Download PDF
ads:
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Cristiane da Silva Ferreira
Ethos discursivo e Cenas de enunciação em letras de
música de raiz
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
SÃO PAULO
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Cristiane da Silva Ferreira
Ethos discursivo e Cenas de enunciação em letras de
música de raiz
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do tulo de Mestre
em Língua Portuguesa, sob a orientação
do Prof. Dr. Jarbas Vargas Nascimento.
SÃO PAULO
2008
ads:
Banca Examinadora
____________________________
____________________________
____________________________
RESUMO
Autor:
Cristiane da Silva Ferreira
Título:
Ethos discursivo e Cenas de enunciação em letras de música de raiz.
O discurso das letras de música de raiz nos remete a uma cultura
permeada de tradições, hábitos e valores sociais que resultou do hibridismo
cultural indígena, europeu e africano: a cultura caipira.
Por meio do discurso das letras, conhecemos, ainda, a ideologia e o ethos
do homem caipira, representante de um grupo social que contribuiu para o
progresso do país. Este ethos, de certa forma, nos é previsível devido à memória
discursiva e aos estereótipos que permeiam a sociedade em relação ao caipira.
Diante destas considerações, o que pretendemos neste trabalho é examinar
como o ethos manifestado nas seis letras selecionadas nos revela aspectos
identitários e culturais do homem brasileiro. Conforme postula Maingueneau
(1997), o ethos discursivo é inseparável da cena enunciativa na qual ocorre a
representação da enunciação.
Sendo assim, pudemos concluir em nossa amostra a relação entre ambos,
pois a cena é construída de modo que evidencie o caráter do enunciador que,
dada a semelhança do modo de vida, representa o sujeito-autor das letras. As
coerções genéricas e ideológicas nestes discursos nos permitiram conceber a
música de raiz como um gênero discursivo.
Tendo em vista os objetivos expostos acima, a Análise do Discurso
mostrou-se uma metodologia adequada porque sua relação com a Lingüística, a
Psicanálise e a História nos permitiu explorar a língua e o discurso, relacionando-
os a fatores histórico-sociais.
Palavras- chave:
sica de raiz, Análise do Discurso, ethos discursivo, cenas
de enunciação, enunciador, sujeito-autor e ideologia.
ABSTRACT
AUTHOR: Cristiane da Silva Ferreira
TITLE: Discursive ethos and Enunciation scenes in Brazilian original country
music.
The real meaning of the Brazilian original country music’s lyrics leads us to a
culture full of traditions, habits and social values, the rural culture that comes from
a mix of Indian, European and African cultures.
By the lyrics’ discourse, we get to know also the ideology and the ethos of the
country man, representing a social group that contributes to the nation’s progress.
This ethos is somewhat predictable, because of the memory and the stereotype
our society has, regarding that country man.
After these considerations, our intention with this work is to examine how the
ethos, showed in those six lyrics we chose, reveals identifying and cultural aspects
of the Brazilian men. According to Maingueneau (1997), the ethos is inseparable
from the enunciative scene where the performance occurs.
So we could conclude, in our sampling, the relation between them, because the
scene is built so that it reveals the character of the performer, who has a life style
similar to the author of the lyrics’ lifestyle. The generic and ideologic coercion
within these discourses allow us to conceive the native country music as a
discursive kind of music.
Aiming at the above objectives, the Discourse Analysis proved to be an adequate
method, because its relation with Linguistic, P
sychoanalysis and History, made
it possible for us to explore the language and the discourse, linking them to
social-historic factors.
Key-words: country music, discourse analysis, discursive ethos, enunciation
scenes, performer, subject-author, ideology.
AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente, a Deus por me iluminar e me conduzir nesta
caminhada, colocando as pessoas certas em minha vida;
Ao Prof. Dr. Jarbas Vargas Nascimento, fonte de sabedoria e humildade, pela
paciência com que me orientou desde o início, minha eterna gratidão;
Ao Prof. Dr. Luiz Antonio Ferreira e à Profa. Dra. Nílvia Pantaleoni, pela leitura do
texto e pelas observações pertinentes;
A todos os professores do Programa de Pós-Graduação de Língua Portuguesa
desta Universidade pelas valiosas contribuições em minha carreira e em minha
vida;
Aos meus queridos pais e irmãos que, mesmo em suas críticas, sempre me
ofereceram amor e estímulo em minhas decisões;
Ao meu inestimável sobrinho, Pedro Henrique, por me proporcionar carinho e
alegria, fazendo-me interromper algumas vezes a pesquisa para lhe dar a devida
atenção;
Aos meus queridos amigos de infância, com quem tenho agradáveis encontros e
lembranças;
À Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAPES-
que, ao me conceder o subsídio financeiro, me possibilitou a execução deste
trabalho.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 1
CAPÍTULO I-ANÁLISE DO DISCURSO COMO METODOLOGIA DE ANÁLISE 7
DE LETRAS DE MÚSICA DE RAIZ
1.0. Introdução 7
1.1. A Análise do Discurso: Percursos teóricos e epistemológicos 7
1.2. A Análise do Discurso: Dispositivos teórico-metodológicos 12
1.2.1. Texto e Discurso 17
1.2.2. Língua, Sujeito e Ideologia 18
1.3. Autoria e Interpretação 20
1.4. Cenas de enunciação 22
1.5. Contribuições da noção de gênero discursivo no estudo da música de raiz 24
1.6. Ethos Discursivo 26
1.7. Mecanismos Discursivos 30
1.7.1. Discurso escrito e discurso poético musicalizado 30
1.7.2. Dialogismo e Polifonia 33
1.7.3. Interdiscursividade 35
CAPÍTULO II-O CAIPIRA E SUA PRINCIPAL MANIFESTAÇÃO CULTURAL: 38
A MÚSICA DE RAIZ
2.0. Introdução 38
2.1. Um breve histórico da origem do homem caipira 38
2.2. Concepção de música de raiz 44
2.3. A Música de raiz: da roça para o estúdio 51
2.4. Concepção de Música de raiz e de Música sertaneja 55
2.5. O homem caipira e a música de raiz no contexto atual. 58
CAPÍTULO III-A ANÁLISE DA AMOSTRA: APLICAÇÃO DA METODOLOGIA 62
NO DISCURSO DAS LETRAS SELECIONADAS
3.0. Introdução 62
3.1. Contexto de produção da amostra 62
3.2. Análise do texto 1: A caneta e a enxada 66
3.2.1.Temática 67
3.2.2.Análise da superfície lingüística 68
3.2.3. Cenas de enunciação 70
3.2.4. Ethos discursivo 71
3.3. Análise do texto 2: Sodade do tempo véio 74
3.3.1. Temática 75
3.3.2. Análise da superfície lingüística 77
3.3.3. Cenas de enunciação 79
3.3.4. Ethos discursivo 80
3.4. Análise do texto 3:Cabocla Teresa 81
3.4.1. Temática 83
3.4.2.Análise da superfície lingüística 84
3.4.3. Cenas de enunciação 86
3.4.4.Ethos discursivo 86
3.5. Análise do texto 4: Saudades da minha terra 88
3.5.1.Temática 89
3.5.2. Análise da superfície lingüística 90
3.5.3. Cenas de enunciação 91
3.5.4. Ethos discursivo 93
3.6. Análise do texto 5:Terra Roxa 94
3.6.1. Temática 96
3.6.2. Análise da superfície lingüística 97
3.6.3.Cenas de enunciação 97
3.6.4. Ethos discursivo 99
3.7. Análise do texto 6: Cruel destino 100
3.7.1. Temática 102
3.7.2. Análise da superfície lingüística 103
3.7.3.Cenas de enunciação 104
3.7.4. Ethos discursivo 105
CONSIDERAÇÕES FINAIS 106
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 110
1
INTRODUÇÃO
A cultura popular, de modo particular a música de raiz, também chamada
música caipira, sempre nos causou admiração e respeito dada a importância de
sua riqueza cultural e histórica para o país. Nascida de uma mistura de sons
indígenas, africanos e europeus, a música de raiz constitui-se para nós como um
material relevante que retrata a identidade do Brasil que foi durante muito tempo
um país rural e, devido a isso, deve grande parte de seu progresso ao homem do
campo.
O interesse por essas composições foi despertado pelo ambiente familiar,
desde cedo, no qual se cultua esse gênero musical. Eis que, agora, surge-nos a
oportunidade de estudá-lo à luz de uma metodologia científica, a Análise do
Discurso (de agora em diante AD).
É necessário enfatizar logo no início que, embora, de acordo com Tatit
(1996) haja uma interdependência entre melodia e letra, vamos privilegiar a letra e
o discurso como objetos de estudo.
Sendo assim, o que nos motivou a realizar esta pesquisa foi o seguinte
problema: como o ethos é revelado no discurso das letras selecionadas e como se
constitui na cena do discurso. Esse propósito se efetivará com a análise da
construção do ethos, postulada por Maingueneau (1997). Como o discurso
também constrói uma representação de sua enunciação, será alvo de nossa
análise a cena enunciativa.
Tendo em vista que todo discurso está historicamente condicionado, a AD
nos permite recorrer à História para verificarmos as condições de produção das
letras selecionadas para que estas produzam sentidos.
Com base nesta reflexão, temos como objetivo examinar no discurso das
letras se o ethos revelado aponta fatores identitários e culturais do homem
brasileiro e verificar a relação da cena enunciativa com o ethos discursivo.
Importa-nos, ainda, os procedimentos de organização da música de raiz,
relacionando-a a fatores externos, de ordem social, histórica e cultural. Esses
2
procedimentos auxiliar-nos-ão a conceber a música de raiz como um gênero
discursivo.
Para o alcance destes objetivos propostos, a AD é primordial, pois toma o
discurso enquanto produto de um contexto social permeado pela ideologia, aliando
o lingüístico ao extralingüístico. De acordo com Orlandi (2005:9) não
neutralidade nem no uso mais aparentemente cotidiano dos signos. São estes
signos aparentemente simples e ingênuos da música de raiz cuja letra é composta
por pessoas que mal freqüentaram os bancos escolares que têm muito a nos
revelar.
Brandão (2005:9) reforça a idéia de que não discurso sem ideologia ao
afirmar que a palavra...
... é o lugar privilegiado para a manifestação da ideologia;
retrata as diferentes formas de significar a realidade, segundo
vozes e pontos de vista, daqueles que a empregam . Dialógica
por natureza, a palavra transforma em arena de luta de vozes
que, situadas em diferentes posições, querem ser ouvidas por
outras vozes.
As seis letras que comporão nossa amostra para a análise foram
produzidas entre 1937 e 1961, período considerado por Sant’Anna (2000) o auge
da música caipira. Além de um gosto pessoal, levamos em consideração o fato de
essas letras resistirem ao tempo, caracterizando-se como clássicas no nero,
sendo em sua maioria as mais conhecidas e, ainda, cantadas pela população.
Outro critério de seleção foi o discurso dessas letras; pois a relação do ethos
discursivo com a cena enunciativa é determinante na adesão do público,
principalmente o que está envolvido na recusa ideológica da cidade.
No período mencionado acima, as cidades receberam um contingente
significativo da população rural que, devido à industrialização, à urbanização e à
crise do café, vai em busca de uma vida melhor. Evidentemente que, em meio às
dificuldades que o país atravessava, como a alta da inflação e a desaceleração do
crescimento econômico, nem todo migrante conseguiu obter o êxito almejado na
3
cidade. Esse contexto vai refletir-se nessas letras que servem de expressão para
este grupo social.
Temos de considerar que mesmo a população já estabilizada na cidade
tinha laços rurais, pois seus ancestrais viveram na roça. Para Martins (1975: 104),
o público deste tipo de música não é
necessariamente rural, mas cultiva uma experiência
nostálgica produzida ou acentuada pelos próprios meios
de comunicação de massa em torno da cidade
interiorana de origem ou de mundo não urbano
idealizado.
O musicólogo Tinhorão (2000:174) faz a seguinte afirmação
(...) embora já tendo acesso a estilos de vida urbana, ou
residindo na periferia de grandes cidades, as pessoas
do interior ou recém-chegadas de zonas rurais,
precisavam de um som que lhes lembrasse a música de
sua região, mesmo que fosse estilizada sob a forma
vaga e diluída da chamada ‘música sertaneja’.
As últimas linhas da sua afirmação, porém, nos fazem deparar com uma
questão que ainda se torna problemática para muitos autores, ou seja, a tentativa
de se definir música caipira ou de raiz, música sertaneja e sertaneja de raiz.
Para nós, as diferenças entre a música caipira e a sertaneja são bastante
evidentes, embora a segunda tenha se originado da primeira. O que ocasiona
esse embate, de acordo com Caldas (1979), é a apropriação da música em
diferentes épocas por sujeitos diversos o que gera novos sentidos para a cultura
caipira.
Caldas defende que a partir de 1929, época que a música passou a ser
gravada, a música caipira deixou de existir, cedendo espaço para a sertaneja.
Concordamos que, de fato, a indústria fonográfica provocou mudanças na
4
composição de raiz, principalmente no tempo de duração.Todavia, ela não deixou
de existir; apenas sofreu algumas alterações.
Por isso, abordaremos a questão do gênero discursivo com o intuito de
contribuir com uma definição de música de raiz. Para este propósito, adotaremos
as contribuições de Bakhtin (1997) por afirmar que as regularidades e as
tipificações do gênero contribuem para o reconhecimento deste e para o êxito da
comunicação. Bakhtin afirma também que o nero é uma categoria sócio-
histórica suscetível a mudanças.
Ao classificar o gênero dessa maneira, Bakhtin não leva em consideração
apenas os traços textuais como meio de identificação. Todavia não os descarta,
apenas considera redutora essa visão por não atribuir importância ao papel dos
indivíduos no uso e na construção de sentidos.
Essas idéias, portanto, vão ao encontro com nossa proposta cujo objetivo
não se restringe apenas às marcas lingüísticas, mas visa ao discurso e ao sujeito
inserido no seu contexto sócio-historico- cultural. Esta, aliás, é uma das grandes
contribuições da AD, pois embora opere com conceitos da lingüística, ela nos
permite estudar os enunciados sem separá-los de sua materialidade lingüística,
nem de suas condições de produção, abrindo-se à interdisciplinaridade.
Dessa forma, a AD, fundamentada nas ciências sociais e nas ciências
psicossociais, entende que o homem é um ser social dentro de uma estrutura
construída por classe dominante e dominada.
que a nossa sociedade é constituída por relações hierarquizadas,
uma relação de forças nessas letras de música de raiz em que o sujeito fala a
partir do lugar que ocupa. No discurso, não é o sujeito sico que está inserido,
mas sua imagem que resultada de projeções. Essas imagens muitas vezes,
solidificam-se em estereótipos. Dessa maneira, temos a imagem do caipira como
um sujeito ignorante, ingênuo, submisso. A partir daí, faz-se necessário
compreendermos a relação imaginária entre o sujeito e a sociedade.
Frente ao que expusemos, julgamos relevante essa pesquisa, pois, ao
atribuir às letras que selecionamos um valor científico, pretendemos liberá-las do
preconceito tomando-as como um documento que registra nossa história e que
necessita ser preservado.
5
Ainda que permeadas de preconceitos e rejeições por alguns membros da
sociedade que a consideram de baixa qualidade, não como negar seu valor.
Até mesmo grandes intelectuais e artistas como Mário de Andrade e Guilherme de
Almeida se renderam aos versos simples na variante caipira, elogiando-lhes o
sentimento de amor à terra, ao trabalho e à natureza.
Quanto à organização, o presente trabalho tem a seguinte estrutura:
- CAPÍTULO I : apresentaremos o percurso e as fases da AD, desde seu
nascimento até os dias de hoje. Em seguida, trataremos dos dispositivos de
análise e de alguns conceitos-chave desta metodologia que norteia a nossa
pesquisa; bem como alguns mecanismos discursivos que serão úteis no terceiro
capítulo.
- CAPÍTULO II: abordaremos a origem do homem caipira e o contexto de
produção da música de raiz. Trataremos, ainda, da chegada da música ao estúdio
e das semelhanças e diferenças entre a música caipira e a sertaneja. Para
finalizar este capítulo, falaremos do homem e da música caipira no contexto atual.
- CAPÍTULO III: dedicaremos à análise e aplicação dos mecanismos da AD
nas letras selecionadas que constituem a amostra do trabalho.
-CONSIDERAÇÕES FINAIS: serão revistos os objetivos e a
fundamentação teórica e, a seguir, apresentados os resultados da análise.
6
ALMEIDA JÚNIOR, José Ferraz de.
O violeiro, 1899. óleo sobre tela, 141x172 cm
7
CAPÍTULO I
ANÁLISE DO DISCURSO COMO METODOLOGIA DE ANÁLISE DE LETRAS
DE MÚSICA DE RAIZ
1.0. Introdução
A Análise do Discurso consiste em uma metodologia flexível que, desde seu
surgimento, vem passando por transformações tendo em vista uma apreensão
mais eficaz do objeto de estudo: o discurso. Essas reformulações em sua
epistemologia, que suscitaram debates entre os estudiosos do mundo, trouxeram
contribuições valiosas para a AD que acabaram por dividi-la em três fases.
Neste capítulo, faremos uma breve trajetória das fases que compuseram a
AD, bem como os procedimentos de análise que serão aplicados.
1.1. A Análise do Discurso: Percursos teóricos e epistemológicos
No início dos anos 60, a França foi palco de inúmeros debates realizados
pelos intelectuais sobre diversos assuntos, principalmente em torno do
estruturalismo e do marxismo, duas correntes importantes para a compreensão da
AD.
É nesse contexto, sob uma conjuntura dominada pelo Estruturalismo, que a
França o surgimento de uma nova metodologia de leitura de texto que substitui
a Filologia, denominada Análise do Discurso.
Nascida do interesse de lingüistas, historiadores, filósofos e psicólogos, a
AD não visa à mera análise de conteúdo na qual a materialidade lingüística do
texto é suficiente. A AD, como seu próprio nome diz, propõe o discurso, pois ele
evoca uma exterioridade à linguagem que compreende o ideológico e o social.
Embora seja interdisciplinar, a AD pertence ao campo da Lingüística porque
é na materialidade lingüística que o discurso se concretiza. Todavia, a noção de
discurso não é estável que ele se modifica conforme as referências que faz às
diferentes áreas do conhecimento científico. Dessa forma, o olhar do analista que
8
vai definir o discurso de acordo com o seu quadro teórico, tornando o domínio da
AD ilimitado.
A AD, que tomou inicialmente os textos políticos com o intuito de
desmascarar as verdades ali construídas, adquiriu consistência e êxito também
devido à sua prática didático-pedagógica na França, pois a análise do discurso de
textos literários era uma prática comum nas escolas e universidades.
De acordo com Maingueneau (1997), foram os formalistas russos que
abriram espaço para a entrada no campo dos estudos lingüísticos do discurso ao
operarem com o texto. Todavia, serão os trabalhos do lingüista americano Z.H.
Harris, que realiza uma análise sistemática do texto e de R. Jakobson e de E.
Benveniste sobre a enunciação, que serão decisivos para a constituição da AD.
Mazière (2005) afirma que é pela transferência de métodos lingüísticos
americanos para as análises lexicais sociopolíticas tradicionais na França que a
AD é composta. A autora destaca também o papel de Dubois que transporta para
a lingüística estrutural o discurso que passa a ser organizado pelo conceito de
língua e pelos métodos distribucionais e pela ideologia. Contudo, não se funda
ainda uma nova prática disciplinar, pois eram necessários contextos
epistemológicos e os momentos políticos combativos que permitiram o
desenvolvimento institucional da lingüística no seio das universidades no fim dos
anos 60, na França.
O sintagma “análise do discurso” é introduzido por Jean Dubois, professor
da Universidade de Paris X-Nanterre , possibilitando, então, o desenvolvimento da
“Escola Francesa da Análise do Discurso”. Entre 1969 a 1972, surge a “Escola de
Naterre”, primeiro círculo de pesquisadores em AD com a publicação de teses e
com trabalho sobre textos políticos.
A publicação do livro Analyse Automatique du Discours em 1968 do filósofo
Pêcheux é apontada por Mazière como a porta de entrada para a segunda
corrente fundadora da AD. Pêcheux, um leitor atento de Saussure, propõe, nesta
obra, uma teoria na qual se pensa a língua enquanto sistema e caráter social
como a base dos processos discursivos, nos quais estão inseridos o sujeito e a
História.
9
duas grandes vertentes que vão influenciar a AD e sobre as quais
Pêcheux vai elaborar e postular seus conceitos de modo que o lingüístico e o
sócio-histórico se aliem. De um lado, temos a ideologia postulada por Althusser, e
de outro, o discurso de Foucault.
Outro elemento que constitui a AD em seu nascimento é a psicanálise
lacaniana. Lacan faz uma releitura de Freud e apoiado no estruturalismo
lingüístico afirma que o inconsciente se estrutura pelo cruzamento de diversos
discursos e é pela linguagem que ocorre a percepção do discurso do Outro. O
sujeito é considerado como clivado, dividido entre o consciente e o inconsciente,
pois não é totalmente livre para dizer o quer deseja.
A AD é marcada por deslocamentos, principalmente na forma de se
conceber língua e discurso. Essas mudanças acabam por dividi-la, didaticamente,
em três fases: AD1, AD2 e AD3; visto isto que essas épocas não se definem
precisamente pela divisão cronológica, não nos detemos em datas.
A primeira fase, AD1, surge no período áureo do estruturalismo que vigorou
na Europa. Embora seu surgimento tenha provocado rupturas com o
estruturalismo, a AD, ao propor o uso da gramática gerativa, pela análise
transfrástica, ainda apresenta continuidade dessa corrente teórica.
Quanto aos procedimentos de análise, Mussalim (2004) nos apresenta as
seguintes etapas: a) A primeira etapa inicia-se com a seleção do corpus, cuja
preferência se por textos impressos tipologicamente marcados, como os
discursos políticos teórico-doutrinário do Partido Comunista; b) Em seguida, ocorre
a análise lingüística na qual se considera a construção sintática - lexical do corpus;
c) Nesta terceira etapa, contempla-se uma dimensão discursiva em que o analista
questiona o uso de determinadas palavras por meio da substituição e da
paráfrase; d) Por fim, o analista utiliza as relações de sinonímia e paráfrase para
verificar se ambas decorrem de uma mesma estrutura geradora de sentido do
processo discursivo.
Nessa fase, tem-se a exploração da noção de “maquinaria discursiva” na
qual o discurso é considerado homogêneo e fechado em si mesmo e o sujeito é
concebido como ser assujeitado a esta máquina discursiva.
10
A AD2, que corresponde à segunda fase, surge com a noção de formação
discursiva, ( daqui em diante, FD), advinda da obra Arqueologia do Saber de
Foucault (1969) que consiste em
um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre
determinadas no tempo e no espaço que definiram em uma
época dada, e para uma área social, econômica, geográfica
ou lingüística dada, as condições de exercício da função
enunciativa.
Esse conceito faz com que a noção de maquinaria estrutural da AD1 se
diluindo, pois se verifica, segundo Fernandes (2007:88), que uma formação
discursiva constitui-se de outras formações discursivas, de elementos que m de
seu exterior, ao que Pêcheux denominou de pré-construído.
É a FD que determina o que pode e deve ser dito, fazendo com que o
sujeito utilize as palavras relacionadas às condições históricas. Junto a esse
conceito, surge a noção de formação ideológica que consiste na perspectiva de
mundo de uma determinada classe social. Considerando-se que não existem
idéias desvinculadas da linguagem, essa visão de mundo também não existe fora
da linguagem. Assim, para cada formação ideológica existe uma formação
discursiva.
Os procedimentos metodológicos de análise permanecem praticamente os
mesmos da AD1, porém a visão do corpus se modifica ao passo que o analista se
encarrega de verificar os espaços “invadidos” por outras formações.
Surge a noção de sujeito em dispersão devido a inúmeras funções e papéis
exercidos em diferentes espaços discursivos. Esse sujeito, porém, não é livre
porque sua enunciação é controlada pelas diversas formações.
