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PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ
DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU
MESTRADO EM FILOSOFIA
DE BEATA VITA DE SANTO AGOSTINHO:
UMA REFLEXÃO SOBRE A FELICIDADE
Trabalho apresentado ao departamento de Pós-
Graduação Stricto Sensu mestrado em Filosofia da
Pontifica Universidade Católica do Paraná.
Orientador: Prof. Dr. Jamil Ibrahim Iskandar.
CURITIBA
FEV/ 2006
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NEUZA DE FATIMA BRANDELLERO
DE BEATA VITA DE SANTO AGOSTINHO:
UMA REFLEXÃO SOBRE A FELICIDADE
CURITIBA
FEV/ 2006
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Santo Agostinho intercedei por nós,
para que possamos encontrar
o caminho da ciência e do amor,
que conduz à Beata Vita!
ii
AGRADECIMENTOS
À Santíssima Trindade, toda glória, louvor e ação de graças!
Ao Pe. Boleslaw Blij-Svd. Grande inspirador, colaborador e amigo. Homem sábio e
humilde. De visão ampla, mente brilhante e espírito profundo. Eterna gratidão!
Aos pais, Ivo e Cenira, pessoas simples e anônimas que ensinaram através do
exemplo os verdadeiros valores da vida. Eternamente agradecida!
Aos Irmãos: Mauro, Ivone e Joel, pela motivação recebida de suas experiências
existenciais e possibilidade em usufruí-las neste estudo. Imenso agradecimento
com o desejo de que a felicidade seja a recompensa! Agradeço também ao Jildo,
Rita, William e Marianna.
Aos amigos monges Trapistas e às amigas Irmãs Carmelitas, como poderia chegar à
conclusão deste trabalho, sem a força que emana da oração de vocês? Meu carinho
e amizade!
Aos amigos e colegas do curso, pelo incentivo, ajuda e compreensão: Sra. Mariza,
Kátia Regina, Ivanete, Pe. Ricardo, Chiquito, Tina, Odete, Lorete, Frei Valdir, Frei
Clodovis, Helena, Andreza, Pe. Leomar, Patrícia, Jivago, Dona Vitória e demais
presenças iluminadoras. À comunidade São Pedro e todos àqueles que buscam dar
razões à sua fé, aos conhecidos de ontem, hoje e de amanhã. Muito agradeço e
desejo a todos uma vida feliz!
Ao corpo docente do mestrado: Professores: Edmilson, César A., César C.,
Cleverson, Daniel, Francisco, Inês, Jair, Paulo, Neto e a secretária Juliana.
Agradeço pelo empenho e presença significante no decorrer deste tempo de
formação acadêmica.
Aos professores da banca: Dr. Paulo Ricardo Martines, Dr. Domenico Costella e ao
suplente Prof. Dr. Bortolo Valle, pela atenciosa disponibilidade. Muito obrigada!
Ao orientador Prof. Dr. Jamil Ibrahim Iskandar pela profundidade no pensamento
filosófico e edificante exemplo de dedicação durante a elaboração desta dissertação.
Minha gratidão!
iii
SUMÁRIO
RESUMO..............................................................................................................................v
ABSTRACT ........................................................................................................................vi
RIASSUNTO......................................................................................................................vii
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................1
CAPÍTULO I: TRAJETÓRIA E CONVERSÃO DE SANTO AGOSTINHO..................09
1.1 TAGASTE- MADAURA- CARTAGO.....................................................................09
1.2 A DOR DA SEPARAÇÃO E O ENCONTRO COM HORTENSIUS ....................111
1.3 AGOSTINHO E O MANIQUEÍSMO.....................................................................155
1.4 ROMA E MILÃO....................................................................................................177
1.5 AMBRÓSIO, O BISPO DE MILÃO ........................................................................19
1.6 O NEOPLATONISMO .............................................................................................21
1.7 AS SAGRADAS ESCRITURAS..............................................................................24
1.8 O BATISMO .............................................................................................................27
1.9 DE VOLTA À PÁTRIA AMADA..........................................................................300
CAPÍTULO II: DE BEATA VITA ..................................................................................38
2.1 ALEGORIA DA NAVEGAÇÃO..............................................................................46
2.2 COLÓQUIO DO PRIMEIRO DIA ...........................................................................55
2.3 COLÓQUIO DO SEGUNDO DIA ...........................................................................64
2.4 COLÓQUIO DO TERCEIRO DIA...........................................................................67
2.5 CONCLUSÃO DO DIÁLOGO.................................................................................79
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................82
REFERÊNCIAS.................................................................................................................91
iv
RESUMO
O presente trabalho “De Beata Vita de Santo Agostinho: uma reflexão sobre a
felicidade”, é uma abordagem a partir do pensamento agostiniano sobre a vida feliz.
Agostinho, após viver uma intensa crise intelectual, moral e religiosa é mergulhado numa
inquietude profunda. Ao ler as cartas de São Paulo, percebe que caem por terra todos seus
projetos, então decide renunciar às ambições sociais que sempre desejou e pede demissão
do seu cargo de reitor. É o início de sua conversão ao cristianismo! No outono do ano 386,
Agostinho se retira para a chácara emprestada do seu amigo Verecundo, em Cassicíaco,
perto de Milão. Leva consigo um pequeno grupo de parentes e amigos. Ele divide seu
tempo entre oração, meditação e discussões filosóficas e religiosas, nascendo destas
reflexões um dos seus primeiros livros, De Beata Vita. Esta dissertação está dividida da
seguinte forma: Introdução: Quer ser uma contextualização histórica e cultural da época,
para melhor situar o pensamento agostiniano. Saber quais as influências filosóficas e
teológicas absolvidas por Agostinho. Primeiro capítulo: A trajetória pessoal que Agostinho
percorreu até sua conversão ao Cristianismo. Segundo capítulo: O pensamento do livro De
Beata Vita e suas subdivisões. Em seu prefácio encontra-se a alegoria da navegação,
destacando a filosofia, como indispensável para a felicidade humana. “Somente ela é capaz
de nos levar às margens de uma vida feliz”. Em seguida o texto é dividido em três dias de
discussão, sobre a felicidade. Durante os dois primeiros dias, Agostinho conduz o debate,
visando chegar a uma definição pessoal de como conceber uma vida feliz. No terceiro dia
faz um longo relatório sobre a passagem da sabedoria filosófica à sabedoria divina,
encarnada no Filho de Deus. Mônica, sua mãe, a quem a muitas vezes ultrapassou em
inteligência a ciência dos filósofos, faz a conclusão do diálogo, surpreendendo o próprio
Agostinho. Ela reconhece na fé cristã a Trindade. E com uma oração ao Deus Uno e Trino,
termina o diálogo. Agostinho é o último dos filósofos antigos e o primeiro dos medievais a
fazer uma espetacular conciliação entre e razão, sintetizando-a neste axioma: Credo ut
intelligam et intelligo ut credam”! O tema da felicidade está presente em muitas outras
obras de Santo Agostinho.
Palavras-chave: Santo Agostinho – De Beata Vita – Felicidade – Beatitude – Patrologia
v
ABSTRACT
This dissertation, De Beata Vita of St. Augustine: a reflection on happiness” is an
approach based on the Augustinian thought about a happy life. Augustine, after a very
intense intellectual, moral and religious crisis, plunged into a deep anxiety. When he reads
St. Paul´s letters, he realizes that all this projects have crumbled, and decides to renounce
all the social ambitions he had desired so fiercely to achieve and resigns from his position
as a rector. This is the beginning of his conversion to Christianity! In the autumn of year
386, Augustine retreats to a farm owned by his friend Verecundo in Cassiciaco, near
Milan. He takes a small group of friends and relatives with him. His time is divided into
periods of prayer, meditation and philosophical and religious discussions from these
reflections one of his first books was born, De Beata Vita. This dissertation was divided
into: Introduction: explains that the book intends to be a historical and cultural
contextualization of that time, in order to better place the Augustinian thought. To
acknowledge which philosophical and theological influences were absorbed by Augustine.
First Chapter: The personal trajectory of Augustine until his conversion to Christianity.
Second Chapter: The thought underlying the book De Beata Vita and its subdivisions. The
preface contains the navigation allegory emphasizing philosophy as indispensable for
human happiness. Only philosophy is capable of taking us to the margins of a happy life”.
The sequence of the text is then divided into three days of discussion about happiness.
During the first two days, Augustine leads the debate, aimed at finding a personal
definition of how to conceive a happy life. On the third day he presents a lengthy report
about the passage from the philosophic wisdom to the divine wisdom, incarnated in the
Son of God. Monica, his mother, whose faith many times surpassed in terms of intelligence
the philosophers´ science, closes the dialogue in a way that surprises Augustine himself.
She recognizes the Trinity within the Christian faith. With a prayer to One and Triune God,
the dialogue is finished. Augustine is the last of the ancient philosophers and the first
medieval philosopher to arrive at a spectacular conciliation of faith and reason, synthetized
in this axiom: Credo ut intelligam et intelligo ut credam”! The happiness theme may be
found in many others works by Augustine.
Key-words: Saint Augustine – De Beata Vita – Happiness – Beatitude – Patrology
vi
RIASSUNTO
La presente opera: De Beata Vita di Santo Agostino: uma riflessione sulla
felicittà”, è un’approssimazione a partire del pensiero agostiniano sulla vita felice.
Agostino, dopo aver vissuto un’intensa crisei intellettuale, morale e religiosa è immerso in
una inquietudine profonda. A leggere le lettere di San Paolo, percepisce che crollano tutti i
suoi progetti, allora decide rinunciare alle ambizioni sociali che sempre desiderò e chiede
le dimissioni del suo incarico di rettore. È l’inizio della sua conversione al cristianesimo!
Nell’autunno dell’anno 386, Agostino si ritira nella fattoria imprestata dal suo amico
Verecundo, in Cassiciaco, vicino a Milano. Porta con se um piccolo gruppo di parenti e
amici. Lui divide il suo tempo fra preghiere, meditazioni e discussioni filosofiche e
religiose, nascendo da queste riflessioni uno dei suoi primi libri, De Beata Vita. Questa
dissertazione è divisa nella seguente forma: Introduzione: Vuole essere una
contestualizzazione storica e culturale dell’epoca, per meglio situare il pensiero
agostiniano. Sapere quali le influenze filosofiche e teologiche assolte da Agostino. Primo
capitolo: La traiettoria personale che Agostino percorse fino alla sua conversione al
Cristianesimo. Secondo capitolo: Il pensiero del libro De Beata Vita e sue suddivisioni.
Nella sua prefazione si trova la allegoria della navigazione, risaltando la filosofia, come
indispensabile per la felicità umana. Solamente lei è capace di portarci ai margini di una
vita felice”. In seguito il testo è diviso in tre giorni di discussione, sulla felicità. Durante i
due primi giorni, Agostino conduce un dibattito, con il proposito di arrivare a una
definizione personale di come concepire una vita felice. Nel terzo giorno fa una lunga
relazione sul passaggio dalla saggezza filosofica alla saggezza divina, incarnata nel Figlio
di Dio. Mônica, sua madre, alla quale la fede molte volte oltrapassó in intelligenza alla
scienza dei filosofi, conclude il dialogo, sorprendendo il proprio Agostino. Lei riconosce
nella fede cristiana la Trinità. E con una preghiera agli Dei Uno e Trino, finisce il dialogo.
Agostino è l’ultimo dei filosofi antichi e il primo dei medievali a fare una spettacolare
conciliazione fra fede e ragione, sintetizzandola in questo assioma: Credo ut intelligam et
intelligo ut credam”! Il tema della felicità è presente in molte altre opere di Agostino.
Parole chiave: Santo Agostino – De Beata Vita – Felicità – Beatitude – Patrologia
vii
INTRODUÇÃO
De Beata Vita de Santo Agostinho: uma reflexão sobre a felicidade é uma
abordagem a partir do pensamento agostiniano sobre a vida feliz. A discussão desse tema
era muito comum na Antigüidade. Imanente ou transcendente, a felicidade foi a finalidade
do ser humano sob a ótica de muitas correntes como, por exemplo: socrática, aristotélica,
epicurista e estóica.
Sócrates, identifica a felicidade como virtude e sabedoria.
Aristóteles afirmou que a felicidade identifica-se com muitos bens: como virtude,
ou com sabedoria prática, ou com a sabedoria filosófica, com todas elas acompanhadas ou
não de prazer ou com a prosperidade. Tende, também, a identificar-se com certas
atividades de caráter. Para ele a felicidade não tem sentido sem os bens que nos tornam
felizes. uma felicidade que não é felicidade, a não ser na aparência. Outra felicidade
“eterna”, que é a vida contemplativa, aquela felicidade final, chamada beatitude.
Os epicuristas, afirmavam que a felicidade é a falta de dor e de perturbação e para
atingir essa felicidade, a pessoa precisa de si mesmo, não lhe servem, a cidade, as
instituições, a nobreza, as riquezas e os deuses.
Os Estóicos colocavam no sofrimento e na dor o sinal libertador do ser humano, na
busca da impassibilidade. A finalidade do viver é atingir a felicidade segundo a natureza e
a impassibilidade (apatia), mas sem sofrer com as dores nem com a busca dos prazeres.
Onde encontrar a felicidade? Como pode o homem ser feliz? Santo Agostinho
pretende resolver estas questões à luz das certezas cristãs. Mesmo com influências estóicas
e neoplatônicas presentes neste diálogo De Beata Vita, ele aponta que somente em Deus
podemos encontrar uma vida feliz e a sabedoria possui um nome: Jesus Cristo.
Pois a perfeita plenitude das almas, a qual torna a vida feliz, consiste em conhecer piedosa e
perfeitamente: por quem somos guiados até a Verdade (o Pai) e qual Verdade gozamos (o Filho), e
2
por qual vínculo estamos unidos à Suma Medida (o Espírito Santo). A felicidade está centrada no
conhecimento da Verdade na interioridade da alma. Conhecimento que, ao mesmo tempo, é posse e
gozo de Deus: “feliz quem possui Deus”. A sabedoria que nos a felicidade consiste em fruir,
deleitar-se em Deus, a Verdade infinita, nosso Bem Supremo e Imutável. Nossa perfeição moral e
nossa felicidade consistem em conhecer e amar este Sumo Bem.
1
Faz-se necessário abordar a questão cultural-filosófica da época, para melhor situar
o pensamento agostiniano. Alguns fatos são de suma importância, para melhor
conhecimento, pois Santo Agostinho também é fruto de uma época histórico-cultural.
Testemunha do fim de uma era, de uma civilização, de uma cultura, Agostinho viveu intensamente
os grandes e decisivos momentos da história do Ocidente. Viu o cristianismo tornar-se a religião
oficial do Império, por obra de Teodósio I, em 380. Em 410, viveu a dor do naufrágio da cidade de
Roma nas mãos de Alarico. Participou ativamente nos grandes debates doutrinais com os donatistas,
os maniqueus e os pelagianos. Jamais se cansou de defender sua e suas convicções. Aos 28 de
agosto de 430, com Hipona assediada três meses por Genserico e seus ndalos, morre aos
setenta e seis anos, aquele é considerado um dos maiores e mais influentes Padres da Igreja.
Agostinho é o mais exímio filósofo dentre os Padres da Igreja, e, presumivelmente, o mais insigne
teólogo de toda a Igreja. Exerceu profunda influência na vida da Igreja ocidental, não só na filosofia,
dogmática, teologia e mística, mas ainda na vida social e caritativa, na política eclesiástica e no
direito público e na formação da cultura medieval.
2
Com o nascimento do Cristianismo, surge uma nova maneira de pensar o mundo,
Deus, o homem, as leis e o amor. A revelação divina é a nova maneira de conhecer, isto
atrai alguns influentes pensadores pagãos que se convertem ao Cristianismo, buscando as
razões de sua fé. Por outro lado surgem outros problemas filosóficos do encontro entre fé e
razão, a nova forma de ver a realidade, a partir do “impacto” com a Bíblia.
O mundo grego é perpétuo devir, combinações de elementos eternos e demiurgo
criador abaixo de Deus. Devir cíclico, repetição periódica da história. O mundo cristão é
criacionista, Deus cria inicialmente todos os seres do nada e existe a evolução linear com
um final dos tempos.
1
SANTO AGOSTINHO. Solilóquios e a vida feliz. Tradução de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus,
1998. p. 115.
2
SANTO AGOSTINHO. Confissões. 2. ed. Tradução de Maira Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus,
1997. p. 12-13.
3
O homem grego é cosmocêntrico, um entre os componentes do cosmos, com culpa
original que se supera pelo conhecimento da verdade (gnose ou filosofia). O ideal de
conhecimento é a sabedoria.
O homem cristão é antropocêntrico, criatura mais importante do mundo e o pecado
original é vencido pela morte de Cristo, com participação do homem pela vontade (fé e
obras). É o ideal da cruz (como meio de purificação). uma unidade do homem corpo e
alma e a ressurreição da carne.
O período da Patrística ou dos Padres da Igreja é de suma importância, “por terem
exercido uma espécie de paternidade doutrinal e espiritual em relação às gerações cristãs
ulteriores. Na Patrística predomina a atitude da em busca da razão, atitude que
caracteriza os apologetas”.
3
O Logos é a Sabedoria Divina (Livro da Sabedoria), mas o concebe semelhante ao
demiurgo e inferior a Deus, que cria o mundo material e o conserva. Para Fílon de
Alexandria a verdade revelada a Moisés está de acordo com a filosofia grega platônica.
Os Padres da Igreja defendem a cristã, utilizando como ferramenta a filosofia
grega, especialmente Platão e Aristóteles. Enfrentam a tendência gnóstica, que ameaçava
perverter e desvirtuar o cristinianismo. Os gnósticos dividem os homens em três categorias.
O termo gnose, quer dizer, literalmente conhecimento, mas tecnicamente, tornou-se
indicador daquela forma particular de conhecimento stico próprio de almas correntes
religioso-filosóficas do tardio paganismo, sobretudo de algumas seitas heréticas inspiradas
no cristianismo. Esta forma de conhecimento exercia uma atração sobre as pessoas,
especialmente os cristãos.
O conhecimento gnóstico se refere a Deus e à salvação ultraterrena, apresenta-se
como doutrina secreta revelada por Cristo a poucos eleitos e transcrita nos Evangelhos
3
ZILLES, Urbano. Fé e Razão no pensamento medieval. Porto Alegre: Edipucrs, 1996. p. 7.
4
gnósticos. Para eles a concepção do mundo é pessimista e a humanidade anda angustiada,
sendo o cosmo o reino do mal e nossa permanência nele é como se fosse um exílio.
Os Padres encontraram (e com justa razão) nas doutrinas gnósticas um viveiro de doutrinas
heréticas. Mas suas insistentes polêmicas demonstraram a forte influência que esse movimento deve
ter exercido na antiguidade sobre os espíritos. Com efeito, naquela época que via um mundo
espiritual perecer e outro surgir, e que exatamente por isso foi uma época denominada pela angústia,
os gnósticos davam (talvez mais do que outros movimentos filosóficos) um sentido a essa angústia
e, portanto, estavam em sintonia com certos modos de sentir próprio daqueles tempos.
4
Por mais que os gnósticos pudessem dar respostas precisas àquela época, sua
mensagem enfraqueceu-se e não houve futuro para eles.
Pela importância histórica, faz-se necessário apresentar de forma sintetizada alguns
Padres da Igreja, antes de Santo Agostinho, por terem desenvolvido obras de
espiritualidade com especulação e argumentação filosófica para sustentar o conhecimento
da fé. O interesse destes homens cultos é sempre religioso e teológico. Sua filosofia é parte
integrante da sua fé. Alguns dos problemas teológicos da época foram: o da Trindade e
Encarnação. Relações entre liberdade e graça como também entre e razão. A filosofia,
especialmente a platônica, foi de grande destaque.
São Justino (100-165), era um filósofo platônico que abraçou o cristianismo ao ver
o testemunho dos mártires, por fim ele também morre como rtir. Suas principais obras:
Apologias e Diálogo com Trifon. Argumentando que a doutrina de Platão não é
incompatível com a de Cristo, “mas não se casa perfeitamente com ela, não mais do que a
dos outros, dos estóicos, dos poetas e dos escritores. Cada um destes viu, do Verbo divino
que estava disseminado pelo mundo, aquilo que estava em relação com a sua natureza,
chegando desse modo a expressar uma verdade parcial”.
5
A Doutrina do Logos platônico é aplicada ao Filho (Prólogo do Evangelho de São
João como texto básico, sobre o Verbo Divino). Sendo Jesus Cristo o Logos, os filósofos
4
REALE e ANTISERI op. cit., p. 36.
5
REALE e ANTISERI op. cit., p. 39-40.
5
antigos, possuem as “sementes” deste Logos e participando dele podem conhecer parte da
verdade, portanto são cristãos anteriores a Cristo.
Clemente (150-200), mestre na Escola de Alexandria (primeiro instituto cristão de
ensino superior, rivalizando com as escolas judaica e gnóstica da cidade) e fundador da
teologia especulativa, tem como principal obra os Stromata (Tapetes ou exposição
científica da verdadeira filosofia). Com a finalidade de defender e aprofundar a com o
auxílio da filosofia: demonstra a concordância entre e razão, que seria a verdadeira
gnose.
Orígenes (185-253), discípulo de Clemente, sucedeu-o na Escola de Alexandria,
transferindo-se depois para Cesaréia. Suas principais obras filosóficas: De principiis e
Contra Celsum. Estudou a Sagrada Escritura, utilizando as doutrinas platônicas e estóicas
como instrumentos conceituais aptos a expressar e interpretar racionalmente as verdades
reveladas: a segunda Pessoa da Santíssima Trindade seria a Sabedoria de Deus, na qual
estão contidas sob a forma de Idéias, todas as criaturas futuras. Seu pensamento filosófico
em que pensa Deus é a incorporeidade, isto é uma realidade intelectual e espiritual, não
podendo ser conhecido em sua natureza.
Desviou-se da cristã, devido aos excessos de um espírito generoso e não pela
mesquinhez de criar algo original. Ensinava que a Trindade é uma hierarquia. O Pai
alcançaria todas as criaturas, o Filho só as racionais e o Espírito Santo somente os santos.
Admitia a pré-existência das almas, cujo afastamento de Deus pelo pecado ocasionou sua
encarnação. Sustentava que a Apocatástase seria a restauração universal em que até os
condenados ao inferno, pela purificação, retornarão a Deus. Grande apologético em favor
do cristianismo!
6
Santo Atanásio (295-373), bispo de Alexandria e autor das orationes contra
Arianos, defendeu a consubstancialidade do Pai e do Filho, coroada pelo Concílio de
Nicéia em 325, fixando assim o Credo da Igreja Católica referente à Santíssima Trindade.
Surgem também os Padres Capadócios, devido à região da Capadócia (atual
Turquia). Propondo uma civilização cristã, aproveitando tudo o que de bom existia na
cultura grega (filosofia, arte e literatura), despida do paganismo religioso.
São Basílio Magno juntamente com seu irmão São Gregório de Nissa (335-394),
ambos de grande cultura e talento especulativo e o amigo São Gregório Nazianzeno.
Alguns aspectos interessantes destes Padres, especialmente de Gregório de Nissa. São:
prevalência do mundo inteligível sobre o mundo sensível, que é concebido como produto
de qualidades e de forças incorpóreas (cor, forma, extensão). A antropologia fundada não
mais sobre a semelhança entre o homem e o cosmo, mas sobre a semelhança entre o
homem e Deus. A possibilidade de ascender até Deus, removendo tudo aquilo de carnal e
de passional que nos separa dele.
Surgem os Padres Gregos, abrange os escritores do Oriente cristão, Egito, Palestina,
Síria e a atual Turquia, predomínio da língua e cultura grega. Entre eles encontram-se
Dionísio Areopagita e São João Damasceno.
A filosofia Patrística no Ocidente se desenvolveu principalmente no norte da
África, em torno da cidade de Cartago, que era província romana cujas condições de paz e
prosperidade propiciam o florescimento da cultura literária, filosófica e teológica. A
formação cultural deles provinha do jurídico-retórico e não mais da filosofia. Em outros
Padres o interesse é teológico, pastoral, filológico e erudito, a filosofia fica de lado. Neste
contexto histórico, surge Santo Agostinho com todo seu resplendor e a Patrística chega ao
seu apogeu.
7
Tertuliano (160-220), jurista de Cartago que se converteu ao cristianismo e
defendeu com zelo e categoria. Rejeita a filosofia, pois é inútil e contrária à fé, dizendo que
Atenas e Jerusalém nada têm em comum. Sua máxima é credo quia absurdum.
Os tradutores e comentadores cristãos do século IV conseguiram manter viva a
tradição filosófica, sobretudo o platonismo e o neoplatonismo, destacando-se as traduções
de Calcídio, que traduziu e comentou o Timeu de Platão. Mário Victorino com sua
tradução de Plotino e Porfírio, levando para o campo da teologia, traços e idéias adquiridas
através da filosofia.
Ambrósio, bispo de Milão, mestre em ensinar a Bíblia com o método alegórico de
Fílon que mais tarde Santo Agostinho acaba adotando.
Jerônimo foi sem dúvida, o mais douto dos Padres da Igreja Latina. Conhecedor do
latim, grego e do hebraico. Autor da tradução latina da Bíblia, que se tornou a canônica,
(Vulgata).
Rufino traduziu para o latim algumas obras dos Padres gregos (Orígenes, Eusébio
de Cesáreia e de Gregório de Nazianzo).
Mas foi com Agostinho que o espírito latino se destacou e a Patrística alcançou os
seus mais altos cumes. Com ele encerrou-se definitivamente o fim da ética pagã e abrindo-
se uma nova época, a Idade Média.
O interesse pela obra De Beata Vita de Santo Agostinho é , no meu entender, a
profundeza e clareza do pensamento agostiniano sobre a felicidade, que perpassa com tanta
força e validade até os nossos dias. É um tema tão antigo como a humanidade, mas sempre
novo e atual. Quem não deseja uma vida feliz? Pois, em todos os tempos e lugares, sempre
o ser humano desejou a felicidade.
8
Esta dissertação contém uma pequena introdução cultural-filosófica da época, dois
capítulos com suas subdivisões e considerações finais, apresentando outros diversos
escritos de Agostinho com a mesma temática.
No primeiro capítulo encontra-se a trajetória e conversão de Agostinho, nas
subdivisões: Tagaste-Madaura e Cartago. A dor da separação e o encontro com Hortensius.
Agostinho e o maniqueísmo. Roma e Milão. Ambrósio, o Bispo de Milão. O
neoplatonismo. As Sagradas Escrituras. O Batismo e a volta à pátria amada.
No segundo capítulo encontra-se o cerne da obra De Beata Vita, com a alegoria da
navegação. Colóquios do primeiro, segundo e terceiro dias. E a conclusão do diálogo.
O axioma da filosofia agostiniana: credo ut intelligam et intelligo ut credam”, seja
o desafio para todos os cristãos, sobretudo os católicos atuantes na Ecclesia, presbíteros,
bispos e leigos. Urge o retorno às fontes profundas do conhecimento filosófico, onde a
teologia possa ter um suporte firme e coerente.
CAPÍTULO I:
TRAJETÓRIA E CONVERSÃO DE SANTO AGOSTINHO
Para expor sobre o tema desta Dissertação é necessário fazer uma exposição sobre a
trajetória pessoal de Agostinho, pois esta foi responsável pela grande mudança do homem
Aurélium Augustinus, para Santo Agostinho.
1.1 TAGASTE – MADAURA – CARTAGO
Aurelius Augustinus
6
(Santo Agostinho) nasceu em Tagaste, província da Numídia,
na África romanizada, situada às margens do rio Bagradas, na região do Mediterrâneo
(hoje chamada Souk-Ahrás, na atual Argélia, Norte da África), aos 13 de novembro de
354 d.C. Seu pai, Patrício, era pequeno proprietário de terras, ainda ligado ao paganismo
(só iria se converter no fim da vida). Já sua mãe, Mônica, uma cristã fervorosa.
O menino Agostinho freqüenta a escola em Tagaste, onde recebe os primeiros
ensinamentos de gramática, aritmética, latim e um pouco de grego. Era uma criança
dispersa com preguiça de estudar e não tinha nenhum interesse em aprender, tendo que ser
castigado:
Ó Deus, meu Deus, que sofrimentos e desilusões padeci, quando ao menino que eu era propunham
que o ideal da vida era obedecer aos mestres para prosperar neste mundo, para granjear, com a arte
da palavra, o prestígio dos homens e as falsas riquezas! Fui enviado à escola para aprender as
primeiras letras. Para minha infelicidade, não entendi a utilidade desse trabalho; mas se me mostrava
preguiçoso, era castigado à vara. Era um sistema recomendado pelos adultos e muitas crianças antes
de nós, que tiveram essa experiência, haviam aberto o doloroso caminho que agora éramos
obrigados a percorrer, multiplicando os trabalhos e dores dos filhos de Adão.
7
6
PORTALIÉ, E. Saint Augustin e VACANT, A. (Org.) Dictionnaire de Théologie Catholique. Paris:
Éditeurs, 1903, p. 2270, O Segundo nome de Aurelius nunca aparece nas suas correspondências, mas lhe
é dado pelos seus contemporâneos”, ou seja, apesar de ter ficado conhecido como Agostinho de Hipona ou
Santo Agostinho, este nunca assinava suas cartas e documentos com seu segundo nome (Augustinus),
apenas o primeiro (Aurelius). Apud. COSTA, Marcos Roberto Nunes. Santo Agostinho um gênio a
serviço da . Porto Alegre: Edipucrs, 1999. p.15.
7
SANTO AGOSTINHO. Confissões I, 9,14.
10
Seu pai Patrício desejava fazer do filho um retórico, isto é, um professor de letras e
eloqüência. Era esse o caminho normal para atingir os postos mais honrosos e lucrativos da
vida. E mandou-o à cidade vizinha de Madaura a mais importante da região, cerca de 30
quilômetros de Tagaste. Agostinho entrega-se com afinco ao estudo dos clássicos
latinos. Houve uma mudança radical nele em relação aos estudos. Começou a desenvolver
uma brilhante inteligência e extraordinária memória. Gostava muito de ler sobre Literatura
e Mitologia. Decorava com facilidade as poesias e dizia em prosa o que o poeta cantava em
versos, sobretudo Virgílio.
Para continuar seus estudos foi necessário partir para a cidade de Cartago, mas os
recursos econômicos eram pequenos; era necessário ajuntar as economias possíveis para
partir. Seu pai fez o possível para angariar recursos. Ele mesmo nos conta como foi:
“Nesse mesmo ano, interrompi os estudos, porque fui chamado de Madaura, cidade
vizinha, aonde tinha ido assistir às aulas de literatura e oratória. Meu pai, cidadão muito
modesto de Tagaste, levado mais pela ambição que pelos seus recursos, preparava-me os
meios necessários para uma viagem mais longínqua, para Cartago”.
8
Estuda, então,
retórica, dialética, geometria, música e matemática. O que era comum na época. E que
mais tarde ensinaria. Sua formação cultural realizou-se inteiramente em latim e com base
nos autores latinos.
