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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO –
PUC-SP
Sérgio Guilherme Cabral Bento
O co-relato Mallarmé / Haroldo de Campos:
O mito moderno em “Um lance de dados”
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS
EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
SÃO PAULO
2008
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SÉRGIO GUILHERME CABRAL BENTO
O co-relato Mallarmé / Haroldo de Campos:
O mito moderno em “Um lance de dados”
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre
em Literatura e Crítica Literária sob a
orientação do Profa. Dra. Olga de Sá.
SÃO PAULO
2008
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BANCA EXAMINADORA
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_______________________________________________
_______________________________________________
São Paulo
2008
À Rosa, anti-rosa, não a do poema nem a do bouquet: qualisigno do amor.
AGRADECIMENTOS
A minha família, pelo apoio.
À CAPES, pelo financiamento.
Ao programa de pós-graduação em Literatura e Crítica Literária da PUC/SP,
em especial à professora Olga de Sá, pela valiosa orientação.
Às professoras Leda Tenório da Motta e Viviana Bosi, pelo enriquecimento
crítico.
Pode conceber-se que haja mitos muito
antigos, mas o eternos; pois é a história
que transforma o real em discurso, é ela e
ela que comanda a vida e a morte da
linguagem mítica. Longínqua ou não, a
mitologia pode ter um fundamento
histórico, visto que o mito é a fala escolhida
pela história: não poderia de modo algum
surgir da “natureza das coisas”.
Roland Barthes
A angústia de Kierkegaard, o “cuidado” de
Heidegger, o sentimento do “náufrago”, tanto
em Mallarmé como em Karl Jaspers, o Nada
de Sartre não são senão sinais de que volta a
Filosofia ao medo ancestral ante a vida que é
devoração. Trata-se de uma concepção
matriarcal do mundo sem Deus.
Oswald de Andrade
Resumo
BENTO, Sérgio Guilherme Cabral. O co-relato Mallarmé / Haroldo de
Campos: o mito moderno em “Um lance de dados”. 2008. 120 f. Dissertação
(Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.
Em seu conceito moderno, o mito é um paradigma comportamental, um sistema
semiológico de algum referente externo. Baseado nisto, este trabalho sustenta que o
poema “Um lance de dados”, de Stéphane Mallarmé, adquire status mítico, quer pelo
seu caráter cosmogônico comumente ignorado pela crítica quer pela sua inovação
formal fato que o consagrou, e sob cujo prisma é unicamente lembrado. Em virtude
disso, sofreu ao longo do século XX um processo de mitificação ao ser promovido à
condição de uma das mais importantes fontes de inspiração da poesia recente e
contemporânea. Para que tal abordagem fosse possível, buscou-se delimitar o estudo do
texto proposto em correlação com sua recriação em língua portuguesa, feita por Haroldo
de Campos. Tal diálogo tradução/original não apenas atualiza o mito “Um lance de
dados” pelo valor ritualístico que possui o ato de traduzir, mas também permite à
análise uma aproximação da contemporaneidade. Como instrumento de exegese, as
teorias da Gestalt princípios de organização da forma; máxima de que o todo não é a
mera soma das partes, mas possui uma qualidade diferenciada destas; e o fenômeno da
correlação psiconeural na percepção visual humana asseguraram que a obra fosse
considerada em sua totalidade, enquanto entidade visual, verbal e sonora. Deste modo,
chegou-se à conclusão que “Um lance de dados” é um relato da (re-) criação do
Universo, do ser humano e da Arte não sob a condução de uma força divina, mas gerada
pelo pensamento humano, novo fator-chave na sociedade iluminista-burguesa da
Modernidade. Está formado o mito moderno.
Palavras-chave: Mito – Stéphane Mallarmé – Haroldo de Campos – Gestalt
Abstract
BENTO, Sérgio Guilherme Cabral. The correlation Mallarmé / Haroldo de
Campos: the modern myth in “A throw of the dice”.2008. 120 p. Dissertation
(Master´s Degree) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o Paulo,
2008.
In its modern concept, the myth is a behavioral paradigm, a symbolical model of an
external reference. Based on that, this paper defends that the poem A throw of the
dice”, by Stéphane Mallarmé, acquires such mythical status, either by its cosmogonical
nature which is commonly ignored by the critics -, or by its formalistic innovations
reason why it got so acclaimed. Due to that, it suffered during the XX century a
mythification process, in which it was promoted to be elected as one of the inspirational
sources of recent and contemporary poetry. So that such approach was possible, the
study was delimitated to a comparison between the proposed text to its re-creation in
Portuguese, done by Haroldo de Campos. This dialogue translation / original not only
updates the myth “A throw of the dice” by the ritualistic value the translation process
has, but also allows the analysis to get closer to the current times. As an instrument for
this exegesis, the Gestalt theories – principles of form organization; concept of “whole”,
which is not a mere addition of its parts, but has a unique quality aggregated; and the
phenomenon of psiconeural correlation in human visual perception ensure that the
poem will be considered in its totality, as a verbal, visual and sound entity. In short, it
has been concluded that the poem “A throw of the dice” is a tale of the (re-) creation of
the Universe, the human being and the Art, not under the guidance of a divine power,
but generated by the human thinking, key factor in the new illuminist bourgeois society
in Modern Age. The modern myth is formed.
Keywords: Myth – Stéphane Mallarmé – Haroldo de Campos – Gestalt
Sumário
1. INTRODUÇÃO
.............................................................................................................11
2. O MITO MALLARMAICO
.....................................................................................17
2.1 A Modernidade.............................................................................................................17
2.2 A arte da Modernidade................................................................................................24
2.3 A Literatura da Modernidade.....................................................................................29
2.4 A Modernidade de Mallarmé ......................................................................................35
3. O MITO HAROLDIANO
..........................................................................................53
3.1 Mallarmé e a Modernidade Tardia.............................................................................53
3.2 A teoria da transcriação...............................................................................................57
3.3 O “Un Coup de dés” transcriado.................................................................................61
4. O MITO “UM LANCE DE DADOS”
...................................................................67
4.1 Kant e Husserl...............................................................................................................67
4.2 A escola de Berlim ........................................................................................................69
4.3 Princípios de organização da forma............................................................................71
4.4 Outros estudos gestálticos............................................................................................75
4.5 Críticas à Gestalt ..........................................................................................................77
4.6 A concepção gestáltica da Arte....................................................................................78
4.7 O “Um lance de dados” enquanto estrutura gestáltica.............................................80
4.8 O todo (ou a pré-Gestalt) .............................................................................................83
4.9 Página Um.....................................................................................................................85
4.10 Página Dois..................................................................................................................87
4.11 Página Três..................................................................................................................89
4.12 Página Quatro.............................................................................................................93
4.13 Página Cinco ...............................................................................................................97
4. 14 Página Seis..................................................................................................................99
4.15 Página Sete ................................................................................................................101
4.16 Página Oito................................................................................................................103
4.17 Página Nove...............................................................................................................106
4.18 Página Dez.................................................................................................................108
4.19 Página Onze ..............................................................................................................110
4.20 O novo todo (ou a pós-Gestalt)................................................................................113
CONSIDERAÇÕES FINAIS
......................................................................................114
REFERÊNCIAS
...............................................................................................................117
11
1. INTRODUÇÃO
O título deste trabalho desvela sua intenção primeira: conferir ao poema “Um lance de
dados” o status de mito. A obra-prima de Stéphane Mallarmé, publicada em 1897 e caída no
esquecimento no começo do século XX, foi redescoberta a partir da década de 1950, no ápice
da corrente estruturalista. Desde então, é adotada como um dos modelos matriciais da
produção poética recente e contemporânea, seja pela inédita exploração artística de recursos
gráficos e tipográficos, seja pela ambição de renovar os suportes da poesia, aproximando-a
das outras artes. No Brasil, o poema foi traduzido por Haroldo de Campos em 1972.
Convém, entretanto, esclarecer o que se pretende com o termo “mito”. Tal conceito
sofreu relevante alteração desde a metade do século XIX época em que o pensamento
científico e racional superava a influência místico-religiosa nas Humanidades, conseqüência
das Revoluções Francesa e Industrial e do Iluminismo – e afastou-se da acepção de seu étimo,
o grego mûthos (fábula, relato, discurso).
Dessa forma, o “mito”, em sua concepção tradicional, é uma narrativa com a função
de elucidar a origem ou a razão da existência das coisas, dados esses não disponíveis à
percepção humana. Segundo o mitólogo Mircea Eliade (1991, p. 11),
O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no
tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio’. Em outros termos, o mito
narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade
passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento.
[grifos nossos]
É interessante notar que o pesquisador romeno atrela a existência do mito a seres de
outra realidade, alheia à humana. De fato, por muitos séculos viveu-se sob forte influência da
crença doutrinária. Mais que isso, as ciências naturais, as artes, a política e as universidades
eram atreladas a instituições religiosas e à imposição de seus mitos. Eram eles que explicavam
a origem de tudo, e o homem, através dos ritos, sentia-se em contato com a fonte criadora de
seu mundo.
Porém, a partir do século XIX, como dito, as mudanças sociais e intelectuais por que
passou o homem, e que deram início ao período conhecido por Modernidade, desencadearam
um processo de derrubada do mito como relato da proveniência de tudo. Os métodos
racionalistas e positivistas tomavam a experiência passada como base para o presente: a
História tornou-se a única fonte de autoconhecimento da humanidade.
12
A transposição do mito para a História no papel de “escritura sagrada” acarretou uma
orfandade, que simbolicamente Friedrich Nietzsche chamou de “morte de Deus”. Há, ainda,
uma paradoxal perda de contato com o passado: diferentemente dos mitos que são
constantemente reavivados pelos ritos –, os fatos históricos não possuem forma de retorno.
Para Mircea Eliade (1991, p. 124), esta impossibilidade de re-ligação, apesar de angustiante,
impulsiona o homem:
A revolta contra a irreversibilidade do tempo ajuda o homem a “construir a
realidade” e, por outro lado, liberta-o do peso do Tempo morto, dando-lhe a
segurança de que ele é capaz de abolir o passado, de recomeçar o passado e
recriar o seu mundo.
A partir de então, não mais sentido em ver nos mitos a origem de tudo. Tais
narrativas, porém, continuaram a ser amplamente exploradas, seja na Psicologia (Freud, Jung,
Lacan), na Antropologia (Lévi-Strauss), nas Artes, enfim, em quase todas as categorias de
produção intelectual humana suas presenças permaneceram ativas. Seu papel é que mudou,
contudo. Distante da função sagrada, a fábula mítica ganha destaque por espelhar
paradigmas de comportamentos humanos. Eis o seu conceito moderno.
Dentro deste prisma, convém citar um célebre estudo do mito na Modernidade: Roland
Barthes, em sua obra “Mitologias” (1982, p. 136), define-o como uma “mensagem”, ou um
sistema semiológico. Para o pensador francês, a existência do fenômeno dá-se pela
transposição de um signo (composto por um significante e um significado próprios) à
condição de significante mítico. Dessa forma, este signo já completo funciona como
recipiente, invólucro de outro significado agregado pela história e pela cultura locais:
No mito, pode encontrar-se o mesmo esquema tridimensional [...]: o
significante, o significado e o signo. Mas o mito é um sistema particular,
visto que ele se constrói a partir de uma cadeia semiológica que existe já
antes dele: é um sistema semiológico segundo. O que é signo (isto é,
totalidade associativa de um conceito e uma imagem) no primeiro sistema,
transforma-se em simples significante no segundo. [grifos originais]
Uma narrativa mítica qualquer, como a fábula de Édipo, é um signo per se, com
significante (o conto propriamente dito, em sua estrutura) e significado (o enredo de um filho
que casa-se com a própria mãe). Tal signo, entretanto, é um mero significante na estrutura do
mito, em outra tríade: MITO SIGNIFICANTE (signo, fábula de Édipo) SIGNIFICADO
(conceito agregado, interpretação psicanalítica do desejo pela mãe). Curiosamente, este
significado anexo acaba alienando, deformando o significado primeiro (segundo Barthes, não
suprimido, apenas afastado), que permanece parte do significante mítico.
13
O estudo do mito deve desvelar esse significado submerso, a fim de expor o processo
de mitificação sofrido pelo conceito primeiro:
Enfim, se eu for focalizar o significante do mito, enquanto totalidade
inextricável de sentido e forma, recebo uma significação ambígua; reajo de
acordo com o mecanismo constitutivo do mito, com a sua dinâmica própria,
transformo-me no leitor do mito.[ibid., p. 149]
Ora, defende-se que “Um lance de dados” é o mito moderno justamente pelo processo
por que passou desde o seu “resgate” pela crítica em meados do século XX: altamente
difundido e citado por sua forma (a desconstrução do real em cada uma de suas palavras; a
exploração de tipografias distintas; a disposição “flutuante” dos versos na folha, inibindo a
formação de estrofes; a função ativa que o branco da página adquire na formação de sentido,
em virtude do espaçamento entre sintagmas), tem seu significado quase ignorado, ou
dissecado apenas em certas exegeses específicas. Em geral, a essência da obra-prima
mallarmaica, suas leituras possíveis, enfim, seu cerne conteudístico é abafado pela
imponência de suas ousadias formais.
Está formado o mito: a obra revolucionária, que introduziu o uso estético do espaço da
página e aproximou a poesia da arquitetura, da pintura, da música; o “antecessor”, em cuja
lista de herdeiros encontram-se ícones modernos, como Apollinaire, Ezra Pound e toda a
poesia visual; o “poema hermético”, de um poeta quase inatingível.
Uma pesquisa que considera “Um lance de dados” um mito não pode – em se
respeitando a teoria barthesiana dar ênfase a esses conceitos agregados, mas concentrar-se
no signo primordial, que serve de significante dentro da estrutura tica, e cuja “totalidade
inextricável de sentido e forma” é a chave para a compreensão de todo o duplo sistema
semiológico formado a partir dele. Nesse caso, o poema em sua unidade é o objeto maior
desse estudo, e não suas influências e heranças.
Em virtude disso, escolheu-se a Gestalt como teoria principal para a análise. Seu
preceito maior (“o todo não é a mera soma das partes, mas uma grandeza independente”)
corresponde à necessidade imposta por Barthes no estudo do significante mítico. Essa
corrente, também chamada de “Teoria da Forma”, nasce da escola de Berlim liderada por
Max Wertheimer, Wolfgang Köhler e Kurt Koffka.
No início do século XX, tais pensadores (embriagados pelas teorias kantianas e
fenomenológicas) aprofundam os estudos de unidade e partição de Christian von Ehrenfels,
filósofo austríaco que uma década antes cunhara o termo “Gestalt”, definição para a qualidade
única e diferenciada que o todo de uma estrutura adquire em relação a suas partes. Para tal,
14
desenvolvera pesquisas com melodias, em que ressaltara a presença de um jogo de relações
entre as notas que permite ao ouvido humano identificar determinada canção em qualquer
tom, ou seja, mesmo quando todas as notações são alteradas, a estrutura medular do “todo”
é mantida.
Este conceito parece adequar-se ao objetivo estabelecido na pesquisa em tela. “Um
lance de dados” será considerado um “poema gestáltico”, ou seja, suas partes existem em
virtude de seu todo, e dessa maneira que serão estudadas. Com isso, vai-se na contramão da
mais célebre exegese feita (e com a qual se dialogará constantemente na análise), por
Robert Greer Cohn (1951), crítico literário americano de orientação estruturalista. Em uma
obra chamada L´Oeuvre de Mallarmé: ‘Un coup de dés’”, faz um completo estudo de cada
palavra do poema, com remissões a poemas anteriores de Mallarmé e investigações
etimológicas de todos os termos. É um empreendimento de valor documental notável,
recomendado por críticos como Haroldo de Campos, Julia Kristeva e Mário Faustino.
Entretanto, o trabalho peca pelo excessivo fragmentarismo, que impede a visão global da
obra.
Além de permitir essa integralidade na análise, a teoria da Gestalt colaborará para a
compreensão dos caminhos óticos possibilitados pelo poema, dada a flutuação dos termos
sem conexão aparente. Através dos princípios de organização da forma preceitos
desenvolvidos pela escola de Berlim que explicam a estruturação da percepção visual humana
pode-se estabelecer relações de coordenação e subordinação imagéticas, sugerindo chaves
de entendimento em cada uma das páginas.
Finalmente, outro conceito gestáltico aqui explorado inclusive no título dessa
pesquisa é o de correlação. São correlatos os estímulos perceptivos nas diferentes fases do
fenômeno visual: físico, fisiológico e psíquico. Nesse caminho entre a aparição de um objeto
frente ao perceptor e a visualização consolidada no cérebro, tais “imagens” co-relacionadas,
quase idênticas, são etapas necessárias para o processamento da informação. Descoberta da
Escola de Berlim, a teoria da correlação como se verá foi abandonada na Psicologia
durante décadas, até ser amplamente retomada já ao final do século XX.
Adotou-se aqui este termo para o fenômeno fundamental à divulgação e mitificação de
“Um lance de dados”: sua tradução. Verter um texto tão complexo e obscuro é uma operação
poética per se, sem a qual dificilmente a tese deste trabalho (elevar o poema ao status de
mito) seria válida. Por causa disso, escolheu-se trabalhar com o poema original, em língua
francesa, e seu correlato em língua portuguesa, transposto por Haroldo de Campos.
15
Com isso, ganha-se outra perspectiva de compreensão da obra, através da riqueza
tradutória do poeta brasileiro. Sua “transcriação” (termo que ele usava para designar a
transposição criativa do efeito literário e não apenas do sentido literal das palavras) foi
marcante para a geração de poetas das décadas de 70 em diante, no Brasil, e seus efeitos
podem ser notados pela constante remissão a Mallarmé na poesia visual, na ciberliteratura, na
elaboração de livros de artista, entre outros.
Então, entende-se por “co-relato Mallarmé/Haroldo” a relação isomórfica do mito
(relato) original, de Mallarmé, e do mito transcriado, de Haroldo de Campos. O primeiro,
paradigma essencial da Modernidade européia. O segundo, modelo matricial da poesia recente
brasileira. Para a compreensão de tal fenômeno, esta dissertação procurará localizar cada um
dos correlatos em sua realidade temporal e espacial, antes da análise. Assim, há três capítulos:
a exploração do original, do correlato, e a análise propriamente dita.
A primeira seção, “O mito mallarmaico”, visa a conceituar o termo “Modernidade”
(afinal, fala-se aqui do “mito moderno”), bem como procura entender como tal fase histórica
afetou a produção artística da época. Será feita uma breve explicitação das conseqüências das
Revoluções Francesa e Industrial consideradas o gatilho das transformações sócio-culturais
posteriores. Depois, tenta-se um mapeamento da dita “arte moderna”, cuja fonte está no bojo
das revoluções.
Finalmente, o foco irá se fechar na poesia. As duas mais claras influências da poesia
de Mallarmé Poe e Baudelaire serão exploradas, a fim de que se estabeleça um suposto
“fio histórico”, embora virtual e incontínuo, do desenvolvimento da poesia moderna, da qual
os três autores citados são expoentes. Depois, uma rápida perspectiva da obra de Mallarmé
(essencial à compreensão de “Um lance de dados”, que é o seu último poema publicado) sob
dois pontos de vista diferentes: o da pesquisadora Anna Balakian e o do poeta Mário Faustino.
no segundo capítulo, “O mito haroldiano”, faz-se um resumo da influência de “Um
lance de dados” nas artes recentes (desde a década de 1950), como em um livro de artista de
Marcel Broodthaers, artista plástico belga que recria o poema de Mallarmé em forma de
pintura. Também é citado o Livreobra planejada, mas não realizada, de Mallarmé (da
qual se encontraram apenas manuscritos) –, cuja encadernação seria revolucionária, em
fascículos a se ligar e remontar infinitamente. Era o livro que conteria todos os outros livros,
sonho de certa forma realizado em iniciativas recentes como o hipertexto. Depois, conceitua-
se a “transcriação” e faz-se uma análise da tradução de “Um lance de dados” por Haroldo de
Campos (em um trabalho que se enquadra no que o poeta alemão Novalis chamava de
16
“tradução mítica”, ideal, supra-idiomática, e que justifica o título “o mito haroldiano”: é o re-
mito).
No terceiro capítulo (“O mito ‘Um lance de dados’”), então, localiza-se a Teoria da
Forma historicamente, e tenta-se sua conceitualização. Depois disso, a análise do poema
sob os preceitos gestálticos em contraposição a duas outras exegeses: a de Robert Greer Cohn,
citada, e a de Julia Kristeva. Por fim, breves considerações finais, em que se ligarão fatos
repercutidos nos três capítulos, e se tentará mostrar porque “Um lance de dados” é o mito
moderno.
17
2. O MITO MALLARMAICO
2.1 A Modernidade
Discutir a arte moderna, qualquer que seja a produção, exige o esclarecimento do
termo “moderno”, cuja significação extrapola o sentido de “contemporâneo” ou “atual”. Ele
carrega uma atitude, uma maneira de (não) ver o mundo que diferencia esta arte daquela feita
anteriormente.
Surge então outra questão: anterior a quê? Pode-se falar em um “marco inicial”, um
ponto de partida definido? Dificilmente haveria consenso entre os críticos. Não parece haver
discordância, entretanto, de que o “moderno” é o resultado de um processo evolutivo por que
passou a arte desde o século XVIII, e principalmente durante o século XIX.
Elencar motivos que motivaram tal mudança não é simples. Os pensadores iluministas,
as Revoluções Francesa e Industrial, as reviravoltas por que passou a sociedade européia no
período, o desenvolvimento de novas tecnologias, certamente cada um desses eventos
contribuiu para a formação do conceito discutido. Mas até que ponto se pode dar relevância
ao contexto sócio-histórico de uma arte que rejeita o mundo a que pertence?
As relações entre artistas e sociedade é um tema em aberto. A tradicional visão
historicista de que a obra repercute o contexto em que está inserido seu produtor duelou,
no século XX, com a crítica estruturalista, que tendia a “blindar” o objeto de estudo do
universo exterior e priorizar os aspectos técnicos e formais da criação artística.
Para Antônio Cândido (2000, p.21), ignorar algum ângulo é empobrecer a análise:
(...) na medida em que o artista recorre ao arsenal comum da civilização para
os temas e formas da obra, e na medida em que ambos se moldam sempre ao
público, atual ou prefigurado (como alguém para quem se escreve algo), é
impossível deixar de incluir na sua explicação todos os elementos do
processo comunicativo, que é integrador e bitransitivo por excelência. [grifos
originais]
O artista e seu público estão, assim, inseridos em um contexto sociológico, que por sua
vez é motivado por fatos históricos. A partir disso uma obra é construída, com sua estrutura
peculiar que respeita outra linha evolutiva, a da Arte. Todos esses elementos formam uma
sinergia com o público, que reage à criação e é influenciado por ela, na bitransitividade
aludida por Cândido. Cada parte formadora de tal circuito comunicativo é um fator
influenciador e um objeto influenciado, em um círculo que se renova constantemente:
18
(...) a arte é social nos dois sentidos: depende da ão de fatores do meio,
que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre
os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção do
mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais. Isto decorre da
própria natureza da obra e independe do grau de consciência que possam
ter a respeito os artistas e os receptores de arte. (ibid., p. 19). [grifos nossos]
Os “diversos graus de sublimação” podem envolver até a quase-inexistência dos
fatores sociais na obra, ideal de boa parte dos artistas modernos. Não se pode, entretanto,
negar a influência inerente do meio no processo criativo, mesmo que a tal nível inconsciente
que nem quem faz Arte, tampouco quem a consome, possa perceber.
Isto posto, parece demonstrada a relevância de se considerar o contexto de formação
do que se chamou de Modernidade na Europa, ao se estudar a arte moderna. Não que
necessariamente uma dependa da outra, ou que tenham se formado de modo concomitante,
mas pela existência visível de pontos onde se encontram e se influenciam.
A definição de Modernidade, porém, posta outro desafio: como todo processo, não
surge a partir de um evento isolado, mas é o resultado de séculos de fatos sucessivos que
geraram mudanças significativas no planeta, simbolizadas pelas Revoluções Francesa e
Industrial. Estas, por sua vez, são a nominalização de uma cadeia evolutiva de situações
sócio-político-econômico-culturais na França e na Inglaterra, respectivamente. Suas
reverberações, porém, mudaram a história do restante da Europa e, posteriormente, do
mundo inteiro – nas quatro esferas citadas, como se verá.
Em nível político, foi a Revolução Francesa que representou o maior avanço do
processo formador da Modernidade. O país do rei Luís XVI viu o desespero popular virar
perspectiva política após a péssima safra de 1788 e 1789, que gerou intensa crise financeira e
aumentou a dívida da aristocracia. Esta, para manter seus privilégios, tinha que sobrecarregar
a carga tributária dos camponeses, que passaram a organizar-se. Por isso Eric Hobsbawm
(1981, p. 76) escreve que “a guerra e a dívida [...] partiram a espinha da monarquia”. Se os
levantes eram questão de tempo, não dúvidas que foram antecipados pela recessão
(“dívida”) e pelo exemplo da Revolução Americana (“guerra”).
Com a posterior queda da Bastilha e a conquista da “Declaração dos direitos do
Homem e do Cidadão”, a Monarquia agonizou até 1793, quando o estabelecimento da
República Jacobina encerrou de vez o Absolutismo e o Feudalismo na França. Tais fatos,
porém, repercutiram universalmente, pois a crença geral na Revolução provocou agitação
política em todo o continente. Nenhum país europeu ficou “com suas instituições inteiramente
inalteradas pela expansão ou imitação da Revolução Francesa” (ibid., p. 109). Segundo o
19
historiador, “A França deu o primeiro grande exemplo, o conceito e o vocabulário do
nacionalismo”. A existência de uma lei dos homens em lugar da lei divina absoluta
posicionava o ser humano em um contexto social, como se explorará mais adiante.
Na Europa pré-revolução, “o resto do mundo era assunto dos agentes governamentais
e dos boatos” (ibid., p.26), ou seja, era intangível e distante ao homem comum, que podia
interferir apenas na própria existência. Após os primeiros passos para a democratização, o
mundo passa a ser problema de todos, e não mais fica sob o controle dos “escolhidos” por
Deus. Foi esse o principal legado (e fardo) da Revolução Francesa.
no âmbito econômico, o cenário da Modernidade foi primeiro desenhado na
Inglaterra, cujas estruturas governamentais e religiosas permitiam a busca do lucro, além das
reservas de minério de ferro e carvão e da abundância de mão-de-obra. Ali se deu a
Revolução Industrial, que Hobsbawm chama de “o mais importante acontecimento na história
do mundo” (ibid., p. 45). É a decorrência do processo de crescimento auto-sustentável em que
a tecnologia equipa a indústria, dando-lhe condições de aumentar a produção e gerar ganhos,
que por sua vez financiam mais pesquisas para suprir as novas demandas tecnológicas. O
círculo, uma vez fechado, tende apenas a expandir.
O primeiro desses ciclos, o do algodão, foi motivado pelas invenções do tear e da
fiadeira; o segundo, de carvão e ferro, foi marcado pelo advento das ferrovias, espécie de
símbolo da época. Posteriormente, ao final do século XIX, as indústrias automotivas e
químicas passariam a multiplicar as produções inglesa e européia.
As duas revoluções, assim, mudaram a existência de maneira definitiva. O século XIX
foi o de transformações mais radicais na história, ponto de partida para um cenário totalmente
renovado no século seguinte. Talvez as mais extremadas repercussões tenham ocorrido na
esfera social, conseqüência dos planos político e econômico. Embora a tecnologia e a ciência
tenham tido avanços espetaculares, viu-se o aumento da diferença de renda e a difusão da
pobreza nas grandes (e cada vez maiores) cidades. Por isso Hobsbawm (1981, p. 321) chama
o período de “era de superlativos”.
São três os pilares da nova sociedade pós-revoluções: a multidão, resultado da feroz
urbanização provocada pelo êxodo de camponeses; a democracia, que fez com que o homem
participasse mais ativamente do controle do mundo; e a rotina, surgida com a padronização
da jornada de trabalho nas indústrias.
Os grandes aglomerados humanos formados nas principais cidades européias, em
especial Paris e Londres, foram o efeito mais visível da industrialização. A migração em
massa de camponeses provocou um crescimento desordenado e meteórico, expondo os
20
habitantes a condições precárias. A expectativa de vida nas cidades era duas vezes menor que
no campo na primeira metade doculo XIX. Os pobres foram relegados à periferia, “jogados
em cortiços onde se misturavam o feio e a imundície” (HOBSBAWM, 1981, p. 223); os
avanços tecnológicos e macroeconômicos não refletiam no dia-a-dia da turba trabalhadora,
exposta a rotinas desumanas e vivendo em um ambiente nada sadio. “O infanticídio, a
prostituição, o suicídio e a demência têm sido relacionados com esse cataclismo econômico e
social”. (ibid., p. 225).
Na multidão, o indivíduo perde sua identidade. Vira o que José Ortega y Gasset (1987,
p. 12) chamou de “homem massa”, que “carece de um ‘dentro’, de uma identidade própria”.
Pertencer a um grupo funciona como uma defesa, e ao mesmo tempo uma fuga de si. Ele
“sente-se bem por ser idêntico aos demais” (p. 40).
Esse novo ser, envolto em um meio degradado, exausto em decorrência da ganância
dos industriais e agindo mecanicamente de acordo com a massa, nem em tais condições atinge
estabilidade. As mudanças de moradia e emprego são comuns: não se sabe onde se estará no
dia seguinte: as pessoas ficam à mercê do acaso, inseguras. “Assemelham-se a espectros”
(BRESCIANI, 1994, p. 11).
Tamanha falta de controle sobre seu próprio destino, conseqüência direta da multidão,
constitui um paradoxo com outra marca fundamental da nova sociedade: a participação
popular nas decisões coletivas.
O processo de democratização foi-se estabelecendo gradualmente após as quedas de
quase todos os governantes absolutistas durante o século XIX. Após a Primavera dos Povos,
uma quase revolução global em 1848, dois fatores levam ao aumento da participação popular
no rumo dos países: o nacionalismo e a consciência de classe. O primeiro surge do
engajamento em batalhas contra reis absolutistas, e do acesso maior à informação que o
grande desenvolvimento da Imprensa permitia. Entendia-se muito melhor, na segunda metade
do século, que a atitude individual ecoa na coletiva, e que se pode interferir nos rumos da
nação.
Além disso, a extrema pobreza vista nas grandes cidades era o cenário revoltante ideal
para insuflar as pessoas à ação. A compaixão pelos sofridos passa a ser especialmente em
Paris e Londres – uma “obrigação social”. A questão pública era debatida em tabernas, cafés e
todos os lugares de agitação cultural. A sensação era de se estar em um “palco onde se encena
o espetáculo de uma revolução permanente” (ibid., p. 116).
Foi nos meios industriais, todavia, que se logrou organizar entidades que pudessem de
fato conquistar benefícios à massa. A consciência de classe nasceu mais da exaustão diante de
21
condições absurdas de trabalho que de alguma ideologia. Essas (embora o Socialismo de
Marx fosse a base teórica da mentalidade operária, não se pode ignorar a grande influência
que tiveram outros pensadores, embora de repercussão mais local, como Saint Simon na
França e Robert Owen na Inglaterra) surgiam durante o processo de formação dos sindicatos.
A luta popular não era mais contra um governante absoluto, com poderes divinos: era contra a
antiga aliada, a burguesia industrial, que durante a Primavera dos Povos viu o seu direito à
propriedade ser ameaçado. Após tal risco, os novos donos do poder descobriram que a
manutenção da ordem era a mais segura forma de garantir a manutenção de seus lucros,
mesmo que para isso tivessem (como fizeram, de fato) de abdicar de pontos do seu programa
original. Ironicamente, as idéias revolucionárias burguesas de cinqüenta anos antes passam às
mãos dos líderes operários: o combatente virara combatido.
O burguês pós-Primavera dos Povos usufruiu de quase 30 anos de explosão econômica
com os ciclos do carvão e do ferro. Com isso, afirmou de vez sua condição de classe
dominante, e constituiu um universo próprio, base da mentalidade do século seguinte: o
burguês moderno perdia seu fervor religioso e consumia muita informação e arte. Na
monarquia, o artista era visto como um “ornador”; na sociedade burguesa, ele tomava o lugar
de sacerdotes no ideário coletivo e era altamente valorizado.
Este é o “protótipo do homem-massa”, mencionado, o futuro “bárbaro moderno” do
século XX, para Ortega y Gasset (1987, p. 122). Acostumou-se com as facilidades adquiridas
pela tecnologia, e deseja cada vez mais; constrói sua existência através do binômio
trabalho/ciência, e deixa valores como família e religião em segundo plano. E começa a ver a
classe proletária como segregada, diferente, alheia a seu mundo. A própria maneira como a
urbanização ocorreu, relegando os mais pobres às periferias, afastados, facilitava o aumento
do abismo entre burguesia e trabalhadores.
Era natural, então, que o movimento operário virasse a bandeira pela qual os mais
necessitados tentavam diminuir as diferenças de renda. Era uma “organização de autodefesa,
de protesto e de revolução”. Mais que isso, virou um “modo de vida” (HOBSBAWM, 1981,
p. 235). Seus líderes eram heróis populares e suas conquistas, repercutidas nas ruas. Foi tal
organismo que permitiu às pessoas perceberem o seu poder de influência, a sua possibilidade
de participação.
Isso se dava em um Estado cada vez mais aparelhado e burocratizado, outra marca da
Modernidade. Criavam-se mais leis, estatutos, documentos, requerimentos e formalidades. A
monetarização total da economia e o crescimento dos bancos realçavam a importância das
22
instituições. O “estado-nação” encorpava, enraizava-se e passava a controlar as relações
sociais.
