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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Cumplicidade Científica e Etnográfica: Explorando o LBA
ANTONIA CAITLIN WALFORD
Rio de Janeiro. 2008
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ii
Antonia Caitlin Walford
Cumplicidade Científica e Etnográfica: Explorando o LBA
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, orientada pelo Prof.
Dr. Eduardo Viveiros de Castro.
Rio de Janeiro. 2008
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Cumplicidade Científica e Etnográfica: Explorando o LBA
Antonia Caitlin Walford
Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de
Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de mestre.
Aprovada por:
________________________________________
Prof. Eduardo Viveiros de Castro (Orientador)
_______________________________________
Prof. Marcio Goldman
_______________________________________
Profa. Tania Stolze Lima
_______________________________________
Profa. Aparecida Vilaça
_______________________________________
Prof. Guilherme José da Silva e Sá
Rio de Janeiro. 2008
iv
WALFORD, Antonia Caitlin
Cumplicidade Científica e Etnográfica: Explorando o LBA / Antonia
Caitlin Walford. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional, 2008.
266 pp.; viii pp.
Orientador: Eduardo Viveiros de Castro
Dissertação (Mestrado) – UFRJ/Museu Nacional/Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social, 2008.
1. Ciência 2. Tecnologia 3. Natureza 4. Amazônia. I Viveiros de
Castro, Eduardo. II Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu
Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. III
Título.
v
RESUMO
Esta dissertação trata do Experimento Biosfera-Atmosfera de Grande-Escala na Amazônia
(Large Scale Biosphere-Atmosphere Experiment in Amazonia, LBA), um projeto científico
internacional e multidisciplinar que tem como meta a avaliação do papel da floresta
amazônica no ciclo global de carbono. Descrevendo três situações etnográficas o LBA
como apresentado no website e como observado em seus escritórios centrais; a modelagem
climática; uma expedição para uma área de pesquisa próxima a São Gabriel da Cachoeira
(Amazonas) esta dissertação investiga a maneira pela qual o conhecimento é organizado e
as maneiras pelas quais o mundo pode ser "representado". Sugere-se que uma
"cumplicidade", no sentido de uma colusão para criar algo paradoxal ou impensável, nas
relacões evocadas entre os pesquisadores científicos e seus objetos de estudo, assim como
entre a antropóloga e os objetos dela. "Humor" e "incerteza" são propostos como aspetos
cruciais da análise antropológica, investigando o papel da analogia como um modo de fazer
sentido do material etnográfico e acautelando contra a assimilação fácil do que é
desconhecido ou diferente naquilo que é esperado e similar (o que é tomado como
"exploração"). Sugere-se que é nessas dissonâncias e diferenciações que reside a antropologia.
Palavras-chave: Ciência; Tecnologia; Natureza; Amazônia; Modelagem Climática.
vi
ABSTRACT
This dissertation is about the Large Scale Biosphere-Atmosphere Experiment in Amazonia
(LBA), an international multi-disciplinary scientific endeavour aimed at assessing the role of
the Amazon forest in the global carbon cycle. Taking three ethnographic situations - the LBA
as presented on the LBA website and as observed in the central LBA offices, climatic
modeling, and an expedition to a research site near São Gabriel de Cachoeira (Amazonas) - it
explores the way in which knowledge is organized, and the ways in which the world can be
‘represented’. It suggests that there is a “complicity”, in the sense of a collusion to create
something paradoxical or unthinkable, to the relations elicited between the scientific
researchers and their object of study, and the anthropologist and theirs. It proposes ‘humour’
and ‘uncertainty’ as crucial aspects of anthropological analysis, and explores the role of
analogy as a way of making sense of ethnographic material, cautioning against the easy
assimilation of what is unknown or different into what is expected and similar (which is taken
as “exploitation”), and suggesting that it is in this dissonance and differentiation that
anthropology resides.
Key-words: Science; Technology; Nature; Amazon; Climatic Modeling
vii
SUMÁRIO
Agradecimentos viii
Introdução 1
Capítulo 1 – O LBA 7
A História de Tota 7
Organizando Conhecimento: O Website do LBA 13
Organizando o Conhecimento: Os Escritórios do LBA 24
Movimento como Metáfora 44
Capítulo 2 – Modelagem Climática 85
Modelagem Global e Uma Maneira de Driblar o Caos 85
Modelagem Regional e Quanto Real 107
Here Be Dragons” 132
Capítulo 3 – Projeto Fronteiras, São Gabriel de Cachoeira 157
Área de Pesquisa, São Gabriel de Cachoeira 157
Uma ANT Deslocalizante 161
Os Micrometeorologistas e o Real Real Real 179
Cíclos Biogeoquímicos, Fisiologia das Plantas e Tudo Muda em Campo 202
A Perder de Vista? 232
Bibliografia 261
viii
Agradecimentos
Eu queria agradecer CNPq, que me deu uma bolsa por 24 meses, a o Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ, pela oportunidade de estudar la.
Agradeço Carla e Isabel na Biblioteca, Tânia e Bete na Secretaria, Carmen e Fabiano no
Xerox, e Roberto e Miguel na restaurante.
Agradeço os professores do PPGAS, Eduardo Viveiros de Castro, Marcio Goldman,
Aparecida Vilaça, Carlos Fausto, Giralda Seyferth, Lygia Sigaud and Federico Neiburg;
também Tania Stolze Lima, na UFF. Eduardo Viveiros de Castro e Marcio Goldman estão
influências especialmente fortes no meu trababalho, e queria agradecer Eduardo Viveiros de
Castro pela otima orientação que ele me deu.
Agradeço todos os participantes do Núcleo de Transformações Indígenas (NuTI) e
Núcleo de Antropologia Simétrica (NAnSi), organizado por Eduardo Viveiros de Castro e
Marcio Goldman. Agradeço as “Marylinianas”, Luciana França, Ana Carneiro, Paula Siqueira
and Marina Vanzolini, por todas nossas conversas. Também quero agradecer todas minhas
colegas- Beth Albernaz, Bruno Marques, Indira Nahomi, Bianca Arruda, Caco Xavier,
Fernanda Chinelli, Gabriel Banaggia, Isabel Ferreira, Laura Lowenkron, Nina Paiva Almeida
e Eduardo Dullo. Eu especialmente agradeço os meus amigos Julia Sauma, Jack Shepherd,
Indira Nahomi, Bruno Marques, Luciana França, Andrea Lacombe, Salvador Schavelzon,
Virna Plastino, Nicolas Viotti, Bea Matos, Edgar Bolivar, Eduardo Dullo, Leonardo Campoy,
Vitor Grunvald, Anne-Marie Colpron, Laura Lowenkron, Flávio Gordon, Paulo Maia, Gabriel
Banaggia, Fernanda Chinelli e Chico Araujo. Todos eles numa maneira ou outra me ajudaram
e apoiaram durante o meu tempo aqui. Queria agradeçer a minha familia, Anita, Anthony,
Carsten e Francesca. Words fail me.
Eu estou enormamente grata aos todos os membros e pesquisadores do LBA, qu foram
tão abertos e amigáveis comigo. Essa dissertação é testemunho a sua creatividade.
1
INTRODUÇÃO
“Não sei bem como formular isso. Mas todos nós temos dúvidas quanto à utilidade de nosso próprio trabalho,
quanto ao público a que ele se dirige; todos nos perguntamos se o que estamos fazendo vale alguma coisa. Na
verdade, acho que a depressão e a dúvida que acompanham qualquer trabalho são realmente criativas, pois
elas nos fazem escutar outras pessoas. Se voé demasiado confiante, se tudo o que você consegue ver é você
mesma, você termina sendo uma barreira, fechada à comunicação. Por isso, ter estado aberta para esse outro
domínio significou que eu estava sempre jogando as certezas antropológicas contra as incertezas feministas ou
viceversa. Isto se tornou realmente importante para mim, porque os dois pólos da teoria antropológica e da
etnografia, estes se consomem mutuamente, eles s eentre-canibalizam. Por isso, um terceiro pólo...” (Marilyn
Strathern, Interview, 1999b)
““Curiouser and curiouser!” cried Alice (she was so much surprised, that for the moment she quite forgot how
to speak good English).” (Lewis Carrol, Alice in Wonderland 1992 [1865])
Em junho, julho e agosto de 2007, passei 9 semanas acompanhando alguns dos
pesquisadores e membros do 'LBA', “The Large Scale Biosphere-Atmosphere Experiment in
Amazonia” ou, em português, “O Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na
Amazônia”. Em junho e julho, passei quatro semanas no escritório central do LBA, em
Manaus, e duas semanas em Santarém. Em agosto, fui com a equipe do “Projeto Fronteiras”
do LBA para uma área de pesquisa no Parque Nacional Pico da Neblina, 67 km de São
Gabriel de Cachoeira.
O LBA é um projeto científico internacional que envolve pesquisadores do mundo
inteiro. Em linhas gerais, foi concebido como um projeto de pesquisa científica internacional
e multidisciplinar para tentar revelar o papel da floresta amazônica no efeito estufa e no ciclo
global de carbono e desenvolver técnicas para a gestão sustentável da região amazônica.
Trata-se de um projeto brasileiro gerido pela INPA
1
, iniciado em 1998 com o apoio
(financeiro logístico e intelectual) da NASA
2
e da Comissão Européia. Em 2005, o contrato
formal entre o LBA e a NASA terminou. Interessei-me pelo LBA quando o meu orientador
me mostrou o website e sugeriu que eu estudasse o LBA para o meu doutorado. Em pesquisa
1 Instituo Nacional de Pesquisas da Amazônia - Brasil
2 National Aeronautics and Space Administration - USA
2
preliminar, constatei que o LBA tinha construído torres meteorológicas ao longo de toda a
floresta amazônica para medir o fluxo de moléculas de carbono entre a atmosfera e a
biosfera (a floresta). Nutri certa expectativa com a idéia de subir até a copa das árvores da
floresta amazônica brasileira (que eu nunca tinha visto), atrás dos pesquisadores, enquanto
estes fizessem sua “Big Science” - ciência de alto investimento. Eu tinha visões de bandos de
macacos e papagaios sobrevoando-me. Decidi que eu estudaria o LBA durante o meu
mestrado.
A minha pesquisa é etnográfica. Cheguei no escritório central em Manaus em junho de
2007 e me apresentei ao Dr Flávio Luizão, o representante do INPA no LBA, a quem eu tinha
me apresentado por email anteriormente. Flávio, gentilmente, apresentou-me ao resto dos
pesquisadores e administradores e, depois disso, ele me deixou à vontade. No escritório do
LBA em Santarém, novamente, permitiram-me circular livremente. Todos os dias no
escritório, eu ia para as salas, sentava-me ao lado de um pesquisador ou administrador e
perguntava o que eles estavam fazendo. Gravei digitalmente todas as conversas que pude, fiz
anotações quando eu não podia e tirei uma quantidade enorme de fotografias. Apesar de o
meu tempo com eles ser curto para a realização de um trabalho de campo, enxerguei uma
panóplia de disciplinas científicas, manobras logísticas e processos administrativos. Escalei
cinco torres meteorológicas diferentes carregadas com muitos tipos de equipamento de alta
tecnologia. Com os modeladores climáticos, aprendi sobre a dinâmica de fluidos e o perigo de
ter 'bugs' no seu programa de computador; com os micrometeorologistas, aprendi sobre os
métodos estatísticos de cálculo de fluxo de carbono e sobre o perigo de ter aranhas no seu
equipamento meteorológico. Com o equipe de LBA Sistema de Dados, aprendi sobre a
entropia no armazenamento de dados e fui levada a olhar o supercomputador que, trancado
em uma sala super refrigerada, emitia um zumbido um pouco perturbador. Assisti o
desmantelo de um analisador infra-vermelho de gás e a construção de uma base de dados.
Falei com financiadores, lojistas e secretários, estudantes de mestrado e doutorado, oficiais do
exército e cientistas especialistas. Quando fui com a equipe de pesquisa "Projeto Fronteiras"
para São Gabriel de Cachoeira, acompanhei os pesquisadores no cotidiano do seu trabalho e
dormi numa rede no meio do mato onde fui infestada por carrapatos. Vi apenas três macacos.
Vi o micro do ‘Big Science’.
Isto pode ser chamado de “observação participante”, apesar de eu ter raramente
participado de maneira direta e ser tudo menos uma observadora silenciosa. Minhas
3
infindáveis perguntas tornaram-se alvo de piadas entre os pesquisadores. Mas, este ponto é
importante: passei grande parte do tempo confusa quanto à questão de saber se eu
compreendia o que me era pacientemente e repetidamente explicado. Meus métodos
etnográficos, se podem ser chamados assim, eram nada mais do que "seguir os atores", a regra
geral metodológica de Bruno Latour (que, intencionalmente "banal", é muito mais do que
isso). Eu acompanhei os "atores" onde eu pude e procurei entender, insistentemente, o que
estava acontecendo e como acontecia mas era totalmente consciente da minha falta de
conhecimento na tentativa de fazer isso. Eu percebia que o sentido que eu ia fazer de tudo
aquilo não seria exatamente o mesmo sentido que os pesquisadores fariam, tampouco seria
exatamente o meu sentido próprio. Eu não tinha como me relacionar com os cientistas do
mesmo modo como eles se relacionavam uns com os outros dentro das suas disciplinas - e
esta era a relação fundamental, porque eu estava interessada em compreender sua "cultura da
ciência" (como disse Wagner 1977) não a sua "ciência da cultura". Mas eu comecei a ver que
o próprio fato de eu não estar entendendo talvez pudesse ser o elemento fundamental ou mais
revelador da nossa relação. A minha incerteza é o que abriu o espaço conceitual para eu tentar
entender antropologicamente o que eles estavam fazendo e me dizendo, isto é, para que eu
pudesse imaginar a "cultura" que eles não estavam imaginando para eles mesmos e, ao mesmo
tempo, revelar a "cultura" que sei que eu tenho de maneiras que eu nunca tinha imaginado.
Minha regra geral tornou-se "siga os atores e não pressuponha nada".
Essa regra pode ser complementada pelo fato que, muitas vezes, eu tive que rir de mim
mesma. Eu sempre estava um passo atrás e, mesmo assim, tropecei várias vezes. Isso
também se tornou um leimotif no modo como comecei a pensar meu trabalho de campo.
Tento demonstrar na dissertação que o senso de humor é uma parte crucial da prática
antropológica. Isso não quer dizer que tudo é uma piadae,muito menos, que tudo é uma piada
às custas de uma ou outra pessoa. Humor, em vez de ironia, reside na "perplexidade
compartilhada" (Stengers 2000a [1993]: 66), é uma relação de cumplicidade. Isto é, para
existir uma relação entre pesquisador e seus "nativos" que tenha possibilidade de revelar o
que é importante para eles ou elas, e não apenas aquilo que é importante para si mesmo,
trabalho a ser completado para levar o seu nativo a sério, você tem que aprender como levar
você mesmo menos a sério. Senso de humor como um conceito pode ser refratado e usado de
formas diferentes. Exploro na dissertação o uso que Isabelle Stengers propõe para o conceito
de senso de humor em seu trabalho, que está baseado numa distinção Deleuziana. Mas, além
das refrações conceituais, sustento que rir com alguém, e não de alguém, possa ser
4
considerado um momento cotidiano, no fundo, totalmente antropológico.
Mencionei a palavra "cumplicidade". Uso a noção de "cumplicidade" no título e no
texto para tentar capturar o senso de uma engrenagem comunicativa mútua que pode produzir
alianças e conceitos estranhos, aparentemente paradoxais ou "impensáveis". Como observa
Viveiros de Castro "(“parafraseando” Rudolf Pannwitz via Benjamin) ... ... uma boa
tradução...é uma que permite que os conceitos alienígenas deformem e subvertam a caixa de
ferramentas conceitual do tradutor de modo que a intenção da língua original possa ser
expressa na língua nova"(2004: 5 tradução minha). Os "monstros" que permeiam o meu texto
- como cyborgs e fractais são, aqui, a prole desse tipo de tradução antropológica e eles
também são noções científicas e matemáticas. Um processo de “tradução” nesse sentido nem
sempre produz aberrações evidentes; pensando na maneira que os dados do LBA circulam
incessantemente, eu faço uso dessa idéia como metáfora para propulsar o meu texto. Não é
uma metáfora que os pesquisadores do LBA utilizariam, mas em certo sentido, pertence a
eles, e eu a utilizo para estender a minha compreensão a respeito deles. Tradução, no entanto,
pode facilmente ser utilizada para outros fins - quando "traduzir" significa "reduzir para o
mesmo", eu sugiro que "exploração" e não “cumplicidade” estão ocorrendo. Isso é algo que o
título da minha dissertação procura demarcar. A analogia que eu crio no título - entre
cumplicidade "científica" e "etnográfica" - pode facilmente tornar-se uma exploração, a não
ser que nunca se presuma que qualquer cumplicidade que procuro revelar seja
necessariamente indicativa de semelhança. Esse é o eixo substrato da minha dissertação,
moldado em formas convolutas pelo fato de que eu sou uma antropóloga estudando cientistas.
Eu aprendi a tomar cuidado com os sinônimos óbvios: “Here be Dragons”
3
.
Para explicar um pouco mais como deve ser aparente, eu não sou brasileira e estava
morando aqui há somente três anos. Eu sou britânica e a minha formação acadêmica é
genética, estudos em evolução humana e ecologia humana. Antes de chegar no Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social no Museu Nacional, UFRJ, eu não sabia da existência
da antropologia da ciência. Depois, eu percebi que as dúvidas amorfas que senti quando
estudava genética na formação poderiam ser o começo de alguma coisa interessante. Estudar
antropologia tem sido (e continua ser) uma revelação para mim, em vários sentidos. Se esta
dissertação, às vezes, parece ingênua, ao atribuir novidade a ou ficando entusiasmada com
3 “Here be Dragons” é uma frase usada pelos cartógrafos para indicar áreas não-exploradas ou perigosas.
5
idéias que são antigas para alguns leitores, pode ser por isso. Mas o entusiasmo talvez seja
sempre melhor do que o cinismo justamente porque permite que idéias velhas sejam
repensadas para prolongar nossa herança de maneiras novas e inventivas, como poderia ter
colocado Stengers.
Esta dissertação é o primeiro resultado desse recomeço. Se é interessante ou não, é
algo a ser conferido. É uma dissertação que poderia ser provavelmente classificada como um
trabalho de STS (estudos de ciência e tecnologia) porque toma como foco um projeto
cientifico. No entanto, explora pouco do cânone de literatura do STS. Tentando pensar o meu
trabalho de campo com o LBA, recorri, principalmente, aos quatro autores que me parecem
oferecer algumas das maneiras mais interessantes e cativantes de pensar sobre o que nós
fazemos como antropólogos que estudam ciência e o que a ciência poderia ser. Estes quatro
autores - Roy Wagner, Bruno Latour, Marilyn Strathern e Isabelle Stengers - foram também
os quatro autores que ocuparam um lugar mais visível nos meus estudos anteriores ao trabalho
de campo. Esta dissertação, portanto, também é uma tentativa de galvanizar o que eu aprendi
usando minha etnografia. Esses quatros não são os únicos que eu uso; notavelmente, ao longo
da dissertação eu dialogo com Martin Holbraad e, especificamente, com um desafio que ele
recentemente colocou ao Latour. Não tenho dúvidas que que não consegui explorar
plenamente a complexidade do trabalho do Holbraad. Tornou-se claro para mim que é fácil
imitar as idéias de alguém, mas muito mais difícil é realmente colocá-las em ação no próprio
trabalho. O modo como fiz isso eu chamaria, novamente, de uma espécie de cumplicidade.
No primeiro capítulo, eu tento explicar o que o LBA "é" como uma totalidade.
Examino a maneira como o LBA parece organizar seu conhecimento da Amazônia e a
maneira que eu, como antropóloga, organizo meu conhecimento do LBA. O LBA como
apresentado no website e o LBA como eu o descrevo e o experencio etnograficamente
parecem em contradição de modo vertiginoso. Como melhor descrevê-lo? O que fazer com
todas essas partes diferentes e como relacioná-las a uma descrição holística? A justaposição
de todos esses pontos de vista revela que as metáforas elas mesmas de “pontos de vista” e
“partes e todos” são dispositivos conceituais insuficientes. Sugiro que uma metáfora melhor
poderia ser localizada na maneira pela qual os dados do LBA está em movimento irreduzível
e constante. Isso também oferece uma maneira para propulsar toda a dissertação.
No segundo capitulo, eu me desloco em direção ao trabalho dos modeladores
6
climáticos do LBA, nos seus escritórios em Manaus. O que eles estão fazendo e como? A
dificuldade que eu encontro ao tentar entender o que eles estão fazendo me faz propor que eu
não posso tomar como dado que quando falamos nos mesmos termos estamos falando do
mesmo modo. Essa percepção, uma vez reconhecida, parece banal, mas reconhecê-la é
crucial.A partir disso, eu começo a repensar o problema de o que fazer com uma antropologia
“anti-representacional” quando os seus nativos falam em “representação”.
No terceiro capítulo, eu passo para a expedição Projeto Fronteiras, que eu acompanhei
na área de pesquisa e na torre perto de São Gabriel de Cachoeira. Eu exploro o trabalho e a
pesquisa realizados pelos micrometeorologistas, fisiologistas de plantas e pesquisadores em
ciclos biogeoquímicos. Tento explorar de que maneiras eu posso entender o que os
pesquisadores estão fazendo e o que pode significar pensar numa maneira unificada que
retém a diferenciação que as suas praticas traçam. Exploro suas relações com o mundo que
eles estão tentando representar e, ao fazer isso, questiono novamente o que pode significar
“representar” e “o mundo”. Incerteza emerge em lugares inesperados. Em todos os três
capítulos, tento implicitamente e explicitamente sugerir analogias entre o trabalho dos autores
que eu descrevo, a pesquisa dos membros do LBA, e a antropologia na qual estou
trabalhando. São para essas analogias e para a própria noção de analogia mesma como um
movimento de significação que eu me dirijo no capítulo final.
Aprendi muito durante o meu trabalho de campo e lamento não ter sido capaz de
incluí-lo ainda mais na dissertação. Houve muitos pesquisadores e administradores que
sentaram comigo por horas, falando de maneira fascinante sobre o que eles fazem e, se eu
pudesse, gostaria de inclui-los todos. O fato de eu não ter sido capaz é um sinal da minha
própria incapacidade e não um reflexo daqueles que eu não incluí. Portanto, espero que
fiquem claras as razões para minha seleção etnográfica. Não pretendo explicar tanto alguma
coisa como tentar interessar ao leitor tanto quanto os pesquisadores com quem eu passei meu
trabalho de campo interessaram a mim...“curiouser and curiouser”.
7
CAPÍTULO 1: O LBA
A história de Tota
4
“Aí você vai entender mais ou menos porque que é a... qual é a hipótese, qual é a lógica que a
gente... porque que a gente fez o trabalho.
Então, a principal motivação do trabalho é a seguinte: até um tempo, na década de noventa,
oitenta e noventa, mais ou menos...depois que detectaram a subida de CO2 na atmosfera (...) a
primeira vez que realmente foi reconhecido que as florestas têm um papel importante nesse
aumento de CO2 também. Não somente a queima de combustível fóssil, mas também a
biosfera tem um papel muito importante. E uma maneira de você separar o quanto... o
aumento do CO2 atmosférico é você medir na biosfera, né. Quanto a biosfera tá trocando com
a atmosfera. você separa o efeito antropogênico do homem na queima de combustíveis
fósseis e vê o metabolismo dela, como ela troca com a atmosfera.
Quando o ar passa sobre uma área rugosa, como árvores, essa irregularidade da superfície no
topo das árvores provoca turbulência, movimentos circulares de ar, né. Então. Esses
movimentos (...) eles podem entrar, trazer CO2 de dentro da floresta e levar pra cima, e trazer
de cima e levar pra dentro também (...) Então. Primeiro a coisa mecânica, o movimento do ar,
né? As trocas acontecem na atmosfera de forma mecânica, ou seja, provocadas pelo vento né?
(...) Então o quê que acontece? O CO2 baixo lá em cima entra na floresta e o CO2 rico é
jogado pra cima. Então existe uma mistura turbulenta provocada pelo vento.
Só que tem o papel biológico, qual é o papel biológico? Tem a fotossíntese e tem a respiração,
biologicamente falando (...) A fotossíntese atua com a luz, ela acontece durante o dia. Então
durante o dia os estomatozinhos
5
das folhas abrem, entra CO2, sai a água, entra a luz e ali ela
produz o alimento e o açúcar dela. Então. Onde ela vai aumentar a grossura da árvore e
acumular CO2. Então biologicamente a função da floresta ela é aumentar de tamanho, ela vai
4 O extrato aqui é tirado duma conversa eu tive com Julio Tota, um pesquísador do LBA. Eu editei a conversa
para evitar repetição, mas fiz todo esforço sempre para manter o senso original.
5 “Estomatas” são pequenos buracos encontrados nas folhas que permitem a entrada de CO2 e a saida de H2O.
8
crescer.
Então, esse é o... um padrão típico de... de... comportamento biológico
6
. Então. Aqui é a
hora do dia, aqui é a concentração de CO2 nas florestas aqui da Amazônia. Então. Durante a
noite você tem um acúmulo de CO2, e durante o dia cai, abaixa bastante, e depois começa a
aumentar até começar a outra noite. Então. O metabolismo vegetal aqui na Amazônia
funciona assim: durante o dia o papel fundamental da fotossíntese em aproveitar o CO2
disponível no ar e produzir o alimento dela, certo. E depois aumentar a estrutura dela, da
vegetação, aumentar os troncos, os galhos, isso tudo. E à noite ela respira. Não ela mas
também o solo. Então 70% do que é jogado de concentração de CO2 vem do solo também. Do
metabolismo do solo, microorganismos que decompõem as matérias mortas, essas coisas
todas, folhas.
6 Ver Figura 1
9
Figura 1: Grafico que Julio Tota usou para me demonstrar o ciclo diurnal de CO2.
10
Mas porque carbono especificamente?
O carbono porque ele é o gás principal no mercado. Apesar de ter quantidades muito
pequenas na atmosfera ele tem um efeito muito grande como um gás de efeito estufa (...) O
CFC tem um efeito direto no ozônio. Então. Ele quebra as moléculas de ozônio. Sem o ozônio
não haveria vida aqui na Terra. O CFC na época... descobriram uns buracos no ozônio né, e
vai tentar explicar porque que causava. E verificaram que era o aumento desse CFC. É
clorofluorcarbono. Mas é pequeníssima quantidade, ele não interage como efeito estufa, ele
interage mais destruindo as moléculas de ozônio, tá...
Então. A primeira coisa foi que foi detectado que depois da revolução industrial, que era
duzentos e oitenta partes por milhões por volume, hoje em dia tem trezentos e oitenta.
Aumentou 50%. Qual é o efeito direto? Se você plotar, se você visualizar, o aumento de
temperatura global está intimamente relacionado com o aumento de CO2 na atmosfera. Pode
ser um efeito disso, e do aquecimento global, que realmente é o aumento da concentração de
CO2. É quase que comprovado isso. Tem evidências muito fortes de que isso está
relacionado.
Então, para CO2 a importância foi que com o aumento de CO2 na atmosfera, o aumento de
temperatura global, o aquecimento global, estão relacionados, por isso que foram feitas
medidas no mundo inteiro, né. Aí a motivação de colocar torres
7
no mundo inteiro, nos
principais biomas. É ver como é que esses biomas funcionam com a atmosfera em troca de
CO2, porque o CO2 parece ser o causador principal do aumento de temperatura. As duas
curvas são muito parecidas. Aumento de temperatura global, aquecimento global, e aumento
de CO2 na atmosfera. Pra não botar a culpa na biologia, ou seja, os ecossistemas, você tem
que separar emissão do homem com combustíveis fósseis e trocas da biosfera, pra isso que as
torres funcionam, pra cada bioma você ver como os biomas funcionam com a atmosfera, e
separar os dois termos né.
Bom, a primeira hipótese é a seguinte: (o mundo pode ser separdao em biomas)... no
7 Medidas do fluxo de carbono entre a atmosfera e a biosfera são feitas usando equipamento afixado em torres
meteorológicos montados ao longo da floresta Amazônica
11
hemisfério norte (...) as florestas têm uma sazonalidade muito forte. As folhas caem. Então
sabiam mais ou menos que quando tem folha tem mais fotossíntese, então é... emite mais. E
quando você não tem folha na verdade, é... quando tem mais folha você tem mais fotossíntese,
na verdade. Então. Quando caem as folhas no período sazonal no hemisfério norte, as
florestas
tem tronco né, não tem mais folhas. A idéia parece que é de ele é um emissor,
no hemisfério norte Nesse bioma dos trópicos não caem as folhas. Todo tempo as folhas tão
aí. Pouquíssima quantidade cai, e se cair repõe, e fica uma coisa mais ou menos em equilíbrio.
Então. O objetivo, a motivação principal do LBA foi ver o papel da Amazônia, porque é a
maior área de floresta tropical. E ver como esse bioma interage com a atmosfera para ou
absorver ou emitir quantidades de carbono.
Então, até um tempo atrás acreditava-se que o ecossistema amazônico estava em equilíbrio,
então as trocas eram zero. Então não aumentavam de tamanho as florestas e tal. Hoje a gente
ta vendo que não é tanto assim né, pode absorver(...) tem vários trabalhos por exemplo aqui
tem um de Malhi e Grace
8
(...)foram os primeiros trabalhos aqui na Amazônia (...) E eles
demonstraram que tem uma grande absorção de CO2 aqui. Em 1996 e 1998. eles fizeram
medidas em Rondônia e eles fizeram medidas em Manaus. Eles foram tipo... é... um primeiro
trabalho, a primeira motivação do LBA e mostraram que tem um papel importante. As
florestas tropicais aqui da Amazônia têm um papel muito importante no balanço de carbono...
[Mas] qual que são (...) as discussões em cima do trabalho deles? Porque eles fizeram um
trabalho muito curto o período. Então eles poderiam ter pegado uma fase do clima que fosse
favorável da floresta absorver. Então esse metabolismo vegetal ele tem vários ciclos. Tem o
ciclo diurno, tem o ciclo sazonal, interanual. A floresta ela responde às variações do clima.
Quando você tem por exemplo eventos de escala interanual, como o El Niño, La Niña, a
floresta tem uma resposta a esses eventos. E como o trabalho deles foi muito curto, alguns
dias só, então muitas pessoas falavam: se você medir a longo prazo, certo, e der o mesmo
resultado... Em essência o que eles mostram é que realmente a floresta absorve, é um
absorvedor de CO2 da atmosfera. Só que foi um absorvedor muito grande na década de
noventa. Como absorvedor grande, apesar de desmatamento e tudo isso, a floresta em si é um
absorvedor, mas muito grande. Os valores deles ficavam entre quatro toneladas de carbono
8 Malhi, Y and Grace, J “Tropical Forests and Atmospheric Carbon Dioxide” Trends in Ecology and
Evolution Vol 15, Issue 8 Aug 2000 pp 332-337. Malhi and Grace completaram as medidas em 1996, o
publicaram os resultados deles em 1998.
12
por ano, por hectare por ano (...) mas biologicamente esse valor não é sustentável. Porque se
você coloca quatro toneladas, cinco toneladas de carbono por hectare por ano, as florestas elas
dobrariam seu tamanho em trinta e cinco anos, algo que biologicamente não acontece, não é
aceitável. Então a comunidade internacional fizeram: ah, vamos fazer um experimento de
longo prazo com cooperação internacional, que a gente vai tentar abordar esse problema, se
realmente as florestas atuam como fonte ou absorvedor de carbono. Isso foi o LBA.
Então, o foco do LBA é tentar ver o papel que a floresta Amazônica tem (...) Se vocé tirar
toda essa floresta, vai ter um impacto, não na clima regional, mas quem sabe,
provavelmente na clima global tambem.
Estou te dando a história em termos de balanço de carbono, né?
13
Organizando o conhecimento: O website do LBA
Incumbi-me de realizar, neste capítulo, a tarefa de tentar descrever etnográficamente o
LBA - “The Large Scale Biosphere-Atmosphere Experiment in Amazonia” ou, em português,
“O Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia”. Escolhi começar esta
descrição com a descrição de outra pessoa em primeiro lugar, porque esta é uma maneira
interessante de introduzir o LBA, e secundariamente porque como Starthen mostra,
“conceitualizaçaor é inevitavelmente reconceitualização” (1992b: 75)9. Minha descrição
funda-se necessariamente naquilo que os pesquisadores do LBA me disseram, e no que
observei eles fazerem. Mas isso significa, é claro, lidar com uma lâmina de dois gumes – corta
dos dois lados. Explorarei isto durante o capítulo. Este outro alguém não é apenas qualquer
um. Tota é um pesquisador no LBA. Ele estuda o fluxo horizontal de gás carbônico ao longo
do dossel (copas das árvores) da floresta Amazônica, uma forma relativamente nova de tentar
acessar o balanço total de gás carbônico na Amazônia. O seu projeto é um entre centenas de
outros em curso no LBA, envolvendo muitas disciplinas diferentes e locais de pesquisa
separados geograficamente, com que tive contato há pouco. Assim, minha tarefa parece
impossível. Como contabilizar esta miríade de uma forma coesa, quando apenas vimos uma
parte dela? Onde começar? Onde terminar?
A história de Tota é apenas uma das diversas descrições do LBA com a qual poderia
começar. Assim como ele destaca, a sua história é a do LBA no que tange o equilíbrio de gás
carbônico. É uma história específica. Nela, vemos a lenta acumulação de conhecimento
científico sobre o equilíbrio de gás carbônico na atmosfera, a compreensão induzida pela
certeza provada do que é e o que não é ‘biologicamente aceitável’ de que as hipóteses
anteriores sobre o equilíbrio de gás carbônico na Amazônia podem ser falhas, e o subsequente
incentivo para um projeto científico, o LBA, para investigar esta lacuna em nosso
conhecimento. A narrativa é linear, racional e aditiva, cada peça adiciona à próxima, da
mesma forma, talvez, que na concepção do conhecimento científico como algo construído a
partir de si mesmo. Mas da mesma forma que vários (por exemplo, ve Kuhn 1962, Galison
1999 [1997]) demonstraram, a ciência pode ser mostrada como um tipo particularmente
descontínuo de tentativa. Uma história diferente seria contada por alguém na seção
9 “conceptualization is inevitably reconceptualization”
14
administrativa do LBA, ou que pesquisa os sistemas hidrográficos da Amazônia. Assim, ao
invés de tentar contabilizar todas as possíveis descrições que podem ser feitas, eu gostaria de
descrever como esta multiplicidade de pontos de vista se apresentaram a mim, e sugerem
como podemos pensar por esta situação etnográfica, a tenacidade dos problemas que cria e a
viabilidade das soluções que permite. Eu estou fabricando uma descrição do LBA na qual
minha visão também tem uma parte, (não menos importante, porque a metáfora muito cara de
visão que uso forma parte de problemas e soluções que negocio). Espero alcançar dois
objetivos ao fazer isto. O primeiro é demonstrar o que considero ser algumas das
características singulares do LBA, em termos de organização do conhecimento, e ao fazer
isto, algumas características singulares da forma como nós antropólogos organizamos nosso
conhecimento sobre o conhecimento dos outros. Em segundo lugar, espero também que
apesar da descrição ser parcial e dirigida neste sentido, eu selecionei material etnográfico
bastante para que uma impressão do LBA emerja para meus leitores, independentemente do
uso que dou ao material analiticamente. Como Strathern escreve, “as etnografias são as
construções analíticas dos pesquisadores; as pessoas que eles estudam não são. É parte do
exercício antropológico reconhecer o tamanho da sua criatividade maior que qualquer análise
particular possa englobar” (1988
a
:xii)10. Assim, apesar de criar muitas das dificuldades
particulares causadas pela sensação de que havia sempre mais para saber, e que a descrição
nunca seria completa, gostaria também que permaneça claro que isto é mais que um
testamento da capacidade inventiva e da criatividade das pessoas com quem conversei do que
o lamento da imposibilidade da tentativa antropológica. É somente se alguém assume que o
ponto de chegada desejado é a existência de um todo que se mostra disponível para ser
conhecido absolutamente, que descrições parciais parecem faltando.
Uma das visões acerca do LBA com a qual gostaria de começar é aquela apresentada
pela página da internet11. Os pesquisadores com quem conversei usam a página de maneira
intensa, inclusive referindo-se a ela quando os defrontava com algumas das perguntas mais
banais sobre a organização do LBA. Eu consegui conversar com apenas três pesquisadores,
Dr. Flávio Lizão, Laurindo Campos e Dr. Anônio Manzi, que parecem ter uma participação
direta no conteúdo da página, para além da pesquisa científica que está disponível nela em
forma de conjuntos de dados que podem ser acessados eletronicamente uma vez que você se
10 “ethnographies are the analytical constructions of scholars; the peoples they study are not. It is part of the
anthropological exercise to acknowledge how much larger is their creativity than any particular analysis can
encompass.”
11 http://lba,cotec.inpe.br/lba/?lg=eng (3 de julho de 2008)
15
torna um membro da “comunidade do LBA”, por meio da participação na pesquisa. Eu
gostaria de usar o site em conjunto com outras fontes similares para revelar uma certa imagem
do LBA. Espero revelar alguns contornos interessantes e relevantes para a forma como o LBA
inscreveu-se na internet e em suas publicações voltadas ao seu público; ou seja, a forma como
se torna disponível para o mundo de forma abrangente. Esta é uma visão particular do LBA.
Para a extensão na qual os criadores da página são parte do LBA, e para a extensão na qual a
visão do LBA volta-se para aqueles que não fazem parte dela, também é uma visão que o
LBA, como uma entidade particular, tem de si mesma como uma entidade distinta.
O primeiro ponto é que o LBA foi apresentado como uma totalidade. O que significa
dizer que ela é um projeto auto-compreendido com fronteiras que podem ser apresentadas de
acordo com certas características que definem (defining characteristics). De acordo com a
página na internet:
“O experimento da Bosfera-Atmosfera em Larga escala na Amazônia (LBA) é uma pesquisa
internacional conduzida pelo Brasil. LBA foi concebida para criar o novo conhecimento necessário
para compreender o funcionamento climático, ecológico, biogenético e hidrológico da Amazônia, o
impacto da mudança no uso da terra nestas funções, e as interações entre a Amazônia e o sistema
terrestre.”
Este objetivo pode ser dividido em duas questões, que “serão endereçadas por pesquisas
multidisciplinares, integrando estudos em ciências como a física, química, biologia e ciências
humanas:
- Como a Amazônia costuma funcionar como uma entidade regional?
- Como mudanças no uso do solo e climáticas afetarão as funções biológicas, químicas e
físicas da Amazônia, incluindo a sustentabilidade e desenvolvimento na região e a influência
da Amazônia no clima global?” (página web)
Assim o LBA é uma “iniciativa de pesquisa” cuja investigação baseia-se na
comprensão e integração do novo conhecimento acerca da Amazônia. Esta imagem pode ser
expandida usando outros recursos voltados para o público em geral. De acordo com o LBA
Folha Amazônica (Julho de 2004, ano 6, n. 12) uma newsletter anual impressa em inglês e
português e também disponível on-line, o LBA é o
16
maior programa de pesquisa do meio ambiente tropical de todos os tempos. Com o objetico
de aprofundar nosso entendimento do papel da Amazônia e da mudança no uso da terra no sitema
climático da Terra, e também, da influência das mudanças globais no funcionamento dos ecosistemas
amazônicos, o experimento da Biosfera-Atmosfera em Larga Escala na Amazônia (LBA), formado a
partir de vários grandes projetos científicos colaborativos nacionais e internacionais realizados
previamente, lida com sete grandes temas de pesquisa que são tratados de maneira munti- e
interdisciplinar.”
O LBA aqui pode ser visto como um corpo corporativo. É o resultado emergente de
vários outros projetos de pesquisa, e tem um objetivo compartilhado criar novo
conhecimento sobre a Amazônia como ditado por uma agenda de pesquisa compartilhada. A
entidade total que ela é pode ser definida assim em relação ao objetivo compartilhado e a uma
idéia do que constitui o ‘conhecimento’. Estas concepções compartilhadas por isso também
pressupõem uma certa forma de olhar para o objeto estudado, a Amazônia, que é o que
permitirá a integração destas multi-disciplinas. Isto implica que uma forma compartilhada
de entender o ‘objeto’ uma certa relação entre a Amazônia e o ‘sistema terrestre’ é
postulada, a saber, que as duas são separadas, mas relacionadas de uma maneira particular. O
objeto de estudos, a Amazônia, tem um papel no total do sistema terrestre. É uma parte dele
que contribui para o todo, mas também pode ser definida como algo em si mesma.
É interessante comparar a presença de sete grandes temas de pesquisa (ver figura 2)
com as formas de organização apresentadas pelo LBA (ver figura 3). A forma na qual elas se
prestam a serem esquematizadas implica um sistema subentendido de organizar o
conhecimento. O LBA, como um todo pode ser dividida em suas partes constituintes; a
Amazônia foi dividida em processos naturais constituintes. Os vários projetos em curso no
LBA cabem em cada tema de pesquisa como delineadas. Cada projeto ganha uma abreviação,
e cada projeto é assim classificado pela área de pesquisa que é aplicada AC-01, AC-02, etc
são os projetos de Atmosfera Química, PC-01, PC-02 são os de Clima Físico e daí em diante.
Estas duas figuras podem também ser comparadas com o mapa de Áreas de Estudo (ver figura
4). As formas nas quais estas três diferentes figuras se organizam sugerem que a informação
pode ser dividida em partes separadas, e depois relacionada, ou integrada, para dar um
resultado holístico. A Amazônia está dividida em processos, e inclui estes processos. o LBA
está dividida em seções administrativas, mas inclui estas seções. O Brasil está dividido em
locais de pesquisa, mas é a acumulação da informação geradas a partir destes locais de
17
pesquisa que permitirão o conhecimento sobre o Brasil como um todo.
18
Figura 2 Sete grandes temas de pesquisa do LBA (retirado do website,
http://lba.cptec.inpe.br/lba/?lg=eng Julho de 2008)
19
Figura 3 Estrutura Organizacional do LBA (retirado do website,
http://lba.cptec.inpe.br/lba/?lg=eng Julho de 2008)
Commission MCT
National Scientific
Committee
Training and
Education Committee
Organization and
Implementation
Committee
International Scientific
Committee
Operation
Sub-Committee
Data and Information
System Commitee
(LBA/DIS)
20
Figura 4 áreas de estudo do LBA (retirado do website,
http://lba.cptec.inpe.br/lba/?lg=eng Julho de 2008)
21
Esta esquematização organizada, então, apresenta o LBA como um projeto de pesquisa
unificado, com uma visão compartilhada do que a Amazônia é, e que pode ser dividida em
partes. Ela também apresenta o que ela estuda da mesma forma. A Amazônia pode ser
dividida em ‘temas de pesquisa’, que correspondem a processos ecológicos e metereológicos.
Que todos estejam ligados, implica que ali eles são todos parte de um todo, que somente
aparece como visível na integração destas partes. Áreas são separadas, para serem integradas
novamente mais tarde. O que é enfatizado, por exemplo, na figura 1 são os sistemas
ecológicos compartilhados; as relações entre eles são representadas por linhas que não são
especificadamente características de qualquer forma – nós não sabemos a partir do diagrama o
que estas relações podem ser, apenas que elas existem e servem para conectar os elementos
distintos.
Este processo de separar as partes de um todo previamente concebido no qual deve
haver uma concepção de um todo para dividir, em primeiro lugar – parece gerar um paradoxo.
A organização do conhecimento, desta forma, resulta nas relações entre as partes, assumindo
um papel mais importante, e isto, por sua vez, parece gerar uma imagem de que o todo que
difere de maneira essencial do original. É como se uma imagem cortada para depois ser
remontada, ao ser remontada gerasse uma imagem diferente do todo original. O todo de que
estes processos são parte é revelado não como simples e não esquematizado, ou seja, não
divisível desta forma de jeito nenhum. Concentrar nas relações entre as unidades discretas
revela uma imagem diferente da totalidade. Na verdade, justamente não parece revelar uma
imagem de totalidade. Deixe-me explicar.
Um pesquisador publicamente proeminente no LBA, Antônio Nobre, tem um artigo na
Folha Amazônica 2004, entitulado “Unravelling the mysteries of carbon in the Amazon: LBA
moves forward, but stumbles on complexities of ecosystems”. Sua descrição implica que este
processo de separar é quase infinítamente perpétuo: “quanto mais ecossistemas contrastantes e
dispersos por uma região forem estudados, mais riqueza de multiplas escalas e complexidade
destes ecossistems é compreendida, assim maior será a necessidade de aprofundar e alargar a
abordagem” (Nobre, 2004:5). Quanto mais eles são estudados, mais complexo o fenômeno
parece se tornar. Isto implica que cada processo contém mais variação interna do que
anteriormente suposto; e quão menores forem as peças que cada área de pesquisa possa ser
seprada, maior se tornará o total a ser estudado, o que acarreta em uma abordagem mais
22
expansiva para contabilizar as múltiplas relações. Nobre faz uma comparação com o corpo
humano: “Em uma comparação útil, considere que por mais que investiguemos os mistérios
do corpo humano, mais descobriremos sobre o microscópico e paradoxalmente
complexidades gigantes deste organismo, uma única espécie. Imagine, na Amazônia, a
magnitude de complexidade que os pesquisadores do LBA e alunos encontram em
ecossistemas com milhões de espécies, milhões de metros quadrados, tudo interconectado
com o meio ambiente em uma miríade de conexões, formando gigantescas redes…” (ibid).
Quanto mais as partes dos ecossistemas proliferarem, mais complexa cada pergunta de
pesquisa se torna, e fica mais difícil manter o mesmo esquema organizacional. Quanto mais
diferenciação começa a emergir com as áreas de pesquisa, mais a investigação tem que
extender-se e proliferar-se. As ‘ligações’ e ‘redes’ vão para o primeiro plano, as
configurações relacionais últimas daquilo que está sendo estudado, a Amazônia. E isto tem
um efeito fundalmentalmente disruptor da configuração da totalidade, deixando-a não bem
definida, mas com as extremidades abertas. O projeto do LBA “apesar do seu enorme impacto
e vastas descobertas, apenas começou a descobrir a ‘ponta do iceberg’ da complexidade
Amazônica” (ibid).
O conhecimento básico produzido é aquele em que o que está sendo estudado é melhor
descrito em termos de fluxos e redes, e isto também se reflete na forma como este
conhecimento em si será integrado pelas redes entre países, e a crescente diferenciação das
formas nas quais este conhecimento será acumulado metodologicamente. Como Flávio Luizão
escreve, na mesma publicação, a fim de contabilizar “uma região tão complexa quanto a
Amazônia”, o LBA deve realizar “estudos em diferentes escalas de tempo e espaço, usando
uma variedade de metodologias e instrumentos: de processos locais de mensuração, passando
por grandes transientes que cruzam uma região, usando uma rede de observações de fluxos de
gases e energia, tomados por sensores carregadors por torres de fluxo de metal, barcos,
balões, várias aeronaves e satélites” (Luizão, 2004:1). Mas as metodologias e experimentos,
ainda enquanto proliferam, devem ser ‘integrados’, ou seja, as relações entre eles devem ser
trazidas para o primeiro plano. O conhecimento produzido não é mais uma questão de sentido
auto-contido em qualquer área de pesquisa, mas assume a forma de fluxos entre esferas, e
mais a frente deve passar entre países e fazer-se presente em políticas públicas. As linhas
‘insignificantes’ entre as áreas de pesquisa devem assumir uma significância maior:
23
“o LBA combinará ferramentas analíticas inovadoras recentemente desenvolvidas, multidisciplinares,
desenhos experimentais em um poderosa síntese que criará novo conhecimento para endereçar
problemas e controvérsias de longa duração. o LBA fornecerá uma nova compreensão dos controles de
meio ambiente no fluxo de energia, água, gás carbônico, nutrientes e traços de gases entre a atmosfera,
hidrosfera e biosfera da Amazônia para ajudar a fornecer as bases científicas das políticas para uso
sustentável dos seus recursos naturais. A melhoria nas capacidades de pesquisa e de rede na e entre os
países Amazônicos associados com o LBA ajudarão a educação avançada e pesquisa aplicada em
desenvolvimento sustentável” (página da internet)
Por meio da integração e síntese, o todo da Amazônia se tornará visível ainda que
com um resíduo. A totalidade procurada nunca parece emergir inteiramente, mesmo quando o
conhecimento entre as áreas de pesquisa é integrado, ou seja, mesmo quando são as relações
entre as áreas de pesquisa que se tornam o foco de concentração. De fato, é focando nestas
relações que a totalidade parece ainda mais evasiva. A descoberta, por exemplo, da
importância de compostos carbônicos voláteis produzidos por plantas para a geração de
partículas de condensação de nuvens atmosféricas combinada com a descoberta da
importância destas partículas na dinâmica de chuvas e formação de nuvens “revolucionará o
que conhecíamos sobre a relação da floresta com a chuva” (Nobre, 2004). Ainda, e ao mesmo
tempo, este aspecto biológico da formação de droplets, ativados pela liberação destas
quantidades minutadas de compostos carbônicos de plantas “em ritmos pouco conhecidos
podem ser relacionados a processos internos das plantas e por isso não facilmente detectáveis
com medições simples” (ibid, grifo meu). E, ainda, a quantidade de chuva em um ecosistema
terá um impacto na quantidade de gás carbônico que pode ‘capturar’. Estas ‘descobertas’
integradas, então, têm o efeito de não somente gerar a sensação de que o que eles sabem sobre
a precipitação de chuvas e a formação de chuvas é mais ‘complexa’, mas também tem um
efeito em como eles olham para o ciclo carbônico, que tem um impacto na definição de cada
área de pesquisa. Este fato induz mudanças na metodologia da ciência em curso. Quanto mais
perto você olha, maior o todo parece se tornar. A relação entre as descobertas revelam mais as
relações entre a floresta e a chuva. Mas também revelam o quanto mais para se conhecer
sobre esta relação, e quantas outras relações podem ser desenhadas e reconfiguradas. O todo
parece ter sido cortado a partir de somente um “tip”.
O mapeamento da Amazônia como um todo, sua divisão em processos separados e,
então, sua reintegração, põe a questão da relação entre a totalidade anterior e a totalidade
24
'reintegrada' posteriormente. A primeira parece implicar na noção de uma totalidade que pode
ser capturada na soma de suas partes. A segunda implica na totalidade que sempre tem um
resíduo ou 'remainder' que continua desconhecido e parece ser provocado justamente pelo ato
de tentar conhecê-lo. Concentrando nas partes desta primeira totalidade, as relações
precipitadas por esta ação parecem conjurar uma imagem diferente daquela mesma totalidade.
Assim, uma totalidade simples e esquematizada torna-se uma 'totalidade' complexa e
relacional. Apesar disso, a idéia de que esta totalidade original pode ser dividida em partes
que se fixam em certas relações cumulativas e constitutivas para o todo não parece ser
questionada.
***
Organizando o Conhecimento: Os Escritórios do LBA
Agora descreverei algumas de minhas experiências e observações do meu trabalho de campo
realizado nos escritórios do LBA e pesquisa em locais em Manaus, Santarém e São Gabriel da
Cachoeira. Estas experiências diferem da experiência de conhecer o LBA pelos sites na
internet e publicações dirigidas pelo público consumidor porque elas são localizadas e
particulares. Além disso, pessoas argumentam (talk back). Parece que a relação entre o LBA
nas páginas da internet e o LBA como a experienciei em meu trabalho de campo evoca a
mesma sensação confusa da relação entre a Amazônia como uma totalidade concebível em
termos de partes recortadas de todos com relações implícitas, e a Amazônia como uma
entidade relacional e cada vez mais complexa. Apesar de, no site, o LBA ser separado em
níveis e partes distintas, que são de alguma forma refletidas espacialmente na sede do LBA e
em termos de segregação disciplinar, se torna difícil manter a assertiva de que estas se
combinam para gerar uma totalidade quando fazemos pesquisa etnográfica ali. Torna-se muito
difícil segurar este todo como totalidade. Tentar fazer isto me induziu a investigar as relações
entre as partes, mas este tipo de investigação por sua vez gera a sensação de que sempre
mais para saber, o que está de acordo com a impressão inicial de um todo coerente e
'particionável' ('partible').
25
Esta descrição pode ser tomada, então, como minha visão do LBA. Que isto seja uma
descrição necessariamente parcial é claro. Eu não vi nem participei de todas as seções do
LBA. Mas aqui, novamente, a sensação de que havia mais a ver e saber, de que a
complexidade que uma análise inicial implica é potencialmente expansível infinitamente, não
tem nada a ver meramente com as partes que eu não vi, mas com a relação entre as partes que
eu vi. Cada parte parece ser capaz de propor uma diferente visão do LBA, então a integração
como um processo de soma se torna impossível.
O edifício do LBA em Manaus, que é o centro das atividades administrativas da
entidade é no campus da INPA, relativamente longe do centro da cidade. É um edifício
modesto, consistindo de um corredor relativamente ermo, dividido (intencionalmente, talvez)
por um banheiro e cozinha que estão na metade do caminho. desesseis salas diferentes,
cada uma dedicada a uma diferente área de pesquisa ou administração. Em um lado da divisão
do banheiro, encontra-se o “Treinamento e Educação”, que lida com ‘material didático e
assistência científica’, a partir de onde Erika envia diariamente as newsletters de ‘treinamento
e educação’ e Caroline pesquisa e cataloga todo o material disponível a respeito do LBA, e no
qual uma escrivaninha para Tania, a jornalista do LBA, quem eu nunca vi. A sala
“Coordenação LBA/INPA” é o escritório do DR. Flávio Luizão, na qual ele orienta seus
alunos e coordena a pesquisa. À sua frente, está a “Ciclos Biogeoquímicos”, uma área
disciplinar na qual Luizão é especialista, e onde Sandra e Raquel analisam os resultados de
suas pesquisas diferentes no uso da terra e ciclos bioquímicos. Do lado oposto, está a
“Gerência”, o escritório do Dr. Antônio Manzi, de onde ele preside as operações de uma
maneira surpreendentemente ausente. Manzi é o gerente de implementação do LBA e
Coordenador do Escritório Central, e Luizão é o representante no INPA e no Scientific
Steering Committee do LBA. Eles são os dois mais senior membros que conheci no escritório
central de Manaus. Eu não consegui falar com Manzi por mais de 5 minutos no mês em que
estive lá, já que ele sempre parecia estar em trânsito entre reuniões e conferências que
aconteciam em toda parte no Brasil.
O escritório de Manzi está conectado diretamente à “Secretaria”, onde Márcia, a
secretária pessoal de Manzi, e Cherry atendem o telefone e respondem dúvidas. Ao lado, está
o “Auditório”, um grande quarto onde acontecem as apresentações, onde reuniões “inter-sala”
acontecem e defesas são realizadas, e o “Depto. Financeiro” onde Shelley e Joyce gerenciam
26
as finanças do LBA, interminavelmente empilhando orçamentos e enviando pedidos
ocasionais ou orçamentos para a instituição onde o financiamento do LBA acontece. o
“Depto. de Logística” onde Rubenildo e Ruth e sua equipe organizam a distribuição de
equipamentos, manutenção de veículos e toda manhã realizam uma espécie de leilão peculiar
(não monetário!) para as limitadas vagas nos carros para pesquisadores que desejam ir a
campo e não conseguem reservá-los a tempo, escrevendo seus nomes no quadro branco
dependurado na parede.
Também existe neste fim de corredor a “Informática”, que está sempre trancada e onde
os dois supercomputadores são mantidos em explêndido isolamento, constantemente
processando modelos matemáticos climáticos, e cercados de partes isoladas e do ruído do
poderoso sistema de ar condicionado desenhado para mantê-los em temperatura ótima. Ao
lado está a sala “BioGeo Informática”, onde Laurindo, Luciana e Mário se juntam e
apresentam diferentes tipos de dados científicos, tornando-os disponíveis na internet; e “LBA-
DIS”, que significa ‘LBA – Data and Information System', de onde Rubens, Barbara, Daniel e
outros enviam informação para a base de dados do LBA em São Paulo chamada Beija-Flor,
constróem bases de dados de pesquisadores participantes do LBA e respondem todos os
pedidos de apoio técnico de outros pesquisadores no prédio.
Do outro lado da divisão do banheiro/cozinha, então “Micrometeorologia”, onde
Jair, Marta, Carlos e Cleberson processam os dados brutos enviados das torres
metereológicas. Esta sala quando eu estava estava sempre cheia de malas de equipamento
micrometereológico quebrado ou (menos frequentemente) recentemente consertado, cabos de
longo cumprimento, placas de circuito e ferramentas de todo o tipo, assim como a próxima
porta, a sala “Laboratório de Instrumentação Meteorológica LIM”, na qual Fabrício, Hermes,
Paulo e a temporáriamente Susana (uma estudante Guatelmateca) calibraram e consertaram os
vários tipos de sensores e intrumentos que o LBA usava em seus experimentos. Jair me disse
que se todo o equipamento micrometereológico do LBA fosse reunido no prédio, não haveria
nenhum espaço para se mover. Do outro lado desta metade do corredor, está a “Modelagem
1”, que é um quarto onde os alunos de Mestrado e Doutorado do LBA podem estudar e
utilizar os computadores com acesso a internet; “Modelagem 2”, na qual Wagner, David
Addams, Rosa e Theo sentam-se na frente dos computadores trabalhando com modelos
climáticos; e finalmente “Modelagem 3” na qual Eduardo Leonardo, Paulo e Julio Tota
sentam-se a frente de computadores tambem trabalhando com modelos climáticos. Eu exploro
27
a diferença entre esses modelos mais adiante. Cada ‘sala’ tem acesso a computadores, todos
os computadores estão ligados em rede, gerenciadas pela equipe LBA-DIS. Cada ‘sala’
também tem uma atmosfera distinta, que merece comentário somente para notar que quando
você entra nela, eles sentem-se muito separados. Cada uma parece uma diferente unidade.
O prédio do LBA em Manaus é muito marcadamente dividido de acordo com as áreas
disciplinares, como descrevi. Estas áreas correspondem certamente a uma divisão em
partições; o tráfego de pessoas entre estas áreas está limitado a partir do que vi da rotida
cotidiana. A forma na qual o prédio está organizado novamente sugere a forma na qual o
conhecimento existe no mundo como divisível, mas de uma maneira em que cada parte
possui sua própria dinâmica. Estas ‘salas’ estão separadas no que pode ser imaginado como
esferas muito diferentes de conhecimento, então estas particões foram, de alguma forma, de
mútua exclusão. Aqueles que estudam ‘biogeoquímica’ se sentiriam tentados se sentassem em
um computador e pedissem para simular um cenário climático global, assim como um
modelador de clima global estaria incerto da forma como traçar as complexas reações
bioquímicas que estão levando sua amostra a mostrar uma certa porcentagem de nitrogênio. O
que parece estar contido em cada sala é diferente e separados tipos de informação que não se
misturam mas podem ser integrados. São diferentes 'ciências', e um dos aspectos distintivos
do LBA é o que é chamado na página de sua abordagem “interdisciplinar”. Mas ao fazer o
trabalho de campo me deparei com um experiência intrigante. No mesmo dia, me mostrariam
os programas de computador para modelagem climática e me demonstrariam as dinâmicas
dos flúidos, me explicariam a entropia inerente nos dados armazenados, alguém me
descreveria a logística por trás da dificuldade de se fazer os pesquisadores irem a campo com
apenas um veículo de trabalho disponível. Cada ‘sala’ que fui parecia conter um mundo
diferente, e assim, cada um poderia ser mostrado com uma diferente visão do que é o LBA. O
mais próximo que tentasse olhar, mais diferenciada internamente minha visão do LBA parecia
se tornar. Isto foi composto por formas notáveis nas quais esta rígida categorização por
disciplinas pareciam de um lado se complexificar, e de outro, confundir.
Certas categorizações usadas para distinguir estas ‘salas’ podem ser flúidas Julio
Tota por exemplo trabalha tanto com ‘observação’ micrometereológica no campo quanto com
modelagem baseada no computador; Eduardo Leonardo trabalha com seu time em muitos
tipos diferentes de modelos em um projeto chamado IMP – Intercomparative Modelling
Project (Projeto de Modelagem Intercomparativa) e está tentando criar modelos nos quais
28
combinar tanto simulações globais quano regionais; David Addams está apenas
temporariamente com o LBA, foi convidado para dar aulas para o novo doutorado em “Clima
e Meio Ambiente” que o LBA iniciou. Os pesquisadores geralmente vêm de históricos
diferentes: alguns são do INPA Flávio Luizão esteve presente quando a INPA se estabelecu
inicialmente; alguns fizeram pós-graduação com o LBA e continuam seu trabalho com sua
bolsa, como Fabrício; alguns estiveram apenas temporariamente trabalhando com o LBA,
como David e Susana. Alguns fizeram uma pós graduação em outro estado, especialmente
outros estados ‘Amazônicos’ como Pará, Rondônia e Alagoas. Muitas pessoas foram
convocadas por Manzi, direta ou indiretamente. Era comum escutar histórias como a de
Carlos, na qual ele explica que havia acabado de terminar seu mestrado em
micrometeorologia dos mangues, numa universidade em Alagoas, quando seu supervisor
disse que havia uma vaga para técnico em micrometeorologia no LBA, então ele decidiu
ocupá-la. A iniciativa do “Treinamento e Educação” para prover treinamento para
“pesquisadores locais e alunos a fim de garantir a continuação destes estudos por meio de
metodologias estandardizadas” (Folha Amazônica, 2005) era aparente quando perguntei às
pessoas de onde eles vinham. O que estas observações implicam é que o LBA pode ser vista
como um tipo de coalizão não constante de pessoas no espaço e tempo. Algumas destas
pessoas estavam presente no seu nascimento em 1998, como Manzi e Luizão, e alguns
ficarão por alguns meses, como David Addams. Estes “estudantes locais” habitam o espaço
entre, para assegurar uma continuação de ‘metodologia’ e o estudo dos grandes temas de
pesquisa. Flora, por exemplo, uma ‘técnica da torre’ que vive em São Gabriel e ajuda a
manter a torre que foi construida lá, estava vindo para Manaus para fazer a prova de selação
para o Mestrado em “Clima e Meio-Ambiente”. Isto significaria que ela deveria mudar-se
para Manaus, mas seu trabalho estava já ligado ao desenvolvido na torre de São Gabriel, então
ela provavelmente continuaria trabalhando com esta torre quando se formasse.
A divisão do LBA em diferentes ‘salas’ é também algo mais flúido do que parece a
princípio. Mário e Luciana, na “BioGeo Informática”, de fato “não tem nada a ver” com o
LBA, mas trabalham com o PPBio, um projeto do INPA que gerencia dados de
biodiversidade. Mas enquanto Luciana e Mário não se sentem parte do LBA porque não lidam
com informação do LBA, e Mário me disse que estão na sala somente com o objetivo de tirar
vantagem dos recursos computacionais, Laurindo me explicou que sua presença na verdade
marca uma tentativa de combinar (integrar) dados de biodiversidade com o tipo de dados
biológicos e físico-ambientais que o LBA produz. Eu recentemente recebi a notícia de uma
29
“Conferência Científica Internacional Amazônia em Perspectiva: por uma Ciência
Integrada”, que está programada para acontecer em Novembro de 2008, e que “terá caráter
inovador, reunindo os três grandes programas de pesquisa do Ministério da Ciência e
Tecnologia para a Amazônia: o LBA (Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na
Amazônia), GEOMA (Rede Telemática em Modelagem Ambiental da Amazônia) e PPBio
(Programa de Pesquisa em Biodiversidade)”. Esta conferência, “além de tornar públicos os
resultados das pesquisas desenvolvidas pelos três programas…tem como principal foco a
geração, síntese e integração, num contexto interdisciplinar, de dados inéditos sobre a
Biodiversidade, o Clima e o Uso e Cobertura da Terra na Amazônia, bem como avaliar
diferentes cenários de alteração ambiental provocados pelo desmatamento e pelo aquecimento
global” (página do LBA). ‘Integração’, como uma noção que é amplamente presente através
de muitas facetas do LBA, aparece como algo capaz de ter caracterísiticas múltiplas. Neste
caso, parece que você pode ser integrado ao mesmo tempo que se considera separado.
Poderia ser dito que ‘em teoria’ Mario e Luciana são parte do LBA; embora em sua
‘prática’ não sejam. Vamos nos manter nesse conceito, pelo momento. Poderíamos dizer que é
repetido quando consideramos o LBA como apresentada na página da web e o que eu vejo em
termos de organização. O LBA, enquanto uma instituição, se estabelece como uma ‘cadeia de
comando governamental’ que quando eu cheguei pela primeira vez para pesquisar, a página da
internet estava representada como uma pirâmide hierárquica (ver ficura 5). O MCT
(Ministério de Ciencia e Tecnologia) “é o responsavel pela coordenação geral do LBA,
enquanto o INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazonia), responde pela coordenação
cientifica do programa e por sua implementação”. Quando se estabeleceu, em 1998, o LBA
estava também sob a proteção da NASA e da Comissão Européia. Neste período em que
estive a NASA estava retirando seu patrocínio financeiro como estipulado no contrato, e o
LBA estava se nacionalizando (como Luizão chamou).Que eu não tenha conhecido qualquer
pesquisador da NASA, então, não foi nada estranho. Mas muitas pessoas simultâneamente
vêem-se como participantes do LBA e do INPA. Eles não parecem separar os dois a todo
momento. Esta separação, então, parece uma forma de estruturar o conhecimento que
conforma uma idéia de mutualidade exclusiva das partes separadas, então o MCT está
separado do INPA e o INPA está separado do LBA. Como um pesquisador visitante me disse
“eles parecem ser muito sensíveis aqui para definir a que instituição você pertence”, mas ao
mesmo tempo, na prática das pessoas, isto não parece ser exatamente exemplificado.
30
Figura 5: Diagrama Original da estrutura organizacional do LBA, tirada da página da
web em Setembro 2007.
31
A primeira vez que olhei a página da web, ano passado, o diagrama da estrutura
organizacional do LBA era como uma pirâmide de autoridade, com o conselho Diretor no
topo, e os vários escritórios regionais na base (como mostrado na fig. 5) implicando uma
relação hierárquica entre cada nível. Fez uma impressão porque o diagrama parecia
estranhamente não de acordo com minha experiência do LBA. Eu não desejo me aventurar
nesta discussão sobre ‘hierarquia’ como um conceito antropológico, então, deixe-me apenas
definí-lo como o Dicionário de Inglês de Oxford faz, como “um sistema ou organização na
qual as pessoas ou grupos são ranqueadas umas sobre as outras de acordo com seu status ou
autoridade”12 (OED, 1998). Eu não tive a oportunidade de ir ao escritório central do MCT, ou
de ir ao escritório central do INPA (ou os equivalentes), e investigar a extensão na qual este
esquema faz sentido nestes locais. Mas isso se deve em parte ao fato de que eu não tive que
acompanhar ninguém ou seja, apesar de alguns pesquisadores se descreverem tanto como
membros do “INPA” quanto do “LBA”, a prática diária dos pesquisadores com quem estava
no escritório central em Manaus não parecia incluir nenhuma influência direta de ou
interação com estes níveis representados como mais senior. De fato, os membros mais senior
do escritório, Luizão e Manzi, quem podemos presumir que serviriam como uma ligação entre
os ‘níveis de comando’, foram também os mais ausentes. A sensação de que a hierarquia
desempenhava uma pequena parte nas rotinas cotidianas dos pesquisadores era ecoada por
minha experiência com o edifício do LBA em Manaus, na medida que cada ‘sala’ parecia ser
uma parte distinta e análoga, e que não havia nenhuma relação hierárquica em evidência entre
elas. Este diagrama foi atualizado recentemente para parecer organizado mais simetricamente
(ver fig 3), o que pode ser uma resposta ao processo de nacionalização do LBA que me
disseram estava em curso. Dado o conceito que estou empregando, poderíamos dizer que
‘melhor representam’ minhas experiências no LBA.
De toda maneira, quando participei de uma reunião que juntou membros de diferentes
salas separadas, de repente a configuração relacional pareceu mudar. A reunião era uma das
organizadas para planejar a expedição à torre metereológica perto de São Gabriel da
Cachoeira que aconteceria em breve. De repente, relações de autoridade e hierarquia se
tornaram visíveis, somente para aparentemente desaparecer novamente assim que a reunião
12 “ a system or organization in which people or groups are ranked one above the other according to status or
authority”
32
terminava e os pesquisadores voltavam para suas salas separadas. Eu extenderei minha análise
desta reunião no terceiro capítulo. Mas a menciono aqui para mostrar que algumas vezes o
LBA parece assumir uma configuração hierárquica. Nesta reunião, certos participantes
apareceram como figuras de autoridade e outros assumiram um papel mais subserviente. Era
uma situação específica na qual, poderia ser dito, a imagem original do LBA como
apresentada na página da internet era evidenciada pela ‘prática’ que vi ‘no campo’. Neste
caso, foi quando fronteiras espaciais horizontais se dissolveram que as fronteiras da hierarquia
vertical apareceram. Quando as fronteiras horizontais foram reinstaladas, as verticais
desapareceram novamente. É claro, eu estou descrevendo isto da forma como observei, mais
do que aquilo que me disseram os sujeitos envolvidos. Mas o efeito foi bastante notável. O
ponto que quero elucidar é o de que não parece suficiente simplesmente postular que a
imagem do LBA na página da internet e que a imagem do LBA como estou apresentando a
partir das experiências do meu campo estivessem em uma relação estática de qualquer tipo.
Na verdade, diferentes visões pareciam ir e vir com surpreendente rapidez, e quanto mais via,
mais difícil se tornava chegar a qualquer tipo de conclusão a respeito de qualquer relação
particular entre o LBA como uma totalidade na forma como é apresentada, por exemplo, na
página da web e o LBA como uma multiplicidade de diferentes partes ‘no campo’. De
qualquer forma, vamos continuar comparando as duas.
O LBA tem uma importante seção conhecida como LBA-ECO, ou LBA-Ecologia. Na
página da internet do LBA-ECO, a entidade está descrita como um componente de pesquisa
do LBA. Mas para pesquisar por qualquer pesquisador do LBA online, você é direcionado
para a página13 do LBA-ECO, onde há listas de todos os projetos do LBA que foram
realizados ou que pediram financiamento futuro. Cada projeto tem um Investigador Principal
Brasileiro e outro Não-Brasileiro, e mais de 100 projetos. Em 2005, quando a NASA
estava teóricamente reduzindo seus investimentos no LBA, haviam 125 projetos, 78 dos quais
tiveram parcerias com pesquisadores americanos, 17 com pesquisadores europeus, 22 eram
completamente brasileiros, 4 com pesquisadores de outros países Amazônicos (OAC), 2 eram
com europeus e OAC e 2 com pesquisadores americanos e pesquisadores OAC. Havia 1837
pesquisadores no total trabalhando no LBA, 1099 brasileiros e 738 estrangeiros (Folha
Amazônica, 2005). Em 2007, havia um total de 155 projetos 102 projetos Brasil-EUA, 16
Brazil-Europa, 26 totalmente brasileiros, 1 Brasil-OAC, 3 Brasil-Europa-OAC, 4 Brasil-EUA-
13 http://www.lbaeco.org/lbaeco/index.html (3 de julho de 2008)
33
OAC, e 1 Brasil-Austrália-OAC. E havia 2389 pesquisadores, 1472 brasileiros e 917
estrangeiros (site do LBA). Proporcionalmente, antes e depois da NASA formalmente
suspender seu financiamento à LBA, há alguma difrença – mas não tanta quanto se esperaria.
Eu não encontrei a maioria dos pesquisadores listados na página do LBA-ECO durante
minha estadia em Manaus, Santarém e São Gabriel da Cachoeira. Dos que pude encontrar
listados, eu somente encontrei Flávio Luizão, Antônio Manzi e Julio Tota. A maioria das
pessoas que encontrei e conversei eram administradores, pesosas que coletavam dados para os
pesquisadores listados mas que não eram eles mesmos listados, os ‘técnicos científicos’,
estudantes de mestrado e doutorado. Quase todos, exceto os administradores, também tinham
seus próprios projetos com o escopo de dados que estivessem coletando de outros, e tinham
variados graus de contato com os pesquisadores nomeados. Eu encontrei um pesquisador
holandês em Santarém, e um modelador climático americano e um estudante de mestrado
guatemalteco em Manaus, mas além disso, todas as pessoas com quem falei eram brasileiros.
Cada projeto do LBA de acordo com sua constituição precisava ter um pesquisador
brasileiro e outro estrangeiro como Investigador Principal, e muitas dessas pessoas que
trabalhavam coletando os dados no campo e com quem eu conversei raramente haviam se
encontrado com os dois. As relações entre trabalho individual, dados do LBA e pesquisadores
estrangeiros variavam enormemente em tipo. Por exemplo, apesar de Julio Tota não aparecer
como Investigador Principal (PI) como tal, ele tem e mantém muito contato com o PI
americano da Universidade do , (que está na CD-31, um projeto de ‘Dinâmica Carbônica’,
que era uma continuação da ‘CD-04’), porque seus projetos são ambos baseados em
Santarém, e Tota é financiado pela State University of New York at Albany. Mas em
Santarém, onde outro escritório do LBA e muitas torres, os dois coletores de dados que
acompanhei para coletar dados da torre para o trabalho de um PI Brasileiro tiveram muito
pouco contato com o PI americano no projeto que esteve em Santarém muitos anos atrás,
um dos colecionadores me disse. Ele teve dificuldade, de fato, em lembrar quando. E no site
da pesquisa em São Gabriel, Raquel está coletando informação para seu projeto de doutorado
no LBA, que é supervisionado por Flávio Luizão, mas os dados serão coletados, em sua maior
parte, por um bolsista, Michael, da Escola Agrotécnica de São Gabriel. Michael também usará
os dados para seu próprio projeto separado na Escola. Uma visão estável de exatamente como
o LBA é um ‘projeto internacional’ parece movê-los na medida que você move-se para fora
da página na internet em direção ao ‘campo’.
34
A partir da página na internet, o LBA certamente assume a forma de um projeto
internacional que integra pesquisadores de todo o mundo. Alguns parceiros do LBA incluem a
Universidade do Arizona, a Universidade da Califórina, a Universidade de Albany, a
Universidade de Harvard a Universidade de Edimburgo, e o centro de pesquisa Woods Hole
em Massachusetts. E o comitê científico em 2005 era composto de pesquisadores do INPE14,
INPA, USP15, EMBRAPA16, UFRJ17, Unversidade de Brasília, Museu Paraense Dep.
Botânico e Dep. Antropologia, Secretaria Estadual de Desenvolvimento Sustentável, Instituto
Max Planck, NASA, Universidade de Standford, Universidade da Califórnia, Universidade
Duke, Universidade de New Hampshire, Universidade do Arizona, Universidade de
Standford, Universidade de Washington, Universidade de Leeds, Universidade de Lima,
UMSA na Bolívia e Universidades do Equador e Colômbia. Esta integração, no entanto,
parece ser efetivida de muitas maneiras diferentes, e não aparentemente nenhuma
estandardização nestas relações. Quando cada projeto é examinado de perto em suas relações
entre os projetos em mente, as diferenças nestas relações se tornam aparentes, e dão a cada
projeto uma forma particular. Por exemplo, a relação de Tota com a Universidade de Albany
significou que ele recebe fundos que o permitem continuar seu trabalho, e foi deixado a cargo
de uma “quantia de cerca de um milhão de dólares” em equipamentos para completar seu
projeto em um dos locais de pesquisa de Santarém. Isto não está disponível para todos os
pesquisadores, de maneira alguma.
Apesar de ter escutado repetidamente de diversas pessoas, com graus variados de
ironia, que o LBA tinha a intenção de ser um experimento integrado, um “esforço
multidisciplinar” unindo cientistas de diferentes países e com experiência diversificada, eu vi
muito pouco intercâmbio direto de informação acontecendo entre pessoas, para além do 11
o
encontro cinetífico de equipe do LBA-ECO que durou 3 dias em Salvador, em 2007. Este
evento tinha, é claro, explicitamente o objetivo de compartilhar e integrar dados, mas assim
como o LBA existe na maior parte do tempo, fora deste tipo de evento, eu vi pouca integração
neste sentido. Algumas pessoas me disseram que sim, é claro que o LBA era um esforço
integrado, uma base de dados a qual todos são obrigados a mandar seus dados; e outros
lamentaram o fato de que apenas uma reunião com todo LBA todos os anos, e que deveria
14 Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - Brasil
15 Universidade de São Paulo - Brasil
16 Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – a empresa de pesquisa agrícola brasileira.
17 Universidade Federal do Rio de Janeiro
35
acontecer mais encontros regionais com o objetivo de reunir e discutir conclusões pessoais de
pesquisa.
Quando eu perguntei às pessoas com quem conversei diretamente o que “é” o LBA, eu
recebia diferentes tipos de resposta. Para alguns, ele era somente “uma comunidade virtual”.
Para outros, eles “fazem parte do LBA” porque são ‘bolsistas' do LBA – um botânico
fisiologista do INPA me disse “O LBA está aberto a todos”. Numa conversa eu perguntei
Susana, uma aluna guatemalteca do mestrado em hidrologia, o que ela fazia no LBA. Susana
está fazendo o mestrado em Amsterdam, mas teve que vir ao Brasil por muitos meses a fim de
ajudar Fabrício, um aluno do doutorado no LBA que havia sido um bolsista do LBA desde a
gradução. Ela veio porque Fabrício conhecia seu supervisor em Amsterdam, e havia
perguntado se alguém estava disponível ou interessado em ajudá-lo a coletar dados na
Amazônia. Susana, que havia estudado anteriomente as florestas de nuvens (cloud forests)
Venezelanas, agarrou a chance. Quando Susana me disse que na verdade sua pesquisa não
tinha muito a ver com o LBA, Fabrício interrompeu “e parte do LBA agregado”, ele disse, e
depois adicionou, rindo “O LBA é uma grande família”. Susana pareceu concordar e me disse
“faço parte do LBA porque eu coleciono dados para o LBA”. Fabrício riu e me disse que “ela
faz parte do LBA porque esse projeto faz parte do LBA”18 Esta troca captura bem as
diferentes formas na qual as pessoas se referem à LBA como uma fonte de dinheiro, como
fonte de dados e de seu compartilhamento, como uma entidade social de uma forma ou de
outra, como uma oportunidade acadêmica. Como resultado desta proliferação de descrições, o
LBA como uma entidade em si se tornou cada vez mais difícil de 'fixar' (hold still).
A principal questão do LBA, da forma como me disseram vários pesquisadores, é
discobrir se a floresta Amazônica está absorvendo mais gás carbônico do que emitindo, ou
emitindo mais do que absorve; esta é “a grande pergunta do LBA” de acordo com Flávio
Luizão. De maineira interessante, quando interrogados sobre a possibilidade de alcançar uma
resposta definitiva para esta questão, os pesquisadores que perguntei trataram minha questão
como confusão ou com tolerância benevolente. Um deles me disse que não, é claro que não;
toda pergunta respondida cria outras dez a serem perguntadas. Para medir quanto gás
carbônico está sendo solto na atmosfera, você tem que calcular quanto está sendo mantido na
floresta. E para saber quanto está sendo mantido na floresta, você deve ser capaz de
18 “faz parte” aqui faz referência, entre outras coisas, ao financiamento que o LBA fornece para o projeto.
36
contabilizar todas as formas que pode escapar da floresta, sem ser solto na atmosfera. Então,
as medições de transporte de gás carbônico pelas folhas em decomposição sendo varridas por
correntes tiveram que ser levadas em conta, o que envolve todo um conjunto diferente de
premissas científicas além daquelas empregadas para extimar a troca de gás na atmosfera.
Cada nova pergunta envolve seu próprio conjunto de problemas e questões, que geram mais
problemas e questões. A tarefa parece sem fim. No 11
o
encontro científico de equipe do LBA-
ECO, o qual estive presente, um pesquisador explicou-me que, por exemplo, tentar medir a
quanidade total de gás carbônico na floresta a partir da subtração de quanto de gás carbônico
entra e de quanto gás carbônico sai é como tentar medir uma polegada a partir da subtração de
uma milha por uma milha e uma polegada. Uma diferença de uma polegada ou duas, pelas
longas distâncias não farão muita diferença. Mas em termos da medição que você está
tentando alcançar, isso pode resultar insensato.
Uma das maneiras nas quais eu pude tentar definir o LBA, de maneira oposta a
qualquer outro projeto científico, é que ela usa torres metereológicas que foram erguidas por
toda Amamzônia. São estas torres que capturam o tipo de dados que dão o sentido específico
dos objetivos da pesquisa; ou seja, estas torres são construídas de forma a medir a dinâmica de
troca de gás carbônico entre a biosfera e a atmosfera. E ainda assim, quando eu fui tentar
descrever estas torres com uma profundidade etnográfica (como algo oposto a meramente
relatar minhas impressões delas, auto-definidas como ‘não-científico’), se tornou claro que
elas habitam posições multiplas no trabalhos dos pesquisadores, dependendo de com quem eu
estava falando, e de sua especialidade de pesquisa ou área de trabalho. Novamente, eu me
deparava com uma proliferação de pontos de vista. Durante o período que passei com a
equipe LBA de pesqusadores que foram na expedição à torre em São Gabriel, fiquei sabendo
da posição central que a torre sustenta para a equipe, não a partir das formas nas quais as
conversas das pessoas mostraram na viagem, mas também a partir das explicações que me
davam quando perguntava onde estávamos indo. Estávamos indo à torre. As áreas de pesquisa
onde os dados poderiam ser coletados, que não tinham a ver com dados micrometereológicos
estavam todos localizados em relação a torre, “para comparar com a torre”. Eu presumi,
então, que a torre, desta maneira, fosse talvez um ponto fixo, uma referência, em torno da qual
os persquisadores concentravam seus esforços, quantificando e capturando, e no entorno da
qual eu poderia ser capaz de fazer o mesmo. Mas ao mesmo tempo, cada membro do grupo
com quem eu conversava sobre a torre me explicava isso de uma maneira diferente.