Na terceira fase, denominada AD3, ocorrem as seguintes transformações: a
noção de maquinaria discursiva é totalmente desconstruída, pois os discursos que
compõem uma formação discursiva não são independentes uns dos outros, mas
11
se encaixam no interior de um interdiscurso. Esse novo conceito, que prioriza a
relação interdiscursiva, elimina a análise feita por etapas e com ordem fixa.
A noção de homogeneidade atribuída à noção de condições de produção é
abandonada; a sintaxe não é mais considerada neutra na construção de sentidos;
a noção de enunciação e heterogeneidade passam a ser abordadas e o sujeito,
por sua vez, apresenta-se também como um ser dividido e heterogêneo.
Apesar dessas reformulações pelas quais a AD passou, ela mantém alguns
princípios que lhe são sólidos. Mazière (2005) nos aponta alguns:
- a AD leva em conta a língua, situando-a em um espaço-tempo;
- a AD leva em conta a gramática, as sintaxes e os vocabulários de línguas
particulares;
- a AD analisa corpora heterogêneos;
- sua interpretação leva em conta dados de língua(s) e história, inclusive a
capacidade lingüística do sujeito falante, recusando, assim, o sujeito enunciador
individual.
No Brasil, a AD chegou em 1980, após a abertura política que só foi
possível com o fim da ditadura militar; enquanto, na França, ela estava passando
por reformulações, conforme expomos. Mesmo após a morte de Pêcheux em
1983, a AD continuou a se renovar, graças às contribuições teóricas de
Maingueneau que nortearão nossa pesquisa. Embora se encontre no entremeio
da AD2 e da AD3, valer-nos-emos também das contribuições de Orlandi,
principalmente no que se refere ao dispositivo de análise.
12
1.2. A Análise do Discurso: Dispositivos Teórico- Metodológicos
A AD é uma metodologia que permite ao analista utilizar-se de outras áreas
do conhecimento de acordo com seus interesses frente ao objeto de análise. No
caso do nosso trabalho, as três áreas que se aliaram para dar origem à AD nos
são suficientes: a Psicanálise, a História e a Lingüística.
Em relação ao campo de domínio, Maingueneau (1997) nos chama a
atenção para não cairmos em uma análise superficial e eminentemente lingüística,
levando em conta outras dimensões como:
- o quadro de instituições que restringem fortemente a enunciação;
- os conflitos históricos, sociais que se cristalizam no discurso;
- o espaço próprio que cada discurso configura para si mesmo no discurso.
Quanto à amostra, embora a AD tenha inicialmente se interessado por
textos políticos, passou a contemplar os mais diversos textos como correlato da
posição sócio-histórica do sujeito. De acordo com Maingueneau (op. cit.:14) nem
os textos tomados em sua singularidade, nem os corpus tipologicamente pouco
marcados dizem respeito verdadeiramente à AD.
Neste sentido, as letras de música de raiz se constituem como material de
análise para a AD, pois são práticas discursivas que apresentam regularidades em
sua construção nas quais é possível perceber a manifestação de um sujeito que
se movimenta em um determinado espaço da sociedade e que constrói seu
discurso levando em conta o outro.
A linguagem, então, é concebida pela AD, que aliada à Teoria da
Enunciação e à Pragmática, como interação social na qual o outro desempenha
papel fundamental na constituição do significado. De acordo com Orlandi
(1993:17)
o estudo da linguagem não pode estar apartado da
sociedade que a produz. Os processos que entram em
13
jogo na constituição da linguagem são processos
histórico-sociais.
O elemento que faz o liame entre o lingüístico e o extralingüístico é o
discurso, objeto de estudo da AD. O discurso, entendido como palavra em
movimento na acepção de Orlandi (2005), possibilita-nos entender a relação do
sujeito com a sociedade e a ideologia. Por isso, a AD propõe a relação língua-
discurso-ideologia, colocando-nos uma visão menos ingênua com a linguagem
visto que não há discurso desprovido de ideologia.
Integrante à noção de discurso, tem-se a noção de sentido, questão
fundamental para a AD, que se materializa na enunciação por meio dos sujeitos.
Esse conceito derruba a noção de imanência do significado, pois a AD não toma o
sentido em si mesmo, ou seja, não credita à palavra um significado primeiro,
original e fixo.
É importante salientar que o sentido não é dado a priori, mas é construído
pelo analista por meio da materialidade lingüística e histórica da amostra ou do
corpus. Essa materialidade conduz, direciona o analista de modo que o sentido
não pode ser qualquer um.
Com isso não queremos dizer que o analista é neutro. De acordo com
Maingueneau, o analista é um co-enunciador porque, afetado também pela
ideologia, reconstrói com o autor o sentido do texto, travando aí um diálogo
constante entre ambos. Mesmo diante da escolha da amostra, o analista já está se
posicionando, pois ele próprio tem de fazer uma reflexão prévia sobre as questões
nas quais sua análise se sustentará. Segundo Maingueneau (op. cit.:19)
na ausência desta reflexão prévia, corre-se o
risco de atingir um resultado insignificante,
aplica-se um método a um corpus e obtém- se
algo que representa apenas o resultado deste
método aplicado a este corpus.
14
Tendo em vista que cada corpus apresenta problemas específicos e que o
objetivo da AD não é desvendar o sentido “verdadeiro”, mas o sentido que
desponta da materialidade lingüística e histórica, Orlandi propõe dois dispositivos
de análise: o dispositivo teórico de interpretação e o dispositivo analítico.
O dispositivo teórico consiste nos conceitos da AD mobilizados pelo
analista face às questões ou aos problemas levantados. Essas questões
levantadas, a natureza do material e a finalidade da análise constituem o
dispositivo analítico. Esses dispositivos não são estanques, pois um envolve o
outro durante a análise.
Por isso, dada a abrangência da AD, que permite a exploração de várias
interfaces de um texto, o analista tem de realizar seu trabalho por meio de um
recorte da teoria para não correr o risco de se fazer uma análise superficial ou
exaustiva. Isso seria uma pretensão por parte do analista, visto que todo discurso
é parte de um processo amplo. Dessa maneira, o primeiro passo consiste em
analisar a materialidade lingüística do objeto e seu funcionamento no discurso
visando a compreender como o discurso se textualiza.
Essa materialidade refere-se à sintaxe, ao léxico e à própria enunciação,
fornecendo-nos pistas importantes para a análise. Nesse momento dois processos
se fazem presentes: a descrição e a interpretação.
Como o sujeito que enuncia também interpreta a realidade, cabe ao analista
descrever esse gesto de interpretação, atravessando o efeito de transparência da
linguagem, da literalidade do sentido e da onipotência do sujeito, segundo Orlandi
(2005:61). A interpretação na AD é um dos mecanismos de análise que leva em
conta o sentido, o co-texto e o contexto imediato. a compreensão está num
grau mais elevado que a interpretação, porque visa a saber como um objeto
simbólico produz sentidos.
Dessa forma, o texto não é o objeto final da análise, mas é a unidade na
qual o analista se rende para verificar como o discurso se textualiza. Essa
passagem do texto em um objeto discursivo consiste na segunda etapa, cujo
propósito é não se deter somente nas palavras, pois os sentidos envolvem a
exterioridade que, por sua vez, compreende as condições de produção.
15
As condições de produção envolvem basicamente o sujeito e a situação,
que pode ser subdividida em contexto imediato e em contexto amplo. O contexto
imediato compreende as circunstâncias da enunciação e o contexto amplo
abrange o contexto sócio-histórico e ideológico do texto em questão.
Neste processo, a linguagem se assenta entre o mesmo e o diferente; ou
melhor dizendo, entre a paráfrase e a polissemia. A paráfrase consiste na
retomada dos dizeres para que as palavras já ditas voltem a se significar. Isso não
quer dizer que não haja o novo, o diferente que ocorre graça à polissemia.
Maingueneau atribui à parafrasagem um lugar especial na AD, que a
mantém desde seu início. Segundo o autor (1997:96),
a parafrasagem aparece em AD como uma
tentativa para controlar em pontos nevrálgicos a
polissemia aberta pela língua e pelo
interdiscurso. Fingindo dizer diferentemente a
“mesma coisa” para restituir uma equivalência
preexistente, a paráfrase, abre na realidade, o
bem-estar que pretende absorver, ela define uma
rede de desvios cuja figura desenha a identidade
de uma formação discursiva.
A polissemia permite que esses dizeres tenham novos sentidos valendo-se
da criatividade. Segundo Orlandi (2005:38),
a polissemia é a fonte da linguagem uma vez
que ela é a própria condição de existência dos
discursos pois se os sentidos- e os sujeitos- não
fossem múltiplos, não pudessem ser outros, não
haveria necessidade de dizer
16
É por meio dessa relação entre a paráfrase e a polissemia que o analista se
propõe a compreender a relação do político com o lingüístico na constituição dos
sujeitos e na produção dos sentidos.
Vale destacar que o sujeito sempre se expressa a partir de uma posição
social. Suas palavras são testemunhas de sua realidade, de sua formação
discursiva. O conceito de formação discursiva corresponde àquilo que pode e
deve ser dito, num espaço e num tempo. Maingueneau (1997) ressalta que uma
formação discursiva não pode ser considerada como um bloco homogêneo, mas
como um domínio heterogêneo aberto e instável na qual diferentes formações
discursivas coexistem, surgindo o interdiscurso.
O interdiscurso tem relação com a memória discursiva, pois ele permite que
os dizeres que já foram ditos tenham sentido em nossas palavras. O sujeito, como
se postulava na AD1, nunca é a origem de seu dizer.
Outro processo que precisa ser levado em conta na produção de sentidos é
a metáfora que, na AD, significa transferência, deslize de sentidos. A metáfora é
inerente à linguagem, pois, conforme evocamos, o sentido não é literal, não é fixo.
Cabe ao analista interpretá-la para chegar a ideologia.
A análise começa a adentrar no processo discursivo que se refere à terceira
etapa. Aqui se dá a relação das formações discursivas com a ideologia. O analista
explica nessa fase porque o texto tomou esse sentido e o outro sempre
relacionando o lingüístico com o histórico e com o ideológico. Trabalhando essas
etapas, que são flexíveis, pois permitem um constante ir e vir entre teoria, corpus
e análise, o analista observa como seu objeto de estudo produziu sentidos.
À medida que o analista vai permeando o discurso, automaticamente vai se
afastando do texto; porém não o abandona por completo porque ambos mantêm
entre si uma intrínseca relação que dever ser considerada na AD. Todavia são
termos diferentes, cada qual com seu conceito; embora sejam, muitas vezes,
tomados um pelo outro. No item a seguir, vamos tratar sobre esses termos.
17
1.2.1. Texto e Discurso
A AD concebe o texto, seja ele oral ou escrito, como unidade lingüística
portadora de significação na qual o discurso se manifesta. O texto, então,
independente de sua extensão, revela-se uma unidade muito mais complexa do
que simplesmente uma seqüência de frases.
Enquanto objeto discursivo, o texto não é uma unidade fechada com
começo, meio e fim porque se relaciona com outros textos e com a memória
discursiva. Logo, ele não é apenas um objeto lingüístico, mas histórico também,
que se abre às diferentes leituras.
Essas leituras variadas, segundo Orlandi (2001), são possíveis devido ao
equívoco e à incompletude que são próprios da linguagem e que se instalam no
texto constituindo um espaço de interpretação. À medida que permeamos o
discurso, vamos nos distanciando do texto, dessa materialidade lingüística, pois o
objeto final da análise não é o texto, mas o discurso que integra as intenções e a
ideologia do sujeito.
Nesse sentido, discurso não é fala conforme conceitua o senso comum,
nem texto e tampouco língua. O conceito postulado por Brandão (2005:11) de que
o discurso é o ponto de articulação dos processos ideológicos e dos fenômenos
lingüísticos parece-nos o mais adequado. É nesse entremeio que se a análise,
que rompe com a estrutura lingüística para penetrar no discurso.
O texto nos direciona por meio da materialidade lingüística, de modo que o
sentido não possa ser qualquer um. A análise, porém, não estagna no lingüístico
porque o texto tem relação com a exterioridade. Mesmo atingindo o discurso,
devemos ter em mente que acessamos apenas a uma parte dessa teia que é
atravessada por inúmeros interdiscursos.
Cabe ao analista relacioná-lo ao contexto histórico-social para estabelecer
uma articulação entre o texto e o discurso. Por isso, conforme afirmamos no início,
ambos são elementos polissêmicos que dependem um do outro para produzir
sentido. De acordo com Orlandi (2005), a ideologia se materializa no discurso e o
discurso, por sua vez, no texto.
18
Dessa forma, fica-nos evidente a relação entre texto e discurso, pois, como
o propósito, nessa dissertação, é analisar o ethos e a construção da cena
enunciativa, o texto é o ponto de partida para nos deparar com os fenômenos
lingüísticos que servir-nos-ão de suporte como: o aspecto formal das letras, a
seleção lexical, a sintaxe no discurso das letras de música de raiz. Todavia, é na
instância do discurso que o ethos e a ideologia do sujeito se manifestam.
1.2.2. Língua, Sujeito e Ideologia
Sob a ótica da AD, língua não é considerada um sistema abstrato,
ideologicamente neutro com a finalidade de transmitir informações. Se se
concebesse a língua dessa forma não haveria razão de existir a AD, pois ela se
distingue justamente por conceituar a língua como interação social, sujeita a
falhas, equívocos e, principalmente, como condição da realização do discurso.
A AD trabalha a língua inserida na história para produzir sentidos, levando
em conta os sujeitos que a falam. Dessa maneira, a forma da ngua é menos
solicitada, pois o que interessa é o funcionamento das marcas lingüísticas no
discurso, ou seja, que efeitos de sentidos elas provocam.
O sujeito na AD é, conforme Orlandi (2005), assujeitado porque ele pode
dizer tudo desde que se submeta à língua e à história assumindo o vocabulário e
as estruturas da instituição a que se afilia. Essa assertiva verifica-se no discurso
das letras de música de raiz, pois o sujeito enuncia utilizando-se da variante
caipira, representando, dessa maneira, a classe social pertencente ao campo.
Vejamos as considerações de Fernandes (2007:33) sobre a noção de
sujeito
Se não se trata do indivíduo, da pessoa, como
uma instância plena de individualidades, como
um ser empírico que tem existência particular,
não se nega também a existência real dos
19
sujeitos em sociedade. Com isso, afirmamos que
o sujeito, mais especificamente o sujeito
discursivo, deve ser considerado sempre como
um ser social.
A noção de sujeito, então, não é a de um indivíduo falante cuja existência
no mundo é individualizada, particular. Ele é um ser social e descentrado que se
completa na interação com o outro nos mais diversos segmentos da sociedade. O
sujeito, assim como o discurso, não é homogêneo, mas polifônico por natureza,
porque inúmeras vozes advindas de uma determinada realidade social o integram
mesmo que ele não se conta disso. Podemos afirmar, então, que o sujeito tem
sua identidade construída entre o consciente e o inconsciente.
Sobre o inconsciente, Rivera (2008) o define como um produtor de imagens
vinculadas à linguagem, que fica encoberto, resistindo a torna-se imagem. O
sujeito, segundo a autora, não tem o controle do inconsciente, que se manifesta
por meio de desejos.
O que define de fato o sujeito é o lugar de onde fala. Esse lugar é um
espaço de representação social em que cada sujeito fica incumbido de um papel.
O discurso desse sujeito integrado na sociedade revela a posição ideológica que o
reveste. Como a ideologia é sempre de grupo, ela é condição para a interpelação
do indivíduo em sujeito.
Podemos afirmar que é a ideologia que marca as diferentes posições
assumidas pelo sujeito provocando o surgimento de embates e tomadas de
posição em todas as esferas sociais.
A AD, no início, adotou o conceito de ideologia desenvolvido por Althusser,
nos anos 60. Segundo Mussalim (2001), para Althusser a ideologia não equivale a
idéia, mas a um conjunto de práticas materiais que reproduzem as relações de
produção. Sendo assim, a ideologia é responsável pelo funcionamento e pela
organização dos aparelhos ideológicos do Estado (AIE) que são representados
por instituições que estão sob seu controle como a religião, a escola, etc.
20
Essa noção foi reelaborada pela AD, que passou a considerar o processo
ideológico como mecanismo para a produção de evidências que implica valores,
crenças, hábitos e rituais, que são compartilhados pelos sujeitos. Depreendemos
disso que a ideologia é uma manifestação cuja ocorrência é sempre de grupo.
A produção dessas evidências engloba a memória e o esquecimento, de
modo que o sujeito tem a ilusão de ser a origem do que diz. As palavras têm
sentido quando passam para o anonimato, quando esquecidas. Os dizeres, então,
fazem sentido porque estão atrelados à história.
Para a AD não existe a literalidade nesses dizeres, porque as palavras são
carregadas de ideologia e seu sentido é construído na relação do sujeito com a
língua. Por isso as palavras significam diferentemente para o sujeito.
Segundo Orlandi (op. cit.:45) a ideologia não é ocultação, mas função da
relação necessária entre linguagem e mundo que é determinada pelo
inconsciente. Assim, o existe sujeito desprovido de ideologia, e esta por sua vez
se faz presente em todo discurso. Orlandi atribui a este sujeito, responsável pela
organização e unidade do texto, a função-autor, pois o sujeito se submete à
linguagem e à história para dizer. Conforme veremos a seguir, essa noção de
autor, surgida no final do século XVIII e rediscutida pela AD, provoca um
deslocamento da relação autor/ texto, o que confere mudança na maneira de se
interpretar.
1.3. Autoria e Interpretação
Orlandi (2001) nega a existência de um autor onipotente que controla a
significação do texto, e a existência de um leitor onisciente capaz de compreender
os múltiplos sentidos que se processam no texto.
A autora, então, estabelece o princípio da autoria como função discursiva
do sujeito. Proposto inicialmente por Focault, esse princípio o abrangia todo
discurso. À diferença de Focault, Orlandi propõe esse princípio a qualquer
discurso, atribuindo-lhe a responsabilidade pela unidade do texto. A autora
21
(2005:75) ainda faz a seguinte observação: um texto pode até não ter um autor
específico mas, pela função-autor, sempre se imputa uma autoria a ele.
Ao lado da função-autor, a função do locutor que constitui o eu no
discurso e a função do enunciador, que é a perspectiva que esse eu constrói. A
função-autor, ou autoria, consiste na função que esse eu assume enquanto
produtor do texto. Ele tem o domínio dos mecanismos discursivos ao mesmo
tempo em que é determinado pelo contexto sócio-histórico e cultural.
O papel do leitor no processo de leitura também é fundamental, pois sua
história de leitura, o seu repertório dialoga com a história da leitura do texto.
Portanto, o leitor assume um papel ativo e importante na construção de sentidos.
A contribuição da AD está no fato de ela oferecer ao analista do discurso a
possibilidade de ele mesmo escolher seu próprio dispositivo teórico por meio do
recorte. Por isso, uma análise nunca será igual à outra dada essa escolha.
O surgimento da AD, sem dúvida, proporcionou uma nova maneira de
encarar a leitura, diferenciando-se da Hermenêutica e da Análise de Conteúdo. A
AD visa a compreensão para saber como um objeto simbólico produz sentido, mas
antes disso, ela analisa os próprios gestos de interpretação.
A AD não busca um sentido verdadeiro e oculto no texto porque é contra a
imanência estruturalista do signo. A constituição do sentido e até mesmo do
sujeito são construídas no decorrer da análise. Isso se deve à incompletude que é
inerente à linguagem, pois o discurso não se fecha. Por outro lado, o processo de
significação é regido pelas pistas do texto de forma que o sentido não seja
qualquer um. Orlandi (op. cit.:30) ainda afirma que
esses sentidos têm a ver com o que é dito ali
mas também em outros lugares, assim como
com o que Não é dito, e com o que poderia ser
dito e não foi. Desse modo, as margens do dizer,
do texto, também fazem parte dele.
O que o analista do discurso se propõe é verificar as condições que
permitiram o surgimento do discurso, relacionando sempre o lingüístico com a
22
história e com a ideologia. E para isso ele precisa de um dispositivo teórico de
interpretação porque a leitura não é considerada como mera decodificação.
Assim, não é o texto em si que o estudioso interpreta, mas o resultado da
análise que seu corpus ou amostra lhe permitiu chegar. Como todo objeto
simbólico nos convida a interpretar, não sentido que não seja permeado pela
interpretação. Orlandi (2005) afirma que, ao interpretar, ancoramos na
textualidade, pois nela é possível compreender a relação sujeito-autor com a
textualização do discurso. Dessa forma, esse sujeito também interpreta prevendo
um efeito-leitor, conferindo à linguagem um caráter interativo.
que considerar, ainda, na formação do discurso a construção da cena
enunciativa, que é composta por um enunciador e um co-enunciador.
1.4. Cenas de enunciação
A AD, ao aliar-se à Pragmática, concebe a linguagem como uma forma de
ação atuante em espaços institucionais. Apoiando-se na metáfora teatral, a AD
considera a sociedade um teatro no qual são atribuídos papéis a cada sujeito.
Essa visão é ampliada com a noção de cena enunciativa, pois o discurso
também constrói sua representação na qual a fala é encenada. Maingueneau
(2005) divide essa cena em outras três, denominando-as de cena englobante,
cena genérica e cenografia.
A cena englobante refere-se ao tipo de discurso e sua existência está
relacionada ao tempo e ao espaço porque surge da necessidade do grupo.
Reconhecemos um tipo de discurso presente na sociedade em função da
finalidade que ele foi organizado. Temos, então, como exemplo, o discurso
filosófico, o poético, o político etc. A cena genérica compreende o gênero do
discurso no qual cada um define o seu papel. Essas duas cenas compõem o
quadro cênico do texto constituindo-se como espaço estável no interior do
enunciado.
23
A cenografia corresponde ao contexto que a obra implica. Ela não é um
cenário que já se apresenta construído, determinado, porém é a própria
enunciação que, à medida que se desenvolve, vai sendo construída. Segundo
Maingueneau (2005:87),
a cenografia implica um processo de
enlaçamento paradoxal, ou seja, é ao mesmo
tempo a fonte do discurso e aquilo que ele
engendra.
A cenografia se apóia em cenas de fala instaladas na memória coletiva,
atribuindo legitimidade ao discurso de modo que o enunciador consiga convencer
o outro. Para que ela se manifeste plenamente o co-enunciador deve permitir sem
interferir o seu desenvolvimento. Caso haja um debate, por exemplo, a sua
construção e manifestação ficarão comprometidas.
Não são todos os gêneros do discurso que são propensos ao
desenvolvimento de cenografias variadas. Maingueneau distribui-os em dois
pólos: de um lado, os gêneros que se utilizam apenas de sua cena genérica. De
outro, os gêneros que permitem cenografias variadas. Há, ainda, entre esses dois
pólos os gêneros que utilizam cenografias variadas, mas que, comumente,
mantêm-se fiéis a sua cena genérica.
Quanto às letras da música de raiz, elas se mantêm fiéis à cena genérica,
ou seja, ao gênero ao qual pertence, tornando a cenografia previsível para o co-
enunciador. As cenas enunciativas, portanto, encontram-se estabilizadas
obedecendo às regras da cena genérica. Podemos depreender, então, que a
cenografia não tem uma relação arbitrária com o gênero, podendo fugir do modelo
que lhe é preestabelecido. É o texto que se encarrega de construir a cenografia.
O leitor, por sua vez, a reconstrói por meio de alguns indícios como o
conhecimento do gênero discursivo, dos níveis da língua, do ritmo, da entonação,
e dos conteúdos explícitos.
Relacionada à cenografia temos a dêixis discursiva que, segundo
Maingueneau (op.cit.:41) define as coordenadas espaço-temporais implicadas em
24
um ato de enunciação. Ela corresponde aos marcadores de eu-tu, aqui-agora que
no discurso constituem os elementos essenciais para a encenação e é constituída
pelos seguintes elementos: o locutor e o destinatário discursivos, a cronografia
(tempo) e a topografia (espaço).