Como dito, é esse um dos grandes paradoxos modernos: a mesma sociedade da
multidão e da mecanização, que impunha a repetição ininterrupta das mesmas tarefas
provocando a anulação da individualidade, era a sociedade da participação coletiva, do
sufrágio universal, do acesso à informação, da luta por direitos trabalhistas no movimento
operário. Quanto mais se participava dos destinos do todo, menos se tinha controle de sua
própria sorte. Seguir leis, tão genéricas e impessoais, provoca a diminuição do “eu”: a
Modernidade é o “anti-humanismo” (TOURAINE, 2002, p. 38), a “destruição criadora” (ibid.,
p. 100), o “sentimento angustiante do sem-sentido” (ibid., p. 101).
“Sem-sentido” expressa bem uma parte da atmosfera da época. A sobreposição da
crença religiosa pela ciência exata acaba com o finalismo, mais cômodo e reconfortante. O
papel social regulador que possuíam as leis divinas migra para apenas um princípio moral:
uma necessidade de confiança mútua nas relações. O trabalhador espera que será pago e o
empregador crê que seu subordinado cumprirá suas obrigações. O homem tem que aprender a
viver em um meio sem a obrigatoriedade imposta pelo Absoluto. Tem, ao mesmo tempo, uma
sensação constante de vazio, e uma gama infinita de possibilidades.
O sociólogo britânico Anthony Giddens (2001) atribui a três fatores o grande ritmo de
mudanças sociais nos tempos modernos, que transformaram o conceito de individualidade: A
descontextualização das instituições sociais, a reflexividade institucional e o
esvaziamento do tempo e do espaço.
A primeira diz respeito à questão da burocracia: ao se substituir a visita de um oficial
do governo pelo envio de um documento por correio, ou ao se possibilitar assinar um papel
que, diz-se, vale o mesmo que quilos de ouro, o Estado de que este homem moderno pensa
fazer parte torna-se abstrato. É a vitória do signo sobre o referente, dos valores-padrão, que
homogeneízam o indivíduo.
De “reflexividade institucional” Giddens chama outro aspecto impulsionador de
transformações em âmbito coletivo: a capacidade dada pelas ciências humanas e naturais para
se repensar a própria vida social. O espírito desbravador e criador do moderno alimenta mais
estudos e descobertas, que se refletem imediatamente na conduta tomada. São novas teorias
socialistas mudando o sindicalismo, novas doutrinas econômicas guiando alterações nas
políticas financeiras, máquinas e tecnologias inéditas que obrigam toda a indústria a se
renovar: repensam-se todos os sistemas constantemente. É uma sociedade absurdamente mais
dinâmica que aquela de cem anos antes.
23
O sociólogo inglês atribui tal dinamismo ao esvaziamento do tempo e do espaço, o
mais fundamental propulsor da revolução social vista no século XIX. As grandezas temporais
e espaciais não dependiam mais uma da outra, e nenhuma das duas se valia da Natureza como
no passado.
Quanto ao tempo, dois exemplos disso são: a difusão do relógio mecânico, que
facilitou acompanhar totalmente as fases do dia, sem a dependência de fatores naturais como a
luz do sol; e a institucionalização da jornada de trabalho, depois da qual passaram a existir
dois tempos: o do trabalho e o fora dele. Tudo era, a partir daí, arranjado de acordo com as
horas úteis. Talvez tenha sido essa a mais impactante mudança da nova era.
Também o espaço passou a ser tomado por signos: aumentou-se muito o conhecimento
do globo, e mapas universais eram cada vez mais precisos. As distâncias diminuíram, bem
como o intercâmbio de informações, com o desenvolvimento de meios de transporte mais
rápidos e eficientes em rotas mais inteligentes, a partir de uma cartografia mais fidedigna.
O domínio gnico do tempo e do espaço, assim, dinamizou a existência. O longe e o
futuro eram mais acessíveis. A quantidade de novas possibilidades abertas com tais adventos
é inumerável. Giddens (op. cit., p. 24) afirma que “o esvaziamento do tempo e do espaço
iniciou processos que estabeleceram um mundo onde nenhum existia antes”. Embora isso
seja mais claro a partir do século XX, na segunda metade do culo anterior as perspectivas
do que todo esse movimento poderia gerar eram perturbadoras
1
.
Assim, a Modernidade foi marcada pelo paradoxo “eu” x “sociedade”, o que acabou
por influenciar diretamente o terceiro pilar citado da nova civilização: a rotina. Esta, por sua
vez, encontra-se no meio de outro contraste: se os dias eram todos iguais, com a enfadonha
tarefa profissional na linha de produção, o mundo mudava freneticamente: um “turbilhão de
permanente desintegração e mudança” (BERMAN, 1996, p. 15).
O que se conclui é que o social vencia a batalha contra o indivíduo. Alain Touraine
(2002, p. 221) resume que “o sujeito é fraco, não apenas dominado pelos aparelhos de poder,
mas privado de uma grande parte de si mesmo”.
1
O processo de esvaziamento do tempo e do espaço resultou na globalização, conceito mais
difundido a partir da segunda metade do século XX. Em seu estudo citado, Giddens detalha
esse processo, e conclui que “a globalização diz respeito à intersecção da presença e da
ausência” (p. 19). Por sair do escopo da pesquisa em tela, tal desenvolvimento não foi
incluído.
24
2.2 A arte da Modernidade
Tem-se, portanto, um claro panorama das motivações da Modernidade em diferentes
esferas: política, com o processo de democratização desencadeado a partir da Revolução
Francesa; econômica, com a auto-sustentação do processo produtivo gerada pela Revolução
Industrial; e social, com o surgimento de uma nova mentalidade coletiva de multidão
propulsionando o esvaziamento do sujeito.
Tudo isso reverbera na quarta esfera que se pretende explorar: a cultural. Com as
agitações no campo político, era natural que as produções das ciências humanas fossem mais
voltadas à Política e Sociologia. Liberta da religião desde o Renascentismo e da aristocracia
desde o Iluminismo, a intelectualidade do século XIX abraça o conceito liberal-humanitário
de que o homem é responsável pelo seu próprio destino. Teorias socialistas, que
fundamentavam a luta operária por melhores condições de trabalho, repercutiam com grande
rapidez nas tabernas, na boêmia, espécie de palco onde revolucionários e líderes sindicais
discutiam seus próximos passos.
O que seguramente diferencia a Modernidade de outras épocas é tal intercâmbio quase
instantâneo: o desenvolvimento da Imprensa e a melhoria das técnicas de reprodução gráfica
facilitavam a divulgação de idéias. Formou-se um mercado consumidor de folhetins, em que
cultura e arte eram, pela primeira vez, tratados como mercadoria. A influência da tecnologia
revolucionou a produção artística, e permitiu que mais pintores, escritores e músicos vivessem
exclusivamente de suas criações.
Walter Benjamin (1994), em seu célebre ensaio “A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica”, descreve as conseqüências da formação desse mercado de
consumo. Para ele, a reprodução técnica difere da manual consagrada até então que
esta, apesar de ser uma falsificação, preserva a autoridade da obra. Aquela, entretanto,
desvaloriza o original: ela “substitui a existência única da obra por uma existência serial” (p.
168). Com isso, perde-se o que o pensador alemão chama de “aura”, que é a “figura singular,
composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por
mais perto que ela esteja” (p. 170). A arte, que entre os homens primitivos era sagrada, secreta
e acessível a poucos, emancipa-se, é escancarada ao grande público.
25
Os adventos da fotografia e de novas técnicas tipográficas
2
provocaram reações
diversas na classe artística: aqueles que cumpriam as exigências dos editores e eram “bem
aceitos” pelo público, produzindo de acordo com as “demandas” dos consumidores; e os que
reagiam a tudo isso, isolando e protegendo sua arte da banalização
3
. Isso não significava que
deixavam de publicar o que criavam, mas que “blindavam” suas obras do grande público.
Em outro ensaio, “Sobre alguns temas em Baudelaire”, Benjamin (1989, p. 140)
explica que essa crise percebida pelos artistas gerava nostalgia dos tempos em que se
sacralizava a arte, e a maneira que encontraram de resgatar tal espírito era afastar a obra da
compreensão da massa leitora, que “a inacessibilidade é uma qualidade fundamental da
imagem do culto”.
Aflorada essa necessidade, o mistério passa a ser uma constante, ao menos nas
produções não voltadas exclusivamente ao mercado do entretenimento. Na primeira metade
do século XIX, o artista romântico se fechara em sua obra, mas não objetivando um
afastamento do receptor: ele almejava distanciar-se da realidade. Limitar seu mundo à sua arte
era um mecanismo de defesa, de negação ao presente, seja no lirismo dramático de
Beethoven, no escapismo frente à tragédia de Francisco Goya ou no saudosismo de Vitor
Hugo.
O artista do final do século, entretanto, tem outra motivação. Ele não quer fugir à
realidade, mas evitar que sua obra seja desvirtuada. Diminuir a acessibilidade para aumentar
seu valor: o hermetismo é uma das mais aparentes características das tendências ditas
modernas.
Contudo, antes de se listar de modo indiscriminado possíveis atributos de uma “nova
arte”, há que se voltar às questões expostas anteriormente: o que é a Arte Moderna? É
possível achar pontos de contato nas produções recentes que estabeleçam assim a existência
de uma “tendência mundial”? Há um marco inicial?
O contexto histórico exposto aponta o surgimento de um mundo cujas particularidades
sócio-político-econômico-culturais justificam seu rótulo de “moderno”. A Modernidade seria
então o cenário industrial, urbanizado e interativo estabelecido durante a segunda metade do
século XIX, e definitivamente instaurado nos anos posteriores.
2
A difusão da propaganda barateou os periódicos, que passavam a contar com outra fonte de
renda. Isso popularizou a compra de jornais nas grandes cidades européias.
3
Muitos artistas, hoje consagrados como cânones, publicavam suas obras em jornais sem
grande sucesso. Baudelaire, cuja produção será discutida mais adiante, é um exemplo de
escritor e ensaísta mal colocado no mercado consumidor da época.
26
Afirmar que a Arte Moderna é a arte da Modernidade constitui uma simplificação
limitante. A mais definitiva certeza sobre a Arte Moderna é de que ela não existe enquanto
tendência mundial, parâmetro ou padrão estético. Ela é simplesmente a junção grosseira e
didática de inúmeros artistas – reunidos em movimentos ou não – que reverberaram as
radicais mudanças por que a Sociedade passou. Absorveram a inteligência crítica iluminista e
a sensibilidade romântica, mas ao mesmo tempo as negaram como dogmas.
Logo, não se pretende encontrar regras aplicáveis a todos os artistas do período
estudado. Isso seria utópico. O objetivo é apreender o espírito moderno que de certo modo
habita a maior parte das criações, e componha o uma linha de conduta, mas um painel
4
da
arte na época.
Em “O nome e a natureza do Modernismo”, Malcolm Bradbury e James McFarlane
(1999, p. 18) arriscam uma generalização:
[A arte moderna é] o advento de uma nova era de alta consciência estética e
não-figurativismo, em que o artista passa do realismo e da representação
humanista para o estilo, a técnica e a forma espacial.
Deixar o “realismo” de lado era não dar à sua obra “função social”: estava estabelecida
a “crise entre a arte e a história” (ibid., p. 21). O comprometimento do artista não será sócio-
político, mas para com a evolução da própria Arte. É a segunda característica (tendo em vista
que o hermetismo foi a primeira) que pode ser observada na arte da Modernidade: o
engajamento artístico. Jamais houve tantos movimentos, debates, críticas e dissidências
como no século XX. Quase todos os artistas foram críticos por excelência não de outros
trabalhos, mas também de sua criação. As vanguardas talvez sejam o melhor exemplo disso:
com seus manifestos, verdadeiros “elementos bélicos” com fórmulas originais de composição:
“procuram a radicalização das inovações e a produção de estranhamentos que as isolassem e
as protegessem do presente” (MENEZES, 1994, p. 88).
É a busca da originalidade a qualquer preço: para tal, o desenvolvimento do estilo,
citado por Bradbury e McFarlane. Este deve ser pessoal e utopicamente incomparável com
qualquer outra tendência: o artista renova a maneira pela qual encara o seu trabalho: inovar é
agora mais importante que criar. A Arte Moderna caracteriza-se, assim, pela estética do
choque.
4
As sete características escolhidas são uma generalização sem ambicionar a definir o que é
moderno ou não, porém visa a ser uma condensação de tendências. Haverá artistas e
movimentos que não se enquadram em uma ou outra, mas como inclinação geral, todas
parecem consagradas pela crítica como sendo inerentes à produção de Arte da Modernidade.
27
Nota-se que o consumidor dessa obra é mais uma vez afastado. Sua natureza hermética
e surpreendente, conforme explicitado anteriormente, anula um dos pólos naturais da
comunicação, a recepção. Não se compõe mais para o outro.
A pergunta inevitável é: para quem é, então, destinada a criação? Ao próprio artista?
Ora, seria difícil conceber isso na era em que o “eu” estava claramente enfraquecido. A quase
(ou, em alguns casos, total) inexistência de traços pessoais nas criações faz supor que o outro
extremo comunicativo, a emissão, também fora alijado da obra.
O que sobra então? A mensagem, pura e concentrada, acontecendo por si só no ideário
moderno. Ela deixa de vincular-se a seu criador ou a seu consumidor: ela torna-se
independente, e sua auto-realização dá-se em um entre-lugar desses dois estágios. A
“procura de uma arte-objeto pura” (BERMAN, 1996, p. 29) constitui uma marca dessa nova
maneira de se fazer Arte.
“Arte-objeto”, a arte que não significa, mas é. O significante livre do desgaste do
significado, transformado em um “ser”, cuja “ressonância interior”, para Kandinsky (1996, p.
166) – poeta e pintor revolucionário – é a única coisa que resta.
É a “idéia” sendo vencida pela “estrutura”
5
. Na arte pré-moderna, aquela é o ponto de
partida para essa. A partir do final do culo XIX, entretanto, a significação emana da forma,
que lhe é anterior. Isso obriga os artistas a investirem no refinamento de sua técnica, outro
ponto em comum das obras de arte modernas. A industrialização galopante e a mentalidade
cientificista da época, aliadas à profissionalização dos autores, pintores e músicos,
estabeleceram o cenário necessário para uma aguda especialização dos envolvidos com o
processo artístico. Havia mais discussões, estudos e os mencionados movimentos de
diversas ordens, o que levou a Arte a um período de enriquecimento formal, através de
experimentalismos, desenvolvimento de uma crítica mais atuante e o surgimento de novas
possibilidades tecnológicas:
A arte moderna deve recriar, para si, as prodigiosas transformações de
matéria e energia que a ciência e a tecnologia modernas [...] haviam
promovido (BERMAN, 1996, p. 141)
Este constitui mais um dos tantos paradoxos modernos: o artista, com as
características mencionadas, negava o mundo exterior e protegia sua obra dele, tornando-a
5
Como dito, as características levantadas da Arte Moderna são genéricas, pela imensa
heterogeneidade da época. Pablo Picasso, pintor símbolo da Modernidade, afirmava que a
idéia era seu “ponto de partida, e nada mais(s/d, apud CHIPP, 1996, p. 277). Embora haja
clara predileção pela forma, ela ainda é subjugada a uma significação apriorística.
28
hermética, chocante e independente. Além disso, não se engajava politicamente
6
, mas apenas
no âmbito artístico. Entretanto, ao se especializar ao máximo e aprimorar sua técnica, apenas
repetiu o que tanto o perturbara na sociedade industrial. Transformou-se em uma variação do
especialista fabril, produzindo incessantemente para ganhar seu sustento.
O afastamento do local e do pessoal nas manifestações artísticas gerou uma
necessidade de universalização, mais uma das qualidades típicas da Modernidade. No texto
“Realidade natural e realidade abstrata”, em que lança as bases do movimento neoplástico, o
pintor Piet Mondrian (1996) afirma:
Se a realidade for contemplada de um modo preciso e definido, a atenção se
dirigirá unicamente para o universal, e, em conseqüência, o particular, o
individual, desaparecerá da arte. (p. 326)
É a tentativa de apreender o instante do fenômeno exterior e captar sua unidade e seu
encanto estético antes da “mácula” deixada pela impressão pessoal. Tal necessidade nasce do
trabalho com a forma (“modo preciso e definido”), cujo equilíbrio e excelência universalizam
o produto artístico. O método de criação passa a ser mais importante que a própria obra.
Para o músico Igor Stravinsky, o papel do artista moderno é respeitar uma
sistematização procedimental que organize sua imaginação criativa. “Quanto mais a arte é
controlada, limitada, trabalhada, mais ela é livre” (1996, p. 63). Cabe ao criador perceber a
“necessidade de dogmatizar sob pena de perder o nosso objetivo” (p. 65).
Ele divide o “dogma” em três premissas fundamentais: apenas se atinge a
universalidade pelo trabalho de seleção (“busca do Um a partir do Múltiplo” (p. 69)) dos
estímulos; o respeito e a submissão a uma ordem (método) estabelecida; e a submissão da
liberdade criadora ao objeto da obra.
Não seguir os supracitados preceitos é cair no cosmopolitismo estéril, que leva ao
isolamento do artista e não o consagra no Uno artístico, por estar em desacordo com essa
ordem vigente.
De tal maneira unidos pela forma e pelos movimentos de que participavam, e
beneficiados pela melhoria dos meios de comunicação e de transporte, os artistas mais uma
vez refletiram uma tendência do mundo que abominavam: a globalização, embora ainda
fosse limitada política e economicamente, era sentida na Arte. Técnicas e temas orientais
eram incorporados pelos trabalhos ocidentais; peculiaridades de povos indígenas passaram a
6
Foram muitos os artistas modernos com envolvimento político, como o futurista Filippo
Marinetti, ativo no Partido Fascista Italiano. Suas obras, porém, nascem em resposta a um
contexto muito mais artístico que político.
29
gerar interesse; o inusitado de outras culturas foi mais uma maneira de violar a continuidade e
trazer fatos novos às criações.
Hermetismo; engajamento artístico; choque; auto-realização; técnica; universalização
e globalização. Tais as sete características mais abrangentes da Arte Moderna. Todas elas
transpareceram nas mais diversas formas de criação, já que poetas, músicos e artistas plásticos
comunicavam-se em freqüência muito maior que antes: em virtude disso, as diferentes
modalidades de arte desenvolvem-se em uma linha evolutiva bastante similar.
Na pintura e na escultura, o Simbolismo e o Impressionismo são geralmente
associados ao começo do Modernismo, pela quebra da representação pictórica da realidade e
pela sublimação de contornos e formas. Movimentos posteriores, como o Neoplasticismo de
Mondrian e o Cubismo de Picasso intensificaram a sofisticação no trato do significante, o que
obscureceu ainda mais as obras.
Na música, a modernidade refletiu na luta contra a tradição clássica da tonalidade. A
busca da atonalidade na obra de Gustav Mahler, no século XIX, é prenúncio de grandes
revoluções no culo posterior, como o serialismo de Igor Stravinsky e principalmente o
Dodecafonismo de Arnold Schönberg, que encerra o conceito de nota tônica e estabelece que
cada uma das doze notas musicais que compõe a oitava apareça o mesmo número de vezes em
cada composição. O século XX caracterizou-se pelo crescente hermetismo da música dita
erudita, cada menos menos acessível às massas.
2.3 A Literatura da Modernidade
na Literatura, o Romantismo que dominou todo o começo do século XIX
continha em seus arquétipos traços de Modernidade. Ao viver o conflito eu-mundo, o artista
romântico por um lado, desvinculado dos valores religiosos e aristocráticos de antes, e
embriagado pela epistemologia ontológica de Kant e Fitche, que centralizava a razão a partir
do Ser; e por outro, mais ativo politicamente, em constante contato com teorias historicistas
inaugura a tendência moderna de fechar-se em sua própria obra. Mas tal processo é uma fuga
decorrente de sua inadaptação à euforia vigente frente os avanços conquistados pela
Humanidade. Ao não compartilhar integralmente desse sentimento, sente a angústia do
isolamento.
30
O “Eu romântico” é, ainda, voltado à multidão. O sentimento nacionalista presente em
tantos autores e sua luta pela integridade da língua pátria expressam um comprometimento
que se tornaria raro no moderno.
Podem-se creditar aos românticos, ainda, tímidas inovações na forma literária, que
seriam amplamente intensificadas posteriormente. O coloquialismo de Victor Hugo ou a
“magia das palavras” de Novalis
7
antecipam a moderna revolução no modo de fazer literário.
Definir uma data, um acontecimento ou um artista que tenha quebrado os padrões
românticos e iniciado a Modernidade na Literatura seria ignorar um processo dinâmico e
gradual de concentração na forma e de dissassociação do “eu” com o “mundo”. Pode-se falar
que ser moderno é também fechar-se na própria obra, mas sem o escapismo romântico de
negar o presente. Ao isolar-se na estrutura de sua criação, o artista da Modernidade aspira a
fundar um novo ser, a recriar a realidade sem a influência do “eu” ou do “outro”.
Na poesia, são dois os nomes geralmente associados à inauguração dessa tendência:
Edgar Allan Poe, nos Estados Unidos e na Inglaterra; e, quase concomitantemente, Charles
Baudelaire, na França. O americano viveu de 1809 a 1849, e exerceu declarada influência no
francês (1821 – 1867), que foi seu tradutor e admirador.
Dificilmente pode-se crer que Poe teve tempo de conhecer algo da obra baudelairiana.
Sua vida errática e biografia incerta, porém, dificultam o acesso a esse tipo de informação. De
qualquer modo, costuma ser considerado o “ponto nodal” (MENEZES, 1994, p. 48) da
transição entre o Romantismo e o Modernismo, quando de fato os impulsos intelectuais da
obra passam a (querer) controlar os sensoriais. A criação-símbolo de tal conflito é “O corvo
e seu “ensaio explicativo” “Filosofia da Composição”, em que cada passo da produção do
poema é detalhado aprioristicamente. O efeito é construído, e não emanado: a forma precede
o tema, e deve ser sempre inovadora, encarada como um problema matemático. Ela “passa a
ser uma metáfora dos produtos da racionalidade, representação das produções científicas e
técnicas dos processos dirigidos pelo intelecto” (ibid., p. 50).
Alguns críticos, porém, não acreditam na aprioridade do ensaio em relação ao poema.
O crítico Antonio Brasileiro (2002, p. 39) corrobora com tal linha:
Para nós, contudo, o excelente ficcionista Poe, precursor de Borges,
brincava. Seu poema já estava pronto quando decidiu justificá-lo. E não
havia por que ser diferente: a mente do grande poeta, no ato da criação,
dispensa os lentos instrumentos do raciocínio.
7
Por defender que cada palavra é um encantamento, e atribuir ao poeta o papel de mago,
Novalis vem sendo considerado um dos mais modernos românticos. Ver FRIEDRICH, 1978,
p. 27 – 30.
31
Não parece ser relevante se de fato o poeta construiu sua obra a partir do efeito
desejado, ou se a “Filosofia da Composição” nasceu depois. Mas fica clara a intenção de Poe
de apontar a necessidade de se filtrar a inspiração pelo julgamento mental. Tal preocupação
reverbera também em seus textos teóricos: a “mente do grande poeta” parecia em luta com
seu lado racional.
Com o poder da razão, Poe acreditava ser possível dominar o acaso na obra de arte. A
saída era o trabalho sobre a linguagem. Em uma de suas “Notas Marginais”, intitulada “Entre
a vigília e o sono”, diferencia os conceitos de “pensamento” e “fantasia”. Estas são
atemporais e acontecem apenas à beira do sono. aqueles demandam a cognição através do
tempo. Sobre a expressão das duas distintas imagens, afirma (1989, p. 57):
Não creio que qualquer pensamento, propriamente assim chamado, esteja
fora do alcance da linguagem. [...] Há, no entanto, uma espécie de fantasias,
de refinada sutileza, que não são pensamentos, e às quais, até aqui, tenho
considerado absolutamente impossível aplicar a linguagem. [grifos originais]
Nota-se que Poe reconhece uma limitação da linguagem (tema que retornará de forma
mais relevante em Mallarmé) em expressar suas fantasias, racionalizar suas experiências
sensórias. Buscar isto é papel do poeta (ibid., p. 58):
Tão completa é a minha no poder das palavras que [...] não perco de
todo a esperança de corporificar em palavras pelo menos o suficiente das
fantasias em questão para transmitir [...] uma vaga concepção do seu caráter.
[grifo original]
Como citado, os românticos ensaiavam uma valorização lexical, especialmente
Novalis. Mas apenas com Poe o ritmo, os fonemas, os efeitos sonoros passam a valer mais
que o significado. Poesia, para ele, era a junção da Idéia com a Música. Depois desse marco, o
poema moderno passou a descolar cada vez mais as palavras de seus referentes.
Ressaltar a influência de Poe em Baudelaire não significa diminuir o francês:
primeiramente, graças a ele o americano teve grande repercussão na França antes mesmo que
sua obra fosse difundida em seu próprio país; além disso, Baudelaire soube amplificar os
conceitos absorvidos e compreender o espírito moderno como ninguém havia antes dele.
Em estudo sobre Poe, Paul Valery (1989, p. 138) ressalta que “sua concepção [de
poesia], por ele exposta em diversos artigos, foi o principal agente de modificação nas idéias e
na arte de Baudelaire”. Para o poeta e crítico francês, são três os legados que Baudelaire
apreende do autor de “O Corvo”: A filosofia da composição, a compreensão do moderno e o
gosto pela elegância e precisão.
32
Les Fleurs du mal” é um árduo exercício de racionalização poemática. Embora não
haja grandes inovações formais na versificação, a maneira como os poemas são divididos
subordinados a uma disposição medular –, seu grau de remissibilidade interna e o
obscurantismo intimidador ao leitor fazem desta a primeira obra “cosmológica” da Literatura,
que ela pretende existir por si só, dentro de sua estrutura, deixando de fora o “eu” e o
“outro”. A evaporação do emissor e do receptor, marca da arte moderna conforme visto, dá tal
estado ontológico à criação. É esse um importante legado baudelairiano.
O maior deles, porém, é claramente a compreensão do espírito moderno. Mais que um
grande autor, Baudelaire foi um observador de sua época. Como um herói, mistura-se à
massa, e dela apreende elementos para sua crítica e arte. A Modernidade ao mesmo tempo o
encanta e o desaponta. Como forma de fuga a tal sentimento duplo, isola-se, e usa o incógnito
para analisar as figuras típicas da sociedade parisiense.
Com os contos policiais de Poe, Baudelaire percebe que o “Belo” não estava apenas
no “Bem”. Em sua atividade noturna de boemia, capta o “infernal”, as cenas urbanas
chocantes do mundo pós-industrial: prostitutas (tipo freqüente em seus poemas), ladrões,
miseráveis e todos os renegados pelo progresso.
Sua poesia brota do sentimento de revolta advindo daquele cenário que o cerca. Walter
Benjamin (1989, p. 21) não considera o satanismo manifestação de crença relevante, ou ainda
de adoração, mas uma saída para expressar seu inconformismo: “[...] quase sempre a
confissão religiosa brota de Baudelaire como um grito de guerra. Não quer que lhe tirem o seu
Satã”
8
.
O Satã de Baudelaire foi a percepção dos paradoxos modernos. As restrições
temporais, a automatização humana nas fábricas e em meio à multidão, a proliferação da
miséria: tudo isso gerou nele uma sensação que ficaria por toda a Modernidade, a idéia da
“morte de Deus”. Sem um ente superior, não há mais uma salvação extraterrena. Perde-se
assim uma explicação da vida, desobriga-se a humanidade de seguir preceitos morais: o vazio
da descrença fez com que o “não-Deus” fosse – até ingenuamente – transformado em “Satã”.
Por conseguinte, a morte é, em Baudelaire, desmistificada, pois deixa de ser
possibilidade de expiação, ou ainda justificativa para suportar uma vida degradante. O pós-
morte passa a ser o Nada, e tal perspectiva gera uma insegurança ontológica que repercutirá
em todo o conceito de “Ser”. De uma forma evidentemente rudimentar, ele antecipa conceitos
8
Mais uma vez nota-se a inerência das influências do meio sobre a obra de arte. O artista, ao
usar sua criação para fugir do mundo, acaba inserindo nela dados externos, ainda que
inconscientemente.
33
existencialistas que apareceriam no século XX em toda a Europa: “esta experiência da ‘morte
de Deus’ é acompanhada em toda a Modernidade pela sensação de asfixia e angústia” (LIMA,
1980, p. 126).
É esse o “arquétipo do decadente”
9
, a expressão mais fidedigna do homem da
Modernidade, que Baudelaire construiu a partir de insights seminais de Poe. O americano,
porém, não teve a clareza do espírito moderno tal qual seu tradutor francês.
Ainda para Paul Valery, o terceiro dos conceitos de Poe que Baudelaire amplifica é o
gosto pela elegância e precisão. Poeta-arquiteto, combina a mística da música com elementos
psíquicos de maneira consciente, através de um método. Apenas assim conseguiria ser
esteticamente moderno.
Com essa sistemática, cabia ao artista ser capaz de “tirar de moda o que pode conter de
poético no histórico, de extrair o eterno no transitório”. Baudelaire afirma isso em um ensaio
sobre o artista plástico Constantine Guys, chamado “Sobre a modernidade” (2004, p. 25). A
obra de arte deve conter, para ele, essa marca de seu tempo, a “beleza misteriosa que a vida
humana involuntariamente lhe confere” (p. 26). É a condição para que o moderno de hoje se
torne antigo futuramente.
As figuras típicas da sociedade parisiense de seu tempo estão de fato presentes em sua
obra. Suas imagens, entretanto, não são meramente ilustrativas, mas emanam da força de suas
palavras. O arquétipo de poeta que o romântico consagrou como um bardo transmissor de
mensagens líricas transforma-se, em Baudelaire, no equivalente a um sábio, decifrador do
mundo, com a função sagrada de encontrar a eternidade no instante.
A riqueza simbólica da cadeia de imagens usada torna o poema um enigma, como se o
poeta se recusasse a dar ao leitor a vitória da compreensão. Pelo contrário, o objetivo é chocá-
lo.
O soneto “O inimigo” (“L´ennemi”), o décimo de “Flores do Mal” (1964, p. 102),
retrata algumas características baudelairianas citadas
10
:
9
Embora Paul Verlaine e outros integrantes do Decadentismo tenham tido influência direta de
Baudelaire, o termo “decadente” é usado, aqui, em sentido muito mais amplo, como uma
postura existencial diante do fracasso do progresso.
10
Tradução de Jamil Haddad. No original: Ma jeunesse ne fut qu'un ténébreux
orage,/Traversé çà et là par de brillants soleils;/Le tonnerre et la pluie ont fait un tel
ravage,/Qu'il reste en mon jardin bien peu de fruits vermeils./Voilà que j'ai touché l'automne
des idées,/Et qu'il faut employer la pelle et les râteaux/Pour rassembler à neuf les terres
inondées,/Où l'eau creuse des trous grands comme des tombeaux./Et qui sait si les fleurs
nouvelles que je revê/Trouveront dans ce sol lavé comme une greve/Le mystique aliment ...
34
Foi minha juventude um vendaval aziago
Em que raro brilharam os sóis como espelhos:
Nele a chuva e o trovão fizeram tal estrago
Que sobram no jardim poucos frutos vermelhos.
Eis que chego à estação das idéias fanadas
E usarei pá e ancinho por manhãs obscuras
Para juntar de novo as terras inundadas
Com crateras enormes como sepulturas.
Quem sabe se a flor nova e que o meu ser anseia
Achará neste chão lavado como a areia
O místico alimento que lhe dá vigor?
Devora o tempo a Vida, ó suprema agonia!
Se rói o coração o inimigo traidor,
Cresce por se nutrir desta nossa anemia!
No primeiro quarteto, o eu - lírico usa intensos fenômenos da natureza para simbolizar
emoções fortes, claramente negativas. A partir delas, quase nada (“poucos frutos vermelhos”)
é produzido. aqui ironia aos românticos e sua produção poética baseada na inspiração
subjetiva, no “gênio”. A associação de tal postura com a fase da juventude conota uma
ingenuidade artística de quem cria dessa maneira.
no segundo quarteto há a evolução, a chegada à “estação das idéias fanadas”, à fase
em que consegue pensar mais objetivamente. O caminho para a racionalização é o trabalho, o
esforço e a busca da melhoria de seu poema. As ferramentas são metáforas desse labor, que
deve operar não apenas no texto, mas na própria mente do poeta: que se evitar que “as
terras inundadas”, que as reminiscências da emotividade vinda das experiências pessoais
interfiram na feitura do novo. O nascer poético deve fazer-se de um chão “lavado como a
areia”, seco, racional, e não mais da comoção.
Para que o poema, a “flor nova”, surja, o “inimigo traidor”, que é a emotividade, deve
ser contido. Para tal, cabe ao poeta armar-se para evitar que suas experiências pessoais
“alimentem” esse lirismo frágil, tal qual dos românticos.
Na escolha lexical, percebe-se outra tendência moderna: a busca do choque, através do
uso de palavras não-poéticas como “sepulturas” (“tombeaux”) e “rói” (“ronge”). Além disso,
imagens altamente metafóricas, como “crateras enormes como sepulturas”, que evidenciam
um símbolo de dor psíquica, e não uma grandeza espacial. Os versos baudelairianos buscavam
obscurecer suas alegorias, como que as protegendo da compreensão do leitor.
qui ferait leur vigueur?– O douleur! ô douleur! Le Temps mange la vie,/Et l'obscur Ennemi
qui nous ronge le coeur/Du sang que nous perdons croît et se fortifie!
35
A preocupação com o efeito da obra no seu receptor também marca a modernidade do
soneto: o uso de pontos de exclamação, o tom exageradamente grandioso com que se fala do
sofrimento e o vocativo que abre o último soneto (“O douleur! ô douleur!
11
) são recursos de
ironia para com o Romantismo.
