fato de os membros de uma orquestra, os jogadores de um mesmo time ou
até de dois times opostos deverem sentir prazer e certo orgulho (justificado)
em dar um bom concerto ou jogar uma partida memorável. o dúvida
alguma de que as condições a serem satisfeitas se tornam mais difíceis
quando as sociedades crescem e se ampliam os distanciamentos sociais
entre cidadãos, mas essas diferenças, por mais importantes e cerceadoras
que sejam, não afetam o princípio psicológico implicado. Ademais, mesmo
quando as condições de sua efetivação são inteiramente imperfeitas, esse
bem continua longe de ser desprezível; a consciência de ser privado dele
pode ter igualmente um impacto importante por exemplo quando um povo
democrático distingue diferentes períodos na sua história ou quando se
orgulha de poder destacar-se de outros povos não democráticos. (RAWLS,
2002b, p. 324)
Nesta imagem, o fato de se observar as regras razoáveis de se tocar o
mesmo concerto, segundo o mesmo sistema musical, ou de se disputar um jogo
cujas regras são comumente divididas, produz um bem que é independente do
resultado individual de cada jogador ou de sua orquestra/equipe (vitória/sucesso ou
derrota/insucesso). Por analogia, as idéias de reciprocidade (ou de mutualidade) e
eqüidade, destacadas na avaliação da concepção-modelo da sociedade como
sistema eqüitativo de cooperação, representam, de certa forma, as regras e o
resultado esperado do concerto ou do jogo mencionados. Daí a idéia de que o
político, numa sociedade bem-ordenada, deve promover a continuidade de um
embate bem-ordenado, que produza um bem individual e um bem-comum.
115
Perceba-se que o senso de justiça não está somente nas regras instrumentais
do jogo ou do concerto, mas também no seu resultado, que não é excludente,
embora às vezes, possa ser mais vantajoso, num certo momento, mas de maneira
aceitável, para algum participante ou para seu grupo. Então, o bem de uma
sociedade justa, com instituições bem ordenadas, é um bem-comum diferente do
bem individual e, nesse sentido, constitui-se como uma maneira de se conduzir a
vida pública como algo que completa a identidade dos cidadãos razoáveis.
O resultado esperado é que a sociedade política, ao longo do tempo, ou seja,
historicamente, produza a afinidade entre os cidadãos (amizade cívica), porque eles
percebem que poderão continuar dela participando continuamente, não só para
extraírem alguma vantagem, mas porque, a despeito de serem excelentes,
talentosos, de serem suficientemente altruístas e a heróicos em seus atos
particulares, confiam que podem conviver e participar de um mundo social comum,
unindo forças para legitimamente defendê-lo.
Daí a importância que Rawls atribui a pensar a filosofia política como
reconciliação, ou seja, como a superação das contradições que os indivíduos
possam ter com o seu mundo social, como se ele fosse o ambiente do risco e da
perda. A filosofia política funciona, então, como uma forma de defesa do mundo
social que se tem e com o qual se deve reconciliar, na medida em que a reforma das
instituições públicas existentes aproxima os cidadãos razoáveis do ideal de
sociedade política bem-ordenada.
116
5 CONCLUSÃO
Por tudo que se expôs, pode-se afirmar que, a despeito das dificuldades que
envolvem a definição dos termos da justiça, o quanto a sua possibilidade, mas
quanto a sua legitimação, Rawls propõe uma teoria cuja pretensão é encontrar
princípios de justiça para enfrentar os problemas mais fundamentais da cultura
pública moderna, considerando o que nela há de mais característico.
A via escolhida pelo autor para discutir estas questões é de caráter filosófico
e, ao reconhecer as dificuldades da razão ou os limites do juízo, abandona a busca
da verdade sobre os valores da justiça, em termos epistemológicos ou metafísicos.