Tratar de cena enunciativa significa levar em consideração a noção de
gênero, cujo reconhecimento se dá pelas características e procedimentos que lhes
são comuns, mas esse não é o nosso objetivo. Isto não significa que estamos
dispensando essas características formais, apenas ressaltando que a análise visa
justamente a articular o gênero ao ritual enunciativo, conforme postula
Maingueneau (1997).
Pautados nessa assertiva, concordamos que, ao trabalhar um corpus ou
uma amostra na AD, faz-se necessário conhecer o gênero a que pertence, pois
este é um produtor de sentido que direciona a leitura e a análise.
1 .5.
Contribuições
da noção de gênero discursivo no estudo da
música de raiz
No estudo do gênero, Bakhtin (1997) tem sido um dos autores mais citados,
pois sua abordagem é feita pelo ângulo sócio-histórico, articulando as dimensões
histórica e normativa dos gêneros. O autor define os gêneros como tipos
relativamente estáveis de enunciados que se constituem historicamente a partir
das situações de interação verbal. Como as possibilidades da atividade humana
são inesgotáveis, temos, com isso, uma variedade de gêneros. Assim, a cada
nova situação de interação surgem novos gêneros que refletem as condições e as
finalidades dessas situações por meio de três elementos que se fundem: o
conteúdo temático, o estilo verbal (recursos da língua) e a construção
composicional.
Esses elementos, que permitem verificar as regularidades entre o mesmo
gênero, nos são úteis, porque nos auxiliam a conceituar música de raiz cuja
função, em sua origem, era manter o vínculo do caipira com a vizinhança.
25
Baseada na oralidade, a letra dessa composição tem como temas histórias que
eram do consenso do caipira como histórias de tragédia, mistério, assombração,
heróis e anti-heróis, exaltação do campo etc. Essa temática que fazia parte do
universo do homem caipira era captada pelo compositor, conquistando dessa
maneira respeito e admiração por onde passava.
Quanto ao estilo verbal, a letra não possui muita variação contendo marcas
da oralidade, pois o compositor, assim como o seu público, mal sabia ler e
escrever. Os versos, embora cantados, aproximam-se muito da fala para que a
história pudesse ser entendida sem problemas. As rimas são pobres utilizando
sufixos comuns como os terminados em ão, em gerúndio e em infinitivo ( sem a
presença do r). o variação também no emprego do léxico que se faz ser
entendido sem dificuldade. A construção da letra segue a ordem da narrativa com
começo, meio e desfecho e, geralmente, é narrada em primeira pessoa.
Com efeito, o enunciado não é caracterizado apenas por esses elementos e
sua materialidade lingüística, mas também pelas condições de produção que se
refletem no lingüístico.
Podemos depreender que Bakhtin não se limita a reconhecer o gênero
somente pela sua dimensão lingüística, porém, não a descarta, apenas considera
redutora essa visão que não leva em consideração o papel dos sujeitos no uso e
na construção de sentidos.
A articulação entre o lingüístico e o social também está presente nos
estudos de Maingueneau (1997) acerca dos gêneros do discurso, pois estes
pertencem aos inúmeros tipos de discursos vinculados às atividades sociais. O
autor agrega a noção de contrato, advinda do direito, para tratar de gênero porque
toda enunciação é regida pela prática social do sujeito que enuncia. Não
podemos, portanto, dizer o que queremos, em qualquer lugar para todo indivíduo
porque essa prática, que emerge como gênero, presume um contrato.
Segundo Maingueneau (op. cit.:35), a existência de um gênero ocorre
a partir do momento que vários textos se
submetem a um conjunto de coerções comuns e
26
que os gêneros variam segundo os lugares e as
épocas (...)
Essa variedade de gêneros foi notada por Bakhtin ao reconhecer que todo
gênero é extensão de outro preexistente, ou seja, nenhum gênero surge do nada.
O que ocorre é um gênero assimilando características de um existente para gerar
um outro novo. Em nosso caso, a letra de música de raiz tem vestígios do
Romanceiro tradicional ibérico, que se espalhou pela Europa e chegou ao Brasil
em 1500.
Maingueneau (op. cit.:33) afirma também que os gêneros o associados a
uma cena enunciativa, pois a teoria do discurso não é uma teoria do sujeito antes
que esse enuncie, mas uma teoria da instância da enunciação. Ele classifica,
dessa maneira, os gêneros a partir da relação estabelecida entre a cena genérica
e a cenografia.
Portanto, a concepção de gênero não se limita, segundo o autor, a um
conjunto de características formais. Maingueneau (1997) propõe a articulação do
“como dizer” aos fatores da enunciação. Esse “como dizer” está associado à
presença de uma voz, um ethos investido historicamente de valores partilhados
socialmente.
1.6. Ethos discursivo
A AD passou a contemplar em seu quadro, a partir da década de 80, a
noção de ethos, ao constatar que todo discurso, seja oral ou escrito, é inseparável
de uma voz. É por meio dessa voz que adquirimos conhecimento da imagem e da
personalidade do enunciador. Por isso, a AD se apropriou da noção de ethos
advinda da retórica antiga, porém com algumas ressalvas, conforme veremos.
O conceito de ethos proposto por Aristóteles trata-se da imagem que o
orador transmitia de si mesmo, sempre em situação de fala pública, através de
sua maneira de dizer, de modo que conquistasse a confiança do auditório. Para
27
que a persuasão ocorresse, Maingueneau (2005) afirma que o ethos do orador
tinha de condizer com o do auditório. O orador, para causar uma imagem positiva
de si, valia-se de três qualidades: a phronesis,ou prudência; a aretè, ou virtude; e
a eunoia, ou benevolência. Esse ethos revelava-se na própria enunciação,
desconsiderando o saber extradiscursivo sobre o locutor.
Ducrot (1984), no entanto, reformulou esse conceito que passou a ser
entendido, desde então, como a imagem do locutor, pois o que interessa não é o
indivíduo em si, mas o personagem. Segundo Maingueneau (2008:13), Ducrot ao
conceituar esse ethos, o faz
por meio da distinção entre “locutor-L”[= o locutor
apreendido como enunciador] e “locutor-lambda
[ = o locutor apreendido como ser do mundo],
que atravessa a distinção dos pragmacistas entre
mostrar e dizer: o ethos se mostra no ato da
enunciação, ele não é dito no enunciado. Ele
permanece, por sua natureza, no segundo plano
da enunciação, ele deve ser percebido, mas não
deve ser objeto do discurso.
Diferentemente do ethos retórico, com Ducrot pouco importa o enunciador
fazer referência elogiosa a si próprio, afirmando ser algo, pois, uma vez que não
está explícito, não é no conteúdo do discurso que esse ethos se mostra, mesmo
porque ele se refere ao locutor L e não ao ser real. O que caracteriza esse
locutor são a entonação, a escolha do léxico, do argumento, os gestos, a postura,
etc.
Na perspectiva de Maingueneau, o ethos é concebido como uma noção
sócio-discursiva que compreende o social e se manifesta no discurso. Portanto,
deve ser apreendido em situações de comunicação. Assim sendo, o que é dito e o
tom com que é dito são inseparáveis
O tom, cuja função é dar autoridade ao que é dito, é constituído pelo caráter
e pela corporalidade. Segundo Maingueneau (op. cit.:47)
28
o caráter corresponde aos traços psicológicos
que o leitor-ouvinte atribui espontaneamente à
figura do enunciador em função do seu modo de
dizer e a corporalidade à representação do corpo
do enunciador da formação discursiva.
Essa corporalidade está associada a um modo de se movimentar no
espaço social e até mesmo a um modo de se vestir.
A imagem discursiva que emerge é ancorada em estereótipos culturais que
circulam na sociedade. Segundo Amossy (2005: 72)
esses estereótipos circulam nos registros mais
diversos da produção semiótica de uma
coletividade: livros de moral, teatro, pintura,
cinema, escultura, publicidade etc.
No caso do ethos do sujeito do discurso caipira, a literatura, o cinema e a
música refletiram o preconceito que se tornou histórico ao consagrarem figuras
caracterizadas pelo modo de vestir e falar, pelo uso do chapéu de palha e por uma
inocência cômica. Silva (2004) afirma que nos finais do século XIX, o teatro de
costumes e o teatro de revistas tinham como personagens-tipo a figura do caipira
como a descrevemos acima. O estereótipo que causou maior impacto foi o de
caipira vadio, preguiçoso e ignorante criado por Monteiro Lobato, em 1919, do
personagem Jeca Tatu.
O ethos, ao contrário do proposto pela Retórica que poderia ser manipulado
pelo orador e cuja transmissão de imagem era pré-determinada, não se revela
explicitamente no ato da enunciação, embora se encontre presente. Vale ressaltar,
ainda, conforme Maingueneau (2008), que a noção de ethos não é tão simples,
chegando a apresentar alguns problemas que merecem atenção. Um deles refere-
se ao fato de que não são todos os discursos que permitem uma representação
prévia acerca do ethos do locutor, como o caso dos textos de autor desconhecido.
29
Essa afirmação, todavia, não se aplica às letras de música de raiz, cujos autores e
intérpretes nasceram, em sua maioria, no interior e trabalharam na roça.
Outro problema está na elaboração do ethos que envolve, de certa maneira,
uma percepção vinculada à afetividade do intérprete que se utiliza do verbal e
não-verbal. Outro problema é que nem sempre é possível delimitar o que, de fato,
decorre do discurso. Sobretudo se este for oral, pois inúmeros elementos
concorrem no ato da comunicação, influenciando o destinatário na construção do
ethos. Além disso, devemos considerar que ethos almejado nem sempre é o
produzido, pois depende do ponto de vista do locutor e do destinatário.
Sob a concepção de Maingueneau, o ethos é um processo interativo de
influência sobre o outro em que o co-enunciador tem condições de formar, pelos
índices fornecidos pelo texto, uma representação do sujeito-enunciador que, por
sua vez, desempenha o papel de um fiador responsável pelo texto. Não é o corpo
do locutor extradiscursivo que se manifesta na enunciação.
Assim, o fato de o co-enunciador saber que o texto pertence ao gênero
música de raiz, lhe permite fazer um levantamento prévio acerca do caráter do
enunciador que se mostra um homem conservador, religioso, sensível etc.
Maingueneau (2005), no entanto, ressalva que tipos de discursos que não
permitem que o co-enunciador faça uma representação prévia acerca do ethos do
enunciador. É o caso de um romance, por exemplo, que nos exige um contato
mais sólido para conferir um caráter ao fiador.
Maingueneau (1997) introduz, então, o conceito de incorporação para
designar o modo como o co-enunciador se apropria do ethos. Essa incorporação
atua sobre três registros indissociáveis: a) o co-enunciador atribui um ethos ao
fiador; b) o co-enunciador incorpora esquemas que definem uma forma específica
de se inserir na sociedade; c) esses dois registros permitem a atribuição de um
corpo.
O poder de persuasão de um discurso está na identificação do co-
enunciador com esse corpo. O analista, também um co-enunciador, segue esses
três registros para incorporar o ethos relacionado à amostra.
30
que se considerar outros mecanismos que operam no nível do discurso,
que nossa proposta é conhecermos o funcionamento do discurso da letra de
música de raiz e sua organização.
1.7. Mecanismos discursivos
Ao concebermos a música de raiz como um gênero discursivo, notamos
que uma intersecção com outros gêneros, como a poesia. Por isso, um dos
mecanismos abordados neste item refere-se ao discurso escrito e ao discurso
poético.
Tendo em vista que o objeto de estudo é o discurso da letra da música,
trataremos da interdiscursividade para mostrar a relação que se estabelece entre
as diferentes formações discursivas, complementando com os conceitos de
dialogismo e polifonia.
1.7.1.
Discurso escrito e Discurso poético musicalizado
O discurso oral antecede historicamente o discurso escrito, pois era meio
de expressão do povo que não tinha o domínio da escrita. Zumthor (1997)
considera oral toda comunicação poética em que a transmissão e a recepção
passe pela voz e pelo ouvido. Dessa forma, não só a poesia, mas a música
também tem relação com a escrita, mesmo que não necessariamente. Costa
(2002) afirma que geralmente a escrita surge no momento que o compositor a
registra e no momento da distribuição, como o encarte do disco ou nas partituras
etc.
A comunicação poética, desde os tempos remotos, sempre esteve
vinculada ao canto. Costa (op. cit. :113), todavia, faz a distinção entre a poesia e
a canção, afirmando que se tratam de dois gêneros específicos que
interseccionam por aspectos de sua materialidade e por alguns momentos comuns
31
de sua produção. Entendemos poesia como um sentimento que desperta e
emociona o ser humano, provocando uma catarse. Sua manifestação pode ocorrer
nas mais diversas situações. Para a definição de canção concordamos com Costa
(op.cit.:107), que a define como um gênero híbrido, de caráter intersemiótico, pois
é resultado da conjugação de dois tipos de linguagens, a verbal e a musical (ritmo
e melodia).
Partimos desses conceitos para afirmarmos que a música, mais
especificamente a música de raiz, equivale à poesia por utilizar-se de recursos
semelhantes ao da criação da poesia como a métrica, a rima, a sonoridade. Além
disso, ambas rompem com os procedimentos aplicados à escrita porque aspiram
sair da linguagem num dinamismo que percorre o tempo; ao passo que a escrita,
segundo Zumthor, reprime essa aspiração.
No entanto, não visamos, nesse estudo, ao eu-lírico do poeta, mas ao
enunciador que manifesta sua ideologia no discurso das letras que selecionamos,
conforme postula a AD.
Para Zumthor, a oralidade não se limita ao uso da voz, pois ela é quase
sempre complementada pelos movimentos do corpo, como um gesto, um olhar,
que compõe também uma poética. Esses movimentos o explorados conforme a
cultura do povo que a realizam.
Assim, na música de raiz, além da voz anasalada que é pronunciada num
“falar errado” que não segue as regras sintáticas, um ritual para se ouvi-la: as
pessoas organizam em roda para prestigiar o violeiro. também muitas danças
que emergem da música caipira como o cururu, o cateretê etc.
Além de ser cantada em dueto, a música caipira influenciava na vestimenta
dos cantores que se apresentavam como o homem caipira, ou seja, usavam
botina, camisa xadrez e chapéu, como se estivessem representando aquele papel.
Essa imagem, aliás, é a que vigora até hoje em nossa sociedade, principalmente
nas comemorações das festas juninas.
Zumthor também destaca não o papel do compositor, mas do ouvinte,
pois este determina a produção. No caso da música de raiz, os versos simples se
aproximam muito da fala para facilitar o entendimento do que se canta. É como se
o cantor estivesse contando a música. A participação mais direta da platéia ocorre
32
na apresentação do cururu, conhecido como desafio, em que cada estrofe é
aplaudida.
Outro fator que contribui para relacionar música e poesia se refere ao fato
de que, segundo Faustino (1976:46), a poesia interpreta um sentimento de uma
época, de um povo, de homens num certo momento, diante de determinado
mundo (...) .Este papel também cabe à música, pois ela é o relato de uma época e
de um povo, estando, dessa forma, inserida na história para fazer sentido.
Sant’Anna (op. cit.:79) atribui ao autor da música o papel de poeta
afirmando que
o poeta caipira é aquele que, personificando os
anseios grupais, o tempo todo colhe informações
antenadas no modo de ser da cultura, fica
assuntando causos e aspirações coletivas para
entorná-los em forma de poesia.
Nesse sentido, entendemos também que o poeta é, conforme conceitua
Faustino (op. cit.:43), um homem dotado de certa capacidade de percepção e de
expressão, ambas verbais. Essa capacidade para exercer o poder de criação não
necessita de um conhecimento formal, haja vista que todo poeta, ou autor, se
valem também de discursos existentes na sociedade para enriquecer sua
produção.
A relação do poeta com a língua o faz estabelecer, na tentativa de traduzir
seus anseios, um diálogo constante consigo próprio e com outros discursos,
tornando sua produção polifônica por natureza, pois outras vozes permeiam o seu
discurso. Acreditamos que a canção, definida por Zumthor (op. cit.:188) como a
única e verdadeira poesia de massa, torna-se uma via privilegiada para observar
o fenômeno de dialogismo e de polifonia, dada a sua repercussão e acesso a
todas as camadas.
33
1.7.2. Dialogismo e Polifonia
A perspectiva de Bakhtin concebe a linguagem como um fenômeno social
que se realiza por meio da interação verbal na qual o Outro desempenha papel
primordial na produção de significado. Assim, o dialogismo é inerente à linguagem
porque as palavras não o exclusividades de um único enunciador, tendo em
vista que este não é considerado isoladamente e que seu discurso remete a
outros discursos. Segundo Mussalim (2001), esse dialogismo não tem como
preocupação o diálogo que ocorre face a face, mas a uma dialogização interna do
discurso.
As palavras que proferimos e as que chegam até nós, pertenceram a
outros sujeitos, comporam outros discursos e já circularam em outros espaços.
Devido a isso, elas estão impregnadas de valores e ideologias, revelando-nos uma
plurivalência em sua constituição.
Baseado nessas perspectivas, Bakhtin formula sua teoria polifônica, cuja
origem partiu da produção literária de Dostoiesvsk na qual observou a pluralidade
de vozes que compunham o discurso dos personagens.
Essa teoria mostrou-se relevante para a AD que, além de privilegiar o texto
literário, a estendeu a qualquer discurso do cotidiano constatando que ele surge
do entrecruzamento de diferentes discursos que se completam.
Assim sendo, não discurso único com um começo e um fim absoluto,
pois, segundo Orlandi (2007), todo discurso se relaciona com outros discursos e
com distintos sujeitos.
Acerca da polifonia, Ducrot também trouxe-nos contribuições ao postular a
presença de mais de uma voz num enunciado isolado. De acordo com Brandão
(2005:70),
Ducrot esboça sua teoria polifônica, partindo do
pressuposto de que o sentido do enunciado é
uma descrição de uma enunciação e para essa
descrição o enunciado fornece indicações.
34
A polifonia manifesta-se quando é possível verificar a presença de dois
tipos de personagens envolvidos em uma enunciação: o locutor e o enunciador.
Por locutor, compreende-se como o ser responsável pelo enunciado, mas não é o
sujeito empírico. Enunciador é a perspectiva que o eu constrói no discurso.
Embora tenha operado mais no nível lingüístico e excluído a noção de
história, Ducrot, ao propor esses dois conceitos, disponibiliza um instrumento
valioso para o analista do discurso. Revuz (1990) também se apropria desse
processo, ao conceber o sujeito como ser histórico e ideológico que tem em sua
fala a presença do discurso de outros, fazendo emergir o conceito de
heterogeneidade. Embora tenha a ilusão de ser autônomo, único e a origem do
seu dizer, o sujeito é na realidade descentrado, dividido porque é na relação com
a exterioridade que suas palavras são construídas e fazem sentido.
A manifestação da heterogeneidade ocorre na própria superfície discursiva
por meio de formas explícitas e implícitas, acusando assim a presença do outro.
Para a realização dessas formas, Revuz subdivide a heterogeneidade em duas
formas: a heterogeneidade mostrada e a heterogeneidade constitutiva.
A primeira manifesta-se, explicitamente, na superfície do texto, provocando
uma ruptura sintática na qual a voz do outro incide na forma de discurso direto, de
aspas, de referências, de citações etc. Maingueneau (1997) inclui, além desses
fenômenos que considera tradicionais, a pressuposição, a negação, a
parafrasagem, a imitação, entre outros.
Há, também, formas não marcadas de heterogeneidade mostrada em que
não ocorre a ruptura sintática do texto causando incerteza em relação à presença
do outro. É o caso, por exemplo, do discurso indireto livre e da ironia cuja
manifestação é sutil.
A heterogeneidade constitutiva é resultante do intercruzamento de vários
discursos no qual incide de maneira implícita, pois é concebida no nível do
interdiscurso e do inconsciente. Aqui, o fato de não ser possível sua localização na
superfície do discurso, a ilusão de o sujeito se considerar dono do seu dizer é
maior.
O que nos leva a tratar dos fenômenos mencionados acima deve-se ao fato
de sua ocorrência no discurso das letras de música de raiz que compõem a
35
amostra. Por se tratar de narrativas, a presença do outro se faz pelo uso do
discurso direto, que é recorrente, assim como o entrecruzamento de outros
discursos que estão instalados na memória coletiva como o emprego de provérbio,
de valores fixos, de narrativas já conhecidas etc, contemplando um outro processo
denominado pela AD de interdiscursividade.
1.7.3. Interdiscursividade
A AD contempla o interdiscurso, ao tratar de formação discursiva, pois toda
formação é constituída de outras. Maingueneau (2006) o defini como um conjunto
de discursos que mantêm entre si uma relação discursiva. Essa relação
interdiscursiva, denominada interdiscursividade, ocorre toda vez que usamos
termos de outras esferas ou discursos em nossas palavras. Sendo assim, nenhum
discurso é autônomo, pois sempre se remete a outros discursos.
O interdiscurso tem relação com a memória, porque o que dizemos está
vinculado a uma rede de dizeres já ditos em outros lugares. De acordo com
Fernandes (2006: 59) a memória não se refere a lembranças que temos do
passado, a recordações que um indivíduo tem do que já passou. Trata-se de uma
memória coletiva na qual ocorre o funcionamento do discurso em que os sujeitos
estão inscritos. Muitas vezes não temos consciência desse processo discursivo
porque os dizeres se apagam na memória que é afetada pelo esquecimento.
Não há, portanto, como precisar um início para nossos discursos, uma vez
que eles não se originam em nós, mas são constituídos pela história e pela língua.
Quando inserimos na sociedade, apropriamo-nos desses discursos que
estavam permeando o espaço, propagando ideologias e conflitos sociais.
Para uma melhor compreensão do interdiscurso, Maingueneau (1997)
ampliou os estudos sobre o discurso com as noções de universo discursivo,
campo discursivo e espaço discursivo.
36
Universo discursivo é o conjunto de formações discursivas de todos os
tipos que interagem em uma dada conjuntura. Devido a sua amplitude,
Maingueneau a recorta em campos discursivos.
O campo discursivo é definido como um conjunto de formações
discursivas que possuem a mesma formação social. Seriam campos discursivos o
político, o pedagógico, o filosófico etc. Por fim, esses campos também são
recortados em espaços discursivos, que entrelaçam pelo menos duas formações
discursivas.
Essas noções nos mostram como as formações discursivas são domínios
abertos e instáveis que interagem constantemente com outras formações. Assim
sendo, é por meio da interdiscursividade que observamos essa interação e os
conflitos sociais e ideológicos que emergem destas formações.
37
ALMEIDA JÚNIOR, José Ferraz de.
Caipira picando fumo, 1893- óleo sobre tela, 202x141cm./
38
CAPÍTULO II
O CAIPIRA E SUA PRINCIPAL MANIFESTAÇÃO CULTURAL: A MÚSICA DE
RAIZ
2.0. Introdução
O objeto de investigação deste trabalho é o discurso da letra de música de
raiz, cuja cenografia nos remete a um tipo de vida em que o isolamento do campo
proporcionava uma certa nostalgia perante a vida. Para compreender como essa
cenografia legitima o enunciado, é fundamental a evocação do contexto amplo de
produção da composição de raiz, uma manifestação predominantemente paulista
que se estendeu para outras áreas do Centro-Oeste. Cultuada na roça pelo
homem caipira, onde promovia a socialização entre os habitantes rurais, sua
origem remonta o período colonial.
Antes, porém, de tratarmos da música de raiz, torna-se necessário resgatar,
brevemente, esse período para compreender quem é o homem caipira que
compôs o cenário da história nacional e deixou raízes na cultura; sobretudo na
música.
2. 1 . Um breve histórico da origem do homem caipira
Um dos primeiros estudiosos da cultura caipira no Brasil foi Antonio
Candido (2003) que a definiu como manifestação cultural dos territórios das
bandeiras e entradas Esse núcleo cultural que corresponde à parte do estado de
São Paulo é denominado por Darcy Ribeiro (1995) de Brasil Caipira cuja base de
agrupamento são os troncos indígena e português.