37
Conversando sobre a torre com Jair e Marta, micrometereologistas, eles viam as torres
como a soma do equipamento nelas instalado. Este eqipamento não é ‘padronisado’ entre as
torres, mesmo que devessem idealmente – o tipo de equipamento muda, o software do
datalogger19 muda, e Jair me disse que “cada torre é um universo paralelo” e que esta em
particular em São Gabriel “é um monstro”. Quando ele fala da torre comigo, ele fala sobre o
equipamento na torre, e como cada torre é diferente da próxima para o micrometereologista. A
estrutura em si é interessante somente como um veículo para o equipamento, e na forma que
pode afetar os dados por exemplo, como Luizão me disse, as torres originais em ferro
costumavam reter e liberar muito calor, afetando as medições de radiação; então torres de
metáis misturadas foram construídas. A torre em si realmente deveria ser tão ‘invisível’
quanto possível nos dados e no meio. O mesmo vale para todos os trabalhos de construção
que desempenham a tarefa de persuadir a floresta a apresentar informação para você. A 34 km
de Manaus, no local de pesquisa chamado ZF2 (Zona Franca 2, em referência à área protegida
em que se situa), Luizão mostrou-me um buraco que crava (:) 50 m verticalmente para baixo
no chão logo abaixo da torre, um tipo de torre subterrânea inversa, usada para coletar dados
sobre metano e gás carbônico solto no solo. A terra escavada a partir deste buraco teve que ser
cuidadosamente carregada para uma distância 'segura', longe do local de pesquisa, a fim de
não afetar os dados coletados. Jair admite que estritamente falando, nós deveríamos gravar as
vezes que escalávamos a torre em São Gabriel, na medida que o dióxido de carbôno em cada
expiração afetará as leituras feitas pelo equipamento de fluxo carbônico. A torre e seu
conjunto de equipamentos deveria estar em um ‘estado estável’ a fim de ser confiável nas
medições das mudanças micro-metereológicas que aconteciam a seu redor.
Jaime também estava na expedição em São Gabriel expressamente para lidar com a
torre. Quando Jaime conversa comigo sobre a torre, ele conversa comigo sobre a construção e
a estrutura da torre em si. Sua tarefa é fazer com que as torres sejam o mais similares o
possível, em termos de sua estabilidde estrutural na variação de condições nas quais ele tem
que construî-las. O equipamento não é mencionado. Eu havia perguntado por que algumas
torres são mais difíceis de manter do que outras. Ele me disse “dependo no jeito em que eles
foram montados…em Rondônia, ele foi montado muito rapido…nunca fizeram
manutenção…os cabos estão muitos froxos…muitos galhos, cipos [que haviam caído nos
19 O datalogger é um equipamento eletrônico que armazena todos os dados coletados por vários instrumentos
na torre. Eu entrarei em mais detalhes adiante.
38
cabos]”. Ele pega um pedaço de corda e a contorce para mostrar-me como os galhos caem nos
cabos, ou lianas, que crescem então, exercem uma pressão extrema na torre e fazem com que
ela entorte seu formato. Esta torre no local de pesquisa de São Gabriel foi bem construida,
apesar da pressa. A equipe de construção, Jaime e 9 outros conduzidos por Hermes, gastaram
três dias para encontrar o ponto exato para erigí-la, mesmo apesar de Antônio Manzi e Carlos
Nobre terem passado anteriormente duas semanas investigando a área a partir da estrada.
Escolher o ponto certo era crucial deveria ser plano, um platô grande o bastante para que os
cabos fossem firmemente ancorados. oito cabos por nível e 33 níveis. Quanto mais alto o
nível, mais longe o cabo deve ir para garantir a estabilidade de toda a estrutura. Se você olhar
para baixo, a partir do topo, os cabos desaparecem na floresta, para alcançar o chão alguns
100 metros de onde eles estão afixados a torre em si. Depois de encontrar a área certa em uma
missão de reconhecimento, a equipe de construção levou uma semana para cortar um trilha de
2,5 km. Em seguida, levou mais uma semana para transportar todas as diferentes partes da
torre para o local escolhido, e mais dez dias para erigí-la. Os preimeiros níveis são os mais
fáceis então se torna mais difícil para julgar corretamente para onde os cabos devem ser
esticados. O truque é não apenas calcular e garantir a distância exata, mas manter a tensão
certa entre todos os cabos, porque é a oposição destas forças que mantém a torre vertical.
Jaime estava na expedição de São Gabriel para “esticar” os cabos esticá-los para mantê-los
assim novamente. Para ancorar os cabos, em primeiro lugar, deve-se medir a distância correta
da base da torre que o cabo, a partir de um nível particular deve alcançar, calculado
previamente de acordo com certas formulas matemáticas disponibilizadas com a torre pelos
fabricantes (que são holandeses, britânicos e americanos, dependendo da torre
recentemente um fabricante em São Paulo começou a fazer torres metereológicas todas as
intruções na torre são escritas em inglês). Alguém fica de no chão no ponto medido. Outra
pessoa escala até o nível que foi recentemente construído e (cuidadosamente) tenta jogar uma
corda pesada de maneira a mais precisa possível para a pessoa no chão. Jaime admite que isso
era difícil de fazer nos níveis mais altos; a torre mede 64 m, e está 15 metros acima da copa
das árvores. Não só é impossível ver o chão a partir do topo, mas o que parece ser o chão é na
verdade o próximo extrato de árvores. Uma vez estabelecida um conexão pela corda, o cabo
pode ser levado para baixo relativamente de maneira fácil. Eu perguntei se ele fizera um curso
em contrução de torres não, ele respondeu, apesar de ter sido treinado em segurança em
Santarém. Ele aprendeu na prática, “da para ver, usar as medidas para os cabos que vem com
a torre, mas na floresta, e diferente…a gente tem que decidir”. Um nível poderia ser
construído em uma hora, e poderia levar o resto do dia para pegar os cabos certo. No fim, a
39
equipe dos dez estava correndo contra o relógio, trabalhando dias inteiros, do nascer do sol
ao poente, viajando de volta a cada dia para o local de acampamento, 16 km da torre, a fim de
fazê-la funcionar até Outubro. Por que a pressa? Eu perguntei. “Tenho nenhuma idéia”, disse
Jaime. “Pergunte para Manzi”; e depois, com orgulho “mas nós conseguimos”. O
equipamento e os dados são de pouco interesse para Jaime em seu trabalho, ele me diz. Ele
apenas tem que assegurar que a torre esteja esteavel, reta e forte.
Raquel está na expedição para estudar o ciclo processual de gás carbônico e nutrientes
em matéria orgânica morta ('necromassa'). Eu explicarei o seu trabalho com mais detalhes no
terceiro capítulo, mas em termos de sua relação com a torre, a torre é um ponto de referência,
em torno do qual ela deve localizar suas áreas de amostragem a fim de que a informação que
ela colhe faça o sentido que ela deseja, quando comparada com os dados micrometereológicos
que a torre produz. A informação que o equipamento na torre coleta sobre o fluxo carbônico
será comparada com a informação sobre gás carbônico que ela retira de seus meros de
necromassa; a torre provavelmente aparecerá em seu trabalho escrito a fim de localizar onde
sua informação foi coletada, assim como a fonte para cálculos comparativos.
A seguir, um extrato de minhas próprias notas de campo, escritas após a expedição a São
Gabriel:
“Estas torres, para mim, são ícones definidores do LBA: vindas da Holanda, dos EUA, Inglaterra,
construídas por equipe brasileiras, alguns deles enviados para treinamento no Canadá, e fornecendo
dados que serão armazenados em um banco de dados acessível internacionalmente em São Paulo, elas
escalam do nível do chão até pelo menos 15-20 metros acima das árvores mais altas, e estão equipadas
com instrumentação científica da melhor qualidade. Quando vistas a partir do nível do chão escuro da
floresta, elas sobem em direção a luz; aparentemente confiantes em sua habilidade de ligar o
impressionante abismo físico e conceitual que o LBA construiu para que ele mesma o supere a
dinâmica relacional entre a Biosfera e a Atmosfera. Do topo delas, eles preporcionam uma vista de
tirar o fôlego de um plano de copas de árvores se extendendo no horizonte, encontrando a cúpula do
céu acima de sua cabeça, de alguma forma, fazendo você acreditar subitamente na idéia de que
medições minúsculas de moléculas de gás carbônico, retiradas nos menores intervalos de tempo de dez
vezes por segundo poderiam talvez cobrir a área de 7 milhões de km² da floresta Amazônica”.
40
Aqui, eu considero a torre como um lugar de inversão de escala, uma forma de criar um tipo
de sentido metafórico da perplexidade que senti como estrangeira para o estudo de
metereologia. Quando na presença de vastas extensões da floresta deitada embaixo de você,
parece impossível que a relativamente pequena torre pode ser usada para capturar informação
sobre toda a área. Mas notadamente, tanto o efeito físico de estar em cima da torre e esta
perplexidade é ausente daquelas que lidam com torres diariamente. Há uma ciência em
micrometereologia que estabeleceu os parâmetros de coleção de dados para uma torre; não
é algo que seja interessante para questionar mais, ou não de maneira correntemente, de
qualquer forma. E quando escalei uma das torres em Santarém, tornou-se claro que minha
demora na deslumbrante vista possibilitada pelo topo da torre garatia os procedimentos. Os
técnicos da torre escalam a tórre o mais rápido o possível, porque eles têm um trabalho a
fazer. Minha visão poética das torres, neste sentido pode ser mais interessante do que uma
descrição detalhada da instrumentação para um leigo, mas certamente não seria para um
meteorologista, e dado isso, não é suficiente para a tarefa da descrição etnográfica.
Cada uma delas eram imagens da torre, e desta forma, eu poderia tentar encontrar
alguma forma de integrá-las, assim as torres poderiam ser usadas como uma forma de definir
o LBA como um projeto específico contra outros. Mas atribuindo esta especificidade para o
LBA, eu perderia a especificidade das imagens em si. Integrar desta forma parece tornar
mudas as vozes daqueles envolvidos, e como tentei mostrar, cada imagem conta com a
possibilidade de análise aprofundada, abrindo diferentes avenidas que poderiam ser seguidas
para termos muito diferentes.
***
Eu gostaria agora de detonar um dos conceitos que empreguei anteriormente nesta
comparação aquele das relações entre ‘teoria’ e ‘prática’, entendidos como aqueles que são
representados como acontecendo, e aqueles que acontecem realmente (deixarei a revisão do
outro conceito explícito que usei, aquele das ‘visões’ e ‘pontos de vista’, para mais tarde). É
um mecanismo usado para assignar uma certa relação a uma percepção de um fenômeno.
Seria fácil para mim sugerir com o espaço proporcionado por este tipo de mecanismo que ‘em
teoria’ o LBA é um projeto unificado com objetivos unificados, mas, na verdade, é uma rede
41
heterogênea de interesses e pessoas que confundem todas as tentativas de esquematização.
Isto é o que o LBA ‘realmente’ é. A ênfase é colocada na minha experiência vivida, e de fato,
naquela daqueles que eu estudava, na medida em que a maior parte das minhas evidências
para sugerir tal relação vem do que me disseram. De qualquer forma, o problema com este
tipo de conceito representacional é que uma pessoa encara o problema de então associar uma
‘realidade singular unificada’ para algo que parece ser feito de uma pluralidade de pontos de
vista. Como eu mostrei, há muito mais gente trabalhando no LBA do que reconhecidas pela
página na internet. Isto significa que o LBA aparece como algo maior do que ela se apresenta
no site. Não os grupos são maiores do que parecem ser, em termos de número de pessoas
envolvidas na produção de dados, mas nas formas às quais estes grupos são constituídos, as
relações entre as pessoas envolvidas e os dados em si, variam de grupo a grupo. Então, o LBA
também parece, a partir da minha experiência dela, ter mais variação interna. E esta variação
interna, por sua vez, muda a escala e a forma do LBA dependendo do ângulo do qual é visto.
Por que a visão do LBA como apresentada na página da internet não deveria ser
colocada lado a lado destas outras perspectivas? Ela foi, apesar de tudo, construída com uma
razão. Ela tem certas tarefas para cumprir: disseminar o LBA como uma entidade para o
mundo com um todo, manter os pesquisadores informados dos eventos que virão, permitir que
os leigos se informem. Foi realizada com a pretensão de transportar certas informações, e,
desta forma, aqueles para quem a informação é dirigida tiveram uma mão em sua construção
também. Mas este não é um processo auto-contido. Ao transmitir a informação pretendida,
outros tipos de informação esta transmitida para aqueles que estão no ‘ângulo’ certo, ou pelo
menos diferente. Um desses, como eu ressaltei, é dar um sentido de ‘visão geral’. Outro é
fazer o LBA aparecer para mim delimitada em formas que não apareceram quando fui fazer
meu trabalho de campo lá. Esta delimitação deu a ela uma certa forma que encontrei e que
nem sempre combina adequadamente com o que eu observei e com o que me contaram. Mas a
forma subsequente que aparece como uma expansão, um crescimento em informação em si é
substituída na medida que pessoas diferentes se engajam, e coisas diferentes são vistas. A
necessidade de escolher um ou o outro como mais real implica um dilema, porque
informação é sempre sentida como perdida. O que é mais real, a página do LBA ou o LBA
que vi no campo? Aquela apresenta uma imagem linear de hierarquia e inclusão, constituições
e normas, partes integrantes, e integradas, em um todo. Esta oferece uma visão muito mais
variada e flúida, na qual as pessoas vêm e vão, fronteiras se expandem e contraem, os níveis
42
são confundidos, hierarquia em si é não aparente entre níveis, mas emerge de uma forma
estranha na medida que as situações acontecem, e, como podemos ver, informação circula
constantemente na forma de dados, mudando a forma na media que faz isto.
Frequentemente como uma solução para estes dilemas de relações contrastantes
binárias, uma imagem é escolhida a partir da qual entender todas as outras partes. A página na
internet pode ser vista como uma ‘visão macro’ que inclui as centenas de colecionadores de
dados não nominados, administradores e indivíduos trabalhando com o LBA. Ou minha
experiência no trabalho de campo, como uma prática coletivamente diferenciada, pode incluir
e obscurecer a forma que o LBA é conduzida como uma entidade delimitada e definida por
normas e fronteiras. Apesar desta última forma ser frequentemente vista como mais suficiente
para a tarefa da investigação antropológica, ela gera seus próprios problemas. Deve parecer
banal evidenciar que para um colecionador de dados de 15 anos em São Gabriel, o LBA é um
tipo diferente de entidade do que para um pesquisador norte americano da Universidade de
Albany de meia idade, e ainda mais banal evidenciar então que mesmo assim, eles são ambos
de alguma forma, parte do LBA. Mas isso causa profundos problemas para a descrição. A
forma que o LBA é apresentada na sua página da internet parece muito separada daquela
forma que a experienciei no escritório de Manaus. A forma como experienciei o LBA no
campo em São Gabriel foi muito diferente da forma como a experienciei no escritório em
Manaus. Mas de alguma forma, em algum lugar também uma sensação de algo unificado.
o LBA é comentada como ‘o LBA’. As pessoas a usam para definir-se, definindo-a no
processo. O LBA habita um espaço definido ao mesmo tempo que parece transgredir as
fronteiras que definem aquele espaço. A questão se torna como compreender estas diferenças
e semelhanças. Se a questão é uma das gerais (a página da internet) versus a particular (os
locais específicos que visitei, as pessoas em particular com quem conversei), quem deveria
levar precedência não se faz imediatamente claro. E se alguém postular a visão geral como
apenas mais uma visão particular, então, qual delas ‘realmente’ representa o que o LBA é?
“Como conceituar a parte que não é parte de um todo?”20 (Strathern, 1992b: 97) E onde eu
tento situar a unificação?
Eu apresentei aqui uma descrição que trabalha por muitos eixos relacionados. Na
primeira seção, eu sugeri que a forma na qual o LBA apresenta seus objetivos unificados e
20 “How to conceptualize the part that is not part of a whole?”
43
aspirações implicam uma forma específica de organizar o conhecimento, e uma certa
dinâmica para a forma na qual ela vem a conhecer seu objeto, a floresta amazônica; e eu
sugiro que esta imagem também era aparente na forma em que o LBA se apresenta na página
da internet. Eu, então, peguei a imagem que obtive a partir da página da internet, e a comparei
com a minha imagem do LBA acumulada em meu trabalho de campo. Nos primeiros eixos
Amazônia-LBA, estou sugerindo, então, que existe uma analogia; no segundo, página da
internet-experiência (ou ‘teoria-prática’), estou sugerindo que existe uma relação de
dissonância que engendra problemas de causa e efeito, o que se replica em todos os níveis
qual dessas visões é o LBA ‘real’? Em ambas, de toda forma, s chegamos a enfrentar as
mesmas noções de relações entre as partes e todos, que é a relação do particular com o geral.
Ao criar estes eixos, estou pensando em um comentário de Strathern que citei no começo do
capítulo – “conceitualização é inevitavelmente reconceitualização”21 (1992b:77) Quando eu a
citei primeiramente, estava demonstrando que minha conceituação do LBA necessariamente é
baseada na conceituação de outras pessoas. De qualquer forma, como mostrei então, esta
noção é uma lâmina de dois gumes. Para Strathern segue assim: “A sociedade que pensamos
para os ‘Are ‘Are, melanésios das Ilhas Solomon, é uma transformação da sociedade que
pensamos para nós mesmos”22. Ela o faz em referência ('farpada' - barbed) a uma citação de
De Coppet, na qual ele incita os antropólogos a entender cada sociedade como um todo, e
não como um objeto desmantelado por nossas próprias categorias” (em Strathern
1992b:77)23. Por meio do endereçamento inicial do primeiro ponto do nosso primeiro eixo
relacional, ou seja, como o LBA organiza seu conhecimento da Amazônia, eu espero começar
a abordar a convergência entre este eixo e outro que postulei, aquele entre a informação da
página da internet (o geral) e minha experência no trabalho de campo (o particular). Este eixo
é repetidamente estruturado mesmo que o geral se torne mais um exemplo do particular,
porque então alguém se vê face a tanto um clamor de pontos de vista, ou com a escolha de um
que melhor represente o todo. Unidade e descontinuidade parecem irreconciliáveis.
Este ponto de convergência é talvez a mesma pergunta que Strathern coloca para De
Coppet e ao colcar responder: ela postula que a razão que o permite ter tanta certeza que as
sociedades devem ser abordadas de maneira “holística” como totalidades é porque no
Ocidente nós concebemos as sociedades como todos. Que conceitualização seja
21 “conceptualization is inevitably reconceptualization”
22 “The society that we think up for the ‘Are ‘Are, Melanesians from the Solomon Islands, is a transformation
of the society that we think up for ourselves.”
23 whole, and not as an object dismantled by our own categories”
44
inevitavelmente reconceitualização tem um tipo de efeito de ‘chicoteio’ aqui. A forma como
concebo o LBA é amarrada para refletir a forma na qual organizo e concebo o conhecimento.
É esta (relativamente contemporânea) concepção, no entanto que na análise antropológica
contribui para o sentido que descrevi de sempre estar perdendo algo, da descrição somente ser
parcial. O papel da parcialidade depende da forma na qual as partes são imaginadas. E assim
isto pode ser visto como se meus eixos virassem um círculo completo de fato, assim como é
esta sensação que é precipitada de ambos pontos de partida meus o entendimento do LBA
da Amazônia e meu ponto final meu entendimento etnográfico do LBA. De qualquer
forma, a extensão na qual estas formas de organização do conhecimento verdadeiramente se
encontram ou não é a questão comum que é entrelaçada por toda minha dissertação em vários
disfarces diferentes, e um que eu não serei capaz de começar a responder até muito mais
tarde.
***
Movimento como Metáfora
Parece, então, que para o LBA, a Amazônia é incrívelmente complexa, mas que esta
complexidade se concretiza no ato mesmo de tentar conhecê-la racionalmente, ou seja, de
tentar relacionar as partes nas quais foi separado. Ao tentar entender esta forma de organizar o
conhecimento e o que parece produzir, eu uso a análise de Wagner (1977) das
conceitualizações científicas do inato particularmente ressonante, apesar de muito do que ele
escreve neste artigo poder ser encontrado de forma mais detalhada em seus livros The
Invention of Culture (1975) e Symbols that Stand for Themselves (1986). No entanto, é neste
artigo de 1977 que ele se dedica mais exclusivamente à prática científica específica, e como
forma condensada de sua sofisticada e infernalmente complexa teoria do sentido, ela serve a
minha motivação presente melhor que a extensa discussão que ao usar estas outras
publicações certamente acarretiam.
O paradoxo no coração da ciência, Wagner escreve, é do 'geral' versus o 'particular',
uma refração do que pode ser visto como a relação entre o que é tido como inato, e o que é
tomado como disponível para a ação humana. A análise semiótica de Wagner objetiva não
negociar o paradoxo inerente na construção do sentido, mas revelá-la. Ele também recusa
45
conformar as teorias tradicionais de símbolos como representações. ‘Representação’ como
formulado em termos do real e do teorético é, como mostrei, outro problema que implora por
análise antropológica, o que foi potencialmente evocado quando tentei entender meu trabalho
de campo com o LBA. Eu voltarei a isso mais tarde. Suficiente dizer que a premissa a partir
da qual Wagner começa em todo o seu trabalho é que “o fenômeno humano é uma idéia única
e coerente, organizada mentalmente, física e culturalmente, em torno da forma de percepção
que nós chamamos “sentido” (meaning) (Wagner, 1986: ix)24.
Wagner isola duas modalidades de construção simbólica, opostas mas completamente
interdependentes. Uma é ‘construção simbólica literal’, na qual o ‘símbolo’ é visto como uma
representação de, e separada de, seu referente, como noções convencionais do mbolo.
Simbolizações literais objetivam relacionar unidades definidas, mas somente retiram o seu
sentido do contexto referencial no qual elas se separam; elas são “relacionalmente coesas, mas
contextualmente contrastivas e dependentes (Wagner, 1997: 390)25. Wagner dá o exemplo das
leis científias que relacionam diversos fenômenos naturais, mas dependem do contexto
representado para substancialidade e significado.
O contexto referencial é, na verdade, a outra modalidade de simbolização, ‘figurativa’,
concebida convencionalmente como ‘fenômeno puro’, mas na formulação de Wagner
concebida como simbolizações que assimilam o contexto “representados” e os
“representantes”. Eles são ‘símbolos que valem por si próprios’ (symbols that stand for
themselves)– objetos, pessoas individuais e daí por diante. Simbolizações figurativas
diferenciam seu contexto relacional, criando “discretas entidades que assimilam seus
contextos mas servem em representação análoga uma para a outra”26 (ibid: 390), mas elas
requerem aquele contexto para ter sentido. O exemplo que Wagner é aquele de especiação
Homo Sapiens e Homo Erectus são espécies distintas, e neste sentido se colocam em relação
análoga uma com a outra. Ainda que eles precisam dos seus contextos comuns incorporados
por relacionalidade – eles são ambos Homo’, ou seja, eles dependem desta ‘relatividade’ para
significar algo. Simbolizações literais têm contextos figurados, e simbolizações figurativas
têm contextos literais. Mas o ponto que eu gostaria de enfatizar é que eles também criam estes
24 “the human phenomenon is a single, coherent idea, organized mentally, physically and culturally around the
form of perception that we call ‘meaning’”
25 “relationally cohesive, but contextually contrastive and dependent”
26 “discrete entities which assimilate their context but stand in analogous representation to one another”
46
contextos Um contexto “é parte de uma experiência e também algo que nossa experiência
constrói; é um meio no qual os elementos simbólicos relacionam-se uns com os outros; um
que é formado pelo ato de relacioná-los”27 (Wagner 1975:37)
Não é que estas diferentes modalidades depedem do oposto para significar, mas que
sua aplicação precipita-se de seu oposto. “[Uma] construção sempre está tanto relacionanda
ao perceptivelmente diferenciado ou diferenciando o perceptivelmente relacional”28
(1977:391). Se alguém a sua esfera de ação como ‘relacionar , então a ação consiste em
transformar discretas entidades fenomenológicas em um padrão relacional consistente, assim
como nas leis científicas. A transformação reflexiva que resulta tem o efeito de diferenciar
este padrão relacional, e é visto como “inato” neste caso o modo figurativo, o que no
Ocidente nós vemos como fenômenos naturais que são sui generis. Se por outro lado, um vê a
sua esfera de ação como ‘diferenciar’, então a ação consiste em transformar uma continuidade
relacional em distinções diferenciantes, e a transformação reflexiva aqui, a emergência do
contexto sendo assimilada, é inata. O que é inato é o que serve fora da esfera da ação humana,
sobre a qual nós não temos controle algum, aquilo que é ‘dado’.
Esta formação simbólica do mundo pode ser entendido na forma do paradoxo que
engendra:
“Quanto mais discretamente e específicamente nós definamos e atemos as unidades de nosso estudo,
mais provocativo, necessário e difícil se torna contabilizar as relações entre estas unidades;
inversamente, quanto mais efetivamente nós somos capazes de analisar e somar as relações entre as
unidades, mais provocativo, necessário e difícil se torna definir estas unidades”
29 (Wagner
1977:386)
27 “is part of experience – and also something that our experience constructs; it is an environment in which
symbolic elements relate to one another; one that is formed by the act of relating them”
28 “[A] construction is always either relating the perceptibly differentiated or differentiating the perceptibly
relational”
29 “The more discretely and specifically we define and bound the units of our study, the more provocative,
necessary and difficult it becomes to account for the relationships among those units; conversely, the more
effectively we are able to analyze and sum up the relationships among a set of units, the more provocative,
necessary and difficult it becomes to define those units” (Wagner 1977: 386)
47
Este paradoxo então é um daqueles que se auto-perpetua. Ou seja, ele engendra-se, porque a
dinâmica é relativa; cada modo de construção precisa e causa a outra confundindo-as. Quanto
mais unidades definimos, mais pressionadora ela se torna para relacionar estas unidades a fim
de dá-las sentido. Mas quanto mais alguém relaciona estas unidades, mais se perde a visão das
fronteiras que dão sentido às relações. O exemplo que Wagner é a relação do ‘ambientado’
(environed) com o ‘ambiente’ (environment). Ambiente é um termo relativo, então é definido
em relação com aquilo que ambienta. Mas ao mesmo tempo, como foi definido pelo o que ele
ambienta, ele também se define.
Como Wagner pontua, este paradoxo é inerente em uma aproximação teorética como a
(mas não duma maneira exclusiva) da ciência ocidental, que emprega conceitos reflexivos e
dialéticos (relativos um a outro) com um enquadramento linear causal. Ou seja, no qual
ambos os modos de simbolização são empregados simultâneamente. Se a ação de relacionar é
relativa para aquela de definir, e estas são ambas dependentes de cada uma, então tentar
imaginar ambas ao mesmo tempo resulta no paradoxo acima. Este paradoxo parece
inescapável, na medida que “como estes efeitos são reflexivos (por exemplo aquele que “é
simbolizado” trabalha seus efeitos, por sua vez, sobre aquele que ele simboliza), todos os
esforços simbólicos são mobilizados em qualquer ato de simbolização”30. (1975: xv). Isto
significa que a atenção deve focar-se em qualquer momento em um destes modelos, deixando
o modo oposto para ser percebido como uma ‘motivação’ ou compulsão; e também que toda
cultura favorecerá um modo como apropriado à ação humana, e a outra como inata ou dada. É
escolhendo uma ou a outra como a esfera de ação de alguém que constitui-se a negociação
deste paradoxo. Na visão científica de mundo ocidental, então, ‘natureza’ como componente
figurativo é tomado como ‘inato’ e é concebido como fluxo de transformação diferenciadora,
mas que é precipitada exatamente por nossos “esforços literais e sistemáticos de atrelá-los e
entendê-los”31 (1977: 394). A ciência provê a “continuidade relacional que junta fenômenos
naturais como entidades palpáveis”32 (ibid: 395). Porque fenômenos naturais como elementos
figurativos assimilam o contexto que a ciência porvê para eles, eles então aparecem como se
as leis científicas fossem parte da ‘cultura’, ou seja, elas são ‘abstrações’ da natureza elas
devem ser separadas por causa, Wagner sugere, da “visão de mundo semântica de nossa
30 “since these effects are reflexive (ie that which “is symbolized” works its effects, in turn, upon that which it
symbolizes), all symbolic efforts are mobilized in any act of symbolization.”
31 “systematic and literal efforts at harnessing and understanding it”
32 “relational continuity that joins natural phenomena together as a palpable entity”
48
civilização maior, racionalista”33 (ibid: 395), que é literal. Nós Ocidentais 'mexem' com
‘cultura’, não com natureza. Mas nossas tentativas de entender a natureza são, por isso, tanto
literalmente como figurativamente relacionadas a ela - ciência é tanto uma replicação análoga
da natureza, e está incluída nela como parte da ‘cultura’ humana. Ela tanto precipita seu
objeto e é incluída por ele. “A parte é posta contra o todo que a contém, um paradoxo que é
sustentado pela percepção de que a natureza que endereçamos incorpora a ordem relacional
pela qual nós a compreendemos, e um paradoxo que é negociado pelo efeito contextualmente
isolante da construção literal”34 (ibid: 395). Assim, “a cultura da ciência”, a fim de negociar
este paradoxo, está continuamente se separando da natureza que a inclui, mas ao fazê-lo, se
inventa.
Isto pode ajudar-nos a entender a forma na qual o LBA organiza o seu conhecimento
da Amazônia que, como mostrei, parace conter a oscilação paradoxal entre os processos
recortados de um todo que devemos, por isso, conhecer, e sua reintegração em uma
complexidade que nós não conhecemos, sempre dando a impressão que que mais a ser
conhecido.
Tomada como ‘natureza’, a Amazônia é vista como aquilo que vale por si mesma; é o
‘inato’ figurativo comum à construção de sentido científica ocidental. É constituída por um
número de eventos e fenômenos que apenas ‘são’; eles não substituem nada. O LBA se pôs a
tarefa de fazer sentido da Amazônia, e desta forma, isto demanda a relação destes eventos em
padrões e processos, que proporcionam um contexto relacional a partir do qual dar sentido a
estes eventos. De toda maneira, seguindo Wagner, se estes fenômenos naturais são
simbolizações figurativas, elas assimilam este contexto disponibilizado a eles pelo LBA (ou
‘ciência’), de forma que os processos de ‘Química da Atmosférica’, por exemplo, não ‘sirvam
por (stand for) este fenômeno na Amamzônia, mas são os fenômenos.
Como Wagner evidencia, no entanto, o ato de relacionar estas partes distintas precipita
a ‘transformação reflexiva’ figurativa, que diferencia estes padrões. Então, o LBA, ao
33 “the semantic world view of our larger, rationalist civilization”
34 “The part is set against the whole that contains it, a paradox that is sustained by the perception that the nature
we address embodies the relational order through which we comprehend it, and a paradox that is negotiated
by the contextually isolating effect of literal construction”
49
relacionar estes fenômenos em processos e sistemas, na verdade, precipita a modalidade
oposta, o inato ‘natureza’ em si. Assim, ao tentar relacionar estes eventos e depois
processos, o que se torna pressão é as definições das unidades em si, e isto constitui o domínio
da natureza. ‘Complexidade’ se torna natural. Como havíamos visto, investigação em um
destes processos parece borrar os limites de qualquer processo. Assim, os processos
biogeoquímicos que acontecem nas plantas têm um efeito na ‘atmosfera química’ e ambos
têm um efeito no “armazenamento e ciclo carbônico”, como vimos no exemplo dado acima,
que fala da relação entre a floresta e as chuvas. Cada processo, ao ser relacionado, gera a
necessidade de definir mais o que são as unidades de estudo. A situação é causada pela noção
de que todas estas unidades podem ser relacionadas para dar um todo coeso, e que o que está
sendo relacionado são as unidades separadas; mas isto causa a noção de que este todo é
complexo com unidades pobremente-definidas. Assim, quando concentrando na separação
entre os processos, o que empresta a estes processos sentido e simultaneamente os confunde é
que eles podem ser relacionados; e quando concentram-se nas relações, o que empresta a estas
relações sentido e simultâneamente os confunde é que eles são processos e fenômenos
separados em relação.
Assim, um processo constante do que Wagner (1975) pode chamar ‘invenção’ e
‘contra-invenção’. É o ato de tentar relacionar estes fenômenos em padrões coesos que
explode em uma miríade de outros processos separados, processos que sempre estiveram lá,
ou seja, são ‘dados’. Em outras palavras, é no processo de tentar relacionar estes processos
que o que é jogado para fora, ('precipitada') é ‘natureza’. A fim de ser relacionado, eles
precisam o contexto literal, que eles então assimilam. Assim também é o ato de tentar
entender a Amazônia que ‘inventa’ a Amazônia que eles estão tentando conhecer. O todo está
constantemente em movimento. Esta relação dialética e reflexiva, então, colocada em uma
enquadramento casual, é o que a sensação de haver sempre mais a conhecer, enquanto ao
mesmo tempo, permite aparecer como se existissem duas noções de ‘natureza’ como a
Amazônia, uma esquematizável e simples, a outra complexa e desconhecida. Nossas
simbolizações literais se tornam natureza, mas também explodem natureza de si mesmas. Os
vários processos foram ‘extraídos’ da Amazônia, e por isso devem ser capazes de ser somados
para dar a Amazônia, mas o processo de extraí-los e então relacioná-los produz um resíduo
relacional, então, o que é ‘somado’ aparece como mais do que foi extraído, mas será sempre
assimilado, causando um novo resíduo para ser jogado. A complexidade está sempre
50
aumentando, mas sempre esteve lá. Isto, eu sugiro é uma dinâmica constantemente movente e
alternante.
Assim, a Amazônia, como revelada, como uma rede de processos que interagem,
borrando as distinções entre cada processo separado, engendrará um esforço para melhor
definir os processos em estudo. Isto revelará a artificialidade do esforço, e causará uma nova
totalidade para ser revelada. As relações de fato trazem os processos para frente, e os
processos engendram as relações, causando um efeito de figura - fundo na medida que o foco
de atenção se move entre processos relacionados e definidos, que foram cortados de uma
totalidade que estas relações criam e ao fazê-lo transformam. Então a Amazônia está em uma
relação dialética e reflexiva com as noções que inventamos para entendê-la. Ela é inventada
por e investe nessas noções. A parte é colocada contra o todo que a contém. Este paradoxo não
é óbvio para aqueles que trabalham no LBA, na medida que não é comentado nem parece
afetar particularmente seu trabalho diretamente, se coloca no movimento que liga o inato com
o construído, explodindo em um novo ‘inato’ que, à pressão da ligação, sempre foi inato. Não
é que a Amazônia ‘em teoria’ seja esquematizável e conhecível, mas ‘na prática’ não é; ao
contrário é ambas. Não pode nada além de ser. Isto não é, eu não acho, uma acusação de um
realismo inocente, mas uma tentativa de contabilizar a dinâmica de construção de sentido que
é interessante para a antropologia, mas incidental talvez para os cientístas. É claro, estes
cientistas que não acham isto incidental em seu trabalho protestarão e protestam. As ‘Guerras
da Ciência’ são evidência disto35.
Wagner deixa muito claro que este paradoxo está no coração da ciência, e também dos
esforços antropológicos. Como eu mostrei, sua teoria semiótica é uma teoria de inclusão.
Assim nós encontramos o mesmo tipo de paradoxo quando a antropologia tenta separar as
‘culturas’, mas o simples ato de fazê-lo em si precipita um evento de comunicação e
interrelação entre a culura nativa e a do antropólogo isso dissolve as fronteiras entre estas
35 Esta forma de perceber a organização do conhecimento científico é talvez outra forma de alcançar o mesmo
ponto a que Latour chega, no qual ele sustenta que fatos podem ser reais e construídos ao mesmo tempo.
Desta forma, é vulnerável ao mesmo tipo de crítica que mira as idéias de Latour – que ela está propondo
algum tipo de ‘falsa consciência’, ou seja, as ciências pensam que elas estão descobrindo a realidade, quando
na verdade estão a construindo. Eu chegarei a isto mais tarde. Uma diferença importante entre Latour e
Wagner, no entanto, talvez resida na idéia de que enquanto Latour está tentando superar o paradoxo inerente
às oposições binárias convencionais a partir de sua dissolução, Wagner está tentando revelar e trabalhar com
o paradoxo. Isto, eu acho tem a ver com a reflexividade aparente na obra de cada autor, que endereçarei mais
particularmente nos estágios finais da dissertação.
51
culturas específicas. As sociedades que nós construímos para os outros vêm a ser vistas como
transformações das sociedades que fazemos para nós mesmos, como Strathern coloca
(1992b). A resposta de Wagner para esta conclusão é recusar negociar o paradoxo no cerne da
produção de sentido humana, mas revelá-la e até provocá-la. Sua abordagem dailética é
uma”crítica” das visões de mundo, (apesar de ser uma visão de mundo em si), quais objetivos
em revelar estes aspectos que nós esnobamos, revelando o que nós tomamos como inato ser
(uma vital e inescapável) faceta do mesmo processo de construção de tudo o mais a que
atribuímos sentido.
Desviando por agora para as implicações desta análise aparentemente construtivista
para cientistas, e para estes que os estudam (o que eu abordarei a partir de uma direção
diferente no próximo capítulo), nós podemos nos mover para o ponto de convergência que
mencionei que estava tentando elucidar entre o eixo conceitual do LBA-Amazônia, e a página
da internet-trabalho de campo. Podemos ver, então, que a sensação que tive ao tentar produzir
sentido do LBA pode resultar no mesmo tipo de trajetória dialética. Que o LBA se apresente
na página da internet como uma entidade unificada, como apresenta a Amazônia, me faz
correr os mesmos tipos de de problemas conceituais que os cientistas quando eu venho a
examinar as relações entre as partes que fazem esta unidade. A imagem de totalidade que
tinha a partir da página na internet no início abre caminho para a sensação de complexidade
infinitamente crescente e que sempre algo mais a conhecer. Strathern trata este problema
em Partial Connections (1991), abrindo sua análise com uma (talvez unintencional) paráfrase
da formulação de Wagner, que eu cito longamente porque é um resumo brilhantemente
conciso de todo o complicado livro:
“eu desejava levar o leitor através de várias ‘posições’ que marcaram recentemente abordagens
antropológicas em mudança para a escrita e representação em etnografia, a fim de criar uma posição a
partir da qual reconsiderar a possibilidade de comparação inter-cultural para a Melanésia. Mas parece
impossível dividir o trabalho sem parecer dar peso desproporcional a uma ou outra dimensão. Tanto o
excurso teorético poderia parecer como uma introdução aos problemas comparativos, ou o último
pareceria um mero apêndice para o anterior. Um poderia implicar o todo da disciplina onde o outro se
preocupa somente com uma pequena região do mundo; ao contrário, o foco no instrumento particular
do esforço onde o outro poderia oferecer dados concretos em sua totalidade realística. Ainda assim,
cada um poderia ser igualmente sujeito a argumentação complexa.
Sendo que o problema de proporção também aparece na confrontação antropológica com a
52
complexidade de seu material, parece válida a exploração. Mais que uma narrativa esem jogo aqui.
Examinar a cultura das práticas argumentativas nos leva ao argumento comparativo sobre a forma que
a cultura é praticada.”36 (Strathern 1991:xiii)
Strathern endereça estes problemas para confrontar um antropólogo tentando organizar
seu material, quando este material ainda parece organizado pelos atores que estão sendo
descritos. Estes problemas, ela sugere, podem ser vistos como aqueles de ‘escala’ ou mudança
de escala. Por ‘mudança de escala’, Strathern quer dizer “mudança de perspectiva”37
(1991:xiv), ambos em termos de aproximar ou afastar como indo de uma visão de conjunto
como a página na internet provê para locais mais específicos como os descritos em meu
trabalho de campo – e o que ela chama “dominando” (domaining), movendo-se de uma
perspectiva a outra – como por exemplo entre ‘salas’ no meu caso. Ela aponta que o problema
da complexidade aparece primeiro para ser ‘simples’, ou seja, quanto mais perto se olha, mais
detalhadas as coisas se tornam.- “questões mais complexas produzem respostas mais
complexas”38 (1991:xiii). Mas o problema que isto gera para os antropólogos é que os
fenômenos e variações parecem nunca acabar. Como mostrei com minha descrição do LBA,
quanto mais perto alguém olhar, mais variação interna aparece ali, eclipsando a importância
das fronteiras iniciais desenhadas em torno do fenômeno a fim de organizar o conhecimento
disto.
Strathern mostra que esta sensação vem de um entendimento do mundo como
composto de entidades discretas que podem providenciar uma perspectiva parcial de todo
fenômeno. Isto, é claro implica uma certa idéia também de fenômeno como algo inteiro e
'particionável' (partible). Mas é a noção mesmo de 'parcionalidade' que dá uma pista na
implausibilidade desta idéia. Se aumento minha visão para incluir mais do que uma ‘visão’ ou
36
“I wished to take the reader through various ‘positions’ that have recently marked changing
anthropological approaches to writing and representation in ethnography, in order to create a position from
which to reconsider the possibility of cross-cultural comparison for Melanesia. But it seemed impossible to
divide the work without appearing to give disproportionate weight to one or the other dimension. Either the
theoretical excursus would seem like an introduction to comparative issues, or the latter would seem a mere
appendix to the former. The one could implicate the whole of the discipline where the other concerns only a
small region of the world; conversely, the on focuses on a particular instrument of endeavour where the other
could offer concrete data in their realistic totality. Yet each might be equally subject to complex argument.
Since this problem of proportion also appears in the anthropologist’s confrontation with the complexity of his
or her materials, it seems worth exploration. More than narrative is at stake here. Examining the culture of
argumentative practice takes us into comparative argument about the way culture is practised.”
37 “switching perspective”
38 “more complex questions produce more complex answers”
53
disciplina do LBA, ou a amplio a fim de capturar todos os nimos detalhes de apenas uma
disciplina, sempre a sensação de que o fenômeno pode ser infinitamente multiplicado,
exagerada por nossa habilidade para fazer ambas ações descritivas: “complexidade é
culturalmente indicada na ordenação ou composição de elementos que podem também ser
apreendidas a partir da pespectiva de outros outros”39 (1991: xv). O efeito é quase o de um
caleidoscópio, então cada transferência ou mudança de escala, se sabe que irá produzir outro
elemento para levar em conta - e se pode continuar sempre girando. Isto também engendra um
sentido de perda de informação por concentrar em qualquer escala em particular. A idéia de
um ‘todo inteiro’, então, pode ser tomada como um tipo de escala externa. Que sua descrição
parcial está faltando (lacking) é dado pelo fato que ela nunca é suficiente para levar em conta
aquele todo. Strathern decreve duas formas de organizar o conhecimento que conformam em
formas diferentes esta idéia de um todo em escala “mapa regional” e “genealogia
bifurcada”40 (1991:xvii). A primeira é dada sua ‘escala’ a partir de pontos centrais que
permacem fixos e nos quais alguém pode aproximar-se e distanciar-se do fenômeno, a única
perspectiva que muda é aquela do observador. A segunda implica em um sistema fechado,
como um sistema taxonômico, que possui certos princípios de inclusão e exclusão então
qualquer fenômeno pode ser colocado em relação a outros. No entanto, apesar dos melhores
esforços da antropologia “fenômenos aparecem esquivando a escala”41 (ibid: xviii).
Em qualquer esforço comparativo, então, o que parece central em uma sociedade ou
no meu caso, em qualquer ‘sala’ por exemplo, pode aparecer como algo incidental ou
periférico em outro lugar qualquer. Como descrevi, esta é a sensação que experienciei ao
mover entre as ‘salas’, e movendo entre os ‘níveis’ dentro do LBA, seja aquele entre a página
da internet e meus locais de campo, ou com os locais de campo em si entre diversos níveis de
pesquisadores. O que é uma parte crucial da produção de conhecimento para alguns não o é
para outros; o que é definitivo do LBA para alguém não o é para outro. Strathern também
aponta para a forma na qual distinções que foram construídas para discriminar entre
sociedades vêm a ser repetidas com estas sociedades em si. Isto poderia ser visto em
diferentes (domínios) termos como os pontos nos quais as fronteiras entre as áreas de pesquisa
se dividem em processos de tentar relacioná-los, então, a forma que alguém discrimina com a
39 “complexity is culturally indicated in the ordering or composition elements that can also be apprehended
from the perspective of other orders”
40 “regional map and bifurcating genealogy
41 “phenomena appear to elude scaling”
54
prática científica entre a Química Atmosférica e a Química Física parece tornar-se ruidosa
quando face ao processo que atravessa ambos e implica ambos no ciclo carbônico total; ou a
partir da minha perspectiva antropológica, ao tentar definir o LBA como feita de diferentes
seções, que estas seções em si interagem umas com as outras; ou seja, os fatores de
discriminação entre eles se tornam internalisados, desta forma as pessoas falam de si mesmas
como ambos LBA e INPA, e apesar do LBA-ECO ser um componente do LBA, todos os
pesquisadores parecem ser parte dele, ou uma multidão deles sequer aparecem nas listas do
LBA-ECO. Mantendo alguns pontos fixos e aproximando-se ou afastando-se temos a
impressão de que mudamos os pontos em si; e ao fechar um sistema de acordo com certos
princípios não pode ser contabilizado o fato de que estes princípios discriminatórios parecem
re-ocorrer em lugares que eles, por definição, não deveriam. Nenhum deles parecem ser
formas suficeintes de contabilizar a complexidade na qual nós nos confrontamos ao tentar
organizar nossos materiais.
Contudo, Strather performa algo do mesmo tipo de movimento analítico quando
confrontado com esta complexidade, como Wagner o faz quando ele escolhe revelar os
paradoxos mais do que negociá-los. O que viemos a perceber é que “a característica
interessante sobre a mudança de escala não é que um pode classificar para sempre em grupos
maiores ou menores, mas que a cada nível a complexidade replica-se em escala de detalhe.
A ‘mesma’ ordem de informação é repetida, mostrando conceitualizações equivalentes e
complexas. Enquanto alguém pode pensar que idéias e conceitos crescem de um a outro, cada
idéia pode também ser vista como um universo completo com suas próprias dimensões, tão
enrugado e involuntário como o último”42 (1991:xvi, ênfase minha). Novamente nós lidamos
com “uma imagem auto perpetuante de complexidade”43 (ibid: xvi). O que isto por sua vez
significa é que esta sensação de crescimento da complexidade pode ser percebida mais como
conservação de complexidade. Uma coisa ‘pequena’ pode ser feita dizer tanto quanto uma
coisa ‘grande’, o que significa que a diferença entre ‘grande’ e ‘pequeno’ parece disaparecer.
Isto, por sua vez, torna difícil sustentar a idéia de que alguma escala inteira externa, um
todo, a partir do qual julgar a complexidade de cada uma de suas ‘partes’ menores e
42 “the interesting feature about switching scale is not that one can forever classify into greater or lesser
groupings but that at every level complexity replicates itself in scale of detail. The ‘same’ order of
information is repeated, eliciting equivalently complex conceptualizations. While me might think that ideas
and concepts grow from one another, each idea can also be seem a complete universe with its own
dimensions, as corrugated and involute as the last”
43 “self-perpetuating image of complexity
55
constitutivas. Que cada parte é sua própria visão então, não implica que a informação foi
perdida ou ganha em relação a alguma entidade total postulada, mas que a complexidade é
conservada em cada nível de análise, dada a “intensidade da percepção de similaridade e
diferença desempenha uma parte igualmente significante na contabilidade do antropólogo não
importa a escala”44 (ibid: xxi). As mesmas coordenadas intelectuais são evocadas não
importa a escala, então as coisas em si se tornam auto-escalares. Alguém pode derivar a
mesma quantidade de informação para não importa o que interesse, o que, por sua vez,
significa que noções de todos a partir dos quais partes foram cortadas se tornam distorcidas
cada perspectiva, ao contrário, provê sua própria dinâmica relacional interna. Complexidade,
como o paradoxo com Wagner, é levado a uma vertente analítica, não algo para ser contido,
mas para ser explorado metaforicamente e narativamente “[D]iferenciação não é depois de
tudo, contida ela transborda as limites”45 (ibid: xxi). Isto, é claro, implica que não uma
perspectiva totalizante, não há uma escala a partir da qual medir. O que parece haver é
movimento constante. Eu voltarei a este ponto quando eu voltar a repensar um conceito que
empreguei por toda descrição, aquele de ‘visões’. Porque visão é uma metáfora
particularmente poderosa para entender a qual tem suas próprias premissas para como o
conhecimento pode ser organizado. Estas premissas, no entanto, como mostrarei, podem ser
retrabalhadas, de acordo com teorias de como nós vemos o que não implica em estase, mas
em movimento.
Que toda perspectiva pareça parcialmente conectada, nesta forma,então tudo é
discriminado a partir elidido com tudo o mais (novamente, cos da formulação de Wagner são
evidentes aqui), era muito a forma que meu exercício etnográfico evocou, como lutei para
integrar uma imagem de uma totalidade definida o LBA enquanto era confrontado com
uma complexidade aparentemente crescente. No meu texto, eu falo de “o LBA” enquanto ao
mesmo tempo lamentando o fato de que não poderia segurar nenhuma estável imagem dela.
Mas Strathern sugere que tentar entender estes dois demanda outra metáfora que não aquela
das 'partes e todos', ou 'mapas e genealogias'. Strathern escolhe aquela do ‘fractal’. O fractal é
um conceito matemático concebido por Mandelbrot (ver por exemplo Mandelbrot, 1982), que
pode contabilizar os processos naturais. É uma figura geométrica não-euclidiana que se
replica e é auto-similar. Strathern escolhe duas imagens fractais em particular, aquela da
44 “intensity of the perception of similarity and difference plays an equally significant part in the
anthropologist’s account whatever the scale”
45 “[D]ifferentiation is not after all contained – it runs riot”
56
Poeira de Cantor (Cantor's Dust) e a Curva de Koch (Koch's Curve). Em termos de escala,
porque um fractal é auto-similar, ele tem invariância escalar ou seja, ele não tem nenhuma
escala natural. Fractais são repetições intermináveis de si mesmos, infinitamente complexos, e
a Poeira de Cantor é usada como forma de entender “irregularidades repetidas”46 (1991:xxi)
que também podem ser lidas como ‘diferenciação’, na qual o mesmo conjunto de instruções
é repetido a cada nível de informação, gerando lacunas mas sem qualquer perda de
informação. O que é gerado são imagens de “mapas sem centros” e “genealogias sem
gerações”47 (ibid: xx). Estes são conceitos sem sentido se os mapas e genealogias em
cartaz são lineares e escalares. Se não são, mas são fenômenos em movimento constante,
então para “mapeá-los” é necessária a aplicação de um tipo diferente de cartografia e um
diferente conceito de topologia. A Curva de Koch é uma imagem de uma linha infinita em um
espaço finito; novamente, isto ecoa a forma na qual eu estava me debatendo ao tentar ‘fazer
caber uma multidão de imagens heterogêneas ‘dentro’ de um todo unificado. Outra imagem
que Strathern emprega é aquela do contato entre superfícies, ou da ‘geometria fractal’ das
superfícies o aperto de alguém em uma ferramenta é na verdade nunca ‘completo’ porque,
em uma escala infinitesimal, a alça e a mão nunca tocam-se de verdade. Cada ponto de
contato pode ser visto com feito de uma 'irregularidade' (bumpiness) que pode ser
infinitamente reproduzida. Isto parece novamente uma descrição pronta da minha inabilidade
em ‘compreender o LBA como uma totalidade. Nós somos lembrados do paradoxo de Zeno,
no qual a distância entre A e B é infinitamente longa. Eu me demorei nestas imagens porque
elas capturam duas coisas muito bem. A primeira é como ‘imagens’, elas representam em suas
formas paradoxais ‘o LBA a partir da minha descriçao; a segunda é que eles também provêm
uma maneira de pensar porque elas o representam.
O que eu estou descrevendo, então, não é meramente o LBA, mas minha tentativa de
entender o LBA. Isto foi caracterizado por uma sensação de desproporção e dissonância
“quando os centros de atenção não se mantém estáveis”48 (Strathern, 1991:xviii). O
antropólogo se face a uma falta de conexão desbalanceada, e um sentido de
insuficiência, como se a “capacidade para conceituação, alguém poderá dizer, excedesse os
conceitos que produz”49 (ibid:xv). Voltando para o processo de prática analítica em
46 “repeated irregularity”
47 “genealogies without generations”
48 “when the very centres of attention do not hold steady”
49 “capacity for conceptualization, one might say, outruns the concepts it produces”
57
antropologia, então, pode ser visto que as ‘lacunas’ que aparecem no conhecimento são
geradas pelo ato mesmo de fazer as perguntas. Da mesma forma, talvez, que sugeri que o
‘inato’ como um fenômeno complexo é constantemente 'jogado fora' (precipitated out) da
maneira em que o LBA concebe da Amazônia e a Natureza, o 'inato' 'jogado fora' (precipitated
out) da análise antropológica é a idéia de que o argumento pode sempre ser repetido, que
responder a pergunta de alguém gera uma outra. Isto é o que deve ser tomado como ‘dado’ na
análise antropológica, a replicação da complexidade – perplexidade. É o ato mesmo de
analisar que gera estas novas questões; em adição a toda padronização que é criada está o
conhecimento de que aquela padronização pode ocorrer novamente. O que é inato, então, aqui
aparece como incerteza, ou novidade (novelty), a compreensão do movimento constante.
Wagner faz uso da imagem de uma holografia, uma forma que nega a escala como estratégia
analítica, como cada parte contém e é capaz de reproduzir a complexidade do todo. Assim,
para o Gimi, “um pênis faz de si um feto para dar lugar a outro feto com um feto crescido”50
(Wagner, 1991:169); imagens da reprodução do Gimi são metonímicamente relacionadas
somente para ser substituídas e diferenciadas. Relacionar é também separar. Como Wagner
escreve “é importante manter no pensamento que o processo árduo de diferenciação faz parte
tanto da holografia …quanto o motivo em si”51 (1991:169). Strathern nota que “a imagem
contém seu próprio efeito de remainder, no ato de imaginação”52 (1991:xxiii) o remainder
sempre serve para propulsar a próxima questão, que gera um remainder, que propulsiona a
próxima questão. O processo parece sem fim.
Há, por isso, algumas analogias explícitas que devem ser examinadas aqui. Na
proposição de uma geometria fractal, como forma na qual estruturar e entender nosso
conhecimento dos outros, e também para estruturar sua narrativa, Strathern está postulando
uma analogia particularmente antropológica que é inerente por todo o seu trabalho. As
manoplas conceituais que ela delicadamente joga na frente das ‘metáforas de raiz’ (root
metaphors) do pensamento ocidental são tecidas através de processos de retrabalhar a noção
ubíqua de 'todos que englobam suas partes' (por exemplo Strathern, 1992b), que encontrar-se
refratada na noção de propriedade (por exemplo Strathern, 1988a) e posse (por exemplo,
Strathern, 2001), a noção de sociedade e a noção do individual (por exemplo Strathern 1988a,
50 “a penis makes itself a foetus to replace another foetus within an ‘enlarged’ foetus”
51 “it is important to keep in mind that the arduous process of differentiation is as much part of the
holography….as the motif itself”
52 “the image contains its own remaindering effect, in the act of imagination”
58
1996), entre outras. E estes desafios têm em sua raiz o trabalho etnográfico da Strathern no
Mt. Hagen, e seu conhecimento da Melanésia. Toda sua prática etnográfica joga com esta
tensão, mas ultimamente é sim capturar a natureza ‘distinta da sociedade Melanésia’53
(Strathern, 1988a) assim como é revelada por e revela a ‘natureza distinta’ de nós mesmos no
Oeste. Suas manoplas são feitas para caber nas mãos ocidentais, mas mãos que foram
moldadas, alongadas, extendidas, lidando com materiais melanésios. Como ela diz em Partial
Connections, ela “deliberadamente tentou encontrar análogos na experiência melanésiana para
a experiência acadêmica, que, ao contrário do que alguns de seus modelos nos dizem, a
complexidade mantém sua própria escala”54 (1991:107). Assim, às vezes, o Ocidente e a
Melanésia são usados como contrapontos, e em outros, eles são trazidos junto, mas sempre
com esta relação distintiva em questão. Isto é o movimento da narrativa, um distanciamento
esclarecedor de dois pontos e em seguida uma justaposição generativa subsequente das
posições transformadas, o que eu acho, estrutura seu possivelmente mais aclamado livro The
Gender of the Gift (1988a). Seu movimento é aquele de figura-fundo reverso que tem tanto as
experiências melanésianas e ocidentais a constituindo, servindo para desestabilizá-la ao
mesmo tempo que a propulsiona, um movimento capturado por imagens que ela usa em
Partial Connections: “A poeira de Cantor sugere uma alegoria entre como os Melanésios
assim lidam com o imaginário e como antropólogos lidam com as manifestações das conexões
parciais por eles presumidas devem existir”55 (1991:114). O pensamento antropológico se
torna nesta imagem um processo interativo replicativo, e ao mesmo tempo necessário para
uma reconceitualização da prática-conhecimento (knowledge-practice) melanésio; o
observador e o observado são assim dissolvidos nesta forma, para ser reinstalado de uma
forma diferente.
Wagner e Strathern são eles mesmos interdigitados, cada um citando o outro quando
discute a noção de 'fractal'; isto aponta não meramente para uma tradição intelectual, mas
um fundo etnográfico dividido. Nesta explicação de seu conceito dos Daribi (na Melanésia)
da “pessoa fractal”, Wagner (1991:162) enfatiza a 'não dimensionalidade' dos fractais que
não podem ser expressados em números inteiros, e nesta condicão opõem-se a noções de
singularidade ou pluralidade através da característica de “aparente diferenciação desenvolvida
53 “distinctive nature of Melanesian sociality”
54 “deliberately tried to find analogs in Melanesian experience to the academic experience that, contrary to
what some of our models tell us, complexity keeps its own scale”
55 “Cantors dust suggests an allegory between how Melanesians thus handle imagery and how anthropologists
handle the manifestations of the partial connections they presume must exist”
59
sobre a congruência universal e intercambialidade”56 (1991:164). Ele demonstra esta lógica
fractal com nomes Daribi, que são relacionais, não representativos; eles denotam
características relacionais de congruência, são abstrações de poai”57 (1991:164) (o
particípio Daribi do verbo poie ‘ser congruente com’). Nomes designam algo que é tanto
menos e mais que a pessoa nomeada através de uma noção radicalmente relacional de
identidade. E para capturar isto em outra forma, Wagner escreve “uma forma holográfica e
auto escalar assim difere de uma ‘organização social’ ou ideologia cultural naquilo que não é
imposto assim como organizar e ordenar, explicar ou interpretar, um conjunto de elementos
disparatados. É uma instalação dos elementos em si”58 (1991:166). Como “modo de
entendimento”, ele insiste que isto é uma repercepção (1991:170) – “alguém poderá dizer que
a holografia indígena é re-interpretaçåõ das idéias do antropólogo, e no processo
reinterpretação da interpretação em si”59 (1991:171). Como Omalyce, a imagem mítica
Daribi de origem, a relação entre o nativo e o antropólogo é envolvida em um processo
infinito de interligação indistinguível, uma fronteira fractal, na qual as relações não são meios
para unir elementeos díspares porque todos não são somas de suas partes. O fractal em si
(outra imagem, desta vez, que Strathern desenhou a partir de Haraway (1991)[1985]) um
“cyborg de um pensamento”60 (Strathern 1991:115), não só porque é uma metáfora mista, um
conceito matemático a serviço da antropologia, mas porque o que ele conduz é uma unidade
contrastada (contrasted unity) a partir da qual as duas forças opostas extendem-se a cada uma,
desajeitadas e desbalanceadas. Mas o sentido de falta de proporção e conectividade parcial
entre estas percepções é o que nos permite imaginar a extensão de ambos. Não oposição
rígida, mas cumplicidade vem a mente como uma forma melhor de descrever esta imaginação
(imagining) particular.
Eu explorarei esta noção de cumplicidade ao longo da minha dissertação. Eu pretendo
que isto capture a criação compartilhada de um ato ‘ilegal’ ou subversivo, uma colusão que
causa confusão. Um cyborg é uma máquina monstruosa, nas palavras de Haraway
56 “apparent differentiation developed upon universal congruence and interchangeability
57 “instantiations of poai”
58 “a holographic or self-scaling form thus differs from a ‘social organisation’ or a cultural ideology in that it is
not imposed so as to order and organise, explain or interpret, a set of disparate elements. It is an instantiation
of the elements themselves”
59 “one might say that the indigenous holography is re-interpreting the anthropologist’s ideas, and in the
process re-interpreting interpretation itself”
60 “cyborg of a thought”
60
“comprometido com a parcialidade, ironia, intimidade e perversidade”61 (1991 [1985]: 151).
Haraway usa isto como uma ‘blasfêmia’, e apesar do uso de Strathern do termo ser talvez
menos polêmico e retórico, não é menos poderoso, como uma forma na qual tentar entender
algo que é ‘impensável’. De forma semelhante, o fractal na matemática foi visto como
monstruoso – “Estas novas estruturas foram consideradas… como …’patológicas’…como
uma ‘galeria de monstros’, de forma semelhante a que a pintura cubista e a música atonal
estavam desagradando os padrões estabelecidos de gosto na arte por volta da mesma
época”62. Eu gostaria que ‘cumplicidade’ então aqui desempenha o papel de um aviso de dois
gumes assim como uma tentativa de capturar o que eu vejo como um aspecto essencial do que
significa ‘relacionar’. As relações que eu exploro nesta dissertação, entre o antropólogo e a
ciência, com a ciência do LBA e o mundo com que se relaciona todos estes participam um
no outro, e uma investigação acerca das formas cúmplices nas quais eles o fazem é
intencionada para contabilizar a dinâmica figura-fundo inerente em qualquer coisa que seja
‘normal’ ou ‘monstruosa’, ‘pensável’ ou ‘impensável’. A colusão é para ser abordada com
cuidado, a medida que pode facilmente tornar-se exploração; e exploração é mais e menos do
que pode parecer, como Strathern demonstra (Strathern, 1987).
Por isso o segundo ato analógico para ser explorado é o meu próprio. Eu originalmente
igualei a forma na qual o LBA parece organizarseu conhecimento com a forma na qual a
antropologia o faz para si, na medida que ambas parecem gerar a sensação de um resíduo
relacional e complexidade crescente. No entanto, um aspecto interessant de comparação entre
estes dois modelos é aparente. A partir de uma perspectiva antropológica, a noção de
complexidade sempre crescente pareceu gerar, como Strathern nota (1991), um tipo de
desespero do esforço comparativo, e como demonstrei, certamente quando alguém está frente
a tal proliferação de pontos de vista se parece perder qualquer forma de representá-las como
um todo. É por isso, pessoalmente, que acho a imagem de Strathern do fractal tão poderosa
poruqe ela permite a alguém pensar através de algo que foi previamente impensável. A
sensação de crescimento da complexidade abre caminho a alguém na qual a complexidade é
repetida, e alguém pode chegar a termos com os seus processos conceituais próprios como
algo produtivo, ao invés de detrativo. Isto serve como um antídoto à paralise pós-moderna
(Strathern, 1988b). No entanto, na prática científica como a descrevi para o LBA, não este
61 words “committed to partiality, irony, intimacy and perversity”
62 Freeman Dyson, “Caracterizando a irregularidade”, Science, Maio 1978
61
tipo de desespero. Como Wagner aponta, isto se deve ao fato de que “o trabalho da ciência é
‘negociar seus paradoxos, mais do que jubilosamente expô-los…Ciência [e]stabelecida, com
suas escolas, suas cadeiras e suas literaturas, é um ‘compromisso’ de trabalho altamente
tentador e negociável, adiando as implicações paradoxais de suas idéias (ou até fabricando ou
subescrevendo a teorias que as negam) para que possa continuar com seu trabalho de negociá-
los empirica e experimentalmente.”63 (1977:389) Este processo de constantemente expandir a
complexidade é negociado ao constantemente subsumir o que se cria sobre o que existe, ou
seja, perpetuamente reinventar a visão de mundo de alguém do ‘inato’. Eu sugiro que a forma
de organizção do conhecimento que parece prescindir no LBA como descrevi a partir da
página da internet baseia-se na idéia de partes recortadas a partir de todos e que toda mudança
de escala que confunde aquele todo eventualmente é acomodado para com a noção mesma
que ela inicialmente confunde. O conhecimento científico pode, a partir daí, confortávelmente
ser definido como uma acumulação de fatos, mais do que uma acumulação de complexidade,
mesmo apesar de aparecer como ambos. Apesar de parecer que a ciência é um alvo vulnerável
neste sentido, eu sugiro que a maior parte dos lugares nos quais o paradoxo pode ser
localizado, o que na formulação de Wagner seria em todo o lugar, aqueles envolvidos não
vêem a si mesmos como lidando com paradoxos, de forma alguma. A flecha de Zeno não
pode alcançar a tartaruga – mas o faz. Superfícies não podem tocar – mas elas o fazem.
Mas nos permitindo a imagem destes paradoxos, eu sugiro que ao contrário da
afirmação de Wagner, a antroplogia é em algum sentido, negociá-los. De qualquer forma, este
tipo de negociação é diferente daquela negociação na qual Wagner caracteriza a empresa
ceintífica. Ali, um modo simbólico é escolhido como cabendo, ou disponível para a ação
humana e construção, e a outra como inata ou dada. Isto, como sugeri permite a ciência
continuar ‘crescendo’ em complexidade, enquanto a assimilando ao mesmo tempo. Mas uma
antropologia de ‘mente fractalizada’ não pode escolher nesse sentido mas é claro, o faz. Ela
gera seus próprios paradoxos, e não pode escapar das metáforas raiz que ela desenha ao
final, o fractal será, tenho certeza, mostrada como um defunto analiticamente, e outra idéia
tomará o seu lugar. Mas o que fazemos em reunir ou revelar nossos paradoxos na antropologia
talvez seja permitir-nos mais formas variadas de lidar com a complexidade do que a que
63 “the business of science is to “negotiate” its paradoxes, rather than to gleefully expose them...[E]stablished
science, with its schools, its chairs, and its literatures, is a highly tentative and negotiably working
“compromise”, postponing the paradoxical implications of its ideas (or even contriving or subscribing to
theories that deny them) so that it can get on with its work of empirically and experimentally negotiating
them.”
62
enfrentamos. Na verdade, nós temos quantas formas quanto existem; temos quantas opções
quanto as diferentes culturas, subculturas, pessoas e práticas que estudamos têm. Eu venho
lustrando este conceito ‘complexidade’ em meu texto, associando a ele uma posição como o
oposto de ‘simplicidade’ a fim de demonstrar a forma na qual ela vem a figurar como forma
infinitamente proliferante no ato da análise. Este lustrar é talvez mais simplesmente colocado
em oposição entre o que é ‘conhecido’, e o que é ‘desconhecido’. Para o LBA a noção parece
conter esta oscilação. No entanto, ‘complexidade’ pode ser figurada em muitas formas
diferentes.
‘Complexidade’ se tornou algo como uma palavra da moda hoje, e uma grande
quantidade de literatura foi produzida sobre o tema. Mas como Mol e Law apontam, “a
mobilização sem fim desta única tropa, na qual simplifação figura como uma redução de
complexidade, deixa uma grande quantidade para descobrir e articular. Nós precisamos de
outras formas de relacionar a complexidade”64 (Mol e Law, 2002:6). Em um artigo no
mesmo volume, Mol terminar sua parte nos tipos de complexidade que emergem comparando
dois tratamentos para a obstrução vascular ao apontar que “é importante não estar espantado
com, ou em diferença a, complexidade, mas encontrar formas de analisá-las. Para certificar-
se, o reino sócio-copróreo-técnico da medicina carece da mágica da matemática, onde a
imagem complexa do fractal aparece como o produto de uma simples equação de uma linha.
No entanto, desvendando o que a primeira vista parece barroco para agarrar pode permitir
dispô-las em uma séria de estórias lineares”65 (Mol 2002: 248-249). A abordagem de Mol é
uma tentativa de contabilizar a complexidade em um conjunto – medicina – onde lidar com tal
complexidade não é meramente um esforço intelectual, mas uma tarefa prática e urgente. Ela
quer “abrir” as complexidades assim elas podem ser discutidas. Mas a noção de complexidade
‘barroca’ que ela usa é uma referência a outro tipo de análise da complexidade, no mesmo
volume. Neste artigo, Chunglin Kwa traça as trajetórias históricas de Darwin a Deleuze,
Lord Kelvin a Prigogine de dois tipos de complexidade, barroca e romântica, que têm
“conceitos muito diferentes da estrutura da realidade”66 (Kwa, 2002: 27), apesar de que
“ambos são discursos na complexidade que estão disponíveis para os cientistas, e os quais os
64 “the endless mobilization of this single trope, in which simplification figures as a reduction of complexity,
leaves a great deal to discover and articulate. We need other ways of relating to complexity”
65 “it is important not to be in awe of, or in deference to, complexity, but find ways of analyzing it. To be sure,
the socio-corporeo-technical realm of medicine lacks the magic of mathematics, where the complex fractal
image appears as the product of a simple one-line equation. However, unravelling what at first sight seems to
baroque to grasp may allow one to lay it out in a series of linear stories”
66 “quite different conceptions of the structure of reality”
63
cientistas empregam”67 (ibid: 46). A complexidade romântica favorece “metáforas
estruturais” e provêm uma “natureza que pode ser conhecida e abordada a partir do ponto de
vista de um conjunto fixo de leis naturais”68 (ibid:46). uma unidade subjacente para a
heterogeneidade no mundo, um holismo de ordem maior, que pode ser descoberto. A
complexidade barroca, por outro lado, “observa o rastejar mundano e o enxame da matéria”69
(ibid: 26). Citando Liebniz, Kwa enfatiza o que poderíamos agora ver como a natureza fractal
desta complexidade “Cada porção de matéria pode ser concebida como um jardim cheio de
plantas ou um poço cheio de peixes. Mas cada galho de uma planta, cada gota de seus fluidos
corporais, é também um jardim, ou tal poço”70. A complexidade barroca usa outro conjunto
de metáforas, evocando imagens ou elementos em um movimento constantemente turbulento.
A noção mesma de qualquer totalidade de ordem maior é chamada a questão, na medida que
não pode ser separada de suas ‘partes’. Seguindo Spinoza, onde a complexidade romântica é
mais como natura naturata ‘natureza naturalizada’ a complexidade barroca está mais
perto da natura naturans ‘natureza naturalizante’. Se, como Kwa sugere, “incerteza no caso
barroco é ontológica, não epistemológica”71 (ibid: 47), então isto apresenta-se como uma
maneira de pensar como em minha análise as formas nas quais a organização do
conhecimento do LBA, e da antropologia, 'jogam fora' (precipitate out) diferentes tipos de
complexidade ‘inata’ a anterior crescendo somente porque é constantemente re-percebida
em relação a um todo englobante, a posterior conservada porque está constantemente
reinventando aquela imagem mesma de totalidade. A incerteza da antropologia de fato parece
ontológica.
Eu (des)centralizei este capítulo em torno do trabalho de Strathern e Wagner, porque
suas abordagens aparecem para mim como sendo muito fruitíferas para tentar aceitar os
problemas analíticos que estudar uma unidade contrastada (contrasted unity), como o LBA,
parecem explicitar. Contudo, o problema da ‘unificação da ciência’ moldou o estudo do
‘social’ das décadas da ciência (ex. Kuhn 1962, Lakatos, 1970). E isto não foi menos que uma
problemática obrigatória para muitos estudos da ciência contemporânea. Knorr-Cetina
escreveu extensamente sobre a desunidade da ciência como composta por “culturas
67 “both are discourses on complexity that are available to the sciences and on which the sciences draw”
68 “nature that can be known and approached from the point of view of a fixed set of natural laws”
69 “observes the mundane crawling and swarming of matter”
70 “Every bit of matter can be cconceived as a garden full of plants or a pond full of fish. But each branch of
the plant, each drop of its bodily fluids, is also such a garden or such a pond” (tradução do Kwa 2002: 26)
71 “uncertainty in the baroque case is ontological, not epistemological”
64
epistêmicas”72 (por exemplo Knorr-Cetina, 1999), ao invés de disciplinas ou especialidades,
a fim de demonstrar os diferentes tipos de “maquinário do conhecimento” (knowledge
machinery), as “diferentes arquiteturas das abordagens empíricas”73 (Knorr-Cetina, 1999:3)
que constróem os cientistas. Seu trabalho enfatiza as divergências ontológicas e
metodológicas nas ciências naturais, levando dois tipos desta cultura epistêmica, física de alta
energia e biologia molecular, e usando uma como um contraste com o qual traçar o
maquinário do conhecimento específico do outro ao longo de eixos conceituais, territoriais e
temporais, e a extensão destas maquinarias em outros domínios sociais.
Galison (1999 [1997]) propõe uma teoria de ‘zonas de troca’ como uma forma de
entender as trocas de idéias muito diferentes, algumas vezes opostas, para o outro lado das
‘subculturas’ teoréticas, instrumentais e experimentais da cultura da física, visando delinear
“uma descrição da física que não seria unificada nem dividida em fragmentos isolados”74
(ibid: 137). Tradições diferentes e finitas de teorização, experimentação, e feitura de
instrumentos (instrument-making) podem encontrar-se sem perder suas identidades separadas.
Galison traça os argumentos dos positivistas lógicos Carnao e Neurath, que procuraram
definir a ciência como construída a partir de um ‘protocolo de linguagem’ básico desenhado a
partir da observação e a partir do qual a fundação invariante de qualquer teoria poderia ser
construída. Esta idéia de observação como a pedra fundamental da unificação da ciência foi
desafiada pelos anti-positivistas (incluindo Kuhn), que negou qualquer forma de separar teoria
da observação, e qualquer forma de ser capaz de postular um ‘protocolo de linguagem’. Eles
ressaltaram a falta de qualquer continuum por trás da ciência, dividindo as disciplinas
científicas separadas em muitas partes diferentes separadas por ‘microevoluções’. Galison
aponta que como inversões de cada uma, posições positivistas e anti-positivistas ambas
subescrevem para uma idéia implícita de conhecimento como feito a partir de “placas
tectônicas” que “passam uma pela outra sem tocar”75 (ibid: 142). Galison, ao contrário,
propõe uma idéia de uma ciência intercalada, na qual as subculturas da teoria, experimento e
instrumentação são colocadas em camadas umas sobre as outras, apesar de que cada possui
“seu próprio ritmo, casa possui seus próprios padrões de demonstração e cada uma é
encaixada diferentemente um uma cultura mais larga de instituições, práticas invenções e
72 “epistemic cultures”
73 “different architectures of empirical approaches”
74 “a description of physics that would neither be unified nor splintered into isolated fragments”
75 “float past each other without linking”
65
idéias”76 (ibid: 143). Cada uma é parcialmente autônoma, não base absoluta contínua na
observação, e as quebras que ocorrem em cada podem ou não ocorrer simultaneamente. Cada
uma delas tem suas próprias ‘verdades’ restritivas, e assim a robustez da ciência reside na
manutenção do comprometimento a estas verdades enquanto permissão para uma
comunicação entre elas. Por esta razão, Galison desenha no estudo ‘antropológico’ de “zonas
de troca”, domínios nos quais duas culturas são postas em contato mesmo quando mantêm
ontologias muito diferentes. Usando exemplos de Cuba, Galison sugere que, da mesma forma
que o dinheiro pode assumir formas muito diferentes para os donos brancos de uma
monocultura em latifúndio e o trabalhador cubano, podendo ser intercambiado entre eles e
servindo como entidade transacional, também as diferentes ‘subculturas’ da física podem
intercambiar e fazer uso de permutações ontológicas muito diferentes destes conceitos básicos
como “energia” e “matéria”. Eles o fazem com zonas de troca “altamente comprimidas”77
(ibid:147), áreas de encontro (meeting grounds) que constituem domínios de intercâmbio e
comunicação (no equivalente científico das línguas ‘pidgin’ e ‘crioulo’, simples e funcional)
sem negar a separabilidade de diferentes disciplinas. Galison insiste que é exatamente esta
desordem da comunidade científica o estrato laminado parcialmente independente que
sustentação a um outro” e a desunificação da ciência a intercalação de diferentes padrões
de argumentação que é responsável por sua força e coerência”78 (ibid: 157), desenhando na
metáfora de Pierce do cabo com suas fibras numerosas e interconectadas que dividem o peso
igualmente e que por isso provêem a sustentação mais forte. A teoria de Galison é uma
tentativa de conter o problema da disparidade simultânea e unidade que é aparente na ciência,
permitindo uma visão dos vários praticantes destas subculturas com a física como
negociantes, “coordenando partes de sistemas interpretados contra partes de outros”79 (ibid:
149).
Tanto Knorr Cetina quanto Galison oferecem análises intrigantes e insights para a
desunião da ciência, e como nós podemos vir a tentar entendê-las. Contudo, sinto que levaria
muito mais trabalho de campo etnográfico do que o que fiz para que pudesse ser capaz de
afirmar ou recusar a presença de um conjunto de maquinários epistemológicos, ou diferentes
76 “its own rhythm, each has its own standards of demonstration, and each is embedded differently in the wider
culture of institutions, practices, inventions and ideas”
77 “highly constrained”
78 disorder of the scientific community – the laminated, partially independent strata supporting one another”
and the “disunification of science – the intercalation of different patterns of argument – that is responsible for
its strength and coherence”
79 “coordinating parts of interpreted systems against parts of others”
66
subculturas, com o LBA. Esta descrição inicial pode somente esperar tentar traçar minhas
próprias observações ao confrontar a desunião e unidade que vi com a especificidade do LBA.
Comparar este tipo de observações com aquelas de outros que estudam diferentes ciências e
empregam diferentes abordagens parece além do escopo de minha dissertação. Mas esta
sensação talvez seja novamente a de uma lâmina de dois gumes. Posso sugerir que unidade e
desunidade, tão ubíquas nos estudos da ciência, que confrontamos quando a estudamos, não é
um resultado de vir contra a forma na qual a ciência organiza-se, mas é um reflexo das
imagens e formas que nós, antropólogos, assim como ocidentais, empregamos para conceituar
e organizar o mundo. O que posso, deste modo, tentar fazer é evidenciar minha própria forma
cúmplice.
Agrupar as diferentes visões que obtive lado a lado e analogamente tentar olhar para as
conexões comuns poderia ser uma forma de capturar esta miríade de visões com um todo
unificado. Ainda ao tentar encontrar um entidade fixa, uma imagem analógica, com a qual
ligar estas diferentes perspectivas, vê-se face ao problema que esta entidade é “não
independente do uso local”80 (Strathern, 1991:73). Como vimos com minha descrição da
torre, nunca um torre genérica, somente um “multiplicidade de unidades específicas”81
(ibid: 73). Onde quer que se olhe, a torre é uma imagem, e não parece ter uma analogia
base com a qual subsidiar tal organização descritiva – “se não podemos abstrair alguns
conjuntos independentes de contextos ou níveis que servirão para todos os casos, então como
controlamos as analogias que percebemos?”82 (ibid: 75). Talvez, Strathern nota, o problema
real é “que os contextos e níveis de análise dos antropólogos são ao mesmo tempo parte e não
parte do fenômeno que ele/ela espera organizar com eles” (ibid: 75). Novamente, nos
confrontamos com a idéia do cyborg na qual a relação entre o observador e o observado é
capturada em uma tensão constante cúmplice e implicada. Como Wagner prediz: “em tal
conceitualização fractal ou que conserva escala, o conceito em si amalgama-se com o espaço
de sua concepção”83 (Wagner, 1991: 171).
É nesta tensão que Wagner explora em sua elucidação da ‘análise obviacional’
80 “not independent of local usage”
81 “multiplicity of specific ones”
82 “if we cannot abstract some independent set of contexts or levels that will hold across all the cases, then how
do we control the analogies we perceive?”
83 “in such a fractal or scale-retaining conceptualisation the concept itself merges with the space of its
conceiving”
67
(obviational analysis) (1986). A 'obviação' (obviation) é “uma série de metáforas substitutivas
que constituem o argumento de um mito (ou a forma de um ritual), em um movimento
dialético que cessa quando retorna a seu ponto inicial”84 (1986:xi). Assim, eu poderia
postular cada visão como uma substituição, um movimento de uma perspectiva a outra, onde
um serve como um ponto a partir do qual entender o próximo sem propôr necessariamente
que o mesmo substrato continue estável a cada mudança. Este tipo de abordagem de
movimento dialético é o que tentei tornar aparente na forma na qual eu movi minha descrição
da organização do LBA de seu conhecimento sobre a Amazônia. Minhas próprias conclusões
aqui são de fato vistas como transformadoras com as quais eu venho a conhecer. Mas a
natureza desta transformação é importante. Como Strathern aponta “[e]stabilidade e
instabilidade coexistindo na mesma relação correlativa, cada uma implicada na outra,
produzem um fenômeno complexo. Efeitos estabilizadores e desestabilizadores(…)aparecem
entre e dentro modos de interpretação em si”85 (202:93). Ela emprega uma metáfora visual,
aquela de figura-fundo, para enquadrar esta relação entre estabilidade e instabilidade. Mas
onde ela coloca ênfase é no movimento entre os dois. Interpretação é vista como um
movimento de parar, e o mundo aparece pleno de coisas paradas e singulares. Mas o efeito de
qualquer interpretação é fazer estas coisas se moverem subsequentemente. Interpretação
antropológica é vista como um tipo de movimento o qual, ao parar, justamente traz entidades
para jogar umas com as outras, então que a descrição cria uma sensação de movimento nos
dados, empurrando esta informação um contra a outra. Tal busca por animação fixa qualquer
modo de entendimento que está em questão; nós podemos considerá-la como um ponto de
estabilidade onde todos os exercícios interpretativos têm que acabar”86 (ibid: 94). A descrição
para as coisas, as singulariza, a fim de fazê-las mover novamente. Ao concentrar no
movimento inerente em exercícios interpretativos, alguém pode tentar contabilizar todas as
váias posições e perspectivas que estão entalhadas nesse movimento. E este movimento é
tanto entre interpretações e com eles; ou seja, é um movimento de substituição, e uma mútua
orientação. O antropólogo quando face com o movimento em seus dados deve olhar para
orientar-lo ou a si mesmo de acordo com aqueles dados – “o movimento de uma pessoa provê
84 “ a series of substitutive metaphors that constitute the plot of a myth (or the form of a ritual), in a dialectical
movement that closes when it returns to its beginning point”
85 “[S]tability and instability coexisting in correlative relationship, each implicated in the other, produce
complex phenomenon. Stabilizing and destabilizing effects...appear between and within modes of
interpretation themselves”
86 “description creates a sense of movement in the data, pushing this information up against that. Such a search
for animation holds whatever mode of understanding is at issue; we may regard it as a point of stability on
which all interpretative exercises are bound to come to rest”
68
uma medida para o de outro”87 (Strathern, 2002: 108). Assim, não é a “forma em que os
atropólogos controlam as analogias então, que parecem em questão, mas a forma em que os
atores as controlam ”88 (Strathern, 1991:76).
Eu vim falando acerca da noção de visão por algum tempo. Estou agora em uma
posição para confrontá-la com sua própria nocão 'confundidora' (confounding) aquela de
‘movimento’. Movimento cria uma visão borrada. A maneira em que Strathern refigurar as
partes e todos e particularmente melanésiana, criada a partir da forma na qual melanésianos
concebem a socialidade e a pessoa, que pode, depois do ato de contra-interpretação, ser usado
para re-propulsar uma quantidade de noções ocidentais – singularidade e englobamento,
individual e sociedade, 'uns' constituintes juntados para formar multiplicidades de 'uns' e a
noção de relações como as linhas que conectam esses 'uns'. ‘Visão’ neste sentido então em
minha descrição será a metáfora pré-figurada desta análise, ela mesma animada pela noção de
movimento. Porque é uma noção de ‘visão’ como 'ponto de vista' que leva á confusão causada
pelos efeitos vertiginosos que estava tentando enfrentar anteriormente na minha descrição.