Substitui-se a pretensão de verdade teórica pela de razoabilidade, restringindo-se a
investigação ao fato do pluralismo razoável da referida cultura, que pode formar um
ponto de vista comum. Isso se porque o filósofo acredita que a própria maneira
de compreender a filosofia política sofreu alterações na modernidade com a
introdução das idéias de tolerância (promovida pela Reforma religiosa no século XVI)
e das instituições democráticas, constitucionalmente organizadas, que fomentam o
desenvolvimento do pluralismo de doutrinas morais, filosóficas e religiosas
irreconciliáveis entre si.
Em face disso, Rawls destaca que sua teoria filosófica da justiça é
estritamente política, sendo aplicável somente às sociedades democráticas
modernas. Seu objetivo é equacionar o conflito sobre as questões blicas mais
elementares para a ordenação do ideal de perfeição democrática. Trata-se da
dificuldade de arranjar os valores da igualdade e da liberdade, da maneira de
justificar o objetivo das instituições políticas e sociais (se mais igualitárias ou mais
liberais) ou da forma de fixar as questões constitucionais básicas e os termos da
reciprocidade social para se assegurar que as regras e ações públicas sejam
efetivamente legítimas.
A solução apresentada pelo autor é mais abstrata que as das concepções e
teorias que compõem o embate antes mencionado e, por conta disso, afirma-se que
a teoria da justiça como eqüidade não as privilegia, considerando-as igualmente
importantes e igualmente representativas da cultura pública moderna.
Com isso, Rawls pretende sustentar sua teoria como referencial político
comum das várias doutrinas abrangentes conflitantes, o que é feito com o uso de um
117
procedimento construtivista que usa de várias estratégias metodológicas (evitameto
ou esquiva, equilíbrio reflexivo e abstracionismo concreto) para delimitar as razões
que serão consideradas válidas na formulação de concepções-modelos,
consideradas como a base objetiva da sua teoria.
Tais concepções (da pessoa, da sociedade, da estrutura básica da sociedade
e da posição original) são estipuladas, inicialmente, de maneira formal e normativa
para, depois de ordenadas e orientadas na posição original, ganharem o conteúdo
político e ideal que orientará a reforma das instituições políticas e sociais reais que,
ao longo do tempo, reconciliarão os cidadãos com o seu mundo social e a sua
cultura pública.
Assim, para o propósito de esclarecimento público (no plano da prescrição
institucional) a pessoa é considerada formalmente como livre e igual e capaz de
apresentar reivindicações legítimas para realizar um projeto racional de vida. Para
conciliar as reivindicações das pessoas e de suas associações e comunidades,
toma-se como objeto primário da justiça a estrutura básica da sociedade, em relação
à qual se atribuem os direitos/deveres e distribuem-se os bens sociais, a partir de
um sistema eqüitativo de cooperação que efetivamente regula uma sociedade bem-
ordenada. Nesse sistema, que é o meio termo das idéias de solidariedade e de
benefício mútuo, estabelecem-se os termos eqüitativos, com o auxílio do artifício
metodológico da posição original.
O conteúdo dos termos da cooperação social é alcançado pelo procedimento
eqüitativo da posição original, que delimita previamente as condições razoáveis em
que as referidas pessoas, raciocinando como representantes de cidadãos razoáveis,
selecionam os dois princípios de justiça. Uma vez selecionados os princípios, as
idéias formais (concepções-modelos), adquirem um conteúdo político (nem
metafísico, nem epistemológico). Trata-se de um ideal que pretende conciliar
soberania popular e autonomia privada, a proteção das liberdades básicas
individuais e as reivindicações de mais igualdade material dos cidadãos menos
favorecidos, possibilitando que as regras políticas e sociais mais importantes sejam
materialmente legitimadas por todos os cidadãos.
Esse ideal, que é utópico, pretende ao mesmo tempo ser realista e
reconciliador. Isso quer dizer que os princípios de justiça (no plano da viabilidade)
deverão se revelar viáveis e estáveis, diante dos fatos mais importantes da cultura
pública moderna, apresentado uma opção que, ao mesmo tempo, conquiste um
118
consenso sobreposto e que motive os cidadãos razoáveis a agirem segundo seus
preceitos.
Para alcançar a estabilidade deste ideal e torná-lo concretizável, Rawls
introduz algumas revisões e reformulações ao conceito de sociedade bem-ordenada,
motivado pela crítica comunitarista. Por conta disso, o filósofo procura esclarecer em
que sentido a sua concepção de justiça é política e autônoma, em relação a
doutrinas racionais e abrangentes, como ela lida com o fato do pluralismo razoável e
como a sociedade bem-ordenada não deve ser interpretada como uma associação
para realização de fins privados, nem como uma comunidade unida por uma
doutrina abrangente que professa valores não-públicos. Isso se com a ênfase ao
caráter público que o sentido de “político” assume em sua obra. O próprio contorno
do conceito de político modela o tipo de união social e o tipo de bem que a
sociedade bem-ordenada produz.
Para Rawls o político é marcado pela continuidade das categorias do
consenso e do conflito. No plano da teoria ideal resolve-se o conflito sobre a maneira
de constituir o ideal de “perfeição” democrática, a partir um acordo razoável sobre os
princípios de justiça, para que o conflito (real) prático e histórico não seja
desordenado e se conduza a um fim trágico ou a um acordo instável. Ou seja,
estabelece-se um acordo teórico razoável, para reduzirem-se os conflitos práticos
sobre as questões fundamentais da cultura pública moderna a um patamar razoável.
Isso significa que a união social promovida pelo consenso teórico (consenso
sobreposto) é autônoma (porém, não absolutamente independente), porque lida
somente com valores políticos, que podem ser justificados publicamente e que
podem ser reconhecidos e reforçados por doutrinas abrangentes razoáveis. Nesse
sentido, o consenso sobreposto representa a união social das várias doutrinas
professadas pelos cidadãos razoáveis, individual e coletivamente (no âmbito de suas
associações e comunidades), que encontram, nos dois princípios de justiça, o ponto
incontroverso de suas reivindicações recíprocas.
Daí a referência de que o ideal político de sociedade bem-ordenada não deve
ser confundido com os ideais de uma associação ou de uma comunidade e que o
tipo de bem produzido pela concepção rawlsiana de justiça é marcadamente
institucional. Esse bem da justiça tem um caráter duplo. Ele produz um bem para os
cidadãos, que realizam seu projeto de vida e seus objetivos sociais comuns em suas
associações e comunidades. E realiza um bem-comum, que é o de professar os
119
mesmos valores políticos comuns (embora, reconhecendo-os a partir de doutrinas
diferentes), que garantem a ordenação estável da estrutura básica da sociedade, a
qual os cidadãos se comprometem em reformar e a defenderem quando justas.
Trata-se de um fim comum que eles afirmam e sentem-se honrados em defender.
Essa afinidade comum que os cidadãos dividem, de caráter cívico e
institucional, é assegurada no seu próprio mundo social que, devidamente ordenado
pelos princípios de justiça, não é hostil à proteção de suas liberdades básicas ou aos
seus projetos de vida boa (individuais ou coletivos). Nesse sentido, numa sociedade
política bem-ordenada, os cidadãos reconciliam-se com suas instituições porque
sabem que elas amparam suas reivindicações legítimas (justas), porque elas não
são arbitrárias, porque elas perpetuam uma forma razoável de resolver os conflitos
políticos e sociais no espaço público.
Portanto, mais que uma idéia formal e normativa, a sociedade bem-ordenada
é um ideal político de perfeição democrática, em que todos os cidadãos estão
habilitados a legitimarem suas regras públicas. Mais que um meio para satisfação de
necessidades não-públicas, a sociedade bem-ordenada é um fim comum, que
realiza um bem de natureza especial, o bem público de partilhar instituições justas.
120
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