Nos dois primeiros séculos de colonização, a população paulista
encontrava-se na pobreza, enquanto no Nordeste os engenhos de açúcar se
expandiam gerando riquezas. O paulista , como meio de sobrevivência, adentrava
39
a mata em busca de índios para vendê-los como escravos no Nordeste ou para
lhes auxiliar na roça. Essa ação ficou conhecida como as bandeiras.
Os homens que integravam as bandeiras viviam com a família em casebres
de taipa cobertos de palha e em condições precárias, o que tornava essas
habitações provisórias devido ao caráter nômade do grupo que se deslocava
constantemente de um lugar para outro. Essa habitação primitiva e precária,
denominada rancho, foi conservada mais tarde pelo caipira.
Esses homens conviviam com os índios falando a língua geral e adotando
os hábitos tribais como o cultivo da mandioca, feijão, milho, abóbora, bem como
as técnicas de caça, pesca e coleta de frutos silvestres. Os índios, por sua vez,
não encontravam empecilhos em ajustar-se a esse meio que, de certa forma, lhes
era tão familiar, pois não eram forçados a uma disciplina rígida de trabalho, mas à
alternância de esforço e lazer. Dessa relação, é possível verificar uma infinidade
de semelhanças de costumes, tradições e práticas culturais entre os índios e
esses homens que viriam a ser os caipiras.
As mulheres ficavam incumbidas da tarefa de casa, do plantio, da colheita e
do preparo de alimentos e do cuidado das crianças. Já os homens realizavam os
trabalhos que exigiam esforços maiores. Como viviam à margem da economia
colonial, esses paulistas especializaram-se na guerra, dispostos a atacar e
saquear missões jesuíticas, quilombos e tribos.
Movidos pela ambição e pelo espírito desbravador, esses bandeirantes
descobrem as primeiras lavras de ouro nos sertões de Taubaté e depois em
Minas. Os bandeirantes se deslocam de suas áreas em busca de melhores
condições, todavia, com o esgotamento do ouro, voltam a vivem como os
primeiros paulistas do século XVI.
É nessa área que compreende o Centro-Sul do país, desde São Paulo,
Espírito Santo, Rio de Janeiro, na costa, até Minas Gerais e Mato Grosso a áreas
vizinhas do Paraná que se transforma na vasta região de cultura caipira em que se
cultua a música de raiz.
Com uma grande quantidade de mão-de-obra desocupada e de terras
virgens, instala-se nessa área uma economia de subsistência que satisfazia as
necessidades básicas do grupo, ligada à agricultura itinerante, à coleta, à caça e à
40
pesca. O caipira nutria-se, então, como os homens que adentravam os sertões. A
dieta básica do paulista, que ainda perdura, segundo Candido (2003), foi fixada
pelo Regimento de dom Rodrigo de Castel-Blanco, que, preocupado com a
manutenção da tropa, exigia que se plantasse no caminho das bandeiras milho,
feijão, mandioca, por serem produtos básicos e de fácil cultivo.
Mais tarde, foram adicionados na alimentação do caipira o arroz e o feijão.
Este último teve seu modo de preparo como os dos portugueses, que ferviam-no
com sal e banha de porco, adicionando pedaços de carne de porco. O alimento
indispensável, todavia, era o milho que, além de ser mais rude e mais fácil de
cultivar, permitia variadas formas de consumo. Candido (op. cit. :69) afirma que
verde, come-se na espiga, assado ou cozido; em
pamonhas; em minguas; em bolos, puros (curau) ou
confeccionados com outros ingredientes. Seco, come-
se como pipoca, quirera e canjica; moído, fornece os
dois tipos de fubá, grosso e mimoso, base de toda a
culinária de forno entre os caipiras, inclusive vários
biscoitos, o bolão, bolinhos, broas, numa ubiqüidade
inferior à do trigo; pilado, fornece a farinha e o beiju,
não esquecendo o seu papel na alimentação dos
animais.
Em relação à posse das terras, os que eram mais abonados obtinham-nas
por concessão em sesmarias e os mais pobres, ocupavam-nas como posseiros ou
agregados, moradores denominados por Candido de transitórios, pois desprovidos
de títulos legais, estavam sujeitos a perder a terra a qualquer momento. A
diferença entre o agregado e o posseiro é que enquanto o primeiro tinha
permissão do proprietário para morar e lavrar a terra, o segundo não tinha,
ignorando a situação legal da terra.
Essa forma de povoamento provocou o surgimento da vizinhança em
unidades solitárias que são os bairros rurais. Segundo Ribeiro (1995), esses
bairros são grupos de convívio unificado pela base territorial, pelo sentimento de
41
localidade que o identifica e pela participação em formas coletivas de trabalho e
de lazer.
Havia também os moradores considerados permanentes, por serem os
donos das terras, que eram os sitiantes e os fazendeiros. Candido considera essa
categoria como participante; porém nem sempre integrante da cultura caipira que
é constituída pela categoria anterior; ou seja, agregados, posseiros e alguns
sitiantes.
Candido observa que, muitas vezes, a estrutura do bairro era iniciada por
determinadas famílias que ocupavam a terra para explorá-la. No decorrer do
tempo, iam se estabelecendo parentes, filhos, genros etc, aumentando o núcleo.
Conforme a família crescia, essas propriedades eram divididas, surgindo, dessa
maneira, outro bairro.
Nesse contexto, surgem ações solidárias que mobilizavam a colaboração
de outros núcleos para a realização de um trabalho na roça que exigia esforços.
Essa ação consistia no mutirão que além do trabalho promovia também o lazer
festivo com muita festa, música de raiz e pinga.
Conforme os relatos dos mais antigos, que constam na obra de Candido,
esses moradores da roça consumiam somente o que produziam. Raramente iam
ao comércio, somente quando necessitavam do sal, um dos fatores de
sociabilidade do caipira, pois era uma forma deste manter contato periódico com
os centros de população. As mulheres confeccionavam as próprias roupas com os
fios de algodão que eram colhidos e fiados em casa. A maioria andava descalço e
o único sapato eram simples chinelas conhecidas como alpargatas, feitas no lar.
A vestimenta dos homens era composta por calça e camisa; porém, havia
os que usavam ceroulas amplas e curtas. As mulheres roceiras vestiam pobres
saias desse mesmo tecido de algodão. Eram feitos em casa, também, grande
parte dos utensílios com gamela de raiz de figueira, vasilha e prato de porungaetê,
cuia de beber, pote de bar, colher de pau etc, que mais tarde foram substituídos
pelos do comércio. A pólvora para armas e rojões e as balas eram confecções
caseiras. Para iluminação usava-se o candeeiro de barro, com banha de porco ou
azeite de mamona.
42
Quanto à sociabilização do grupo, a vida lúdico-religiosa no bairro era
fundamental. Os moradores prestavam culto e devoção a um santo que julgavam
poderoso e erguiam-lhe uma capela em sua homenagem, onde eram promovidas
missas, festas, leilão e baile. Martins (1975) afirma que as comemorações
litúrgicas do catolicismo estavam vinculadas ao ciclo da natureza, às estações do
ano, em função do trabalho rural. Assim, não se plantava feijão na Quarta -feira de
Cinzas, por exemplo, sob o argumento de que dava “cinzas” no feijoeiro. Na
realidade, essa cinza é uma espécie de fungo que ataca o feijoeiro nessa época,
que, de fato, é imprópria para o plantio de feijão. Tem-se, então, um fato natural
justificado por um fato religioso.
A vida do homem rural vai se alternando entre o trabalho e o lazer. Esse
modo de viver cria estereótipos de desambicioso, preguiçoso e vadio que serão
fixados por Monteiro Lobato no personagem Jeca Tatu.
Candido (op. cit.:112) nos ajuda a entender essa imagem deturpada que se
criou sobre o caipira e seu modo de vida, denominado por Lobato (2004) de lei do
menor esforço, afirmando que
avulta a predominância da economia de subsistência,
associada à extraordinária fertilidade das terras virgens.
Com efeito, plantava-se para viver, com pouco ou
nenhuma utilização comercial do produto; no solo novo,
a colheita era enorme em relação ao plantio, sobrando
mantimento (...) Em caso de enfraquecimento do solo,
associado à precariedade da técnica, era possível
recorrer a novas terras, onde se recriavam as condições
anteriores, não apenas de produtividade, como de
isolamento, perpetuando a auto-suficiência e tornando
desnecessária a introdução de hábitos mais rigorosos
de trabalho.
43
O surgimento da lavoura para exportação, porém, põe em discussão a
questão do acesso à propriedade da terra por meio da compra ou da legitimação
cartorial da posse tornando inviável ao caipira a aquisição da terra.
A partir daí, conforme Ribeiro (1995), a população caipira passa por um
processo de reglutinação no qual o Estado intervém, propondo uma reordenação
social com o crescimento da cultura do café. O caipira, de lavrador, passa a
trabalhar como assalariado rural; muitas vezes em troca de comida e moradia; ou
na condição de parceiro, transferindo-se para terras longínquas ou para terras de
proprietários que não possuíam recursos para explorar novos cultivos.
Na condição de parceiro, como meeiro, o caipira entregava metade da
produção ao proprietário; como terceiro, pagava cerca de um terço das colheitas
pelo uso da terra. O caipira, nesse sistema produtivo, adquiria um status de quase
proprietário, pois a colheita lhe dava garantia de crédito perante os vendeiros.
Com o tempo, essa parceria vai se tornando cada vez menos satisfatória, pois
ficava confinada às terras mais pobres e distantes do mercado.
Com a chegada da mão-de-obra imigrante, o caipira se marginaliza ainda
mais; pois, ao contrário do colono europeu, o caipira não conhece o modo
capitalista de trabalho. Além disso, não encontra espaço nas fazendas para o seu
modo de vida e seus hábitos tradicionais. Lobato (op. cit.:161) atribui,
injustamente, ao caipira esse fato, fazendo a seguinte afirmação
Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie
de homem baldio, seminômade, inadaptável à
civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das
zonas fronteiriças. À medida que o progresso vem
chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a
valorização da propriedade, vai ele refugiando em
silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, a pica-pau e o
isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiriço,
mudo e sorna. Encoscorado numa rotina de pedra,
recua para não adaptar-se.
44
Em nossos estudos, verificamos que o caipira teve o seu meio modificado
em virtude desses fatores externos que apontamos, o tendo outra opção a não
ser adaptar-se ao novo modo de vida ou ir para a cidade. Ribeiro (1995) considera
a ocupação agrícola das terras, o cercamento dos latifúndios e a expansão dos
pastos como fatores decisivos que acabaram alterando o ecossistema do caipira,
tornando a caça e a pesca impraticáveis.
Mais tarde, esse caipira sofreria ainda mais com a modernização, que
acabaria por tirá-lo de vez de seu espaço e fazendo com que muitos
abandonassem o campo para tentarem a vida na cidade. Esse contexto é
retratado, com freqüência, em muitos discursos das letras de música de raiz,
principal manifestação cultural do caipira que aqui nos interessa.
A música, sem dúvida, foi um elemento importante na vida do homem
caipira porque esteve presente em toda sua atividade, proporcionando uma
interação maior entre os grupos. Para uma melhor compreensão acerca dessa
afirmação, trataremos a seguir do nascimento da música de raiz e sua trajetória
até os dias atuais.
2.2. Concepção de música de raiz
A cultura brasileira se originou a partir do encontro das manifestações
culturais do índio, do negro e do imigrante europeu. Esse hibridismo cultural se
reflete principalmente na música dando origem à música de raiz ou música caipira,
principal forma de expressão do homem caipira da região Sudeste e que se
estendeu para o Centro-oeste do país.
O primeiro contato entre esses povos ocorreu entre os portugueses e os
indígenas que, em comum, tinham predisposição para o canto e a dança. O trecho
da Carta de Pero Vaz de Caminha, escrita a EL- Rei D. Manuel, menciona essa
aptidão
45
... E [ Diogo Dias] levou consigo um gaiteiro
nosso com sua gaita e logo meteu-se a dançar
com eles [ os indígenas] a dançar , tomando-os
pelas mãos; e eles folgavam e riam e o
acompanhavam muito bem ao som da gaita...
Nesse dia enquanto ali andavam, dançaram e
bailaram sempre com os nossos, ao som de um
tamboril nosso, como se fossem mais amigos
nossos do que nós seus (...)
Os portugueses incorporaram ao som da viola, e outros instrumentos
musicais, a dança e a alegria dos índios, originando a catira, primeira dança da
música de raiz que consiste em bater os pés e as mãos. Percebendo a empatia
dos índios pela música, os jesuítas ( que chegaram no Brasil em 1549) também
utilizaram a viola com o intuito de convertê-los ao cristianismo.Segundo Tinhorão
(1998), em uma carta escrita da Bahia, no dia cinco de agosto do ano de 1552,
pelo padre Francisco Pires, os missivistas pediam ao padre reitor em Lisboa que
lhes enviasse alguns instrumentos musicais. Tinhorão observa também que a
atividade musical relacionada à catequese indígena oscilava entre as danças e
cantos coletivos para folgar, e os hinos e cantos eruditos da Igreja Católica para
os atos solenes.
Outra estratégia dos padres era a utilização da folias, que eram desfiles
dançantes típicos da área rural, onde um grupo de folgozões percorria grandes
distâncias para chegar ao local da festa, tal como ocorre hoje em algumas cidades
do interior do Brasil com a Folias de Reis.
________________________________
1De acordo com Nepomuceno (2005: 59), a Folias reproduz a viagem dos Reis Magos a Belém,
com cortejos de festeiros portando bandeiras coloridas, comandadas por mestres, capitães e
violeiros. Nessas festas, a comitiva vai de casa em casa, com seus tocadores de violas
ornamentadas de fitas recolhendo donativos, rezando e cantando com as famílias que os
hospedam. Os cantos são realizados na saudação do presépio, no pedido de ofertas, no
agradecimento e na despedida. A Folias acontece em muitas regiões do país, especialmente no
interior de São Paulo, Minas, Paraná, Mato Grosso e Goiás
46
Podemos, então, afirmar que umas das primeiras canções entoadas na
viola eram da catequese que se realizavam num tom monótono, melancólico e
anasalado que serão, dessa maneira, cantados mais tardes pelos caipiras. Ribeiro
(2006) afirma que a mistura da dança indígena com o conteúdo religioso dos
colonizadores vai passando por transformações. Assim, muitas cantigas têm
versos híbridos em português e tupi. Vejamos a quadrinha exemplificada por
Sant’Anna (2000)
Te mandei um passarinho
Patuá miri pupê
Pintadinho de amarelo
Ipiranga vê iauê.
A tradução dos versos é :
Te mandei um passarinho
Numa caixinha pupê
Pintadinho de amarelo
Bonitinho como ocê.
A música é acompanhada sempre da viola, indispensável para sua
realização. Difundida na Península Ibérica pelos trovadores nos séculos XV e XVI,
a viola chegou ao Brasil na caravana de Cabral para alegrar a tripulação. A viola,
desde então, é um instrumento do qual se criaram muitos mitos, como o do
violeiro sedutor que praticava roubos e dormia com mulheres, filhas e criadas das
famílias que ficavam enfeitiçadas com o seu som.
No Brasil, Nepomuceno (1998) enumera algumas simpatias e crenças
associadas a esse instrumento. Uma delas afirma que o violeiro para ser bom
deve recorrer aos santos ou fazer pacto com o demônio. Ajuda também segurar
pela cabeça, um filhote de cobra coral viva, que deve ser alisada vagarosamente
com a mão direita. Após seu corpo passar por entre os dedos do violeiro, o filhote
deve ser solto no mesmo lugar em que foi encontrado.
47
Fica-nos evidente, até então, a contribuição dos portugueses e dos
indígenas na formação da música de raiz. Todavia, não podemos nos esquecer da
influência do negro escravo que deu mais ritmo à música e incorporou novas
danças como a congadas
2
e o calango
3
.
Quanto à nostalgia presente na música, deve-se, segundo Vasconcelos
(1977:3), ao fato de que
todos tinham saudades: o português, dos seus lares
dalém mar; o índio de suas selvas, que ia perdendo e o
negro de suas palhoças, que nunca mais havia de ver.
E mais tarde, o caipira que sofreria com a
desintegração e sua roça.
Baseada na literatura oral, a música de raiz funciona como registro dos
fatos e situações, sendo passada de geração para geração. Essa, aliás, é uma
característica herdada dos indígenas e dos portugueses da qual uma
explicação histórica. A tripulação que partiu de Portugal era composta, além de
jesuítas, em sua maioria por pessoas degredadas de Lisboa. Eram pessoas
destituídas de estudo e da palavra escrita que acabam por utilizar-se somente da
expressão oral, caracterizando, dessa maneira, a música de raiz.
Muitas dessas letras sofriam variações conforme a região ou a pessoa que
cantava. Ribeiro (2006), como exemplo, recorda que a letra Chico Mineiro era
denominada também de Chico Paulista, porque era cantada em São Paulo, ou de
Chico Goiano, cantada em Goiás, e assim por diante.
2
Bailado dramático em que os figurantes representam a coroação de um rei Congo e de uma
rainha Conga, seus guardas e embaixadas, expressando tradições tribais de Angola e Congo.
3
Resultado do convívio entre negros e caipiras, o calango consiste em um animado arrasta-pé,
com desafios, como o cururu, no qual uniu a viola com a sanfona, pandeiro, caixa, reco-reco,
chocalho, violão e cavaquinho.
48
Essa toada, conhecida mais de meio século é na realidade uma criação
anônima do povo. outras modas, cuja autoria é incerta como a Moda da
Pinga, Saudades de Matão e várias outras.
Composta por pessoas rudes e iletradas, a música é atrelada ao seu
cotidiano, com uma sintaxe simples que se aproxima da oralidade para prender a
atenção dos ouvintes. O encadeamento lírico-narrativo da maioria dessas letras
apresenta o padrão de enredo com princípio, desenvolvimento e desfecho. Sua
linguagem estigmatizada de errada, segundo Amaral (1976:83)
é uma adaptação da antiga linguagem popular
pottuguesa, da qual conserva intactos, ou quase
intactos muitos elementos arcaicizados. Num e noutro
caso, a nossa obra tem sido mais de nacionalização do
que criação.
A música de raiz é cantada em dueto em terça de mi e dó, em falso bordão
de dicção anasalada sendo mais rítmica que melódica apresentando semelhança
com o falar habitual. Esse anasalamento, ainda utilizado pelas duplas atuais, é
herança dos dialetos ameríndios. A música é quase sempre executada por duplas
de cantadores masculinos, cujo canto agudo e alto, principalmente na primeira
voz, encontra correspondência na tradição vocal árabe, segundo Sant’Anna
(2000).
A composição de raiz, conforme o autor, mantém algumas características
que vigoraram no romantismo que no Brasil teve início em 1836 e encerrou-se em
1881. Em comum, encontra-se o sentimento de exaltação da natureza, o
sentimento nacionalista e a valorização do homem silvícola. Para Williams (1989),
essa temática é bastante comum, pois o campo sempre se associou a uma forma
natural de vida, de paz, de inocência e de virtude simples. No entanto,
conceitos negativos acerca do campo que o associa à idéia de atraso, ignorância
e limitação. No meio rural, conforme mencionamos, a música teve um papel
fundamental na sociabilização dos integrantes do bairro. Portanto, conforme
afirma Martins (op. cit.:105)
49
a música caipira nunca aparece , enquanto
música. Não apenas porque tem sempre
acompanhamento vocal, mas porque é sempre
acompanhamento de algum ritual de religião, de
trabalho ou de lazer.
Essa socialização ocorria principalmente após o mutirão, atividade coletiva
que consistia em limpar a roça ou o pasto, em fazer a colheita etc com a ajuda
voluntária da vizinhança. Como recompensa pelo serviço prestado, o beneficiado
oferecia uma “janta”. Após a refeição, surgia o momento mais esperado da festa, a
função.
A função era uma festa de confraternização cuja presença de violeiros e
suas modas eram imprescindíveis. Segundo Caldas (1999:15 ) esse momento era
fundamental, pois servia de elemento pregador da própria comunidade. As festas
folias de Reis, festa do Divino e a dança de São Gonçalo- relacionadas ao
universo caipira também promoviam essa interação.
O cantador- violeiro tinha um papel muito importante que o fazia conquistar
respeito e prestígio por onde passava porque mesclava fantasia e realidade com o
consentimento do público. Era bem recepcionado em qualquer canto e recebia
constantes convites para tocar e cantar nas festas de casamentos e batizados.
Outro elemento importante, segundo Nepomuceno, que acabou difundindo
a música de raiz para outras regiões foi o tropeiro e o boiadeiro. Incumbidos de
levar uma boiada de uma região a outra, em viagens que podiam durar meses sob
sol e chuva, esses homens entoavam as canções e narravam causos nos
momentos de descanso.
O nomadismo desses tropeiros e boiadeiros representava ao mesmo tempo
o conhecimento de inúmeros rincões e o isolamento do mundo que lhe
proporcionavam a reflexão e a meditação, suscitando a criatividade para construir
histórias sob a forma de poemas musicalizados ao som da viola. Sant’Anna
afirma, segundo Câmara Cascudo, que o viajante, assim como o pescador e o
50
Nepomuceno (op. cit.:80) faz a seguinte observação em relação a esses
homens que percorriam léguas correndo inúmeros perigos e cuja aventura virou
tema de muitas músicas:
cantar era a única diversão e o combustível
moral na caminhada, os cantadores divertindo os
companheiros com os versos improvisados, que
ficavam conhecidos nos lugares por onde
passavam.
Os tropeiros saiam com as comitivas do Rio Grande do Sul em direção aos
sertões de Minas, Goiás e Mato Grosso, passando por Santa Catarina, Paraná e
São Paulo. A principal feira era realizada em Sorocaba, interior de São Paulo,
onde vinham tropeiros, violeiros e compradores de todos os lugares. Durante o
dia, ocorriam leilões, rodeios, compra e venda dos animais e a contratação de
vaqueiros e tropeiros. A noite era preenchida com muita música e dança como o
cururu e o fandango. Além de música, havia a degustação de pratos fortes que
foram incorporados à culinária caipira como o arroz carreteiro, o pirão de carne
seca e o feijão tropeiro.
A chegada desses tropeiros, como afirma Nepomuceno, era um
acontecimento na região porque ela fazia a ligação entre os povoados,
proporcionando uma socialização entre eles. Às margens das rotas tropeiras,
muitas pessoas se instalaram dando surgimento às vilas.
Nas primeiras décadas do século XX, a música de raiz conquistou espaço
em várias partes do país, principalmente no interior de São Paulo, graças ao
jornalista e violeiro Cornélio Pires, o maior divulgador da cultura caipira; porém, foi
o ano de 1929 considerado o grande marco da música que acabou por divulgá-la
na capital.
O homem citadino conheceria, a partir de então, por meio das letras, a
identidade e a cultura de um povo que viveu durante muito tempo confinado em
sua roça.
51
2. 3. A Música de raiz: da roça para o estúdio
Nascido no ano de 1884, em Tietê, um dos berços da cultura caipira,
Cornélio Pires era um admirador do homem e da cultura caipira com os quais
conviveu desde criança na fazenda em que morava. Filho do agrimensor
Raymundo Pires, um grande contador de causos, Pires foi expulso da escola,
vindo a concluir sua formação em sua própria casa. Aos dezessete anos, o jovem
desembarcou em São Paulo onde trabalhou como tipógrafo e jornalista. Sua vida,
porém, não se restringiu somente à capital, pois sua trajetória era marcada por
constantes idas e vindas ao interior.
Seu interesse e conhecimento pelo caipira paulista aumentavam, chegando
a organizar pequenos espetáculos no interior, nos quais imitava-o em seu modo
de andar, falar e de se vestir. Em 1910, mostrou à capital de o Paulo o genuíno
caipira encenando, no Colégio Mackenzie, um velório típico do interior paulista
com a apresentação de danças e violeiros. Nesse mesmo ano, lançou o primeiro
livro denominado Musa Caipira e nos anos seguintes lançou cerca de vinte e cinco
livros contendo poesias, contos, pesquisas sobre a música e anedotas caipiras.