Depois de Baudelaire, a arte jamais foi a mesma. Através de seu pensamento,
entendeu-se mais da sociedade e da vida modernas. Mais que isso, entendeu-se que a
literatura tenderia a se afastar cada vez mais da cognoscibilidade do leitor. Nos movimentos
europeus do fim do século XIX e nas vanguardas do culo XX, a repercussão dessa idéia
atingiria o seu limite: o quase-rompimento com o real.
2.4 A Modernidade de Mallarmé
Na França da segunda metade do século XIX, as idéias de Baudelaire seriam
continuadas das mais diferentes maneiras. Anna Balakian (1985, p. 37) ressalta algumas das
heranças deixadas pelo autor de “Flores do Mal”:
Baudelaire resume o processo poético do seguinte modo: o estímulo afeta os
sentidos, os sentidos afetam a mente; o resultado é a linguagem, produzida
por uma vigilância super-racional da mente. O poema emerge como um todo
sem que o poeta o tenha conscientemente formado. Neste caso, a estética de
Baudelaire é dubiamente arrumada: a descrição do ato poético o torna um
precursor dos surrealistas; enquanto as visões poéticas, resultantes da
organização e da estilização pelo poeta do caos da realidade,
funcionarão como um trampolim para as imagens simbolistas[grifos
nossos]
O fato de a teórica usar o termo “imagens simbolistas”, e não “Simbolismo” enquanto
um movimento literário, é relevante, que esta “escola” resumia-se a um grupo de poetas
parisienses, liderados por Verlaine, cuja atuação deu-se entre 1885 e 1895.
A denominação simbolismo enquanto recurso literário, entretanto, é bem mais ampla.
Encarna uma revolta contra o modo romântico de poetar, e o uso de imagens que transmitem
o “arquétipo decadente” típico da época. Ser simbolista (com letra minúscula) é expressar
preocupações metafísicas, refletir sobre o papel do artista, da arte e do ser humano em si. Para
Anna Balakian (ibid., p. 88), é, ainda, “transcender o significado direto do poema [...] para
11
“Ó dor, ó dor”. Perdido na tradução de Jamil Haddad, que preferiu “Ó suprema agonia”,
atingindo o efeito da hiperbolização da idéia de sofrimento com o adjetivo “suprema” em vez
da repetição, como no original.
36
elevar a experiência limitada do homem-poeta e do homem-leitor a um nível de múltiplas
possibilidades”.
Tal elevação ocorre pelo mbolo. Diferente da metáfora, que tem presença apenas
local dentro do poema, ele tem valor independente da obra. É um esforço de linguagem, ou
uma insurreição contra ela: tentativa de apreensão da imagem imediatamente anterior à
nominalização de um objeto. Não tem, assim, a ingênua espontaneidade dos Simbolistas de
Verlaine, mas é fruto de uma reflexão desconstrutora da pretensa realidade imposta pela
língua.
Se essas imagens simbolistas nascem em Baudelaire e são presentes em Rimbaud,
atingem seu grau máximo de maturação em Stéphane Mallarmé. Poeta muito grandioso e
peculiar para ser enquadrado em um determinado movimento, deixou um legado de inovação
nos níveis conteudísticos, formais e teóricos da poesia, o que ditou algumas das diretrizes da
Literatura do século XX.
A produção de Mallarmé, entretanto, não foi extensa. Escreveu poucos poemas, sobre
os quais trabalhou intensamente. Herdou o labor e o refinamento estilístico de Poe e
Baudelaire, mas não a preocupação declarada com a Modernidade: as imagens do cotidiano
urbano, tão comuns em seus antecessores, não aparecem na obra mallarmaica. Sua quase
exclusiva inquietação é o seu próprio processo de criação poética.
Devido a esse fechamento na própria obra, José Merquior (1972, p. 22) chama a
produção de Mallarmé de “poesia da poesia”, que é a “encarnação de uma teoria do ser em
geral”, ou uma “fenomenologia do processo poético”. Seu poema visa a ser enquanto
estrutura. Longe do entusiasmo ou do delírio romântico, ele é criado artificialmente, como um
esforço de raciocínio. E, diferentemente do egocentrismo de Baudelaire que, como visto,
elevava a sua função de poeta à de “sábio decifrador” –, Mallarmé busca uma independência
de espírito, como se sua força criadora não dependesse de suas impressões ou emoções. Está
aniquilado o poeta, e com isso, o risco da mácula do sentimentalismo ser expresso na obra.
Restava o leitor: sua fruição e compreensão do poema era outro risco de limitação da
ontologia literária. Mallarmé, então, nega-lhe a compreensibilidade, e radicaliza o
obscurantismo baudelairiano. Se este temia a mercantilização vulgarizadora, aquele pressentia
a morte da poesia
12
. Roland Barthes (1971, p. 90-91), em luminosa analogia, explica:
12
Convém lembrar que Mallarmé, por ter vivido praticamente toda a segunda metade do
século XIX, viu um cenário editorial muito mais complexo que Baudelaire, e,
conseqüentemente, ainda mais banalizado.
37
Mallarmé, espécie de Hamlet da escritura, exprime bem esse momento frágil
da Historia, em que a linguagem literária se mantém para melhor cantar
sua necessidade de morrer. A agrafia tipográfica de Mallarmé quer criar em
torno das palavras rarefeitas uma zona de vácuo na qual a fala, liberta das
harmonias sociais e culpadas, felizmente não ressoa mais. O vocábulo,
dissociado da ganga dos chavões habituais, dos reflexos técnicos do escritor,
é então plenamente irresponsável por todos os contextos possíveis; ele se
aproxima de um ato breve, singular, cuja matidez afirma uma solidão,
portanto uma inocência. Essa arte tem a estrutura mesma do suicídio: nela, o
silêncio é um tempo poético homogêneo, que aperta a palavra entre duas
camadas e a faz explodir não como fragmento de um criptograma, mas sim
como uma luz, um vazio, um assassínio, uma liberdade.
Cabe à literatura seguir sendo? É esse o questionamento máximo que se desprende da
obra mallarmaica. O suicídio a que Barthes se refere é a total descontextualização que sofre o
léxico na obra de Mallarmé: mais que uma leitura no eixo paradigmático da linguagem, seus
poemas exigem uma abstração anterior à referencialização vocabular. Essa idéia é claramente
utópica, pela carga emotiva inerente que cada palavra suscita em determinada pessoa. O poeta
comparava tal processo com o desgaste que sofrem as cédulas de papel após o repetido uso.
Por visar transcender a funcionalidade da ngua, Mallarmé aproxima-se da tentativa
de Poe de expressar, via linguagem, suas fantasias. O francês, entretanto, pretende atingir o
Absoluto: a “zona de vácuo” que cita Barthes, e não uma visão pessoal, como Poe.
Ideal; Absoluto; Nada. Três palavras sem cuja compreensão não se penetra no
universo mallarmaico. Ao tentar, como se expôs, afastar sua poesia do real, do mundano, do
empírico, Mallarmé busca o Ideal, que não tem nenhuma conotação metafísica, nem
tampouco um desejo implícito de escapismo. Sua Idealidade ocorre no nível da linguagem, e é
o desejo de supressão total das marcas do mundo extramental.
O processo para se chegar a tal resultado é a desconstrução do objeto pela fantasia, e o
registro das impressões causadas pela sua essência. O objetivo é captar a “zona de vácuo” em
torno da palavra, ou a carga semântica que o desgaste funcional do uso cotidiano impediu que
ela trouxesse. Ou seja, visa-se apreender o Absoluto, a idealidade sem conteúdos empíricos.
Extinguir a concretude das coisas e buscar a abstração conceitual leva Mallarmé a
acreditar que apenas a palavra poética, a “poesia pura”, pode ser um canal de contato com o
Absoluto. A evolução de sua obra, porém, sugere que ele tenha atingido um impasse: a
linguagem é incapaz de expressar fielmente esse Absoluto buscado, pois ao ser
descontextualizada de forma tão radical, deixa de ser comunicação.
O outro aspecto que inviabiliza uma solução é a ininteligibilidade do Absoluto, que
permanece inalcançável, além das possibilidades cognitivas humanas.
38
Essa é a dissonância que conduz Mallarmé ao Nada, à indeterminação total, ao ponto
em que não significação. É onde, invariavelmente, a busca do Absoluto leva, que o “Ser
puro” que se visa atingir é o “Nada puro”
13
.
Frente a tudo isso, resta o questionamento a que Barthes se refere: convém à Literatura
existir? Como fazer poesia, sabendo-se a priori de seu fracasso? Sua talvez única saída é o
suicídio, o silêncio, a confissão de sua incapacidade. Ao dilema mallarmaico, o crítico Hugo
Friedrich (1978, p. 125) deu o nome de “niilismo idealista”, que
Nasce de uma deliberação quase sobre-humana da abstração, de pensar no
absoluto como a essência pura (livre de todo conteúdo) do Ser e de
aproximar-se, experimentalmente, de uma poesia em que a própria
linguagem torne presente o Nada, na medida em que este pode realizar-se
mediante o aniquilamento do real.
Mallarmé, então, fecha-se na estrutura, no pensar poético, nas inovações formais,
como tábua de salvação frente à irrealidade do conteúdo, para talvez reelaborar a linguagem
com o ideal utópico de que, recriada, ela possa finalmente atingir o Absoluto.
Cada um de seus poemas é uma entidade ontológica independente, tão complexa que
dificulta uma generalização de características formais de sua obra; por outro lado, trazem
traços similares uns com os outros, alusões e repetição de símbolos. Além disso, tratam
praticamente da mesma temática: o processo de criação poética.
Nota-se, em grande parte dos escritos de Mallarmé, a concisão como forma de
fragmentar a idéia e atomizar a frase, cuja condensação ajuda a obscurecer o sentido e gerar
mais multiplicidade interpretativa.
Outra propriedade comum em seus poemas é a atemporalidade dos verbos, geralmente
usados no infinitivo, como que para manter um distanciamento do agora, e inserir a idéia no
infinito. Além disso, a ordem das palavras não segue a sintaxe natural, visando o choque e a
perturbação da ordem instaurada pelo uso corrente da língua.
O uso de expressões adverbiais sem função sintática definida, mas como recurso de
realce a determinado símbolo, também pode ser encontrado amiúde. Outras rupturas, como a
supressão das dicotomias feminino/masculino e singular/plural; a preferência por particípios
verbais com função adjetivadora por conterem em si a energia seminal da ação expressa
pelo verbo; e a adição ideogramática de imagens de diferentes substantivos, são
peculiaridades passíveis de serem listadas na busca da compreensão da sintaxe mallarmaica.
13
O conceito que liga a pureza ontológica ao Nada fez com que diversos trabalhos ligassem a
obra de Mallarmé a Hegel. Ver CAMPION, 1994.
39
Ao aproximar-se da geração mental da linguagem em estado anterior à nominalização
do objeto, Mallarmé percebe que, antes de um conjunto de palavras, a linguagem pressupõe
um ritmo. Assim, em seu texto teórico “O livro, instrumento espiritual” (1991, p. 127), afirma
que “a Poesia, próxima à Idéia, é Música, por excelência não admite qualquer
inferioridade”. É essa uma das mais marcantes características em seus poemas: o uso da
musicalidade, a tentativa de capturar a forma da Música e transportá-la à Poesia.
Não se pode dizer que a obra de Mallarmé seja homogênea. De fato, poemas tão
diferentes entre si que se poderia pensar na existência de distintas forças criadoras em sua
produção poética. Duas generalizações feitas por críticos (Anna Balakian e Mário Faustino),
baseadas em critérios opostos, são relevantes para a pesquisa em tela, e serão analisadas. Cabe
ainda ressaltar que nenhuma das duas leva em conta o fator cronológico: os “vários
Mallarmés” atuam como que simultaneamente, o que inviabiliza que se considerem suas fases
como um processo evolutivo, mas a pluralidade artística de um poeta que extrapolou padrões
e tendências estéticas.
Anna Balakian apóia-se no nível temático para considerar três divisões em sua obra:
para ela, há o Mallarmé “clássico”, o “sonhador” e o “hermético”.
O primeiro, mais próximo aos Simbolistas, tem como principal preocupação o ennui, o
tédio humano. Em “Brisa Marinha” (“Brise marine”)
14
, a última estrofe retrata sua luta
contra tal sentimento, e aponta símbolos que permearão toda a sua obra:
Um Tédio, desolado por cruéis silêncios,
Ainda crê no derradeiro adeus dos lenços!
E é possível que os mastros, entre as ondas más,
Rompam-se ao vento sobre os náufragos, sem mas-
Tros, nem ilhas férteis, a vogar...
Mas, ó meu peito, ouve a canção que vem do mar!
O tédio é associado à não-produção poética, o silêncio, e o poeta (“náufrago”), em
busca do fenômeno (“mastro”, “ilha fértil”) sobre o qual escreverá, flutua, como se o tempo
fora congelado (“a vogar”). A “canção que vem do mar” não é uma inspiração sobrenatural,
mas a Música natural, o ritmo inerente à natureza, de onde surge a poesia pura buscada por
Mallarmé.
14
Tradução de Augusto de Campos (In CAMPOS; CAMPOS e PIGNATARI, 1974, p. 44-
45). Estrofe original: “Un Ennui, desole par les cruels espoirs,/Crois encore à l´adieu
suprême des mouchoirs!/ Et, peut-être, lês mâts, invitant lês orages/ Sont-ils de ceux qu´um
vent penche sur lês naufrages/ Perdus, sans mâts, sans mâts, ni fertiles îlots.../Mais, ô mon
coeur, entends le chant des matelots!”.
40
Todas essas analogias aparecerão em outros poemas mallarmaicos, e terão seu grau
máximo de tensão exposto (e talvez resolvido) em “Um lance de dados”.
Outros dois poemas são mencionados por Anna Balakian como pertencendo à veia
“clássica” de Mallarmé: os longos e complexos “Herodias”
15
(“Hérodiade”) e “A sesta de um
fauno”
16
(“L´après-midi d´un faune”). Tendo sido criados quase concomitantemente,
dialogam sobre a possibilidade de renúncia ao contato sensual exterior. “A sesta de um fauno”
eternizou-se por ser o poema que inspirou o compositor Claude Debussy a criar sua mais
famosa peça, “Prelúdio à tarde de um fauno”, obra revolucionária impressionista. Mallarmé
usa a figura mítica de para sugerir uma idéia que virou lugar-comum no Simbolismo: a de
que a sensibilidade interior, intelectualizada e ilimitada, não amplifica o prazer corpóreo,
físico, como o supera. Tal reflexão transportada à criação poética denota a intenção de anular
a presença do fenômeno extramental na poesia: o poema deve bastar-se na lucidez de sua
estrutura, na pureza de seu canto.
“Herodias” representa a constatação do fracasso de Pã, ou a saturação da
interioridade, representada pela protagonista-título, virgem que é a própria musa da poesia
que evoca. Em diálogo com sua ama – figura incitadora que tenta oferecer-lhe experiências de
contato corpóreo ela renuncia ao prazer externo, mas ao mesmo tempo mostra-se incapaz
de, como Pã, satisfazer-se com as imagens projetadas pela fantasia. É a vitória do ennui, o
tédio que marca o medo de ser. Em analogia com a criação poética, este poema representa a
insuficiência da estrutura formal enquanto objeto poético.
Está delineado um dos dilemas mallarmaicos: a poesia que quer blindar-se do mundo
exterior, mas que segue buscando a experiência de fato, e nela recorrendo, quando a obra
encontra o fruidor. A incapacidade de uma solução, seja em nível intelectual, seja sensório,
faz com que a imagem do ennui evolua para o gouffre, o abismo:
A ambivalência de Mallarmé permanece em seu confronto tanto com o
gouffre, quanto com o ennui. Sem dúvida, a princípio se obsedou com o
caráter equívoco do abismo, como um fosso e como uma entrada para
imaginação do homem (...). Neste caso, a imagem tem duas facetas
indicadoras do negro caos do nada e da totalidade azul do além dos limites
visíveis da terra. (BALAKIAN, 1985, p. 65)
15
Usou-se a edição bilíngüe que contém a transcriação de Augusto de Campos (1987).
16
Tal é a complexidade formal do poema que Décio Pignatari, ao transcriá-lo em seu trabalho
“Tridução” (CAMPOS, CAMPOS e PIGNATARI, 1974), traduz cada verso original em três
diferentes versões na língua portuguesa, a fim de que não se perca nenhuma nuança musical
ou semântica. Este trabalho será brevemente discutido no terceiro capítulo.
41
Tal ampliação do conceito baudelairiano de gouffre marca a fase de “sonhador” de
Stéphane Mallarmé, a mais abrangente e longa de sua produção. É o abismo existencial
surgido com a dúvida do poetar ou não poetar; o paradoxo do fracasso da poesia como
resposta às incertezas metafísicas do homem, mas ao mesmo tempo sua elevação como
atividade humana que mais se aproxima do desconhecido: fracasso e quase-sucesso. Por isso
que continua sua criação
17
.
O poema “O Azul” (L´Azur)
18
expressa tal contradição. Nas duas primeiras estrofes, o
dilema é apresentado
19
:
De um infinito azul a serena ironia
Bela indolentemente abala como as flores
O poeta incapaz que maldiz a poesia
No estéril areal de um deserto de Dores.
Em fuga, olhos fechados, sinto-o que espreita,
Com toda a intensidade de um remorso aceso,
A minha alma vazia. Onde fugir? Que estreita
Noite, andrajos, opor a seu feroz desprezo?
O poeta é, assim, vítima da “serena ironia” da dúvida: o “infinito azul” do horizonte,
símbolo do intangível, inalcançável, da incerteza ontológica, o “abala”, e torna-se objeto do
seu poetar, como fenômenos tradicionalmente poéticos como “flores” ou as “Dores” de suas
experiências. É inevitável remeter tal passagem ao soneto de Baudelaire analisado
anteriormente: como seu compatriota, Mallarmé também ironiza a ingenuidade romântica de
ater-se ao “deserto” estéril das frustrações pessoais.
Na segunda estrofe, em um momento hamletiano, o ápice da agonia: o Azul, a
dúvida de ordem metafísica, a Questão Fundamental, faz nascer um poema, um “remorso
aceso”, átomo cognitivo que aponta para a resposta, mas não a determina. A “estreita noite”,
símbolo da criação poética em oposição ao azul do horizonte analogia à indefinição –, são
andrajos, retalhos, peças soltas de um enigma sem fim.
17
É essa proximidade da solução da dúvida ontológica que mantém Mallarmé fascinado pela
poesia e o diferencia de Rimbaud, que frustrado por saber que jamais atingiria a resposta
decide deixar de escrever.
18
Tradução de Augusto de Campos (In: CAMPOS, CAMPOS e PIGNATARI, 1974, p. 40-
43)
19
Versão original: “De l´éternel azur la sereine ironie/Accable, belle indolemment comme les
fleurs,/Le poète impuissant qui maudit son génie/A travers um désert stérile de
Douleurs./Fuyant, les yeux fermés, je le sens qui regarde/Avec l´intensité d´um remords
aterrant,/Mom ame vide. fuir? Et quelle nuit hagarde/Jeter, lambeaux, jeter sur ce mépris
navrant?”.
42
Como se explorará em “Um lance de dados”, a agonia mallarmaica não é fatalista nem
apresenta solução definitiva: ela fica suspensa em uma possibilidade não-terminante de fim. A
poesia mais que a Ciência ou a Filosofia –, ao quase responder a Dúvida, a ilumina. Esta,
então, alimenta o pulsar poético, o que faz nascer um ciclo eterno de busca.
As duas últimas estrofes do poema, apesar de soarem pessimistas, demonstram a
continuidade desse jogo
20
:
Em vão. O Azul triunfa e canta em glória
Dentro dos sinos. Sim, faz-se voz para sus-
Pender-nos no terror de sua vil vitória,
Rompendo o metal vivo em ângelus de luz!
Ele rola na bruma, antigo, lentamente
Galga tua agonia e como um gládio a sul-
Ca. Onde fugir? Revolta pérfida e impotente.
O Azul! O Azul! O Azul! O Azul! O Azul! O Azul!
A “vitória” do Azul é lograr ferir o poeta, na forma de um “gládio”, um objeto cortante
que ara a terra, desvela a agonia do poeta e de lá faz brotar um poema (como a flor do soneto
“O inimigo”, de Baudelaire). A pergunta aparentemente sem resposta, “Onde fugir?”, tem
uma solução sugerida: a revolta gerada, o poema, embora impotente, pode pelo canto
aproximar-se do Desconhecido: a repetição de O Azul”, altamente musical, denota a fuga
pela poesia, a escolha da estrutura como refúgio ao temor da dúvida existencial; sabidamente
insuficiente, mas ainda sendo a melhor forma de aproximação, a poesia não é descartada por
Mallarmé.
Com a cristalização de tais conceitos em sua obra, o poeta francês investiu cada vez
mais na elaboração formal da poesia como escape, até chegar ao terceiro ciclo de sua obra, na
divisão de Anna Balakian: o “hermético”, o autor inatingível, incompreensível, justamente a
fatia da obra mallarmaica que mais reverberou no século XX. A acadêmica aponta os poemas
“Igitur” e “Um lance de dados” como os produtos de tal fase.
Antes que eles sejam explorados, porém, convém analisar outra divisão feita da
produção de Mallarmé. O poeta e crítico brasileiro Mário Faustino demarca quatro
repartições, baseado na forma dos poemas, e não em seu tema, como Anna Balakian. É
20
Versão original: En vain! l´Azur triomphe, et je l´entends qui chante/Dans les cloches.
Mon âme, il se fait voix pour plus/Nous faire peur avec as victoire méchante,/Et du métal
vivant sort en bleus angelus!/Il roule par la brume, ancien et traverse/Ta native agonie ainsi
qu´um glaive sûr;/Où fuir dans la révolte inutile et perverse?/Je suis hanté. L´Azur! L´Azur!
L´Azur! L´Azur!”.
43
importante ressaltar novamente que não uma lógica cronológica que explique as escolhas
do teórico, mas todos os estágios são quase simultâneos.
Para Faustino (1977, p. 120), o “primeiro Mallarmé” é “Baudelaire elevado a certas
potências”. Por tal proximidade, ele é “fiel a seu passado”, ou seja, ele retoma elementos do
espírito decadente e aprofunda-o. No poema “As janelas” (Les fenêtres)
21
, o léxico do autor
de “Flores do Mal” é revisitado, e o sentimento de impotência frente à realidade é
exteriorizado nas três últimas estrofes:
Miro e me vejo anjo! E morro, e sinto a pena
– Que o vitral soe a arte, o misticismo –
De renascer, portanto, meu sonho em diadema
Onde floresce a Beleza em seu céu íntimo!
Mas veja! Aqui embaixo é dono: sua crueldade
Vem me segurar às vezes este abrigo árido
O vômito impuro da Bestialidade
Me força a deixar diante do azul o nariz tapado.
É este seixo o meu que conhece a amargura
De enfiar o cristal pelo monstro insultado
E de me afastar, com minhas dez asas sem pluma
Ao risco de perante a eternidade ficar tombado?
O macabro baudelairiano ressoa em Mallarmé no terror da realidade da cena cotidiana:
o Belo, associado ao céu, é colocado longe e inatingível. “Aqui embaixo”, ou seja, a
realidade, “é dono”, impera, domina a existência. Suas “asas sem plumas” o impedem de
buscar a Arte, a Beleza Ideal: é o confinamento à eternidade do real.
Além do léxico forte, composto de palavras tradicionalmente consideradas “não-
poéticas” – que visam ao choque –, o poema demonstra outros legados formais de Baudelaire,
como o uso de perguntas retóricas e a riqueza musical dos versos. As composições dessa fase
da carreira de Mallarmé são as que influenciarão Parnasianos e Simbolistas, que dominarão a
cena poética de Paris na segunda metade do século XIX.
o “segundo Mallarmé” aprofunda o rigor estético e compõe complexos poemas,
mais longos e com efeitos sonoros que beiram o experimentalismo e o preciosismo. Para
21
Usou-se a tradução de André Dick (2003). Versão original: Je me mire et me vois ange! et
je meurs, et j’aime/— Que la vitre soit l’art, soit la mysticité /A renaître, portant mon rêve
en diadème,/Au ciel anterieur fleurit la Beauté!/Mais, hélas Ici-bas est maître: sa
hantise/Vient m’écoeurer parfois jusqu’en cet abri sûr,/Et le vomissement impur de la
Bêtise,/Me force à me boucher le nez devant l’azur./Est-il moyen, ô Moi qui connais
l’amertume,/D’enfoncer le cristal par le monstre insulté,/Et de m’enfuir, avec mês deux ailes
sans plume/— Au risque de tomber pendant l’éternité?”
44
Faustino, ele é “fiel ao seu presente”, e antecipa Paul Valery, que seguirá seu mestre. Além
dos já citados “Herodiase “A sesta de um fauno”, o poema “Brinde Fúnebre”
22
(“Toast
funèbre”) pertence a tal parte da obra mallarmaica. Além da riqueza formal, a obra se destaca
pela presença da figura do Mestre, que reaparecerá em “Um lance de dados”:
(...)
A multidão feroz anuncia: Nós somos
A triste opacidade de espectros futuros.
Mas, o brasão dos lutos nos inúteis muros,
O lúcido horror de uma lágrima esqueço
Quando, ao sagrado verso, surdo e avesso,
Um passante, hóspede de mortalha vazia,
Soberbo e cego e mudo eis se convertia
Em um virgem herói de póstuma espera.
Vendaval de palavras que ele não dissera
À densa bruma traz o vórtex desmedido,
O nada para este Homem ontem abolido:
"Lembranças de horizontes, diz, a Terra é o quê?
"Urra o sonho; e, voz cuja luz não se vê,-
"Não sei!" - é o grito com que brincam os espaços.
O Mestre, com um olho agudo, em seus passos,
Apaziguou do éden a surpresa inquieta
Cujo tremor final, em sua só voz, inquieta
Para a Rosa e o Lis o mistério de um nome.
(...)
Escrito em homenagem ao poeta Théophile Gautier logo após sua morte, “Brinde
fúnebre” tem a figura do artista em destaque frente à multidão de “espectros futuros”: é o
poeta o único a ter o poder de tocar o “vórtex desmedido” (tradução livre de Júlio Castañon
Guimarães a gouffre”, cuja tradução mais habitual é “abismo” ou “redemoinho”. Com a
escolha de “vórtex” mantém-se o sentido de movimento de “redemoinho”, mas perde-se a
conotação inconsciente de “abismo”), a energia criadora, “vendaval de palavras”. Por isso,
adquire o status de “Mestre”, a investigar “o mistério de um nome”, o que por trás das
palavras: é o tradutor da essência das coisas, detentor do poder de nominalizar. No jardim
22
Usou-se a tradução de Júlio Castañon Guimarães (2005). Texto original: “(...)Cette
foule hagarde ! elle annonce :Nous sommes/La triste opacité de nos spectres futurs./Mais le
blason des deuils épars sur de vains murs,/J'ai méprisé l'horreur lucide d'une larme,/Quand,
sourd même à mon vers sacré qui ne l'alarme,/Quelqu'un de ces passants, fier, aveugle et
muet,/Hôte de son linceul vague, se transmuait/En le vierge héros de l'attente
posthume./Vaste gouffre apporté dans l'amas de la brume/Par l'irascible vent des mots qu'il
n'a pas dits,/Le néant à cet Homme aboli de jadis :/"Souvenir d'horizons, qu'est-ce, ô toi, que
la Terre ?"/Hurle ce songe; et, voix dont la clarté s'altère,/L'espace a pour jouet le cri : "Je
ne sais pas !"/Le Maître, par un oeil profond, a, sur ses pas,/Apaisé de l'éden l'inquiète
merveille/Dont le frisson final, dans sa voix seule, éveille/Pour la Rose et le Lys le mystère
d'un nom (...)”
45
irreal desse poeta, pode haver “Rosa ou Lis”. Cabe a ele decidir, recriando assim sua
própria realidade através do trabalho sobre a linguagem.
Embora valiosas, estas duas primeiras fases da obra de Mallarmé não são, para Mário
Faustino, as mais relevantes ao leitor atual. As duas últimas, porém, permanecem atuantes no
cenário da poesia contemporânea.
O poeta brasileiro vê o “terceiro Mallarmé” como “fiel a si mesmo”, “Mestre” e
“Inventor”. Ele
(...) leva a um ponto máximo, até hoje não mais atingido, uma linguagem (a
poética) e uma língua (a francesa). Esses poucos poemas é que fazem dele
[...] o maior poeta-para-poetas de língua francesa, um dos maiores de todos
os tempos e sem dúvida alguma o maior destes últimos cem – ou duzentos
anos. (p. 122).
Incluem-se em tal fase as coletâneas “Plusier Sonnets”, “Hommages et Tombeaux”, e
os poemas “Salut” e Tout l´âme résumée”, entre outros. Em geral, são sonetos que
transgridem a sintaxe tradicional da língua, e ideogramaticamente atingem o status de
“objetos verbais”: imagens são fundidas, como nos caracteres orientais, formando uma
isomorfia semântica aberta. São obras de alta sugestionabilidade, fruto de uma incansável
lapidação no trabalho com a palavra poética. É a parte da produção mallarmaica que mais
atingiu repercussão durante sua vida, espécie de impressão digital de seu poetar.
O uso do soneto (e sua rigidez formal) é apenas uma “moldura” para a ruptura com a
poesia tradicional que Mallarmé promove. O grau atingido de abstração e de irrealidade faz
com que essas obras sejam quase inacessíveis. A sua leitura configura uma recriação, e o
fruidor funde-se com a figura do produtor. Por isso Faustino qualifica-o como “poeta-para-
poetas”.
Muitos dos símbolos usados nesses poemas serão retomados em Igitur” e “Um lance
de dados”, obras a serem discutidas posteriormente. Dada a recorrência de certos conceitos e
imagens, é empobrecedor analisar uma criação de Mallarmé de maneira independente,
ignorando-se o restante de sua produção. Conforme explicitado, o trabalho por ele feito com a
palavra poéticaque é “resgatada” do desgaste do uso cotidiano e buscada em sua essência –
acarreta a desconstrução semântica de certos termos, que adquirem novo valor de sentido em
diversos poemas.
Há, em dois sonetos dessa terceira fase, um exemplo da re-significação promovida
pelo poeta francês: a dualidade-base de “Um lance de dados”, mar e céu, começa a ser neles
desenhada; assim, tais vocábulos, no poema-constelação, agregam a conotação adquirida
46
nesses poemas anteriores. Ignorar isso é perder a lapidação que Mallarmé promove de seus
símbolos. Por isso a necessidade de se acompanhar a evolução semântica de seus termos ao
longo de toda a sua obra.
Em “Brinde”
23
(“Salut”), o mar é o cenário de uma luta entre o navegante e seu barco,
entre o poeta e a página em branco. Tal analogia, constante ainda em outros poemas, é o cerne
da visão que Mallarmé tinha da condição do poeta:
Nada, esta espuma, virgem verso
A não designar mais que a copa;
Ao longe se afoga uma tropa
De sereias vária ao inverso.
Navegamos, ó meus fraternos
Amigos, eu já sobre a popa
Vós a proa em pompa que topa
A onda de raios e de invernos;
Uma embriaguez me faz arauto,
Sem medo ao jogo do mar alto,
Para erguer, de pé, este brinde
Solitude, recife, estrela
A não importa o que há no fim de
Um branco afã de nossa vela.
O navegante-poeta usa o seu médium (barco/língua) contra os perigos do acaso, a
“onda de raios e invernos”; configura-se o “jogo” entre o imponderável e sua ação ao navegar:
como saber o destino de seu barco, ou a recepção de sua obra? Embora se aspire à “estrela”,
ou seja, ao horizonte e ao Absoluto, é a imprevisibilidade do obstáculo, do “recife”, que
transforma o poetar em um dilema sem solução. Resta a “Solitude”, o fardo de saber que o
poeta moderno pende ao fracasso.
É esse caráter instável e indecifrável do mar que Mallarmé contrapõe à idealidade do
céu, o horizonte infinito, portador da resposta à dúvida existencial que perturba o poeta. No
soneto “A tumba de Edgar Poe”
24
(Le tombeau d'Edgar Poe”), os dois tercetos finais
reforçam a imagem do contraste alto x baixo:
23
Tradução de Augusto de Campos (1974). Versão original: “Rien, cette écume, vierge vers/A
ne désigner que la coupe;/Telle loin se noie une troupe/De sirènes mainte à l’envers./Nous
naviguons, ô mes divers/Amis, moi déjà sur la poupe/Vous l’avant fastueux que coupe/Le flot
de foudres et d’hivers;/Une ivresse belle m’engaje/Sans craindre même son tangaje/De porter
debout ce salut/Solitude, récif, étoile/A n’importe ce que valut/Le blanc souci de notre toile.”
24
Tradução de Augusto de Campos (1974). Versão original: [...] Du sol et de la nue hostiles,
ô grief !/Si notre idée avec ne sculpte un bas-relief/Dont la tombe de Poe éblouissante ...
47
(...)
Do solo e céu hostis, ó dor! Se o que descrevo –
A idéia sob - não esculpir baixo-relevo
Que ao túmulo de Poe luminescente indique,
Calmo bloco caído de um desastre obscuro,
Que este granito ao menos seja eterno dique
Aos vôos da Blasfêmia esparsos no futuro.
Tanto a realidade quanto a idealidade são hostis: aquela, pela vida caótica que cerca a
existência da Modernidade; esta, por seu caráter sabidamente utópico. O “granito”, perífrase
da morte, é o que limita (“dique”, na transcriação de Augusto de Campos) o sonho, os “vôos
da Blasfêmia”, e a própria poesia. Quer-se o céu, o alto, a “idéia”, mas o peso do real, o acaso
latente no ser (como a própria morte), afasta o poeta de atingir o inverossímil.
Essa parte da obra mallarmaica foi a base para o que Faustino chama de “quarto
Mallarmé”, ou “Mallarmé do futuro”, em busca do “Poema Definitivo”, que é o “canto órfico,
inesgotável, a resolver o Universo em um outro universo” (p. 127). Foram duas as tentativas:
o projeto abandonado “Igitur” e o revolucionário “Um lance de dados”.