Por que eu detestava as letras gregas, onde se cantam os mesmos temas? Homero tece habilmente
fábulas semelhantes, doce na sua frivolidade. No entanto, era amargo para mim, ainda menino.
Creio que acontece com os jovens gregos obrigados a aprender Virgílio, o mesmo que se passava
comigo em relação a Homero. Eram sim, a dificuldade de aprender uma ngua estrangeira que
borrifava de fel a suavidade das fantasiosas narrações gregas. Eu não conhecia palavra alguma dessa
língua.
9
Agostinho estava com seu espírito muito confuso, quando chegou a Cartago:
Vim para Cartago. De todos os lados ferviam criminosos amores. Ainda não amava e já gostava de
amar. Impelido por uma necessidade secreta, enraivecia-me contra mim mesmo por não me sentir
mais faminto de amor [...]. Era para mim mais doce amar e ser amado se podia gozar do corpo da
8
Idem. Ibid., II, 3, 5.
9
Idem. Ibid., I, 14, 23.
11
pessoa amada. Desse modo, manchava, com torpe concupiscência, aquela fonte de amizade.
Embaciava a sua pureza com o fumo infernal da luxúria.
10
Desde criança, gostava dos teatros, sobretudo os dramáticos. E nesta cidade grande
tudo era permitido. Ele participava com todas as suas forças, pois era atraído naturalmente
para esses divertimentos. “Arrebatavam-me os espetáculos teatrais, cheios de imagens das
minhas misérias e de alimento próprio para o fogo das minhas paixões”.
11
Agostinho era
uma pessoa que buscava encontrar respostas para seus questionamentos.
1.2 A DOR DA SEPARAÇÃO E O ENCONTRO COM HORTENSIUS
Durante quatorze anos, Agostinho, convive um uma mulher a qual amou fielmente,
nascendo seu filho Adeodato “o filho da culpa”
12
como o próprio Agostinho o chama.
Possuía uma extraordinária inteligência, mas aos dezesseis anos morre. Na obra De
Magistro Agostinho apresenta, seu próprio filho Adeodato, como o interlocutor. “Escrevi
um livro intitulado o mestre, no qual meu filho conversa comigo”.
13
Em setembro de 385,
Agostinho separa-se dessa mulher terna e amável, que reconhece ser “superior a si mesmo,
incapaz de imitar suas virtudes”.
14
Ele amava verdadeiramente esta mulher, mas havia um
impedimento, segundo as leis vigentes da época
15
. A razão concreta que impede Agostinho
de contrair matrimônio com aquela que “com quem compartilhava habitualmente o leito”
16
10
Idem. Ibid., III, 1, 1.
11
Idem. Ibid., III, 2, 2.
12
Idem. Ibid., IV, 2, 2.
13
Idem. Ibid., IX, 6, 14.
14
Idem. Ibid., VI, 15, 25.
15
Algumas disposições das leis augustais Julia e Papia, referentes à incapacidade sucessória dos caelibes,
ou solteiros, e dos orbi, ou casados sem filhos, em matéria hereditária de bens econômicos, foram
revogadas pelos imperadores Constantino, Honório e Teodósio II nos séculos IV e V. Mas ainda
permanece de pé a norma legal de Augusto sobre a proibição de contraírem matrimônio cidadãos de classe
ou dignidade “incansáveis”, em razão de nível ou “ordem” social diferentes, convertidos em
impedimentum conubii e matrimoni, em impedimento para o conúbio a conjunção e o matrimônio.
ESTAL, Gabriel Del. Santo Agostinho e sua concubina de juventude. São Paulo: Paulus, 1999, p. 97.
16
SANTO AGOSTINHO. Confissões, VI, 15, 25.
12
é a desigualdade de ordens, níveis ou classes sociais. Ele, famoso professor da Cátedra
Imperial de Retórica, ela uma desconhecida e humilde plebéia.
Agostinho se recorda do momento de sua partida para a África e isto sempre lhe
causou um longo e profundo sofrimento: “Quando de mim foi arrebatada a mulher com
que vivia, considerada impedimento ao meu casamento, meu coração, que lhe era
afeiçoadíssimo, ficou profundamente ferido e sangrou por muito tempo. Ela voltou para a
África fazendo a Ti o voto de jamais pertencer a outro homem e deixando para mim o filho
que me havia dado”. O Bispo de Hipona, jamais esqueceu o amor de sua companheira, ao
escrever sua obra As Confissões, treze anos após a separação de ambos: “no entanto, não
cicatrizava ainda a ferida aberta pela separação de minha companheira. Mas, após o
momento da dor mais pungente, a ferida gangrenava e me fazia sofrer, talvez menos
agudamente, porém, com maior desesperança de cura”.
17
Sua mãe Mônica, desde criança exercia uma forte influência sobre a vida espiritual
de Agostinho.Com a morte de seu pai em 371, complicam seus planos, faltam os recursos
econômicos para continuar seus estudos. Graças à ajuda financeira do concidadão, o rico,
Romaniano,
18
pode continuar estudando em Cartago. Se grande foi a gratidão de Agostinho
por tamanha generosidade, maior ainda foi a de Mônica, que, conservando em seu coração
tão rara delicadeza, uniu-se à família de Romaniano com grande presteza e, quando este
teve seu primeiro filho, a quem deu o nome de Licencio, Mônica cuidou dele como se
fosse um filho, zelando por ele e vigiando-o até à juventude, quando este também partiu de
Tagaste para estudar em Cartago junto a Agostinho.
17
Idem., VI, 15, 25.
18
Romaniano era parente de Patrício, daí a explicação para o interesse deste para com Agostinho. COSTA,
Marcos Nunes Roberto. Santo Agostinho um nio intelectual a serviço da . Porto Alegre: Edipucrs,
1999, nota de rodapé, p. 42.
13
Em 373, no meio dos prazeres e divertimentos de Cartago, Agostinho, leu um
diálogo de Cícero hoje perdido, o Hortensius.
19
Cansado de percorrer tantos caminhos
tortuosos e desiludido com as suas ambições, este jovem inquieto de dezenove anos, volta-
se para a Filosofia, com grande paixão, no intuito de encontrar a felicidade e a verdade que
tanto desejava. O encontro com este livro revolucionou-o por dentro e aos poucos
descobria que a Filosofia, ou contemplação intelectual é superior à oratória e pela elevação
intelectual, o ser humano aproxima-se de Deus: “Devo dizer que ele mudou os meus
sentimentos e o modo de me dirigir a Ti, ele transformou as minhas aspirações e desejos.
Repentinamente pareceram-me desprezíveis todas as vãs esperanças. Eu passei a aspirar
com todas as forças à imortalidade que vem da sabedoria. Começava a levantar-me para
voltar a Ti”.
20
Cícero foi ponto de referência e modelo essencial ao longo de muito tempo, mas o
que desapontou Agostinho, ao se deparar com os livros neoplatonicos, é que não encontrou
o nome de Cristo. “No meio de tanto fervor, havia uma circunstância que me mortificava: a
ausência de Cristo no livro. Este nome, por tua misericórdia, Senhor, o nome do meu
Salvador, do teu Filho, meu coração, o havia sorvido, com o leite materno quando ainda
pequenino, e o conservava no meu íntimo. Qualquer escrito que se apresentasse a mim sem
esse nome, por mais literário, burilado e verdadeiro que fosse, não conseguia conquistar-
me totalmente”.
21
19
CAPÁNAGA, Victorino. Augustín de Hipona: maestro de la conversión cristiana. Madrid: BAC,
1974, p. 9, faz uma relação entre o Hortensius de Cícero e o Protreptico de Aristóteles. Para ele, o
Hortensius, onde continha uma exortação à sabedoria; estava inspirado no Protreptico de Aristóteles”.
Este livro, em forma de diálogo, hoje se encontra perdido, e conhecemos dele pequenos fragmentos,
dentre os quais, os que Agostinho traz, citando-o em suas obras, como por exemplo: “Todos dizem que
são felizes aqueles que vivem como querem. Mas isso é falso! Querer aquilo que não é digno do homem é,
na verdade, a coisa mais miserável. E a infelicidade consiste tanto em não se conseguir o que se deseja,
mas muito mais em desejar e conseguir aquilo que nem sequer é digno de ser desejado” (De Trin. XIII, 5)
apud COSTA, Marcos Nunes Roberto. Santo Agostinho um gênio intelectual a serviço da . Porto
Alegre: Edipucrs, 1999, nota de rodapé, p. 43.
20
SANTO AGOSTINHO. Confissões III, 4, 7.
21
Idem., III, 4, 7.
14
Agostinho começa se voltar para o estudo da blia, mas não lhe ficou clara. Sua
forma escrita da época com a uma tradução a desejar, o diferente do estilo rico em
refinamento da prosa ciceroniana e o modelo antropológico com que parecia falar de Deus,
velaram sua compreensão.
O que senti nessa época, diante das Escrituras, foi bem diferente do que agora afirmo. Tive a
impressão de uma obra indigna de ser comparada à majestade de Cícero. Meu orgulho não podia
suportar aquela simplicidade de estilo. Por outro lado, a agudeza de minha inteligência não
conseguia penetrar-lhe o íntimo. Tal obra foi feita para acompanhar o crescimento dos pequenos,
mas eu desdenhava fazer-me pequeno e no meu orgulho, sentia-me grande.
22
Somente mais tarde com a ajuda do Bispo Ambrósio, ele vai descobrindo que a
Bíblia é um livro revelado que traz a história da salvação e não um livro para estudar
filosofia ou outras áreas do conhecimento.
Sua mãe com firme e coerente testemunho cristão, lançou as bases e construiu as
premissas da futura conversão do filho. Ela era uma pessoa modesta, sem grande cultura,
mas possuía a força da fé, como Cristo apresenta em seu Evangelho: “Pai, Senhor do céu e
da terra, eu te dou graças porque escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes e as
revelaste aos pequeninos”.
23
A desta mãe jamais esmoreceu, mesmo diante de tantos
dissabores que este filho lhe trouxe. Ela foi presença marcante, física e espiritualmente
para Agostinho, “minha mãe, forte na piedade, viera ao meu encontro, seguindo-me por
terra e por mar, em Ti confiando em todos os perigos. Era ela, nos momentos críticos da
navegação, quem incutia coragem aos próprios marinheiros, que habitualmente confortam
os viajantes inexperientes e timoratos, prometendo-lhes uma chegada a salvo”.
24
Mulher
forte e de grandes virtudes!
22
Idem., III, 5, 9.
23
BÍBLIA. Lc.10, 21. Bíblia de Jerusalém. Tradução das introduções e notas de La Sainte Biblie, publicada
sob a direção da “École Biblique de Jerusalém”. São Paulo: Edições Paulinas, 1973.
24
SANTO AGOSTINHO. Confissões VI, 1, 1.
15
1.3 AGOSTINHO E O MANIQUEÍSMO
Aos dezenove anos, Agostinho abraçou o maniqueísmo. Os maniqueístas se
gabavam de ensinar uma explicação puramente racional do mundo, de justificar a
existência do mal e de conduzir finalmente seus discípulos à unicamente por meio da
razão. Agostinho acreditou por alguns anos que essa era a sabedoria que ele cobiçava. Foi,
portanto, como maniqueísta e inimigo do cristianismo que voltou para ensinar Letras em
Tagaste e em seguida a Cartago.
O maniqueísmo, uma religião herética fundada pelo persa Mani
25
no século III,
apresentava um vivo racionalismo marcado pelo materialismo e um dualismo radical na
concepção do bem e do mal, entendidos não apenas como princípios morais, mas também
como princípios ontológicos e cósmicos. Agostinho, mais tarde em suas confissões,
comenta aspectos da religião dos maniqueus.
Não conhecem o caminho pelo qual, deixando o orgulho, iriam até o Salvador e por ele, subiriam
novamente a ele; ignoram este caminho e se consideram tão elevados e cintilantes quanto os astros;
e tombaram por terra, com o coração coberto pelas trevas da ignorância. Dizem muitas verdades
sobre as criaturas, e não buscam devotamente a verdade, artífice da criação; assim, não a
encontram, ou, se a encontram, embora conhecendo a Deus, não lhe prestam honra como a Deus,
nem lhe rendem graças. Perde-se em vãs reflexões. Proclamam-se sábios, atribuindo a si dons que
são teus; e se empenham, cegos e perversos, em atribuir-te o que propriamente pertence a eles:
transferem suas falsidades a ti, que é a Verdade, e assim “trocam a glória do Deus incorruptível por
25
Costa nos fornece um relato sobre o mito cosmológico dos maniqueus: a existência está dividida em três
etapas. Numa etapa primordial, mal e bem estão claramente separados em reino das trevas e reino da luz.
Este tem à frente o Pai da Grandeza; aquele, o Príncipe das Trevas. Numa segunda etapa, os demônios das
trevas, por inveja e cobiça, engolem (capturam) parte da luz. Esta precisa ser resgatada e assim é criado
pelo Pai da Grandeza o “Ser Humano Primordial”, que com seus filhos parte para o resgate. Sua derrota e
de seus filhos, os fazem prisioneiros das trevas. O que exige um novo ato salvífico por parte do Pai da
Grandeza. O resgate do Ser Humano Primordial acontece, mas seus filhos ficam no reino da luz e cruzam
entre si para procriarem. Deste cruzamento dos demônios que engoliram algo da luz nascem Adão e Eva, e
daí toda a humanidade. Com isso inicia-se a terceira etapa da existência. O Pai da Grandeza envia o
Salvador para a luta final contra as trevas. A tarefa não é destruir as trevas, mas sim separá-las da luz. Os
seres humanos, ao continuar procriando, perpetuam a mistura da luz e trevas. O final da história se dará
quando luz e treva, bem e mal, estiverem novamente separados e não mais houver mescla. COSTA,
Marcos Roberto Nunes. Maniqueísmo: História, Filosofia e Religião. p. 11. Sobre o nome do fundador
da seita segundo o próprio Costa seria Corbicius. O nome Mani (que daria origem aos adjetivos
Manikhaios para os gregos, Manichaeus ou Manes, para os latinos) é um título honorífico atribuído por
seus discípulos que, na língua arameu-babilônia, pode ser identificado com Mana, que, para os Mandeos,
significa o Espírito do Mundo Luminoso. Conforme nota de rodapé 1, p. 25.
16
imagens do homem corruptível, de aves, quadrúpedes e répteis, trocam a verdade de Deus pela
mentira, e adoram e servem a criatura em lugar do Criador.
···”.
Ele abandona esta seita após um diálogo com Fausto, bispo dos maniqueístas, por
não encontrar a verdade sobre algumas coisas, cujas explicações não o convenciam
26
e
também por perceber que ele mesmo tinha mais conhecimento que o próprio bispo.
A avidez, com que durante tanto tempo esperei por aquele homem, era satisfeita agora pelo calor e
animação de sua dialética, e por suas palavras tão bem escolhidas e que lhe ocorriam com facilidade
para revestir seu pensamento.
[...]
Descobri logo que ele nada entendia das disciplinas liberais, com exceção da gramática, da qual
conhecia apenas o corriqueiro. Tinha lido alguns discursos de Cícero, pouquíssimas obras de
Sêneca, algumas obras de poetas, e umas poucas, de seus correligionários, escritas em latim mais
cuidado.
27
Algumas das dúvidas maniquéias que lhe consumiam eram: qual a origem do mal?
Deus era limitado por forma corpórea, tinha cabelo e unhas? Mas levava ainda consigo
alguns princípios metodológicos dos maniqueístas como o racionalismo, o materialismo e
o dualismo (corpo e alma). Para os maniqueus Deus é luz, um ente corpóreo e as almas são
partículas desta luz divina. E Cristo é somente revestido de carne aparente e, portanto,
também foram aparentes a sua morte e ressurreição. Moisés não foi inspirado por Deus,
mas era um dos príncipes das trevas, razão pela qual se devia rejeitar o Antigo Testamento.
A promessa do Espírito Santo feita por Cristo ter-se-ia realizado em Mani. Em seu
dualismo extremo, os maniqueístas chegavam até mesmo a não atribuir o pecado ao livre-
arbítrio humano, mas sim ao princípio universal do mal que atua também em nós. Manes
falava tanto e tão desatinadamente sobre esses assuntos, que era facilmente confundido
26
Durante cerca de nove anos, em que o pensamento errante escutava a doutrina maniqueísta, ansiosamente
esperava a vinda de Fausto. {...} Logo que ele chegou, notei que era homem amável, aliciante na conversa
e que expunha de modo agradável os mesmos assuntos que os outros maniqueístas costumavam tratar.{...}
estava saciado de ouvir semelhantes teorias. Nem estas me pareciam melhores pelo fato de serem
propostas em linguagem mais cuidada, nem a eloqüência fazia com que eu as tivesse como verdadeiras
{...} Vós, porém, meu Deus, já tínheis ensinado de modo extraordinário e misterioso. Creio no que me
ensinaste, porque é verdade e fora de Ti ninguém é mestre da verdade, qualquer que seja a maneira ou
lugar em que esta apareça. SANTO AGOSTINHO. Confissões. V, 6, 10.
27
SANTO AGOSTINHO. Confissões, V, 6,11.
17
pelos verdadeiramente instruídos na matéria, de onde se concluía claramente qual a sua
competência em outras questões mais recônditas.
Não querendo ser desconsiderado pelos homens, tentou provar que o Espírito Santo, consolo e
riqueza de teus fiéis, nele habitava pessoalmente e com a plenitude de sua autoridade. Portanto era apanhado
em flagrante erro nas teorias ensinadas sobre o céu, as estrelas, os movimentos do sol e a lua, assuntos
estranhos à doutrina religiosa, tornava-se evidente sua sacrílega temeridade: transmitia noções não por ele
ignoradas, como também falsas, como tão insensato orgulho, que não hesitava em atribuí-las a si próprio,
como se fosse pessoa divina.
28
Agostinho começa a duvidar da verdade pregada pelos maniqueus e não se satisfaz
com as explicações, “resolvi manter relações baseadas apenas no grande interesse que
mantinha pela literatura, que eu, como professor de retórica, ensinava aos jovens de
Cartago”.
29
1.4 ROMA E MILÃO
Agostinho se afasta interiormente do maniqueísmo, entre os anos de 383-384. Foi
para Roma em 383, a fim de ensinar retórica. “Não me decidi a ir a Roma porque os
amigos que a isto me solicitavam prometiam maior lucro e mais prestígio, embora estes
motivos também me atraíssem. A razão principal e quase única era o fato de ter ouvido,
dizer que os jovens se dedicavam ao estudo mais tranqüilamente, refreados por uma
disciplina mais severa”.
30
A nova experiência como professor em Roma, logo o
decepcionou, pois os alunos eram de melhor nível e disciplinados, mas tinham o mau
costume de não pagarem os professores: “Em Roma, comecei diligentemente a ocupar-me
com a tarefa para a qual tinha vindo, isto é, o ensino da retórica [...]. Mas, eis que sou
informado de que em Roma estavam em praxe alguns procedimentos que eu não tolerava
28
SANTO AGOSTINHO. Confissões, V, 5, 8.
29
Idem.V, 7, 13.
30
Idem., V, 8, 14.
18
na África [...]. Informaram-me que os alunos conspiram e passam, em grande número, de
um professor para outro, a fim de não pagarem aos mestres”.
31
Outra dificuldade é estar na casa de um maniqueu, que o recebeu vindo de Cartago,
mas era constrangedor, pois não acreditava mais no maniqueísmo.
No entanto, eu continuava em Roma a freqüentar os chamados santos enganados e enganadores, e
não com os seus “ouvintes”, entre os quais estava aquele que me acolheu em casa quando adoeci
e convalesci, mas também com os chamados “eleitos” [...] Não mais esperando progredir naquela
falsa doutrina, passei a olhar com menor empenho e interesse os princípios que havia decidido
adotar, até que encontrasse algo melhor.
32
Agostinho filia-se ao ceticismo da Nova Academia, ou neo-acadêmicos,
33
onde
predominava a indiferença ou a dúvida em relação às fábulas dos maniqueus e da fé
católica. “Acudira-me de fato a idéia de que os mais esclarecidos entre os filósofos eram os
chamados Acadêmicos, quando afirmavam ser preciso duvidar de tudo, e que o homem
nada pode compreender da verdade. Eu conhecia o pensamento deles, pelo que lhes era
comumente atribuído, pois não compreendia ainda seus reais propósitos.”
34
O próprio
Agostinho confessa sua rápida passagem pelo ceticismo
35
.
31
Idem., V, 12, 22.
32
Idem., V, 10, 18.
33
EVANS apud COSTA, Marcos Roberto Nunes. Santo Agostinho um nio intelectual a serviço da .
Porto Alegre: Edipucrs, 1999, nota de rodapé 8, p. 77. “A academia passou por várias fases desde sua
fundação por Platão e o fim do século IV a.C. Os seguidores de Platão de início sustentaram com o seu
mestre que era possível atingir conhecimento intelectual. Arcesilau, que morreu cerca de 241/240 a.C.,
assumiu uma visão mais cética. Ele creu que o conhecimento era impossível e a mudança de direção que
produziu foi suficientemente marcada por ele para ser considerado como o fundador da Nova Academia,
ou Segunda ou Média Academia. A terceira ou a Nova Academia, que durou até os tempos de Agostinho,
foi fundada por Carnêades (214/13-129/28 a. C.), que ensinou um método de argumentar em favor e
contra toda questão. Essa Nova Academia, reunia um grande número de intelectuais em Roma naquela
época.”
34
Idem., Confissões, V, 10, 19.
35
Apesar de ter sido apenas uma rapina a passagem, o ceticismo deixaria marcas profundas em Agostinho,
tanto é assim que, uma das suas primeiras obras, Contra Acadêmicos, escrita logo após sua conversão,
seria para combater esta doutrina, bem como este faria referências a estes, refutando é claro, em diversas
de suas obras até o fim de sua vida. Na referida obra, Agostinho traz, de forma sintética, os dois pontos
centrais do ceptismo dos Acadêmicos: ”Primeiro, não se pode ter conhecimento da verdade filosófica, e
nenhuma coisa menos do que ela merece ser considerada. Segundo, é possível, não obstante, para o
homem ser sábio, e sua sabedoria consistirá em não dar seu assentimento a qualquer coisa que seja uma
vez que não podemos ter conhecimento da verdade” (Contra Acad. II, 1,1). Segundo JOLIVET, Agostinho
não descobriu os Acadêmicos neste momento, mas muitos anos antes, “o próprio Cícero havia pertencido
a esta escola e é muito provável que Agostinho chegou a conhecer tais doutrinas, pelas leituras dos
Acadêmicos de Cícero [...] Mais tarde estudou com mais determinismo as doutrinas dos Acadêmicos e
descobriu, por sua vez, a complexidade e a insidiosa sedução que encerravam”. COSTA, Marcos Roberto
19
A vida em Roma só não lhe foi mais difícil, graças ao apoio do grande amigo
Alípio, que havia ido morar em Roma antes de Agostinho, e que àquela altura exercia a
magistratura, como juiz e procurou ajudá-lo financeiramente em muitos momentos. Alípio
era um rapaz que pertencia a uma família abastada, sensato em tudo, de uma moralidade
invejável, embora tenha sido arrastado para a seita dos maniqueus por Agostinho.
Tendo sido aprovado no concurso público para “rector” da cátedra de Milão, no
verão de 384, Agostinho, com trinta anos de idade, parte de Roma. E vai para Milão, onde
foi recebido pelas autoridades imperiais e intelectuais com grande simpatia e curiosidade.
Encontros decisivos de Agostinho deram-se em Milão.
36
1.5 AMBRÓSIO, O BISPO DE MILÃO
Nas Confissões Agostinho nos relata o encontro com este insigne bispo.
Assim que cheguei a Milão, encontrei o bispo Ambrósio, conhecido no mundo inteiro como um dos
melhores, e teu fiel servidor. Suas palavras ministravam constantemente ao povo a substância do teu
trigo, a alegria do teu óleo e a embriaguez sóbria do teu vinho. Tu me conduzias a ele sem que eu o
soubesse, para que eu fosse por ele conduzido conscientemente a Ti. Esse homem de Deus acolheu-
me paternalmente e ficou feliz com a minha chegada, na bondade digna de um bispo. Comecei a
estima-lo, a princípio não como mestre da verdade, pois não tinha esperança de encontrá-la em tua
Igreja, mas como homem bondoso para comigo. Acompanhava assiduamente suas conversas com o
povo, não com a intenção que deveria ter, mas para averiguar se sua eloqüência merecia a fama de
que gozava, se era superior ou inferior à sua reputação. Suas palavras me prendiam a atenção. Mas,
o conteúdo não me preocupava, até o desprezava.
37
Nunes. Santo Agostinho um gênio intelectual a serviço da . Porto Alegre: Edipucrs, 1999, nota de
rodapé 9, p. 77.
36
Milão florescia como grande cidade brilhante. Era a Capital do Império Romano do Ocidente. Foi a
residência dos imperadores no período de 305 a 402. Em 313, o Imperador Constantino publicou ali o
famoso “Edito de Milão”. Para acorriam poetas, escritores, oradores e filósofos. A Filosofia grega
ganhava ali seus adeptos entre os leigos e o clero. Era Platão, em nova roupagem (Neoplatonismo), que
dominava o ambiente cultural. O Catolicismo era importante na cidade. O bispo da cidade, Ambrósio,
pronunciava sermões eruditos revestidos de teor neoplatônico, elaborados segundo a melhor tradição
ciceroniana. COSTA, Marcos Roberto Nunes. Santo Agostinho um gênio intelectual a serviço da .
Porto Alegre: Edipucrs, 1999. p. 79.
37
SANTO AGOSTINHO. Confissões, V, 12, 22.
20
Do bispo Ambrósio, Agostinho aprendeu o modo correto de abordar a Bíblia que,
conseqüentemente, tornou-se compreensível e inteligível para ele.
Ele chegou ao amadurecimento espiritual através do grande bispo, Santo
Ambrosio.
38
As luzes que necessitou para esclarecer algumas dúvidas foram se dissipando
em conversas e durante as pregações deste bispo. “Todos os domingos ia escutá-lo quando
ele ‘apresentava, com retidão, a palavra da verdade’ ao povo. E eu me convencia cada vez
mais de que podia ser desfeito o das astuciosas calúnias, com que os meus sedutores
envolviam os livros sagrados”.
39
Ambrósio é um dos primeiros no Ocidente a fazer interpretação alegórica da
Sagrada Escritura segundo os métodos praticados pelos alexandrinos. O materialismo o
impedia de absorver o sentido e as imagens que estavam por trás das palavras. “Logo
descobri também que teus filhos espirituais, regenerados pela graça na santa Igreja
Católica, não entendiam as palavras onde se diz que o homem foi criado por ti à tua
imagem, no sentido de te acreditarem e julgarem encerrado na forma de corpo humano”.
40
Mesmo conhecendo o método de Ambrósio, ainda assim, não se sente certo quanto
a esta interpretação, mas a aceitação vem aos poucos. Percebe o quanto esteve errado em
julgar imaturamente as Doutrinas da Igreja e por rejeitá-las. O seu intuito era buscar a
verdade pela ciência. Ouvia os sermões de Ambrósio embevecido, aos poucos ia se
convertendo ao cristianismo, degustando cada palavra da Escritura. “Alegrava-me,
também, por ter aprendido a ler as Antigas Escrituras da Lei e dos Profetas, com
38
SANTO AMBRÓSIO (335-397), quando era governador de Milão foi acalmar um tumulto popular pela
eleição do novo bispo da cidade e acabou sendo ele aclamado bispo. Notabilizou-se na pregação. Escreveu
o “De Oficiis Manistrorum” (calcado no “De Officiis” de Cícero), que constituiu o primeiro tratado
completo de ética cristã: o “officium médium” seriam os mandamentos e o “officium perfectum” os
conselhos evangélicos de perfeição. MARTINS, Ives Gandra Filho. Manual esquemático e História da
Filosofia. São Paulo: LTR, 1997, p. 68-69.
39
Idem. Ibid., VI, 3, 4.
40
Idem. Ibid., VI, 3, 4.
21
interpretação diferente daquelas que antes me pareciam absurdas, quando eu acusava teus
santos de terem fé em coisas nas quais realmente não acreditavam”.
41
Em sua incessante procura se convence de ter procurado a verdade entre inimigos
da Igreja, os maniqueus. Quem em sua sã consciência buscaria os adversários? A Igreja
possuía os melhores meios para se entender as Escrituras e a esses meios Agostinho iria se
render. “Eu, que nem de longe suspeitava o que era substância espiritual, então me
envergonhei alegremente de ter vociferado por tantos anos, não contra a católica, mas
contra as ficções criadas por imaginações carnais. Tinha sido temerário e ímpio por ter
acusado a fé católica, sem antes me haver informado através de pesquisa séria”.
42
Certamente depois de sua mãe, o Bispo de Milão, é que mais influência teve na
conversão de Agostinho. “Alegrava-me ouvir Ambrósio quando, muitas vezes em seus
sermões, recomendava ao povo a norma a ser escrupulosamente observada: a ‘letra’ mata,
‘mas o espírito comunica a vida. Removido assim o místico véu esclareceu-se
espiritualmente passagens que, tomadas ao pé da letra, pareciam ensinar o mal’”.
43
1.6 O NEOPLATONISMO
A leitura dos livros neoplatônicos revelou para Agostinho a realidade do imaterial e
a não realidade do mal.
Observando as outras coisas que estão abaixo de ti, compreendi que absolutamente não existem,
nem totalmente deixam de existir. Por um lado existem, pois provém de ti; por outro não existem,
pois não são aquilo que é. existe realmente aquilo que permanece imutável. [...] Vi claramente
que as coisas corruptíveis são boas. Não se poderiam corromper se fossem sumamente boas, ou se
não fossem boas. Se fossem boas nada haveria a corromper. A corrupção de fato é um mal, porém,
não seria nociva se não diminuísse um bem real. Portanto, ou a corrupção não é um mal, o que é
impossível, ou e isto é certo, tudo aquilo que se corrompe sofre uma diminuição do bem. Portanto,
41
Idem. Ibid., VI, 4, 6.
42
Idem. Ibid., VI, 4, 6.
43
Idem. Ibid., VI, 4, 6.
22
todas as coisas, pelo fato de existirem, são boas. E aquele mal, cuja origem eu procurava, não é uma
substância. Porque, se o fosse, seria um bem.
44
Ambrósio, cujas pregações Agostinho seguiu, chega a descobrir a existência do
sentido espiritual escondido sob o sentido literal da Escritura. No entanto, sua alma
permanecia disponível. Como bom discípulo de Cícero, ele professava um academismo
moderado, duvidando de quase tudo, mas sofrendo dessa falta de certezas. Foi então que
leu alguns escritos neoplatônicos, notadamente uma parte das Enéadas de Plotino na
tradução de Mário Victorino.