Esse apreciador da cultura do homem rural criou a Turma Caipira Cornélio
Pires composta por cantadores e violeiros que se vestiam como caipiras para se
apresentarem profissionalmente em palcos improvisados e em picadeiros de circo.
O repertório, composto por modas de viola, cateretês, cururus e anedotas,
superou a expectativa do grupo que teve o sucesso consolidado.
Em 1929, Pires teve a idéia de gravar essas músicas, mas as gravadoras
acharam o projeto audacioso e arriscado, pois a música de raiz era até então
desconhecida na capital. Pires não desistiu e resolveu bancar do próprio bolso a
gravação da Turma Caipira que teve como pioneiros as duplas Mariano e Caçula,
Zico Dias e Ferrinho, Mandi e Sorocabinha, e também Arlindo Santana, todos
vindos de Piracicaba.
Sobre a venda dos discos, Nepomuceno (op. cit.:110) conta que
52
tudo foi colocado em dois carros para ser
vendido pelo interior paulista e na Casa Cornélio,
sua loja de rádios e vitrolas na Rua XV de
Novembro, centro da capital. E por um preço
maior do que o dos discos comuns.
A vendagem dos discos teve êxito na capital devido ao grande fluxo da
população rural para a cidade ocasionado pela crise do café na década de 30, sob
o governo de Getúlio Vargas. Com essa leva de pessoas, chegaram também
muitos compositores e violeiros que saiam, em sua maioria, do interior de São
Paulo, trazendo os versos e a viola para tentarem a sorte na cidade.
A Turma de Cornélio Pires continuava a realizar inúmeras apresentações,
mas teve de disputar espaço com a RCA Victor que surgiu com a Turma Caipira
Victor. De acordo com Caldas (op. cit.:116)
a disputa pela liderança do mercado entre a Colúmbia
e a RCA Victor continuava. Cornélio Pires,como sempre
competitivo e competente, teve uma brilhante idéia:
organizar um show de violeiros, catireiros e duplas
sertanejas em pleno Teatro Municipal de São Paulo. A
apresentação não poderia ter sido melhor. O sucesso
de público e de crítica foi retumbante. Muita gente do
interior veio à cidade de São Paulo para assistir ao
espetáculo, mas teve que se contentar em ficar do lado
de fora do teatro lotado em grande parte pelo próprio
paulistano. Este acontecimento, em 1931, tornou-se
imemorável para o cancioneiro sertanejo.
O surgimento dos discos coincidiu com o crescimento dos rádios que
também penetravam no mundo rural. Afinal, adquirir um meio de comunicação
53
como o rádio era um desejo tentador. Criou-se, então, um ambiente propício para
a propagação da música de raiz.
As rádios, segundo Nepomuceno (1998), interessadas na audiência, em
seu público aumentar consideravelmente. Por conseguinte, as emissoras
disponibilizaram horários dedicados a esse povo que migrava do interior. A rádio
Cruzeiro do Sul, em 1932, introduziu, além da apresentação de modas de viola,
programas humorísticos que tratavam de personagens e situações sobre a cidade
de São Paulo. Muitos violeiros e compositores foram revelados por essas
emissoras, mantendo em intensa atividade suas apresentações em circos, praças
públicas, auditórios de rádio e cinema.
O auge da música de raiz é considerado por Sant’Anna (2000) a década de
40, pois surgiram compositores e letras que se tornaram verdadeiros clássicos.
João Pacífico, Raul Torres, Florêncio, Teddy Vieira, Serrinha, Capitão Furtado,
Tonico e Tinoco são alguns desses nomes que se destacaram nessa modalidade
produzindo letras que se consagraram no tempo.
A música de raiz, todavia, como qualquer segmento da sociedade, não ficou
imune às transformações porque novos ritmos, sobretudo os latino-americanos,
foram - lhe incorporados como a guarânia, o rasqueado e a polca. Houve quem
recusasse essa influência estrangeira, principalmente Alcides Felismino de Souza,
mais conhecido como Nonô Basílio, e Mário Zan.
Juntos formaram, em 1958, um grupo denominado Tupiana, em referência
ao tupi, como intuito de criar um ritmo genuinamente brasileiro. Caldas (1979)
observa que o interesse desses autores não envolvia somente um certo
nacionalismo; havia também o interesse financeiro como o conquistado pelas
músicas paraguaias. Esse movimento, porém, não durou muito porque a diferença
entre o rasqueado e a tupiana era irrisória.
Nesse mesmo ano, que ficou conhecido por causa da morte de Cornélio
Pires, a música de raiz disputava espaço com outros gêneros da cidade, dentre
eles a bossa nova e o rock. No entanto, não perdera ainda o espaço que ganhou
impulso com a publicação da Revista Sertaneja, lançada pela Editora Prelúdio
Ltda, em março de 1958.
54
O material, segundo Ribeiro (2006), contemplava artigos, críticas de discos,
seção de caça e pesca, letras de músicas, fotonovela e história em quadrinhos
com personagens caipiras e seção de humor. A revista, no entanto, teve seu
último número publicado em dezembro de 1959.
A partir desse ano, a temática predominante da música de raiz vai se
distanciando do mundo caipira, dando origem à outra modalidade de música cujo
apogeu ocorreu na década de 70: a música sertaneja. Os versos das letras vão
compondo outras cenas, pois a preocupação não é mais retratar a vida no campo,
a lida com o gado ou falar de um amor platônico do homem caipira. Entra em cena
situação de traição, cobiça, sexo etc. Aquele ethos conservador, apegado às
tradições e à família vai perdendo a ingenuidade e assumindo outra faceta. Uma
dupla representativa desse gênero foi Leo Canhoto e Robertinho que substituíram
a viola pela guitarra, aproximando-se do cowboy americano.
Inúmeras duplas sertanejas despontaram a partir de então, sendo presença
assegurada nas festas de rodeio do país e caindo no gosto de todas as classes
sociais. as duplas pioneiras da letra de música de raiz depois de desfrutarem
de prestígio e reconhecimento, caíram, nesta década, no esquecimento porque
suas apresentações se tornaram escassas. Muitas das duplas novas mantêm em
seu repertório algumas músicas de raiz, porém, muitas dessas letras são
injustamente atribuídas ao intérprete. Os compositores, em sua maioria, são
desconhecidos da população, mesmo da parte de quem cultua o gosto pela
composição de raiz. De acordo com Zumthor (op. cit.:223), é prática comum
desde as velhas civilizações, associarmos uma canção ao nome daquele que o
executou em tais circunstâncias.
em torno dessa modalidade muita dúvida, pois inúmeros pesquisadores
denominam as letras que selecionamos como música de raiz de música sertaneja.
Vejamos as principais divergências e convergências entre ambas.
55
2. 4. Concepção de Música de raiz e de Música sertaneja
Essas duas modalidades ainda geram divergências entre os autores e
pesquisadores da música. A primeira tentativa de defini-las encontra-se na obra de
Martins (1975) que caracteriza a música caipira pela utilidade que ela exerce nos
bairros, mediando as relações sociais no cotidiano do caipira. A música tem tal
importância que o seu desaparecimento como mediadora dessa relação é um dos
primeiros sintomas da crise do bairro rural e de sua desestruturação eminente,
Para Martins, a música caipira deixa de existir a partir do momento que a
indústria fonográfica se apropria dela, pois o anonimato da composição,
característica desse tipo de música, deixa de existir. Dessa forma, a condição de
produção é o diferenciador dessas duas modalidades, na concepção de Martins.
Em contraposição a essa música, Martins define a sertaneja como aquela
que é gravada sendo, portanto, destinada ao consumo. Neste caso, para Martins
(op. cit.:113), a música não medeia as relações sociais na sua qualidade de
música, mas na sua qualidade de mercadoria.
Essa diferenciação também é feita por Caldas (1987), um dos precursores
no estudo acerca da urbanização da música caipira, que considera caipira a
música produzida no meio rural até o início do século XX e que não foi gravada.
Assim como Martins, o autor elenca as seguintes características desse gênero: o
papel de promover a sociabilidade entre os caipiras; o anonimato das
composições, a manifestação espontânea do homem rural paulista, associada ao
trabalho, a religião e ao lazer. A música é inseparável da coreografia, sendo que
violeiros e dançarinos dividem a atenção do público ao se apresentarem por meio
do fandango
4
, cateretê, cururu
5
, cana-verde
6
etc.
Caldas ainda acrescenta o uso dos instrumentos musicais como viola-
triângulo, adufe, rabeca, reco-reco de chifre, surdo, caixa, tarol e pandeiro na
4
Dança espanhola de origem árabe.
5
Um desafio improvisado, um repente-caipira entre violeiros-cantadores.
6
De origem portuguesa, apresenta diversas coreografias, conforme a região. No Centro-sul do país,
assemelha-se a uma quadrilha, com homens e mulheres trocando de lugares e pares.
56
execução da música tornando-a mais rítmica que melódica. Da música caipira
surgiu mais tarde a sertaneja, produzida e gravada no meio urbano-industrial com
uma temática profana. A música sertaneja não introduziu a coreografia e passou
por profundas transformações no decorrer do tempo, incorporando instrumentos
eletrônicos e ritmos latino-americanos.
Outra divergência apontada por Caldas (1979) está no tocante ao texto da
música; pois enquanto a música caipira tratava das condições da agricultura, da
boiada e da vida no campo, a sertaneja explora o amor vivido na cidade grande e
outros temas essencialmente urbanos.
Concordamos com Caldas que o discurso da letra consiste em uma das
principais diferenças entre esses dois gêneros; no entanto, divergimos do autor no
que concerne à data porque consideramos música de raiz aquela, também,
produzida a partir de 1929. Reiteramos que Caldas denomina de sertaneja a
música produzida a partir desta data, pois, ao ser gravada, iniciou-se o seu
processo de descaracterização.
O pesquisador Honório Filho (1992:28) faz a seguinte distinção entre as
duas músicas:
A música sertaneja (...) é conhecida enquanto
produto burguês porque está ligada à produção
industrial. a música caipira aparece revestida
de uma ordem natural, da espontaneidade da
vida no campo. Em linhas gerais, a música
sertaneja seria uma deturpação da música
caipira. Estas definições aparecem enquanto
representações de mundos diferentes.
Esses autores até então citados convergem da mesma opinião, ou seja, a
indústria fonográfica acaba modificando a música caipira. No entanto, a definição
de Sant’Anna, que diverge das demais, nos parece a mais adequada, pois a
57
música caipira, a qual ele denomina Moda Caipira de raiz, é a arte do 78 rpm, o
velho disco pesado e quebrável de 78 rotações por minuto.
Ao fazer essa afirmação, Sant’Anna não nega que a música caipira teve de
passar por transformações para ser gravada devido a sua extensão que
ultrapassava horas, mas a forma e a temática se mantiveram fiel. Sendo assim,
toda a produção que se despontou a partir de 1929 e que teve seu auge na
década de 40 e 50 constitui a chamada música de raiz.
Ribeiro (2006) recorda a experiência vivenciada por Inezita Barroso que ao
gravar Moda da Pinga teve de adaptá-la ao tempo exigido pelo disco, pois a letra
era composta por inúmeras e longas estrofes que duravam horas para serem
cantadas.
Já a música sertaneja é aquela que prolifera a partir dos anos 70, que tem a
presença de instrumentos musicais sofisticados e temas relacionados à traição, ao
sexo, ao dinheiro que são tabus no universo caipira. O compositor caipira retrata
em seus versos um caso de traição ou sexo, todavia, o faz com recato e pudor.
Outro elemento importante, segundo Silva (2004), que nos ajuda a distinguir
a música de raiz da sertaneja está na emoção que ambas despertam no ouvinte
que, por sua vez, reage diferentemente a cada uma. Por mais que o caipira tenha
sido ridicularizado, no imaginário popular a idéia de refúgio, de que o passado
é sempre melhor que o presente, de que o campo proporciona tranqüilidade. E
isso a música de raiz se encarrega de fazer, servindo de ensinamento por meio
dos valores pregados pelo homem do campo.
Inezita Barroso que, desde 1980, está à frente do programa Viola, Minha
Viola, transmitido pela TV Cultura, é uma das que defende a existência da música
de raiz, admitindo no programa somente a presença de cantores e violeiros que
possuem o repertório caipira. É sem dúvida uma forma de manter as nossas
tradições musicais e culturais. Não podemos deixar de mencionar também outro
grande difusor da cultura caipira, Rolando Boldrin,cantor, poeta e apresentador da
mesma emissora que Inezita Barroso.
Seguindo a trilha desses dois grandes difusores da cultura popular,
optamos, neste presente trabalho, pela letra de música de raiz porque nos
interessa analisar a identidade do homem caipira por meio do ethos revelado nas
58
letras selecionadas, bem como a construção das cenas que revelam parte da
história nacional. Além das características referentes à música de raiz, o ethos e a
cena são elementos decisivos na definição desse gênero.
2. 5. O homem caipira e a música de raiz no contexto atual
O homem caipira retratado nas letras da composição de raiz ou o Caipira
Picando Fumo, pintado em 1893 por Almeida Junior, praticamente desapareceu.
Com a modernização, esse homem transmutou-se, a partir do século XX,
seduzido pelas novidades citadinas ou submetido ao trabalho assalariado. O
progresso também acabou tomando conta do sertão com a chegada do
automóvel, do telefone, do rádio e dos instrumentos de trabalho no campo.
Em uma sociedade consumista, o homem caipira perde seu espaço e seus
valores vão se alterando, iniciando, dessa maneira, o seu processo de
desajustamento. Assim, a região caipira de Rio Bonito, hoje município de Bofete,
estudada por Candido, em 1954, já demonstrava sinais de descaracterização.
Candido (op. cit.:107) nos ajuda a compreender esse processo quando afirma que
a cultura caipira , como a do primitivo, não foi
feita para o progresso: a sua mudança é o seu
fim, porque está baseada em tipos tão precários
de ajustamento ecológico e social, que a
alteração destes provoca a derrocada das formas
de cultura por eles condicionada.
No entanto, a cultura caipira sobrevive nas letras de música de raiz que
resistem à ação do tempo conquistando novas gerações que, mesmo não
vivenciado essa época, cultuam o sentimentalismo predominante. Essa
contemplação pela vida no campo remonta à antiguidade, pois, segundo Williams
(op. cit.:154 )
59
(...) uma idéia de campo é uma idéia da infância:
não apenas as lembranças localizadas, ou uma
lembrança comum idealmente compartilhada,
mas também a sensação da infância, de
absorção deliciada em nosso próprio mundo,do
qual, no decorrer do processo de
amadurecimento, terminamos nos distanciando e
nos afastando, de modo que esta sensação e o
mundo tornam-se coisas que observamos.
O público fiel, porém, continua sendo as pessoas idosas; haja vista o
programa exibido por Inezita Barroso cujo auditório é composto, em sua maioria,
pelos mais velhos. Em relação ao público, Caldas (1979) afirma que esse tipo de
música pertencia exclusivamente à camada inferior da população, ou seja, à
classe proletariada. Destituído de uma infra-estrutura educacional, Caldas defende
que esse era o motivo pelo qual o público consumia a música sertaneja, cujo
conteúdo é conformista e alienante.
Hoje sabemos que tanto a música sertaneja quanto a caipira conquistaram
a classe média também. Contribui para a adesão desse novo público a mídia ao
lançar novelas com temática rural e ao ceder espaço para a apresentação das
duplas de sucesso.
Outro elemento primordial na difusão da sica sertaneja, principalmente,
foi o rodeio, evento que mobiliza milhões de pessoas todo ano. Desde a mais
simples até a mais sofisticada e superproduzida arena, como a de Barretos, o
rodeio é realizado em qualquer canto do país e a presença do público é garantida.
Ao contrário das duplas caipiras, que cantavam em circos e palcos
improvisados, as novas duplas se apresentam em grandes eventos pelo país todo
usufruindo carros importados, fazendas e roupas de grifes. Devido a esse
prestígio, o termo caipira adquiriu novo sentido no meio artístico sertanejo, pois
passou a designar aquele que tem dinheiro, camionete e fazendas.
60
A letra composta por Cezar e Paulinho, umas das duplas de grande
sucesso no mercado, expressa o status que o cantor sertanejo tem
hodiernamente. Sem nenhuma modéstia, vão descrevendo seus bens em uma de
suas composições: nóis tem currar, nóis tem rancho, nóis nascemo aqui, nóis tem
Mitsubishi, nóis tem jet-sky, nóis tem celular e bip, nóis tem internet, nóis é rico,
nóis é chique,com nóis ninguém se mete.
No entanto, uma rejeição no inconsciente coletivo pela figura tradicional
do caipira que é considerado um ser ridículo, depreciável e preguiçoso; apesar de
o público admirar a temática da letra da sica de raiz que tem uma concepção
fundada sobre uma existência natural que não fora contaminado pelo tumulto da
vida urbana. Essa afirmação nos faz compreender por que, a partir da década de
60, as duplas sertanejas passaram a amenizar o seu jeito caipira, inclusive no
modo de se vestir, para se distanciar do estereótipo do caipira. Mesmo assim,
semelhanças entre as duplas e o caipira quando sabemos que ambos vieram de
família humilde que trabalhava na roça, ou na plantação de tomate, como Leandro
e Leonardo. Em comum, essas duplas, vindas da área que compreende a cultura
caipira, como Goiás, Paraná e interior de São Paulo, não tinham muitos recursos
técnicos e culturais. Por isso, segundo Caldas (1999), o público dessa modalidade
se encontra na periferia e é de baixa escolaridade como agricultores, operários,
motoristas, vigias, pedreiros etc.
As duplas sertanejas produzem suas letras conforme o gosto desses
ouvintes, porém, elas mantêm em seu repertório algumas letras de raiz, inclusive
as consideradas clássicas que são as mais conhecidas e cantadas pelo público.
Dessa forma, essas letras perpetuam as raízes de homens simples e rudes que
interpretaram a sua maneira o ambiente em que viveram, conforme veremos no
capítulo, a seguir, referente à amostra.
61
ALMEIDA JUNIOR, José Ferraz de.
Amolação interrompida, 1894- óleo sobre tela, 200x 140cm.
62
CAPÍTULO III
A ANÁLISE DA AMOSTRA: APLICAÇÃO DA METODOLOGIA NO
DISCURSO DAS LETRAS SELECIONADAS
3.0. Introdução
Este capítulo tem como objetivo realizar a análise da amostra na qual serão
aplicados alguns conceitos da metodologia que norteia a presente pesquisa, a AD,
principalmente no que concerne à questão de ethos e de cena enunciativa.
A amostra é composta por seis letras de música de raiz produzidas entre o
ano de 1937 e 1961, período que culminou no auge da produção dessas
composições que ficaram na memória do povo.
De acordo com a AD, os sentidos não se reduzem apenas aos enunciados,
pois o que determina a produção de sentidos é a situação, ou seja, o contexto em
que eles são produzidos. Nessa perspectiva, o discurso das letras selecionadas
fazem sentido se levarmos em consideração o ano de suas produções.
3.1. Contexto de produção da amostra
Uma parte do período que abrange a nossa amostra corresponde ao
governo de Getúlio Vargas, cujo mandato ocorreu em outubro de 1930 a 1945. No
início dos anos 30, segundo Fausto (2006), o governo deparava-se com a crise
mundial que, conseqüentemente, gerava uma produção agrícola sem mercado,
pois não tinha comprador, provocando a falência de fazendeiros e o desemprego
nas cidades.
A crise do café, que teve início em 1920 quando os países envolvidos na
primeira guerra mundial deixaram de comprar nosso café, culminou no êxodo rural
que se deu a partir de 1929. O governo getulista adotou uma política
industrializante, substituindo a mão-de-obra imigrante pela nacional. Essa mão-de-
63
obra era formada, em sua maioria, pelos migrantes que passaram a intensificar-se
a partir do ano de 1937. A medida tomada por Getúlio Vargas consistiu em
aumentar os impostos e elevar os preços dos produtos estrangeiros, diminuindo,
com isso, os impostos sobre a indústria nacional.
Essa decisão fez com que aumentasse o número de fábricas no país.
Durante o período getulista, São Paulo e Rio de Janeiro, devido ao seu
desenvolvimento urbano, atraíram um contingente grande de trabalhadores rurais.
A tabela, a seguir, elaborada por Carvalho (2006:31) nos mostra a
evolução relativa da população urbana e rural do país nos censos do IBGE de
1940, 1970,1999 e 2000.
Ano População urbana População rural
1940 25% 75%
1970 56% 44%
1990 76% 24%
2000 81% 19%
Dentre esses migrantes, estavam inúmeros compositores que, em comum,
tinham nascidos no interior de São Paulo. Como exemplo, temos, de acordo com
Nepomuceno (1998), João Pacífico, um dos maiores compositores de música de
raiz que se consagrou no tempo. Neto e filho de escravos, Pacífico trabalhou em
Cordeirópolis (SP) e desembarcou na Barra Funda para trabalhar em uma fábrica
de tecido. O jovem, na época, trazia uma carta de recomendação e alguns versos
escritos em um pedaço singelo de papel.
Esse contexto é tratado em muitas letras da música de raiz porque muitos
dos compositores vivenciaram essa experiência. Não podemos deixar de
mencionar também o interesse financeiro por parte dos cantores e das
gravadoras, pois a maioria do público era composta por migrantes do campo.
Caldas (1979) ressalta que os agentes da indústria cultural ao notarem a grande
64
receptividade pela música de raiz, tanto no meio rural como no meio urbano,
obrigavam os cantores a comporem de acordo com o gênero.
Sendo assim, a construção da cena enunciativa e a revelação do ethos são
próprias do gênero música de raiz, fazendo com que o co-enunciador os antecipe,
incorporando a imagem do sujeito enunciador por meio de estereótipos que se
fixam na sociedade. Por outro lado, o enunciador conquista a adesão do público
valendo-se do interdiscurso com o uso de valores fixos que são do senso comum,
com a própria narrativa, com a menção à religião etc.
Quanto ao aspecto formal das letras, elas constituem-se em narrativas
seguindo as categorias de introdução, desenvolvimento e desfecho. Essa, aliás, é
uma característica herdada do Romanceiro Ibérico. Segundo Sant’Anna (2000) era
uma maneira de prender a atenção do público que era, em sua maioria, composto
por analfabetos.
Mesmo em se tratando de composições compostas por pessoas simples,
de formação escolar escassa, há regularidades na elaboração dessas letras.
Verificamos no discurso que preocupação com as rimas, embora sejam
empregadas as pobres, que são compostas por palavras comuns que pertencem à
mesma classe gramatical. As rimas ocorrem sempre com as últimas palavras de
cada versos, sendo denominadas externas.
O violeiro, compositor e radialista Ramiro Viola, da cidade de Botucatu,
interior da capital paulista, nos confirma essa assertiva, afirmando que a rima é a
maior preocupação no momento de compor. Se eu escrevo, por exemplo, coração,
tenho que rimar com ilusão, emoção, e assim vai....
O sujeito-autor da música de raiz tem de escrever “moda na linha”,
expressão muito utilizada cujo significado, segundo Sant’Anna (2000), é produzir
conforme os padrões versificatórios do gênero, segundo manda a tradição.
O eixo norteador do discurso dessas letras está no léxico que é composto
por palavras que pertencem ao universo e à linguagem do caipira como: apiei,
vancê, pra mor, sangrei a anca do tar, etc. O uso de certos adjetivos e
substantivos, conforme veremos, é portador da ideologia dessa classe social que
sentia-se excluída e que não tinha voz para atuar na sociedade.
65
Em relação ao tema, Sant’ Anna (op. cit.:34-35) observa que a letra de
música de raiz
remoça metáforas e instâncias temáticas
profundamente gregadas na cultura, como a pica
exordial, a do final feliz, a de invocação da natureza, do
lugar ameno e bucólico,a da peroração, a das
inovações bíblicas, a do passado feliz que não volta
mais, a da moça roubada, a do homem mal, de coração
satânico, a da rapariga pecadora, a do mundo às
avessas, a da morte domada, a do pobre virtuoso, a das
transformações zoomórficas assombradoras ou
angelicais, a da força das premonições e vaticínios.