Se nos sonetos de sua dita terceira fase Mallarmé renovou o sentido da palavra poética
e implodiu a sintaxe tradicional da língua, nas obras-experimentos da derradeira etapa ele
transgrediu os gêneros literários (“Igitur”) e a linearidade topográfico-discursiva (“Um lance
de dados”) da página impressa.
Tal divisão de Faustino coincide com a terceira repartição feita por Anna Balakian: a
do “Mallarmé hermético”, o poeta inatingível, cuja temática (plano usado como critério pela
pesquisadora) é puramente metalingüística: poesia autocrítica, metapoesia. De fato, o
obscurantismo dessas duas obras fez com que fossem exploradas muito tempo após a sua
produção.
“Igitur” funde elementos de diversos gêneros literários tradicionais: é uma forma
híbrida de uma peça de teatro, um conto e um poema. Do primeiro, herda o caráter
representacional e a divisão em “atos”; do segundo, a brevidade narrativa e a presença de um
único conflito, em torno do qual se sucedem os fatos; e do terceiro a linguagem altamente
metafórica.
s'orne,/Calme bloc ici-bas chu d'un désastre obscur,/Que ce granit du moins montre à jamais
sa borne/Aux noirs vols du Blasphème épars dans le futur.”
48
Escrita entre 1869 e 1870, a obra foi abandonada por Mallarmé, e publicada apenas em
1925, quando Edmond Bonniot encontrou seus manuscritos
25
. O personagem-título herda seu
nome da conjunção latina igitur, que significa “portanto”, “em suma”. O subtítulo, “a loucura
de Elbehnon”, evoca os filhos de Elohim, que são potências criadoras emanadas de Jeová,
segundo a Torá. Assim, a criação leva à loucura, talvez pelo sentimento de fracasso ao se
buscar a conclusão, o “portanto”, o “igitur”, a totalidade das coisas.
O protagonista Igitur é um adolescente suicida que sustenta a ilusão de dominar o
acaso. Para tal, pretende matar-se exatamente à meia-noite (0:00, ausência perfeita, começo e
fim eternos): através do ato (chamado por ele de “lance de dados”) de tomar o veneno, quer
apreender o instante e controlar o tempo, ou mesmo parar o tempo: morrer na ausência total
seria dar realidade a ela, ou autenticar o nada. Ora, se o Nada fosse instaurado pelo lance de
dados (virando, assim, palpável), e a unidade do Absoluto apreendida (à meia noite os
ponteiros se unem, consumando a totalidade), o acaso estaria anulado, pois toda a
premeditação da morte teria partido do sujeito. No “Argumento” que antecipa as partes do
conto, o objetivo de controlar o destino é explicitado pela ironia aos matemáticos, revelando o
valor dado por Igitur ao cálculo do seu ato:
(...) O infinito provém do acaso, que negastes. Vós, matemáticos, expirastes
eu projetado absoluto. Devia findar em Infinito. Simplesmente palavra e
gesto. Quanto ao que vos digo, para explicar minha vida. Nada restará de vós
o infinito, enfim, escapa à família que o suportou velho espaço a
ausência do acaso. Ela teve razão em o negar – sua vida para que ele tenha
sido o Absoluto. Necessário – extrai a Idéia. (...) (p.77)
26
A Idéia nasce quando o Acaso é controlado, e o cálculo que anula esse acaso promove
então a integração do Infinito (o não-palpável) no Absoluto (Totalidade).
25
Bertrand Marchal, anos depois, revisa o arranjo feito por Bonniot e republica o conto,
inserindo outra parte antes ignorada, Vie de Igitur”. Na única tradução feita no Brasil, por
José Lino Grünewald (1990, p. 72 119), o texto de partida é aquele organizado por Bonniot.
Por isso, este foi adotado na pesquisa em tela.
26
Original: “(...) L´infini sort du hasard, que vous avez nié. Vous, mathématiciens expirâtes –
moi projeté absolu. Devais finir en Infini. Simplement parole et geste. Quant à ce que je vous
dis, pour expliquer ma vie. Rien ne restera de vous L'infini enfin échappe à la famille, qui
en a souffert, vieil espace pas de hasard. Elle a eu raison de le nier, sa vie pour
qu'il ait été l'absolu. Ceci devait avoir lieu dans les combinaisons de l'Infini vis-à-vis de
l'Absolu. Nécessaire — extrait l'Idée. (...)”
49
Entretanto, em sua fala antes do “ato”, Igitur denuncia a impossibilidade de sucesso:
“Adeus, noite, que fui, teu próprio sepulcro, porém, que, sombra sobrevivente, se
metamorfoseará em Eternidade” [grifos nossos] (p. 81)
27
.
Igitur falha pois não considerou em seu cálculo a inapreensibilidade do instante: o
tempo presente não existe de fato, é uma convenção humana. O “agora” é passado ido e/ou
futuro a vir. A natureza infinita dos números impossibilita a existência da ausência pura, da
Meia Noite (0:00) genuína. Ele consuma o ato, absorve a Morte impregnada no ar, mas o
domina o Acaso:
O personagem que, acreditando na existência do Absoluto único, imagina-se
por toda parte num sonho (ele age no enfoque Absoluto), acha o ato inútil,
pois existe e não existe acaso ele reduz o acaso ao Infinito que, diz ele,
deve existir em qualquer parte. [grifos originais] (p. 95)
28
O dilema de Igitur é o dilema do poeta moderno: a impossibilidade de controlar o
Acaso, de possuir controle sobre o destino de sua obra, coloca em questão o valor da própria
Poesia. Aqui, a dúvida hamletiana posta por Barthes atinge o seu ápice: em “Igitur”, Mallarmé
propõe (e imediatamente condena) a opção de “não ser para ser”, que o sucesso do suicídio
significaria o domínio da total ausência.
Em “Um lance de dados”, porém, Mallarmé acena para uma resolução: o “talvez ser
para ser”. A possibilidade latente da existência como forma de aprisionamento do acaso,
como se verá na pesquisa em tela.
Publicado em 1897, na revista Cosmópolis, “Um lance de dados” apresenta três
características provavelmente originais na história da poesia: a exploração de modelos
tipográficos distintos, a disposição não-paragráfica das palavras na página e a função
sintático-semântica que o branco da folha adquire. Após transgredir o sentido da palavra
poética em seus sonetos, e o conceito de gênero literário em “Igitur”, Mallarmé pulverizou a
estrutura linear da página: mais que “verso livre”, tinha-se o “verso solto”, ou o “não-verso”.
Síntese da obra mallarmaica (bem como seu ápice), “Um lance de dados” é o marco
que antecipa a produção poética do século XX. Para Octavio Paz (2003, p. 27), o poema “[...]
encerra um período, o da poesia propriamente simbolista, e abre outro: o da poesia
contemporânea”.
27
Original: Adieu, nuit, que je fus, ton propre sépulcre, mais qui, ombre survivante, se
métamorphosera em Éternité.”
28
Original: Le personnage qui, croyant à l´existence du seul Absolu, s´imagine être partout
dans rêve (il agita u point de vue Absolu) trouve acte inutile, car il y a et n´y a pas de
hasard – il réduit le hasard à l´Infinit – qui, dit-il, doit exister quelque part.
50
Altamente obscuro e com múltiplas possibilidades interpretativas, conforme se verá
mais adiante, “Um lance de dados” é o golpe que Mallarmé desfere contra a banalização da
língua e a crise por que passava o conceito de poesia e de Literatura. Walter Benjamim (1987,
p. 27-28) explica a relação entre o poema e a sociedade:
Agora tudo indica que o livro, nessa forma tradicional, vai ao encontro de
seu fim. Mallarmé, como viu em meio à cristalina construção de sua
escritura, certamente tradicionalista, a imagem verdadeira do que vinha,
empregou pela primeira vez no coup de dés as tensões gráficas do reclame
na configuração da escrita. [...] é possível reconhecer a atualidade daquilo
que, monadicamente, em seu gabinete mais recluso, Mallarmé descobriu, em
harmonia preestabelecida com todo o acontecer decisivo desses dias, na
economia, na técnica, na vida pública. A escrita, que no livro impresso havia
encontrado um asilo onde levava sua existência autônoma, é
inexoravelmente arrastada para as ruas pelos reclames e submetida às brutais
heteronomias do caos econômico.
Conforme explicitado, a situação sócio-cultural da sociedade européia pós-
Revoluções impôs ao ser humano uma existência em um mundo sígnico, em que
propagandas, jornais e livros em série levavam a palavra a uma situação de desgaste extremo.
“Um lance de dados” é, desse modo, uma resposta à irreflexão moderna da fala enquanto
expressão metafísica, da arte enquanto investigação ontológica. Embora pretensamente
“alheia”, a obra de Mallarmé apresenta em seu bojo uma motivação social, que advém de um
compromisso em lutar pela sobrevivência da poesia, e, em última estância, da continuidade da
Arte como um todo.
Há, entretanto, um aparente paradoxo no processo de composição do poema citado: ao
mesmo tempo em que ele apela à obscuridade para afastar o “leitor ocioso”, acomodado com
a facilidade vulgarizadora das técnicas modernas de impressão do jornal, ele extrai desse
mesmo jornal os artifícios para atingir o hermetismo e tornar-se inacessível. É o espelho do
“espírito decadente” dos intelectuais e artistas do fim do século XIX, que rejeitam o mundo
que os rodeia, mas não deixam de se fascinar com as inovações sucessivas em seu cotidiano.
Mallarmé expressa os dois lados desse contraste em seus textos teóricos. Em “O livro,
instrumento espiritual” (1991), ele exalta a disposição das notícias na página do jornal, bem
como o sistema de dobradura da folha. “Um milagre domina essa benfeitoria [...]
aproximando de um rito a composição tipográfica.” (p. 127). É de tal modelo que surge a
idéia de compor “Um lance de dados” a partir de fontes distintas, cujo tamanho realça ou
pormenoriza a relevância de cada palavra e transforma a topologia da gina em uma
51
mensagem plástica. Esta configuração jornalística é contraposta ao livro, que permanece
“mesmo o formato, ocioso” (p. 126), nada atraente ao homem moderno.
em outro texto, “O mistério nas Letras” (1991), Mallarmé ironiza o jornal como o
símbolo da leitura fácil e não-significante, vazia de transcendência: “(...) os contemporâneos
não sabem ler Senão no jornal: ele concede, por certo, a vantagem de não interromper o
curso de preocupações.” (p. 132).
A solução de tal paradoxo o uso, na poesia, de técnicas de impressão cuja difusão
ameaça a sobrevivência dessa mesma poesia – é guiar as inovações tecnológicas que se tem à
disposição para tornar o texto literário obscuro: apenas assim a Literatura não se deixará
banalizar:
Deve haver qualquer coisa de oculto no fundo de tudo, creio decididamente
em qualquer coisa de absconso, significante fechado e escondido, que
habita o comum: pois, tão logo essa massa lançada contra qualquer traço que
é uma realidade, existindo, por exemplo, sobre uma folha de papel, em tal
escrito – nunca em si – isso que é obscuro. [grifo nosso] (p. 129)
O oculto deve nascer da forma, do significante da arte, e esse medium é revolucionado
a partir do uso do espaçamento gráfico e dos diferentes padrões tipográficos. Como se
confirmará depois nessa pesquisa, a exploração do branco da página potencializa a
significação do poema, quebra toda a tradição de leitura silogística, dilui as fronteiras entre
poesia, música e pintura e reafirma a obra literária como fundação cosmológica, conceito
último que Baudelaire começara a delinear-se em “Flores do Mal”, mas que em “Um lance de
dados” atinge seu estado definitivo. Mário Faustino (1977, p. 130), em uma bela “crítica
poética”, exprime a grandiosidade da obra máxima mallarmaica:
Un coup de dés”: Um poema sobre o Todo. “To pan”. Sintaxe
oniconsciente, auto e hetero: uma sintaxe dentro de cada palavra, uma
sintaxe entre as palavras, uma sintaxe na soma das palavras e em qualquer
lugar para além dessa soma. Poema órfico-metafísico-epistemológico: o
jogo, o drama, o mistério; o Azar, a morte, a pureza; o jogador, o mestre, o
poema, o herói, o homem; as dualidades eternas: positivo-negativo; análise-
síntese; stasis-kinesis; circularidade-linearidade; unidade-multiplicidade;
convexidade-concavidade; macho-fêmea; o eterno retorno; o princípio e o
fim; o mito (...)
A partir de Mallarmé, a espacialidade adquire importância como recurso de
composição poemática na Europa e no resto do mundo: a página passa a ser um elemento
ativo para muitos poetas, cujos experimentalismos potencializaram tais inovações. Na França,
surgem os caligramas de Apollinaire, a variedade tipográfica de Francis Ponge em
52
L´Araignéee a ousada organização visual em forma de partitura no “Compact” de Maurice
Roche; na Alemanha, a cosmopoesia de Arno Holz e a verticalização do verso em August
Stramm; na Itália, o futurismo de Filippo Marinetti e a mais recente poesia visiva; na Rússia,
parte da obra de Vladimir Maiakovski, que transgride a linearidade do verso, além da estética
ousada de Marina Tzvietáieva; na Grã-Bretanha, o auge modernista de The Waste land”, de
T.S. Elliot e as formas geométricas de Dylan Thomas; nos Estados Unidos, a plástica poesia
prosaica de Gertrude Stein e o esfacelamento da sintaxe em e.e. cummings. Enfim, em todo o
mundo, uma considerável parte da produção poética da Modernidade levou em conta a
diagramação das palavras no espaço entre as margens para transcender a leitura silogística
tradicional. Prova cabal que Mallarmé não apenas foi modelo para Simbolistas e Parnasianos
de sua época, mas reverberou em toda a Modernidade e os dias atuais.
53
3. O MITO HAROLDIANO
3.1 Mallarmé e a Modernidade Tardia
Na segunda metade do século XX
29
, fatores pós-Segunda Guerra Mundial como a
excessiva disponibilidade de informações fragmentadas; o simulacro criado pela veiculação
de padrões de comportamento nos meios de comunicação de massa; e a espetacularização da
realidade difundida pela indústria cultural transformaram a vida na sociedade moderna. O
indivíduo passou a ter acesso ao mundo cada vez mais por meio de signos, meras simulações
ou encenações do real. A TV, o computador e a virtualidade da percepção levaram o sujeito
dito a desvincular-se do mundo empírico. Signos representando outros signos em uma cadeia
que promove a perda da referência do real, da noção de representação. Uma existência quase
ilusória.
Dentro de tal pluralidade ambiental, o homem se fecha. O individualismo moderno se
acentua, porém de forma apática e passiva, diferente do espírito transgressor de outrora. Não
se pretende romper com nada, não se nega nem se reitera o passado: o mundo sígnico levou à
crise da identidade, à perda da substância do sujeito. O conflito eu - mundo da primeira
metade do século é substituído pela descrença no ambiente, ou seja, pela insatisfação com o
signo gerada pela dificuldade em sentir o mundo em que se vive. “Na condição pós-moderna,
num ambiente saturado com informações tão volumosas [...], o sujeito humano não consegue
mais representar o mundo em que vive. [...] Não se pode representar o fim da representação
(SANTOS, 2000, p. 110).
Nas Artes, a conseqüência da perda do referente do mundo presente é a busca do
passado. O artista revisita a produção anterior a ele, e pela paródia, desconstrução ou
apropriação recria o que já foi feito. Segundo Linda Hutcheon (1991, p. 45), “o passado como
referente não é enquadrado nem apagado [...]: ele é incorporado e modificado, recebendo uma
vida e um sentido novos e diferentes”.
A criação, então, deixa de ser vista como exercício de originalidade e criatividade: não
se crê mais na possibilidade de uma “obra de arte”. O papel do artista é estabelecer um
diálogo a partir de materiais prontos, recontextualizá-los e, por conseguinte, recriá-los.
29
Embora muitas referências usadas adotem o termo “Pós-modernidade” para os tempos
atuais, evitou-se aqui esta denominação (exceto em algumas citações), pela falta de consenso
entre pesquisadores sobre a existência ou não de uma nova “era” na contemporaneidade.
54
Foi nessa busca às obras do passado que, a partir das décadas de 1940 e 1950, o poema
Un coup de désfoi redescoberto”. Na Europa, ele foi traduzido ao espanhol em 1943 por
Agustin Larrauri; ao inglês em 1956 por Daisy Aldan; e ao alemão em 1957 por Carl Fischer
e em 1966 por Marie-Louise Erlenmeyer. No Brasil
30
, os poetas concretos, no mesmo
período, trouxeram à luz a obra de Mallarmé com numerosas traduções, além de considerá-lo
o grande precursor da poesia visual. Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari, José
Lino Grünewald, entre outros, ressaltavam a relevância das inovações de Un Coup de dés à
literatura da segunda metade do século XX. Finalmente, em 1972, Haroldo de Campos
finalizaria a tradução da obra-constelação mallarmaica.
Pode-se dizer, então, que as duas primeiras “fases” do legado de Mallarmé, na divisão
de Anna Balakian (ou as três primeiras etapas, na de Mário Faustino), foram como se
mostrou fundamentais à poética da primeira metade do culo XX, pela subversão ao verso,
pelo hermetismo e pelo intenso trabalho com a linguagem. Já o “último Mallarmé” aquele
que desfigurou o conceito de gênero literário, implodiu o paradigma da página impressa e
transgrediu a horizontalidade da leitura – reverberaria apenas a partir dos anos cinqüenta.
Isso provavelmente aconteceu por uma soma de fatores: pela precipitação da crítica
francesa contemporânea ao poeta, que condenou o Un Coup de dés ao fracasso; pela falta de
percepção dos grandes autores vanguardistas e modernistas, que “ignoraram” a maior das
obras de Mallarmé; pela ausência de tecnologias de impressão que permitissem o “passo
além” da transgressão do francês; e finalmente pelo grau de ousadia do poema, que
necessitaria de meio século para ser absorvido.
Para Linda Hutcheon (1991, p. 274), a obra pode ser enquadrada na gênese do
pensamento artístico recente:
Houve então desafios às instituições e às convenções da arte e da história: os
ready-mades de Duchamp, o Un coup de dés, de Mallarmé, o Ulisses de
Joyce [...]. E são eles que funcionam como elo com o atual pós-moderno.
Outra descoberta tardia aconteceu após a publicação, em 1957, do Livre”, fragmentos
e esboços de uma obra encontrados nos pertences de Mallarmé. Era o projeto de um novo
conceito de produção literária, jamais finalizado. O que a editora Gallimard disponibilizou em
30
No presente estudo, considerou-se apenas a influência de Mallarmé no Brasil com relação à
exploração da espacialidade. Outras características do poeta francês já haviam sido absorvidas
por outros autores, como a pluralidade sintática (Pedro Kilkerry), a musicalidade (Alphonsus
de Guimaraens) e o verso livre (modernistas). Para um completo trabalho a respeito, ver
PUSCHEL (1994).
55
tal edição, organizada por Jacques Scherer, são cálculos, traços, pequenos trechos
31
, que dão a
dimensão do que o poeta pretendia.
Acredita-se que o Livreseria mais um ato revolucionário de Mallarmé, que havia
transgredido a palavra poética, o verso e a página impressa. Dessa vez, seria o livro enquanto
objeto que perderia sua linearidade, e ganharia um conceito de permutação. Talvez com
partes intercambiáveis similares ao fascículo dos jornais modernos, essa engenharia
mallarmaica, para Arlindo Machado (1993, p. 165), era uma “obra verdadeiramente
potencial”, em “estado latente”, que ofereceria ao leitor uma gama de possibilidades de
arranjo:
O sonho de Mallarmé, perseguido durante toda a sua vida, era dar forma a
um livro integral, um livro múltiplo que já contivesse potencialmente todos
os livros possíveis, ou talvez uma máquina poética, que fizesse proliferar
poemas inumeráveis [...]
O teórico aponta o holopoema (obtidos através de hologramas, espécie de fotografia
tridimensional tirada a partir de um laser), a ciberpoesia (feita através de recursos
computacionais) e o hipertexto (texto virtual e interativo) como concretizações
contemporâneas que se aproximaram de tal ideal. Outras investidas atuais, como o vídeo-texto
(exploração de telas e monitores na veiculação de obras) e a arte postal (poema a partir de
cartões postais, forma que subverte a relação tradicional entre autor/leitor) podem ser
consideradas reverberações do projeto de Mallarmé.
Entretanto, parece ser o “livro de artista”, ou a arte em livro”, a realização que mais
acusa o desgaste do livro enquanto suporte de leitura na Modernidade tardia. Produtos da
busca de novos significantes e da diluição das fronteiras entre Literatura e Artes Plásticas, tais
obras têm tido cada vez mais relevância crítica, por figurar em praticamente todos os
movimentos artísticos de fim de século. Ainda assim, nomenclaturas e definições
conflituosas entre teóricos, e o tema parece estar longe do esgotamento. O pesquisador gaúcho
Paulo Silveira (2001, p. 159), por exemplo, não apenas arrisca uma categorização, como
atribui seu início à poesia visual:
Mas sobretudo pela possibilidade de utilização em suporte impresso é que o
poema visual sua parcela de contribuição ao desenvolvimento da arte em
livro. Às vezes mal acomodado no códice convencional, o poema visual se
queria apresentado em páginas soltas, ou em construções de montar, ou em
objetos lúdicos.
31
Duas páginas desses esboços foram traduzidas para língua portuguesa. Ver GRÜNEWALD,
1990.
56
Ele, então, estabelece três diferentes tipos de arte em livro: o livro de artista, obra
plástica em forma de livro; o livro-objeto, que permite manipulação do leitor; e finalmente o
livro-poema, em que o suporte corrobora com a significação de um poema nele impresso.
a crítica paulista Bernardette Panek (2003) procura uma explicação mais genérica
ao fenômeno. Para ela, o livro de artista é aquele em que o códice não estabelece apenas uma
relação direta de acomodação do texto, mas apresenta-se mais como um objeto que como um
veículo. Isso pode ser obtido pela exploração de sua visualidade, tatilidade, espacialidade,
movimento, etc. Ela aponta, ainda, as obras “Suprematismo” (1920), de Kasimir Malevich, e
“Caixa Verde” (1934), de Marcel Duchamp, como antecessores do conceito, cujo auge deu-se
nos anos 60 e 70.
Um exemplo que serve como ilustração a essa pesquisa (e à intenção de comprovar a
relevância de Stéphane Mallarmé no contexto artístico recente) é o livro-de-artista “Un coup
de dés jamais n´abolira le hasard” (1969), de Marcel Broodthaers. Trata-se de uma
apropriação do poema homônimo aqui estudado, em que o artista belga subverte as palavras
transformando-as em linhas (figuras 1 e 2). Com isso, desvirtua a função verbal do poema, e o
converte a uma obra plástica. Mais um passo é dado rumo à total desfuncionalização do livro:
a “palavra pura” mallarmaica, aquela que visa a restituir a qualidade sonoro-visual da
linguagem inibida pela arbitrariedade do alfabeto fonético –, recebe seu máximo grau de
transgressão; mero risco na página, desprende-se definitivamente de qualquer
referencialização.
Figura 1
32
32
Imagem obtida em < http://www.tussentaalenbeeld.nl/A22%20Broodthaers.jpg >
57
Figura 2
33
Portanto, ao submeter as palavras à ilegibilidade, Broodthaers as liberta do desgaste da
subjetivação do fruidor, ou do acaso temido por Mallarmé: protegidas por um borrão,
anônimas, repousam no silêncio pré-enunciação, denotando que a arte não tem mais o que
falar – ou, à qual, restou apenas não falar.
3.2 A teoria da transcriação
A etimologia do verbo “traduzir” (do latim, trans + ducere, ou “levar através de”)
espelha a função da tradução na literatura: é um agente portador, transmissor de obras entre
culturas diferentes. É, seguramente, a principal forma de influência entre literaturas distintas,
papel denominado “angelical” por Walter Benjamim.
Verter um texto qualquer a outro idioma exige a apreensão do discurso original na
língua de partida e a reconstrução pretensamente idêntica de tal discurso na língua de
chegada. Entretanto, tal intenção é utópica, que sempre haverá nuanças semânticas
divergentes. Isso acontece não pela incapacidade do tradutor, mas pela deficiência do signo
lingüístico em reproduzir fielmente o texto traduzido.
33
Imagem obtida em < http://remue.net/IMG/jpg/un_coup_Broodthaers.jpg >
58
Para Roman Jakobson (1969, p. 65), “toda experiência cognitiva pode ser traduzida e
classificada em qualquer língua existente”. Contudo, “não comumente equivalência
completa entre as unidades de código” (op. cit. p. 67). Assim, toda ação de traduzir implicará
um desvio de sentido, por mais similar que o conceito seja nos dois idiomas em questão,
que uma palavra, em cada cultura, adquire carga semântica diferente ao longo do tempo.
Ainda que a língua seja a mesma, como no Brasil e em Portugal, ou na Inglaterra e na
Austrália, haverá sutil distinção na recepção de um mesmo termo.
Na poesia, em que a conotação tece uma rede de significância múltipla, a tradução
adquire outro desafio. A solução não é a mera versão, mas o que Jakobson chamou de
“transposição criativa”, que se deflagra quando “as equações verbais são elevadas à categoria
de princípio construtivo do texto” (op. cit., p. 72). Mais que a informação semântica, o que se
pretende transmitir é a forma do poema, bem como o efeito que ele causará ao receptor.
Assim, o tradutor torna-se um co-autor do texto. Tal visão, consagrada no século XX
com pensadores como Ezra Pound, Octavio Paz e Haroldo de Campos, tem suas raízes no
Romantismo, especialmente na França (as cuidadosas traduções dos textos de Edgar Allan
Poe feitas por Baudelaire e Mallarmé), na Inglaterra (Alexander Pope traduziu Homero) e,
ainda mais remotamente, na Alemanha (August Schlegel traduziu Shakespeare, Petrarca,
Camões; Friedrich Hölderlin transpôs Sófocles com grande criatividade). Em todos esses
exemplos, os tradutores preocuparam-se não apenas em transmitir o conteúdo semântico do
texto transposto, mas também a forma poética, ou seja, a manipulação lingüística existente na
obra.
Os românticos alemães ainda formularam uma fortuna teórica a respeito da tradução
poemática: além de a terem categorizado, também elevaram seu status ao de crítica, que é
através dela que se democratiza o acesso a determinado autor estrangeiro.
Novalis (1991, p. 28), em um de seus fragmentos, divide as traduções literárias em três
tipos:
Uma tradução é ou gramatical, ou transformadora, ou mítica. Traduções
míticas são traduções no mais alto estilo. Reproduzem o caráter genuíno,
acabado da obra de arte individual. Não nos dão a obra de arte real, mas o
ideal da mesma. [...] Traduções gramaticais o traduções no sentido usual.
Exigem muita erudição mas apenas capacidade discursiva. As traduções
transformadoras exigem, para serem verdadeiras, o espírito mais elevado, o
espírito poético.
Se, para o poeta alemão, as traduções míticas eram ainda inéditas, as transformadoras
estavam ocorrendo, e consistiam em imprimir à obra original uma identidade inerente à
59
transposição. O tradutor deixaria de ser invisível, e a partir de um exercício poético recriaria o
efeito do poema em outro idioma. O “poeta do poeta”.
as míticas seriam a reconstituição do “Ideal”, a capacidade de se atingir outra
linguagem, não apenas o que a superficialidade das palavras no poema indica. Novalis conflui
com Schelling, para quem a Mitologia é a instância mais elevada da consciência, sem as
regras de enquadramento que sistematizam e limitam a expressão lingüística. Atingir tal vel
arquetípico significaria ser capaz de entender a obra traduzida em sua totalidade (grau que,
para esta pesquisa, Haroldo de Campos atingiu ao recriar “Um lance de dados”).
Também Friedrich Schlegel teorizou sobre a tradução, que para ele era uma “criação
da língua” (apud SUZUKI, 1998, p. 206). Assim como Schelling, acredita que a origem da
linguagem leva o pensador à “pré-história da consciência”, mas com uma importante
diferença: em sua filosofia, a Mitologia e a Linguagem não têm relação de antecedência.
Ambas são as manifestações mais primitivas do chiste, espécie de ligação entre consciente e
inconsciente. Assim, compreendê-las significa chegar mais próximo do caos original, do
Absoluto, do gênio.
Apesar de tais diferenças, está claro que, para todos esses pensadores, a tradução exige
uma leitura exegética da obra original. Apenas desse modo o tradutor pode adentrar suas
relações intrínsecas, e ser capaz de reproduzi-las na língua de chegada. Devido a isso,
aproxima-se do papel por eles atribuído à crítica de arte. Walter Benjamin (2002, p. 76-77),
comentando o mesmo fragmento exposto acima, de Novalis, afirma que o poeta alemão,
[...] na medida em que aproxima uma da outra crítica e tradução, [pensa]
numa passagem medial constante da obra de uma língua a outra, uma
concepção que, devido à natureza infinitamente enigmática da tradução, é
desde já tão lícita quanto uma outra. [grifos nossos]
Cabia à crítica, no pensamento romântico alemão, balizar a atividade criadora ao
estabelecer a Totalidade Literária, o macrocosmo poético de que a obra analisada passa a
fazer parte. Assim, ela preenche a incompletude inerente a toda unidade artística. Do mesmo
modo a tradução, que ao transgredir a limitação de um idioma, incrementa o original, e passa
a ser um modo de crítica, além de uma obra de arte em si.
A tradução, nesse caso, vira crítica: ela ilumina a obra do traduzido, inserindo-o no
circuito literário em que a recriação circulará. É um recurso para eternizar e democratizar a
obra de arte. É por causa disso que no quarto capítulo deste trabalho a análise do poema “Um
lance de dados” será feita a partir da isomorfia entre o original (de Stéphane Mallarmé) e a
tradução (de Haroldo de Campos).
60
O legado dos românticos alemães foi fundamental para a formação do pensamento
moderno. No século XX, a tradução foi uma das principais formas de criação, e muitas das
teorias criadas acerca dela derivam dos fragmentos dos germânicos.
Ezra Pound, ao traduzir para a língua inglesa diversos poetas inclusive orientais
estabelece um padrão de trabalho que consiste em recriar a musicalidade do idioma de
partida, desafio que exige o conhecimento das leis de métrica e ritmo poemáticos, das quais
ele era um grande estudioso. Uma vez sendo o efeito sonoro mantido, tenta-se aproximar, na
língua de chegada, do sentido contido no original.
Tendo por base o modelo poundiano, diversos poetas brasileiros, a partir da década de
cinqüenta, fizeram um grande número de valiosas transposições, o que aumentou a
possibilidade, ao fruidor de literatura, de conhecer autores antes ignorados, ou rever literatos
cujas traduções anteriores não permitiam a real noção estrutural de suas obras. Destacam-se as
traduções de Ezra Pound por Mário Faustino e José Lino Grünewald, Bashô por Paulo
Leminski, Edmond Rostand por Ferreira Gullar, Maiakovski por Boris Schnaiderman, entre
diversos outros exemplos.
Entretanto, os grandes representantes da tradução enquanto criação e crítica, da
reconstrução do efeito e da forma, da apropriação e até mesmo subversão do original, foram
os três “pais” do movimento de Poesia Concreta: Décio Pignatari, Augusto de Campos e
Haroldo de Campos. Dentre os diversos trabalhos do primeiro, destaca-se “Tridução”, em que
transpõe “après-midi d´un faune”, de Mallarmé, em três versões: para cada verso do
original há três versos transcriados, cuja relação deflagra o sentido pretendido ao leitor. Com
isso, a riqueza imagética, musical e simbólica da criação do poeta francês não é perdida. O
título, por exemplo, é traduzido por “A tarde de verão de um fauno/A tarde de um fauno/A
sesta de um fauno”. Après-midié vertido por “tarde” (sentido literal), “tarde de verão”, em
que a assonância em /e/ recupera o mesmo efeito sonoro em /i/ do original, e “sesta”, cuja
carga semântica sugere prazer, e se alinha ao conteúdo erótico do restante do poema.
Augusto de Campos, além de transcriar obras de figuras canônicas da poesia mundial,
como Maiakovski e Valéry, também divulgou e criticou via tradução poetas ditos
“marginais”, ou não difundidos no Brasil, como Hart Crane, Dylan Thomas e Gertrude Stein.
Haroldo de Campos (1992, p. 35) foi mais além, e produziu uma extensa teoria sobre
tradução poética. Cabe ao tradutor, segundo sua visão, combater a intradutibilidade inata da
poesia. Para isso, deve-se buscar mais que transpor o sentido, mas refazer todo o caminho
cognitivo original:
61
Então, para nós, tradução de textos criativos será sempre recriação, ou
criação paralela, autônoma porém recíproca. Quanto mais inçado de
dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto possibilidade
aberta de recriação. Numa tradução dessa natureza, o se traduz apenas o
significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua
materialidade mesma. [grifos originais]
Quando o original apresenta algum tipo de efeito que não se consiga reproduzir no
mesmo verso da tradução (como um trocadilho, ou um palíndromo), a solução é compensar
em outro verso, estabelecendo, entre as obras, um equilíbrio dinâmico, visando sua
equivalência sígnica enquanto organismos estéticos.
Traduzir é, então, apreender o original enquanto um signo autotélico, desvincular-se
do sentido impregnado em cada uma de suas palavras e concebê-las como objetos per se. É
aproximar-se da utopia mallarmaica da língua pura, liberta da banalização do cotidiano. Nesse
ponto, o conceito de Haroldo de Campos é similar ao dos poetas românticos alemães: a
tradução completa a obra traduzida, pois o exercício de se atingir o “vácuo” cognitivo entre
um idioma e outro – ou o instante pré-lingüístico (talvez mítico) – é a crítica plena.
3.3 O “Un Coup de dés” transcriado
Talvez o mais notável exemplo de tradução de Haroldo de Campos seja “Um lance de
dados”, do original de Mallarmé, Un coup de dés”, poema cosmológico cuja leitura é uma
aventura sem fim. Pode-se ler verticalmente, como uma versificação regular, ou
horizontalmente, como uma partitura; podem-se agrupar as palavras de mesmo padrão
tipográfico ou considerar os agrupamentos formados no nível topológico da página. Enfim, o
poema constitui-se em uma “obra aberta”, quase permutacional, cuja completude será apenas
atingida com a recepção. É um poema latente, reconstituição constelar do caos criativo, do
eixo paradigmático, do vel das possibilidades: cabe ao fruidor o insight, a associação
sintagmática, a finalização da obra.
Se a leitura de Un coup de dés é uma operação, sua tradução é um desafio quase
utópico. Após um brilhante trabalho de leitura exegética do texto, Haroldo de Campos recriou
a constelação mallarmaica em um intrincado jogo compensatório, em que nenhum efeito da
cosmologia original deve ser perdido. Para tal, o concretista usa de estratégias para ser fiel à
forma e ao conteúdo de Un coup de dés, como a tradução por aproximação, o neologismo
ideogramático (palavra-valise), a subversão lingüística e a investigação etimológica de
palavras como justificativa para a escolha na transposição.
62
Um exemplo de tradução por aproximação é a opção escolhida ao traduzir o
agrupamento que se segue
34
(na terceira folha, quinta página do poema, considerada a ordem
linear):
avance retombée d´un mal à dresser le vol
et couvrant les jaillissements
coupant au ras le bonds
Na transcriação haroldiana:
antemão retombada do mal de alçar vôo
e cobrindo os escarcéus
cortando cerce os saltos
“Jaillissements” significa “jorro”. Entretanto, em francês a palavra ressoa “aile”
(“asa”), denotando grandeza, magnitude. Todo esse agrupamento é como uma locução
adjetiva de “aile” (“asa”, também na transcriação), e ressalta a ação mediadora que tal
símbolo exerce entre o céu e o mar (grande dicotomia do poema). Em vez de “jorro”, porém,
Haroldo prefere “escarcéus”, que significa uma grande onda. Embora a tradução seja
aproximada em termos de sentido (a violência de “jaillissements” está contida em
“escarcéus”), o fato de “céu” ser retomado foneticamente reproduz o efeito original de
conferir importância monumental ao feito da asa.
A dicotomia céu/mar, porém, sugere ao longo do poema um sentido erótico de união
entre o masculino e o feminino. Tal contexto é reforçado pelo valor semântico sexual ligado a
“jaillissements” (que sugere “ejaculação”), e perdido na escolha de “escarcéus”. O resultado é
compensado por “cobrindo”, que pode ser ligado ao ato do sexo.
No mesmo grupo, há uma outra tradução por aproximação. Aqui, porém, isso ocorre
para a manutenção de um efeito sonoro: a aliteração em /s/ do original (“leS jailliSSementS
coupant au raS leS bondS”), que reverbera o barulho do mar. “Au ras”, literalmente “raso”, é
vertido por “cerce” (que significa “pela raiz”), o que permite a mesma sugestão em português
(“oS escarcéuS cortando CerCe oS SaltoS”).
Outra técnica usada por Haroldo de Campos é o neologismo ideogramático. Na quarta
folha (sexta página) do poema, um pequeno agrupamento subordinado a “Le maître” (“O
mestre”):
34
Tanto para o poema original como para a tradução à língua portuguesa, usou-se sempre
como fonte CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 1974. Entretanto, quando for necessário
citar trechos da obra, respeitou-se sua numeração natural, de 11 folhas e 21 páginas,
assumindo-se que a página 01 é a primeira do poema.
63
surgi
inférant
Na tradução em tela:
exsurto
inferindo
O verbo surgir”, em francês, tem conotação semelhante ao cognato em português,
especialmente no uso náutico: emergir bruscamente em direção à terra. A opção óbvia
(“surge”, ou “surgido”) perderia a idéia de imprevisto, de certa rudeza que consta no original.
O poeta brasileiro cria então “exsurto”, que funciona como um suposto particípio irregular de
“exsurgir” (“erguer-se”) – o que mantém o sentido de aparecimento e recupera sonoramente
“surto”, que adiciona ideogramaticamente a idéia de “irrupção”: desse modo, como um kanji
oriental, “exsurgido” e “surto” unem-se, criando “exsurto”, erguido de maneira irrompida e
brusca.
Nota-se, em tal artifício haroldiano, grande proximidade com a “palavra-valise”
joyceana, utilizada em Finnegans Wake. Trata-se da fusão de termos em um neologismo, que
confere ampla gama de possibilidades de leitura. Outro notável exemplo é no agrupamento
subordinado a “Mestre” que se segue, da quinta folha (oitava página):
dont
le voile d´illusion rejailli leur hantise
ainsi que le fantôme d´un geste
Na transcriação haroldiana:
cujo
véu de ilusão ressurto ânsia instante
como o fantasma de um gesto
Rejailli”, literalmente, seria “brotar novamente”: o véu de ilusão faz brotar, mais uma
vez, a obsessão do Mestre em lançar (“gesto”) ou não os dados da criação poética. Entretanto,
Haroldo de Campos prefere criar o neologismo “ressurto”, palavra-valise fruto da fusão entre
“re-” e “surto”: o prefixo latino sugere retorno, e “surto” traz a idéia de descontrole expressa
por “hantise (“obsessão”). Tal palavra em francês, aliás, ecoa anti”, negação, que na
transcriação é compensada por “instANTE”.
64
o recurso da subversão lingüística é um meio de compensar a intradutibilidade de
certas ousadias mallarmaicas. Na nona folha do poema (décima sétima página) a seguinte
ramificação de “plume” (“pluma”):
naguères d´où sursauta son délire jusqu´à une cime
flétrie
par la neutralité identique du gouffre
Flétrie(enfraquecido) faz vibrar été(sido, do verbo ser), o que enriquece a teia
semântica dessa passagem, em que a pluma (metáfora dos dados, ou da criação poética) dá-se
conta da indiferença do abismo (símbolo do acaso). Para não perder a anagramatização do
original, Haroldo de Campos recria tais versos como:
de onde há pouco sobressaltara seu delírio a um cimo
fenescido
pela neutralidade idêntica do abismo
“Fenecido” é subvertido em “fenescido”, de modo que SIDO é “desenhado” ao nível
do significante, sem perda de sentido ou interferência sonora. O tradutor justifica sua
artimanha: “Mallarmé também usa desse recurso, quando lhe convém”
(CAMPOS;CAMPOS;PIGNATARI, 1974, p. 139).
Finalmente, outro método tradutório original de Haroldo de Campos na transcriação
aqui analisada é a investigação etimológica das palavras, de modo que suas raízes façam ecoar
determinada carga semântica no texto. Convém lembrar que Mallarmé era um estudioso da
origem das línguas, especialmente a língua inglesa (que lecionava). Em seu Les mots Anglais,
promove divagações e conclusões sobre o idioma a partir de tal ponto de vista. Assim, mais
uma vez o poeta brasileiro usa do próprio “veneno” mallarmaico para traduzi-lo.
Um bom exemplo de como isso foi operacionalizado é a quinta folha (oitava página),
onde há diversas ramificações de “Le maître” (“O mestre”). Uma delas é:
ayant
de contrées nulles
induit
le vieillard vers cette conjonction suprême avec la probabilité
Haroldo traduziu por:
tendo
de regiões nenhumas
induzido
o velho versus esta conjunção suprema com a probabilidade
65
Verscontém a ambigüidade da preposição “em direção a” e o substantivo verso.
Qualquer uma das escolhas, em português, geraria perdas, que Mallarmé pretendeu
subentender tanto que o velho (o mestre) estaria indo na direção do encontro com a
probabilidade (entregar-se ao acaso, abrindo a mão e lançando os dados da criação poética)
quanto que o “velho verso”, fruto do encontro (“cette ... probabilité” viraria aposto de vers”),
teria sido induzido pelo Mestre.
Haroldo buscou o étimo de vers”, e viu que vem do latim versus(“em direção a”).
A palavra latina não apenas manteria o sentido preposicional, como ressoaria “verso”
(mantendo a ambigüidade) e ainda adicionaria uma terceira possibilidade interpretativa:
“versus”, em português, significa contra”, “em oposição” (herança da língua inglesa). Ou
seja, o Mestre em oposição ao embate com o acaso.
Esse é um excelente modelo de tradução crítica, completadora, no sentido que
Schlegel apregoara: a evolução da arte dá-se pela forma, e sua reescritura promove a
progressão do continuum literário que ele chamou de “Poesia Universal Progressiva” seja
via crítica aforística, seja via tradução.
Outro exemplo do uso do étimo das palavras por Haroldo de Campos é esta pequena
frase que se ramifica de “C´était” (“Fosse”), na nona folha (décima sexta página):
issu stellaire
Que é vertida por:
êxito estelar
Issu” dá a ambigüidade do sentido de “saída” e “proveniente”. Ou seja, “fosse
originário das estrelas” ou ainda “fosse a saída das (ou para as) estrelas”. O tradutor brasileiro
opta por “êxito”, que por sua acepção de “resultado final”, “efeito”, mantém o sentido de
proveniência. Além disso, como seu étimo é o latim exitus (saída), a duplicidade semântica do
original é mantida: “fosse êxito das estrelas”, ou seja, vindo delas, ou ainda “fosse o ato de
sair das (ou para as) estrelas”. Mais uma vez, a formação de uma terceira possibilidade na
transcriação: êxito adiciona a alternativa de compreensão como “sucesso”. Assim, o trecho
pode ser lido como “fosse [o ato de lançar os dados] um sucesso das estrelas [símbolo para a
palavra poética], ainda assim existiria o Acaso (presente na mesma folha).
Portanto, a partir dos exemplos expostos, percebe-se a validade em se considerar a
transcriação de Haroldo de Campos “Um lance de dados” uma obra de arte per se. Embora em
constante diálogo com o original, seu trabalho ganha autonomia e insere-se no rol de seus
66
grandes feitos. Graças ao esforço do poeta brasileiro, a ousadia de Mallarmé pôde ser
difundida no Brasil, influenciando a produção poética posterior à sua publicação, o que
ratifica a função de “rito” da tradução como fator atualizador da literatura, ação essencial para
a construção do continuum literário, da Totalidade Artística discutida desde Schlegel e os
românticos alemães. Por tal relação entre a cosmologia mallarmaica e a re-cosmologia
haroldiana, escolheu-se estudá-las sob a luz da Teoria da Gestalt e seu conceito de correlato,
a ser explicado no próximo capítulo.
67
4. O MITO “UM LANCE DE DADOS”
4.1 Kant e Husserl
Kant revolucionou, em sua filosofia, o conceito clássico de “ser” que predominava no
pensamento ocidental desde Aristóteles. Para o grego, o ser se manifestava na substância (o
ente) ou no acidente (modos de ser do ente). Aquela teria ainda, uma vez retirados de si todos
os seus aspectos individualizantes, uma estrutura universal, que a diferenciaria das demais
substâncias, e que ele chamara de forma.
para Kant, o “ser” dá-se no pensamento (HEIDEGGER, 1991). Ele é o encontro da
matéria dados empíricos postos ao sujeito com a forma poder ordenador e unificador
do entendimento. Conseqüentemente, o estudo da percepção adquire fundamental
importância, pois é neste momento da apreensão do sensível que se configura o fenômeno
ontológico:
Até onde chega a percepção e o que dela depende, segundo leis empíricas,
até ali também chega o nosso conhecimento da existência das coisas.
(KANT, 1965, p. 228)
Segundo o filósofo alemão, o fato perceptivo nasce da soma do entendimento com a
sensação. Aquele é a qualidade cognoscitiva inerente ao sujeito, e independente do estímulo
externo. Já esta é a representação advinda das impressões diante do objeto. Esses dois
elementos fundidos criam uma síntese, e diversas sínteses unificadas geram o conhecimento.
Tal processo ocorre em três fases: a primeira, chamada de apreensão, é a captação de
diversos elementos da intuição no tempo e no espaço; depois disso, tais impressões passam
pela etapa da reprodução, quando serão sintetizadas e transformadas em imagens pela
imaginação, que tem o papel de atribuir uma organização à teia caótica de sensações; e
finalmente essas imagens sofrerão o reconhecimento, estágio em que elas são representadas
em um conceito após serem confrontadas com dados da memória do sujeito.
É importante ressaltar a relevância que o termo “unidade” adquire na teoria kantiana
de percepção conceito que os gestaltistas iriam, um século e meio depois, explorar ao
máximo: como, para ele, a mente (o Eu) é claramente una, as representações feitas por ela
devem, necessariamente, também ser unitárias, ainda que advindas de excitações sensoriais
68
múltiplas, até infinitas. Isso ocorre através da “unidade originária sintética”, qualidade
inerente a toda e qualquer representação.
O que garante essa unicidade necessária à consciência empírica, ou o conceito a priori
que funciona como um fio condutor entre percepções momentâneas é o tempo. Ele manifesta-
se de três modos, a saber: através da permanência, que é o que permite a existência de um
objeto independentemente das variações de seu estado (que Kant chama de acidente
35
); da
sucessão, nascida do fato de que a percepção exige um encadeamento de fenômenos para
localizá-los no tempo e no espaço, a partir da lógica de causa e efeito, sendo assim condição
indispensável para o estabelecimento da ação; e finalmente a simultaneidade, em que,
diferentemente da sucessão, a ordem de apreensão é indiferente, mas o que vale é a
coexistência de perceptos em reciprocidade temporal e espacial, ou seja, agindo uns sobre os
outros.
Desse modo, é pela percepção (regida pelos modos de manifestação do tempo) que
temos acesso ao mundo. Eis que surge a dicotomia kantiana: tudo que se mostra a nós faz
parte do mundo fenomênico, dos fenômenos, das nossas representações sensíveis. Já o
“mundo-em-si”, chamado “noumenal”, não é atingível ao humano, pois dele temos apenas
uma “réplica interior”, já afetada pelos nossos sentidos.
Uma tentativa de solução ao dualismo de Kant veio com Husserl, um século mais
tarde. O fundador da Fenomenologia doutrina que surge como reação ao modo factual e
positivista com que o pensamento humanístico do século XIX era exercido nega o mundo
do númeno e concentra sua teoria exclusivamente no fenômeno, conceito que ele amplia
como sendo toda e qualquer existência, seja material ou ideal. Seu estudo deve ser eidético,
ou seja, buscar a sua essência pela “redução”, que é a busca da origem da consciência, da
própria gênese perceptiva desse fenômeno
36
. Por isso Husserl também foi uma figura
fundamental nos avanços dos estudos de percepção.
35
Note-se a sutil diferença entre o conceito aristotélico de acidente modo de ser do ente,
suas qualidades e relações diversas com a definição do filósofo alemão variações de
estado. Kant (op. cit., p. 192) exemplifica: “O nascimento e a morte não são mudanças do que
nasce e morre. A mudança é um modo de existência que sucede a outro modo de existência do
mesmo objeto. Tudo o que muda é, pois, permanente, e o seu estado é que varia”. Tal
variação é o acidente.
36
uma contradição entre os primeiros escritos de Husserl em que ele crê ser a
consciência auto-suficiente para intuir as essências da natureza e a parte final de sua obra,
em que admite a existência do mundo noumenal.
69
4.2 A escola de Berlim
Foi na chamada “Escola de Berlim” que Wertheimer, Köhler e Koffka
37
fundaram a
Psicologia da Forma, ou Psicologia da Gestalt, no começo do século XX. Seu ideal era de
contrapor-se ao pensamento dominante na Psicologia do século anterior, que impunha como
método a análise das propriedades das sensações humanas, ignorando ou minimizando a
relevância de seus conteúdos. Podem-se notar em seus trabalhos três fortes influências: Kant,
Husserl e Ehrenfels.
De Kant, os gestaltistas herdam a preocupação com a forma. Como o filósofo,
valorizam os estudos da percepção humana, e levam suas investigações ao laboratório,
priorizando o sentido da visão. Entretanto, não corroboram a dicotomia kantiana
matéria/forma, que supõe um equilíbrio estático ao psiquismo. Ao contrário, acreditam na
imanência da forma, isto é, em um equilíbrio dinâmico inerente à estrutura percebida, não
apenas no nível do pensamento – como Kant – mas antes disso, em um estágio físico.
Portanto, a percepção visual organiza-se em uma forma, uma estrutura, uma gestalt
38
(palavra alemã adotada em quase todas as outras línguas pela dificuldade de uma tradução
fidedigna) não porque o cérebro tenha tal poder ordenador puro – e é nesse ponto que
divergem de Kant –, mas porque as forças naturais assim se organizam. Para tal comprovação,
usaram experimentos com circuitos elétricos, efeitos sonoros e outros elementos estruturais.
Isso resulta em uma visão diferenciada da relação parte/todo. Negando a teoria
atomística imperante no século XIX, os gestaltistas defendem que o todo não é uma soma das
partes, mas contém uma propriedade singular, sendo mais que o fruto de um mero processo
aditivo.
Tal conceito fora herdado a eles por Ehrenfels, que em 1890 publica Über
Gestaltqualitäten” (“Sobre as qualidades da Gestalt”), trabalho em que, ao analisar melodias e
figuras, nota a presença de um todo orgânico que contém uma qualidade inerente a ele,
independentemente do conteúdo das partes. Uma melodia, embora composta por notas, é
reconhecida pelo ouvinte por conter uma medula estrutural (Gestalt) que lhe confere a
37
Apesar de Wertheimer ser um pouco mais velho que seus dois colegas, os estudos dos três
são de tal forma interligados tanto no período em que pesquisaram juntos, em Berlim e nos
Estados Unidos, como nas fases em que se separaram que este trabalho considerará suas
teorias como uma só, dada a dificuldade em se identificar o papel individual de cada um nas
descobertas do grupo.
38
Os dicionários de língua portuguesa registram os termos Gestalt (plural: Gestalten, fiel ao
alemão) e Guestalte (plural: guestaltes). Decidiu-se pela primeira forma, por ser a mais
corriqueira em trabalhos acadêmicos.
70
personalidade. É por causa disso que, mesmo tocada em um tom diferente (ou seja, cada uma
de suas notas é alterada), ela continua sendo identificada pelo fruidor. Isso acontece porque,
embora suas partes tenham sido modificadas, o todo permanece o mesmo, seja pela
manutenção do tempo entre as notas, seja pelo seguimento de uma escala musical. As notas
musicais da melodia, independentemente do tom, reagem entre si de maneira a produzir o
mesmo todo. Paul Guillaume (1966, p. 19) explica a conclusão do filósofo austríaco:
O essencial, nos fatos físicos como nos fatos psíquicos, é a possibilidade de
reagirem uns sobre os outros, realizadas por certas condições de proximidade
no espaço e no tempo. São essas relações de causalidade que dão uma
existência real ao todo físico, assim como à melodia percebida. [grifos
originais]
Essas relações de causalidade são responsáveis por uma dinâmica interna auto-
regulável do sistema (seja ele uma figura vista ou uma melodia escutada) que sempre busca o
mesmo equilíbrio. A tal fenômeno, portanto, Ehrenfels deu o nome de gestalt.
O passo adiante que os pesquisadores da Escola de Berlim deram em relação ao seu
antecessor austríaco foi descobrir que a percepção (todo) também não é a soma das sensações
(partes) e “algo mais”. O todo é apriorístico às partes, que apenas passam a existir uma vez
que ele seja desmembrado. Desse modo, os elementos constituintes de uma totalidade apenas
existem em função desta. Determinada nota em uma melodia é diferente da mesma nota
tocada isoladamente, que no segundo caso ela não estaria submetida à engrenagem de uma
melodia, e seria, per se, um todo. No primeiro exemplo, ela existe em virtude da melodia em
que está inserida.
Os gestaltistas confrontam, ainda, uma melodia com um acorde: ambos são
combinações de notas. A primeira, entretanto, contém partes identificáveis, enquanto o
segundo tem tal grau de coesão que é impossível à percepção desmembrá-lo. São,
respectivamente, formas fracas e fortes.
de Husserl, a influência mais significativa foi a de concentrar a preocupação no
fenômeno. Tanto na Fenomenologia como na Teoria da Forma, a recepção perceptiva e a
experiência psíquica, em suas significações e inteligibilidades, não são submetidas à relação
sujeito-objeto. Tal dicotomia, em si, nasce do fenômeno, e da maneira como ele é percebido.
Os pensadores da escola de Berlim, entretanto, divergem de Husserl quanto à sua
visão do todo, que consiste na crença de que todo objeto, embora parte de uma multiplicidade
de estímulos, contém em si um caráter uno e acabado, que ele chama de essência. O método
para se atingir tal unidade é a imaginação transcendental, com a qual se supera a natureza
71
multifacetada da percepção e se atinge esse núcleo essencial do percepto. Os gestaltistas
refutam o todo como “essência”, mas o vêem como uma qualidade inerente e natural ao
objeto, dada imediatamente ao perceptor, e não como algo a “ser buscado”.
Desse modo, a relação todo/parte descrita pelos teóricos da Forma difere tanto da
crença kantiana de que a totalidade nasce do encontro forma e matéria em nível psíquico,
como do postulado de Husserl de que o todo é um núcleo indivisível da idéia de um objeto.
Também de Ehrenfels eles se afastam, ao negar ser a “Gestalt” a soma das partes adicionada a
algum outro elemento. Para Wertheimer, Köhler e Koffka, o todo ou gestalt é uma realização,
em nível fenomênico, que nasce da organização funcional de forças naturais, cujo equilíbrio
dinâmico atinge uma estrutura medular apriorística às suas partes, que apenas passam a existir
quando de seu desmembramento intencional por parte do perceptor.
Tal processo contém três estágios de integração: em nível físico, mais elementar,
quando as forças espaciais ainda são mais independentes; no cérebro, dá-se a fase fisiológica,
em que o elemento espacial desaparece, e a coesão se intensifica; e finalmente a fase
psíquica, em que se o fenômeno da percepção, bem como sua posterior significação, após
a total integração dos elementos constituintes. Köhler (1978, p. 80) explica que
O estado final somente será atingido quando mediante alterações
consecutivas de cada ponto interno, as forças e relações internas se
relacionarem e atuarem entre si, de tal forma que não mais provoquem
nenhuma alteração de estado, ou seja, do processo (agora) estacionário.
Entre as três fases citadas da relação parte/todo existe, para os gestaltistas, um
princípio básico, que é o do isomorfismo: uma identidade ou correspondência (mas não
igualdade) entre elas, ou seja, entre as forças do mundo-em-si, de seu análogo cerebral e do
resultado percebido. Cada uma de tais estâncias é denominada correlato”: quase-igualdade
do mesmo fenômeno perceptivo. É tal qualidade que confere fidedignidade à percepção.
4.3 Princípios de organização da forma
A formação perceptiva da Gestalt não é, entretanto, aleatória. Ela é regida por uma lei
básica, a “Lei de Pregnância”, que consiste no fato de que a percepção será sempre a forma
mais simples possível. Para tal, cinco princípios orientam o processo de construção de uma
estrutura: o mais forte deles é o princípio da semelhança, que faz com que agrupemos
elementos similares em uma forma. Na figura 3, a Gestalt formada é uma seqüência de
72
linhas horizontais, alternando-se entre claras e escuras. Não se agrupam, por exemplo, linhas
verticais ou diagonais, pois os pontos equivalentes “atraem-se”.
Figura 3: Princípio de Semelhança
39
O outro princípio que forma com o de Semelhança a essência da percepção é o de
proximidade. Ambos “são dois fatores que muitas vezes agem em comum e se reforçam
mutuamente [...] para unificar a forma” (GOMES FILHO, 2004, p. 34). Na figura 4, a Gestalt
formada é uma seqüência de quatro colunas verticais, depois desmembradas em oito. Isso
ocorre pela disposição espacial dos pontos: como a forma percebida será sempre a mais
simples possível, os quatro agrupamentos vistos são tomados como unitários.
Figura 4: Princípio da Proximidade
40
Quando houver conflito entre os dois princípios, porém, o de Semelhança prevalecerá.
Além deles, outras três leis que interferem no estabelecimento da boa Gestalt: a Boa
39
Imagem obtida em <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/69/Gestalt_ley_d
e_semejanza.png>
40
Imagem obtida em < http://www.tipographia.com.br/aulas/gestalt.htm >
73
Continuação, que é a tendência cognitiva de se ignorar quebras de linhas que desfavoreçam a
pregnância da forma. Na Figura 5, vê-se um tridente, embora uma análise detalhada mostre
que há uma quebra no dente do meio.
Figura 5: Princípio da Boa Continuação
41
O Princípio do Fechamento, por sua vez, é a criação de uma forma mais pregnante a
partir de uma estrutura aberta. Na Figura 6, a ilusão de um quadrado, embora ele não
exista. Finalmente, pelo princípio da Unidade, uma totalidade perceptiva mais cômoda é
destacada diante de uma composição qualquer. É por isso que, na Figura 7, vê-se um
quadrado a partir das linhas verticais.
Figura 6: Princípio do Fechamento
42
Entretanto, os princípios de Boa Continuação, Fechamento e Unidade apenas atuam
quando não há relações de Semelhança ou Proximidade, que serão sempre mais pregnantes.
41
Imagem obtida em < http://www.desenhoindustrial.com.br/artigos_t_gestalt.htm# >
42
Imagem obtida em < http://www.desenhoindustrial.com.br/artigos_t_gestalt.htm>
74
Figura 7: Princípio da Unidade
43
Essa “melhor forma” apreendida no processo de isomorfia psiconeural, porém, nunca
se apresenta sozinha: há, no rtex, uma segregação no contorno de tal estrutura, e uma
corrente elétrica que age dentro das “bordas” formadas a partir de tal seção, o que permite a
melhor distinção da Gestalt. Ao que está delimitado por tal perímetro os gestaltistas
44
deram o
nome de figura. O que o excede, de fundo. Se aquela está sempre no “primeiro plano” da
presença perceptual, e tem seus limites claros e estabelecidos, este aparece “por detrás”, como
elemento circundante, disforme, ilimitado, estático. Um não existe sem o outro.
Figura 8: Figura reversível (perfis-taça)
45
43
Imagem obtida em < www.mxstudio.com.br/views.tutorial.php?act=vi... >
44
O conceito de figura/fundo foi primeiro desenvolvido por Edgar Rubin, psicólogo discípulo
de Husserl, em 1912.
45
Imagem obtida em < http://www.ufrgs.br/faced/slomp/edu01135/perfis-taca1.jpg >
75
Toda percepção visual estrutura-se, pois, em uma figura e um fundo. Certas gestalten,
porém, por alguma característica inerente, produzem uma obstrução cortical que impede o
perfeito fluxo elétrico e causa o fenômeno da reversibilidade quando a figura não é estável
e alterna-se com o fundo. Na ilustração 8, pode-se ver uma taça negra como figura, em um
fundo branco, ou duas faces brancas em perfil, frente a um fundo preto. O pós-imagem causa
a reversão em poucos segundos.
4.4 Outros estudos gestálticos
Não foram apenas Wertheimer, Köhler e Koffka que estudaram as propriedades da
Gestalt. Paralelamente a eles, na Universidade de Leipzig, um time de pesquisadores
chefiados por Felix Krueger desenvolvia a Ganzheitspsychologie, ou Psicologia da
Totalidade. No campo da percepção, afirmavam que a formação de uma Gestalt passava por
quatro estágios: a recepção de dados aleatórios e indistintos; a organização em figura/fundo; a
delimitação de contornos (em todas essas fases, o que eles chamavam de pré-gestalt); e,
finalmente, a gestalt final. Diferentemente dos teóricos de Berlim, eles creditavam maior
importância a fatores externos ao processo perceptivo, como aspectos emocionais. Assim, as
primeiras fases são regidas mais por elementos cognitivos internos, enquanto as últimas
sofrem maior influência do contexto.
Na segunda metade do século XX, outras linhas de pesquisa continuaram os avanços
da Teoria da Forma. Carl Weizsäcker, físico alemão, desenvolveu o conceito de Gestaltung,
uma força geradora da gestalt, anterior a ela, e fruto de uma matriz cinestésica natural do
movimento estruturante. Assim, toda figura, por mais definitiva que seja, possui em estado
latente esse pulsar de forças que intervieram na sua organização, e estruturaram o espaço-
tempo no fenômeno da percepção.
A Gestaltung não cria apenas gestalten perfeitas, mas também formas não pregnantes,
incompletas, que não encerram em si um significado definitivo. É o fenômeno da ungestalt
46
,
um percepto que exige algum tipo de complementação subjetiva. Fatores internos como
necessidade ou desejo, então, criam impulsos que distorcem o resultado apreendido dos
sentidos, e fazem surgir percepções agora completas, mas menos fidedignas que uma gestalt.
Isso é comum na percepção estética, como se verá mais adiante.
46
Conceito originalmente criado por William Stern, psicólogo alemão contemporâneo a
Wertheimer, que também desenvolveu o QI, ou quociente de inteligência.
76
Passado quase um século da primeira obra de Wertheimer, quão atual pode ser
considerada a Teoria da Forma? Seus ecos em estudos contemporâneos de Psicologia se dão
principalmente na questão do isomorfismo psiconeural, ainda hoje aceita como uma realidade
na experiência perceptiva. Também no Brasil, pesquisadores como Antônio Gomes Penna e
Arno Engelmann defenderam a Gestalt em nível acadêmico. Este (2002), citando trabalhos
atuais – como os de Eckart Scheerer e Gerald Westheimer – afirma:
O impacto da obra inicial de Max Wertheimer em 1910 é importante hoje em
dia. Os pesquisadores atuais não aceitam mais a visão simplificada segundo
a qual as operações corticais seriam comportamentalizadas. A idéia antiga do
isomorfismo psiconeural, ainda que se sirva de modelos mais sofisticados,
continua viva.
Também no campo da percepção visual a Psicologia da Forma continua sendo
revisitada. Além da inserção consagrada em diversas línguas da palavra “gestalt” como
sinônimo de estrutura unitária percebida, os princípios de organização da forma elaborados
pelos teóricos de Berlim são uma fundamental contribuição aos estudos contemporâneos da
visão.
Um exemplo disso é a recente teoria da Inteligência visual, conceito de Donald
Hoffman que confere ao processo de formação de imagens na retina uma sistemática
semelhante à da linguagem na teoria de Noam Chomsky, a saber: no cérebro humano uma
pré-disposição inata à construção ilimitada de frases (ou figuras) a partir de um número finito
de regras universais:
Mas, então, porque todos nós vemos as mesmas coisas? O consenso é
mágico? Não. Temos consenso porque temos as mesmas regras de
construção. Vemos as mesmas coisas porque construímos as mesmas coisas.
E construímos as mesmas coisas porque utilizamos as mesmas regras de
construção. (HOFFMAN, 2000, p. 74)
O autor elenca, então, dezena de normas segundo as quais o cérebro elabora as
imagens retinianas, desde pontos e linhas até sistemas tridimensionais. Nota-se entre suas
regras e os princípios de organização gestálticos uma clara relação embrionária.
Há, ainda, outra teoria da Psicologia atual freqüentemente ligada à Escola de Berlim
pela apropriação do termo “Gestalt”: a Gestalt-terapia método psicanalítico criado pelo
alemão Fritz Perls que visa a abordar o paciente a partir de sua inserção em um macrocosmo,
e permitir que ele desenvolva uma existência mais vívida em virtude de tal perspectiva. Tal
caráter holístico, entretanto, muito pouca relação tem com a Teoria da Forma, e não interessa
à pesquisa em tela.
77
4.5 Críticas à Gestalt
A Teoria da Forma foi alvo de algumas críticas ao longo do século XX. O fundador da
Reflexologia, Ivan Pavlov, é um claro exemplo: embora ele admitisse o conceito de Gestalt,
afirmava que elas nascem de associações mentais, e não que são elementos formadores destas,
como defendiam os pesquisadores de Berlim.
Também Donald Hebb, importante psicólogo canadense, questionou o caráter
apriorístico da construção da forma na percepção: para ele, o fenômeno perceptivo é fruto de
aprendizagem, e a experiência passada é fator fundamental para a construção do que é visto.
Em suma, pensadores posteriores tenderam a considerar mais a subjetividade e o peso da
experiência vivida pelo perceptor no ato da visão.
É importante ressaltar que, embora as críticas façam sentido, os gestaltistas jamais
negaram o peso da subjetividade ou da experiência passada no processo perceptivo. Eles
apenas concentraram seus trabalhos no fenômeno da construção da forma, seja na relação
todo/parte, seja na dicotomia figura/fundo. Nesse campo, suas contribuições são inegáveis.
Entretanto, toda vez que ampliaram seus estudos a outras áreas, como aprendizagem humana,
comportamento ou mesmo nas implicações filosóficas de suas conclusões, não avançaram de
maneira significativa.
Outra crítica digna de menção feita aos teóricos de Berlim é a de Husserl: para o
fundador da Fenomenologia, os gestaltistas “coisificam” a consciência humana ao
considerarem o fenômeno psíquico um produto do equilíbrio dinâmico entre diversos estados
mentais coexistentes. Para o filósofo alemão, tal visão não resolve a questão ontológica,
que ignora a interioridade una (essência) do sujeito.
Discípulo de Husserl e filósofo fundamental no estudo da Forma, Merleau-Ponty
defende os Psicólogos da Gestalt. Para o fenomenologista francês, a teoria de Wertheimer,
Köhler e Koffka não podia ser classificada como materialista ou simplista, que os
supracitados estados mentais coexistentes não seriam como átomos, elementos independentes
a sofrerem um processo aleatório de adição. Afinal, seriam parte de um todo, apriorístico e em
função do qual eles próprios existiriam: o ser. Estaria resolvida, então, a deficiência do
conceito dos gestaltistas: o ser enquanto consciência existe, e em função dele estados
psíquicos específicos convivem em equilíbrio.
Merleau-Ponty afirma, ainda, que o conceito gestáltico de forma encerra a dicotomia
com que Husserl conviveu em seu trabalho: o conflito natureza x consciência, pois a idéia de
um movimento estruturante inerente às coisas e em isomorfia tanto na natureza quanto na
78
consciência faz supor que ambas as esferas podem conviver concomitantemente, sem uma
relação de aprioridade.
Desse modo, não se pode negar a relevância atual dos estudos gestálticos, quer pelo
seu inovador conceito de forma, quer pelos inegáveis avanços no campo da percepção
humana. Ainda que exageradamente cientificistas, e incompletos em determinadas searas,
seus trabalhos têm sido fontes enriquecedoras não apenas para a Filosofia e a Psicologia, mas
também para a crítica de arte, como se verá a seguir.
4.6 A concepção gestáltica da Arte
Tendo em vista os conceitos gestálticos vistos, como aplicá-los à Arte? Embora os
próprios teóricos de Berlim não tenham respondido à questão, muitos dos princípios
elaborados pela Psicologia da Forma foram utilizados tanto na criação como no estudo do
fenômeno artístico.
Koffka chega a afirmar que a percepção é o alicerce da impressão estética, e que a lei
de pregnância rege a obra de arte como um todo: nela, grandezas como equilíbrio, clareza,
unidade e simplicidade são fundamentais, inclusive quando, propositadamente, o artista priva
o fruidor de alguma delas, com o objetivo de gerar choque.
O fato é que o mesmo processo construtor de imagens operado cotidianamente pela
percepção visual é o responsável pela recepção de uma produção artística. O que diferencia,
então, a visão de uma paisagem in loco e a observação de uma pintura que contenha a mesma
paisagem? Segundo Koffka, os estímulos recebidos da natureza são infinitos e aleatórios, o
que força o perceptor a selecionar as melhores gestalten diante das condições dadas, o que não
permite que o resultado apreendido tenha um nível estético de padrão artístico. Já um quadro,
por exemplo, concentra dados selecionados, com “ruído visual” insignificante, possibilitando
a experiência de fruição artística. Por isso a arte é comumente considerada um fator de
“correção perceptiva”, que ela opera como um retificador consciente da percepção humana,
ao oferecer a esta uma estrutura idealmente perfeita.
Rudolf Arnheim (2000), discípulo de Wertheimer, produziu valiosos trabalhos
relacionando a Teoria da Forma com a Pintura, a Escultura e o Cinema. Princípios como a
relação figura/fundo (bem como a ambigüidade permitida pelo fenômeno da reversibilidade) e
os princípios de organização da forma são por ele explorados para melhor compreender o
esqueleto estrutural da obra de arte, que é o padrão formador de seu todo. É a partir dele que
79
a análise do crítico deve começar. Apenas depois de identificá-lo é que se pode estudar as
partes, meras “seções que revelam um subtotal segregado dentro do contexto total” (op. cit., p.
69).
O crítico brasileiro Mário Pedrosa (1996, 144) corrobora tal idéia:
O decisivo [na percepção estética] são os valores formais intrínsecos. O
fenômeno está condicionado pela propriedade figural. Como sabemos, as
formas regulares, simples, simétricas têm esse privilégio. Nelas o todo é
despótico; sua lei se manifesta já imperiosamente sobre as partes. Os seus
efeitos são a percepção; não é assim uma questão de saber, é mais uma vez
conseqüência da prenhez formal. [grifo nosso]
Ora, parece óbvio que a relação parte/todo, base da Teoria da Forma, tem muito a
acrescentar à crítica de arte, especialmente quando se pensa nas “obras cosmológicas” – como
denominadas anteriormente, aquelas criações que recriam um universo próprio, a partir de sua
estrutura, negando o sujeito e a realidade –, tão comuns na Modernidade. Desse modo,
poemas como Araignée”, de Francis Ponge, Phantasus”, de Arno Holz ou o objeto da
pesquisa em tela, Un coup de dés”, de Mallarmé, cujas naturezas constelares fazem supor a
presença de inúmeras partes abordagem segundo a qual eles geralmente são estudados
devem, na concepção gestáltica de Arte, ser investigados primeiro em sua totalidade. Então, a
análise de suas partes se dará em função dessa unidade orgânica. O mesmo vale para filmes
como “Cidadão Kane”, de Orson Welles, e “O Encouraçado Potemkin”, de Serguei
Eisenstein; peças plásticas como os móbiles de Alexander Calder e as telas de Kandinsky; ou
romances como Finnegans Wake”, de James Joyce. Enfim, obras em que um universo é
recriado, com espaço-tempo próprio, e em cuja tessitura estrutural está seu sentido maior de
ser
47
.
Esta visão aqui defendida privilegia, claramente, o estudo da obra de arte enquanto um
ente independente do sujeito, e por isso diferencia-se dos estudos psicológicos críticos que
enfoquem o autor (abordagens biográficas ou estilísticas) ou o fruidor (Estética da recepção).
Mário Pedrosa (op. cit., passim) chama tal prática de “Psicologia da obra de arte”, que não
anula outros pontos de vista do fenômeno artístico, mas “seria a fundamental, visto que
determinaria o curso que a psicologia do artista e a do expectador deveriam seguir”,
47
Uma abordagem gestáltica da Arte difere da estruturalista no status que ambas conferem ao
conceito de estrutura: enquanto a primeira acredita ser a estrutura a maneira natural de
organização do mundo sensível, a segunda a considera em contradição com o empírico, como
um “disfarce” a ser desvendado para que o real se desvele.
80
justamente por buscar a compreensão do fator mediador entre tais sujeitos, que é o objeto de
arte.
Como se daria, entretanto, tal sistemática, uma vez que é sabido que o fenômeno da
gestalt depende da percepção humana portanto, do sujeito? Ora, o que se pretende fazer na
pesquisa em tela é desvendar, anteriormente à Gestalt, a Gestaltung da obra de arte, o
movimento interno formador de formas que é inerente ao objeto de estudo, e a partir do qual
as totalidades perceptivas serão formadas. Estará se lidando, assim, com a tessitura estrutural
da obra em um nível anterior à apreensão do fruidor.
A partir de tal entendimento, faz-se possível estudar as gestalten e as ungestalten que a
produção em questão será capaz de suscitar ao receptor: aquelas, por serem universais, mais
previsíveis; estas, por envolverem a subjetividade do sujeito, conferem o caráter pessoal da
fruição artística. Exatamente por isso, tais ungestalten são mais comuns na Arte Moderna,
cujas obras apresentam certo estado de incompletude ou abertura que estimula o
“complemento” de sentido no ato de recepção da obra, processo que Mallarmé chamava de
“Acaso”. O psicólogo Oscar ativia (1974, p. 115) estabelece a relação entre a ungestalt e a
percepção poética:
A poesia serve de exemplo pois que nela é criada uma Ungestalt envolvente,
um clima e um ritmo quase musical que renova as palavras e leva o sentido
expressivo de sua mensagem à polaridade de maior entrância da percepção.
Mas, em geral, toda a arte autêntica, inclusive a arquitetura, usa deste
veículo de expressão e cria campos axiológicos, determinando, em maior ou
menor grau, uma tensão estética nesta dimensão polarizada de objetivação e
realidade e de ressonância espiritual entrada na pessoa.
Eis a função da Arte, através da certeza de suas gestalten e da abertura de suas
ungestalten: mediar a concretude do real e a incerteza da fantasia, gerando uma perturbação
perceptual que impede o sujeito de fechar-se em um dos dois pólos, mas que ainda lhe permite
manter certo caráter individual à coisa percebida, confirmando a imprevisibilidade da fruição
artística: a vitória do Acaso.
4.7 O “Um lance de dados” enquanto estrutura gestáltica
Aplicar uma abordagem gestáltica no poema "Um lance de dados" suscita uma
dificuldade imediata: como decodificar as configurações visuais imanentes das páginas, se
não se pode -las ao mesmo tempo? Ora, o fato da obra conter 11 folhas (21 ginas na
"contagem tradicional" das encadernações modernas) inviabiliza ao perceptor a apreensão de
81
sua totalidade, o que o leva a considerar cada uma dessas lâminas um "todo", mas ainda sim
esse deve ser um "todo" provisório, intermediário, microcósmico, subordinado à completude
do poema inteiro.
Desse modo, em "Um lance de dados" um Macrocosmo virtual, não-visualizável,
que contém como seções segregadas (e não meras partes constituintes, como ressaltado
anteriormente) 11 microcosmos que são, por sua vez, um "todo" temporário ao fruidor (que
irá virar a página). Dentro de cada uma das folhas, entretanto, frases formadas de maneira
linear, que se separam de outras através do espaço em branco da página. Cada uma dessas
sentenças torna-se um "todo" no momento em que está sendo lida, tendo cada palavra como
seu subtotal. Finalmente, cada palavra mallarmaica, é uma reunião que contém como suas
partes os diversos aspectos que dela emanam: sua pluralidade de sentido, seu som, a forma do
desenho de cada uma das letras, sua localização na página, sua tipografia, sua origem
etimológica, as outras palavras ecoadas através do seu desmembramento, enfim, cada uma das
palavras de "Um lance de dados" é um "todo". Na presente análise, que será feita através da
transcriação de Haroldo de Campos, haverá ainda o eco do original de Mallarmé como fator
influenciador de cada termo. Assim sendo, pode-se esquematizar a relação parte/todo do
poema da seguinte forma: POEMA - PÁGINA - FRASE - PALAVRA. Será a partir de tal
lógica que o poema será desmembrado, jamais se perdendo de vista que cada mínimo aspecto
de uma palavra qualquer apenas existe em função do todo em que está inserido: é o que exige
a abordagem gestáltica de uma obra de arte.
Alguns trabalhos sobre "Um lance de dados", no afã de explorarem a multipolaridade
da palavra de Mallarmé, deixam de apreender a rica totalidade do poema. É o caso de Robert
Greer Cohn (1951)
48
, autor da mais célebre exegese feita da obra em questão. Nela, ele
efetua um admirável trabalho de investigação sobre cada termo, justificando suas escolhas
interpretativas com referências obtidas em obras anteriores do poeta francês. Isso evidencia
que, nesta criação, há a reunião de todos os símbolos poéticos antes esboçados em sua
trajetória artística. Dentro dessa perspectiva, Cohn chama a cada palavra do poema de
"mônada", e afirma que sua reunião lembra a "formação das estruturas moleculares dentro da
Química Orgânica" (RC, p. 93). Tal abordagem, que contempla as palavras como átomos, é
oposta à que se fará a seguir.
48
Doravante, por motivo de clareza, tal obra será referida apenas por “RC”, seguido do
número da página em caso de citação direta. Nessas, aliás, a tradução terá sempre sido nossa,
por não haver versão publicada em língua portuguesa.
82
Apoiada em Cohn, a semioticista búlgara Julia Kristeva aproxima, em seu trabalho
“Semanálise e produção de sentido” (1975), o uso da palavra em “Um Lance de dados” ao
conceito matemático de diferencial, formando o que ela denomina “infinito ponto”:
Não um ponto que teria como apoio uma infinidade (digamos de “idéias”), a
ele exteriores, e sim um ponto (marca) que é a infinidade (das marcas), que
nem por um instante poderia ser lido como único, mas que deveria, pelo
contrário, soar como múltiplo, plural, infinito [...] Proponho, portanto, que se
dê o nome de diferencial significante a este elemento mínimo, onde se
constrói o texto e que se inscreve no fenotexto a fim de ali transpor a
infinidade de significantes. [grifo original] (p. 257)
A autora, contudo, não ignora o todo do poema, que é o resumo do caminho infinito
que a significação humana percorre, ou ainda o vasto histórico sócio-cognitivo que não se
desgarra de cada palavra. Isto é sugerido ao final de seu ensaio, em que ela tenta adaptar as
frases de Um lance de dados” a uma empobrecedora narrativa que conta a busca da
nominalização do empírico. Embora sua versão reconstrua uma das compreensões possíveis
da obra-prima mallarmaica, a molduragem castradora inerente à linearidade da prosa que
Kristeva usou em sua adaptação – acaba por mutilar a constelação de significância que emana
do poema.
Apresentados esses dois trabalhos que discutem a obra, cabe esquematizar a
metodologia a ser usada na presente análise. Em se respeitando a máxima gestáltica de que o
todo é apriorístico às partes, cada uma das 11 folhas será estudada como um subtotal
subordinado ao poema, cuja primeira compreensão terá sido dada anteriormente. Então, será
constatado que gestalten e ungestalten cada página sugere de imediato ao perceptor. Neste
nível, elas serão consideradas apenas como um signo visual.
Entretanto, a não-pregnância do alfabeto fonético e a arbitrariedade do signo
lingüístico forçam o fruidor a incorporar o sentido das palavras às primeiras gestalten (ou pré-
gestalten, na teoria da Escola de Leipzig) formadas. Por isso, a segunda fase da exegese
tomará as palavras impressas como um signo verbal. Na última etapa, haverá o
desmembramento de todos os já citados elementos que compõe a complexa teia formadora do
léxico mallarmaico. Um dos mais relevantes é a concepção do poema enquanto signo vocal,
pura emanação sonora.
Cumpridas as três etapas de estudo sobre cada gina (microcosmo), a gestaltung que
gera a imanência da obra estará mais clara. Será o momento de se voltar ao todo
(macrocosmo), e compreender a gestalt final do poema, que é a gestalt pós-imagética, fruto da
83
incorporação dos dados obtidos na análise das partes. “Um lance de dados” será visto, então,
como um signo verbivocovisual
49
.
4.8 O todo (ou a pré-Gestalt)
“Um lance de dados” é a recriação feita por Haroldo de Campos a partir de Un coup
de dés”, de Stéphane Mallarmé. Trata-se da fundação do mito moderno, tentativa de
elaboração de uma cosmogonia antropocêntrica, que não ressalta o poder criador de algum
deus, mas que coloca o homem e seu contínuo pulsar pensante no centro do processo de
construção da realidade. Gênesis e Apocalipse fundem-se e repetem-se a cada pensamento
humano.
Tal caráter cíclico da existência
50
é delineado ao longo do poema pela ondulação das
palavras no espaço branco da página, que mimetiza tanto o movimento das ondas do mar
como a flutuação das nuvens no céu. Tais cenários, aliás, emanam uma sensação muito
acentuada de instabilidade (condição inerente a eles), que na página fica clara pela total falta
de linearidade das frases e pela mudança brusca de tipos impressos.
Este ciclo gerador tem como qualidade básica o movimento: as palavras são dispostas
em queda, partindo do canto esquerdo alto da folha em direção à extremidade direita baixa.
Tal obliqüidade adiciona dinâmica e complexidade à visualização do perceptor, educado à
horizontalidade da escrita ocidental.
RC salienta que há, na alternância horizontal (frase linear) x vertical (queda) uma
emanação das polaridades kinésis x stásis. Para ele, a arquitetura sintática do poema é a saída
de Mallarmé para expressar a grande quantidade de paradoxos que permeia sua epistemologia
(masculino x feminino, kinésis x stásis, alto x baixo, etc.) e a própria existência humana. A
perturbação causada pela ausência de uma saída para tais oposições criaria uma vibração ou
flutuação, estampadas pela disposição gráfica das palavras.
A variação do tamanho das letras gera alguns campos gravitacionais em determinadas
páginas, em que termos menores flutuam como que “ao redor” dos maiores. Há, ao todo, sete
49
Termo de James Joyce incorporado pelos poetas concretos brasileiros. Refere-se à condição
multipolar da palavra poética, emanação verbal, vocal e visual.
50
RC sugere mas não desenvolve uma proximidade com a “Doutrina do Eterno Retorno”,
de Nietzsche. Outra associação possível é com o “ciclo eterno de eventos”, teoria dos estóicos
gregos. O aprofundamento de tais relações extrapola, porém, o intuito da presente pesquisa.
84
diferentes tipografias empregadas: muito maior que as outras, a frase-núcleo do poema
51
destaca-se. “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”: “Um lance de dados” na P1
52
,
“jamais” na P2, “jamais abolirá” na P5 e “o acaso” na P9. Se comparadas as localizações de
cada sintagma na página, notar-se-á que eles estão em queda, que é o movimento típico do
lance de dados.
A segunda maior tipografia é exclusiva das P8 e P9: “Se” “fosse” / “o número”
“seria”, e é relevante enquanto ligação semântico-sintática de “O acaso” com outros termos. A
terceira, em caixa-alta, constitui um importante esqueleto estrutural para a obra: “mesmo
quando lançado em circunstâncias eternas / do fundo de um naufrágio” (P2) – “seja” (P3) – “o
mestre” (P4) “existiria / começaria e cessaria / cifrar-se-ia / iluminaria” (P9) “nada / terá
tido lugar / senão o lugar” (P10) – “exceto / talvez / uma constelação” (P11). Para RC (p. 72),
tal padrão
corta o poema de uma extremidade a outra, e descreve uma modificação do
movimento ondulatório da frase título como se segue: meio [da página]
topo [da gina] – meio base [da página] topo – meio, e seu final,
semanticamente senão gramaticalmente, rejunta-se a seu início.
Tais termos delineiam, portanto, uma onda-refluxo da frase título. Claramente
subordinadas a eles, há ainda outras duas tipografias em caixa baixa: uma, nas P3, P4, P5, P10
e P11, em caracteres romanos. Outra, entre as P6 e P9, em caracteres itálicos. RC afirma que
tal mudança justifica uma divisão tripartite na obra, que constaria de três ciclos: o da
Natureza, o da Arte e o Final, que marcaria a convergência dos dois anteriores. Se tal rigidez
de classificação não parece relevante para essa análise, fica ressaltado o contraste que
diferencia, de algum modo (ao qual se voltará em outro momento), as quatro páginas com
letras itálicas.
Os outros dois tipos gráficos existentes são um fenômeno isolado de uma página: na
P6, a primeira e última figuras são “como se” em caixa alta (mas de dimensão menor que o
terceiro nível explicitado) e itálico, que parece adquirir função similar a um parênteses, a
isolar o que está no meio; já na P9, há o menor dos padrões de impressão do poema,
ramificações quase ilegíveis, como que mimetizando um sussurro.
51
Não diferença no uso de tipografias do poema de Mallarmé para o seu correlato de
Haroldo de Campos.
52
Doravante, todas as referências às ginas (consideradas como sendo toda a folha, e não
metade dela) seguirão esse modelo: P mais o seu número, por motivos de clareza.
85
Apesar das palavras estarem escritas nessas tipografias de modo “embaralhado” ao
longo de “Um lance de dados”, a tendência de agrupá-las através do princípio gestáltico da
semelhança, aquele de maior pregnância ao perceptor. Assim, a apreensão de tipos iguais
causará, primeiramente, continuidade visual entre essas figuras-palavras, seguida de uma
concatenação sintática.
Na impossibilidade de tal “rima visual”, a organização perceptiva dá-se pelo princípio
da proximidade: é que o espaço em branco atua como um grande pano de fundo sintático,
mimetizando as operações mentais em busca da estruturação do discurso
53
: Mallarmé
espacializa a sintaxe, e faz do silêncio (branco da gina) um agente selecionador de relações
entre idéias (palavras). Ao fruidor, caberá articular os sintagmas mais próximos para gerar
sentido.
Por causa disso, o branco da página passa a ser figura em alguns momentos,
dominando a gestalt do leitor. Depois, volta a ser fundo durante a leitura. “Um lance de
dados” configura-se, assim, em uma grande figura reversível, em que figura (palavras /
estrelas / idéias / espumas) e fundo (branco / céu / silêncio / mar) alternam-se de maneira
instável para o perceptor.
Esse mini-ciclo (figura-fundo) reforça o grande ciclo (vida-morte) que é o próprio
poema: o Mestre, primeiro ser na Terra, morre, mas deixa como legado seu filho, que sob
certa perspectiva sempre esteve contido nele. Para RC, o caráter rotatório é expresso em toda
a obra pela presença latente do futuro no que se apresenta no momento da fruição: “o atual
implica o potencial” (p. 34), em uma continuidade espiral, cíclica e infinita.
Assim, a vida carrega a latência da morte; o céu, o germe do mar; o masculino, a
semente do feminino, e vice-versa. O poema, então, termina na menor das estâncias dos
ciclos: o pulsar pensante, instantes efêmeros, contínuos, compassados de atividade mental que
se confundem com a linguagem e o próprio Ser: é a fundação ontológica via pensamento,
realidade via signo. Ou o acaso via um lance de dados.
4.9 Página Um
A primeira gina do poema configura um contraste imediato ao perceptor: contra o
fundo branco de toda a página surge, isolada, uma figura que domina sua gestalt, em letras
53
Não por acaso, Kristeva aproxima “Um lance de dados” à Gramática Gerativa, de Noam
Chomsky.
86
garrafais: “Um lance de dados”. As idéias de rompimento, força e nascimento são sugeridas,
quer pelo impacto gerado a partir da “quebra” da dominância do branco, quer pela energia
visual imantada pela permanência da figura no alto. Para Arnheim (2000), a figura que vence
a gravidade expressa o desejo do artista de se libertar da imitação da realidade.
A total horizontalidade da frase e a homogeneidade do tipo gráfico das letras sugerem
ainda estabilidade ótica: o rompimento do branco é permanente e firme. RC associa isso à
fundação da dimensão temporal. (o plano espacial será estabelecido a partir da verticalidade).
“Um”, a primeira palavra do poema, reforça tal caráter estável. Ela contém, porém, a
latência do seu contrário, pois é formada por duas letras. No original, “dés” (dados) ecoa
“deux” (dois), o que torna mais evidente o jogo unidade x dualidade.
“Lance” intensifica a natureza una da P1 pelo fato de estar no singular; mas, por ser
substantivo e verbo (lançar) resume certa ambigüidade. ainda a antecipação do caráter do
jogo expresso por “dados”, se considerada a quarta definição do dicionário Houaiss (p. 903):
“acontecimento inesperado e/ou incerto; vicissitude, sorte, eventualidade”: o próprio acaso
contido no lance.
O substantivo “lança” é ecoado, adicionando à transcriação haroldiana um tom de
violência e uma possível alusão à criação: De acordo com o dicionário de símbolos Chevalier
e Gheerbrant, na Mitologia Xintoísta, a primeira ilha e o primeiro raio solar (agente emanador
de vida) surgem do contato de uma lança com o mar. A lança é, ainda, um símbolo fálico que
faz da P1 a essência masculina. Associada à idéia da preposição “de” (cuja função é unir,
ligar), ela sugere uma nuança erótica, a ser complementada pelo princípio feminino desvelado
na P2.
“Dados” (latim “datum”, o que é dado) contém em si uma ambigüidade latente: sugere
“informação”, “certeza” (definição 2 do Houaiss: “que se conhece, que se sabe por
antecipação”, p. 903) sentido que irá contrapor-se ao acaso ao longo do poema. Entretanto,
ao mesmo tempo, a idéia de jogo é evocada, inclusive etimologicamente, pois o nome usado
para designar tais cubos numerados de marfim deriva do persa “dada”, jogo de azar. Ora, por
ser o jogo a própria corporificação da dúvida, vê-se em tal termo uma tensão dialética
riquíssima: o lance é de dados, de certezas e incertezas, de falsas seguranças e dúvidas
relativas; de gestalten e ungestalten.
Kristeva levanta outra relevante hipótese: o “dado”, oferenda, é o próprio sacrifício
pessoal do sujeito em nome da missão poética de abarcar o todo da significância. Ora, como
aqui se sustenta que “Um lance de dados” é a grande epopéia da Modernidade, a P1 pode ser
87
encarada como uma “Invocação”, um desejo de obter inspiração, e a disposição de submeter-
se ao aniquilamento do próprio sujeito – marca da modernidade, como visto – para tal.
Assim, enquanto um signo verbivocovisual, a P1 é a criação primeira da cosmogonia
mallarmaico-haroldiana. É a fundação do princípio uno, masculino, reforçado pelos símbolo
fálico da lança. O som crescente da frase (/ã/ - /á/) que na termina na sonoridade espelhada,
difusiva de “dados” insinua reverberação, energia (kinésis) advinda do próprio lance original,
e que será sempre responsável por toda a Natureza porvir. Tal energia distribui-se em quatro
palavras: “Quatro é ainda o número que caracteriza o universo em sua totalidade[grifo
original], segundo o dicionário de símbolos Chevalier e Gheerbrant (p. 760); concentração
máxima de energia, instante primeiro e único em que o todo se comprimiu em uno. A P1 é o
grande momento da criação do universo.
4.10 Página Dois
A pré-gestalt da P2 indica um grande espaço em branco à esquerda, continuação do
“Nada” dominante na P1, o que aumenta o isolamento de “Um lance de dados”. À direita,
entretanto, o espaço vazio vai sendo tomado por mais figuras. Na primeira visualização,
percebem-se duas gestalten formadas, emanações que surgem a partir do irrompimento
anterior. “Jamais”, impresso na mesma tipografia que o sintagma primeiro do poema,
continua-o, levado em conta o princípio de semelhança; a outra figura, adquirindo
pregnância, desdobra-se em duas sentenças distintas. Pela lei da proximidade, percebe-se que
“mesmo quando lançado em circunstâncias eternas” constitui-se uma sentença independente,
bem como “do fundo de um naufrágio”.
O não-alinhamento de tais frases na página sugere que elas sejam como que expelições
do lance original. A idéia de concentração de energia dá-se pelo tamanho da tipografia da
frase núcleo e pelas pouquíssimas palavras na P2; porém, como as figuras estão todas na parte
de baixo, a submissão à gravidade, ao contrário da P1. Esta verticalização faz gerar, para
RC, o espaço no Universo.
“Jamais” continua “Um lance de dados”, e a ele um sentido imediato de tempo,
ambíguo por natureza. O conflito instante x eternidade inscreve-se na duplicidade de sentido
da própria palavra: “em tempo algum”, rejeição do eterno, e “em algum tempo” (Houaiss,
definição 3, p. 1670), insinuação do esvaecimento do momentâneo. O fato de o plano
temporal ser fundado, no poema, a partir de uma negação, desvela o conflito que permeia toda
88
a obra mallarmaica: a impossibilidade tanto de apreender o instante como de atingir a
eternidade torna utópico o embate contra o acaso; o poeta vê-se destituído de poder perante
sua obra. Na seqüência, “mesmo quando lançado em circunstâncias / eternas” confirma a
consolidação do tempo, por seu aspecto horizontal que estabelece a linearidade inerente à
natureza cronológica.
o espaço surgirá, de maneira definitiva, na segunda sentença: “do fundo de um
naufrágio”. O mar é então colocado como cenário primeiro da existência, em uma fundação
topológica de caráter pessimista, já que o naufrágio é um insucesso. A isso, soma-se a posição
da frase na página, reforçando a queda de cuja verticalidade (kinésis) o espaço será gerado.
A beleza desta frase poética constata-se no som repetido /um/, representando a sucessão das
vagas, seguido de um som aberto /á/, expressão do momento em que as ondas deságuam na
areia. É deste modo que Haroldo de Campos compensa, em seu correlato, a importante perda
de sentido no eco “onde” (onda) em “fond” (fundo) no original mallarmaico.
A P2, em sua pós-gestalt, apresenta-se portanto como a dualidade surgida do uno da
P1. O uso de duas fontes tipográficas distintas e do plural em diversas palavras confirma tal
passo rumo à multiplicidade. Como dito, a mais relevante expressão dual é a separação
tempo-espaço que funda a realidade. Outra dicotomia latente é a oposição masculino-
feminino: enquanto a horizontalidade fálica e a força visual da P1 sugerem o princípio
masculino, o uso da voz passiva e o eco “círculo” de “circunstâncias” indicam ser a P2 o
arquétipo feminino.
A instabilidade do mar e o movimento de sobe e desce das ondas são percebidos pelos
sons contrastantes (/an/ e /á/) ao longo da P2; outra associação plausível é a aliteração em /d/ e
/t/, que denota o ricochete contínuo dos dados em queda após o lance da página anterior.
Mais aspectos da P1 podem ser inferidos a partir da análise da P2 (corroborando a
idéia da relevância macrocósmica na compreensão do microcosmo, defendida em tal
abordagem gestáltica do poema): se esta, como constatado, representa o mar, aquela mostra-se
como a figuração do céu, cenário primeiro do lance de dados original, o que explica sua
posição no alto da página. O extenso espaço em branco da P1, assim, pode ser entendido tanto
como o Nada pré-criação quanto como o céu. Na virada para a P2, o branco metamorfoseia-se
em mar.
Opostas porém complementares, P1 e P2 encerram em si o primeiro ato da fundação
do mito mallarmaico-haroldiano: estabelecidas as dialéticas fundamentais (céu-mar, tempo-
espaço, masculino-feminino), toda a natureza será mero fruto da interposição de tais
elementos – a começar da P3.
89
4.11 Página Três
A primeira figura formada a partir da visualização da P3 é uma onda que se espalha
mais pela página que anteriormente e começa a se uniformizar. Totalmente concentradas nos
cantos alto esquerdo e baixo direito da folha, as palavras apresentam-se em queda,
desenhando uma obliqüidade que sugere movimento. Tal dinamismo, novamente fruto da
kinésis, sofre certas resistências, expressas pela horizontalidade prolongada (stásis) em
algumas linhas.
Os grandes espaços em branco nos cantos superior direito e inferior esquerdo operam
como fundo, ressaltando a idéia de precipitação diagonal. A primeira figura, à esquerda por
onde invariavelmente o leitor começará mostra um espaçamento maior entre os termos,
aumentando a energia cinética imanente no conjunto. a segunda, à direita, sugere um bloco
mais compacto, de orações horizontalizadas e peso visual maior (para Arnheim (op. cit., p.
25), “qualquer objeto pictórico parece mais pesado no lado direito do quadro.”).
Tem-se a impressão que, uma vez tendo espaço e tempo sido fundados na P2, a
Natureza tende à homogeneização: os eventos subseqüentes são menos relevantes ou
perturbadores da ordem. Em virtude disso, o grau do choque visual na P3 é bem mais ameno
que nas páginas anteriores. apenas uma disparidade de tipografias: “seja”, a primeira
palavra, mantém a fonte com que a P2 terminara: clara remissão à energia acumulada da
fundação cronotópica. A partir dela, pode-se concluir pelo princípio da semelhança que
todo o restante da P3 (no mesmo padrão de impressão) é uma enorme ramificação de “seja”
e, portanto, da P2.
Pelo princípio da proximidade, vê-se na primeira figura esquerda) o desgarre de
“Abismo”, que se apresenta fora da “linhade queda dos sintagmas. Então, ganha destaque
como o termo-chave de tal bloco, bem como delineia, entre ele, “que” e “branco” uma
concavidade que – pelo princípio do fechamento – pode ser imaginado como o próprio
desenho de um abismo. o segundo bloco direita), visualmente mais uniforme, insinua
apenas um ziguezague pela interposição de frases curtas e longas, o que poderá ser mais bem
compreendido na pós-Gestalt.
O uso da mesma tipografia em “mesmo quando lançado em circunstâncias eternas do
fundo de um naufrágio”, na P2, em “seja”, na P3, e em “o mestre”, na P4, sugere para RC a
formação de uma frase significativa: “naufrágio seja o mestre”, remissão ao fracasso já
inerente à primeira das iniciativas humanas. Para esta pesquisa, o princípio gestáltico de
semelhança corrobora com tal interpretação; outra possibilidade é considerar “seja” e
90
“mestre” as últimas reminiscências do lance original, como que partículas expelidas a partir
da P1 no branco/Nada das páginas seguintes. A posição na folha de “mestre”, mais à direita
que “seja”, insinua uma expectoração mais violenta daquele sintagma em relação a este o
que explica que esteja na P4. Cada um deles, então na sua respectiva página gerará suas
próprias ramificações.
Para Julia Kristeva, “seja” adquire, em uma suposta sintaxe mallarmaica, o papel de
parênteses, como que isolando a P3 e conferindo ao “mestre” o legado da continuação do
“naufrágio”. Para a semioticista, então, o abismo-asa (imagens que se fundirão) é uma
metáfora do processo cognitivo inconsciente de significação, o momento imediatamente
anterior à nominalização limitante dos objetos, de que se falou neste trabalho. Embora
perfeitamente plausível, este viés de compreensão da P3 não se alinha com as máximas
gestálticas, já que, em se considerando “seja” um “isolante” da P3, “mestre” também teria que
operar a mesma função na P4, por estarem eles no mesmo padrão de impressão. Seria perdido,
então, o elo de continuidade entre as páginas.
Na P3, como acima antecipado, outro princípio de organização da forma, o da
proximidade, concatena dois blocos subordinados a “seja”, ambos em tipo gráfico menor. O
primeiro conta com a partícula “que”, conector mais visual que sintático, formando a ilusão
ótica de queda e ajudando a delinear na topologia dos vocábulos a concavidade do Abismo.
Este, curiosamente, é gerado não apenas a partir do caráter ontofânico (gerador de
existência) da palavra mallarmaica, como outros referentes em “Um lance de dados”, mas
concomitantemente irrompe a página enquanto palavra e ícone. Este imenso gerador da
natureza é adjetivado por um tríptico (“branco / estanco / iroso”) em forte movimento
descendente na página, que retrata a potente energia pulsante emanada pelo Abismo.
Já “sob uma inclinação” é uma frase que restitui a horizontalidade após a aguda
verticalização anterior. A preposição “sob” é ambígua: pode significar “abaixo de”, submissão
do Abismo à asa (cuja imagem foi antecipada no original aile”; na transcriação, surgirá
em seguida); ou “em presença de”, que marca o momento que antecede à fusão de fato. Se
“uma” denota unidade, a dialética “inação ação” dentro de “inclinação” contém dualidade,
força essa que atinge seu limite, prestes a explodir na conquista do múltiplo. Além disso,
antecipa a hesitação do Mestre da P4 entre agir (lançar os dados) ou não.
Apenas a partir da aparição da preposição “de”, com sua função morfológica de unir,
que se configura a fusão Abismo-asa. A verticalidade entre os dois “de” mostra, no corpo do
texto, que o vôo não foi bem sucedido (pode-se entender tal queda como o deslocamento
gráfico do mesmo “de”); a ASA aparece repetida em A SuA. Haroldo de Campos (1974, p.
91
123) chama tal recurso de “curva retilínea, em quiasmo”
54
. Por ser “asa” um palíndromo, essa
frase poética torna-se um espiral comprimido em duas dimensões, sempre a retornar ao
começo (primeiro “de”).
O segundo “de” opera como um conector visual entre a figura do “Abismo-asa” (já
totalmente unidos, como atesta a posse indiciada por “a sua”) e o segundo bloco da P3, no
canto direito baixo da página. Agora, a asa metamorfoseia-se em vela, e o abismo gerador
torna-se o barco portador da existência. A preposição se liga a “antemão” na locução
adverbial “de antemão”, “previamente”, conferindo aprioristicamente a fatalidade do destino
prenunciado no náufrago da P2. No começo desse agrupamento, a passagem ao mundo
das coisas físicas se concretiza com diversos elementos: o eco “mão” em “antemão”, outra
metonímia do Mestre agora mais corporificado que em “mente”. Também a terra solidifica-
se, delimita-se, com a insinuação de “retombo” em “retombada”: segundo o dicionário
Houaiss (p. 2446), é a “reconstituição dos limites de uma propriedade”. Além disso, “alçar”,
além de “erguer”, pode significar “edificar” (segunda definição, Houaiss, p. 142), o que
simboliza o trabalho da Natureza na construção de sua parte terrestre, futura sede da
humanidade.
O dístico “cobrindo os escarcéus” / cortando cerce os saltos” recoloca o mar como
cenário deste navio. O céu, entretanto, permanece espelhado” nos ecos “céus” e “altos”. A
contundência semântica dos versos supõe um oceano revolto, o que explica a queda em
cascata dos versos para a direita, até a normalização em “no mais íntimo resuma”, onde a
disposição das palavras na página sugere calmaria até o fim da P3.
Desse modo, em um mar menos agitado, a embarcação portadora da multiplicidade,
consolidada nos plurais “escarcéus” e “saltos”, continua seu caminho rumo ao fundo do mar,
ao naufrágio prenunciado. Para RC, o verbo résume(resuma) é o ponto nodal da gina,
por simbolizar a inversão topo/base da onda onde começa o afundamento e o eterno
recomeço: seu étimo é o latim résumo”, recomeçar. O fracasso da empreitada da
multiplicidade é acompanhado pelo germe de uma nova tentativa, o que relativiza sua falta de
êxito.
Os próximos versos mostram-se altamente imagéticos: A “envergadura” (HOUAISS,
p. 1172, definição 3: “a parte mais larga das velas de um navio”; definição 4: “distância
máxima entre as extremidades das asas, quando abertas, esp. das aves e dos morcegos”), que
remete à parte de cima do navio, vê-se “enquanto casco”, ou seja, invertida, rumo ao fundo do
54
O mesmo fenômeno acontece no original, mas anagramatizado: “AILE ... LA sIEnne”.
92
mar. Haroldo de Campos ressalta a ligação sonora entre “hiante” e “antemão”, primeira
palavra do segundo bloco da P3. Visualmente, a repetição de “ante” pode delinear, no corpo
da página, a queda do mesmo elemento, mas agora metamorfoseado de asa para vela. Nesta
interpretação, “sua” refere-se à vela.
RC, entretanto, liga os verbos plane (plane) e résume (resuma) ligados pela
preposição “e” de “e cobrindo os escarcéus” –, bem como o adjetivo béante(hiante), ao
Abismo. Este, caído, agora no fundo do mar, aguarda a chegada do navio a afundar. A
ambigüidade de “hiante” (“aberto” e “faminto”) e o valor temporal de “enquanto”
(estabelecendo uma simultaneidade imagética próxima da montagem cinematográfica) fazem
crer que tal compreensão do trecho é a mais verossímil.
A última imagem do encontro da embarcação com o Abismo invertido (ou do encontro
com seu próprio passado, já que ela mesma fora, antes, o Abismo) mostra a hesitação daquela,
lutando contra seu destino de reencontrar a unidade e a dualidade: “um ou de outro”. A partir
desse momento, unidade, dualidade e multiplicidade passam a coexistir.
A última frase delineia o caráter vacilante da nau, que, “pensa”, oscila nas ondas do
mar. A presença de duas preposições “de” insinua um movimento de vai-e-vem. O adjetivo
“pensa” sugere, ainda, o verbo “pensar”, outra remissão ao Mestre vindouro, cuja hesitação
terá sido herdada do navio condutor de sua própria existência.
Sendo esta a Gestaltung essencial da P3, sua pós-gestalt pode agora ser contemplada:
trata-se da queda de um elemento primeiramente apresentado verbal e visualmente como
um Abismo, que despenca do céu em um movimento brusco. O primeiro bloco da P3, aliás,
pode ser encarado como um relâmpago, gerador de energia e condutor do céu ao mar (ou à
terra, em formação, como visto). O som áspero de “branco / estanco / iroso” associado ao
ruído truncado da coliteração em /p/ e /b/ de “plane desesperadamente” fundamentam essa
possível configuração verbivocovisual.
no segundo bloco, o Abismo metamorfoseia-se em uma embarcação cujo
ziguezague pelo mar é delineado, e mostra-se mais estável visualmente. Para RC, o desenho
do casco de um navio é insinuado entre “até adaptar” e “de uma nau”.
A repetição de sons oclusivos e sibilantes de /c/ em “e cobrindo os escarcéus /
cortando cerce os saltos” mimetiza o choque da nau contra as ondas e o “corte” da água pelo
casco. Já na última parte do segundo bloco, a alternância das letras /p/, /d/ e /b/ com vogais
fechadas em “pensa de um ou outro bordo” sugere o movimento pendular do barco, hesitante,
rumo ao Abismo.
93
Em suma, a P3 é a página da concretização da multiplicidade do mundo físico, com o
fracasso do Abismo-barco sendo relativizado por seu legado: o germe da existência, da
própria vida, gerará na P4 o Mestre, vacilante ancestral da humanidade.
4.12 Página Quatro
A pré-Gestalt da P4 exibe pela primeira vez no poema uma uniformidade de figuras
pela página, com todos os quadrantes sendo tomados. Se na P3 o mundo físico concretizou-se,
agora ele inicia um período de expansão espacial. Os sintagmas são muito curtos (às vezes,
palavras permanecem sozinhas), em contraste com a linearidade mais aguda da P5. Isso
sugere certa instabilidade da Natureza ainda em formação, interagindo com o início da raça
humana.
O caráter breve das “sentenças” permite inúmeras concatenações lógico-sintáticas por
parte do fruidor, que pode juntar termos à esquerda com outros alinhados à sua direita, ou
ainda com aqueles posicionados diretamente abaixo deles. É, até aqui, a página que oferece
maior escopo de abertura interpretativa. Há um grande jogo de energias visuais
complementares e/ou concorrentes, repelindo ou atraindo umas às outras, e permitindo
infinitas seqüências frasais.
Há duas tipografias na P4: “O mestre” segue o padrão de “Naufrágio” e “seja”, das P2
e P3 respectivamente, podendo esta ser considerada uma sentença: pelo princípio de
semelhança, “naufrágio seja o mestre”, como já dito. Todas as outras palavras estão impressas
em tipo menor, constituindo-se (ainda pela lei gestáltica da semelhança) em uma única
ramificação de “o mestre”. De fato, será visto que tudo, nas P4 e P5, se refere ao antecessor
da raça humana.
Entretanto, uma visualização um pouco mais atenta mostrará uma divisão ao centro da
página, sendo possível aglutinar os sintagmas em dois grandes blocos, um entre “fora de
antigos cálculos” e “passar altivo” (parte de cima da página) e outro entre “hesita” e “onde
vã” (parte de baixo). Para RC, o mestre, ao tornar-se “altivo”, possui mais habilidade para
navegar sua embarcação, bem como se torna mais refinado intelectualmente. Em virtude
disso, segundo o crítico americano, no primeiro grupo de frases vê-se um espaçamento maior,
delineamento gráfico tanto das manobras mais bruscas do barco, como do primitivismo
cognitivo do antecessor. Já no segundo conglomerado, a maior proximidade entre as
sentenças faz supor mais habilidade.
94
O fato é que, desgarradas umas das outras, as palavras da P4 como que se procuram
para se unirem em frases; todas podem, de algum modo, continuar “o mestre”, ou ainda se
conectarem à palavra imediatamente anterior a elas. Tal ambigüidade faz com que a
compreensão da Gestaltung aqui analisada seja complexa e, a priori, incompleta.
Pelo princípio da proximidade, os primeiros sintagmas a se unirem ao mestre seriam
“exsurto” e “inferindo”. Como já antecipado no capítulo anterior, o primeiro é um neologismo
criado por Haroldo de Campos para verter surgi”, termo marítimo para emergir”. Além da
acepção óbvia (o mestre surgindo das águas férteis do mar), pode-se desdobrar “ex-” e
“surto”, mostrando a evolução do pensamento: “ex-surto”, agora “inferindo”, passagem da
remota quase-loucura primitiva à racionalidade consciente. De qualquer modo, os dois (surto
e inferência) coexistirão eternamente no legado da raça humana.
Se seguida a ordem natural da leitura ocidental, porém, os primeiros sintagmas a
serem apreendidos depois de “o mestre” seriam “fora de antigos cálculos”, “onde a manobra
com a idade olvidada”. RC defende que as ciências físicas (P3) são aqui retomadas, e delas o
primeiro ser é pura conseqüência: clara sugestão darwinista em sua interpretação, também
cabível na presente proposta. Já os “antigos cálculos” podem ser encarados como as instâncias
mentais pré-consciência, que atavicamente permanecem no mestre. Diferentes das
“inferências” (“cálculos”, razão) de agora, eram “anti-cálculos”, que antigos” contém a
partícula “anti”, de negação. Portanto, eram da ordem do “surto”, avesso da racionalidade.
Na fase atual, a “manobra” é “olvidada”. Etimologicamente, “manobra” sugere
trabalho braçal (latim manus, “mão”, e opus, trabalho), confirmando a evolução rumo à
intelectualidade do mestre, cujo vigor físico é substituído pela astúcia em lidar com a
embarcação (técnica típica do homem moderno, especialista por natureza) e pelo refinamento
cognitivo. Deste modo, o mundo é agora feito (pensado) pelo homem, e não mais lhe é
“dado” (“MANOBRA olviDADA”). Os ecos “vida” e “dado”, desprendidos de “olvidada”,
reforçam o poder gerador de vida que o pensamento (lance de dados) adquire. Agora
responsável por seu próprio destino, o mestre sente-se abandonado, e hesita.
Após uma forte impressão de ziguezague em seu princípio, o primeiro agrupamento da
página inicia uma maior verticalização, delineando a queda/naufrágio do mestre, bem como
adicionando mais tensão ao desfecho de sua dúvida. Ápice da “cena”, a parte centralizada da
página (de “que se” até “passar altivo”) é o limite em que aquele que contém os dados deve
decidir lançá-los ou não.
O conectivo “que”, visual e sintaticamente, pode referir a “mestre” (opção mais aceita
pelos exegetas). Neste caso, o antecessor dos humanos contém os dados em sua mão (“um
95
destino”) e o acaso diante de si (“os ventos”). Pode-se considerar, entretanto, “que”
substituindo “conflagração” ou “horizonte”; neste caso, o que “se prepara se agita e mescla” é
a Natureza em conturbada formação, pronta para ser habitada. A violência inerente a esse
processo é corroborada pelo valor semântico de “punho” (usado para agredir) e “estreitava”
(verbo estreitar, “apartar contra si”, HOUAISS, def. 6, p. 1262).
Tal proficuidade do universo material (metaforizada em “número”), contudo, depende
do “punho”, ou do que está “dentro” dele. Apenas com o impulso humano (lançar dos dados;
criação poética; pulsar pensante) é que o desenvolvimento ocorrerá. Segundo Haroldo de
Campos (1974, p. 127),
“que” (qui) substitui “punho”; “o” (le) está em lugar de “Número”
(Nombre): o total dos dados que se agitam e mesclam na mão do Mestre. [...]
O punho que estreita os dados, erguendo-se do mar, ameaça (menace) os
ventos do destino, em metafórico desafio.
O “Número” como a soma dos dados na mão do mestre, ou o resultado do lance
(humanidade/obra poética). Em ambas as possibilidades, ele é múltiplo, não podendo ser
“um”. Quanto ao mestre, tal divisão significa a desunião corpo/matéria e espírito.
Considera-se, assim, a frase como sendo “o único Número que não pode ser um”, com
“um” significando “uno”. Entretanto, a leitura “o único Número que não pode ser um outro
[Número]” também é possível. Nesse caso, ressalta-se a unicidade do mundo percebido pelo
humano, irreprodutível, seja em alguma obra de arte (que é sempre um signo) ou por outro ser
humano (cuja percepção terá sido diferente); outra possibilidade é “o único Número que não
pode ser um outro ... Espírito”. Aqui, a separação matéria/espírito é relativizada, já que ambos
são espectros da mesma realidade, indissociáveis um do outro. Curiosamente, “número”
contém “nume”, “espírito sobrenatural” (def. 3) ou “inspiração poética” (def. 4) segundo o
HOUAISS (p. 2035), o que prova que, de certa forma, matéria e espírito existem em eterna
comunhão.
O primeiro grande agrupamento da página termina em forte cascata, com o momento
de re-união entre o físico e o etéreo, “repregados” novamente em apenas um ser,
corporificado no “Espírito”, ponto-chave da P4 para RC. É a tentativa do mestre em religar-se
ao “Alto” apesar de sua queda: o nascimento da religião. O crítico ainda aponta o termo como
frutificação do Número. Ou seja, eles não são opostos, mas as fases de uma linha evolutiva.
Significam que o mestre alcançou um estágio mental, refinou-se.
o segundo bloco da P4 apresenta o desfecho da dúvida: em vez de lançar os dados,
ou definitivamente segurá-los, o mestre “hesita”. Para RC, esse é o modo como ele consegue
96
perpetuar a espécie: permanecendo na dúvida
55
. Na versão em português, o eco “exita”, do
verbo exitar, confirma sua boa saída para o dilema.
Com seu físico reduzido a um “cadáver”, sacrifica-se para que sua prole (a
humanidade) possa permanecer na Terra (“apartado” ecoa “parto”). O braço, agente do
“quase-lance”, passa a deter o controle dos dados (realidade/obra-de-arte).
Outra cascata de palavras, altamente verticalizadas na página, ocorre entre “antes” e
“submissa”, delineando graficamente uma onda, iconizada no desenho dos sintagmas e
anunciada pelo numeral “uma”. Quando a hesitação é novamente apresentada (“jogar... a
partida”, ou lançar os dados, frente às ondas acaso), esta vaga específica lhe “invade a
cabeça”. É a perpetuação da dúvida, a consumação do naufrágio, e de certa forma o êxito do
mestre: o último verso, “onde vã”, retoma a imersão (“onde” ecoa “onda”, aquela responsável
pelo afundamento) e a qualifica como insuficiente para determinar o fim da raça humana. O
destino do mestre, portanto, se consuma, mas o acaso é de certa forma “burlado” através da
dúvida: o homem vence a morte continuando em seus filhos.
A P4, deste modo, configura-se como o nascimento e morte do primeiro dos humanos,
cujo “vai-e-vem” do destino é mimetizado pela onda que se espalha por toda a página. É
possível, em uma pós-gestalt, reconhecer a queda gradual dos sintagmas como uma simulação
ao naufrágio do mestre.
No primeiro agrupamento, que reúne seu passado desconhecido (instâncias pré-
conscientes) e sua fase física, as emanações sonoras confirmam as impressões verbais e
visuais. Os sons tônicos e fechados ajudam a conferir caráter sombrio às origens do
antecessor: “fora de ANtigos cálcULos ONde a mANobra cOM a idade OLvidada”. sua
força corpórea (concentração de kinésis; energia sexual; violência do barco) é ressaltada pela
brutalidade dos sons oclusivos em “Que se PrePara, se agiTa e se mesCLa”.
no segundo agrupamento, em que sua etapa intelectual e seu naufrágio são
contados, o efeito acústico de “escoamento” dado por consoantes fricativas ajuda a criar, no
fruidor, a imagem do afundamento e do declínio: “invade a cabeÇa eScoa barba SubmiSSa
naufrágio eSSe [...]”.
Portanto, como um signo verbivocovisual, a P4 é o registro do mestre, antecessor
humano cuja dúvida entre lançar os dados ou não permitiu-lhe “burlar” os desígnios do acaso,
55
Octávio Paz (2003, p. 113) concorda com RC quanto à relatividade da escolha do mestre:
“Toda a tentativa poética se reduz a fechar o punho para não deixar escapar esses dados que
são o signo ambíguo da palavra talvez. Ou abri-lo, para mostrar que também eles se
desvaneceram. Os dois gestos têm o mesmo sentido” [grifo original].
97
e garantir certo modo de sobrevivência. Pai e mãe de toda a humanidade, é o agente do
“criador” do Mundo Moderno: o pensamento.
4.13 Página Cinco
A primeira visualização da P5 imprime ao perceptor um grande choque: do lado
esquerdo da folha, apresenta-se um alto número de figuras, que relegam o branco da página a
um mero fundo. Após uma observação mais atenta, nota-se que há a divisão tripartite de tais
figuras: acima, entre “ancestralmente” e “imemorial”, onde há uma queda relevante; ao meio,
entre “tendo” e “ociosa”, talvez a passagem mais horizontal de todo o poema; e abaixo, entre
“Núpcias” e “insânia”, há a retomada de certa verticalização que conduzirá à explosão
energética de “jamais abolirá”. Este último, na metade à direita do fruidor, permanece isolado,
contrastando com o branco dominante. Neste caso, há reversibilidade: a parte alva chega a ser
figura àquele que a vê, até voltar à condição de fundo da “frase” isolada.
duas possibilidades de decodificação visual a partir de tais dados: pode-se
considerar que a parte esquerda da P5 continua a P4, e “jamais abolirá” representa uma marca
de passagem no poema; ou os sintagmas menores consolidam-se como subordinados
(sintática e semanticamente) à impressão maior. Não “leitura certa”, e esta ambigüidade
norteará a análise da página.
No primeiro agrupamento (entre “ancestralmente” e “imemorial”), a queda de
sintagmas em cascata simboliza a passagem do legado do mestre a seu filho, cuja
indeterminação “alguém ambíguo” faz supor que seja toda a humanidade. Apesar do
naufrágio, o ancestral continha em si a latência do novo, que assumirá seu posto a partir da
P5. Tal idéia é reforçada por Chevalier e Gheerbrant:
Aos olhos de certos psicanalistas, de uma forma paradoxal mas bastante
justa, o antigo sugere a infância, a primeira idade da humanidade, bem como
a primeira idade da pessoa. (p. 64)
O ato de abrir a mão reforça a idéia de transferência de poder. Ao filho, o pai restará
enquanto instância inconsciente. Passa a fazer parte do inacessível, intangível, o mistério do
mundo moderno: a mente humana. Tal permanência do progenitor é sugerida por “ulterior
demônio imemorial”: a complexa estrutura psicológica à qual não temos acesso, que Kristeva
chama de “significância infinita”.
98
A possibilidade de se subordinar visualmente esta frase a “jamais abolirá”, formando a
concatenação sintática “ulterior demônio imemorial ... jamais abolirá ... o acaso” indica que
nem mesmo o suposto controle deste inconsciente faria a raça humana sobrepor o caráter
eventual dos acontecimentos. (ou que nem a mais destra condução do barco teria evitado o
perigo do naufrágio, ou ainda que mesmo o mais habilidoso dos poetas é banalizado no
momento da recepção de suas obras).
a segunda subdivisão (de “tendo” a “ociosa”) marca a consolidação do filho do
mestre. O herdeiro é retomado por “sombra pueril” alusão à infância e “uma chance
ociosa” – metáfora, para RC, do novo (e inútil) lance de dados que o novo ser representa.
Como citado no capítulo anterior, o uso de “versus” na tradução de Haroldo de
Campos mantém a ambigüidade de versno poema original: na primeira compreensão, o
mestre, agora mera memória do filho (“de regiões nenhumas”), vai em direção à “esta
conjunção suprema com a probabilidade”; na segunda interpretação, esta frase torna-se aposto
de “versus”, ecoa “verso”: o verso, esta conjunção suprema com a probabilidade (fruto do
acaso). A conseqüência do viés duplo na frase é a manutenção da dualidade de sentido que
ganha a criação do mestre: sua obra de arte ou seu filho?
Qualquer um dos dois (ou ambos ao mesmo tempo) é resgatado por “aquele”, que
estabelece coesão visual com “a alguém” do bloco anterior. Uma pequena queda seguida de
uma tétrade de adjetivos, “afagada e polida e devolta e lavada”, simboliza o refinamento do
produto em relação ao produtor, agora apenas “ossos perdidos”. A seqüência de sons tonais
retrata o embate final do mestre, a transição para seu herdeiro: “afagAda e polIda e devOlta e
lavAda / suavizAda pela vAga e subtraÍda”
Outra pequena cascata ao final deste aglomerado realça a condição cíclica da
existência: a prole também fracassará em sua luta. aqui outra ligação sintática visual
possível: “uma chance ociosa” encontra-se exatamente abaixo de “tentando”, como que
oferecendo uma alternativa de continuação a este verbo. Forma-se então a sentença “pelo
ancião tentando uma chance ociosa”. Finalmente, como dito, “jamais abolirá” pode ser,
gestalticamente, outra conexão possível, o que acarretaria em “uma chance ociosa jamais
abolirá o acaso”. Ou seja: fruto do embate do mestre, o filho repetirá seu pai na impotência
diante do acaso.
O terceiro agrupamento da P5, dialeticamente, ressalta o êxito a atenuar a derrota do
mestre: a perpetuação da espécie, simbolizado pelas “Núpcias”. Se não há a solução da dúvida
frente o acaso, pode-se eternizar a tentativa através do renascimento via herdeiro. Este, agora
não mais “sombra”, mas “fantasma”, repetira seu antecessor: “vacilará / se abaterá” como ele.
99
A “insânia”, fruto da repetição incessante do fracasso humano, remete – segundo RC
a Hamlet e Igitur (ambos também sugeridos em “fantasma”). Entretanto, tal dúvida existencial
levada às últimas conseqüências (loucura) também “jamais abolirá” o acaso, conforme o
sintagma seguinte.
Tal tradução, “jamais abolirá”, é uma solução de Haroldo de Campos para verter
n´abolira”. Em língua portuguesa, “jamais não abolirá” seria uma opção impossível. O poeta
brasileiro então preferiu repetir “jamais”, já presente na P3, para não perder a conotação
negativa e pessimista da P5. De fato, se a escolha fosse apenas “abolirá”, toda a lógica
fatalista da transição mestre-herdeiro acima explicitada estaria comprometida.
A tradução ainda mantém efeitos importantes do original: o eco “lyre” (lira),
ressaltado por RC, marcando o início do “ciclo das artes” no poema; a sugestão “ire” (“ira”),
simbolizando a loucura. Para Kristeva, esta última marca mostra o futuro negativo da
humanidade, incapaz de evitar a loucura de não solucionar o problema apresentado.
Deste modo, a pós-gestalt da P5 confirma ser esta uma etapa de “transição”. Se para
RC passa-se do “ciclo da vida” ao “ciclo da Arte”, visualmente a presença de um sintagma da
frase-núcleo faz com que toda a gica de subordinação do poema mude: entre a P6 e a P9
(onde aparece “acaso”), tudo estará ligado a jamais abolirá”, de certa forma, pois tal
elemento será dominante visualmente.
Além disso, uma vez a humanidade estabelecida e o antecessor tornado parte do
inconsciente coletivo, a criação estampada pelo poema se concentrará agora na produção
estética em todas as suas modalidades. Função vital da existência, a Arte talvez seja a única
coisa de que se valha a pena falar em uma cosmogonia moderna.
4. 14 Página Seis
A primeira visualização da P6 indica o contraste de duas tipografias: “como se”,
repetido ao início e ao final da folha, em caixa alta e em tamanho maior que o restante das
figuras em itálico. Já estas se posicionam como que “no meio” dos dois elementos mais
pregnantes (pelo princípio da semelhança, eles destacam-se e “atraem-se” ao fruidor,
funcionando como ponto de partida da gestalt). Como na P2, os sintagmas concentram-se em
um espaço reduzido, contrastando com o branco ainda dominante. Tal qual a segunda página
do poema, conclui-se que certa concentração de energia, o que faz supor um recomeço,
uma re-criação.
100
Uma leitura mais atenta permite perceber uma divisão ao centro da folha, marcada
pela frase “nalgum próximo turbilhão de hilaridade e horror”. As duas figuras formadas
imediatamente acima e abaixo de tal sentença mostram-se bastante similares, fazendo com
que ela adquira o papel de espelho: há um paralelismo visual, similaridade gráfica que
ocasionará um efeito de sentido a ser explicado.
Para RC, a P6 é o início do “Ciclo da Arte”, que segue o “Ciclo da Vida”.
Graficamente, segundo ele, a impressão em itálico seria a ilustração do refinamento artístico,
da preocupação com a forma. Se nesta análise não se corrobora a idéia de “ciclos”
estabelecidos e demarcados no poema, há que se ressaltar que a passagem dos caracteres
regulares aos itálicos é um relevante sinal da substituição da tensão ontológica anterior pela
tensão estética, em seu estado primordial.
A própria expressão como se”, que emoldura a página, conota isso: ela sugere o
início de uma suposição, uma comparação. E é este o papel mimético que a arte adquire: o de
simular a realidade. Além disso, “se” contém o germe da dúvida, da incerteza, da dialética.
Aliás, a análise dos agrupamentos em paralelismo mostra que toda a P6 reflete sobre o
caráter essencialmente dialético da arte: A sentença que os divide é um exemplo, através da
antítese “turbilhão de hilaridade e horror”, definição resumida do resultado da criação
artística: seu êxito (representado pelo bloco da parte de cima) e insucesso (simbolizado pelo
espectro na parte de baixo) em “turbilhão”, ou seja, em movimento espiral constante. Não
um “lado” positivo e outro negativo, mas o entrelaçamento inerente à arte de aspectos
contrastantes que não se eliminam, mas se interpenetram. São faces opostas do mesmo todo.
Por isso estão delineadas de maneira igual na página.
Desse modo, o primeiro conjunto de sintagmas simboliza a arte em sua força
primitiva, ainda mera “insinuação”. Tal palavra possui diversas possibilidades de continuação
flutuando ao seu redor: “simples”, qualidade que reforça essa rusticidade; “ao silêncio”,
retomado por “mistério”, ambos recuperando o inconsciente gerador da arte surgido na P5; e
“enrolada em ironia”, este o maior de seus ritos, ou seja, ser a paródia da realidade,
universo alternativo, coexistente à natureza (como dito no primeiro capítulo, tal aspiração é
típica dos artistas modernos).Tal é o que a “hilaridade” sintetiza.
o bloco de baixo mostra que o objetivo de constituir-se em uma realidade paralela
não é atingido plenamente: embora o artista se aproxime do “vórtice”, o o domina e nem
escapa dele completamente. Merece destaque a escolha de Haroldo de Campos em sua
transcriação a gouffre”. “Vórtice”, em seu sentido figurado, pode ser “raio; abismo;
profundeza” (HOUAISS, p. 2882), o que garante a equivalência com o original, além de
101
retomar no sentido literal a idéia do movimento em espiral. O dicionário de símbolos de
Chevalier e Gheerbrant (p. 773) aponta, em seu verbete “remoinho” (novamente espiral) outra
ligação de tal imagem com o conceito de dialética: “Pode haver a dupla significação de queda
no remoinho ou de remoinho ascencional, de regressão irresistível ou de progresso
acelerado”.
Portanto, este contraste não é vencido, que a realidade simulada não é a realidade-
em-si, mas um signo. O “indício virgem”, pureza da arte, é subvertido nesse processo em que
o referente perde-se na cadeia gnica da representação. É o movimento em que “as palavras
da tribo” cedem à prevalência do valor semântico adquirido com o desgaste de séculos
imposto aos termos. Eis a idéia latente em “horror”.
Finalmente, a pós-gestalt da P6 exibe que esta é a lâmina representativa da arte
primitiva, aquela próxima do silêncio (simbolizado pelo branco dominante ao fruidor). A
frase ao centro é a própria latência do restante da folha: a aliteração em “r” (“tuRbilhão de
hilaRidade e hoRRoR”) simula a vibração inerente ao espiral do turbilhão, em que o contraste
hilaridade/horror constrói a dialética da arte: seu sucesso ao recriar a realidade pela via da
ironia e seu fracasso ao subverter a mesma realidade em vazio sígnico.
4.15 Página Sete
A pré-gestalt da P7 exibe um contraste radical entre as partes esquerda e direita:
naquela, o branco é altamente dominante, e os sintagmas “pluma solitária perdida” e “salvo”
emergem isoladas; no outro lado, uma alta concentração de figuras, e a superfície alva
retorna a seu papel de fundo.
“Salvo” opera, na verdade, um papel de conector visual entre o sintagma à esquerda e
todo o grande bloco à direita. Como todos os vocábulos da P7 estão no mesmo padrão de
impressão (itálico, continuando a P6 e sua temática da Arte), o princípio gestáltico
fundamental definidor de pregnância é o de proximidade.
Assim sendo, uma segunda visualização permite distinguir, à direita da folha, um
agrupamento acima de “que” a “sombria” de outro abaixo entre “esta” e “relâmpago”.
Ambos adquirem conexão “ótico-sintática”, através de “salvo”, com “pluma solitária
perdida”. Tal expressão expressa a ambigüidade utensílio de escrita/objeto de adorno: a arte é
retomada de forma mais refinada, sofisticada, “enfeitada” que na P6.
102
Julia Kristeva salienta que a pluma é o único acesso do artista à significância, a
“instâncias superiores” (inconsciente?). Tal interpretação ganha força pelo valor simbólico de
“pluma”, segundo Chevalier e Gheerbrant (p. 725): “A pluma é, com efeito, símbolo de um
poder aéreo, liberado dos pesos desse mundo”.
Tal força evocada pela pluma liga-se, portanto, aos dois blocos à direita da folha. No
primeiro grupo, uma imagem sexualmente sugestiva: o encontro do gorro com a pluma.
Para RC, a flor (obra-de-arte) é o resultado de tal potência geradora. Como na P6, isso é feito
através da ironia, expressa pela antítese “gargalhada sombria” (que também sugere a natureza
dialética de tal processo).
Desse modo, a pluma permanece isolada (inclusive graficamente na folha) “salvo”
ocorra a reunião profícua com o gorro. A ambigüidade de “salvo” que pode ser tanto uma
preposição (“exceto”) ou um adjetivo (“seguro”) sugere que produzir sua obra é a única
saída (“salvação”) do artista. Talvez tal estabilidade adquirida possa ainda ser associada à
linearidade das sentenças desse primeiro bloco, de quedas pouco acentuadas.
Para RC, o “gorro da meia-noite” é uma remissão direta a Hamlet, o que parece crível
(já que para Mallarmé o dilema hamletiano era a questão mesma da arte moderna). O crítico,
porém, vai além, e em seu esquematismo rígido nomeia a P7 com a etapa do “Teatro” dentro
do “Ciclo da Arte”. De forma alguma se reforça esta interpretação na pesquisa em tela:
acredita-se que a temática dominante, entre a P6 e a P9, seja a Arte como um todo, una em
sua essência, e de origens e preocupações comuns. A definição de fases” parece, à luz de
uma abordagem gestáltica, empobrecer uma obra dinâmica como “Um lance de dados”.
o segundo agrupamento, que também pode ligar-se à parte esquerda da folha, é
muito menos linear que o primeiro. Frases curtas e em acentuada quedas fazem supor uma
quebra da estabilidade anterior. O forte contraste “brancura” / “céu” é determinante no trecho:
a arte primitiva, aquela próxima do silêncio, em choque com a sofisticação ornamental.
“Céu”, portanto, retoma a pluma (como visto por seu valor simbólico) e a coloca como fator
de entrave à busca da “arte pura”.
O artista, antes simbolizado pelo gorro da vida, ganha o título de “príncipe amargo do
escolho”, outra alusão a Hamlet, essa focando sua indecisão e loucura. O termo “escolho” (na
primeira definição do dicionário Houaiss (p. 1207), “recife ou baixio à flor da água”)
estabelece contraponto ao céu, por simbolizar a terra. Logo, é a racionalidade em choque com
a inspiração. “Razão viril”, mais abaixo, confirmará que o crivo do discernimento impede a
volta ao primitivismo. “Escolho”, aliás, em seu sentido figurado, pode ser um “obstáculo,
103
óbice, perigo” (ibid., p. 1207), que reforça seu papel como impedimento ao que se pretende.
RC chama tal processo de “autocastração”.
O relâmpago, afastado espacialmente, delineia na página uma queda abrupta, o que
gera pregnância visual. Para Chevalier e Gheerbrant (p. 776), ele “simboliza a centelha da
vida e o poder fertilizante. É o fogo celeste, de imensa potência e assustadora rapidez: pode
ser benéfico ou nefasto”. Portanto, diferente da espontaneidade e naturalidade da “gargalhada
sombria”, a fecundação após o refinamento da arte promovido pela razão do artista ocorre via
“relâmpago”, jorros criativos, talvez inconscientes, que “escapam” ao consciente censor.
A P7, então, vista como um signo verbivocovisual, é a continuação da dialética da arte
exposta na P6, desta vez intensificada graças à “evolução” do artista, ou de seu afastamento
do caráter primitivo da arte. Refém de sua razão, encontra-se “salvo” apenas pela válvula de
escape de sua ironia (representada pelo primeiro bloco) ou dependente de “insights” criativos
metaforizados pelo “relâmpago”. Tal imagem, aliás, é sugerida pela disposição das palavras
no primeiro bloco, e pela repetição de sons oclusivos: “Quem Quer Que / PrínciPe amargo do
esColho / dela se Coife Como algo de heróiCo”. Consciência x Instinto, eis o conflito herdado
de Hamlet, encampado pelo artista moderno e sintetizado na P7.
4.16 Página Oito
O primeiro contato com a P8 mostra ao receptor uma figura mais ampla, com
elementos visuais espalhados em todos os quadrantes da folha. Com ocorrera entre as P2 e
P3, a linearização e a expansão dos sintagmas representa o estabelecimento físico e a
organização estrutural do objeto em questão. Antes, o universo e a vida humana; agora, a arte
já totalmente desvinculada do primitivismo da P6.
A tipografia em itálico, similar às duas páginas anteriores, continua altamente
dominante, mas agora com uma figura em caracteres maiores (o segundo maior padrão do
poema, após aquele empregado na frase-núcleo): “se”. Tal estilo de letra, em caixa-alta,
chama a atenção por ser o único dissonante: pelo princípio de semelhança, destoa do resto da
folha e torna-se o mais pregnante da P8.
Pelo princípio da proximidade, é possível a divisão dos sintagmas em quatro
agrupamentos: entre “angustioso” e “mudo”; “riso / que / se”; de “O lúcido” a “últimas”; e
finalmente entre “de vertigem” e “infinito”. Tal estrutura tetrádica (em se considerando a
supremacia visual de “se”) a impressão que todos os blocos convergem para a palavra
104
impressa em tamanho maior, como que gravitando ao seu redor, e estando portanto –
subordinados a ela ótico-sintaticamente. Assim, ainda que o termo “se” faça parte do segundo
quadrante, ele é o “ponto de fuga” da página, ao qual todas as sentenças se referem.
O primeiro agrupamento é uma gradação de adjetivos que qualificam a figura do
artista oprimido, vítima da angústia causada pela dita “evolução” da arte (e da própria
sociedade), e talvez até de seu mercantilismo, intensificado na modernidade. A idéia, aliás, de
que a questão da Modernidade vem à tona na P8 é citada por RC, que denomina ser essa a
folha do “poeta moderno”. Mais uma vez, prefere-se nesta pesquisa expandir o conceito a
toda a arte: ainda “púbere” (em formação), o artista da Modernidade carrega a culpa de ver
sua obra banalizada. Como conseqüência, imprime as mudanças radicais que o processo
artístico sofreu entre o final do século XIX e os tempos atuais. A estética do choque, o
hermetismo elitizante, o engajamento artístico e a pretensa alienação social (já desenvolvidos
no segundo capítulo) são como uma “expiação”, sua salvação, última alternativa antes de
desistir (como de fato fez Rimbaud), de tornar-se “mudo”. Tal palavra, no poema, afastada
das demais, e em queda, é a representação de uma latência, uma ameaça que acompanha os
grandes criadores modernos.
O segundo agrupamento, cujas palavras são bem esparsas (o que faz com que o branco
da página adquira pregnância), pode ser considerado uma continuação do primeiro bloco. Isso
graças à ambigüidade de “mudo”, que pode ser substantivo (operando como uma metáfora de
“artista” – interpretação feita acima) ou um adjetivo, qualificando “riso”. Neste viés de
compreensão, repete-se a tensão da folha anterior: a ironia (“riso mudo”) e a dialética (“se”)
conectadas por “que”: esta arte moderna é o fruto da fusão entre o tom auto-irônico e a dúvida
dialética. O conflito entre a inteligência crítica iluminista e a sensibilidade individualista do
Romantismo: o fim das certezas, “turbilhão de permanente desintegração e mudança”, frase
de Marshall Berman (1996, p. 15) já citada. O uso da imagem do turbilhão (comum a
Mallarmé, na P6) mostra o grau de relevância que adquiriram as mudanças do período. Em
“Um lance de dados”, “se” é o resumo último dessa tensão.
Discorda-se, nesse ponto, de RC, para quem a descida “riso / que se” delineia
graficamente o ápice (ironia) e o declínio (dúvida) da Poesia. Ora, considera-se que tal trecho
não apenas retoma o relâmpago da P7, como o “desenha” na superfície da folha,
representando o insight artístico proveniente do encontro entre tais elementos, e não os
segregando como pólos de involução da Poesia. Isto significaria supor que a arte moderna é,
de algum modo, inferior à anterior, o que parece inconcebível.
105
A parte de baixo da P8, por sua vez, contém a expansão do conflito gerador de “se”, da
dúvida artística (que substituiu a dúvida existencial do mestre na P3, a de lançar os dados ou
não). A dicotomia pensamento/sensação, Iluminismo/Romantismo, forma/conteúdo é
desenvolvida em dois blocos, cada qual simbolizando um extremo. Ambos, como dito,
convergirão para “se”.
O terceiro quadrante, assim, é a representação da razão, do refinamento formal,
simbolizados pela linearidade das frases e pela sofisticação (ornamental) denotada de
“penacho” (evolução da pluma, segundo RC). “Senhorial” sugere ainda o controle imposto
pelo esquematismo racional à experiência empírica. No artista, o excesso de tal mediação
levará o artista a cair no vazio sígnico, a desvincular-se da essência da arte e da natureza.
Nesse ponto, corrobora-se a interpretação de RC a “fronte invisível”, sinédoque do poeta (ou
todo artista) moderno, anônimo, desumanizado, cuja face (mais relevante fator identitário)
perde-se na busca pelo universal.
Tais limites da razão são confirmados pelos opostos latentes no bloco: “cintila” /
“sombreia”; “frágil” / “tenebrosa”; “estatura” / “torsão”; eles mostram que as contradições da
vida jamais serão vencidas pela faculdade gica, e que sozinha ela cederá aos obstáculos
(“impacientes escamas últimas”) do acaso.
Em contraposição a este bloco surge o quarto quadrante, onde a acentuada queda e as
frases isoladas sugerem instabilidade. Certos valores semânticos (“vertigem”, “esbofetear”,
“súbito”, “evaporado”) confirmam esta impressão. A inspiração, a sensação e a experiência
empírica são simbolizadas em “ereta”, que supõe objetividade, imediatismo, sem a
sinuosidade sígnica anterior. Entretanto, também é limitada, por sua efemeridade: “de súbito /
evaporado em brumas”. Diferentemente da razão, a emoção não pode ser registrada tão
fidedignamente. A obra-de-arte passional ganha então a metáfora da “rocha”, objeto estéril,
sem vida, ou um “solar falso”.
Desse modo, a pós-gestalt da P8 sugere ser esta a lâmina em que a arte moderna
eclode, fruto da fusão entre a ironia e a dúvida. Sem se entregar ao racionalismo
esquematizante ou à sensação transitória, o artista da Modernidade busca uma alternativa para
eternizar sua arte, mantê-la intacta ao acaso, à banalização imposta pela recepção. Essa
dúvida, que verte por todos os lados da folha e se concentra em “se”, explodirá na P9,
desfecho da tensão estética surgida na P6.
106
4.17 Página Nove
A mais complexa página do poema. É a primeira impressão visual da P9, pelo grande
número de figuras concorrentes e associações plausíveis. Como na folha anterior, todos os
quadrantes são ocupados, mas dessa vez maior riqueza de possibilidades ótico-sintáticas,
dada a diversidade de tipografias. São cinco, ao todo: “acaso”, término da frase-núcleo; “fosse
/ o número / seria”, continuação de “se” (P8), no segundo maior padrão de caracteres presente
em “Um lance de dados”; “existiria / começaria e cessaria / cifrar-se-ia / iluminaria”,
retomando a letra usada pela última vez na P4 (“o mestre”); “cai a pluma (...) abismo”, bloco
no quarto quadrante em itálico, continuação da folha anterior; e finalmente frases na menor
impressão da obra, delineamento de um sussurro, comentários que complementam os termos a
que se subordinam, e que configuram um fenômeno isolado da P9 (e que RC associa ao
refinamento máximo da Arte).
O fato é que “o acaso” adquire pregnância, e atrai tudo entre a P9 e a P11 para si. É o
fim da frase principal do poema, verdadeiro desfecho da tensão humana (representada pelas
letras tradicionais nas P3, P4 e P5) e da tensão estética (desenvolvida em itálico ao longo das
P6, P7 e P8). A P9 é, assim, o encontro entre Natureza e Arte, conforme RC. Gestalticamente,
isso se confirma pela disparidade visual nas figuras, que retomam ambos os tópicos.
O conceito de acaso, em Mallarmé, vai além da mera imprevisibilidade da vida. Entre
diversos outros entendimentos possíveis, aquele que mais se identifica com esta análise é a
idéia de que o “acaso” é a falta de controle do artista sobre a recepção de sua obra. Com o
avanço tecnológico da imprensa e a proliferação dos periódicos, a banalização da Arte fundiu
a preocupação do artista com sua própria existência: é a “crise de identidade” do criador
moderno, cuja dúvida primeira (“criar ou não criar” evolui ao dilema hamletiano: “ser ou não
ser”.
Além disso, a fruição do poema por um sujeito frustra a utopia modernista de atingir a
desumanização da obra de arte: a luta “estrutura x acaso”, flagrante em Mallarmé, é fadada ao
fracasso pela interferência pessoal do leitor. No momento da leitura, a linguagem deixa de
falar por si só.
Desse modo, na P9, todos os sintagmas parecem gravitar ao redor de “o acaso”, como
que em atração magnética. As muitas referências às páginas anteriores (via tipografia similar)
faz com que esse seja um dos mais importantes momentos desta cosmologia moderna. RC
chega a afirmar que “o acaso” é o “ponto nodal” de “Um lance de dados”.
107
Pelo princípio de semelhança, tem-se uma importante frase entre a P8 e a P9: “Se /
fosse / o número / seria (o acaso)”. Nesse ponto, os exegetas aqui considerados divergem:
Para Kristeva, o “número” é a unidade mínima do texto, quantificação abstrata do
significante, que fracassa apesar de sua exatidão matemática. Já para RC em uma
interpretação que se alinha com a idéia deste trabalho –, é a substância da realidade,
materialidade concreta, natureza-em-si (na transcriação de Haroldo de Campos, há o ganho do
eco “númeno”, conceito kantiano desenvolvido no terceiro capítulo). Nesse caso, tem-se que
mesmo a arte atingindo ser o número mimese perfeita da experiência sensorial –, ela ainda
cederia ao acaso.
pelo princípio de proximidade, o “número” pertence a um grande bloco de
sintagmas acima de “o acaso”. Considerados os tipos mais pregnantes, tem-se: “o número /
existira / começaria e cessaria / cifrar-se-ia / iluminaria (o Acaso)”. Apreende-se de tal
formação o contraponto da idéia anterior de arte enquanto reprodução do empírico: agora, é
retratada a arte do pensamento, uma estética mais refinada em seus significantes, o tecnicismo
impregnado nas artes a partir do mesmo processo ocorrido na sociedade industrial. Pode-se
dizer, então, que essa passagem descreve a arte moderna, o que é confirmado pela alusão à
razão (“diversa da alucinação”; “iluminaria”), ao fragmentarismo (“cifrar-se-ia”) e ao
obscurantismo (“surdindo assim negado e ocluso quando aparente”). Kristeva chega a uma
conclusão semelhante por outros meios: para a semioticista, o recurso usado por Mallarmé (e
mantido por Haroldo) de colocar todos os verbos no tempo condicional gera um deslocamento
do sujeito na linguagem e aspira a uma comunicação pura esta, uma marca clara da poesia
moderna.
Ironicamente, ambos os caminhos interpretativos possíveis pelos princípios gestálticos
conduzem ao acaso, o que faz crer que nem o primitivismo artístico nem o refinamento
técnico-intelectual podem evitar a destruição banalizadora da fruição. Tal indiferença é
ressaltada em uma sugestiva gradação de termos neutros, também subordinados ao acaso:
“pior / não / mais nem menos / indiferentemente mas tanto quanto”. Localizado no centro da
página, este trecho funciona como um mediador dialético das duas seqüências possíveis, que
invariavelmente levam ao mesmo desfecho.
Já o bloco na parte de baixo da página, em itálico, retoma pela lei gestáltica de
semelhança toda a tensão estética das P6, P7 e P8. Por estar subordinado visualmente a “o
acaso” e ser a última passagem nesta tipografia do poema, esse agrupamento configura-se na
conclusão do desenvolvimento artístico, desenlace pessimista da dúvida hamletiana da própria
arte. A pluma da P7 é retomada em uma queda rumo ao abismo. Segundo RC (p. 362)
108
‘Cai a pluma’ se refere, ao mesmo tempo, a) ao resultado de um Jubileu-
Apocalipse: desmoronamento rápido de tudo que se produziu após o Poema
e b) ao epílogo da iluminação pessoal (ou dilema supremo) do último poeta.
O insucesso, entretanto, é relativo, que o abismo da P9 retoma o da P3, gerador da
vida (“espumas primordiais”). Desse modo, o “fim da arte” gera a vida, como a morte do
mestre gerou a arte, a partir da P6.
Finalmente, a P9 enquanto um signo verbivocovisual constitui-se no clímax de “Um
lance de dados”. Momento do encontro entre Natureza e Arte, quando tensão ontológica e
artística se transformam na mesma dúvida existencial. O grande motivador de tal dilema é o
acaso, que em Mallarmé adquire o valor de “destino” de suas obras, monstro destruidor contra
o qual se luta através do hermetismo estrutural.
A queda da pluma ocorre em meio a um efeito sonoro de ricochete que adiciona tensão
à cena (o termo “suspense”, aliás, confere um valor cinematográfico à transcriação
haroldiana): “Pluma / ríTmico susPense do sinisTro / sePulTar-se / nas esPumas
PrimorDiais”. Engolidas pelo abismo-acaso, a realidade e a arte retornam de onde vieram, em
um fechamento de ciclo. Terminasse aqui, e o poema seria a constatação do fracasso do
homem e do artista. As duas últimas páginas, entretanto, mostram a relatividade desta derrota,
e uma alternativa de co-existência entre estrutura e acaso.
4.18 Página Dez
A pré-gestalt da P10 imprime ao perceptor uma imagem menos complexa que a
anterior. apenas duas tipografias, embora não se configure entre elas um efeito de
subordinação ótica evidente, mas a presença de configurações quase paralelas. Em um padrão
idêntico a “existiria / começaria e cessaria / cifrar-se-ia / iluminaria” da P9, forma-se a frase
“nada / terá tido lugar / senão o lugar”. Em caracteres menores (como os que formam o corpo
do texto das P3, P4 e P5), uma cascata de sintagmas cujas queda e brevidade conotam
instabilidade. À esquerda, o branco da página é altamente pregnante, sendo apenas relegado a
fundo com a aparição de “nada”, palavra que resume o restante do poema, segundo RC (p.
371):
Na página 10, toda a realidade precedente é resumida em “nada”, espécie de
eco heróico (em seu ápice) daquilo que agora é silencioso, errante como um
fantasma, acima de tudo que resta na terra, as águas doravante silenciosas.
109
este trabalho prefere considerar o “nada” o grande resultado do choque Natureza x
Arte da P9, desfecho (fracasso) da ambição da estrutura frente ao acaso. Conforme afirmado
no segundo capítulo, tal conceito em Mallarmé sintetiza a condição da arte no mundo
moderno, a impossibilidade de concretização da “poesia pura”, a falência da linguagem
(instância onde, dialeticamente, ele se fecha frente a esse dilema).
O mundo pós-acaso da P9 (retomado, na P10, por “memorável crise”) é, assim, a
corporificação desse “nada”, o vazio da indeterminação total gerado pela prevalência da
forma sobre o conteúdo a um tal grau que a realidade se esvaeça. Tal interpretação alinha-se
com Friedrich (1978, p. 123) mais uma vez:
[...] um dos atos que fundamentais da poesia de Mallarmé consiste em
transferir o objeto concreto à ausência. Nesse ato se manifesta, antes de tudo,
o mesmo anseio em fugir da realidade que nas teorias de Baudelaire e
Rimbaud. E também se relacionam com os mesmos motivos históricos que
explicam Baudelaire e Rimbaud. [...] Mas Mallarmé estende todos estes
motivos à profundidade. A desrealização aparece nele como conseqüência de
uma incoerência, entendida ontologicamente, entre realidade e linguagem.
A (possível) solução de tal conflito fica em suspenso na P10 e eclodiapenas ao final
do poema. A própria frase principal desta lâmina (“nada / terá tido lugar / senão o lugar)
mantém uma incompletude misteriosa. Por isso, tem-se aqui um cenário (“lugar”) pós-clímax
do poema, como que uma preparação ao desfecho que se aproxima. Se “Um lance de dados”
terminasse aqui, o fracasso da criação do universo, do homem e da arte teria sido definitivo.
Para Julia Kristeva, a sentença em caracteres maiores expressa que, mesmo se o acaso
não tivesse destruído o sonho da Obra perfeita, esta teria sido igualmente nula, pela
dissolução do sujeito inerente a ela. Tal idéia de fato reforça-se nos sintagmas em tipos
menores, onde o “evento” (fracasso da tentativa das páginas anteriores) é repercutido. É tal
palavra, aliás, que conclui o pequeno agrupamento à esquerda, e que pode ser completado à
sua direita – por três outros blocos que se segregam em uma visualização mais atenta.
No primeiro, localizado mais acima, a nulidade do evento/obra/estrutura é colocada.
Aqui, há uma possibilidade de subordinação ótica pelo princípio da proximidade: “uma
elevação ordinária verte a ausência” completa “terá tido lugar”. Entende-se o caráter cíclico
da existência, já que se forma a seguinte tautologia: “nada / terá tido lugar / uma elevação
ordinária verte a ausência”, ou seja, o “nada” retorna à “ausência”, ao próprio nada. Discorda-
se parcialmente, aqui, de Haroldo de Campos (1974, p. 140), quando este afirma: “Da
elevação ordinária (frustra) se derrama (verte) a ausência. Voltamos ao vazio blanchi
(branco) das primeiras páginas.” [grifos originais]. Ora, não é o adjetivo “branco” da P3 que
110
expressa o nada pré-criação, mas o próprio branco da folha que antecede e envolve o sintagma
“Um lance de dados” na P1 (como dito, figura e não fundo, fator essencial no poema). O
acaso (“Apocalipse”, para RC) reconduz então o universo a este estado primordial que
antecedeu o primeiro gesto. Aliás, se a P10 é a reconstituição daquele vazio, a P11 pode ser
encarada como um novo lance de dados, retomada do ciclo vida-morte.
o segundo bloco que pode ser vinculado a “o evento” funciona, semântica e
visualmente, como seu aposto: a obra fracassada (“inferior marulho”) era natimorta devido à
“sua mentira”, sua concepção falsa de que poderia abolir o elemento humano e o real (acaso)
da arte. A disposição dos sintagmas em acentuada queda, terminando em “perdição”, sugere
que o suposto êxito da tentativa conduziria igualmente à ruína (o que, mais uma vez, confirma
o entendimento de Kristeva).
Também o último agrupamento da página opera como um aposto a “o evento”, mas
sonoramente. A dissolução da realidade é emanada pelos sons fricativos de /s/ e /v/, sugerindo
o fim (“evaporação”, para RC) de tudo: “neSSaS paraGenS / do Vago / onde toda a realidade
Se diSSolVe”. Neste verso, como se vê, Haroldo de Campos mantém o efeito do original.
Portanto, a pós-gestalt da P10 revela ser esta uma página que marca o recomeço do
Universo após as criações da Natureza (P3, P4 e P5) e da Arte (P6, P7 e P8) serem tragadas
pela impetuosidade do acaso (P9). O “nada” torna a expandir-se como preparação para um
novo lance de dados: a P11, desfecho do poema.
4.19 Página Onze
A primeira visualização da última folha de “Um lance de dados” gera um choque ao
fruidor: à esquerda, o branco é altamente dominante, portanto figura, enquanto à direta é mero
fundo de uma configuração de sintagmas. Isso significa que o “nada” da P10 a realidade
dissolvida – continua na primeira metade da P11, só sendo subjugado no restante da lâmina.
A P11, aliás, é óbvia seqüência da P10 em se considerando o princípio de semelhança:
as duas tipografias desta repetem-se naquela. A maior, mais pregnante, oferece a seguinte
frase se considerada tal continuidade: “nada / terá tido lugar / senão o lugar / exceto / talvez /
uma constelação”. A adição dos sintagmas complementares da P11 mostra que há uma
maneira de se vencer o nada pós-acaso: a constelação (metáfora que se explicará) sendo
talvez uma exceção ao vazio.
111
Visualmente, esta constelação é a própria figura à direita, construção que ganha status
de “única exceção” ao acaso. Tal agrupamento, se observado de maneira mais atenta, permite
a distinção de três configurações óticas dentro de tal estrutura.
A primeira, de “se funde com o além” até “Norte”, anuncia a simbologia-base da
página: as estrelas representam palavras, elementos formadores de uma constelação (poema).
No original, a ambigüidade de vers” (que pode ser “versos” ou “em direção à”) gera um belo
efeito: a obliquité (obliqüidade) direcionando-se à constelação, fruto da fusão entre o
“local” (o nada pós-acaso) e o “além” (infinito); ou o verso sendo equiparado ao conjunto de
estrelas. A presença do Setentrião reforça tal analogia. Na recriação em língua portuguesa,
Haroldo de Campos repete o recurso da P5 e opta por “versus”, o que mantém o efeito.
Visualmente, este bloco une “exceto” e “constelação”, como que anunciando a aparição desta.
o segundo bloco vem logo abaixo do sintagma “uma constelação”, do qual opera
como um aposto. “fria de olvido e dessuetude” é a condição da palavra/estrela desumanizada
e tendo tido todo o seu referente subtraído: mera carcaça significante vazio, esquecido. É a
conseqüência da radical busca da “palavra pura”, que acaba se convertendo em um estilismo
estéril. Logo abaixo, porém, a formação “não tanto / que não enumere” impõe (como
“exceto”) uma alternativa: o “cálculo total em formação”, estrutura portanto não terminada,
mas em meio a um processo de composição. Esta soma (“choque sucessivo”), a partir do
fundo branco da página (“superfície vacante e superior”), tem a possibilidade de constituir
uma obra que permaneça suspensa entre os dois extremos, ou seja, que não seja nem
banalizada como nos periódicos, tampouco uma mera exploração de significante totalmente
desreferencializada. Esse meio-termo trata-se de uma arquitetura matematicamente planejada
para tal. Por isso, a analogia do “cálculo”.
Esta compreensão tem pontos de contato com o que afirma Julia Kristeva. Para ela, a
“constelação” é o texto, sobras da dissolução do mestre da P4 em meio ao desastre ocorrido
na P9. para RC, as estrelas não metaforizam palavras, mas a constelação simboliza o
universo em vias de desaparecer, dispersa no espaço. Tal interpretação não se aplica a este
trabalho.
O terceiro agrupamento da P11 marca o fim do poema: sete versos, as sete estrelas da
constelação do Setentrião (para RC), corporificação gráfica deste fenômeno astronômico ao
nível topológico da gina. Os cinco verbos em gerúndio aparecem em cascata, lembrando
ainda a queda de um dado. Eles simbolizam as ações emanadas da estrutura da constelação
em uma seqüência dinâmica: a visualização (“vigiando”), o questionamento (“duvidando”) e a
reflexão (“meditando”) incessantes desta obra eternamente em movimento, buscando um
112
utópico ponto último. Este é impossível, porém, que todo pensamento emite um lance de
dados: não há fim ou começo, mas um recomeçar constante.
Assim, o que se desprende da P11 é que o poema termina na instância do quase:
“talvez uma constelação surge como solução latente (e não manifesta) ao impasse entre
natureza e arte. Tal tendência avançou pelo século XX, e culminou com experiências artísticas
como a arte combinatória (da qual a ciberliteratura é um notável exemplo) e a arte aleatória
(tal qual as obras do compositor John Cage, em que o acaso é fator determinante para as
escolhas do intérprete).
Essa “arte do quase” esinscrita pela gina de diversas maneiras: a presença de
“exceto” e “não tanto”, partículas que castram uma “conclusão”, um “fechamento de idéia”; o
grande número de termos com valor semântico de dúvida (“em geral”, “deve ser”, “algum
ponto último”); o “clima de suspense”, como chama Haroldo de Campos, gerado pela
seqüência de verbos em gerúndio, cuja queda conduz à elucidação do poema. Já em seu
prefácio, aliás, Mallarmé alertava: Tudo se passa, para resumir, em hipótese” (p. 151). Em
certa medida, esta dissertação alinha-se com a conclusão de Maurice Blanchot (1984, p. 245):
Un coup de dés, cuja presença certa as nossas mãos, os nossos olhos e a
nossa atenção afirmam, não só é irreal e incerto, mas só poderá ser se a regra
geral que ao acaso estatuto de lei se romper nalguma região do ser,
onde o que é necessário e o que é fortuito serão um e outro pela força do
desastre. Obra que portanto não está , mas presente apenas na
coincidência com o que está sempre para lá. Un coup de dés só é na medida
em que exprime a extrema e estranha improbabilidade de si, dessa
Constelação que, a favor de um talvez excepcional [...] se projeta “nalguma
superfície vacante e superior”. [ grifos nossos]
Contra a banalização crescente do código, Mallarmé encontrou, na arquitetura
meticulosamente planejada, uma forma de compor um poema múltiplo: através da variedade
tipográfica e da exploração do branco da folha, dispersou a frase horizontal, impositiva de
sentido, e lançou pela página sintagmas a se entrelaçar, quase que em movimento. Com isso,
liberto do invólucro sintático, foge do silêncio em que se refugiou Rimbaud e do
mercantilismo dos periódicos. Para tal, compôs um poema que não é, mas que pode ser:
estrutura virtual, latente, inacabada, aberta.
113
4.20 O novo todo (ou a pós-Gestalt)
A pós-gestalt do poema permite a compreensão global de sua arquitetura. Por se tratar
de uma “tautologia absoluta da significação” (RC) pois seu último sintagma é idêntico ao
primeiro, o que produz efeito circunferente de sentido “Um lance de dados” estaria mais
bem acomodado em um tipo de códice que permitisse a exploração dessa circularidade, algo
como uma encadernação rotatória, em que começo e fim não fossem impostos pela ordem das
folhas. Seguramente a ambição de Mallarmé extrapolou os recursos gráficos disponíveis em
sua época.
De qualquer forma, tem-se que considerar a obra em sua apresentação tradicional.
Nesse caso, em seu “final” (P11) a elucidação das origens de seu “começo” (P1). Pode-se,
ainda, em outro exercício especulativo, anexar infinitas cópias do poema em seqüência, de
forma que a P1 de fato fosse antecedida pela P11, e portanto tal relação embrionária entre elas
ficasse mais clara.
A frase derradeira, “Todo Pensamento emite um Lance de Dados”, é que permite tal
conclusão: a atividade mental humana, sua produção cognitivo-intelectual, é o fator gerador
dos lances de dados, seja da criação primeira da P1, da fundação tempo-espaço da P2, da
Natureza da P3, do Mestre da P4, das Artes na P6: tudo é realizado a partir do pensamento
humano.
Deve ser ressaltado, nessa frase, o verbo “emitir”: o lance de dados não é o próprio
pensamento, mas seu produto. Este conceito (pensamento) permanece, portanto, como uma
grandeza apriorística, de caráter absoluto. Volta-se, como dito, às teorias kantianas: o “ser”
dá-se no pensamento, que constrói o mundo a partir da apreensão dos dados perceptivos.
Ora, é em virtude disso que se defende, nesse trabalho, que “Um lance de dados” é a
cosmogonia moderna: sua força de criação nasce não de uma entidade divina, mas do
pensamento humano, que assume o papel construtor do que o rodeia. O “criador” da
Modernidade, com a morte de Deus, é o próprio homem.
114
Considerações finais
O que se pretendeu neste trabalho foi propor uma alternativa de compreensão do
poema “Um lance de dados”, obra cujo impacto permanece presente na produção literária
contemporânea. As exegeses tradicionalmente adotadas por pesquisadores (com as de Robert
Greer Cohn e Gardner Davies) apresentam uma análise tão fragmentada como o próprio
poema (ou seja, os termos “espalhados” pelas páginas adquirem valor quase independente uns
dos outros: um tipo de “fidelidade” da crítica à “subdivisão prismática da Idéia”, que
Mallarmé anuncia em seu prefácio). No papel de elucidar o hermético léxico utilizado na obra
e localizar as referências simbólicas em outras criações do poeta, tais estudos são
inquestionáveis e quiçá definitivos. Entretanto, notava-se a ausência de um trabalho que
privilegiasse o “todo” do poema, que visasse a reunificar a Idéia esvaída por Mallarmé.
Por isso, esta dissertação buscou a sinergia estrutura-conteúdo, em que o arcabouço
imagético-sintático (analisado através dos princípios de organização da visão, prática pouco
comum em estudos de Literatura) é esmiuçado visando-se a compreensão do sentido nele
inscrito. Verdadeiro ideograma ocidental, o poema será empobrecido toda vez que sua
configuração visual for ignorada. Conseqüentemente, a Gestalt parece ter se adequado às
necessidades não apenas desta abordagem, mas também à recomendação de Roland Barthes
de se considerar o signo uma “totalidade inextricável de sentido e forma”, conforme dito
anteriormente.
Neste foco, “Um lance de dados” apresenta-se como a cosmogonia moderna: sua
forma o uso de tipografias diferentes, a exploração do branco da página e a múltipla
possibilidade de concatenação sintático-semântica dos diversos agrupamentos de sintagmas a
flutuar anuncia os rumos da poesia moderna; seu conteúdo a criação do universo, do
homem e das Artes contém o germe da ideologia antropocêntrico-iluminista da
Modernidade. Como visto no segundo capítulo, o século XIX foi um dos períodos de maior
agitação sócio-cultural da História. As revoluções Francesa e Industrial permitiram o cenário
para o desenvolvimento de uma nova mentalidade, em que a ciência e o humanismo
substituíram o papel da igreja de contentora do “conhecimento universal”. Cada vez mais
distantes de uma imagem divina e responsáveis por sua vida e seu destino (ou pelo menos
tendo tal sensação) –, os homens atingem grandes avanços tecnológicos, mas,
concomitantemente, vêem pioradas as condições de vida nas cidades, devido ao avassalador
crescimento demográfico. Era o paradoxo moderno inscrito na obra estudada.
115
Forma e conteúdo unidos, “Um lance de dados”, o poema-em-si, é o significante do
mito criado durante a segunda metade do século XX acerca da obra-prima mallarmaica: o
poema antecessor, revolucionário, “divisor de águas”, como ressaltam os irmão Campos
(1974). Tal status permanece nos dias atuais (Barthes, em “Mitologias” (1982), diz que o mito
é um fator histórico: não “mito eterno”, ou seja, tal condição é provisória, podendo se
esvair).
Como apresentado antes neste trabalho, usa-se o termo “mito” em sua concepção
moderna, como um paradigma comportamental. Na teoria semiológica de Barthes, a estrutura
mítica compõe-se da transposição de um signo completo para a função de significante mítico,
enquanto o significado mítico é o conceito agregado (que abafa o significado original”), ou
seja, o fator histórico citado, e que confere ao fenômeno primeiro a condição de mito.
Ora, a constante remissão a Mallarmé nos últimos sessenta anos por poetas, artistas
plásticos, músicos e acadêmicos sempre leva em conta a condição de “inovador de formas” do
poeta francês. Quanto a “Um lance de dados”, seus aspectos formais são supervalorizados em
detrimento de seu conteúdo. Tem-se, portanto, a cadeia mítica barthesiana: do signo
primordial (poema-em-si, ou o significante mítico), o significante (estrutura formal
revolucionária do poema) ganha relevância, e a ele é agregado o conceito posterior (ou o
significado mítico): o status de matriz da poesia moderna. Já o significado primordial (do
poema-em-si) é alienado.
Neste trabalho crítico, seguiu-se a orientação de Barthes para que fosse resgatado esse
sentido “soterrado” do signo primeiro, que se faça mostrar o cerne conteudístico quase
ignorado da obra de Mallarmé, mais citada do que lida. Neste sentido, chegou-se à conclusão
de que se trata da cosmogonia moderna: irrompimento da realidade espaço-temporal na P1 e
na P2; criação da Natureza nas P3, P4 e P5; surgimento da Arte nas P6, P7 e P8; encontro
Arte/Natureza na P9; e sobrevida ao Acaso nas P10 e P11.
O que diferencia esta cosmogonia das tradicionais é que nela não agentes
sobrenaturais, entes divinos ou seres de outra realidade responsáveis pela criação. A última
sentença do poema desvela o seu diferencial: o “lance de dados”, ou seja, a natureza, a arte e
os seres são emitidos pelo pensamento. É que está incluída a mentalidade moderna: o “eu”
é o fator gerador de tudo que existe, através dos dados recebidos via percepção.
Desse modo, confirma-se a idéia de Antônio Cândido, expressa no primeiro capítulo: o
contexto sócio-histórico em que o autor de uma obra de arte está inserido será sempre
repercutido no objeto artístico, mesmo que de maneira inconsciente. A aspiração de Mallarmé
116
de se desvincular de todo o concreto e se abrigar apenas na força da “linguagem pura” é
utópica, já que tanto a forma como o sentido de seu poema sugerem uma marca de seu tempo.
Assim, esse é o significado primordial submerso na estereotipagem que o poema tem
sofrido. Tal resgate conflui com a idéia de que há, aqui, um mito: relato simbólico de valor
paradigmático que visa a explicar a origem de algo. O poema “Um lance de dados”, de
Mallarmé, e suas re-criações ritualísticas (traduções, apropriações, subversões,
musicalizações) contêm a marca da Modernidade: a cultura do “eu” criador, a prevalência do
pensamento sobre o dogma, a morte de Deus.
117
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