Foi seu primeiro encontro com a metafísica, e um encontro decisivo, vindo a
confirmar o conceito de substância espiritual que aprendera com Ambrósio. Os livros
neoplatônicos o fazem experimentar certa vivência mística, embora não sendo nesses livros
que encontraria o Cristianismo.
Em seguida aconselhado a voltar a mim mesmo, recolhi-me ao coração, conduzido por Vós. Entrei,
e com aquela vista da minha alma, vi acima dos meus olhos interiores e acima do meu espírito, a
Luz imutável. Esta não era o brilho vulgar que é visível a todo homem, nem era do mesmo gênero,
embora fosse maior. Era como se brilhasse muito mais clara e abrangesse tudo com a sua
grandeza.
45
Nessa experiência desperta a espiritualidade de Deus. Ao se voltar para seu íntimo
deixando de lado todos os sentidos e imagens externas, Deus se faz conhecer. Do mundo
exterior para o mundo interior do ser humano, Deus se revela como uma luz imutável e
abrangente. Ao se desprender das coisas externas e se voltar para dentro de si encontrou a
força espiritual que transcende.
Plotino e Porfírio, que Agostinho leu na tradução de Mario Victorino, sugeriram-
lhe finalmente a solução das dificuldades ontológico-metafísicas em que se encontrava
envolvido. Além da concepção do incorpóreo e da demonstração de que o mal não é
substância, mas simples privação, ele também encontrou nos neoplatônicos muitas
44
Idem. Ibid., VII, 12, 18.
45
Idem. Ibid., VII, 10, 16.
23
tangências com as Escrituras, mas, ainda outra vez, neles não encontrou um ponto
essencial, ou seja “que Cristo morreu para a remissão dos pecados dos homens”.
46
Agostinho encontra nos neoplatônicos a diversidade entre o ser absoluto e o ser
participado. A passagem da Escritura que diz: “Eu sou o que sou”
47
lhe traz uma clareza
sobre a existência de Deus. Deus é verdade eterna, ser absoluto e as outras coisas são
relativas. Deus é imutável e as outras coisas são mutáveis. Deus é, enquanto as outras
coisas não têm existência verdadeira, são temporais. “Examinei todas as outras coisas que
estão abaixo de Vós e vi que nem existem absolutamente, nem totalmente, deixam de
existir. Por um lado existem, pois provêm de Vós; por outro não existem, pois não são
aquilo que Vós sois. Ora existe verdadeiramente o que permanece imutável”.
48
tem
existência enquanto criaturas de Deus.
A questão do mal, que tanto incomodou Agostinho, começa a ter alguma solução. A
resposta vem dos neoplatônicos. Ele parte da idéia, que tudo o que Deus criou é bom.
Embora as criaturas se corrompam, o que não poderia acontecer caso não fossem boas. As
criaturas não são absolutamente boas como Deus, mas têm certo grau de bondade. Tudo o
que existe é bom, o que não é bom, é mal. O mal aparece quando corrupção e ocorre
certa privação do ser. Podemos dizer que o mal é o não-ser. Se desaparecer a bondade no
ser, este deixaria de existir, transformar-se-ia no nada. O mal nada mais é do que a
privação do bem, enquanto tal o mal não existe, não tem essência. Portanto não pode
originar-se de Deus, por que tudo o que Deus criou é bom. “Deus criou o homem reto, mas
é ele que procura os extravios”.
49
“E procurando o que era a iniqüidade compreendi que ela
não é uma substância existente em si, mas a perversão da vontade que, ao afastar-se do Ser
46
BÍBLIA. Rm. 5, 6. Bíblia de Jerusalém. Tradução das introduções e notas de La Sainte Bible,publicada
sob a direção da “ École Biblique de Jérusalem”. São Paulo: Edições Paulinas. 1973.
47
Idem. Ex. 3, 14. Bíblia de Jerusalém. Tradução das introduções e notas de La Sainte Bible, publicada sob
a direção da “ École Biblique de Jérusalem”.São Paulo: Edições Paulinas, 1973.
48
SANTO AGOSTINHO. Confissões, VII, 11, 17.
49
BÍBLIA. Ecle. 7, 29. Bíblia de Jerusalém. Tradução das introduções e notas de La Sainte Bible,
publicada sob a direção da “École Biblique de Jérusalem”.São Paulo: Edições Paulinas, 1973.
24
Supremo, que és Tu, ó Deus, se volta para as criaturas inferiores e esvaziando-se por
dentro, pavoneia-se exteriormente”.
50
A descoberta do neoplatonismo foi um importante passo para Agostinho. Ele se
apaixonou pela filosofia neoplatônica. Em muitas de suas obras, sempre estará presente
algum resquício desta filosofia. Agostinho quer usar as ferramentas do neoplatonismo, para
compreender melhor o Cristianismo.
1.7 AS SAGRADAS ESCRITURAS
Lendo São Paulo, por fim, aprendeu o sentido da fé, da graça e do Cristo Redentor.
O monge Simpliciano e confessor espiritual de Ambrósio é o guia que indicará o último
caminho a percorrer até sua conversão, recomenda-lhe a leitura das Sagradas Escrituras e
particularmente as Cartas de São Paulo.
Convenci-me então de que, longe de repreender os que acreditam em tuas Escrituras, reconhecidas
com tanta autoridade em quase todos os povos, são repreensíveis aqueles que não acreditam e a
quem não se deve dar ouvidos se disserem: Como sabes que estes livros foram dados aos homens
pelo espírito do único Deus, que é a verdade? E isso se adequava tanto melhor à minha crença,
quanto é certo que nenhum argumento, por mais capcioso que fosse, de tantos filósofos que
discordavam entre si, cujos livros estudei, tinha podido arrancar do meu coração a fé na tua
existência, apesar de ignorar o que eras e desconhecer que o governo das coisas humanas pertence a
ti.
51
Simpliciano mostra o erro dos neoplatônicos: o orgulho e presunção do saber por
parte destes. Deste mal também Agostinho sofria.
E a autoridade desses livros ainda me parecia tanto mais venerável e digna de fé absoluta, quanto era
claro o seguinte: se de um lado a leitura deles estava ao alcance de todos, por outro lado reservava a
dignidade de seu significado oculto a uma percepção mais profunda. A extrema clareza de
linguagem e simplicidade de estilo a tornavam acessível a todos e estimulavam a perspicácia
daqueles que não tem coração leviano. E recebendo em seu seio a humanidade inteira, apenas a
poucos era dado chegar a ti, por estreitas passagens, estes, no entanto, são sempre mais numerosos
50
SANTO AGOSTINHO. Confissões, VII, 16, 22.
51
Idem. Ibid., VI, 5, 7.
25
do que seriam se a Escritura não tivesse tanto prestígio aliado a tanta humildade, capaz de atrair
multidões.
52
Era necessária à humildade cristã e a graça Redentora de Jesus Cristo. Para os
neoplatônicos Cristo não era necessário. Como diz a própria Escritura:
A linguagem da cruz é loucura para os que se perdem, mas para os que foram salvos, para nós, é
uma força divina. Está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios, e anularei a prudência dos
prudentes. (Is 29, 14). Onde está o sábio? Onde está o erudito? Onde está o argumentador deste
mundo? Acaso não declarou Deus por loucura a sabedoria deste mundo? Já que o mundo com sua
sabedoria não reconheceu a Deus na sabedoria divina, aprouve a Deus salvar os que crêem pela
loucura de sua mensagem. Os judeus pedem milagres, os gregos reclamam a sabedoria; mas nós
pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus, e loucura para os pagãos, mas para os
eleitos, quer judeus, quer gregos, força de Deus e sabedoria de Deus. Pois a loucura de Deus é mais
sábia do que os homens, e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.
53
Simpliciano, conta-lhe a história da conversão de Mário Victorino,
54
Agostinho já o
conhecia de nome, havia lido os escritos de Plotino, através da tradução deste, bem como
seu manual de gramática e os comentários sobre Cícero. A narração da conversão de
Victorino comoveu profundamente Agostinho, “logo que vosso servo Simpliciano me
contou tudo isso de Victorino, imediatamente ardi em desejos de imitá-lo”.
55
A verdade
que tanto procurava finalmente havia encontrado, faltava apenas vencer os prazeres carnais
e colocar a como sólido alicerce. Agostinho luta com todas as forças interiores para
vencer-se a si mesmo:
Quando eu deliberava servir o Senhor meu Deus, como muito tempo tinha proposto, era eu o
que queria e era eu o que não queria; era eu mesmo. Nem queria, nem deixava de querer
inteiramente [...]. Assim sofria e me atormentava, acusando-me muito mais asperamente que o
ordinário, rolando-me e resolvendo-me as minhas cadeias, até que totalmente estalassem, pois
tenuamente estava atado a elas. Mas enfim ainda estava preso [...]. Dizia dentro de mim: Vai ser
52
Idem. Ibid., VI, 5, 8.
53
BÍBLIA. 1Cor. 1, 17-25. Bíblia de Jerusalém. Tradução das introdições e notas de La Sainte Bible,
publicada sob a direção da “École Biblique de Jérusalem. São Paulo: Edições Paulinas, 1973.
54
Mário Victorino era africano, como Agostinho e sua fama foi tão reconhecida que mereceu uma estátua no
fórum romano. Embora famoso e reconhecido por todos, renunciou à sua cátedra e fez batizar. Não
contente com isto queria até fazer confissão pública de sua conversão e batismo, mas o bispo dispensou
Victorino de tal rito. SOUZA, José Zacarias. Agostinho buscador inquieto da verdade. Porto Alegre:
Edipucrs, 2001.
55
SANTO AGOSTINHO. Confissões, VIII, 5, 10.
26
agora, agora mesmo.[...]. Estava a ponto de cumprir, e não a cumpria [... ]. A paixão, arraigada em
mim, dominava-me mais do que o bem, cujo hábito desconhecia.
56
Os antigos elos, que por tanto tempo o haviam mantido preso, romperam-se
definitivamente. Livre do materialismo de Mani, tratou de purificar seus costumes.
Lancei-me avidamente à venerável Escritura inspirada por Ti, especialmente à do apóstolo Paulo.
Desvaneceram-se em mim as dificuldades, segundo as quais parecia-me, algumas vezes, haver
contradição na Bíblia e incongruência entre o texto dos discursos dele e os testemunhos da Lei e dos
Profetas. Compreendi o aspecto único de sua fisionomia e aprendi a exultar com tremor.
57
É justamente na Bíblia, que ele vai encontrar a verdade que tanto procurou e que
não encontrou nos neoplatônicos. “Começando a leitura, descobri que tudo o que de
verdadeiro tinha encontrado nos livros platônicos, aqui é dito com a garantia da tua graça,
para que não se ensoberbeça quem consegue ver, como se não tivesse recebido, não
aquilo que vê, mas até a própria faculdade de ver. De fato, que possui o homem que o
tenha recebido?”.
58
Agostinho descobre em Jesus crucificado, a remissão dos pecados, aquilo que não
encontrou em nenhum dos filósofos, a salvação vem de Cristo. “Assim, nenhuma criatura
se vangloriara diante de Deus. É por graça que estais diante de Deus. É por sua graça que
estais em Jesus Cristo que, da parte de Deus, se tornou para nós sabedoria, justiça,
santificação e redenção, para que, como está escrito: quem se gloria, glorie-se no
Senhor”.
59
É com Paulo, o apóstolo dos gentios, o maior dos apóstolos, que será conquistado
para sempre, o grande doutor Agostinho para o Cristianismo.
A noção de objetivo e continuidade é traço mais marcante da “conversão” agostiniana. Vista em
seus textos de Cassicíaco, essa “conversão” parece ter sido um processo espantosamente tranqüilo.
A vida de Agostinho “na Filosofia” foi perpassada por São Paulo, mas ainda poderia ser transmitida
56
Idem. Ibid., VIII, 10, 22.
57
Idem. Ibid., VII, 21, 27.
58
Idem. Ibid., VII, 21, 27.
59
BÍBLIA, 1 Coríntios. Bíblia Sagrada. Tradução dos monges de Maredsous (Bélgica) pelo centro Bíblico
Católico. 28. ed. São Paulo: Ave Maria, 1981., Cap. 1, vers. 29-31.
27
em termos clássicos. As mais altas recompensas de uma vida desse tipo estavam reservadas, quase
que automaticamente, àqueles que haviam recebido uma formação clássica tradicional.
60
Finalmente, Agostinho um trecho da carta de S. Paulo aos Romanos que diz:
“Não caminheis em glutonarias e embriaguez, nem em desonestidades e dissoluções, e nem
em contendas e rixas; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis a satisfação
da carne com seus apetites”.
61
E nas palavras do próprio Santo Agostinho encontra-se o
relato de suas lutas internas. “Desse modo, tinha duas vontades, uma antiga, outra nova;
uma carnal, outra espiritual, que se combatiam mutuamente; e essa rivalidade me
dilacerava o espírito”.
62
Após muitas lutas interiores uma luz invadiu sua alma e parece que
as trevas foram desaparecendo e aos poucos a paz tomava conta de seu coração. Era o
início de sua conversão ao Cristianismo.
1.8 O BATISMO
Após ter ensinado Retórica na Cátedra, durante oito anos deixa suas aulas. Decide
dedicar-se ao serviço de Deus e se preparar bem para receber o Batismo. “Terminadas as
férias da vindima, comuniquei aos habitantes de Milão que deveriam providenciar para
seus estudantes outro vendedor de palavras, já que havia decidido dedicar-me ao teu
serviço”.
63
Agostinho tinha 32 anos, quando escreve ao Bispo de Milão perguntando como
deveria se preparar para receber o batismo, “comuniquei por carta a teu santo bispo
Ambrósio os meus erros passados e a minha intenção presente, pedindo-lhe que me
60
BROWN, Peter. Santo Agostinho uma biografia. Rio de Janeiro: Record. 2005. p. 135.
61
BÍBLIA. Rm. 13, 13. Bíblia de Jerusalém. Tradução das introduções e notas de La Sainte Bible,
publicada sob a direção da “École Biblique de Jerusalém”. São Paulo: Edições Paulinas, 1973.
62
SANTO AGOSTINHO. Confissões, VIII, 5, 10.
63
Idem. Ibidem. IX, 5, 13.
28
sugerisse qual dos teus livros eu deveria de preferência ler, a fim de melhor me preparar
para receber tão grande graça”
.
64
Agostinho, junto com sua mãe e irmão, seu filho e alguns amigos partem para
Cassicíaco, um lugar retirado e tranqüilo. De setembro de 386 a março de 387, ficam se
preparando para receber o batismo. Passam os dias entre leituras bíblicas, especialmente os
salmos, orações e estudos filosóficos. Neste tempo de retiro, nascem as primeiras obras de
filosofia, como resultados das suas discussões: “Contra Acadêmicos”, De Beata Vita”
“De ordine” e “Solilóquios”.
Retornaram à Milão e durante a quaresma, todos os dias, Agostinho ia à Basílica de
Milão para receber instruções, sobre o batismo. Na solene missa antes da Páscoa, na
madrugada de 24 para 25 de abril de 387, Agostinho juntamente com o filho Adeodato e
seu amigo Alípio, receberam o batismo das mãos do Bispo Ambrósio. Estava muito
comovido até às lágrimas e com o coração em agradecimento.
Fomos batizados, e desapareceu qualquer preocupação quanto à vida passada. Nesses dias, não me
saciava a maravilhosa doçura de considerar a grandeza de teus desígnios para a salvação da
humanidade. Quantas grimas verteram, de profunda comoção, ao maravilhoso ressoar de teus
hinos e cânticos em tua Igreja! Aquelas vozes penetravam nos meus ouvidos e destilavam a verdade
em meu coração, inflamando-o de doce piedade, enquanto corria meu pranto e eu sentia um grande
bem-estar.
65
Foi uma celebração maravilhosa e o entusiasmo tomava conta de todos os presentes
na Basílica. A partir deste acontecimento singular em sua vida, Agostinho é uma nova
pessoa interiormente e, deixando o passado de lado, segue em frente com fidelidade total e
com o olhar sempre fixo em Deus através de Jesus Cristo. Nesse dia nascia, sem dúvida,
um dos maiores pensadores cristãos unindo e razão, para um verdadeiro conhecimento
de Deus, do qual brota toda a felicidade, segundo Santo Agostinho.
Desde sua primeira e abortada “conversão à Filosofia”, em Cartago, Agostinho havia circulado num
horizonte em que se considerava que o cristianismo e a Sabedoria eram coincidentes. Mas a
64
Idem. Ibidem. IX, 5, 13.
65
Idem. Ibidem. IX, 6, 14.
29
diferença entre uma versão maniqueísta excluía qualquer processo de crescimento e terapia
intelectual; afirmavam oferecer-lhe uma “Sabedoria” esotérica que o purificaria. Agostinho
descobriu que essa “Sabedoria” não lhe permitiria “fazer nenhum progresso”, ao passo que agora
sentia haver entrado numa vida “na Filosofia” em que o progresso estava garantido.
66
Depois do batismo, em outubro de 387, resolve deixar Milão e partir para a África,
sua pátria amada para fundar uma comunidade religiosa em Tagaste. Mas sua mãe está um
pouco doente. Foi nestes dias que mãe e filho têm uma belíssima conversa, o famoso
“Êstase de Óstia”. Ele descreve uma das ginas mais belas do livro Confissões, sobre as
últimas horas que passou junto à sua mãe.
Ao aproximar-se o dia de sua morte, dia em que Tu conhecias e nós ignorávamos, sucedeu, creio
que por tua vontade e de modo misteriosos como costumas fazer, que ela e eu nos encontrássemos
sozinhos, apoiados a uma janela, cuja vista dava para o jardim interno da casa onde morávamos, em
Óstia Tiberina. Afastados da multidão, procurávamos, depois das fadigas de uma longa viagem,
recuperar as forças, tendo em vista a travessia marítima. Falávamos a sós, muito suavemente
esquecendo o passado e avançando para o futuro. Tentávamos imaginar na tua presença, Tu que és a
Verdade, qual seria a vida eterna dos santos, aquela que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram
e o coração do homem não percebeu. Abriram-se os lábios do coração à corrente impetuosa da tua
fonte, fonte de vida que está em Ti, para que, aspergidos por ela, nossa inteligência pudesse meditar
sobre tão grande realidade.
Nossa conversa chegou à conclusão de que o prazer dos sentidos do corpo, por maior que seja e por
mais brilhante que seja essa luz temporal, não é digna de ser comparada à felicidade daquela
vida,
nem mesmo é digna de ser mencionada. Elevando-nos com o mais ardente amor ao próprio Bem,
percorremos gradualmente todas as coisas corporais até o próprio céu, de onde o sol, a lua e as
estrelas iluminaram a terra. E subíamos ainda mais ao interior de nós mesmos, meditando,
celebrando e admirando as tuas obras. E chegamos ao íntimo de nossas almas. Indo além, atingimos
a região da inesgotável abundância, onde nutres eternamente Israel com o alimento da verdade, e
onde a vida é a própria Sabedoria, pela qual foram criadas todas as coisas que existiram, existem e
hão de existir, pois a Sabedoria mesma não é criada, mas existe como sempre existiu e como sempre
há de existir. Antes, nela não passado nem futuro, pois simplesmente é, por ser eterna. Ter sido e
haver de ser são próprios do Ser eterno.
67
E assim filho e mãe, ficam discorrendo por longo tempo sobre as coisas divinas e
humanas. Por exemplo: a existência eterna de Deus, a Encarnação do Verbo, a Escatologia
e tantas outras realidades.
Assim falávamos, se bem que de modo e com palavras diversas. No entanto, Senhor, Tu sabes como
nesse dia, durante esse colóquio, o mundo, com todos os seus prazeres, perdia para nós todo valor, e
minha mãe me disse: Meu filho, nada mais me atrai nesta vida, não sei o que estou ainda fazendo
aqui, nem por que estou ainda aqui. se acabou toda esperança terrena. Por um motivo eu
desejava prolongar a vida nesta terra: ver-te católico antes de eu morrer. Deus me satisfez
amplamente, porque te vejo desprezar a felicidade terrena para servi-lo. Por isso, o que é que estou
fazendo aqui?
68
66
BROWN, Peter. Santo Agostinho uma biografia. Rio de Janeiro, Record: 2005. p. 134.
67
SANTO AGOSTINHO. Confissões, IX, 23, 24.
68
Idem. Ibidem. IX, 10, 26.
30
Cerca de nove dias, após este episódio, o estado de saúde de sua mãe se agrava e
com 56 anos de idade, sua mãe faleceu na cidade de Óstia. E foi enterrada na Igreja de
Santa Áurea, em Óstia. Hoje seus restos mortais estão na Igreja S. Agostinho em Roma,
em uma capela ao lado dedicada à santa Mônica. Juntos, filho e mãe na vida terrena e
eterna, como acreditavam que estariam.
1.9 DE VOLTA À PÁTRIA AMADA
Cerca de 10 meses depois do falecimento de sua mãe, ele volta para Roma e
aproveita este tempo para informa-se sobre a vida monástica. No ano de 388, Agostinho
parte para Tagaste, com o sonho de fundar uma comunidade de oração e contemplação.
Depois de vender e distribuir entre os pobres os poucos bens que havia herdado do pai,
tomando e dando aos companheiros uma túnica negra cingida de cinturão de couro, e
rapando a cabeça em forma de coroa, conforme o costume dos monges do Egito, inaugurou
com os amigos, à porta de Tagaste, a vida de oração, pobreza e obediência com que vinha
sonhando deste tempo atrás”.
69
Com este pequeno grupo de leigos consagrados ao Senhor,
nascia o embrião da vida monástica do Ocidente. Agostinho era muito estimado e
respeitado por sua sabedoria. Muitas pessoas o procuravam. Ensinava os presentes e aos
ausentes com discursos e livros.”
70
Dedicou-se inteiramente à formação dos seus
discípulos.
Um ano após chegar em Tagaste, seu filho, Adeodato, morre com 17 anos de idade.
“Cedo o levaste desta terra e com a recordação dele sinto maior segurança do que a teria
69
COSTA, Marcos Roberto Nunes. Santo Agostinho em gênio intelectual a serviço da . Porto Alegre:
Edipucrs, 1999.
70
POSSÍDIO. Vida de Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 1997, p. 39.
31
com sua vida. Nada mais devo temer por sua infância, nem por sua adolescência ou
puberdade.”
71
Também nesta época, em Milão, morre seu amigo Nebrídio, companheiro
das longas jornadas de Agostinho. Sempre esteve presente em todas suas viagens.
Agostinho é convidado por um agente de negócios, residente em Hipona, para
conversar sobre a possibilidade de fundar um mosteiro nesta cidade. Era o ano de 391,
quando se depara com a surpresa do sacerdócio, pois, o velho Bispo Valério, tem
necessidade de um padre que o ajude no ministério da pregação, o povo aclama Agostinho,
como sacerdote.Em 391, ao ir à Igreja de Hipona (hoje Annaba), a basílica da Paz, o
bispo Valério propôs á assembléia a escolha de um coadjutor para as funções sacerdotais.
Imediatamente o povo gritou: ‘Agostinho presbítero!’ Então aos 36 anos, foi ordenado
presbítero”.
72
Aceita, após muita relutância e para não contradizer a vontade divina. Seus
discípulos são transferidos para Hipona e Agostinho dá continuidade ao seu projeto de vida
comunitária, que acaba sendo o primeiro seminário, “seminário de sacerdotes e bispos para
toda a África.”
73
de onde saem muitos bispos como Evódio, Alípio, Possídio e Haráclio,
que mais tarde sucede o próprio Agostinho no bispado de Hipona.
Após quatro anos de padre, por vontade do bispo e contrariando os costumes
africanos, exerceu o ministério da pregação. “Deu ao mesmo presbítero a faculdade de
pregar e comentar com freqüência o evangelho na igreja em sua presença, o que era
contrário aos usos e costumes das Igrejas na África. Por isso, alguns bispos o
criticavam”.
74
Agostinho foi sagrado bispo coadjutor, em junho de 395, pela insistência de
Valério. “O bispo Valério, idoso, solicitou ao bispo de Cartago (primaz africano) a
consagração de Agostinho. Como bispo coadjutor Agostinho é consagrado nos primeiros
71
SANTO AGOSTINHO. Confissões, IX, 6, 14.
72
SOUZA, José Zacarias. Agostinho buscador inquieto da verdade. Porto Alegre: Edipucrs, 2001, p. 23.
73
POSSÍDIO. Vida de Santo Agostino. São Paulo, 1997. p. 47.
74
Idem. Ibidem, p. 41.
32
meses de 395”.
75
Um ano depois, em 396, com o falecimento de Valério, Agostinho
assume como bispo titular a direção da diocese de Hipona, até sua morte em 430. “Morre o
bispo Valério e o sucede Agostinho na sede de Hipona. Na época, a cidade possuía uns
60.000 habitantes, e a diocese era pequena não chegando a 4.000 quilômetros. Consagrado
bispo, aos 41 anos de idade, vai desenvolver uma atividade muito intensa junto aos fiéis”.
76
Para completar sua formação teológica, que reconhecia imperfeita, mergulhou no
estudo da Escritura e dos Padres. Enfrentou o problema da credibilidade da católica,
pronunciou um importante discurso sobre a fé e o símbolo diante de um concílio “seu
discurso foi de uma profundidade tal, que mais tarde seria publicado e hoje figura entre
suas obras com o título De Fide et Symbolo. A partir de então, Agostinho foi presença
indispensável nas Conferências, Sínodos e Concílios realizados na África” .
77
Das discussões constantes com os maniqueus, Agostinho escreve mais três livros
sobre o assunto.
Agostinho entra em discussão pública contra o maniqueu Fortunato, que era conhecido e tinha fama
de entendido e eloqüente. Mas diante de Agostinho, Fortunato se confunde e não consegue vencer
os argumentos de Agostinho, e logo deixa o debate. As atas deste debate deram origem a mais um
livro chamado: Disputatio contra Fortunatum (Contra Fortunato). Neste mesmo período escreveu:
De Utilitate credendi (Sobre a utilidade de crer); e De duabus animabus contra manichaeos (Sobre
as duas almas contra os maniqueus).
78
Ao mesmo tempo, continuou a controvérsia maniqueia, mas Fortunato é derrotado e
vai embora da cidade.
No decorrer desta, aquele mestre maniqueu, segundo atestam as atas, nem pode anular os
argumentos católicos, nem provar que a seita dos maniqueus se apóia na verdade; não tendo resposta
a dar á última questão, declarou que iria conferenciar com os seus chefes acerca do que não pudera
refutar, e se eles não pudessem dar resposta satisfatória, proveria ao bem de sua alma. Assim todos
que o tinham por grande e douto afirmaram que ele nada pôde para confirmação de sua seita.
79
75
SOUZA, José Zacarias. Agostinho buscador inquieto da verdade. Porto Alegre: Edipucrs, 2001, p. 23.
76
Idem. Ibidem, p. 23.
77
COSTA, Marcos Roberto Nunes. Santo Agostinho um gênio intelectual a serviço da . Porto Alegre:
Edipucrs, 1999, p. 126.
78
SOUZA, José Zacarias. Agostinho buscador inquieto da verdade. Porto Alegre: Edipucrs, 2001, p. 23.
79
POSSÍDIO. Vida de Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 1997. p. 43.
33
Fortunato, derrotado foi embora desta cidade “Coberto de confusão, partiu em
seguida de Hipona e jamais voltou. Desta forma, o homem de Deus tirou aquele erro do
coração de todos, quer dos presentes ou dos ausentes que ficaram cientes destes fatos.
Assim, a verdadeira religião católica se impôs e foi conservada”.
80
Agostinho teve também que enfrentar os donatistas. A doutrina donatista não
readmitia na comunidade cristã todos aqueles que, durante as perseguições, haviam cedido
aos perseguidores, apostatando ou sacrificando aos ídolos, sustentando a não validade dos
sacramentos administrados por bispos ou padres que houvessem incorrido em tais culpas.
O erro de Donato e dos seus seguidores consistia em fazer a validade do sacramento
depender da pureza do ministro e não da graça de Deus. Eles queriam uma Igreja de santos
e puros. Portanto, foi declarado como cisma; estes passaram a exigir um novo batismo para
aqueles que aderiram ao movimento. Muitos de seus membros eram pessoas más e
violentas.
Instruídos por mestres malvados, com uma audácia cheia de soberba e temeridade, nem aos seus
poupavam, nem aos estranhos. Contra todo direito, interferiam nas questões dos outros (e quem não
lhes obedecia sofria danos gravíssimos e pancadas); armados de diversas maneiras, percorriam
furiosos campos e aldeias, não hesitando nem mesmo diante de uma efusão de sangue (Cf. Aug. Ep.
44,4,9; 185, 4, 15; Aug. Contra Cresc.III 42, 46).
81
Agostinho junto com Marcelino,
82
organizam a conferência de Cartago no ano de
411, onde procurariam colocar um fim em todas essas brigas. Agostinho faz seu discurso,
discorrendo sobre a caridade e o batismo. Não havendo muitas contestações, o encontro
durou apenas um dia e os donatistas sentiam-se derrotados. E muitos retornaram à Igreja
Católica.
80
Idem, p. 43.
81
Idem, p. 46-47.
82
HAMMAN, 1989, p. 240, que diz: “O edito imperial é datado de 14 de maio de 410. Ele designa um dos
altos dignitários da chancelaria para presidir a Conferência. E a escolha do tribuno Marcelino como
delegado imperial nada tinha de fortuito. Seu irmão, Apríngio, Procônsul da África, encontrava-se na
região e dispunha de meios poderosos e eficazes para a preparação, a convocação e o bom
desenvolvimento da Conferência, que iria mobilizar cerca de seiscentos bispos, de Tanger à Tripolitânia”.
Nota encontrada no rodapé: COSTA, Marcos Roberto Nunes. Santo Agostinho um gênio intelectual a
serviço da fé. Porto Alegre: Edipucrs, 1999, p. 142.
34
No ano de 397, enquanto Agostinho, está lutando com os donatistas, o grande
Bispo, Ambrósio, morre em Milão. Agostinho chora a morte deste amigo e jamais o
esqueceu durante sua vida. Sempre teve como modelo a ser seguido.
No ano seguinte, Agostinho trava uma batalha com Pelágio e seus seguidores. Eles
pregavam que a boa vontade e as obras eram suficientes para a salvação e desprezavam a
necessidade da graça divina. O Bispo de Hipona escreveu muitas obras para mostrar que a
revelação cristã gira essencialmente em torno da necessidade da graça.Agostinho durante
quase dez anos elaborou, escreveu e ditou numerosos livros e com muita freqüência falou
na Igreja ao povo contra o mesmo erro”.
83
Sua tese triunfou no Concílio de Cartago no ano
de 417 e o papa Zósimo condenou o pelagianismo. “A tese de pelágio estava em sintonia
substancial com as convicções dos gregos sobre a autarquia da vida moral do homem,
enquanto a tese de Agostinho era de que o cristianismo subvertia aquela convicção”.
84
Depois de tantas lutas, Agostinho podia ver com seus olhos uma certa unidade na Igreja
Católica e se alegrava com esta realidade.
Deus lhe concedeu o dom de ainda nesta vida fruir do resultado de seus labores, primeiro na Igreja
de Hipona que ele governava, em perfeita paz e unidade, depois em outras partes da África. Via
crescer e multiplicar-se a Igreja do Senhor, por seus trabalhos, ou os de outros bispos, do número
dos presbíteros que ele cedera. Alegrava-se porque em grande número maniqueus, donatistas,
pelagianos e pagãos haviam desaparecido, associando-se à Igreja de Deus.
85
Com o episcopado cresceu a atividade pastoral e literária, como também o
aprofundamento da doutrina cristã. A atividade pastoral abrangia:
A Igreja de Hipona: a que estava e se sentia ligado. Pregações, cuidado para com os
pobres e órfãos, a formação do clero, a organização dos mosteiros masculinos e femininos,
a administração dos bens eclesiásticos e visitas aos doentes. “Pela manhã, celebrava a
Eucaristia. Depois despachava os processos civis. Geralmente procuravam o bispo porque
83
POSSÍDIO. Vida de Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 1997. p. 58.
84
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia Patrística e Escolástica. São Paulo: Paulus,
2003, p. 84.
85
POSSÍDIO. Vida de Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 1997, p. 59.
35
a justiça leiga era demorada e corrupta. Por isso as pessoas tinham maior confiança nos
bispos”.
86
A Igreja Africana: participação nos concílios programados anualmente e viagens
freqüentes. “Freqüenta todas as assembléias e concílios da região e defende com ardor a
doutrina católica diante das várias heresias que surgiam em sua época”.
87
A Igreja Universal: Controvérsias dogmáticas, respostas a muitas interpelações,
livros e mais livros sobre as diversas questões. Ele mesmo em uma de suas obras
Retratações, nos revela a quantidade de suas obras, duzentos e trinta e dois livros,
divididos em noventa e três obras, sem contar suas cartas, sermões e pequenos tratados.
Apesar de ter disposto de pouco tempo para suas reflexões, a obra de Agostinho é muito extensa.
Nas Retractationes (2, 76), o próprio Agostinho diz ter composto, até o ano de 427, 93 escritos
distribuídos em 232 livros. Sua atividade como pregador nos deixou cerca de 500 sermões que
foram recolhidos pelos estenógrados e chegaram até nós. Estes sermões são fruto do envolvimento
do bispo com seus fiéis, das participações nos problemas cotidianos de seu povo e das preocupações
que afligiam toda a Igreja da época, não só a Igreja africana. Além de seus livros e sermões,
Agostinho deixou-nos 270 cartas. Pois as pessoas queriam consulta-lo pedindo orientação, direção
espiritual e chegavam cartas da Palestina, de Roma, Milão, Gália, Espanha. E essa atividade
epistolar foi mantida por mais de trinta anos.
88
Os anos passam em atividade incansável: ministério e publicação de escritos
dogmáticos, morais, exegéticos, pastorais e muitos outros.
Em 430 Agostinho, bastante enfermo, não podia nem mesmo sair do seu quarto.
Pediu para que fossem escritos alguns Salmos, para serem pendurados nas paredes de
modo que ele podia meditar sobre o conteúdo dos mesmos. A cidade de Hipona estava
cercada pelos vândalos. No dia 28 de agosto deste ano, sabendo que sua hora aproximava-
se, pediu a Possídio, seu companheiro, amigo e discípulo por mais de quarenta anos, que
chamasse o padre responsável pela biblioteca, ao qual disse: “Que a biblioteca da Igreja e
todos os códices deviam ser conservados com cuidado para a posteridade”.
89
Tudo o que
86
SOUZA, José Zacarais. Agostinho buscador inquieto da verdade. Porto Alegre: Edipucrs, 2001, p. 23.
87
Idem. Idibem. p. 24.
88
Idem. Idibem. p. 25.
89
POSSÍDIO. Vida de Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 1997, p. 92.
36
ele deixou foram seus livros. Não possuía outra herança, a não ser a sabedoria que brotava
de seus escritos.
Possídio nos relata como foi longa sua vida.
Com efeito, Santo Agostinho em sua vida, que por um dom de Deus foi longa, para o bem e o estado
feliz da Santa Igreja, de fato, viveu setenta e seis anos, dos quais uns quarenta no clericato ou
episcopado, costumava dizer-nos nos colóquios familiares que, após o batismo, mesmo os cristãos e
bispos de vida irrepreensível não deviam deixar esta vida sem digna e conveniente penitência.
90
Dias antes de sua morte, ele se dedica inteiramente à oração.
Não querendo que fosse desviada por alguém a sua atenção, uns dez dias antes da morte, pediu-nos a
todos os presentes que ninguém entrasse em seu quarto, a não ser na hora de visita dos médicos ou
de se lhe levarem as refeições. Assim foi feito e observado, enquanto ele se dava o tempo todo à
oração. Até a sua última doença, pregava na igreja a palavra de Deus ininterruptamente, com zelo e
fortaleza, tendo conservado a mente lúcida e julgamento correto. Tendo incólumes todos os
membros do corpo, íntegras a visão e a audição, como está escrito, adormeceu com os seus pais,
numa feliz velhice.Também estávamos presentes quando foi oferecido a Deus o santo sacrifício em
sufrágio do defunto; em seguida foi sepultado.
91
A notícia da morte de Agostinho espalhou-se rapidamente. “Naquele dia, os
vândalos ficaram mudos, como monges, no seu acampamento ao redor de Hipona. As
espadas de aço não ressoaram umas contra as outras [...]; não se ouviu rumor algum de voz
humana, nos campos, ao redor de Hipona. Somente o zumbido dos insetos recortava o
silêncio de luto”.
92
Após quatorze meses de resistência, Hipona, último foco de resistência
romana da África, é totalmente destruída pelos vândalos, sendo poupado somente a
catedral, a casa, a biblioteca e o mosteiro onde Agostinho vivia.
Agostinho continua vivo em suas obras influenciando hoje, como no passado,
muitos pensadores nas mais diversas áreas do conhecimento. Todas as grandes Escolas
filosófico-teológicas da Idade Média estiveram, de uma forma direta ou indireta, ligadas a
Santo Agostinho.
Agostinho é um filósofo. Soube aproveitar o arcabouço teórico dos gregos,
sobretudo de Platão, para uma melhor explanação da fé cristã.
90
Idem. Ibidem, p. 91, 92.
91
Idem. Ibidem, p. 91, 92.
92
HAMMAN, 1989, p. 257. Apud COSTA, Marcos Roberto Nunes. Santo Agostinho um gênio intelectual
a serviço da fé. Porto Alegre: Edipucrs, 1999, p. 159.
37
É um teólogo, que determinou o maior progresso na compreensão dos dogmas
cristãos e assim a Igreja Católica se manteve unida. “Para Agostinho, o estudo da filosofia
sempre foi caminhada para Deus e não pura ocupação intelectual. E a sabedoria, certa
posse beatificante de Deus. Dessa maneira, Agostinho foi sobretudo teólogo, e até os seus
trabalhos filosóficos são dirigidos para a teologia”.
93
Um místico que buscava, através da oração, o encontro com o verdadeiro mestre,
Jesus Cristo, como julgara Agostinho.
A oração, portanto, era um veículo reconhecido da investigação especulativa. Agostinho havia
iniciado um de seus primeiros textos filosóficos, os Solilóquios, com uma prece, e terminaria com
outra a sua obra-prima especulativa, o De Trinitate. As Confissões deveriam ser lidas de ponta a
ponta dentre desse espírito. Eram uma longa exploração da natureza de Deus, escrita sob a forma de
uma prece, a fim, de “provocar o intelecto e os sentimentos dos homens em relação a Ele”. O fato de
o texto ser redigido em forma de oração, longe de relega-lo à condição de uma obra devota,
aumentou seu valor de exercício filosófico: Da mihi, Domine, scire et intellegere “Concedei-me,
Senhor, saber e entender. Tais orações, porém, costumavam ser vistas como parte de uma etapa
preliminar na elevação da mente do filósofo a Deus. Plotino nunca conversou com o Uno como fez
Agostinho nas Confissões.
94
Poeta de grande sensibilidade, conhecedor das letras e palavras exatas.
Orador, capaz de arrancar não somente aplausos, mas lágrimas dos ouvintes, pelo
fundamento de suas palavras.
Polemista, incapaz de ser derrotado, se preparava muito bem antes de qualquer
debate.
Escritor incansável passava as noites escrevendo e dormia muito pouco.
Pastor, possuidor de um grande coração, sempre generoso, perspicaz e atencioso
para com todos os que o procuravam, ricos, pobres, viúvas, intelectuais e ignorantes. Era
um pai para todos.
93
SANTO AGOSTINHO. O livre-arbítrio, introdução 10.
94
BROWN, Peter. Santo Agostinho uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 203.
CAPÍTULO II
DE BEATA VITA
Na obra De Beata Vita encontra-se momentos da evolução do pensamento de
Agostinho na busca da verdade, do conhecimento e da filosofia na sua valorização como
argumento essencial para sua temática.
Chegou finalmente o dia de libertação material da profissão de retórico, da qual eu já estava
espiritualmente livre. E aconteceu que me livraste a língua de uma atividade da qual me havias
livrado o espírito. E, partindo para a casa de campo com todos os meus, eu te louvava com alegria.
Nos livros de discussões com meus amigos mesmo diante de ti está documentada a atividade
literária realizada, ao teu serviço, mas respirando ainda, como nas pausas da luta, o orgulho da
erudição.
95
Numa primeira fase parece ser a filosofia a resposta para todas as suas perguntas e
inquietações, porém passados alguns anos reconhece que deu muito destaque à filosofia e
escreve as Revisões, onde procura corrigir aquilo que escreveu no passado. “Os colegas de
Agostinho compartilhavam claramente essa sensação de urgência, pois exortaram-no a
escrever, o mais cedo possível, a parte das Retratações que hoje possuímos. [...] No
cômputo geral, a redação das Retratações foi um trabalho árido.
96
Agostinho, no prefácio, que o I capítulo De Beata Vita, além da dedicatória a Teodoro, reconhece
mais tarde como exagera, apresenta alegoricamente que a felicidade, a qual está em terra firme, deve
ser alcançada pelos navegantes os quais nem sempre acertam o caminho da volta, que é pelo porto
da filosofia, refugiando-se, assim, das tempestades que podem levar, forçosamente, às vezes, a ela
ou a outros lugares. Poucos dentre os inúmeros navegadores no ponto de partida todos os homens
encontram-se como navegadores, isto é, na condição existencial humana de serem lançados no
mundo, de abandono em alto mar, de levarem uma vida infeliz e na necessidade de regressar para a
terra chegam ao porto da Filosofia, considerado como próximo ou o próprio lugar da felicidade
(conforme o pensamento grego). Do contrário, somente se alguma ou algum tipo de tempestade,
arrastasse grande número ou a todos para tal destino.
97
Agostinho faz a revisão de sua obra De Beata Vita:
Desagrada-me ter dado Mânlio Teodoro, a quem dediquei o livro – se bem que fosse homem douto e
cristão mais elogios do que devia. Também lamento haver mencionado diversas vezes o tema
fortuna. Enfim, ter declarado que, no curso da vida presente, a vida feliz existe no sábio
exclusivamente, e em sua alma, qualquer seja o estado de seu corpo. Com efeito, o conhecimento
95
SANTO AGOSTINHO. Confissões, IX, 4, 7.
96
BROWN, Peter. Santo Agostinho uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 538.
97
SANGALLI, Idalgo José. O fim último do homem da eudaimonia aristotélica à beatitudo agostiniana.
Porto Alegre: Edipucrs, 1998. p. 151-152.
39
perfeito de Deus, isto é aquele melhor do qual o homem nada pode possuir, o Apóstolo o espera
para a vida futura (1Cor 13, 12). Ela, unicamente, merece o nome de vida feliz, porque o corpo,
então incorruptível e imortal, estará submetido ao espírito, sem nenhuma fraqueza ou resistência
(1Cor 15,42ss). Em nosso manuscrito encontrei, de fato, este livro incompleto e apresentando não
poucas lacunas. Fora assim copiado por alguns irmãos e eu não consegui encontrar um exemplar
completo, pelo qual pudesse corrigi-lo ao revê-lo. Eis como é o início do livro: Si ad philosophiae
portum.
98
muitas controvérsias entre os autores sobre a presença do pensamento de
Agostinho no Cristianismo. Quem fala é o neoplatônico Plotino ou o cristão, Agostinho?
Na verdade, parece ser as duas coisas. Agostinho que tem uma filosofia espiritualista,
sobretudo depois do seu encontro com a comunidade de Milão, oportunidade em que teve
contato com o neoplatonismo cristão através de Ambrosio.
Quando Agostinho se recolheu a Cassicíaco, já tinha havido nele uma mudança nesse vel
profundo. Por causa desta, ele tornou a se sentir livre, apto a ir em busca de seus interesses com
energia e segurança renovadas. Uma transformação tão íntima não precisa expressar-se em gestos
histriônicos, como os que tinham estado na moda entre os admiradores menos equilibrados dos
monges, dentre eles o douto Jerônimo. Tem-se, antes, a impressão de que a criatividade súbita e
otimista da nova vida agostiniana “na Filosofia” espelhou os sentimentos de um homem que, por
alguns anos preciosos, pôde enfim sentir que havia recuperado a inocência perdida.
99
Agostinho sofreu a influência do Estoicismo, sobretudo da Nova Estoá. “Os
estudiosos dividem a história da Estoá em três períodos: a Antiga Estoá de Zanão, Cleanto
e Crisipo, a Média Estoá de Panécio e Possidônio, a Nova Estde Sêneca, Epicteto e
Marco Aurélio”.
100
A ética estóica foi a que mais influência exerceu no desenvolvimento
da tradição filosófica, chegando a influenciar muito o pensamento ético cristão nos
primórdios do cristianismo.
Cícero é outro filósofo que marcou Agostinho. Ele representa o Ecletismo em
Roma. “Cícero é de longe a mais eficaz, a mais vasta e a mais significativa ponte através
da qual a filosofia grega se introduziu na área da cultura romana e, depois em todo o
98
SANTO AGOSTINHO. A vida feliz diálogo filosófico. São Paulo: Paulinas, 1993. p. 100.
99
BROWN, Peter. Santo Agostinho uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 136.
100
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia Pagã Antiga. v. 1. São Paulo: Paulus, 2003.
p. 279.
40
Ocidente: e isso também é mérito não teorético, mas de meditação, de difusão e de
divulgação cultural”.
101
Faz-se necessário conhecer um pouco melhor a filosofia plotiniana, por ser esta
uma das influências mais significativas que Agostinho recebeu.
Agostinho herdara de Plotino a noção da pura dimensão e dinamisno do mundo interno. Os dois
homens acreditavam que o conhecimento de Deus podia ser encontrado sob a forma de uma
“memória” nesse mundo interior. Para Plotino, entretanto, o mundo interno era um continuum
tranqüilizador. O “verdadeiro eu” do homem estava em profundeza, e esse eu verdadeiro era divino,
nunca perdera o contato com o mundo das Idéias. A mente consciente apenas se havia separado de
sua divindade latente, por se concentrar de um modo estreito demais. Para Agostinho, em contraste,
o simples tamanho do mundo interno era tanto fonte de angústia quanto de força. Enquanto Plotino
era cheio de serena confiança, Agostinho sentia-se inseguro. “Há, de fato uma certa luz nos homens,
mas eles que andem depressa, andem depressa, para que as trevas não os alcancem” A mente
consciente era cercada de sombras. Agostinho sentia como que movendo-se por “um bosque
imenso, repleto de perigos inesperados”. Seu típico deslocamento do interesse para as perenes
“enfermidades” da alma, seu escrupuloso sentimento da vida como “uma contínua provação”, tudo
isso colocou ao lado das profundezas místicas de Plotino uma região murmurante: “Grande é a força
desta minha memória, ó Deus meu, um vertinoso mistério, uma profundeza oculta de infinita
complexidade: e isto é minha alma, e é o que sou.
102
Plotino (205-270), o fundador do neoplatonismo, é o último dos grandes filósofos
da Antigüidade. Ele vive em um momento difícil da história romana. Nunca escreveu e
nem mencionou nada sobre sua história pessoal e todas as realidades temporais de sua
ambiência. Nasceu no Egito, estudou em Alexandria, vivendo até a idade de trinta e
nove anos. Foi aluno de Ammonio Saccas e escreveu as “Enéadas”
103
, acompanhou o
imperador Gordiano na expedição contra os persas, para travar conhecimento com a
sabedoria persa e hindu. Fundou uma escola com a finalidade de ensinar as pessoas a se
libertarem da vida terrena e se unirem à divindade, através da contemplação pagã. A peste
matou Plotino e momentos antes de morrer disse ao seu discípulo Eustoquio: “Estou te
101
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia Pagã Antiga. v. 1. São Paulo: Paulus, 2003.
p. 308.
102
BROWN, Peter. Santo Agostinho uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 215.
103
Seu discípulo Porfírio ordenou esses tratados, que são em número de cinqüenta e quatro, dividindo-os em
seis grupos de nove, guiando-se pelo significado metafísico do número 9, de onde o título de Enéadas
(ennea, em grego, significa nove) dado a esses escritos, que nos chegaram integralmente, e que,
juntamente com os diálogos platônicos e os esotéricos aristotélicos, contêm uma das mais elevadas
mensagens filosóficas da antigüidade e do Ocidente. REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia.
Filosofia Pagã Antiga, v. 1, p. 358.
41
esperando desde muito tempo. Me esforço por devolver o Divino que existe em mim
mesmo ao Divino que está no Universo”.
104
O que importava era o outro mundo e não as coisas terrestres. Para os cristãos,
importava o céu e para os platônicos era o mundo das idéias, o mundo real, oposto ao
mundo das aparências ilusórias. Plotino foi inspirado por Platão, avança um pouco mais e
cria um novo sistema, o neoplatonismo. Agostinho, uma vez convertido ao cristianismo e
tendo mergulhado na filosofia neoplatônica, fez uma unidade entre a razão e a fé, ou seja,
entre a filosofia pagã plotiniana e o cristianismo, embora haja também grandes
discrepâncias como, por exemplo, a criação do nada pregada pelo cristianismo e a
emanação do neoplatonismo, perpétuo devir, combinação de elementos eternos e demiurgo
criador abaixo de Deus.
Crer ainda que ele é o Criador de todos os bens, aos quais é infinitamente superior; assim como ser
ele aquele que governa com perfeita justiça tudo quanto criou, sem sentir necessidade de criar
qualquer ser que seja, como se não fosse auto-suficiente. Isso porque tirou tudo do nada. Entretanto,
ele gerou, não criou, de sua própria essência, aquele que lhe é igual, o qual é como professamos, o
Filho único de Deus. E aquele que a quem nós denominamos, procurando as expressões mais
acessíveis: “Força de Deus e Sabedoria de Deus” (I Cor 1, 24). Por meio dele, Deus fez tudo o que
tirou do nada.
105
Plotino recebeu uma acentuada influência da filosofia grega e fez uma admirável
síntese merecedora de destaque. Agostinho na conclusão De Beata Vita, acaba fazendo
uma conclusão teológica, ao referir-se à Santíssima Trinbdade:
Pois a perfeita plenitude das almas, a qual torna a vida feliz, consiste em conhecer piedosa e
perfeitamente: por quem somos guiados até à Verdade (o Pai). Da qual Verdade gozamos (o Filho).
E por qual vínculo estamos unidos à Suma Medida (o Espírito Santo). Nesses três elementos,
aqueles que possuem o conhecimento e repelem as ilusões de várias superstições, reconhecem um
Deus e uma só Substância.
106
Etienne Gilson, faz o seguinte comentário sobre este trecho:
104
FITZGERALD, Allan. Diccionario de San Agustín. Burgos: Monte Carmelo, 2001, p. 1064.
105
SANTO AGOSTINHO. O Livre-Arbítrio, I, 2, 5.
106
SANTO AGOSTINHO. De Beata Vita, IV, 35.
42
Eis o que é possuir a sabedoria: ter Deus na alma e fruir dele. Decorre dque fora dessa posse de
Deus não existe para o homem senão misérias. Viver bem é precisamente esforçar-se em possuí-Lo.
Da fonte da verdade brota, por assim dizer, sem cessar, para nós, uma espécie de apelo (admonitio),
que nos põe na memória a lembrança de Deus, convida-nos a procurá-lo e dele saciar-nos. É nessa
Verdade, isto é, em Deus mesmo, que nós haurimos todas as nossas verdades, ainda que não
ousemos, nem possamos contempla-lo em sua essência. Enquanto estivermos à procura de Deus, não
bebemos ainda na própria fonte, e não nos saciamos de sua plenitude. É o mesmo que dizer:
enquanto durar esta vida terrena, ainda não chegamos à nossa plena Medida. E, portanto, apesar dos
favores que Deus nos testemunha, não possuímos ainda a sabedoria nem a felicidade. Nosso
pensamento não pode estar plenamente satisfeito, nossa vida não pode ser chamada realmente feliz.
o será no perfeito conhecimento do Espírito Santo, que conduz à Verdade, no deleite dessa
mesma Verdade e na união graças à Verdade, com a Medida suprema da qual procede. Espírito,
Verdade e Medida não são senão uma só substância e um só Deus.
107
Um dos pontos da filosofia plotiniana é o Uno, pois toda a multiplicidade emana
108
do Uno. Mas o que é o Uno? Algumas vezes é identificado como Deus em outras como o
Bem ou a Beleza. Não convém atribuir predicados, porque nada lhe é suficiente, pois o
necessita e nem deseja nada. Transcende a todo ser. O Uno é considerado o Alfa, o começo
pois dele tudo emana. Também é o Omega, pois tudo retorna a ele. O Uno simplesmente é.
Pois, o Uno se autocoloca sendo atividade autoprodutora, tendo absoluta liberdade
criadora, causa de si mesmo, aquilo que existe em si e para si, o que transcende a si
mesmo. É o Bem que se cria a si mesmo. Ele é como quis ser.
Como acontece a processão das coisas a partir do Uno? Por que o Uno, bastando a
si mesmo, não permaneceu em si mesmo? Algumas imagens poderão nos ajudar a
compreender. A derivação das coisas a partir do Uno é representada pela irradiação de uma
luz a partir de uma fonte luminosa em forma de círculos sucessivos, como “luz da luz”. O
Uno produz todas as coisas permanecendo firme e ao permanecer, gera, sem que o seu
107
GILSON, Etienne. Introduction à l´étude de S. Augustín, p. 5. Apud. SANTO AGOSTINHO. A vida
feliz diálogo filosófico. São Paulo. Paulinas: 1993, p. 96. Nota de rodapé 83.
108
Em diversas doutrinas e especialmente no neoplatonismo, a emanação é o processo no qual o superior
produz o inferior por sua própria abundância, sem que o primeiro nada perca em tal processo, como ocorre
metaforicamente no ato de difusão da luz; porém, ao mesmo tempo, no processo de emanação um
processo de degradação, pois do superior ao inferior existe a relação do perfeito ao imperfeito, do
existente ao menos existente. A emanação é, pois, diferente da criação que produz algo do nada; na
emanação do princípio supremo não há, por sua vez, criação de nada, mas apenas autodesprendimento sem
perda do ser que se manifesta. O emanado tende, como diz Plotino, a identificar-se com o ser do qual
emana, com seu modelo mais do que com seu criador. É por isso que certos limites intransponíveis
entre o neoplatonismo e o cristianismo, que destaca a criação do mundo a partir do nada e portanto tinha
que negar o processo de emanação unido à idéia de uma eternidade do mundo. Pequeno Dicionário
Filosófico. São Paulo: Hemus, 1997. p. 112.
43
gerar o empobreça e o condiciona de algum modo, aquele que é gerado é inferior ao que
gerou.
A vida feliz é uma procura desejável e incansável que todo ser humano aspira. Em
todos os tempos e lugares, as pessoas procuram descobrir qual é a razão do existir humano
e sem sombra de dúvida, todos anseiam por uma vida plena e feliz. Santo Agostinho, em
seu tempo e com seu modo de viver apresentou um dos caminhos possíveis para alcançar a
felicidade através da razão e da fé.
A perspectiva agostiniana tem por base a filosofia plotiniana com seus quatro
pilares: Uno, Nous, Alma e Matéria. A emanação é produção excessiva. O Uno cria de sua
superabundância o Nous e todos os entes que existem, sem que ele sofra diminuição ou
acréscimo. Do Nous emerge a Alma e desta, a Matéria, que é o nível mais distante do Uno
e mais próxima da Alma.
Nesta obra De Beata Vita, o leitor poderá perceber algumas pistas que conduzem à
felicidade. Como diz o próprio Santo Agostinho: “Posto que o homem não tem outro
motivo em filosofar, senão o de chegar a ser feliz, agora bem, o que faz feliz é o bem
supremo: portanto, não existe outro motivo em filosofar, senão o bem supremo”.
109
Se a
filosofia é capaz de tornar a pessoa feliz é porque trás em seu interior elementos capazes e
suficientes para responder aos anseios mais íntimos do ser humano. A filosofia agostiniana
é o retorno da pessoa humana a Deus, por meio de Jesus Cristo, ou seja, o retorno do seu
eu interior, para o criador.
A filosofia plotiniana nos ensina que são múltiplos os caminhos do retorno ao
Absoluto: o da virtude, o da erótica platônica e o da dialética. Mas, a estes tradicionais,
Plotino ainda acrescenta um quarto caminho: o da “simplificação”, que é “reunião com o
Uno” e “êxtase” (unio mystica).
109
SANTO AGOSTINHO. De Civitate Dei, XIX, 1, 3.
44
Com efeito, as hipóstases derivam do Uno por uma espécie de “diferenciação” e
“alteridade” ontológica, às quais se acrescentam no ser humano as alteridades morais. A
reunião com o Uno se pela retirada dessas alteridades. E isso é possível porque a
“alteridade” não existe na hipóstase do Uno. No ser humano ao invés, a alteridade está
presente, e despojar-se de toda a alteridade significa para ele deixar o mundo sensível e
corpóreo reentrar em si mesmo, na própria alma; depois, despojar-se da parte sensitiva da
alma; em seguida, da palavra e da razão discursiva; por fim, “emergir na contemplação
d´Ele”.
A frase que resume de forma icástica o processo de purificação total da alma que
quer unir-se ao Uno é a seguinte: “Despoja-te de tudo”. Mas, nesse contexto, despojar-se
de tudo não significa empobrecer-se ou anular-se a si mesmo e sim, ao contrário, significa
ampliar-se, preencher-se com Deus, com o Todo, com o Infinito.
Ao menos em uma passagem essa unificação com o Uno é denominada por Plotino
como “êxtase”. O “êxtase” plotiniano não é um estado de inconsciência e sim de
hiperconsciência; não é algo de irracional ou hipo-racional, mas sim hiper-racional. No
êxtase, a alma se vê divinizada e preenchida pelo Uno.
É indubitável que a doutrina do êxtase foi difundida nos meios alexandrinos por
Fílon, o Judeu. Entretanto, deve-se destacar que enquanto Fílon, no espírito blico,
entendia o êxtase como “graça”, ou seja como “dom gratuito” de Deus, em harmonia com
o conceito bíblico de que é Deus que faz dom de si e das coisas por Ele criadas ao ser
humano, Plotino o insere em uma visão que se mantém ligada às categorias do pensamento
grego: Deus não faz dom de si aos seres humanos, mas os seres humanos podem subir até
Ele e a Ele se reunir por sua força e capacidade natural, desde que o queiram.
De Beata Vita é uma de suas primeiras obras juntamente com De ordine, Contra
Academicos e Solilóquios. Agostinho, o jovem neoconvertido, acompanhado por alguns
45
amigos e parentes, se retira para Cassicíaco,
110
por ocasião de seu aniversário
111
e durante
três dias discutem sobre um tema muito comum na época: a felicidade. Num primeiro
momento, Agostinho apresenta a alegoria da navegação,
112
faz a explicação filosófica,
apresenta o ambiente e seus participantes, fazendo um apelo insistente ao amigo Mânlio
Teodoro.
No colóquio do primeiro dia a discussão surge em torno da alma e do corpo. E as
perguntas: se todos querem ser felizes? Quem possui a Deus? Somos felizes porque
possuímos o que queremos? E os acadêmicos podem ser felizes? Isto é aqueles que
mantém a dúvida como fundamento.
No colóquio do segundo dia, fala-se sobre a posse de Deus como amigo, sendo
assim a garantia para ser feliz. Será a carência a fonte de infelicidade?
110
Quando Agostinho recolheu-se a Cassicíaco, em setembro de 386, parecia estar seguindo uma tradição
veneranda e encantadora: livre das preocupações de uma carreira pública, estava prestes a ingressar numa
vida de ócio criativo, dedicada a uma vocação séria. Tratava-se do antigo ideal do otium liberale, de um
“retiro cultural” e, ao rememorar essa fase de sua vida, Agostinho pode falar dela como uma época de
Christianae vitae otium, um ócio da vida cristã. Esse ideal viria a constituir o pano de fundo de sua vida a
partir desse momento, até sua ordenação como padre, em 391.
No fim do século IV, a tradição do otium havia adquirido um novo alento. Tornara-se mais complexas e,
com freqüência, muito mais séria. Em suas vastas propriedades na Sicília, os últimos senadores pagãos
continuavam a reeditar manuscritos dos clássicos (como fez Agostinho, durante parte do tempo, em
Cassicíaco). Uma dessas quintas do interior chegou até a ficar conhecida como A Vivenda dos
Filósofos”. E a elas foram juntar-se algumas figuras mais problemáticas: um século antes, Porfírio se
recolhera à mesma ilha para se recuperar de um colapso nervoso e redigir seu amargo tratado “Contra os
cristãos”. Muitos haviam passado a julgar que essa vida essencialmente privada já haviam contemplado
essa idéia. BROWN, Peter. Santo Agostinho uma biografia. São Paulo: Record, 2005, p. 140.
111
Foi exatamente no dia 13 e novembro de 386 que se realizou este colóquio sobre a felicidade, por ocasião
dos trinta e dois anos de Agostinho. Pela contagem romana do tempo naquela época, essa data
correspondia aos idibus novembris. Os dias eram contados na base das calendas, nonas e idos. As calendas
correspondiam ao oitavo dia após as nonas. As datas eram contadas sempre de modo regressivo em
relação às calendas, nonas e idos. Nota de rodapé, 31. p. 79, De Beata Vita.
112
Agostinho tenta sugerir sua história pessoal, utilizando a imagem neoplatônica da volta à pátria, e
evocando uma viagem marítima, semelhante a de Enéias, na Eneida. Estamos atirados longe do porto, em
meio a tempestades. E isso, por quê? Não se saberia dizer. Será Deus, a natureza, a necessidade (isto é, o
destino), nossa vontade? Será a união de algumas dessas causas ou o concurso delas todas? Seja como for,
estamos longe da meta e temos de voltar sobre nossos sulcos, para dirigir-nos então à tria. Até aí,
Agostinho segue plenamente a tradição platônica. Acontece que alguns, desde a idade da razão, depois de
terem remado algum tempo, aventuram-se mais longe. Chegam mesmo a se lembrar da pátria, e
acontecimentos deploráveis, trágicos mesmo, dificuldades, ansiedades, negócios vãos, induzem, talvez, a
ler livros de sábios e doutos. O acordar dá-se no porto. Outros, enfim, ainda que se tenham perdido,
percebem sinais ou faróis. A história pessoal de Agostinho possui um pouco desses três tipos de
navegação. Nota de rodapé, 5, p. 69, De Beata Vita.
46
No colóquio do terceiro dia, chegam a conclusão de que a felicidade é plenitude
espiritual. É necessário possuir a sabedoria, isto é a justa medida, para administrar bem a
vida. E no fim do diálogo, concluem de que a verdadeira sabedoria é Jesus Cristo e estar
em comunhão com a Trindade é o máximo da felicidade nesta vida e a plenitude na
eternidade.
2.1 ALEGORIA DA NAVEGAÇÃO
A alegoria da navegação era conhecida pelos antigos, sobretudo Platão ao ensinar a
descoberta da realidade superior ao mundo sensível. Ele nos apresenta através da imagem
da “segunda navegação”.
A primeira navegação era a entregue ás forças físicas do vento e das velas do navio, e representa
emblematicamente a filosofia dos Naturalistas que explicavam a realidade apenas com elementos
físicos (ar, água, terra, fogo, etc.) e forças físicas a eles ligadas. A “segunda navegaçãoentrava em
jogo quando as forças físicas dos ventos, na bonança, não eram mais suficientes, e era então
entregue às forças humanas que impulsionavam o navio com os remos: para Platão ela representava
a filosofia que, com as forças da razão, se esforça para descobrir as verdadeiras causas da realidade,
para além das causas físicas. Se quisermos explicar a razão pela qual uma coisa é bela, não podemos
nos limitar aos componentes físicos (beleza da cor, da forma etc.), mas devemos remontar à idéia do
belo
113
.
A obra De Beata Vita, começa com a alegoria da navegação. “Se fosse possível
atingir o porto da Filosofia, único ponto de acesso à região e terra firme da vida feliz”.
114
A
Filosofia seria o porto, a terra firme e a felicidade seriam onde nossa viagem, nossa
navegação terminaria. Mas o número de pessoas que atingem a terra firme é muito
pequeno. “Talvez não fosse temerário afirmar, ó magnânimo e ilustre Teodoro
115
, que o
113
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia pagã antiga. São Paulo. Paulus: 2003. v. 1.
p. 137.
114
SANTO AGOSTINHO. De Beata Vita, I, 1.
115
Mânlio Teodoro, amigo de Agostinho e a julgar pela dedicatória no início do livro, De Beata Vita, era seu
mentor em 399 e cônsul das Gálias. Retirado da vida pública, dedica-se às letras e à filosofia,
nomeadamente à neoplatonica. É-lhe atribuída a autoria do De ordine et natura mundi. A relação com
Agostinho funda-se, naturalmente, numa comum preocupação e afinidade a eloqüência, a busca da
verdade e obviamente, o cristianismo. Cf. nota de rodapé 2, p. 92. SANTO AGOSTINHO. Diálogo sobre
a felicidade.
47
número de homens a chegar lá seria ainda mais diminuto do que aqueles que atualmente
abordam nesse porto, tão raros e escassos se apresentam eles”.
116
Por que é tão difícil
chegar ao porto? Quais os obstáculos? Aos poucos aquelas pessoas vão aprendendo a
superar os perigos do mar, conduzindo a navegação com cuidado até o porto.
Esta reflexão que Agostinho faz no prólogo é para mostrar a Teodoro qual é o
caminho que ele próprio andou e esteve durante todo este tempo e roga-lhe o seu auxílio e
sua amizade. “Suplico-te, pois, em nome da tua virtude, por tua bondade e pelos vínculos e
relações que costumam unir as almas, estender-me a mão. Quero dizer-te: estima-me e, em
troca, crê que eu te estimo e que me és muito querido. Se obtiver o que desejo, bastar-me-á
um ligeiro esforço para atingir, sem dificuldade, aquela vida feliz, a qual desfruta, como
penso”.
117
Agostinho acredita que seu amigo tenha encontrado a felicidade e por isto
dedica a obra De Beata Vita, ao amigo Teodoro, por ser digno desta homenagem. Nesta
mesma metáfora ele quer que o amigo entenda o seu estado de espírito, assim como
daqueles que estão presentes nesta obra. “Quero te dar a conhecer minha conduta atual.
Como reúno neste porto todos os meus amigos. Por aí, me conhecerás melhor, assim como
o estado do meu espírito”.
118
Segundo o bispo de Hipona este tema é bastante propício a
ser discutido entre seus convidados por ser a felicidade um dom de Deus. “Tratamos entre
nós a respeito da vida feliz. Nada vejo de mais apropriado do que tal vida, a merecer o
título de dom de Deus”.
119
Teodoro fora mestre de Agostinho e foi através deste que o bispo teria contato com
as obras platônicas. Li algumas obras de Platão, pelo qual tu te sentes fortemente atraído.
Confrontava, quando podia, o valor de tais opiniões, com a autoridade dos livros que nos
transmitem os divinos mistérios. Fui abrasado de tal ardor, que se não fosse por
116
SANTO AGOSTINHO. De Beata Vita, I, 1.
117
Idem. Ibidem, I, 5.
118
Idem. Ibidem, I, 5.
119
Idem. Ibidem, I, 5.
48
consideração a certos amigos, teria rompido todas as minhas cadeias”.
120
Teodoro foi de
fato o grande amigo, companheiro e conselheiro de Agostinho. Ele mesmo diz o quanto o
amava e admirava: “Tua eloqüência não me intimida, pois não posso temer o que amo,
embora não possa atingir a tua medida. Menos ainda temo, na verdade, a tua alta posição
(fortuna). Elevada que seja, aparece-te ela como coisa secundária. Ao passo que seria
suficiente para tornar plenamente feliz aquele a quem ela subjuga”.
121
Agostinho pede ao
amigo para prestar atenção ao que ele escreveu sobre a existência humana e leia com muito
cuidado.
Antes, porém, ele apresenta todos os convidados para este encontro em
Cassicíaco.
122
Primeiramente, nossa mãe, e cujos méritos, estou persuadido, devo tudo o que vivo.
123
Navígio, meu
irmão.
124
Trigésio
125
e Licêncio
126
, meus concidadãos e discípulos. Não quis que ficassem
ausentes
120
Idem. Ibidem, I, 4.
121
Idem. Ibidem, I, 5.
122
No momento em que se desenrolavam estes colóquios sobre a vida feliz, decorria a estação do outono. No
correr dos nove meses incompletos, entre fins de agosto de 386, a abril de 387, em que Agostinho e os
seus permanecem em Cassicíaco, experimentaram eles as quatro estações climáticas: o fim do verão, todo
o outono e o inverno, e o início da primavera. Conheceram freqüentes dias chuvosos e a cerração da
planície do rio Pó. Nos meses de inverno, a neve caía sobre os montes distantes do Pré-Alpes.
Encontramos em meio a tudo isso Agostinho sensível às belezas da natureza circundante. O céu claro o
encantava. Certamente, terá exclamado como Manzoni, mais tarde: “O céu da Lombardia, tão belo,
quando é belo”. Diante da casa, estendia-se uma campina, com alto castanheiro, à sombra do qual, o grupo
costumava reunir-se. Lemos no De Ordine, II, 1,1: “O sol tinha se levantado radioso, e a pureza do céu,
assim como a temperatura doce, o quanto possível naquela estação do ano, em tais paragens, convidavam-
nos a descer até ao campo, o que fazíamos com freqüência, na intimidade”. Em outro diálogo da mesma
época, no Contra os Acadêmicos, nos deparamos com esta bela passagem: “No dia seguinte, o sol
amanheceu sereno e tranqüilo... A extrema pureza do céu atraía-nos... Chegamos ao da árvore, onde
habitualmente nos reuníamos e ali sentamos. Idem. Ibidem, II,11,25, 34. p.79-80.
123
Agostinho reconhece sinceramente ter chegado ao que era, através de sua mãe. Em testemunho dos
sentimentos para com ela, nessa época, vem a propósito ler o que diz no diálogo De ordine, escrito poucos
dias após o De Beata Vita: “É graças às tuas orações, eu o sei e dou testemunho sem hesitação, que Deus
me deu essas idéias de colocar acima de tudo a busca da verdade, de nada querer, de nada desejar, de nada
amar além disso. E não deixo de crer que é ainda a tua oração que nos fará adquirir esse tão grande dom,
que os teus méritos nos valeram desejar” (II, 20, 52). Essas homenagens, das mais belas jamais recebidas
por uma mãe, são plenas de sentido. Interessante notar que Agostinho na expressão: “a quem devo tudo o
que vivo”, emprega esse verbo: “o que vivo”, em vez de: “o que sou”. A expressão “tudo o que sou” como
que sugere um estado de passividade, fazendo supor ter ele chegado ao que era sem cooperação alguma da
parte dela. Na verdade, recebera de sua mãe, infinitamente mais do que a vida física. Por suas orações e
exemplo, ela legou-lhe vida intensa, no âmbito espiritual. Tudo o que vivo” indica atividade dinâmica,
entusiasmo e impulso para agir, provocados pela forte influência da mãe. Agostinho não foi por ela
levado a crer no cristianismo, mas durará toda a sua vida. A expressão usada por Agostinho mostra a que
ponto ele soube apreciar tudo o que recebera de sua mãe. Idem. Ibidem, 35. p. 80.
124
Navígio é o irmão mais velho de Agostinho. Devia ter chegado da áfrica em companhia da mãe. Participa
do grupo de Cassicíaco e aparecerá logo no primeiro colóquio, de modo um pouco surpreendente. É o
49
meus primos Lastidiano e Rústico, ainda que não houvessem freqüentado a escola de nenhum
Grammaticus.
127
Para o que planejávamos, julguei o seu bom senso poder nos prestar auxílio. Enfim,
também se encontrava presente o menor de todos pela idade, mas cuja inteligência, e o amor não me
leva a engano promete grandes coisas: Adeodato, meu filho.
128
Todos estão atentos ao que Agostinho vai falar:
“Com efeito, estamos lançados neste mundo como em mar tempestuoso e por assim
dizer, ao acaso e à aventura, seja por Deus, seja pela natureza, seja pelo destino, seja ainda
por nossa própria vontade”.
129
O mar é o próprio mundo, nossa existência, com suas
tempestades e seus medos. Somos lançados neste mar tempestuoso. O nosso barco quer
retornar à terra firme. O que garante este retorno à pátria tão almejada é o porto, ou seja, a
único do grupo que recusa compreender o que seu irmão mais moço diz (Idem. Ibidem II, 7). Tal a atitude
é estranha, pois pode-se notar como os jovens alunos de Agostinho sentem-se cheios de temor respeitoso
diante de mestre tão brilhante, e seguem imediatamente a sua opinião. Navígio, contudo, não parece
impressionar-se e trata-o com familiaridade fraterna. o hesita em contrariá-lo. Entretanto, o mais
freqüentemente mantém-se calado (Idem. Ibidem, II, 12). No item 14, encontramos Agostinho a provocá-
lo cordialmente a propósito de seu fígado doente. Nessa ocasião, Navígio replica com humor. Vê-lo-emos
ainda intervir de modo hesitante no cap. II, 19 e 20. Certamente, era ele bem menos dotado do que seu
irmão. O que talvez explique as poucas notícias dadas por Agostinho em suas obras, a seu respeito. Não
devia ter reinado grande intimidade entre eles. Traço algum de particular amizade salienta-se entre ambos.
Conforme nota de rodapé, 36, p. 81. SANTO AGOSTINHO. De Beata Vita.
125
Trigésio era um pouco mais velho do que Licencio. Acabara de servir como militar. Possuía espírito
menos vivo, menos espontâneo do que seu colega. Nas discussões, porém, demonstrava mais perseverança
e método. Gostava de História. Idem. Ibidem, 37. p. 81.
126
Licêncio era filho de Romaniano, o rico benfeitor de Agostinho, desde a sua juventude, em Tagaste. A
formação do jovem fora confiada pelo pai ao neoprofessor de Retórica. Sentia Agostinho grande amizade
por ele. Era esse jovem cheio de vivacidade. Inteligente e sutil, ataca, provoca, faz polêmicas, anima o
debate, mas por assim dizer, como gozador. Volúvel que era, logo percebe haver dito uma tolice, pretende
não a ter pronunciado (II, 15) manifestava muito gosto pela poesia. Mais tarde, em 395, comporá um
poema dedicado a Agostinho, que fez a análise da obra, na Carta 26, 1-6. Idem. Ibidem, 38. p. 81.
127
O ensino básico começava aos sete anos de idade. Qualquer pessoa podia improvisar-se como litterator,
professor das primeiras letras e do alfabeto. O mestre era, freqüentemente, escravo grego liberto. Reunia
em torno de si pequeno grupo de meninos. O segundo ciclo dava-se com o Grammaticus. Era um grau de
ensino mais alto, só reservado para uma elite. Nem todas as cidades possuíam esse ensino de grau
secundário. Agostinho, por exemplo, teve de deixar Tagaste e ir a Madaura a fim de estudar Gramática e
Retórica. O estudo literário prosseguia sob a direção de rector. Esse era o responsável pelo terceiro grau,
de nível universitário. O Rector ocupava na escola social nível claramente superior a seus colegas dos dois
graus anteriores. Idem. Ibidem, 39. p. 82.
128
Agostinho demonstrou sempre grande carinho para com Adeodato, “o filho de seu pecado”, nascido
quando o pai contava 18 ou 19 anos, em 372 ou 373, em Cartago. Quando os dois foram batizados, em
387, Agostinho contava com 32 anos e o filho, 15. O diálogo de Magistro, prova a excelente educação
recebida por Adeodato. Quando do Retorno da mãe do menino para a África Agostinho conservou consigo
o filho. Desde cedo, demonstrara ele sinais de extraordinária inteligência. Em Cassicíaco, apesar da pouca
idade, Adeodato participou do colóquio sobre a vida feliz (I, 6). Suas respostas muito agradaram a
Agostinho (II, 12 e II, 18). Adeodato morreu em Tagaste, quando o pai ainda não tinha sido ordenado
sacerdote, de causa e em data desconhecida, pelo ano 389. Idem. Ibidem, 40. p. 82.
129
SANTO AGOSTINHO. De Beata Vita, I, 1.
50
filosofia. uma valorização da filosofia, sendo ela porto, que vai levar até à pátria tão
almejada que é a vida feliz. A pátria é aquilo que todos querem encontrar, a felicidade.
Segundo Agostinho, existem três tipos de navegantes rumo à Filosofia.
A primeira é daqueles que, tendo chegado à idade em que a razão domina, afastam-se da terra, mas
não demasiadamente. Com pequeno impulso e algumas remadas chegam a fixar-se em algum lugar
de tranqüilidade, de onde manifestam sinais luminosos, por meio de obras realizadas na intenção de
atingir o maior número possível de seus concidadãos, para estimulá-los a virem ao seu encalço.
130
Aqueles que amadurecidos pela razão sabem se conduzir, se afastam da região
sólida e se conduzem à tranqüilidade dando o exemplo a ser seguido por outros.
A segunda espécie de navegantes, ao contrário da primeira é constituída dos que, iludidos pelo
aspecto falacioso do mar, optam por lançar-se ao longe. Ousam aventurar-se distante de sua pátria e,
com freqüência, esquecem-se dela. Se a esses, não sei por qual inexplicável mistério, sopra-lhes o
vento em popa, perdem-se nos mais profundos abismos da miséria. (...) Nessa segunda categoria,
entretanto, acontece que alguns, por não terem arriscado longe demais, são trazidos de volta ao
porto, graças a adversidades menos danosas. Tais, por exemplo, os que sofrem alguma vicissitude
em seus bens ou grave dificuldade em seus negócios. A esse contacto, acordam, de certa forma, no
porto de onde não mais os tirará nenhuma promessa, nenhum sorriso ilusório do mar.
131
Estes navegam longe da terra firme se deixando levar pelo vento que lhes parece
favorável sem saber que são conduzidos pelos prazeres e honras enganadoras. Parecendo-
lhes tudo tão agradável, por que procurar outros caminhos? Talvez estes navegadores não
tenham ido longe o suficiente para distinguir o caminho certo. Estes navegantes são
aqueles que por não terem nada a perder se guiam por falsos sábios e conduzem seus
destinos achando que irão encontrar o porto seguro.
Finalmente, há a terceira categoria de navegantes, a meio termo entre as outras duas. Compreende os
que, desde o início da adolescência ou após terem ido longe e prudentemente balançados pelo mar,
não deixam de dar sinais de se recordarem da doce pátria, ainda que no meio de vagalhões.
Poderiam então recuperá-la, de imediato, sem se deixar desviar ou atrasar. Freqüentemente, porém
acontece que perdem a rota em meio a nevoeiro, ou fixam astros que declinam no horizonte.
Deixam-se reter pelas doçuras do percurso. Perdem a boa oportunidade do retorno. Erram
longamente e, muitas vezes, correm até o risco de naufrágio. A tais pessoas sucede, por vezes, que
alguma infelicidade advém, em meio às suas frágeis prosperidades, como, por exemplo, uma
tempestade a desbaratar seus projetos.
132
Serão assim reconduzidos à desejada e aprazível pátria,
onde recuperarão o sossego.
133
130
Idem. Ibidem, I, 2.
131
Idem. Ibidem, I, 2.
132
CREMONA, Carlo. Agostinho de Hipona. p. 62-66. Esta metáfora colocada nos primeiros parágrafos do
De Beata Vita é, em suma, confidência pessoal de sua vida, que Agostinho faz a Mânlio Teodoro. Eis
como Carlo Cremona, nos apresenta: O relato recorda-nos certamente a Sexta sinfonia de Beethoven! A
51
Esta terceira classe, por sua vez é daqueles que se lançam ao mar ainda muito
jovens, e através da contemplação recordam da sua pátria querida. E assim reconduzem-se
a ela, mesmo através das adversidades do tempo, enfrentando ventos fortes e neblinas,
desviando-os do caminho e às vezes arriscando suas próprias vidas encontram o local
desejado, podendo então, regozijar da tranqüilidade da terra firme.
Podemos perceber através desta metáfora, que para Agostinho, a terra firme, ou
seja, o lugar da felicidade será encontrado por meio da filosofia. A meta ou o fim a ser
alcançado pelo navegante será retornar ao local de onde partiu para sua vivência total.
134
Percebe-se implicitamente, que a utilização da metáfora parece fazer uma comparação aos
conflitos internos vividos pelo ser humano, que seria a navegação no mar, ou mais, a
inquietação do filósofo que está à busca da certeza, da sabedoria, encontrando ao invés
atalhos, desvios, turbulências em sua caminhada de retorno ao porto. Porto, pátria, terra e
lugar seguro, são palavras que expressam a finalidade do que se procura. O porto é ponto
de saída e partida, mas também é o ponto de chegada. Angustiado no interior da alma e que
por si só, não encontra explicação nem o porquê de tanta dor e da incerteza dos passos que
se deve dar e também nem por onde e nem para onde se encaminhar. Onde está a verdade?
vida é semelhante a um mar, não igual para todos. As suas águas tranqüilas convidam-te a te distanciares
da tria e do porto. Águas sempre enganosas. De improviso, pode desabar uma tempestade. Tu te aforas,
então, por acaso. Elas te arrastam como náufrago para a pátria. Quem se afasta da pátria por mares
enganosos, também se não passa por tempestades, é infeliz. E seria caso de augurar-lhe temporal bem
cruel, pois nem sempre é desventura irreparável, se te devolve violentamente à terra firme. Mas ao
primeiro sinal de tempestade, temem e retornam apavorados ao porto. É a sua salvação! Vem depois, uma
terceira categoria de navegantes: aqueles que, seja como for, se encontram em alto mar e lutam com
vagalhões, tendo os olhos impedidos de divisar um farol distante, bem ao longe, que indica a pátria amada.
Ou, se névoa oculta aquela luz, ficam com os olhos a procurar uma estrela indicadora a declinar. Alguns,
tendo recuperado alguma efêmera segurança, retardam ainda o retorno. Os homens falam sempre de
tempestade como de desventura. No entanto, tempestades que reconduzem à margem segura,
precisamente graças à sua violência. Apud SANTO AGOSTINHO. A vida feliz diálogo filosófico. São
Paulo, Paulinas: 1993. p.70. Nota de rodapé, 8.
133
SANTO AGOSTINHO. De Beata Vita, I, 2.
134
Note-se que esta metáfora, ao fundar a universalidade do desejo da felicidade, aponta-o simultaneamente
como meta e tarefa. Se o percurso da tarefa culmina em escatologia: o homem que navega, comprazendo-
se embora no ato da navegação, não pode deixar de regressar ao porto donde zarpou, a meta será a sua
vivência total. Cf. Idem, Ibidem, nota de rodapé 4, p. 93.
52
Nas coisas da terra? Entre os seres humanos? Em Deus? A criatura procura seu criador sem
saber como se conduzir para encontrá-Lo.
Ficam os homens boquiabertos com os picos das montanhas, as ondas alterosas do mar, a vasta
correnteza dos rios, a amplidão do oceano e os movimentos dos astros: mas se deixam passar
despercebidos, não se deslumbram com eles mesmos. O homem não pode ter esperança de encontrar
Deus se não encontrar antes a si mesmo: pois esse Deus é “mais profundo que o meu próprio
íntimo”, e a experiência dele torna-se “melhor” quanto mais é “interior”. Acima de tudo, a tragédia
do homem é ser impelido a fugir “para o lado de fora”, a perder o contato consigo mesmo, a “vagar
para longe” de “seu coração”: “Estáveis bem diante de mim, porém eu me apartara de mim e, se não
podia encontrar a mim mesmo, muito menos encontraria a Vós.
135
A interpretação que segue é da autoria do filósofo e agostinólogo Etienne Gilson:
Entre aqueles que tendem à felicidade pelo conhecimento, alguns possuem a prudência de buscá-la
desde a sua juventude e a sorte de conseguir logo. Outros, ao contrário, prosseguem com paixão em
caminhos falsos e somente voltam a si mesmos sob o golpe de provações, por vezes, trágicas.
Outros, enfim, sem demonstrar aquela prudência, nem esta insensatez, enquanto erram ao longe,
fixam os olhos em direção à meta a atingir. Em meio a vagalhões, guardam a lembrança da doce
pátria, onde acabarão por aportar um dia. Sejam quais forem, estão todos ameaçados por obstáculo
temível, escolho a que guarda a entrada do porto: o orgulho e a paixão da vanglória.
136
Para Agostinho é necessário ser forte e evitar um enorme rochedo que se encontra
na entrada do porto.
137
Porque existe neste lugar uma luz enganadora que brilha de tal
maneira e faz pensar aos que chegaram ter encontrado a terra da felicidade. Pois, a
filosofia, seduz prometendo a satisfação dos desejos e detendo estas pessoas por longo
tempo. Estas pessoas por sua vez, se deliciando com o que encontram, chegam a desprezar
os outros navegantes. Aqueles que se dedicam à filosofia não devem procurar por honra e
glória. Pois este rochedo é frágil, racha e os engole em trevas profundas e a soberba deixa-
os longe da doce pátria.
Ora, que outro rochedo a razão indica como temível aos que se aproximam da filosofia do que esse,
da busca orgulhosa da vanglória? Pois esse rochedo é oco interiormente e sem consistência. Aos que
135
BROWN, Peter. Santo Agostinho uma biografia. Rio de Janeiro. Record: 2005. p. 205.
136
GILSON, Etienne. Introduction à l`étude de S. Augustin. I, p. 2. Apud. SANTO AGOSTINHO. A vida
feliz diálogo filosófico. São Paulo. Paulinas, 1993. p. 70. Nota de rodapé, 9.
137
Que o leitor medite esta descrição da vanglória: monte situado à entrada do porto da sabedoria, barrando a
entrada: e não menos perigoso para os que não deixaram o porto. Constitui obstáculo aos que chegam,
assim como atração aos que permanecem. Quem pode escapar a ele? É rochedo oco, onde se afunda, se
soçobra na obscuridade, nada mais se podendo ver com clareza. SANTO AGOSTINHO. De Beata Vita,
nota de rodapé, n. 10, p. 71.
53
se arriscam a caminhar sobre ele abre-se o solo a tragá-los e sorvê-los, submergindo-os em
profundas trevas. Desvia-os assim da esplêndida mansão que havia apenas entrevisto.
138
Nesta alegoria da navegação, Agostinho, continua dizendo que há vários tipos de
navegantes. aqueles que sempre estão no mar, mas que perderam o rumo devido à
mentira, ilusões e erros, mas devido à providência de Deus conseguiram voltar. Ele mostra
de maneira bem sucinta e chama a atenção de que na entrada do porto uma rocha,
significando a possibilidade do erro e da ilusão. Aquele que chega até o porto da filosofia,
portanto através da filosofia e da razão, começa a buscar a verdadeira sabedoria, a verdade
absoluta, ele tem que tomar cuidado para que sua busca não seja impulsionada pela
vaidade e vã glória, ou seja, o orgulho. Não pode ser o orgulho ou a vã glória que
impulsiona o ser humano a buscar a verdade e a sabedoria, prejudicará a pessoa e sua
filosofia mundana, que ao invés de ajudar a chegar à pátria almejada, que é a vida feliz, vai
se perder no meio da vã glória e ilusão.
Agostinho faz uma descrição de sua vida, a partir do momento em que se depara
com a filosofia. Apaixona-se pela filosofia aos dezenove anos, quando lê a obra Hortênsius
de Cícero. Para ele a verdadeira sabedoria está em Deus, mas foi nos estudos literários que
adquiriu amor pela sabedoria. Diz Agostinho, após ler Cícero: “inflamei-me de tal maneira
pelo amor da filosofia que imediatamente me entreguei ao seu estudo”.
139
Mesmo com o
passar dos anos, Agostinho jamais esqueceu este seu encontro decisivo com a Filosofia,
que mudou sua existência.
Esta alegoria da navegação vai introduzir seus convivas, no contexto da natureza da
alma e coloca a felicidade como um dom de Deus. Talvez a felicidade não seja uma mera
conquista humana! O que no ser humano que seja mais próximo e parecido com Deus?
É a alma. A questão da alma é aquilo que há de mais semelhante com Deus. E a felicidade,
138
Idem. De Beata Vita, I, 3.
139
Idem. Ibid., I, 4.
54
mesmo que não esteja claro, percebe-se que um vínculo com Deus na conservação da
mesma. É preciso buscar a felicidade na interioridade, pois é na natureza da alma, que
existe uma certa possibilidade de resposta, para estas questões.
Neste momento é interessante conhecer o conceito de Alma em Plotino, já que
Agostinho o possui como suporte filosófico, pois toda a discussão deste primeiro momento
é assunto plotiniano. O uno se quiser pensar, deve tornar-se Espírito, assim também, se
quiser criar um universo e um cosmo físico, deve tornar-se Alma. A Alma existe entre a
Matéria sensível e os veis super-sensíveis do Nous (Espírito) e do Uno. “Alma, mesmo
sendo a mais inferior é a autora de todas as coisas vivas. Fez o Sol, a Lua e as Estrelas,
bem como todo o mundo visível. É o fruto do Intelecto Divino”.
140
A natureza específica
da Alma não consiste no puro pensar, mas sim no dar vida a todas as outras coisas que
existem, ordenando-as, dirigindo-as e governando-as, coincidindo com o gerar e fazer
viver as próprias coisas. Na Alma existe um princípio de movimento e ela é movimento em
si mesma.
Para Plotino a Alma não é defeituosa e nem pecaminosa. E todas as almas derivam
da primeira, não só mantendo com ela uma relação de Uno e muitos,
141
mas também sendo
“distintas” da Alma suprema sem ser dela “separadas”. Apesar das diferenças entre cada
uma delas, o Amor faz a unidade com cada alma. As almas humanas individuais emergem
da Alma do mundo, uma alma individual retém uma memória de sua comunicação direta
com o Nous (Espírito). Como resultado desta unidade maior, a alma original pode voltar a
captar a experiência original do Nous. Esta capacidade para voltar a comunicar-se emerge
da superplenitude do Uno. A meditação filosófica, a prática do ascetismo e a contemplação
140
RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental, p. 336.
141
A Alma, portanto, pode entrar em qualquer parte do corpo, sem desviar-se da unidade do seu ser e, assim
pode tornar-se toda em tudo. Nesse sentido, pode-se dizer que a alma é divisa e indivisa, uma e múltipla.
Portanto, a Alma é Uno e muitos, ao passo que o Espírito é Uno-muitos, o Princípio primeiro é somente
Uno e os corpos são apenas muitos. REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia Pagã Antiga, v. 1,
p. 361.
55
da beleza ajudam a fazer a experiência mística, o êxtase. Dizem que Plotino conseguiu por
quatro vezes esta inspiração, durante os quatro anos em que Porfírio lhe conheceu.
O ser humano é fundamentalmente a sua alma. E todas as atividades da vida
humana, dependem da alma. A alma é impassível, capaz somente de agir. A própria
sensação para Plotino é ato cognoscitivo da alma. Com efeito, quando sentimos, o nosso
corpo sofrer uma alteração por parte de outro corpo nossa alma entra em ação, não no
sentido de que a alteração corpórea não lhe escapa, mas também no sentido de que julga as
alterações.
2.2 COLÓQUIO DO PRIMEIRO DIA
No primeiro dia Agostinho vai fazer a seguinte observação aos presentes:
“Será evidente a cada um de vós, que somos compostos de alma e corpo?”
142
“Todos os presentes, afirmam positivamente, exceto Navígio que declarou, não saber.”
143
É uma pergunta que quer estabelecer o dualismo, corpo e alma, um começo para o
estabelecimento da alma como algo mais próximo de Deus.
Sangalli nos diz:
No primeiro dia de debates, são introduzidas algumas observações em que os protagonistas
consentem, ou seja, faz-se a discussão prévia, em torno da composição do ser humano, ou melhor,
da sua definição de homem, que parece ser uma definição peripatética, contrapondo
surpreendentemente a definição plotiniana, para poder proceder à questão da vida feliz. O que se
quer saber é a felicidade, não em si mesma ou para outros seres, mas a felicidade do homem e para o
homem e daí, a prioridade lógico-ontognosiológica da pergunta: O homem é composto de uma
alma e de um corpo?.
144
Ele continua a explicação:
No conjunto de seu pensamento, percebe-se a prioridade do ser humano como alma que, unida a um
corpo, dele se apodera, usa e governa. Não é a simples unidade de duas partes, formando uma
terceira. O corpo também terá o seu lugar futuro, segundo o plano divino, na ressurreição. Mas o
142
Idem. Ibidem., II, 7.
143
Idem. Ibid., II, 7.
144
SANGALLI, Idalgo José. O fim último do homem da eudaimonia aristotélica à beatitudo agostiniana.
Porto Alegre: Edipucrs, 1998, p.157-158.
56
essencial e a verdade estão na alma, como o próprio processo de interiorização vai revelar. Assim, a
alma, além de ser a porta para a felicidade, o caminho pela qual nós nos reencontramos mediante os
sinais estabelecidos para a nossa peregrinatio, como a encarnação de Cristo, ela também é um dos
pilares de sustentação da filosofia cristã.
145
Podemos dizer que o corpo é a “casa” da alma.
As convicções filosóficas de Agostinho estão sustentadas pelo neoplatonismo e
para Plotino, a matéria não termina com o mundo corpóreo, existe também o mundo
incorpóreo. Como surgiu e qual o valor do sensível? Plotino entende a matéria como uma
imagem de espelho. A materialidade se parece com a imagem que se tem no espelho. Da
mesma maneira que uma criança quer tocar no espelho, porque viu sua própria imagem e
pensa que ao tocar a imagem se toca a si mesma, a matéria trata de captar o Bem que ela
não possui. Muito isolada, a matéria existe como mera aspiração à existência substancial.
“A matéria não pode obter o bem; é absoluta destituição de sentido, de virtude, de beleza,
de modelo, de princípio Ideal e de qualidade”.
146
No entanto, “a matéria toca a Idéia em
cada ponto, não com um contacto físico”.
147
A matéria, mesmo estando muito longe do
Uno e em seu ponto mais baixo, desempenha uma função importante nos efeitos do
cosmos físico. O cosmos físico é perfeito. Efetivamente, ele é cópia que imita o modelo e
não a imagem. Mas como imagem, revela-se mais bela imagem do original. “A matéria é
criada pela Alma e não tem realidade independente. Toda alma tem sua hora, quando esta
soa, ela deixa e penetra no corpo que lhe é adequado”.
148
A Alma cria a matéria, que é como que a extremidade do círculo de luz que se torna
obscuridade. Em seguida, dá forma a essa matéria, quase que expulsando sua obscuridade e
à medida do possível, recuperando-a para a luz. A primeira ação da alma consiste no
145
SANGALLI, Idalgo José. O fim último do homem da eudaimonia aristotélica à beatitudo agostiniana.
Porto Alegre: Edipucrs, 1998, p.157-158.
146
Enéadas, 2.4.16.
147
Idem., 6.5.8.
148
RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. p.338.
57
enfraquecimento da contemplação, a segunda na extrema redenção da própria
contemplação.
Para Plotino, a temporalidade nasce da própria atividade com que a Alma cria o
mundo físico. Colhida pelo desejo de transferir para um universo a visão de cima, a
Alma não se satisfaz com o ver tudo simultaneamente: sai da unidade, avança e se distende
em um prolongamento e em uma série de atos, que se sucedem uns aos outros, colocando
assim em sucessão de antes e depois daquilo que, na esfera do Espírito é simultâneo. A
alma cria a vida como temporalidade, como cópia da vida do Espírito, que está na
dimensão da eternidade”, segundo Plotino. E a vida como temporalidade é vida que
transcorre em momentos sucessivos e está voltada para momentos sempre posteriores e
carregada dos momentos transcorridos. A matéria é forma ínfima, o corpo é forma, o
mundo um jogo móvel de formas, a forma está vinculadas às Idéias do Espírito e o Espírito
ao Uno.
Agostinho continua o diálogo:
Assim, não duvidas deste dois pontos: possuis um corpo e uma alma. Mas estás em dúvida se não
existe outra coisa que seria para o homem um complemento de perfeição. Peço agora, que todos
estamos de acordo em reconhecer que não pode existir homem algum sem corpo e alma, dizem-me
para qual dos dois elementos desejamos o alimento? Para o corpo, exclamou Licencio. Os demais,
porém, duvidavam, perguntando-se de diversas maneiras como poderia o alimento ser necessário ao
corpo, quando o procurávamos para viver e a vida não depende senão da alma.
149
Para melhor esclarecer seus ouvintes, Agostinho faz uso da analogia do banquete,
que também era muito comum em seu tempo.
150
O que ele quer estabelecer? Que o ser
humano está em constante busca e que é dotado de corpo e alma. Por isso ele introduz a
questão dos alimentos. O corpo necessita de alimentos para continuar vivo e saudável! A
natureza, fixou aos corpos a dimensão à qual pode atingir, mas sequer atingiriam essa
dimensão se lhes faltasse o alimento. Constatamos facilmente esse fato nos animais. Todos
149
SANTO AGOSTINHO. De Beata Vita. II, 7.
150
Agostinho segue aqui o modelo dos diálogos clássicos gregos. Começa e desenvolve seu diálogo
filosófico, simbolicamente, em torno de uma mesa de festim (convivium). Lembra que, da mesma forma
como apetecemos a alimentação para o corpo, instala-se e desenvolve-se em cada um dos participantes o
desejo espiritual do conhecimento da verdade e da felicidade. Nota de rodapé, 45 p. 84. De Beata Vita.
58
sabem que os corpos vivos sejam quais forem, definham sem o alimento”.
151
Quando a
pessoa se alimenta, para qual parte vai o alimento, para a alma ou para o corpo? Por que
isto se torna um problema a ser discutido? Porque é a alma quem vida ao corpo. Se a
alma é quem vida e sustenta o corpo, o mais importante é a alma e o corpo, mas por
outro lado o que mantém o corpo vivo é o alimento. Na verdade é a alma quem mantém
animado o corpo.
Assim como o corpo precisa de alimento para viver, será que a alma também não
precisa de alimento? O alimento da alma é a ciência e o conhecimento. “E quanto à alma,
não possui seu alimento próprio? Não lhes parece ser esse alimento a ciência?”.
152
Assim
como uma pessoa que não come, corre o risco de definhar-se e morrer, isto também
acontece com a alma, que não possui sabedoria. Mônica, sua mãe acertadamente responde,
dizendo: “Não existe outro alimento para a alma que não seja o conhecimento das coisas e
da ciência”. Portanto, segundo Sangalli:
A fome das almas é proporcional ao grau de conhecimento via ciência e artes liberais. Mais
especificamente: a alma dos ignorantes está cheia de vícios e de neqüícias, ou seja, revela a própria
esterilidade, que o seu conteúdo é o próprio nada, o não-ser, o estado doentio, na mesma linha em
que o mal é a privação de um bem e não tem uma existência substancial. E nesse ponto assemelha-se
à concepção aristotélica de que o mal não existe em si, mas é o ente mesmo em sua imperfeição.
153
A infelicidade está vinculada à ignorância e Agostinho faz uma explicação
etimológica das palavras, revelando-se um fino psicólogo e moralista de visão muito
ampla. Reconhece os desvios no comportamento do indivíduo decorrentes das carências de
sua formação de base e das falhas na constituição de cada pessoa.
Pois, do mesmo modo como o corpo, privado de alimento, fica exposto a doenças e reações
malignas decorrentes de sua inanição, assim o espírito ignorante está impregnado de doenças
provenientes de suas carências. Os antigos justamente queriam que fosse chamada malignidade
(nequitia) essa decomposição que é mãe de todos os vícios, pois vem a ser o nada (nequidquam) e o
vazio (nihil). E a virtude contrária a tal vício denomina-se moderação, temperança ou frugalidade
(frugalitas). Esse termo vem de fruges e tem o significado de frutos. Evoca assim uma espécie de
151
Idem. Ibidem., II, 7.
152
Idem. Ibidem., II, 8.
153
SANGALLI, Idalgo José. O fim último do homem da eudaimonia aristotélica à beatitudo agostiniana,
p. 160. Cf. nota de rodapé.
59
fecundidade provinda no espírito graças a essa virtude. Por outro lado, nequitia vem da palavra nihil
(nada), que lembra a improdutividade. Com efeito, pode-se chamar de nada aquilo que se escoa,
decompõe, dissolve e não cessa de certo modo de se deteriorar e perder. Por isso, os homens sujeitos
ao vício da malignidade (nequitia) são chamados “perdidos”. Ao contrário, quando existe algo que
perdura, se mantém, não se altera e sempre fica semelhante a si mesmo, está a virtude. E o
elemento mais importante e particularmente belo da virtude é a chamada temperança ou frugalidade.
Todavia se tudo isso vos parece por demais obscuro para que possais compreender por enquanto,
concordareis com o seguinte: se os ignorantes possuem alma a ser nutrida, do mesmo modo como
acontece com o corpo, temos de distinguir duas espécies de alimento: um salutar e proveito, outro
malsão e funesto.
154
Abre Agostinho, nesta diferenciação ontológica entre frugalitas/nequitia, a
possibilidade de “abertura ao Ser confluências das graças e do desejo de Deus que brota no
íntimo da alma virtuosa. Até aqui, o desejo e a vontade de querer os alimentos saudáveis
para a alma que é o elemento catalizador e desencadeador, salvo a ação de alguma
“tempestade da Providência”, de uma vida virtuosa. Contudo, isso é necessário, mas não
suficiente. É preciso ir mais adiante para encontrar o verdadeiro e essencial alimento que
pode satisfazer plenamente a fome da alma humana. O que interessa a Agostinho é de que
maneira a pessoa deve procurar este alimento para que finalmente, possa repousar em paz e
estar saciado.
Depois de algumas considerações feitas ele coloca a questão central. Primeiro
Agostinho faz uma preparação. Como vimos, a analogia da navegação apresenta os dados
antropológicos.
Com a dualidade prepara seus convidados e diz que o alimento não é para
corpo, mas também a alma. E a pergunta principal do tema é lançada: “Queremos todos ser
felizes?”.
155
Esta pergunta é antiga e sempre atual. Pois como as gerações passadas, hoje
continuamos a fazer a mesma pergunta.
Segundo o professor Sangalli:
Agostinho talvez quisesse imitar Sêneca, quando fez a mesma pergunta: “Todos queremos ser
felizes?” (Beatos esse nos volumus?) Diante da evidente resposta, sucede a pergunta: “Será então
feliz quem tem o que quer?” A resposta singela é que se o homem quer bens e os tem é feliz: se, por
outro lado, quer coisas más, ainda que as tenha, é infeliz. E, citando um trecho do Hortensius, de
154
SANTO AGOSTINHO. De Beata Vita, II, 8.
155
Idem. Ibidem., II, 10.
60
Cícero, Agostinho conclui que ninguém pode ser feliz, se não tiver o que quer, mas também não
pode ser feliz quem tem tudo o que quer.
156
A felicidade está na medida certa, nem para a ausência e em para a abundância, mas
para descobrir esta verdade existencial é necessário possuir a sabedoria.
No primeiro capítulo, Agostinho, tinha colocado de modo breve a problemática
da razão e da vontade. Na busca da felicidade um papel fundamental da razão e da
vontade. Por isso ele retoma aqui novamente dizendo que é impossível à pessoa ser feliz,
sem ter o que quer. “E que vos parece: quem não tem o que quer é feliz? Não, responderam
em uníssono”.
157
Pois, não tendo o que se quer, a pessoa está contrariada, portanto é
preciso ter o que se quer. “Como? Mas então, quem tem o que quer será feliz?”
158
Mônica
interfere dizendo: “Não! Não basta ter o que se quer para ser feliz, mas é preciso desejar
ser o bem”. Minha mãe, nesse ínterim, tomou a palavra: ‘Sim, se for o bem que ele
apetece e possui, será feliz. Mas, se forem coisas más, ainda que as possua, será
desgraçado’”.
159
Agostinho elogia Mônica, dizendo que isto foi dito numa frase muito
simples, mas cero o grande pensador e orador, já havia dito. Que não basta querer o que
se quer se isto é um mau. Mesmo que se tenha posse do que se quer e possua o que se
deseja, se aquilo for um mau, não vai trazer a felicidade porque vai prejudicar. Então,
não basta ter o que se quer. É preciso ver o quê se está desejando. A função do livre-
arbítrio e da vontade é determinante em nossas escolhas. A vontade é a capacidade de
querer, mas não de querer qualquer coisa e sim de querer aquilo que é digno de ser
desejado.
Então, o que o homem precisa conseguir para ser feliz? Imagino eu que tal homem desejoso da
felicidade deva obter tudo quanto pode querer, à sua vontade? Evidentemente, disseram eles. Isso
significa ser necessário que se procure um bem permanente, livre das variações da sorte e das
156
SANGALLI. O fim último do homem da eudaimonia aristotélica à beatitudo agostiniana. p. 161-
162.
157
SANTO AGOSTINHO. De Beata Vita, II, 10.
158
Idem. Ibidem., II, 10.
159
Idem. Ibidem., II, 10.
61
vicissitudes da vida. Ora, não podemos adquirir à nossa vontade, tampouco conservar para sempre,
aquilo que é perecível e passageiro.
160
é feliz quem tem o que quer, mas se o que se quer for o bem e a nossa vontade e
o livre-árbitrio, são determinantes em nossa felicidade ou infelicidade.
Qual é o tipo de bem que poderá trazer a felicidade? Podem ser os bens materiais e
passageiros? Não! Não felicidade quando há muitos bens materiais. Porque o risco
de perder, pois são passageiros, efêmeros e mutáveis.“Aquele que possuísse bens em
abundância, rodeado de benefícios sem conta, supondo que pusesse limite a seus desejos e
que vivesse satisfeito com o que possuísse, no gozo honesto e agradável desses bens, seria
ele feliz? Não seriam essas coisas que o tornariam feliz, mas a moderação de seu
espírito”.
161
Se os bens materiais são passageiros e se a consciência do risco de perdê-
los, então se vive num constante receio. Viver num constante receio e com medo de perder
o que se tem, não torna uma vida feliz. Portanto, não são os bens materiais, seu desejo e
sua posse que tornam uma vida feliz.
Para Agostinho os bens materiais não são ruins. As coisas materiais são bens que
foram feitas por Deus. Não são más em si mesmas. O problema não está nas coisas, mas na
maneira como o ser humano se relaciona com elas. Qual o uso que faz delas, na escala de
valores e sua hierarquia. As coisas e as criaturas em si mesmas são um bem, que foram
chamadas à existência por Deus. Ele mesmo nos diz que “a verdadeira virtude consiste,
portanto, em fazer bom uso dos bens e males e em referir tudo ao fim último, que nos porá
na posse de perfeita e incomparável paz”.
162
Resta outro tipo de bem. “Por conseguinte, estamos convencidos de que, se alguém
quiser ser feliz, deverá procurar um bem permanente, que não lhe possa ser retirado em
160
Idem. Ibidem., II, 11.
161
Idem. Ibidem., II, 11.
162
SANTO AGOSTINHO. De Civitates Dei, XIX, 10.
62
algum revés de sorte”.
163
Só pode ser feliz quem tem o que quer e se o querer for um bem e
se este bem for imutável. Neste diálogo o que faltou foi um aprofundamento sobre o bem,
mas Agostinho trata desta questão posteriormente em sua obra De Natura Boni, no
início há uma passagem muito clara para entender qual o sentido deste bem.
Deus é o supremo e infinito bem, sobre o qual não outro: é o bem imutável e portanto,
essencialmente eterno e imortal. Todos os demais bens naturais tem nele a sua origem, mas não são
de sua mesma natureza. O que é da mesma natureza que ele não pode ser mais que ele mesmo.
Todas as demais coisas, que foram feitas por ele, não são o que ele é. E posto que somente ele é
imutável, tudo o que fez do nada está submetido à mutabilidade e à mudança. É tão onipotente, que
do nada, isto é, do que não tem ser, pode criar bens grandes e pequenos, celestiais e terrestres,
espirituais e corporais (...) Daí que todos os bens concretos particulares (...), qualquer que seja o seu
grau na escala dos seres, tem em Deus o seu princípio ou a causa eficiente. Por
outra parte
,
toda
natureza, em si mesmo é considerada sempre um bem: não pode provir mais que do supremo e
verdadeiro Deus, porque todos os bens, os que por sua excelência se aproximam ao sumo Bem e os
que por sua simplicidade se afastam dele, todos tem o seu princípio no Bem supremo.
164
Deus é o supremo Bem.
Continuando o diálogo, Agostinho faz a pergunta: “Então, qual a vossa opinião? É
Deus eterno e imutável? Eis aí uma verdade tão certa que qualquer questão se torna
supérflua. Logo, quem possui a Deus é feliz! (Deum igitur, qui habet beatus est).
165
A
pessoa é feliz na medida em que tem a posse de Deus, mas quem tem a posse de Deus?
Agostinho continua provocando seus convidados com perguntas. Quem possui a Deus?
Possui a Deus quem vive bem. Quem faz o que Ele quer e quem não tem espírito impuro.
“Resta-nos apenas procurar uma coisa: quem entre os homens possui a Deus? Pois, sem
dúvida, tal homem será feliz. Dizei, por favor, qual o vosso pensamento sobre esse ponto.
Licencio opinou: Possui a Deus quem vive bem. Possui a Deus quem faz o que Deus quer
que se faça, disse Trigésio. Adeodato, o mais jovem de todos, sugeriu então: Possui a Deus
163
SANTO AGOSTINHO. De Beata Vita, II, 11.
164
SANTO AGOSTINHO. De Natura Boni I, p. 979 apud. SANGALLI, Idalgo José. O fim último do
homem da eudaimonia aristotélica à beatitudo agostiniana. Porto Alegre. Edipucrs: 1998. p. 166.
165
Idem. De Beata Vita, II, 11.
63
quem não tem em si o espírito imundo”.
166
Agostinho ouve estas respostas e diz que é
tarde, é melhor deixar esta questão para o outro dia.
Mas retoma a questão dos acadêmicos.
167
É interessante, pois parece que surge do
nada, mas na verdade está tudo interligado.
Se é evidente, como a razão nos demonstrou pouco, não poder ser feliz quem não possui o que
deseja; e de outro lado ninguém procura o que não deseja encontrar; como então se explica que os
acadêmicos estejam sempre à procura da verdade? Porque eles a querem encontrar, mas por método
infalível, a fim de a poder descobrir. E contudo não a descobrem! Segue-se, portanto, e não são
felizes. Ora, ninguém é sábio, se não for feliz. Logo, o acadêmico não é sábio.
168
Por que ele retoma esta questão? Porque parece que a felicidade está vinculada à
questão da verdade e sabedoria. Ou seja, se a vida feliz é possuir o que se quer, então o
acadêmico nunca vai ser feliz, por estar numa contínua busca. A busca da verdade para ser
feliz é diferente da busca da verdade apontada pelos acadêmicos. Mônica mais uma vez
uma explicação sobre a questão.
Sorri para minha mãe. Ela, então, com uma liberdade não possuída pelos outros, deu como que uma
ordem para que fosse tirado da dispensa o que falava na ocasião: Dize, pois, e explica-nos quem são
esses acadêmicos e o que pretendem eles. Expliquei, breve e claramente, a fim de que ninguém
ficasse sem os conhecer. E ela conclui então: Tais homens são uns epiléticos (caducarii)! Servira-se
de palavra vulgar, com a qual são designadas as pessoas vítimas desse mal. Ao mesmo tempo
169
levantou-se para se retirar. Quanto a nós, satisfeitos e joviais, também nos retiramos, pondo fim à
nossa discussão.
170
Após estas palavras, todos retiram-se.
166
Idem. Ibidem, II, 12.
167
Os acadêmicos a que se alude aqui são sobretudo os da terceira seita desse nome, os da Nova Academia.
Foram fundados por Carnêades (213-129 a.C.). No diálogo contra os acadêmicos (II, 5, 11, 12),
encontramos breve exposição de suas teorias. Carneadas pensava que a um sábio é permitido aprovar
alguma opinião verossímil, sem que se deva a ela prender pessoalmente nenhuma afirmação. Deviam
contentar-se apenas com probabilidades. Fora estabelecida uma graduação que permitia ao espírito não
admitir verdade alguma de ordem absoluta. SANTO AGOSTINHO. De Beata Vita. Nota de rodapé, 56, p.
87.
168
Idem. De Beata Vita, II, 13.
169
Idem. Ibidem., II, 16.
170
nica nunca lera os filósofos e nesta passagem não denota estima alguma por eles. Quando participava
nas discussões, todos se alegravam com a sua presença. Às subtilezas dos jovens, ela acrescentava uma
nota de bom senso e muitas vezes de piedade cristã, o que ajudava a dar verdadeiro sentido aos colóquios.
Vêmo-la aqui, com uma simples palavra vulgar, desembaraçar-se de toda uma escola filosófica. Após ter
denominado os acadêmicos de caducarii (do verbo cadere: os que caem pelo mal da epilepsia), parece ela
um tanto apressada, pois levanta-se e retira-se logo. Era costume entre os romanos suspender suas
assembléias, quando um epiléptico acometido de seu mal, caía ao solo. Também aqui vemos o encontro
suspender-se, ao ser feita menção a eles. De Beata Vita, nota de rodapé, 57. p. 88.
64
2.3 COLÓQUIO DO SEGUNDO DIA
Agostinho retoma a questão de quem possui a Deus. Ele conclui de que as três
respostas dizem a mesma coisa. “Logo, as três opiniões emitidas coincidem em uma
só!”.
171
Quem é feliz? Quem possui a Deus, vive bem, faz o que Ele quer e quem não tem
espírito impuro.Viver bem significa fazer aquilo que Deus quer que se faça, buscando-O
em primeiro lugar, então a vida se torna feliz, por ser orientada pelo próprio Deus.
Como um bom pedagogo, Agostinho, vai mostrando, perguntando e o diálogo vai
se tornando mais profundo e interessante. Ele usa uma estratégia interessante, dizendo que
todas as colocações estão meio estranhas. Pois, anteriormente, foi dito que os acadêmicos
não podem ser felizes. E todos foram concedendo uma porção de respostas, mas parece que
é feliz quem possui a Deus, no entanto é uma resposta incompleta. É preciso
redimensiona-la. “Proponho-vos agora uma pequena questão: Quer Deus que o Homem O
procure? (Velitne Deus ut homo Deum quaeret?) – Todos deram o seu assentimento.
Pergunto-vos ainda: Podemos dizer que quem busca a Deus, leva vida má? De modo
algum, responderam eles. Então, atendei ainda a esta terceira questão: Pode o espírito
impuro procurar a Deus?”.
172
Mônica faz o seguinte comentário: “Ninguém pode chegar a
Deus sem o ter procurado antes!”.
173
Agostinho fica satisfeito com o comentário.
“Contudo, aquele que ainda está à procura de Deus, não chegou até Deus, também se vive
bem. Portanto, nem todo o que vive bem, possui, por isso a Deus”.
174
Novamente Mônica
interfere:
171
Idem. De Beata Vita, III, 18.
172
Idem. Ibidem., III, 19.
173
Idem. Ibidem., III, 19.
174
Idem. Ibidem., III, 19.
65
Parece-me que não ninguém que não possua a Deus. Entretanto, aquele que vive bem possui a
Deus como um amigo benévolo (habet Deus propitium), e quem vive mal, como alguém que lhe é
distante (infestum). Neste caso, fizemos mal ontem em concordar que é feliz todo aquele que possui
a Deus. Isso, caso for verdade que todos O possuam. Pois, na verdade, vemos que nem todos são
felizes. Institui ela: Acrescenta então o termo “benévolo” (adde, ergo, propitium) (Isto é: será feliz
quem possui a Deus como amigo.)
175
No parecer de Sangalli, Agostinho vai concluir com a distinção de três modos de
viver:
Quem encontrou Deus e tem-NO favorável é feliz: quem procura Deus, tem-NO favorável, mas
ainda não é feliz; pelo contrário, quem se afasta de Deus, por vícios e pecados, não não é feliz
como não vive com o favor de Deus. Mas tal distinção não se sustenta, pois o princípio da não
contradição seria violado, embora Agostinho pense dialeticamente é insuficiente na consideração da
felicidade, que existe a posse daquilo que é a sua condição de possibilidade de existir. A procura de
Deus pelo esforço virtuoso, sem separar a especulação da ação, e ao encontrar um Deus
Misericórdia, Agostinho irá falar em Deo frui.
176
Na alegoria da Navegação existe a idéia de afastamento. Por que o ser humano se
afasta de Deus? “Não nenhuma outra realidade que torne a mente cúmplice da paixão a
não ser a própria vontade e o livre-arbítrio”.
177
Mônica afirma que não existe ninguém que
não possua a Deus. Uma coisa é possuir do ponto de vista ontológico
178
e outra é possuir
do ponto de vista ético-moral. É possível que o ser humano se afaste de Deus do ponto de
vista ético. Mas do ponto de vista ontológico não é possível. A criatura humana não pode
existir sem o criador, pois seu ser está ligado a Deus e a existência existe porque Deus
sustenta o seu existir. Existe a presença sobrenatural que é a vida da graça e a participação
na vida divina, mas há também a presença natural que é a presença ontológica.
A posição central de Agostinho é, não obstante, estável e clara: a graça é necessária ao livre-arbítrio
do homem para lutar eficazmente contra os assaltos da concupiscência desregrada pelo pecado e
para ser merecedor diante de Deus. Sem a graça, pode-se conhecer a Lei; com ela, pode-se, além
disso, consumá-la. Iniciativa divina, a graça precede, portanto, em nós, qualquer esforço eficaz para
nos reerguermos. Sem dúvida, ela nasce da fé, mas a própria é uma graça. E por isso que a
precede as obras, não no sentido de que as dispensa de consuma-las, mas porque as boas obras e seu
mérito nascem da graça, e não inversamente. Por outro lado, não se deve esquecer que a graça é um
socorro outorgado por Deus ao livre-arbítrio do homem; ela não o elimina, portanto, mas coopera
com ele, restituindo-lhe a eficácia para o bem, da qual o pecado o havia privado.
179
175
Idem. Ibidem., III, 19.
176
SANGALLI, Idalgo José. O fim último do homem da eudaimonia aristotélica à beatitude agostiniana,
p. 171.
177
SANTO AGOSTINHO. O Livre-Arbítrio, II, 11
, 21.
178
Prova da existência de Deus, fundada na idéia de um ser necessário. Dicionário breve de Filosofia, p.
124.
179
GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo. Martins Fontes: 2001. p.155.
66
Toda criatura está vinculada ao criador. O ser humano pode afastar-se do criador
eticamente através do uso de seu livre-árbitrio, mas do ponto de vista ontológico ele
continua tendo vínculo necessário com Deus. É isto que Mônica lembra e Agostinho
concorda com ela. Porém é necessário deixar claro qual é o tipo de presença. Não existe
ninguém que não tenha Deus! Não existe ninguém que Deus não esteja com ele. A pessoa
pode afastar-se de Deus devido ao mal que pratica, mas Deus não é o autor do mal, “pois, o
mal não poderia ser cometido sem ter algum autor. Com efeito, não existe um e único
autor. Pois cada pessoa ao cometê-lo é o autor de sua má ação”.
180
É necessário encontrar Deus para ser feliz! Isto significa estar voltado eticamente
para Ele e não somente ontologicamente! A ligação ontológica não é garantia de beatitude
e felicidade! Todo aquele que busca a Deus tem o benévolo, mas ainda não é feliz! Aquele
que busca a Deus, está no caminho, mas não da posse, ainda não é feliz. Todo aquele
que se afasta de Deus, devido ao seu vício e pecado, não somente não é feliz, mas nem
sequer goza da benevolência de Deus. “Acontece, porém, que quem está em busca, ainda
não possui o que deseja. Decorrerá daí que a pessoa ainda não possuidora do ambicionado
será feliz, coisa que ontem nos pareceu absurdo”.
181
Depois que chegam a esta conclusão
encerrou o assunto. Mas Agostinho faz um jogo dialético, até agora ele está falando de
vida feliz, concluindo que é feliz quem tem a Deus como benévolo e como amigo junto
com Ele. “Todo o que encontrou a Deus e O tem benévolo é feliz. Todo o que ainda busca
a Deus, tem-nO benévolo, mas ainda não é feliz. E, enfim, todo o que se afasta de Deus,
180
SANTO AGOSTINHO. O Livre-Arbítrio, I, 1,1.
181
SANTO AGOSTINHO. De Beata Vita, III, 20.
67
por seus vícios e pecados, não somente não é feliz, mas nem sequer goza da benevolência
de Deus”.
182
No final do segundo dia de discussão, Agostinho conclui dizendo: “Todo aquele
que não é feliz, é infeliz. Donde seguiria a necessidade de ser considerada infeliz a pessoa
que possuindo a Deus de modo benévolo, pelo fato mesmo de estar em busca de Deus, não
é feliz”. Ou acaso como diz Túlio:
183
Chamamos de ricos, os proprietários de muitas terras, ao passo que consideramos como pobres
aqueles que possuem todas as virtudes. Refleti, por conseguinte, ainda nisto: se é verdade que seja
infeliz quem se encontra na indigência, será igualmente verdade que todo infeliz seja indigente?
Seguir-se-ia daí, portanto, que a infelicidade consiste tão somente na carência ou indigência.
Opinião essa que ao ouvi-la ser exposta, pensastes que eu a aprovaria. Pelo que, peço-vos reunir-
vos, sem festio, amanhã, em volta desta mesma mesa. Todos declaram que o fariam como máximo
prazer, então levantamo-nos dali.
184
2.4 COLÓQUIO DO TERCEIRO DIA
“No terceiro dia de nossos colóquios, dissipou-se a nebulosidade matinal que nos
obrigara a instalar-nos na sala de termas. Após o meio-dia, o céu tornou-se puríssimo.
Decidimos com agrado descer até o campo próximo. Tendo cada um se instalado
comodamente, prosseguimos o último tema do colóquio da véspera”.
185
Agostinho, não
fica somente nos conceitos anteriores, mas introduz novos para caracterizar a felicidade.
Neste dia ele será o mestre, aquele que vai ensinar e explicar as razões cabíveis sobre a
felicidade. O grupo não faz tantas interferências, mas fica o maior tempo ouvindo e
absorvendo sua sabedoria, como se encontrassem algo novo e diferente.
Foi dito por minha mãe que a infelicidade não é outra coisa senão carência. E todos nós
concordamos que os indigentes é que são infelizes. Contudo, não chegamos a esclarecer, ontem, a
182
Idem. Ibidem., III, 21.
183
Nova citação do Hortensius de Marco Túlio Cícero. Ao referir-se a Cícero, aqui como nas outras ocasiões,
nesta obra, Agostinho serve-se do prenome do grande orador: Túlio. De Beata Vita. Nota de rodapé, 62
p. 89.
184
SANTO AGOSTINHO. De Beata Vita, III, 22.
185
Idem. Ibidem., IV, 23.
68
seguinte questão: todos são infelizes, necessitados de algo? Caso a razão chegue a nos demonstrar
que assim é, teremos encontrado quem seja feliz: a pessoa que não padece de indigência
alguma. Já
que quem não é
infeliz é feliz, será feliz quem não sofre necessidade. Isso caso fique confirmada a
identidade entre o que denominamos indigência e a infelicidade.
186
O mestre inverte a questão, vai falar da infelicidade afim de que possa concluir a
questão a sobre a felicidade. Pois não existe meio termo entre felicidade e miséria.
Agostinho faz a seguinte comparação:
Existe meio termo entre um ser morto e um ser vivo? Não é toda pessoa um ser vivo ou um ser
morto? Penso que admite estar bem morto aquele que foi enterrado um ano? Ninguém respondeu
nada. Nesse caso, todo homem que não estiver enterrado há um ano, estará ainda vivo? Essa
conseqüência não se segue, retorquiu Trigésio. Também do fato de que todo indigente é infeliz, não
se segue que quem não estiver na indigência será feliz, visto que entre o feliz e o infeliz como entre
o vivo e o morto, não cabe estado intermédio.
187
Todos os presentes concordam na afirmação de quem não é feliz é infeliz. É
impossível uma pessoa estar meio viva ou meio morta. Não existe meio termo, portanto a
pessoa é feliz ou infeliz. “Entre esses diversos estados não há meio termo. Com efeito, todo
aquele que não é feliz é infeliz. E se todo o que não está morto é vivo, do mesmo modo,
evidentemente, todo o que não é insensato (stultus) é sábio”.
188
Se o oposto da felicidade é a infelicidade e a indigência, então a felicidade é a
plenitude. Mas indigência e plenitude de quê? Em que sentido? Ele retoma a questão do
alimento do ser humano. Serão os bens materiais causa da infelicidade? Não! Alguns vão
dizer que pessoas que possuem vários bens materiais, sabem se controlar e são felizes.
Mas o ser humano é insaciável, quanto mais tem mais quer. Dificilmente a pessoa
consegue controlar seu desejo de posse e de ter. Mas, mesmo se tivesse o autocontrole de
possuir, seria feliz pela moderação? Não! Não, se é feliz pela moderação e sim pela ciência
e conhecimento que se tem, que não vale a pena sofrer pelos bens passageiros. O que torna
186
Idem. Ibidem., IV, 23.
187
Idem. Ibidem., IV, 24.
188
Idem. Ibidem., IV, 28.
69
feliz a pessoa não é o autocontrole e nem a moderação, mas a sabedoria. O ser humano se
torna sábio na medida em que possui ciência e conhecimento de que deve se autocontrolar.
Agostinho começa a falar sobre o conceito estóico
189
de sabedoria.
Ninguém duvida agora de que quem se encontra na indigência seja feliz? E não precisamos indagar
se o sábio sofre de necessidades corporais, pois essas coisas não se fazem sentir na alma-sede da
vida feliz. A alma do sábio é perfeita: ora, ao que é perfeito nada falta. Ele se servirá de tudo o que
for necessário a seu corpo, e se estiver a seu alcance. E, caso contrário, a falta desses bens não
conseguirá abatê-lo. Posto que a característica do sábio é ser forte, e o forte nada teme. Assim, o
sábio não teme a morte corporal, nem os sofrimentos que não consegue expulsar, evitar ou retardar,
com a ajuda daqueles bens, de cuja posse pode acontecer ver-se privado. Entretanto, não deixará de
se servir honestamente desses bens, caso os possua. Desse modo, apresenta-se totalmente verdadeira
a máxima: É tolice suportar o que se puder evitar (Nam tu quod vitare possis, stultum admittere
est).
190
Segundo o comentário de Sangalli:
O sábio participa da verdadeira sabedoria e da felicidade, na medida em que ambas estão unidas no
íntimo de sua alma. O sábio assim se caracteriza, por não ater-se ao passageiro, instável, mas por
voltar o seu desejo para o duradouro. Nada o afeta, as necessidades corporais, as coisas exteriores,
pois delas não carece. Se possui bens materiais, deles faz bom uso; por outro lado, se não os possui,
não lhe fazem falta, pois não está submetida a sua alma às contingências das necessidades do corpo.
O que vem das sensações não o afeta. Como sábio, não teme as vicissitudes, pois nada lhe falta e se
não puder suprimi-las, como no caso da dor e da morte, as aceitará como inevitável condição
humana, sem se abalar. Se puder evitar o mal, deve querer evitá-lo e se não puder de todas as
maneiras evitá-lo, não será infeliz, pois tais contrariedades estão subordinadas à
sua vontade e não o
contrário. Esta vontade, como que soberana, está dirigida para aquelas coisas fixas, não passíveis de
lhe faltarem.
191
189
Sabemos que Cícero se tornara o divulgador, em latim, das filosofias gregas, em particular, do estoicismo
e do epicurismo, fundindo-os em ecletismo que lhe é característico. No De finibus bonorum et malorum, e
certamente também em “Hortênsio”, esses temas foram freqüentemente tratados. Agostinho, no presente
Diálogo que, contudo, é de inspiração decididamente cristã, adota sem hesitação essas idéias ao expor a
atitude do sábio diante dos bens materiais, e ao fazer consistir a felicidade na razão. Lamentará ele, nas
suas Revisões, de ter escrito, neste capítulo, que a felicidade reside unicamente na alma do sábio, seja qual
for o estado de seu corpo. Na realidade, corrige, ele, não existe senão uma vida que mereça ser chamada
feliz: a vida futura. De Beata Vita, Nota de rodapé, 68. p. 91.
190
A máxima citada é da autoria de Terêncio, famoso dramaturgo mico da Roma antiga. Publio Terêncio
Afer, nascido na África, como seu nome indica, fora trazido como escravo e libertado pelo senador cujo
nome adotou. São seis as comédias de Terêncio que chegaram até nós. A presente citação é tirada do
Eunuco”, ato 4, cena 6. Nas Confissões (I, 16, 25), Agostinho cita ainda essa mesma comédia, mas
para condenar o emprego das ficções corruptoras da mitologia, no ensino dos adolescentes. De Beata
Vita, nota de rodapé, 64, p. 90.
191
SANGALLI, Idalgo José. O fim último do homem da eudaimonia aristotélica à beatitude agostiniana,
p. 171-172.
70
Toda a ação do sábio
192
é dirigida pela sabedoria, conforme a visão de
Agostinho,“tudo aquilo que faz é conforme à regra da virtude e à lei divina da sabedoria,
de modo algum lhe podem ser arrancadas”.
193
Segundo Agostinho, o que causa a infelicidade não é tanto a falta dos bens
materiais, mas a estultícia e a ignorância, isto é a ausência do conhecimento.
O sábio evitará a morte e o sofrimento quando lhe for possível e conveniente. Deixando de o fazer,
manifestar-se-ia como infeliz. Não por esses maléficos lhe serem funestos, mas porque tendo tido a
possibilidade de os evitar, não o fez. Isso é sinal evidente de tolice. Desse modo, por não os ter
evitado, sua infelicidade viria não pelo fato de sofrer, mas sim por sua própria estultícia. E ainda,
caso o sábio não consiga evitar os males, após ter-se empenhado ativamente no limite do
conveniente, esses mesmos infortúnios inevitáveis, ao abaterem-se sobre ele, não o tornariam
infeliz.
194
O sábio sabe fazer bom uso de todas as situações em que se encontra, sejam elas
agradáveis ou desagradáveis.
Quando a falta do verdadeiro conhecimento e da sabedoria, a pessoa torna-se
infeliz, porque não sabe como proceder perante a vida e as suas situações. Na medida em
que consegue estabelecer, que indigência é ausência e ausência principalmente do alimento
da alma, os bens materiais ficam em segundo plano, pois o conhecimento e a sabedoria são
indispensáveis. A ciência é o alimento da alma e sem ela a pessoa torna-se infeliz.
Portanto, para ser feliz é necessário sair da ignorância e da estultícia, da indigência
intelectual e caminhar rumo à plenitude, que é o oposto da indigência, a indigência da
alma (animi egestas) não é, portanto, outra coisa do que estultícia (stultitia). E essa é o
oposto da sabedoria, como a morte o é da vida e a felicidade da infelicidade”.
195
Uma
192
Agostinho participava ainda, em grande parte, da mentalidade dos filósofos da Antiguidade a respeito do
sábio. Estas suas primeiras obras ressoam os ecos dessa filosofia, a qual pouco a pouco ele foi sublimando
e enriquecendo com os valores do cristianismo. O sábio, para os antigos, sobretudo para os estóicos, era o
homem perfeito e o mais equilibrado da humanidade. Alguém que não luta contra as paixões, porque
não as possui. Enquanto não chegar a isso, não terá atingido o cume da sabedoria. De Beata Vita, nota de
rodapé, 67. p. 91.
193
Idem. De Beata Vita, IV, 25.
194
Idem. Ibidem., IV, 25.
195
Idem. Ibidem., IV, 28.
71
verdadeira plenitude não pode ser confundida com abundância, pois plenitude é a medida
exata. Feliz quem é sábio e atingiu a sabedoria, porque sai da estultícia da ignorância.
Onde medida e proporção não existe nem a mais e nem a menos do necessário. se encontra
precisamente a plenitude. Termo esse que opusemos à indigência. E é preferível o emprego da
palavra ‘medida’ ao de ‘abundância’. Pois essa última traz certa idéia de afluxo e transbordamento,
algo em profusão. Ora, onde mais
do que é conveniente, constata-se falta de moderação, pois e
excesso ocasiona essa falta de medida.
196
Será que a felicidade está no gozo dos bens materiais? Muitas pessoas desfrutam
dos bens materiais e são felizes, embora este tipo de vida esteja sujeita a grandes perigos,
então Agostinho conta a história de Orata
197
. Era uma pessoa que possui a muitos bens
materiais, cumulado de riquezas, de luxo e de prazeres. Será que alguém ousaria dizer que
Orata poderia sofrer de alguma necessidade?
Ele, a quem nada faltava do que contribui ao deleite, ao encanto da vida, ao gozo de perfeita saúde?
Possuía em abundância propriedades rendosas e amigos muito prestativos. Servia-se judiciosamente
de tudo para seu bem-estar. Em breves palavras: feliz sucesso coroava todos os seus
empreendimentos e planos. Contudo, poderia dizer alguém dentre vós: quem sabe, não tenha ele
querido possuir mais do que já tinha? Não o sabemos. Parece-vos que lhe faltava alguma coisa?
198
Orata, homem com muita inteligência na administração dos seus bens, tinha
consciência que a qualquer momento sua fortuna poderia perder-se, devido as tantas
vicissitudes da vida. “Pois, como dizem, era homem de não pouca inteligência, que por
inesperado revés de fortuna viesse a perder todos esses bens. Com efeito, não lhe seria
muito difícil compreender que todos aqueles benefícios, quão vultuosos fossem, estavam
na dependência dos caprichos da sorte”.
199
196
Idem. Ibidem., IV, 32.
197
Ainda uma vez, Agostinho refere-se ao “Hortênsio”, citando nesta passagem em que é apontado o
exemplo do rico Orata. O fragmento em questão é o n. 76, da edição de Muller. De Beata Vita nota de
rodapá, 69, p. 91.
198
Idem. Ibidem., IV, 26.
199
Idem. Ibidem., IV, 26.
72
Escutando o caso deste homem milionário, perguntamos onde está a felicidade?
Nos bens materiais? Na Sabedoria? Na indigência? A resposta nos vem do próprio
Agostinho.
Esse ricaço estava justamente impedido por suas próprias qualidades naturais de chegar à vida feliz.
Quanto mais inteligente fosse ele, mais perceberia que poderia perder todos os seus bens. Esse
receio o perseguiria e verificar-se-ia o dito popular: A um homem sem segurança, seu próprio mal o
torna conformado. (Infidum hominem, malo suo esse cordatum.)
200
Portanto, a felicidade não se encontra definitivamente somente na posse dos bens
materiais. Este homem, não se encontrava na indigência, mas também não estava feliz, por
ter consciência da efemeridade dos bens materiais. Como resolver a questão da felicidade?
Agostinho mais uma vez procura mostrar aos seus amigos, qual é o verdadeiro problema.
Orata, sentia-se em segurança, mas não se achava na indigência. E é aqui que se encontra a questão.
Com efeito, encontrar-se na indigência consiste em não ter o que se necessita; e não no receio de
perder o que se possui. Ora, esse homem de quem falamos não se encontrava na indigência, mas era
infeliz porque temia a perda de seus bens. Portanto, não será exato dizer que todo homem infeliz
está na carência de alguma coisa.
201
O que faltava a este homem era exatamente a sabedoria, segundo Santo Agostinho:
A sabedoria é a medida da alma, pois ela é, evidentemente, o contrário da estultícia. Ora, a estultícia
é indigência, e esta tem como contrário a plenitude. Logo, a sabedoria é plenitude, e a plenitude
implica a medida. Portanto a medida da alma encontra-se na sabedoria (Sapientia igitur plenitudo.
In plenitudinem autem modus. Modus igitur animi im sapientia). Donde o famoso aforisma que
obteve justificada glória, por ser de máxima utilidade para a vida: Nada haja em demasia (Ut ne quid
nimis).
202
Em sua obra O Livre-Arbítrio, Agostinho vai discorrer sobre a importância da
Vontade no ser humano.
Com efeito, haveria alguma coisa que dependa mais da nossa vontade do que a própria vontade? Ora,
quem quer que seja que tenha esta boa vontade, possui certamente um tesouro bem mais preferível do
que os reinos da terra e todos os prazeres do corpo. E ao contrário, a quem não a possui, falta-lhe, sem
dúvida, algo que ultrapassa em excelência todos os bens que escapam a nosso poder. Bens esses que,
se escapam a nosso poder, ela, a vontade sozinha, traria por si mesma. Por certo, um homem não se
considerará muito infeliz se vier a perder sua boa reputação, riquezas consideráveis ou bens corporais
de toda espécie? Mas não o julgarás, antes, muito mais infeliz, caso tendo em abundância todos esses
200
Idem. Ibidem., IV, 26.
201
Idem. Ibidem., IV, 27.
202
Idem. Ibidem., IV, 32.
73
bens, venha ele a se apegar demasiadamente a tudo isso, coisas essas que podem ser perdidas bem
facilmente e que não são conquistadas quando se quer? Ao passo que, sendo privado da boa vontade
bem incomparavelmente superior –, para reaver tão grande bem, a única exigência é que o queira!
203
E para concluir esta discussão, Mônica faz um brilhante comentário como se tirasse
da boca do próprio Agostinho, a conclusão final. “Porque esse Orata ainda que fosse rico e
como dizíeis, nada ambicionasse a mais, acontece que pelo fato mesmo de temer a perda
de todos os seus bens, encontrava-se na indigência. Faltava-lhe justamente a sabedoria. E,
então, haveríamos de declarar ser alguém indigente por lhe faltar dinheiro e riquezas e não
por lhe faltar a sabedoria?” Agostinho fica surpreso com a conclusão feita por sua mãe,
pois ele havia pesquisado nos filósofos antigos
204
este assunto para dar uma resposta bem
filosófica, mas sua mãe que entendia muito pouco de filosofia encerra este assunto. “Eu
mesmo não me sentia pouco satisfeito, especialmente por ter sido minha mãe quem
enunciara um dito tão importante como conclusão. Havia eu justamente preparado essa
afirmação para o final tirada dos mais notáveis escritos dos filósofos”.
205
Sangalli, faz o seguinte comentário sobre esta passagem:
O sábio é quem possui sabedoria e quem não carece de nada. A indigência da alma é a estultícia, por
ser ela o contrário da sabedoria. Então, não é o temor da perda que torna o homem infeliz, mas sua
estultícia. E a estultícia é a verdadeira e autêntica indigência. É o não ter, o nada, que é possuído
pelo estulto. Aquele que vive na abundância não pode ser sábio, por tomar como oposto da
indigência ou da necessidade a posse da riqueza material. O vazio, o nada, a esterilidade permanece
na carência de sabedoria não satisfeita pelos bens da fortuna. O ignorante, como não-ser,
mergulhado nos vícios, perde-se na procura e posse daquilo que é caduco e não-duradouro.
206
Se alguém quer ser feliz é preciso possuir a sabedoria, Santo Agostinho nos aponta
um dos caminhos possíveis:
Ser feliz não é outra coisa do que não padecer necessidades e isso é também ser sábio. Agora, se me
perguntardes o que vem a ser a sabedoria, conceito cuja análise e aprofundamento a nossa razão
203
SANTO AGOSTINHO. O Livre-Arbítrio, III, 12, 26.
204
Nesta passagem, temos bom testemunho de como Agostinho preparava com cuidado seus trabalhos
didáticos. Diz-nos aqui, expressamente, haver pesquisado nos livros dos filósofos para chegar à conclusão
final do colóquio. Acontece, porém, que foi sua mãe quem, espontaneamente, pronunciou o importante
dito conclusivo. De Beata Vita. Nota de rodapé, 70, p. 92.
205
Idem. Ibidem, IV, 27.
206
SANGALLI, Idalgo José. O fim último do homem da eudaimonia aristotélica à beatitudo agostiniana,
p. 173.
74
tem-se consagrado até o presente quanto poder dir-vos-ei que a sabedoria é simplesmente a
moderação do espírito (modus animi). Isto é, aquilo pelo que a alma se conserva em equilíbrio, de
modo a não se dispersar em excessos ou escolher-se abaixo de sua plenitude. Sem essa medida, a
alma atira-se em excesso na direção dos prazeres, da ambição, do orgulho e de todas as outras
paixões do mesmo gênero. Por elas, os intemperantes, e portanto infelizes, imaginam alcançar
alegria e poder. Ora, eles encontram-se, na verdade, diminuídos pelas baixezas, pelo medo, tristeza,
cupidez e outras paixões. Sejam quem forem, esses infelizes reconhecem eles próprios que tais
coisas fazem a infelicidade do homem. Ao contrário, quando alguém tendo encontrado a sabedoria,
faz dela o objeto de sua contemplação (...) e a ele se apega, sem se deixar seduzir por coisas vãs, sem
se voltar mais para as aparências enganosas, cujo peso arrasta e submerge em profunda objeção,
tudo se desfaz, por estar ele abraçado a seu Deus (amplexus a Deo suo). Então, essa pessoa não teme
mais a imoderação, nem carência alguma, e por conseguinte nenhuma infelicidade. Concluamos
pois, que toda pessoa para ser feliz deve possuir sua justa medida, isto é, possuir a sabedoria.
207
De fato a maior indigência é a falta de sabedoria. Agostinho faz um lindo elogio à
sua própria mãe,
208
por perceber sua união com a sabedoria divina e a capacidade de fazer
uma boa conclusão, mesmo sem ter estudado filosofia. “Percebeis agora, concluí, qual a
diferença existencial entre conhecer múltiplas e diversas doutrinas e ter o espírito
inteiramente voltado para Deus? Pois essas palavras que acabamos de admirar, de onde
procedem elas a não ser daquela divina fonte?”.
209
A partir deste momento o diálogo sobre
a vida feliz vai tomando nova direção depois da pergunta: “Mas que sabedoria será digna
desse nome, a não ser a Sabedoria de Deus?”
210
e segundo De Boni, “a linguagem, até
aqui, não se diferencia da dos estóicos. Mas, então de repente, uma guinada, quando o
autor pergunta se existe alguma sabedoria que mereça ser tida como tal, a não ser a
sabedoria de Deus”.
211
É feliz quem é sábio, porque possui a sabedoria de Deus. A Sabedoria que se fez
carne e habitou entre nós, isto é o próprio Filho de Deus quem se encarnou. Mas quem é o
207
SANTO AGOSTINHO. De Beata Vita, IV, 33.
208
Agostinho não poupa elogios à sua mãe neste Diálogo, assim como no De Ordine. Encontramos aí, no
Livro II, I, a explicação desses louvores: “Observando-a de perto, durante nossa vida em comum, notei
seus dons naturais, seu ardente amor pelas coisas divinas. Mas foi, sobretudo, no dia do meu aniversário,
no correr de importante discussão que anotei num pequeno livro (De Beata Vita), que tomei consciência a
que ponto seu espírito estava perfeitamente apto à verdadeira filosofia”. De Beata Vita. Nota de rodapé
71, p. 92.
209
Idem. De Beata Vita, IV, 27.
210
Idem. Ibidem., IV, 34.
211
BONI (org.). Idade Média: Ética e política, p. 292. Apud. SANGALLI, Idalgo Jose. O fim último do
homem da eudaimonia aristotélica à beatitudo agostiniana. Porto Alegre. Edipucrs: 1998. p. 175.
75
Filho de Deus? Não é o próprio Deus? Portanto Deus é sabedoria. É feliz quem tem a
sabedoria, mas a sabedoria é o próprio Filho de Deus, que é Deus.
Aprendemos pela autoridade divina, que o Filho de Deus é precisamente a Sabedoria de Deus (1Cor
1, 24) e o Filho de Deus, evidentemente, é Deus. Por conseguinte, é feliz quem possui a Deus. [...]
Quem é o Filho de Deus? “Verdade!” Quem é aquele que não possui progenitor (patrem), a não ser
a Suma Medida? (o Pai). Logo, todo aquele que vier à Suma Medida pela Verdade, será feliz. E isso
é possuir a Deus na alma, gozar de Deus. Quanto às outras coisas criadas, Deus as possui, mas elas
não possuem a Deus.
212
A vida feliz é possível na medida em que uma unidade com o Pai por meio de
sua sabedoria encarnada que é o Filho e pela ação do Espírito Santo. Ou seja é feliz quem
consegue entrar em comunhão plena com a Trindade.
Segundo Sangalli:
O primeiro ponto indica um novo sentido para a sabedoria, ou seja, o rompimento com a sabedoria
grega, que era uma construção pelo esforço do homem e para o homem. Agostinho diz que
“aceitamos por divina autoridade, isto quer dizer, por revelação divina a atuação divina pela graça na
relação Criador-criatura, que o Filho de Deus é a sabedoria de Deus e o Filho de Deus é
seguramente Deus. Portanto, quem é feliz possui Deus. A novidade aqui não é a felicidade ser a
posse de Deus, exposta no início do diálogo, mas a perda, digamos assim, da autonomia do
homem de conhecer, por suas próprias faculdades (intelectiva e volitiva, ou talvez melhor, razão
superior e razão inferior), a verdadeira verdade é chegar à felicidade. Para nossa liberação e
purificação (meta também como vimos de Plotino) é preciso o auxílio (opitulor) divino, além e por
meio deste querer naturalmente manifesto no homem, fazendo uso do método explicativo-
dialético.
213
A verdade é um elemento essencial na filosofia helênica, para que a pessoa possa
encontrar a felicidade.
Sócrates identifica a verdade com a virtude e com a mesma felicidade; os estóicos estimam como
imprescindível para o exercício da virtude; Aristóteles crê que o homem consiga a felicidade neste
mundo por meio da “Sophia”; Platão despreza a felicidade definitiva ao mundo e ás idéias, cuja
contemplação é a realização perfeita da verdade.
Os acadêmicos, pelo contrário, sustentam que a verdade é inacessível, por tanto, a felicidade não
pode consistir na posse da verdade, pois nada e ninguém pode mostrar ao homem. Feliz não é quem
possui a verdade, senão quem a busca.
214
212
SANTO AGOSTINHO. De Beata Vita, IV, 34.
213
SANGALLI, Idalgo José. O fim ultimo do homem da eudaimonia aristotélica à beatitudo agostiniana.
Porto Alegre: Edipucrs, 1998. p. 175-176.
214
REINARES, Tirso Alesanco. Filosofia de San Agustín síntesis de su pensamiento. Madrid: Avgvstinvs:
2004. p. 406-407.
76
Qual a diferença entre a filosofia agostiniana e a clássica pagã? A descoberta do
Logos como Verdade.
Santo Agostinho faz sua a postura clássica: a sabedoria faz a felicidade; sábio e feliz é quem
conhece e pratica a verdade. “O sábio conhece a verdade”.
Porém a verdadeira e única sabedoria é a de Deus: Cristo. A verdade a que se refere Santo
Agostinho é uma verdade concreta e subsistente, é o Logos, o Verbo divino: Cristo. “Mas que
sabedoria merece tal nome senão a sabedoria de Deus? Agora bem, sabemos por autoridade divina
que o Filho de Deus não é outra coisa senão a Sabedoria de Deus (1 Cor1, 24 0; e o Filho de Deus é
certamente Deus. Portanto, o bem-aventurado possui a Deus”. As palavras da Escritura estão
tomadas literalmente: “Eu sou a Verdade”. “Cristo, Sabedoria de Deus”. A única via que conduz o
homem a felicidade, depois de realizar uma purificação completa, é Cristo. “Esta via limpa o
homem inteiro e prepara para a imortalidade o homem mortal em todas as partes de que consta.
215
Estando na conclusão deste diálogo, Agostinho nos uma explicação de como
acontece o conhecimento da Verdade em nossa mente.
Certo impulso interior (admonitio) que nos convida a lembrar-nos de Deus, a buscá-lo, a sentir sede
dele, sem nenhum festio, jorra em nós dessa mesma fonte da Verdade. É luz que esse misterioso sol
irradia em nossos olhos interiores. É dele que procede tudo o que proferimos de verdadeiro, ainda
que temamos volver para ele nossos olhos ainda doentios ou recém-abertos, e de o fixarmos face a
face. Esse sol revela-se a nós como sendo o próprio Deus, ser perfeito sem nenhuma imperfeição a
diminuí-lo. Pois n´Ele encontra-se toda perfeição, completa e íntegra, visto que ele é, ao mesmo
tempo, o Deus todo-poderoso
216
.
O ser humano está numa contínua busca da Verdade Absoluta tem sede de infinito,
que em outras palavras quer dizer plenitude de Deus.
Enquanto estivermos em sua busca, somos forçados a reconhecer que ainda não nos saciamos da
água dessa fonte. E ainda não possuímos a plenitude. Não presumamos, assim, haver alcançado a
nossa medida. Porque, também se certos da ajuda de Deus, ainda não atingimos a Sabedoria, nem,
por conseguinte, a felicidade. Pois a perfeita plenitude (satietas)
das almas, a qual torna a vida feliz,
consiste em conhecer piedosa e perfeitamente: por quem somos guiados até à Verdade (o Pai); de
qual Verdade gozamos (o Filho); e por qual nculo estamos unidos à Suma Medida (o Espírito
Santo ).
217
Vejamos mais uma vez a contribuição de Plotino presente em Agostinho. A
filosofia plotiniana nos diz que o Uno gera o Nous. E a melhor tradução para Nous é
Espírito e não Intelecto. Todo pensamento para Platão e Plotino, tem algo de divino. Mas
também não se pode omitir o elemento intelectual importante em toda a filosofia religiosa
grega. “Foi esse elemento intelectual da religião de Platão que levou os cristãos,
notadamente o autor do Evangelho de São João a identificar Cristo com o Logo. O Logos
215
Idem. Idibem., p. 406-407.
216
SANTO AGOSTINHO. De Beata Vita, IV, 35.
217
Idem. Idibem., IV, 35.
77
deveria ser traduzido, neste sentido como razão; isto nos impede de usar “razão” como
tradução de nous”.
218
Como nasce o Espírito? Tanto o Uno como o Espírito são eternos e não gerados no
tempo. A atividade que procede do Uno é como uma potência informe (espécie de matéria
inteligível) que, para subsistir, deve voltar-se para a contemplação do princípio do qual
derivou, ou seja do Uno e fecundar-se ou preencher-se dele e depois voltar-se para si
mesmo e contemplar-se, assim fecundado. No primeiro momento, nasce o ser ou
substância ou conteúdo do pensamento. No segundo momento, nasce o pensamento.
A multiplicidade aparece primeiro no espírito “é um e muitos”.
219
Nasce assim a multiplicidade de pensamento e pensado, dado que o Espírito, quando se
fecundado pelo Uno, em si a totalidade das coisas, ou seja, a totalidade das Idéias. Enquanto o
Uno era a “potência de todas as coisas”. O Espírito torna-se todas as coisas ou a explicação de todas
as coisas no plano ideal. O mundo platônico das Idéias, portanto é o Nous, o Espírito, pensamento.
220
O Nous (Espírito) é a imagem do Uno. Plotino usa a imagem do sol para nos dar
uma melhor compreensão. O doador da luz e a luz são o mesmo. O Nous pode ser
considerado como a luz mediante a qual o Uno vê a si mesmo.
Sangalli nos diz que:
O Filho é a sabedoria de Deus e a verdade de Deus e a Sabedoria é a Verdade de Deus. Essa verdade
existe pela “suprema medida, da qual procede e com a qual coincide inteiramente”, ou seja, é
verdade pela suprema medida da qual é originada, procede e, como verdade, retoma à sua fonte e
é a mais elevada auto-correspondência. E o É de Deus se torna a medida-padrão e o impulso do
movimento de transcendência do homem. Possuir tal medida, ou seja, possuir Deus, é possuir a
sabedoria contemplando Cristo-Sabedoria-Verdade e isto
significa que a medida da alma (moderatio
animae) está ligada diretamente com a idéia da posse de Deus,
por este (Deus) ser a
medida
suprema (summus modus). Então, “quem, portanto, chegar à suprema medida pela verdade é feliz.
221
Existe uma estreita relação entre a vida de Agostinho e sua conversão ao
Cristianismo. O neoplatonismo continua sendo a base firme, onde o novo cristão,
218
RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental, p. 334.
219
RUSSELL Apud. Enéadas 4.8.3. Diccionario de San Agustín, p. 1065.
220
REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia pagã antiga. São Paulo: Paulus, 2003, p. 360.
221
SANGALLI, Idalgo José. O fim último do homem da eudaimonia aristotélica à beatitudo agostiniana,
Porto Alegre. Edipucrs: 1998. p. 177.
78
Agostinho, construiu e aperfeiçoou seu pensamento filosófico cristão, buscando respostas
para perguntas sobre o mal, a morte, o livre-arbítrio e tantas outras.
Da aproximação entre o neoplatonismo e o criacionismo cristão, surge uma idéia de
felicidade diferente no sentido de que o ser humano não é mais a fonte de sua própria
felicidade, mas a fonte está em Deus, no Criador do universo. Vejamos as palavras De
Boni:
O homem deixa de ser a medida de todas as coisas, e passa a ser medido pelo metro da sabedoria
divina. Pode-se continuar afirmando que a felicidade, como estado de plenitude, localiza-se e deve
ser buscada no interior do homem, mas ela não é totalmente do homem, porque se encontra naquele
lugar onde ele, ao procurar a si mesmo, encontra Deus: ela é um dom de Deus, a doação que Deus
faz de si mesmo.
222
É preciso entender que em Agostinho, a razão e a não se separam. Para ele não
há verdadeira filosofia que não seja religião. Não é possível distinguir filosofia de teologia,
na sua época isto não estava sedimentada, somente mais tarde com a escolástica, houve a
separação. Agostinho como Padre da Igreja não vê problema nenhum em exercitar a razão,
apresentando argumentos. Até este momento, o diálogo todo transcorreu numa visão
filosófica, usando recursos do neoplatonismo e do estoicismo, mas na conclusão final,
Agostinho faz uso de argumentos da teologia.
223
Chegou aonde a razão permitiu, mas
querendo conhecer mais é preciso ter a humildade para acolher o que a Revelação ensina.
Existe a relação entre a autoridade da razão, mas também das Escrituras e da Revelação.