Alguns desses temas se fazem presentes nos discursos das letras que
escolhemos, como a oposição do caipira com o citadino, o caipira que tem de
abandonar sua roça, o caipira que se arrepende de ter ido para a cidade, e o amor
proibido que culmina na morte. A seleção dessas letras se deve ao fato de que as
cenas são estrategicamente construídas em favor de um ethos do homem caipira.
Veremos como isso ocorre nas análises a seguir.
66
3.2. Análise do texto 1 : A caneta e a enxada
Certa veiz uma caneta foi passeá lá no sertão
Encontrou-se com uma enxada, fazendo a prantação
A enxada muito humirde, foi lhe fazê saudação
Mas a caneta soberba não quis pegar sua mão
E ainda por desaforo lhe passou uma repreensão
.
Disse a caneta pra enxada não vem perto de mim, não
Você está suja de terra, de terra suja do chão
Sabe com quem está falando,veja sua posição
E não se esqueça à distância da nossa separação.
Eu sou a caneta dorada que escreve nos tabelião
Eu escrevo pros governo as lei da constituição
Escrevi em paper de linho, pros ricaços e barão
Só ando na mão dos mestre, dos homes de posição
A enxada respondeu: de fato eu vivo no chão
Pra poder dá o que comê e vesti o seu patrão
Eu vim no mundo primero quase no tempo de adão
Se não fosse o meu sustento ninguém tinha instrução.
Vai-te caneta orgulhosa, vergonha da geração
A tua arta nobreza não passa de pretensão
Você diz que escreve tudo, tem uma coisa que não
É a palavra bonita que se chama...educação!
67
3.2.1. Temática
Procederemos à analise da letra A caneta e a enxada, composta em 1937
por Capitão Barduíno e Teddy Vieira, que se trata de um apólogo no qual objetos
se personificam em figuras humanas da sociedade. Assim, temos a caneta
representando o homem da cidade e a enxada personificando o homem do
campo.
A discussão entre ambos tem início quando o homem citadino faz um
passeio ao sertão e encontra-se com o caipira trabalhando que lhe estende a mão
para cumprimentá-lo. O homem da cidade, porém, o repreende por esse gesto
porque o outro está sujo de terra O caipira é repreendido também por não
compartilhar do mesmo ambiente que o outro, ao lado de homens de dinheiro,
posição e estudo.
O caipira, no entanto, surpreende o homem ao revidar afirmando que é
responsável pelo sustento deste e dos demais, colocando o trabalho num plano
superior ao da instrução e conclui a discussão afirmando que educação não é
sinônimo de estudo, mas de respeito ao próximo.
A revanche entre o caipira e o homem da cidade, tido como o dominador e
o informado, é um tema recorrente não na música de raiz, mas também em
piadas e em filmes. Quem sempre se sai melhor é o caipira, pois este utiliza-se de
sua esperteza, astúcia e vivência para derrotar o outro.
É neste sentido que percebemos uma relação entre os sujeitos-autores e o
enunciador desse discurso visualizada no quadro a seguir, pois estes, nascidos no
interior de São Paulo, vivenciaram a cultura caipira assumindo, desta maneira,
autoridade para falar sobre o tema.
Sujeito- Autor Caneta( homem
citadino)
Enxada (homem rural)
Pedro Anestori Marigliani,
ou Capitão Barduíno, filho
de italianos, nasceu em
É o homem citadino, bem
vestido, de posses e
posição que vai ao sertão
É o homem do campo que
vive no interior onde
trabalha e mora com a
68
Socorro/ SP no dia
13/11/1904. Em 1937
estreou como compositor em
São Paulo trabalhando
como radialista.
passear. família.
Teddy Vieira de Azevedo
nasceu em Itapetininga em
23/12/1922 onde cursou o
estudo Primário. Os estudos
Secundários foram
encerrados na capital
paulista.
3.2.2. Análise da superfície lingüística
A letra é composta por uma estrofe introdutória de cinco versos e quatro
estrofes formadas por quatro versos. Com referência à métrica, o emprego de
rimas paralelas e pobres com o uso de palavras terminadas em sons nasais como
sertão e prantação. o uso constante de orações coordenadas por serem mais
fácil de empregá-las já que as orações subordinadas exigiriam um trabalho mais
elaborado por parte do compositor e uma atenção maior do ouvinte.
A variante caipira se encontra, além da sintaxe, na fonética em que ocorrem
as seguintes ocorrências : metaplasmo por permuta, l por r: prantação (plantação),
humirde ( humilde), arta ( alta), paper ( papel);
- Metaplasmo por subtração: dorada ( dourada), primero ( primeiro);
- Apócope de r em verbos no infinitivo: passeá , fazê, pegá,dá, comê, vesti,
O plural é feito com o uso dos determinantes como em: ...que escreve nos
tabelião...;... pros governos as lei da constituição...;... pros ricaço e barão...; ...nas
mão dos mestre, dos homem de posição....
69
Os compositores citados acima correspondem ao sujeito empírico, que
aciona no texto um enunciador, ser responsável pelo seu enunciado.
Declamada por uma só voz, essa estrofe tem como propósito de facilitar o
entendimento da história, do acontecimento do que vai ser cantado a seguir nas
outras estrofes.
Certa veiz uma caneta foi passear lá no sertão
Encontrou-se com uma enxada, fazendo a prantação
A enxada muito humirde, foi lhe fazer saudação
Mas a caneta soberba não quis pegar na sua mão
E ainda por desaforo lhe passou uma repreensão
O enunciador, ser que profere esses versos, revela-nos sua postura diante
da realidade que o cerca por meio da materialidade lingüística. Assim, os
vocábulos certa veiz, prantação e humirde torna claro que ele fala da posição do
homem do campo, embora não habite o sertão, pois utiliza o advérbio . O uso
dos adjetivos humirde , acompanhado do advérbio de intensidade muito, e
soberba torna evidente uma tomada de postura em favor do homem rural. O último
verso da primeira estrofe que inicia-se com o advérbio ainda reforça essa
indignação do enunciador, cuja intenção é conquistar a adesão do co-enunciador
em favor do homem do campo. Isso nos faz perceber que, de fato, o discurso é
interativo, levando em consideração o outro, que desempenha, por sua vez, papel
essencial na constituição dos sentidos.
Esse sujeito que enuncia contrapõe o verbo passear com fazendo a
prantação ( = trabalhar) e o substantivo saudação com repreensão para evidenciar
o embate entre o homem citadino e o homem rural.
Visto que o sujeito enuncia da posição do homem rural, marginalizado, sem
acesso à escola, percebemos que seu discurso é determinado pelo contexto
social, histórico e cultural da comunidade na qual se inscreve.
Esse enunciador coloca em cena o embate travado entre o homem rural e o
homem citadino. Visando a criar um efeito de veracidade, ele utiliza o discurso
70
direto, tornando o discurso polifônico, no qual cada sujeito defende seu ponto de
vista:
Caneta (Homem da cidade) Enxada ( Homem do campo)
Não vem perto de mim,não
Você tá suja de terra, de terra suja do
chão
Sabe com quem está falando?
Veja sua posição !
E não se esqueça a distância
Da nossa separação
De fato eu vivo no chão
Pra podê dar o que comê
E vestir o seu patrão
Eu vim no mundo primero,
Quase no tempo de Adão
Se não fosse o meu sustento
Ninguém tinha instrução
O diálogo travado deixa-nos evidente a posição que cada sujeito ocupa e a
ideologia do grupo que pertencem. A cena enunciativa é construída de modo que
o co-enunciador fique do lado do homem do campo ( enxada) e sinta indignação
com o gesto do sujeito da cidade
3.2.3. Cenas de enunciação.
Temos, ainda, um elemento que compõe a cena e se destaca no texto;
trata-se da topografia discursiva (espaço) que não se refere somente ao lugar em
que os sujeitos interagem, mas a posição que devem e podem ocupar na instância
do discurso. O verso sabe com quem está falando? comprova essa afirmação.
O homem do campo, no entanto, não se intimida diante do homem da
cidade e reage ao discurso defendendo sua importância. O lugar que o homem
rural encontra-se é na terra, no sítio, na roça como é de se esperar realizando o
trabalho árduo e pesado do qual se orgulha. Todavia, na instância do discurso,
ele surpreende ao responder que é responsável pelo sustento desses homens,
que estão no poder. No plano da cronografia (tempo), o caipira diz que sua
existência tem origem quase no tempo de Adão para mostrar sua importância em
71
relação à caneta. Temos, aqui, a interdiscursividade com a Bíblia, mais
especificamente com o Velho Testamento, quando o verso citado acima se refere
a figura de Adão.
Esses elementos apresentados até então são fundamentais para a
constituição da cena enunciativa do discurso em questão, pois segundo
Maingueneau (2005:84) um texto o é um conjunto de signos inertes, mas o
rastro deixado por um discurso em que a fala é encenada. Eis a cena: o homem
caipira tem seu espaço, o sertão, invadido pelo homem da cidade. Enquanto o
primeiro está todo sujo de terra porque trabalha, o segundo apenas passeia. A
atitude do caipira é repreendida pelo citadino travando a partir de então uma
discussão para provar qual é mais importante. O discurso dessa letra de música
se apóia em outro gênero, o apólogo. Essa escolha o é casual, pois o propósito
desse gênero é justamente transmitir uma moral, um ensinamento que surge no
final do texto.
A cenografia é prevista de acordo com o gênero apólogo, pois a
enunciação transcorre sob a forma de narrativa que envolve uma discussão, um
debate no qual cada sujeito enaltece suas qualidades. Conforme veremos no
próximo item, essa cenografia, que se constitui como a maneira de enunciar, tem
relação com o perfil do homem caipira.
3.2.4. Ethos dicursivo
Integrante à construção da cena, tem-se o ethos, ou seja, a imagem que o
sujeito da enunciação quer transmitir de modo que consiga a adesão do co-
enunciador. Nesse caso, o que o sujeito diz e o como ele diz são significativos.
Esse tom está vinculado a um caráter que corresponde a características
psicológicas atribuídas pelo co-enunciador à figura do enunciador e a uma
corporalidade. Essas características na verdade são estereótipos que circulam na
sociedade. Quanto à corporalidade, ela é a representação do corpo do enunciador
da formação discursiva no seu modo de se movimentar no espaço e no seu modo
de vestir. Assim, a imagem estereotipada é a do caipira mal vestido, banguela e
72
com chapéu de palha que ainda não foi superada e que por isso não pode
freqüentar o mesmo lugar e espaço que o habitante da cidade.
A oposição entre caipira e citadino, segundo Yatsuda (2004: 104)
é a do incremento da industrialização, que traz à
tona a chamada ideologia da modernização.
Nesse momento, para os defensores da
incipiente industrialização, o caipira, enquanto
representante do campo, torna-se símbolo do
atraso. Mais do que isso, ele é mesmo tido como
o elemento que impede o desenvolvimento da
nação, agora centrado na zona urbana.
Essa ideologia, que transparece no verso veja sua posição, tem raízes,
conforme Yatsuda (2004), no colonialismo em que o europeu julgava-se superior
perante os nativos que eram denominados de preguiçosos, incapazes e violentos.
Mais tarde, os citadinos absorveram essa ideologia, transferindo-a para o morador
rural.
Assim, podemos verificar que no discurso do citadino da letra em questão,
predomina um tom de arrogância, preconceito e um corpo pretensioso que se
movimenta em lugares de prestígio e dinheiro. a enxada, cuja imagem é a de
um ser tímido, fala mansa, educado, se rebela e assume um tom de criticidade
superando a imagem de ignorante, encerrando assim a discussão.
O enunciador, portanto, utiliza-se da crença, cristalizada em estereótipos
culturais, de que as aparências enganam, pois sabe que o co-enunciador vai
compartilhar dessa mesma crença.
Conforme postula Orlandi (1997), não discurso e sujeito neutros,
desprovidos de ideologia, mesmo num texto aparentemente simples como em A
caneta e a enxada. O enunciador, representado na figura do caipira, tem a
percepção do distanciamento entre ele e o homem da cidade. Inferimos que esse
distanciamento provém da ausência do Poder Público para com essa camada
social do país que ficou marginalizada por causa do preconceito e descaso. O
73
caipira quer se fazer reconhecido pelas demais camadas, pois ele tem consciência
de que seu trabalho representa o progresso e o sustento do Brasil.
O caipira não menospreza a importância do estudo, mesmo porque a
escola equivale, no mundo rural, ao trabalho duro. Isso, segundo Martins (1975),
faz com que a família insista em manter o aluno durante muitos anos na escola
mesmo repetindo várias vezes. Por outro lado, a aspiração do caipira em relação à
escola é modesta, bastando ao aluno assinar o nome e ler alguma coisa. No
recorte a seguir, o enunciador defende que o estudo não é garantia de educação,
mas sim o modo como o indivíduo é criado.
Você diz que escreve tudo
Tem uma coisa que não
É a palavra bonita
Que se chama educação!
Esses últimos versos conferem ao discurso do homem rural um tom
moralizador e repreensivo. A palavra escreve está no sentido metafórico, pois na
realidade se refere ao comportamento do homem citadino.
74
3.3. Análise do texto 2 : Sodade do tempo véio
É só eu pegá na viola
Me vem a recordação
O tempo do meu sitinho
Que tudo era bom,ai...
Que tudo era bom.
Cada veiz que me alembro
Me corta o coração
Até hoje ainda eu sonho
Co’as pranta e as criação, ai...
Co’ as prantas e as criação.
Eu tinha vaca de leite
E porco no chiquerão
Tinha dois burro no pasto
E lindo potro lazão,ai...
E lindo potro lazão.
Levantava bem cedinho
Pro meio da cerração
Batê mio pras galinha,
Desintalá os leitão,ai...
Desintalá os leitão.
Depois eu ia pra roça
Tratar do meu argodão
Carpi na roça de mio
Chegá terra no fejão, ai...
Chegá terra no fejão.
75
Verdura lá no meu sitio
Havia um farturão
Abobrinha e serraia
Pipino e pimentão, ai...
Pipino e pimentão.
Depois tudo se acabô
Tive um grande prejuizão
Viero os gafanhoto
Me dexaro na mão,ai...
Me dexaro na mão.
Hoje eu me vejo em São Paulo
Nessa rica povoação
Trabaiando de operário
Sendo que eu já fui patrão, ai...
Sendo que eu já fui patrão.
3.3.1. Temática
A letra, produzida em 1937 por Sorocabinha e Mandy, trata de um sitiante
que teve de abandonar sua roça para trabalhar de operário na cidade de São
Paulo. O enunciador (sitiante) e o co-enunciador são transportados para essa
época por meio da memória, pois o discurso da letra retrata uma situação que de
fato ocorreu no país.
Assim como pudemos verificar no texto anterior, também uma relação
entre o sujeito- autor e o enunciador.
76
Sujeito- Autor Enunciador
Olegário Jo de Godoy, o
Sorocabinha, nasceu em 03/01/1955
na cidade de Piracicaba. Antes de
consagrar-se como compositor,
trabalhou como operário e porteiro na
capital paulista.
Manoel Rodrigues Lourenço, o
Mandi, nasceu também em Piracicaba
em 25/01/1901. Além de compositor,
dedicou-se às atividades educacionais
e política na cidade.
É o homem do campo que tem sua
própria roça, mas é obrigado a deixá-la
para trabalhar como operário em uma
fábrica de São Paulo.
A recordação desse tempo de antigamente se todas as vezes que o
caipira toca sua viola, fazendo-o acreditar que naquela época ele era feliz e não
sabia.
O que o caipira lastima é o fato de não ser mais patrão porque na condição
de operário tem de obedecer às ordens de outrem. Enquanto vivia na roça, ele era
o patrão e realizava suas tarefas do cotidiano como se fosse um ritual, até ser
interrompido pela praga dos gafanhotos.
Essa lembrança sonhadora do passado é também freqüente na música de
raiz onde paira uma nostalgia de um passado perdido e idealizado. Há, neste
sentido, um confronto repleto de julgamentos entre o ontem e o hoje que
representa a chegada do progresso. Em muitos discursos da música, a cidade é
criticada pelo enunciador porque ela rompe com os hábitos e costumes cultuados
pelo caipira.
77
3.3.2. Análise da superfície lingüística
O sujeito enunciador utiliza marcas lingüísticas na variante caipira
reproduzindo a fala com as seguintes características fonéticas:
- Apócope de r em verbos no infinitivo: pegá, batê, chegá,carpi e acabô .
- Metaplasmos por permutal: Lh por yode (iodização) como em serraia
(serralha), trabaiando (trabalhando), mio (milho); l por r(rotacismo) em argodão
(algodão), pranta (planta);
- Metaplasmos por aumento: o emprego do a no início das palavras como
em alembro.
- Metaplasmos por subtração: aférese de a como em lazão ( alazão)
Quanto à sintaxe, os determinantes é que se constituem como marca de
plural: Co’as pranta e as criação...; tinha dois burro no pasto...; desintalá os
leitão...; viero os gafanhoto...
Composta por oito estrofes de cinco versos cada, a letra apresenta rimas
pobres, sendo constante o emprego do sufixo ão e inho. No final de cada
estrofe,ocorre o paralelismo no penúltimo verso que se repete.
O léxico, portador de ideologia dos grupos sociais, retrata o universo do
homem caipira que descreve suas tarefas diárias: sitinho, pranta, criação, vaca de
leite, porco, dois burro, galinha, leitão etc.
Outro elemento importante nesse discurso é a categorização formal das
estrofes denominada pelo caipira de baixão. Segundo Sant’Anna (2000), baixão
consiste num suspiro forte e emotivo que tem suas raízes na estética do
Romanceiro tradicional. Em Sodade do tempo véio o baixão ocorre em todas as
estrofes e se realiza por meio do ai criando-se um clima de lamentação, tristeza e
saudades de um tempo que não volta mais.
O tempo do meu sitinho
Que tudo era bom, ai...
Que tudo era bom.
78
O primeiro verso da segunda estrofe Cada vez que me alembro é bastante
recorrente nas composições de música de raiz, pois remete a um passado
distante. Inclusive, são várias as letras que empregam essa expressão.
Na última estrofe, a expressão eu me vejo em (tal situação, tal lugar),
comum no meio rural segundo Martins (1975), classifica o presente como fator de
desgosto. Os verbos empregados no pretérito imperfeito se referem ao passado
vivido no sitio, criando uma atmosfera de nostalgia. Vejamos o recorte:
- Que tudo era bom
- Eu tinha vaca de leite
- Tinha dois burro no pasto
- Levantava bem cedinho
- Depois eu ia pra roça
- Havia um farturão
- Depois tudo se acabô
O enunciador utiliza os verbos no presente para exprimir sua situação atual
que é de descontentamento, tristeza. Os dois primeiros versos que introduzem a
música mostra-nos esse dilema entre o passado e o presente.
É só eu pegá na viola
Me vem a recordação.
Nesse contexto, o migrante rural sentia-se excluído e a lamentação do
discurso dessa letra refere-se à perda da liberdade, pois na cidade o sitiante tem
de se ajustar às obrigações do relógio e da indústria. Vejamos isso nos versos que
finalizam a música:
Hoje eu me vejo em São Paulo
Nessa rica povoação
Trabaiando de operário
Sendo que já fui patrão, ai
79
Sendo que já fui patrão.
3.3.3. Cenas de enunciação
Os versos iniciais da primeira estrofe dão corpo à cenografia do texto que
se dará por meio da recordação, permitindo ao co- enunciador a incorporação do
ethos do enunciador. A cena é constituída pela cronografia que marca a oposição
entre o “tempo véio”, que representa fartura, a rotina do sitiante, e o tempo novo,
tempo de operário. A topografia refere-se a dois lugares: ao sítio do sujeito-
enunciador e à cidade de São Paulo. A cena retrata a trajetória desse sujeito, que
representa o migrante, cujo sonho é ter o modo de vida voltado para a
subsistência da família. Todavia, a situação de operário acaba por interferir nesse
sonho.
Na cena, a justificativa da passagem do tempo véio” para a atualidade:
a praga de gafanhotos que acaba por dizimar a plantação causando ao sitiante um
enorme prejuízo. O gafanhoto provoca, dessa forma, a descontinuidade da vida do
sitiante que é habituado a sua rotina.
O sitiante, acostumado ao trabalho árduo, vive a lamentar-se porque se
encerra a fartura dos velhos tempos. A partir dessa cena, emerge um sujeito cujo
ethos é de um homem conservador, pois tem dificuldade em se adaptar ao novo
meio, nostálgico, desgostoso e contrariado. Esse ethos está associado ao gênero
música de raiz em que prevalece o sentimentalismo propiciado pela vida no
campo.
O discurso dessa letra de música, então, exprime as condições de
existência e a crítica das classes subalternas que tem dificuldade em adaptar-se
ao mundo capitalista. Dessa forma, o sujeito que enuncia nesse discurso nos
revela a ideologia do grupo ao qual pertence.
80
3.3.4. Ethos discursivo
O emprego de alguns substantivos no diminutivo, como sitinho e cedinho
demonstra afetividade quando o enunciador menciona sua roça que ficou na
memória e até mesmo uma pequena pretensão do homem caipira que se satisfaz
com o mínimo que garante a sua subsistência e a da família. O co-enunciador
pode incorporar o ethos, também, de um homem acomodado, submisso que não
contesta os acontecimentos a sua volta e que se entrega diante das dificuldades.
Essa afirmação fica mais evidente nos versos em que o enunciador atribui a sua
mudança de vida à praga de gafanhotos.
Os versos que compõem a terceira estrofe mostra-nos o orgulho desse
enunciador ao citar que tinha vaca de leite, e porco no chiquerão, tinha dois burro
no pasto e lindo potro lazão. A cena traz um ethos , como é de se esperar,
nostálgico e sentimentalista que o faz idealizar o tempo passado: o tempo do meu
sitinho / que tudo era bom...
A descrição das tarefas realizadas na seqüência mostra-nos ainda o ethos
de um homem trabalhador, conservador e metódico que sofre ao ver sua rotina
rompida. O léxico se vale dos verbos pertencentes ao trabalho na roça como batê,
desintalá, tratá, carpi, chegá( pôr). O enunciador se revela um homem bom, puro
que não teme em demonstrar seu sentimento , chegando a apresentar uma
inocência que se aproxima à da criança.
O tom que perpassa o discurso é de lastimação e saudades que tenta
provocar a comoção no co- enunciador. Os versos, porém, da sexta estrofe dão
um tom de comicidade com o emprego do substantivo no aumentativo : farturão
que rima com pimentão.
De um modo geral, o co-enunciador, embora possa considerar o discurso
um tanto sentimentalista e idealista, identifica-se com esse ethos, pois, de acordo
com Williams (1989), o ser humano, de um modo geral, tem o velho hábito de usar
o passado, o chamado “bons tempos” de antigamente como pretexto para criticar
o presente.
81
3.4. Análise do texto 3: Cabocla Teresa
Declamação
Lá no arto da montanha
Numa casa bem estranha
Toda feita de sapê
Parei uma noite o cavalo
Pro mor de dois estalo
Qu’ouvi la dentro batê
Apiei com muito jeito
Ouvi um gemido perfeito
Numa voz cheia de dô:
- Vancê, Teresa,descansa
jurei de fazê vingança
pra mor de meu amo.
Por uma réstea da janela
Vi uma luizinha amarela
Lampião apagando
Vi uma cabocla no chão
E um cabra tinha na mão
Uma arma alumiando.
Virei meu cavalo a galope
Risquei de espora e chicote
Sangrei a anca do ta
Desci a montanha abaxo
Galopeando meu macho
Seu dotô fui chamá.