Pontos de vista singulares brotados a partir de cada ângulo, permitindo somente uma
perspectiva parcial do todo que foi assumido como posto em algum lugar além deles, o objeto
de escrutínio. Este todo foi mostrado, portanto, como uma entidade elusiva e auto-replicativa,
percebida mais como um movimento do que um ponto, implicado nas propriedades de auto-
escala de cada perspectiva e sustentando suas próprias perpetuações no ato de ser descrita. A
extensa literatura sobre os limites inerentes nesta metáfora de visão merece mais tempo e
espaço do que eu tenho a dar a ela nesta dissertação. Latour sugere uma metáfora de ‘trilha’ ao
invés de uma metáfora óptica para descrever a forma na qual entendemos o mundo: “outra
forma de melhor capturar a prática do cientista é considerar preconcepções, bases, teorias,
metodos, a prioris e cultura como estradas que tornam possível ganhar acesso ao animal eles
mesmos”, apesar da metáfora de trilha “não estar isenta de seus defeitos, no entanto, desde
que mantenha a idéia de que visão é conhecimento”89 (Latour, 2000: 371). Eu gostaria de
correr com isto ao explorar, e então extender, apenas uma limitação da metáfora de visao
como conhecimento. Um ‘ponto’ de vista implica uma perspectiva fixa de algo. É esta fixidez
que é parcialmente responsável pela sensação que que há um todo singular no qual todos estes
provêm uma perspectiva, e o que a sensação de parcialidade insuficiente e desta forma,
87 “one person’s movement provides a measure for anothers”
88 “way that anthropologists control the analogies then, that seems at issue, but the way the actors do”
89 “is not without its defects, however, since it maintains the idea that vision is knowledge”
69
problemática. Alguém está frente a muitos pontos de vista de uma coisa. É sua fixidez e desta
forma exclusivamente que me induziu a perguntar qual ponto de vista era 'o real'. Eu gostaria,
ao invés, de explorar a noção de movimento como conhecimento90.
Eu vou 'fundar' esta noção de movimento nos dados do LBA em si. Os dados que o
LBA produz, assim como vou descrever em seguida, estão circulando constantemente, um
movimento que traz em si mudanças de forma, significado e perspectiva. Nenhuma destas
posições é mais ou menos importantes do que qualquer outra; ao mesmo tempo, todo ponto de
parada permite uma forma diferente com a qual entender. Os dados em si não residem em
qualquer destes pontos, mas somente fazem sentido em seu constante movimento. Se aquele
moviemento para, como nós podemos ver, os dados morrem, e não mais informação.
Propriedade de um e de tudo, o todo, se existe, reside neste movimento, que pode ser parado
(‘interpretado’), mas somente a fim de ser colocado em movimento de novo. Se
conceitualização é inevitavelmente re-conceitualização, então o movimento que são os dados
do LBA permitem uma intrigante reconceitualização do problema de pontos de vista fixos em
objetos estáticos.
Para traçar, então, o movimento que os dados fazem e que fazem os dados, nós
devemos começar com onde são primeiramentes registrado, nas torres. Elas são um ponto de
partida arbitrário. Como no começo do capítulo, eu poderia começar em qualquer lugar.
90 Houve, é claro, muitas importantes ‘reconceituações’ de ‘visão’. Talvez uma interessante neste caso seja
aquela do cientista JJ Gibson (1986 [1979]). Como gibson aponta em sua investigação pouco convencional,
nós não permanecemos parados, da forma como vemos. Estamos em contante moviemnto. Nós movemos
enquanto vemos, e vemos porque movemos. Gibson escreve “ olhando em torno e movendo-se por aí não
cabem na idéia padrão do que a percepção visual é. Mas note que se um animal tem olhos, ele balança sua
cabeça e vai de um lugar a outro. O único, campo congelado de uma visão provê somente uma informação
empobrecida sobre o mundo” (1986:2) – este é o aspecto de parcialidade problemático de minha análise. Os
fatos conhecidossobre visão em seu tempo de escrita, que são “perfeitamente bons fatos” deveria ser notado,
tudo reside em condições laboratoriais sendo observadas, na “vontade do sujeito em manter seu olho fixo
como uma câmera” (1986:302). Mas o tipo de visão que ele lida com é ‘ambulatória’. Sua abordagem
ecológica para a visão “comeca com o arranjo do fluxo do observador que”, livre das algemas impostos sobre
ele em um experimento de laboratório, pode andar “de uma vista a outra, move em torno de um objeto de
interesse, e pode abordá-la para escrutinar, assim…vendo as conexões entre superfícies escondidas e não
escondidas” (1986: 303). Se visão é vista não como “baseada em uma sequência de instantâneos, mas em
extraçnao invariante de um fluxo, alguém não precisa ter idéias sobre o meio a fim de percebê-lo…as
crianças jovens não precisam ter idéias de espaço a fim de ver as superfícies em seu entorno…o psicólogo
experimental deveria compreender que ele não pode verdadeiramente controlar a percepção de um
observador… Percebedores não estão alerta das dimensões da física. Eles estão alerta das dimensões da
informação no arranjo de fluxos de estímulo que são relevantes para suas vidas” (1986: 305-306). Talvez da
mesma for a que a caracterização de Kwa da complexidade barroca inerente em uma noção do conceito que
nunca é tosada a partir daquele que a concebe, visão aqui é imanente ao ato de mover e viver. Gibson
imaginou proeminetemente nas palavras de outro antropólogo – veja por exemplo Ingold (2000) – e suas
idéias s˜åo comparáveis a aquelas de Bateson (1972) de ‘ecologia da mente’.
70
Começando com as torres, no entanto, permite-me descrevê-las um pouco, o que preciso fazer
de qualquer forma, a fim de ser capaz de mover livrementeem direção de meus próximos
capítulos. O LBA tem 15 torres em operação no momento, em Rondônia, Amazonas, Pará,
Mato Grosso e Tocantins. Estas têm um perfil de instrumentação acoplado a elas em
diferentes alturas. A torre com a qual tive o maior contato foi a torre que está a 67 km de São
Gabriel da Cachoeira, no Parque Nacional Pico da Neblina, Amazonas. Em agosto de 2007,
acompanhei uma expedição do LBA a esta torre. Eu já havia mencionado esta torre em seus
‘múltiplos usos locais’, e irei explorar a expedição em si no terceiro capítulo. Por agora, Eu
gostaria somente de concentrar na torre micrometeorológica e nos dados.
A torre em São Gabriel tem 64 metros de altura, e se alonga de forma que seus últimos
15 metros, mais ou menos, emergem do topo da copa da floresta, permitindo uma vista
deslumbrante de toda a floresta. Ela tem um perfil de equipamentos nela que foi montado a
fim de medir as diferentes variáveis que são pensadas para contribuir no fluxo carbônico.
Todos os dados coletados pelo equipamento são mandados eletrônicamente para um tipo de
computador simples, chamado um 'datalogger', que localiza-se em uma caixa e idealmente
deveria ser mantido seco e arejado. Existem dois dataloggers, um (modelo CR23X) que
armazena dados do equipamento no solo, e um (modelo CR10X) que armazena dados do resto
do equipamento, coletivamente chamado o AWS (Automatic Weather System). A figura 6
provê uma descrição deste equipamento.
Aos 2, 12, 22, 34, 50 e 63 metros, existem pequenos tubos com filtros acoplados, o
que suga e filtra o ar e o carrega para ser analisado pelos IRGAs, ( Infra-Red Gas Analysers -
Analisadores de Gás Infra-Vermelhos), os quais esta torre em particular tem dois. Um deles,
chamado o CIRAS (um analisador infra-vermelho de carbono), mede a concentração de CO2
e H2O, mols/m2. (Este na verdade parece somente funcionar na torre em São Gabriel. Quando
instalado em outras torres, ela para de funcionar. Ninguém sabe porque).
O anemômetro sônico é sincronizado com outro tipo de analisador de gás, que é
conhecido por seu nome de marca Licor (modelo LI7000), que vive em uma caixa a 52
metros. O Licor e os anemômetro foram configurados para que o fluxo de CO2 e de H2O
possam ser calculados uma vez a cada 10 segundos. Este cálculo é feito quando os dados são
71
baixados do datalogger pelo pesquisador, e então recalculados novamente no escritório em
Manaus.
72
Fig 6 Diagrama da torre em São Gabriel, a partir da apresentação da Marta,
reproduzida com sua permissão.
73
Ambos IRGAs trabalham de forma similar, o que eu explicarei em breve aqui. Ambos
analisadores de gás foram calibrados no laboratório, sob condições controladas. Calibragem
envolve passar o nitrogênio pelo IRGA, e ‘dizê-lo’ que isto é ‘zero CO2’ e isto é ‘zero H2O’.
Com este zero como ponto fixo então, o IRGA é capaz de gravar variações em CO2 e H2O. O
ar é sugado para dentro do IRGAs por uma bomba, a partir dos tubos que mencionei que
foram posicionados em diferentes alturas da torre chamados um ‘perfil de gás’ (gas profile).
O ar sugado pela bomba na torre alimenta uma câmara no IRGA com a qual um laser infra-
vermelho é atirado nele de um lado. Um sensor do outro lado da câmara capta quanto infra-
vermelho não foi refratado por acertar as moléculas de CO2 e H2O na amostra de ar. Isto
uma medida de concetração de gás e água. O CIRAS, que não está acoplado a um
anemômetro, então faz uma leitura de concentração de CO2 e H2O, em micromols por m², a
cada altitude. O Licor, configurado com as leituras turbulentas sônicas do anemômetro,
provêm a quantidade de medida de CO2 e H2O que configuradas com as medições
turbulentas darão, ao fim um cálculo do fluxo. Estes dados são armazenados no AWS
datalogger, com o qual os dados de temperatura do ar e humidade, velocidade de vento e
radiação. Todos os dados armazenados devem ser baixados em diferentes intervalos de tempo,
quanto mais frequentemente, melhor, a fim de ser capaz de identificar qualquer anomalia que
sugere que qualquer dos equipamentos não está funcionando.
Para retirar os dados do fluxo carbônico como um exemplo, então. O Licor tem ar
puxado para si, passa os filtros e para a câmara, onde usa um jato divisor dicróico91 e dois
detectores separados para medir absorção infra vermelha pelo CO2 e H2O na mesma corrente
de gás. O Licor tem “quatro conversores digital para analógico (DACs) completamente
configuráveis, que são atualizados a 600 Hz. Os sinais de saída são diretamente proporcionais
a concentração de gás”92. A luz infra-vermelha que passa pelo filtro de divisão do jato acerta
91 “Jatos divisores dicróicos são filtors de passagem longa e curta que são usados em ângulos não normais de
incidência. Eles refletem altamente um espectro específico de uma região, enquanto transmite otimamente
para outra…Dicróicos são não absorventes, ent˜åo toda a luz que não é transmitida é especularmente
refletida…os compriemntos de onda maiores serão transmitidos através do filtro paralelo para o pátio
original, o raio de luz incidente, enquanto os comprimentos de onda mais curtos serão refletidos em uma
direção for a de eixo. Por tanto, o termo dicróico – duas cores” –
https://www.omegafilters.com/index.php?page=prod_dichroics (retirado de uma página na internet de um
fabricante de jatos divisores dicróicos, 4 de Julho, 2008).
92 http://www.licor.com/env/Products/GasAnalyzers/7000/7000_output.jsp
74
o sensor, que o transforma em um pulso digital binário. Esta é então convertida pelo DAC em
corrente analógica, que é trasnformada na tela do Licor como representação grafica e
configuração de pixels números. Esta informação é enviada via cabo para o AWS
datalogger, que tem uma série de canais, um canal diferente para cada sensor na torre. Ele
reside ali, armazenado, até que um pesquisador, normalmente um dos técnicos da torre que
vive em São Gabriel, vir com o laptop e baixar a informação do datalogger para o
computador, usando uma programa especial de computador. Ele ou ela, então, podem fazer os
cálculos iniciais de fluxo. Estes dados são, então, levados de volta para o escritório do LBA na
Escola Agrotécnica em São Gabriel, uma viagem que requere caminhada de mais de uma hora
pela floresta e dirigir 67 km por estradas de lama. Os dados são, então, transferidos do laptop
para o PC que está lá e enviados por email para Marta em Manaus.
Marta recebe os dados em sua tela de computador em longas listas de números. Ela,
então, tem que ‘limpar ou ‘cuidar dos dados que recebe – “limpando os dados” ou “cuidando
dos dados”. Dados, antes de ser limpos, são chamados “dados crus”. Esta limpeza e processo
de cuidado normalmente se faz usando o programa Matlab, e consiste basicamente de
remover dados que não parecem caber nos padrões micrometeorológicos. Marta escreveu um
‘filtro’ matemático especificamente no programa Matlab que ela usa e que detecta e remove
quaisquer números que são “impossivelmente altos”, e em seu lugar insere ‘NaN’ Not a
Number (Não é um Número). Além desses filtros, ela também parametrizou o programa,
refinando-o para contabilizar tendências metereológicas específicas para a região. Quando
perguntei a ela como ela sabia o que remover e o que não remover, ela respondeu “a gente usa
conhecimento metereológico”. Um exemplo deste conhecimento meteorológico poderia ser se
os dados do sensor de radiação mostrar que mais radiação é refletida da vegetação do que
chegava, ela sabe que isto é “errado”. Mas ao mesmo tempo:
“dependendo da região… tem que estudar a região, ver como ela é, pra poder dizer se isso é normal ou
não… algumas coisas a gente não vai dizer dai muitas vezes a gente não pode afirmar tem que analisar
pra saber se realmente aquilo e um problema ou não (…) tem que ver o que esta acontecendo pode ser
que seja uma anomalia ou seja real.”
“A gente perde muitos dados” Marta me disse pesarosamente, conversando especificamente
sobre os dados que vêm da torre no local de São Gabriel. Como descreverei no terceiro
75
capítulo, a torre de São Gabriel é particularmente problemática, e produz uma grande
quantidade de dados “misteriosos”, que devem ser adestrados. Assim, em um certo grau, os
dados que passam por este processo de limpeza se tornam o que eram. Sua identidade
enquanto ‘dados’ é confirmada antes este processo, poderia ser anomalia, mas depois disso,
ele sempre era dado. Como Marta pode saber quando isto é real ou não? Por clima, esto cabe
naquilo que ela já sabe. Se é assim, isto se torna parte daquilo. Se não, não se tornará.
Como Tota me explicou, no entanto, algumas vezesm dados anômalos podem ter outro
efeito. Ele pode induzir uma reavaliação de ambas teoria e prática:
“Anteriormente, se você põe uma torre aqui, você tiraria todo este volume, ok, em um plano
horizontalmente homogêneo. O fluxo que passa pela torre representaria toda esta área. Homogênea.
Lisa. Na medida que o tempo passava, as torres começaram a verificar o que os dados eram, suprindo
o que não cabia, não era fechamento do balanço entre as medições biológicas, e as medições retiradas
do topo da torre, de covariância de vórtices turbulentos. O que eram estas medições biológicas?
Respiração do solo, com câmaras localizadas no topo do solo. Você mede quanto o slo está respirando
dia e noite, você mede o diâmetro dos troncos das árvores; você mede o conteúdo carbônico das folhas
que caemisto é tudo o que chamamos de ‘biológico’. E todas estas medições biológicas, eles irão
dizer para você a longo prazo quanto [carbono] está ficando e quanta decomposição está acontecendo,
soltando isto na atmosfera, ou emitindo-a. Mas quando você faz a medida biológica, a medida física de
eddy co-variance 93, em cima, no topo, eles não fecham não correspondem. um déficit. E
ninguém é capaz de explicar este déficit. Então, voltamos e demos uma olhada na teoria.”
“Dando uma olhada na teoria”, Tota me explica, significou voltar à equação
fundamental de fluxo que denota “todos os fluxos integrados no líquido total em um dado
volume.” O fluxo vertical, que o anemômetro sônico e medida Licor é dado por um termo
particular desta equação.
“Mas o que é isso? É im termo somente…variação vertical velocidade multiplicada pela variação em
concetração de CO2. Se você olha para toda a equação, isto é somente um fluxo vertical, w CO2. Mas
93 eddy co-variance” é a metodologia estatísitica corrente usada para calcular o fluxo de carbono, mas esta
metodologia implica também o uso de certa instrumentação, como por exemplo o anemômetro sônico, que
provê as mediçnoes relevantes.
76
se você abre esta equação, nós vemos que existem todos estes pequenos termos (termozinhos).
Pequenos. Durante o dia, estes pequenos termos (“termozinhos”) são realmente pequenos, comparados
com a turbulência, que é grande. Então, nós podemos pegá-los e jogá-los, eles não significam
muito…Mas então…durante a noite, nós compreendemos que estes outros pequenos termos podem ser
importantes.”
O trabalho de Tota é tentar contabilizar estes pequenos “termozinhos”, os processos
não turbulentos que não parecem precisar de velocidade vertical, mas movimento horizontal,
governado pela topologia e irregularidade da terra. O fluxo carbônico se torna
“tridimensional”. E isto significou que
“Nós tivemos que re-avaliar a teoria. E nós colocamos a frente algumas novas. A principal é que para
terra ondulada como onde as torres estão, estas ‘drenagens’ horizontais poderia ter um importante
papel como movimento vertical. Estas ondulações e irregularidades podem provocar importantes
fluxos horizontais, especialmente quando não turbulência. Então, de repente, apareceram trabalhos
como este: “Incertezas das Medidas e Modelagens de Trocas Líquidas do Ecossistema de uma
Floresta” isto foi em 2006. estas incertezas começaram a emergir. Este trabalho revisa todas as
pesquisas feitas desde os anos 90 naquela região e em todo o mundo. Ele mostra que nós temos
terrenos complexos e complexas topografias. O equilíbrio não fecha, e não só para o CO2.”
“Então, nosssa hipótese é que a torre colocada em um platô não está capturando todo o volume
representativo da área. Alguma da massa que está dentro desse volume está sendo transportada
horizontalemnte. Como em cima do topo você necessitaria ter um movimento vertical, você está na
verdade perdendo CO2 aqui, horizontalmente.”
“Então você reavalia a teoria, e tenta medir ester pequenos termos. Este é o meu trabalho. Eu pego
estes pequenos termos e os meço. Estou tentando fechar o equilíbrio novamente.”
“Porque você sabe hoje que a teoria não é totalmente medida por instrumentos. Este é o principal
problema que existe hoje, em todo o lugar. Todo mundo quer medir estes pequenos termos. Existem
vários experimentos na Austrália, Europa, USA. E o único experimento aqui no Brazil é o que estou
fazendo no momento.”
77
As anomalias nos dados que apareceram aqui não foram descontinuados, mas
induziram uma reavaliação da metodologia instrumental, e a escavação da equação de fluxo
total. Normas e convenções foram questionadas. O que previamente foi desimportante, de
repente tornou-se foco de interesse em todo o mundo. Incertezas emergiram, e novas teorias
postuladas, demandando novos dados a ser coletados. Estes dados anômalos começaram todo
um novo conjunto de movimento de dados.
Uma vez que os dados são “limpados”, devem ser registrado, usando o LBA Metadata
Editor (LME). Metadata é “a informação que descreve as características (ex. Localizações
geográficas, nomes de parâmetros, datas) de vários conjuntos de dados” (LBA-DIS)94.
Pesquisadores não brasileiros devem deixar os ‘dados originais’ com seu parceiro brasileiro,
ou seja, os dados que foram coletados diretamente dos locais de pesquisa, e levar uma cópia
deles com els quando vão embora. Depois de um ano (apesar disto poder ser extendido para
os alunos de doutorado que estão trabalhando em seus dados por um tempo maior que este),
todos os dados coletados por projetos LBA devem ser disponibilizados para acesso por outros
pesquisadores. Isto é feito ao enviá-los ao CPTEC95 por email ou correio, onde são recebidos
por Luiz M Horta que cuida do banco de metadata do LBA e a ferramentas de busca, Beija
Flor. Neste ínterim, entre o registro da metadata dos dados de alguém e sua submissão ao
CPTEC, somente os metadados dos dados estão disponíveis para outros pesquisadores
acessarem, mas esta metadata está sendo atualizada o tempo todo, e ao mesmo tempo os
dados são trabalhados, e mais dados são coletados. Estes metadados são organizados pela
ferramenta de pesquisa Beija-Flor, e podem ser acessados por qualquer membro do público.
Estes metadados devem incluir, depois de um ano, o link da internet para o conjunto de dados
que ele descreve, mas acessar isto é geralmente restrito aos pesquisadores LBA.
“O Sistema de Dados e Informação do LBA é um sistema de gerenciamento de dados que atua como
um repositório para todos os dados do LBA. Os dados são checados em qualidade, renderizados para
um formato comum e tornados disponíveis para a comunidade do LBA o mais rapidamente possível e
transferidos para um arquivo permanente. Para facilitar o uso por pesquisadores que não estão no
LBA, cada conjunto de dados é cuidadosamente documentado e linkados em um quadro de
organização, então ele continua útil depois que o projeto foi completado.” (LBA-DIS)
94 Todas as citações creditadas a ‘(LBA-DIS)’ foram retiradas de documentos interns que Luiz M Horta, o
gerente do LBA-DIS, gentilmente cedeu.
95 ‘Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos’
78
Cada noite, o Sistema Beija-Flor “minera metadados e constrói uma base de dados a
partir da informação minerada. Informação minerada é dividida pelos nós que os usuários são
capazes de procurar e revisam metadata ao acessar as interfaces baseadas na internet do Beija-
Flor e da LME em qualquer dos nós com seu programa baseado na internet” (LBA-DIS). O
que isto significa é que todos os conjuntos de dados do LBA são acessíveis a partir da
ferramenta de busca na página da internet do Beija-Flor. Por exemplo, um conjunto de dados é
armazenado no computador de um pesquisador, que está conectado ao ‘nó’ do Beija-Flor.
Toda a noite ele é minerado como metadados pelo Beija-Flor, e se torna parte da informaçnao
do Beija-Flor que pode ser pesquisada por outros usuários.
Laurindo é um dos pesquisadores a cargo do LBA-DIS, a seção do LBA que é
responsável pelos dados do LBA. O LBA tem uma “política” formal de dados e publicação, o
que Laurindo ajudou a criar. Ela foi criada antes mesmo do LBA começar seus experimentos,
porque sem a “política de dados”, nenhum trabalho pode ser feito. Ela diz que os dados serão
compartilhados, mas que tem regras. Dados são um produto e uma propriedade. Qualquer
pesquisador pode tornar seus dados disponíveis a qualquer momento para o público mais
amplo, mas é a responsibilidade de Laurindo certificar-se que todos os dados do LBA estarão
disponíveis depois de um ano. A análise dos dados como esforço comparativo pelos países é
valorisado, mas onde os dados serão usados, em estudos de modelagem ou integração, o
cientista que coleta os dados deve ser citado.
“Então, essa coisa da política de dados é extremamente importante porque o ideal, e é o que tá
acontecendo, é que a política ela tem que pronta antes do experimento começar, porque é o que vai
legislar os dados quando você coletar, onde, o que você vai fazer com esse dados, quanto tempo você
pode ficar com eles, quem é o responsável, quais são os seus direitos, quais suas obrigações, quem faz
o quê, quem cobra os dados, quem guarda, quem garante a segurança... Então todas essas perguntas de
interesse dos executores do projeto têm que ser respondidas a nível de política, se não política o
experimento não pode começar. Você não tem o que fazer, você volta do campo com esses dados e
eles são seus? Porque alguém pagou esse projeto, se é governo americano, europeu, brasileiro ou os
três, então você tem essa...essa forma de legislar. E aí, a gente sempre diz o seguinte, que não é o
Laurindo que cobrando os dados, e a politica dos dados...Eu acho que é importante nós termos essa
política porque sem essa política não dá pra nós fazermos nada, não dá pra trabalhar”
79
Laurindo também faz parte do PPBio, o departamento de biodiversidade do INPA,
assim como Mario e Luciana, que nós conhecemos anteriormente. Ele explica o que ele faz
em termos de dados de biodiversidade (mas isto também é aplicavel aos dados do LBA),
tentando fazer que todos os dados, mesmo aqueles coletados há 150 anos atrás, sejam
“recentes”.
“O que tem que acontecer é que você tem que ter métodos computacionais, algoritmos, que possam
interpretar usando conhecimento daquela pessoas, daquela descrições daquela criatura que coletou, o
pesquisador em campo, e tentando trazer ele pra uma posição verdadeira no presente. Com isso você
restaura um dado para uma nova classe que é o dado recente”
Trazendo todos os dados para o presente livra da necessidade de coletá-lo novamente,
e permite que sejam compartilhados; os dados são um legado, mas um que deve ser feitos a
ser assim por meios computacionais:
“O compartilhamento desses dados em grande escala, ele é muito econômico porque você não precisa
montar uma expedição... O que se está fazendo hoje é tentando saber quem é quem, quem é que tem
esses dados, como eles estão. Porque tão sendo coletados desde 140, 150 anos atrás, isso
sistematicamente, coleta sistemática. Então, nós estamos querendo fazer é que esse material esteja nas
mãos das instituições da Amazônia, a... As famílias de pesquisadores que tinham e que falecerem
eles deixaram um legado...A computação é uma ferramenta que pode vir a resolver esse problema,
trazer essa informação aqui presente com uma qualidade real, definida, bem documentada e torná-la
disponíveis pra qualquer um pegar e usar”
Mas para que os dados sofram esta transformação temporal, eles devem ser ‘lapidados’, os
dados devem ser evidenciados como entidades atemporais, transformados de rabiscos em um
caderno, ou números descontinuados. Mas este processo novamente tem ecos explícitos do
que nós havíamos notado previamente, que os dados estão de alguma forma tornando-se o que
eles já eram:
“O dado tá bruto. O dado bruto é como um diamante bruto. Então, Precisa ser lapidado, certo? Mas ele
80
foi coletado como um diamante é feito, vai ser avaliado, ver se as medidas tão certas, (...) se aquilo faz
sentido, (...), cumprimento, conteúdo estomacal, sólido, todas as variáveis (...) Da coleta até
publicação do paper, o dado ele é tratado muito bem. Todo dia ele é cuidado”
O movimento é imperativo – os dados devem ser cuidados por e manuseados da
melhor forma possível, então, na medida que mantém suas qualidade, o que significa que os
pesquisadores do LBA-DIS nunca podem parar:
“Até porque não pára, porque a tecnologia, a gente vai dormir, acorda de manhã e tem outra coisa
pronta, interessante, que nós queremos usar e vamos avançar...alguma técnica nova ou s criamos
alguma coisa que é agradável pra nós e...nós fazemos isso pra...a forma que nós cuidamos de tudo isso,
de todo esse arsenal disponível, é cuidando ao longo do tempo, o projeto do LBA já tá desde 94, 14
anos, e nós estamos fazendo isso desde o início, cuidando de tudo.”
Como seus cuidadores, os dados também não podem parar. Se eles param de circular, a
entropia começa, informação é perdida, e eles 'morrem'. Mas não os dados morrem, mas
toda a cadeia, todo o processo. Assim que os dados são publicados, e colocados em uma
biblioteca em algum lugar sem mais circular, os dados começam a sofrer com a entropia
informação é perdida, ela deixa de ser dado:
“Publicou, ela começa a perder, entra no processo de entropia, ou seja, ele se esvaziou. Aí ele vai
pegar os dados, ou vai ficar com ele, comunica nada. Pega o bicho joga no museu. E os dados, ele
[?] coleta. Ele publicou, só que essa publicação, publicação, ela, geralmente ela não é associada àquela
base de dados...O que nós estamos querendo fazer é o seguinte, que na computação com isso nós
podemos primeiro, retardar o...a entropia”
Ter os dados no banco de dados, ou seja, em uso constante, constantemente sendo minerado,
atualizado e acessado, sendo enviado de um pesquisador a outro ao redor do mundo, significa
que mesmo se o pesquisador que coleta os dados morrer, mesmo se café cair em seu
computador, mesmo se ele se esquecer de tudo, perder seu hd externo (todos exemplos que
Laurindo me deu de entropia potencial), os dados são constantemente recentes, estão em
constante movimento e estão em constante uso, e esta entropia inerente nos dados é tirado da
81
pauta:
“Quando esse dado aqui participa de um processo de síntese com outras disciplinas, climáticas por
exemplo, seco muito grande, por isso a população de peixes caiu muito naquela região, você usa dados
de clima, tempo e dados de chão. Você faz isso.. Então todos esse dado fica sempre como objeto de
atenção, então ele vai mudando a tendência dele, ele não vai cair como uma pessoa...como acontecia
no passado. Que tem coleções hoje ainda em papel, que não passou pra ninguém...por vinte e cinco
anos aquele conjunto de dados lá...e ninguém nunca mais utilizou. Acontece muito. Aqui não, como
você sabe que seus dados vão agregar valores e vão estar visíveis, agora bem documentados e de um
jeito bem cuidado”
“Isso não é uma visão que os pesquisadores têm. O pesquisador ele não consegue visualizar esse tipo
de coisa....que se ele visualizasse que a entropia dos dados dele é prejudicial pra ciência, eu tenho
certeza que ele o deixaria acontecer, não é verdade? Antes do [?] você deve fazer alguma coisa, no
mínimo documentar bem seus dados pra desenvolver. E como ele é um cientista ele não vai querer
levar pro túmulo dele tudo que ele fez nos vinte e cinco anos de pesquisa, não é verdade? Ele quer
deixar o seu legado pra frente. Então, nós entendemos que a informática nesse contexto, ela pode ser
realmente uma ferramenta valiosíssima. Porque ela mantém isso não digital como eu propagar isso
no [?], na internet, na rede, nos computadores...”
Mesmo que todo pesquisador tenha um laptop, e uma nova mentalidade, “hoje corre-se
todos os riscos também, não tô dizendo que comprar um laptop e um rádio desses aqui você tá
a salvo de... Não, não é isso. No entanto, os mecanismos em rede, você replica e você torna o
que você fez visível.” E esta rede, este movimento constante e mudança não fazem tudo
visível, mas significam que “nós estamos em todas as pontas”; “nós não podemos fazer
um...um trabalho que vai acabar”.
Os dados do LBA existem como uma série de transformações intricadas. A partir do
‘fluxo’ de moléculas no ar, ele é sugado para dentro por um cano que sofre uma série de
transformações em pulsos e correntes e números, deve ser carregado pela mão e enviados por
email, onde são cuidados e ‘lapidados’; eles se tornam o que são96. Ao mesmo tempo, ele
é transformado em meadata, dados sobre os dados, e colocados em moviemnto em uma banco
96 Uma caracterização pela qual agradeço Márcio Goldman (em imprensa), que a sugeriu indiretamene, e cuja
exploração de'lapidar' eu infelizmene não tive tempo ou espaco para entrar.
82
de dados, ou seja, constantemente sendo acessados e atualizados e mineirados. Ele está em
fluxo, e apesar de em qualquer ponto este fluxo poder ser parado e os dados publicaods ou
‘fixados’, se eles não continuarem movendo em seguida, então não fará mais sentido.
Qualquer ‘ponto de vista’, qualquer momento de parada, não está de forma alguma mais
importante do que qualquer outro – o ‘dado cru’ é tão vital quanto o diamante que é produzido
a partir dele, e a relação entre eles não é dada pela sua igualdade em relação algum realidade
‘fora’, ou objeto; o fora está ‘dentro’ dos dados, em todas suas formas e estas diferentes
formas não são perspectivas muito diferentes acerca da mesma coisa, mas a mesma
perspectiva vista diferentemente. Qualquer ponto de parada é efetivado a fim de compelir
movimento novamente. Os dados são ambos propriedades de um pesquisador, e devem tornar-
se propriedade de todos. Marta é respnsável pela torre em São Gabriel, e quando pergunto em
tom de piada se isto significa que ela era “a dona da torre”, ela respondeu muito seriamente
“Não… es estou responsávelm pelos dados”. Os ‘dados’ não são uma responsabilidade a ser
levada levemente. Pessoas de áreas muito diferentes do mundo, do USA a guatemala, e de
áreas muito diferentes da comunidade científica, da hidrologia à botânica, estariam usando
ela. A partir deste único ponto perto de São Gabriel, Latitude 0
o
12,740
o
N, longitude 66 o
884’ S, os dados potencialmente viajariam grandes distâncias até laboratórios nos Estados
Unidos ou no Reino Unido, e a partir daí aparecer em trabalhos, ser esculpidos em gráficos,
ou aparecer em tabelas, ser debatidos novamente do outro lado do oceano. Eles seriam feitos
para significar coisas diferentes ao serem comparados com os dados de outras torres e outras
áreas de pesquisa, ou seriam juntados com este to de dados para dar ‘biomedias’ e médias, o
limite do que expande ou contrata o foco de estudo, a partir desta exata localização na
Amazônia, para a amazônia em si, para todo o globo. Este uso, estas publicações, afetarão as
formas nas quais ele é coletado, ultrapassando a fronteira entre ‘mundo’ e ‘signo’ como tal
ele reside em ambos. “Cada elemento tem sua própria trajetória complexa”97 (Strathern,
2000:65), e quaisquer binários definitivos são difíceis de manter estáveis. Os dados são um
produto múltiplo e se de qualqeur forma podem ser vistos como uma totalidade, isto deve ser
como um movimento, o que nega a idéia de totalidade que está de alguma forma em um
objeto estático a compreensåõ de alguém. Ambos ‘vistos e aqueles vendo estão
constantemente mudando.
Eu gostaria, então, de usar os dados do LBA como metáfora com a qual entender
97 “Each element has its own complex trajectory”
83
minha própria informação que coletei no campo. Nenhuma ‘imagem’ é mais ‘real’ do que
qualquer outro, é somente em todo o movimento que qualquer um deles faz sentido. E este
movimento deve ser provocado e mantido. A informação inerente em cada momento separado
de transformação, e no movimento como um todo indefinível. Todas as imagens constróem
um movimento que pode ser fixado, mas fixá-lo é um momento de interpretação; existem
vários outros, e é exatamente porque existem esses outras que informação não está perdida. O
LBA como uma entidade unificada pode somente residir no movimento que eu rovoco e sou
provocado por, as imagens que eu extraio que transformam e são transformadas por outras
imagens. Estas imagens são moldadas pelas formas de todas as outras imagens. E estas
imagens são minhas, mas somente na medida em que elas pertencem a ‘todos’. O todo pode
somente residir no movimento que vem constantemente depois do ponto de parada. Para parar
como movimento de interpretação – é extrair um sentido, mas este sentido deve ser movido
posteriormente, ou se torna ‘invisível’. Movendo-o em torno de algo é uma forma de fazê-lo
visível, revelando-o em uma forma particular, mas que no mesmo ato borra o ponto de vista.
E as múltiplas formas nas quais estes dados se movem necessariamente afetarão a forma que o
todo circula, criando eles mesmo um efeito naquela informação em si.
A complexidade inerente no confronto de meus materiais etnográficos me provocaram
a procurar encontrar outra forma de pensar sobre isso; o movimento que observo nos dados do
LBA é transformado em uma dinâmica com a qual propelir toda minha dissertação. Minha
‘visão’ do LBA neste sentido deveria ser tomada como uma série de movimentos, que podem
ser paradas a qualquer momento mas de forma nenhuma refletem uma totalidade fixa e
estática. Claro, esta não é a forma na qual os pesquisadores do LBA possivelmente
escolheriam para ver seus dados. Nos dois capítulos seguintes levarei duas situações, e
tentarei demonstrar as formas na quais cheguei a entender a prática científica que vi gerarem
novas questões para aquele entendimento mesmo, concentrando no movimento inerente - ou
seja, como eu estava provocado para pensar 'mover' meu conhecimento ao tentar
descrever e pensar pelos pesquisadores e cientistas, objetos e instrumentação que encontrei,
que eu fui ‘empurrada contra’ (pushed up against). Estas duas situações não são totalmente
arbitrariamente escolhidas, no entanto; eu espero por que se torna claro. O resultado pode
frequentemente ser bagunçado ou impróprio, mas é uma bagunça 'cumplicita' – nós chegamos
a isto juntos. Os cientistas com quem falei e com quem passei um tempo serviram para prover
formas para que questionasse e explorasse a literatura mesma que eu uso para entendê-las em
84
primeiro lugar. Mas isto é uma dinâmica produtiva, se instável e incerta. Estas duas situações
não ‘representam o LBA’; mas isto é porque ao estudar o LBA, não tenho certeza em que
sentido eu posso visivelmente determinar o que é um 'todo', ou como alguém pode
‘representá-lo’. Minha descrição procura recusar ser perspectívica (perspectival), neste
sentido do termo. Ela busca explorar exatamente o que ‘representar pode significar. As duas
situações não são mais nem menos importantes que qualquer outra, e servem como pontos de
parada momentâneos a fim de fazer o movimento continuar. Que esta abordagem, ao ser
confrontada por formas de pensar que se baseiam em noções de todos englobantes e pessoas
que falam em termos de ‘representação’, geram questões inesperadas e interessantes é
testamento eu acho de sua fecundidade, não da sua aridez. Colando-a ao lado, e não ‘em
torno’ ou ‘no topo', de tais formas aparentemente contraditórias do pensamento fazer que essa
abordagem ela mesma faz parte do mesmo moviemnto incessante, e talvez revelará algo sobre
ambos. Que a análise antropológica da complexidade é uma questão aberta, e deve assim
permanecer, é ao seu crédito. Como Strathern aponta “[D]esconstrução, se funciona bem, é
móvel, ou seja, ela não se mantém colocada. É um processo temporal, você abre as coisas e
então elas fecham de novo, e você as abre e elas fecham de novo e assim por diante”
(Strathern, 1999)
98
. Assim, os capítulos seguintes são baseados exatamente nos momentos de
incerteza, quando meu conhecimento parece flúido, não fixo e com as pontas abertas. Minha
dissertação poderia talvez, então ser vista como uma série de movimentos, mais que um ponto
de vista estático de uma totalidade os movimentos que eu tive que fazer a fim de levar em
conta os movimentos de outros.
98
“[D]econstruction, if it works well, is mobile; that is, it doesn't stay put. It's a temporal process, you
open things up and then they close again, and you open them up, and they close again, so on and so forth”
85
CAPÍTULO 2 – MODELAGEM CLIMÁTICA
Modelagem Global e Uma Maneira de Driblar o Caos
O primeiro ponto a partir do qual espero me mover rumo ao que interessa são as ‘salas
de Modelagem’ no edifício da LBA de Manaus. dois escritórios de modelagem neste
edifício, cada uma geralmente voltada a dois tipos diferentes de modelagem: regional
(“micro”) e global (“macro”). Esta diferenciação é feita de acordo com a escala criada para e
pelo modelo a idéia básica sendo que modelos micro simulam o comportamento climático
de áreas regionais durante períodos de tempo mais curtos, e os modelos macro simulam o
comportamento climático de todo o mundo durante mais tempo. A separação e integração
entre ambos, no entanto, emergiu como uma das mais problemáticas questões para os
modeladores com os quais conversei, e mesmo para mim. A despeito da separação espacial no
edifício da LBA como pude explicar, estar trabalhando com qualquer tipo de modelo não
impede que se trabalhe com o outro o ‘chefeda ‘sala’ de modelagem regional, Eduardo
Leonardo e sua equipe trabalham com diferentes modelos, tanto os regionais quanto os
globais, visando “acoplá-los” (para o que devo retornar por volta do fim deste capítulo).
diferentes tipos de modelos micro e macro, assim como diferentes tipos de relação entre
modelos micro e macro. Um modelo ‘bom’ é ‘útil’, mas os usos aos quais é submetido são
vários. Isto implica que modelos têm diferentes relações com o que modelam, o que em
retorno clama pela questão sobre o que exatamente está sendo modelado.
As incertezas que experimentei tentando negociar a relação entre meu entendimento
desse problema e o entendimento necessariamente diferente dos modeladores parece sugerir
que talvez os problemas sejam igualmente diferentes, conclusão que penso poder ser notada
ao fazer trabalho de campo com ‘nativos’ que falam sua ngua aparentemente da mesma
forma que você. A despeito das similaridades aparentes, corre-se o risco de se envolver em
“um inevitável compromisso o entendimento que cada um tem do outro é comprometido
pelo entendimento que cada um imagina para o outro, mas não pode saber. Eis uma oscilação
de fato quotidiana”99 (Strathern 2002:109).
***
99 “an inevitable compromise – the understanding each has of the other is compromised by the understanding
each imagines for the other but cannot know. Here is a quotidian oscillation indeed
86
Um modelo climático é a simulação do comportamento do clima. É um programa de
computador matematicamente específico escrito normalmente para prever mudanças
climáticas, mesmo que às vezes só as “acompanhando”, utilizando equações dinâmicas fluidas
e dados de observação que tenham sido coletadas em campo. A variação climática é vista
como processo em si relacionado a outros processos e forças e que ocorre tanto na atmosfera
quanto na biosfera (a superfície da Terra, incluindo a vegetação). Como Eduardo Leonardo
me disse, é uma forma de “representar os sistemas do macro real, o mundo real, por via de
modelos meteorológicos que aplicam equações buscamos por princípios e os produzimos
em um programa de computador ... então visamos representar todos esses processos com
intuito de simulá-los.” “Simular” esses processos lhe dá uma ‘predição’ ou previsão.
O modelo existe neste sentido, como ‘representação’ no computador está ‘rodando’
no computador e o trabalho dos modeladores é o que lhes requer que sentem diante dos
computadores. Geralmente os modeladores não vão coletar dados que vêm a utilizar em seus
modelos (mesmo que haja exceções), mas baixâ-los de bancos de dados como o Beija-Flor, o
banco de dados da LBA. David Addams, um modelador global e professor norte-americano
convidado para dar aulas com a instalação do curso de PhD da LBA sobre ‘Clima e Meio-
Ambiente’ me mostrou o modelo no qual vinha trabalhando, não sem antes me avisar que
“não é particularmente atrativo, não é divertido de ler ou qualquer coisa”. É composto por
algo em torno de 35000 linhas de código de computador que codifica as tais equações de
dinâmica fluida que, no caso em questão “as equações básicas de atmosfera... essas são as que
chamamos equações momentum, equações de conservação de massa, equação de energia
termodinâmica... o modelo tenta reproduzir essas equações” (ver Fig 7).
87
subroutine rayleigh_damping(ug, vg, p_half, p_full, dt_ug, dt_vg, tg,
ug_n, vg_n, &
diss)
real, intent(in), dimension (:,:,:) :: ug, vg, p_full, p_half, tg,
ug_n, vg_n
real, dimension(size(ug,1),size(ug,2),size(ug,3)) :: ug_temp,
vg_temp,p_full_temp, &
tg_temp, magwind
real, dimension(size(ug,1),size(ug,2),size(ug,3)+1) :: p_half_temp
real, intent(inout), dimension(:,:,:) :: dt_ug, dt_vg
real, intent(out), dimension(:,:,:) :: diss
real, dimension(size(ug,1),size(ug,2)) :: sigma, sigma_norm, sigma_max
num_levels = size(ug,3)
do k = 1, num_levels
sigma(:,:) = p_full(:,:,k)/p_half(:,:,num_levels+1)
sigma_norm(:,:) = (sigma(:,:) - sigma_b)/ (1.0 - sigma_b)
sigma_max(:,:) = amax1(sigma_norm(:,:), 0.0)
dt_ug(:,:,k) = dt_ug(:,:,k) - kf*sigma_max(:,:)*ug(:,:,k)
dt_vg(:,:,k) = dt_vg(:,:,k) - kf*sigma_max(:,:)*vg(:,:,k)
! Variables used in calculating dissipation integrals
(rayleigh_integral)
magwind(:,:,k)=sqrt(ug(:,:,k)**2 + vg(:,:,k)**2)
! diss(:,:,k)=-kf*sigma_max(:,:)*magwind(:,:,k)**2
diss(:,:,k)=-(kf*sigma_max(:,:)*ug(:,:,k)*ug(:,:,k))-
(kf*sigma_max(:,:)*vg(:,:,k)* &
vg(:,:,k))
end do
FIG 7 Um exemplo do FORTRAN (abreviação de ‘formula translation’) código de
programa de computador retirado do modelo de David.
88
David trabalha com modelos globais os quais descreve como “muito idealisados”.
Como me disse “meus…os modelos com os quais trabalho são apenas considerados comos s
fossem a superfície inteira da Terra, o que não é nada realista, absolutamente nada a ver com
o plante que conhecemos. É muito mais um trabalho teórico.”, e marca então uma distinção
entre o que faz e o que um modelador regional pode fazer quanto aos possíveis objetivos: “se
você está olhando para este cenário de mudança climática atual... o que quer que signifiquem
termos de serem ou não reais... quando você quer fazer um experimento com algo similar à
superfície da terra realisticamente, o clima da terra, coisas como essas, você precisa de um
modelo muito mais completo”. Ele provê um “cerne dinâmico simples” ao qual os que
trabalham na modelagem regional adicionarão “bells and whistels” (guizos e apitos). Isso é
típico das discussões que tive com todos os modeladores de clima que, depois de separarem
claramente “teoria” do “planeta real (actual) no qual vivemos”. David segue então notando o
quão obscura é esta separação, um tanto fora-de-mão e da qual está tão incomodado quanto
incerto, a respeito de quão real é a realidade (actuality).
Assim, uma distinção feita aqui. David fala de modelos com os quais modeladores
regionais (ou micro) como Eduardo Leonardo, Paulo e Rosa trabalham (“os caras
preocupados com, você sabe, os detalhes sobre se ficará quente ou úmido no verão ou algo
parecido”) como sendo construídos a partir do modelo básico que ele provê, complexificando
e especificando-o. nesse sentido um aspecto cooperativo e acumulativo para o trabalho
que fazem. Um modelo é imaginado como sendo ‘camadas’ de complexidade que podem ser
adicionadas ou retiradas. Quanto mais camadas se adicionam, mais complexo é o resultado e
mais próximo se fica de como o planeta ‘realmente’ (actualy) é mas não como ‘realmente’
é100. O mundo aqui, como entidade singular, é concebido como somatória de processos
simples.
O modelo, em relação às suas partes, não existe somente como um programa de
computador. Pode ser conceituado como um ‘planeta’ também. As equações correspondem a
uma imagem. David explica com o que seu ‘simples’ modelo se parece:
“O primeiro original com o qual eu trabalhei é o que chama modelo seco. Então, você tem
basicamente uma esfera no espaço que é cercada por gás, e está em rotação e então você adiciona
100 Esta aparente contradição será elucidada quando vier a explorar, em maiores detalhes, as vias pelas
quais a ‘realidade’ é negociada pelos modeladores.
89
algum tipo de força para dirigir a circulação. É uma força muito, muito simples. Então você tem
alguma coisa que aquece o planeta e causa a movimentação do ar, e então você tem algo que deixa o ar
mais lento, o que chamam fricção ou dispersão (down-beat.) É tudo o que eu tinha, tudo muito, muito
simples. Agora eu estou adicionando água ao modelo, água-vapor, ao modelo. E isso vai adicionar
todo um outro nível de complexidade.”101
O modelo é simulação em dois sentidos. Em si mesmo é escrito para se ‘assemelhar’
(resemble) com o que modela, o que faz. No ato de modelagem é produzida outra simulação
de senão um mundo futuro, ao menos um mundo diferente. Cada modelador possui uma
forma sutilmente diferente de caracterizar um modelo quando falam comigo. David me
mostrou seu programa de computador quando lhe pedi. Aquela longa linha de números
piscando em uma tela. Paulo, por sua vez, me disse o que um professor lhe dissera durante
seus estudos na graduação e que carrega consigo desde então:
“Pra você medir a temperatura que aqui na sala, eu te falo a umidade dentro da sala. Então, o
modelo é isso. Que nem uma equação do primeiro grau… porque é pra isso que serve o modelo, pra
que você não precise ter todas as medidas, e ao mesmo tempo através dele você consiga elas.”
A descrição de Paulo enfatiza a forma que um modelo preenche lacunas de
conhecimento porque conhece as ‘relações’ entre os termos; trabalha-se na modalidade
‘se...portanto’, padrão comum à programação do computador se você mediu a umidade, o
modelo pode pegar a informação e te informar a temperatura subseqüentemente. Esta imagem
de um modelo como calculador de tipos foi reiterado pelo Professor Prakki, do INPE de São
José dos Campos, que chegara recentemente para lecionar em seu novo curso de PhD:
“Uma vez que você tem um modelo, sim, você entra com dados iniciais observáveis, que
você observa e esses dados para um modelo inputdepois esse modelo utiliza esses
dados, as leis matemáticas e físicas, extrapola par ao futuro, aí dá o “output”, certo?”
Mais uma vez, Prakki evidencia a habilidade de um modelo ‘trabalhar’ em algo que
101
“the original model that I worked with is what they call a dry model, so basically you just have a sphere
in space, and that’s surrounded by a gas, and it rotates, and then you add some type of force to drive circulation,
it’s a very, very simple force. Then you have something that heats up the planet, and causes the air to move, and
then you have something that slows the air down, what they call a down-beat or friction. That’s all I had, it was
very simple, very, very simple. Now I’m adding water to the model, water, water-vapour, to the model. And
that’s gonna add a whole other level of complexity.
90
você tem para lhe dar algo que não tem. Neste caso, o futuro. Faz-se “observações –
temperatura, precipitação, vento, umidade” e é isso que a “sensação, o conhecimento do
que está acontecendo em um certo momento”. Utilizando esse conhecimento como “condição
inicial” ou input, pode-se extrapolar rumo ao futuro (e também, como veremos, “retornar ao
passado”). Ele explicou que “essa extrapolação para o futuro não e tirado de cabeça de
ninguém, é com utilização de leis da física e matemática. Por exemplo, temos a lei de
Newton... lei de Newton, que relaciona a aceleração com a força, e da mesma forma temos a
lei de Boyle, que é, relaciona a pressão com o volume de um gás, quero dizer a atmosfera é
um gás”. Os modeladores estudam o comportamento destas ‘leis’ (isto é, suas variáveis) em
diferentes condições climáticas, como as ‘frentes frias’ ou ‘ventanias’, e os “esquematiza”
visando executar a extrapolação este ‘esquema’ é o modelo. “Então todas as leis você pode
escrever simbolicamente em termos matemáticos e esse conjunto de equações forma a base
para previsão de tempo, para a extrapolação das condições daquele gás, que é a atmosfera.
Uma vez que você tem um modelo, sim, você entra com dados iniciais observáveis, que
você observa e esses dados para um modelo “input” depois esse modelo utiliza esses
dados, as leis matemáticas e físicas, extrapola par ao futuro, aí dá o “output”, certo?”
O modelo segundo a formulação de Prakki tem semelhanças notáveis com a descrição
latouriana de uma “caixa-preta”:
“PÔR NA CAIXA-PRETA: Uma expressão oriunda da sociologia da ciência que se refere
para a forma que o trabalho tecno-científico torna visível seu próprio sucesso. Quando uma máquina
roda eficientemente, quando uma questão de fato se estabelece, é necessário então apenas se focar nos
inputs e outputs, e não em sua complexidade interna. Assim, paradoxalmente, quanto mais a ciência e
a tecnologia sucedem, mais opaca e obscura se torna.” (Latour 1999a: 304).
102
Bateson também se utiliza da idéia de caixas-pretas em um de seus Metalogues, (ao
discutir o que é “instinto”):
F: Uma “caixa-preta” é um acordo convencional entre cientistas visando para de explicar
coisas a partir de um certo ponto. Imagino ser um acordo temporário.
D: Mais isso não soa à caixa-preta.
102 “BLACKBOXING: An expression from the sociology of science that refers to the way scientific and
technical work is made invisible by its own success. When a machine runs efficiently, when a matter of fact
is settled, one need focus only on its inputs and outputs, and not on its internal complexity. Thus,
paradoxically, the more science and technology succeed, the more opaque and obscure they become.”
91
F: Não, mas é como é chamado. As coisas não costuma soar como seus nomes.
D: Não.
F: É uma palavra que vem dos engenheiros. Quando desenham um diagrama de uma máquina
complicada eles recorrem a um esboço, um resumo. Ao invés de desnhar todos os detalhes, colocam
uma caixa que substitui um aglomerado inteiro de partes e rotulam a caixa com aquilo que o
aglomerado supostamente faz.
D: Então, uma “caixa-preta” é um rótulo para aquilo que um aglomerado de coisas
supostamente faz...
F: Isso. Mas ao mesmo tempo não é uma explicação de como o aglomerado funciona.”
(Bateson 1972: 40)
103
O que é especialmente digno de nota acerca destas duas explicações sobre a ‘caixa-
preta’ são as diferentes ênfases. Mesmo que ambos ressaltem se tratar de uma forma de passar
grosso modo pela complexidade interna, o que Latour enfatiza é a perspectiva do sociólogo da
ciência. Bateson enfatiza os cientistas (ou engenheiros). No primeiro a condição de caixa-
preta obscurece enquanto que no último a condição também facilita é uma “abreviação”
temporária.
Assim um modelo, segundo o discurso do Professor Prakki, pode ser encarado como
uma caixa-preta que é, por sua vez, construído com outras caixas-pretas – as ‘leis básicas’ que
não são mais questionadas e tornaram-se fixas. Fixas como são, todavia, servem de base na
qual o modelo roda. É interessante que Latour cite ‘máquinas’ e ‘fatos’ como caixas-pretas
por excelência. Como eu havia apontado, os modeladores tendem a falar sobre seus modelos
por rumos que sugerem paralelos com uma máquina de calcular e se referem a eles como
‘instrumentos’. As equações básicas poderiam ser vistas como fatos, assim como trabalhar
103
F: A “black box” is a conventional agreement between scientists to stop trying to explain
things at a certain point. I guess it’s usually a temporary agreement.
D: But that doesn’t sound like a black box.
F: No, but that’s what it’s called. Things don’t often sound like their names.
D: No
F: It’s a word that comes from the engineers. When they draw a diagram of a complicated
machine, they use a sort of shorthand. Instead of drawing all the details, they put a box to stand for a
whole bunch of parts and label the box with what that bunch of parts is supposed to do.
D: So a “black box” is a label for what a bunch of things are supposed to do…
F: That’s right. But it’s not an explanation of how the bunch works.”
92
como tal caso sejam imaginadas como máquinas, reproduzindo relações e manufaturando
valores climáticos; depois de escrito o modelo e de fixada a equação, não porque explorar
exatamente como. Ao menos idealmente. Como tais, o modelo e as equações, podem ser
encaradas como reificações do conhecimento (Latour & Woolgar, 1986 [1979]:283) e a
condensação do passado, nos termos de Latour, que obscurece a cristalização da
complexidade interna; e nas palavras de Prakki, não são “retiradas da cabeça de alguém”, mas
existem independentemente e justificadamente como ‘coisas’ (res) em seu pleno direito. Mas
o modelo está rodando constantemente, as equações estão se ‘reproduzindo’ incessantemente
e em uma enorme escala de forma a gerar output de previsão de eventos climáticos futuros
que serão testados no confronto com dados observados. Modelo e equação devem ‘trabalhar’
em ambos os sentidos são máquinas bem-sucedidas, mas desempenham o trabalho de sê-
lo.E, importante, o que produzem em seu trabalho é uma “previsão”; seu output inclui
necessariamente mais que seu input. Se um modelo é bem sucedido, seu output incluirá mais
informações sobre o mundo, incluído o que ainda não aconteceu.
As equações também têm ‘nomes’ que marcam o processo de reificação ‘lei de
Newton’, ‘lei de Boyle’ mas para alguém interessado esses nomes também apontam para
diversos lugares, tempos e pessoas que são, em algum sentido, trazidas ou evocadas em
conjunto pelos modeladores em cada aplicação das equações como Prakki explica, eles
“vêm da antguidade…Pascal descobriu o barômetro, Charney, Boyle, Pascal, Lavoisier, tem
vários, franceses, ingleses, naquela época os cientistas eram os franceses, ingleses, italianos,
Torricelli, então, são, eram, os cientistas”. Se alguém seguir todos esses nomes e traçar a
história de cada equação pode terminar envolto numa rede surpreendente larga de elementos
heterogêneos (Latour, 2005), e descobrir o montante de trabalho, as múltiplas entidades
diferentes de dentro e fora dos laboratórios, que são trazidos juntos de forma que se estabilize
essa equação como simplesmente um ‘nome’, um “matter of fact” (Latour 1987, 1999ª).
Os modelos com os quais a LBA trabalha são em sua grande parte escritas em uma
linguagem de programação de computadores chamada FORTRAN (abreviação para ‘tradução
de fórmula’, ver Fig. 7) que tem 40 ou 50 anos, linguagem esta bem conhecida e “confiável”.
David me diz que a maioria dos modelos globais contemporâneos é escrita em FORTRAN
ainda que tenham uma coleção de comentários escritos em inglês, geralmente, mas isso
depende do país. Esses comentários são um aspecto importante do modelo, tanto que o
Professor Prakki me diz que “os russos também devem ter [modelos], mas ninguém liga para
93
os modelos deles”. Quando os modeladores mudam ou revisam os modelos, anotam as razões
para tal o que permanece no programa como um tipo de história idiossincrática. Vi um
modelo cujo comentário começava assim: “I am flying somewhere over the Caribbean...”,
signed “Steve”. Diante de nomes como “Newton” e “Boyle” outros menos conhecidos são
adicionados silenciosa, mas crucialmente. Modelos são passados pela “comunidade científica”
(como David chama) para serem testados e verificados, refinados e aprimorados – na verdade,
grande parte do que é feito na LBA, coisa que pretendo descrever depois, não se trata de
escrever novos modelos, mas refinar e ajustar modelos existentes para que possam então
fazer o registro de processos climáticos específicos na Amazônia. Ainda que Paulo me diga
que se possa sempre salvar a versão do modelo recebida de forma que se possa checá-la em
confronto com as alterações incluídas, os modelos são sempre espacialmente e
estruturalmente móveis e as versões retém o registro de sua própria história.
Com vistas em sua modelagem os modeladores dividem o mundo, ou o “quebram” de
diferentes formas. Uma delas está em reparti-lo em “caixinhas” cujo número dá a escala do
modelo, tal como Eduardo Leonardo me informou: “essa simulação do clima vai depender
do número, digamos, de espaços, que a gente quebra, quebra a determinada área, o mundo
inteiro ou uma determinada área”. Cada “caixinha” é representada por um ponto, ou
número, que é o acúmulo de todos os processos que estão ocorrendo no ‘espaço’ “toda
essa área é representada aqui por esse ponto” (Prof. Prakki). Como o mesmo Professor
Prakki me diz, o código FORTRAN é o que “transfere um valor ou dado para uma
caixa…Aí para essa caixa você soma, põe um outro valor, soma ou subtrai, dependendo da
operação. E depois você leva isso e coloca numa outra caixa. E assim vai, dentro do
computador, da memória do computador, as transferências de dados, de um lugar para
outro, de um espaço para outro de uma matriz para outras matrizes”. Este é o “modelo
rodando”, “marchando pelo tempo”, como diz David em seu caso do “modelo dos 1000
dias” em marcha e expandindo o comentário anterior de David, podemos dizer então que
o modelo ‘reproduz’ equações, mas as equações produzem mudanças.
Um modelo, enquanto roda como no caso de David, é dependente de uma “cadeia de
comando” o “programa principal” ‘chama’ o “sub-programa”, que pode então chamar
outros “sub-programas” ou a “função” e “a coisa vai numa cadeia, uma árvore”. David me
oferece “um modelo de cadeia de como isso efetivamente funciona, caso queira ver”
proferindo uma outra forma na qual se vê um modelo. O processamento de dados é
94
conceituado aqui linear e hierarquicamente, e é algo que pode ser facilmente representado
no papel. Mas me conduzindo na forma pela qual o modelo rodaria, David fala de valor
não como ‘dado’ mas como ‘vento’ que alcança uma idéia, para a qual devo retornar mais
adiante, de que as ‘caixinhas’ estão no computador e no mundo simultaneamente, e que o
mundo tanto está no modelo como o modelo está nele:
“right here here’s your du and dt 104, written in kind of a funny way, but that’s what it is, at a
certain space, point, and it’s affected by this thing right here, which is friction – so what it’s saying
is that the time rate of change of wind is affected by, um, some friction. So it has the wind from the
previous time step, plugs it in there, and then you get the new result, marches onto the next time
step, comes back to this routine, puts in the new wind, gets a new change, goes to the next time
step, marches through, that’s all it does” 105
O que está envolvido na ‘quebra’ do mundo e sua modelagem? Onde o mundo é
partido em ‘caixinhas’ de 50km por 50km, dados os 40 mil quilômetros de circunferência
dá por volta de
400x800 ‘caixinhas’ ou pontos.
Mas a atmosfera também é quebrada em 60 ou 62 camadas. Esta divisão vem sendo um
processo em ocorrência – a primeira simulação de clima bem sucedida, por Charney (e Von
Neumann) nos anos 1950 dividiu a atmosfera em 2 camadas. Como Professor Prakki me
diz, a divisão sucessiva em mais e mais camadas é uma tentativa de registrar a “variação
contínua” da atmosfera. Isso nos dá:
400x800x60 ‘caixinhas’ ou pontos.
O ar mesmo é também conceituado como sendo discreto, incluindo “bolsas” ou “parcelas”,
o estado essencial o qual é governado por 6 parâmetros: temperatura, umidade, vento em
três dimensões, e pressão, tal como ditado pelas leis básicas as quais “vêm da antigüidade”.
Isso significa que para cada ‘caixinha’, que contém uma ‘bolsa de ar’, o modelo deve
calcular 6 variáveis
104 ‘du’ é mudança horizontal na direção do vento ‘dt’ é mudança no tempo.
105 “Logo aqui estão seus du e dt, escritos de uma forma meio engraçada, mas é o que é, em um certo
espaço, um ponto,e é afetado pelas coisas exatamente aqui, o que é a fricção – assim, o que está sendo dito é
que a taxa temporal de mudança do clima é afetada por, hum... fricção. Então há o vento de um passo atrás no
tempo, conectado nele, e então você tem um novo resultado, marcha em direção a um novo passo, volta à sua
rotina, o põe em seu novo vento, tem uma nova mudança, segue ao próximo passo temporal, marcha, e é tudo
o que faz.”
95
400x800x60x6
E estas variáveis variam através do tempo, que também é dividido de uma forma particular.
Simulação do clima deve ser feita em intervalos de tempo muito curtos. O Professor Prakki
explica para mim que esta é a razão matemática de algo chamado critério CFL106, um
limite matemático para o poder de extrapolação e interpolação107 que ditam a mudança no
tempo usado tem que ser menor que a distância (50 km, o tamanho da caixinha’) sobre
perturbação (C). ‘Perturbação’, Prakki me diz, “não é nada que você observa” e é
relacionada com a onda de propagação gravitacional. A perturbação gravitacional é
importante para modelagem climática, e como as ondas de gravidade viajam rapidamente
(mais rápido que ondas sonoras, dizem e de qualquer forma, “ondas sonoras não fazem
chuva ou nuvens, fazem?”), significa que, ao menos que haja um enorme intervalo de
tempo, não meio de saber o que sua variável fará a seguir. ‘Perturbação’ é a constante
inconstante que é, todavia, negociável matematicamente. Se uma perturbação se propaga a
100 m/s, então se atenta à precaução de que os ‘passos’ através do tempo tenham menos de
500 segundos cada, de forma que seja possível confiar na simulação uma vez que um
intervalo maior viria a aumentar enormemente o potencial de erro108. O modelo então
extrapola “gradualmente” usando intervalos de 2 minutos e meio porque “extrapolação é
complicadíssimo”:
“Você tem que fazer, interpolar nesse pequeno intervalo, baseado nesse valor, você tem que
novamente fazer uma outra interpolação, baseada nessa outra interpolação e assim você tem que seguir
gradualmente.”
106
“Three mathematicians named Courant, Friedrichs, and Lewy created a criterion that, if violated, would
lead to the "blowing up" of a finite-difference weather prediction model. This CFL criterion is:
‘The speed of fastest winds in model must be less than or equal to grid spacing divided by the time step’
Because of the CFL criterion, a modeler cannot arbitrarily choose a horizontal grid spacing without also
taking into account the time step of the model. If you want fine horizontal resolution to see small-scale weather,
you must have fine time resolution too. Otherwise, the model "blows up" What does it look like when a model
"blows up"? Troughs and ridges turn disintegrate when the horizontal grid spacing and time step don't satisfy the
CFL criterion” (http://profhorn.meteor.wisc.edu/wxwise/kinematics/barotropic.html) 26/04/08
107
A diferença entre interpolação e extrapolação, como me explicou Professor Prakki, é a seguinte: “É,
quando você tem dois, duas observações e (…) entre as duas observações voquer obter esse valor, a gente
chama interpolação. nós temos duas observações mas você quer achar uma observação, um valor além desse
intervalo, é extrapolação. É extrapolar.”
Extrapolação é o posicionamento além dos pontos estabelecidos. Interpolação é a obtenção da relação
entre pontos em um conjunto (set) numérico.
108 ‘Perturbação pode ser vista para nossos propósitos de então como parte do ‘efeito borboleta’ no qual
‘pequenas perturbações podem ter um grande efeito em um sistema”.
96
Isso aumenta o número de cálculos. Assim, para uma hora de predição de se calcular
passos 30 vezes e então multiplicar o resultado por 24 por dia e então por 7 para uma
predição de uma semana:
400x800x60x6x30x24x7 cálculos.
E com vistas no cálculo da própria extrapolação são requeridos mais mil cálculos. E
pergunto porque. “Equações. Um grupo de equações. Você tem que calcular cada um
desses elementos, somar, dividir... ok? equações, ok?”, me diz Prakki me castigando
gentilmente por minha curiosidade, me dizendo que é impossível explicar uma vez que é
“o aprendizado de uma vida inteira”. Quando minha curiosidade teve o melhor de mim, e
eu perguntei novamente sobre essas equações precisarem efetivamente desempenhar
extrapolações da seis variáveis, ele riu e disse:
“Aah, vem de tudo, aquela equação de.. de Newton que eu falei, certo? Como é,
modelagem…? Quando você abre isso aqui, você enlouquece. Então é bom nem ver….Isso aqui é uma
equação, certo, quando tem uma igualdade no meio é uma equação, ? Essa aqui é uma equação essa
aqui é uma outra equação, enfim, então... depois na vertical, assim, as camadas, não da pra mostrar,
60 ele mostra alguns, certo? e aqui pro exemplo, eles tem que fazer isso aqui tudo. Então são gênios,
não são pessoas... cara é louco, não tem remédio, vive disso. Entendeu como que é? Quem escreve
um livro desse, tá certo, ele é um cara louco, imagina aí. Ele dedicou a vida inteira para fazer.”
Todos esses fatores nos dão então um total de:
400x800x60x6x30x24x7x1000 cálculos
o que 10¹³ lculos. 10¹² é um trilhão. 10¹³ são dez trilhões de operações matemáticas.
Para fazer uma predição climática para uma semana requer um programa que codifique e
um computador que calcule dez trilhões de operações em duas horas, porque “eu não vou
esperar por uma semana para pegar uma predição para daqui uma semana”.
A quantidade de trabalho envolvida e que perdura na escrita e na rodagem dos
programas de computador parece, para alguém de fora, de proporções surpreendentes.
Modelo e modelador devem, ambos, trabalhar muito e em conjunto. Quando conversei
com David sobre o critério CFL ele me explicou que havia algumas razões matemáticas
para manter uma certa grade de espaço como distância da distância entre os pontos entre
97
si – porque isso afeta a estabilidade numérica do modelo: “existe um critério chamado CFL
e o que faz é basicamente limitar o quão perto os pontos da grade podem chegar, que é o
que limita a resolução do modelo. Assim, o quanto se consegue de um modelo é limitado
pelo seu constrangimento matemático, esse constrangimento matemático computacional”.
Ele me conta a história da primeira tentativa de predição climática numérica feita por
Richardson em 1922, “antes de terem computadores...e os resultados foram péssimos,
absolutamente horríveis... ao que atribuíram às lacunas dos dados dizendo - não sabemos
muitos dados para as condições iniciais, não sabemos muitas informações mas não era
isso, pois poderiam ter condições iniciais perfeitas e poderiam saber tudo havia limitação
no que tange as grades. Não percebeu que havia instabilidade construída dentro. Viemos
a aprender mais tarde que era o critério CFL”. Mesmo que se ‘saiba tudo’ não será o
suficiente, ao que parece, porque sabem que a instabilidade é ‘construída por dentro’.
E o trabalho aumenta. Essa contenção matemática, o critério CFL, também demanda
que não somente que cada ‘passo’ tenha uma certa periodicidade, mas também que cada
um dos modeladores receba o modelo para transformar o ‘espaço em grade’ do modelo em
‘espaço espectral’. Espaço espectral, ao invés de ser o espaço cartesiano em forma de
grade, é o espaço baseado “em energia, em energia e freqüência, como ondas. Você pode
olhar para ondas e espaço espectral e ver apenas para seu padrão, sua amplitude. É uma
outra forma de descrever qualquer tipo de variável física”. Esta transformação é chamada
“transformação espectral”: “então um padrão no espaço, no espaço espectral – veja, tem
uma amplitude, como uma onda, com longitude e latitude se pega uma posição e a
transforma em uma grade uma grade cartesiana e então você faz o que precisa fazer para
então transformar tudo isso de volta em espaço espectral de forma a marchar rumo ao
próximo passo (...) a única razão pela qual você transforma de volta em espaço espectral é
estar às voltas com o critério CFL”. Isso tem que acontecer com cada uma das variáveis,
para cada andar no tempo (que, como o Professor Prakki nos disse, é também determinado
matematicamente pela perturbação induzida pelo critério CFL) porque se, se tentou fazer
de tudo no espaço espectral seria muito caro computacionalmente, e se, se faz tudo em
espaço em grade, “você tem o critério CFL o que torna tudo mais difícil”. O critério CFL
também engendra o problema de se ficar tentando encaixar a grade em uma esfera ou
seja, tentando encaixar suas ‘caixinhas’ no mundo. Quanto mais próximo se chega de um
pólo, as linhas da grade se aproximam ao mesmo tempo “todas as linhas convergem o
que é o problema se você fixou a grade, digo, pense bem porque em uma grade fixa, por
98
definição, um espaço constante entre os pontos da grade, mas quando se move rumo à
latitude, as linhas convergem e então o espaço muda (...) e então você tem a diferença no
espaço entre os pontos da grade e terá problema”. O que numa esfera precisa atingir um
ponto, numa grade é potencialmente o infinito.
A lacuna incomensurável entre ambos, o ponto e o infinito, é um dos vários pelos
quais os modeladores devem atravessar, como que por via de uma ponte, construída
devagar e comedidamente, com trabalho constante e pesado, de forma que o modelo e o
mundo se ‘encaixem’ por via de quebras, transformações e ‘equações’. Assim como cada
interpolação serve como passo para uma próxima interpolação e assim sucessivamente, o
modelo também progride à sua forma cuidadoso e verificando que tudo ‘funciona’. Em
termos de quantidade de trabalho desempenhado, as conexões em forja entre ‘mundo’ e
‘modelo’, somos lembrados da via utilizada por Latour para discutir essas “cadeias de
transformações” (1999ª:70) que constituem a prática científica ligando ‘mundo’ e
‘modelo’. Nesse ponto o modelo pode ser visto não somente como uma “representação”
passiva do mundo nem tampouco somente uma ‘caixa-preta’, mas um “momento de
substituição” (ibid:49) entre “sinal do futuro” (ibid:49) (a predição) e o “mundo real”.
Gradualmente, os modeladores seguem construindo associações matemáticas trazendo o
mundo ‘lá de fora’ dentro do modelo e dentro do mundo não menos real dos periódicos
científicos e bases de dados na Internet por via de uma “série regulada de transformações,
transmutações e traduções” (ibid:58).
No capítulo anterior esbocei no movimento radicalmente constitutivo dos dados como
metáfora para a forma pela qual viria a descrever e entender a LBA. Aqui a contribuição
particular de Latour acerca da forma pela qual os dados científicos são produzidos em
séries de pequenas associações serve para um outro movimento, o de entendimento da
relação entre os cientistas da LBA e aquilo que fazem. Vou explorar no próximo capítulo
como o tipo de trabalho feito pelos modeladores é diferente daquele feito pelos
pesquisadores de campo da LBA, que medem os processos físicos e coletam dados que
serão mais adiante “jogados” dentro do modelo como sua condição inicial. Por enquanto,
gostaria de pôr em relevo as conexões pelas quais o modelador e o pesquisador de campo
estão igual e cooperativamente construindo e efetivando a “transmutação da terra local em
99
um código universal” (1999ª:60)
109
. Como Latour diria, fenomenos, que são coisas como a
temperatura do ar e a umidade do solo que os pesquisadores de campo e seus sensores se
ocupam em medir, ou “transformar” em números (“código universal”) na floresta,
“circulam por toda a cadeia de transformações reversíveis a cada passo perdendo
propriedades e ganhando outras” (ibid:71)
110
, chegando aos modeladores que os pegam e
os introduzem nos modelos, fazendo sua parte na continuação da construção.
É importante notar que, neste ponto no qual Latour chama a cadeia de “reversível”, ou
seja, “sinal de futuro” (“future sign”) pode e deve ser capaz de ser seguido inversamente,
de volta para a “terra local” (“local earth”); e a cadeia cresce a partir do meio rumo aos
fins, estes sempre levados mais adiante” (1999ª:72)
111
. Que “o mundo tenha que se mover e
se transformar muito mais do que palavras” (ibid:49)
112
é uma faceta crucial da posição de
Latour; como devo explorar em maiores detalhes mais adiante, o mundo não permanece
imutável, mas muda assim que as séries de transformações é efetuada (ibid: 151), e nesse
caos fazer com que modelo e mundo se ‘encaixem’ dessa forma requer que o mundo a ser
trabalhado seja transformado também. Todavia, aqui me concentro no trabalho feito pelo
modelo e pelo modelador, dado que isso sugere um insight interessante do contexto no qual
os modeladores figuram em seus contextos. Seguindo Strathern, estou interessada no
“contexto geral” (“general context”) ou “estética” (“aesthetic”) (Strathern 1988ª: 10) do
que é ser um modelador.
***
“O que que é o problema da previsão de tempo? O problema da previsão de tempo é, você faz
observações... temperatura, precipitação, ah, vento, umidade, tudo isso, na superfície e em outros
níveis de altitude, faz observações. Isso é que te a sensação, o conhecimento do que está
acontecendo naquele momento. Então utilizando essa informação inicial - a gente chama isso de
condição inicial - extrapolar para o futuro.”
A aparente simplicidade do discurso do Professor Prakki parece perder definição quanto
109
“transmutation of local earth into universal code”
110
“circulate all along the reversible chain of transformations, at each step losing some properties to gain
others”
111
grows from the middle towards the ends, which are continually pushed further away”
112
“the world has to stir and transform itself much more than words”
100
mais aprendo sobre os problemas da previsão do tempo e de modelação climática, que
fazem multiplicar. David lamenta que “existe todo tipo de problemas com esses modelos
básicos, estes cernes, dinâmicos. problemas numéricos e de codificação de como você
faz em termos de programação... e então a física não é realmente completa, por causa das
várias coisas que você está falando. Você sabe que está deixando algumas de fora, mas tem
que. Tem que
”113. Ao lado da necessidade de deixar lapsos em seu modelo, os problemas
de codificação aparecem como bugs no modelo “que te um resultado que você não
quer, um erro. Um bug é um erro... digo, você pode sempre encontrar bugs em modelos
mas usualmente, quando um bug no modelo, ele te resultados malucos, e então você
sabe que algo está errado”114. O perigo então é que “você pode estar cometendo um erro e
não perceber. Um bug pode te dar um resultado razoável e você não percebe que é um bug.
Isso é um perigo. Geralmente não acontece, que é como coisas aleatórias levam a
resultados aleatórios”115. Mas se isso acontece, e um bug te um resultado razoável, é
ruim... porque não é um resultado real. Não é a física do modelo. Você tá olhando para algo
que algum cara escreveu, se ele cometeu um erro. Você pensando que os resultados são
reais, mas não são.”116
Gostaria de me voltar para as implicações daquilo que David está dizendo mais tarde
(da necessidade de deixar as coisas de fora e da possibilidade de ser enganado pelo
modelo). Por agora devo apensa apontar para a tarefa de escrever e rodar o modelo,
atividade cercada de toda sorte de armadilhas e pode se transformar numa “verdadeira
bagunça muito rapidamente”:
Tirar os bugs (debugging) é o pior – às vezes você comete erros estúpidos como nas vezes em que
usa ‘o’ maiúsculo ao invés de ‘0’ e não se conta porque é difícil de ver, o que leva dias para
procurar depois, especialmente em modelos muito complicados. Nem posso dizer quantas vezes
isso aconteceu comigo... esses são, na verdade, erros bastante simples porque não são erros de
113 “there’s all kind of problems with these basic models, these cores, these dynamical cores, there’s
numerical problems, and coding problems, how you do it in terms of the programming…and then the physics
aren’t complete really, because of the very things that you’re talking about, you know you’re leaving things
out, you have to, you have to.”
114 “it gives you a result you don’t want, an error. A bug is an error…I mean, you can always find bugs in
models – but usually when there’s a bug in a model it’ll give you crazy results, so you know there’s
something wrong
115 “you could be making an error and not realising it. A bug can give you a reasonable result and you
don’t realise it’s a bug, it’s a danger. Generally it doesn’t happen, as random things lead to random results.”
116 “it’s bad…because it’s not the real result. It’s not the physics of the model. You’re looking at what
some guy wrote, if he made a mistake. You’re thinking the results are real, and they’re not.”
101
lógica quando você comete erros de lógica, é que fica difícil de verdade... às vezes você faz
declarações do tipo ‘se’ muito complexos ‘se isso então aquilo, se não isso então’ e isso fica
muito bagunçado rapidamente, você joga uns dois esclarecimentos juntos e isso pode ficar muito
feio.” 117
O Professor Prakki me diz que “a maior parte dos problemas que se tem em um
programa, num código de computador, especialmente em termos de problemas
matemáticos, são as divisões por zero. Você sabe o que é uma divisão por zero? (...) É o
infinito. Mas isso não é determinável, isso não existe”. E se o zero se enfia dentro do
código, “Então precisa, em todos os pontos, por ponto, num ponto aqui, em algum lugar,
algum cálculo aí, mil cálculos aí, um calculo aí, de repente entrou um zero em baixo,
ha!, você errou tudo. fode tudo! Aí tudo explode. Aí explode, o computador não sabe
o que fazer, ele xinga, ah, ah o cara, coitado, não entende, o cientista, que é muito dedicado
aí, aonde está virando t zero, porque? Aí você tem que ver todo o código aaah, ah você
descobre e corrige (...) eu dei um exemplo muito banal, mas não é só isso”.
Não somente bugs e zeros podem entrar inesperadamente, mas a extrapolação é algo
“complicadíssimo” dependendo da derivação matemática118 procedente passo a passo,
trabalhando lentamente de fora para dentro. Isto se porque o problema do ‘problema da
predição’ é o que é não-linear, ou seja, a simulação “tende para o caos”. Toda equação tem
variáveis independentes e dependentes. As independentes tempo, t, e o espaço em três
dimensões, x, y e z não são negociáveis “x é x, y é y e z é z, e é isso. Ok?”. Todavia,
variáveis dependentes como u, v e w temperatura, umidade e pressão são totalmente
mais escorregadias. Umidade varia com o tempo e espaço assim como temperatura e
pressão. Tempo e espaço são variáveis ‘fixadas’então variam, mas a maneira pela qual o
fazem não varia; é sua inescapável e previsível variação que determina as outras variações.
Em si são “lineares”. Os produtos matemáticos de variáveis dependentes (u³, por exemplo),
todavia, causam problemas não-lineares porque não variáveis dependentes fixadas de
forma a ancorá-los matematicamente. “Esses problemas não-lineares são muito complexos,
117 “Debugging is the worst – sometimes you make very stupid mistakes, like sometimes you use a capital
‘o’ instead of a ‘0’, and not realise because it’s hard to see, and it can take days to find, especially in a very
complicated model. I can’t tell you how many times that’s happened to me…those are actually quite nice
mistakes because they’re not mistakes of logic – when you make mistakes of logic, that’s when it’s really
difficult…sometimes you make very complex ‘if statements – ‘if this then if this then, if not this then’ – it
can get real messy real quickly, throw a couple of statements together and it can get very ugly.”
118 O Professor Prakki explicou ‘derivação para mim em detalhes. O ponto central para meus propósitos é
que se trata de uma operação matemática que deriva um valor de uma outra.
102
muito matematicamente difíceis de resolver a solução. É numericamente você tem que
partir para a solução numérica, quando você parte para a solução numérica essa solução
pode se tornar caótica”.
Isso significa que pequenas diferenças se transformam em enormes ‘erros’. Isso está
além do escopo desta descrição e meu conhecimento acerca do assunto, isto é, me
aventurar pelos intrincados matemáticos da teoria do caos. Contudo, posso descrever o que
me foi dito – isto é, como os modeladores explicaram seus efeitos para mim. Caos significa
que sua habilidade de predição declina drasticamente com o passar do tempo. O que fora
‘solução’ se torna ‘caótico’. Por causa disso, “você tem que levar em conta esse problema
de caos. Foi isso que por essa razão que a previsão não pôde ser entendida de uma forma
determinística para quantos dias quiser. Não, o limite máximo é 10 dias. Eu não tenho
como fazer previsão, agora como fazer previsão de um mês, de dois meses”. O caos pode
ser mantido à parte por aproximadamente 10 dias. Isso significa que ele se torna
efetivamente um problema (invade mais abrangentemente) em predições climáticas do que
em predições de tempo (weather)119. E uma predição de 50 anos? Prakki ri e reforça
jocosamente que qualquer predição de 50 anos no tempo vai prever o fim do mundo.
“Num fluído, cada fluído sendo bastante... cada pequena parcela é independente das
outras, cada uma tem uma vida diferente. Uma parcela aqui está se deslocando assim, outra
assim, assim assado, então não. O fluído inteiro não é uma parcela, uma partícula,
entendeu? Então é complicado... fluídos dinâmicos” As pessoas que pensam que a
meteorologia é constituída por pronunciamentos como “em Manaus a temperatura é de 30
graus às 2 da tarde e de 22 graus de manhã cedo” não apreende o ponto levantado pelo
Professor Prakki que isso é “meteorologia para geógrafos e agrônomos. Meteorologia
para meteorologistas é isto”, ele me diz apontando para a série de gráficos que desenhou
para mim tentando me explicar o que ‘ficando caótico’ significa.
Mas eu pergunto se nesses 10 ou 20 dias algum caos. Não, não há, replica Prakki.
Fico confusa. Mas todo o fluido dinâmico corresponde a não-lineares? Sim. Então o caos
‘acontece’ somente depois de 10 dias? O ponto é o seguinte, me diz o Professor Prakki, que
119 A diferença entre predição ‘climática’ e de ‘tempo’ (weather), similar à diferença espacial entre
modelos globais e regionais (incluindo alguma forma pela qual a diferença não é necessariamente fixada).
Uma predição de tempo diz respeito a algo em torno de 2 meses. Uma predição climática implica em
qualquer margem além deste limite de tempo.
103
a qualidade da predição, por sua própria natureza diminui com o tempo. O que eu não
estava entendendo é que ‘caos’ é algo que emerge quando o modelo não prevê o mundo.
‘Ficando caótico’ significa, nesse caso, ficando imprevisível, isto é, quando sua solução
não é mais uma solução. Os modeladores nunca ‘vêem’ caos; o que vêem é o ‘acerto’ em
declínio. Um dos gráficos que o Professor Prakki desenhou em explicação continha duas
linhas de trajetória que divergiam radicalmente uma predita e outra ‘observada’. É o
espaço entre ambas que é caótico, a diferença entre ambas. Com vistas em saber se sua
predição é caótica ou não, de se comparar com o que ‘acontece de verdade’. Nesse
sentido, ambas possuem tanto uma propriedade de desencaixe “por natureza” quanto um
atributo relacional – ambas embutem e des-embutem (built in/built out).
É embutido (built in) porque os modeladores sabem o que está para acontecer, mas não
sabem como. Caos, nesse sentido, é a derradeira caixa-preta; vê-se onde ele começa (sua
condição inicial) e onde termina (sua predição), mas como o espaço entre ambos chegou lá
não pode ser sabido, ou ao menos é muito mais complexo do que o conhecimento corrente
pode dar conta (isto é, segundo o que está escrito no modelo). “Predição é um problema do
tempo”; seu “acerto degenera com o tempo”. Assim, para que a predição possa ser útil, isto
é, provendo informações, “você precisa de pelo menos 60% de correlação, o que é melhor
do que somente a cabeça e o rabo, não é?”. Caos, aqui, não é tanto uma ‘coisa’ quanto é
uma lacuna na correlação. Ambos os mundos, o observado e predito, mostram o caos como
a diferença entre si a ser apresentada. Nesse sentido, provém uma perspectiva comum para
um e para o outro. O que fora ‘embutido (built in) no modelo como tal é uma instabilidade
emergente, uma lacuna de limites, uma não-linearidade. E a idéia de que o mundo provê
uma ‘medida’ ou uma perspectiva no modelo e suas simulações, em retorno, implicam
numa idéia de escala a qual trato com mais cuidado na próxima seção.
Caos é des-embutido (built out) em dois sentidos. No primeiro sua existência é
inferida relacionalmente. Não reside no modelo ou no mundo até que ambos sejam
comparados, e está a diferença – é o que ocorre quando algo mais não ocorre. O segundo
é o que pode ser prevenido a partir de um certo ponto, como vimos nas palavras do
Professor Prakki, isso pode ser ‘driblado’ (mas não removido então o ato de
desembutimento (built out) é dependente do fato de estar ‘embutido’, num certo sentido.
As derivações matemáticas e a interpolação lentamente montam a predição a qual se
espera, através do uso do trabalho cuidadoso de construção realizado, não ser caótica; as
104
demandas dos critérios CFL são preenchidas, o próprio ‘espaço’ do modelo é transformado
metodicamente vez após vez. diversas formas de “driblar por aí”, um deles sendo, por
exemplo, a “assembléia técnica” na qual predições de diferentes modelos com as mesmas
condições iniciais são tomadas e averiguadas: “então você pega uma média e faz a
previsão. É uma maneira de driblar, certo, o caos.”.
Eu tinha deixado o critério CFL e a teoria matemática do caos como tipos de caixas-
pretas não somente por causa de meu conhecimento limitado dos mesmos (tenho que
controlar o movimento, às vezes), mas também porque é como os modeladores haviam
falado a respeito até que pudesse inquirir melhor. Isto é, para que viessem a se tornar uma
caixa-preta tanto quanto as equações de Newton. Mas imagino se é esta a melhor forma de
descrevê-los. Simplesmente postular que o ‘caos’ é uma caixa-preta como o são as leis de
Newton, é perder o que é essencial a respeito do caos, a saber, que é desconhecido. Não
são do mesmo tipo de caixa-preta. ‘Contenções’ aqui não são limites no sentido de linhas e
fronteiras, mas uma intrusão de uma não-linearidade relacional e imprevisibilidade, uma
variação contínua que excede nossa habilidade de concebê-los, como o zero entrando no
código do Professor Prakki trazendo o que ‘não pode existir’. Os ‘limites’ do modelo são,
nesse sentido, governados pela confusão da linearidade, e quando a não-linearidade de fato
se introduz, é preciso que seja posta de lado com cuidado e gradualmente, reforçando a
mesma linearidade com cimento matemático suficiente de forma a assegurar que a coisa
toda continue funcionando. Todo o edifício que é a modelagem climática é sôfrega e
cuidadosamente construída nesta forma, um tanto improvisado. A ‘contenção’ ou
encaixotamento dos modelos pode ser visto ‘negativamente’ como se deu não é somente
uma questão de desenhar uma linha onde seu modelo pára, mas limitando toda a
vizinhança onde o ‘caos’ pode vir a começar; não é como alguém manter algo dentro
escondido, mas mantendo algo fora o maior tempo possível.
Mas, seguindo Strathern em sua meia-volta (half-turn), “e se esse problema fosse um
fato também?” (1992b:92)
120
. Eu sugeriria que o a priori prontamente sustentado pelos
modeladores climáticos é que, ao contrário da forma pela qual a ciência é percebida e
entendida de fora, o fundo no qual se figura toda a atividade é exatamente não linear, não
inteligível e não previsível. É de variação contínua e de vulnerabilidade temporal. É a
120 “suppose this problem were also a fact?”
105
razão pela qual muito trabalho precisa suprir tanto entendimento quanto possível. A
diferença é tomada como algo contrário à similaridade equação a qual precisa ser
escrita. Não é porque o mundo é inerentemente conhecível que precisamos promover labor
para conhecê-lo. Pelo contrário, é porque não é121. Eu mesma tentei etnograficamente, e
de propósito, trabalhar na demonstração da quantidade de trabalho requerida para, ao
menos, começar minha aproximação da tarefa que vieram a estabelecer para si mesmos.
Uma caixa-preta então pode assumir uma forma diferente, ou ao menos pode ter mais
do que uma forma do que a usualmente assinalada pelos ‘sociólogos da ciência’, como
Latour os chama (o que não significa que o próprio Latour sugira uma visão singular do
termo). Usualmente pensado para expressar uma idéia de cancelamento e contenção, o
modelo se conforma sim a esta idéia de caixa-preta nas vezes que escondem a quantidade
de trabalho desempenhado em sua construção. As equações básicas das quais veio a se
constituir têm “historicidade” (Latour 199ª:152-153), como os humanos. São elas mesmas
assembléias de várias entidades combinadas, de cientistas italianos às técnicas
rudimentares de coleta de dados. Chamando-as de “lei de Torricelli” ou “lei do gás de
Boyle” é, todavia, uma forma de cancelar essas conexões heterogêneas e negando o status
fluido e construído (logo, no sentido latouriano, real”) que merecem. Todavia, ao mesmo
tempo, é somente ao se esgueirar por baixo disso que o modelo pode começar a fazer
novas conexões e adicionar novas entidades à sua existência, adicionar predições do
mundo para o mundo, ser ‘útil’ aos modeladores. Esta tipo de caixa-preta, em si contendo
mais caixas-pretas, não é do tipo ponto-final, mas resumos e abreviações em algo que
continua a ser escrito. Um modelo, assim como aquilo que modela, está em constante
movimento, se desenvolvendo e reproduzindo, predizendo e calculando, sendo refinado e
refinando, e o faz dentro dos limites do que é ‘embutido’ (built in) e ‘desembutido’ (built
out). É exatamente esta complexidade interna que os modeladores perseguem. A caixa
aparece como caixa-preta para aqueles que não fazem a modelagem, e é deixada como tal
pelos modeladores nas vezes que não querem ‘ficar loucos’. Como Latour se esforça em
esclarecer, e é também desapercebido (algo que é notável em si mesmo), o obscurantismo
121 Latour apresenta algo similar a respeito: “A maior parte dos artigos (papers) nunca são lidos, e os
poucos que o são servem de pouco, e o 1 ou 2 por cento remanescentes são transformados e mal
representados por aqueles que os usam. Mas esta perda mais parece paradoxal se aceitamos a hipótese de que
ordem é um exceção e a desordem, uma regra.” (Latour 1986:252); a questão sendo, este é um paradoxo para
quem, exatamente?
106
da ciência é, talvez, apenas a visão daqueles que não sujam as mãos em todos esses
materiais de construção.
Das conexões que um modelo faz que asseguram sua existência como um modelo
‘útil’, o mais importantes para os modeladores é que maneje para se estabelecer com ‘o
mundo’ o qual os modeladores e pesquisadores de campo, igualmente, trabalham tão
intensamente ao construir. 100% de ‘acerto’, e modelo e mundo se tornam uma linha. E
a linha entre eles fica difícil de traçar. O modelo é determinado nesses termos não por seus
próprios limites, mas pelos limites daquilo que lastra necessariamente e é lastrado por sua
vez, isto é, caos. Em retorno, “caos” pode ser posto na caixa-preta tendo em vista a
tentativa de contê-lo (critério CFL), mas ainda assim emerge como um intruso ameaçador e
atributo relacional (logo imprevisível) que cumpre papel no processo fastidioso da
construção de um modelo. A “possibilidade recursiva” nesse tipo de formulação é
explorada por Strathern (2002:91). Na breve revisão que faz da literatura acerca de
conceitos como ‘espaço’ e ‘lugar’, Strathern aponta que se ‘espaço e tempo são contidos
em lugares ao invés dos lugares neles’ como Casey (1996:44) o diria, um espaço em
particular (lugar) não pode ser agarrado ‘em primeiro lugar sem coordenadas (espaço)”
(2002:92)122.
Ecoando o ponto de parada em meu primeiro capítulo, “estabilidade e instabilidade
coexistindo em relação correlativa, cada um implicada na outra, produz um fenômeno
complexo” (2002:93)123. O modelo é lastrado em caos, assim como o caos no modelo,
estando o caos no movimento potencial do modelo, o lapso entre as duas linhas. Visto da
perspectiva da reversão figura-fundo infinita potencial, o ‘paradoxo’ inerente o qual os
modeladores parecem estar dizendo e fazendo se torna, talvez, não mais que um “oscilação
cotidiana” (ibid:109) entre o que se sabe e o que se sabe que não se sabe. Isto pode ser
aplicado tanto naquilo que os modeladores estão fazendo, como quando tentam dar um
“drible” no caos, o que é inerente ao que estão fazendo, como para um antropólogo
tentando interpretar o que as pessoas ‘querem dizer por via do que fazem e dizem.
122 “ “space and time are contained in places rather than places in them”” as Casey (1996: 44) would have
it, “the particular (place) cannot have been grasped “in the first place” without coordinates (space)” (2002:
92).
123 “stability and instability co-existing in correlative relationship, each implicated in the other, produce
complex phenomenon” (2002: 93)
107
***
Modelagem Regional e Quanto Real
Tendo descrito como modelos simples podem não ser tão simplesmente constituídos,
como quanto podemos ser levados a pensar inadvertidamente, eu gostaria de dar a meia-
volta em direção ao ‘mundo’ e a modelagem regional feito pela LBA; como David nota,
uma das diferenças entre o que faz e o que modeladores regionais fazem é que estes
“começam com dados do mundo real”. O mundo ‘real’ surgiu constantemente em minhas
conversas com os modeladores. Surgiu também de forma polarizada como um dos termos
que Latour procura desestabilizar ou situá-lo contíguo ao seu oposto polar, o “construído”
ou “fabricado”. Logo é um ponto onde potencialmente posso imaginar que soube o que os
modeladores estavam falando; o que eu falhei consistentemente em fazer será o propulsor
desta metade do capítulo.
Minha exploração então será implícita e explicitamente guiada por alguns dos
pensamentos de Latour sobre o problema. Assim, farei um breve resumo do que lhe é o
principal. Latour aponta para a “alternativa absurda: Escolha! Ou o fato é real ou é
fabricado!” (2005:91)
124
como algo irreconciliável na prática científica. Eu já toquei no
assunto brevemente, em sua insistência de que “mundo” deve se transformar tanto quanto
um texto a respeito o faz, e como estão envolvidos numa sorte de processo de construção
em cumplicidade. Latour avança nesse sentido quando descreve a via pela qual Pasteur e o
fermento de ácido lático que ele ‘descobriu’ conspiram e trabalham juntos de forma a
trazer consigo a existência (transformada) de ambos como “trocam e aprimoram
mutualmente suas propriedades” (1994a:124)
125
. A descoberta científica não é a revelação
de algo dado por que ‘o mundo’ não é o mesmo de antes, logo mais “todos os elementos
vêm sendo parcialmente transformados” (ibid:125); são mais um ‘evento’, permitindo à
‘articulação’ de ‘proposições’ que são ocasiões dadas a diferentes entidades para entrarem
em contato. Essas ocasiões de interação permitem às entidades modificarem suas
definições no curso de um evento” (ibid:141)
126
– mas através dessas articulações de
124
“Choose! Either a fact is real or it’s fabricated!”
125
“mutually exchange and enhance their properties”
126
occasions given to different entities to enter into contact. These occasions for interaction allow the
entities to modify their definitions over the course of an event”
108
novela “ao invés de um enorme lapso vertical entre coisas e linguagem temos muitas
diferenças entre trilhas horizontais de referência”. É assim que o ácido lático não é
inventado por Pasteur, mas pelo fermento (ibid:124). Fatos para Latour não são
simplesmente feitos e reais, mas reais exatamente porque são ‘inventados’ ou ‘articulados’
“o fermento do ácido lático existe agora como uma entidade discreta porque é articulado
entre outras tantas, em outros tantos conjuntos ativos e artificiais” (ibid:124)
127
. Os
argumentos que correm nas ciências sociais por via do construtivismo e do realismo
sempre culminam num déficit, exatamente porque o que está acontecendo no processo do
evento ‘científico’ é que o mundo está sendo adicionado ‘descoberta’ não é um jogo de
soma-zero. À prática científica é integrada numa posição mutante ocupada pelo mundo,
que não é mais somente uma entidade ontológica ‘a-histórica’ e estática esperando por ser
descoberta “o leque de associações, e a estabilidade das conexões através das várias
substituições e alternâncias de pontos de vista prestam grande serviço para o que
pretendemos dizer com existência e realidade” (ibid:164)128.
É crucial
neste momento ter em mente a questão de Latour: “É Pasteur que não é ciente
da dificuldade ou somos nós os incapazes de reconciliar construtivismo com empiricismo tão
prontamente como ele o faz? De quem é a contradição – de Pasteur ou nossa?”, do que segue
“enquanto não entendermos porque o que nos aparece como contradição não o é para Pasteur,
falhamos em aprender com aqueles que estudamos – nos simplesmente impomos nossas
categorias filosóficas emetáforas conceituais em seu trabalho” (1999:129)129. Essa realização
é inerente também a todos os trabalhos de Strathern, nos quais ela utiliza em aplicações
interessantes em sua análise e que, mesmo que um tanto rudemente, caracteriza a
“antropologia reversa” de Wagner. Explorei esta abordagem no último capítulo como um
movimento dialético de posicionamento mútuo, me fazendo olhar para a os dados da LBA
como uma metáfora por via da qual organizo meus próprios dados. A potência do ‘fractal’
como instanciação da LBA e como espaço conceitual pelo qual o suporte desse entendimento
se tornou claro. Mesmo que a refiguração da escala e a problematização da ‘representação’ no
127
“the lactic acid ferment now exists as a discrete entity because it is articulated between so many others,
in so many active and artificial settings”
128 “the length of associations, and the stability of the connections through various substitutions and shifts
in points of view make for a great deal of what we mean by existence and reality” (ibid: 164)
129 “Is Pasteur unaware of the difficulty, or are we unable to reconcile constructivism with empiricism as
readily as he does? Whose contradiction is this – Pasteurs or ours?” (…) “as long as we do not understand
why what appears to us as a contradiction is not one for Pasteur, we fail to learn from those we study – we
simply impose our philosophical categories and conceptual metaphors on their work” (1999: 129)
109
primeiro capítulo provoquem questões confusas os modeladores têm uma noção potente de
escala; eles também usam palavras como ‘representação’ e ‘escala’. Quão abrangente então é
o entendimento que tenho deles enquanto comprometidos com a diferença entre os usos, meu
e deles, destas noções? Até onde esse 'fato' é um problema?
Ainda que tenha tentado rastrear a enorme quantidade de trabalho que ambos, o
modelador e o modelo, devem fazer com vistas na predição do tempo ou do clima, eu vinha
negligenciando o suficiente para que pudesse realmente adentrar em como o ‘mundo’ advém
de tudo isso, aparte das “condições iniciais” as quais são postas no modelo para iniciá-lo,
como o fora. Na próxima seção, na qual irei me concentrar mais no trabalho dos modeladores
regionais, Eduardo Leonardo, Rosa e Paulo, ‘o mundo’ como ‘realidade’ e o modelo como
‘metáfora’ começam a assumir formas estranhas. O modelo é ‘carregado’ (loaded) pelo
mundo (Latour 1999a) que, para fazê-lo, deve ser escalonado para encaixar o modelo.
vimos a ação de escalonamento na forma pela qual o mundo é ‘partido’ na primeira seção.
“Escala” é um conceito crucial aqui no sentido em que é o meio pelo qual os modeladores
manejam o encontro entre mundo e modelo. É a forma de deixar as coisas dentro ou fora,
mais precisamente. Todavia, tratar ou o modelo ou o mundo como entidades singulares
empenhadas em relações singulares entre si, e especialmente tratando o modelo como
‘meramente’ uma metáfora do ‘mundo real’, é inteiramente inadequado para captar a
negociação característica da ciência dos modeladores, e causa a dissonância entre a teoria
recebida e a prática encenada que deveria ser explorada.
Tive muitas conversas com os modeladores e acumulava uma enorme massa de
informações as quais não estarei apta para discutir em detalhes. Selecionei abaixo o que penso
serem os elementos-chave dessas conversas visando capturar o que é que os modeladores
regionais fazem, mas ao mesmo tempo recriando a sensação de vertigem que tive ao tentar
reuni-las com minha própria (e variada) armadura conceitual como antropóloga, como é o que
fazem por si. momentos de incerteza. Como resultado, reconheço que o texto é algo
fragmentado, e tentei incluir o máximo possível do que os modeladores me disseram de forma
que o efeito de afastar essas partes de seu contexto não nos a sensação de algum tipo de
trapaça. Esta é uma via a qual pretendo explorar, ao invés de abusar (exploit). A sensação de
falta de sentido advém por que eu esperava entender mais do que de fato entendi. Ocorreu
uma diferença bem definida entre meus ‘predicados’ e meus ‘observados’. Mas como
Strathern alerta (1992b), ressonâncias podem ser levadas longe demais; contextos devem ser
110
contrastados, não combinados (conflated) (1988ª:11). Assim, sigamos para o que os
modeladores regionais me disseram.
Expliquei como cada ‘caixinha’ é representada por um ponto ou número se está
escrevendo um modelo, e que esses números advém de dados ‘observados’. Outra forma de
figurar esta relação, como Eduardo Leonardo o fez, é dizer que cada caixinha representa “um
pedacinho do globo (…) representa todo esse volume da atmosfera e embaixo a superfície, a
topografia, cobertura vegetal, tudo isso que cientificamente precisa ser incluída no modelo,
tá?”. Essa ‘caixinha’ é como o modelo “enxerga as características” do mundo. A ‘caixinha’ é
o que ao modelo acesso ao mundo e assim, o número de ‘caixinhas’ pelo qual o mundo é
‘partido’, ou área em estudo, é o que ao seu modelo sua “resolução, essa, digamos assim,
essa... essa... capacidade de enxergar, nessa qualidade da imagem no clima que o modelo vai
gerar”. Eduardo Leonardo usa a metáfora visual para explicar esta idéia para mim: “quanto
maior a quantidade de pixels, maior a definição da imagem, mas a resolução da imagem, você
tem uma imagem mais precisa, né, você tem muito mais detalhes da imagem”. Quanto maior
o número ‘caixinhas’ utilizado para partir o mundo, em maior número de detalhes o modelo
pode ‘enxergar’. O modelo está então produzindo uma imagem do mundo que é dependente
em quanto lhe é permitido enxergar. É simulando o mundo que se vem a enxergar.
Eduardo Leonardo explica que cada caixa tem que “representar” o número de
“processos físicos” como “a troca de movimento…velocidade ou transferência de
momento, de movimento, a transferência é o escoamento vai perdendo, a medida que vai
encontrando…efeito do atrito, também a quantidade de calor que é trocada sobre o oceano
e o continente também a quantidade de água” . A ‘caixinha’ é então uma porta entre essa
dinâmica de processos do mundo ‘observada’ e o modelo ‘construído’. As equações que
fazem o modelo são feitos para ‘capturar’ tais movimentos físicos e transferências. Esses
processos são, assim, o que a LBA mede em seus experimentos, ou transformando (sensu
Latour) em ‘dados’ usando as torres, e os dados providos por elas são o que é utilizado para
fornecer as ‘condições iniciais’ que acionam esses modelos regionais quando começam a
rodar. Cada torre tem uma “pegada” própria, uma parcela do ‘mundo’ que pode capturar, o
que é matematicamente definido como cem vezes a altura da torre.
Visando medir esses processos físicos, o “pedacinho do globo” é delimitado,
isto é, a ‘superfície ativa’ é definida como a biosfera abaixo de 30 m e a ‘atmosfera’, por
111
exemplo, a partir de 10m acima da biosfera (nesse caso, sobre a copa das árvores). Os dados
utilizados são os dados coletados dentro dessa área tão definida. “A gente representa a
biosfera, tá? Então a biosfera a gente considera como a camada de solo, então a gente
considera o processo de água no solo de infiltração, de escoamento da água, tudo isso é
representado…que vai até alguns metros de profundidade, 20, 30 metros de profundidade… a
gente configura o modelo de acordo com o que a gente deseja e pretende observar….. todos
os processos que acontecem na natureza”. Semelhantemente é como o mundo é sugerido mais
especificamente. Assim como a atmosfera é uma ‘variação contínua’ que veio a ser separada
em 62 camadas, também a biosfera (a superfície) veio a se definir de forma que o modelo
possa enxergá-la. Parece que o mundo é também configurado de acordo com o que “a gente
deseja e pretende observar” com o modelo.
“A gente sabe que tudo é muito complexo, e tudo muito interligado”, mas uma forma que
adquirir acesso a esse mundo complexo é medindo-o – “a gente está mapeando, está
acompanhando o desenvolvimento de todo o contínuo, solo, planta, atmosfera, está
medindo, então, e essas medidas é que a gente vai estar aplicando no que a gente chama de
modelo de superfície, que é o que a gente chama de modelo de biosfera”. O ato de medição
ou transformação é então o primeiro passo no estabelecimento do ‘mundo observado’.
Transforma um continuum em números que podem ser postos num modelo ou podem ser
usados para verificar se o modelo está ‘trabalhando bem’ ou não. A imagem que o modelo
provê do mundo, e a imagem que o modelo é do mundo, pode ser ‘verificada’ com o que
‘realmente (actually) existe fora’. Todavia, o que ‘realmente existe fora’ é “muito
complexo e muito interligado”, além de existir de maneira medida, isto é, transformada.
“Então, a gente está medindo (...) fluxo, evaporação, água, calor, dióxido de carbono, e
também o que essendo acumulado no solo, tá? E o que esta saindo nesse tipo de sistema pelo
solo, também indo para os igarapés, né? (...) de escoamento, e o que está sendo pedido, digamos
assim, e o que está ficando, na verdade, entra uma coisa, e sai outra, mas sempre tem um conteúdo
aqui, certo? Então tudo isso estaá sendo monitorado, e tudo isso esta sendo calculado também
pelos modelos, tudo isso no caso pelos modelos da biosfera, tá?”
Assim, trata-se de uma imagem nada estática. O modelo ‘modela’ assim como o mundo
‘mundifica’ ou ao menos o mundo que tem sido tão ‘medido’ ou ‘transformado’ pelos
modeladores. Este ato em si é de escalação “a gente chega à conclusão que em
112
determinada escala os principais elementos, os principais fatores, que determinam a minha
dinâmica dos fluidos, a minha dinâmica do ar, podem ser... é... registros por esses
conjuntos de termos [equations] que aqui a gente considerou. Aqueles outros a gente pode
desprezar”.
Mesmo que haja mais processos, sempre mais processos, os modeladores decidem
quais deles são importantes numa determinada escala. Devo retornar às decisões mais
tarde. Aqui eu gostaria de apontar para algo diferente, para o papel desempenhado pelos
‘dados observados’. Eduardo Leonardo me diz que o único momento em que os modelos
de predição poderiam ‘usar os dados seriam como ‘condição inicial’, quando são ‘jogados’
dentro do modelo: “O tempo zero, é o que a gente considera em tempo inicial e o que a
gente considera como estado observado da atmosfera. Em qualquer tipo de simulação
precisamos de uma condição inicial. Tá? Então é o único momento que a gente usa a
observação para esse tipo de estudo”. ‘Tempo zero’ aqui não é bem uma ausência quanto é
uma presença gradual é o ponto a partir do qual toda mudança será medida. É quase a
delimitação do conhecimento, o primeiro e o último ponto onde modelo e mundo de
encontram ‘definitivamente’. Isso, contudo, certamente contém sua própria incerteza,
como veremos.
Como o Professor Prakki me explicou, também é possível testar o modelo com dados
observados ao fazer um “retrospecto”. Isso envolve ver se isso ‘prediz’ precisamente
voltando para o passado tal como verificado com os dados então coletados, isto é, o mundo
que ‘já aconteceu’. Isso se compromete, como me disse Tota, com as capacidades
instrumentais da meteorologia no passado. “Hoje temos anemômetros sônicos
tridimensionais que antes não tínhamos. Como medíamos o vento? Com papel, atirávamos
papel no ar! Mas por isso jogamos os dados fora? Você diz que eles não servem para mais
nada? Não, pois são referência, mas não realidade”. Não é somente a realidade que possui
poder de referência.
Dados ‘observados’ coletados em campo podem ser usados para comparar com o
modelo assim como ser diretamente ‘carregado’ nele até o ‘tempo zero’. Mas é também
envolvido na escritura do próprio modelo. O modelo é ‘limitado’, no sentido em que é
especificado, por via de um processo de parametrização. Tais limites para o modelo
também vêm dos ‘dados observados’ mais uma vez vemos aqui como os ‘dados
113
observados’ são mobilizados para a construção do modelo, embora não nos termos que o
fazem rodar, mas no que diz respeito ao seu ‘fechamento’ e parada. Especificação é a
cessão da sorte, da variação ilimitada:
“Isso... na verdade... tem os dados que são os parâmetros que construíram os modelos, não os dados,
mas os parâmetros derivados daqueles dados, por exemplo, hipoteticamente a presença de certas
condições de nuvens com variação da temperatura e da umidade. Você vai obter uma equação de
regressão... toda a parametrização, todo modelo quando se trabalha com a parametrização tem um
limite, e um limite que é associado a como ele foi concebido, em termos de equações”.
Rosa também trabalha com essa idéia de ‘fechamento’ e limite:
“Chega um certo ponto de um limite, um limite computacional; se não você vai criar uma... um
looping que não vai ter fim. E você não vai ter um resultado nunca. Entendeu? Então você tem que
fechar ela em alguma coisa, em alguma parte. E…esses fechamentos são feitos…são chamadas
técnicas do fechamento, né? Que são parametrizações. Tem gente que estuda só isso, só aquela
equação e aquelas parametrizações…pra esse fechamento, pra ver o que é que dá, qual o parâmetro de
fechamento que dá o melhor resultado, (...). Tem gente que só estuda isso.”
Parâmetros são estabelecidos aqui visando o ‘melhor resultado’. Os dados fornecidos ao
modelo e a forma que o modelo roda deve ser “formatada” (como o professor Prakki me
disse) para seu encaixe.
Logo, o que governa o que o modelo do mundo é uma ‘determinada escala’. A
escala do modelo é tal que o que ele não precisa ver é excluído. Como se determina uma
escala? É algo imputado pelo modelo ao mundo? Ou é a forma pela qual o modelo assume
a partir do mundo? Ambos, ao que me parece. Ou ao menos a diferença não é relevante.
Eduardo Leonardo me diz: “Em termos de modelagem, não em termos de modelagem,
mas o mundo real, ele funciona, em, digamos assim, em escalas de espaço e tempos
distintos, tá? E essas escalas são inerentes a processos específicos tanto quanto processos
de solo, quanto na vegetação, como também na atmosfera”. A ‘escala’ como propriedade é
então inerente ao mundo e ao modelo. Deste ponto de vista, o mundo ocorre de acordo com
certas escalas, tal como a modelagem. Ao especificar uma certa ‘escala’ em ambos, uma
114
certa imagem de ambos emerge.
A escala que se escolhe para um modelo depende do “processo investigado”, isto é, do
que você pretende ‘ver’. Ao mesmo tempo, isso depende da “ciência a qual o modelo
serve” a macro para um pedólogo seria micro para um modelador, me diz Eduardo
Leonardo. O mesmo ‘processo’ pode ser visto segundo diferentes ‘escalas’. Eduardo
Leonardo me explica como viria a decidir uma escala para seu modelo enfatizando que,
devido às restrições computacionais que Rosa menciona na citação abaixo: “na verdade,
você tem sempre que planejar como você irá fazer suas simulações, como quer aplicar seu
modelo e, fundamentalmente, o que quer entender ao aplicas seu modelo, certo?”. Ele
concebe que “tudo isso aqui é limitado? É.” No que segue ao qualificar limite:
Mas quem vai definir mesmo que tipo de estrutura de máquinas que você precisa vai ser o
domínio que você quer estudar... Então potencialmente você pode aplicar um modelinho, e você
não precisa fazer um domínio inteiro, se você quer só analisar aquele evento, aquele tipo de
sistema, você tem um domínio relativamente amplo, que dê para você utilizar o sistema do modelo,
utiliza um sistema de alta resolução, né? Com bastante detalhes e você simula, se são eventos que
tem uma ordem de magnitude, por exemplo sistemas convectivos de média escala…eles surgem na
costa da Amazônia, na região de Belém, e tal, e vem se deslocando para , por exemplo, isso
naturalmente, isso acontece no final da tarde em Belém, ? Entre 15 e 18 hs, 12 horas depois
esse sistema está aqui na região de Manaus, porque ele vem se deslocando... quando tem dia de
chuva você vai ver aqui, na banda de nebulosidade vindo pra cá, vindo pra , vindo pra , vindo
pra cá.... mas se você quiser estudar esse mecanismo, então você vai ter que ter um domínio que
abrange, de Belém a Manaus, e você vai ter que ter pelo menos a simulação de pelo menos um dia,
para você poder comparar a evolução do sistema, de onde deu origem , aa chegada em Manaus,
certo? E qualquer tamanho tipo desse tipo de configuração... estamos falando de alguns
quilômetros, de tamanho do sistema, então, qual, com quantos pontinhos de grade eu tenho que
estudar esse caso? Então 20 km é suficiente? Então eu pego uma caixinha de 20 por 20, tá... o
pessoal diz que é melhor 10, então você coloca 10”.
Mas quem é esse pessoal? Eu pergunto. Eduardo Leonardo ri.
“O pessoal que trabalha em simulações que existem no tamanho escala de 10 km no
sentido que você consegue capturar”, ele diz.
115
Você tem que ir até a literatura e aos periódicos e certificar ‘fisicamente’ o que estes
pesquisadores de clima “definem” (“o que esses caras definiriam”) quanto tempo o
sistema que se quer estudar perdura, qual área cobre e quão freqüentemente ocorre que é
o que “vai te dar sua resolução”, a escala para a qual você olha. A escala para a qual o
evento acontece e para a qual seu modelo deve estar olhando; e para determinar essa escala
pode-se precisar listar e prontificar outra pesquisa feita em outro momento e em outros
lugares.
Portanto, Paulo, um modelador que trabalha com Eduardo Leonardo, também me diz
“O que vai te dizer o que é macro e o que é micro é o seu ponto de referencia. Essa sala
aqui pode ser micro considerando INPA. Mas considerando a sala aqui, a que a gente tava
aí, aqui a gente é macro, então depende do seu ponto de referência”. Modelos
‘macro’são, em algumas situações, sinônimo de ‘globais’, mas a maneira pela qual os
modeladores usam uma escala é também relativa e tem uma relação mútua e constitutiva
com o ‘mundo’. Seu ‘macro’ lhe dará seu micro e vice-versa. Macro deve ser ‘macro’ para
alguém ou algo.
Paulo segue: “define então as escalas: macro porque é o globo todo; mas eu posso te dar
um macro e te dar um continente. E não é mais o globo todo. Eu posso te dar macro e
te dando um... um país. Também pode ser macro. Depende do que eu vou estudar”. As
escalas inerentes com as quais o mundo trabalha ‘dentro’ não são absolutas; isso pode ser
feito em diferentes ‘escalas’. A escala aqui tem a habilidade de mudar.
Marta (mulher de Paulo), da micrometeorologia, discorda “mas a gente não tem muitas
variações dentro dos conceitos”, porque, e Paulo concede, são definições recebidas dentro
da meteorologia: “isso é micro: tantantantan! Isso é macro: tantantantan!” Mas o “micro’
(e aqui ele está se referindo tanto à dimensão espacial quanto a temporal) é, “talvez, mais
complexa que a macro”. várias operações que acontecem por em um segundo”; “No
macro também!” - Marta interrompe. Não somente o conceito é de tipo relativo, como
parece haver uma liberdade particular para tecer argumentos. ‘Macro’ e ‘micro’ existem
como conceitos absolutos em manuais de meteorologia, mas como entes relativos
aparecem na prática. Um mesmo processo pode ser visto segundo diferentes escalas
fazendo desta uma imagem de uma certa forma de ver o mundo. Mas ao mesmo tempo,
de se escolher a escala cuidadosamente dependendo do que se pretende estudar, como
116
Eduardo Leonardo nos diz. Escalas diferentes mostraram coisas diferentes, não são
somente diferentes visões de uma mesma coisa, mas diferentes visões de coisas diferentes
que, como tal faz da escala um ente com habilidade de evocar argumentos ou discussões.
Modelo e mundo têm que trabalhar na mesma escala, que é a propriedade móvel que
estrutura a ambos.
Eventos como desflorestamento têm um efeito que expande para além-fronteiras em
termos de escala: “desflorestamento ocorre, primeiramente, numa pequena escala e então
acaba crescendo (...) com o tempo”. Eduardo Leonardo me explica que desflorestamento
“primeiro, vai ter efeito local, e depois pode ser regional e dependendo da extensão de
desmatamento, quanto da área que foi desmatada, pode também ter um efeito no clima
global, tendo em vista que a Amazônia conecta vários sistemas, vários mecanismos de
transporte de energia e umidade com outras regiões do mundo”. Um processo em âmbito
‘regional’ pode afetar o clima ‘global’ por que o globo parece ser composto por processos
interconectados. A escala é então algo que tem a habilidade de mudar fora dos limites que
estabelece, mudanças estas que são interconectadas.
Para os estudos sobre desflorestamento os modelos regionais são preferidos uma vez
que se pode ‘partir uma área ou um estado. Caso alguém tenha feito ‘caixinhas’ muito
grandes, o ponto que representam não conseguirá capturar a dinâmica sob investigação.
Por exemplo, se todo o estado de Rondônia for uma ‘caixinha’, aparecerá como
inteiramente desflorestado. O estado de Rondônia seria reduzido a um ponto, e “o que isso
vi me representar no cálculo do todo no meu sistema de clima? Nada”. Todavia, em alguns
modelos macro que põem as vistas no globo inteiro a Amazônia aparece como
completamente desflorestada exatamente por esta razão; “justamente, é a possibilidade que
esses modelos permitem”. É o que caracterizam como “resultados teóricos”, que “traduzem
a realidade” exatamente, mas te uma idéia de como o mundo seria com a Amazônia
desflorestada.
O mundo que você é então determinado de uma forma particular pelo que o seu
modelo lhe permite ver. Mas seria isso uma indicação de um mundo imutável subjacente
àquilo que o modelo vê? Às vezes parece que sim. Mas momentos emque esta parece
uma posição difícil de sustentar. Um bom modelo é aquilo que manipula para ver bem o
que é isso que você pretende enxergar. O que este ‘isso’ é varia, desde o globo inteiro até
117
uma frente climática. Esta é a razão pela qual a escala é tão importante, e essa escolha
envolve uma sorte de ‘colusão’ escalar entre modelo e mundo. O modelo e o mundo
trabalham juntos para dar uma imagem que capture melhor o que é que você quer ver. Que
isso seja ‘o mundo’ está fora de questão. Mas isso também implica que haja muitas
realidades diferentes que são modeladas.
Tudo depende, me diz Eduardo Leonardo, em “quanto real eu quero fazer meu
estudo”. Logo, poderia ser dito que uma outra distinção entre os modelos não é quanto eles
representam o real como entidade distinta, ‘lá fora, no mundo’, mas a quantidade de real
que o modelador decidiu pôr no modelo. ‘Real’ não é um critério exclusivo e binário, mas
inclusivo e gradual. O modelo não é ‘real’ ou ‘irreal’, mas pode ser feito para ser mais ou
menos real, porque ‘real’ é um status potencialmente múltiplo.
Lembramos que David me disse que seus modelos não portam qualquer semelhança
com o “mundo real (actual)”. Ainda assim, quando perguntei se neste caso os dados usados
como ‘condição inicial’ poderiam ser completamente arbitrários, ele replicou prontamente
que “não, o modelo explodiria. Iria colidir, ficaria instável”
130
. A ‘rotina inicial’ (um sub-
programa) fornecerá os dados de iniciação que são “arbitrários... bem, não completamente
arbitrários, mas são escolhidos de tal forma que o modelo pode passar por eles sem
explodir”
131
. Quando perguntei como esses valores iniciais são então conectados aos dados
que foram ‘observados’, ele me disse “bem, veja, você está tentando fazê-lo como que
realista porque não faria qualquer sentido se você simplesmente sabe, ligasse qualquer
coisa, e conseguisse qualquer número, isso não te nenhuma informação tem que ser
algo que ao menos represente alguma coisa que é ao menos teoricamente possível no
planeta, no nosso planeta, em algum outro planeta... Se você liga esses números e você
consegue apenas um blábláblá, eu não sei o que você aprenderia com isso”
132
. O ponto de
partida dos dados, ou “tempo zero”, então nos modelos de David habitam um espaço
liminar entre o arbitrário e o observado. É “algo realista”. Então o que exatamente estão
‘modelando’?
130 “no, the model will blow up. It’ll crash, it’ll become unstable”
131 “arbitrary, well not completely arbitrary, but they’re chosen in such a way that the model can step
through in time without blowing up”
132 “well, look, you’re trying to make it somewhat realistic because wouldn’t make any sense if you just,
you know, plug in anything, and you get any number, you’re not getting any information out of that – it has to
be something that at least represents something which is at least theoretically possible in the planet, in our
planet, in some other planet…if you plug in these numbers and you just get gobbledygook, I don’t know what
you learn from that”
118
Na modelagem global, “você está fazendo todo tipo de assunção, certo, todo tipo”
133
,
David me disse. “É claro que você não pode fazer assunções que não são físicas”
134
, mas
pode imaginar, por exemplo, que toda a superfície do mundo é uma superfície de água:
“ok, é uma superfície achatada... Não absorve energia, mas em certa temperatura evapora...
é o suficiente para o que precisamos agora”
135
. Se isso não é a modelagem do ‘real’, como
podemos dizer se é um bom modelo ou não? É um modelo de quê? De um mundo possível.
É o que é uma predição. O modelo é a modelagem de um ‘mundo real’ ao mesmo tempo
em que é a modelagem de sua predição, que não é ainda ‘real mas é mais ou menos isso.
David me diz que “os resultados que você consegue são sempre ditados pelas
assunções que faz; seus resultados serão sempre dispostos através de assunções, você
pode almejar ser tão realista... Seus resultados serão sempre escravos de suas
assunções”
136
. Tais assunções “meio que levam em conta de forma muito abstrata alguns
efeitos da água e coisas do tipo que, sem incluir a água por que ela é, de qualquer forma,
mais complicada”
137
. “Então, a água é reduzida a uma parte do efeito geral da água?”,
perguntei. “Certo, exatamente, exatamente “, David diz, “os efeitos da água... você está
pegando a ciência básica por que chove? Qual é a resposta para isso? O que a chuva está
fazendo? Porque temos tempestades? Qual é a razão física por trás das tempestades – digo,
você sabe?”. Não estou certa, admito. “Ok, tudo que faz isso transfere energia da superfície
para a atmosfera. Você pode ser romântica e escrever poesia sobre isso, mas é tudo o que
isso faz, pega energia da superfície e coloca na atmosfera”
138
. Então, isso é o que todas as
tempestades ‘realmente’ fazem. Mas então, como as tempestades em seu modelo são
comparadas com tempestades num modelo regional?
Bem, essas pessoas estão realmente interessadas em como são os efeitos em termos de mundo
133 “you’re making all kinds of assumptions, right, all kinds”
134 “Of course, you can’t make unphysical assumptions”
135 ““ok, it’s a flat surface…it doesn’t absorb energy but at certain temperature, it evaporates…that’s good
enough for what I need to know”
136 “the results that you get will always be dictated by the assumptions that you make; your results will
always be displayed through your assumptions, you can only expect to be so realistic…your results will
always be slaves to your assumptions.”
137 “kind of take into account in a very abstract way effects of water and stuff like that without including
water, because water makes it all kind of more complicated”
138 “the effects of water…..you’re taking science 101 – why does it rain? What is the answer to that? What
is rain doing? Why do we have storms? What is the physical reason behind storms- I mean do you
know?”...“Ok, all that does is it transfers energy from the surface to the atmosphere, you can be romantic and
write poetry about it, but that’s all it does, it takes energy from the surface and puts it in the atmosphere.”
119
real – qualquer um sabe que a função da chuva é aquecer a atmosfera, é tudo o que faz, a transferência
de energia. Mas isso não te diz muito, somente que a energia está sendo conservada... Essas pessoas
querem saber especificamente, dadas as condições da Amazônia, como nossa floresta afeta o clima em
larga escala e como o clima de larga escala retroalimenta nossa florestas, você sabe, coisas como
esta.””139
‘O mundo real’ para os modeladores regionais é a ‘Amazônia’, que é o que querem ‘saber’.
Seus resultados são ‘escravos’ de suas assunções, e são ‘dispostos’por eles. A tautologia é
aceita. “Real” é o que é ‘novo’, algo adicionado, ou algo revelado. E se os modelos macro
de David são teoricamente opostos ao ‘real’, como se reconcilia isso com a idéia de que
esses processos que ele modela são tão reais quanto? Isto é, tudo mundo sabe que todas as
tempestades transferem energia e ponto. A tautologia é também algo produtiva. Quanto
mais você aprende sobre algo, mais real esse algo é.
Ao mesmo tempo, lembremos que David havia ressaltado que os bugs são perigosos
em um modelo “porque não é o resultado real. Não são a física do modelo. Você está
olhando para algo que um cara escreveu, caso tenha errado. Você está pensando que os
resultados são reais, mas não são”
140
. Mas em um certo sentido, todos os modelos são “o
que um cara escreveu”; de alguma forma, como as equações que o Professor Parkki me
disse serem “não somente tirado da cabeça de alguém”, elas mudam ao serem algo que
alguém escreveu, de sua mente, para outra posição. Sendo assim, um de seus resultados, a
própria predição, é considerado seu próprio tipo de ‘realidade’.
Eduardo Leonardo em uma outra ocasião me diz que “o mundo real” é baseado na
pequena escala, o micro:
“(...) então, o mundo real, mundo real em termos de…porque tudo que é conhecimento, que é gerado,
a gente tem por base o mundo real, e tudo é base da pequena escala, certo? Os processos de
dinâmicas da água do solo, de processos a nível meteorológico tudo, toda a base cientifica, teórica,
surgiram da pequena escala. Então, os processos que acontecem, eles digamos assim, são
139 “well, these guys are really interested in how the effects are in terms of the real world everyone
knows the function of rain is to heat the atmosphere, that’s all it does, the transfer of energy, but that doesn’t
tell you much, just that energy is being conserved….these guys want to know specifically, given the
conditions of the Amazon, how does our forest affect the large scale climate and how does the large-scale
climate feed back into our forest, you know, stuff like that
.”
140 “because it’s not the real result. It’s not the physics of the model. You’re looking at what some guy
wrote, if he made a mistake. You’re thinking the results are real, and they’re not.”
120
conhecidos, a teoria já é conhecida, a gente vai aplicando esses modelos para as escalas de alguns
desses processos, que são relevantes, mas em geral a teoria já é conhecida, e a gente tem que, a partir
dos nossos conhecimentos, das nossas idéias, do funcionamento básico de mundo real, né?”
O ‘mundo real’, para os modeladores regionais ao menos, é então um lugar micro
particular. É de pequena escala. Mas ao mesmo tempo, o conhecimento a partir do qual você
constrói seu modelo é baseado em teoria que é universalmente aplicável, o funcionamento do
‘mundo real’. E tais funcionamentos são conhecidos e, estranhamente, não conhecidos. Rosa
me explica:
Tem uma coisa: a gente considera que o que é real é o que é vivido. Porque é a única coisa que a
gente pesa, você tem que partir de algum ponto. Então o que é considerado real é o que a gente
vivendo. É um dado observado aqui nesse tempo. Então quanto mais detalhada for essa medição,
essa observação, mais precisa vai ser, ou mais apurada, melhor vai ser a minha forma de
modelagem. Mas aí, vou precisar de muito, vou precisar de um computador muito robusto pra fazer
isso, por causa... quanto maior o nível de detalhamento de qualquer coisa relacionada à modelagem
ou modelação, é... maior a quantidade, maior a... o custo computacional dessa coisa. Então é ciclo
vicioso, não tem jeito.”
duas maneiras pelas quais eu entendo o comentário de Rosa sobre o ‘real’ sendo o
‘vivido’. O primeiro fora indiretamente na forma pela qual quase todos os modeladores que
entrevistei evocarem experiências acerca do clima, não somente em termos abstratos, mas
as sensações e experiências no presente, no momento da conversação:
EL O quê que a nuvem faz? A nuvem faz chover? O que a nuvem faz além de chover? No seu
bate-papo com o pessoal aí, o que é que você aprendeu que a nuvem faz? O que acontece quando o céu
tá nublado sem chover? Fala...sem chuva, olha pra cima o que é que você sente?
A – Mais frio?
EL – Você sente mais frio, tudo bem..mas e de imediato?
A – Uhhh, sem luz ?
EL – E se você não tem luz o que é que a nuvem está fazendo?
121
A - Ahhh, está sombreando?
EL- Tá sombreando, e o que está deixando de chegar até nós? O que está deixando de chegar na sua
cabecinha?
A – Radiação! (orgulhosa)
EL – E radiação vem de onde? Vem de onde? Vem do sol, né?
A – uh uh…
EL Então a nuvem também interfere na quantidade de radiação que chega, porque ela devolve
também parte dessa radiação de volta para o espaço, então, tudo isso a gente vai brincando com
processos físicos extremamente interligados, e complexos.
Por esta via, o ‘mundo real’ se faz presente como um tipo fenomenológico, um conhecimento
muito tangível de que tudo é muito complexo e interligado.
A segunda forma pela qual entendo o comentário de Rosa reitera o sentido de que o
real é o que fora medido e o que ocorre no presente, para os modeladores que lidam com
simulações que podem ‘repetir’ o passado e ir ao futuro; é neste sentido que o que ocorre no
presente é algo com o que não lidam. Observação, como Rosa segue me dizendo, “não é a
verdade absoluta, né?…Mas é o único dado, é a única informação que a gente tem, então a
gente parte do princípio que o que a gente começou certo, que a informação que é a
observação é o que realmente acontecendo. Mas não necessariamente, é bem especulativo”
. Parece ocupar a posição que é ambos, o ‘conhecido’ e o ‘conhecido a ser desconhecido’.
Esta precaução que serve de limite faz eco nas palavras de Tota quando ele está
falando a respeito de seu trabalho com fluxo de carbono. Tota é um dos pesquisadores que
tentam se envolver com o maior número de aspectos de seu trabalho o possível ele mesmo
monta seu equipamento no campo, coleta seus próprios dados e ainda trabalha com
modelagem. Ele me diz: “Eu trabalho em pequena escala e estou tentando simular um
processo realmente pequeno. O que vemos é que o muito, muito pequeno é realmente
importante para tudo”. Então um “novo paper aparece no qual se diz ei, as folhas não são
todas verdes, são meio amarelas e meio verdes. Isso é pequena escala, micro escala de
122
verdade. Mas quando você inclui essa diferença em seu modelo, está fazendo melhor.
Assim, eles têm que seguir de mãos dadas. Modelagem está lado a lado [com a observação]”.
Mas então Tota segue: “agora, eu sei, você vai ficar sentada aqui pensando ‘Pô, Júlio, você
me dizendo que a observação é a alma de tudo’, e eu não quero dizer isso realmente. Por que
não? Ok, se dermos uma olhada aqui, você concordará comigo. Ok, então, eu estou medindo,
faço um instrumento que mede somente um termo de uma equação inteira. E Eduardo
Leonardo, ele está usando um modelo onde estão todos os termos. E o que é uma falha, para
todos serve para comparar o modelo com a observação. Então, você está pra me dizer – “ok, o
modelo está me dando um fluxo de CO2. Pô, o modelo é realmente diferente de minha
observação”, mesmo que minhas medidas sigam incertas. O modelo está me dizendo algo
diferente porque isso inclui todos os termos na equação. Então muitas vezes não é o modelo
que está errado mas a observação que não está completa. Vê? Então um feedback entre
observação e modelagem. Isso significa que é realmente importante que a modelagem esteja
acontecendo tão bem quanto, tem que se desenvolver constantemente; modelagem está em
constante desenvolvimento, nunca pára”. Como resultado, “a ciência deve tomar muito
cuidado com ambos os lados – não crucificar nem a modelagem, nem a observação”.
T: Observação é realidade, mas nem sempre.
A: Nem sempre...
T: Nem sempre.
Isso por sua vez o leva a fazer as mesmas questões acerca da ‘realidade observada’ que os
modeladores reclamam para seus ‘modelos construídos’ “o que você está representando
com seus dados, é realmente realidade?”. A dialética é repetida em cada lado o modelo tem
seu próprio’real’ e o real tem seu próprio ‘modelo’. Modelos poderiam ser vistos, ‘realmente’,
sempre como modelos modelando. ‘Realidade’, como observação, é especulativa.
Outras entidades entram em jogo para ‘limitar’ a extensão do que pode incluir nos
‘pequenos processos’, ou mundo ‘vivido’, como Rosa apontou. Quantos detalhes, quanto de
‘real’ você pode conseguir para o seu modelo tem limites tecnológicos também. Enquanto os
limites de um modelo macro parecem ser ‘o globo’, como Rosa apontara, quais os limites de
quão micro você pode conseguir é também (cujo entorno deve ser limitado matematicamente)
uma questão do processamento de tempo e habilidade tecnológica do computador. Quanto
mais processos são simulados, mais termos na equação, mais vezes você roda o modelo.
123
Como diz Eduardo Leonardo, “você precisa ter repetições, a gente chama de experimentos ou
repetições, você precisa repetir, repetir, repetir, é... nesse tipo de caso, estudo de nuvens, não
só para aquele caso, mas para vários casos, por exemplo, um evento de chuva”. Para o período
em estudo você tem que rodar o modelo para cada ‘evento’ quanto mais repetições, mais
consistência estatística seus resultados terão, e mais confiança você tem em seu modelo
mais ‘real’ ele é.
Num modelo de clima global, você pode fazer simulações para o globo-inteiro para os
próximos 200 ou 300 anos facilmente, no máximo em um mês de processamento. Três
anos levarão 5 horas de tempo de processamento do computador, de ‘maceração-
numérica’. Eduardo Leonardo explica que se ele começasse agora, estaria pronto no fim da
tarde. Mas esse não é o caso para modelos regionais. Para modelar uma semana dois dias
são necessários. Para me explicar Eduardo Leonardo usa da metáfora de uma imagem mais
uma vez: “Você tentou abrir uma imagem no seu computador, uma imagem enorme, e
uma imagem pequena? Então isso tem a ver com a quantidade de números que você tem e
com a velocidade do seu processamento, com a capacidade do seu computador, certo?”.
Mas nessa formulação, o ‘modelo micro’ te daria uma imagem enorme; quanto menor,
mais há o que se ver.
também o problema de espaço de estocagem (memória); a quantidade
relativamente pequena dos números atuais nos modelos globais significa que não é
necessário que o computador tenha muito espaço de estocagem (memória). A vasta
quantidade de números produzidos ao rodar um modelo regional significa que será preciso
estocá-los em outro lugar que não o computador no qual os modelos estão sendo
produzidos. Mais uma vez, isso implica que, neste sentido, “os modelos regionais são
maiores porque você tem que ter uma matriz de dados muito maior”. O pequeno poder se
grande. Ver ‘mais’ é ver ‘menor’.
É então que ‘sumarizar é similar a ‘escalonar’, isto é, nos termos de seu aspecto
numérico de modelagem é uma premissa básica pela qual a ‘caixinha’ é representada por
um ponto, uma média de todo o processo ocorrendo ‘dentro’ dela. As mensurações feitas
por algum outro pesquisador na área de fato subindo em um avião e pondo um sensor em
uma nuvem requere um ‘modelo’ de formação de nuvem. Mas essas “centenas de
processos, centenas de pequenas nuvenzinhas dessas lá, funcionando” tiveram que ser
124
reduzidas e transformadas em uma média que ‘encaixe’ dentro da ‘caixinha’, e então os
modeladores estão “empiricamente representando o efeito da nuvem em um grupo de
nuvens, mas não a nuvem individual”. Mas como Paulo aponta:
“A média é uma maneira generalizada de você escrever alguma coisa; você tem lá, alterações,
flutuações, nessas medidas… No espaço, tem flutuações disso, se a gente a média vira uma reta, a
gente não representa a realidade, mas tá próxima da realidade.”
Então, o que está sendo representado não é a ‘realidade’, mas algo que lhe é ‘próxima’.
Enquanto se sumariza você perde alguma informação. Mas também ganha, pois o que
perde em detalhe, ganha em área. De qualquer maneira, ‘realidade’ está sempre um tanto
fora de alcance.
Quando você estabelece uma escala, você estabelece para o quê o seu modelo está
olhando. Assim, “os fenômenos que pensávamos não ter importância se tornam mais
importantes”. Essa mudança está tanto no modelo, quanto no mundo. Eduardo Leonardo pede
que eu me imagine andando ao longo da floresta em ZF2 e pense em como o terreno é
variável. Dependendo do tamanho das suas ‘caixinhas’, se uma área é inclinada ou não vai
emergir como o fator governante na dinâmica. Em um modelo global, a drenagem horizontal
da água causada por um terreno elevado não será um ‘problema’, na medida em que “os
fluxos horizontais acabam não aparecendo no meu sistema que a escala é muito grande”.
Mas, conforme você reduz a escala, a ‘posição’ inclinada diferenciada das caixinhas, ou seja,
a posição na qual elas estão no mundo, faz com que, para uma caixinha inclinada, a drenagem
horizontal se torne mais importante do que a vertical. É nesses termos que "essas
considerações, no seu modelo, e como você vai capturar o seu ambiente, significam que você
tem que aumentar o número de termos nas equações - não vou mais trabalhar com um modelo
unidimensional, vou ter que considerar um modelo que leve em conta processos verticais e
horizontais, portanto é nesse contexto que aparecem os limites do modelo e novas
considerações teóricas e físicas”. Na medida em que você reduz a escala, você muda a forma
do mundo que está observando. Aspectos que não eram importantes se tornam importantes.
Novas entidades entram em jogo, tanto na teoria como em termos de ‘considerações físicas’.
Os limites do seu modelo são revelados.
Para modelar a formação de uma única nuvem, por exemplo, “Eu vou precisar
125
conhecer a concentração de gotas, o núcleo de concentrações na atmosfera, eu vou precisar de
padrões típicos de velocidade do vento para aquela área, portanto você precisa de informações
locais diversas para descrever esse processo”. Mas, “em uma escala mais ampla não, em uma
escala mais ampla você elimina ou reduz a importância desses termos menores e considera,
pelo menos em modelagem, os fatores principais que determinam esses processos, por
exemplo, no caso de modelagem em uma escala mais ampla, global, como você representa
essa nuvem? Nós não representamos a nuvem, não incluímos o detalhe da nuvem, não
afirmamos seu tamanho, mas o que o meu modelo precisa ver nesse caso? Ele precisa ver o
que é o grupo que é a presença de todas essas nuvens”.
Essa ação de escalonamento ascendente e descendente, no entanto, mais uma vez não
é uma característica do modelo por si só; quer dizer, não é um artifício imposto sobre o
mundo pelo modelo. Se você quiser simular o processo de precipitação pluvial durante um
ano, aumentando sua escala em termos de tempo, não precisa levar em conta os eventos
pluviais a cada hora, que é como acontece a maioria das precipitações pluviais na Amazônia.
Em vez disso, “você tem que se preocupar em medir apenas os pontos onde eles se
aglomeram, que unem, agregam as informações em todas as escalas”. “E quais são esses
pontos?”, pergunto eu. Eduardo Leonardo responde “bem, em termos de hidrologia, é fácil, é
onde os grandes rios, os locais físicos onde os grandes rios se juntam, ok? Então, é aquela
coisa de ordem de igarapé, primeira, segunda, até a sexta ordem, portanto é onde as coisas se
juntam, quanto maior o número de rios que você vê se juntando, maior a sua escala em termos
de tempo e espaço”.
Assim, essa ‘aproximação’ por definição não “representar a realidade” parece
estranho, pois tal concentração e expansão de informações também é aparente na maneira pela
qual o mundo funciona. Nuvens isoladas se juntam para formar ‘conjuntos’, rios se juntam
para formar aglomerados. O estudo dos processos de formação de nuvens em escala menor,
por aqueles que sobem em aviões, por exemplo, é chamado ‘micro-física’ registrar e medir
“o tipo de nuvem, o tempo de início e de fim [da formação], a concentração de gotas de gelo,
a velocidade do ar dentro e fora da nuvem, muito mais detalhes”. Mas a física que governa
os sistemas maiores é conhecida como “convecção”. Eu pergunto como as duas estão
relacionadas e, então seria necessária uma média de todos esses processos “micro-físicos”?
Eduardo Leonardo responde “Isso. Exatamente. A convecção, na verdade, seria isso”. Como
126
um rio, é tanto um sistema em si mesmo, como o ‘produto’ de muitos sistemas menores. Essa
descrição também pode se aplicar a um modelo. Para estudar um ‘conjunto' de nuvens, você
precisaria de um modelo diferente do usado para estudar a formação de uma única nuvem.
Mas ao mesmo tempo, como Eduardo Leonardo me indica, o que ele está falando são apenas
“modelos dentro de outros modelos”.
Portanto, dependendo da escala, ‘liga-se’ ou ‘desliga-se’ certos tipos de
parametrização, que, como vimos, é uma forma de 'fechar' o modelo. A modelagem
contemporânea a você a opção de trabalhar ou com esses processos integrados de escala
mais ampla, chamados por Eduardo Leonardo de ‘modelos de convecção’, ou de refinar a
‘convecção’ com a ‘microfísica’. “Parametrização da convecção” e “parametrização da
microfísica” são operações matemáticas diferentes em escala ampla voliga isso e desliga
aquilo, em uma escala intermediária você deixa isso ligado e desliga aquilo, em escalas
pequenas você desliga isso e deixa aquilo ligado... Por exemplo, abaixo de 5km, só
‘microfísica’. Mais uma vez, a ‘microfísica’, nesse sentido, ao mesmo tempo em que está
‘contida dentro’ do processo integrado de ‘convecção’, tem uma existência em separado.
Eduardo Leonardo traça para mim um diagrama de como a mudança de escala é
efetuada em termos visuais, através da contração ou expansão do tamanho da ‘caixinha’
usada. Dentro de qualquer ‘caixinha’, sempre pode haver outras; e, dentro de qualquer sistema
climático, sistemas menores estão sempre em funcionamento. Em qualquer banco de nuvens,
há nuvens isoladas sendo formadas e dissipadas. E tudo isso precisa de modelos diferentes. Se
escala é o que determina o quanto algo é ‘real’, então diferentes escalas parecem subentender,
senão ‘mundos’ diferentes, ao menos ‘realidades’ diferentes dentro de ‘realidades’ diferentes;
o ‘mundo’, como tal, de certa forma parece estar espalhado sobre tudo isso. À medida que
você ‘sobe na escala’ ou ‘desce na escala’, perde algumas coisas e ganha outras, desde tempo
de processamento de computador até gotas de gelo. Não apenas ‘pedacinhos do globo’,
‘caixinhas’ dentro de modelos, equações dentro de ‘caixinhas’ e o ‘mundo real’ dentro de
equações, mas há ‘caixinhas’ dentro de ‘caixinhas’ e modelos dentro de modelos: “na verdade,
tudo que estou dizendo a você é só sobre modelos dentro de modelos, certo?”.
Essas ‘diferentes realidades’, no entanto, não têm uma relação simples com o
127
‘mundo’, porque o ‘mundo’ não é um lugar simples ou estático. O que quero dizer é que
simplesmente afirmar que essas realidades são meros pontos de vista relativos do mesmo
mundo imutável é inadeqüado para dar conta de como os modeladores fazem o que fazem.
Escala quer dizer que você sempre tem que deixar algo do lado de fora sua visão é
parte de algo maior ou mais complexo. Ela é sempre parcial. Mesmo que alguém possa checar
se a ‘realidade’ produzida pelo modelo é ‘realmente real’, o objeto da ‘checagem’ é, em si
mesmo, um modelo; é a realidade que você quer ‘conhecer’, a realidade que você está
especificando. O ‘mundo’ escapa constantemente como diz Tota, “observação é realidade.
Mas nem sempre”. Isso requer um tipo de visão fluida. Pois não só a observação não é sempre
real, mas o que é real é potencialmente mutável. Quando Paulo fala sobre parametrização, ele
me diz que:
“É por isso que, quando trabalhamos com modelos, seja um modelo grande como os que
temos aqui, ou um modelo que explica a relação entre temperatura e umidade, por exemplo,
nós precisamos parametrizar o modelo, que significa ajustar esse modelo. Essa equação tem
coeficientes e você tem que ajustá-los para se encaixarem na sua realidade. Assim, é possível
tomar uma pesquisa que foi feita no Japão, pegar a mesma equação e tentar aplicar aqui,
apenas alterando os coeficientes de acordo com a sua realidade”.
Os parâmetros são o que permite a você encaixar o seu modelo na ‘sua realidade’, refinar o
seu modelo. E esse é o melhor resultado para um modelo – se encaixar na sua realidade.
Como Marta me fala, potencialmente você tem uma “equação gigante, quase infinita”, que
“nem você conhece, nem ninguém, nem mesmo o computador”. Isso é também a ‘realidade’
da situação. Mas o mundo que o modelador modela é um mundo no qual o modelador
selecionou cuidadosamente termos e processos físicos, aqueles que são “importantes”.
Conforme você muda a escala do modelo, a imagem do seu mundo se transforma, uma nuvem
se torna parte de um grupo de nuvens, governadas por leis separadas; ou uma nuvem
pequenininha em um banco de nuvens cresce até preencher toda a imagem. Ao mesmo tempo
em que são capazes de desmontar e reunir o mundo de várias formas, eles sabem que “em
tudo isso nós estamos jogando com processos físicos extremamente interligados e
128
complexos”. A escala surge então como uma perspectiva móvel sobre o mundo e uma
perspectiva sobre um mundo móvel e complexo: “Eu estou tentando explicar a você como
uma escala, como a hipótese de uma escala migra, uma escala de tempo e uma escala espacial
migram de uma situação para outra”.
Como insinuei, os modelos são vistos como uma “ferramenta” não para predizer
o clima futuro, mas também para “voltar no tempo”, de modo que os modeladores possam
“avaliar o impacto e as alterações de algumas propriedades da superfície terrestre”, por
exemplo. Se alguém deseja estudar o impacto do desflorestamento, isso não vai envolver
“fazer um clima no sentido de um clima futuro”, mas combinar imagens de satélite com um
clima que “já aconteceu”. As imagens de satélite de áreas altamente desflorestadas, como
Rondônia, mostram uma progressão, uma “evolução” do desflorestamento através do tempo.
Os modeladores podem pegar essas imagens e “traduzi-las em uma imagem que possa ser lida
pelo modelo”, através da quantificação da intensidade de pixel de acordo com a classificação
da vegetação - ‘1’ vai significar ‘floresta’, ‘2’ vai significar ‘ausência de floresta’, para dar um
exemplo básico. Então, é uma questão de “fazer o modelo para representar o clima,
acompanhando essas mudanças na vegetação, esses aspectos do desflorestamento”, de forma
que você estará usando “um clima, a partir de hoje, que aconteceu, será algo que se
passou, mas o modelo nos permite voltar no tempo, repetir o clima, que, agora,
considerando a evolução lenta do desflorestamento”. Dessa forma, a relação entre mudança
climática e desflorestamento no mundo real pode ser ‘acompanhada’ no modelo. O que isso
significa para os modeladores é que:
“Então é assim que nós podemos... digamos, podemos brincar de ser deus a respeito do
clima”.
Não creio que Eduardo Leonardo esteja invocando aqui algum tipo de privilégio onipotente
alcançado pelo “olhar científico”, ou uma perspectiva totalizante. Sua perspectiva é
fragmentada. A palavra operativa que sugiro aqui não é ‘Deus’, mas ‘brincar ‘brincar de
ser deus se refere aqui mais à “brincadeira” envolvida em fazer o que eles fazem, a habilidade
de quebrar certas dimensões tradicionalmente consideradas imutáveis, nesse caso a dimensão
temporal, para revelar relações que antes eram obscuras. A forma em que o mundo funciona é
o que se revela através do modelo. Mas como ilustra a minha discussão subseqüente com
129
Paulo e Rosa, essa forma de se “brincar” é permitida e limitada por uma realização
marcadamente mortal -
Paulo: Na ciência, para formular certas coisas, você precisa de um experimento, e um
experimento é uma brincadeira do tipo que o Eduardo Leonardo estava dizendo. Você monta
um experimento e o que acontece. Você tenta descrever aquilo, ver que aquilo é real e de
que forma acontece. Você está brincando, mas…
Rosa: E dizer o que aconteceu de dentro do que você conhece, porque... é sempre dentro do
conhecimento que temos hoje. Pois no futuro talvez esse conhecimento mudar. Mas (...)
nós fazemos isso tão automaticamente que nem nos damos conta do que estamos realmente
fazendo...”
O modelo pode revelar coisas sobre “o mundo” e ao fazer isso dar a ele uma forma que não
tinha antes. Mas o conhecimento de que sempre algo mais a se conhecer é o que de fato
limita e estende o escopo desse ‘brincar’. O quadro de referência fornecido por esse
conhecimento sobre o seu conhecimento é aparente - você diz o que faz ‘dentro’ do que
você sabe.
Como Eduardo Leonardo me diz, “cada vez em que enxergamos melhor, tirando a
miopia dos modelos, precisamos de mais informações sobre o espaço, estamos detalhando
também o espaço... vamos então editar uma matriz saindo de 5 x 5, por 20, que é o número de
níveis na vertical da camada da atmosfera, 20, para uma matriz que vai, por exemplo, de 15 x
15, ou seja, tripliquei isso - o número de pontos mais meu número de camadas também foi
multiplicado por 60, imagina o número de informações que preciso simular agora... e esse é o
número de informações para um único tempo, esse é o número de informações por
segundo...”. O mundo é feito de um número de informações que cresce constantemente; é
infinitamente complexificável. Isso é um efeito de escala, mas significa que, ao mesmo
tempo, ele tem uma qualidade amorfa, pois até mesmo os modos que temos para acessá-lo,
temos que reconhecer, são, em si mesmos, apenas ‘próximos’ a ele. Ao mesmo tempo, um
‘bom’ modelo é aquele que enxerga sua realidade bem ou com clareza. Ele tem um trabalho a
fazer, uma imagem a produzir, uma previsão a fazer, e a maneira de se verificar se esse
trabalho está sendo bem feito é com ‘dados observacionais’. Quando essa ‘realidade
130
observada’ e a ‘realidade modelada’ se encontram estamos um passo mais próximos de um
horizonte.
De fato, combinação (conflation) é um dos principais alvos da equipe de modelagem
da LBA. Um dos projetos nos em que Eduardo Leonardo e sua equipe estão se concentrando
mais é o Projeto de Modelo Intercomparativo, que tem como objetivo a ‘junção’ de modelos.
O Painel Intergovernamental para Mudança Climática (IPCC, Intergovernmental Panel for
Climate Change)141 fornece uma coleção de modelos de simulação de clima disponíveis na
Internet. A equipe de Eduardo Leonardo está usando uma “série desses modelos, que
representam a biosfera, a floresta, os vários prédios do LBA” e estão “configurando” cada um
desses estudos para os vários modelos, para ver o quanto são ‘úteis’: "a idéia é justamente
comparar com os dados do LBA que nos dão essa visão dos processos da bioesfera, aplicar os
modelos e verificar o que cada um deles está fazendo e representando... fluxo de carbono,
fluxo de calor específico, calor latente, temperatura, umidade, umidade do solo, temperatura
do solo, tudo isso, a gente está chegando num ponto interessante, em que teremos uma base
das ciências e modelos que estão sendo usados nesse tipo de experimentos... e começa uma
abordagem para a Amazônia especificamente”. A idéia é ‘mesclar’ o conhecimento nos
modelos com o conhecimento fornecido pelos dados, para trabalhar na direção de um corpo
de conhecimentos especificamente Amazoniano; uma ‘realidade’ especificamente
Amazoniana.
Um projeto relacionado a esse é o de “escalas telescópicas”: “a gente está usando as
medidas do LBA, das torres, e usando modelos que nos permitem sair de uma escala ampla
para uma escala pequena numa mesma simulação, então a gente está brincando com escalas
telescópicas”. Isso significa que “em uma única estrutura numérica, em uma única
representação física, agora eu posso brincar, estudar mais as conexões entre escalas”. Mas o
que permite a eles fazer isso é o fato de estarem usando dados e modelos que se “combinam”
com exatidão - o trabalho que normalmente se leva para fazer isso, o ‘somatório’ foi
contornado; eles inicialmente estavam “verdadeiramente comparando a mesma escala das
141
“O IPCC é um corpo científico intergovernamental estabelecido pela Organização Metereológica
Mundial (WMO) e pelo Programa de Meio-Ambiente dos Estados Unidos (UNEP), com o objetivo de fornecer
aos “tomadores de decisões e outros interessados na mudança climática uma fonte objetiva de informações sobre
a mudança climática. O IPCC não conduz nenhuma pesquisa, nem monitora dados ou parâmetros relacionados
ao clima”. Ele recebeu recentemente o Prêmio Nobel da Paz pelos “seus esforços para construir e disseminar
maior conhecimento sobre a mudança climática e por lançar as fundações para as medidas necessárias para
reagir a essa transformação”
http://www.ipcc.ch/about/index.htm
29/04/08
131
medidas com a escala simulada pelo modelo. O que estou medindo que é uma representação
da ordem de 5km das torres, vai ser exatamente a mesma escala que o modelo vai estar
simulando, aí, com isso, eu vou sair daquela coisa de comparar a medida de uma grande
escala com um valor pontual, tá certo? Então, é isso..e também vai me ajudar a entender como
é a passagem dessas informações entre as escalas”. Ao passo que, antes, um modelo
enxergaria duas escalas como duas realidades diferentes - em uma escala ampla, um sistema
pluvial surge como “dois núcleos”; em uma escala menor, “ele me diz que é um sistema
contínuo e até maior”. Mas espera-se que as ‘escalas telescópicas’ vão permitir o encontro
dessas duas realidades. Ambas precisam ser incluídas para tentar dar conta da natureza de
mundo que está acontecendo na Amazônia.
Mas esse mundo está em contínua expansão. O potencial para sempre mais
informações tanto cria as condições para o conhecimento, como nega aos modeladores a
complacência de imaginarem que têm uma realidade única que corresponde a um mundo
único. O que eles têm é mais confiança nas realidades que estão elicitando. Eduardo Leonardo
me diz que “certeza a gente nunca vai ter, a gente não vai ter certeza, a gente nos próximos
anos vai ter maior confiança, mas não certeza, por exemplo, a confiança grande de que a
Amazônia vai sofrer com certeza um aquecimento de 3 graus nas próximas 3 décadas. Isso é
um resultado em que temos grande confiança nos resultados dos modelos… e porque essa
confiança é grande? Porque mesmos os modelos que mostram caminhos diferentes de
mudança… é um cenário que todos os modelos tendem, mostram na mesma tendência, então
essa seria uma forma de a gente indicar confiança num produto de modelos... mais confiança,
sim, mas certeza nunca teremos, pelo contrário, temos que investir mesmo é em reduzir as
incertezas”.
O que as predições permitem não é certeza, mas uma redução da incerteza. Isso é
reiterado por Tota quando pergunto sobre o problema da instrumentação, da ‘natureza
especulativa’ de dados observados. Ele me diz que “o nível de incerteza das medições está
diminuindo muito”. Mas não um medo de que “esse seja um processo infinito, de modo
que nunca se atinge um ponto de certeza?”, eu pergunto. Ele responde, “nunca será perfeito,
não. Mas abaixou muito, muito. Nós sabemos muito, nós estamos estudando meteorologia,
nós estamos estudando a história da instrumentação meteorológica. Hoje o vel de
calibragem, dos testes de laboratório, o túnel de vento, tudo é muito preciso. Nós temos
instrumentos altamente sensíveis que não tínhamos antes então nós damos muita
132
importância aos dados sendo medidos hoje, pois o nível de incerteza diminuiu. Mas a
espacialização ainda é, bem, ainda é uma falha”.
***
Here Be Dragons”
Eu selecionei as partes acima de minhas conversas com os modeladores com um
consciente desejo particular em mente, que é tentar aprender o que eles têm como pressuposto
quando produzem simulações climáticas. Como isso é exatamente o que eles tomam como
pressuposto, o interesse para eles seria mínimo como modeladores, e não pelas mesmas
razões; isto é, o interesse que um antropólogo encontra no que eles fazem não é o mesmo
interesse que eles encontram. Essa é uma das maneiras pelas quais nós participamos de
‘esferas’ diferentes de conhecimento e o que me permite estudá-los antropologicamente.
Entretanto, é inevitável que, ao estudá-los, haja aproximações entre nossas práticas-de-
conhecimento, pelo simples ato da interpretação. Como vimos, “conceitualização é,
inevitavelmente, reconceitualização” (Strathern 1992b: 75)
142
; e as “metáforas participam
umas das outras” (1988a: 188)
143
. Essas aproximações tomam uma forma mais específica
ainda por eu pertencer ostensivamente à mesma ‘cultura’ daqueles que estou estudando e, não
isso, mas por aquilo que eles estudam ter o objetivo de ter um impacto em mim e no
mundo todo. A maneira pela qual um autor conscientemente lida com essas distâncias e
aproximações é o que vai dar forma ao texto que ele/ela produzem “é preciso ser tão
cuidadoso quanto criativo com as ressonâncias” (Strathern 1992b: 76)
144
entre táticas
analíticas específicas e o que a análise descobriu sobre aqueles que se está estudando. O modo
pelo qual alguém move sua própria descrição é vital.
Para continuar pensando sobre o que os modeladores me disseram, será necessário
elaborar um pouco mais sobre a posição que estou assumindo nessa análise. É um artefato do
empenho antropológico talvez inevitavelmente revelar algo sobre aqueles que estão fazendo o
142 “conceptualization is inevitably reconceptualization”
143 “metaphors participate in one another”
144 “one should be as careful as one is creative with the resonances”
133
estudo; mas, como Strathern indica, isso deve ser “fabricado” (contrived). Estou consciente de
que a discussão etnográfica acima pode parecer manifestar uma das suposições de que fala
Strathern em relação a fazer “auto-antropologia”, de que “[isso] torna complexo o lugar
comum, suas sistematizações não revelando nada além do que o que todos sabem e
somando um conjunto de mistificações desnecessárias” (1987: 17)
145
.
Eu certamente trabalhei para mudar a mistificação que encontrei em não ser capaz de
recorrer à minha própria linguagem (e não me refiro ao fato de ser britânica e eles serem
brasileiros) quando, aparentemente, os modeladores e eu usamos as mesmas palavras; e é uma
mistificação que os modeladores provavelmente não compartilhariam, pois seus problemas
não são os meus. Mas “quando o antropólogo volta para casa, a fabricação… deve tomar um
lugar diferente... o que vem à tona é um relato de fabricação” (Strathern 1987: 28)
146
. O que
parece ter acontecido por eu ter enfocado o que eles diziam foi uma mudança na relação entre
as minhas técnicas de organizar o conhecimento e como os modeladores organizam o
conhecimento sobre si mesmos. Aquilo de que talvez os modeladores e eu participemos é a
idéia de que conhecimento é organização. Mas se o que é um mistério para mim é um
pressuposto para eles, então uma oportunidade para se aprender algo novo sobre ambos -
para sermos movidos por essa relação.
Tentarei montar a cena um pouco melhor. Latour foi acusado de se concentrar
exclusivamente no que os cientistas ‘fazem’, sua prática, mais do que no que eles ‘dizem’.
Seus acusadores dizem que isso lhe deu rédeas livres para ‘interpretar’ a ciência como bem
entender. O ponto feito por Latour ao fazer essa escolha específica é que os cientistas
raramente nos dizem o que estão fazendo; “os cientistas passam apenas uma fração do seu
tempo purificando suas ciências” (1999a: 19)
147
, deixando isso para os filósofos da ciência,
que são de fato o alvo das críticas de Latour. O fato de que esse é o caso se tornou
emaranhado e obscurecido pelas Guerras da Ciência (Science Wars), pois Latour com certeza
parecia estar brigando com cientistas (embora eu pense que Latour, ele mesmo, fez sua parte
nessa divergência). No entanto, pode-se argumentar que esses cientistas, pelo ato mesmo de
se enredarem nessa disputa, trocaram de posições e se tornaram ‘filósofos da ciência’. Quer
145 ““[I]t makes the commonplace complex, its systematizations not revealing anything more than everyone
knew anyway and amounting to a set of unnecessary mystifications.”
146 “when the anthropologist turns to home, contrivance...must take a different place...what comes over is
an account of contrivance.”
147 “scientists spend only a fraction of their time purifying their sciences”
134
dizer, eles não estavam mais fazendo ciência, eles estavam fazendo ciência social. As formas
pelas quais Latour negocia as relações entre esses dois pólos em toda a sua prolífica escrita
são, no entanto, flagrantemente fluidas e retornarei a elas mais tarde; é suficiente, por hora,
dizer que um de seus princípios fundamentais é sempre entendido como a compreensão de
que a ‘ciência’ não é diferente de nenhuma outra prática social, incluindo a dos cientistas
sociais. É àqueles que a vêem como diferente que se deve provar o contrário (os ‘guerreiros
da ciência’ - science warriors).
É relevante aqui o fato de que não apenas não encontrei absolutamente nenhuma
suspeita sobre a natureza de meu trabalho ou de minhas intenções ao conduzir minhas
entrevistas (“de derrubar o reino”!), mas também e ainda mais importante, fui tratada
freqüentemente com benevolência, como ignorante tal como sou. Quer dizer, os
modeladores e a maioria dos cientistas do LBA não se importavam com o que eu estava
fazendo, presumivelmente porque não teria nenhum impacto direto sobre o que eles estavam
fazendo. Eles me ajudariam de todas as formas que pudessem, mas realmente o que eu tinha a
dizer era de pouco interesse, embora minhas questões às vezes fizessem com que eles
parassem para pensar. Aceito que talvez esse não tivesse sido o caso se eu fosse alguém de
maior estatura na comunidade antropológica ou acadêmica. Mas suspeito que, em geral, não
teria feito diferença. As Guerras da Ciência não estão sendo travadas, se é que estão sendo
travadas, nos laboratórios ou nos locais de pesquisa de campo. Deve-se levar em conta
também que estou estudando em uma época diferente; cerca de 30 anos de inúmeros debates e
discursos se passaram desde que Latour se aventurou pela primeira vez em um laboratório. As
mudanças que se supõem terem acontecido durante esse período não devem ser atribuídas
exclusivamente a um lado ou ao outro. O fato de os cientistas com quem lidei serem mais
amenos às minhas idéias como antropóloga tem que estar relacionado ao fato de minhas idéias
antropológicas serem mais amenas à sua ciência. A idéia de que essa é uma mudança comum
está baseada na idéia de que estamos participando de uma cultura comum, que em si mesma é,
como já sugeri, algo a ser investigado. Mas não algo a ser explorado (exploited).
***
É necessário aqui delimitar parcialmente meu próprio ponto de partida para discutir os
tipos de movimentos provocados pelos modeladores. Strathern (1988a: 10) cita Runciman:
“os conceitos nos quais se baseiam as descrições provavelmente não são os mesmos usados
135
pelos agentes cujo comportamento está sendo descrito” (Runciman 1983:228)
148
. Mas ela vai
além para acrescentar que “esse conhecimento da dessemelhança deve ser ele mesmo
fabricado para poder ser transmitido. A compreensão terciária inclui seu próprio senso de
diferença de seus objetos. Se meus objetivos são os objetivos sintéticos de uma descrição
adequada, a minha análise deve dispor de ficções deliberadas para esse fim(1988a: 10)
149
.
Como Strathern, eu espero trabalhar para mostrar como os modeladores podem negociar os
significados das palavras que temos em comum de maneiras que não nos são comuns. E eu
argumentaria que não é apenas possível, mas talvez até mesmo necessário usar estratégias
analíticas diferentes para fazer isso, pois, como Strathern, “Eu estou interessada… não em
elucidar contextos locais específicos para eventos e comportamentos, mas em elucidar um
contexto geral para esses próprios contextos” (ibid: 10)
150
. Esse contexto geral é a “natureza
distintiva” (distinctive nature) da modelagem climática, o pressuposto deles e que, portanto,
apenas interessa a “nós”; mas isso emerge apenas na comparação, ou seja, no contraste entre
uma prática de conhecimento e outra (a forma que ela tomaria, quer dizer, se fosse
comparável). Desse modo, minha própria confusão “mistificação” desempenhou e
desempenha um papel central nessa descrição. Ir ‘além disso’, como indica Strathern, seria
revelar nossas próprias formas de nos organizarmos, precipitar um movimento incerto e
desestabilizador.
***
A primeira idéia a emergir das minhas conversações com os modeladores é que os
modelos globais em certo sentido são o ‘original’, o mais básico cerne teórico do qual os
modelos regionais, mais complexos, ‘de mundo real’ tomarão forma, implicando em uma
concepção de um mundo singular, ainda que em camadas e passível de divisão. Mas Marta,
quando falei com ela e Paulo sobre os modelos de David, observou que “ele começa com
outra realidade, né?”. Embora Marta oficialmente seja uma meteorologista e não uma
modeladora, o seu trabalho pede que ela seja bem-versada em técnicas de modelagem. O
comentário de Marta permite uma abertura para a principal, ainda que fragmentada, tensão
que apareceu como um filão (seam) correndo ao longo de todas as minhas discussões com os
148 “the concepts in which desciptions are grounded are unlikely to be those used by the agents whose
behaviour is being described
149 “that knowledge of unlikeliness has itself to be contrived in order to be conveyed. Tertiary
understanding includes its own sense of difference from its objects. If my aims are the synthetic aims of an
adequate description, my analysis must deploy deliberate descriptions to that end”
150 “I am concerned...not to elucidate specific local contexts for events and behaviour, but to elucidate a
general context for those contexts themselves”
136
modeladores, algo que tentarei escavar aqui. Convencionalmente, qualquer ‘modelo’ é visto
como um tipo de metáfora do mundo – é uma representação ‘construída’ de algo que é
literalmente ‘real’ e, como tal, não é em si mesma ‘real’ da mesma forma que aquilo que
significa. Nessa formulação, como assinala Latour (1999a), a divisão entre “palavra”
(modelo) e “mundo” é um abismo vertical e insuperável. Ao mesmo tempo, é banal observar
que um modelo é tanto “construído” como “real”, da mesma forma que uma xícara ou um
carro o são 'manufaturados', mas ‘literalmente’ existentes. Mas em todas as minhas
discussões, como assinalei, havia um senso de acumulação de ‘realidade’ (ou ‘como as coisas
realmente são’) à medida que o modelo se tornava mais complexo, era feito em uma escala
menor e tinha maior resolução (que são às vezes descrições-sinônimos para os modeladores
com quem falei). Isso implica um continuum entre modelos de micro-escala (complexos) e o
‘modelo ideal’ (simples), em relação a um mundo concebido singularmente. Quanto mais
você do mundo real você ‘carrega’ em seu modelo inicialmente, na forma de dados coletados
em campo, mais ele se torna ‘real’, isto é, mais a imagem que ele produz do mundo se
aproxima do mundo ‘como ele realmente é’. Isso, no entanto, deixa em suspenso a questão
sobre o que um modelo ‘ideal’, como o de David, está modelando, se não for ‘o mundo real’.
À medida que você ‘acrescenta’ processos, você se distancia do “teórico” e se
aproxima da forma como o mundo ‘realmente’ é. É uma questão de escala. Em uma escala
mais ampla, você está mais distante do mundo. Em uma escala menor, você está mais
próximo. Isso é análogo ao ato de “totalizar” e tirar a média. Você representa uma ‘caixinha’
com a média de todos os processos que aconteceram naquele “pedacinho do globo”, mas uma
‘média’ é menos real do que os micro dados dos quais ela foi obtida. Essa totalização
(summing up) não é algo que os modelos fazem, mas algo que é visto no mundo, no modo
como rios ou bancos de nuvens são formados por igarapés e nuvens individuais. Embora com
certeza, ao mesmo tempo, um banco de nuvens não seja menos real do que uma nuvem
individual, da mesma forma que o funcionamento básico das tempestades não é menos real do
que uma tempestade de verdade na Amazônia. Mas, quando você toma um banco de nuvens
como seu ponto de referência, a nuvem individual se perde. Revelando o banco de nuvens,
você perde a nuvem individual. Modelar um processo macro sempre dará a você a sensação
multiplicada ao infinito de que você está deixando de fora o micro. “Você tem que”, como diz
David. As escalas mudam, mas o fazem duplamente. A relação entre macro e micro é
constante, mas o que ‘realmente’ é macro e micro não é constante. É um quadro de referência,
137
de forma que o seu ponto de referência muda com ele; mas ele pode ser colocado em
funcionamento em diferentes processos. Isso é ‘escolher a sua escala’. É escolher onde focar
essa relação macro-micro no continuum que vai do modelo macro ideal ao processo físico
micro real, e parece que os extremos desse continuum estão constantemente mudando. A
‘realidade’, como aquilo que reside na escala micro, que por sua vez aparece em relação ao
seu macro, está, assim, sempre além do seu alcance. Essa sensação é intensificada pelo fato de
que a ‘totalidade’ da qual você tenta dar conta é ‘inconhecível’, pois a equação é “quase
infinita” e não existe um computador suficientemente poderoso para ‘fechá-la’. Da mesma
forma, quando você imagina a sua nuvem individual em contraste com um banco de nuvens
do qual você sabe que ela faz parte, você perde a visão do ‘todo interconectado’ que é o
mundo. O ponto na direção do qual todo mundo está trabalhando, Tota me diz, é ter modelos
macro feitos com uma resolução micro. É provocar o colapso de toda essa relação macro-
micro, ter o todo macro como um micro, de forma que "as informações passem livremente
entre eles".
O ato de escolher uma escala pode também ser visto como uma construção ativa. Para
estudar uma frente climática, você escolhe que termos e que processos são importantes. Você
faz isso estendendo seu conhecimento você tem que procurar jornais científicos, falar com
especialistas em ‘microfísica’, tem que engajá-los na sua escolha. E mudar essa escala
significa que essa importância muda. Isso está claro no imaginário visual empregado por
Eduardo Leonardo. O modelo é um tipo de lente através da qual o mundo é observado. Ser
importante é tornar-se maior. Conforme você aproxima ou afasta o foco, sua nuvem individual
se torna maior ou menor; isto é, mais ou menos importante. O mundo não muda apenas com a
escala, pois contém suas próprias oscilações, que são exatamente o que a sua escala é feita
para capturar. Ao mesmo tempo, as mudanças de escala do mundo e as mudanças de escala do
modelo devem estar em seqüência. A oposição contrastada entre o modelo e o ‘mundo real’
evocada por essa formulação foi justaposta, no entanto, com descrições que fundiram o
modelo e o ‘mundo real’ em formas diferentes (o real como ‘vivido’ (verdadeiro), o modelo
‘modelando’ conforme o mundo ‘mundifica’, carregando o modelo com dados e definindo o
mundo de forma que o modelo possa vê-lo). Eles se tornaram metonimicamente relacionados,
de forma contígua, em vez de metaforicamente relacionados, portanto, para uma antropóloga
confusa, se tornou difícil às vezes separar onde um terminava e o outro começava; e isso é
visível às vezes na forma pela qual os modeladores falam sobre os ‘processos reais’ estarem
138
‘dentro’ do modelo. Na verdade, onde um começa e o outro termina é exatamente a distância
que os modeladores estão tentando diminuir. Como vimos antes, o “acerto” é 100% quando as
linhas do gráfico se tornam uma só.
Além do mais, o ‘real’ como dados observados é meramente o que se precisa tomar
como ponto de partida. É “bem especulativo” e deve-se ter certeza de não se atribuir realidade
demais ao modelo ou aos dados observados. A relação entre ‘modelo’ e ‘mundo’ se repete no
interior de ambos. Um modelo pode ser mais ou menos real, e um mundo pode ser mais ou
menos real. Mas o que o pesquisador de campo deu como real a você, o modelador, você toma
como sendo real. Que esses modelos possam ‘começar a partir de diferentes realidades’, como
Marta sugere, e que os modelos são parametrizados para dar conta da ‘sua realidade’, como
Paulo observou, também implica no fato de que aquilo com que os modeladores trabalham
pode na verdade ser vários continuums, cada modelo tendo seu próprio ‘modelado’ em vez de
cada modelo modelando o mesmo mundo. Eles não estão na mesma escala, mas em escalas
diferentes. Isso então implica na possibilidade de existirem várias ‘realidades’ que emergem
desses continuums. Nesse caso, é razoável dizer que todos os modelos poderiam
potencialmente ser igualmente teóricos, ou reais, pois não são mensurados em relação a um
mundo qualquer, mas contém suas próprias escalas.
No entanto, como observamos, David pareceu assinalar enfaticamente que esse não é
o caso. Seus modelos tem “um quê de realistas”; os modelos regionais são “mais reais” do que
os seus, isto é, seus modelos nunca alcançariam a ‘realidade’ dos modelos de modeladores
regionais. Ainda assim, o modelador regional trabalha no entendimento de que o que ele está
modelando pode não ser, de fato, ‘real’. A ‘realidade’ parece ser um ponto fugidio. Nunca se
espera a certeza e observação é realidade, mas nem sempre. Quase como o pobre Tântalo,
para os modeladores, a certeza é um ponto fugidio; mas, diferentemente de Tântalo, a
tentativa não é infrutífera.
“Mas e se esse problema fosse também um fato?”. O ‘real’ é tanto um ponto fixo,
como uma propriedade relativa. Tanto é a ponta retrocedente de uma escala universal singular,
como é inerente a cada ponto ao longo da escala. Aqui lembramos a insistência de Latour no
fato de que as cadeias de referências ao longo das quais circulam os fenômenos começam no
139
meio e se desenvolvem para fora, na direção das extremidades, que deslocam infinitamente o
processo e se movem constantemente. Para citar Latour, a realidade é constantemente
“secretada” (1986 [1979]: 243).
Para pegar emprestado um pouco do vocabulário de Prakki, a realidade poderia,
talvez, ser considerada uma variável tanto independente, como dependente. Ela é múltipla,
mais do que contraditória, pois é disposta como tal. Não é um ponto fixo, mas, como na noção
de escala, a relação ‘real-modelo’ pode surgir em vários lugares. Os dados observados podem
ser reais comparados a dados ideais, e não quando comparados aos dados que sabemos não
possuir ainda. A idéia é inerente à relação entre modelo e mundo - o modelo e o mundo estão
em uma relação de representação, mas, ao mesmo tempo, ambos trabalham na mesma escala e
o modelo pode ser mais ou menos real dependendo do que você deseja estudar. O ‘mundo’ e o
‘modelo’ podem oferecer perspectivas mutuamente constitutivas um sobre o outro, na forma
de ‘verificação’ e ‘previsão’, respectivamente. O modelo é ‘carregado com’ o mundo, mas se
torna, ele mesmo, o ‘carregador’ da previsão que faz. Assim, a ‘realidade’ como todo singular
fixado totalmente está constantemente sendo deslocada pelo ato mesmo de modelar. Você tem
que deixar coisas dentro ou tirar coisas para fora; a equação inteira nunca está presente. Mas
isso não significa que o que habita o pólo da ‘realidade’ no interior da relação não é ‘real’.
Isso significa apenas que não é todo o ‘real’ que existe; ou que esse termo é um resultado
temporário do lugar onde se coloca a relação “modelo-real” dentro do conhecimento que se
tem hoje, mas, que se sabe, pode mudar no futuro.
Latour sustenta, como expliquei brevemente, que a ‘descoberta’ não é um ponto a ser
deliberado, pois o ato de ‘descobrir é, na verdade, uma adição de algo novo ao mundo; a
ciência não é um “jogo de zero-soma”. A modelagem climática não é considerada sob
nenhuma perspectiva uma "descoberta" da mesma forma que é considerada a descoberta dos
micróbios, por exemplo. Ela é, na verdade, uma ‘simulação’ do mundo e distinta como tal
(como veremos no próximo capítulo). Entretanto, eu sugiro que em todas as minhas conversas
com os modeladores um fator fundamental determinando se um modelo era considerado ‘útil’
ou não era, de fato, se ele acrescentava algo novo ao conhecimento dos modeladores sobre o
mundo ou, melhor dizendo, se ele produzia uma simulação de um mundo novo ou diferente
na qual se poderia confiar. Mas, como vimos, para obter novas informações, deve-se ser capaz
de sustentar algo ‘constante’. Para que o modelo ‘funcione’, as equações devem ser fixadas.
140
Para criar novas informações, o ‘caos’ deve ser colado em uma caixa preta. Isso é realmente
uma noção extrema de escala. Mas talvez a escala tenha e não tenha importância (Strathern
2000). Não por ser claramente importante para os modeladores, mas porque a maneira pela
qual eles pensam a escala não é necessariamente a maneira pela qual nós antropólogos o
fazemos; a especificidade de nossas técnicas é o que é crucial. É essa diferença que permite o
movimento entre interpretações e esse movimento, como vimos, são os ‘dados’. O que estou
tentando dizer não é que uma noção antropológica de escala como ‘fractal’ seja de forma
alguma mais ‘real’ do que a dos modeladores; mas, sim, que ‘o que é real’ para um
antropólogo está em constante estado de movimento, assim como para o modelador. Só que o
que esse movimento significa difere para os dois.
Essa exploração, que pode parecer ‘desproporcional’ em relação à tarefa à mão, é feita
na esperança de demonstrar com que habilidade os modeladores com quem eu falei tem para
negociar e colocar em uso a relação ‘real-modelo’ - uma relação que se torna, em algumas
instâncias, uma bandeira epistemológica fixa nas ciências sociais. Mas estou ciente que se
deve ter cuidado nesse processo. As metáforas às quais a antropologia recorre “constroem
contextos globais para a interconexão de eventos e relações”, mas sempre o perigo de que
os “fenômenos venham a aparecer contidos ou englobados pela sistêmica e, assim, sendo eles
mesmos sistêmicos. Dessa forma nos enredamos em estruturas profundas e sistemas de
mundo e nos preocupamos com o ‘nível’ em que eles existiam nos próprios fenômenos"
(Strathern 1988a: 7)
151
. Com certeza, a ‘fluidez’ que transparecia para mim na maneira que os
modeladores usam esses conceitos causou uma certa dissonância que não seria, de forma
alguma, reflexo da maneira na qual eles vêem sua própria prática. Como assinala Wagner, os
seus mal-entendidos em relação a mim são muito diferentes dos meus mal-entendidos em
relação a eles (1975: 20)
152
. E por essa razão é necessário sustentar uma discussão contínua
com as premissas dessa dissonância, ao mesmo tempo nunca imaginando que seja possível
"extrairmo-nos" dela. O processo de análise, como a modelagem, "nunca pára" de se mover.
Novas premissas estão sempre no horizonte. Mas é possível tentar revelar a forma pela qual
elas funcionam.
151 “construct global contexts for the interconnection of events and relations...phenomena come to appear
contained or encompassed by the systemics, and thus themselves systemic. So we get entangled in world
systems and deep structures and worry about the ‘level’ at which they exist in the phenomena themselves”
152 their misunderstandings of me are very different from my misunderstandings of them
141
***
Nós podemos agora “trocar de marcha” no nosso veículo analítico. De diversas
maneiras, tenho abordado uma problemática, a do que fazer quando seus 'nativos' parecem
usar os mesmos termos que você usa e de formas diferentes. A decisão de Latour de “seguir
os atores” (follow the actors) (Latour 2005) revela que, na verdade, a ciência em ação é muito
diferente daquilo que nós, de ‘fora’ da ciência, fomos levados a crer. Daí sua surpresa ao ser
acusado de ser um ‘inimigo’ da ciência “quem primeiro nos ofereceu essa arca do
conhecimento? Os próprios cientistas!” (1999a: 19)
153
. Enquanto “nós tomamos a ciência por
pintura realista, imaginando que ela fazia uma cópia exata da realidade”, os cientistas “fazem
algo completamente diferenteatravés de etapas sucessivas eles nos conectam a um mundo
alinhado, transformado, construído” e, caso a menção de construtivismo cole na garganta,
“não é essa ‘deambulatória’ filosofia da ciência mais realista e certamente mais realística do
que a velha instalação?” (ibid: 78-79)
154
Mas, como Holbraad, entre outros, sugere, Latour parece ter decidido enfocar quase
exclusivamente o que os cientistas fazem e não o que eles dizem entre outros motivos porque,
do contrário, ele teria uma luta em suas mãos:
“Nenhum antropólogo deve sonhar em ‘corrigir’ seus informantes. Pode parecer que Latour está dando
a si mesmo essa licença, talvez porque seus informantes se assemelhem menos a nativos e mais a
colegas. aqui cientistas e os reputadamente devotos. Em relação ao argumento sobre a ciência, eu
não ficaria surpreso se a resistência que ele encontra entre os praticantes (‘você acredita na
realidade?’, como ele conta em Pandora’s Hope) se devesse não apenas à natureza radical do seu
argumento, mas também ao fato dele lançar suspeitas sobre a veracidade da própria visão de senso
comum dos cientistas sobre o que é que eles fazem. Mais do que desafios analíticos, os argumentos de
Latour levam a acusações de falsa consciência”. (Holbraad 2004) 155
153 “who first offered us this trove of knowledge? The scientists themselves!”
154 “we have taken science for realist painting, imagining that it made an exact copy of the world”, the
sciences “do something else entirely…through successive stages they link us to an aligned, transformed,
constructed world” and, in case the mention of constructivism sticks in the throat, “is this ‘deambulatory’
philosophy of science not more realist, and certainly more realistic, than the old settlement?”
155 “No anthropologist should dream of 'correcting' his informants. It seems that Latour is giving himself
this licence, maybe because his informants are less like natives and more like colleagues - here scientists and
the putatively pious. With regard to the argument on science, I wouldn't be surprised if the resistance he
encounters among practitioners ('do you believe in science?', as he reports in Pandora's Hope) is due not just
to the radical nature of his argument, but also to the fact that it gives the lie to scientists' own common sense
142
É como se, caso Latour ouvisse o que os cientistas dizem que estão fazendo em vez
dele mesmo explicar o que eles estão fazendo, ele tivesse que admitir que o que ele estava
fazendo era na verdade tão ‘representacionista’ quanto o que fazem os que são alvo de sua
crítica. Ele está, nesse sentido, authoring e os explorando por remover sua conexão com o que
quer que seja que eles estão fazendo. Como assinala Holbraad, o “anti-representacionismo
cáustico” de Latour está baseado na premissa de que "não existe descontinuidade ontológica
entre palavra e mundo”; ao se falar com cientistas, no entanto, fica evidente que isso existe
cientistas de laboratório se esforçam exatamente para produzir representações acuradas do
mundo. Dizer algo diferente disso seria o equivalente a sugerir que existiria uma outra
realidade à qual ele tem acesso e não os próprios cientistas.
Isso oferece uma abertura para a primeira observação que eu gostaria de fazer, em
defesa de minhas próprias escolhas etnográficas. Eu me concentrei nesta segunda seção sobre
exatamente o que os modeladores me disseram que fazem, não o que eu os observei fazendo.
Isso foi tanto um artifício de minha situação etnográfica particular, como uma decisão
consciente de minha parte. Ganha um peso extra pelo fato de o que eles 'fazem' ser falar sobre
'realidade' e 'representação' para mim, e é disso que estamos falando aqui. Ou não é? Parece-
me que essa aproximação aparente é exatamente o que me causou tanta confusão ao tentar
entender o que eles me diziam. Quando um modelador me fala sobre ‘representação’, o que
me faz pensar que estamos falando sobre a mesma coisa? E como posso assumir que, se eles
falam sobre ‘representação’, isso os faz, ou isso faz com que eu possa tratá-los como
‘representacionistas’? O fato é que somos todos, como diz Strathern citando Giddens,
“teóricos sociais” (social theorists). Mas, como Strathern prossegue para nos mostrar, essa
“frase é vazia se as técnicas de teorização têm pouco chão comum… [Eu] enfatizo a
especificidade das técnicas, no que diz respeito ao conhecimento” (1987: 30)
156
Essa especificidade é importante. A suposição de que a conclusão do argumento de
Latour é que a ciência é uma prática social como outra qualquer, tem uma outra suposição
subjacente, envolvendo a relação entre essas duas noções, ‘ciência’ e ‘prática social’. Como
view of what it is they do. More than analytical challenges, Latour's arguments amount to indictments of
false consciousness”(Holbraad 2004)
http://abaete.wikia.com/wiki/Response_to_Bruno_Latour%27s_%22Thou_shall_not_freeze-
frame%22_%28Martin_Holbraad%29 02/05/08
156 “phrase is an empty one if techniques of theorizing have little common ground…[I] stress the specificity
of techniques, as far as knowledge is concerned.”
143
mostra Pinch (Pinch and Pinch 1988: 181), supõe-se que dizer que a ciência é socialmente
construída é equivalente a desconstruí-la. Mas e se disséssemos que a ciência é uma prática
social distinta de qualquer outra? A ‘simetria’ buscada por Latour foi criticada por insistir em
um ‘achatamento’ (termo empregado por Latour), tornando tudo igual e conseqüentemente
fazendo com que todas as informações sejam perdidas. Tudo é distorcido pelo miasma da
similaridade. Essa simetria, no entanto, é meramente o ponto a partir do qual os cientistas
sociais podem começar suas análises. Ou seja, como diz o próprio Latour em We Have Never
Been Modern, “o princípio de simetria não tem como objetivo estabelecer igualdade que é
apenas a maneira de zerar a balança mas registrar diferenças isto é, na análise final,
assimetrias e entender os meios práticos que permitem a algumas coletividades dominar
outras. Mesmo que elas sejam similares no princípio de sua co-produção, as coletividades
podem diferir em tamanho” (Latour 1993 [1991]: 107-108)
157
.
Aqui, como um aparte, eu gostaria de assinalar que a ênfase de Latour no tamanho
como fator diferencial “existem de fato diferenças, mas elas são diferenças de tamanho”
(ibid. 109) é uma questão, por exemplo, para Strathern (1996) e algo a que eu retornarei no
capítulo de conclusão da dissertação. Latour faria talvez sobre a ciência a mesma afirmação,
contrária à afirmativa de Holbraad, que fez sobre a modernidade: “a modernidade não é falsa
consciência”
158
. E insistiria no fato de que o que ele tem tentado fazer é revelar a relação entre
“purificação” e “mediação”, ou neste contexto, ‘ciência’ e ‘prática social’, que não é “aquela
entre consciente e inconsciente, formal e informal, linguagem e prática, ilusão e realidade… a
única coisa que acrescento é a relação entre esses dois conjuntos de práticas” (1993 [1991]:
40)
159
. As duas não são opostas, mas trabalham juntas; e é essa relação que deve ser explorada
pelo sociólogo da ciência. A mediação requer purificação para funcionar e, quanto mais a
ciência se purifica, mais se torna intimamente entremeada com o tecido do social. Dizer que a
ciência é uma prática social é apenas o começo da análise, não o final. O ‘coletivo’ está em
“permanente renovação que é organizada em torno de coisas em permanente renovação” e
“nunca parou de evoluir” (1993 [1991])
160
. Voltarei a isso, novamente, no capítulo final, pois
157 ““the principle of symmetry aims not only at establishing equality – which is only the way to set the
scale at zero – but at registering differences – that is, in the final analysis, asymmetries – and at
understanding the practical means that allow some collectives to dominate others. Even though they might be
similar in the principle of their co-production, collectives may differ in size”
158 “modernity is not false consciousness”
159 “that of conscious and unconscious, formal and informal, language and practice, illusion and
reality…the only thing I add is the relation between these two sets of practices”
160 “permanent renewal that is organized around things in permanent renewal” and has “never stopped
evolving”
144
há aqui uma contradição aparente a ser explorada.
A maneira pela qual estou tentando repensar o ‘representacionismo’ usando os
modeladores, nos leva de volta ao ensaio de Holbraad sobre o ‘anti-representacionismo
cáustico’ de Latour. Holbraad oferece nesse artigo uma maneira de ‘elaborar’ conceitos
Latourianos, um objetivo antropológico que tem meu forte apoio. Assim, não símpatizo
com essa perspectiva, mas, também, o argumento de Holbraad dá espaço para o surgimento de
um diálogo muito mais fértil do que a mera repetição das réplicas Latourianas às críticas
humanistas ou realistadas endereçadas a ele. Em termos de crítica, um ponto interessante
sobre o texto de Holbraad é que o seu ‘objeto’ parece se evidenciar da mesma forma que,
penso eu, o de Latour. Isto é, para construir seu criticismo sobre Latour (na minha opinião em
última instância realmente apoiado sobre uma crítica, compartilhada por mim e a que voltarei
mais tarde, à ‘auto-purificação’ de Latour), Holbraad precisa efetuar uma purificação similar.
Dessa forma, o que os nativos ‘dizem’ veste a capa do ‘representacionismo’ no argumento de
Holbraad; os cientistas são representacionistas, o que podemos fazer em relação a isso? E para
escapar a isso, Holbraad postula algo que ‘já está lá’, como veremos um estado de ‘ainda
não’. Isso é uma faca de dois gumes. Como reforça Latour, suas idéias também ‘já estão lá’;
elas vêm dos próprios cientistas (“quem primeiro nos ofereceu essa arca do conhecimento? Os
próprios cientistas!” (Latour 1999a: 19).
A interseção que eu gostaria de explorar aqui é a maneira pela qual Holbraad trata
Latour, e a maneira pela qual Latour trata os fatos científicos. Como um fato, Latour se torna
‘purificado’. Isso é outro motivo pelo qual eu vou me concentrar no argumento de Holbraad.
A forma pela qual Holbraad usa Latour, quero argumentar, é em certo sentido inevitável, pois,
como vimos, o próprio Latour descreve estabilização e purificação em termos de um acúmulo
de conexões e associações. Latour se torna estabilizado como um ‘fato’, como evidenciado na
maneira pela qual Holbraad o posiciona no seu argumento161.
Holbraadd escreve “O problema é característico das revoluções que alcançam a
maturidade, como o anti-representacionismo o fez, na medida em que Latour, Strathern,
Viveiros de Castor, etc. agora constituem uma ortodoxia para vários dos antropólogos mais
161 Minha discussão aqui deve muito aos comentários de Marcio Goldman sobre o artigo de Holbraad:
http://abaete.wikia.com/wiki/Discuss%C3%A3o:Response_to_Bruno_Latour%27s_%22Thou_shall_not_free
ze-frame%22_%28Martin_Holbraad%29 12/06/08
145
criativos da minha própria geração. O que fazer com os governantes - representacionismo
burguês! – uma vez vencidos?
162
. Holbraad se questiona:
“Por que ser tão assimétrico em relação à assimetria? Parece-me que uma estratégia mais
consistente seria continuar a fazer novas perguntas. Se, do ponto de vista Latouriano, o senso comum
moderno parece exótico e ingênuo, então vamos levar a rio os nativos, exatamente como faríamos
(ou temos que fazer) ao estudarmos o ‘fetichismo’, ou seja o que for. A questão, então, seria esta:
tomando o sofisticado quadro analítico desenvolvido por Latour e outros não-representacionistas como
base conceitual uma espécie de ‘novo senso comum que trabalho conceitual para além disso é
necessário para que as suposições representacionistas façam sentido?” (Holbraad 2004).163
‘Ir além’ no trabalho é necessário, pois aparentemente, o representacionismo não
consegue escapar à “falsidade ingênua a ruína da retórica imbatível de Latour”
164
(ibid).
Holbraad sugere que a “coisa simétrica a fazer é ver o até que ponto o não-representacionismo
precisa ser revisado à luz do representacionismo de senso comum” (ibid)
165
.
Embora eu concorde com Holbraad de que às vezes Latour parece ser totalmente
intolerante com (have no truck with) o representacionismo, aqui dois pontos principais a
fazer. O primeiro é que Latour pode responder à acusação de ‘ignorar’ seus nativos e atribuir
a eles uma falsa consciência afirmando que a ‘simetria’ é uma abordagem, não um estado de
existência em si mesma, como uma ‘rede’. Como tal, ela nunca procura excluir nada, mas
oferece as condições para incluir cada topografia social que possa ser encontrada em campo
ao se abordar os nativos a partir de um ponto de partida 'de vel'. Como ele escreve em um
artigo de 1997, ANT (Actor-Network Theory, Teoria de Ator-Rede):
“é um método para descrever a produção de associações, como a semiótica é um método para
162 “The problem is characteristic of revolutions that reach maturity, as anti-representationism has, insofar
as Latour, Strathern, Viveiros de Castro etc. now constitute orthodoxy for many of the more creative
anthropologists of my own generation. What to do with the rulers - bourgeois representationism! - once
they've been defeated?”
163 “Why be so asymmetrical about asymmetry? It seems to me that a more consistent strategy would be to
keep asking new questions. If, from a Latourian point of view, modern common sense seems exotic and
naïve, then let's take the natives seriously, just like we would (or ought to) when studying 'fetishism' or
whatever. The question, then, would be this: taking the sophisticated analytical frame developed by Latour
and other non-representationists as the conceptual baseline - as a kind of new 'common sense'- what further
conceptual work is required in order to make sense of representationist assumptions?” (Holbraad 2004)
164 “naïve falsehood - the bane of Latours relentless rhetoric”
165 “the symmetrical thing to do now is to see how far non-representationism needs to be revised in light of
commonsense representationism”
146
descrever o caminho gerador de qualquer narração. Não diz nada sobre a forma das entidades e ações,
mas apenas sobre o que deve ser o dispositivo de registro para permitir que as entidades sejam
descritas em todos os seus detalhes. A ANT coloca o peso da teoria sobre o registro, não sobre a forma
específica que está sendo registrada. Quando diz que os atores podem ser humanos ou inumanos, que
eles são infinitamente desdobráveis, heterogêneos, que são livre-associacionistas, sem conhecer
nenhuma diferença de escala, que não inércia, ordem, que eles constroem sua própria
temporalidade, isso não qualifica nenhum ator real observado, mas é a condição necessária para que
a observação e o registro dos atores seja possível”. (Latour 1997, trecho em negrito destacado por
mim)166
Esse método é o que “simplesmente abre, contra todas as reduções a priori, a
possibilidade de se descrever irreduções” (ibid), de modo que qualquer forma possa ser
gravada, em vez de se predizer como um ator vai se comportar. As acusações de dogmatismo,
de se atribuir uma ‘falsa consciência’ a atores que não sabem que são “realmente”
infinitamente desdobráveis, são conseqüência do compromisso da ANT com uma certa
metodologia, um compromisso que precisa ser sustentado à força, afirma Latour (ibid).
Para permitir que o ‘representacionismo comum’ reveja ou afete o ‘anti-
representacionismo’ da maneira que Holbraad parece estar sugerindo no início do seu artigo
de 2004, eles devem ser pensados como “coisas” separadas e que podem ser opostas, quando
Latour, aqui pelo menos, está claramente afirmando algo muito mais interessante - que seu
trabalho é sobre o método, que é exatamente sobre a “possibilidade de se descrever
irreduções” que antes eram impensáveis. Isso não quer dizer que ele não possa descrever
‘reduções’, se for necessário. É o mesmo tipo de assimetria que vemos na sua caracterização
de 'purificação' e de 'mediação', que ele torna especialmente explícita em We Have Never
Been Modern, onde em um nível mediação inclui purificação, em vez de se opor a ela, e
purificação é o que permite de fato a ‘proliferação de híbridos’. Voltarei a isso no último
capítulo. Eduardo Leonardo em mais de uma ocasião se referiu à mudança de escala como um
“zoom”. Quando Latour fala sobre a noção dos quadros de referência abrangentes que são
inerentes ao ato de se fazer um ‘zoom’, ele o faz claramente como um alerta sobre isso. Mas
166 “is a method to describe the deployment of associations like semiotics is a method to describe the
generative path of any narration. It does not say anything about the shape of entities and actions, but only
what the recording device should be that would allow entities to be described in all their details. ANT places
the burden of theory on the recording not on the specific shape that is recorded. When it says that actors may
be human or unhuman, that they are infinitely pliable, heterogeneous, that they are free associationists, know
no differences of scale, that there is no inertia, no order, that they build their own temporality, this does not
qualify any real observed actor, but is the necessary condition for the observation and the recording of actors
to be possible.” (Latour 1997)
147
isso não deve engendrar em mim a obrigação de “contradizer” meus informantes:
“Eu também concordo que enquadrar as coisas em algum contexto é o que os atores fazem
constantemente. Eu simplesmente estou argumentando que é essa atividade mesma de enquadrar, essa
atividade mesma de contextualizar que deve ser trazida para o primeiro plano e isso não pode ser feito
enquanto o efeito de zoom não é questionado. Definir escalas de antemão seria apegar-se a uma
medida e a um quadro de referência absoluto quando o que estamos buscando é apenas medir, quando
viajar de um quadro ao quadro seguinte é o que queremos alcançar” (Latour 2005: 187)167.
O que quero alcançar e o que Eduardo Leonardo faz neste caso não são de forma
alguma a mesma ‘coisa’. A “simetria” é uma abordagem; uma rede é uma forma de pensar,
não uma coisa que é pensada – “a ANT é antes de tudo um princípio de projeção abstrata para
se produzir qualquer forma, não uma decisão arbitrária concreta sobre que forma deve estar
no mapa” (Latour 2005: 45)
168
.
Meu segundo ponto é que essa defesa é de certa forma ingênua, pois, como ataca
Holbraad, a retórica de Latour é muito conscientemente combativa; e Holbraad baseia sua re-
análise em um artigo (Latour 2004b) no qual Latour aparece particularmente dessa forma. É
às vezes difícil não imaginar o ‘representacionismo’ como uma espécie de força maligna que
os ‘bons sociólogos ANT da ciência’ devem afugentar. Holbraad sugere que, usando o
representacionismo “bizarro” de nosso nativo, podemos começar a imaginar “como, em outras
palavras, pode a própria Rede ser estendida (transformada, redefinida) de modo a incluir seu
próprio reputado oposto?” (Holbraad 2004)
169
. O que é aparente, no entanto, após meu
trabalho com os modeladores, é que, quando falam em ‘representação’, eles não estão falando
sobre o oposto reputado de ‘não-representacionismo’. Como tentei demonstrar, o que parece
emergir das minhas primeiras tentativas de analisar o que eles me diziam, embora
admitidamente de um ponto de partida simpatizante com as idéias de Latour, é que o que é
representacionismo não é sempre o oposto do que nós denotamos como sendo não-
167 “I also agree that framing things into some context is what actors constantly do. I am simply arguing
that it is this very framing activity, this very activity of contextualising, that should be brought into the
foreground and that cannot be done as long as the zoom effect is taken for granted. To settle scale in advance
would be sticking to one measure and one absolute frame of reference only when it is measuring that we are
after; when it is travelling from one frame to the next that we want to achieve” (Latour 2005: 187).
168 “ANT is first of all an abstract projection principle for deploying any shape, not some concrete arbitrary
decision about which shape should be on the map.”
169 “how, in other words, might the Network itself be extended (transformed, redefined) so as to include its
own putative opposite?”
148
representacionismo. Nesse caso, uma propriedade relacional fluida que, como tal, parece
tirar seu significado de onde quer que os modeladores estejam enfocando sua atenção. A
habilidade para criativamente clivar a idéia de ‘realidade’ do seu ‘referente do mundo real’ é o
que permite a fluidez na forma com que os modeladores concebem o que eles estão fazendo e
lhes dá a liberdade para me lembrarem de forma desarmante que “tudo depende da quantidade
de real”, que a “observação é realidade, mas nem sempre”, e que você tem que fazer seu
modelo se encaixar na sua realidade, sabendo ao mesmo tempo que se trata de um
‘enquadramento-que-congela’ - de modo que, ao perguntar a eles se existe tal coisa como o
‘real’, eles, é claro, responderiam afirmativamente. Representar nesse caso não pressupõe
necessariamente um mundo ideacional no qual a realidade é um valor absoluto, ou que não há
um continuum no lugar de uma escolha (absurda), ou isto ou aquilo. Da mesma forma, as
metáforas visuais empregadas por Eduardo Leonardo para tentar explicar como o modelo
‘enxerga’ o mundo dão pistas tanto de um mundo estático que existe ‘lá fora' para ser
conhecido, como do fato de que esse mundo está constantemente em expansão ou contração e
qualquer 'totalidade' está sempre fora do alcance. A questão persiste, de quem é essa
contradição?
A sugestão de Holbraad, de que devemos “transformar” tanto o representacionismo,
como o não-representacionismo em um esforço para “redefini-los de uma forma
‘extraordinária’ que ultrapassaria a antinomia criar novos conceitos, como define
Deleuze”
170
está, portanto, sugiro eu, nas formas de trabalhar dos modeladores e, mais
além, no que Latour escreve isto é, se alguém foca (‘pára’) sua atenção sobre o que é fluido
no seu trabalho e não sobre o que está estabilizado. infinitas-1 formas de ser assimétrico,
mas apenas 1 forma de ser simétrico. Uma forma pela qual o aparato conceitual antropológico
poderia ser redefinido, sugere Holbraad, é através da idéia de movimento, transformação ou
‘vir a ser “a Rede não é apenas um campo relacional, mas um campo relacional motile
171
(Holbraad 2004). Aqui, como expliquei no último capítulo e vou expandir no próximo, estou
de acordo. Mas, da mesma forma, a ANT sempre foi enfática e explicitamente sobre
movimento, associação, "viajar" e rastrear. O argumento de Holbraad, como entendido por
mim, é que para dar conta da diferença e identidade relacional sem recorrer a um critério
ou/ou representacionista (aquele que não tem lugar em um universo "puramente" positivo,
170 “redefine them in an 'extraordinary' way that would overcome the antinomy - to create new concepts, as
Deleuze has it”
171 “the Network is not only a relational field, but a motile one”
149
onde “o único conectivo disponível é “e” - o conectivo relacional como discutido por Viveiros
de Castro (Viveiros de Castro 2003)” (ibid)
172
), se poderia postular uma terceira posição para
a dialética quebrar o binário com uma relação emergente. Quer dizer, a diferença é
desgastada não através de uma negativa retrospectiva, mas de uma espécie de ‘ainda não’
futuro positivo a representação não é anti-representação, mas sim um ainda não’ que
emerge da relação representação/anti-representação. “De certa forma profunda, então, o ato da
distinção é em si mesmo uma transformação: distinguir coisas é mudar cada uma delas
reunindo-as” (ibid)
173
, sugere Holbraad ao final de seu artigo. Como ele mostra, esse é
essencialmente o movimento Wagneriano de invenção e obviação, que explorei no primeiro
capítulo. Mas isso também é muito semelhante aos comentários de Latour sobre a formação
do “coletivo” que está em “perpétua renovação organizada em torno de coisas em perpétua
renovação” e “nunca parou de evoluir” ‘apenas’ outro círculo na espiral infinita; e o fato de
que somos sempre “levemente ultrapassados por aquilo que construimos” (Latour 2002
[1996]: 43). De fato, a insistência de Latour, se se quer buscá-la, em combinar os dois pólos
‘Natureza’ e ‘Cultura’ em cada ‘imbróglio’ e a necessidade subseqüente de se postular
culturas-natureza como pontos de partida internos de um processo sem idade, que enxerga
Natureza e Cultura como termini incessantemente em deslocamento (e aqui lembramos das
cadeias de Latour que “[crescem] a partir do meio na direção das extremidades, que são
continuamente empurradas para além” (1999a: 72), isso parece ter ressonância com a tese de
Holbraad, mesmo se Holbraad na formulação de Latour apenas o postulado de
“conveniências políticas” (Holbraad 2004) 174.
Mas como nós podemos evitar que esse ‘vir a ser assuma o papel de ser apenas mais
um ponto no movimento, que nos catapulte de volta ao mesmo tipo de raciocínio ou/ou
(either/or) de que estamos aparentemente tentando escapar? A purificação parece nos cercar
por todos os lados. Pois o primeiro movimento no argumento de Holbraad é considerar as
transformações, ou relações ontológicas; entretanto, ao fazer isso, elas tendem a se tornar
‘coisas’ a relação entre 'termos’ e ‘relações’, em si mesma, não deveria escapar ao tipo de
análise motile que está sendo sugerido por Holbraad, mas talvez não se possa escapar ao fato
172 “the only available connective is “and” – the relational connective as Viveiros de Castro has discussed
(Viveiros de Castro 2003)” (ibid)”
173 “Somewhat profoundly, then, the act of distinction is itself a transformation: to distinguish things is to
change each of them by bringing them together”
174 Mas não tenho dúvidas de que, comparando as duas, eu mesma trabalhei certa forma de estabilização
na teoria de Holbraad que servirá como uma espécie de ponto de partida para algum outro movimento.
150
de que ela não consegue fazer isso175. Mas, além disso, a combinação das relações, isto é,
representação ‘e’ não-representação, resulta na coisa (relação) que nenhuma das duas é, por
enquanto; mas isso pára aqui? Existe uma quarta relação necessária para continuar o
movimento ‘positivo’? A assimetria da relação entre ‘distinções’ e ‘transformações’ significa
que, embora a ‘terceira' transformação combinada a 'distinção’ inclua as primeiras duas
transformações, o contrário não é verdade. Isso significa que os processos transformacionais
são direcionados; existe implícita uma noção de ‘somatório’ de “potencialidades
relativamente simples a atualidades relativamente complexas” (Holbraad 2004). A oposição
entre o ‘potencial’ e o ‘de fato’ se espelha na idéia de que esse ‘ainda-não’ é ‘autodiferença
interna intensiva, projetada a um passo como uma potencial transformação” (ibid), em
oposição a uma autodiferença externa extensiva. Holbraad distingue o ‘ainda-não-é’, a
concretização potencial de um potencial, o que parece revelar um mero privilegiar de um lado
da relação que se está tentando ultrapassar. Em outro artigo (Holbraad 2007), Holbraad talvez
esclareça levemente sua posição em relação a esse problema, indo mais longe para explicar a
base etnográfica dessa noção de ‘lógica motile’. Não espaço aqui para dar a esse texto a
atenção que merece. Nele, a divisão ou/ou é enquadrada em termos de conceito/coisa. O
termo do Ifá cubano ‘aché’ (definido como ‘força vital’, embora a questão levantada por
Holbraad seja exatamente a dificuldade de definir esse termo) parece ser paradoxalmente
tanto (coisa), quanto poder (conceito). É revelador que Holbraad possa concluir que “se a
mobilidade de dissolve o problema da transcendência e imanência" para os seus nativos,
"então, a mobilidade também dissolve o problema do conceito versus coisa para nós
...[Assim], da mesma forma que, em um universo de lógica motile, pó pode ser poder,
deidades podem ser marcas no quadro do divino e assim por diante, então conceitos e coisas
também podem ser um o outro. Basta parar de pensar em conceitos e coisas como entidades
auto-idênticas e começar a imaginá-las como movimentos auto-diferenciais” (Holbraad 2007:
218-219)
176
. O único motivo pelo qual Holbraad pode fazer tal afirmação na verdade, por
quê ele o faz – é porque seus nativos falam com ele de formas que confundem noções
Ocidentais axiomáticas. Novamente, nós confrontamos a questão, que neste caso Holbraad ele
mesmo está perguntando: de quem é esse paradoxo? Meu desconforto com o desafio de
175 Ver Wagner: “se, como postulei, as atividades de relacionar e definir são verdadeiramente
interdependentes e relativas uma à outra, então, qualquer empresa que tente perseguir ambas essas
modalidades para uma espécie de conclusão unificada, absoluta e determinista está fadada a chegar a um
impasse relativista” (1977: 393)
176 “then motility also dissolves the problem of concept versus thing for us...[T]hus, just like in a motile
logical universe powder can be power, deities can be marks on the divining board, and so forth, so concepts
and things can also be each other. All it takes is to stop thinking of concepts and things as self-identical
entities, and start imagining them as self-differential motions”
151
Holbraad a Latour, então, é desviado para uma consideração ressabiada da facilidade com que
nós podemos ‘estabilizar o conhecimento ‘ocidental’ ou científico para ser ‘encaixado’ em
um argumento sobre representacionismo vs. não-representacionismo.
O problema aqui seja talvez a idéia de que algo deva ser ‘ultrapassado’, que Holbraad
reconhece, mas é flagrantemente, senão auto-ironicamente, forçado a enquadrar com sua
teoria. ‘Ainda não ser algo é um conceito muito mais multiplícito do que ‘ser algo. Essa é a
relação assimétrica que propulsa a lógica motile de Holbraad; mas se poderia notar que Latour
insiste na necessidade de se abordar ambos os lados da Constituição Moderna, purificação
tanto quanto mediação (apesar de controvertidamente com menos força). É que, ao que
parece, a purificação recebeu atenção suficiente. Sua própria purificação, como denotei, é,
em certo sentido, evidência disso. Holbraad enquadra como uma de suas questões o problema
do “que fazer com os governantes – representacionismo burguês! – uma vez vencidos”
(2004). É interessante como é exatamente essa espécie de 'meta-purificação’, que ele
astutamente reconhece e confronta em Latour, que parece dominar as premissas das suas
questões iniciais. Eu penso que um terreno muito mais forte, ou mais interessante, para se
criticar Latour, envolvendo sua noção de reflexibilidade. Pois acredito que o próprio Latour
fez tanto quanto qualquer outra pessoa para criar uma relação de oposição entre ‘o que é dito
sobre a ciência’ e ‘o que ele diz sobre a ciência’. Embora Latour sustente que sua luta não é
com a ciência, o problema é que, às vezes, ele combina o que faz com ciência, em outros
momentos ele separa fortemente o que os cientistas fazem do que os filósofos da ciência
fazem, e em outros ainda ele separa fortemente o que ele faz do que a ciência faz. Eu gostaria
de deixar a discussão sobre as diversas maneiras pelas quais Latour ‘reflete’ sobre o que é que
ele está fazendo para um pouco mais tarde. Mas vou assinalar aqui que a idéia de que o ‘não-
representacionismo’ de alguma forma venceu o ‘representacionismo’ não é a questão, como
nos chama a atenção Viveiros de Castro. O representacionismo deve ser recusado “não porque
esse jogo produz resultados objetivamente falsos, isto é, representa erradamente a natureza do
nativo; o conceito de verdade objetiva (como os conceitos de representação e de natureza) é
parte das regras desse jogo particular, não do que eu estou propondo aqui” (2002: 116). O fato
de os modeladores falarem mesmo em termos de ‘representação’ pode apenas precipitar o tipo
de crise epistemológica que Holbraad está envisionando, caso purificarmos, ou colocarmos
em ‘caixa preta’ prematuramente isso de que eles estão falando.
Por toda sua fala sobre a recusa de se recorrer a uma análise purificatória, Latour
152
certamente redigiu muito de sua obra em termos belicosos, e ela é certamente um chamado às
armas de todos os tipos. O que Holbraad crucialmente tocou aqui é a aparente relutância de
Latour em escrever sobre como seu próprio trabalho se tornou ‘purificado’; como as várias
conexões acumuladas por ele lhe deram o status de ‘fato’ inevitavelmente, pois é assim que,
como ele nos diz, os fatos são construídos ou estabilizados - através do acúmulo de conexões
e de várias associações heterogêneas. Mas os seus pensamentos sobre a reflexibilidade em
1979 dizendo que nós “devemos aceitar a aplicabilidade universal da falibilidade e
encontrar formas de aceitá-la” (1986 [1979]: 283)
177
parecem estranhamente ausentes desse
generalizado (e generalizante) manifesto sobre a totalidade a filosofia ocidental em 1999, por
exemplo. Latour pode aqui estar sendo duplamente reflexivo – se o que a ciência faz é
purificar, então, certamente, é de se esperar uma trajetória de purificação do próprio Latour, já
que ele mesmo disse que tudo que faz é ‘rastrear as associações’ (2005) feitas pelos seus
atores. Mas ao mesmo tempo, se nós nunca fomos modernos e a ciência sempre foi uma série
heterogênea, fluida de transformações e mediações, então, talvez, a força da sua
reflexibilidade esteja na sua recusa a manter uma escala coerente para o seu pensamento,
preferindo saltar de detalhados exames das minúcias da pedologia a visões vastas e
panorâmicas do pensamento ocidental. Entretanto, se esse é o caso, como é possível que "o
pior resultado seja nos livrarmos de nós mesmos imitando as ciências e tentando oferecer
explicações fortes de seu desenvolvimento” (Latour 1988: 176)
178
?
Conceitos analíticos como os que são inerentes a conceitualizações representacionais e
suas refrações não devem ser tratados como “adversários analíticos esperando ser derrubados”
(Holbraad 2004). Nem se deve tratar Latour assim. Pois, em ambos os casos, as diferenças e
formas específicas oferecidas por cada um à medida que são movidos pelo ato de comparação
etnográfica ou analítica é, talvez, o que a antropologia deveria estar tentando apoiar. Como
Strathern sugere, “[M]etáforas participam umas das outras. A maneira pela qual essa
participação se dá deve ser rastreada como um ato de fé nos detalhes das imagens que
fornecem os pensamentos de ligação sendo as ligações a matéria-sujeito do antropólogo”
(1988a: 188)
179
.
177 “we should accept the universal applicability of fallibility and find ways of coming to terms with it”
178 “the worst outcome be to get rid of ourselves by imitating the sciences and attempting to offer stronger
explanations of their development”
179 ““[M]etaphors participate in one another. The manner in which they do so participate must be traced
through as an act of faith in the details of the images that provide the linking thoughts – the linkages being
the anthropologist’s subject matter”
153
A teoria da ‘lógica motile' de Holbraad certamente, penso eu, prioriza um dinamismo
no ato da análise etnográfica. Minha ênfase nesta dissertação também está no movimento,
como mostrei no capítulo anterior. Penso e espero que esse fato, é claro, se deva aos cientistas
que estudo, às metáforas que eles me fornecem e aos problemas encontrados por essa tarefa
etnográfica específica. Mas, como Strathern assinala, interpretar é parar. E concentrar-se no
movimento pode às vezes acontecer para pará-lo. É o ato de comparação que determina
similaridade ou diferença (ver Strathern 1991); e nós podemos, portanto, tentar pensar mais
cuidadosamente sobre o que são as 'naturezas' das relações com as quais estamos lidando. Na
formulação de Holbraad, “A se transforma em B, mas como uma transformação de A, B não
está relacionado a A (viz. 'A - B'), mas também é o seu produto” (Holbraad 2004)
180
.
Podemos fazer elaborações sobre isso. Um ‘lógica motile’ predominante pode esconder isso;
ou ela pode revelar isso. Até ser colocado em prática em uma análise etnográfica, nós não
saberemos. Sugiro especificamente que as relações (“transformações ontológicas” ou não) que
vi em campo eram e não eram ‘direcionadas’ da forma que Holbraad sugere. Mas, é claro, é a
comparação que faz surgir suas identidades, como tais, em relevo. ‘Irreduzir’ através de um
processo comparativo que parece inevitavelmente fazer o contrário é a tarefa em nossas mãos.
Talvez uma risada (laughter) cúmplice, mais do que o criticismo oposicional, seja o que nos
vai permitir tentar isso.
Menciono aqui risada (laughter), pois tenho a forte crença de os antropólogos têm, em
certo sentido, que parar de levar tão a sério a si mesmos. Como Wagner mostra (1975: 86), há
uma lição valiosa a ser aprendida de Beethoven, Rembrandt, Vermeer e o modo como essas
‘personalidades criativas’ parecem debochar de si mesmas brincando e, ao fazerem isso,
debocham das convenções. Para se levar a sério os outros, outras convenções e outras 'visões-
mundo', é necessário levar menos a sério a si mesmo e à sua própria 'visão-mundo'. Mas
mais nisso do que trivialidade conceitual. A risada, como uma alegoria, foi também
mobilizada por Isabelle Stengers. Ela estende a noção de Latour de ‘irredução’ (ver também
Latour 1988a [1984] II), postulando que a irredução implica a impossibilidade concomitante
de falar sobre o que nós fazemos em termos de ‘vencedores e perdedores’:
“o princípio de irredução prescreve um retiro desse clamor para conhecer e julgar….[O] que
são essas “palavras” – objetividade, realidade, racionalidade, verdade, progresso – se não forem
180 “A transforms into B, but as a transformation of A, B is not just related to A (viz. 'A - B') but is also the
product of it”
154
tomadas como simulações dissimulando uma empresa humana “como qualquer outra”, nem como
garantias de uma diferença essencial?…Em outras palavras e aqui novamente eu recorro à demanda
feita por Latour em We Have Never Been Moderné uma questão de se aprender a usar palavras que
não dão, como se fosse sua vocação, o poder para desvelar (a verdade por trás das aparências) ou para
denunciar (as aparências que escondem a verdade)” (Stengers 2000 [1993]: 17)181.
Ela “gostaria de fazer possível a risada de humor, que compreende e aprecia sem esperar por
salvação e pode recusar sem se deixar aterrorizar. Eu gostaria de tornar possível a risada que
não existe às custas dos cientistas, mas que poderia, idealmente, ser compartilhada com eles”
(ibid: 18)182.
As condições relacionais para a possibilidade dessa risada são compartilhadas; mas como e
por quem é a minha próxima questão. Pois Stengers também escreve sobre as próprias
ciências modernas–
“Esse é o significado mesmo do evento que constitui a invenção experimental: a invenção do poder de
conferir às coisas o poder de conferir ao experimentador o poder de falar em seu nome” (ibid: 89)183.
Aqui é o momento de parar para começar a entrar no meu próximo capítulo. Mas
ofereço também aqui outra analogia, outra cumplicidade possível a ser explorada. Gostaria de
sugerir uma analogia entre o trabalho de Stengers e de Strathern. Talvez tal compromisso com
a 'irredução' também seja inerente ao método de Strathern para escrever sua 'ficção', O Gênero
da Dádiva:
“Daí eu ter me referido de forma mais geral às idéias ‘Ocidentais’ e 'Melanésias’. E essa generalização
teve um intuito específico. Tudo o que fiz foi tornar explícitas comparações culturais implícitas tais
como as que estão implicadas nas justaposições incidentais de se dispor de uma linguagem como o
181 “the principle of irreduction prescribes a retreat from this claim to know and to judge….[W]hat are
these “words” – objectivity, reality, rationality, truth, progress – if they are not taken as shams dissimulating
one human enterprise “like any other”, nor as guarantees of an essential difference?…In other words – and
here again I am appealing to the demand posed by Latour in We Have Never Been Modern – it is a matter of
learning to use words that do not bestow, as if it were their vocation, the power to unveil (the truth behind
appearances) or to denounce (the appearances that veil the truth).” (Stengers 2000 [1993]: 17)
182 “like to make possible the laughter of humour, which comprehends and appreciates without waiting for
salvation, and can refuse without letting itself terrorize. I would like to make possible the laughter that does
not exist at the expense of the scientists, but one that could, ideally, be shared with them.” (ibid: 18)
183 “This is the very meaning of the event that constitutes experimental invention: the invention of the
power to confer on things the power of conferring on the experimenter the power to speak in their
name.”(ibid: 89)
155
meio através do qual se revela a forma que outra possa tomar, onde a comparação for possível"
(Strathern 1988a: 343)184.
Poderia se dizer que a relação entre ‘inventor' e ‘o mundo’, e entre ‘o Ocidente’ e
‘Melanésia’ em ambas essas formulações é similarmente recursiva (um tipo talvez de
‘agencement' recursif ver Callon 2004), distribuindo o poder inerente na explicação sem
recorrer a ‘causa e efeito’ não-lineares ou relações de ‘real e representado'. Mas a natureza
exata dessa transformação relacional é incerta. As transformações que estão ocorrendo são em
ambas as direções, ou talvez em todas. Colocando essa analogia em ação, eu espero
desmaranhar as analogias e repercussões implícitas que ela contém. Se tal aproximação
comparativa é justificada resta a ser examinado e, de fato, pode ser examinado se
começarmos a nos mover de novo.
A risada, como uma alegoria, necessita não de ironia – o riso de julgamento e de quem
tudo sabe mas de uma simetria de abordagem que, mesmo assim, mantenha as assimetrias o
suficiente para “recusar sem se deixar aterrorizar”. Embora, novamente, as “técnicas
específicas” dos autores sejam o que deve nos interessar e é a elas que voltarei no último
capítulo, abordando a valência da aproximação entre antropologia e ciência que coloquei em
relevo através da justaposição de Stengers e Strathern. O fato de a ‘previsibilidade’ ser sempre
algo questionado pelos modeladores, por sua vez, permite uma mirada interessante na posição
a partir da qual a antropologia poderia, talvez, fazer a sua própria modelagem. É exatamente a
imprevisibilidade ‘embutida’ dos nativos que devemos estar prontos a tolerar, como se, como
sugere Jensen, fosse exatamente o “atuar a relação entre o constante e o variável”
185
que
caracterizasse as “relações atuadas”. As relações não são ‘dadas’, mas ‘atuadas’ e, como tais,
contêm sua própria ‘instabilidade embutida’. Como a relação entre o que o antropólogo atua e
o que ele/ela ‘congela’ para escrever sobre isso.
A idéia de novas questões e novas conexões está ligada em minha mente à idéia de
'risco'. Os tipos de novas conexões que nós, como antropólogos, devíamos estar fazendo não
deveria ser meramente estabilizar ('fixando') aquilo que estamos propondo, mas levar a sério a
184 “Hence I have referred in a most general way to both ‘Western’ and ‘Melanesian’ ideas. And that
generality has been with specific intent. All I have done is make explicit such implicit cultural comparisons
as are entailed in the incidental juxtapositions of deploying one language as the medium in which to reveal
the form that another, were it comparable, might take.” (Strathern 1988a: 343)
185 “playing out of the relationship between constant and variable”
156
imprevisibilidade (‘fluidez’) daqueles que estamos estudando. A nova etapa simétrica e bem-
humorada (humourous ) seria permitir a nós mesmos nos estendermos como fazem aquele que
estudamos, em vez de meramente pressupor que precisamos de alguma forma ultrapassar
algum tipo de inclinação latente para a ‘estabilização’ da parte deles. Isso é, talvez, o que
acontecerá se nos levarmos menos a sério. É sobre a ênfase da importância dessas novas
conexões, ou da “qualidade das relações” (ver Strathern 1996: 518) que eu, felizmente, virei a
repousar em meu capítulo final. Como a sugestão feita por Strathern, particularmente
pertinente no caso da antropologia da ciência ocidental:
“Ao antropologizar algumas dessas questões, no entanto, eu não faço apelos a outras
realidades culturais simplesmente por desejar destituir o poder dos conceitos Euro-
Americanos (...) A questão é, muito mais, estendê-los com imaginação social. Isso inclui
observar como eles são colocados em ação no seu contexto autóctone e também como
eles poderiam trabalhar em um contexto exógeno” (Strathern 1996: 521)186.
Da mesma forma, eu não busco destituir o “poder” dos cientistas que observei e com
os quais falei, mas estendê-lo, como um cyborg. Ainda assim, a natureza dessa extensão pode
fazer, no entanto, que alguns parem para refletir. É na natureza desse "poder" que entrarei no
próximo capítulo. Assim, gostaria de ir em frente novamente e me voltar para a expedição do
LBA que acompanhei a São Gabriel de Cachoeira.
186 “In anthropologizing some of these issues, however, I do not make appeals to other cultural realities
simply because I wish to dismiss the power of the Euro-American concepts (…). The point is, rather, to
extend them with social imagination. That includes seeing how they are put to work in their indigenous
context, as well as how they might work in an exogenous one” (Strathern 1996: 521).
157
CAPÍTULO 3 PROJETO FRONTEIRAS, SÃO GABRIEL DE
CACHOEIRA
Área de Pesquisa, São Gabriel de Cachoeira
Os dois caminhões de exército, de repente, diminuem a velocidade e param em
umponto da estrada de terra que não me parece diferente de nenhum outro. Estamos no
Parque Nacional Pico da Neblina, onde fica o pico mais alto do Brasil, com 3.014 metros de
altitude. O Parque faz fronteira com a Venezuela e a Colômbia, possui aldeias indígenas e é
considerado um “hot-spot” da conservação. É preciso mostrar uma série de documentos no
portão junto ao posto militar para conseguir entrar. Viajávamos em uma estrada cercada de
ambos os lados por uma densa vegetação mas paramos em um ponto onde havia uma pequena
clareira. É o começo da trilha de dois quilômetros e meio que adentra a selva até perder de
vista. Esse caminho nos levará, juntamente com todo o equipamento, à torre e ao
acampamento no qual Raquel e sua equipe estão esperando e onde passaremos a próxima
semana. Descarregamos o equipamento e o carregamos para dentro da área mais escura e
fresca na qual a floresta volta a avançar sobre a estrada. é fim de tarde e precisamos nos
apressar se quisermos chegar ao acampamento antes do anoitecer. Porém, não conseguimos.
Anoitece muito mais rápido aqui, devido à proximidade com o equador e à densa cobertura
formada pela copa das árvores que filtra a luminosidade do dia.. O caminho não é mais que
uma trilha aberta na floresta em meio enormes raízes entrelaçadas e troncos de árvores
gotejantes. Lembrei-me dos comentários de Latour sobre perspectivas teóricas serem como
muitos caminhos que permitem acessar um sujeito/assunto (subject)Pergunto a mim mesma se
os caminhos que ele tinha em mente eram tão precários como este. Esta trilha vai nos separar
durante uma semana de qualquer um que não seja parte da nossa equipe; esse é de fato o
propósito: a torre da Estação de Pesquisa de São Gabriel destina-se a colher dados da floresta
primária, o mais próximo que se tem de floresta “intocada”. Isso é importante por que serve
como ponto de comparação para os dados coletados em pastos e em áreas de floresta onde
corte seletivo de árvores.
Embrenhamo-nos em uma mata que parecia homogênea e impenetrável.No entanto,
158
conforme se vai caminhando,os olhos começam a perceber centenas de pequenos movimentos
anônimos que se destacam em relação à vegetação do fundo. Cada umcarrega sua bagagem
pessoal, que, no meu caso, inclui uma barraca, uma rede, toda a quantidade de repelente de
mosquito que coube na minha mochila, meu laptop, minha câmera, roupas, coisas à prova
d’água e dois pacotes de tangerinas, pois teríamos pouca comida fresca.Temos também que
carregar comida, equipamento elétrico pesado e delicado, como os IRGAS, equipamento para
a manutenção da torre ainda mais pesados, baterias, combustível para o gerador, redes de
coleta para liteira fina – as folhas que caiem dos arvores -, vários laptops, bem como
ferramentas e dispositivos elétricos menores. Cada pessoa carrega o máximo que consegue e,
mesmo assim, somos forçados a deixar algumas coisas para trás para resgatar de manhã.
Nossa carga é pesada e difícil de manejar. O terreno aqui é acidentado e, como a torre teve de
ser construída sobre um platô, temos que escalar algumas colinas íngremes. Dizem-me que
isso é assim porque dados de “platô” são necessários, para contrapor-se aos dados de “bacia”;
alguém me diz que deve ser assim para que os cabos que mantêm a torre em pudessem ser
fixados no chão da forma mais segura possível. Arrastamo-nos por subidas íngremes e
descidas agudas. Vez ou outra e com mais freqüência, conforme penetramos na floresta,
um igara para cruzar, sobre os quais foram colocados pequenos troncos de árvores em
diferentes estados de decomposição como pontes de não mais que um metro de largura - às
vezes, não mais que meio metro. O caminho seria árduo sem o peso extra, mas, com as
mochilas, caixas e sem as mãos livres, os dois quilômetros e meio da jornada assumem uma
outra proporção. Levamos mais do que duas horas para chegar ao acampamento. A essa altura,
estamos todos suados e ofegantes e as conversas limitam-se ao nimo necessário. A noite
está caindo depressa e ouve-se um suspiro coletivo de alívio quando finalmente avistamos as
luzes do abrigo no qual vamos amarrar nossas redes. O último igara que cruzamos é,
justamente, aquele que tornar-se-áo mais familiar, para onde retornaremos todos os dias para
lavar a sujeira e o suor. Alguns dias depois, um jacaré será visto aí, tomando banho
preguiçosamente.
Uma das primeiras conversas memoráveis que tive na expedição foi com Raquel,
quando parte de nosso grupo voltou no dia seguinte, às sete da manhã, para pegar o
equipamento que havíamos deixado para trás. Conversamos enquanto andávamos
rapidamente em fila ao longo da trilha e eu tentava anotar o que ela dizia, ao mesmo tempo
que tentava manter um olho cauteloso no chão, para evitar raízes, buracos, cobras e poças de
159
lama. No começo achava isso difícil e caía muitas vezes, para a diversão silenciosa do grupo.
Tomava notas de forma compreensivelmente errática. Perguntei a ela se ela pensava que, no
campo, algumas condições afetam os dados sendo coletados. Eu estava interessada em saber o
que ela entenderia como “condições” na minha pergunta. Ela ri. “Depende”, diz ela. Raquel
conta, por exemplo, que ter alguém para ajudar a coletar liteira de folhas não era tão
importante. No entanto, a ajuda de outra pessoa é importante para marcar as “parcelas” (áreas
quadradas marcadas com fita na floresta, onde ela vai coletar suas amostras). Pode haver
cobras. E os diferentes modos de medir as amostras de madeira morta que se está coletando
“vão afetar as medidas”. “Então, por que você não pode incluir esse tipo de informação nos
seus papers?”, pergunto. Ela ri novamente. “De jeito nenhum. Ninguém faz”, ela responde.
“Não tem lugar onde colocar esse tipo de dado… O que você vai dizer? O meu trabalho
poderia ter sido melhor?”
***
Como Marta havia me explicado um dia antes, enquanto nós esperávamos para
embarcar no avião em Manaus, a equipe do LBA que trabalha com a torre de São Gabriel e a
estação de pesquisa é parte do Projeto Fronteiras. Raquel afirma que o Projeto Fronteiras é
uma iniciativa do INPA que havia sido originalmente concebida como uma resposta ao
crescente problema de suicídio de adolescentes indígenas em São Gabriel. Aparentemente, o
LBA (especificamente Manzi e Carlos Nobre, do que eu fui dita) aproveitou a oportunidade,
financeira e logística, oferecida pela implementação do Projeto Fronteira do INPA, para
estabelecer sua própria pesquisa na área. A equipe do LBA que estou acompanhando é
formada por três grupos normalmente separados. Carlos E e Glaudecy são do Departamento
de Fisiologia das Plantas do INPA. Jair e Marta são micrometeorologistas e eu havia
conhecido ambos em Manaus. Eles são responsáveis pela instrumentação na torre, juntamente
com Flora, Mékio e Albert, “técnicos da torre” que vivem em São Gabriel. Júlio é da
Logística e veio para confirmar se a torre está estruturalmente em boas condições. Raquel e
Sandra trabalham com o departamento do LBA de Ciclos Biogeoquímicos e ambas estão
em São Gabriel aguardando nossa chegada. Chego no mesmo dia que Sandra volta para
Manaus. Raquel, Marta e Sandra têm bolsistas da Escola Agrotécnica em São Gabriel:
Michael, Danilo e Camila, respectivamente. A Escola tinha bolsas para estudantes, mas sem
orientadores para supervisioná-los, então, a escola aproximou-se do LBA naquele ano para
sugerir que o projeto assumisse os estudantes e as bolsas que vinham com eles. Raquel
também havia contratado Tony, que também vive em São Gabriel, e se revelou um
160
trabalhador inestimavelmente incansável e uma presença divertida. Em São Gabriel,
encontramos também dois membros da “2a Brigada de Infantaria de Selva”, sediada em São
Gabriel e designada para nos ajudar durante nossa estadia na selva.
Um dos objetivos gerais do LBA é o de coletar dados da “Amazônia”. Isso significa
coletar dados do maior número possível de áreas da Amazônia. de modo que torres no
Acre, Rondônia, Pará, Amazonas, Mato Grosso e Tocantins “uma rede de torres”, como
disse Marta. A possibilidade de ser bem sucedido nessa meta foi algo que discuti com vários
pesquisadores, cada um com uma opinião diferente, que variava de um otimismo estatístico a
um pessimismo benigno. No total, parece que atualmente o LBA possui 15 (embora ninguém
parecia concordar de fato sobre quantas são) torres de diferentes dimensões (uma vez que
altura da torre depende da altura da vegetação em volta dela), em diferentes estados de
conservação. A torre próxima a São Gabriel é uma das menos acessíveis e mais sujeitas a
acidentes, portanto, requer uma supervisão semanal dos “técnicos” que vivem em São
Gabriel: Flora, Mékio e Alberto. Eles são responsáveis por fazer o download dos dados da
torre semanalmente e enviá-los por email para Marta em Manaus bem como por manter o
equipamento funcionando, apesar de nenhum deles ter sido formalmente treinado como
micrometeorologista. Eles estão aprendendo na prática, mas Flora voltará para Manaus
conosco em duas semanas para fazer a prova de seleção do mestrado do LBA em “Clima e
Meio Ambiente”. Marta diz que sentirá muito a sua falta.
Carlos E, Glaudecy, Marta, Jair, Jaime e eu nos conhecemos no aeroporto de Manaus
às cinco da manhã daquele dia. Eu perguntava a Marta sobre os detalhes do projeto e
observava, a pequena e desconcertante aeronave ATR 42 em que iríamos embarcar mais
tarde. Foi quando, de repente, Jair apareceu. Ele tentava convencer a segurança do aeroporto a
nos permitir carregar para a aeronave a enorme quantidade de equipamentos que tínhamos.
Ele se juntou à nossa conversa: “a idéia do projeto é integrar”. Eles estariam estudando a
mesma área, mas com diferentes objetivos em mente. Apesar disso, “vai ter momentos de
convergência”. “É uma rede”, Marta comenta mais tarde, ao falar sobre o modo como o
Projeto Fronteiras envolve pesquisadores do LBA, INPA, PPBIO, embora ela diga, ,logo
depois, que isso não significa que não haja “alguns problemas em comunicação”: as conexões
entre os vários grupos envolvidos são “confusas”.
161
Jair, repentinamente, desaparece de novo. O problema do peso da bagagem e do
equipamento não havia sido resolvido. Jaime precisa trazer uma “catraca” “para esticar os
cabos”, uma grande ferramenta semelhante a um guincho que causa consternação entre os
funcionários do aeroporto. Marta havia tido seu alicate confiscado quando atravessou a
segurança, o que não era um bom presságio. Acabamos tendo que deixar a catraca para ser
trazida em outro vôo. Marta não conseguiu pegar de volta seu alicate. Finalmente,
embarcamos no avião e, duas horas mais tarde, tocamos o solo em São Gabriel da Cachoeira,
a 852 km de Manaus.
***
Uma ANT Deslocalizante
A Teoria Ator-Rede tornou-se muito proeminente nas últimas três décadas, como um
meio de estudar processos sociais, incluindo a produção de conhecimento científico. Foi
defendida, talvez de modo mais consistente e conhecido, por Bruno Latour, John Law e
Michel Callon, mas, certamente, aparece como um dispositivo analítico em muitos dos
múltiplos artigos e livros que emergiram a partir dos anos 80, quando “Estudos de Ciência e
Tecnologia” (Science and Technology Studies - STS) tornou-se uma área de pesquisa ainda
mais atraente e controversa. Como todos os conceitos que se tornam amplamente difundidos
na comunidade acadêmica, a noção de um “ator-rede” sofreu muitas críticas e transformações,
dúvidas foram lançadas - não apenas por Latour-, inclusive, sobre em que medida isso pode
ser chamado de “teoria” (ver Latour, 1997 e Law, 2004:159). No momento, gostaria apenas de
delinear o modo pelo qual utilizarei o conceito aqui, isto é, a forma que me parece a mais
fértil para se pensar a expedição do LBA para São Gabriel da Cachoeira. Estou ciente da
natureza presuncosa desse objetivo, especialmente se um dos princípios da ANT do Latour
(que descreverei extensivamente) é que não se pode impor categorias a priori sobre seus
“atores”. Porém, como indiquei no capítulo anterior, também estou consciente da natureza
fabricada/planejada (contrived) da minha descrição do LBA isto é, estou ciente de que é
apenas tentando estar ciente de suas próprias premissas que se tem a chance de não aplainar as
premissas, certamente diferentes, dos outros.
162
Como escreve Latour (1997), a ANT é, sobretudo, um tipo de abordagem analítica que
se auto-nega e permite a descrição de todas as formas sociais oferecidas a nós por nossos
nativos. O que deve emergir da minha descrição é, portanto, também uma justificação
implícita da minha escolha de usar a abordagem “ator-rede”, como um meio pelo qual
apreender os processos e movimentos conceituais e físicos que me pareceram serimportantes
para aqueles que estive observando e tentando entender. Como tentei demonstrar no último
capítulo, não é suficiente assumir que estamos necessariamente falando das mesmas coisas
quando Marta me diz que o projeto é uma “rede” ou quando Jair me diz que haverá momentos
de “convergência” e “integração”. Como nota Strathern: È importante quais idéias se usa
para se pensar (com) outras idéias”” (Strathern 1992a: 10 in Haraway 2000: 401).187 De fato,
espero que, ao tornar minhas noções explícitas agora, a diferença entre ambos irá revelar algo
específico do Projeto Fronteiras e a ciência que se conduz, algo que não será
completamente análogo nem às suas idéias, nem às idéias que coloco em movimento para
tentar entendê-los. A proeminência dada a essa relação ao longo da dissertação é o que deverá
permitir seu próprio movimento imprevisível. O traçado dessa dinâmica, mesmo que não
exaustiva, poderá oferecer alguns insights sobre como a própria noção de “ator-rede” pode ser
transformada depois de ser colocada para funcionar no ato da análise. De fato, a própria
noção, como pretendo demonstrar, prediz essa transformação.
Agora vou delinear o que quero dizer a esta altura com “ator-rede”. Ao longo do
capítulo, estarei recorrendo intensamente ao trabalho de Latour sobre o tema, mas também
gostaria de me referir ao trabalho de Michel Callon e à crítica de Andrew Pickering sobre a
“abordagem semiótica”, assim como pretendo tocar em outras críticas ou alternativas para a
ANT. Esta não é, de modo algum, uma revisão exaustiva, mas, talvez a impossibilidade de sê-
lo seja parte do processo do tipo de análise que estou tentando efetuar. Mais tarde irei sugerir
também que a noção de “ator-rede” não seja tomada de forma isolada uma vez que ela
também possui um lugar num tipo de rede em que transformações na significação aparecem
junto para revelar (ou não) uma coerência conceitual. Enquanto tal, a noção de “ator-rede”
pode ser usada como meio para entrar emuma discussão sobre reflexões sobre ou refrações do
mesmo tema. Esse é o tema do qual venho me aproximando ao longo da dissertação – o tema
da cumplicidade, agencement recursif”, antropologia simétrica, princípio da irredução, ou a
possibilidade analítica do humor ao invés da ironia. A aproximação que iniciei no final do
187 “It matters what ideas one uses to think other ideas (with)”
163
último capítulo entre o trabalho de Stengers e Strathern irá funcionar, no último capítulo,
como um meio pelo qual explorar a possibilidade e, mais ainda, algo da significância ou valor
das analogias para montar a lista acima, como aquela entre o “poder inventivo da ciência
moderna” (sensu Stengers), a abordagem conceitualmente bem humorada da própria análise
de Stengers e os modos pelos quais uma antropologia simétrica poderia conceber “a natureza
distintiva”188 (Strathern 1988a: 10) daqueles que estuda. O trabalho de Latour lida com essa
questão, mas de modo oblíquo. Deve-se ter em mente que o que a primeira vista parece como
uma variação sobre um tema, poderia ser, ao invés disso, uma variação de um tema. A idéia de
simetria pode ser elaborada tanto na forma como se aproxima “analiticamente” conceitos
nativos, quanto quando se aproxima conceitos nativos e exógenos. Mantendo em mente minha
ênfase no movimento analítico da própria descrição - uma aproximação e um distanciamento
que deve ser provocado e também controlado - no último capítulo eu gostaria de questionar as
analogias aqui propostas.
Acima de tudo, gostaria de deixar que os detalhes deste conceito de “ator-rede”
provenham da etnografia, então esta caracterização inicial será breve e talvez pareça
experimental. Mantendo uma idéia que toquei no último capítulo e que expandirei depois,
analisarei essa noção em termos de incertezas (um risco). Essa é a mesma estratégia que
Latour usa no Reassembling the Social (2005), um livro que se insere, em grande medida,
naquilo que escrevo (ver também Latour 2004a, por exemplo). Permanece incerto, porém, se
empregar a mesma estratégia é equivalente a realizar a mesma ação. Como argumentei, no
que parecia a proposta de uma teoria da mediação fluida e emergente, Latour parece ter ele
mesmo inevitavelmente sofrido uma purificação e estabilização, como se evidencia pelo
modo como suas idéias podem ser usadas ou pensadas . Vale notar que ele mesmo escreveu
extensivamente sobre os quatro problemas da Teoria do Ator-Rede: o “ator”, a “rede”, a
“teoria” e o hífen (ver, por exemplo, Latour, 1999b e Jensen, 2008). Meus esforços didáticos
agora, necessários para situar meu argumento, parecerão supérfluos para seus próprios
objetivos – mas isso é em si mesmo importante.
Um ator, por definição, “age”. Mas o que é ação? “Ação deve permanecer uma
surpresa, uma mediação, um evento” (Latour 2005:45)189. Ela é “deslocada” (ibid: 45) no
sentido em que é distribuída. Nunca se pode ter certeza do que está agindo quando alguém age
188 “The distinctive nature”
189 “Action should remain a surprise, a mediation, an event”
164
e não se pode pressupor que alguma única força macro-social por trás da ação, o que reduz
as especificidades de toda ação a um tipo de resíduo epistemológico. Essa abordagem
significa que o aparato da “agência”, tal como intencionalidade e identidade, é emergente no
processo de “agir”, o traçado das associações heterogêneas que constituem o “social”.190
Este processo de associação (da parte tanto do “observador” e do “observado”) é uma
“tradução/translação” (translation) que “se refere a todos os deslocamentos através de outros
atores cuja mediação é indispensável para qualquer ação ocorrer... cadeias de
tradução/translação se referem ao trabalho através do qual os atores modificam, deslocam e
traduzem seus vários e contraditórios interesses” (Latour 1999a: 311). Como escreve Callon,
“devido a uma série de deslocamentos imprevisíveis, todos os processos podem ser descritos
como uma tradução/translação e tradução/translação é o mecanismo pelo qual os mundos
social e natural progressivamente tomam forma. O resultado é uma situação em que algumas
entidades controlam outras” (1999 [1986]:81)
191
, suas identidades, intenções e definições
emergindo desse processo de tradução/translação.
A “tradução/translação” para Callon é feita de quatro diferentes movimentos – a
problematização (o questionamento inicial, estabelecendo “pontos de passagem obrigatórios”
(obligatory passage points) em qualquer rede de relações), o intéressement (as
ações/dispositivos pelos quais uma entidade tenta impor ou estabilizar outros atores invocados
pela problematização), o protocolo (a transformação estabilizadora, através do intéressement
bem sucedido, de “questões” em “afirmações”) e a mobilização (o re-agrupamento de
entidades de modo que elas sustentem ativamente a entidade que reivindica falar em seu nome
através dessas mesmas afirmações)192. Um “ator-rede”, que é constituído e constitui essa
190 “Isso [o social] não designa um domínio da realidade ou algum item em particular, mas, ao contrário, é
o nome de um movimento, um deslocamento, uma transformação, uma translação, um ‘enrolment’. É uma
associação entre entidades que não são reconhecidas de modo algum como sendo social da forma comum,
exceto no breve momento em que elas são re-embaralhadas juntas... Assim, social para ANT é o nome de um
tipo de associação momentânea que é caracterizada pelo modo como se une em novas formas. (Latour 2005:
64-65) (“It [social] does not designate a domain of reality or some particular item, but rather is the name of a
movement, a displacement, a transformation, a translation, an enrolment. It is an association between entities
which are in no way recognizable as being social in the ordinary manner, except in the brief moment when
they are reshuffled together...Thus, social, for ANT, is the name of a type of momentary association which is
characterized by the way it gathers together into new shapes.”)
191 “because of a series of unpredictable displacements, all the processes can be described as a translation”
and “translation is the mechanism by which the social and the natural worlds progressively take form. The
result is a situation where certain entities control others”
192 A implicação da natureza particularmente “política” desses movimentos será demonstrada mais a frente
no capítulo.
165
ação, é o que ele chama de “uma rede de relacionamentos restritivos” (1999 [1986]: 79)193,
que, apesar disso, pode sempre ser “traída”, isto é, as associações e tradução/translação entre
entidades enlistadas (enrolled)na construção mútua da rede pode se quebrar de maneira fácil
ou dramática durante o processo em que são feitas.
Como fazer para se distinguir “o agir” é outra incerteza. Latour escreve (alguns diriam
que de forma pouco característica) que o que a pista é o que os seus nativos dizem sobre o
que fazem (2005: 47-48) e continua sugerindo que isso significa que devemos prestar muito
atenção à “metafísica” própria dos nossos informantes, tentando assegurar que a linguagem
que escolhemos para descrevê-los é uma infra-linguagem”, ao invés de uma meta-
linguagem. Uma “infra-linguagemé um modo dos conceitos do ator serem mais fortes do
que o do analista (ibid: 30), já que ela “permanece estritamente sem significado exceto por
permitir o deslocamento de um quadro de referência para o seguinte” (ibid: 30)194. Assim,
deve-se permitir o máximo possível que as coisas falem e ajam por si mesmas, especialmente
se elas falam em termos “estranhos, barrocos e idiossincráticos” (ibid: 47)195. Devemos
formular “explicações descartáveis”196 de modo que, a cada vez que lidamos com um novo
assunto, campo ou objeto, a explicação deva ser “completamente diferente” (Latour 1988b:
174)197. O que está agindo é revelado pelo próprio processo de agir e, igualmente, o que é o
agir.
Porém, isso nos leva a outra incerteza e simultaneamente a um dos aspectos mais
controversos da ANT: o que é permitido que esses atores sejam. ANT tem sido
freqüentemente descrita, de forma crítica ou não, como uma teoria social que traz “objetos
inanimados” à discussão que se desenrola em torno da idéia de “agência”. A “socialidade” de
objetos tem sido convencionalmente vista como resultado das projeções “simbólicas”
humanas, tornando-os receptáculos mudos de significado humano. Ou, por outro lado, ignora-
se de todo sua agência ao se atribuir a eles o status ontologicamente imutável de “natural”.
Os atores-objetos da ANT198, por outro lado, participam da construção do significado. Eles
193 “Constraining network of relationships”
194 “remains strictly meaningless except for allowing displacement from one frame of reference to the next
195 “The queerest, baroque, most idiosyncratic terms”
196 “Throw-away explanations”
197 “wholly different”
198 Ou “quasi-objetos” como Latour (1993 [1991]: 55) também por vezes costuma se referir a eles, a partir
166
são “mediadoras” - entidades que adicionam algo novo e surpreendente para a ação em
oposição às “intermediárias” que servem como um tipo de condutores agenciais para outros
atores, nada mudando no mundo e nelas mesmas (2005:39). ANT traça um mundo feito de
concatenações de mediadores” (ibid: 59)199 e, ao liberar analiticamente esses actantes
(atores como mediadores) para participarem do traçado das associações quer dizer que “é
possível que existam muitas sombras metafísicas entre a causalidade completa e a inexistência
total... ANT simplesmente diz... uma ciência do social não pode nem começar se a questão de
quem e o que participa da ação não é em primeiro lugar inteiramente explorada, ainda que
isso possa significar permitir a entrada de elementos que, por falta de termo melhor, nós
chamaríamos de não-humanos(ibid: 72)200. Um ator não é “a fonte de uma ação, mas o
alvo motil de um amplo conjunto de entidades se move na direção dele” (ibid: 46)201. Isso
significa que os atores participam das redes de modos que não precisam se reduzir a noções
de causa e efeito unilinear. A tradução/translação não é o veículo relacional para a causalidade
(“este objeto inanimado é meramente um símbolo desta força social”), mas “induz dois
mediadores a coexistirem” (ibid: 108)202, uma coexistência que pode ter conseqüências
imprevisíveis e multi-direcionais. O “princípio de simetria” de Latour é inerente a esta
premissa de que tudo aquilo que age deve ter oportunidade de ter suas ações traçadas e
registradas. Nem sujeito-objeto, cultura-natureza, mente-matéria, verdade-erro, nem
tampouco Ocidente-Resto (Latour 1993 [1991]: 103) são oposições viáveis de onde se pode
começar a análise, embora, em termos teóricos, elas possam ser precipitadas no momento em
que se pára o traçado.
Embora, nesta paisagem “simétrica”, um não humano possa agir como um mediador
da mesma forma que um humano, isso não significa que eles ajam da mesma maneira: “ANT
não é, eu repito, não é, o estabelecimento de uma absurda ‘simetria entre humanos e não-
humanos’” (2005: 76)203. Nem tampouco eles agem o tempo todo. sempre
descontinuidade entre os participantes de uma rede, uma incomensurabilidade inescapável à
de Serres
199 “concatenations of mediators”
200 “there might exist many metaphysical shades between full causality and sheer inexistence… ANT
simply says…that no science of the social can even begin if the question of who and what participates in the
action is not first of all thoroughly explored, even though it might mean letting elements in which, for lack of
a better term, we would call non-human
201 “the source of an action, but the moving target of a vast array of entities moving towards it”
202 “but induces two mediators into co-existing”
203 “ANT is not, I repeat is not, the establishment of some absurd ‘symmetry between humans and non-
humans’”
167
“suave continuidade dos elementos heterogêneos” (ibid: 77)204. Uma mesa não precisa andar,
falar ou cantar para ser um ator numa rede. Mas tem que associar, mediar, traduzir,enlistar,
interessar, permitir; em suma, agir. Um objeto pode até mesmo ‘objetar’. As chamadas críticas
“humanistas” da ANT (ver, por exemplo, Vandenberghe 2002), contestam, é claro, que objetos
não podem falar ou que se deve levar em conta as macro-estruturas nas quais toda ação está
inserida; porém não estão de fato de modo algum dialogando com a ANT. A isso se soma o
fato de que essas críticas derivam de uma perspectiva sobre a ANT que pressupõe que ela é
uma “explicação” social (ver, por exemplo, Vandenberghe (2002: 51): “Da mesma forma que
as ‘explicações chegam a um fim em algum lugar (Wittgenstein,1953: 3), a rede de confusões
emaranhadas entre humanos e não-humanos não pode seguir em frente indefinidamente”205),
o que também é uma posição frágil (ver Latour, 1988b), ou, ao menos, uma posição que não é
tão simples quanto parece, como pretendemos explorar mais a frente.
É claro que alternativas à ANT que não a criticam diretamente. Jackson (2002) oferece
uma análise fenomenológica e “intersubjetiva” das maneiras em que humanos e objetos ou
tecnologia interagem. “Intersubjetividade” - evidenciada na forma como os seres humanos
falam de computadores como sendo “loucos” ou, por exemplo, a forma como órgãos
transplantados se tornam um meio de se identificar com o doador - possui um componente
antropomórfico implícito, que é a forma pela qual nós, enquanto seres humanos, lidamos com
a “ambigüidade” da existência social (ou “toda vida intersubjetiva” (ibid: 340)) “o sentido
de que nós somos às vezes atores, no controle de nossas próprias situações, e, outras vezes, à
mercê das circunstâncias, somos efetados ”” pelo “Outro” (ibid: 341)206). Pares binários
como “razão e emoção, corpo e mente, eu e outro, natureza e cultura, sujeito e objeto” são
tomados não como “ontologias em competição” (ibid: 341), mas como “estratégias
discursivas” (ibid: 341) para demarcar o Humano ou o Self do resto, ou para empregar em
termos de agitação emocional. Portanto, tal interface tecnológica é governada pelos mesmos
tipos de processos que “as visões racistas de corpos estrangeiros” e “as visões chauvinistas de
buscadores de asilo” (ibid: 338)207.
204 “the smooth continuity of heterogeneous elements”
205 “In the same way as ‘explanations come to an end somewhere’ (Wittgenstein,1953: 3), the network of
entangled confusions between humans and non humans cannot go on indefinitely
206 “all intersubjective life” (ibid: 340)) –“the sense that we are at times actors, in control of our own
situations, and at other times at the mercy of circumstances , and acted upon” by the “Other”
207 “racist views of foreign bodies” and “chauvinistic views of asylum seekers”
168
Isso está muito distante da ANT, o que, é claro, não é uma crítica. Jackson
propõe que “falar de intersubjetividade é reconhecer que objetos parecem às vezes estar
animados pela consciência e vontade humanas e os sujeitos humanos parecem às vezes serem
como objetos, tratados como se fossem meras coisas”208. A noção de “antropomorfismo”
requer um tipo de relação representacional hierárquica que justamente a ANT está tentando
eliminar como um a priori, através da noção de ‘simetria’209. Considero estranho que
Jackson se refira a uma igualdade entre todos os seres humanos em nome da experiência
enfaticamente universal da “ambigüidade intersubjetiva”, quando essa noção parece ser
derivada da filosofia (ocidental) marxista: “para refrasear a famosa formulação marxista,
podemos dizer que quando não nos sentimos existencialmente ameaçados pelas coisas, as
relações entre as coisas assumem a forma de relações entre as pessoas, mas quando nos
sentimos existencialmente ameaçados por outras pessoas, as relações entre as pessoas
assumem a forma das relações entre as coisas” (ibid: 344)210. Esta visão, é claro, assume em
certa medida que ‘coisa’ e ‘pessoa’ são categorias universais e que a relação entre elas é
sempre de exclusividade mútua. É o que faza ANT parecer fazer mais sentido à luz de minha
etnografia do que esta leitura fenomenológica-existencial da “interface homem-tecnologia”,
admito que tem tanto a ver com as minhas próprias idéias sobre a tarefa da antropologia (não
pressupor categorias universais), como pelo fato de que os pesquisadores com que trabalhei
no campo não parecerem estar sofrendo de nenhuma crise existencial por tentar negociar seu
sentido de “Ser” em relação ao “Outro”.
O que é uma rede? De certo modo, eu me precipito aqui, uma vez que já lidei
parcialmente com essa questão no capítulo anterior. Lá, eu enfatizei de forma entusiasmada a
forma como Latour faz uso da noção de ‘rede’ como uma ‘abordagem’, mais do que a
descrição de algo existente no mundo real “que teria mais ou menos o formato de pontos
208 “to speak of intersubjectivity is to recognize that objects appear sometimes to be animated by human
consciousness and will, and human subjects appear sometimes to be like objects, treated as if they were mere
things.”
209 É por isso também porque, embora pareçam convergir em muitos pontos, a teoria da agência de Gell
(1998) em Art and Agency não é tão próxima da ANT como pode parecer. Novamente, isso não é em si
mesmo uma crítica, mas a superioridade implícita dada à agência humana mascara um compromisso com a
dicotomia sujeito-objeto que deve ser questionada.
210 “to rephrase the famous Marxian formulation, we could say that when we do not feel existentially
threatened by things, relations between things assume the form of relations between persons, but when we
feel existentially threatened by other people, relations between people assume the form of relations between
things
169
interconectados” (Latour 2005:129)211. Uma rede é “um indicador da qualidade de um texto”
(ibid: 129)212, que nos permite ver se um texto é um traçado empírico fiel de uma cadeia de
ações ou traduções/translações nas quais cada ator é um mediador e não um intermediário.
Assim, o cientista social e aqueles que ele/ela estudam estão juntos na feitura do ‘social’.
Todos estamos envolvidos neste processo de “fazer rede” (embora, como veremos, mesmo
este esclarecimento possa ser em si mesmo sujeito a esclarecimentos (Jensen 2008); o que não
é surpreendente, que “essa palavra [rede] é tão ambígua, que deveríamos tê-la abandonado
muito tempo” (Latour 2005:129)213). Enquanto tal, uma rede não é um formato
específico, mas uma “ação que captura a ação”. Rede é um conceito e não uma coisa em si,
porque qualquer coisa pode ser descrita como uma rede (Latour 2005: 130). É o meio pelo
qual se pode produzir relatos de fenômenos e eventos que não cairiam convencionalmente sob
a rubrica de “redes”. Mas, ao mesmo tempo, a palavra é mantida porque alguns aspectos
do uso convencional que são úteis. As associações sendo feitas são fisicamente traçáveis;
associar requer trabalho a ser feito e traduzir deixa espaços vazios em que não há conexão.
Este último ponto pode ser estendido, de modo a demonstrar um aspecto importante da
abordagem ator-rede, que Latour chama de “plasma” (Latour 2005:241). A noção de plasma
capta o sentido de que nós não sabemos o que entre ou fora do que está associado. Não
estamos em posição de nos pronunciar prematuramente sobre este vasto ‘vazio’, nos termos
de Law (2004:117), “o que está ausente... um conjunto de padrões potenciais que zunem,
ofuscam e dançam, que são muito complicados para condensar, para tornar presente” 214.
Nós não precisamos lamentar que “a ação não seja algo que se possa somar” (Latour
2005:243)215. A ação social na ANT não está inserida numa ‘estrutura social’ pré-existente. O
‘micro’ não está dentro do ‘macro’, não apelo à transcendência e nenhuma soma pela qual
seja possível equilibrar as contas. Portanto, num sentido importante, evidencia-se que um
“ator-rede” é um caminho através do qual se pode evitar algumas dicotomias fundadoras das
ciências sociais uma rede não tem um dentro ou um fora estrutural, não possui a priori
micro-macro, nem uma estrutura pré-determinada na qual encaixar atores pré-determinados.
Nesse sentido, as respostas às minhas questões introdutórias o que é um ator? O que é uma
211 “that would have roughly the shape of interconnected points”
212 “an indicator of the quality of a text”
213 “this word [network] is so ambiguous, we should have abandoned it long ago”
214 “what is absent...a set of potential patterns that buzzes and dazzles and dances, that is too complicated
to condense, to make present”
215 “action doesn’t add up”
170
rede? – são apenas discerníveis no ato da descrição. Elas são imanentes ao processo de
análise, o qual em si mesmo está em analogia, ou deveria estar, com os processos em vias de
serem descritos. Enquanto tal, as questões são, num certo sentido, redundantes. Para retornar a
uma observação anterior, as transformações imprevisíveis que ocorrem na noção de ANT são
elas próprias partes inseparáveis da análise.
***
Um mês antes de chegarmos a São Gabriel, eu havia participado de uma das reuniões
marcadas para organizar a expedição. A reunião aconteceu no “Auditório” no Escritório em
Manaus. mencionei essa reunião no primeiro capítulo. Não participei da reunião
diretamente, mas observei algumas coisas surpreendentes. Uma dessas coisas foi que, de
repente, surgiu uma hierarquia subjacente à situação que eu não havia percebido antes.
Naquele momento, pensei que, talvez, isso acontecesse em função da forma como o ‘espaço’ é
dividido dentro do prédio do LBA. Normalmente, os distintos grupos tendem a se manter em
suas salas separadas, ‘virados de costas uns para os outros’, como diria Stengers (2000
[1993]:101). O encontro em si, unindo pessoas de salas separadas, parecia criar condições
para que se tornassem visíveis relações que antes não o eram, o que mais tarde parece mudar:
no “campo”, como veremos, não havia marcas claras de posição ou estatus que não
pudessem ser negociadas. Em outras palavras, o ato de reunir-se fora da partição staccato do
espaço do prédio foi o que me permitiu ver outras “partições” além das espaciais. Nesse
sentido, reunir-se também significava separar-se; não houve nenhum outro momento em que
vi mais de uma “sala” junta, além do horário de almoço, e nenhum outro momento em que
estive mais ciente do que estou chamado de relações “hierárquicas”. Por “hierarquia” entendo,
de modo bem convencional, uma diferença constituída por uma interação governada por uma
relação inferior-superior. Não preciso complexificar esse conceito uma vez que ele é tirado
explicitamente do LBA, tal como apresentado no seu website (descrito no primeiro capítulo) –
porque desejo enfatizar que havia uma diferença. Isso intensificou a minha confusão em
relação à estrutura do LBA, que vinha parecendo cada vez mais fluido à medida que eu
navegava pelos websites e artigos formais. Esta reunião pareceu ser uma instanciação da
imagem que o LBA apresenta de si mesmo no website, nas quais relações de superioridade e
inferioridade eram tornadas visíveis.
171
Roberto, um fisiologista de plantas, veio do seu escritório no INPA para o encontro
com dois jovens estudantes de mestrado. No início, assuntos “logísticos” foram discutidos:
onde os membros do grupo iriam dormir, na Escola Agrotécnica ou nas barracas do exército
em São Gabriel; o tempo e os preços dos vôos; a documentação necessária de cada membro
do grupo para permitir o acesso ao Parque Nacional (estavam em questão preocupações
militares com o policiamento da fronteira, áreas indígenas demarcadas e conservação
ecológica); os veículos necessários para se chegar à estação de pesquisa, a importância de se
ter um motorista e quanto pagá-lo, as dificuldades de se manter um carro em bom estado no
clima da Amazônia, o preço da gasolina; se as baterias haviam chegado de barco ou não (elas
foram mandadas mais tarde). Ficou evidente a quantidade de trabalho sendo feita e ainda a ser
feita para que fosse possívellevar o grupo a São Gabriel.
Cada grupo, então, apresentou o trabalho que havia terminado na estação de
pesquisa (já que também houve uma expedição no ano anterior) e o que eles planejavam
resolver ou realizar nesta viagem iminente. As apresentações eram direcionadas aos outros
membros do grupo e assumiram o que eu entendi como um baixo nível de compreensão,
explicando-se premissas teóricas básicas e sem se aprofundar muito em nada. Elas serviam,
claramente, apenas para se dar uma idéia do trabalho que cada grupo estaria fazendo e não
pareciam estar de modo algum integradas. Roberto interrompeu as apresentações muitas vezes
com perguntas e comentários e, então, saiu abruptamente. O power point de Marta
documentava tudo o que havia de errado com o equipamento na torre “não tem muita coisa,
problemas”, ela disse, e Jair a corrigiu, sorrindo: “desafios”. Os dois jovens estudantes de
mestrado em Fisiologistas de Plantas apresentaram um power point demonstrando como eles
iriam tentar chegar à “taxa de fotossíntese”, usando um tipo específico de IRGA. Raquel
mostrou algumas imagens de satélite de onde suas “parcelas” estavam em relação à torre e
falou brevemente sobre a topologia da paisagem, mencionando que na última viagem no ano
anterior, quando ela tentou medir suas “parcelas”, a falta de um carro a impediu de se afastar
mais do lugar onde ela finalmente teve de marcá-las. Apesar da “ciência” e da “logística”
terem sido consideradas separadamente na reunião, em momentos como este, ambas estavam
claramente em relação e isso era reconhecido. Como disse Roberto, “as pessoas não entendem
essa coisa de pesquisa na Amazônia…precisa de carro, se chover…”.
172
Embora as apresentações tenham sido separadas, na discussão que se seguiu ficou
evidente que Roberto e Jair estavam se dirigindo a todo o grupo a partir de posições de
superioridade. Isto é, eles pediam atenção e falavam com autoridade. Roberto era
especialmente proeminente nesse sentido. Era chamado de “chefe” e mais de uma vez
interrompeu alguém para esclarecer algum ponto. As observações que ele fez indicavam em
geral uma posição exclusiva de conhecimento e eram tanto sobre a “ciência” quanto sobre a
“logística”. A observação citada - “as pessoas não entendem essa coisa de pesquisa na
Amazônia…precisa de carro, se chover…” - não apenas diz algo sobre a relação de
dependência entre a “ciência” sendo feita e a logística funcionando, mas também implica, é
claro, que ao menos “uma pessoa” entende o que é fazer pesquisa na Amazônia. Quando
Roberto saiu, todos visivelmente relaxaram. Manzi e Flavio Luizão, os membros claramente
mais seniors(experientes) da equipe, não apareceram na reunião.
Menciono esse encontro por diversas razões. A primeira é para ilustrar o quão
rapidamente as relações podem aparecer e desaparecer ou, como parecem ser substituídas. A
convergência do grupo e o evento do encontro permitiram que relações previamente invisíveis
para mim se tornassem aparentes. Embora possa haver uma hierarquia formal inscrita na
autoria dos papers publicados ou no modo como o LBA se apresenta para aqueles que não
trabalham lá, essa hierarquia foi materializada somente em alguns momentos bem específicos
durante o tempo em que passei com os pesquisadores. A forma que o LBA assume parecia
mudar constantemente, dependendo de onde eu estava e com quem eu estava falando.
mencionei isso no primeiro capítulo, sugerindo que essa mudança de forma confunde a
aplicação não-problemática das noções usuais de partes e todos e pontos de vista. Ao invés
disso, sugiro, a partir da aplicação de Wagner e Strathern da noção matemática de fractal, que
uma metáfora de movimento, derivada da forma como os dados do LBA circulam e se
transformam, é a maneira mais apropriada para se compreender e descrever o LBA.
Gostaria de me aprofundar nisso aqui, seguindo uma direção ligeiramente
diferente. Quero explorar em que medida esta observação parece ser parte de um fenômeno
mais amplo que observei no meu trabalho com o LBA, em que o espaço ocupado, as
condições de vida, o ‘meio ambiente’ mudam, assim como as relações que estruturam o
conhecimento sendo produzido; e essa mudança no ‘espaço’ não precisa ser tão radical quanto
nós podemos imaginar. De fato, o que constitui uma mudança no espaço pode em si mesmo
173
ser algo emergente da configuração particular do evento. Isso quer dizer que o que nós
convencionalmente chamamos “espaço” e “prática” pode ter uma relação que é mutuamente
constitutiva e mutualmente restritiva. O que pode ser considerado uma refração temporal
desta idéia enquanto uma “agência temporariamente emergente”216 é algo que Pickering
(1999 [1993]) discute e a que eu vou voltar um pouco mais à frente.
O papel que a mudança na locação ou no espaço pode desempenhar é também
sugerido por outro aspecto da reunião. Dado o papel dominante desempenhado por Roberto
na reunião, considerei estranho ele não viajar para o campo. Ao invés disso, ele pediu a Carlos
Eduardo e Glaudecy, ambos formalmente afiliados ao INPA e nenhum dos dois presentes na
reunião, para coletar os dados necessários para o seu projeto. Como me disseram numa
conversa, pesquisadores que não são “o tipo de pesquisador que faz trabalho de campo”.
Ouvi esse tipo de observação diversas vezes de diferentes pessoas, sempre se referindo a
membros mais seniors(experientes) do LBA. Sempre foram ditas por alguém no campo, isto
é, na floresta (isto é, por alguém que “faz o trabalho de campo”). Deixando de lado os
julgamentos pessoais ligados a tais observações, é intrigante que houvesse essa clara
diferença, demarcada por aqueles pesquisadores com que falei, entre aqueles que ficam no
escritório e aqueles que vão para o campo. Falaram-me que Manzi nunca havia visto a torre
de São Gabriel. Esta viagem à torre foi planejada nas confortáveis instalações de uma sala
com ar-condicionado em Manaus e se baseava na expertise e no conhecimento de
pesquisadores que nunca foram nem nunca iriam ao campo de pesquisa em questão. Nesse
sentido, a ação estava certamente deslocada.
Dentro da sala da reunião vários elementos díspares encontravam-se unidos: carros,
aviões, documentos, fotossíntese, equipamento técnico, imagens de satélite. Planos foram
feitos e entidades foram colocadas em contato com outras entidades. Essa sala se tornou um
momento de aglutinação, o que Callon chamaria de um momento em que a problematização
era forjada, descrevendo “um sistema de alianças ou associações entre entidades, por meio do
qual se definem a identidade e o que eles ‘querem’” (Callon 1999 [1986]: 70)217. Um
momento em que pontos de passagem obrigatórios eram instanciados, uma vez que as
entidades se tornaram indispensáveis para os desejos daqueles envolvidos. Porém, como
216 “temporally emergent agency”
217 “a system of alliances, or associations, between entities, thereby defining the identity and what they
“want””
174
ficaria claro e como me disseram mais de uma vez, os pesquisadores, “tudo muda em campo”
e “aqui no campo as relações são diferentes”.
Uma das implicações disso é que a topologia específica de tal rede depende de como
as relações são atuadas, estabelecidas ou possibilitadas entre os próprios elementos. A reunião
no escritório de São Gabriel juntava entidades que permitiam que o projeto fosse colocado em
ação, mas ninguém na reunião falou do “sistema econômico do Brasil” ou “o sistema político
do Estado-Nação”. As entidades apareceram de um modo mais simples: as imagens de satélite
confirmavam a viabilidade da topologia da área; burocratas em Brasília permitiam que o
projeto seguisse adiante; a tecnologia de power point permitia a efetuação do fluxo de
informações entre pesquisadores; a torre, por não se comportar da forma como deveria,
prontificava os pesquisadores a ir examiná-la em primeiro lugar. Não apenas os
pesquisadores, mas essas e muitas outras entidades estavam todas envolvidas na reunião.
Eram todos atores e o que os tornava atores não era um “ether” (Latour 1993 [1991])
subjacente de uma força mais ampla – social, política ou econômica (embora certamente esses
fatores estivessem possivelmente agindo também; por não tê-los encontrado diretamente, não
posso dar testemunho por eles) – mas o que os permitia ser atores eram outros atores. Isso, por
sua vez, implica que não é que um intermediário se torne um mediador para, então, afetar
aqueles em seu entorno, mas, sim, que ele se torna um mediador por causa dos atores em seu
entorno. Isso é permitido por sua posição e relação na rede. Como Waldby escreve sobre a
“semiótica material” de Latour: “distinções não possuem uma estabilidade positiva, mas,
chega-se a eles através da relatividade e qualificação introduzidas pelo jogo/pela atuação de
todos os outros termos no sistema em que operam. Sistemas de diferença são, portanto,
sempre relacionais. Entidades e termos aparentemente estáveis podem deslizar e passar umas
por cima das outras, dispersarem-se e comporem-se de acordo com a dinâmica das redes de
significado em que se localizam”(2000: 469)218.
A denominação dos atores enquanto tais também implica que, talvez, faça
pouco sentido prender-se a definições predeterminadas do que seja “científico” e o que seja
“não-científico”. Como o próprio Roberto aponta, sem o carro, nenhuma “ciência” poderia ser
218 “distinctions do not have a positive stability, but are arrived at through the relativity and qualification
introduced by the play of all the other terms in the system in which they operate. Systems of difference are
hence always relational. Apparently stable entities and terms can be shown to slip and slide over each other,
to disperse and compose according to the dynamics of the meaning networks in which they are located.
175
feita. As regras de segurança do aeroporto agem de modo a impedir que a “catraca” embarque
no avião, da mesma forma que faz com o alicate de unha. Na Amazônia, a chuva afeta o que
você pode e não pode conseguir, independentemente do que é planejado. Todas essas
entidades agem dentro da rede e agem para construir a rede. De dentro da ciência, o que é
ciência e o que não é torna-se estranhamente difícil de discernir. Porém, essa observação é
complicada pelo fato de que, se indagados, os pesquisadores diriam que estão fazendo ciência
e que há, sim, uma diferença. Como entender essa dissonância é algo que vou tentar descobrir
ao longo deste capítulo.
Que “tudo muda no campo” é uma formulação explícita de uma das sensações que eu
tentei trazer à tona através da minha descrição da nossa caminhada até o local do
acampamento. O contraste entre os laboratórios e escritórios no prédio do LBA (que descrevo
no primeiro capítulo) e os locais de pesquisa é impressionante. O local do acampamento no
Parque Nacional próximo a São Gabriel que era nossa base durante a semana localizava-se a
80m da torre e era feito de duas estruturas temporárias feitas de estacas e coberturas de
plástico. Uma delas era a área de cozinhar e comer. A outra estrutura oposta à área da cozinha
era a área de dormir, onde nossas redes eram penduradas e nossa bagagem e equipamentos
armazenados. Ambas as áreas alagavam de modo alarmante quando chovia, incitando
esforços frenéticos para cavar canais de drenagem por parte daqueles que ficavam próximos
às beiras das tendas. Essas estruturas temporárias haviam sido erguidas, antes de nossa
chegada, pelo Sr. Lima, o botânico do INPA que viera fazer um inventário das espécies de
árvores na área e que havia partido com Sandra para voltar para Manaus quando cheguei.
Danilo, Michael, Tony, o capitão e o soldado do exército e Jair amarraram suas redes entre as
árvores atrás da área de cozinha, cobertos por lonas impermeáveis que ofereciam pouca
proteção quando chovia torrencialmente. Chove, pelo menos, duas vezes por dia diariamente.
Algumas vezes, são chuvas muito fortes, normalmente, no meio da noite (quando o abrigo é
invadido por enormes aranhas procurando refúgio), às vezes, o dia inteiro, às vezes, um
pouco ou, pelo menos, o que nos atingia no solo parecia pouco. Se você é pego por uma
tempestade quando está no alto da torre, você se conta do quão pouco da água que toca o
alto das árvores consegue chegar até o chão. No chão, você ouve a chuva atingir as folhas 30
segundos antes de atingir você.
A área da cozinha era de aproximadamente 8x4 metros e Dona Virgínia, nossa
176
cozinheira, também de São Gabriel, tinha um pequeno fogão a gás e uma mesa improvisada
onde ela cozinhava com maestria arroz, feijão, massa e (às vezes) carne seca que nós
tínhamos toda noite no jantar. Acordávamos todos os dias entre 6h30 e 7h da manhã, quando a
luz finalmente atingia o solo da floresta. Vestíamo-nos rapidamente e arrastávamo-nos para a
área da cozinha, onde Dona Virgínia já estava de pé, preparando café e canjica à luz de velas e
coletando água do igarapé. Comíamos biscoitos e canjica, bebíamos um café extremamente
doce e, então, o grupo dividia-se para começar o dia de trabalho. Raquel seguia para suas
“parcelas”, as áreas que ela havia marcado na floresta, que se espalham a até dois quilômetros
do acampamento, levando Tony, Michael e o Capitão com ela; Júlio começava a se mover
com suas rodas de cabos que seguram a torre ao chão; Jair, Marta, Flora e Mékio, junto com
Alberto e Danilo, ficavam com a torre; e Carlos E e Glaudecy começavam a preparar seus
equipamentos perto da torre e iniciavam os procedimentos abrindo um enorme guarda-sol de
praia listrado para proteger o IRGA caso começasse a chover. Tentei, dentro do possível,
passar o mesmo tempo com cada grupo, embora tenha sido difícil e de forma não seqüencial –
eu alternava entre eles, retomando discussões prévias onde achava que precisava, mudando de
grupo quando eles voltavam ao acampamento ou quando anoitecia e eles estavam se
preparando para o próximo dia. O gerador começava a funcionar às seis da tarde, embora
pudesse ser ligado durante o dia para recarregar laptops. O grupo reunia-se à noite, por volta
das sete horas, para comer, trocar estórias e conversar, quase nunca sobre trabalho, às vezes,
sobre os procedimentos do dia seguinte, na maior parte das vezes, conversas informais.
Latour e Woolgar descrevem o que chamam de conversas “microprocessuais” como sendo
muito importantes na seleção e subseqüente estabilização das afirmações e fatos científicos
(1986 [1979]: 151-186). Por sua banalidade, tais conversas mostram que “o processo
supostamente misterioso empregado pelos cientistas não é surpreendentemente diferente
daquelas técnicas empregadas para se conseguir o que se quer nos encontros da vida diária”
(Latour e Woolgar 1986 [1979]:166)219. Essas conversas específicas que tínhamos depois do
cair da noite no acampamento raramente eram sobre trabalho e, é verdade, não eram
surpreendentes de modo algum, embora eu tire conclusões ligeiramente diferentes de tal
observação. É possível que a qualidade das conversas diárias sobressaiam-se mais contra o
fundo estéril e controlado do laboratório que sintetiza proteínas. Contra o fundo de floresta
aqui, as conversas no final do dia centram-se muito em torno do cansaço que se sente, o
desconforto dos carrapatos ou dos mosquitos mordiscando você, as expectativas sobre o dia
219 “the mysterious thought process employed by scientists is not strikingly different from those techniques
employed to muddle through daily life encounters”
177
seguinte e a perspectiva de se esticar na sua rede. Piadas são contadas. Isso não quer dizer que
essas conversas informais não sejam também parte da “ciência em ação”; talvez seja que,
dependendo do plano de fundo, diferentes coisas venham para o primeiro plano. Essas
conversas eram certamente diferentes daquelas que ouvi nos escritórios em Manaus, por
exemplo, onde não ouvi ninguém reclamar que sentia falta de comer carne ou que havia sido
atacado por abelhas. O gerador é desligado às 9h30 da noite.
Comparado com os laboratórios ou escritórios pristinos dos modeladores, o local de
campo em São Gabriel parece completamente diferente. Chegar lá é um negócio arriscado e aí
permanecer é fisicamente exigente. O modo como o campo “interfere” quando os
micrometeorologistas de São Gabriel “fazem ciência” parece ser diferente do modo em que
interfere, imprevisivelmente, quando os modeladores “fazem ciência”. Nesse último caso,
como vimos, o mundo é posto no modelo em forma de dado e, às vezes, empina sua cabeça
sob a forma de “resultados caóticos”, resultados sobre os quais o modelador não tem controle.
Para os pesquisadores que descrevo neste capítulo, o mundo toma diferentes formas, como
veremos. Ao mesmo tempo, todos os pesquisadores, do modelador equipado com a mais alta
tecnologia computacional no laboratório com ar-condicionado, ao biólogo no meio da selva
com nada mais do que papel, lápis e uma fita métrica, todos estão “fazendo ciência” e todos se
definem como sendo parte do LBA.
***
Na minha explicação sobre a “teoria ator-rede”, o papel desses processos de
tradução/translação (translation) é, por um lado, permitir que a “problematização” (por
exemplo, “como fazer o equipamento da torre funcionar novamente?”) seja sustentada, de
forma bem sucedida, por aqueles que têm ‘interesse’. Assim, todas as entidades envolvidas no
começo, no escritório e na reunião, precisam adequar-se às identidades atribuídas a elas,
naquele momento, para o plano funcionar, para o projeto ser um sucesso, na medida em que o
sucesso do projeto também é definido naquele momento. Como veremos, ambos parecem
mudar constantemente.
Falávamos sobre os problemas com os equipamentos da torre enquanto almoçávamos
em São Gabriel, à beira do rio, logo antes de sair da cidade em direção à torre. A viagem à
178
torre, em São Gabriel, foi motivada, em parte, pelo fato de que a torre não estava se
comportando bem, isto é, os dados que estava produzindo eram “misteriosos”, não se
adequavam aos padrões fornecidos pela literatura micrometeorológica, eram “impossíveis”.
“As coisas têm que bater”, diz Jair, referindo-se às discrepâncias entre os vários tipos de
dados que o equipamento da torre acumula, diariamente,em grande quantidade - o
anemômetro sônico, por exemplo, registrava a direção dos ventos em três dimensões a cada
dez segundos. Os dados de fluxo de CO2, os dados da umidade do ar, os dados da temperatura
do ar, os dados da pressão, os dados da velocidade dos ventos, os dados do solo eles todos
têm que se conformar não apenas a certas tendências micrometeorológicas conhecidas para a
região, como também devem adequar-se uns aos outros. Jair suspeita que a razão pela qual os
dados não estão batendo é uma das seguintes: o “equipamento está descalibrado” (e, portanto,
está dando sistematicamente a informação errada), “ou tem espécies não representativas...” (a
área em que a torre está não é ‘representativa’, então, os dados estão sofrendo um tipo de ardil
estatístico); “ou um erro na medida” (causado pelo equipamento que não funciona); “ou
novas perguntas” (como ele me disse enfaticamente mais tarde na viagem: você sempre tem
que estar preparado para estar errado). “Você sempre tem a possibilidade de novas perguntas;
tem que pensar do ponto de vista macro”, explica Jair. “Você junta os dados e o conjunto.
Se você tem certeza…. pode ser verdade, aí você vê se isso se repete”. Novamente, vemos um
número possível de entidades sendo “interessadaspelas observações que Jair fez para mim.
Elas serão ou não mantidas quando ele vier testá-las na torre, no campo. Como a explicação
em power point da Marta, essas são formas purificadas dos problemas. Isso fica claro quando
chegamos à torre.
***
Os Micrometereologistas e o Real Real Real
179
“99% do tempo é consertando”, diz Jair. “Nada acontece como planejado, foram três
meses planejando”, ele suspira, “só para consertar o programa de computador”. Jair, Marta,
Flora e eu estamos sentados na torre, 20m acima do solo, comprimidos entre um laptop e a
caixa datalogger do AWS (Automatic Weather System - Sistema de Tempo Automático),
tentando ver se o programa no computador é compatível com o programa no datalogger. Cada
nível da torre oferece espaço suficiente para três pessoas sentarem mais ou menos
comfortavelmente e as outras três encontram um lugar na escada de degraus que conecta cada
nível, ou, no caso de Mékio, pendurado precariamente no vel imediatamente superior. Era o
final de uma longa tarde que passamos tentando entender porque o sensor da umidade do solo
estava se comportando misteriosamente. Havia vários problemas com o equipamento da torre
que a equipe de micrometeorologia tinha que tentar resolver durante a semana que passamos
lá. O datalogger CR23-X que armazena os dados de solo não permitia leituras desde 4 de abril
de 2007 (quase quatro meses); a bateria que faz funcionar o equipamento da torre não ficava
carregada durante o tempo que deveria e o Licor era descalibrado a cada vez que a bateria se
descarregava inesperadamente; o CIRAS mostrava “pouca variação” (comparada com a
literatura e com leituras prévias); o barômetro fornecialeituras significativamente baixas,
comparadas com o que é esperado, assim como os sensores de umidade do solo e temperatura
do ar. O sensor de radiação tinha que ser trocado. Um dos copos do anenômetro estava
“travando”, mas não se podia fazer nada, que não havia outro disponível para substituí-lo.
Tudo isso havia sido indicado por Marta antes de chegarmos, representado graficamente na
apresentação de power point durante a reunião que mencionei e, em certa medida,
identificado. Ao invés de serem o ponto final desta rede particular, essas formas “purificadas”,
separadas do seu referente, estavam no começo da nossa expedição. Voltamos para a torre
exatamente para descobrir esse referente.
Agora que estamos lá, a bagunça (messiness) é muito aparente. Informações estão
sendo adicionadas e subtraídas dos gráficos e diagramas que Marta nos mostrou em Manaus.
Comparamos a seqüência intrincada de cabos e quais conectam o datalogger aos sensores com
as seqüências que o computador nos indica. Nós sabíamos, em Manaus, que os dados não
estavam “certos” e uma das razões poderia ser o conjunto de conexões que estamos olhando
agora. O resultado dessa comparação irá, idealmente, subtrair uma possível causa de erro do
quadro que tínhamos em Manaus. Mas para que isso seja possível, deve ser adicionado um
certo número de elementos diferentes. A equipe trouxe consigo o computador, com sua carga
180
de informações; o conhecimento dos dataloggers tem que ser discutido, assim como a
possibilidade dos programas de computador estarem desatualizados. Jair me explica que
“cada um tem uma opinião, mas tem que saber qual é a opinião correta”. Observo que,
coerentemente, parece que a opinião dele é estabelecida como a correta. Ele cita outra
pesquisa, seu tom de voz, seu trabalho pessoal prévio - todos esses elementos sobre sua
identidade são trazidos à baila no processo de averiguar o que está levando o sensor a
produzir os números “errados”. Os microprocessos de Latour e Woolgar brotam à minha
mente. Embora não tenham aparecido de forma particularmente evidente como “atores”
durante as conversas das noites, esses elementos tornaram-se mais óbvios como participantes
ativos no trabalho dos micrometeorologistas na torre, onde Jair assume o controle da situação
ao negociar sua capacidade para fazê-lo.
Embora tenhamos passado a tarde na torre, a manhã foi dedicada a tentar criar um
espaço estéril para abrir o Licor, olhar por dentro e limpá-lo. Jair terminou por acortinar
algumas redes de mosquito em um canto do abrigo de dormir: “estamos montando um
laboratório”, ele me diz. Eles abrem o Licor, mas descobrem que têm as ferramentas erradas
para abrir os compartimentos internos e que está “faltando filtros”. Eles discutem se poderiam
usar um substituto para o tubo de plástico caso o removessem, mas decidem que não, “não
pode substituir; pode jogar carbono”. Os quatro estão agachados dentro do laboratório de
plástico improvisado, espalmando qualquer inseto que consegue entrar. Jair ensina Flora e
Mékio sobre o funcionamento interno do Licor, enquanto o desmonta. Decide-se que Marta e
Flora terão de levá-lo de volta ao laboratório em São Gabriel e ver se podem limpar lá,
“porque aqui tem muito ruído”, diz Flora. muita interferência para o trabalho delicado que
precisa ser feito para limpar e checar este equipamento temperamental. Parece muito fora do
lugar aqui, em meio à lama e aos insetos. Mesmo o repelente de mosquito que usamos, feito
de petróleo, poderia corroer o tubo sem que nos déssemos conta. Conhecimento especializado
é obviamente necessário aqui e Jair está partilhando-o com Flora e Mékio da mesma forma
como ele aprendeu, como ele me disse, “na prática, durante minha dissertação”. Marta
aprendeu sobre Licors nos quatro meses em que ela passou trabalhando com Tota em Manaus,
quando ela chegou, no ano anterior, antes de assumir a responsabilidade pela torre aqui em
São Gabriel. Carlos E contou-me a mesma coisa ele aprendeu como usar o IRGA, que é
usado para medir as variáveis fotossintéticas, durante sua dissertação e a razão de ele estar na
viagem agora é que um número limitado de pessoas que sabem como utilizá-lo. O
181
conhecimento que é posto em ação sobre os problemas micrometeorológicos aqui são também
específicos e especializados e, no entanto, Marta também me diz que cada um precisa saber
algo, mas não tudo. Colaboração e negociação são visíveis, há tentativas conjuntas e consertos
feitos de forma coletiva, não apenas entre pessoas.
Quando se decide que nada mais pode ser feito com o Licor por enquanto, Marta
revela sua preocupação em relação ao sensor de temperatura de ar, que está mostrando leituras
inesperadas. Marta desenha rapidamente um gráfico para mostrar como ele parece estar errado
e Jair diz “pode ser o datalogger também”. Flora menciona que Manzi havia falado sobre o
mesmo padrão gráfico e Marta a corrige, dizendo que ele estava se referindo à umidade. A
pequena discussão prossegue. Decide-se que se irá lidar com o sensor de temperatura somente
após o sensor de umidade do solo. uma constante negociação mútua acontecendo, uma
série de sugestões, julgamentos e opiniões sendo partilhadas no grupo, para se averiguar quem
tem a “opinião” correta e a palavra final, neste caso, provém do próprio equipamento. Deste
modo, os próprios instrumentos também falam com os pesquisadores. Flora e Mékio estão
aprendendo com Jair e Marta. Flora está anotando tudo em um notebook e pede para eu tirar
fotos de modo que ela e Mékio possam estudá-las quando Jair e Marta não estiverem lá.
Porém, Jair e Marta também estão aprendendo. coisas desconhecidas para eles aqui e eles
estão atentos às mensagens do equipamento, da mesma forma que Flora está atenta às suas
notas. Flora me diz “eu não posso deixar de entender nada”, assim como Jair e Marta. O
equipamento possui uma posição definitivamente ativa e seu comportamento é
“surpreendente” e “misterioso”. Os modos como os dados e os equipamentos que os
produzem são descritos para mim são sempre nesses termos: surpreendente, inesperado,
anômalo, excepcional, misterioso. O sensor de umidade do solo tem que ser trocadoporque os
dados que ele está fornecendo “não corresponde ao esperado”: os dados enviados para
Manaus nos últimos poucos meses têm sido surpreendentemente baixos. Não estão dizendo o
que se espera que digam. Como Marta disse: “é horrível, porque você não confia nos dados”.
Um dos aspectos cruciais de se reformular (ou, como Latour diria, “se desviar”-
bypassing) a dicotomia sujeito-objeto é que “humanos e não humanos... podem trocar
propriedades” (Latour 2004a:61)220, enquanto sujeito e objeto não podem. Latour usa esta
220 “humans and nonhumans…can exchange properties
182
noção para mostrar como todos os seres em qualquer rede podem ter “vontade, liberdade,
discurso e existência real” (ibid: 62)221. No capítulo anterior, vimos como isso esclarece o
modo como a realidade é uma conseqüência dos processos em rede, não uma conclusão pre-
definida. No exemplo que tomei de Latour, tanto Pasteur como o fermento trabalham duro
para fazer o fermento “existir” Pasteur organizando os ensaios experimentais para
“interessar” seus colegas cientistas e o fermento ao atuar para eles “a extensão das
associações e a estabilidade das conexões por várias substituições e mudanças de pontos de
vista constituem em grande medida aquilo que entendemos como existência e realidade”
(Latour 1999a: 164)222.
Esse intercâmbio de propriedades também abre uma passagem analítica aqui para se
examinar como os chamados “objetos mudos” (dentro da matriz tradicional sujeito-objeto)
podem ser “misteriosos” e “surpreendentes” e como enquanto micrometeorologista você pode
confiar neles ou não. Você confia ou não naquilo que eles dizem para você. Isto é, esses não-
humanos possuem a capacidade de falar, de entrar na discussão não apenas enquanto tema da
discussão, mas enquanto participantes. Mas isso não quer dizer que os objetos falem de um
modo convencional não por serem receptáculos mudos, mas porque “nenhum ser, nem
mesmo os humanos, falam por si mesmos, mas sempre através de alguma coisa ou de
alguém(Latour 2004a:68)223. Desse modo, da mesma forma que o agir é distribuído e a
ação é deslocada, falar também o é; falar depende de muitas outras entidades, é incerto, é
emergente. Isso não significa que alguma entidade não está agindo ou não está falando, mas
que ação e discurso são atividades questionáveis e incertas e, por isso, demandam uma
investigação completa. No que diz respeito à prática científica, toda “disciplina científica...
pode se definir como um mecanismo complexo para atribuir aos mundos a capacidade de
escrever ou falar, um modo geral de alfabetizar entidades mudas” (ibid: 66)224. Ao invés de
matters of fact”, controvérsias estabelecidas, nós temos matters of concern”, que provocam
discurso e discussão, causam problemas e levantam objeções.
Então, como o sensor de umidade “fala” ou como se faz ele falar para os
221 “will, freedom, speech, and real existence”
222 “the length of associations, and the stability of the connections through various substitutions and shifts
in points of view make for a great deal of what we mean by existence and reality”
223 “no being, not even humans, speak on their own, but always through something or someone else
224 “scientific discipline…can define itself as a complex mechanism for giving worlds the capacity to write
or speak, as a general way of making mute entities literate.”
183
pesquisadores? O sensor em si mesmo é uma “sonda perfil” uma sonda preta de um metro
com pequenos sensores de umidade a 5, 10, 20, 40, 60 e 100 centímetros da superfície.
Pergunto o que faz os sensores funcionarem e Jair me diz que “o que mede é a
microvoltagem”. Quanto maior a porcentagem de água no solo, mais condutor ele será para a
corrente, passando pelos sensores, isto é, mais ou menos corrente passará através dele. Isso
fornece a medida da percentagem de água que está no solo, a partir da qual Jair explica que
ocorre a “conversão” daquilo “que ele medindo para aquilo que o pesquisador quer saber”.
Ou seja, a corrente elétrica tem que ser feita falar algo específico. A corrente elétrica é lida
pelo sensor de solo, que a transmite como um número para o datalogger, onde ela permanece
como um número esperando ser downloaded, enviado para Manaus, uploaded em um
programa de excel e transformado através de uma série de equações em um número que fala,
não sobre eletricidade, mas sobre percentagem de água, que será, então, levado e feito falar
sobre ciclo de carbono, conteúdo aquoso ou absorção de nutriente.
Esse processo de conversão de milivolts à umidade e, então, à dinâmica do carbono é um
exemplo dos tipos de “movimentos” de conversão ou transformações que Latour discute na
Esperança de Pandora, através dos quais a “terra local” é transformada em conhecimento
global, através de “uma série regulada de transformações, transmutações e
traduções/translações” (1999a :58), parte da “tarefa prática de abstração e do que significa
carregar uma afirmação com um estado das coisas” (ibid:58)225. É esse processo de inscrição
que o próprio Latour nos incita a tentar captar em palavras “em science studies, somos
ambidestros: focamos a atenção do leitor neste híbrido, neste momento de substituição, no
momento específico em que o futuro signo é abstraído do solo” (ibid: 59)226. Isto é, isso é
possível na medida em que o equipamento esteja funcionando. Quando não está, como é o
caso dos equipamentos na torre em São Gabriel, nós somos lembrados de modo inevitável que
o equipamento possui um papel ativo e vocal neste processo de “abstração”, e o trabalho do
micrometeorologista concentra-se, exatamente, nos momentos em que o equipamento não diz
o que é suposto dizer. Não é tanto que o equipamento tenha parado de falar; antes, é aquilo
que ele está falando que é “misterioso”.
225 “a regulated series of transformations, transmutations and translations” part of the “practical task of
abstraction, and what it means to load a state of affairs into a statement”
226 “in science studies, we are ambidextrous: we focus the readers attention on this hybrid, on this
moment of substitution, the very moment when the future sign is abstracted from the soil”
184
Trazemos um novo sensor do INPE e levaremos o velho para ser calibrado no
escritório do LBA. Vou explorar mais detalhadamente o que está envolvido na calibração um
pouco mais à frente. Porém, antes de voltar para Manaus, os micrometeorologistas querem
estar seguros em relação à causa do corte na comunicação e tentam, então, resolver o mistério.
Pode nem mesmo ser o sensor, embora esteja na época de ser calibrado – cada sensor deve ser
calibrado a cada dois anos, diz Jair. O sensor é substituído, mas não antes de efetuar o
download das últimas leituras que ele enviou ao datalogger “para comparar o antes e o
depois”. Esperamos. As leituras ainda estão muito baixas. A equipe está atordoada. Jair
começa a mexer na conexão de cabos que conecta a torre ao datalogger no solo. Marta senta
em frente ao datalogger do solo, esperando para ver se as leituras fazem algum sentido. Jair
descobre que a caixa de cabos está furada e que entrou água dentro do cabo “tá tudo
oxidado” – ele terá que cortar fora a parte enferrujada, soldar os cabos juntos de novo e depois
selá-los com fita isolante. Em grandes distâncias, os cabos usados para conectar os sensores
aos dataloggers e aos computadores inevitavelmente perdem informações. De volta a Manaus,
a equipe do LBA-DIS trabalha em uma conexão de internet que permitirá que os dados sejam
lidos em “tempo real” uma conexão sem fio para o datalogger, dispensando a necessidade
de cabos e downloads semanais, permitindo que seja percebido, imediatamente, se algum
erro ou anomalia nos dados. Como Marta havia comentado, em relação a São Gabriel, ela
recebe dados que estão pelo menos uma semana atrasados e esse intervalo de tempo significa
que os erros se “acumulam”. Quando o conjunto de dados semanais chega a ela, o erro já está
infiltrado. Mas esta ligação de internet é ainda um trabalho em progresso, algo para o futuro.
O cabo que conecta o datalogger ao sensor não é longo o suficiente para sofrer do que
sabemos ser perda de informação. Sob a torre de São Gabriel, tentamos reconectar os cabos
usando uma solda.“Esta solda é ruim”, diz Jair. Ele decide esperar até que Mékio traga uma
solda melhor de São Gabriel. De repente, começa a chover. e Corremos para um abrigo.
Carlos E e Glaudecy passam por nós com expressões lastimáveis, sob o abrigo de seu grande
guarda-sol de praia. “São Gabriel tem que ser bom, tem que melhorar” diz Flora com um
suspiro. Jair ri e a corrige “funcionando, isso é importante”, e Flora, que visita a torre toda
semana, responde, também rindo: “não, o que é importante é São Gabriel melhorar”.
“Tem que testar toda hipótese. Não faz sentido não funcionar”, declara Jair. O novo
sensor de umidade do solo não está funcionando ainda, mesmo com suas conexões
185
parcialmente recém-soldadas. Marta sabe que não está funcionando porque ela tem uma folha
com uma tabela “da literatura” e as leituras estão significativamente abaixo do que a tabela
diz que deve ser. “Pode não ter sido o sensor”, diz Marta, checando pela segunda vez se os
cabos do datalogger estão conectados corretamente. Todos parecem estar na ordem correta. O
programa do datalogger para o solo (e não aquele para o AWS) é, agora, apontado comoo
próximo principal suspeito. Esse programa é o que conecta as informações fornecidas pelos
sensores aos números mostrados na tela. É outra máquina que se junta às outras que “carrega
o mundo em palavras” (Latour 1999a)
227
. Marta e Flora sentam-se sob uma lona e se inclinam
junto ao laptop procurando pelo programa que lida com os dados do solo.
Marta explica o tempo todo a Flora o que ela tem que fazer. Ela não consegue encontrar o
programa, então, se conta de que alguém o salvou com o nome errado. Ela não consegue
abri-lo. Voltamos para a torre para fazer o download do programa novamente. O computador
está sendo “chato”, o mouse não funciona. Neste momento, Jair suspeita que “pode ser que os
cabos estejam conectados errados” e, então, etenta encontrar um programa que diz a
seqüência correta dos cabos de conexão do sensor com o datalogger. O equipamento é, assim,
“uma extensão” do datalogger, Jair explica. Datalogger, equipamento e torre são todos,
idealmente, extensões uns dos outros, cada qual facilitando o outro a fazer o trabalho ao qual
estão destinados.
“99% do tempo é concertando”, diz Jair. “Nada acontece como planejado”. Jair, Marta,
Flora e eu estamos sentados na torre, a 20 metros do solo, espremidos entre um laptop e a
caixa do AWS datalogger, tentando baixar seu programa no computador de Jair. Ele planejou
esta viagem por três meses e agora está tentando corconsertar uma “porcaria” de um programa
de Windows.
Há um virus no pen drive de Marta.
A bateria que Jair está usando para conectar o datalogger ao laptop não está carregada.
Jair começa o trabalho meticuloso de re-conectar os cabos ao datalogger do solo. uma
certa discussão sobre qual cor é qual; isto é verde ou turquesa? Jair e Marta gritam cores um
para o outro entre as árvores, verificando conexões e canais. Por um momento, esta parece
227 “load the world into words”
186
uma cena absurda. Os cabos parecem estar conectados corretamente. Jair olha para mim.
“Tudo é possível”, ele diz.
Muitos pontos emergem aqui. O primeiro é que o equipamento e os instrumentos sobre
a torre estão, certamente, agindo como objetos recalcitrantes. Jair e sua equipe estão tentando
fazer o sensor falar do modo como eles querem e o sensor está se recusando teimosamente.
Essa recusa faz a “rede” mudar, faz os micrometeorologistas tentarem envolver novos atores
de modo a ajudá-los, atores que, em troca, provem “objetar” a tal “intéressement” e causem
mais problemas, mais mudanças, mais deslocamentos, mais entidades a serem envolvidas. O
plano claro apresentado na sala de reuniões “consertar o sensor de umidade do solo” se
tornou uma “rede” complexa de movimentos e deslocamentos, em que se está constantemente
reformulando o que é que precisa ser “consertado-fixado” (fixed), isto é, as identidades das
entidades envolvidas. Um ponto notável sobre o tempo que passei com os
micrometeorologistas é a rapidez com que eles testavam e mudavam para novas causas
possíveis; a velocidade com que as coisas assumiam novas identidades, o modo visível pelo
qual a rede mudava; a quantidade de ocorrências inesperadas que eles tinham que superar. As
ações dos micrometeorologistas não pareciam, de modo algum, serem direcionadas para a
descoberta de algum tipo de realidade estática e imutável, da forma como a ciência é
tradicionalmente concebida, apesar de sua ciência ser a ciência da meteorologia e eles
negociarem uma certeza instrumental. Como explorei no capítulo anterior, Latour identifica
algo como tendo o status de “fato” ou “real” em relação ao acúmulo de conexões. Podemos
agora falar sobre isso como a “estabilização da rede”.
Na Vida de Laboratório, Latour e Woolgar examinam meticulosamente a construção
de fatos em um laboratório, no caso, a definição de uma seqüência de proteínas: TRF é (mais
do que “poderia ser”) Pyro-Glu-His-Pro-NH2 (1986 [1979]:147). Eles escrevem:
“A produção de um paper depende criticamente de vários processos de escrita e leitura que podem ser
resumidos como inscrição literária. A função da inscrição literária é a persuasão bem sucedida dos
leitores, mas os leitores somente são totalmente convencidos quando todas as fontes de persuasão
parecem ter desaparecido. Em outras palavras, as várias operações de leitura e escrita que sustentam
187
um argumento são vistas pelos participantes como irrelevantes em relação aos “fatos”, que emergem
somente em virtude dessas mesmas operações. Há, então, uma congruência essencial entre “fato” e a
operação bem sucedida de vários processos de inscrição literária. Um texto ou uma afirmação podem,
então, ser lidos como “contendo” ou “sendo sobre um fato”, quando os leitores estão suficientemente
convencidos de que não debate sobre isso e os processos de inscrição literária são esquecidos
(Latour and Woolgar 1986 [1979]:76
)228.
Latour e Woolgar efetivamente demonstram, na Vida de Laboratório, como o que é tido como
“real” emerge como conseqüência da atividade científica e que a diferença entre um “fato”
e um “artefato” é, realmente, aquilo no que a ciência está constantemente trabalhando para
estabelecer não é algo que está dado no mundo, mas algo que precisa ser “feito”. A
ciência faz isso através de processos de “inscrição”, em que uma entidade se torna um
“signo”, um número numa tela, uma leitura de um sensor, um documento, um paper
publicado (Latour and Woolgar 1986 [1979], Latour 1999a). E, quando a inscrição é bem
sucedida, o trabalho dedicado a fazer isso é “esquecido” – isto é como o mundo “sempre foi”.
Potência tecnológica, discussões entre pesquisadores, conversas informais tudo isso
contribui para este processo de elaboração ou “construção” da “realidade”. Porém, como eles
destacam:
Se a realidade é a conseqüência mais do que a causa desta construção, isto significa que a atividade
científica não é direcionada à “realidade”, mas, sim, a essas operações sobre essas afirmações. A soma
total destas operações é um campo agonístico. A noção de agonístico contrasta significantemente com
a visão de que os cientistas estão, de algum modo, preocupados com a “natureza”.
(Latour and
Woolgar 1986 [1979]:237)229
228 “The production of a paper depends critically on various processes of writing and reading which can be
summarised as literary inscription. The function of literary inscription is the successful persuasion of readers,
but the readers are only fully convinced when all sources of persuasion seem to have disappeared. In other
words, the various operations of reading and writing which sustain an argument are seen by participants to be
largely irrelevant to ‘facts’, which emerge solely by virtue of these same operations. There is then an
essential congruence between ‘fact’ and the successful operation of various processes of literary inscription.
A text or statement can thus be read as ‘containing or ‘being about a fact’ when readers are sufficiently
convinced that there is no debate about it and the processes of literary inscription are forgotten.”
229 “If reality is the consequence rather than the cause of this construction, this means that a scientist’s
activity is directed not toward “reality”, but toward these operations on these statements. The sum total of
these operations is the agonistic field. The notion of agonistic contrasts significantly with the view that
scientists are somehow concerned with ‘nature’”
188
Embora Latour e Woolgar pareçam (ao menos neste livro) delimitar a ação que ocorre no
“campo agonístico” como os vários meios pelos quais um cientista pode persuadir seus
colegas da verdade da afirmação que está propondo, isso pode ser estendido em função da
discussão anterior sobre a ação ser constitutiva da rede. Não são apenas as negociações dos
micrometeorologistas e as discussões que acontecem nas tentativas de se fazer o sensor falar
com eles, mas muitos diferentes tipos de entidades também adicionam suas vozes à discussão.
Porém são os micrometeorologistas que estão trabalhando exatamente com os processos que
permitem a inscrição acontecer. Eles estão lidando com o que acontece quando a inscrição
errado, como foi o caso, quando você não é persuadido, quando você “não confia” nos dados
e quando você “perde confiança nos instrumentos”.
O que desejo levantar das observações de Latour e Woolgar sobre o “campo
agonístico” não é tanto o murmúrio competitivo, mas, simplesmente, que este processo de
cristalizar uma certeza apareceu no campo com os micrometeorologistas não para ser dirigido
ao “Real”, mas a alguma outra coisa. Isso não significa, é claro, que eles se dirigiram a algo
que era “não-real”. Uma das muitas vantagens da ANT, como foi colocado, é que não se
está mais restrito a escolher entre “real ou irreal” é possível haver muitas nuances
diferentes. Isso é importante porque é como os micrometeorologistas falavam comigo sobre o
assunto. Como disse Marta “a gente sabe que o que a gente medindo não é o real real
real” mas é o que eles “admitem” ser real. Os próprios micrometeorologistas estão cientes
dessa gradação; de fato, eles têm de estar, de modo a dar conta da rapidez com que a certeza
aparece e, de repente, desaparece de vista. Sugiro que sua atenção esteja direcionada não tanto
a uma realidade subjacente absoluta, mas à certeza. Estar certo era a principal preocupação,
ser capaz de confiar nos instrumentos e nos dados, ser capaz de acusar corretamente o culpado
e, corretamente, “consertar-fixar” (fix) o problema, que é, por todos os meios possíveis,
assegurar que os instrumentos façam o que devem fazer e que digam o que se quer que digam.
A idéia de “realidade” que está interligada a esta idéia de certeza é, portanto, mais efêmera e
instável (uma vez que é criada quase do zero a cada estágio do processo) à medida que novos
culpados são introduzidos e descartados. Essas entidades envolvidas provocam uma
determinada configuração a cada estágio, de modo a averiguar o que está errado com o sensor.
Então, primeiro os cabos, depois o datalogger, depois o sensor, depois o próprio solo, todos
são trazidos para a discussão e cada um existe brevemente como a fonte do erro isto é, de
189
um erro determinado. Em seguida, a entidade desaparece de vista por sua própria ação (como
é feito agir, como faz outras entidades agirem mesmo se isto é “não agir”). Mas, ao mesmo
tempo, ser descartada enquanto tal não extrai inteiramente a entidade. Entidades “colocadas
em teste” e que não conseguem corrigir o erro carregam consigo diferentes quantidades de
certeza. Que o culpado não seja o programa de computador não resolve o problema, mas
significa que, por ora, se pode subtrair aquela entidade da possibilidade de erro.
Isso é importante, porque estou ciente de uma dissonância possível entre a minha
descrição dos micrometeorologistas em ação e aquilo exatamente que desejo transmitir. A
forma ao acaso em que eles parecem fazer (go about) o trabalho não é meramente o resultado
das condições físicas difíceis, mas contém sua própria dinâmica específica. Ao se dirigir a
atenção, como fazem os micrometeorologistas, para cada momento de tradução enquanto
outra entidade é enlistada, ao invés de direcionar a atenção para uma realidade subjacente
imutável, afastamo-nos ligeiramente da imagem que Latour e Woolgar oferecem no final da
Vida de Laboratório, no qual eles associam a “criação da ordem a partir da desordem” dos
cientistas a um jogo de Go, no qual
“como no campo agonístico, o padrão que muda não é ordenado (orderly). Um território pode ou não
ser defendido de acordo com as pressões exercidas pelo oponente. O jogo termina quando todo o
território foi apropriado e todos os territórios disputados foram estabelecidos. De um começo
inteiramente contingente, os jogadores chegam (sem o uso de uma ordem externa preexistente) a um
ponto final no jogo onde alguns movimentos são necessários”. (Latour and Woolgar 1986 [1979]:247-
248)
230
Enquanto que com os modeladores do último capítulo foi fértil pensar em termos de
uma desordem ou caos simultaneamente englobantes e englobados, a partir do qual (em
ambos os sentidos) deve-se cuidadosamente construir uma ordem e uma previsibilidade, eu
acho que isso acontece menos com os micrometeorologistas. Primeiramente porque eles não
230 as in the agonistic field, the changing pattern is not orderly…A territory may or may
not be defended according to the pressures exerted by the opponent. The game ends when all
territory has been appropriated and all disputed territories have been settled. From an entirely
contingent beginning, the players arrive (without the use of external or preexisting order) at a
final point in the game where certain moves are necessary.
190
falaram comigo sobre o caos inerente ao seu trabalho talvez porque ele estivesse muito
obviamente presente sob certa forma física, da chuva que nos levava a ir correndo para o
abrigo, aos sapos caindo nos pluviômetros. O mundo estava claramente interferindo de formas
imprevisíveis. Eles não precisavam colocar essas formas numa “caixa preta” para controlá-
los, porque sua atenção estava direcionada para outra coisa.
Além disso, essa metáfora com o jogo Go implica um movimento progressivo (mesmo
se ao acaso) rumo à estabilização, rumo ao estabelecimento de uma certeza, quando um
matter of concerné transformado em um matter of factfrio e duro (Latour, 2005). O
trabalho dos micrometeorologistas nunca terminava num “fechamento da controvérsia” deste
modo. No que dizia respeito ao sensor de umidade do solo, a matéria era num certo sentido
“posta pra descansar”, quando Jair se lembra que Jorge disse a ele que, quando se muda o
sensor de solo, pode demorar um tempo para o solo no entorno da caixa se estabilizar
novamente para que a leitura correta seja obtida às vezes isso demora até 3 meses. Por que
nós o substituímos antes de descobrir o que estava errado?, pergunto. Era a época de mudar o
sensor, de todo modo, ele responde e “outra posibilidade é uma queima no canal do
datalogger”. Há sempre outra possibilidade, tudo é possível. Por um tempo, o próprio solo é o
culpado e Jair me diz que agor eles têm que “esperar uma resposta”; mas no dia seguinte,
nós voltamos para o datalogger e checamos as conexões novamente. Jair pensa que pode ser o
transistor, um pequeno (até agora ignorado) equipamento eletrônico, que de repente assume o
papel de ser o pedaço mais importante, capaz do maior poder explanatório e maior certeza,
exatamente porque não está funcionando. Incerteza e certeza podem ser postos para funcionar
juntos nesse sentido. E quando estão lidando com uma situação, como os
micrometeorologistas estão, em que muitos fatores diferentes estão todos se manifestando, a
certeza é instável e imprevisível.
Estou ciente de que isso pode ser tomado como uma inferência de um “fracasso” por
parte dos micrometeorologistas. Estou ciente de que minha descrição se apóia nas coisas que
eles aparentemente não fizeram, não conseguiram fazer corretamente ou não verificaram. Não
creio que isto seja insignificante ou pejorativo ou tampouco um artifício etnográfico da minha
parte. Certamente, todos ficavam muito preocupados quando cada culpado possível provava-
se inocente ou levantava suas próprias objeções que deslocavam a ação. Mas houve também
e mais freqüentemente – momentos de grande satisfação. Quando perguntei se a viagem havia
191
sido um “sucesso”, a resposta foi “sim, muito melhor do que da última vez”. O invés de uma
divisão mutuamente definidora entre certeza-verdade-realidade e incerteza-falsidade-
irrealidade, outra forma de se entender o que está acontecendo talvez seja necessária. O que
poderia ser discutido é a “natureza” da certeza ou da realidade sendo construída, com a qual
os micrometeorologistas estão lidando.
Como escrevem Latour e Woolgar, “a realidade é a conseqüência ao invés da causa
desta ação” (1986 [1979]: 237)
231
. Mas “realidade” em termos de “certeza” (‘isto é
‘realmente’ o que está fazendo o sensor falar com a gente de um modo 'misterioso’) emerge
aqui de um tipo de ação ligeiramente diferente. Ao invés de um acúmulo lento de conexões ou
de uma construção cuidadosa de “canais de referência”, os micrometeorologistas trabalham
por muitas oscilações rápidas, em que a “direção” de cada movimento é dado pela relação
particular que emerge da mais nova configuração da rede. Comparando isso com a
caracterização geral de Latour e Woolgar e Callon sobre a concretização microprocessual
gradual de um “fato” ou “realidade”, os micrometeorologistas estão aqui lidando com uma
realidade emergente muito fluida, que parece entrar e sair de foco muito rapidamente. não
uma, mas muitas controvérsias a serem resolvidas. E algumas vezes, “você não sabe a causa,
mas volta a funcionar”. Logo, o estabelecimento da certeza ou realidade “absolutas” está
deslocado do centro de sua atenção, e, ao invés disso, cada “pequena” controvérsia” e seu
“fechamento” assumem um papel muito mais importante. Isto é, não há algo como uma
pequena controvérsia. Cada entidade envolvida carrega sua própria carga de certeza, que é
então confirmada ou negada pelas outras entidades invocadas. Isto segue experimentos, que
aumentam ou diminuem seu poder dentro da rede para manter alguma “realidade” estável.
Outra forma de colocar essa questão é em termos de “fluxo” ou movimento e fixidez.
Isso ressoa além com a noção de uma certeza fluida ou uma realidade graduada, em ambas as
direções. Os cabos/fios que conectam o datalogger ao sensor eram os culpados; eles foram
“consertados-fixados”; o sensor ainda fornece o dado errado; os cabos não eram mais
culpados, mas ainda podem vir a ser. Da mesma forma que deste modo a certeza parecia
efêmera para algumas entidades, algumas entidades estavam definitivamente mais “fixas” do
que outras. A rede tinha que ser expandida, mais entidades foram adicionadas e evocadas para
231
“reality is the consequence rather than the cause of this action”
192
ajudar. Nesse sentido, a realidade não parece ser a conseqüência do acúmulo de conexões e
associações. Marta se refere com freqüência a tabelas e gráficos que ela trouxe para a floresta,
que dizem a ela o que as leituras “deveriam” ser. Atribui-se a essas tabelas e gráficos a certeza
que eles obtêm através de um processo de construção muito mais similar àquele que Latour
descreve. Eles acumularam tantas conexões e passaram por um número suficiente de
experimentos que são confiadas como “representando” o fenômeno pelo qual elas falam
(Callon 1999 [1986]). Eles são muito mais próximos dos produtos dos processos de inscrição
de Latour, que escondem a heterogeneidade do ato de inscrever. Os micrometeorologistas,
porém, referem-se a eles, ao invés de produzirem-nos isto é, eles se tornam uma parte igual
da rede dos micrometeorologistas, não o término final fixado. Essas entidades eram
exatamente aquelas não sendo questionadas pelos micrometeorologistas, como Latour e
Woolgar prevêem. Mas então eles eram exatamente não aquilo em que os
micrometeorologistas estavam trabalhando. Quando esse processo de produção científica do
conhecimento “dá errado”, os cientistas que têm que “fixar-consertar”-lo oferecem uma
oportunidade para reavaliar a medida em que esses processos de inscrição realmente são
esquecidos ou não, ou se, de modo a reabrir a controvérsia, outro processo precisa ser
temporariamente (mesmo se seguramente) fechado.
A “Natureza” frequentemente apareceu em nossas conversas e ações sob várias
formas. Quando trocamos o sensor de radiação por um novo, a forma como nos asseguramos
que ele está funcionando é comparando a mudança na leitura que ele está dando, com a
própria incidência do sol. Quando o sol se esconde atrás de uma nuvem, checamos para ter
certeza que os números diminuem e aumentam de novo quando o sol reaparece. Além disso,
nós soubemos que ele estava dando o dado “errado” porque algumas impossibilidades no
mundo: é “impossível” que a superfície da terra reflita mais radiação do que recebe, então um
sensor que define que isso está acontecendo é suspeito. Da mesma forma, ao testar um sensor
de calor, Jair primeiro o coloca sob sua axila e então acende uma lanterna sobre ele, olhando
para ver se ele registra a mudança na temperatura que ele sabe estar acontecendo. Como Jair
me diz mais tarde quando nós conversamos sobre como se sabe se um equipamento está
desregulado ou não, uma constante é que “o que esse equipamento medindo não pode
acontecer na natureza”. “Natureza” emerge aqui como um ponto fixo a partir do qual a equipe
é capaz de “fixar-consertar” o equipamento. Esses processos naturais têm uma carga completa
de certeza, que os micrometeorologistas têm como inquestionável. Porém, como veremos a
193
seguir, o quão fixo exatamente este ponto é parece variar.
A calibração é outro exemplo do modo pelo qual uma entidade pode ser carregada
(loaded) com certeza. De volta ao laboratório em Manaus, novos instrumentos que nunca
são levados para o campo. Esses instrumentos “padrão” são usados para calibrar os
instrumentos que são trazidos de volta das torres. Infelizmente nunca tive a oportunidade de
observar este processo de calibração dos sensores acontecendo. Quando pergunto o que
“calibra” os instrumentos “padrão”, fico confusa. “Ninguém calibra o padrão”, dizem-me. Foi
quando questionei isso que Marta me disse “é impossível saber o que é real real real...mas a
gente admite que o que a padrão tá medindo é o real”. Frente à persistência de minha
confusão, ela explica: “não é um binário”. A atenção dos micrometeorologistas não é
direcionada a esse “real” absoluto, mas a aproximações e certezas que constituem o “real” em
oposição ao “real real real”.
A noção de Andrew Pickering (1999 [1993]) de the mangle uma “dialética de
resistência e acomodação” (ibid: 377)
232
parece um modo relevante de analisar o tipo de
movimento que vemos na prática dos micrometeorologistas. Ele sugere que o “apelo à
semiótica” da ANT parece um recuo à “ciência-enquanto-representação” (ibid:374), face à
insistência de Collins e Yearley de que dar agência aos objetos é ceder controle analítico
àqueles que explicitamente lidam com objetos, isto é, os cientistas. Para Pickering, embora os
objetos (neste caso, uma bubble chamber (câmera bolha) “um instrumento que se tornou a
principal ferramenta para a física experimental de partículas elementares nos anos 60 e 70”)
tenham “agência” (e aqui ele diz que pode-se facilmente vê-los como “intermediários que
induzem as partículas a escrever” ou “armadilhas para capturar... a agência de partículas
elementares” (ibid: 381)
233
), eles não têm “intencionalidade”, uma qualidade reservada para
os atores humanos: “Nós humanos nos diferimos dos não-humanos precisamente pelo fato de
que nossas ações têm intenções por trás delas, enquanto que a performance (comportamentos)
dos quarks, micróbios e máquinas não têm” (ibid: 375)
234
. Descrevendo a construção da
232
“dialectic of resistance and accommodation”
233
“intermediaries which induce the particles to write” or “traps for capturing...the agency of elementary
particles”
234
“[W]e humans differ from non-humans precisely in that our actions have intentions behind them,
whereas the performances (behaviours) of quarks, microbes and machine tools do not”
194
bubble chamber de Glaser, Pickering demonstra a dinâmica do “mangle”, em que cada
obstáculo a algum objetivo (por exemplo, a falha da câmera pra registrar o choque de
partículas) enfrentado pelo cientista provoca um redirecionamento e uma redefinição da
agência material e da intencionalidade humana. Embora postulando uma assimetria entre
humanos e não humanos em termos de intencionalidade, ele restaura a simetria na medida em
que tanto a agência material quanto a humana são “temporariamente emergentes” e
imprevisivelmente precipitadas de cada estágio do the mangle e “mútua e emergentemente
produtivas um do outro” (ibid. 382)
235
.
Aqui ele admite que converge com o ANT. The mangle é uma visão de mundo da
ciência como “performativa” “Resistência (e acomodação) está no coração da luta entre os
domínios humano e material, na qual cada um deles é restruturado interativamente um em
relação ao outro no qual, como no nosso exemplo, a agência material, o conhecimento
científico e a agência humana e seus contornos sociais são todos reconfigurados de uma
vez” (ibid:385)
236
. Certamente, o mangle de Pickering poderia, por razões óbvias, ser aplicado
à minha descrição dos micrometeorologistas e dos objetos resistentes que estão misturados
com a torre. Ainda mais considerando que a maioria da sua análise é muito similar a uma
abordagem ANT. Podemos retornar aqui para minha descrição da reunião do Projeto
Fronteiras. Certamente, não apenas uma mudança no tempo, mas também no espaço parece
influir no que emerge, em quais intenções e desejos são instados. Isto é, entidades e práticas
são “espacialmente emergentes” também. Mas “tempo” e “espaço” devem ser tomados como
categorias que existem “fora” da rede? Ou eles estão mangled também? Não tenho uma
resposta para isso, mas sugiro que estes dados ocidentais como “espaço” e “tempo” são uma
das coisas com que Latour está brincando com a idéia de “ontologias variáveis” ( 1993
[1991]: 85-88)
237
e especificamente “historicidade” e “temporalidade” (1993 [1991]: 67-76).
O tempo pode ser considerado uma espiral, um fio ou um sonho. Embora the mangle seja
talvez um bom meio para se refletir sobre a prática científica tal como a vi (eu teria que tê-la
feito para saber), seria interessante ver como ela held up numa ciência que questiona as
235
“mutually and emergently productive of one another”
236
[R]esistance (and accommodation) is at the heart of the struggle between human and material realms in
which each is interactively restructured with respect to the other – in which, as in our example, material agency,
scientific knowledge, and human agency and its social contours are all reconfigured at once”
237
“variable ontologies”
195
concepções correntes dessas dimensões ocidentais como tempo e espaço. Estudos
antropológicos mostraram que noções de tempo e espaço podem ser tão problemáticos para a
descrição como outras noções menos aparentemente ontológicas (Casey 1996). Minhas
experiências na expedição de São Gabriel parecem sugerir que, tal como uma mudança de
espaço seems to elicit diferentes relações e ações, também diferentes ações moldam o tipo de
espaço em que se está agindo. Uma rede captura muito bem essa dinâmica mútua talvez
como os “contextos” wagnerianos do primeiro capítulo, ela é constituída enquanto “constitui”.
Considero ligeiramente problemática a insistência de Pickering de que os humanos
têm intencionalidade enquanto os objetos não. Isso porque, se as agências humana e material
são propriedades emergentes e mutuamente constitutivas, por que importa, de saída, que um
tenha “agência” e o outro tenha “intencionalidade”, senão para marcar uma diferença
qualitativa irredutível e não-emergente entre eles? E isso então implica que algo que está
“realmente” governando a direção do mangle, a intencionalidade humana, que é de certo
modo “mais forte” do que as agências dos não-humanos que ela encontra o que em si
mesmo parece também com um tipo de “recuo para o representacionismo”. De novo, o quão
“profundo” o mangle vai? Manter uma diferença que não se modifica ao longo da dinâmica
toca num centro que me leva a postular que o mangle é um dispositivo especificiamente
ocidental. O que não é uma crítica, nem ao menos surpreendente (enquanto uma
“reconceitualização”), mas isto é algo para se ter em mente, especificamente enquanto a
“ciência” abra suas portas e não está mais em contato exclusivo com sua “própria cultura”.
Os humanos são intencionais na ANT, é claro; como vimos Latour não está postulando
uma “simetria absurda” entre humanos e não-humanos. Mas qualquer afirmativa no ANT é
algo que se paga o preço (pay one's way) para verificar. Além disso, acho que está faltando
alguma coisa na divisão implícita de objetos que “resistem” e humanos que “se acomodam”.
Ambos podem fazer ambos para ambos. A insistência de Latour que atores todos os atores –
são acima de tudo “bagunceiros” (2004a)
238
tem ressonâncias profundas com a razão pela qual
a abordagem “semiótica” me parece mais fértil. A caracterização de Pickering sobre a
semiótica a define como sendo “algo a ver com textos e escrita”, o que é claro que ela é.
Como aponta Latour, “descrever”, escrever “ficção” não é fácil e de fato é apenas pela
238
“troublemakers”
196
natureza artificial deste exercício que a “objetividade pode ser atingida” (2005: 126-127)
239
. A
realidade é uma conseqüência não uma causa. Mas para mim a abordagem semiótica não é
apenas uma questão de falar e escrever, mas uma questão de porta-vozes. Trata-se falar em
nome de outros, quem tem o direito de fazer isso e como se administra e mantém esse direito.
***
O acúmulo de conexões pode ter efeitos surpreendentes e a fixidez dos pontos fixos
não parece em si mesma fixa. A extensão em que as entidades são postas junto a partir de
todos os lugares na formação da rede ou de seu “campo agonístico” e o efeito que isso pode
ter sobre as entidades que estão na rede foi algo que me chamou atenção uma noite quando
eu e Jair estávamos no alto na torre esperando para que o novo barômetro “começasse a
funcionar”. Perguntei Jair sobre os IRGAs e sobre o que exatamente “fluxo” significa.
O fluxo de carbono é ostensivamente uma das medidas mais importantes que a torre está
fazendo, dado que a questão central do LBA é verificar se a Amazônia está lançando mais
carbono do que está absorvendo ou vice versa. O fluxo de carbono é medido pelo Licor, que é
ligado ao anemômetro sônico, um instrumento de aparência futurista que se ergue para o céu a
partir do alto da torre. Como descrevi no primeiro capítulo, o Licor mede uma quantidade de
carbono em micromols em cada altitude que está tocando o ar e isso é combinado com a
informação do vortex de vento em três dimensões que ele pega do anenômetro sônico. Isso dá
uma quantidade de fluxo de carbon: a quantidade de moléculas de carbono por período de
tempo por área, micromol/m2/segundo. Trata-se de uma medida de movimento, uma
dinâmica. Mas o fluxo também é “fixado” é um outro mero, a ser usado numa
“conversão, para biólogo entender”. Para que essas medidas façam sentido para um biólogo,
precisam ser convertidas em um medida de fotossíntese (não diferente, para um antropólogo,
daquilo que vimos com o sensor de umidade do solo. Muito dessemelhança, é preciso dizer,
para um biólogo). Isso também requer dados do sensor PAR (sensor de Radiação
Fotossintética Ativa), um longo equipamento que se alonga a partir da torre, com um sensor
dupla face no topo que, registrando a quantidade de radiação que chega e que é refletida de
239
“objectivity might be achieved”
197
volta da superfície da terra, calcula a diferença que é a quantidade de radiação absorvida
pela vegetação circundante. Então a aplicação de uma série de equações (“tem várias
equações até chegar”), que são “complicadas” (e Jair está relutante para explicá-las para mim,
que pareço confusa), até que se chega à taxa de fotossíntese. As equações são baseadas nas
quantidades de carbon necessárias para absorver uma certa quantidade de CO2 números que
em si mesmos são o resultado de uma longa série de equações. E mesmo a quantidade de
radiação necessária para absorver uma certa quantidade de CO2 também varia, de acordo com
a espécie de planta e sua fisiologia. Embora todas as plantas façam fotossíntese dentro de um
espectro estreito de radiação, há diferenças nisso. “A diferença é dentro da folha”; plantas não
fazem fotossíntese segundo a mesma taxa e as diferenças residem dentro da “biometria da
planta” e dentro das diferentes categorias de plantas. E nem todas fazem fotossíntese
puramente somente durante o dia: algumas a fazem à noite, descoberta que Jair deixa claro
que não foi pouco perturbadora para fisiologistas de plantas. A “natureza” aqui parece mais
fluida do que fixa, mais cheia de pequenas variações. Tudo isso pode acontecer na Natureza.
. Cada informação que Jair me complexifica o trabalho de verificar a taxa de
fotossíntese; cada uma adiciona um outro elemento, faz outra conexão, desenha outro
processo bioquímico no quadro. Jair desenha para mim uma série de gráficos representando a
absorção de CO2 segundo uma base diurna, esboçando as curvas padronizadas que
representam diferentes absorções de CO2. Na mesma página, ele me desenha uma célula
vegetal e alguns estomatas. Ele desenha um modelo que “aprendemos na escola”. “A
diferença entre o LBA e o segundo grau é a complexidade”, ele diz. Continuamos
conversando; estou interessada na idéia de conversão para o uso dos biólogos. Jair me diz
“essa conversão não é uma lei, é uma teoria”. Por que não é uma lei?, pergunto. “Porque, até
onde eu sei no mundo, isso é verdade. Nao é lei. Dois corpos se atraem é lei…a lei da
gravidade….é imutável porque testável em qualquer situação, matematicamente…” - mas, ao
mesmo tempo, depende da situação, é muito difícil matematizar natureza”, e então,
“especialmente esse tipo de natureza” querendo dizer “floresta tropical”. A floresta tropical é
muito mais complexa do que qualquer outro tipo de floresta, Jair me diz, “tem aqui muito
mais variaveis [do que na temperada]. Aqui é mais complexo do que qualquer outro tipo de
ambiente.” Mas há algumas coisas que você só tem que admitir que são verdadeiras, que você
tem certeza. Como Jair me disse, “o que esse equipamento estava medindo não era o que pode
existir na natureza”. Mesmo entre toda essa certeza em mudança, “você tem que admitir que
198
algumas coisas são verdades”.
A luz começa a diminuir, e o barômetro toca longe e a discussão se dirige para
“processos biológicos”. Imperceptivelmente nós começamos a falar sobre algo diferente dos
equipamentos e do fluxo. Jair é um biólogo e passou muitos anos quando era mais jovem
arrastando IRGAs pelas florestas enquanto fisiólogo de plantas. Mas ele diz que era um
trabalho muito duro e então ele “desistiu”. E no entanto o conhecimento que ele obteve por
meio deste trabalho como biólogo é acionado no trabalho que ele faz agora. O que exatamente
ele “desistiu” quando começou a devotar seu tempo à micrometeorologia? Como antropóloga
tentando descrever os movimentos que ele faz, recai sobre mim descrever os atores que ele
invoca, as moléculas de carbono, vórtices de ar, redes de conhecimento bioquímico e
biológico, equipamentos que registram constantemente e que em si mesmos participam como
o resultado reificado de diferentes redes de conhecimento mecânico e físico, enfim, uma
multitude de entidades. As conexões parecem se espalhar em todas as dimensões: o
movimento centrífugo do ponto repentinamente arbitrário que eu habito como observadora, o
movimento que se expande para fora e torna cada vez mais difícil definir em termos fixos os
caminhos que cada entidade toma ou saber onde começar e onde terminar minha descrição. A
“integração” está agora mais aparente do que nunca e não é algo que precisa esperar para
existir somente na volta ao escritório do LBA; ela vem acontecendo constantemente nesta
coreografia científica e seus efeitos são qualquer coisa exceto estabilizadores.
Usei as noção de Latour de “campo agonístico” para tentar transmitir como as
operações dos micrometeorologistas não estão direcionadas para alguma realidade absoluta
subjacente, mas para essas próprias operações, a partir das quais parece aparecer um número
transiente de “reais” e “certezas” em diferentes graus. Esses graus são mutáveis e dependem
dos outros atores envolvidos. Essa observação foi confirmada pela forma na qual os
micrometeorologistas falaram para mim sobre a “realidadesendo graduada, o que, por sua
vez, se encaixa com a idéia de que a “certeza” é distribuída desigualmente na rede (embora
isso seja exatamente o que está sendo negociado e mude constantemente). Entidades tais
como tabelas de dados trazidos dos escritórios em Manaus ou uma concepção de “Natureza”
que é tomada como “fixa” (sabendo-se que os micrometeorologistas estão para “fixar-
consertar” os equipamentos) são assim devido à extensão de sua rede e ao número de
conexões e outras entidades que testemunham a certeza que qualquer um pode ter nelas. Mas
199
a atenção dos micrometeorologistas está dirigida exatamente não em direção a essas
entidades.
Ao mesmo tempo, o aumento no número de associações parece diminuir a certeza ou
ao menos fazer mais difícil fixá-la, quando mais e mais entidades entram na rede e têm sua
voz. A “fixidez” da natureza, por exemplo, torna-se fluida então. A “natureza” da Amazônia é
diferente daquela da tundra, por exemplo; da mesma forma como as plantas fazem
fotossíntese durante o dia, mas não sempre. algumas coisas que você tem que admitir
que são verdadeiras. O que elas são então parece emergir da forma específica que a rede de
associações assume a qualquer momento dado. O que é certeza e o que é “realidade” poderia
de fato ser visto como uma conseqüência de suas operações, sem que isso seja uma denúncia
em termos de “construtivismo social”.
“Às vezes a solução aparece”, me diz Marta. Sua escolha de palavras trai o modo
como o surgimento da solução pode ser surpreendente. Uma das vezes em que a solução
apareceu foi com os sensores de temperatura. Eles são organizados como um perfil ao longo
da extensão da torre, dando uma série de leituras. Mas por alguma razão, o sensor a 12 metros
“não tá registrando”. “Nesse momento”, diz Jair, “pode ser problema com o sensor, ou os fios,
ou o datalogger”. Depois de um dia checando o novo sensor que trouxemos conosco
juntamente com todos os outros sensores e assegurando-se que o datalogger está funcionando,
Jair decide olhar ao cabeamento dentro do datalogger. Trata-se de um górdio de canais e
fios coloridos que requer um trabalho muito meticuloso para ser desfeito (cortar não é uma
opção!). De repente, ele nota que o fio do sensor de 12m está conectado ao canal para o
sensor de 2m. Ouvem-se exclamações de alegria. Ele reconecta o datalogger corretamente e,
num só golpe, os sensores estão fazendo sentido novamente. Algo foi fixado-consertado
(fixed).
Para um micrometeorologista, a complexidade da floresta tropical é especificamente
manifesta pelo tempo e esforço que se gasta para manter o equipamento funcionando. Como
Jair gosta de me dizer: “aqui é mais complexo do que qualquer outro tipo de ambiente….em
manutenção de equipamento por exemplo”. A complexidade da floresta tropical então se torna
peculiarmente micrometeorológica. Para se conquistar um “bom funcionamento” dos
200
equipamentos é preciso que se lute com os problemas de manutenção causados por animais ou
plantas desobedientes ou pelo fato de que o equipamento vem da Europa e então é feito para
um clima temperado e não para um clima tropical. O sentido de “um bom funcionamento”
havia sido fixado de certo modo na reunião de Manaus. Ele se baseava em informações
simultaneamente reificadas dentro do equipamento com que se trabalhava, que haviam sido
construídas para suas especificações e também está muito distante delas, que estão num livro
em alguma sala de aula a milhares de quilômetros da selva fulmegante em que o equipamento
está fazendo seu trabalho. O que “fixado-consertado” significava no começo da viagem não é
o que passou a significar no final.
***
No início da expedição, durante o caminho para a Escola Agrotécnica em São Gabriel,
onde o LBA possui um pequeno escritório com dois computadores e uma conexão à internet,
eu perguntei a Marta sobre como é trabalhar com a torre. “O ambiente interfere nos dados”,
ela disse. Isso me deixou um pouco confusa na época. Mas quanto mais eu observava e
perguntava, mais ficava claro que, no campo, o ambiente é muito mais do que meramente o
que está sendo medido ou transformado em números pelo equipamento e pelos pesquisadores.
O ‘ambiente’ ou a ‘natureza’ ultrapassam tal caracterização de modos surpreendentes. Quando
chegamos à torre, eu vi as carcaças de uma barata, de uma aranha e de uma centopéia dentro
de um barômetro que havia parado de funcionar. Como mencionei, os sapos são conhecidos
por pular dentro dos pluviômetros e, em Manaus, eu vi uma caixa datalogger que havia sido
retomada por abelhas e estava coberta de mel.
Por um lado, então, um modo no qual o ambiente conspira “contra” o pesquisador.
Como notam Roberto e Jair, o pesquisador é lançado contra o ambiente tropical.
Equipamentos manufaturados para suportar climas temperados lutam para lidar com as
condições climáticas dos trópicos; a vastidão da própria Amazônia torna a tarefa do LBA
parecer fútil. Como me disse um pedologista em Santarém: como é possível que 15 torres
representem toda a Amazônia? A fauna e a flora lutam pelo espaço que os pesquisadores
tentam salvaguardar com dificuldade e, de qualquer modo, “é difícil matematizar a natureza...
esse tipo de natureza”, o que, note-se, é exatamente o que os modeladores do último capítulo
têm que aceitar em relação ao trabalho que os pesquisadores de campo estão fazendo. E então
desta maneira a “natureza” desempenha um papel múltiplo naquilo que os pesquisadores estão
201
“fazendo” quando “fazem” ciência – ela não é apenas fixa-consertada de um modo que
ofereça certeza, mas ela diverge, denigre, re-direciona e o formato específico para a forma
como os pesquisadores fazem aquilo que fazem. Ela age de modos que não são previsíveis e
parece fazer tudo o que pode para romper as associações que os pesquisadores estão forjando.
Desejo voltar-me agora para essas associações, não apenas como processos de rede, mas
como relações de cumplicidade que permitem aos cientistas tornarem-se porta-vozes.
A estabilização da certeza através do estabelecimento de uma relação assimétrica entre
causa e efeito (isto é, reduzindo a equação ‘causas múltiplas : um efeito = incerteza = infinito’
para ‘uma causa : um efeito = certeza = 1’) no papel (e em papers quando publicados) parece
ser uma simples tarefa dedutiva e redutiva. Na prática se torna algo muito mais complicado e
intrincado, misturando virus em pendrives e programas teimosos de computadores,
necessitando negociações e uma oscilação constante entre certeza e incerteza, entre “uma
realidade” e “não uma realidade”. A freqüência dessa oscilação é reduzida, mas nunca atinge
zero. “Tem que funcionar”, “tem que ser melhor”, dizem-me, mas nunca me dizem “tem que
ser verdade”. Eles têm que se contentar em esperar e ver, porque não podem criar as
condições nas quais basear sua certeza naquele momento. O transistor não pode ser
encontrado em São Gabriel, eles terão que esperar até voltar para Manaus para comprar um. A
habilidade para controlar o ambiente é um luxo que o laboratório oferece, mas que a selva
não, mesmo quando construímos um laboratório no meio dela, mesmo se trazemos o
equipamento do laboratório de volta a Manaus. Mesmo se a selva é remendada, escavada e
consertada de modo que se a ela a melhor chance possível. Os próprios
micrometeorologistas não estão trabalhando tanto com “inscrição” (in-scription) como com
“contradição” (contra-diction). O sensor de umidade é novo “deve funcionar”. Flora me diz
que “a gente tá trabalhando com paradoxos”. A purificação da incerteza em certeza neste caso,
de “tudo” a “soma zero” não é um assunto simples. Estmaos longe do laboratório, onde o
ambiente é um aspecto tão controlado do experimento quanto os actantes que nele trabalham.
O trabalho dos micrometeorolistas parece requerer, ao invés disso, um tipo de cumplicidade
entre pesquisador e ‘ambiente’, que o ambiente ‘interfere’ e simultaneamente ‘confirma’.
Quero abordar a seguir o caráter específico desta relação inventiva de cumplicidade.
202
***
Ciclos Biogeoquímicos, Fisiologia das Plantas e Tudo Muda em Campo
A equipe de Fisiologia das Plantas, Carlos E e Glaudecy, vieram para torre para medir
as taxas de fotossíntese em seis espécies diferentes de árvores com variadas alturas. Este
“micro” estudo de taxas de fotossíntese requer sentar com um IRGA durante horas
examinando pequenas seções de folhas. O IRGA que estavam usando permite que se controle
minuciosamente o ambiente de uma pequena parte de uma única folha. A parte da folha é
escolhida cuidadosamente de modo a não ser afetada ou infectada com algum mofo ou doença
e então é selada dentro de uma pequena câmara no IRGA. dentro, a quantidade de luz,
CO2 e água pode ser cuidadosamente controlada por meio de um pequeno teclado digital, que
pode produzir gráficos e de onde dados podem ser baixados todas as noites no laptop.
Aumentando a quantidade de luz, mas sem permitir que entre CO2 e H2O entre dentro
da câmera, este IRGA mede quanto CO2 e H2O é absorvido pela seção da folha, conforme se
aumenta a luz. Isto é usado para calcular a taxa de fotossíntese, baseando-se no princípio que
uma planta absorve CO2 e H2O quando faz fotossíntese. O IRGA é um instrumento muito
delicado e relativamente pesado e usá-lo requer passar muito tempo sentado, assegurando-se
de que ele está controlando corretamente as quantidades dos três fatores que nos interessam.
Ele deve ser mantido seco e limpo o tempo todo Carlos E o carregava pela floresta quase
como se estivesse carregando uma criança e se a chuva ameaçava, ele imediatamente abria um
grande guarda-sol colorido para protegê-lo.
As folhas têm que chegar no IRGA no estado o mais próximo possível em que
estariam se estivessem na árvore, então elas são cortadas com muito cuidado de modo a não
“estressá-las” colocadas na água por alguns minutos e manuseadas com o máximo de cuidado.
Para assegurar que as estomatas (os pequenos “poros” que absorvem CO2) das folhas estejam
o mais aberto possível eles devem idealmente ser coletados entre 10 horas da manhã e 4 horas
da tarde, o principal período fotossintético para plantas clorofílicas, o horário em que mais
203
luz. Esse processo totalmente delicado e absolutamente controlado acontece em uma área
pequena ao lado da torre e a amostra tomada será usada para calcular a taxa de fotossíntese de
seis espécies. Se chove, os pesquisadores terão que esperar até que as folhas nas árvores
sequem, o que significa às vezes que dias inteiros são gastos esperando nas redes, reduzindo a
quantidade de tempo que eles tem para completar o experimento. Idealmente, deve haver o
maior número possível de repetições, o “ideal” sendo mais de 30 embora devido a
constrangimentos de tempo eles irão realizar o experimento 5 vezes para cada espécie, para
“excluir quaisquer erros e ser o mais preciso possível”.
O estudo de Raquel é sobre matéria morta caída na floresta, ou necromassa, e o papel
que ela possui no ciclo de minerais e carbono. Ela está especificamente interessada na “liteira
grossa” a matéria morta que é maior do que 2 cm. Ela tem que andar muitos quilômetros
todos os dias pela floresta para o local onde suas “parcelas” estão, as áreas de amostra que ela
escolheu e demarcou em uma expedição prévia. cinco “parcelas”, cada uma medindo
100m x 20m. Dentro dessas “parcelas”, ela marcou parcelas menores de 5m x 5m sistemática
e aleatoriamente localizadas ao longo da parcela, para “pegar toda a variação”. Em cada uma
dessas parcelas menores, ele marcou um quadrado ainda menor de 1m x 1m. A “parcelinha”
de 5m x 5 m é rigorosamente limpa de toda matéria morta, deixando um quadrado de 5m2
estranhamente vazio na floresta. Ela vai retornar em seis meses para registrar o que caiu nesse
período de tempo. Pergunto a ela se limpar o chão da floresta de toda matéria morta não
afetará o que morrerá nos próximos seis meses, dado que todos os nutrientes (desta floresta
por outro ângulo pobre em nutrientes) vêm da matéria morta que cai. Sim, é uma
possibilidade, ela diz, mas não outro jeito, isso é algo que ela tem que aceitar “você tem
que arrumar um jeito”.
Antes de limpar a “parcelinha”, Raquel e Tony acocoram-se e trabalham usando uma
régua para medir a extensão, a espessura e o diâmetro de todos os pedaços entre 10 e 30 cm
de madeira caída que encontram no quadrado de 1m x 1m que foi marcado. Raquel explica
que fazer isso para toda a “parcelinha” demoraria muito, assim como fazer isso para a matéria
de 2 a 30 cm de diâmetro, então ela inventou um outro modo: ela mede somente este
quadrado e isso “representa” toda a “parcelinha”, “porque eu sei a área da parcelinha”. Uma
parte da madeira coletada desse quadrado é também colocada em uma pequena sacola
plástica, rotulada e numerada de acordo com a parcela e a data e será levada a Manaus para ter
204
sua densidade e seus nutrientes analisados. Medindo a densidade e tendo o volume dado pelo
diâmetro, Raquel poderá descobrir a massa (M=D/V) da “liteira grossa” que é produzida nas
suas parcelas em seis meses ou um ano, dependendo de quando ela conseguir voltar para São
Gabriel. A matéria morta que ela coleta de cada metro quadrado é colocada na mesma sacola
de plástico; sua densidade combinada vai dar a ela uma média da densidade do material que
está sobre o solo da floresta. Isso “permite que eu fale em termos de toneladas por hectare”,
que é a unidade de medida da necromassa que ela precisa chegar de modo a publicar suas
descobertas em um formato aceito. Quando pergunto a ela onde ela quer chegar no final (uma
pergunta que pergunto muitas vezes em vários pontos dessa viagem), a primeira resposta que
ela me é que deseja chegar à necromassa, um valor de nutrientes para suas parcelas que
se obtém multiplicando os valores de nutrientes oferecidos a ela pelas amostras de madeira
morta que ela leva para Manaus pelo valor da necromassa que ela descobre através da
densidade.
Ela também está medindo a “liteira fina”, folhas e qualquer matéria de madeira morta
abaixo de 2 cm de diâmetro, usando 10 redes para se coletar liteira de folha localizadas em
intervalos sistemáticos e novamente aleatórios ao longo de sua parcela, assim como amostras
de matéria orgânica e solo retiradas da pequena área ao lado de cada rede coletora. Embora
ela esteja mais preocupada com a “liteira grossa”, seus estudo é dar conta tanto da liteira fina
como da grossa tudo que cai e é “estocado”. Ela havia explicado para mim que o estudo
da “liteira grossa” inicialmente a atraiu porque muito poucos estudos feitos sobre isso
muitos mais foi produzido sobre “liteira fina”, que é mais fácil de se trabalhar e não requer tal
flexibilidade. Tentar estudar a “liteira grossa” envolve medir grandes troncos de árvores
caídas que não se pode levar de volta para o laboratório para analisar como se pode com uma
sacola de folhas mortas. Nós nos espalhamos e andamos pela parcela, apontando para troncos
caídos que vemos para que Raquel venha medir. Michael brinca que “tudo o que Raquel é
coisa morta”.
Pergunto a ela mais tarde qual é a diferença entre o que é “produção” e o que é
“estocado”. “Estocado é o que é armazenado”, ela diz e Jair, sentando ao nosso lado, adiciona
“é o que está guardado. Como uma loja, o que pode ser usado de novo”. “Produção”, por
outro lado, “é a partir de uma data que eu decidi, o que cai…e o que vai formar o estoque. Eu
estou tentando ter controle desse entrada”, isto é, a entrada daquilo que cai sobre e dentro do
205
solo “toda hora caindo”. A diferença do valor dos nutrientes entre os dois vai mostrar a
ela o quanto do que cai a produção é “reciclado” e o quanto permanece “estocado” (pelo
menos, para esta parte da floresta) e quanto nutriente está, portanto, entrando de volta na
floresta.
Em uma das minhas discussões com um pesquisador em ciclos biogeoquímicos numa
outra ocasião, nós falamos sobre o tema do trabalho que os pesquisadores em Fisiologia
fazem. O pesquisador foi inflexível: “eu não gosto desses trabalhos micro”, disse-me ele.
“Não representa o macro pra mim. Uma espécie, uma folha, pode mudar numa outro dia…..e
uma arvore, nessa area, nesse dia. Eu gosto das médias, das biomedias……nao representa
para mim, é muito muito micro, fica só num lugar.” Mas quando pergunto a eles o que é o seu
“micro”, eles me dizem que isso é uma pergunta impossível. Quando eles publicam eles vão
especificar que seus dados vêm “desta área”, onde suas amostras foram coletadas “mas
quem sabe quem vai usar os meus dados?”
A prática científica de Raquel e de Carlos E e Glaudecy tal como a observei poderia
também ser traçada como fiz com os micrometeorologistas, mas com um efeito diferente.
Suas redes são ligeiramente diferentes. Eles também estão envolvendo, listando e
posicionando uma grande quantidade de entidades heterogêneas. Enquanto que o trabalho dos
micrometeorologistas me pareceu ser caracterizado por muitas e rápidas oscilações
multidirecionais, as atividades de Raquel e de Carlos E e Glaudecy parecem ser melhor
descritas como criando o que Latour chama de “cadeias de referência” (1999a: 69)
240
, ao
longo das quais seus fenômenos madeira morta, propriedades fotossintéticas circulam,
transformadas a cada estágio por uma ou outra entidade, da fita métrica para o teclado, do
teclado para o computador, do computador para a base de dados, da base de dados para a
publicação, da publicação para....;ou, no segundo caso, do IRGA para o gráfico, do gráfico
para o computador, do computador para a base de dados, da base de dados para publicação, da
publicação para... Como Latour nota, cada momento de tradução supõe que algumas
propriedades do fenômeno sejam mantidas e outras sejam descartadas essa característica
desses “móbiles imutáveis” (1999a:102)
241
como ele os chama significa que as cadeias que
240
“chains of reference”
241 “immutable mobiles”
206
estão sendo forjadas pordem ser traçadas para a frente e para trás, da madeira morta coletada
na floresta para o artigo publicado e inversamente também. Isso é crucial para a prática ser
chamada “ciência”, nota Latour. O que é “matéria” e o que é “forma”, o que está sendo
representado e o que representa, alterna-se tanto que, em cada estágio desta transformação,
quando a matéria de madeira morta se torna um dado publicado, algo se ganha e algo se
perde. A madeira morta é “matéria” de uma “forma” que a régua oferece sob o formato de
uma medida, que então se torna “matéria” pelo volume que é abstraído daí, que então se torna
“matéria” pela densidade que representa e assim por diante. A cada passo, o fenômeno em
questão perde algumas propriedades e ganha outras. Quanto mais nos afastamos da selva de
São Gabriel e nos aproximamos de uma revista científica em ecologia na prateleira de alguém
em Berlim (onde essa informação pode chegar), perdemos particularidade e materialidade
mas ganhamos compatibilidade, universalidade e circulação (Latour 1999a: 70). Esses
fenômenos, “móbiles imutáveis”, circulam por todas essas “cadeias de referência”; não são o
resultado do encontro do “mundo real” com a “mente humana”, mas contem ambos deles em
cada estágio de transformação. A cadeia cuidadosamente construída não pode ser quebrada em
nenhum ponto; observe-se o meticuloso trabalho de rotulagem feito por Raquel e as notas que
ela toma a cada estágio. Conhecimento biológico, tempestades, estudantes de São Gabriel,
instrumentação high-tec, todos possuem efeitos e são afetados uns pelos outros. Mas a ação de
Raquel e de Carlos E e Glaudecy é direcionada obviamente para permitir que essas cadeias de
referência existam enquanto circuitos estáveis que se estendem pelo mundo.
***
Não tornarei mais explícito o que essas redes são e como elas se transformaram
durante o tempo em que as observei, porque tal explicitação demandaria outras 50 páginas.
Outro insight de Latour sobre a prática científica serve melhor para começar a responder
algumas das diferentes questões que eu toquei ao longo do texto até o momento. Para nos
lembrar, essas questões incluem: como ANT aguenta (holds up) ao longo de minha descrição
etnográfica por exemplo, quais tipos de “escapamento” (slippage) metafórico pode ser visto
na ANT tal como apareceu em minha descrição? Como entender como nas redes que tracei, “a
floresta” ou “a natureza” é emergente, enquanto ao mesmo tempo um ponto fixo para todos os
207
pesquisadores?Como podemos tentar entender o modo pelo qual as várias práticas científicas
unidas no Projeto Fronteiras ou no LBA são também marcados por descontinuidades não
apenas na forma de fronteiras disciplinares, mas por pesquisadores que “discordam” da
prática científica de outros? Também, como podemos tentar entender o modo pelo qual mudar
de lugar, seja dos escritórios separados à sala de reuniões gerais, ou do laboratório para a
selva, parece revelar diferentes configurações relacionais do que seja “fazer ciência”?
Uma forma de ver todas as práticas científicas dos pesquisadores que descrevi acima é
examinando como eles constróem “laboratórios” na floresta. Um definição simples e
convencional de laboratório poderia ser um espaço no qual as condições podem ser
controladas de modo que alguns dados possam ser obtidos. Como mencionei, por exemplo, os
micrometeorologistas estão trabalhando para obter um certo tipo de informação da floresta.
Essa informação é aquela que os instrumentos com que se lida de um modo ou de outro são
capazes de extrair do “ambiente”, ou são capazes de fazer o “ambiente” ou a “natureza”
‘falar para eles sobre. A relevância desse slant ‘semiótico’ particular para a descrição se
tornará mais clara aqui.
No entanto, essa definição de um laboratório pode ser posta em movimento de
diferentes formas. Um modo que parece interessante é explorado por Latour em um artigo
chamado “Give me a Laboratory and I will Raise the World” (1999 [1983]). Usando como
exemplo o processo pelo qual Pasteur conseguiu “descobrir” a vacina do antrax e se tornou
um nome familiar, Latour discute o potencial de um laboratório para dissolver distinções
tradicionais como micro e macro, dentro e fora. O laboratório oferece as condições nas quais
a escala pode ser invertida, de modo que os pequenos micróbios se tornam fortemente
visíveis, multiplicados em um disco de petri e contados, quantificados e registrados, enquanto
ao mesmo tempo a “hierarquia de forças” é invertida uma vez que a doença epizoótica que
ultrapassava o conhecimento das pessoas da época ficou sob “o controle dos homens”. Além
disso, Latour demonstra como o “contexto macro social” – a sociedade francesa – está de fato
sendo composta no “micro laboratório” através de uma sucessão de deslocamentos de todas as
entidades envolvidas, dos fazendeiros “interessados” aos micróbios, passando pelo próprio
Pasteur.
208
Latour traça traduções do laboratório para a fazenda onde os esporos de antrax são
colectados, para o laboratório novamente para multiplicá-los e então para Pouilly le Fort onde
o sucesso da vacina no laboratório é repetido do lado de fora, para todo o sistema agricultural
francês através de escritórios de estatística que provam que a vacina causa uma queda na
incidência de antrax. Da mesma forma, essa série de deslocamentos torna pouco claro o que
está dentro e o que está fora do laboratório, onde a ciência termina e o social começa, porque
o laboratório é estendido a cada estágio, de modo que o cientista não precisa nunca deixar seu
laboratório. O laboratório se torna a fonte inesperada de uma política nova e clara, exatamente
porque tem essa capacidade de inverter forças de hierarquia. E a razão pela qual a vacina se
espalhou por toda a França, e alguns anos depois deste evento se tornou parte da prática
agronômica padrão, é porque, em primeiro lugar, uma rede estatística existia esperando
para “provar o sucesso da vacina e, em segundo lugar, porque as condições de laboratório são
construídas fora do laboratório “fatos científicos são como trens, eles não funcionam fora
dos trilhos” (ibid:266)
242
isto é, porque as condições de laboratório estão estendidas por
todos os lugares, o “fato” da vacina também está. O fora é dentro e o dentro se espalha para
fora.
Os micrometeorologistas, nas proprias palvras deles, constrói um “laboratório” a partir
de uma rede com o qual ele tenta consertar o Licor (um laboratório que, no fim das contas,
não tem as condições de laboratório e portanto não os permite completar sua tarefa). Além
disso, os instrumentos que estão sendo investigados pelos micrometeorologistas transportam
condições de laboratório para a floresta e tornam possível medir o “fluxo de carbono” ou a
“umidade do solo” de um modo que outros pesquisadores podem entender. Na teoria, este
equipamento poderia fazer isso em qualquer lugar do mundo (embora os
micrometeorologistas, note-se, estejam na torre exatamente porque isso não parece ser o
caso). Como afirma Latour, leis universais são universais somente na medida em que as
condições de laboratório que as produz podem ser replicadas universalmente. O “mundo” e
este lugar onde a torre está Latitude 0 grau 12, 740’N, Longitude 66 grau 45, 884’ S, podem
falar uns com os outros através deste equipamento. Ao mesmo tempo, a enorme floresta
Amazônica é posta sob controle, quantificada e carregada em números (loaded into numbers).
242
“scientific facts are like trains, they do not work off their rails”
209
Raquel e Glaudecy e Carlos E estão também construindo laboratórios na floresta. O
laboratório de Carlos E e Glaudecy está condensado em um equipamento muito high tech que
os permite controlar exatamente o influxo de certos fatores escolhidos. Este equipamento
novamente transporta as condições de laboratório para a floresta, permitindo Carlos E e
Glaudecy produzir as inscrições que eles precisam. Um pequeno número de amostras via uma
série de experimentos repetidos (isto é, condições de laboratório repetidas), virão falar por
cada membro existente dessas seis espécies de árvores (ao menos presumivelmente até que
outra amostra com uma “voz mais alta” apareça). Novamente, a distinção entre pequena e
larga escala se torna indiscernível pela extensão do laboratório na floresta e pela forma como
a floresta emerge numa forma purificada e inscrita a partir do encontro com e no laboratório.
Raquel usa equipamentos aparentemente muito menos sofisticados do que aqueles dos
fisiologistas de plantas. Ele tem uma fita métrica, uma fita e fios amarelos e seus olhos. Mas
ela igualmente pode ser vista como construindo seu laboratório, de uma forma muito mais
óbvia a olho nu. Nós gastamos muito tempo construindo as condições que irão permitir a ela
obter os dados que ela precisa. Medindo e marcando suas “parcelas”, limpando as
“parcelinhas” de toda matéria morta, rotulando e identificando as árvores mortas que já foram
contadas, de modo que no final do dia a parcela não pareça mais nenhuma outra parte da
floresta. O quadrado de 100m x 20m foi transformado de modo que pode fornecer a ela com
informações que ela pode usar para falar sobre toda a área de São Gabriel e não apenas lá.
Como me disse outro pesquisador de ciclos biogeoquímicos “quem sabe quem vai usar meus
dados?” Como saber o quão “global” os dados de alguém se tornarão?
Em todos esses casos, é possível discernir as transformações e inversões de escala que
Latour descreve, através da extensão das “condições de laboratório” para dentro da floresta.
Em cada caso essas condições são ligeiramente diferentes (para isso eu devo retornar mais
tarde), mas todos têm o objetivo de obter dados. Mas o que significa “obter dados”? Seja com
os micrometeorologistas, com os fisiologistas de plantas ou o pesquisador em ciclos
biogeoquímicos, o que pareceu estar acontecendo nesses atos de construção era mais como
uma 'eliciação' (elicitation) de algo mais do que uma imposição.
210
A torre escondida entre as árvores, o IRGA protegido pelo guarda sol de praia multi
colorido no meio da floresta, a “parcela” marcada com áreas nuas, fita amarela e rótulos
esses diferentes “laboratórios” eram todos, de modos diferentes, dependentes do seu ambiente
para assumir a forma que tomaram, e ao mesmo tempo estavam moldando seu ambiente de
diferentes modos. Parecia haver uma cumplicidade, um envolvimento “não-natural” ou
surpreendente, com a ação envolvida.
É no próprio ato de tentar delimitar um espaço no qual começar um processo de
transformar a “natureza” em “números” – carregando (loading) o mundo em palavras – que se
molda a “natureza” da natureza que será quantificada e que encontra seu caminho em papers
publicados e discusões que acontecem a milhares de quilômetros de distância. O
relacionamento que o “ambiente” tem com os “dados” é nesse sentido algo inventado
(devised) e particular. Parte do ambiente é “dados”; parte é ruído indesejado ele “interfere
com os dados”. A partir de uma discussão com Flavio Luizão, eu fico sabendo que o
comportamento dos insetos é uma área do ciclo de carbono na floresta que foi pouco
pesquisada e merece mais atenção, mas para Marta isto é irrelevante para aquilo que ela está
tentando se assegurar. As ações das centopéias e anfíbios impertinentes não são parte disso.
Ela está tentando eliciar (elicit) um certo tipo de informação. Por um lado, como ela me diz,
“a gente sabe que tudo é interligado”, uma conceitualização que parece se aplicar a todas as
diferentes áreas do LBA e fundamentalmente permite que o mundo inteiro eventualmente seja
considerado um sistema, como exemplificado pelos modelos globais no último capítulo.
Mas, ao mesmo tempo, o mundo é feito de muitos diferentes sistemas, somente um desses
interessa a Marta. Aqui, como vimos nos últimos dois capítulos, a realidade holística
“overarchingnão está no centro das atenções. De fato, está sempre além do alcance e, como
tal, não no “centro” de nada. A configuração criada pelo perfil de equipamento e a
combinação (conflation) de conhecimento contido dentro de tais equipamentos tal como
existem na torre produzem um certo tipo de realidade. Marta tem que se assegurar das
condições necessárias para ela e outros que irão utilizá-los para ser capaz de “confiar” nos
dados que ela está coletando. É nesse sentido que ela está persuadindo os instrumentos a falar
para ela. Tanto a informação sendo extraída ou eliciado (elicited) e as dificuldade inerantes a
essas práticas específicas de 'eliciação' (elicitation) fazem a floresta, ou a “natureza” ou o
“mundo” (dependendo de quão longe os pesquisadores estendem seus dados) tomar uma
forma específica, reconhecível para os meteorologistas, mas possivelmente muito obscura
211
para, digamos, um geólogo. Da mesma forma, como nota Michael, tudo o que Raquel é
“coisa morta”; este é o certo tipo de realidade que Raquel busca, o que não é o mesmo que
busca a equipe de Fisiologia. Seu trabalho não “representa” o “macro” para alguém nos Ciclos
Biogeoquímicos porque tantos tipos diferentes de ‘macro’, ainda que todos estejam
contidos dentro da rubrica “ciência”. A “natureza” (como a “sociedade francesa”) está sendo
composta de modos muito diferentes dentro do espaço do laboratório fornecido pelos
instrumentos.
Uma breve divagação aqui. Latour também descreve os laboratórios como locais não
tanto onde o conhecimento se acumula, mas onde tentativas e erros são acumulados e
registrados longe de olhares curiosos, de modo que o cientista pode sair do seu laboratório
finalmente com um “fato certo”. Os cientistas podem fazer isso, porém, porque a
quantidade de erros que ele ou ela registraram e inscreveram tornam as reivindicações de
quaisquer outros cientistas com menos erros muito menos poderosas do que suas próprias.
Aqui uma interessante inversão que imagino que se aplique aos micrometeorologistas:
estar “errado” pode também ser “certo”. O culpado que se prova inocente, como vimos, é um
“erro” que algumas vezes oferece um aumento na certeza (que é onde eu estava chegando
quando sugeri que “certeza” e “incerteza” de algum modo funcionam juntos). Mas, ao mesmo
tempo, não há, novamente, sempre um sentido de acumulação de erros. No trabalho de Carlos
E e Glaudecy, número de repetições do experimento é o que conta em última instância
quanto mais repetições, melhor, eles dizem. Cada repetição soma-se ao perfil crescente de
taxas de fotossíntese daquela espécie em particular e os torna mais capazes e confiantes para
estender essas entidades para artigos publicados. Mas os micrometeorologistas estão lidando
com entidades que são muito mais inconstantes do que essas. Os erros que ocorrem não
podem sempre agir no sentido de aumentar a carga de certeza que é desejada, como
evidenciada pela forma na qual os micrometeorologistas oscilam de forma vertiginosa entre
entidades, possibilidades, certeza e incerteza.
***
Vou tentar agora mudar na direção de explorar com mais detalhe exatamente como os
cientista do LBA que acompanhei “representam” seus “macros” ou suas realidades. Isso não é
212
apenas uma questão do que significa “representar”, mas, é claro, sobre o que a “realidade”
deve ser. O movimento crucial é aquele que parece aproximar a ambos. Na Invention of
Modern Science (2000a [1993]), Stengers se propõe a árdua tarefa de descrever a
singularidade das ciências modernas, de modo a nem reduzi-las nem a elas sucumbir. Um dos
pontos de convergência mais inspiradores nos trabalhos de Latour e Stengers é sua insistência
de que a prática científica e a prática política têm essencialmente o objetivo de perguntar as
mesmas questões. Como escreve Latour: “Busco simplesmente enfatizar uma vez mais que
não dois problemas, de um lado as representações científicas e do outro a representação
política, mas um problema: Como se pode conseguir que aqueles em nome dos quais
falamos possam falar por si mesmos? (2004a:70, see also Latour 1988)243. Mencionei que
considero a ênfase da ANT na semiótica fértil devido ao modo como ela contraintuitivamente
desloca o discurso. Gostaria de me concentrar no modo como pensar sobre a prática científica
desta maneira e examinar esse movimento de deslocamento como faz Stengers pode nos
ajudar a entender algumas das questões que coloquei anteriormente. Uma vez que o
argumento de Stengers é sofisticado e complexo, uma breve investida sobre alguns dos seus
pontos principais será necessária para mostrar o quanto eles ressoam com as questões que
surgiram no meu trabalho de campo, muitas das quais voltarei no último capítulo.
Explorando algumas das principais críticas da ciência, incluindo as críticas radicais
feministas e as sociológicas construtivistas, Stengers aponta que “os cientistas sabem que eles
estão inseridos em redes sociais... Mas eles também sabem que não são apenas isso (2000a
[1993]: 12-13)
244
e que a tarefa que nós (aqueles que estudam a ciência) devemos tomar para
nós mesmos é uma que portanto necessita que apliquemos o “princípio de irredução”
(ibid:16)
245
que marca a passagem do “isso é aquilo” para “isso não é aquilo” ou “não apenas
aquilo” e prescreve “o recuo da reinvindicação de saber e de julgar” (ibid: 16)
246
. Esse recuo é
243 “I seek simply to emphasize once again that there are not two problems, one on the side of the
scientific representations, and the other on the side of political representation, but a single problem: How can
we go about getting those in whose name we speak to speak for themselves?”. Ver também Stengers: “A
mesma questão aparece em relação à pessoa que afirma falar pelos outros e em relação à teoria que afirma
representar os fatos: como se reivindica o reivindicador legítimo? (Stengers 2000a [1993]: 61)
(“The same question presents itself with regard to the person who claims to speak for others as it does with
regard to the theory that claims to represent the facts: How does one claim the legitimate claimant?”
(Stengers 2000a [1993]: 61))
244
“scientists know that they are embedded in social networks…but they also know that they are not only
that”
245 “principle of irreduction”
246 “retreat from the claim to know and to judge”
213
importante porque é ao reivindicar ser capaz de “conhecer realmente” o que a ciência é seja
um tirano hegemônico ou uma construção social - as críticas feministas ou construtivistas não
apenas 'compram' o discurso científico ao afirmar que os cientistas de fato 'sabem' o que estão
fazendo, mas também se contradizem ao denunciar esse discurso ao mesmo tempo em que
usam sua lógica para comprovar as suas próprias posições estabelecidas (knowing) (essa
crítica é o que Stengers chama de argumento de “retorsion”).
Tomando as posições de Popper, Kuhn e Feyerabend, ela destila de cada um deles um
certo aspecto que é necessário para entender o que é singular na ciência moderna. De Popper
ela destaca que “a situação não é redutível ao seu meio de emergência” (ibid: 48)
247
, mas não
apenas isso; de Kuhn ela sublinha que a ciência preserva uma autonomia e não pode ser
reduzida a uma “leitura sociológica” porque um paradigma é uma prática, “um modo de
fazer... uma intervenção, não apenas um julgamento” (ibid: 49)
248
e que, para interpretar as
ciências “é agora necessário ir até os próprios cientistas e não mais até o seu 'contexto'” (ibid:
50)
249
, mas não apenas isso; de Feyerabend, ela traz a noção de que a ciência não pode ser
entendida de modo separado de sua tradição histórica, mas não apenas isso.
Stengers defende o “princípio de irredução” como o meio pelo qual dirigir nosso
curso. O princípio de irredução deve ser aplicado ao estudo da própria ciência (ibid: 42),
“recusando-se a permitir que uma situação seja reduzida ao que a passagem do tempo nos
permite dizer sobre ela hoje”, sem, ao mesmo tempo, fundar “um privilégio para as ciências,
que sozinhas escapariam à análise sociológica” (ibid: 58)
250
. Ela propõe uma abordagem que
recusa chamar o apelo científico à objetividade e à realidade como “folclore” ou “mitos”, mas
também é capaz de “rir” disso reaprender a gargalhada de Diderot que gostava e respeitava
D’Alembert “sem se deixar impressionar por ele(ibid: 112). “Nesse sentido, ironia e humor
constituem dois projetos políticos distintos, dois modos de discutir sobre as ciências e de
produzir debates com cientistas. A ironia opõe poder a poder. O humor produz (na medida em
247
“a situation is not reducible to its milieu of emergence”
248
“a way of doing…an intervening, not just a judging”
249
“it is now necessary to go through the scientists themselves…and no longer through their ‘context’”
250
“refusing to allow a situation to be reduced to what the passing of time gives us the power to say about
it today” ... “a privilege for the sciences, which alone would escape sociological analysis”
214
que ele mesmo consegue ser produzido) a possibilidade de uma perplexidade compartilhada
que efetivamente torna iguais aqueles que consegue aproximar. A esses dois projetos
corresponde duas versões distintas do princípio da simetria: “um instrumento de redução ou
um vetor de incerteza” (ibid: 66)
251
. É este princípio de irredução ou humor, em oposição à
redução e ironia, o que permite a ela formular uma descrição particularmente perspicaz do que
é singular sobre a ciência moderna e também o que é internamente divergente.
Stengers situa a emergência da ciência moderna no laboratório de Galileu, onde ele
conseguiu não apenas descrever o movimento de um pêndulo ideal (aceleração dos corpos),
mas também silenciar todas as outras “ficções” por meio de seus próprios poderes. “Ficção”
aqui é usado de um modo específico252. Afirmações científicas são ficções, mas são “ficções
muito específicas, capazes de silenciar aqueles que afirmam “é apenas uma ficção” (ibid:
80)
253
. O que é científico, portanto, habita este tipo de domínio relativista-absolutista que se
tornou familiar para os estudantes de Estudos de Ciência e Tecnologia um domínio de
pessoas que reivindicam “a verdade” ou se opõem a ela, o que é igualmente uma “ficção
particular”254. Galileu fez sua reivindicação de modo a “apagar” a si mesmo e deixar o
“plano inclinado” falar “o que é apresentado como tendo sido reconquistado é o poder de
fazer a natureza falar” (ibid:80). Na descrição de Stengers, “Galileu se apaga de modo a
atribuir ‘fala’ à coisa que vai silenciar os outros. Entra o plano inclinado.” (ibid: 83)
255
. O
plano inclinado permite o fenômeno falar, o que ele faz, por sua vez, para silenciar as
reinvidicações rivais de outras “ficções” sobre a “verdade”. E este “mundo ficcional” que
Galileu cria não é simplesmente aquele que ele sabe como controlar ou “interrogar”, mas um
mundo em que qualquer pessoa pode interrogar de um modo diferente do dele. Este é o
significado do objetivismo. A ênfase de Stengers no laboratório é importante. Ligeiramente
diferente de Latour, ela cita o poder do laboratório enquanto lugar da invenção de um tipo
particular de poder o poder da ciência moderna. Não é somente um meio para inverter
251 “In this sense, irony and humour constitute two distinct political projects, two ways of discussing the
sciences and of producing debate with scientists. Irony opposes power to power. Humour produces (to the
degree it itself manages to be produced) the possibility of a shared perplexity, which effectively turns those it
brings together into equals. To these two projects, there correspond two distinct versions of the principle of
symmetry: an instrument of reduction, or a vector of uncertainty”
252 Aqui, Stenger usa “ficção” no sentido deleuziano.
253
“very specific fictions, capable of silencing those who claim “it’s only a fiction””
254 Latour (2005) e Strathern (1988a) também utilizam a noção de “ficção”, de modos particulares que
devo abordar no último capítulo.
255
“Galileo effaces himself in order to leave “speech” to the thing that will silence the others. Enter the
inclined plane”
215
relações de hierarquia e provocar mudanças em escala, mas é o lugar em que a relação sujeito-
objeto foi estabelecida isto é, quem faz as pergunta (o sujeito cientista) e quem as responde
(o objeto). (A diferença é importante porque é aqui que ela localiza os meios pelos quais nós
podemos dar conta das diferenças entre as ciências sem “ratificar sua hierarquização” (ibid:
47). Voltarei a isso mais tarde).
Voltamos então para a primeira citação que eu tirei de Stengers, no segundo capítulo:
“Nas ciências modernas, podemos ver a invenção de uma prática original de atribuição da qualidade
de ser um autor, jogando com os dois sentidos que isso opõe: o autor é um indivíduo, animado de
intenções, projetos, ambições; e o autor é alguém que cria autoridade. Não é uma questão de uma
ingenuidade que poderia ser criticada, por exemplo, pelas teorias literárias contemporâneas, mas diz
respeito à regra do jogo e a uma invenção imperativa. Os cientistas se reconhecem e a seus colegas
como “autores” no primeiro sentido do termo. Isso importa pouco. O que importa é que seus colegas
são constrangidos a reconhecer que eles não podem transformar a qualidade dos autores em um
argumento contra eles, eles não podem localizar a falha que os permitiria afirmar que alguém que
reivindica ter “feito a natureza falar” na verdade fala em seu lugar. Este é o significado próprio do
evento que constitui a invenção experimental: a invenção do poder de atribuir para às coisas o
poder conferido ao experimentador para falar em seu nome” (ibid: 89, ênfases minhas)
256
.
Podemos agora voltar para a minha primeira conversa com Raquel: ela não inclui
dados sobre seus “projetos, ambições ou intenções” ou qualquer outro “atalho subjetivo”, não
porque ela seja tímida e não queira falar sobre isso, mas porque não lugar ou espaço para
eles; ela não está interessada nisso, nem qualquer outra pessoa que ela tem interessar com seu
trabalho. O teste que ela, como cientista, está enfrentando, é de outro tipo tentar dar à
natureza o poder de dar a ela o poder de falar em seu nome. Essa relação distribuída é crucial.
256
“In the modern sciences, we can see the invention of an original practice of attribution of the quality of
being an author, playing on the two senses that it opposes: the author as individual, animated with intentions,
projects, ambitions; and the author as someone who creates authority. It is not a question of a naiveté, which
could be critiqued, for instance, by contemporary theories of literature, but of a rule of the game and an
imperative of invention. Scientists know themselves and their colleagues as “authors” in the first sense of the
term. This matters little. What matters is that their colleagues are constrained to recognize that they cannot turn
the quality of authors into an argument against them, that they cannot localise the flaw that would allow them to
affirm that someone who claims to have “made nature speak” has in fact spoken in its place. This is the very
meaning of the event that constitutes the experimental invention : the invention of the power to confer on
things the power of conferring on the experimenter the power to speak in their name”
216
Raquel está “criando sua autoridade” ao “fazer a natureza falar”. Latour nomeia isso em
termos de “proposições” (1999a, 2000): “uma afirmação diz em palavras o que uma coisa é.
Uma proposição implica que nós somos feitos “falar deste modo por aquilo que está sendo
falado” (2000:374)
257
e, em seguida, referindo-se ao lugar do observador nisso: “aquilo que
permitimos falar de modo interessante nos permite falar de modo interessante” (2000: 376)
258
.
Encontramos a noção de proposições (tomada de Whitehead), quando no último capítulo eu
expliquei a descrição de Latour sobre elas como “ocasiões” em que as entidades podem ser
articuladas de modo a mudar propriedades e se tornar “real”. Isso forneceu uma abertura para
direcionar a discussão no sentido de demonstrar a necessidade de prestar atenção para aquilo
que os modeladores estavam me dizendo, não o que pensei que estavam afirmando mas o
modo pelo qual o mundo e o modelo de diferentes modos se modificam através de suas ações.
Eu irei desenvolver esta noção de proposição de um modo diferente neste capítulo.
A agência distribuída é em certa medida uma premissa implícita da ANT a ação é
deslocada, incerta e emergente, assim como o discurso/a fala. A ênfase no par humano/não-
humano é importante porque permite que toda a multitude de entidades que vimos sejam
levadas a ter igual espaço de fala, como na micrometeorologia, por exemplo: “tal como a
noção de fala/discurso na seção anterior designava não alguém que estava falando sobre uma
coisa muda, mas designava um impedimento, uma dificuldade, uma gama de posições
possíveis, uma incerteza profunda, do mesmo modo o par humano/não-humano não se refere
à distribuição dos seres do pluriverso, mas a uma incerteza, uma dúvida profunda sobre a
natureza da ação, toda uma gama de posições relativas aos experimentos que tornam possível
definir um ator(Latour 2004a: 73)
259
. Isso também implica que “incerteza” e “risco” não são
atributos a serem superados, mas devem, ao invés disso, formar a base das nossas tentativas
de entender. Devo voltar para isso, já que Latour, em ambas as citações, está aproximando
muito claramente aquilo que nós cientistas sociais fazemos daquilo que os primatólogos ou
biólogos fazem. Isso é significativo. O importante aqui é a idéia de que somos feitos falar por
257
“a statement says in words what a thing is. A proposition implies that we are made to speak in this way
by what is talked about”
258
“we are allowed to speak interestingly by what we allow to speak interestingly
259
“just as the notion of speech, in the preceding section, designated not someone who was speaking about
a mute thing, but an impediment, a difficulty, a gamut of possible positions, a profound uncertainty, so to the
human-nonhuman pair does not refer us to a distribution of the beings of the pluriverse, but to an uncertainty, to
a profound doubt about the nature of action, to a whole gamut of positions regarding the trials that make it
possible to define an actor
217
aquilo sobre o que falamos e isso é um refinamento da ANT, na medida em que isso está
engendrando um tipo muito particular de relação emergente. Não que qualquer entidade seja
“habilitada” (enabled) numa rede por um certo número de outras entidades, mas que, ao falar,
uma entidade se introduz na rede e é habilitada por aquilo que está sendo falado.
A formulação de Stengers é talvez um ponto mais claro para começar. No último
capítulo eu descrevi esta formulação como evocando um agencement recursif”, um tipo de
agência recursiva distribuída. Isso não apenas ilumina os comentários que Raquel fazia sobre
seu trabalho, mas também captura muito bem a impressão geral que eu fiquei depois do
trabalho de campo. Eu não quero dizer que o recurso a tais comentários gerais sejam um fator
definitivo na análise, mas como espero ter deixado claro, eles têm a capacidade de pôr minha
descrição em movimento. A sensação que tive foi a de uma elucidação feita com
cumplicidade.
A construção cuidadosa de laboratórios que pareciam tão frágeis, o uso temporário que
nós estávamos fazendo da própria floresta, a forma como os micrometeorologistas persuadiam
e adulavam cuidadosa e pacientemente seus instrumentos dizendo a eles o que precisavam
ouvir tudo isso parece encapsulado de forma muito astuta na citação de Stengers. A relação
entre o pesquisador e a floresta era tal que permitia uma ação em ambos os lados, sem se
reduzir a meros “resíduos” ou a resultados produzidos pelo outro. E essa “cumplicidade”
engendra algo que possui algo de monstruoso, como no caso do cyborg; uma hibridez
(hybridity) “ilegal” - um reposicionamento de coisas convencionalmente tidas como dadas
que pode de fato estender nossa compreensão.
Por exemplo, o modo como esta formulação recursiva rearruma a configuração
convencional das relações entre a construção da prática científica e a “realidade” ilumina a
questão de como, nas nossas conversas, a “natureza” permanece como um referente fixo e, ao
mesmo tempo, algo específico que esses laboratórios permitem que seja construído.
“Representar a natureza” não é construi-la de modo a reduzir seu poder e tornar a “realidade”
em “mito”. Como nota Stengers:
“Procedimento, verdade e realidade engajam-se sob o modo de um novo modo de existência e
de fazer existir, em que o procedimento produz a verdade em relação a uma realidade que ele
218
descobre-inventa; em que a realidade garante a produção da verdade se os constrangimentos do
procedimento são respeitados; em que o cientista submete-se a um tornar-se que não pode ser reduzido
à simples possessão de um conhecimento”
(2000a [1993]: 92)
260
A natureza é a única autoridade que os pesquisadores reconhecem, o ponto fixo ao qual eles
voltam sempre. Mas eles sabem também que, para que esta autoridade lhes autoridade,
para que isso seja feito, é necessário muito trabalho. A “natureza” e a prática são deste modo
“reinventadas” junto (ibid: 94). Trata-se de um empreendimento arriscado, que requer
tentativas, erros e incerteza para se entrar e para permitir a entrada de outras entidades que
estejam interessadas em questionar, objetar e testar. Um empreendimento em que permite-se
que não-humanos, tanto quanto humanos, tenham sua voz. Algo em que, como Jair destaca
para mim, ser “imutável” é ser “testável”.
Portanto, os micrometeorologistas (e, note-se, isso ressoa com o modo como Eduardo
Leonardo falou sobre “realidade” no último capítulo: ‘quanto real eu quero fazer no meu
estudo’) estão lidando exatamente com essa invenção de um poder que recursivamente
habilita. Eles estão carregando (loading) seus equipamentos com certeza, assegurando-se que
eles de fato tenham o poder de permiti-los ter o poder de falar em seu nome. E se a
recompensa por ser bem sucedido é alta, o risco de queda também é grande. No mínimo
porque os dados sendo produzidos pela torre em São Gabriel são vitais para fornecer
informações sobre a “floresta primária” e intenciona-se utilizá-los em artigos e papers por
todo o mundo. Como pessoa responsável por esta torre, Marta perde o sono com sua
reticência.
E a minha outra questão sobre como é que espaço e prática parecem se relacionar um
com o outro; que “no campo, tudo muda”, mas ao mesmo tempo todo pesquisador está
“fazendo ciência”; e não apenas isso, mas mesmo onde descontinuidades e
desentendimentos, cada pesquisador é parte do LBA quanto projeto unificado com um
objetivo único? Aqui eu acho que o trabalho de Stengers oferece uma direção mais clara do
260
“Procedure, truth and reality engage in the mode of a new way of existing and making exist where the
procedure produces truth with regard to a reality that it discovers-invents; where reality guarantees the
production of truth if the constraints of the procedure are respected; where the scientist submits to a becoming
that cannot be reduced to the simple possession of a knowledge.”
219
que o de Latour, tal como o caracterizei até o momento. A idéia de que pode-se permitir que
diferenças apareçam de processos em rede é um bom ponto de partida, mas o que se deve
fazer com essas diferenças? Isso se combina com o fato de que “distribuir” uma rede deste
modo tem como efeito o esvanecimento das distinções sócio-estruturais convencionais,
exatamente como Latour pretende e prevê – a ciência aparece como uma prática sócio-
cultural, e, enquanto tal, a possibilidade de traçar seus contornos específicos é tornada
possível. Porém, como se chega a entender o modo como a ciência é uma prática social
diferente de qualquer outra está em risco aqui, um tema que Latour, ao mesmo tempo que
sublinha a importância disso, não torna tão explícito quanto poderia.
Stengers, num certo tipo de “idealismo concreto”, situa todas as ciências modernas, de
um modo ou de outro, como tendo surgido depois deste “evento”261 no laboratório de
Galileu, em que o plano inclinado “conferiu aos corpos que caem o poder de conferir a
Galileu o poder de definir como o movimento de aceleração deveria ser interpretado”
(Stengers 2007)
262
. Esta formulação é o que todas as ciências têm em comum e, de fato, como
eu indiquei, Stengers e Latour deixam claro que isto é uma questão política também. Mas a
preocupação de Stengers é também com os modos nos quais as ciências modernas divergem.
No laboratório, ou nas “ciências experimentais”, a situação foi “purificada”, controlada, de
modo que aquilo a que se pede ser uma “testemunha confiável” da ficção (que precisa sileciar
todos os outros), possa ser o árbitro de um poder insuperável, exatamente porque tais testes
podem ser repetido potencialmente ad infinitum, se as condições de laboratório são satisfeitas,
e ninguém pode interpretar os resultados de modo diferente. Certamente, no caso de Raquel,
as “parcelas” de floresta parecem preencher parcialmente os critérios para serem consideradas
um laboratório como ela diz, ela quer controlar o que entrar nas parcelas. Então elas são
limpas de toda matéria, esvaziadas de modo a fornecê-la toda a informação que ela precisa,
dados em que ela pode confiar para falar em nome da natureza. Mas, ao mesmo tempo, como
261 Stengers emprega “evento” de um modo muito particular (também a partir de Deleuze), como um
momento formado pelas interpretações que se seguem ao evento – ele cria uma diferença, mas Stengers não
especifica o que esta diferença significa. Ver Stengers 2000 [1993]:67-69
uses ‘event’ in a very particular way (also drawing on Deleuze), as a moment which is figured by the
interpretations of it that come afterwards – it creates difference, but does not specify what that difference
means. See Stengers 2000 [1993]:67-69
262
“conferred to falling bodies the power of conferring on Galileo the power to define how their
accelerated motion was to be interpreted”
220
vimos, ela não pode controlar tudo. Ela tem que admitir que isso é o melhor que ela pode
fazer nessas circunstâncias, que você sempre tem que “encontrar um jeito”. Desejo me
concentrar agora nessas circunstâncias, pois elas fornecem um modo muito significativo para
se observar a natureza particularmente distinta da prática científica, em oposição a qualquer
outra. Além disso, elas servem para sustentar as diferenças específicas que se precipitam da
minha etnografia.
A relação particular que Latour aponta quando ele usa a noção de proposição é
inerentemente dialética. Isto é, as posições “falante” e “falado” mesmo se essas posições
contém dentro de si múltiplas entidades. Latour descreve o par humano/não-humano como um
modo de se desviar da distinção sujeito-objeto, o que vimos que adiciona uma grande
quantidade de entidades para qualquer análise sobre o que a “ciência em ação” envolve.
Porém, Stengers faz um uso mais interessante desta distinção. Ela sugere que “é interessante
transformar uma contradição aparente em uma tensão que habita o grupo em questão”
(2000a [1993]: 130)
263
. Como apontei, parece que os pesquisadores com quem trabalhei estão
criando laboratórios no campo. Outro modo ainda é se pensar o laboratório como o local onde
o sujeito interroga o objeto, ou onde a relação sujeito-objeto é formada enquanto uma relação
marcada pela diferença de poder. O sujeito se relaciona com o objeto de certo modo, distinto
do modo como se relaciona com outro sujeito. Mas “da perspectiva em que a experimentação
é afirmada como uma prática singular - o que não pressupõe, mas cria tanto o sujeito como o
objeto e suas relações nenhuma versão dessas relações, não importa o quão purificadas,
pode reivindicar uma validade geral” (ibid: 133)
264
. Assim, dentro do quadro da concessão
recursiva da agência, o que é sujeito e o que é objeto encontra seu significado como uma
questão prática e não filosófica. Se o que Stengers está tentando fazer ao empregar o
princípio da irredução é, pelo vetor do “humor”, separar a “ciência” do “poder”, mas sem
separá-la da “verdade” (nem tornando-a passível de ser reduzida a outras ficções, nem
reduzindo-a a um ‘mito’) e, ao mesmo tempo, descrever sua singularidade, ela não pode
simplesmente eliminar esta relação sujeito-objeto, porque esta distinção define o que é ciência
e o que não é, o que é colocado à prova e o que não é. Isto é, esta distinção conta da
263
“it is interesting to transform an apparent contradiction into a tension that already inhabits the group in
question”
264
“from the perspective where experimentation is affirmed as a singular practice, which does not
presuppose but creates both subject and object as well as their relations, no version of these relations, no matter
how purified, can claim a general validity any longer”
221
singularidade da ciência, em oposição ao que não é ciência. Mas a relação é modificada: “é
reconhecida, não como um direito, mas como um vetor de risco, um operador de
“descentramento”. Não atribui ao sujeito o direito de conhecer um objeto, mas ao objeto o
poder (a ser construído) de colocar o sujeito à prova” (ibid: 134)
265
. Isso conta de uma
assimetria emergente, uma inversão das relações sujeito-objeto tradicionais, de uma forma
que talvez a descrição de Latour dos humanos/não-humanos não faça de modo explícito.
Este é, portanto, o primeiro elemento que considero esclarecedor. A realidade com que
os cientistas estão lidando não é um mito; mas também não é uma entidade muda esperando
para ser descoberta. Ela põe os cientistas à prova. Os pesquisadores que acompanhei estão
negociando esta invenção de um poder deslocado em que nem sempre se obtém certeza.
Assim, a caracterização das ciências modernas “não é mais uma questão de vencer o poder da
ficção, é sempre uma questão de colocá-la à prova, de submeter as razões que inventamos
para uma terceira parte capaz de colocá-las em risco” (ibid: 134)
266
. Isto é, de fato, um
construcionismo-anti construtivista. Atribui-se “realidade” à terceira parte, de modo a
ameaçar ou descentrar, não para confirmar. Inventar o poder de atribuir à natureza o poder de
autorizá-lo a falar em seu nome torna o poder algo muito mais debatido e incerto. De fato, não
se trata de poder, no sentido de que ele nunca está fixo. A fixidez com que vemos os
micrometeorologistas falarem sobre a Natureza está sempre sendo minada pelo fato de que
esta mesma Natureza os ultrapassa em complexidade. Deve-se fazer a Natureza ser uma
autoridade, mas uma autoridade que desestabiliza, porque não é mais o caso de ter suas
próprias perguntas confirmadas ou refutadas, mas de provocar o seu objeto a fazer as
perguntas e retrabalhar sua prática em torno deles. Por sua vez, isso significa que “como os
sofistas disseram, se ‘o homem é a medida de todas as coisas”, é sempre uma questão de
inventar práticas graças as quais essa afirmação perde seu caráter estático e relativista e entra
em um dinâmica no qual nem o homem nem a coisa é o dono da medida, em que a invenção
de novas medidas, isto é, novas relações e novos testes, é o que distribui as respectivas
identidades de homem e coisa” (ibid: 134)
267
. A ‘produção de testemunhas confiáveis’ no
265
“it is recognized not as a right, but as a vector of risk, an operator of “decentering”. It does not attribute
to the subject the right to know an object, but to the object the power (to be constructed) to put the subject to the
test”
266
“no longer a question of vanquishing the power of fiction, it is always a question of putting it to the test,
of subjecting the reasons we invent to a third party capable of putting them at risk”
267
“if, as the Sophists said, “man is the measure of all things”, it is always a question of inventing
222
laboratório de Galileu é reinventada, rearrumada e reconfigurada nas ciências modernas.
Voltando para Latour, os cientistas são feitos falar por aquilo sobre o que falam e isso é
uma dialética móvel, que tem a ver com 'recomeço' (recommencement) e reinvenção.
Lembramos aqui da teoria de Holbraad do mótile lógico, em que ambos os lados estão num
estado de tornar-se (“not-yet”). Mas como mencionei no último capítulo, as relação específica
entre esses dois é importante. Em que medida o cientista é habilitado para falar por aquilo
sobre o que ele/ela está falando? A noção de porta-voz, aquele ou aquela que falam em nome
do mundo, é uma noção que considero útil para refletir sobre minha etnografia e para dar
conta da cumplicidade que observei entre os pesquisadores e a floresta ou a “natureza”. Mas
essa relação contém suas próprias variações. A questão premente aqui é em que medida uma
transformação ontológica se efetua (para usar o vocabulário de Holbraad).
Stengers caracteriza a prática científica moderna modificando essa distinção sujeito-
objeto, que coloca o próprio mundo como o ator central que “subjaz e provoca aqueles que o
descrevem” (2000a [1993]: 47)
268
. Mas essa própria modificação forma a base para se levar
em conta as divergências dentro das práticas científicas. Stengers apresenta a modelação
climática que mencionei no capítulo anterior como um exemplo de um tipo de prática de
laboratório que está reinventando as ciências modernas do modo como ela descreve. Um
modelo não é uma teoria. Enquanto esta última desconta todas as outras possibilidades ao se
prolongar universalmente, o primeiro traça conseqüências e “se apresentam enquanto ficções”
(ibid: 135)
269
.Vários modelos diferentes podem coexistir alegremente. Como vimos, cada um
deles definido por variáveis diferentes, cada um tão potencialmente real ou teórico quanto o
outro. Enquanto as simulações matemáticas relativas à prática científica à la Galileu estão
preocupadas em atribuir o mesmo tipo de certeza aquela em que aquilo de que falo e em
nome de que falo não pode ser contestado a modelagem está preocupada com a matemática
da imaginação e da especulação. Isso talvez explique a tamanha confusão que fiz no catulo
anterior. A modelagem climática ocorre em um “laboratório de informação” (em oposição ao
practices thanks to which this statement loses its static, relativist character and enters into a dynamic in which
neither man nor thing is the master of measure, where it is the invention of new measures, that is, new relations
and new tests, that distribute the respective identities of man and thing.”
268
“subsists and provokes those who describe it”
269
“say of themselves that they are fictions”
223
“laboratório material” e, enquanto tal, “muito mais rápido, suave e dócil” (ibid: 137)
270
).
Pode-se, como Eduardo Leonardo me disse, “brincar de ser Deus”, sendo que a palavra
operativa que repito é “brincar”. Como tentei demonstrar, pode-se subir e descer em escala e
mudar a relação de representação-real. E, como Eduardo Leonardo também me disse, você
nunca possui certeza absoluta. Stengers aponta que a marca das ciências de campo é uma
“incerteza irredutível” (ibid: 144); tais práticas científicas não trazem provas estáveis, mas
incertezas e geram controvérsias.
Stengers, portanto, marca uma diferença entre tipos de laboratórios. O aparato que se
encontra no laboratório de Galileu que permite a purificação do fenômeno em questão e a
certeza absoluta que você pode falar em seu nome não é algo presente nas ciências de campo
(field sciences). Ao trabalhar com a distinção de Stengers entre os dois um marcado pela
certeza e o outro pela incerteza; o primeiro com uma relação sujeito-objeto que apaga o
sujeito de modo a deixar o objeto falar para o mundo, o segundo com uma relação que não
consegue calar o mundo sugiro aqui que o LBA é parte das “ciências de campo”. Ao mesmo
tempo, há diferenças que surgiram na minha viagem para São Gabriel que precisam ser
analisadas.
O outro modo como Stengers distingue as ciências de campo das ciências
experimentais é o papel que o mundo desempenha aí. E aqui um aspecto muito mais
“prático” a ser levado em conta. Quando os pesquisadores com que estive vão para o campo
eles marcam uma diferença clara “tudo muda no campo”, dizem-me. pesquisadores que
permanecem no escritório e aqueles que “põe o na lama”. Então mesmo dentro da
descrição ampla do LBA como praticando uma “ciência de campo”, uma diferença a ser
levada em conta. Esta diferença, sugiro, é o mundo – mas em um sentido ligeiramente
diferente daquele de terrain que Stengers atribui a ele (2000a [1993]: 141). É mais
parecido com o que ela chama “a força das coisas” (“the force of things”) (ibid: 121),
exatamente aquelas forças que Galileu excluiu de seus experimentos atrito, vento, coisas
vivas. O mundo interfere no campo de um modo que tem tudo e nada a ver com os dados
sendo produzidos. Enquanto terrain”, o mundo ultrapassa os esforços do pesquisador no
campo e não pode ser feito falar em sua inteireza. Nas ciências puramente experimentais,
270
“much more rapid, supple and docile”
224
todas as variáveis são controladas e sua variação controlada é o que cimenta a “verdade”, a tal
ponto que essa variação é o que permite-as ser aplicadas universalmente, em todos os tempos
e lugares. Porém, isto está ausente das ciências de campo o terrainnão autoriza seus
representantes a fazê-lo existir em outro lugar a não ser onde está porque “o autor sabe que
seu terreno não fará dele um juiz… nenhum terreno é válido para todos… o que um terreno
permite-nos confirmar o outro pode contradizer (ibid: 139)
271
. Isso se evidenciou quando me
disseram que perguntar sobre o que é o macro é uma questão impossível pode-se falar pela
própria área, nada além disso. Como “a força das coisas”, o mundo interfere de outros modos.
Mesmo que Carlos E e Glaudecy façam o maior número de repetições que podem, devido à
chuva e às condições de se fazer ciência no meio da floresta Amazônica, eles têm tempo
para fazer cinco repetições para cada espécie e eles terão que lidar com isso, embora isso
não seja suficiente. Diferenciar as ficções aqui tem menos a ver com poder, isto é, com o
poder de reduzir universalmente, do que com uma tentativa de se chegar ao modo como a
Amazônia funciona enquanto inventada pelas práticas que procuram registrá-la. Os
pesquisadores não estão introduzindo variáveis para estabilizá-la como um universal, mas a
estão delimitando como um fenômeno especificamente localizado. E este fenômeno possui
uma força própria.
Assim, o mundo se expressa de várias formas aqui. Ir ao campo não significa somente
mudar a relação de alguém com um objeto. Permitir que o seu objeto coloque você em teste
não é (na prática científica que observei) algo sempre separável dos elementos que estão de
fato: levar chuva, ser mordido, ficar com fome e cansado; ter que lidar com jacarés no rio em
que você toma banho e aranhas do tamanho de um prato no seu equipamento. Embora mais
humildes do que, digamos, a força do atrito, todas essas coisas são excluídas na construção de
um laboratório; ou, antes, o laboratório é construído para exclui-las. E elas são inseparáveis da
ciência particular feita nos trópicos, cuja a prática tem por objetivo entender os “trópicos”
enquanto entidades particulares. O que é feito no campo não pode ser feito no laboratório,
assim como o que é feito no laboratório não pode ser feito no campo. Para os pesquisadores
com quem trabalhei, a prática e o local não estão sempre separados. Tudo muda no campo
porque você está no campo, não somente porque você “modifica a relação de sujeito e
271
the author knows that his terrain will not make him a judge...no terrain is valid for everyone...what one
terrain allows us to confirm another one can contradict”
225
objeto”. Essa diferença que eles marcam é importante, embora deva ser examinado em que
medida “ir ao campo” para os pesquisadores do LBA é ou não análogo com o “ir ao campo”
para Stengers. Portanto, uma diferença, para os pesquisadores com quem falei na
expedição, entre os modeladores e eles. Ao mesmo tempo, não há. Pois esses “pesquisadores
de campo” também constróem laboratórios, também controlam tanto quanto podem. É sua
modificação comum da relação sujeito-objeto o que explica como tanto os modeladores
quanto Raquel estejam ambos “fazendo” ciência. O mundo está fazendo perguntas e o
cientista tenta seguir essas perguntas da melhor forma que pode, perseguindo-as de modo a
estabilizar a autoridade tanto do que eles dizem quanto daquilo que os permite falar. Mas
essas questões são específicas deste modelo, deste terrain”, a floresta Amazônica, esta área
ao lado de São Gabriel, estas seis espécies de árvores. Essas também são perguntas de
interesse para a “comunidade científica”; não são de modo algum questões que o mundo
poderia colocar. Assim, o mundo existe enquanto um objeto que objeta e essas objeções são
diferentes algumas estão dentro e outras estão fora da esfera da publicação científica. Mas a
extensão em que aqueles que não são “interessantes” podem tornar-se interessantes é clara. E
a extensão em que pode-se permitir uma divisão clara entre “terreno” e “a força das coisas”
depende não apenas de como, mas de onde se faz sua ciência.
“Fazer existir” (Stengers 2000: 144) possui significados distintos para as ciências de
campo e para as ciências experimentais. Não se trata de uma questão de provar, mas de
seguir, monitorar e registrar. Ao mesmo tempo, sugeri que os cientistas de campo que
acompanhei também estão envolvidos em fazer laboratórios. Como vimos, todos os
pesquisadores constroem laboratórios quando estão no campo, de diferentes formas. Mas as
formas diferentes em que eles fazem isso indicam para mim que há diferentes tipos de
laboratórios sendo construídos. Separar esses laboratórios em apenas dois tipos ou análogos
desses dois tipo que Stengers menciona na Invenção da Ciência Moderna “material” e
“informacional” seria não levar em conta o fato de que um pesquisador de ciclo
biogeoquímicos não concorda com a prática do fisiologista de plantas, por exemplo. Esses
laboratórios permitem que o mundo “entre” mais ou “entre” menos enquanto terrain e
“força das coisas”, permitem que ele objete mais ou menos, controle mais ou menos e
purifique mais ou menos. O laboratório de Carlos E e Glaudecy é um microcosmo
experimental perfeito, mas mesmo assim, é vulnerável à chuva e quando eles permitem que o
226
mundo entre na sua câmara, se não for uma “folha ideal” (isto é, livre de mofo), o
experimento irá “fracassar”, isto é, eles não estarão autorizados a falar em nome daquela
espécie. O laboratório de Raquel é vulnerável a contingências que ela não pode prever, uma
vez que voltará em seis meses, a processos eco-biológicos que ela não pode controlar, a
cobras esperando no subsolo. Os micrometeorologistas não conseguiram, apesar de seus
maiores esforços, manter o mundo em controle por tempo o suficiente para limpar o Licor.
Eles todos estão “procurando”, mas o que estão procurando varia. Os terrains” são realmente
diferentes e isso possui um efeito nos modos como os pesquisadores falam sobre eles.
Ao mesmo tempo, o modo como os pesquisadores falam sobre o que estão procurando
define o que é o terrain”. Esses laboratórios são tanto distintos como parecidos exatamente
porque eles são feitos para procurar o mundo e o mundo pre-existe a eles, no sentido de que
é criado como sendo pre-existente a eles. Como me disse Raquel: “estou tentando ter controle
dessa entrada”, mas mesmo sem seus esforços “toda hora caindo”. Mas o poder específico
que o objeto possui para objetar dá a cada experimento um formato específico. A relação entre
“falante” e “falado”, na qual o que é falado é o que permite o falante falar, é diferente em cada
caso. Como escreve Latour, sobre a primatologia, “um outro modo de capturar melhor a
prática da ciência é considerar as pré-concepções, os viéses, as teorias, os métodos, os a
prioris e a cultura como muitas estradas que tornam possível se ter acesso aos animais em si
mesmos”, eles são o que “permite o chimpanzé entrar em foco” (Latour 2000: 371)272. É
nesse sentido que penso que o pesquisador em Ciclos Biogeoquímicos pode objetar à prática
do fisiologista sem por isso afirmar que o que ele está fazendo “não é ciência’. Talvez então,
do mesmo modo como as menores mudanças no espaço, dos escritórios à sala de reuniões,
possam revelar o LBA de um modo que não havia visto antes, essas pequenas mudanças no
modo como os laboratórios são construídos pode ser reveladora, porque elas desestabilizam a
análise.
Não é insignificante que as ciências de campo aconteçam no campo, as ciências
272 “another way to better capture the practice of science is to consider preconceptions, biases, theories,
methods, a prioris and culture as so many roads that make it possible to gain access to the animals
themselves”, they are what “allows the chimp to enter into view”. Stengers (1993: 144-147) faz um
comentário interessante sobre as práticas científicas como a primatologia, que eu não tenho espaço para
discutir no momento, mas que remetem às modificações adicionais da distinção sujeito-objeto quando o que
está sendo interrogado sabe que está sendo interrogado. Ela sugere que perguntas como “quem é você para
me fazer essa pergunta?” ou “Quem sou eu para estar te fazendo esta pergunta?” sejam “vetores de devir”.
227
experimentais no laboratório e os “espaços ocupados” sejam diferentes. Isto é, o que pode ser
feito no laboratório não pode ser feito no campo e vice-versa. Gostaria de propor algo além
disso, ou em interseção com isso: que esta separação faz pouco sentido em termos do LBA,
somente se não permitimos uma certa relação mutuamente constitutiva entre o “espaço
ocupado” e a “ciência feita”. Isto é, ciência experimental pode ser feita no campo e ciência de
campo no laboratório e isso implica que o que é “laboratório” e o que é “campo” pode surgir
da ação específica ao mesmo tempo em que governa a forma que esta ação toma. Isso não
quer dizer que Stengers faça uma separação espacial; de fato, ela concentra sua investigação
especificamente na “prática’. Mas os pesquisadores com quem conversei faziam esta distinção
espacial. Eles falam em termos de pessoas que vão ou não vão para o campo. Como
mencionei, não se pode presumir que a especificidade do que “ir para o campo” engendra para
os pesquisadores e para Stengers seja o mesmo e isso requer um maior desenvolvimento.
Voltando para a reunião do Projeto Fronteiras, vimos que aquele espaço compartilhado
tornava algumas relações visíveis; deste modo, evidenciava-se que as identidades eram
transformações de outras prévias e que se transformavam a si mesmas tanto as pessoas
como os não-humanos envolvidos. Mas ao mesmo tempo, essas identidades se reuniram para
dar uma forma ao próprio espaço. É difícil estabelecer uma relação de causa e efeito. Do
mesmo modo, o mundo como terrainaparece tanto entre os modeladores como na prática
de Raquel e de Carlos E e Glaudecy; trata-se de um mundo que faz perguntas e que provoca,
que reduz a certeza e deste modo possui a autoridade para dar forma àquilo que eles fazem.
Mas esses terrains são feitos perguntar perguntas diferentes e são feitos para perguntar
perguntas diferentes. O espaço que eles oferecem é modelado e modela a prática dos cientistas
que acompanhei. Não apenas isso, mas o “mundo” enquanto a “força das coisas” interfere
com a prática dos pesquisadores no campo. E esta parece ser uma força potencialmente muito
mais desestabilizante para, digamos, Raquel, do que para um modelador climático. Falei sobre
o modo como o mundo enquanto “a força das coisas” apareceu muito nas minhas conversas
com os modeladores, invocados como exemplos. Mas seria insuficiente não levar em conta o
fato de que este é um tipo muito diferente de envolvimento, comparando-o com modo como
Raquel deve suportar viver na floresta por dez dias para fazer sua ciência. O risco toma uma
forma diferente.
Então enfrentamos novamente uma conservação da complexidade e a preservação de
uma perplexidade partilhada. É a multiplicidade das ciências modernas que denotam sua
228
singularidade. Seguindo a abordagem sutil e poderosa de Stengers sobre as ciências
modernas, pode-se ver que o poder inventivo dos pesquisadores do LBA e a ciência que
praticam no campo reside na sua modificação de quem está perguntando e quem está
respondendo. Todos eles estão fazendo o que ela chama de “ciências de campo”, procurando
por sua vez as perguntas que seu “terreno” coloca. E esses terrenos, por causa desse poder
inventivo, são todos diferentes. Esse poder de representar a “natureza” possui o efeito de
diferenciação interna: “A mesma questão se apresenta… em relação à teoria que afirma
representar os fatos: como se pode reivindicar ser o demandante legítimo? As soluções
produzidas serão capazes de divergir e de selecionar critérios iminentemente diferentes; mas
sempre será uma questão de “organizar” e distribuir, de definir direitos e prescrever deveres”
(2000a [1993]:61)
273
. E essa pergunta não está decidida a priori. Enfrentamos uma situação
de “irredução” e duplamente. Como cientistas sociais, nós não temos mais que negar as
diferenças que os cientistas reivindicam para si, mas devemos “evitar todo modo de descrevê-
los que implique que os cientistas tenham um conhecimento privilegiado do que significam
essas diferenças que os singularizam” (ibid: 67)
274
. Ao mesmo tempo, o ato de revelar essas
diferenças revela uma proliferação de práticas. muitas maneiras de se inventar o meio de
estabelecer a diferença entre ficções e não somente no laboratório.
A distinção de Stengers entre ciências de “campo” e ciências “experimentais” ou “de
laboratório” toma uma forma particular aqui. Realmente sair do laboratório, ir para as
“profundezas do oceano” ou para “florestas onde são colhidas amostras”, onde se encontram
“tantos instrumentos sofisticados quanto no laboratório experimental, tanta invenção quanto o
significado de uma medida” (Stengers 2000a [1993]:140)
275
é uma parte importante da
distinção stengeriana entre ciências de “campo” e ciências “experimentais”. No campo não se
273
“The same question presents itself...with regard to the theory that claims to represent the facts: How
does one claim the legitimate claimant?...The solutions produced will be capable of diverging, and of selecting
eminently different criteria; but it will always be a question of “arranging” and distributing, of defining rights
and prescribing duties”
274
“avoid any way of describing them which implies that scientists have a privileged knowledge of what
this difference that singularizes them signifies
275
“as many sophisticated instruments as there are in the experimental laboratory, as much invention as the
meaning of a measure”
229
encontra o “aparato experimental no sentido de Galileu, dando ao cientista o poder de
apresentar suas próprias questões (ibid: 140)
276
. Mas devemos discutir como exatamente a
caracterização dos cientistas do LBA como “os que vão para o campo” se relaciona com esta
distinção. Os próprios pesquisadores do LBA marcam uma diferença entre aqueles que “vão
para o campo” e aqueles que ficam nos escritórios. Embora ambos sejam talvez vistos como
fazendo “ciência de campo” – aquela que insere “realidade” no mundo de modo a gerar
controvérsia e incerteza ao invés de certeza eles são diferentes. Isso porque o mundo, como
“força das coisas”, adiciona um risco extra, torna sua presença sentida de modos que podem
ou não ser incluídos no estabelecimento do poder de alguém “falar em nome” do seu
“terrain”. E em cada um desses, novamente uma diferenciação interna, da mesma forma
aparentemente confusa que examinamos no primeiro capítulo. No campo, laboratórios são
construídos; no laboratório, ciência de campo, em oposição a “ciência experimental” é feita.
Não apenas isso, mas os laboratórios são construídos de modo diferente em cada caso, cada
um produzindo um campo diferente para conceder a eles o poder de falar em seu nome, cada
um deixando seu objeto “objetar” mais ou menos. E nos escritórios pequenas mudanças no
espaço, na localização, podem revelar configurações relacionais muito diferentes sobre quem
tem a autoridade de falar. Talvez todos os cientistas dos LBA estejam lidando com “campos”
que objetam e recusam a ser reduzidos; campos que, ao contrário, proliferam como modelos
ou visões de pesquisa, mas a “força das coisas” é diferente para cada cientista. Pode ser que o
“campo” e a “força das coisas” sejam a “mesma perspectiva vista duas vezes” (Strathern
1991)
277
, que da mesma forma como depende do cientista criar novos testes e novos
caminhos, o mundo também possui um arsenal de modos diferentes de objetar, alguns que
possuem um lugar e outros que ainda não possuem um lugar nas publicações científicas. Isto
é, alguns que são e alguns que não são “interessantes”. Mas como Stengers aponta, a
diferença entre “interesse” e “verdade” é que deixar-se interessar é um risco, uma abertura de
novas possibilidades, que “não reivindica criar o poder da unanimidade, mas se presta à
proliferação e associação com outros interesses” (2000a [1993]:96)
278
. E embora eu não possa
dizer com certeza o que os pesquisadores do LBA diriam sobre isso, é claro que esses riscos
se intensificam em qualquer tentativa de entendê-los.
276
“experimental apparatus in the Galilean sense, giving the scientist the power to stage his own questions”
277 “same perspective seen twice
278
“does not claim to create the power of unanimity but lends itself to proliferation and association with
other interests”
230
O risco também pode tomar muitas formas. Para os pesquisadores do LBA, isso
acontece não apenas por causa da “força das coisas”; ou porque, em congruência com a tese
de Stengers, tal habilidade permite ou mesmo instiga o objeto a interrogar o cientista,
demandando testes e se caracterizando pela incerteza. O risco também é inerente à minha
observação que (e aqui lidamos com minha outra questão sobre como adicionar entidades à
rede parece aumentar e reduzir a certeza), como vimos, quanto mais entidades você envolve e
atribui o poder de lhe dar o poder de falar em seu nome, mais complexa e complicada a rede
se torna, mais interesses você tem que administrar e negociar e mais espaço para que as
coisas surjam com formas, identidades e interesses completamente diferentes. Trata-se de um
negócio arriscado e aqui nós voltamos para o papel do analista nisso tudo. Porque como
destaca Latour, o papel do antropólogo aqui é re-traçar essas redes. O que se aplica aos
cientistas se aplica aqueles que estudam os cientistas “aquilo que nós permitimos falar de
modo interessante é o que nos permite falar de modo interessante” (2000: 376)
279
. Esse
deslocamento é não apenas esclarecedor tendo-se em mente a prática científica, mas também
a prática antropológica.
Como notei, tanto Latour como Stengers apontam para essa relação analógica entre a prática
política e a prática científica, a arte de inventar um meio de representar, em que “representar”
nos move numa direção diferente daquelas “representações” que discuti no catulo anterior.
Isto é, o “representado” e o “real” partilham um poder igual no “evento”, e qualquer
interpretação particular co-existe com outras na criação do próprio evento. Como escreve
Stengers: “Eu vou chamar de capacidade ‘humorística’ para reconhecer a si mesmo como um
produto da história cuja construção se está tentando seguir e isso num sentido em que o
humor é, em primeiro lugar, diferente de ironia” (2000a [1993]: 66)
280
. O princípio de
irredução, que simultaneamente permite e qualifica a singularidade das ciências modernas,
parece ser parte de uma tarefa ‘cosmopolítica’281 mais ampla. E a idéia que o acúmulo de
279
“does not claim to create the power of unanimity but lends itself to proliferation and association with
other interests”
280
“I will call “humour” the capacity to recognise oneself as a product of the history whose construction
one is trying to follow – and this in a sense in which humour is first of all distinguished from irony.
281 Ver por exemplo Stengers, I. (1996). Cosmopolitiques – tome 1: la guerre des sciences. Paris: La
231
entidades pode desestabilizar a rede ao invés de estabilizá-la nos traz de volta de um modo
problemático para o modo como descrevi Latour como inevitavelmente “purificando a si
mesmo”. Porque irei explorar isso com referência à noção de Latour de “reagrupamento do
coletivo” ou “Parlamento das Coisas”, outra tarefa abrangente, o que também direciona nossa
atenção para o enfrentamento da aproximação que fiz no capítulo anterior entre o trabalho de
Stengers e Strathern.
Eu irei lidar com essas questões na conclusão da dissertação. A prática antropológica
de aproximação e distanciamento torna-se o nosso vetor de incerteza aqui, pois “o que
também está em jogo aqui é a possibilidade de uma prática que, enquanto põe nossas ficções à
prova como requisitado pela singularidade das ciências modernas, cria uma posição de
humor, em que a Cultura Ocidental, enquanto produz ciência, submete-se à prova mais difícil:
o teste que reinventa o Ocidente como uma cultura entre outras. Pois a ficção que é posta à
prova pela questão de seres que são capazes de transformar toda teoria em ficção e certas
ficções em vetores de devir, nada mais é do que nossa crença no poder da verdade, se é
realmente verdade, nada mais é do que denunciar a ficção” (Stengers 2000a [1993]: 149)
282
. É
a multiplicidade singularizante a unidade contrastiva das ciências modernas, caracterizada
pela proliferação de campos e práticas, incerteza sobre certeza, interesse em oposição à
verdade, riscos e colocar-se à prova, o que parece sugerir a Stengers que nós não estamos tão
longe daqueles – “pré-modernos” – que antes descartamos tão facilmente.
Découverte and Les Empêcheurs de penser en rond
282
“what is also at play here is the possibility of a practice that, while putting our fictions to the
test as required by the singularity of the modern sciences, creates a position of humour, in which Westen Culture,
as it produces science, submits itself to the most demanding test: the test that reinvents the West as one culture
amongst others. For the fiction that is put to the test by the question of beings capable of transforming every
theory into a fiction, and certain fictions into vectors of becoming, is nothing other than our belief in the power
of truth, if it is truly true, to denounce fiction.”
232
A PERDER DE VISTA?
Para uma dissertação que, ela própria, se propõe móvel, esta parece ter progredido
muito pouco. Eu terei que fazer uma pausa para pensar.
O título deste capítulo final faz referência a uma famosa anedota sobre William
James, na qual se diz que James, após ter dado uma conferência sobre o sistema solar em uma
pequena cidade norte-americana, foi abordado por uma velha senhora que discordara
veementemente da idéia de que a terra se movia ao redor do sol porque, segundo ela, a terra
estaria de fato sobre as costas de uma tartaruga gigante. Quando James perguntou,
educadamente, sobre o quê a tartaruga estaria sustentada, a velha senhora o informou estar
sobre as costas de outra tartaruga. Quando James questionou sobre o quê, por sua vez, esta
outra tartaruga estaria sustentada, a velha senhora exclamou: “Não adianta, Sr. James, é
tartaruga a perder de vista!”. Stengers (1997) reconta a história283 para sugerir que, após
cessado o riso, ela requer alguma consideração: “o que nós sabemos e quem somos nós nesta
anedota?”284 (ibid: 61). Qual é, de fato, a diferença entre a história da velha senhora, que nos
coloca no centro do universo, e as leis fundamentais da física “se, a partir dessas leis, os
físicos são capazes de afirmar que a totalidade dos fenômenos pode, em princípio, ser
compreendida?”285 (ibid: 62). Stengers utiliza as tartarugas como metáforas - estas “criaturas
lentas de aparência pre-histórica… recordam-nos o quanto somos atualmente os prisioneiros
inconscientes de linguagens profundamente formalizadas”286 (ibid: 62) - que não nos deixam
contemplar o fato de que, longe de vivermos em um mundo que é objeto de uma “linguagem
onisciente”, a mecânica quântica nos mostrou o paradoxo inerente em pensar que podemos
descobrir o mundo ‘tal como ele realmente é’. O estudo de fenômenos elementares nos
mostrou o quanto nossa ação de mensurar é importante na construção desses elementos, de
modo que somos confrontados com o choque de “uma fundação que faz referência àquilo que
283
Essa história foi também usada por vários outros autores, por exemplo Geertz (1973), mas para fins
bem diferentes daqueles de Stengers.
284 N. T. “what do we know and who are we in this anecdote?”
285 N. T. “if from these laws physicists can claim that the totality of phenomena can in principle be
understood?
286 N. T. “slow prehistoric-looking creatures…remind us of how much we are today the unaware prisoners
of a few powerfully formalized languages”
233
pretensamente deve fundar”287 (ibid: 63). Se, portanto, tais tartarugas tornam-se, na visão de
Stengers, a perspectiva transcendental limitante e vagarosa de qualquer linguagem onisciente,
seja da física fundamental ou da lenda interiorana, eu gostaria neste capítulo que elas fossem
vistas como capturando um constante movimento articulado que parece inerente ao ato de
análise e analogia. Este movimento poderia ser exatamente tão perigoso e limitante quanto
àquelas grandes narrativas para as quais Stengers nos alerta, a não ser talvez que nos
esforcemos para ver como ‘o mundo’, que repousa sobre a primeira tartaruga, pode ser apenas
uma outra tartaruga, ou que as tartarugas são, de fato, mundos.
Em todos os três capítulos, eu apontei para o que pode significar “representar a
realidade”. No primeiro, sugeri que o idioma da representação, que se baseia em metáforas
sobre pontos de vista e partes englobadas por todos, parecia-me insuficiente para dar conta do
LBA tal qual ela se mostrou em meu trabalho de campo, ainda que este pareça ser o modo
pelo qual o LBA organiza o conhecimento sobre si própria e sobre a Amazônia. Mas
justapondo minha descrição do LBA com a descrição da LBA sobre a Amazônia, é como se
houvesse inicialmente um senso comum de uma complexidade sempre crescente. Se eu não
encontro um solo comum entre o modo como eu a percebo e a maneira pela qual o LBA se
organiza, eu o encontro quando percebo o LBA organizando o conhecimento sobre seu objeto.
A percepção antropológica de que “conceitualizações são inevitavelmente
reconceitualizações” compõe a sensação de desproporção e de uma angustiante descrição
parcial. Mas a incerteza que eu experimentei com a insuficiência das minhas analogias me
deixou apta a reconfigurar minha abordagem analítica, e propôs, em contrapartida, uma
metáfora de movimento que conserva a complexidade em cada nível, não havendo uma
totalidade estática ou um ponto último a partir do qual julgar; eu estava motivada a propor
essa idéia a partir da maneira pela qual os dados do LBA existem como uma constante e
irredutível circulação de transformações. Assim, o solo comum mudou. A cumplicidade é
aparente nessa mudança.
No segundo capítulo, revelei como não se pode assumir como dado o modo pelo qual
os modeladores climáticos “representam o mundo”. Eles se esforçam para estabelecer uma
relação de cumplicidade com seus modelos, e seus modelos se esforçam para estabelecer uma
relação de cumplicidade com o mundo. Os modos pelos quais a relação modelo-modelado
287 N. T. “a foundation that makes reference to that which it is supposed to ground”
234
ou representação-real muda entre os ‘níveis’, sendo propriedade de todos e de nenhum, é o
modo como eles escalonam seus modelos de mundo e modelam seu mundo como escala; o
modo pelo qual a ‘realidade’ aparece como um horizonte sempre em recuo significa que esse
escalonamento nunca é absoluto ou totalizante. Assumir que, ao falar de “representação”, eles
estejam falando da mesma coisa que eu, pode levar a inevitáveis e intermináveis cul-de-sac;
os contornos específicos e particulares das entidades e relações devem ter prioridade para que
a informação siga fluindo, e para que as entidades tenham espaço conceitual suficiente para se
mover de maneiras surpreendentes. Mas o processo que confunde tal espaço, ‘purificação’,
parece ter sido a profecia auto-realizada de Latour. Ao caracterizar a estabilização das redes
como um acúmulo de conexões, Latour parece ter descrito seu próprio destino como um fato.
No terceiro capítulo, o ato de “representar” foi posto em ação no trabalho de campo.
Quando não se pode aceitar a priori como dados o quê ou quem está falando ou agindo, e
quando ambos são incertos e deslocados, “representar” se torna uma questão de porta-vozes.
Falar em nome da natureza revela as diferentes formas pelas quais a natureza faz com que se
fale dela; e quando a natureza contraria o que foi dito a seu respeito e coloca novas questões
ao cientista porta-voz, ela pode fazê-lo de diferentes maneiras – maneiras nas quais um
cientista pode ou não estar interessado. O risco envolvido em arrolar múltiplas entidades e
deixá-las falar não é apenas por medo do que elas possam dizer, mas por medo de perder a
própria voz. Aqui, acumular conexões desestabiliza a certeza. A diferenciação feita por
Stengers entre aqueles cientistas interessados, que assumem o risco, e aqueles que não o
fazem, serve como um ponto de partida para traçar, através do mesmo padrão de
diferenciação que ocorre por todo o texto. Cada todo contém seus próprios todos, a perder de
vista. Ir para o campo e ficar no laboratório, como prática e deslocamento, participam um do
outro de modos confusos, e geram diferenças; mas a multiplicidade que estes movimentos
suscitam, movimentos que singularizam a ciência ao passo que, ao mesmo tempo, politizam
suas questões comuns, serve para revelar analogias aproximativas não apenas entre a invenção
científica moderna e povos não-científicos, mas também entre aqueles que estudam ambos
Stengers e Strathern288.
288
É interessante que a mencionada justaposição de duas teorias do movimento exógenas à minha
etnografia, de Gibson (ver nota 23) e de Holbraad, também signifique evocar a tensão representante-
representado. Gibson era um cientista, interessado em mostrar ‘visão’ como um problema de movimento através
de um ambiente, ao invés de um ponto de vista estático. A visão é realmente indissociável do modo pelo qual
todos os seres humanos existem como seres móveis. A noção de Holbraad de mobilidade destina-se a transgredir
o divisor entre o “real” e o “representado”, a “coisa” e o “conceito” através da “relação conectiva” ‘e’, mas é
também uma sugestão de que passemos a pensar as coisas como conceitos (ver Henare et al. 2007: 3). No
entanto, o ‘real’ de Gibson me ajudou a repensar metaforicamente a maneira pela qual pude conceitualizar meu
material etnográfico; e achei o argumento conceitual de Holbraad estranhamente divorciado de meu material
235
Por todo texto eu evoquei analogias entre os pontos finais interpretativos sobre os
quais eu me sustentei. As analogias compõem comparações potenciais, um modo de pôr as
entidades juntas; mas tal movimento tem sua própria dinâmica interna. Uma analogia pode
parecer conectar ou separar. É, talvez, mais perspicaz fazer coro com Strathern e falar da
analogia antropológica como “a elucidação de uma coisa em referência a outra”289 (Strathern
2005: 8), que tanto conserva quanto estende. A importância disso ficará clara. Para começar
pelo fim: sugeri uma analogia entre os trabalhos de Stengers e Strathern, agora duas vezes
explícita. Na primeira vez, eu sugeri que, nas abordagens que as duas realizam em relação a
seus objetos, pode-se detectar uma agência distribuída e uma cumplicidade. Na segunda vez,
eu sugeri que essa abordagem poderia movê-las a posições similares com relação ao divisor O
Ocidente/O Resto.
A tarefa de Stengers é descrever o que é singular nas ciências através do vetor do
humor, ou “irredução”. Irredução é uma celebração das diferenças, mas que se recusa a
enxergar a história como uma questão da diferença entre ‘vencedores’ e ‘perdedores’, porque
‘humor’ é, antes de tudo, o reconhecimento de que somos “um produto da história cuja
construção tentamos acompanhar”290 (2000a [1993] :66); enquanto tal, como um produto de
irredução, ele “prescreve uma recusa do apelo de saber e julgar”291 (Stengers 2000a [1993]:
17). Ela não está interessada na ironia, que sempre “reconhece a mesma coisa além das
diferenças”292 (2000a [1993]: 18). E isso por duas vias: a prática científica nem é como outra
qualquer, um “folclore particular”, nem tampouco é a garantia de uma diferença essencial.
Ficção não se opõe à verdade, mas devemos nos esforçar para “compreender a singularidade
das ficções científicas e levar a sério sua vocação, não para descobrir, mas para ‘criar’ a
verdade”293 (Stengers 2000b: 47). Para ser científico, o conhecimento tem que ser
“interessante”, ele deve multiplicar o número de conexões e associações possíveis em vez de
etnográfico, apesar de ter sido o seu material etnográfico que o levou a propô-lo. Essa é também uma relação
muito recorrente entre ‘teoria’ e ‘etnografia’; como Strathern diz em minha epígrafe: “the two points of
anthropological theory and ethnography, of course, just consume one another; I mean they cannibalise one
another, so to have a third point…” (Strathern 1999:159) . Esse consumo mútuo aparece como uma outra faceta
da minha noção de “cumplicidade”, da qual trato no restante da dissertação em termos da conservação e extensão
de ‘analogia’.
289 N. T. “elucidation of one thing by reference to another”
290 N. T. “product of the history whose construction one is trying to follow”
291 N. T. “prescribes a retreat from the claim to know and to judge”.
292 N. T. “recognizes the same thing beyond the differences”.
293 N. T. “understand the singularity of scientific fictions and to take seriously their vocation not to
discover but to ‘create’ truth”.
236
reduzi-los a uma única grande narrativa (Latour 2004b: 215). Este é um resultado da
modificação da relação entre sujeito e objeto, uma relação inicialmente estabilizada no
‘laboratório’; a modificação julga não apenas possível, mas inevitável, que um objeto ‘objete’.
A recalcitrância do mundo deve ser ativamente buscada. Este é um negócio arriscado, pois
não é simplesmente uma questão de permitir que o mundo responda afirmativa ou
negativamente as suas questões teóricas, mas uma questão de permitir que seu objeto faça as
perguntas, e moldar sua prática de acordo com estas. Stengers propõe “uma abordagem da
singularidade da ciência na qual o interesse, a verdade e a história sejam indissociáveis”294
(2000b: 48). Ou seja, na qual a ‘verdade’ não se oponha à ‘opinião’ ou ficção, mas se torne
uma questão de interesse: o resultado do quanto o cientista pode interessar seus/suas colegas a
ponto de que eles aceitem que a ficção proposta não é como outra qualquer e, desse modo,
‘façam’ história. E isso é feito tornando comunicativo o que até então permanecia mudo: “a
trajetória da ciência requer, ao contrário, um cientista apaixonadamente interessado, que
fornece a seu objeto de estudo uma série de oportunidades para mostrar interesse e
contabilizar seu questionamento através do uso de suas próprias categorias”295 (Latour
2004b: 218). Isso gera uma diferenciação constante; o que é ou não é científico deve ser
avaliado em cada exemplo particular: “não há uma resposta genérica ou racional para a
questão: como as ficções científicas se tornam cientificamente verdade? Mas isso não
significa que nada acontece (…) cada resposta é o próprio pilar da atividade científica, o
objetivo mesmo da controvérsia científica”296 (Stengers 2000b: 49). Assim, com os
pesquisadores do LBA em São Gabriel, vimos a diferenciação constante, seu potencial de
elaborar por meios muito diferentes as circunstâncias nas quais eles podem se permitir serem
interrogados por seus ‘objetos’; posteriormente, vimos o modo pelo qual a “força das coisas”
pode ter desempenhado diferentes papéis nessa elaboração. Stengers pretende levar em conta
o implacável esforço e risco da ciência, e “apreciar o engajamento e paixão dos cientistas sem
perder a possibilidade de rir deles”297 (2000a [1993]: 73), pois “a paixão, ou as teorias, ou os
preconceitos não são em si mesmos negativos, eles se tornam assim quando não fornecem
294 N. T. “…an approach to the singularity of science in which interest, truth and history are indissociable”
295 N. T. “the path to science requires, on the contrary, a passionately interested scientist who provides his
or her object of study with as many occasions to show interest and to counter his or her questioning through
the use of its own categories”.
296 N. T. “there is no general or rational answer to the question, how do scientific fictions become
scientifically true? But this does not mean that anything goes…each response is the very stake of scientific
activity, the very scope of scientific controversy”.
297 N. T. “to appreciate the engagement and passion of scientists without losing the possibility of laughing
at them”.
237
a ocasião para que os fenômenos difiram”298 (Latour 2000b: 218).
O princípio da irredução é aplicável tanto à ciência quanto à política; pois ambas estão
implicadas na mesma questão como eu posso falar em nome de (representar) alguma coisa?
Portanto, na formulação de Stengers, ele é aplicável tanto às ciências ‘naturais’ e àqueles que
as estudam. Ambos devem correr os mesmos riscos, repensando e remodelando de acordo
com aquilo que seus objetos estão dizendo. Ambos devem ser guiados pelo humor como um
vetor de incerteza, e como um movimento que faz com que uma proliferação de práticas se
torne visível. É esta multiplicidade que “institui uma relação de proximidade com aqueles que
descartamos porque não compartilhavam previamente os nossos testes”299 (Stengers 2000a
[1993]: 65), como aqueles chamados de ‘pré-modernos’. Assim, o humor e a ironia são dois
projetos políticos muito diferentes. Enquanto que a “ironia opõe poder e poder”, o humor
“produz (na medida em que ele próprio logra ser produzido) a possibilidade de uma
perplexidade compartilhada, que efetivamente torna iguais aqueles que ele une. A esses dois
projetos correspondem duas versões distintas do princípio da simetria: um instrumento de
redução, ou um vetor de incerteza”300 (2000a [1993]: 66). Esta é a demanda mais radical de
Stengers, pois sustenta que a própria divisão que serviu previamente para definir o Ocidente e
sua prática científica seja posta em questão. Colocar nossas ficções à prova, como as ciências
modernas requerem, inclui colocar a maior ficção à prova, aquela do poder da verdade em
denunciar a ficção.
Em The Gender of the Gift301, Marilyn Strathern se coloca a tarefa de elucidar “a
natureza específica da socialidade melanésiana”302 (1988a: 10). A maneira como ela faz isso
é problematizar, revelar e estender os próprios conceitos analíticos que a antropologia,
enquanto empreendimento ocidental, empregou para pensar sobre outras culturas, sugerindo
298 N. T. “passion, nor theories, nor preconceptions that are in themselves bad, they only become so when
they do not provide occasions for the phenomena to differ”.
299 N. T. “institutes a relation of proximity with those who we had previously discounted because they do
not share our tests”.
300 N. T. “produces (to the degree it itself manages to be produced) the possibility of a shared perplexity,
which effectively turns those it brings together into equals. To these two projects, there correspond two
distinct versions of the principle of symmetry: an instrument of reduction, or a vector of uncertainty”.
301
Nesta sessão e na anterior, ofereço um breve e superficial panorama do trabalho de Stengers, baseada
principalmente em The Invention of Modern Science, e do trabalho de Strathern, baseada, em grande parte, em
The Gender of the Gift. Na última sessão, posso ter parecido ir além do antigo solo; nesta, ter coberto novos
espaços. Em ambos os casos, eu deveria, mas não posso, explorar os meandros de seus alicerces ‘etnográficos’
uma exploração plena está fora do escopo da presente dissertação. Mas ofereço essa descrição, na esperança de
ser capaz de justapor as duas autoras, e revelar algo de interessante sobre as duas.
302 N. T. “the distinctive nature of Melanesian sociality”.
238
que nós “nos entreguemos menos às nossas própria estratégias representacionais– para nos
impedir de pensar sobre o mundo de determinados modos”303 (1988a: 11). Mas isso por duas
vias; impedir que se pense o mundo de determinados modos equivale tanto a se voltar para
conceitualizações exógenas quanto revelar conceitualizações indígenas. Portando, seu
trabalho também se expande para o pensamento do parentesco inglês (por exemplo, Strathern
1992a) e para outras formas pelas quais os ocidentais pensam sobre o mundo propriedade e
sentimento de posse sendo as mais proeminentes (por exemplo, Strathern 1988a, 1996, 2001).
Ao longo de seu trabalho no cerne, no entanto, o compromisso etnográfico com a
Melanésia; como ela admite francamente, ela optou por uma “easy living” (1988a:11) ao
demonstrar a inaplicabilidade deste ou daquele conceito para pensar sobre seus encontros
etnográficos com os Hagen. Mas tal inaplicabilidade não é simplesmente uma questão de
demonstrar uma “má tradução”, uma vez que não somos capazes de encontrar os ‘sinônimos’
corretos na linguagem conceitual ocidental para falar sobre a Melanésia; trata-se, antes, do
quão melhor e efetivamente podemos “deslocar” nossas metáforas-raiz304. Estabelecendo
inversões, o que ela chama de “estratégia da negação” (1988a:17), é uma forma com a qual
nós ocidentais temos que pensar através de diferenças. Mas essas inversões são ficções de um
tipo particular: “a intenção não é uma constatação ontológica do efeito de que um tipo de
vida social baseada em premissas em uma relação inversa à nossa. Antes, trata-se de utilizar a
linguagem que pertence à nossa própria vida social de modo a criar um contraste interno a
ela”305 (1988a: 16). O deslocamento é ‘interno’. E não se trata da questão de colocar uma
inversão fácil tal como onde pensamos o mundo em termos de indivíduos que compõem
sociedades, os melanésios pensam sobre “a vida coletiva como unidade, ao passo que as
pessoas singulares são compostas”306 (1988a:13). Isto exige que pensemos sobre as relações
entre os conceitos que propomos, ou talvez a noção de ‘relação’ como um conceito; assim,
relações hierárquicas de englobamento e dominação não estão em questão “homologias e
analogias” (1988a: 13), em vez disso, moldam as práticas de conhecimento melanésianas que
303 N. T. “indulge less in our own representational strategies – to stop ourselves thinking about the world in
certain ways”.
304
O argumento de Strathern é ‘comparável’ à noção de “equivocação controlada”, de Viveiros de Castro,
na qual “equivocação é, não tanto uma ameaça à comunicação entre antropólogo e nativo uma falha
patológica de tradução da parte do antropólogo –, mas a própria celebração (controlada) e exploração da
diferença entre os dois, que impulsiona a análise antropológica. “Equivocar” é necessariamente deslocar”; e o
próprio conceito que Viveiros de Castro nos mostra é o de um ameríndio “equivocado”. As analogias entre esses
dois autores, Strathern e Viveiros de Castro, é uma outra direção para a qual essa dissertação poderia, mas não
pode, ter seguido.
305 N. T. “the intention is not an ontological statement to the effect that there exists a type of social life
based on premises in an inverse relation to our own. Rather, it is to utilize the language that belongs to our
own in order to create a contrast internal to it”.
306 N. T. “collective life as unity, whilst singular persons are composites”.
239
ela revela. Este quadro, portanto, desafia as tentativas ocidentais de ‘resgatar’ outras culturas,
mas sempre exclusivamente em seus próprios termos como em alguns estilos de Marxismo
e Feminismo. A exploração existe, mas não do modo como nós a concebemos no Ocidente
(ver também Strathern 1987). O gênero e a diferença entre os sexos são uma poderosa
imagem social em Hagen, mas não se trata da mesma imagem que temos no Ocidente. Para
Strathern, as sociedades são, acima de tudo, mecanismos de criar seus próprios problemas;
elas não são soluções diferentes para um mesmo problema. Portanto, uma diferença essencial
permanece.
Mas ela está constantemente negociando e retrabalhando essa relação de diferença. Da
mesma forma que Partial Conections evidencia uma estrutura narrativa ‘fractal’ – uma
metáfora que ela usa para colocar o pensamento antropológico e o melanésio em uma relação
análoga um com o outro, mas mantendo simultaneamente a complexidade de ambos –, eu
penso que, também em The Gender of the Gift, uma atenção narrativa e estilística
escrupulosa, dedicada ao modo pelo qual ela apresenta sua descrição. As duas metades do
livro podem ser vistas como eclipsando e estendendo a outra; assim como os modos
melanésios de agir são guiados pela extensão e condensação da influência, e eclipsam mais do
que encompassam. É exatamente porque “as metáforas participam umas das outras”307
(1988a: 188) que se tornam “relevantes as idéias que usamos para pensar (com) outras
idéias”308 (Strathern 1992: 10; em Haraway 2000: 401), e relevante também é o modo com o
qual Strathern manipula e desloca a linguagem. Isso é relevante não apenas como uma força
desestabilizadora, mas como uma força otimista, que se constitui fundamentalmente como um
jeito de reanimar a paralisia pós-moderna em relação a empreendimentos analíticos. Os
‘remanescentes’ (remainders) gerados pela investigação antropológica, como vimos,
propulsionam mais do que retardam.
A reflexividade de Strathern é de um tipo particularmente engenhoso. Retornemos a
uma citação prévia: “portanto, eu me referi da forma mais geral às idéias ‘ocidentais’ e
‘melanésianas’. E tal generalidade teve um motivo específico. Tudo o que fiz foi tornar
explícitas estas comparações culturais implícitas, tais como estão implicadas nas justaposições
incidentais que dispõem de uma ngua como meio de revelar a forma que uma outra,
307 N. T. “metaphors participate in one another”.
308 N. T. “it matters what ideas one uses to think other ideas (with)”.
240
comparável, deve assumir” (1988a: 343)
309
. Mas, em contrapartida, essa cumplicidade
intricadamente idealizada faz com que “a comparabilidade desapareça” (ibid: 343), pois as
línguas têm suas próprias especificidades. Ela pode usar a linguagem ocidental, e pode
empregar conceitos ocidentais. As críticas “participam da construção que elas pretendem
desfazer. Elas próprias são galhos da metáfora-raiz mercadoria (commodity), como devem ser
(1988a: 136; ênfases minhas)
310
, e Strathern tem consciência de que não pode se retirar desta
“árvore: eu simplesmente ocupo outra posição” (1988a:136)
311
. Ela estabelece eixos em seu
trabalho – nós/eles, dom/mercadoria, antropologia/feminismo – que atuam e participam um no
outro, opondo e relacionando, aproximando e distanciando, enquadrando e sustentando um ao
outro. Cada qual provê o solo para diferenciar o outro, mas todos estão contidos na ‘visão de
mundo’ ocidental. Esta posição inescapável é conscientemente feita - é uma posição a partir
da qual as metáforas-raiz ocidentais se tornam visíveis, e os contrastes necessariamente
internos à análise são estendidos a duas formas culturais irredutivelmente externas uma à
outra - Melanésia e Euro-América. A diferença entre as duas revelada através dessa extensão
é o que impulsiona a análise. O fato de que, em Hagen, aquilo que chamamos de ‘dons’ possa
ser traduzido por ‘coisas’ é exatamente onde a análise pode ser feita, porque tal distorção é
onde repousa a relação entre eles: a inversão não é fácil - importa saber o que exatamente são
essas ‘coisas’ e, de uma perspectiva ocidental, qual a forma social que elas assumem.
Igualmente, não é que não haja desigualdades entre os homens e as mulheres em Hagen - mas
a natureza exata dessas desigualdades deve ser examinada. O resultado é que “o
conhecimento que eu produzo sobre as sociedades melanésianas não é comensurável com a
forma que o conhecimento assume lá” (1988a:343)
312
. O fato de que seu argumento opere
através de uma série de oposições e contrastes não é um modo melanésio de organizar o
conhecimento; mas é justamente tal incomensurabilidade que Strathern se recusa a reduzir,
mesmo quando estende seus próprios conceitos analíticos com conceitos melanésios, e mesmo
enquanto move sua narrativa para um tempo distintivamente melanésio. Contextos devem ser
contrastados, não “juntados/combinados” (conflated) (1988a: 10); mas tais contrastes são
técnicas “propriamente nossas para tornar as suposições dos outros ‘aparecerem’ com alguma
309 “hence I have referred in the most general way to both ‘Western’ and ‘Melanesian’ ideas. And that
generality has been with specific intent. All I have done is make explicit such implicit cultural comparisons
as are entailed in the incidental juxtapositions of deploying one language as the medium in which to reveal
the form that another, were it comparable, might take”
310 ““participate in the constructions they seek to undermine. They are branches themselves of the
commodity root metaphor, as they have to be”
311 “radix: I merely occupy another position”
312 “the knowledge I produce about Melanesian societies is not commensurate with the form that
knowledge takes there”
241
autonomia em nossos registros (1988a:175)
313
. Nossas próprias metáforas ocidentais estão
constantemente interferindo e, portanto, temos que nos esforçar para manter a diferença e
conservar a complexidade. Isto não significa, entretanto (e novamente retomamos uma citação
anterior), “rejeitar o poder dos conceitos euro-americanos... O objetivo é, ao contrário,
estendê-los com imaginação social. Isto inclui observar como eles são postos em ação em seu
contexto indígena, e de que modo eles podem operar em um contexto exógeno” (1996:521)
314
.
Reflexividade conceitual não implica em uma progressiva auto-consciência, como a solução
pós-moderna para sua própria crise, mas envolve, ao contrário, prestar uma atenção
meticulosa em quanto a análise antropológica devolve os conceitos que as pessoas têm sobre
si próprias para estas próprias pessoas (Strathern 1987: 18); e esta é uma questão da diferença
irredutível que se pretende revelar e, enquanto tal, é sempre deslocada.
A analogia, sendo o modo pelo qual a comparação se move e o sentido é feito, é tanto
conservação quanto extensão de sentido. “Explorar universos paralelos, ou seja, universos
sem conexão aparente entre eles, requerendo do exercício nada mais do que um paralelo
sugestivo, tem, como vimos, dois efeitos simultâneos e distintos. Cada qual é conservado em
sua particularidade; ao mesmo tempo, qualquer um deles pode se tornar um conhecimento
inesperado para o outro e, portanto, encontrar-se brotando em solo estrangeiro” (Strathern
2006: 11)
315
. A distância inerente que é conservada está mutuamente implicada na
aproximação-como-extensão que a analogia, o ato de análise, precipita. Assim como as
diferenças e similaridades emergem no ato da comparação, as próprias bases da comparação
“repousam entre as entidades e são criadas pela - como são função da - relação. Elas não
existem antes da análise. Não se pode prever, conseqüentemente, o que será esclarecedor
como eixo de comparação. (E não se segue disto, tampouco, que todas as comparações ou
analogias sejam esclarecedoras” (ibid: 11). E, ao mesmo tempo, a ‘incompatibilidade’ (‘not-
quite’ fit) (eg see 1991:115)] entre as ‘nossas’ analogias e as dos ‘outros’, entre ‘nossas’
comparações e as dos ‘outros’, apontam para uma irredutível falta de conexão. Strathern
sugere, antes, que se deve mostrar o quanto as complexidades da vida social “provoca ou
313
“of our own devising for making the suppositions of others ‘appear’ with some autonomy in our
accounts”
314
“dismiss the power of Euro-American concepts...The point is, rather, to extend them with social
imagination. That includes seeing how they are put to work in their indigenous context, as well as how they
might work in an exogenous one”
315
“To explore parallel universes, that is, universes with no apparent connection between them, asking of
the exercise nothing more than a suggestive parallel, has as we have seen two simultaneous and distinct effects.
Each is conserved in its particularity; at the same time, either of the universes can turn into unexpected
knowledge for the other, and thus find itself growing in foreign soil”
242
elicia uma forma analítica que não se pretende comensurável a elas mas que, entretanto, pode
indicar um grau análogo de complexidade” (1988a:7). É a este “fim ficcional” que Strathern
pretende levar “um diálogo interno à linguagem da análise”, não preenchendo de termos
ausentes nas conceitualizações indígenas mas, em vez disso, “criar espaços ausentes na
análise exógena” (1988a:11)
316
. Nesse sentido, ela também ‘repensa’ analiticamente o divisor
O Ocidente/O Resto - prestando atenção nas relações, as analogias que ambos se empenham
em criar, e pretendendo conservar a diferença priorizando uma relação de analogia, não de
hierarquia, e de diferença, não de similaridade. Portanto, eu retorno à LBA no primeiro
capítulo para me fornir com uma metáfora que me faça pensar através do meu material
etnográfico, e esta própria metáfora é ainda um meio pelo qual diferenciar nossos respectivos
empreendimentos; o uso que os pesquisadores fazem dos dados da LBA não é o mesmo que o
uso que eu conceitualizei: “Novos idiomas desmembrados devem fornecer ao antropólogo um
vocabulário com o qual apreender os projetos desmembrados de outras pessoas, mas ‘nosso’
projeto não deve ser confundido com o ‘deles’. Não estamos incumbidos com, e não
reproduzimos os mesmos mundos” (Strathern 1992b: 98)
317
.
Eu tentei colocar as duas autoras juntas, para provocar um movimento e uma extensão
através desta justaposição. Pretendo agora traçar algo desse movimento, mas não posso
pretender ser capaz de levar a analogia a seus limites máximos; e reconheço que possa haver
inúmeras aberturas possíveis das quais eu sequer me aproximo. No entanto, talvez haja tantas
quantas eu faça.
Stengers toma como seu ponto de partida uma diferença, que julga o que é ou não
científico. Ela repensa essa diferença desafiando-a com o vetor do humor, sugerindo que a
ciência e a não-ciência são contínuas, parte da mesma proliferação de práticas resultante da
abordagem que ambas devem partilhar. Ambas devem se fazer vulneráveis ao princípio da
‘irredução’, que engendra uma incerteza simétrica e uma perplexidade compartilhada. Mas
essa simetria produz diferença. A ciência tem um jeito particular de tornar as ficções
cientificamente verdadeiras: “a singularidade dos ‘desafios científicos’, quando confiável,
deve satisfazer esta estranha condição: alegar com sucesso que eles foram sustentados por
316
“provoke or elicit an analytical form that would not pretend to be commensurate to them but that would,
nonetheless, indicate an analogous degree of complexity”
317
[N]ew dismantling idioms might give anthropologists a vocabulary with which to apprehend other
people’s dismantling projects, but ‘our’ project should not be mistaken for ‘theirs’. We are not devolved from
and do not reproduce the same worlds”
243
coisas e não por idéias ou demandas humanas” (2000b: 46)
318
. Portanto, o desafio de Stengers
não é o de mostrar que as ciências são diferentes, mas o que essa diferença pode significar.
Ao fazê-lo, ela abre a possibilidade de que isso não signifique que o Ocidente seja de algum
modo mais avançado (ou qualquer outra imagística hierárquica desse divisor) do que os ‘pré-
modernos não-científicos’.
Strathern partiu de uma similaridade o modo como os povos não-ocidentais
estudados pela antropologia parecem se tornar meras reconceitualizações de nossos próprios
modos de organizar o conhecimento. Ela sustenta que somos irredutivelmente diferentes, e
que tal diferença deve ser mantida, seja pelo fato de revelar os contornos específicos da
organização conceitual do Ocidente. Cada cultura possui suas próprias analogias, que podem
ser postas em contato umas com as outras, mas não podem jamais ser suprimidas elas
podem, contudo, ser estendidas. No entanto, jamais podemos escapar dessa diferença. Os
desafios de Strathern não são feitos tendo como alvo a Melanésia, mas sim o meio intelectual
no qual ela está escrevendo. Para tentar compreender outras práticas de conhecimento,
devemos redirecionar a posição que os conceitos nativos ocupam em nossa análise. Devemos
permitir que eles nos ‘inventem’ enquanto nós os ‘inventamos’ (Wagner 1975).
Stengers e Strathern estão ambas preocupadas em não perder o caráter singular daquilo
que estudam: no caso de Stengers, a paixão, o interesse e a ficção ‘particular’ da ciência, no
caso de Strathern, a ‘natureza específica’ dos melanésios. Nenhuma delas é
desconstrucionista, mas ‘herdeiras’ do ‘evento’ desconstrucionista e, portanto, interessadas
em levá-lo a sério sem, no entanto, serem afetadas por ele. Ambas ressaltam a natureza crucial
de permitir que os objetos façam as perguntas, e de moldar suas práticas em resposta a eles.
Ambas apontam, com intensidades diversas, para a natureza irredutível de seus
empreendimentos que as distinções apareçam como um resultado da análise (isto é
científico? Isto é igual/diferente?), que as relações específicas sejam reveladas por ela e que a
especificidade importa. Ambas recusam a noção de um conhecimento transcendental, uma
única perspectiva ou teoria geral que ‘reduzam’ ou tornem claro aquilo que têm como
objetivo. Ambas procuram reavaliar a relação entre o Ocidente e o Resto, e ambas se mostram
otimistas Stengers com o poder do humor, e Strathern com o poder da linguagem analítica.
Ao fazê-lo, a noção de ‘poder’ se torna distorcida. Claro, tanto o humor como ironia e a
318
“the singularity of “scientific challenges”, when reliable, is that they must satisfy this strange condition:
to succeed in claiming that they were enforced by things and not by human ideas or demands”
244
linguagem como metáfora-raiz são também bastiões ocidentais do ‘progresso’, que ambas
desafiam ao mesmo tempo.
Seus trabalhos ‘cortam’ em duas frentes (cuts in two ways) simultaneamente, mas
como e o quê eles atacam é diferente. Stengers 'corta' as ciências, (o quê ela estuda), e as
ciências sociais (como ela estuda), requerendo que ambas sejam sujeitas aos mesmos
princípios de irredução, humor e incerteza. Seu 'corte' parece instigar uma continuidade para
que a diferença prolifere. Strathern ataca a antropologia e o Ocidente no qual ela está imersa
(como ela estuda), e ao fazê-lo ela atravessa entre o Ocidente e a Melanésia (o que ela
estuda); ela não corta a Melanésia do mesmo modo que ela ataca (critica) a prática
antropológica. De fato, pode-se dizer que ela corta o Ocidente com a Melanésia. Stengers
afirma que a ciência é singular, mas a diferença não é o que eles podem dizer que é; Strathern
afirma que a Melanésia é diferente, mas não do modo singular que nós podemos supor.
uma continuidade entre Stengers e aqueles que ela estuda que ela pretende complexificar e
diferenciar; uma descontinuidade entre Strathern e aqueles que ela estuda que ela pretende
conservar. Stengers co-autorou livros com cientistas (por exemplo Prigogine e Stengers 1984)
dentro de uma tradição ocidental de autoria para a qual “autor” denota posse; o quanto se
pode dizer que Strathern co-autora seus livros com os Melanésios, eu suponho, dependeria do
quanto se poder estender a idéia ocidental de ‘autoria’ a um contexto melanésio (ver Strathern
1987)319. É interessante que, quando Strathern se põe a estudar ciência, ela a encara como
estando imersa nas práticas das pessoas a ciência que ela pretende revelar é aquela que
repousa tacitamente no modo como nós todos (euro-americanos) organizamos nosso
conhecimento (Strathern 2005:34). Assim, em seu livro mais recente, a ciência é precipitada
para fora de sua análise na forma das noções fundamentais de “descoberta” e “invenção”, dois
modos de verificar informação. Esses dois modos são apresentados no que poderíamos
chamar de um estilo ‘melanésio’, ou ao menos, um estilo ‘relacional’ – “invenção” diz
respeito à forma com que nós relacionamos entidades ou fatos independentes (as relações são
‘inventadas’); “descoberta” significa revelar relações existentes entre as entidades (as
entidades são ‘descobertas’ como sendo parte de tudo o mais). A “ciência” nem sempre
assume uma forma singular como ocorre no trabalho de Stengers; para Strathern, ela está
‘na’ sociedade (2005: 33). Como tal, a ciência é sempre estendida a outros domínios da
socialidade, tornada visível nestes domínios sob a forma dessas duas imagens relacionais,
319
Gostaria de agradecer a Eduardo Viveiros de Castro por trazer esse assunto a minha atenção.
245
criando conexões entre as coisas, e todas as coisas estando já implicadas em tudo o mais. Com
isso, ela torna estes domínios ‘parentesco’, por exemplo diferentemente visíveis. Pode-se
dizer que ela extrai aquilo que Stengers pretende unir.
A diferença entre estudar ciência e estudar a Melanésia tem um efeito óbvio aqui.
Stengers tem um projeto normativo muito específico em mente, ainda que radical e
‘humorístico’, e separa a ‘boa’ da ‘má’ ciência (ver, por exemplo, a interpretação de Latour
(2004b) sobre seu trabalho). Este não é um projeto que Strathern poderia implementar em
relação àqueles que estuda, mas por outro lado, ao estudar a Melanésia, ela de fato critica e
estuda o arsenal conceitual antropológico. A acusação de Holbraad de ‘falsa consciência’ de
novo vem à mente aqui; como ele aponta, um antropólogo não deve sonhar em impor padrões
normativos sobre aqueles que estuda. Stengers não é uma antropóloga, mas uma filósofa da
ciência. Mas mesmo assim, não penso que suas imposições ‘normativas’ possam ser
compreendidas em um estilo ‘normativo’. Sua crítica não se faz em nome de uma posição
transcendente e onisciente, porque ela recusa a possibilidade de que isso exista.
Ao explorar essa analogia entre os trabalhos de Stergers e Strahern, estou ciente da
relativa ‘incompatibilidade’ (not-quite fit) dos meus paralelos; confrontamo-nos com um
padrão familiar – a diferenciação é multiplicada e a complexidade conservada dentro de
ambos os ‘pontos conservados de qualquer par análogo. Algo parece sempre escapar às
minhas inversões certinhas. Há um constante “ajuste” potencial na narrativa. Sou movida para
as outras analogias implicadas em minhas descrições; estarei fazendo a mesma coisa que
aqueles que eu estudo? No primeiro capítulo, havia a sensação de solo comum, de que o LBA
e a minha experiência etnográfica sugeriam um sistema compartilhado de organização do
conhecimento que provoca um senso de complexidade progressiva; um movimento
subseqüente que realizei foi o de repensar isso, escolhendo ‘pagar o preço’ e olhar para o
LBA como aquela que me oferece uma imagem que conserva a complexidade. No segundo
capítulo, me encontrei enfrentando os mesmos dilemas que os modeladores climáticos, uma
“oscilação cotidiana” (Strathern 2002:109) entre o que é conhecido e o que é (conhecido por
ser) desconhecido, na qual os modeladores tentam “driblar” um caos original, e eu tento
entendê-los mesmo sabendo que não posso fazê-lo. Fiquei com a revelação de que não posso
supor que organizamos o conhecimento da mesma maneira. uma descontinuidade e uma
diferença entre o que eu faço e o que eles fazem. Assim, isso provoca um conjunto adicional
de analogias. Pois dentro de cada pólo de toda analogia há mais analogias a serem exploradas.
246
.
O que ‘o Ocidente’ pode indicar em qualquer empreendimento comparativo é que não
deve ser tido como dado. Como Strathern (1980), entre outros, deixou claro, os conceitos
basilares do Ocidente, como natureza e cultura, podem ser configurados de maneiras muito
diversas, “como um prisma que produz diferentes padrões na medida em que é virado e
através do qual a natureza e a cultura podem ser vistas, cada uma, ora como elemento
englobante, ora como englobado” (1980: 178-179)
320
. De modo a adquirir compreensão
analítica, escreve Strathern, tal prisma deve ser mantido momentaneamente fixo. Mas a
“ambigüidade semântica” (ibid: 179) contida em tais conceitos trai o cuidado com o qual
esses pontos de parada devem ser decididos. Não seja porque eles “fornecem uma estrutura
tão persuasiva que, quando nos deparamos com outras culturas ligando, digamos, um
contraste homem-mulher a oposições entre o doméstico e o selvagem ou a sociedade e o
indivíduo, imaginamos que elas são parte do mesmo todo” (1980: 216)
321
. um cuidado
com o qual estamos familiares agora. Mas, assim como é exatamente essa diferenciação
interna que Strathern explora em sua análise do parentesco euro-americano (Strathern 1992a),
usando a noção de “merografia”, ele pode ser igualmente aplicado a nossas próprias noções
ocidentais. A algo a ser dito sobre tomar mais cuidado, parar para pensar ou respirar antes de
agrupar conceitos sob a mesma ‘rubrica’. Como mencionei antes, as noções de “simetria”,
agencement recursif”, “humor”, “cumplicidade” estes tropos com os quais eu tentei
estender minha análise se mostraram, eles próprios, internamente diferenciados no ato da
análise. É necessário prestar atenção a essa diferenciação detalhada, às maneiras específicas
pelas quais a ambigüidade semântica se torna “ideologia” (Strathern 1980: 179). Ao encontrar
constantemente diferença em nossas próprias conceitualizações, podemos estar mais bem
equipados para favorecer a diferença dos outros. Se, como Viveiros de Castro elegantemente
imagina, “fazer antropologia significa comparar antropologias”, nos confrontamos com o fato
de que as analogias internas que fazemos estão em estrita “continuidade ontológica” com as
analogias que estendemos alhures para moldar outras culturas. Mas, como Viveiros de Castro
adverte, “continuidade ontológica não implica em transparência epistemológica” (ibid: 4)
322
.
320
“rather like a prism that yields different patterns as it is turned through it at times either nature or
culture may be seen as the encapsulated or the encapsulating element”
321
“provide a structure so persuasive that when we come across other cultures linking say a male-female
contrast to oppositions between the domestic and the wild or society and the individual, we imagine they are
parts of the same whole”
322
“ontological continuity does not imply epistemological transparency”
247
Ou seja, essa continuidade não implica que nossos nativos possam ser reduzidos a – e,
portanto, tornados cognoscíveis como – ‘o mesmo’ que nós – mas que eles são igualmente tão
diferentes quanto nós. Viveiros de Castro mostra como a antropologia multinatural dos
ameríndios pode afetar a antropologia multicultural do Ocidente: “A questão para os índios,
portanto, não é a de saber ‘como os macacos vêem o mundo’ (Cheney & Seyfarth 1990), mas
qual o mundo expresso através dos macacos, de qual mundo eles são o ponto de vista.
Acredito que essa é uma lição que nossa própria antropologia poderia aproveitar” (ibid:
11)
323
. Um problema para o antropólogo aqui surge, é claro, quando aqueles que você estuda
são ‘da mesma cultura’ que você; ou seja, quando a transparência epistemológica parece
inescapável como um dado definitivo. E isso é posteriormente complicado se aqueles que
você estuda são daquele domínio da sua cultura ciência que parece fornecer o discurso
‘epistemológico’ dominante que você está tentando repensar. Ou seja, em que medida se pode
assumir uma continuidade, e em que medida se deve obter uma diferença? Isto nos leva
novamente à problemática de Holbraad. Tal problema de “auto-antropologia” (Strathern
1987) é um daqueles que eu não posso desenvolver aqui. O que eu posso sugerir, a partir de
minha experiência de campo, é que, se as diferenças são mantidas em casa, elas também são
mantidas em campo.
Prestar tal atenção às continuidades e descontinuidades em nossos modos analíticos de
conceitualizar nos leva de volta a algumas das problemáticas que eu descrevi no trabalho de
Latour. A idéia de que Latour, ou suas idéias, se tornaram purificados, ficou em certa medida
evidenciada na maneira com a qual Holbraad, entre outros, empregam o “anti-
representacionismo” em seu argumento como um pólo estático. Como Strathern indica, este
tipo de rigidez é talvez necessário para conferir sentido analítico a qualquer coisa. No entanto,
ao mesmo tempo, tal estabilização parece estar inscrita na própria teoria de Latour sobre o
modo pelo qual os fatos científicos se tornam estabilizados, como vimos. O que é, pois,
interessante é que, quando Latour fala do “Parlamento das Coisas” (por exemplo, Latour 1993
[1991]: 144-145), o “coletivo” (por exemplo, Latour 2004: 86), ou o “mundo comum(por
exemplo, Latour 2005: 118), parece haver uma dissonância. Ou seja, foi exatamente o
estabelecimento dessas redes estabilizadoras estes coletivos heterogêneos de quase-objetos
e quase-sujeitos nos quais os cientistas se interessam e registram em sua construção de rede de
323
“The question for Indians, therefore, is not one of knowing “how monkeys see the world” (Cheney &
Seyfarth 1990), but what world is expressed through monkeys, of what world they are the point of view. I
believe this is a lesson our own anthropology can learn from”
248
modo a prover conexões e, portanto, ‘ganhar’ realidade (que é o que a ciência sempre fez sem
necessariamente reconhecê-lo ou se reconhecendo ao fazê-lo) que levou Latour na direção
do ‘mundo comum’; mas este ‘mundo comum’ é tudo menos estável. Sua “unidade” é
questionável ou seja, uma diferença entre “unidade” e “realidade”; o coletivo necessita
“ainda ser coletado e composto” (ibid: 118). A “multiplicidade da realidade metafísica
pode ser distinta de sua unificação progressiva ontologia” (ibid: 120)
324
, advertindo contra
uma unificação “prematura”, que já tenha sido decidida. Quer dizer, o coletivo se encontra em
um processo de devir, é instável, ainda por fazer; cada novo ator acrescido, cada nova
descrição “consiste em uma decisão sobre o quê deve ser o social, ou seja, o quê deve ser a
múltipla metafísica e a única ontologia do mundo comum” (ibid: 258)
325
. As redes, nesta
visão, se tornam “associações de humanos e não-humanos em um estado de incerteza”
(Latour 2004a: 75), sendo constantemente acrescidas como vimos, quem ou o quê está
agindo ou falando é algo incerto, emergente e constantemente mutável. Eu fui alertada para a
possibilidade de um duplo papel desempenhado pelas entidades em uma rede quando vi os
pesquisadores em São Gabriel arrolando e envolvendo mais atores em suas redes
computadores, outros instrumentos, eles próprios de modo a estabilizar uma certeza, por
temporária que fosse; e, ao mesmo tempo, arrolar mais atores e prover mais conexões parecia
desestabilizar o conhecimento científico, resultando em uma multidão de entidades todas com
sua própria voz a ser acrescida à discussão.
Ausência de limite e estabilização parecem se confundir: “Se quisermos que o coletivo
seja capaz de se reunir, é conveniente que dissociemos a noção de realidade externa da noção
de necessidade incontestável, para que possamos distribuí-las igualmente entre todos os
‘cidadãos’ humanos e não-humanos. Iremos, pois, associar a noção de realidade externa com
surpresas e eventos, em vez do simples ‘estar lá’ da tradição guerreira, a teimosa presença dos
matters of fact (Latour 2004a: 79)
326
. Humanos e não-humanos surgem em um “estilo
surpreendente” e “o coletivo é, de fato, uma miscigenação, mas que não incorpora objetos da
natureza feitos de matters of fact e sujeitos dotados de direitos; ele mistura actantes definidos
324
“multiplicity of reality metaphysics can be distinguished from its progressive unification
ontology”
325
“consists of a decision about what the social should be, that is, of what the multiple metaphysics and
single ontology of the common world should be”
326
“If we want the collective to be able to come together, it behooves us to dissociate the notion of external
reality from that of indisputable necessity, in order to be able to distribute it equally among all humans and non-
human “citizens”. We are thus going to associate the notion of external reality with surprises and events, rather
than with the simple “being-there” of the warrior tradition, the stubborn presence of matters of fact”
249
por listas de ações nunca completas” (2004a:80)
327
e “os atores são definidos acima de tudo
como obstáculos, escândalos, aquilo que detém a maestria, aquilo que substitui a dominação,
aquilo que interrompe o fechamento e a composição do coletivo”, eles são “baderneiros”
(2004a: 81). A realidade ‘aumenta’ exatamente na medida em que você se torna sensível às
diferenças (2004a: 85), acrescentando a, sem silenciar, esses “baderneiros” – artifício e
realidade ‘trabalham’ juntos nesse sentido, e ambos aparentam poder ser estendidos
indefinidamente.
Parece, portanto, haver duas diferentes noções de realidade em jogo, e dois diferentes
papéis que os atores podem desempenhar. A primeira é uma realidade estabilizada na qual os
atores são convencidos a permitir que se os representem, na qual eles se convencem que se
pode falar em seus nomes; na segunda, a realidade é incerta e emergente, e os atores são
baderneiros que impedem a composição do coletivo. Um fato ‘reduzido’ está sob inspeção,
feita de proposições bem articuladas, como Latour nos mostrou com Pasteur e a fermentação
(1988a, 1999a); mas, assim, trata-se de um coletivo “irredutível”. Ou isso parece uma
disfarçada recolocação do Grande Divisor, voltado para dentro de si mesmo (ao manter a
diferença entre “purificadores” e “mediadores”), ou nos defrontamos (como Holbraad indica)
com a tentativa de escolher (talvez absurdamente) – somos ou não modernos?
Talvez, como me disse Marta, não seja um binarismo; como aponta Latour, coletivos
podem ser “mais ou menos articulados”, ter mais ou menos conexões:
“Devemos dizer de um coletivo que ele é mais ou menos articulado, em todos os sentidos da
palavra: que ele ‘fala’ mais, que é mais sutil e astuto, que inclui mais artigos, unidades discretas, ou
interessados, que os mistura com maiores graus de liberdade, que emprega maiores possibilidades de
ação. Devemos dizer, em contrapartida, que outro coletivo é mais silencioso, que tem poucos
interessados, menor grau de liberdade e menos artigos independentes, que á mais rígido. Podemos até
falar de um coletivo 'binário'(two-house collective), feito de sujeitos livres e naturezas inquestionáveis,
que é completamente inarticulado, totalmente sem voz, uma vez que a meta da oposição sujeito-objeto
é efetivamente suprimir o discurso, suspender o debate, interromper a discussão, obstruir a articulação
e a composição, causar um curto-circuito na vida pública, substituir a progressiva composição do
mundo comum pela impressionante transferência do inquestionável fatos ou violência, dever ou
327
“the collective is indeed a melting pot,but it does not fold in together objects of nature made of matters
of fact and subjects endowed with rights; it mixes together actants defined by lists of actions that are never
complete”
250
direito” (Latour 2004a: 86)
328
.
Mas essa é uma imagem “gradativa” ou ‘binária”? Graus de articulação parecem coexistir com
um critério ou/ou. O papel político da ANT tem como objetivo a distinção entre ‘organização’ e
‘unificação’; a ‘unificação’ não é conhecida de antemão, é o que é precipitado ao fim, quando o
coletivo foi reunido mas este foi o modo com o qual Latour descreveu a “realidade”, como uma
conseqüência, o uma causa. Listas de ações maiores tanto estabilizam quanto desestabilizam; a
realidade e a unidade parecem tanto separadas quanto unidas; redes e coletivos podem ser mais ou
menos articulados; atores podem obstruir ou apoiar sua construção. E, assim como Latour nos
convence, a moderna proliferação de híbridos é uma conseqüência da purificação. A mecânica destes
processos separados de unificação e agregação parece ser um negócio escorregadio329.
Stengers nos diz que seus alunos freqüentemente lhe perguntam se o Parlamento das Coisas do
Latour é reformista ou revolucionário
(2000a [1993]: 152). Ela nos diz que não há resposta a essa
questão. Mas ela sugere que seu interesse enquanto imagem é que “ela provoca uma
‘deformação’ imediatamente operativa do presente sob o efeito de um futuro cujas demandas
são ilimitadas” (ibid: 152). Ela, de fato, celebra o “triunfo da empreitada científica, pois
constitui o teste generalizado das ficções” (ibid: 152)
330
, especialmente aquela ficção que
considera que as ficções particulares devam ser submetidas a uma geral. A seus olhos, o
Parlamento das Coisas do Latour valoriza o princípio da multiplicidade sobre o da conquista;
da mesma forma que as ciências modernas modificam a relação sujeito-objeto para deixar o
mundo complicar o estabelecimento de uma ficção sobre todas as outras, ela também o
Parlamento das Coisas de Latour como permitindo que cada novo representante complique o
328
“We shall say of a collective that it is more or less articulated, in every sense of the word: that it
“speaks” more, that it is subtler and more astute, that includes more articles, discrete units, or concerned parties,
that it mixes them together with greater degrees of freedom, that it deploys longer lists of actions. We shall say
in contrast that another collective is more silent, that it has fewer concerned parties, fewer degrees of freedom
and fewer independent articles, that it is more rigid. We can even say of a two-house collective, made up of free
subjects and indisputable natures, that it is completely inarticulate, totally speechless, since the goal of the
subject-object opposition is actually to suppress speech, to suspend debate, to interrupt discussion, to hamper
articulation and composition, to short-circuit public life, to replace the progressive composition of the common
world with the striking transfer of the indisputable – facts or violence, might or right.”
329
Tânia Stolze Lima (1999) demonstra muito bem esse caráter escorregadio. Ela argumenta que, ao
sugerir que os pré-modernos – que estão envolvidos no processo de mediação e não de purificação – não
separam natureza e cultura, enquanto nós modernos purificadores – o fazemos, Latour está resgatando o
mesmo Grande Divisor que ele tenta descartar. Mas esta observação mesma se sustenta na ênfase de que uma
premissa da regra de Latour é não acreditar nos cientistas (Lima 1999: 44), aqueles que nos fariam acreditar que
natureza e cultura são separadas. Entretanto, como mostrei, Latour freqüentemente aponta para o fato de que os
próprios atores que lhe demonstram a impossibilidade de escolher entre o ‘real’ e o ‘construído’, os que enlistam
os mais elementos heterogeneos, são os próprios cientistas.
330
“triumph of scientific enterprises, for it constitutes the generalized putting to the test of fictions”
251
problema de reuni-los, o que celebra o humor que permite a proliferação de interesses e
práticas. Não é nem revolucionário, porque existe, nem reformista, porque é um ‘rizoma’,
sem limites e sem um princípio de exclusão. Ele pertence ao presente “como um vetor de
devir... um instrumento de diagnose, criação e resistência” (ibid: 155). A resposta para a
questão “somos ou não modernos?” é, talvez, que seremos aquilo que agora fazemos de nossa
modernidade.
Stengers pode descrever os coletivos de Latour nestes termos talvez porque ela tenha
descrito a ciência moderna em termos de irredução e humor; sua descrição da ciência
moderna está em continuidade com esta mesma ciência moderna, até o ponto em que é o que
ela diz que é. Seu projeto normativo que distingue entre uma boa e uma ciência é também
uma espécie de manifesto político, distinguindo entre a boa e a política ambas devem
“irreduzir”. É neste sentido que o coletivo é uma celebração da ciência moderna. Entretanto, a
relação de Latour com aqueles que estuda é ligeiramente mais opaca. Ele parece descrever a
ciência inicialmente como uma aventura estabilizadora e purificadora, e sua prática, a
‘ecologia política’, como desestabilizadora. Ele traça as redes que os cientistas fazem, mas o
que ele demonstra ao fazê-lo é que essas múltiplas entidades são empregadas em nome da
verdade e da realidade; ele enfatiza as caixas-pretas das múltiplas conexões – a redução
praticada pela ciência. Enquanto tal, as explicações científicas são exatamente aquilo que não
devemos fazer enquanto “ecologistas políticos” (Latour 2004a)331.
Tal tendência, presente nas descrições que Latour faz da ciência, é talvez aquilo com o
que Holbraad implica (e deve-se notar aqui que eu venho dialogando, e continuo a fazê-lo,
com o problema Holbraad, procurando questionar a ‘estabilização’ tanto dos cientistas quanto
de Latour). Mencionei, no segundo capítulo, o modo com que Latour parece, ao mesmo
tempo, se distanciar e se aproximar da prática científica ao longo de sua obra. Sua relação
com a prática científica parece mudar, de modo que a prática científica seja parte do mesmo
processo geral de construção de rede (1986 [1979]), mas ao mesmo tempo não seja algo a ser
imitado (1988b); isto é o que resume o processo de purificação (1991 [1993]), mas ao mesmo
tempo é o que lhe revelou, antes de tudo, a mediação (1999a); e, ao descrevê-lo, se nossa
331
Notem a diferença de tom nos títulos dos livros de Latour e Stengers, por exemplo, We Have Never
Been Modern, e The Invention of Modern Science. No primeiro caso, a ciência é mostrada como tendo sempre
um processo de rede, não importa o que é dito sobre ela; no segundo, a ‘invenção’ e a ‘construção’ são negadas e
reelaboradas como ‘inventividade’. Os dois apontam para a mesma coisa, talvez, mas com diferentes ênfases
retóricas nos cientistas/modernos.
252
descrição é boa, nós necessariamente o reunimos “seguindo os atores”. De fato, foi
estudando a ciência que Latour despertou para a impossibilidade de descrever a prática
científica em termos de formas puras: “Será que Pasteur não percebe a dificuldade ou nós é
que não conseguimos reconciliar o construtivismo e o empirismo tão prontamente quanto ele?
De quem é tal contradição de Pasteur ou nossa?... Enquanto não compreendermos por que
aquilo que nos aparece como contradição não aparece assim para Pasteur, fracassaremos em
aprender com aqueles que estudamos – simplesmente imporemos nossas categorias filosóficas
e metáforas conceituais a suas obras (1999a: 129)
332
. Não tenho nenhuma ‘conclusão’
adicional a acrescentar a isso; o que eu posso sugerir é que, talvez assim como Stengers
mostra que a ciência, uma vez tirada do laboratório, se torna facilmente um princípio de
redução, uma retórica mobilizadora que “leva a diversidade de volta ao mesmo” (2000a
[1993]: 115) (seja este ‘mesmo’ as leis universais da física ou os genes), também o trabalho
de Latour pode ser mobilizado neste estilo. Como vimos com “a grande pergunta do LBA”,
parece haver apenas a proliferação das possibilidades mais do que a estabilização de uma
resposta universal, e isto é reconhecido pelos cientistas com os quais falei. No entanto, as
respostas cristalizadas ‘mundo afora’ parecem abundar a mídia anuncia a todo instante que
“a grande pergunta” foi respondida, e eu duvido que financiamentos fossem obtidos se
admitíssemos que, no fim das contas, não nenhuma resposta. A tarefa de reunir muitas
associações, interessando tantas entidades quanto possível, e de ‘compor o coletivo’, é uma
tarefa em andamento. Mas por vezes ela é interrompida. Como escreve Latour, “meu próprio
texto está em suas mãos e sua vida ou morte depende do que você fará com ele” (1988b: 171).
Aquilo que fazemos das idéias e práticas, estejam elas em “nossa” antropologia ou na dos
“outros”, cabe a nós mesmos. Como escreve Stengers “saber que não podemos crer não
significa ‘parar de crer’ ou nos retirar de nossa herança foi um mal-entendido ou um erro,
não visto ou conhecido mas, antes, aprender a prolongar a herança diferentemente” (2000a
[1993]: 151)333.
332
“Is Pasteur unaware of the difficulty, or are we unable to reconcile constructivism with empiricism as
readily as he does? Whose contradiction is this Pasteur’s or ours?...as long as we do not understand why what
appears to us as a contradiction is not one for Pasteur, we fail to learn from those we study we simply impose
our philosophical categories and conceptual metaphors on their work”
333
“knowing we can no longer believe does not ean 'ceasing to believe' or ridding ourselves of our
heritage it was a misunderstanding or an error, neither seen nor known but rather learning to prolong the
heritage differently”. Seria interessante comparar esse aspecto do trabalho de Stengers com o de Strathern no
texto “Out of Context: The Persuasive Fictions of Anthropology” (Strathern 1990), mas, infelizmente, isso terá
que ser adiado por enquanto.
253
A relação de Latour com aqueles que estuda pode nos levar a um questionamento
sobre reflexividade. Sugeri, no terceiro capítulo, que uma das diferenças entre as abordagens
de Latour e de Wagner pode ser encontrada no modo como a ‘reflexividade’ aparece em suas
obras. Em um artigo escrito em 1988, Latour sugere que ‘explicação’ é justamente o que não
deveríamos buscar. Fornecer uma explicação é “trabalhar para construção do império”
(1988b: 162). Portanto, nós queremos mesmo participar da construção de redes? Queremos,
enquanto cientistas sociais, nos adicionar à torrente de disciplinas que já reduzem os diversos
problemas do mundo a uma, e apenas uma, resposta? Sua resposta é não, claro “queremos
ser, ao mesmo tempo, mais científicos do que as ciências que tentamos escapar de seus
esforços e muito menos científicos uma vez que não queremos lutar com as mesmas
armas... Procuramos explicações mais fracas em lugar das mais fortes, mas, ainda assim,
gostaríamos que esses fracos relatos derrotassem os mais fortes...” (ibid: 165)
334
. Ele
prossegue sugerindo que a melhor maneira de ser reflexivo sobre aquilo que fazemos é
“apenas oferecer o mundo vivido e escrever. Não é isso que os romancistas fizeram por
séculos?” (ibid:170). Um texto que versa sobre si próprio não é mais reflexivo do que um
artigo em uma revista científica; estes relatos estão lado a lado, todos eles têm ligações com
alguma outra coisa, eles são “todos iguais” (ibid: 168); eles estão numa relação análoga antes
que hierárquica. Ao invés de prescrever estratos de reflexividade, ele sugere que “peguemos a
reflexividade de algum outro lugar” (ibid: 169).Aqui é onde sua idéia de uma infra-linguagem
e explicações descartáveis torna-se evidente – pois alcança-se a reflexividade seguindo o
máximo possível o que os atores estão fazendo, prestando atenção à sua metafísica,
privilegiando a auto-explicação sobre a auto-referência, e modificando sua explicação para
dar conta de suas ações surpreendentes. A banalidade disso, a “deflação do método” (ibid:
170) que engendra, é exatamente o traço mais ‘reflexivo’ de sua abordagem, pois se concentra
naquilo que todos nós estamos fazendo, ou seja, processos de mediação e associação, tentando
reunir as entidades em redes. Isto é exemplificado pela reunião destas redes, mas não é
preciso nenhuma desconstrução ou reflexividade analítica para fazê-lo:
“Argumento que mais reflexividade em um relato que faça o mundo vivo do que em cem piruetas
auto-referenciadas que trazem o enfadonho espírito pensante de volta ao palco... Retornemos ao
mundo, ainda desconhecido e menosprezado. Se você desdenha desse argumento e diz ‘isso é retornar
ao realismo’, é isso mesmo. A escassez de relativismo nos afasta do realismo; o excesso nos traz de
334
“we want to be at once more scientific than the sciences since we try to escape from their struggles
and much less scientific since we do not wish to fight with their weapons...we are looking for weaker, rather
than stronger explanations, but we would still like these weak accounts to defeat the strong ones...”
254
volta” (1988: 173)
335
.
No entanto, ao mesmo tempo, o argumento geral de Latour é persuasivo exatamente porque
ele ‘manteve seu prisma fixo’ (purificado?): os binarismos natureza/cultura, pré-modernos/modernos,
ciência/sociedade são todos reificados como parte da mesma “constituição moderna”, e a potência
desse argumento, portanto, reside justamente em sua habilidade de afastá-los todos de um golpe.
Como escreve Strathern, “em outros mundos eu veria intenção ideológica... no desejo de produzir
uma dicotomia (natureza vs. cultura) a partir de um conjunto de combinações (todos os significados
que natureza e cultura possuem em nossa cultura, rica em ambigüidade semântica). É a mesma lógica
que cria “oposição” a partir da “diferença”
(1980: 179)
336
. Não parece haver senão haver uma
ideologia ‘por trás’ da ‘simetria’ de Latour, e uma ‘reflexividade’ por trás da banalidade. A
proliferação de diferenças pode sempre se tornar uma questão de oposição
“representacionismo versus anti-representacionismo”. Latour caracteriza os “modernos” como
fazendo sempre o oposto do que dizem fazer: “Manter-se cegos em relação a si próprios: esta
era uma parte integral da própria máquina de modernidade dos modernos” (Latour 2003:
14)
337
; mas essa acusação pode ser dirigida ao próprio Latour? Como Jensen (2008) apontou,
a linguagem de Latour não é nada mais do que banal, e usa em grande parte jargões e
estratégias narrativas ele é de fato famoso por seu estilo inflamado. Mas ele o faz
conscientemente? Talvez essa não seja uma questão importante, mas é uma questão
interessante. Ao final do artigo de 1988, ele parece fazê-lo: “se... a procura por explicações
fracas e não-científicas parece desalentadora, lembremos que as ciências são ainda jovens
assim como nósfornecer o estilo retórico de alguns ‘star warriors’ não leva a história inteira
a um fim abrupto” (1988b:176)
338
. Mas, como Stengers e novamente eu a acho muito
perspicaz (talvez com excessiva generosidade) sugere, apenas uma pessoa bem-humorada é
capaz de humor – somente uma pessoa que se reconhece como produto da história cuja
construção está tentando acompanhar está apta para a tarefa: “a única pessoa que poderia
fazer essa história seria um historiador que soubesse o que significa para ele ‘ter sido
335
I claim there is more reflexivity in one account that makes the world alive than in one hundred self-
reference loops that return the boring thinking mind to the stage....Let us go back to world, still unknown and
despised. If you sneer at this claim and say “this is going back to realism”, yes it is. A little relativism takes one
away for realism; a lot brings one back”
336
“in other words I would see ideological intention…- in the desire to produce a dichotomy (nature vs
culture) out of a set of combinations (all the meanings that nature and culture have in our culture, rich in
semantic ambiguity). It is the same logic which creates “opposition” out of “difference”
337
“[B]eing blind towards oneself: that was an integral part of the very modernity machine of the moderns”
338
“if...the search for non-scientific and weaker explanations...seems daunting, let us still remember that
the sciences are young and so are we provided the rhetorical style of some star warrior does not bring the
whole story to an abrupt end”
255
moderno’, sem denunciar aquilo que ele tem sido, ou desvelar os truques e ilusões dos quais
foi vítima; ou seja, sem opor as verdades construídas pelas ciências a outra verdade de maior
potência – mesmo que seja o desafio a priori de qualquer verdade que não está reduzida a uma
crença ‘como as outras’” (Stengers 2000a [1993]: 66). Se assim é como o humor é distinto da
ironia, então Latour é bem-humorado ou irônico? E como nós, enquanto ‘herdeiros’ de seu
‘evento’, imaginamos esta diferença?
Sugeri tentativamente que, se Wagner revela e provoca o paradoxo, Latour pretende
“contorná-los”; se Wagner faz da reflexividade uma virtude, Latour visa igualmente contorná-
la. Mas, evidentemente, ao contornar, deve-se revelar, e ao revelar, há uma chance de
contornar. Os quatro autores em direção aos quais tentei levar minha dissertação podem ser
relacionados de diversas maneiras. Tanto Stengers quanto Strathern tomam a tarefa de seus
professores escolhidos, Latour e Wagner, respectivamente, e direcionam essas tarefas de
diferentes formas. Como autores, eles também participam uns dos outros, e as analogias que
tentei sustentar ao longo de minha dissertação são um atestado da forma complicada que
podem fazê-lo. A extensão que esses autores constituem uma “nova ortodoxia” está, talvez,
nas mãos daqueles que a utilizam. Certamente, há uma interna e reveladora diferenciação. Um
dos pontos de convergência, que sugeri anteriormente, é que Strathern, Stengers e Latour
todos usam a noção de ficção. Essa aproximação, contém, é claro, sua própria variação, que
não posso explorar satisfatoriamente aqui. Para Stengers, o novo problema é evitar concluir
que “as ciências são nada mais do que ficções”, como se soubéssemos que a ficção é,
naturalmente, o oposto de “verdade”. Devemos entender a singularidade das ficções
científicas e levar a sério sua vocação, não para descobrir, mas para “criar verdade”. Verdade
não pode ser oposta a ficção. Para Latour, é para os “gêneros ficcionais” (1988b: 173) que
devemos olhar, para que sejamos verdadeiramente reflexivos, e, de fato, ‘objetividade’
repousa na própria idéia de ficção como artificialidade, o construído à mutuamente
implicada trajetória etimológica de “fait” (como ‘fato’ e como ‘feito’), podemos adicionar a
de “fictus”. Strathern planeja escrever ficções, “persuasivas” talvez – mas o que é ‘persuasivo’
ou não depende da relação específica entre escritor, leitor e o objeto em questão. Suas
oposições (nós-eles, dom e mercadoria, entre outros) são ficções que operam dentro dos
limites de um plano (Ocidental); mas, para tudo isso, elas funcionam. Se ‘nossa’ visão
consumista de que “todo conhecimento é auto-conhecimento” é o que representa a vida como
um texto (1990: 119), é também a ‘nossa’ análise retrospectiva o que nos permite perceber
isso. Todos os autores refiguram o que ‘ficcional’ pode significar, recusando opor ‘ficcional’
256
a ‘verdade’. Stengers, na anedota narrada no início deste capítulo, encontra na mecânica
quântica a mesma confrontação paradoxal com os limites das “linguagens poderosamente
formalizadas” (Stengers 1997: 62) que talvez Strathern encontre na Melanésia. Mas isso pode
estar indo longe demais. Ao invés disso, podemos aqui começar a pensar através da noção de
“simetria”, já que, enquanto Stengers e Latour estão, neste sentido específico do termo,
tentando recapturar a natureza ‘ficcional’ da ciência, Strathern está tentando revelar a natureza
‘ficcional’ de sua própria iniciativa. Aqueles que sempre foram pensados exatamente como
não lidando com ficções, estão sendo mostrado como as criando, e aqueles que sempre foram
pensados como vivendo em mundos ‘ficcionais’, estão sendo mostrados a revelar a natureza
ficcional de nossas próprias iniciativas. Isso é, mais uma vez, um movimento purificador de
minha parte, uma tentativa de parar. Essa caracterização embotada, é claro, pede mais
explanações. Mas devemos seguir em frente.
Os autores se interceptam de outros modos interessantes. Strathern (1996, 1999a) fez
alguns comentários incisivos sobre o trabalho de Latour que podem reveler algumas dessas
relações e, ao fazê-lo, nos leva a diferentes esferas de questionamento que, no entanto, ao
mesmo tempo nos traz de volta às várias oposições e aproximações pelas quais viemos
transitando ao longo do trabalho. Irei simplesmente indicar os pontos que eu acho mais
salientes; novamente, eu não chego a nenhuma conclusão, mas meu objetivo é apenas esboçar
brevemente algumas das direções nas quais devemos seguir. A avaliação que Strathern faz de
Latour e a noção de rede demonstra, eu diria caracteristicamente, um desejo de não nos
apressar a conserver a diferença. No cerne de sua crítica está a noção de que a idéia de rede
deve ser situada como uma idéia occidental em seus usos particulares. A noção de uma rede
ou um híbrido pode ser internamente diferenciada de si própria, e quando aplicada for a do
contexto original, o Ocidente, sua ubiqüidade é limitada pelo próprio contexto constitutivo
que propõe sua ubiqüidade. Ela nos mostra redes “heterogêneas” – uma mistura Latouriana de
‘formas puras’ e “homogêneas” cadeias contínuas de identidade dentro da ciência (e
aqui ela está “obstinadamente misturando velhas e novas” noções de “rede” (Strathern
1996:531)). No entanto, na Melanésia, estas mesmas categorias não podem ser tidas como
dadas uma rede “homogênea” na Melanésia pressupõe “uma continuidade de identidades
entre formas humanas e não-humanas”, enquanto que uma rede heterogênea é uma na qual
“pessoas são diferencidas umas das outras por suas relações sociais” (ibid: 525). Ou seja, a
idéia Latouriana de uma “rede heterogênea” depende de uma noção ocidental a priori das
formas puras (humanos/não-humanos, natureza/cultura) que as torna aptas para a mistura; e a
257
homogeneidade depende de uma compreensão ocidental das relações como pressupondo uma
identidade comum. Sugiro que isto é talvez um dos sentidos (intencional ou não) nos qual
‘mediação’ requer ‘purificação’.
Strathern também aponta que:
“O poder de tais redes analíticas é também o seu problema: teoricamente, elas são ilimitadas.
Se elementos diversos fazem uma descrição, eles podem ser vistos como extensíveis ou retraídos na
medida em que a análise é extensível ou retraída. A análise parece ser apaz de lever em conta, e
portanto crier, um sem-número de novas formas. E sempre se pode descobrir redes dentro de redes; tal
é a lógica fractal que permite que cada extensão seja uma multiplicidade de outras extensões, ou um
elo em uma cadeia seja uma cadeia de novos elos. Ainda assim, a análise, como a interpretação, deve
ter um sentido; ela deve ser representada como um ponto de parada” (1996: 523)
339
.
Este ponto de parade pode ser visto como o momento da condensação, e tal
condensação pode, inesperadamente, assumir a forma de um híbrido pois as redes podem
ser vistas como híbridos em uma forma socialmente expandida, e os híbridos como redes
condensadas. Do mesmo modo, qualquer entidade dentro da rede contém sua própria rede.
Logo, no ato de condensação, “o híbrido euro-americano, enquanto imagem de fronteiras
dissolvidas, de fato deslocam a imagem da fronteira ao assumir seu lugar” (ibid: 523)
340
. Isto
significa que, conceitualmente, ele pode limitar ou estender nosso entendimento de outras
culturas. Mas ele também é representado na maneira como ela mostra que, em um contexto
indígena (científico-ocidental), a noção de um híbrido como uma rede condensada é uma
soma ou condensação (dita na forma de uma “invenção” científica) que, ao ser ‘possuída’,
corta a rede da qual faz parte e que constitui “ao mesmo tempo a coisa que se tornou o
objeto de um direito e o direito de uma pessoa nele, a propriedade é, pode-se dizer, uma rede
em forma manipulável” (ibid: 525)
341
. As redes são expansíveis e contráteis. As maneiras
pelas quais elas o são são específicas a diferentes contextos indígenas, e repousam sobre os
339 “the power of such analytical networks is also their problem: theoretically, they are without limit. If
diverse elements make up a description, they may seem as extensible or involuted as the analysis is
extensible or involuted. Analysis appears to be able to take into account, and thus create, any number of new
forms. And one can always discover networks within networks; this is the fractal logic that renders any length
a multiple of other lengths, or a link in a chain a chain of further links. Yet analysis, like interpretation, must
have a point; it must be enacted as a stopping place”
340
“the Euro-American hybrid, as an image of dissolved boundaries, indeed displaces the image of
boundary when it takes boundary’s place”
341
“at once the thing that has become the object of a right and the right of a person in it, property is, so to
speak, a network in manipulable form”
258
modos pelos quais as relações são diferentemente percebidas em tais contextos. “Estas noções
alteram a possibilidade interpretativa da ilimitação: os tipos de interesse, pessoais ou sociais,
que levam à extensão também a impedem, e os híbridos que parecem aptos a misturar
qualquer coisa podem servir de contornos para claims(ibid: 531)
342
. Aqui, a sugestão de
Latour, de que a diferença entre ‘modernos’ e ‘pré-modernos’ é a extensão das redes que eles
constróem, é solapada pelo desafio que Strathern coloca à própria noção de rede.
O híbrido e a rede são imagens poderosas para nós justamente porque reencenam
nossas sensações ocidentais de “extensão infindável e entrelaçamento dos fenômenos”
(Strathern 1996: 522); mas o senso de parcialidade que engendram, como explorado no
primeiro capítulo, e o senso de insuficiência que eles geram não necessariamente implicam
em algo mais do que isso. Ou seja, a própria linguagem dos contornos, numa tentativa de
superar essa sensação de parcialidade, “levanta expectativas inapropriadas para a análise
social” (ibid: 520), pois inescapavelmente “a complexidade das interações entre as pessoas
que podem ser apreendidas sociologicamente não encontra um substituto simples na sutileza
com a qua los contornos categóricos podem ser repensados” (ibid: 520). Portanto, uma
diferença irredutível é instalada em relação à nossa habilidade de levar em conta outros
modos de ‘cortare ‘fluir’, e também entre esses mesmos diferentes modos. Tal extensão da
noção de ‘rede’, portanto, possui alguns senões. A hipótese de Latour de que os “modernos” e
os “pré-modernos” estão todos envolvidos na construção de redes, mas a diferença entre eles é
apenas uma questão do tamanho das redes (1993 [1991]: 114-119), é de algum modo virada
ao avesso tanto no contexto moderno quanto no pré-moderno, as redes são feitas para ter
diferentes tamanhos, e cabe ao analista explorar etnograficamente em detalhe os modos pelos
quais isso se faz. Ilimitação (ou, de fato, ‘o coletivo’) não é um conceito mais fértil do que
contorno, a não ser que seja usado de modo a permitir a emergência de diferentes formas e
práticas. E isso, por vezes, pode requerer uma parada – “um momento de pausa interpretativa”
(Strathern 1996: 522)
343
. Logo, o analista não apenas se envolve na construção e traçado das
redes, mas também em seu corte.
Este parece um bom lugar para chegarmos a um ponto final. As imagens e analogias que eu
empreguei ao longo da dissertação permanecem, quase com certeza, inexploradas. Mas a
342
“These notions challenge the interpretative possibility of limitlessness: the kinds of interests, social or
personal, that invite extension also truncate it, and hybrids that appear able to mix anything can serve as
boundaries to claims”
343 “a moment of interpretatice pause”
259
cumplicidade, aquilo que nos permite pensar o impensável, pensando através do outro, é
sempre denunciada como exploração. Claro, isso é assumir que eu partilho a mesma noção de
exploração com aqueles que estudo. Minha ignorância aqui é talvez mais do que etnográfica.
Tenho em mente a observação de Miyazaki e Rile de que “[M]uitas estratégias analíticas que
povoam a antropologia contemporânea... em resposta à nossa apreensão com o fim de seu
próprio conhecimento... recusam-se a conhecer. E elas também se recusam a reconhecer o
fracasso de seu próprio conhecimento situando a indeterminação e a complexidade ‘out
there’” (2005: 327)
344
. Talvez, como eles sugerem, o ‘fracasso’ no encontro, seja nas
expectativas que nossos nativos possuem acerca de si próprios (como fazem Miyazaki e
Riles), ou na incapacidade de nossas análises de levar em conta essas expectativas, implica
que “ao invés de passar pelo ponto final a caminho de novos (e auto-conscientemente
limitados) começos”, devemos “preferir conhecer o ponto final de modo sustentável” (2005:
328)
345
. Stengers nos incita a “prolongar diferentemente nossa herança” (2000a (1993]: 152).
Não é uma questão de superação, mas de aprender a olhar para os erros do passado com
humor. A perplexidade é um estado compartilhado. Ao lado de sua caracterização do
Parlamento das Coisas do Latour, o devir coletivo, como um estabelecimento de “uma
comunicação paradoxal entre tudo o que progride, no sentido clássico do termo, sugeria que
opuséssemos o reformismo que humaniza e organiza em continuidade e a revolução que
denuncia e cria rupturas” (2000a [1993]: 152), talvez seja preferível que esse texto, enquanto
movimento, não pareça ter progredido a lugar algum, mas apenas tentado ao máximo
interessá-lo, sendo o mais interessado possível naqueles que o moveram.
Durante o 11º Encontro da Equipe Científica da LBA-ECO, em Salvador, que reuniu
um imenso tropel de cientistas e pesquisadores de todo o mundo, os quais participaram da
LBA, eu conversei com um jovem estudante de Mestrado, que tinha ido apresentar um
cartaz sobre fluxo de carbono. Tivemos uma discussão muito interessante, na qual ele me
alertou que, muito tempo, projetos como o LBA tomaram conhecimento de teorias
físicas e matemáticas não-lineares e não-equilibradas, como os fractais de Mandelbrot, e a
teoria de Prigogine do tempo não-reversível. Ele estava agradavelmente surpreso com o fato
de que uma estudante de antropologia tivesse ouvido falar de Prigogine e fractais. Eu
344
“[M]any of the analytical strategies that populate the anthropology of the contemporary…in response to
the apprehension of the endpoint of their own knowledge…retreat from knowing. And they also retreat from the
recognition that of the failure of their own knowledge by locating indeterminacy and complexity “out there””
345
“instead of passing through the endpoint on the way to new (but self-consciously limited) beginnings”
we should “prefer to know the endpoint in a sustained way
260
comentei que Prigogine, de fato, tinha escrito um livro com uma filósofa da ciência belga,
Isabelle Stengers. Ele tomou nota e disse que tentaria lê-lo assim que retornasse a Manaus.
Comentei isso porque minha descriçãio está situada em um certo lugar e época. Mas estas
épocas e lugares estão quase certamente mudando.
261
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