222
BONI (org.). Idade Média: ética e política, p. 292. Apud. SANGALLI, Idalgo Jose. O fim último do
homem da eudaimonia aristotélica à beatitudo agostiniana. Porto Alegre: Edipucrs, 1998. p. 178.
223
A conclusão deste Diálogo o faz passar do plano filosófico, em que se mantivera até agora, ao plano
teológico. Dá-se um transfilosofismo. Por aí, o De Beata Vita torna-se, realmente, o mais religioso dos
diálogos filosóficos agostinianos. De fato, Agostinho, utilizando a idéia de medida na sua concepção de
vida feliz, procura cristianizá-la. A felicidade consiste na sabedoria que é medida e equilíbrio, por excluir
tanto os excessos como as deficiências. É a mesma coisa: possuir a medida, isto é, a sabedoria, e ser feliz.
A sabedoria é definida como estado de plenitude. Mas Agostinho vai mais longe. Identifica a noção
neoplatônica de medida, não simplesmente com a sabedoria, mas com a Sabedoria de Deus, que é o Filho
de Deus, Verdade subsistente. Contudo, considera Jolivet que, por mais engenhosas que sejam aqui as
explicações de Agostinho, por mais sutil que pareça sua dialética, tem-se a impressão de que a soldagem
da veia estóica com o pensamento cristão ainda fica um pouco imperfeita, em todo caso, bem visível. De
Beata Vita, Nota de rodapé, 79, p. 94.
79
Para Agostinho isto não é contraditório. Para entender melhor esta relação é recomendável
uma de suas obras mais conhecidas, onde ele faz uma espécie de autobiografia, expondo a
mesma temática com outra linguagem. Sua obra maravilhosa chamada Confissões.
Durante as discussões nesta obra De Beata Vita, percebe-se a presença significativa
do pensamento de Plotino, parece ser a base onde Agostinho alicerçou seu pensamento.
Qual é a originalidade do pensamento deste neoplatônico? O momento da criação coincide
com a “contemplação”. A própria atividade prática, mesmo em seu mais baixo grau,
procura “com um girar perdido” conquistar a contemplação. De fato, que finalidade quer
alcançar quem se dedica à ação? Certamente não a de conhecer apenas, mas também de
contemplá-lo.
Em suma, para Plotino “a atividade espiritual de ver e contemplar se transforma em
criar”. E a contemplação é silêncio metafísico. Nesse contexto, o retorno ao Uno ocorre
mediante o êxtase, que é simplificação e contemplação em que o sujeito que contempla o
objeto contemplado se fundem. É a famosa “fuga do só para o Só”, com a qual se
concluem as Enéadas. A filosofia plotiniana pelo uso da razão tornou-se objeto de sua
crença e modo de viver.
Mario Victorino traduziu para o latim as Enéadas, tendo assim uma divulgação
grande do pensamento de Plotino. Agostinho conheceu o neoplatonismo e o caminho para
a conversão a partir das Enéadas.
224
2.5 CONCLUSÃO DO DIÁLOGO
No desfecho do diálogo, Mônica, recita um versículo de um hino de Santo
Ambrósio
225
: “Protege, ó Trindade santa, aqueles que te imploram (Fove, precantes,
224
ULLMANN, Reinholdo Aloysio. Plotino um estudo das Enéadas. Porto Alegre: Edipucrs, 2002, p.205.
80
Trinitas)”. E acrescentou ainda: “Eis, sem nenhuma dúvida, a vida feliz, e essa é a vida
perfeita. Tenhamos confiança que poderemos ser levados a ela, prontamente, graças à
sólida, à alegre esperança e à ardente caridade”.
226
O discurso se encerra com o público percebendo que, ao definir as fontes da Vida Feliz, na verdade
descrevera a Trindade católica; e assim Mônica pode encerrar uma tarde de devoção entoando um
hino de Santo Ambrósio, Fove Precantes Trinitas. No começo desse mesmo ano, tais hinos deviam
ter sido cantados pela população católica durante sua resistência à corte. Na história do pensamento,
não é freqüente um diálogo filosófico poder culminar dessa maneira num cântico de batalha.
227
Agostinho agradece aos convidados, pela presença e participação de todos, durante
estes dias de discussão e parte para cuidar de seus afazeres.
Assim pois, disse eu, já que a mesma moderação nos leva a suspender nosso festim pelo intervalo de
alguns dias, dou graças com todas as minhas forças ao sumo e verdadeiro Deus, Pai e Senhor
libertador das almas. E também a vós que, cordialmente convidados por mim, me cumulastes de
dádivas. Pois fostes de tal ajuda em nossos colóquios que, não o posso negar, fui eu o saciado por
meus convidados. Trigésio exclamou: Como gostaria que tu nos obsequiasses todos os dias, nessa
mesma medida. Essa medida deve ser guardada e amada em toda parte, se vos empenhardes
deveras na nossa volta a Deus.
228
Há uma definição que merece ser mencionada, como fechamento desta discussão:
A sabedoria é certa “medida” espiritual, nem supérflua e nem escassa, é aquilo que corresponde às
necessidades da alma. Tendo a Escritura e a Igreja como autoridade Divina, Agostinho prossegue
identificando esta sabedoria com a Sabedoria de Deus e definindo-a como Filho de Deus, que é com
certeza Deus, gerado desde toda a eternidade, junto ao Pai é a Suprema Medida. E todo aquele que é
levado até a Suprema Medida para este Filho, Verdade, Sabedoria é verdadeiramente Bem-
Aventurado e feliz. A medida e a verdade são eternas. O conhecimento de Deus Trindade é
sabedoria e felicidade. A felicidade, a bondade e a sabedoria se encontram unidas. Quando se busca
Deus, então O encontra. Ter conhecimento não é possuir plenamente a sabedoria, mas através da fé,
esperança e caridade é possível alcançar e possuir a sabedoria, pois com a filosofia somente é
impossível alcançar a vida feliz.
229
225
Todo este diálogo converge no reconhecimento que a fonte da felicidade está no relacionamento com a
Trindade. Assim, vem a propósito que Mônica o conclua, cantando a doxologia final do hino de Santo
Ambrósio, o Deus creator omnia (Hymn. 11, 32). No início desse mesmo ano de 387, eram esses hinos
ambrosianos que haviam sido contados pela massa popular católica, por ocasião da resistência às ordens
de Justina, a mãe do Imperador Valentiniano, que pretendia entregar os templos católicos aos arianos, em
Milão. (Cf. Confissões, IX, 7, 15). Não se encontra com freqüência, na história do pensamento, um diálogo
filosófico que termine desse modo. Agostinho citará esse mesmo hino ao relatar o seu sofrimento pela
morte de sua mãe em Óstia. (Cf. Confissões, IX, 13, 32.) De Beata Vita, nota de rodapé, 85 p. 96.
226
SANTO AGOSTINO. De Beata Vita, IV, 35.
227
BROWN, Peter. Santo Agostinho uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 133.
228
SANTO AGOSTINO. De Beata Vita, IV, 36.
229
Diccionario de San Agustín San Agustin a traves del tiempo. p. 172-173.
81
Conta-se que nos dias derradeiros, Agostinho encontrava consolo, nestas palavras
de Plotino: “(...) ridícula seria a opinião e não seria sábia, se tivesse em grande conta a
madeira, as pedras e a morte dos seres mortais”.
230
Segundo Ullmann:
A fama de Plotino, no Ocidente Medieval, deve-se em grande parte, ao que dele disse o Bispo de
Hipona. Para ele, o licopolitano é um novo Platão. O leitor medieval, que apenas tivesse lido
Agostinho e só por ele tivesse chegado a conhecer Plotino, teria tido contato com alguns aspectos da
doutrina do autor das Enéadas, consignados na Civitas Dei: que a Providência se estende aos objetos
mais humildes, que Deus é o Sol da alma, que o homem, que não chega a atingir a visão de Deus é
muito infeliz. Deixando de parte a doutrina da reencarnação, o leitor de Agostinho convencer-se-ia
de que Plotino realmente se aproxima do credo dos cristãos. Isso porém, seria uma luz feita à luz da
doutrina cristã.
No entanto, Agostinho pode ser considerado um exemplo particularmente significativo de uma
profunda, mas difícil simbiose de neoplatonismo e
cristianismo. Sua adesão à filosofia platônica ou
neoplatônica é tão grande que ele de dizer: Ninguém se aproximou mais de nós (cristãos) do que
estes. Agostinho refere-se aqui à arché espiritual que opera e funda a totalidade do ser. Nesse
particular, platônicos, neoplatônicos e
cristãos se encontram. Isso significa que também existem
fragmentos de verdade na filosofia pagã e nas religiões não-cristãs, os quais devem ser valorizados.
Outro ponto de convergência da filosofia neoplatônica e da de Agostinho é a interiorização em si
mesmo, retirando-se da dispersão na sensibilidade e na temporalidade. Consubstancia-o esta frase
lapidar: “Não saias para fora volta-te para o teu interior. No interior do homem habita a verdade.”
Quem abstrai do sensível e do temporal encontra a si próprio, o fundamento último de seu ser e a
máxima simplificação interior. Existe, então, já nesta vida, a condição necessária para a união
mística, que é graça de Deus. Plotino, como se sabe, às vezes, parece dispensar a graça do alto, para
chegar à união mística, porque Deus é imanente em tudo, embora também seja transcendente a tudo,
inefável e indescritível.
231
Agostinho, embora seguindo de perto as idéias estóicas e mais ainda as
neoplatônicas, a felicidade deixa de ser algo buscado e conseguido apenas pelo próprio
esforço humano. A pessoa necessita da graça divina, para alcançar a felicidade. Esta foi a
grande descoberta de Agostinho, pois os filósofos do passado, acreditavam que bastava
apenas o esforço humano.
230
ULLMANN, Reinholdo Aloysio. Plotino um estudo das Enéadas. Porto Alegre: Edipucrs, 2002, p. 208.
231
Idem. Ibidem., p. 209.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Santo Agostinho foi o mais profundo filósofo da era Patrística
232
e um dos maiores
gênios da teologia da cristã todos os tempos, cuja presença marca o fim de uma era e o
começo de uma nova. Seus escritos influenciaram diretamente toda a Idade Média, alguns
nomes como Santo Anselmo, São Boaventura, Alexandre de Hales e Duns Scoto, beberam
muito do pensamento agostiniano. Mas também em nossos dias, ele continua sendo citado
entre estudiosos e intelectuais. Continua vivo em todos aqueles que aprofundam seus
escritos, “neles os fiéis podem encontrá-lo sempre vivo, conforme disse certo poeta pagão,
que ordenou aos seus colocarem em seu túmulo numa via pública a seguinte epígrafe:
Viandante, queres saber se após a morte vive um poeta? Ao leres, sou eu quem fala: minha
tornou-se a tua voz”.
233
Sim, toda a glória à Trindade! Ela é o princípio, meio e fim. Passado, presente e
futuro. Glória à Trindade por Santo Agostinho ter se tornado um insigne expoente da
Sabedoria e da Verdade. Exemplo de um homem que perpassou as culturas e as gerações,
232
Por patrística se entende o estudo da doutrina, as origens dessa doutrina, suas dependências e empréstimos
do meio cultural, filosófico e pela evolução do pensamento teológico dos pais da Igreja.
O termo patrologia designa, propriamente, o estudo sobre a vida, as obras e a doutrina dos pais da Igreja.
Ela se interessa mais pela história antiga incluindo também obras dos escritores leigos.
“Padres ou Pai da Igreja” se refere ao escritor leigo, sacerdote ou bispo, da antiguidade cristã considerado
pela tradição posterior como testemunho particularmente autorizado da fé.
Na tentativa de eliminar as ambigüidades em torno desta expressão, os estudiosos convencionaram em
receber como “Pai da Igreja” quem tivesse estas qualificações: ortodoxia de doutrina, santidade de vida,
aprovação eclesiática e Antigüidade.
Os “Pais da Igreja” são, portanto, aqueles que, ao longo dos sete primeiros séculos, foram forjando,
construindo e defendendo a , a liturgia, a disciplina, os costumes, e os dogmas cristãos, decidindo assim
os rumos da Igreja. Seus textos se tornaram fontes de discussão, de inspirações, de referências obrigatórias
ao longo de toda a tradição posterior.
Além de sua importância no ambiente eclesiástico, os Padres da Igreja ocupam lugar proeminente na
literatura e, particularmente, na literatura grego-romana. São eles os últimos representantes, cuja literária,
não raras vezes, brilha nitidamente em suas obras, tendo influenciando todas as literaturas posteriores.
Formados pelos melhores mestres da Antigüidade clássica, põem suas palavras e seus escritos a serviço do
pensamento cristão. Se excetuarmos algumas obras retóricas de caráter apologético, oratório ou
apuradamente epistolar, os Padres, por certo, não queriam ser, em primeira linha, literatos, e sim arautos
da doutrina e moral cristã. A arte adquirida, não obstante, vem a ser para eles meio para alcançar este fim.
SANTO AGOSTINHO. Solilóquios e a Vida Feliz. São Paulo: Paulus, 1998. p. 6, 7, 8.
233
POSSÍDIO. Vida de Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 1997. p. 92, 93.
83
chegando até nós, neste século XXI. Uma vida que se tornou um grande dom da própria
Sabedoria de Deus, para toda a humanidade.
A partir de São Paulo queremos exaltar e louvar a grandiosidade da Sabedoria
Divina presente desde sempre e por tantas maravilhas operadas no mundo e na vida
humana.
Ó abismo de riqueza de sabedoria e de ciência em Deus! Quão impenetráveis são os juízos e
inexploráveis os seus caminhos! Quem pode compreender o pensamento do Senhor? Quem jamais
lhe foi o seu conselheiro? Quem lhe deu primeiro, para que lhe seja retribuído? Dele e por ele e para
ele são todas as coisas. A Ele a glória por toda a eternidade! Amém! (Rm 11, 33-36).
O ser humano é essencialmente aquele que deseja. E deseja muitas coisas durante a
vida, por exemplo: sucesso, reconhecimento, amizades, amor, saúde, posses; a lista é
imensa. No fundo este desejo presente na alma humana, parece significar o desejo pelo
próprio Deus, pela Verdade que satisfaz, pela Pátria que traz a segurança e pelo Amor
absoluto. O coração humano é inquieto e cheio de muitos desejos e aspirações, mas
somente quando repousar em Deus, encontrará finalmente a realização do seu ser, a
felicidade. Agostinho nos apresenta esta realidade prática quando cita a célebre frase:
“fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousar em ti”.
234
O
encontro humano com o divino acontece neste repouso e o fruto deste é a própria
felicidade.
Sendo a felicidade um desejo universal, toda pessoa aspira, busca e luta dia-a-dia
para possuí-la. “A felicidade não é justamente aquilo que todos querem, não havendo
ninguém que não a queira? Onde a conhecem para assim a desejarem? Onde a viram para
amá-la tanto? Ela é conhecida por todos, e se todos pudessem ser interrogados a uma
voz – quereis ser felizes? – sem dúvida alguma responderiam que sim”.
235
234
SANTO AGOSTINHO. Confissões, I, 1.
235
SANTO AGOSTINHO. Confissões, X, 20, 29.
84
Durante o desenvolvimento deste trabalho pode-se perceber algumas situações
simples em que Agostinho apresenta com a finalidade de aprofundar o significado acerca
da felicidade. Como por exemplo, aquela discussão que se na ocasião de uma refeição,
que se apresenta como um banquete de espírito. Como vimos O diálogo De Beata Vita,
começa com uma definição da natureza humana sendo composta de corpo e alma. Cada um
desses elementos necessita de sustento para manter-se vivo. Agostinho faz constatar que “a
natureza tem estabelecido aos corpos a dimensão à qual pode atingir, mas sequer
atingiriam essa dimensão se lhes faltasse o alimento”.
236
O corpo e a alma necessitam de
alimentos, mas qual é o alimento da alma? “A alma, creio eu, não possui seus próprios
alimentos? Será que seu alimento não lhes parece ser a ciência? Certamente, responderá
minha mãe, acho que a alma se alimenta somente da inteligência e do conhecimento das
coisas”.
237
O que engrandece o ser humano é a sua ânsia por conhecer. Segundo os estóicos,
Agostinho, considera a virtude (frugalitas) a boa nutrição da alma que a torna fecunda, ao
passo que o vício (nequita) a torna estéril. Sendo o ser humano um ser em transformação e
para permitir o crescimento de seu corpo e sua alma, cada um em sua ordem, ele deve
fornecer-lhe alimentos úteis. Na Antigüidade a filosofia não era somente uma atividade
intelectual ou científica. Ela era, acima de tudo, um estilo de vida. Incluir-se numa corrente
filosófica era adotar uma conduta de vida coerente com aquilo que a pesquisa intelectual
descobriu como sendo o bem soberano para a pessoa. Sem dúvida é através da filosofia que
Agostinho pôde compreender o sentido de sua vida. É o amor pela sabedoria e o trabalho
da razão que proporcionam à alma o alimento do qual ela tem fome. Sob a influência de
Cícero, ele aderiu com paixão à essa pesquisa da sabedoria (studium sapientiae), que lhe
revelou a superioridade da alma sobre o corpo submetido ao mundo perecível.
236
SANTO AGOSTINHO. De Beata Vita, II, 7.
237
SANTO AGOSTINHO. De Beata Vita, II, 8.
85
Santo Agostinho também nos apresenta o tema de grande importância na filosofia
antiga: Eudemonismo ou busca do bem soberano (finis boni). Aqui está o centro da
experiência humana: a vida da pessoa é um apetite, uma busca ao bem-estar, uma sede. E
esta sede, não descanso à pessoa, porque nunca será plenamente perfeita. Esta ausência
de plenitude encoraja seu desejo para um bem supremo, que o satisfaria totalmente. Mas
qual é o bem que a pessoa deve procurar para ser feliz? O desejo de possessão está tão
arraigado na pessoa, que nada do que é limitado pode satisfazê-la efetivamente, à medida
que uma possessão permanece parcial, a pessoa não consegue ser feliz. “O que será então,
que o homem deve proporcionar a si mesmo para ser feliz? (...) Isso deve ser, creio eu, algo
de permanente, que não esteja submetido à sorte e a todos os acasos. Pois tudo o que é
mortal é ultrapassado, não podemos possuí-lo quando e por quanto tempo desejamos”.
238
Agostinho, deduz logicamente que esse tipo de satisfação nos deixa abandonados à nossa
fome.
Mesmo que estivéssemos certos de que nunca os perderíamos, os bens perecíveis
não nos poderiam saciar, como constata Mônica: “Ainda que alguém tivesse a certeza de
não perder tais bens frágeis, contudo, nunca viria a se contentar com o que possui.
Portanto, a pessoa seria infeliz pelo fato de querer sempre mais”.
239
Passadas algumas
décadas, Santo Agostinho amadurecido pelos anos, nos apresentará uma posição mais
equilibrada em relação aos bens perecíveis, “os bens terrenos também são agradáveis,
também eles têm uma doçura que não é pequena!”.
240
De fato, os bens temporais mesmo
com suas adversidades, podem ser considerados os meios pelos quais se atinge a felicidade
e a esperança sendo uma das virtudes teologais presente na pessoa, ajuda a manter firme a
vontade na conquista dos bens que não caducam pelo tempo e que são capazes de tornar
uma vida feliz. “Quem gostaria de viver entre tormentos, fossem mesmo aqueles homens a
238
SANTO AGOSTINHO. De Beata Vita, II, 11.
239
SANTO AGOSTINHO. De Beata Vita, II, 11.
240
SANTO AGOSTINHO. Confissões, VI, 11, 19.
86
quem a força de paciência podem em meio a eles, permanecer justos e levar vida digna de
louvor? (...) São felizes pela esperança, mesmo no meio dos males transitórios, pois por
esse meio chegam a bens não passageiros”.
241
Sabemos que verdadeira felicidade para Santo Agostinho é Deus, pois Ele é o único
que pode tornar a felicidade duradoura.“É esta a felicidade: alegra-nos em ti, de ti e por ti.
É esta a felicidade, e não outra. Quem acredita que exista outra felicidade, persegue uma
alegria que não é a verdadeira”.
242
Na obra De Beata Vita, Agostinho procurou superar as
incertezas dos filósofos a respeito da felicidade e se tornando cristão, admite que a
verdadeira felicidade não se deve a ele mesmo, mas é um dom de Deus. Essa conversão é
um eco de sua própria pesquisa, quando mais tarde escreve as Confissões demonstrando
toda as suas etapas. “Quando temos Deus, somos felizes (Deum qui habet, beatus est)”.
243
A felicidade agostiniana se torna realidade na vida humana, quando abraçada e praticada a
verdade presente na Sagrada Escritura.
Eu te havia prometido, se te lembras, de haver de provar que existe uma realidade muito mais
sublime do que a nossa mente e nossa razão. Ei-la diante de ti: é a própria Verdade! Abraça-a, se o
podes. Que ela seja teu gozo! Põe tuas delícias no Senhor e ele concederá o que teu coração deseja!
(Sl 36,4). Pois o que desejas senão ser feliz? E haverá alguém mais feliz do que aquele que goza da
inabalável, imutável e muito excelente Verdade? (...) E nós, temeríamos pôr a felicidade de nossa
vida na contemplação da luz da Verdade? Muito pelo contrário, já que é na verdade que conhecemos
e possuímos o Bem supremo, e que essa Verdade é a Sabedoria, fizemos nela nossa mente para
captarmos esse Bem e gozarmos dele. Pois é feliz aquele que desfruta do sumo Bem!
244
Segundo Santo Agostinho, para que a pessoa possa atingir a felicidade e praticar o
bem, não basta somente o esforço humano e as várias correntes filosóficas ensinando suas
doutrinas. É indispensável a presença da graça divina na vida humana. “Houve certos
filósofos que instituíram para si um gênero de vida feliz, segundo seus próprios gostos,
241
SANTO AGOSTINHO. Trindade, XIII, 7, 10.
242
Idem. Confissões, X, 22, 32.
243
Idem. De Beata Vita, II, 11.
244
Idem. O Livre-Arbítrio, II, 13, 35-36.
87
como se pudessem por seus próprios esforços o que não podiam pela condição comum dos
mortais”.
245
Com Agostinho, embora seguindo de perto as idéias estóicas e mais ainda as idéias
neoplatônicas, a beatitude deixa de ser algo buscado e conseguido apenas pelo próprio esforço,
seja virtuoso ou contemplativo. Ele precisa da graça divina, e por isso consegue atingir a sua
meta, além de ter que viver uma vida terrena adequada aos preceitos do Evangelho e de voltar-
se, em pensamento, através da própria atividade do pensar, do conhecer, para a sua própria alma
e transcender daí para a visão de Deus, fonte da Verdade e da Sabedoria. Não é mais a
sabedoria pagã que interessa. Ela vale, até certo ponto e de certo modo, mas o alvo é o princípio
e o fundamento de todo o pensamento e de tudo o que existe, isto é, a Verdade e a Sabedoria de
Deus. E Ele é o próprio pensamento em si mesmo pleno, absoluto, causa de si mesmo. Na
verdade, a felicidade plena é possível na outra vida: a celeste, imortal, onde estão o descanso
e a paz perpétua em Deus criador de tudo. E nela, tanto a alma como o corpo, tem a garantia da
vida eterna.
246
Como o tema da felicidade era o principal assunto da Antiguidade e Santo
Agostinho sendo um escritor com profundidade de pensamento, multiplicidade de obras e
variedade de linguagem, interessou-se também pelo tema da felicidade, sempre presente
em suas trajetórias. Além da obra De Beata Vita, no qual trata exclusivamente do tema
desse pode-se encontrar em outras obras agostinianas a mesma temática da felicidade,
descrita com elegância e clareza. Por exemplo, quando escreve à Proba uma nobre dama
romana, sobre as escolhas que cada pessoa faz para encontrar a felicidade.
É feliz quem tem tudo quanto quer e não deseja nada de mal. Assim sendo, procura agora o que em
geral desejam as pessoas, quando não querem nada de mal.
Um quer casar; outro, livre do matrimônio, prefere passar sua viuvez na continência; outro renuncia
a toda união carnal.
Vê-se que nisso tudo, alguns desejos são melhores do que outros, mas podemos dizer que nenhum
deles tem por objetivo algo impróprio.
(...)
Eis exemplos do que poderiam desejar convenientemente. Mas embora possuam tudo o que de
melhor e muito útil e nobre, ainda assim, estão longe da vida feliz.
247
Não pode ser feliz alguém que engana os outros, pois nenhuma pessoa gosta de ser
enganada e a felicidade é fruto da verdade e todos amam a verdade. “Conheci muitos com
desejo de enganar aos outros, mas não encontrei ninguém que quisesse ser enganado. Onde
245
Idem. Trindade XIII, 7, 10.
246
SANGALLI, Idalgo José. O fim último do homem da eudaimonia aristotélica à beatitudo agostiniana.
Porto Alegre: Edipucrs, 1998. p.197-198.
247
SANTO AGOSTINHO. Carta a Proba e a Juliana, 5, 11.
88
conheceram essa felicidade, senão onde conheceram a verdade? Se de fato não querem ser
enganados é porque amam também a verdade”.
248
Mas por que as pessoas não são alegres e
felizes? “Porque se empolgam demais com outras coisas, que os tornam infelizes mais
facilmente do que a verdade os faria felizes, a verdade que tão debilmente eles recordam. E
ainda resta um pouco de luz entre os homens; que eles prossigam no caminho, para que a
escuridão não os alcance”.
249
A fórmula utilizada por Santo Agostinho Beatos nos esse volumus”, é
encontrada em Platão, na obra Eutidemo, é tomada também por Sêneca em seu “De vita
beata: vivere omnes beate volunt”. Certamente, Agostinho, faz uso de “Hortênsius” de
Cícero, obra que o havia persuadido, aos dezenove anos a pesquisar a Sabedoria. Tal
proposição é altamente justificável: ela é um fato de experiência e continuará a ser uma
constante no pensamento e ações de Agostinho. Consagrado bispo de Hipona ele ainda
aconselha Proba, que pedia conselhos para rezar: “Pede a vida bem-aventurada (ora
beatam vitam). Todos os homens querem possuir vida feliz, pois mesmo os que vivem mal
não viveriam desse modo, se não acreditassem que assim são, ou que podem vir a ser
felizes”.
250
uma formulação perfeita nas Confissões em relação a este assunto: “Não é a
felicidade algo a que todos aspiram e ninguém recusa? (...) A coisa, na verdade, não é
grega nem latina, e é a sua possessão que cobiçam gregos, latinos e homens que falam
outras línguas. Ela é então, conhecida de todos os homens e se fosse possível fazê-los uma
única questão: vocês querem ser felizes? Eles todos responderiam, sem hesitar, que
queriam”.
251
Muitos são os escritos de Santo Agostinho sobre a felicidade. Foram citados
apenas alguns para admirar a beleza de sua eloqüência e profundidade do seu pensamento,
a respeito do tema em questão.
248
Idem. Confissões, X, 23, 33.
249
Idem. Ibid., X, 23, 33.
250
Idem. Carta a Proba e a Juliana, 2, 3.
251
Idem. Confissões, X, 20, 29.
89
No pensamento de Santo Agostinho uma resposta, que parece profundamente
racional, conciliando a com a razão. Não como elementos excludentes, mas
complementares, que ele mesmo fechou neste axioma:
Credo ut intelligam et intelligo ut credam” (creio para entender e compreendo
para crer).
Este axioma: Credo ut intelligam et intelligo ut credam”, quer destacar a
importância do Credo, como uma necessidade da fé para o conhecimento da verdade
religiosa e moral, “se não credes, não entendereis”.
252
Complementado com a necessidade
de usar a razão intelligam, para que a adesão à não seja cega e meramente e passiva. As
verdades religiosas e morais não podem ser apreendidas a não ser pela fé. “Tem coragem e
conserva a fé naquilo que crês. Nada é mais recomendável do que crer, até no caso de estar
oculta a razão de por que isso ser assim e não de outro modo”.
253
E quando de posse delas
pela fé, temos o dever de validá-los pela filosofia.
A vida inteira de Santo Agostinho é perpassada pelo desejo de ser feliz, antes
mesmo de sua conversão ele já buscava, inconscientemente respostas para seus
questionamentos sobre a felicidade. “Como devo procurar-te, Senhor? Quando te procuro,
ó meu Deus, procuro a felicidade da vida. Procurar-te-ei, para que minha alma viva. O meu
corpo, com efeito, vive da minha alma, e a alma vive de ti. Como então devo procurar a
felicidade?”.
254
Mas quando descobre que a felicidade mora dentro de si mesmo, se
transforma em uma nova pessoa.
Nesta oração ele descreve a maravilhosa descoberta.
Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de
mim e eu te procurava do lado de fora! Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas
criaturas. Estavas comigo, mas eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, que
não existiriam se em ti não existissem. Tu me chamaste, e teu grito rompeu a minha surdez.
Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou a minha cegueira. Espargiste tua fragrância e, respirando-
252
BÍBLIA. Isaías. Bíblia Sagrada. Tradução dos monges de Maredsous (Bélgica) pelo centro Bíblico
Católico. 28. ed. São Paulo: Ave Maria, 1981. Cap. 7, vers. 9.
253
SANTO AGOSTINHO. O Livre Arbítrio, I, 2, 5.
254
Idem. Confissões, X, 20, 29.
90
a, suspirei por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tu me tocaste e, agora estou
ardendo no desejo de tua paz.
255
O assunto, felicidade fascina e atrai as pessoas de todos os tempos e lugares,
tornando-se impossível o esgotamento e a conclusão. Entre as várias obras que Santo
Agostinho escreveu escolhi, De Beata Vita, como mestra e guia para responder algumas
das questões acima citadas. Com o auxílio de vários autores, notas de rodapés e demais
obras agostinianas, pude compreender e aprofundar melhor o pensamento daquele que
muito amou Santo Agostinho.“Amor meus, pondus meum(meu peso é o amor). Ama et
faz quod vis” (ama e faz o que quiseres).
256
Deste pensador cristão, desejo ter aprendido e transmitido, não somente uma
posição teórica, mas prática de que ser feliz é ter Deus, neste mundo e em plenitude na
eternidade.
Tu, porém, Senhor, estás sempre ativo e estás sempre em repouso. Não vês no tempo, não te moves
no tempo, não repousas no tempo e todavia crias a nossa visão no tempo, o próprio tempo, e o
repouso depois do tempo.(...) Mas tu, meu Deus, que és o único bem, não cessaste de fazer o bem.
Por tua graça, realizamos algumas boas obras, mas não são eternas. Depois de as termos praticado,
esperamos repousar na tua imensa santidade.
257
“Fove, Precantes, Trinitas!” (Protege, ó Trindade Santa, aqueles que te imploram!)
255
Idem. Ibidem., X, 27, 38.
256
GANDRA, Ives Martins Filho. Manual Esquemático de História da Filosofia. São Paulo. LTR: 1997.
p. 72.
257
SANTO AGOSTINHO. Confissões XIII, 37, 52.
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