82
Cantado
Há tempos eu fiz um ranchinho
Pra minha caboca mora
Pois era ali nosso ninho
Bem longe deste lugá
No arto lá da montanha/
Perto da luiz o lua
Vivi um ano feliz
Sem nunca isto esperá
E muito tempo de passô
Pensando em sê tão feliz
Mas a Teresa, dotô
Felicidade não quis
Puis meu sonho nesse oiá
Paguei caro meu amô
Pro mor de outro caboclo
Meu rancho ela abandonô.
Senti meu sangue fervê
Jurei a Teresa matá
O meu alazão arriei
E ela fui percurá
Agora já me vinguei
É esse o fim de um amô
Essa caboca eu matei
É a minha história, dotô.
83
3.4.1.Temática
Essa letra trata-se de uma famosa toada-histórica, composta por Raul
Torres e João Pacífico, em 1940, sendo até hoje uma das músicas de raiz mais
regravadas. Dividida em duas partes, a letra separa a informação do
acontecimento, que é contada, e a segunda parte é cantada em dueto. O objetivo
dessa divisão é atribuir veracidade ao acontecimento.
Os compositores também nasceram no interior de São Paulo como os
anteriores.
Sujeito-Autor Enunciador( testemunha)
João Batista da Silva, o João
Pacífico, nasceu em Cordeirópolis
(SP) no dia 05/08/1909. Neto e filho
de escravos teve uma infância pobre.
Com 15 anos vai para São Paulo.
Raul Torres, compositor e violonista,
nasceu em 1107/1906 em Botucatu.
Filho de imigrantes espanhóis foi
para São Paulo com 12 anos de
idade.
Pelo léxico trata-se de um homem
do campo, pois se expressa como
tal.
O tema em questão é um triângulo amoroso que termina em tragédia;
Teresa é assassinada pelo marido. A traição tem começo após um ano de
casados onde até então o casal fazia juras de amor. Com o orgulho ferido, o
marido jura vingança e não demonstra arrependimento.
Os sextetos declamados no episódio introdutório põem em cena um sujeito
declamador que nada tem a ver com o fato. Esse declamador é uma testemunha,
um informante que nos dá as primeiras impressões do acontecido.
Vejamos os versos introdutórios da letra:
84
Lá no arto da montanha,
Numa casa bem estranha
Toda feita de sapê,
Parei uma noite a cavalo
Pra mor de dois estalo
Qu’ouvi lá dentro batê
A segunda parte é cantada pelo próprio assassino que conta a sua história
diante de duas testemunhas: o declamador e o delegado. O assassino tenta se
eximir do crime que cometeu, atribuindo à esposa a culpa pela traição.
3.4.2. Análise da superfície lingüística
Os versos sextetos octossílabos declamados introduzem a narrativa
versificada no esquema AA,B, CC, B. O léxico usado pelo enunciador e pelo
caboclo é próprio da variante caipira: pra mor (por causa); apiei (desci); vancê (
você); cabra ( homem); risquei de espora (bater com a espora no cavalo); sangrei
a anca (sangrar o quarto traseiro do animal).
O discurso desse sujeito que está de fora revela-nos que nenhum discurso
é neutro, desprovido de ideologia. Verificamos isso no segundo verso em que a
casa é classificada de estranha. Ao situar a casa no “arto da montanha”,
Sant’Anna (2000) afirma que se realça a visão mítica da montanha como o lugar
das revelações.
Nos versos seguintes, a fim de legitimar seu discurso, o sujeito enunciador
emprega a heterogeneidade mostrada para revelar a presença do outro sujeito.
Apiei com muito jeito
Ouvi um gemido perfeito
Numa voz cheia de dô
- Vancê, Teresa, descansa,
85
Jurei de fazê vingança
Pra mor de do meu amo.
O sujeito enunciador cria, dessa forma, uma expectativa, pois o ouvinte
ainda não tem a essência do ocorrido. Aliás, esse é um recurso comum nesse tipo
de composição cuja intenção é prender a atenção do co-enunciador.
Ainda nessa parte declamada, mais precisamente na última estrofe, o
discurso do sujeito que enuncia entrecruza-se com o do “dotô”, ou o delegado. A
marca desse entrecruzamento apresenta-se explicitamente nos verbos vortemo
e “topemo” , e no pronome pessoal “nóis”.
A segunda parte é assumida pelo sujeito assassino que a introduz com a
fórmula tradicional correspondente ao “era uma vez” que verificamos a seguir:
Há tempo eu fiz um ranchinho
Pra minha caboca mora
Pois era ali nosso ninho
Bem longe desse lugá.
O léxico ninho simboliza a casa, considerada como núcleo da existência
íntima e como um lugar sacralizado. Mais uma vez surge o arto da montanhano
qual a casa se aproxima do céu, sacralizando essa união.
No arto lá da montanha
Perto da luz do luá,
Vivi um no feliz,
Sem isso nunca esperá.
Essa relação, no entanto, é manchada pela profanação, pois surge um
triângulo amoroso que é revelado de maneira sutil e com pudor. Conforme
mencionamos, o amor no espaço caipira é tratado como algo sagrado. Todavia,
86
como qualquer problema existencial, a traição não deixa de ser mencionada no
repertório da música de raiz, apenas é tratada com recato.
3.4.3.Cenas de enunciação
O discurso da letra Cabocla Teresa é composto pela construção de duas
cenas. Assim, a cena contada pelo sujeito enunciador é visualizada pela fresta da
janela num misto de luz e sombra. Como a metáfora é inerente à linguagem, o
verso lampião apagando pode significar a vida de Teresa que vai se acabando.
Dessa forma, há o confronto entre a morte e a vida.
É interessante a cena em que ambos se deparam com um cabra
assustado” que os chama de lado para lhes contar a história, ao invés de toparem
com um assassino violento que pretende fugir. Vejamos a construção da outra
cena na qual fica-nos evidente que a cenografia e o ethos implicam um processo
conjunto, pois o sujeito assassino constrói a cena de modo que valide seu
discurso. A maneira como ele enuncia não nos provoca raiva, mas compaixão.
Seu lar, construído como um ninho para demonstrar afetividade por Teresa,
localiza-se no alto da montanha, bem perto da luz do luar. Esse exagero serve
para mostrar a relação que o enunciador tem com o casamento como algo
sagrado.
O assassino utiliza-se de uma cenografia que o transforma de réu à vítima,
justificando para o co-enunciador a sua atitude, ou seja, ele narra sua vida com a
amada, afirmando que depositou todo o sonho no olhar de Teresa.
3.4.4. Ethos discursivo
O tom com que é contada a segunda parte da letra não é de raiva, ódio,
mas um tom dramático que acaba envolvendo moralmente o ouvinte, pois e
enunciador afirma que fez de tudo para o casal ter a plena felicidade. Esse ethos
87
revela-nos um homem machista que, com o orgulho ferido, transfere à mulher
Teresa a culpa da traição. Basta verificarmos nos versos Mas a Teresa, dotô,
felicidade não quis.
Os pronomes possessivos aparecem em vários versos, reforçando esse
ethos e fazendo emergir um homem possessivo, dono daquilo que está sob seu
domínio, seja a mulher, o sertão, o animal etc. Vejamos os versos: ...minha
caboca morá...; puis meu sonho nesse oiá..., paguei caro meu amô..., meu rancho
ela abandonô...;senti meu sangue fervê...;o meu alazão arriei...; é a minha história
dotô... O verso introduzido pelo pronome demonstrativo... Essa caboca eu
matei...expressa descaso com a mulher, de modo que seu nome não merece ser
mencionado, e satisfação por ter feito a vingança.
O mais interessante é quando o enunciador passa de réu à vítima tentando
justificar sua atitude, fazendo emergir um ethos dissimulado em Puis meu sonho
nesse oiá, paguei caro meu a. O co-enunciador não sente raiva desse
assassino, porque o outro não se coloca como tal. O enunciador utiliza-se de seu
caráter, sua dimensão psíquica, para persuadir, não só o delegado e a
testemunha, mas o ouvinte também mostrando que é uma pessoa que teve boas
intenções.
Esse corpo simples, portanto, retém na sua forma a complexidade e a
ambigüidade que atemoriza qualquer um vivendo entre a razão e a emoção.
88
3.5. Análise da letra 4: Saudades da minha terra
De que me adianta viver na cidade
Se a felicidade não me acompanhar
Adeus paulistinha do meu coração
Lá pro meu sertão eu quero voltar
Ver a madrugada quando a passarada
Fazendo alvorada começa a cantar
Com satisfação arreio o burrão
Cortando o estradão saio a galopar
E vou escutando o gado berrando
Sabiá cantando no jequitibá
.
Por Nossa Senhora meu sertão querido
Vivo arrependido por ter te deixado
Esta nova vida aqui na cidade
De tanta saudade eu tenho chorado
Aqui tem alguém diz que me quer bem
Mas não me convém eu tenho pensado
Eu digo com pena mas essa morena
Não sabe o sistema que eu fui criado
Tô aqui cantando de longe escutando
Alguém está chorando com o rádio ligado.
Que saudade imensa do campo e do mato
Do manso regato que corta as campinas
Aos domingos eu ia passear de canoa
Nas lindas lagoas de águas cristalinas
Que doce lembrança daquelas festanças
Onde tinham danças e lindas meninas
Eu vivo hoje em dia sem ter alegria
89
O mundo judia mas também ensina
Estou contrariado mas não derrotado
Eu sou bem guiado pelas mãos divinas
Pra minha mãezinha já telegrafei
E já me cansei de tanto sofrer
Nesta madrugada estarei de partida
Pra terra querida que me viu nascer
Já ouço sonhando o galo cantando
O inhambu piando no escurecer
A lua prateada clareando a estrada
A relva molhada desde o anoitecer
Eu preciso ir pra ver tudo ali
Foi lá que nasci, lá quero morrer.
3.5.1. Temática
A letra em questão, produzida em 1955 por Goiá e Belmonte, trata de um
homem que deixou o sertão e foi embora para São Paulo, deixando para trás sua
família. No entanto, ele se arrepende, pois a saudades do campo com suas
festanças, tradições e trabalho é imensa. O enunciador não encontra razões que
o convença a ficar na cidade, nem mesmo a paixão de uma mulher o destitui de tal
idéia, porque, segundo ele, o sistema em que foi criado difere do sistema da
cidade.
Há, nessa lamentação toda, um elemento importante, sobretudo no meio
rural, que o encoraja a tomar a referida atitude que é voltar a sua terra: é a
religião. Cantar também é outro elemento que ameniza seu sofrimento, fazendo
voltar ao passado.
O discurso dessa letra traduz a vida de muitos compositores que, assim
como o enunciador, deixam seus lares no interior para trabalhar na capital
90
paulista. O interessante é que esses compositores, como qualquer artista, estão
sujeitos, ao caírem no anonimato, a retornar para o interior, onde passam a
velhice. Vejamos no quadro a semelhança:
Sujeito-Autor Enunciador
Pascoal Zanetti Todarelli, conhecido
como Belmonte, nasceu em Barra
Bonita (SP) em 02/11/1937. Com 16
anos se mudou para a capital.
Gerson Coutinho da Silva, o Goiá,
nasceu em Coromandel (MG) em
1101/1935. No ano de 1955 foi para
São Paulo investir na carreira artística.
É o homem do campo que deixa sua
roça e sua família para trabalhar em
São Paulo. Mas não encontra a
felicidade e resolve regressar para sua
terra natal.
Reiteramos que essa temática é constantemente empregada na produção
da música de raiz, mesmo nos dias atuais. Sant’Anna (2000) afirma que se trata
de uma continuidade desse ideário ufanista de afirmação nacional que
predominou no romantismo. Por isso, são constantes os versos que idolatram e
exaltam a terra, a natureza, os rios etc.
3.5.2. Análise da superfície lingüística
Essa letra é considerada um clássico da música de raiz sendo uma das
mais gravadas pelos artistas atuais. Organizado em quatro estrofes de dez versos
decassílabos, em sua maioria, o texto, lingüisticamente, difere dos analisados até
aqui, ou seja, ele não representa a fala do caipira, pois se aproxima do português
normativo. Todavia o léxico, o tema e, principalmente, o discurso fazem com que a
91
letra seja considerada de raiz. marcas de oralidade em quase todas as
estrofes: pro, tô, pra.
O discurso da letra aproxima-se mais da poesia por causa de sua estrutura:
o enunciador não apresenta o discurso por meio da narrativa, como vem
ocorrendo até então. o emprego de rimas externas que se realizam com sons
nasais e com verbos no infinitivo e no gerúndio, e de rimas encadeadas, em que o
fim de um verso rima com o meio do seguinte. Vejamos:... viver na cidade.../ se a
felicidade...; ...meu coração.../la´pro meu sertão...
O emprego dos adjetivos são significativos, pois tornam o discurso
romântico revelando-nos a ideologia do enunciador; ou seja, a idéia de que o
campo é um paraíso em que só coisas boas para serem desfrutadas.
Comprovamos isso nos versos seguintes: ... sertão querido...; ...manso regato...;
...lindas lagoas...;...águas cristalinas...; ...doce lembrança...; ...lindas meninas...;
...terra querida...; ...lua prateada...; ... relva molhada....
3.5.3. Cenas de enunciação
A cena construída ressalta as qualidades do campo. A vida na cidade
quase não é mencionada, mas pelo contexto político-social apresentado no início
deste capítulo podemos inferir que ocorreu o mesmo que se deu com outros
migrantes: muitos tiveram de trabalhar em fábricas. A cena, porém, leva-nos a
inferir o que o levou para a cidade se o campo apresentado pelo enunciador
remete ao paraíso. Acreditamos que o sonho de conquistar coisas melhores
associado ao deslumbre que toda cidade grande provoca.
A cena se ancora em valores fixos como o mundo judia, mas também
ensina para justificar seu arrependimento de ter deixado o campo, servindo-lhe de
consolo. O que perpassa o texto é o sentimento de exaltação da natureza e do
campo nos remetendo ao poema Canção de exílio, de Gonçalves Dias, pois a
semelhança entre ambos os textos o bastante evidentes. Prova de que todo
discurso é atravessado e composto pela interdiscursividade. Essa
92
interdiscursividade é percebida graças à memória que acionamos quando ouvimos
a música, relacionando-a imediatamente ao poema, cujo discurso é conhecido
pela maioria.
Em comum, os dois textos compartilham do uso do mesmo advérbio de
lugar. O lá indica o Brasil no poema de Gonçalves Dias ( as aves que aqui
gorjeiam não gorjeiam como lá). Na letra indica o sertão do homem caipira.( pro
meu sertão, eu quero voltar). Vejamos no quadro como se essa
interdiscursividade:
Poema: Canção do exílio Letra da Música: Saudades da
minha terra
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá
Sabiá cantando no jequitibá
Não permita Deus que eu morra Por Nossa Senhora, meu sertão
querido.
Sem que eu volte para lá Eu preciso ir pra ver tudo ali
Foi lá que nasci, lá quero morrer.
No poema, o enunciador está exilado em Portugal, de onde sente saudades
do Brasil. O enunciador do discurso da letra também vive uma espécie de exílio
em seu próprio país porque a cidade lhe soa estranha e ele não consegue se
adaptar. Seu consolo é recordar a vida que possuía no campo. Observando o
quadro, o sabiá é mencionado em ambos os discursos por ser uma ave
tipicamente brasileira. Outra semelhança está no fato de que os enunciadores
invocam ajuda espiritual, mostrando-se confiantes e religiosos. Os versos finais
demonstram o desejo de retornarem à terra natal
93
3.5.4. Ethos discursivo
No discurso da letra Saudades da minha terra deparamos com um
enunciador arrependido, mas investido de um corpo determinado, confiante e
religioso que se revela apegado às suas tradições. O tom de sua enunciação é de
lamentação, desgosto, nostalgia e também de esperança. Esse ethos de um
homem confiante deve-se ao fato de este ser guiado por uma força superior.
Portanto, a rejeição do ethos de um homem que é dono de seu próprio destino
que luta contra as dificuldades, tentando superá-las. A saída encontrada, neste
caso, é o retorno à sua casa no campo.
Os versos introdutórios do discurso De que me adianta viver na cidade/ se a
felicidade não me acompanhar revelam um sujeito desapegado de coisas
materiais, pois seu conceito de felicidade está associado a viver no campo.
Ideologicamente, a cidade, mesmo com seus atrativos, não é garantia de
felicidade porque rompe com seus hábitos e tradições. Considerando a dificuldade
desse sujeito em se adaptar às novas circunstâncias da vida, emerge o ethos de
um homem conservador, ligado a suas raízes.
Esse conservadorismo está evidente nos versos Eu digo com pena mas
essa morena/ Não sabe o sistema que eu fui criado. A memória nos remete
àquela época em que namorar significava compromisso sério, direcionado ao
casamento. De acordo com Candido (2003), a escolha do parceiro dependia do
consentimento do pai e, mesmo após a aprovação, o rapaz e a moça mantinham
pouco contato até que a união, de fato, se oficializasse. Para o enunciador do
discurso da letra em questão era inconcebível um namoro como o da cidade
grande.
O enunciador descreve o campo como um lugar parasidíaco, um lugar de
refúgio, longe das atrocidades que atemorizam o citadino, de modo que atraia o
co-enunciador para esse cenário. Nisso reside a eficácia de seu discurso: o
enaltecimento do campo, sem poupar-lhe elogios. Assim, predomina um
sentimento exacerbado de patriotismo e devoção à sua terra que perpassa os
versos eu preciso ir pra ver tudo ali, foi lá que nasci, lá quero morrer.
94
3.6. Análise do texto 5: Terra Roxa.
Um grã- fino de carro de luxo
Parô em frente de um restaurante,
- Faz favor de trocar mil cruzeiro,
Afobado ele disse para o negociante
-Me desculpe que não tenho troco,
mas aí tem freguês importante!
O grã-fino foi de mesa em mesa
E por uma delas passo
Por ver um preto que estava almoçando
Num traje esquisito, num tipo de andante
Sem dizê que o tal mil cruzero
Ali era dinheiro pr’aqueles viajante, ai,ai
Negociante falô pro grã-fino:
- Esse preto ,eu já vi tem trocado!
O grã-fino sorriu com desprezo:
- O senhor não tá vendo que é um pobre coitado!
Com a roupa toda amarrotada,
E um jeito de muito acanhado
Se esse cara for alguém na vida
Então eu serei presidente do Estado!
- Desse mato aí não sai coelho
e para o senhor fico muito obrigado
Perguntá se esse preto tem troco
È deixar o caboclo muito envergonhado, ai,ai.
Nisso o preto que ouviu a conversa
95
Chamô o moço com um modo educado
Arrancô da guaiaca um pacote
Com mais de umas cem cor de abobra embolado
Uma a uma jogô sobre a mesa:
- Me desculpe não lhe trocado!
O grã-fino sorriu amarelo:
- Na certa o senhor deve ser Deputado
Pela cor vermelha dessas notas
Parece dinheiro eu estava enterrado
Disse o preto:- Não regale o olho
Isso é apenas o rastoio do que eu tenho empatado,ai,ai.
Essas nota vermelha de terra
É de terra pura, massapé
Foi aonde eu plantei há sete ano
Duzentos e oitenta mil pés de café!
Essa terra que a água não lava
Que sustenta o Brasil de pé
Vancê tando montado nos cobre
Nunca falta amigo e algumas muié.
É com elas que nóis importamo
Os tais Cadilac, Ford e Chevrolet
Pra depois os mocinhos grã-fino
Andar se enzibindo que nem coroner,ai, ai.
O grã- fino pediu mil desculpas
Rematô meio desenvaxido
- Gostaria de arriscar a sorte
Onde está esse imenso tesouro escondido?
- Isso é fácil – respondeu o preto
Se na enxada tu for sacudido
96
Terra lá é peso de ouro.
E o seu futuro estará garantido!
Essa terra é abençoada por Deus
Não é propaganda, lá fui nascido
É no Estado do Paraná
Aonde é que está meu ranchinho querido,ai,ai.
3.6.1. Temática
Composta em 1958 por Teddy Vieira, esse tema é freqüente e emblemático
na música de raiz em que um grã- fino desdenha a presença de um caboclo, não
permitindo que este usufrua do mesmo espaço. Ao chegar em um restaurante, um
grã- fino, em uma carro de luxo, pede ao negociante que lhe troque o dinheiro,
mas devido à alta quantia o comerciante afirma que não dispõe desse troco.
Porém, diz que dentro do restaurante encontra-se um freguês importante que,
certamente, possui esse dinheiro.
O negociante aponta, em meio aos viajantes, um negro mal vestido,
sentado à mesa. O grã-fino contesta, afirmando que o negro com a roupa
amarrotada e um jeito acanhado, jamais poderia dispor daquela quantia e o
desdenha dizendo que daquele mato não sai coelho.
O negro ao ouvir a conversa, entre ambos, chama o grã-fino e lhe mostra
uma quantia alta de dinheiro referente a cem mil cruzeiros, a qual jogou uma a
uma sobre a mesa. Em seguida, pede-lhe desculpas por não ter trocado. O moço
pergunta se o negro é deputado, e este retruca afirmando que o dinheiro que tem
em mãos, restolho do que tem empatado, é fruto do suor de seu trabalho na terra.
O grã-fino pede-lhe desculpas e indaga onde fica essa terra que
tamanha quantia de dinheiro. O negro afirma orgulhoso que é no estado do
Paraná.
97
3.6.2. Análise da superfície lingüística
O texto é composto a partir do revezamento de cinco oitavas e cinco
quadras decassílabas, que apresentam rimas pobres e intercaladas. Trata-se de
um romance lírico - narrativo composto por sucessivos episódios.
Embora saibamos que a letra foi produzida em 1958, no texto referência
à essa época , devido ao valor do dinheiro que equivale a mil cruzeiro. O cruzeiro
foi instituído como unidade monetária no país em 05 de outubro de 1942, no
governo de Getúlio Vargas.
O texto é marcado por sinais de exclamação, pois o diálogo que se instala
aí é polêmico. A linguagem reproduz a variante caipira e a oralidade por meio do:
- metaplasmo por permuta: l por r, cononer ( coronel); l por yode (
iodização) como em muié ( mulher), rastoio ( rastolho).
- apócope nos seguintes verbos: dizê, perguntá, parô, passô, falô, chamô,
arrancô, jogô, rematô.
3.6.3. Cenas de enunciação
Mais uma vez entra em cena o confronto entre o homem branco da cidade
e o caipira, agora de pele negra por meio do discurso direto. O primeiro é um grã-
fino bem arrumado que ao seu olhar o encontra ninguém que tenha trocado.
Pelo seu discurso sabemos que ele acredita que somente um político poderia
dispor da quantia que ele almejava. Por isso o emprego do ditado popular desse
mato não sai coelho para comprovar sua tese : como um trabalhador, à custa do
suor e da honestidade, conseguiria tanto dinheiro? O ditado popular, considerado
como verdade incontestável pelo povo, é uma estratégia na elaboração da cena,
de modo que conquiste a adesão do co-enunciador Conforme Maingueneau
(2001:169)
98
a enunciação proverbial é fundamentalmente
polifônica; o enunciador apresenta sua
enunciação como uma retomada de inumeráveis
enunciações anteriores, os de todos os locutores
que já proferiram aquele provérbio.
Por outro lado, o enunciador utiliza-se de um recurso que desbanca o grã-
fino: as pessoas o são o que parece, embora a cena, no início dos versos, nos
induz a compartilhar do mesmo pensamento que o grã-fino, pois o caipira negro
entra em cena de modo humilde, mal vestido, todo amarrotado.
Todavia, não nos chega a surpreender, pois o fato de sabermos que
estamos diante do gênero música de raiz faz com que antecipemos a outra cena.
O discurso da letra de raiz, nesse sentido, não apresenta muitas inovações na sua
composição, muitas vezes tornando óbvio o seu desfecho. Outra característica é a
maneira como esse discurso lida com o improvável, segundo Sant’Anna (2000),
em que há uma relação com o místico que nos conduz ao sonho, pois seus
argumentos não são consistentes.
O discurso do caipira coloca em questão também o elemento terra como
fonte de trabalho, e como o chão natal. A metáfora da nota vermelha de terra é
para mostrar que o campo mantém o sustento do país, assim como no discurso de
A caneta e a enxada. O seu convite ao grã-fino para assumir o serviço na enxada
e na lida com o gado, num tom de ironia, visa ressaltar o trabalho forte e braçal,
em oposição àquele que ganha a vida sentado como o político.
A terra, nos versos finais, é louvada fazendo desaparecer seu valor de
troca, pois ela é o berço do caipira que pretende retornar para lá. Sant’Anna
(2000) afirma que não são poucas as louvações da terra como a geratriz
primordial que é responsável pelo surgimento de todas as criaturas. E cita como
exemplo a mitologia grega e a passagem da bíblia, na qual diz que nascemos da
terra e voltaremos para ela. Esse desejo, conforme vimos, fica evidente no
discurso Saudades da minha terra.
A interdiscursividade é muito presente no discurso das letras de música de
raiz, pois, como se vale da oralidade, ela capta tudo isso mesmo sem saber a
99
autoria e incorpora à sua realidade. É por meio da interdiscursividade, que
observamos os conflitos sociais e ideológicos que emergem dos espaços
discursivos.
3.6.4. Ethos discursivo
O discurso do grã-fino tem um tom de arrogância, preconceito e ironia em
relação ao caipira. O carro de luxo o faz ostentar o poder que tem desmerecendo
todos que ali estão no restaurante. Tal fala é confirmada com o ditado popular.
O caipira é o negro humilde, mal vestido, porém virtuoso que tem educação,
honestidade e é trabalhador. Ele tem dinheiro e grandes posses, embora não
aparenta ter como o grã-fino. Ao retrucar o grã-fino, o caipira o ironiza no verso se
na enxada tu for sacudido!
O co-enunciador, na realidade, pode considerar improvável a virada que o
caipira porque não uma explicação convincente para isso. O uso da
hipérbole no discurso, que está nos números, como na quantidade do dinheiro, no
número de pés de café, reforça a ideologia do enunciador, ou seja, de que as
aparências enganam. Nesse sentido, percebemos que o discurso da letra da
música de raiz não se preocupa com a veracidade dos fatos em si, mas com os
valores que ele prega como verdade.
O ethos está vinculado à construção da cena, pois no discurso são
ressaltadas as qualidades do homem do campo que é trabalhador, forte, embora
ele não seja reconhecido pelas demais camadas sociais. O enunciador repudia o
ethos do grã-fino, ao construir essa cena.
Por outro lado, o caipira, ao retrucar o homem citadino, deixa mostrar em
seu discurso o ethos de um homem orgulhoso, que não aceita desaforo e que
também ostenta seu patrimônio. Instaura-se no discurso um tom de polêmica.
Verificamos isso em outros discursos das letras analisadas, em que o caipira ao
criticar o comportamento ou atitude do outro, comete a mesma atitude.
100
3.7. Análise do texto 6: Cruel destino
Helena era uma linda moça
Filho de um rico doutor, ai
Adalto era um moço pobre
Mas muito trabalhador
Se amavam desde criança
E cresceram naquele amor
Pra Heleninha era só esse, ai
Que aliviava sua dor,
Seu coração já estava entregue
Pra’ quele botão de flor
No jardim que se encontravam
Era o ponto acostumado
Cada dia que passava
Seu amor era dobrado
Sua mãe chamou e lhe disse
Que seu pai tinha falado
Que o casamento de Helena
Breve ia ser realizado
Pra casar-se com um francês
Um moço rico apreparado
Coitadinha quando soube
Que seu dia estava chegando
Também se entristecendo
Naquilo foi pensando
Desprezaram meu amor, ai
Querido de tantos anos
Com outro eu também não caso, ai
Conseguiu naquele plano
Pois antes prefiro a morte
101
Que casar com esse fulano
Recolheu-se no seu quarto
Com o revólver carregado
Trazia uma carta escrita
E muito bem explicado
Vou morrer porque não quero
Ver outro moço do meu lado
Me visto o vestido branco, ai
Que eu aí tenho guardado
Que era pro meu casamento
Que papai tinha comprado
A morte desta mocinha
O mundo se balançou, ai
O sofrimento de Adalto
Só oito dias durou
Ele foi no cemitério
E na campa debruçou
È meu derradeiro presente
Ai, Heleninha
Que te dou
Cravou o punhal no peito
Coração atravessou
Dois coração que se une
Deve ter amor igual, ai
Senhores pai de família
Note bem o tempo atrás
Com o correr do mundo velho
Quanto é que exemplo nos traz
Obrigar um coração, ai
É coisa que não se faz
O amor é como um vidro
Se quebrar não sorda mais.
102
3.7.1.Temática
Concebido como tema universal, o amor é tratado nesse gênero com pudor,
respeito e recato, chegando à beira da ingenuidade. Geralmente esse amor é
permeado pelo sentimento de dor e desilusão, provocando um efeito catártico nos
ouvintes, como na letra Cruel destino.
Escrita por Adalto Ezequiel, em 1961, o tema versa sobre um melodrama
em que os pais proíbem a filha Helena de se casar com o pobre Adalto. A jovem,
filha de um rico doutor, é prometida a um francês de posses. Helena, porém, sofre,
pois ela e o rapaz Adalto se amam desde criança.
Conforme o dia do casamento se aproxima, Helena fica cada vez mais
melancólica, pensando em uma maneira de se livrar do francês. A jovem, no dia
marcado, colocou o vestido branco, com o qual pretendia casar-se com Adalto,
trancou-se no quarto e escreveu uma carta dizendo que preferiria morrer a ver
outro moço do seu lado. Em seguida, Helena se suicidou com um revólver
carregado.
A tragédia chocou a todos; mas o sofrimento de Adalto durou apenas oito
dias, pois o jovem resolveu ir ao cemitério chorar pela morte de seu amor. Sobre a
campana, Adalto cravou um punhal em seu próprio peito.
Vejamos a relação entre sujeito-autor e enunciador.
Sujeito-Autor Enunciador
Adalto Ezequiel, o Carreirinho,
nasceu no município de Bofete
(SP) no dia 15/10/1921. Seus
pais, além da criação, plantavam
café. No ano de 1946 seguiu para
a capital paulista.
Fala da posição do homem do
campo, pois o léxico, os valores
que defende e sua defesa em
favor de Adalto comprovam-na.
103
3.7.2. Análise da superfície lingüística
Composta por 61 versos, a letra apresenta rimas pobres e interpoladas. A
interjeição ai, que exprime dor, aparece em nove versos. O conectivo mas, em
Adalto era um moço pobre/ Mas muito trabalhador, tem uma função
argumentativa, segundo Maingueneau (1997), deixando explícito a ideologia do
enunciador: o fato de Adalto ser trabalhador, compensa sua pobreza.
Os verbos são empregados no passado, como é de se esperar de uma
narrativa; no entanto, nos versos finais são empregados no presente porque é
uma maneira de o enunciador manter atualizado seu discurso.
No décimo verso, pra’quele botão de flor, ocorre a metáfora que faz
referência à jovem Helena que, pelo contexto histórico, deveria ter entre 14 e 16
anos; idade em que as moças se casavam, segundo Candido (2003). Devido à
limitação do compositor, as metáforas são as mais usuais e desgastadas.
Alguns substantivos são utilizados no diminutivo, demonstrando afetividade
e um sentimento de pena como em : coitadinha, papai e mocinha. Embora não
predomine a variante caipira, marcas de oralidade: são vários os versos
iniciados em que ; o verso me visto o vestido branco, ai; o metaplasmo por
permuta: l por r: sorda (solda).
3.7.3. Cenas de enunciação.
Na instância do discurso, o enunciador fala da mesma comunidade
discursiva que Adalto, haja vista o léxico, emprego do conectivo mas e dos versos
finais, em que ele defende a união dos dois jovens apaixonados.
O discurso é direcionado a um co-enunciador específico: aos pais de
família, sobretudo, aos que têm dinheiro: ...senhores pais de família...O
enunciador apresenta sua ideologia, Dois coração que se une/ Deve ter amor
igual, ai...; por meio de uma cena construída, estrategicamente, de modo que
torne sua fala validada. Portanto, ele se ancora em um narrativa que está
104
instalada na memória do povo, o clássico Romeu e Julieta. Há, nesse sentido, um
diálogo entre os discursos de Cruel destino e Romeu e Julieta, em que a
separação de dois jovens apaixonados, por ordem dos pais, culmina na morte de
ambos.
O discurso resgata também a memória dos velhos tempos, em que os pais
ficavam incumbidos da tarefa de escolher um marido para a filha. Procedimento
comum nessa comunidade discursiva, mas que o enunciador se posiciona contra:
...Obrigar um coração, ai / É coisa que não se faz...
O enunciador voz a alguns personagens, tornando seu discurso
heterogêneo. Assim, a mãe se pronuncia para anunciar a filha sobre a decisão do
pai, a de que Helena, em breve, casar-se-ia com um francês rico. A mãe, no
entanto, não contesta porque é submissa e obediente ao marido. Aliás, essa é
uma característica própria do gênero, no qual a mulher não tem voz.
Esse contexto nos lança ao passado, época em que a mulher não tinha o
direito de posicionar. O mesmo ocorre com a filha, que não contraria a decisão do
pai e sofre calada até o dia do casamento. Segundo Candido (op. cit.: 300)
...as moças não ousariam decidir-se, e nesses
casos a única solução é, para as mais afoitas, a
fuga, seguida de casamento na polícia...
Essa obediência total dos filhos aos pais é apontada por Candido não
como sinal de respeito, mas também devido à crença de que a maldição paterna
podia desgraçar a vida da pessoa.
Embora seja cantada, a cenografia escolhida é a de uma narrativa, a de
alguém nos contando uma história, seguindo as normas impostas por esse
gênero: introdução, desenvolvimento, problema e o desfecho.
105
3.7.4. Ethos discursivo
A cena e a cenografia tornam o discurso dramático e exagerado. A
interjeição ai atribui um ritmo lento ao enunciado para que o co- enunciador não
perca nenhuma parte. Nesse cenário, novamente a oposição entre o homem
do campo e o homem citadino, representado, nesse caso, por um francês. Pelos
indícios do texto, como o gênero, as marcas lingüísticas e o tom do discurso, o co-
enunciador constrói uma imagem desse corpo, que não se trata de um sujeito
empírico, mas de um fiador responsável pelo discurso do texto.
Esse fiador é um homem do campo, humilde; porém, trabalhador, cujos
valores são destituídos de coisas materiais. Emerge, então, o ethos de um homem
dramático e sensível, que valoriza as coisas do coração. No entanto, esse sujeito
se mostra clivado, dividido, pois na cena os dois personagens, Adalto e Helena,
não ficam juntos no plano terrestre. Essa união só é possível no plano espiritual.
Esse sujeito sabe o quão era difícil um relacionamento entre duas pessoas
de classes sociais diferentes; pois a família não consentia. Até mesmo nos dias
atuais, na qual o dinheiro prevalece em nossa sociedade que valoriza o ter. Por
isso, o tom do discurso é moralizante e de advertência. Os versos Note bem o
tempo atrais repreendem os pais que tomam essa postura.
Os substantivos no diminutivo como mocinha e papai utilizados pelo
enunciador revelam o ethos de um homem que se sensibiliza com o fato narrado,
demonstrando, dessa maneira, uma afetividade para com Adalto e Helena.
106
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A literatura oral-popular surge do calor do povo que tem necessidade de
expressar seus sonhos, angústias e desejos e é por meio dela que sua voz se faz
ouvir entre outras classes, que no passado a rechaçava. Diríamos que é aos
passos lentos que a literatura popular vem ganhando o espaço que merece.
Acreditamos que, por meio desse trabalho, estamos colaborando para a
valorização, sobretudo da música de raiz, que emerge como arte porque, mesmo
diante da limitação literária e teórica, o poeta segue seus impulsos para criar.
Com essa afirmação, não pretendemos assumir uma visão paternalista,
mencionada por Caldas (1979), quando este afirma que os folcloristas tem essa
visão por falta de criticidade. Todavia, compartilhamos da mesma opinião de
Caldas, quando critica a precariedade do sistema educacional, que privilegia os
abastados. Sua crítica, portanto, não é dirigida aos compositores, pois temos de
reconhecer que o poeta caipira consegue transferir, à sua maneira, para os versos
simples, com rimas pobres e metáforas desgastadas pelo tempo, a voz coletiva do
seu meio, de sua gente.
Nesse sentido, as letras se constituem um material valioso para nós, pois
seu discurso conserva vestígios de um povo que tem a feição do homem
brasileiro: o caipira. Isolado em sua roça, em uma cultura de subsistência na qual
não se tinha muita pretensão, o caipira, que nasceu do encontro entre
portugueses e indígenas, foi mal interpretado ao ser considerado, no imaginário da
sociedade, como um símbolo de atraso. Conforme Sant’Anna (2000:31), não
como negar nossas raízes, pois...
...num belo dia viemos da roça ou de sua
extensão nalgum lugarejo e, ligados à correnteza
familiar, fomos viver num desses arrabaldes
brasileiros.
107
Tendo em vista que nossos propósitos eram verificar os fatores identitários
e culturais do homem brasileiro por meio do ethos discursivo e da cena de
enunciação, a AD mostrou-se uma metodologia adequada e relevante para essa
dissertação. Ao pertencer ao campo da Lingüística, ainda que de modo não
exclusivo, ela explora a língua como portadora da ideologia de uma determinada
formação discursiva. Assim, as marcas lingüísticas identificadas na fonética, na
sintaxe, no léxico, e na própria enunciação, nos permitiram analisar como o
discurso do enunciador, representante do homem caipira, se materializa.
Como a AD faz uma ligação com a História, pudemos verificar as condições
em que esse discurso foi produzido, mobilizando não os fatos sócio-históricos,
mas também a memória discursiva. Nesse sentido, o discurso da letra de
composição de raiz se constitui um material propício para isso, pois resgata
valores, hábitos e crenças cultuados por uma geração passada e que nos
chegam, hodiernamente, por meio dos nossos pais e avós.
Verificamos, ainda, nos discursos materializados nas seis letras
selecionadas, uma relação entre os sujeitos-autores e enunciadores porque
ambos nasceram na roça, em sua maioria, no interior de São Paulo- berço da
música de raiz; embora saibamos que o enunciador é uma instância construída
pelo discurso. Essa relação permite uma identificação entre ambos, em que o
primeiro, tendo vivenciado a cultura caipira, tem seu discurso autorizado para
tratar sobre as temáticas recorrentes nos discursos.
A topografia e a cronografia, então, desses discursos reascendem a
memória porque compuseram o cenário do qual o Brasil, caracterizado como um
país rural até meados do século XX, fez parte. Assim, os lugares citados no
discurso das letras é sempre o campo, a roça ou o rancho onde o caipira vive com
a família. Muitas vezes, esse ambiente é contraposto com a cidade de São Paulo,
vista como lugar de infortúnios, tristeza, desilusão e desagregação dos costumes
e hábitos do homem caipira.
Quanto à tematização, predomina a do confronto entre o homem do campo
e o homem citadino, no qual este desvaloriza o primeiro. A construção da cena,
como observamos no apólogo A caneta e a enxada e em Terra Roxa, reforça
108
entre embate iniciado pelo citadino; é ele quem invade o espaço do caipira,
provocando-o.
É interessante observar que nos dois discursos o caipira é ridicularizado
pelo modo como está vestido. No apólogo, o caipira tem as mãos sujas de terra, o
que faz com que o citadino o lhe cumprimente; e em Terra Roxa é o dinheiro
que está sujo de terra. Constatamos que o enunciador sabe da importância do
homem rural e seu trabalho braçal para o país; no entanto, não é reconhecido.
Como uma resposta à sociedade, o discurso explora a ideologia de que as
aparências enganam. O enunciador investe em valores historicamente
especificados pela sociedade para garantir a eficácia de seu discurso. O ethos
discursivo é quem garante essa identificação, pois o enunciador, que fala da
posição do caipira, assume a imagem de um homem desprendido de dinheiro,
trabalhador, honesto, cordial e conservador. Como o ethos discursivo não se diz,
mas se mostra, o enunciador, sem perceber, reproduz em seu discurso atitudes
que ele mesmo condena no homem da cidade. Isso evidencia o quanto o sujeito é
divido e heterogêneo.
Em Sodade do tempo véio e Saudades da minha terra deparamos com o
ethos de um homem nostálgico, sentimentalista, religioso e apegado às tradições
e à família. também um certo ressentimento, pois o caipira não se adapta ao
meio urbano e ao mundo capitalista. O co-enunciador incorpora esse ethos na
medida em que se retratado em muitos desses discursos; conforme
apontamos, o público da música de raiz, por volta das décadas de 40 a 60, era
composto significativamente por migrantes rurais. Não podemos deixar de
mencionar também o interesse comercial pelas vendagens desse gênero, que
conquistava o mercado fonográfico, a partir de 1929.
Na análise do discurso das letras ficou comprovado, conforme postula
Maingueneau (1997), que o gênero discursivo, a cena enunciativa e o ethos
discursivo são elementos que atuam conjuntamente na produção de sentidos.
Entendemos que as coerções genéricas pertencentes ao gênero música de raiz
determinam as coerções ideológicas assumidas pelo enunciador para construir
uma imagem, um caráter e um corpo de si, que seja valorizado perante a
109
sociedade. É neste sentido, conforme mencionamos, que o enunciador representa
o sujeito- autor.
O discurso das letras A caneta e a enxada, Sodade do tempo véio, Cabocla
Teresa, Saudades da minha terra, Terra Roxa, Cruel destino, e outras que ficaram
de fora, constitui como um documento, um arquivo que registra um cenário e um
povo que fez parte da história nacional. Portanto, as letras condizem com os
estudos da cultura caipira realizados por Martins (1975) e Candido (2003).
Inclusive muitas letras são produzidas, atualmente, por violeiros e
compositores do interior da capital paulista. Recentemente, conhecemos o violeiro
da região de Botucatu conhecido por todos como Ramiro Viola. Além de dar aulas
de viola, Ramiro, também radialista, produz letras de música de raiz que são
apresentadas nos shows que faz pela região. Segundo Ramiro, há inúmeros
compositores anônimos no interior que produzem músicas de qualidade,
mantendo a tradição.
Finalmente, pelos resultados obtidos, pudemos conceber a música de raiz
como um gênero discursivo, dadas as regularidades em seu discurso. Para isso, a
noção de gênero proposta por Bakhtin foi importante, pois essas regularidades
foram examinadas por meio do conteúdo temático, da estrutura composional e do
estilo, que se fazem presentes nas composições atuais.
110
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMOSSY, Ruth. (org.) Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São
Paulo: Contexto, 2005.
AMARAL, Amadeu. Dialeto Caipira. São Paulo: HUCITEC, 1976.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Martins Fontes: São Paulo, 1997.
BAZERMAN, Charles. (Org.). Gêneros Textuais, Tipificações e Interação. ed.,
São Paulo: Cortez, 2006.
BRANDÃO, Helena Nagamine. Introdução à Análise do Discurso. ed.
Campinas, SP: UNICAMP, 2005.
CALDAS, Waldenyr. Acorde na Aurora: música sertaneja e indústria cultural.
ed. São Paulo: Nacional, 1979.
__________________. O que é música sertaneja. São Paulo: Brasiliense, 1999.
CANDIDO, Antonio. Os Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e
a transformação dos seus meios de vida. 10ªed., São Paulo: Ed. 34, 2003.
CARVALHO, Marcos Bernardino.. Geografia do Mundo: Brasil. ed. SP: FTD,
2006.
COSTA, Nelson Barros da. A Produção do Discurso Litero- Musical Brasileiro. São
Paulo, 2001. ( Tese de Doutorado)
DIONÍSIO, Angela Paiva. (Org.) neros Textuais e Ensino. ed., Lucerna, Rio
de Janeiro, 2002.
FAUSTINO, Mario. Poesia-Experiência. São Paulo: Perspectiva, 1976.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2006.
111
FERNANDES, Cleudemar Alves. Análise do Discurso: Reflexões Introdutórias.
2ªed., São Carlos: ClaraLuz, 2007.
FOUCAULT, Michael. Arqueologia do saber. Petrópolis: Vozes, 1969.
GREGOLIN, Maria do Rosário. Foucault e Pêcheux na análise do discurso:
diálogos e duelos. São Carlos: ClaraLuz, 2004.
HENRY, Paul. A Ferramenta imperfeita: língua, sujeito e discurso. Campinas, SP:
UNICAMP, 1992.
HONÓRIO FILHO, Wolney. O sertão nos embalos da música rural: 1929-1950.
São Paulo: PUC, 1992. ( Dissertação de Mestrado)
LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Brasiliense, 2004.
MAINGUENEAU, Dominique. Pragmática para o discurso literário. o Paulo:
Martins Fontes, 1996.
__________________________. Novas Tendências em Análise do Discurso.
Campinas: Pontes & Editora da UNICAMP, 3ªed., 1997.
__________________________. Análise de textos de comunicação. 4ªed. São
Paulo: Cortez, 2005.
__________________________. Termos- Chave da Análise do Discurso. Belo
Horizonte: UFMG, 2006.
MARTINS, José de Souza. Capitalismo e Tradicionalismo: estudos sobre as
contradições da Sociedade Agrária no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1975.
MAZIÈRE, Francine. A Análise do Discurso: história e práticas. Trad. Marcos
Marcionilo. São Paulo: Parábolal, 2007.
MOTTA, Ana Raquel & SALGADO, Luciana (org). Ethos discursivo. São Paulo:
Contexto, 2008
112
MUSSALIN, Fernanda. (Org.) Introdução à Lingüística: domínios e fronteiras.
Vol.2., São Paulo: Cortez, 2001.
NEPOMUCENO, Rosa. Música Caipira: da Roça ao Rodeio. 2ªed., São Paulo: Ed.
34, 1998.
OLIVIERI, Antonio Carlos e VILLA,Marco Antonio. Pero Vaz de Caminha: Carta do
Achamento do Brasil. São Paulo: Callis, 1999.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso e Leitura. ed. Campinas, São Paulo: Cortez,
2001.
______________________. Análise do discurso: princípios e procedimentos.
ed. Campinas, São Paulo: Pontes, 2005 a.
________________________. Discurso e Texto: Formulação e Circulação dos
Sentidos. 2ªed., Campinas, São Paulo: Pontes, 2005 b.
PÊCHEUX, Michael. Discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes,
1989.
PIRES, Cornélio. Sambas e Cateretês. São Paulo: Otoni, 1932.
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
RIBEIRO, José Hamilton. Música Caipira: as 270 maiores modas de todos os
tempos. São Paulo: Globo, 2006.
RIVERA, Tânia. Dossiê- Jacques Lacan: Estética e descentramento do sujeito-
Revista CULT nº 125 – junho/ 2008
SANT’ANNA, Romildo.A moda é viola: ensaio do cantar caipira.São Paulo: Arte e
Ciência, Marília, São Paulo: UNIMAR, 2000.
113
SILVA, Nilma Raquel. O espaço da música caipira na imprensa paulista. Tonico e
Tinoco, Chitãozinho e Xororó e o jornal O Estado de S. Paulo. PUC- SP, 2004 (
Dissertação de Mestrado)
TATIF, Luiz. O cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: EDUSP,
1996.
TINHORÂO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira.São Paulo:
Ed. 34, 1998.
_____________________. Cultura Popular: temas e questões. o Paulo: Ed.34,
2000.
VASCONCELOS, Ary. Raízes da Música Popular Brasileira (1500-1889) Brasília:
Martins,1977.
YATSUDA, Enid. O caipira e os outros. In: BOSI, Alfredo. Cultura brasileira: temas
e situações. 4ª ed. São Paulo: Ática, 2004.
WILLIANS, Raymonds. O campo e a cidade na história e na literatura. Trad. Paulo
Henriques Britto, São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral. HUCITEC, São Paulo, 1997.
Sites consultados
www. musicacountry.com.br
www.mundocaipira.com.br
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo