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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
Cleyton Rodrigues dos Santos
Escravos, forros e ex-escravos: o difícil acesso à cidadania – Rio
Claro (1862-1895).
MESTRADO EM HISTÓRIA
SÃO PAULO/SP
2008
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2
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
Cleyton Rodrigues dos Santos
Escravos, forros e ex-escravos: o difícil acesso à cidadania – Rio
Claro (1862-1895).
MESTRADO EM HISTÓRIA
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora como exigência parcial para
a obtenção do Título de MESTRE em
História, Área de Concentração: História
Social pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, sob a orientação
da Prof.ª Dr.ª Maria Odila Leite da Silva
Dias.
SÃO PAULO/SP
2008
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3
BANCA EXAMINADORA
___________________________________
___________________________________
___________________________________
4
Liberdade! Liberdade!
Abre as asas sobre nós
E que a vós da igualdade
Seja sempre a nossa voz.
Samba enredo da Imperatriz Leopoldinense do ano de 1989.
5
À minha estrelinha Deborah.
Ao povo de Rio Claro.
Àqueles que, apesar de tudo, resistiram.
6
AGRADECIMENTOS
Até que enfim os agradecimentos, que, como não poderia deixar de ser, o
último a ser escrito. Começo então pelo apoio financeiro da CAPES na realização
dos créditos e ao CNPQ, por permitir dedicação exclusiva à pesquisa.
À minha orientadora devo mais que agradecimentos. Aos livros
emprestados e nem sempre devolvidos com rapidez; as deliciosas conversas, que
longe dos rigores da formalidade de uma orientação, me permitiu a produção de
um texto “bem humorado”, e, principalmente, por ter me recebido como
orientando com carinho e paciência. Espero que o texto esteja a altura de sua
orientação.
À PUC-SP e aos professores do Departamento de Estudos Pós-Graduados
em História, em especial aos professores Marcia D’Aléssio, Maria do Rosário,
Denise Bernuzzi, Maria Izilda, Antonio Pedro Tota e Olga Brites.
Às professoras Lucília Siqueira e Monica Duarte Dantas que, no exame de
qualificação, fizeram sugestões e críticas que, na medida do possível foram
incorporadas ao texto final.
Nos arquivos e bibliotecas por onde passei, contei com a colaboração de
diversas, vamos a elas: no Arquivo do Estado de São Paulo os funcionários não
pouparam esforços para me atender. Em Rio Claro contei com a ajuda de
pessoas que ganharam minha admiração, sempre sugerindo documentos que
poderiam enriquecer o trabalho; no Arquivo Histórico Municipal de Rio Claro
“Oscar de Arruda Penteado” sou grato à Ana Maria, ao Frank, ao Nivaldo e ao
Rodrigo; no Museu Histórico e Pedagógico Amador Bueno da Veiga pude contar
com a ajuda da Antonieta, da Rosangela e do Fernando. No Gabinete de Leitura
contei com a ajuda e a amizade da Diva. Além dos funcionários das bibliotecas da
PUC-SP, da UNESP de Marília e Toledo de Presidente Prudente, em especial a
Marli, por permitir minhas longas consultas no setor de obras raras da Faculdade
de Direito.
7
Aos professores das Escolas Estaduais Liria Yurico Sumida e Felício
Tarabay, em especial ao Prof. Jorge, um exemplo de vida, e a Prof.ª Simone,
sempre otimista nos momentos mais difíceis.
Aos amigos da Pós-Graduação em História da PUC-SP, em especial a
Ada, Adriana, Meire, Edson, Luciana, Mauricio, Therence, Marcelo e Fabiana,
onde, muitos deles, além de dividir a mesa dos almoços, dividiam comigo,
também, a orientadora.
Aos amigos que insistiram cruzar meu caminho. Antigos professores da
graduação: Wilson, Sandro, Marilena e, especialmente o Alberto (onde tudo
começou). Prof. Ricardo Musse, grande incentivador e um exemplo da perda do
medo da “cidade grande”. Ricardo e Marcelino, grandes amigos. Ao Prof. Paulo
Rodrigues, que disponibilizou parte da documentação, um grande lutador.
Aos familiares, em especial a Tia Teda, que ocupou o lugar de “Mãe” por
várias vezes, Tio Zé, minha prima-irmã Martinha, os terríveis Enzo e Italo e ao
Caíde. À Tia Edneuza, que mesmo distante deu “aquela força”.
Aos meus pais Antonio e Cleuza, por sempre acreditarem em mim e nunca
deixar que eu caísse em desanimo. O ser humano que sou hoje devo aos meus
pais. À minha Avó Argentina, sempre uma guerreira, meus irmãos Daniel e David,
e ao sobrinho Daniel Henrique, que chegou no “meio” da dissertação.
À Laine e à Deborah. Simplesmente a elas não palavras para
agradecer. Participaram das alegrias, das angústias e maus-humores desde o
começo do trabalho. Souberam suportar minha constante ausência, desde
viagens à São Paulo e Rio Claro, ameu “enclausuramento” no “quartinho de
estudos”. Nessas páginas tem um pouquinho de cada uma das duas, e talvez não
saibam o tamanho da importância que tiveram para que esse dia realmente
chegasse.
Por último, e acima de tudo, à Deus, pelo dom da vida e por ter colocado
essas pessoas no meu caminho, contribuindo para a construção da minha
história.
8
RESUMO
Esta dissertação tem por objetivo analisar o processo de inserção de
indivíduos egressos do cativeiro no mundo que se convencionou chamar de “livre”
em Rio Claro na segunda metade do século XIX, entre os anos de 1862 e 1895.
Através de documentos como os processos criminais, a imprensa, os
relatórios governamentais, entre outros, procurou-se mostrar como esses
indivíduos recém egressos do cativeiro, ou ainda em cativeiro, criaram estratégias
próprias de sobrevivência tendo como pilar as experiências trazidas do período
em que viveram, ou viviam, no regime escravista.
Procuramos mostrar através das ações de escravos, forros e ex-escravos,
a luta em um território estranho e a construção de uma rede de relações sociais
mergulhados em solidariedade e conflitos étnicos em uma sociedade onde, um
indivíduo de cor encontrava dificuldades para ter acesso a uma cidadania plena.
PALAVRAS-CHAVE: Escravidão; Abolição; Cidadania; Direito; Rio Claro; São
Paulo; Brasil.
9
ABSTRACT
The objective of this essay is analyze the process of inserting individuals
who were from the captivity in a world that was established “free” in Rio Claro in
second half of XIX century, between 1862 and 1895.
Through the documents as criminal trial, press, governmental reports, and
others, it was tried to show how these individuals who were recently set free from
captivity, or still in it, created strategies to survive having brought background
experiences from the period when they lived in slavery.
We tried to show through the slaves attitudes, recently set free slaves and
ex-slaves, a fight in a strange territory and the construction of social relations
based in solidarity and ethnic conflicts in a society where, an individual of color
found difficulty to access to a complete citizenship.
KEY-WORD: Slavery; Abolition; Citizenship; Right; Rio Claro; São Paulo; Brazil.
10
SUMÁRIO
Página
AGRADECIMENTOS...............................................................................................6
RESUMO.................................................................................................................8
INTRODUÇÃO.......................................................................................................11
1. CAPÍTULO 1 - OS ÚLTIMOS ANOS DA ESCRAVIDÃO EM RIO
CLARO............................................................................................................. 21
1.1. As tensões do cotidiano e os “maos costumes”........................................ 25
1.2. Lazer e conflito no ambiente rural............................................................. 34
1.3. Corpos estranhos: escravos e libertos na cidade................................... 39
1.4. Das Ambrosinas à Bibiana e Perpétua: honra, solidariedade e conflito
porta à dentro............................................................................................ 44
1.5. O infanticídio e a denúncia do escravo..................................................... 53
1.6. Sociabilidade e relações sociais: a complexidade do quotidiano nos anos
finais do escravismo em Rio Claro............................................................57
2. CAPÍTULO 2 - OS CAMINHOS PARA A LIBERDADE...................................62
2.1. Tensão social e agitação política nos últimos anos do escravismo..........64
2.2. Benedito e o longo caminho para a liberdade............................................83
2.3. As doenças chronicas aos dezoito annos de idade...................................93
2.4. As liberdades condicionais.......................................................................101
2.5. Estratégias matrimoniais e solidariedade nas ações de liberdade..........113
3. CAPÍTULO 3 – O DIFÍCIL ACESSO À CIDADANIA.....................................121
3.1. Cenas do quotidiano após a abolição: ainda a violência e o “preto”.......125
3.2. A cor e a mobilidade social: o caso do liberto João Grande....................134
3.3. Memórias e histórias da escravidão: violência, magia, trabalho e
identidade.................................................................................................144
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................152
FONTES...............................................................................................................155
BIBLIOGRAFIA...................................................................................................159
ANEXOS..............................................................................................................167
11
INTRODUÇÃO
Aquela fruta foi o maior pecado que Deus deixou em cima da Terra. (...)
é o café. O café foi a maior maldição que já existiu. Que no Brasil... Que
no Mundo inteiro... Desse Mundo acho né
1
.
O depoimento acima citado é de um filho de escravo, Paulino da Mata. Foi
retirado de uma entrevista concedida no ano de 1973, ao jornalista Paulo
Rodrigues, permanecendo inédita até o presente momento. Mostra um grande
rancor em relação ao café. Segundo ele os males da escravidão se devem,
principalmente, à economia cafeeira.
Foi a partir de 1862 que o café começou a suplantar o açúcar em Rio
Claro. Desde essa data o ciclo da cana-de-açúcar em Rio Claro foi claramente
sendo subcapitalizado e tornando-se especulativo. De acordo com o historiador
Warren Dean os fazendeiros de Rio Claro financiavam a produção local com o
que ganhavam nas propriedades de Campinas e Itu. A exaustão das florestas e
do solo em regiões mais antigas teria, com o tempo, transformaria a região numa
área canavieira importante, mas então já o café substituíra a cana
2
.
Certamente, os males advindos do sistema escravo, principalmente para os
indivíduos que vivenciaram o sistema na condição de cativos, não se devem
necessariamente ao café. Porém, foi uma maneira desse indivíduo que viveu a
escravidão expressar a sua experiência. A ascensão do café em Rio Claro
coincidiu com o aumento do número de escravos na cidade, conforme mostra a
tabela a seguir:
1
PAULINO DA MATA. Entrevista ao jornalista Paulo Rodrigues. 1973.
2
DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977, p. 41.
12
População Escrava em Rio Claro, 1856-1888.
Ano Número de escravos Porcentagem da
população total
1856 1.426 -
1872 3.935 26,2
1874 4.182 -
1875 4.429 -
1876 4.467 -
1882 4.852 -
1883 4.866 -
1884 4.980 -
1885 (Junho) 4.709 20,5
1887 (Março) 3.304 14,7
1888 (Março) 1.663 -
FONTE: 1856: PESTANA, Paulo. O café em São Paulo, p. 13. 1872: Recenseamento. 1876:
Brazil, Directoria Geral de Estatística, Relatório, 1878. 1874-88: Escravos 1, 2 e SP (P), Presidente
da Província, Relatório, 1883-89. Apud. DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande
lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 63.
Concomitante ao aumento significativo de escravos, a produção de café
um salto entre os anos 1835 e 1857-59. Enquanto que nesse primeiro ano a
produção de café era ínfima chegando a 0,5 tonelada métrica com apenas 2
plantadores, em 1857-59 alcança uma produção de 1.764 toneladas métricas com
44 plantadores. Esse avanço continua, chegando a 2.557 toneladas métricas em
13
1862 e 6.000 em 1876 com 91 plantadores
3
. Enquanto isso, em 1862, a produção
açucareira apresentava um declínio absoluto com uma produção de 264
toneladas métricas e uma produção de 145 quilolitros de aguardente com o total
de 8 plantadores de cana-de-açúcar e 6 usinas em funcionamento, chegando, Rio
Claro, em 1873, a ponto de não produzir nem para suas próprias necessidades
4
.
Foi na esteira dos cafezais que as ferrovias paulistas emergiram e se
ampliaram, em completa dependência dos interesses dos produtores,
administradores e comerciantes de café
5
. Em 11 de agosto de 1876 foi
inaugurada a estação ferroviária de Rio Claro, que mudou o panorama econômico
e social da cidade. Porém como nos mostra Dean:
A Companhia Paulista de Estradas de Ferro não estava disposta a
continuar a linha até Campinas e Rio Claro, um grupo de fazendeiros
assumiu o encargo. Entre eles haviam 22 com lavouras em Rio Claro,
inclusive o Conde de Três Rios, a família Vergueiro e o Visconde do Rio
Claro. O levantamento do capital foi atrasado pela Guerra do Paraguai,
mas a Companhia Paulista de Estradas de Ferro trouxe a linha até
Campinas em 1872. Forte pressão de políticos de Rio Claro e Limeira
forçaram a Companhia a estender seus trilhos até Rio Claro, e a seção
completou-se em agosto de 1876, ao custo de 5,8 milhões de mil-réis
6
.
Rio Claro nas últimas décadas do século XIX respirava progresso e
modernidade. Tentara-se implantar em 1887 uma linha de bondes que circularia
até a divisa de Piracicaba, porém o projeto não se concretizou.
Nessas últimas décadas, as autoridades se preocupavam com questões
envolvendo o abastecimento de água, - que teve seu primeiro contrato firmado no
dia 11 de novembro de 1884 -, e com o estabelecimento de normas para o
arruamento da cidade. Mas, após a inauguração da via férrea, o fato de maior
3
DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977, p. 52.
4
Idem, p. 41.
5
SAES, Flavio A. Marques. As ferrovias de São Paulo, 1870-1940. São Paulo: HUCITEC, 1981, p.
63.
6
DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977, p. 54.
14
importância para a cidade de São João Baptista do Rio Claro, posteriormente
apenas Rio Claro, foi a concretização de um dos maiores empreendimentos da
época: Rio Claro foi a primeira cidade na Província de São Paulo a receber luz
elétrica, que foi inaugurada no dia 7 de setembro de 1885. Nas bases do contrato
constava:
Os contractantes Real e Portela se obrigam pelo prezente contracto
nesta cidade nos lugares designados pela Camara, reprezentada pelo
seo Presidente em questão ... dez focos de luz do Systema de arco
Weston, collocados sobre postes de madeira de dez metros de altura;
Estes focos serão accesos durante as noites em que não houver lua
cheia, das seis horas da tarde ás cinco da manhã nos meses de abril a
setembro das sete horas ás cinco da manhã dos meses de outubro á
março;
Cada foco de luz custará anualmente a Camara a quantia de sete centos
e trinta mil reis, pagos em prestações mensais;
Os contractantes se obrigarão a assentar os machinismos para
funccionar a iluminação até o dia sete de setembro de mil oitocentos e
oitenta e cinco;
A Camara prestará parte da Caza do mercado para o ajuntamento das
machinas e apparelhos da iluminação e depósito de combustível, se os
contractantes não encontrarem outra caza que mais conveniente seja ao
estabelecimento da planta electrica;
A Camara se obriga a solicitar da Assembleia Provincial um privilégio por
vinte annos em favor do contractante para que se tenham estes direitos
exclusivo de contracto a illuminação por meio de luz electrica nas cazas
particulares desta cidade, pelo systema incandescente de arco
7
.
Casarões erguiam-se do chão, fruto da opulência gerada pelo café. Era
uma terra de contrastes, como todas as importantes cidades do Brasil em fins de
Império e do sistema de trabalho escravista. As construções eram, de início,
erguidas por mão-de-obra escrava e depois pelos imigrantes. A “modernização”
começou a surgir a partir de sua antítese, o “antigo”. Assim Rio Claro irrompeu a
década de 1870 como a terceira cidade da Província de São Paulo.
Essas transformações ocorridas na cidade coincidiram com as
transformações a nível global. O mundo estava vivendo o impacto da Revolução
Científico-Tecnológica que alterou, consideravelmente, tanto os hábitos e
7
Livro nº 1 de Contractos e Arrematações da Prefeitura de Rio Claro: 55 a 58. 1890.
15
costumes do cotidiano, quanto o ritmo e intensidade dos transportes,
comunicação e, também, do trabalho
8
.
A idéia de progresso era, então, urbana, porém apoiada pelos recursos
advindos do campo. Sergio Buarque de Holanda, em sua obra Raízes do Brasil,
observa que o desenvolvimento das comunicações, sobretudo das vias férreas,
que procuravam de preferência as zonas produtoras de café, acentuaram e
facilitaram a relação de dependência entre essas áreas rurais e as cidades
9
. As
regiões cafeeiras começaram a ter feições típicas daqueles centros industriais
onde, o fazendeiro tornou-se um tipo citadino, mais do que rural, e um indivíduo
para quem a propriedade agrícola constituía, em primeiro plano, meio de vida e
ocasionalmente local de residência ou recreio
10
.
A imigração de trabalhadores estrangeiros, a partir de 1870, teve um fluxo
contínuo. É bem verdade que, em 1845, o Senador Nicolau de Campos Vergueiro
antevendo o gradual declínio da força escrava, se a proibição do tráfico de
escravos africanos se confirmasse, decidiu importar trabalhadores livres
europeus. Segundo o historiador norte-americano Warren Dean, a primeira leva,
formada por 64 famílias alemãs, num total de 432 pessoas, vindas da Prússia,
Baviera e Holstein, chegaram à fazenda Ibicaba, em Limeira, em 1847,
juntamente quando sua plantação de café estava começando a produzir
11
.
A partir da década de 1880, os imigrantes, que começavam a chegar em
grande quantidade, vinham sendo favorecidos por contratos que os
beneficiavam. É importante salientar, então, que os ex-escravos foram perdendo
espaço no mercado de trabalho em Rio Claro, em razão do privilégio que tiveram
8
SEVCENKO, Nicolau. Introdução. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do
progresso. IN. SEVCENKO, Nicolau (org.). História da vida privada vol. 3. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p. 11.
9
HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1995, p. 175.
10
Idem, p. 175.
11
DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977, p. 95.
16
os trabalhadores europeus, uma vez que a elite brasileira achava-se imbuída do
projeto de branqueamento do povo e modernização do país, pela construção de
uma “nação branca”
12
.
Após 1890, ocorreu um boom na entrada de imigrantes no Brasil,
principalmente em São Paulo, onde, como nos mostra o historiador Thomas
Holloway, somente entre os anos de 1893 e 1895 as entradas na Hospedaria de
Imigrantes de São Paulo chegaram a 202.409
13
. Sabe-se, perfeitamente que
grande parte desse contingente de pessoas seria aproveitada nas lavouras
cafeeiras; tal fato coincidiu com a introdução, a partir de 1870 e ganhando maior
fôlego da década de 1880 em diante, de teorias de pensamento até então pouco
conhecidas no cenário pensante brasileiro, como o positivismo, o darwinismo e o
evolucionismo.
Assim, libertos, emancipados, trabalhadores nacionais ou quaisquer outras
categorias sociais cujos referenciais estavam associados a cor ou raça ficaram
excluídos do mercado de trabalho e dos projetos do governo brasileiro da
pequena propriedade familiar, destinada à imigração branca e ao trabalho livre,
devido aos critérios de civilização dos adeptos da seleção natural de Darwin
14
.
Porém, como argumentou a historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias, no
momento da passagem da escravidão para o trabalho livre, se desencadeou um
processo de formação das classes trabalhadoras nas diferentes regiões do país,
12
Para uma melhor reflexão sobre o tema ver, principalmente: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O
espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo:
Companhia das Letras, 1993. HOFBAUER, Andreas. Uma história de branqueamento ou o negro
em questão. São Paulo: Editora da UNESP, 2006.
13
HOLLOWAY, Thomas H. Imigrantes para o café: café e sociedade em São Paulo, 1886-1934.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 90.
14
SEYFERTH, Giralda. Imigração, ocupação territorial e cidadania: o Vale do Itaje a política de
colonização na Primeira República. IN: Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-
emancipação no Brasil. Org. Flavio dos Santos Gomes e Olivia Maria Gomes da Cunha. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2007, p. 79. Mas, como argumenta Seyferth, o privilégio concedido aos
imigrantes europeus no contexto da colonização não teve a contrapartida de seu reconhecimento
como cidadãos plenos, dada a sua categorização como alienígenas ou estrangeiros, nem sempre
coerente com os dispositivos legais.
17
que representou um impasse para as classes dominantes, provocando processos
políticos para fortalecer a hegemonia das classes dominantes
15
.
Dentro da desigualdade do processo de crescimento econômico se faz
necessário realçar a resistência que ofereceram os grupos sociais não
determinantes à política de dominação dos grupos no poder. Trata-se de observar
que os indivíduos pertencentes a grupos sociais o hegemônicos tinham suas
funções bem determinadas dentro da sociedade brasileira oitocentista,
tipicamente agrária e escravista.
A nossa proposta de trabalho e a estratégia de documentação adotada foi
a de concentração da pesquisa na cidade de Rio Claro, no período que abrange
os anos de 1862 a 1895.
A escolha da cidade de Rio Claro foi orientada pela importante obra de
Warren Dean, Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, com a intenção
de analisar novas fontes. E mais como elemento de orientação cronológica, a
baliza temporal começa em 1862, ano em que a lavoura cafeeira passa a
suplantar a da cana-de-açúcar, onde se deu um aumento significativo no número
de escravos no município, até 1895, ano em que se deu a maior entrada de
imigrantes em São Paulo, sabendo-se que grande parcela desse contingente foi
canalizada para o trabalho nas fazendas de café.
O nosso objetivo é, a partir da leitura de processos judiciais, observar a
convivência entre homens e mulheres de diferentes segmentos étnicos e raciais
na construção de suas próprias histórias. A delimitação temporal e espacial das
ações quotidianas e dos modos de vida de escravos, forros e ex-escravos,
possibilitou-nos estudar as formas de convivência, solidariedade e de articulações
desses grupos sociais antes e depois da abolição.
15
DIAS, Maria Odila L. S. Sociabilidades sem história: votantes pobres no Império, 1824-1881. In.
Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 2001.
18
Dentro desse contexto, procuramos contribuir para a história de Rio Claro
entre os anos finais do escravismo e os primeiros anos após a abolição
institucional da escravidão no Brasil, período esse que abarca os anos de 1862 a
1895, na tentativa de reconstruir o quotidiano de alguns personagens que
circularam pela cidade nesse período e que marcaram, de alguma maneira, os
momentos finais de escravidão.
Para se levar com determinação a pesquisa foi preciso fundar a análise e o
estudo em estratégias de pesquisa capazes de conseguir a identificação do
escravo, forro e ex-escravo enquanto sujeitos autônomos e, acima de tudo,
históricos, sendo dotados de capacidade de criar mecanismos para a construção
de sua liberdade e de seu acesso ao “mundo do homem branco”, reconhecendo,
portanto, a capacidade do negro para a sua autodeterminação.
O trabalho se divide em três capítulos, onde tomamos uma linha de
pensamento consistente e condizente com o debate historiográfico atual sobre o
momento de desagregação do regime de trabalho escravo e a inserção dos
indivíduos egressos do cativeiro na sociedade livre na cidade de Rio Claro,
observando as improvisações na luta pela sobrevivência, na qual notamos a
formação de um corpus político, nas manifestações espontâneas de resistência
que tomaram formas de conscientização dos escravos na passagem para o
trabalho livre.
No primeiro capítulo, “Os últimos anos da escravidão em Rio Claro”,
mostraremos, através da análise das fontes e apoiados em consistente
bibliografia, que a forma como se apresentam os conflitos e solidariedades entre
negros e brancos, nos anos que antecederam a abolição, são produto de sua
vivência escravista. Observa-se que as relações escravistas são fruto das ações
de senhores, escravos, forros e ex-escravos enquanto sujeitos históricos,
portanto, construídas, - segundo nos ensina Thompson -, a partir das experiências
19
desses sujeitos, homens e mulheres, em meio a uma rede de lutas sociais e
relações pessoais de dominação e exploração, e, porque não mencionar, de
resistência
16
.
Para tratarmos do contexto, em que se deram os conflitos e as
solidariedades, entre negros e brancos na cidade de Rio Claro, no período
abarcado pela pesquisa, fizemos uma leitura atenta dos processos judiciais,
observando o cenário da cidade de Rio Claro na década de 1880, que tinha como
uma de suas características principais a aproximação da área urbana e rural,
observando as relações das diversas parcelas da população, o comportamento,
os costumes e os hábitos, e as formas de trabalho e de vida nos espaços
distintos.
No segundo capitulo, analisamos algumas passagens dos discursos
parlamentares, dos relatórios do chefe de pocia da Proncia de São Paulo, além
das ações de liberdade. Nesse capitulo, intitulado “Os caminhos para a liberdade”,
procuramos mostrar a tentativa da elite política brasileira de dar um
encaminhamento político à “questão do elemento servil”, na clara intenção de
afastar os maiores interessados nesse embate: os escravos. Os relatórios do
chefe de polícia e as ações de liberdade, nos permitiram compreender o papel
decisivo que os negros tiveram na luta pela liberdade, agindo junto aos
movimentos sociais, como nas ações de liberdade que impetraram nas barras dos
tribunais.
A partir da leitura e análise das ações de liberdade, percebemos que os
escravos reivindicavam na justiça, de forma consciente, o direito de ascenderem
socialmente e escolherem os seus destinos, transformando o Judiciário, tido como
um mecanismo legalista e institucional em um espaço de reivindicações que
poderia favorecer sua caminhada rumo à liberdade. A legitimação do judiciário
16
THOMPSON, Edward P. A Formação da Classe Operária Inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987. 3 vol.
20
enquanto mecanismo de reivindicação de direitos supõe que os escravos e os
seus curadores criavam parâmetros que consideravam justos como o direito ao
pecúlio; preços de acordo com os estabelecidos na legislação; entre outros na
relação senhor-escravo.
O terceiro capítulo tem por objetivo analisar o processo de ingresso dos ex-
escravos na vida livre observando a sua situação precária no pós-abolição, bem
como o difícil acesso ao mercado de trabalho, a que se convencionou chamar de
“mundo livre” e à cidadania.
Utilizamos fontes variadas como os processos criminais e a imprensa, além
da utilização do depoimento do filho de um ex-escravo, Paulino da Mata; nesse
terceiro capítulo observamos as dificuldades que os indivíduos recém egressos do
cativeiro tiveram para se inserirem em um campo desconhecido, a partir da sua
experiência em cativeiro, “inventando” formas diversas de viver em liberdade.
21
CAPÍTULO 1
OS ÚLTIMOS ANOS DA ESCRAVIDÃO EM RIO CLARO.
O objetivo do presente capítulo é, justamente, analisar o funcionamento do
sistema escravo no município de Rio Claro, observando tanto o trabalho do cativo
na lavoura comercial, oferecendo condições para esta reproduzir-se, bem como a
circulação do escravo ou libertos no ambiente rural e urbano e suas experiências
e relações de sociabilidade.
A abolição total da escravatura o chegou com a mesma velocidade em
todos os lugares do Brasil. No dia 4 de junho de 1888, quase um mês depois de
abolida a escravidão a Câmara Municipal de São João Baptista do Rio Claro
lançou uma receita de 100$000 (cem mil réis), receita esta correspondente ao
imposto sobre transmissão de escravos
17
. Como o demonstrativo é referente ao
mês anterior, no caso maio de 1888, a arrecadação poderia ter sido feita nos
treze primeiros dias daquele mês. Tal demonstrativo nos mostra que em Rio Claro
os senhores se utilizaram da força de trabalho escrava até o seu último momento,
mesmo quando agonizava em leito de morte (ver tabela p. 6).
Até a abolição não havia lavouras de homens plenamente livres em Rio
Claro. Para conseguir a manutenção da produção de café, que se encontrava em
seu auge, a utilização da força de trabalho do cativo se fazia necessária. De
acordo com Warren Dean, em 1885 a população escrava em Rio Claro era da
ordem de 4.709 cativos, equivalente a 20,5% da população total do município,
decrescendo nos anos subseqüentes, sendo 3.304 o número de escravos no ano
17
Relatório da Câmara Municipal de São João do Rio Claro enviado ao Presidente da Província de
São Paulo. 10 de junho de 1888.
22
de 1887 e 1.663 para o ano de 1888 até o mês de março, respectivamente
equivalente a 14,7% e 7,4% da população total, dois meses antes da abolição
18
.
Rio Claro que se localiza na chamada região do Oeste Histórico Paulista,
que tem seu início em Campinas, chegando até o município de Ribeirão Preto
foi caracterizado como um município no qual a utilização da força de trabalho
cativa foi fundamental para a economia local.
Observou-se que nas redondezas daquela localidade se fizeram as
primeiras experiências com a força de trabalho livre do imigrante, tendo ocorrido
uma espécie de simbiose, ou seja, trabalhadores negros e escravos dividindo o
mesmo espaço com os europeus livres. O Senador Nicolau de Campos
Vergueiro, foi um dos pioneiros da inserção da mão-de-obra livre européia, na
medida em que introduziu 432 imigrantes suíços, alemães e portugueses para o
trabalho na Fazenda Ibicaba
19
de sua propriedade em 1847. Em 1852, ele não
eliminara o trabalho escravo: uma força de 250 escravos continuava a tratar de
outros lotes em Ibicaba
20
.
A população de São João Baptista do Rio Claro cresceu vertiginosamente
após 11 de agosto de 1876, data da inauguração da linha férrea. Segundo Warren
Dean, em 1872 a população total de São João Baptista do Rio Claro era da ordem
de 15.035 almas, crescendo para 20.133 em 1886 e 24.584 no ano de 1890
21
.
A ferrovia transformou consideravelmente a vida das pessoas na cidade,
além de acelerar o processo de urbanização. A cidade apresentava um aspecto
bastante agradável, com as casas bem construídas e mais juntas umas das
18
DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977, p. 63.
19
A Fazenda Ibicaba se localiza entre os municípios de Limeira e Rio Claro.
20
DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977, p. 99.
21
DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977, p. 155.
23
outras, do que em Campinas, onde as ruas poeirentas deixavam os transeuntes
bastante incomodados
22
.
Durante esse período, de acordo com Fábio Alexandre dos Santos:
A primeira impressão que ressalta no cenário urbano são as novas
construções, que quebram a monotonia da paisagem urbana, como o
prédio da Cadeia e da mara, construídos em meados da década de
1870, abrigando a Cadeia no térreo e a Câmara no andar superior; o
prédio do Teatro São João; e os diversos casarões construídos pelos
fazendeiros-negociantes na cidade, como o sobrado de José Luiz
Borges, o Barão de Dourados
23
.
A chegada da ferrovia não mudou apenas a paisagem urbana, mas
também o cenário econômico. A ferrovia também era mesclada quanto ao seu
uso. A poderosa linha rrea não transportava apenas o valioso café, que antes
era escoado para o Porto de Santos no lombo de mulas e burros, enfrentando
longos percursos de estradas esburacadas. Transportava, também, pessoas dos
mais diferentes grupos sociais. Escravos fujões chegavam a utilizarem-se dos
seus serviços para se refugiarem em Santos ou na Capital. Também as
informações passaram a circular com maior rapidez.
Observando Rio Claro a partir, principalmente, das três ultimas décadas do
século XIX, particularmente as décadas de 1870 e 1880, percebe-se uma cidade
multifacetada, onde concomitantemente ao processo de modernização de alguns
setores da economia local, outros setores continuavam a operar com
precariedade e rusticidade, afirmando o que alguns economistas chamaram de
dualismo econômico no desenvolvimento do Brasil. Rio Claro, certamente, não
fugiu a essa regra.
22
SANTOS, Fábio Alexandre dos. Rio Claro: uma cidade em transformação, 1850-1906.
Campinas: Dissertação (mestrado em História Econômica). IE-UNICAMP, 2000, p. 59.
23
Idem, p. 59.
24
As histórias que mostraremos nesse primeiro capítulo constituem mais uma
faceta, não da cidade de São João Baptista do Rio Claro, mas também do
sistema escravista que, mesmo em fase terminal, insistia em vigorar por mais
alguns anos. Mesmo se passando no interior do complexo sistema escravista, e
interagindo com o processo de modernização da cidade, personagens como
Joaquim Bento e Josephina; Anna e Maria, as Ambrosinas, ou Marcelino,
construíram não a História de Rio Claro, mas também a História do Brasil e
contribuíram decisivamente para o fim do sistema escravista no País.
Como fonte de pesquisa para a análise dos últimos anos da escravidão no
município de Rio Claro utilizamo-nos de um conjunto de processos-crimes, que
descrevem as tensões, conflitos e solidariedades na rede de relações sociais
escravistas, abordando essas mesmas relações como conseqüência das ações
de senhores e de escravos enquanto sujeitos históricos.
Conforme revela Ivan de Andrade Vellasco,
Processos judiciais constituem fragmentos que, ao registrarem relações
conflituosas e as formas de resposta aos conflitos, nos permitem
enxergar, em negativo, as regras que regiam as condutas cotidianas e as
expectativas recíprocas de comportamentos que deveriam prevalecer na
relação entre indivíduos distintos e grupos socialmente delimitados,
regras que balizavam os limites entre a aquiescência e a desobediência,
entre o acatamento e a reinterpretação da regra, quando ela se tornava
fonte de conflito e negociação
24
.
Reconstituir a história não chega a ser algo tão simples assim. O
historiador passa por um calvário quando têm em mãos determinadas fontes, no
nosso caso fontes escritas, considerando-se que, ainda hoje, a cultura e as
tradições das classes subalternas são predominantemente orais. Dessa forma, os
historiadores precisam servir-se, sobretudo de fontes escritas que são
duplamente indiretas: por serem escritas e, em geral, por serem de autoria de
24
VELLASCO, Ivan de Andrade. As redes de solidariedade da cor: o caso dos compadres Manoel
e Laurindo. In. Revista História, São Paulo, v. 25, nº1, p. 147-169, 2006, p. 148.
25
indivíduos, uns mais outros menos, abertamente ligados à cultura dominante
25
.
Dessa forma, informações referentes aos indivíduos mais abastados chegam até
nós deformadas, uma vez que passam por intermediários que as filtram. Assim
acontece com as informações necessárias para uma reconstituição mais
abrangente do modo de vida de escravos, forros e ex-escravos que vagaram por
nossa história.
Além dos meandros que cercam o trabalho de pesquisa do historiador,
deve-se ficar atento para esse campo minado que cercam as fontes. Dar vida à
um personagem que circulou pela história em um tempo e espaço especifico
requer cuidado e responsabilidade, a fim de investigar a estrutura dessa rede de
relações pessoais de dominação na qual esses homens e mulheres estão imersos
e se articulam entre si.
1.1. As tensões do cotidiano e os “maos costumes”.
Os “indivíduos de cor” tinham o seu papel bem definido na sociedade
brasileira do século XIX. Mesmo aqueles que viviam em liberdade durante a
escravidão (ainda no século XIX, chegaram a ultrapassar o número de escravos),
estavam sujeitos a numerosas restrições legais, ou simplesmente impregnadas
nos costumes de uma sociedade dominada por uma diminuta elite branca
26
.
Certas fontes nos colocam diante de tensões provocadas por crises
conjugais, que documentam a posição de um liberto dentro de uma sociedade
tipicamente escravista. Assim ocorreu com Joaquim Bento que
25
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 13.
26
AZEVEDO, lia Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro do imaginário das elites -
século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 33.
26
No dia 1 do corrente mês, às 5 horas da manhã, foi o Largo do
Riachuelo, desta cidade, theatro de atroz attentado, praticado pelo
denunciado, homem de instinctos perversos, contra o infeliz italiano
Domingos Spatafora.
Domingos Spatafora, deixando o Largo de Santa Cruz descia para o do
Riachuelo, quando encontrou-se com Josephina Escolástica de Oliveira,
ex-amásia do denunciado, com quem entretem conversação, e logo
depois de separarem-se, apareceu o denunciado, que ao encontrar-se
com sua antiga amásia, deu-lhe um forte empurrão, exclamando que
Spatafora havia de pagar a ousadia de andar amasiado com Ella, e logo
depois de proferir estas palavras, foi ao encalço de Spatafora que
apavorado corria pedindo socorro; alcançado, e depois de jurastral-o
com pancadas na cabeça, cravou-lhe a faca, fazendo-lhe um profundo
ferimento, constante no auto de corpo de delito, e do qual veio a fallecer
instantes depois
27
.
Numa peça jurídica, assim pormenorizada, que traz uma narrativa de um
assassinato ocorrido em Rio Claro, em seu meio urbano, em determinado local e
hora, mostra-nos um homem recém egresso do cativeiro “lavando sua honra com
sangue”
28
.
A defesa da honra masculina se mostra nitidamente nesta situação,
revelando que os protagonistas daquele “theatro de atroz attentado”
29
viviam um
período ímpar, carregado de tensões, onde raças e indivíduos mal se uniam, nem
se fundiam num todo coeso; justapunham-se antes, uns aos outros; constituíam
unidades e grupos incoerentes que apenas coexistiam e se tocavam
30
.
Joaquim Bento, o denunciado, era pardo, de trinta e poucos anos, estava
vivendo intensamente os anos finais daquele sistema. Esse sistema é muito bem
narrado, em uma passagem, por Machado de Assis em sua obra máxima
Memórias stumas de Brás Cubas. Arguto em suas observações, Machado de
27
Arquivo Histórico Municipal de Rio Claro. A Justiça contra Joaquim Bento Processo 026. Caixa:
CCR – 1886 – 1 - 40/153. A partir daqui será mencionado AHMRC.
28
AHMRC. A Justiça contra Joaquim Bento. Processo 026. Caixa: CCR – 1886 – 1 - 40/153.
29
AHMRC. A Justiça contra Joaquim Bento. Processo 026. Caixa: CCR – 1886 – 1 - 40/153.
30
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1995, p.
341.
27
Assis descreve com genialidade a sociedade brasileira, e particularmente a
carioca, do século XIX. Dizia Brás Cubas que
um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher
de doce de coco que estava fazendo, e, o contente com o malefício,
deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui
dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce por pirraça”; e
eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um moleque de casa, era o meu
cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos
queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe o dorso, com uma varinha na
mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, - a
algumas vezes gemendo, - mas obedecia sem dizer palavra, ou quando
muito, um – “ai, nhonhô!” – ao que eu retorquia: “Cala a boca, besta!”.
Não se sabe, e certamente jamais saberemos, se o pardo Joaquim Bento,
quando em seus momentos de cativeiro, passou por situações como a de
Prudêncio, mas nas entrelinhas dos fragmentos do processo encontramos um
homem cheio de ambigüidades, que denotavam as experiências trazidas do
período em que viveu no cativeiro.
Mais adiante, na obra de Machado de Assis, encontramos Prudêncio
liberto pelo seu senhor, em uma situação não menos diferente da que ele próprio
estava acostumado a passar. O trecho é narrado com maestria pelo escritor e
mostra um forro representando um senhor de escravos, tendo sua ação
determinada pela experiência do período em que esteve em cativeiro.
Tais reflexões que eu vinha fazendo por aquele Valongo fora, logo
depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu - mas um ajuntamento; era
um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir;
gemia somente estas únicas palavras:
- “Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!"
Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma
vergalhada nova.
- Toma, diabo! Dizia ele; toma mais perdão, seu bêbado!
- Meu senhor, gemia o outro.
- Cala boca, besta! replicava o vergalho.
Parei, olhei... justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada a
menos que o meu moleque Prudêncio o que o meu pai libertara alguns
28
anos antes. Cheguei-me, ele deteve-se logo e pediu-me a bênção;
perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.
- É sim, nhonhô.
- Fez-te alguma coisa?
- É um vadio, um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na
quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda
para ir na venda beber.
- Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
- Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!
(...) Exteriormente era turvo o episódio do Valongo; mas
exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe
um miolo gaiato, fino e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha
de se desfazer das pancadas recebidas – transmitindo-as a outro
31
.
E segue, aprofundando o raciocínio:
Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o
sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre,
dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar,
dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se
desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as
quantias que de mim recebera
32
.
Segundo Roberto Schwarz, a presença do escravismo na obra de Machado
de Assis é determinante, embora as figuras de escravo sejam raras. Umas
poucas anedotas esparsas bastam para fixar as perspectivas essenciais. A
parcimônia nas alusões, calculada para repercutir, é entica à sua maneira: um
recurso caro ao senso de humor machadiano, mais amigo da insinuação
venenosa que da denúncia
33
.
De acordo com Schwarz, apesar da audácia com que se opõe ao chavão
humanitário, o episódio envolvendo Prudêncio padece de banalidade
universalista, que o transforma em um quase apólogo: pessimismo e maldade
também podem ser chavões
34
. No capítulo que segue em Memórias Póstumas de
31
ASSIS, Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: DCL, 2005, p. 63
32
Idem, p. 63.
33
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 4 ed. São
Paulo: Editora 34, 2000, p. 112.
34
Idem, p. 113.
29
Brás Cubas, essa mesma impressão cai por terra. Nas palavras do nosso gênio
escritor:
Este caso faz-me lembrar um doido que conheci. Chamava-se Romualdo
e dizia ser Tamerlão. Era a sua grande e única mania, e tinha uma
curiosa maneira de a explicar.
- Eu sou o ilustre Tamerlão, dizia ele. Outrora fui Romualdo, mas adoeci,
e tomei tanto tártaro, tanto tártaro, tanto tártaro, que fiquei Tártaro, e até
rei dos Tártaros. O tártaro tem a virtude de fazer Tártaros
35
.
Desse episódio, Schwarz tira a seguinte conclusão:
Passada a surpresa, o leitor dado a charadas entenderá que o Tártaro
(guerreiro reputado pela selvageria) resulta do tártaro ingerido, como a
crueldade do negro liberto chocante, por sugerir que o sofrimento não
ensina nada é filha das pancadas que lhe haviam dado os seus
senhores
36
.
E conclui da seguinte forma a presença do escravismo na obra de
Machado de Assis:
As cenas onde entram escravos condenam a ordem social do país, fixam
traços de caráter perniciosos, em que é patente a impregnação
escravista da classe alta, e fazem ver o cativo segundo esquemas de
psicologia universalista, estritamente os mesmos da humanidade em
geral. Para apreciar o valor crítico deste universalismo, basta considerar
que à sua luz as brutalidades de um escravo forro não são menos
complexas e espirituais que os divinos caprichos de uma senhora
elegante, contrariamente ao que pensariam o preconceito comum, ou
também o racismo científico então em voga
37
.
Mas, ‘deixando os Romualdos e os Prudêncios’
38
e voltando aos nossos
personagens e ao episódio que os envolveu, as descrições das testemunhas não
dizem por quanto tempo Joaquim Bento teve uma vida conjugal com Josephina
Escolástica de Oliveira, que é descrita no processo como uma “quitandeira bem
35
ASSIS, Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: DCL, 2005, p. 64.
36
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 4 ed. São
Paulo: Editora 34, 2000, p. 113-114.
37
Idem, p. 114.
38
ASSIS, Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: DCL, 2005, p. 64.
30
apessoada”
39
, parda e também liberta. Em seu depoimento Josephina menciona o
fato de Joaquim Bento “chegar em casa embriagado e dar-lhe de cacetes”
40
.
Certamente Joaquim e Josephina vinham de uma união consensual desde
os tempos de cativeiro. As dificuldades de uma formação familiar dentro dos
plantéis de escravos eram enormes, uma vez que o grande desequilíbrio entre o
número de homens e mulheres adultos teve implicações importantes para a
família cativa
41
. Em estudo sobre a família escrava na região de Campinas,
Robert Slenes afirma que uma grande porcentagem de homens nunca teria
podido formar uniões com a expectativa de permanência
42
, pois poderia estar
exposta uma separação por conta da venda pelo senhor de um dos parceiros.
É bem possível, então, que numa tal sociedade o poder de barganha das
mulheres nas relações sexuais fossem consideráveis, e as sanções masculinas
contra a “promiscuidade” feminina seriam, portanto, necessariamente mais
relaxadas
43
, considerando-se o interior de um mesmo grupo social.
Nossos protagonistas, Joaquim e Josephina, em seus momentos de
cativeiro, passaram por experiências semelhantes, onde, as mulheres, por serem
em número consideravelmente menor, poderiam ter em suas mãos o controle de
determinadas situações, enquanto que a função do homem nessa relação seria a
de punir as ações que não viessem a corresponder a suas expectativas.
Uma testemunha de nome Amancio José Góes, em seu depoimento, disse
que “Joaquim era um preto de maos costumes”
44
. Os documentos não mostram
com clareza a razão pela qual Amancio foi arrolado entre as testemunhas do
39
AHMRC. A Justiça contra Joaquim Bento. Processo 026. Caixa: CCR – 1886 – 1 - 40/153.
40
AHMRC. A Justiça contra Joaquim Bento. Processo 026. Caixa: CCR – 1886 – 1 - 40/153.
41
SLENES, Robert W. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família
escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 73.
42
Idem, p. 73.
43
Idem, p. 73.
44
AHMRC. A Justiça contra Joaquim Bento. Processo 026. Caixa: CCR – 1886 – 1 - 40/153.
31
crime, porém, percebe-se em seu depoimento diversos termos pejorativos em
relação à Joaquim, referindo-se à ele como um “vadio”, e informando que sua “ex-
amásia dava-lhe o sustento”
45
.
O nosso casal não teve filhos, mas, mesmo assim não fugia à regra do
fenômeno de as mulheres levarem o sustento para casa. A sociedade estipulava
papéis sociais difíceis de serem mantidos por homens ou mulheres de classes
desfavorecidas, embora alguns de seus valores permeassem por toda a
sociedade como os traços machistas dos papéis sociais masculinos
46
.
Segundo a historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias, na sociedade
brasileira de fins do século XIX, torna-se impossível fixar causalidades precisas
num processo amplo e abarcante de todo um meio social complexo em
mudança
47
.
No entanto,
Normas e valores ideológicos relativos ao casamento e à organização da
família nos meios senhoriais não se estendiam aos meios mais pobres
de homens livres sem propriedades a transmitir. Moças pobres sem
dotes permaneciam solteiras ou tendiam a constituir uniões consensuais
sucessivas
48
.
O problema de uma união familiar estável no cativeiro tem uma dimensão
que difere de uma constituição familiar daqueles que estão em liberdade.
Importante reconhecer que a possibilidade de serem expostos à comercialização
era fato corriqueiro na vida de homens e mulheres então submetidos ao sistema
escravo. Uma possível venda e, conseqüentemente, a troca de senhor, poderia
45
AHMRC. A Justiça contra Joaquim Bento. Processo 026. Caixa: CCR – 1886 – 1 - 40/153.
46
DIAS, Maria Odila L. S. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo:
Brasiliense, 1995, p. 30.
47
Idem, p. 31.
48
Ibidem, p. 31.
32
representar uma quebra de laços afetivos – familiares, de compadrio ou de
amizade. O fato de lançarem mão de mecanismos e estratégias que poderiam
dificultar os negócios de seus senhores
49
, demonstra que tal situação não era
aceita com passividade pelos escravos.
Na cidade de Rio Claro, onde a economia estava calcada na exportação do
café e, apesar da tentativa de alguns fazendeiros, de inserir trabalhadores livres
estrangeiros, a mão-de-obra principal era a escrava, - sendo portanto, um local
onde o escravismo prevalecia enquanto instituição social -, pessoas de cor
egressas do cativeiro tinham enormes dificuldades de adaptação.
Já mencionamos anteriormente que um grande fazendeiro da região de Rio
Claro, apesar da introdução de trabalhadores estrangeiros provenientes da
Europa, continuava a se utilizar de mão-de-obra escrava na produção. Apesar de
conviverem, quando o ocorriam situações conflituosas, havia um certo
distanciamento entre os trabalhadores livres europeus e os cativos.
A respeito das tensões existentes entre negros e trabalhadores livres
provenientes da Europa, Dean argumenta que, ainda que os europeus se
apiedassem de certa maneira da situação dos escravos, eles temiam demais
serem tratados como escravos para vê-los como aliados. Segundo esse
historiador, não se pode negar que se sentiam intimidados por sua pele negra e
cultura africana, considerando-os um sinal de sua distância da Europa familiar e
saudosa
50
.
49
Várias foram as formas de resistência do cativo frente à instituição escravista, como as fugas e
a formação de quilombos, os suicídios, assassinato de senhores e seus familiares, entre outras
formas. Diversos historiadores analisaram o fenômeno, entre eles destacam-se: Sidney Chalhoub.
Visões da liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990. Maria Helena Machado. O plano e o pânico. Os movimentos sociais
na década da Abolição. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora da UFRJ/EDUSP, 1994. João José
Reis. Rebelião escrava no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986. Entre outros.
50
DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977, p. 116.
33
Nas zonas cafeeiras, onde tenderam a perder os postos de trabalho para
trabalhadores estrangeiros
51
, o sentimento de frustração de muitos libertos ou
forros era grande, uma vez que a condição de homem livre somente se
concretizaria na realização de desejos e na posse de objetos, que lhes haviam
sido proibidos quando eram escravos
52
.
Voltando aos nossos personagens, questionamos então o fato de um
importante comerciante da cidade, como era Amancio JoGóes, afirmar que
Joaquim Bento era um “preto de maos costumes”
53
. Certamente o comerciante
apenas “conhecia” o casal em seus momentos públicos. Se viesse a ter um
conhecimento maior da vida de Joaquim e Josephina, mesmo no período que
viveram em cativeiro, saberia que seus costumes e valores eram completamente
diferentes. A experiência de Amancio José Góes, comerciante e, principalmente,
branco, seria completamente diferente da de Joaquim Bento, liberto, pardo
54
.
Esses homens tinham, indubitavelmente, experiências históricas diferentes e
principalmente padrões culturais que lhes eram particulares.
Experiências trazidas do período de cativeiro influenciaram profundamente
a vida de Joaquim Bento e Josephina Escolástica de Oliveira, quando libertos. O
modo de vida e os seus costumes não tiveram profundas transformações, e até
tenderam, em determinados momentos a permanecerem os mesmos.
Quanto ao nosso coadjuvante desse ‘theatro de atroz attentado’
55
, o infeliz
italiano Domingos Spatafora
56
, os documentos não fazem nenhuma menção de
seu passado e se estava realmente envolvido em relações consensuais com
Josephina. Os rastros que nos foram deixados pelas fontes nos permitem inferir
51
Em Rio Claro houve um grande fluxo de trabalhadores provenientes da Europa, principalmente
devido à grande influência do Senador Nicolau de Campos Vergueiro na região.
52
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Da escravidão à liberdade: dimensões de uma
privacidade possível. IN: História da vida privada no Brasil. Org. Nicolau Sevcenko. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p. 53.
53
AHMRC. A Justiça contra Joaquim Bento. Processo 026. Caixa: CCR – 1886 – 1 - 40/153.
54
AHMRC. A Justiça contra Joaquim Bento. Processo 026. Caixa: CCR – 1886 – 1 - 40/153.
55
AHMRC. A Justiça contra Joaquim Bento. Processo 026. Caixa: CCR – 1886 – 1 - 40/153.
56
AHMRC. A Justiça contra Joaquim Bento. Processo 026. Caixa: CCR – 1886 – 1 - 40/153.
34
que Domingos estava no lugar errado, na hora errada e, principalmente com a
mulher errada.
Dentro das narrativas do processo, tudo parecia corriqueiro e casual, e
para um leitor de hoje a dificuldade em compreender os valores e costumes
compartilhados por homens e mulheres que permaneceram anônimos em nossa
história é bastante ampla, mas foram fundamentais no processo de desagregação
do cativeiro no Brasil.
1.2. Lazer e conflito no ambiente rural.
Conflitos provocados por coisas fúteis ou mesmo causados por fatores de
maior importância, como o amor de uma mulher, por exemplo, expostos nas
linhas anteriores, colocam pessoas estranhas ou bastante próximas, frente a
frente, em situações modelares para predispor para um conflito. Essas situações
de tensão envolvendo homens livres e pobres no interior de um mesmo grupo
social é, antes de tudo, fruto do momento e das conjunturas desses grupos
sociais em formação
57
.
A história que envolve Sabino, André e Vicente começa no dia 12 de abril
de 1885,
Das 5 para as 6 horas da tarde seguiam juntamente, a cavallo, pela
estrada que desta cidade vai ter a Villa São Pedro, o denunciado armado
de uma espingarda, André de Tal e seu irmão Vicente, e pouco adiante
da caza de Pedro Callau, neste Termo, o denunciado provocou a André,
e depois de haverem apeado dos animaes, o denunciado, apesar dos
57
Para uma melhor compreensão do universo dos homens livres e pobres no Brasil oitocentista,
ver perspicaz artigo da historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias, Sociabilidades sem história:
votantes pobres no Império, 1824-1881. In. Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo:
Contexto, 2001.
35
esforços empregados por Vicente para evitar a briga, desfechou contra
André um tiro de espingarda, produzindo-lhe ferimento constante do auto
do corpo de delito e que causou-lhe iminentemente a morte
58
.
Nos depoimentos das testemunhas arroladas no processo percebe-se a
proximidade dos envolvidos no fato, tanto de André e Vicente que eram irmãos,
quanto de Sabino e Vicente, que tinham uma relação de compadrio.
No auto de qualificação, Sabino, em vez de Sabino de Tal como mostra a
apresentação do processo, aparece como Sabino José da Silva, descrito como
sendo “liberto, de cor preta, estatura regular e encorpado, filho de Joaquim
Tropeiro”
59
, lavrador, de cinqüenta anos, natural de Minas
60
. E André foi descrito
como “liberto de cor preta”
61
. Ao que parece, ambos teriam certa proximidade, por
meio de Vicente, que era compadre de um e irmão do outro.
Sidney Chalhoub em seu livro Trabalho, lar e botequim, analisando
situações de tensão no interior de alguns grupos sociais não vinculados às elites,
revela que a violência não é algo gerado espontaneamente num dado momento,
mas sim o resultado de um processo discernível e até previsível pelos membros
de uma cultura ou sociedade
62
.
No entanto, podemos ver nessas reações violentas que se tornam, depois,
alvo da ação dos aparatos coativos, a expressão de um conflito em torno da
norma, ou então, como nos mostra Ivan Vellasco, mais comumente, um conflito
gerado entre normas dissonantes, entre os que prescrevem os códigos legais e
58
AHMRC. A Justiça contra Sabino de Tal. Processo 010. Caixa: CCR – 1885 – 38/153.
59
Não há menção do nome da mãe no processo, o que era comum na descrição de ex-escravos.
60
A Justiça contra Sabino de Tal. AHMRC. Processo 010. Caixa: CCR – 1885 – 38/153.
61
A Justiça contra Sabino de Tal. AHMRC. Processo 010. Caixa: CCR – 1885 – 38/153.
62
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro
da belle époque. 2 ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2001, p. 310.
36
os que determinam as obrigações derivadas, por exemplo, dos códigos morais
implícitos
63
.
De acordo com Vellasco
Isso significa não pensar os conflitos como excepcionalidades que
apenas confirmariam, como reações limites, a existência das regras, ou,
em outros termos, não supor que o não acatamento de regras e das
situações de dominação que elas buscam reproduzir signifique sua
negação reativa, a ruptura da ordem
64
.
Circunstâncias banais que poderiam causar conflitos entre pessoas, tanto
de grupos distintos, como foi o caso de Joaquim Bento assassinando o italiano
Domingos Spatafora, quanto entre pessoas que faziam parte de um mesmo grupo
social, como o foi o conflito entre Sabino e André, faziam parte do cotidiano
daquelas comunidades que viviam nas zonas cafeeiras. O depoimento do liberto
Vicente nos dá uma noção da reação de um homem frente a uma provocação.
Estavam os tres a Cavallo, a certa altura na estrada, André e Sabino
começam uma discussão, André diz a Sabino que elle não é homem,
Sabino o ameaça com a espingarda, apesar dos esforços e da luta,
Sabino se levanta e atira em André
65
.
Colocou-se em questão, portanto, a honra masculina, como foi a situação
em que Joaquim Bento foi protagonista. É claro que em circunstâncias bem
diferentes, mas com aspectos em comum, como a rixa e o desafio.
Para Sidney Chalhoub, há uma distinção relevante a fazer, entre os
conceitos de rixa e de desafio: o desafio pode ser visto como o último estágio de
63
VELLASCO, Ivan de Andrade. As redes de solidariedade da cor: o caso dos compadres Manoel
e Laurindo. In. Revista História, São Paulo, v. 25, nº1, p. 147-169, 2006, p. 148.
64
Idem, p. 148.
65
A Justiça contra Sabino de Tal. AHMRC. Processo 010. Caixa: CCR – 1885 – 38/153.
37
uma escalada contínua de tensões específicas ativadas a partir do surgimento da
rixa
66
.
Segundo Chalhoub
o desafio precede imediatamente o conflito e o anuncia aos membros de
um determinado meio sociocultural; a rixa surge da própria dinâmica de
funcionamento e ajuste de tensões dentro do microgrupo social
67
.
Ora, o cenário do crime foi um ambiente rural, uma vez que “seguiam
juntamente a cavallo, pela estrada que desta cidade vai ter a Villa São Pedro”
68
, e
o depoimento do acusado, Sabino de Tal, revela “que nesse dia se achava
embriagado e que André também estava embriagado, mas seu compadre Vicente
não estava”
69
.
Provavelmente nossos personagens estavam bebendo em algum lugar da
cidade, em uma nítida situação lúdica, sobre a qual havia poucas
regulamentações. A relação entre os envolvidos no processo tende a um padrão
comunitário, onde a proximidade de ambos era visível, principalmente quando
Sabino se refere a Vicente como seu compadre.
Em estudo sobre uma possível extensão da família em Curitiba e na Bahia,
Stuart Schwartz nos revela que aos olhos da sociedade cristã, o compadrio
estabelecia laços espirituais entre os padrinhos e o cristão que acabara de ganhar
um nome e passar pela iniciação; no caso da criança batizada, havia compadrio
entre os padrinhos e os pais naturais
70
.
66
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro
da belle époque. 2 ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2001, p. 310.
67
Idem, p. 310.
68
A Justiça contra Sabino de Tal. AHMRC. Processo 010. Caixa: CCR – 1885 – 38/153.
69
A Justiça contra Sabino de Tal. AHMRC. Processo 010. Caixa: CCR – 1885 – 38/153.
70
SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru-SP: EDUSC, 2001, p. 265. Ver
especialmente o capitulo 6, que tem como título “Abrindo a roda da família: compadrio e
escravidão em Curitiba e na Bahia”.
38
Segundo o autor,
As diversas formas de parentesco fictício muito são assunto de
grande interesse entre os antropólogos, que costumam interpretar o
parentesco ritualístico engendrado pelo ato do batismo cristão como
característica fundamental da família ampliada no mundo ibérico
71
.
A documentação é obscura quanto às informações que dizem respeito a
esse parentesco fictício entre Sabino e Vicente. Não sabemos se as relações
entre eles vinham do período em que viveram em cativeiro. Porém, essas
informações reforçam a idéia de que laços de parentesco e a experiência escrava,
no período anterior à desagregação do cativeiro, marcaram profundamente a vida
de ex-escravos, forros e libertos.
Dessa forma, analisando as fontes diversas é possível acompanhar por
algumas décadas as histórias de vida de alguns libertos e verificar quanto os
laços de solidariedade (entre companheiros do mesmo plantel, laços familiares e
de linhagens, entre outros), bem como práticas econômicas e sociais construídas
no período de cativeiro, foram revividos e preservados na liberdade
72
.
Utilizando-nos aqui das reflexões de Schwartz, lembramos que esses laços
de compadrio também tinham uma dimensão social fora da estrutura da Igreja.
Segundo o historiador, esses laços de parentesco fictício podiam ser usados para
reforçar laços de parentesco existentes, ou solidificar relações com pessoas de
classe social semelhante, ou estabelecer laços verticais entre indivíduos
socialmente desiguais
73
.
71
Idem, p. 265.
72
LARA, Silvia Hunold. Blowin’in the Wind: E.P. Thompson e a experiência negra no Brasil. IN:
Revista Projeto História. São Paulo, nº 12, out. 1995.
73
SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru-SP: EDUSC, 2001, p. 265.
39
Os laços existentes entre Sabino e Vicente estão claros nos autos, mas em
relação a Sabino e André estão um tanto confusos. Todas as testemunhas
arroladas no processo seguem um mesmo protocolo e dizem que “conheciam
André e Sabino, mas não saberiam dizer se eram amigos ou inimigos”
74
.
Da mesma forma como as solidariedades eram tidas como mecanismo de
sobrevivência no cativeiro - e que, provavelmente, se estenderiam à liberdade -,
tensões e conflitos, existentes no interior desses grupos sociais comunitários
também tenderiam a definir o sentido dessas relações sociais. As solidariedades,
bem como, os ajustes violentos ou atritos entre pessoas de grupos distintos ou
não, faziam parte, indubitavelmente, do quotidiano da sociedade escravista em
seus momentos finais.
1.3. Corpos estranhos: escravos e libertos na cidade.
Rio Claro em 1886 contava com uma população total da ordem de 20.133
habitantes
75
, passando por diversas transformações após 1876 com a chegada da
linha férrea, organizada com capital cafeeiro. A cidade, portanto, deixou de ser
chamada de ‘boca do sertão’ passando a ser conhecida como a ‘ponta do trilho’
até 1884, quando os trilhos ultrapassaram os limites da cidade.
Os trilhos trouxeram uma incipiente urbanização à cidade. Rio Claro,
enquanto cidade, portanto, produto do homem, um território controlado por algum
tipo de poder, passou, a partir de então, a sofrer significativas transformações
econômicas e sociais.
74
A Justiça contra Sabino de Tal. AHMRC. Processo 010. Caixa: CCR – 1885 – 38/153.
75
Relatório apresentado a Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo pelo presidente da
província João Alfredo Corrêa de Oliveira, no dia 15 de fevereiro de 1886. São Paulo, Typ. de
Jorge Seckler & C. 1886.
40
De acordo com Warren Dean,
A transformação do regime de trabalho nas fazendas levou à
diversificação da economia do estado. Uma variedade muito maior de
produtos se fazia necessária a fim de satisfazer a demanda dos
consumidores, e a natureza da economia dos bens de exportação
brasileiros era tal que as importações não podiam dar conta da mesma.
Alguns dos imigrantes abandonaram o trabalho agrícola e se dedicaram
a ofícios. Pequenas indústrias multiplicaram-se no interior de São Paulo.
O centro da cidade de Rio Claro industrializou-se notavelmente
76
.
Concomitantemente ao progresso econômico trazido pela ferrovia,
surgiram diferentes grupos sociais, que circulavam pelas ruas da cidade em total
descompasso: internamente unidos por laços afetivos e de solidariedades,
criando espaços próprios para suas sobrevivências, relacionando-se por meio de
expectativas, marcadas por determinadas particularidades.
Assim,
às 4 horas da madrugada do dia 04 de abril de 1885, João Gonçalves,
João Garcia, Manoel Ramos, Manoel Carneiro, Honorato Bravo e
Francisco (escravo de Antonio Pompeu de Toledo) se deslocam até a
chácara do italiano José Scarpa e roubam um cabrito e vinte galinhas
77
.
Certamente o produto desse furto seria para alimentação ou para o
comércio ambulante no centro da cidade. A historiadora Maria Odila Leite da Silva
Dias lembra muito bem que o abastecimento e a circulação de gêneros
alimentícios entre os consumidores mais pobres da cidade era quase todo de
76
DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977, p. 154-155.
77
AHMRC. A Justiça contra João Gonçalves, João Garcia, Manoel Ramos, Manoel Carneiro,
Honorato Bravo e Francisco (escravo de Antonio Pompeu de Toledo). Processo 019. Caixa:
CCR – 1885 – 1 - 39/153.
41
contrabando; não se declarava de onde, nem como vieram; tinham também um
pouco de aura do mágico e do furtivo
78
.
Relações como esta envolvendo João Gonçalves, João Garcia, Manoel
Carneiro, Honorato Bravo, todos libertos e o escravo Francisco eram comuns nas
localidades, onde se percebia um processo de urbanização. Verificamos que na
realidade histórica da época, poucas distinções separavam os escravos e os
libertos especialmente ao tomarmos como pólo comparativo a vivência dos
escravos de ganho
79
.
Este é um processo de leitura difícil, envolvendo cinco libertos e um
escravo e, em determinados momentos, um tanto confuso. Não nesse
processo auto de qualificação dos réus. No entanto, percebeu-se a condição dos
negros e pardos livres através dos depoimentos das testemunhas de acusação
Ignácio Schutz, Miguel Bichart e Michaelis Picharel, quando utilizaram termos
pejorativos referindo-se aos libertos como “crioulos”.
Segundo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, nãoduvidas de que termos
como “negro”, “preto”, “pardo”, “mulato”, crioulo”, foram cunhados originalmente
pelos senhores, que se denominavam “brancos”, para designar aqueles que eram
subalternos
80
.
Manuela Carneiro da Cunha revela que na primeira metade do século XIX
Três dimensões intervinham para classificar internamente essa
população de libertos: a cor, a nacionalidade e a condição legal. A cor
era negra ou parda: as gradações intermediárias, usadas eventualmente
78
DIAS, Maria Odila L. S. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo:
Brasiliense, 1995, p. 76.
79
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros
em São Paulo (1850-1880). São Paulo: Hucitec, 1998, p. 53.
80
GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo Guimarães. Notas sobre raça, cultura e identidade na
imprensa negra de São Paulo e Rio de Janeiro, 1925-1950. In. Revista Afro-Ásia, Salvador, 29/30,
2003, p. 249.
42
para descrever um indivíduo, não pareciam ser usadas para classificá-lo
numa subclasse. Quanto à nacionalidade, era-se africano (com
subdivisões étnicas não necessariamente usadas, mina, angola, etc.) ou
crioulo, isto é, nascido no Brasil. Quanto à condição legal, enfim, era-se
forro – isto é, liberto – ou ingênuo – isto é, nascido livre
81
.
Hebe Mattos reforça a idéia, argumentando que a designação “crioulo” era
exclusiva de escravos e forros nascidos no Brasil e o termo “preto”, até a metade
do século, era referido preferencialmente aos africanos
82
. Segundo essa
historiadora
A própria construção da categoria “pardo” é típica do final do período
colonial e tem uma significação muito mais abrangente do que a noção
de “mulato” (este, sim, um termo de época diretamente ligado à
mestiçagem) ou mestiço que muitas vezes lhe é associada. Na verdade,
durante todo o período colonial, e mesmo até bem avançado o século
XIX, os termos “negro” e “preto” foram usados exclusivamente para
designar escravos e forros. Em muitas áreas e períodos “preto” foi
sinônimo de africano
83
.
Mais adiante Hebe Mattos revela que
“Pardo” foi inicialmente utilizado para designar a cor mais clara de alguns
escravos, especialmente sinalizando para a ascendência européia de
alguns deles, mas ampliou sua significação quando se teve que dar
conta de uma crescente população para a qual o mais era cabível a
classificação de “preto” ou de “crioulo”, na medida em que estas tendiam
a congelar socialmente a condição de escravo ou ex-escravo
84
.
Apesar de não contarem com testemunhas de defesa, os libertos e
Francisco tinham suas próprias estratégias de defesa. Como se previamente
ensaiados, nos interrogatórios os acusados afirmaram que foram forçados “pelo
81
CUNHA, Manuela Carneiro. Negros estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. São
Paulo, Brasiliense, 1985, p. 22.
82
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: o significado da liberdade no sudeste escravista
Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 30.
83
MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2000, p. 17.
84
Idem, p. 17
43
grupo armado de cacete para fazer parte do grupo”
85
. Esta afirmação,
‘curiosamente’, aparece em todos os depoimentos, mostrando ao mesmo tempo
solidariedade e tensões dentro do grupo.
Maria Odila em estudo sobre as vendedoras ambulantes na o Paulo
oitocentista mostra claramente que
A subsistência baseava-se em relações tensas, de vizinhança e convívio,
entre escravas, livres e forras; convívio marcado, de um lado, por
necessidades de auxílio mútuo e, de outro, por uma inserção forçada,
apesar de socialmente desqualificadas, como elos na cadeia dos seres
de uma sociedade escravista, altamente hierarquizada
86
.
Todo o episódio do roubo do cabrito e das vinte galinhas – seja para
consumo próprio ou para venda no centro da cidade de Rio Claro -, sugere que
estes libertos e o escravo Francisco se conheciam havia algum tempo. As
circunstâncias envolvendo cada um dos réus no processo explica um certo
entrosamento entre eles, quando todos afirmam terem sido forçados “pelo grupo
armado de cacetes
87
a fazerem parte do mesmo.
Uma vez que não foi deixado espaços de manobras para os acusados
tentarem uma forma de escapar da justiça, reagiram a essa situação com um
sentimento de solidariedade que chega a se estranhar. A fórmula que
encontraram, portanto, foi a da força do coletivo, a de que o grupo impôs a prática
do delito.
85
AHMRC. A Justiça contra João Gonçalves, João Garcia, Manoel Ramos, Manoel Carneiro,
Honorato Bravo e Francisco (escravo de Antonio Pompeu de Toledo). Processo 019. Caixa:
CCR – 1885 – 1 - 39/153.
86
DIAS, Maria Odila L. S. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo:
Brasiliense, 1995, p. 74.
87
AHMRC. A Justiça contra João Gonçalves, João Garcia, Manoel Ramos, Manoel Carneiro,
Honorato Bravo e Francisco (escravo de Antonio Pompeu de Toledo). Processo 019. Caixa:
CCR – 1885 – 1 - 39/153.
44
Apesar de terem sido condenados pelo crime de furto, não indícios de
que o senhor de Francisco, Antonio Pompeu de Toledo, tivesse a intenção de
livrar seu escravo do indiciamento. Seu nome somente foi mencionado no
processo quando da referência a “Francisco (escravo de Antonio Pompeu de
Toledo)”
88
.
1.4. Das Ambrosinas à Bibiana e Perpétua: honra, solidariedade e conflito
porta a dentro.
Analisar as condições de vida das populações mais abastadas,
principalmente em seus momentos mais íntimos, sempre constituiu um problema
para a historiografia. A historiografia social, da cultura e do quotidiano enfrentou,
como ainda enfrenta, um caminho árduo, pois busca novos prismas teóricos e
ideológicos para interpretar fenômenos sociais, que não se deixavam apreender
através de enfoques tradicionais
89
.
Penetrar nas brenhas domésticas ainda é algo quase impossível aos
historiadores, a não ser quando uma história ou outra insiste em desafiar a justiça
e afrontar historiadores com seus enigmas encontrados, perdidos em meio às
páginas de um processo que, mesmo chegando até nós, tendo passado pelo filtro
de pessoas ligadas à cultura dominante, permite tentar compreender as relações
sociais naquele espaço, ao mesmo tempo, tão íntimo quanto fascinante.
A história de Maria Ambrosina, filha e Anna Ambrosina, mãe, começa em
meados do mês de 1885, quando
88
AHMRC. A Justiça contra João Gonçalves, João Garcia, Manoel Ramos, Manoel Carneiro,
Honorato Bravo e Francisco (escravo de Antonio Pompeu de Toledo). Processo 019. Caixa:
CCR – 1885 – 1 - 39/153
89
DIAS, Maria Odila L. S. Sociabilidades sem história: votantes pobres no Império, 1824-1881. In.
Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1985, p. 58.
45
estando Anna Ambrosina doente e tendo a necessidade de tomar
remédios em quantidade certa e a horas determinadas durante a noite
offereceu o denunciado Domingos Bianqui para lh’as ministrar, visto ser
muito inexperiente para isso a sua filha menor Maria.
E de fato a noite apareceu em casa de Anna o denunciado Bianqui e
ministrado-lhe os medicamentos; e em horas adeantadas da noite,
quando Anna dormia o denunciado Bianqui foi a casa da menor Maria
Ambrosina e ahi, seduzindo-a com promessas de casamento, deflorou-a;
desde esse tempo tem o denunciado mantido relações criminosas,
sendo que a offendida nunca esteve com outro homem a não ser com o
denunciado Bianqui
90
.
Anna Ambrosina era uma liberta com “cinquenta e tantos annos de idade,
solteira, lavadeira e engomadeira”
91
. Nos autos é omitida a condição de Maria
Ambrosina, mas fica claro que ela vivia em companhia de Anna e tinha 17 ‘annos’;
assim como a mãe, era muito pobre
92
.
Era comum no Brasil oitocentista um considerável número de fogos serem
chefiados por mulheres sós. Em São Paulo, onde alguns dos mais renomados
historiadores estudaram a questão, quarenta por cento (1804) e trinta e seis por
cento (1836) dos fogos urbanos eram constituídos por mulheres sós, chefes de
família
93
. Anna e Maria não fugiam a regra dessa configuração. Pobre, Anna
tirava seu sustento do trabalho doméstico.
As dificuldades de sobrevivência eram enormes, tanto para mulheres
quanto para homens de cor livres, nas zonas cafeeiras paulistas. Tanto na
economia cafeeira do Centro-Sul, como no Nordeste açucareiro, a massa de
trabalhadores livres e pobres tendeu, em sua grande maioria, a permanecer à
90
AHMRC. A Justiça contra Domingos Bianqui. Processo nº 004. Caixa: CCR – 1885 – 1 - 38/153.
91
AHMRC. A Justiça contra Domingos Bianqui. Processo nº 004. Caixa: CCR – 1885 – 1 - 38/153.
92
AHMRC. A Justiça contra Domingos Bianqui. Processo nº 004. Caixa: CCR – 1885 – 1 - 38/153.
93
DIAS, Maria Odila L. S. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo:
Brasiliense, 1995, p. 31.
46
margem da economia de exportação, resistindo à integração no sistema
produtivo, baseado na mão-de-obra escrava
94
.
Em estudo focado na Bahia, particularmente no Recôncavo Baiano, B. J.
Barickman revela que, pelo menos em alguns casos, contratavam-se
regularmente trabalhadores livres. Mas de maneira alguma sugerem que estes
fossem mais numerosos do que os escravos. Antes, sugere que, nos principais
engenhos baianos, quando contratada, a mão-de-obra livre servia, sobretudo,
para suplementar o trabalho escravo
95
.
Anna e Maria foram à justiça dar queixa contra o “cidadão italiano
Domingos Bianqui”
96
, por aliciar a menina Maria Ambrosina. Libelo em alguns
momentos tendencioso, como por exemplo, quando afirma que Maria teria
dezessete anos de idade. A idade dela foi prontamente refutada quando foi
anexado junto ao processo um assento de batizado, onde Maria aparece como
nascida em sete de março de 1872, portanto em janeiro de 1885 ela sequer teria
treze anos de idade completos.
O cidadão italiano seduziu Maria Ambrosina, aproveitando-se da situação
de Anna estar enferma, com promessas de casamento, que jamais iriam se
concretizar, uma vez que, em seus primeiros depoimentos, não mostra em
nenhum momento interesse em constituir família ao lado de Maria.
De acordo com Eni de Mesquita Samara, em estudo sobre a família negra
no Brasil, os matrimônios inter-raciais eram reduzidos. Famílias legitimas, quase
sempre eram formados entre elementos da mesma raça e preferencialmente de
igual condição. Embora aparentemente não existissem entraves à realização de
94
DIAS, Maria Odila L. S. Sociabilidades sem história: votantes pobres no Império, 1824-1881. In.
Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1985, p. 59.
95
BARICKMAN, B. J. Até a véspera: o trabalho escravo e a produção de açúcar nos engenhos do
Recôncavo baiano. (1850-1881). Afro-Ásia, v. 21-22, 1998-99, p. 177-237, p. 203.
96
AHMRC. A Justiça contra Domingos Bianqui. Processo nº 004. Caixa: CCR – 1885 – 1 - 38/153.
47
casamentos mistos ou mesmo entre pessoas consideradas “desiguais”, eram
desaconselhados e criticados pela população
97
.
Bianqui, portanto, utilizando-se do argumento de que iria futuramente se
casar com Maria, manteve, com ela, por determinado período, relações sexuais e,
ao que parece, Anna e Maria, ao perceberem que a intenção de Bianqui não era
uma futura constituição familiar, resolveram dar queixa contra o italiano.
No depoimento de Bianqui, aparece um Luiz Pompeo; o italiano afirma “não
ter sido o único homem na vida de Maria”
98
. A partir de então, o processo toma
outro rumo, no momento em que é colocada em questão a honra e a honestidade
de Maria. Uma das testemunhas, de nome Venancio de Oliveira, empregado da
Companhia Paulista de Estrada de Ferro, em seu depoimento disse “ter duvidas
quanto a honestidade da offendida
99
. Anna, aos prantos
100
, em seu depoimento,
afirma que “Maria nunca esteve com Luiz Pompeo e que Domingos Bianqui foi o
único homem com quem esteve”
101
.
Apesar do termo referente à honra aparecer aqui ligado estritamente a um
comportamento sexual tido como honesto, deve-se observá-lo como um conceito
mais amplo que poderia ser ressignificado pelas pessoas livres e pobres de cor,
apesar de o conceito ter sido construído pelo imaginário da camada social
dominante.
Maciel Henrique Silva afirma que
97
SAMARA, Eni de Mesquita. A família negra no Brasil. In. Revista de História. São Paulo, 120,
jan/jul, 1989, p. 41.
98
AHMRC. A Justiça contra Domingos Bianqui. Processo nº 004. Caixa: CCR – 1885 – 1 - 38/153.
99
Idem.
100
O depoimento de Anna Ambrosina foi interrompido algumas vezes devido ao seu estado
emocional.
101
AHMRC. A Justiça contra Domingos Bianqui. Processo 004. Caixa: CCR 1885 1 -
38/153.
48
Negras e pardas, por exemplo, não tinham a mesma percepção de honra
das mulheres brancas senhoriais, mas podiam, em determinados
contextos, reivindicar para si alguns dos significados inerentes ao
conceito, e assim se mostrar portadoras de estima pública ou capazes
de inspirar confiança no exercício de alguma atividade doméstica nos
lares dos brancos
102
.
Dessa forma, os atores sociais construíam identidades superpostas de
gênero, raça e classe, que estavam singradas de alto a baixo por noções relativas
ao “bom costume”, à “honra”, à “estima”
103
.
Não há, em todo o decorrer do processo, sequer um auto de qualificação
referente à Domingos Bianqui, nem a quem realmente era Luiz Pompeo, mas a
questão da honra e da honestidade de Maria foi fundamental no desenrolar do
processo, assim como, a solidariedade entre mãe e filha.
Não se sabe quem estaria por trás, oferecendo orientação a Anna e Maria,
mas percebe-se a influência de pessoas ligadas a elas com trânsito em
determinadas instituições. Nota-se isso no momento em que aparece do nada um
assento de batizado que contesta a idade de Maria no libelo.
que se louvar, também, o estado emocional de Anna durante o seu
depoimento. Não se sabe, e certamente jamais iremos saber, se o pranto de Anna
era “real” ou simplesmente uma estratégia para levar o italiano ao indiciamento.
Fato é que todas as estratégias utilizadas por Anna Ambrosina e Maria
Ambrosina levaram o cidadão italiano Domingos Bianqui a ser processado sob as
penas do artigo 219 do Código Criminal do Império do Brazil
104
sob o ‘gráo’
102
SILVA, Maciel Henrique. Delindra Maria de Pinho: uma preta forra de honra no Recife da
primeira metade do século XIX. In. Revista Afro-Ásia, Salvador, 32, 2005, p. 220.
103
Idem, p. 219.
104
Código criminal do império do Brazil: annotado com os actos dos poderes legislativo, executivo
e judiciario. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1876.
Dos Crimes contra a segurança da honra.
Estupro
49
máximo. O último recurso de Bianqui foi a tentativa do enlace matrimonial, mas
era tarde demais.
A participação efetiva de Anna e Maria, as Ambrosinas, em toda a trama, e
a solidariedade entre ambas foi, portanto, fundamental.
As histórias não se resumiam apenas às solidariedades entre familiares.
Tensões e conflitos faziam parte da vida de muitas pessoas que viviam com
intensidade aqueles momentos decisivos de fim do escravismo, enquanto
instituição social no Brasil. As escravas Bibiana e Perpétua foram provas vivas de
que conflitos porta à dentro faziam parte do quotidiano de escravos e libertos na
sociedade escravista de final do século XIX.
No dia 29 de janeiro de 1886 teve início a complicada e surpreendente
história envolvendo as escravas Bibiana e Perpétua:
estando a escrava Bibiana conjunctamente com a escrava Perpétua,
com quem não se dava, na cozinha da caza de José de Barros Leite,
nesta cidade, ahi tiveram uma alteração de palavras, em virtude da qual
a denunciada escrava Bibiana deu um empurrão em Perpétua, que,
velha e cega, foi bater com a cabeça na quina do fogão, resultando ficar
com o craneo fracturado, como consta no auto de corpo de delito e, em
consequencia do que, veio a fallecer alguns dias depois
105
.
Voz ausente nos autos, Bibiana sequer dá o seu depoimento ao escrivão
sobre a real motivação para ter tomado atitude tão drástica, a ponto de levar à
morte uma companheira de cativeiro, mesmo que involuntariamente.
Artigo 219: Deflorar mulher virgem menor de 17 annos:
Penas:
No gráo maximo: tres annos de desterro para fora da comarca em que residir a deflorada e dotar a
esta.
No gráo médio:dous annos de desterro idem, idem.
No gráo minimo:um anno de desterro idem, idem.
Seguindo-se o casamento não terão lugar as penas*.
*Domingos Bianqui tentou utilizar esta brecha na legislação para fugir da sentença.
105
AHMRC. A Justiça contra Bibiana (escrava de Sebastião de Barros Silva). Processo 015.
Caixa: CCR – 1886 – 2 - 40/153.
50
As dificuldades de dar voz às pessoas pertencentes aos grupos sociais
desprivilegiados acompanham tenazmente o historiador. De parca documentação,
cenas do quotidiano de mulheres escravas e livres pobres e de cor tendem a
desaparecer com o passar do tempo, por isso é imprescindível ler e analisar toda
a documentação nas entrelinhas. Em geral, tomando aqui as palavras de Jim
Sharpe, quanto mais para trás vão os historiadores, buscando reconstituir a
experiência desses grupos sociais inferiores, mais restrita se torna a variedade de
fontes à sua disposição
106
.
Voltemos, então, ao episódio envolvendo Bibiana e Perpétua. Em um
pequeno auto de qualificação, Bibiana é descrita como “escrava de Sebastião de
Barros Silva, natural de Limeira, 61 anos, de serviços domésticos”
107
. Sendo
natural de Limeira, Bibiana circulou pela região desde o seu nascimento, nascida
antes mesmo de São João Baptista do Rio Claro passar à condição de Freguesia,
o que somente acontece em nove de dezembro de 1830, por meio do Decreto
Imperial, pertencendo antes à Villa de Constituição, atualmente Piracicaba
108
.
Informações sobre Bibiana e Perpétua podem ser encontradas nos
depoimentos das testemunhas. Francisca Alves de Almeida Leite, mulher de José
de Barros Leite, disse em seu depoimento sobre a preta Perpétua que
a finada era de muito mau gênio, e que muitas vezes era necessário ir
apartar as brigas della com suas companheiras
109
.
Seu marido, José de Barros Leite foi ainda mais contundente em seu
depoimento, quando destacou a agressividade de Perpétua, além de ressaltar
106
SHARPE, Jim. A História vista de baixo. In. BURKE, Peter. (org.). A escrita da História: novas
perspectivas. São Paulo: Ed. UNESP, 1992, p. 43.
107
AHMRC. A Justiça contra Bibiana (escrava de Sebastião de Barros Silva). Processo 015.
Caixa: CCR – 1886 – 2 - 40/153.
108
AHMRC. Almanak de São João do Rio Claro para o anno de 1873.
109
AHMRC. A Justiça contra Bibiana (escrava de Sebastião de Barros Silva). Processo 015.
Caixa: CCR – 1886 – 2 - 40/153.
51
algumas das características da personalidade de Bibiana, descrevendo-a como
uma pessoa sem más intenções.
No seu depoimento, José de Barros Leite relata que
a preta Perpétua era cega e caduca e muito impertinente, aggredia a
qualquer pessoa que ao pé della passava, na desconfiança de que
zombava della, (...) a preta Bibiana era incapaz de fazer em Perpétua
qualquer offensa, quanto mais mata-la, por isso digo que nenhuma
intenção houve da parte de Bibiana. (...) não houve no facto crime
algum
110
.
Ao que parece, Bibiana era uma escrava que se enquadrava no sistema de
aluguel, uma vez que pertencia a Sebastião de Barros Silva, no entanto
trabalhava em serviços domésticos na casa de José de Barros Leite. O sistema
de aluguel de escravos era uma das características mais importantes da
escravidão urbana (e foi largamente utilizado tanto nos Estados Unidos e nas
Antilhas, como no Brasil).
111
Na cidade, segundo a historiadora Marilena Rosa Nogueira da Silva,
os escravos circulavam por todos os cantos, dedicando-se a várias
atividades, quer fossem escravos domésticos encarregados de
pequenas compras ou recados para seus senhores, alugados a
negociantes, ou mesmo escravos empregados ao ganho por seus
proprietários
112
.
Mas Bibiana, pelo visto, parecia ser bastante querida na roda familiar de
José de Barros Leite, uma vez que saiu, juntamente com sua senhora, em defesa
110
AHMRC. A Justiça contra Bibiana (escrava de Sebastião de Barros Silva). Processo 015.
Caixa: CCR – 1886 – 2 - 40/153.
111
ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudo sobre a escravidão urbana no Rio de
Janeiro. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 49.
112
SILVA, Marilena Rosa Nogueira da. Negro na rua: a nova face da escravidão. São Paulo:
Hucitec, 1988, p. 31.
52
da escrava, indicando, amesmo, que Bibiana fazia parte dessa ‘roda familiar’.
Leila Mezan Algranti lembra que
O sistema de aluguel levou a escravidão urbana além dos estreitos
confinamentos da relação senhor-escravo, pois os escravos escapavam
do mundo fechado e restrito das fazendas, e entravam em contato com
os diversos grupos sociais, participando ativamente do “mundo dos
brancos”. Longe do controle do senhor, criavam um ambiente próprio, e
desfrutavam de momentos de liberdade.
113
Nessa história, envolvendo Bibiana e Perpétua ficaram várias dúvidas.
Bibiana era sexagenária e pela Lei de 1885, conhecida como Lei Saraiva-
Cotegipe e apelidada de Lei dos Sexagenários, ela poderia ter requerido a sua
liberdade. São duas as hipóteses para essa questão: Bibiana poderia ter
entrado com o pedido de liberdade e ter trabalhado por mais três anos como
medida indenizatória ao seu proprietário, ou continuar na condição cativa e,
mesmo sendo de aluguel, fazer parte da roda familiar de José de Barros Leite, o
que não era comum entre as mulheres de “cor” de trabalho doméstico.
Fato é que Bibiana foi condenada no “gráo médio do artigo 19, parte, da
Lei 2033 de 20 de setembro de 1871”
114
115
, mas, surpreendentemente, houve
baixa na sua culpa em sete de novembro de 1886, devido ao pagamento de
fiança de 1:000$000 (1 conto e quinhentos mil réis), sendo fiadores José de
Barros Leite e o Tenente Coronel Benedito José de Oliveira Junior
116
.
113
ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudo sobre a escravidão urbana no Rio de
Janeiro. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 50.
114
AHMRC. A Justiça contra Bibiana (escrava de Sebastião de Barros Silva). Processo 015.
Caixa: CCR – 1886 – 2 - 40/153.
115
Art. 19 – Lei 2033 de 20 de setembro de 1871: Aquele que, por imperícia ou falta de
observância de algum regulamento, cometer ou for causa de um homicídio involuntário, será
punido com prisão de um mez a dous annos, e multa correspondente.
Gráo Maximo: Dous annos de prisão e multa correspondente.
Gráo Médio: Doze mezes e meio idem, idem.
GráoMinimo: Um mez idem, idem.
116
AHMRC. A Justiça contra Bibiana (escrava de Sebastião de Barros Silva). Processo 015.
Caixa: CCR – 1886 – 2 - 40/153.
53
Mais questões, portanto, aparecem nessa complexa e surpreendente
história. Qual a razão de José de Barros Leite e o Tenente Coronel Benedito José
de Oliveira Junior despenderem tão alta quantia para livrar a escrava Bibiana das
garras da justiça? Onde estaria o Senhor de Bibiana que não é mencionado em
todo o decorrer do processo, salvo quando da apresentação de Bibiana
117
?
Não se sabe, nem jamais saberemos como, quando e nem se Bibiana
pagou essa elevada quantia aos fiadores. O que nos mostrou essa história foi o
fato dessa cruel instituição às vezes mostrar-se surpreendente - para nós, simples
leitores, ou historiadores de início do século XXI, tentando desvendar as múltiplas
faces da escravidão - e, principalmente para Bibiana, escrava e sexagenária.
1.5. O infanticídio e a denúncia do escravo.
A instituição escrava em seus momentos finais mostrou algumas facetas
surpreendentes, que nos obrigam a repensar sua estrutura em sua fase de
declínio. É bem verdade que no período de auge do tráfico interprovincial,
particularmente após 1850
118
, escravos utilizavam-se de diversas estratégias e
meios para dificultar uma possível negociação envolvendo eles próprios,
117
Segundo os autos, Bibiana é apresentada da seguinte maneira: Bibiana (escrava de Sebastião
de Barros Silva). AHMRC. A Justiça contra Bibiana (escrava de Sebastião de Barros Silva).
Processo nº 015. Caixa: CCR – 1886 – 2 - 40/153.
118
1850 foi o ano em que o comércio de africanos, ou seja, o tráfico negreiro para o Brasil teve o
seu declínio e, conseqüentemente o seu fim, com a promulgação da Lei 581 de 4 de setembro
de 1850, mais conhecida como a Lei Eusébio de Queiroz. Fazendeiros escravocratas utilizaram-se
dos braços dos escravos existentes internamente, principalmente das províncias que se
encontravam em declínio econômico. Grandes levas de escravos foram transferidos das
províncias do Nordeste para o Sudeste que se encontrava em franca ascensão com a produção
cafeeira. Ver CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
54
principalmente quando vinham das províncias do nordeste para serem comprados
por fazendeiros do Oeste Paulista para o trabalho nas fazendas de café
119
.
Mas as histórias que mostramos e analisamos não se passaram num
grande latifúndio cafeeiro. Fazem parte do progresso da sociedade incipiente da
cidade de Rio Claro e de pequenas propriedades, envolvendo escravos e
senhores de poucos escravos.
Marcelino, escravo de Antonio Joaquim de Andrada estava entre os 3.304
escravos arrolados, no ano de 1887, na cidade de Rio Claro. A fantástica história
envolvendo o escravo Marcelino tem seu início
nos primeiros dias do mez de dezembro do corrente ano [1886] no lugar
denominado Gorita neste termo reside Antonio Joaquim de Andrada, o
denunciado, com sua familia e sua enteada Maria da Cunha, a
denunciada. Está publico e notório que os denunciados, postergam as
leis da moral e dos costumes e do direito mantem entre si relações
ilicitas e incestuozas. Desta relação criminosa os denunciados tem tido
filhos, que tem sido, por elles lançados no campo das criações
120
.
Foram poucos os casos de infanticídio envolvendo pessoas com posses ao
longo da história, bem como os de relações incestuosas que se tornaram
públicas. O infanticídio poderá ser encontrado em um número maior entre as
escravas com o seguinte argumento: as escravas praticavam o aborto e o
infanticídio para livrar seus filhos do cativeiro
121
. Maria Lucia Mott, afirma que este
é um argumento moralmente aceito, válido e justificável, que pode ser encontrado
desde o final do século XVII e início do século XVIII
122
. Mott conclui que
119
Ver por exemplo, Sidney Chalhoub. Visões da liberdade. Uma história das últimas décadas da
escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. Particularmente o capítulo 1:
Negócios da escravidão.
120
AHMRC. A Justiça contra Antonio Joaquim de Andrada e Maria da Cunha. Processo 022.
Caixa: CCR – 1886 – 2 - 41/153.
121
MOTT, Maria Lucia. Ser mãe: a escrava em face do aborto e do infanticídio. In Revista de
História. São Paulo: 120, jan/jul, 1989, p. 92.
122
Idem, p. 92.
55
a recusa da escrava em repor a mão de obra, seja pelo reconhecimento
do valor da sua prole como mercadoria, seja por não desejar dar o seio,
o alimento ao filho do senhor, ou ainda para que seu filho não sofresse o
cativeiro, o algumas das leituras possíveis do aborto e do infanticídio
como formas de resistência
123
.
Mas não estamos observando o aborto ou o infanticídio dentro da família
escrava, mas sim dentro da casa-grande. Essa história chegou até nós através do
escravo Marcelino, de propriedade do próprio denunciado, Antonio Joaquim de
Andrada.
Ao que parece, Antonio Joaquim gozava de grande poder e domínio no
interior de sua roda familiar, uma vez que a família sabia de sua relação com a
enteada, mas fazia “vistas grossas”. Sobre as crianças, fruto da relação entre
Antonio Joaquim e sua enteada, não está claro nos autos se a família tinha
conhecimento.
Certo dia, por volta das seis horas da tarde, Marcelino ouviu um choro no
campo das criações e chegando lá, encontrou uma criança branca enrolada em
pedaços de pano. Marcelino levou a criança para a cidade e relata o “facto como
crime à policia”
124
.
Trata-se de um processo bastante curto, com poucas testemunhas e
poucos depoimentos, tendo como principal testemunha informante o escravo
Marcelino; as outras duas testemunhas arroladas no processo apenas
confirmaram saber do envolvimento de Antonio Joaquim com a sua enteada,
123
Idem, p. 94
124
AHMRC. A Justiça contra Antonio Joaquim de Andrada e Maria da Cunha. Processo 022.
Caixa: CCR – 1886 – 2 - 41/153.
56
“Maria da Cunha de vinte e tantos anos”
125
, demonstrando um lado da sociedade
escravista brasileira, pouco conhecido.
Essa história tem um ponto final com o depoimento de Marcelino, que foi
fundamental para a condenação de seu senhor, fato, notavelmente, incomum
para a época. Ambos Antonio Joaquim e Maria da Cunha incorreram nos
artigos 197 do Código Criminal do Império do Brazil, combinados com os artigos
34 e 2º §2º
126
. Maria da Cunha também poderia ter sido enquadrada no artigo 198
do Código Criminal do Império
127
, mas curiosamente não o foi.
Certamente, Marcelino somente veio a depor contra seu senhor por conta
do clima de agitação pelo qual passava a cidade às vésperas da abolição. Jornais
pró-abolição denunciavam maus tratos aos escravos e bradavam: “Libertação Já”;
na capital da Província de São Paulo, no porto de Santos, Campinas, entre outras
localidades, pipocavam os movimentos pela abolição da escravatura, imbuídos
pelo espírito libertador dos Caifazes liderados por Antonio Bento. Robert Conrad
revela que os homens, que se juntavam a Antonio Bento, vinham de todas as
125
AHMRC. A Justiça contra Antonio Joaquim de Andrada e Maria da Cunha. Processo 022.
Caixa: CCR – 1886 – 2 - 41/153.
126
Código criminal do império do Brazil: annotado com os actos dos poderes legislativo, executivo
e judiciario. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1876.
Infanticídio
Art. 197: Matar alguém recém-nascido.
Penas
No Gráo Maximo: Doze annos de prisão e multa correspondente a metade do tempo.
No Gráo Médio: Sete annos e seis mezes de prisão e multa correspondente a metade do tempo.
No Gráo Minimo: tres annos de prisão e multa correspondente a metade do tempo.
Art. 34: a tentativa a que não estiver imposto pena especial será punida com as mesmas do crime;
menos a terça parte de cada um dos gráos.
Si a pena for de morte, impor-se-há a de galés perpétuas. Si fôr a de galés perpétuas, ou de
prisão perpétua com trabalho ou sem elle, impor-se-ha a de galés por vinte annos. Si fôr de
banimento impor-se-ha a de desterro para fora do Império por vinte annos. Si fôr de degredo ou
desterro perpétuo, impor-se-ha a de degredo ou de desterro por vinte annos.
Art. 2º: Julgar-se-ha crime ou delito:
§2º - A tentativa do crime quando for manifestada por autos exteriores e principio de execução,
que não teve effeito por circunstancias independentes da vontade do delinqüente;
Não será punida a tentativa de crime ao qual não esteja imposta maior pena que a de dous mezes
de prisão simples, ou desterro para fora da comarca.
127
Art. 198: Si a própria mai matar o filho recém-nascido para occultar a sua deshonra:
Penas:
No Gráo Maximo: Tres annos de prisão ou trabalho.
No Gráo Médio: Dous annos de prisão ou trabalho.
No Gráo Minimo: Um anno de prisão ou trabalho.
57
classes e de todos os partidos políticos, incluindo os membros negros da
Confraria de Nossa Senhora dos Remédios e a elite intelectual da província, além
de ex-escravos
128
.
A idéia de trazer à público essa história, que teve como peça fundamental
para a sua conclusão o escravo Marcelino, era a de mostrar que os escravos
estavam conquistando um considerável grau de autonomia frente à sociedade.
Percebe-se, ainda, que essa autonomia viria a ser fundamental para o processo
de desagregação do cativeiro no Brasil. Não apenas a autonomia econômica pela
qual poderiam usufruir de períodos de tempo livre para a concretização de uma
organização social e econômica independente do sistema de plantation, mas uma
certa autonomia, amesmo dentro dos quadros sociais em que viviam. Esta não
lhes foi dada, foi uma conquista em que os escravo foram, indubitavelmente,
protagonistas e não meros coadjuvantes.
1.6. Sociabilidade e relações sociais: a complexidade do quotidiano nos
anos finais do escravismo em Rio Claro.
Nos anos que antecederam a abolição do sistema escravo, Rio Claro, e os
seus fazendeiros, viam a sua população cativa declinar acentuadamente.
Circulavam pelas ruas da cidade um número cada vez maior de libertos que,
inúmeras vezes se misturavam aos escravos tornando difícil qualquer distinção a
um simples olhar.
128
CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1978, p. 295.
58
Em sua quase totalidade, nas histórias que mostramos anteriormente, a
solidariedade e a violência estavam sempre presentes, fazendo parte do
quotidiano das pessoas no universo social oitocentista.
Nos processos em que aparecem como protagonistas Joaquim Bento,
Sabino e as Ambrosinas, Anna e Maria, valores como honra, dignidade, valentia e
coragem, foram determinantes para o desenvolvimento das tramas. Em cada
caso determinados valores prevalecem mais do que outros. Nas histórias
envolvendo Joaquim Bento e Sabino a valentia e a coragem, através da utilização
da força física, foram os meios fundamentais para prezar a honra e a dignidade
masculina. Enquanto que as Ambrosinas, Anna e Maria, mesmo não se utilizando
de meios violentos, a valentia e a coragem, mesmo que simbólicas, foram
fundamentais para levar o caso à justiça e incriminar o italiano Domingos Bianqui,
prezando pela honra da menina Maria.
Ivan de Andrade Vellasco revela que
Homens e mulheres e sempre mais os primeiros em todos os
estratos sociais, tornavam-se violentos, ou melhor, recorriam à violência
física, como forma corriqueira de solução dos problemas, de
enfrentamento de conflitos, como defesa do que julgassem seus direitos
e, enfim, na afirmação de sua posição e na defesa de seus valores, tais
como honra, valentia e coragem, estes outros nomes da dignidade. E,
neste sentido, o uso da força era amplamente reconhecido e valorizado.
Honra era, afinal, a possibilidade de ser respeitado pelos demais e a
violência, um teste de força, de coragem e valentia, pelo qual se
demonstrava a disposição de estar no mundo e ocupar aquele espaço
que, de outro modo, não lhe pertenceria
129
.
Nas ginas dos processos criminais figuravam, também, as testemunhas
que tinham a plena noção de seu papel dentro da trama. Esses indivíduos que
presenciaram determinado fato sabiam, perfeitamente, da importância que tinham
para o desfecho de cada caso.
129
VELLASCO, Ivan de Andrade. A cultura da violência. In. Tempo, Rio de Janeiro, nº 18, pp. 171-
195, 2004, p. 176.
59
Assim, percebemos que essas pessoas - forros, livres pobres, homens de
condição modesta, roceiros, pequenos lavradores, vendeiros e lavadeira, assim
como engomadeiras, além de algumas pessoas ligadas a grupos sociais
dominantes, como foi no processo envolvendo as escravas Bibiana e Perpétua,
quando José de Barros Leite e sua mulher Francisca Alves de Almeida Leite,
depõem em defesa de Bibiana, onde o primeiro relata que “a preta Bibiana era
incapaz de fazer em Perpétua qualquer offensa, quanto mais matal-a, (...) não
houve no facto crime algum”
130
na qualidade de testemunhas, formavam um
universo de personagens que se faziam presentes no cerimonial da justiça,
atuando nos processos de forma decisiva, uma vez que, mais do que as provas
materiais em geral inexistentes seus depoimentos é que configuravam as
evidências dos acusados
131
.
Ivan de Andrade Vellasco lembra que
Segundo o Código do Processo Criminal, no artigo 134, bastavam para a
formação do auto de corpo de delito, na inexistência de vestígios que
podem ser ocularmente examinados (...) duas testemunhas, que
deponham da existência do fato e suas circunstâncias. Para proceder à
formação de culpa era suficiente que o juiz procedesse à inquirição de
duas até cinco testemunhas que tiverem notícia da existência do delito e
de quem seja o criminoso. A lei da reforma de 1841 ampliaria esse
número, nos casos de denúncia, para cinco até oito testemunhas
132
.
No entanto, os depoimentos de algumas testemunhas eram bastante
tendenciosos, tanto pró como ocorreu no depoimento de José de Barros Leite
favorecendo a escrava Bibiana como contra conforme ocorreu no depoimento
de Amancio José Góes, argumentando que Joaquim Bento era “um preto de
maos costumes”
133
. Essas testemunhas não apenas fizeram declarações sobre o
130
Depoimento de José de Barros Leite. AHMRC. A Justiça contra Bibiana (escrava de Sebastião
de Barros Silva). Processo nº 015. Caixa: CCR – 1886 – 2 - 40/153.
131
VELLASCO, Ivan de Andrade. As redes de solidariedade da cor: o caso dos compadres Manoel
e Laurindo. In. Revista História, São Paulo, v. 25, nº1, p. 147-169, 2006, p. 149.
132
Idem, p. 150.
133
Depoimento de Amancio José Góes. AHMRC. A Justiça contra Joaquim Bento. Processo 026.
Caixa: CCR – 1886 – 1 - 40/153.
60
“facto crime”, mas também emitiram suas opiniões a respeito dos envolvidos em
seu quotidiano e sobre a conduta de cada um no dia-a-dia.
Vê-se, então que a participação ampliada das testemunhas no desenrolar
dos processos, além de indicar um elevado grau de envolvimento e
comprometimento com o judiciário e seus resultados, possibilitava à população, e
notadamente, aos homens e mulheres pobres, espaços de afirmação e de
representações próprias sobre a ordem e a justiça. Concordamos, então com Ivan
Vellasco, quando afirma que a participação das testemunhas nas cortes
possibilitava à elas uma experiência da lógica jurídica, mas, sobretudo, lhes
permitia afirmar direitos, apresentar suas noções de justiça e seus “julgamentos” a
respeito do caso em pauta e, como resultado, intervir decididamente nos rumos
da ação
134
.
Dentre os processos analisados notamos, em sua grande maioria, a
utilização da violência como meio de ajuste. Não que a sociedade oitocentista
padecesse de uma ausência de ordem, ou seja, enfatizar a presença da violência
como um dado cultural na sociedade da época não implica o postulado da
impossibilidade ou imprevisibilidade da ordem, mas sim a constatação, de resto
fartamente presente nos discursos oficiais, de que a violência era um entrave a
ser vencido e contra o qual o aparato de vigilância deveria concentrar seus
esforços
135
.
Bem verdade que casos como a tentativa de matar o filho para encobrir o
relacionamento com a enteada – como ocorreu com Antonio Joaquim de Andrade,
senhor do escravo Marcelino, e sua enteada Maria da Cunha -, não vinham a
público com freqüência, muito menos para figurar em processos criminais; porém
134
VELLASCO, Ivan de Andrade. As redes de solidariedade da cor: o caso dos compadres Manoel
e Laurindo. In. Revista História, São Paulo, v. 25, nº1, p. 147-169, 2006, p. 150.
135
VELLASCO, Ivan de Andrade. A cultura da violência. In. Tempo, Rio de Janeiro, nº 18, pp. 171-
195, 2004, p. 177. Conferir também, do mesmo autor: As seduções da ordem: violência,
criminalidade e administração da justiça. Minas Gerais século XIX. Bauru: EDUSC/ANPOCS,
2004.
61
ilustra uma “cultura da violência” que marcou a sociedade brasileira no século
XIX, sociedade na qual, conforme afirma Ivan Vellasco,
a violência da escravidão e da ação repressiva do Estado, com seu
repertório de execuções, castigos corporais e sevícias, se aliavam a
brutalidade no trato entre homens e mulheres, o espancamento das
crianças como recurso pedagógico rotineiro, a agressividade como
moeda corrente das relações sociais e a valentia como premissa da
honra. A violência constituía um ethos, que atravessa as relações
sociais, fossem verticais ou horizontais, fossem entre estranhos ou
próximos, entre amantes, parentes ou inimigos
136
.
Dessa forma, percebe-se, então, que a solidariedade, assim como a
violência, constituíam-se para um corpus cultural de grupos desprivilegiados em
um mecanismo ludibriante às regras e normas instituídas pelo Estado que,
naquela época, como afirma Ivan Vellasco, não formavam um todo funcional e
coeso
137
.
136
Idem, p. 174.
137
VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da ordem: violência, criminalidade e administração
da justiça. Minas Gerais – século XIX. Bauru: EDUSC/ANPOCS, 2004.
62
CAPÍTULO 2
OS CAMINHOS PARA A LIBERDADE.
Estava claro que a intenção da elite política no Brasil oitocentista era fazer
uma reforma no regime de trabalho, que estava calcado no escravismo, de cima
para baixo, ou seja, sem a participação popular, - principalmente dos maiores
interessados na questão: os escravos -, na “questão do elemento servil”.
Embora não devamos descaracterizar a importância que teve, para a
abolição da escravidão no Brasil, a atuação de determinados políticos, como
Joaquim Nabuco, no processo de abolição e os debates sobre ele tiveram
profunda influência no desenvolvimento de um pensamento político no Brasil, e na
própria formação do Estado Brasileiro.
Uma transformação no regime de trabalho iria modificar profundamente as
estruturas da sociedade brasileira no século XIX. Pretendia-se, portanto, que essa
transformação ocorresse aos poucos, ou seja, gradualmente, para que a
sociedade não sentisse o impacto dessas mudanças que, se previa para um
futuro próximo.
Deixar de fora os maiores interessados na questão, os escravos –, talvez
fosse uma estratégia para manter a calma das elites no século XIX, além de
conter os ânimos mais exaltados, por parte de determinados grupos sociais da
sociedade brasileira, que pediam com a xima urgência a abolição da
escravatura. Entre esses grupos destacavam-se os Caifazes, liderados por
63
Antonio Bento. O abolicionismo, por via estritamente institucional teria funcionado
como uma barragem conservadora à ação destes grupos e dos escravos
138
.
Maria Helena Toledo Machado, em seu estudo sobre os movimentos
sociais nas ultimas décadas da escravidão em São Paulo, documentou a
participação de diferentes setores sociais no movimento abolicionista, além de
tratar o abolicionismo em seu aspecto mais popular e radical
139
.
Dentro desse contexto, este capítulo tem como principal objetivo analisar
os debates no Parlamento Brasileiro envolvendo a “questão do elemento servil” e
o desejo da elite política em dar um encaminhamento político à questão do
abolicionismo; mostrar o despontar de movimentos sociais em São Paulo nos
anos que antecederam à abolição, passando pelos efeitos das tensões
desencadeadas por cativos na cidade de Rio Claro, apontando, dessa forma, a
participação ativa dos escravos no processo de abolição da escravidão no Brasil.
Com base em fontes documentais, particularmente as ações de liberdade,
pretendemos mostrar, também, que os escravos não eram seres inertes; através
das mais variadas estratégias e com a ajuda de pessoas letradas, ou seja, os
curadores, nas barras dos tribunais, construíram seus próprios caminhos rumo à
liberdade.
Sabe-se que no século XIX, determinadas leis davam margem à diversas
interpretações. Thompson estudando o direito de propriedade nos fundamentos
do Direito e as origens da Lei Negra na Inglaterra do século XVIII, afirma que a
maior dentre todas as ficções legais é a de que a lei se desenvolve, de caso em
138
MACHADO, Maria Helena P. T. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da
década da abolição. São Paulo: EDUSP, 1994.
139
Idem.
64
caso, pela sua lógica imparcial, coerente apenas com sua integridade própria,
inabalável frente a considerações de conveniência
140
.
Algumas leis surgiram com o objetivo de manter o controle social na
sociedade, voltadas principalmente aos escravos como, por exemplo, a Lei de
10 de julho de 1835. Mesmo tendo a função disciplinadora, e visando transformar
os escravos em libertos disciplinados, estas leis continham brechas e lacunas, de
que muitos escravos se utilizaram para mudar o seu status social, na busca de
um futuro menos árduo.
2.1. Tensão social e agitação política nos últimos anos do escravismo.
Os anos que antecederam a abolição da escravatura no Brasil ficaram
marcados por uma intensa agitação política e social nos mais diversos setores da
sociedade. No Parlamento, o tema referente à questão servil moveu a elite
dirigente a acirrados debates na intenção de tomar para si o ideal abolicionista
para que este não chegasse às ruas, muito menos às senzalas.
O projeto do emancipacionismo gradual articulado pela classe dos
proprietários e dos governantes ficou claro quando Joaquim Nabuco, em Londres,
redigiu seu manifesto “O Abolicionismo”, nos seguintes termos:
Em 1850, queria-se suprimir a escravidão, acabando com o tráfico; em
1871, libertando desde o berço, mas de fato depois dos vinte e um anos
de idade, os filhos de escrava ainda por nascer. Hoje quer-se suprimi-la,
emancipando os escravos em massa e resgatando os ingênuos da
servidão da lei de 28 de setembro. É este último movimento que se
140
THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987, p. 338.
65
chama abolicionismo, e este resolve o verdadeiro problema dos
escravos, que é a sua própria liberdade
141
.
O “gradualismo”, portanto foi uma das estratégias utilizadas por políticos e
proprietários na condução da questão referente à abolição da escravidão.
Eduardo Spiller Pena argumenta que da mesma forma que os senhores
controlavam a liberdade de seus escravos por meio da alforria, o Estado Imperial
administrava a concessão da liberdade em doses políticas homeopáticas, a fim de
que a ordem pública e a economia dos proprietários não fossem abaladas
142
.
Segundo Pena,
O gradualismo surgiu também como uma resposta política dos autores
emancipacionistas nos momentos em que a critica ao escravismo se
acirrava, seja por movimentos de rebeldia ou de resistência ao trabalho
por parte dos escravos, seja por pressões diplomáticas ou mesmo
oficiosas de associações antiescravistas do exterior. Nesse sentido, suas
falas foram elaboradas estrategicamente para direcionar o rumo das
discussões públicas sobre a emancipação, evitando ou procurando não
deixar espaço para propostas mais radicais e imediatas de abolição
143
.
Por toda a década de 1880, a questão envolvendo o “elemento servil”
provocou acirrados debates no Parlamento Imperial. Na sessão de 2 de agosto de
1880, Joaquim Nabuco argumentou com veemência que “é preciso acabar com a
escravidão”. Porém Nabuco foi interrompido pelo Deputado paraibano Ulysses
Vianna com argumento de que “a escravidão deveria ser extinta aos poucos,
gradualmente
144
[grifo nosso].
A política do gradualismo não foi privilégio apenas de políticos e das
classes proprietárias no Brasil. Ao analisar o fenômeno em Cuba, Rebecca Scott
observa que houve, naquele país, o que se convencionou chamar de patronato,
141
NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Brasília: Edições do Senado Federal, 2003, p. 27.
142
PENA, Eduardo Spiller. Pajens na casa imperial: jurisconsultos, escravidão e a Lei de 1871.
Campinas: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2001, p. 275.
143
Idem, p. 275.
144
Annaes do Parlamento. Sessão de 10 de agosto de 1880.
66
ou seja, uma espécie de estatuto intermediário entre o trabalho escravo e o
livre
145
, que revelava a crença em um emancipacionismo gradual.
De acordo com a historiadora norte-americana,
Plantadores amedrontados evocavam fantasmas do Haiti, da
Reconstrução Radical nos Estados Unidos e do barbarismo em geral
com o fim de obter apoio para a idéia de que apenas uma transição
prolongada poderia evitar tais conseqüências funestas da abolição. Os
proponentes do patronato elevavam o gradualismo à categoria de virtude
máxima, a única forma de os escravos se tornarem homens livres
responsáveis e de a sociedade resistir ao choque da transformação
146
.
Scott percebeu, portanto, que na base do patronato estava a negação de
que houvesse, no fundo, interesses em conflito; as necessidades de ex-escravos
e ex-senhores seriam mediadas e resolvidas por meio de concessões mútuas
para o beneficio de ambos
147
.
Dessa forma, percebe-se que a grande atração da classe proprietária pelo
patronato se explica justamente pela criação de um mecanismo que colocasse fim
aos conflitos existentes entre escravos e senhores. Mas, como bem observou
Rebecca Scott, após a sanção da lei, nem os conflitos foram eliminados nem as
atitudes sociais foram transformadas.
O gradualismo foi, portanto, o argumento utilizado por políticos tanto no
Brasil quanto em Cuba, com relação à reforma do sistema de trabalho. Mas as
semelhanças não param por aí, foram estes os dois últimos países do continente
americano a abolir definitivamente a escravidão.
145
SCOTT, Rebecca J. Emancipação escrava em Cuba: a transição para o trabalho livre, 1860-
1899. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Campinas: Editora da Universidade de Campinas, 1991.
146
Idem, p. 141.
147
Idem, p. 141.
67
É visível o caráter moderado que tomou a questão do elemento servil” no
Brasil. O gradualismo foi, naturalmente, uma estratégia dos parlamentares
defensores dos interesses escravistas. O então ministro da agricultura Buarque
de Macedo foi enfático ao afirmar em plenário na sessão de 11 de agosto de 1880
que “ninguém quer a escravatura no Brazil. Somos todos emancipadores;
devemos promover a emancipação com grande efficácia; mas nunca
absolutamente perturbando os grandes interesses do Estado”
148
.
Não perturbar os interesses do Estado significava promover a emancipação
gradualmente sem afetar a economia nacional, no caso a agricultura, mais
precisamente a lavoura cafeeira, que tinha como força de trabalho principal a
mão-de-obra escrava, além de defender o direito de propriedade dos senhores de
escravos.
A elite política brasileira, no fundo, ao adotar o gradualismo como política
principal referente à questão do “elemento servil”, estava fazendo durar ao
máximo a escravidão no Brasil. E muita dessas leis aprovadas para a extinção
gradual da escravidão se deve à pressão britânica.
Uma das condições impostas pelos ingleses, na década de 1820, para o
reconhecimento da independência da jovem “naçãobrasileira foi o fim do tráfico
de escravos, que culminou na aprovação da Lei de 1831, a qual determinava que
todo africano, que desembarcasse no Brasil, a partir da promulgação daquela lei
seria considerado livre. Mas como se convencionou chamar, essa lei foi feita
apenas “para inglês ver”, apesar de muitos advogados e rábulas, como Luiz
Gama, utilizarem-se dela em suas representações em ações de liberdade nas
décadas de 1870 e 1880.
148
Annaes do Parlamento. Sessão de 11 de agosto de 1880.
68
Diante do impasse nas negociações com o Brasil referentes à questão da
escravidão, a Inglaterra deu início a um projeto que viria a se transformar em lei
em 8 de agosto de 1845. Foi quando Aberdeen fez passar no Parlamento
Britânico uma lei autorizando o Almirantado inglês a tratar todos os navios
negreiros do Brasil como se fossem piratas
149
.
De acordo com Paula Beiguelman
O Bill Aberdeen, pelo qual a Inglaterra legislava para o Brasil na questão
do tráfico, era, ao mesmo tempo, uma represália ao governo brasileiro
por não ter renovado o tratado que expirara e um meio de forçar o Brasil
a conceder um tratado consignando a pesquisa de indícios. Por esse ato,
o governo inglês era autorizado a mandar proceder pelo alto tribunal do
almirantado, e por qualquer tribunal de vice-almirantado, ao julgamento e
adjudicação de embarcações negreiras que trouxessem o pavilhão
brasileiro, capturadas em todos os mares pelos navios de Sua Majestade
Britânica
150
.
Richard Graham diz que muito se tem discutido acerca do verdadeiro papel
da ação britânica, isto é, se ela teria sido de fato a responsável pela extinção do
tráfico
151
. Fato é que, no ano de 1850 foi aprovada no Parlamento Brasileiro a Lei
581 de 4 de setembro, conhecida como Lei Eusébio de Queiroz, pela qual se
proibia o comércio de escravos. O fim do tráfico de escravos se deve diretamente
à aprovação dessa lei.
O tráfico escravista para o Brasil sofreu rápido declínio, podendo ser
considerado extinto no ano de 1852. Graham afirma que estimativas segundo
as quais 60.000 escravos ingressaram no Brasil em 1848, cerca de três vezes o
número correspondente ao ano de 1845. Mas em 1850 entraram somente 23.000,
149
GRAHAM, Richard. Brasil-Inglaterra. IN. História Geral da Civilização Brasileira. HOLANDA,
Sergio Buarque de (org.) t. 2 v. 4. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 142.
150
BEIGUELMAN, Paula. O encaminhamento político da escravidão no Império. IN. História Geral
da Civilização Brasileira. HOLANDA, Sergio Buarque de (org.) t. 2 v. 3. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2003, p. 196.
151
GRAHAM, Richard. Brasil-Inglaterra. IN. História Geral da Civilização Brasileira. HOLANDA,
Sergio Buarque de (org.) t. 2 v. 4. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 143.
69
e apenas 3.000 em 1851. No ano seguinte esta cifra reduzia-se a 700, e depois
daí há somente refencia a uns poucos casos isolados de tráfico negreiro
152
.
Mas o fim do tráfico negreiro não significou o encerramento das
preocupações dos ingleses com a questão da escravatura no Brasil, que,
importante ressaltar, era uma questão diplomática. William Dougal Christie,
ministro britânico no Rio, de 1859 a 1863, levantou outras questões referentes à
escravatura brasileira.
O historiador Richard Graham afirma que
Os assim chamados emancipados ou africanos livres, encontrados a
bordo de navios condenados pela Corte de Comissão Mista no Rio antes
de 1845, eram avaliados em cerca de 10.000. Tinham sido entregues
“como aprendizes” a pessoas particulares, ou postos a trabalhar em
projetos do governo, empregando-se facilmente a fraude para tirar
qualquer significado à sua libertação
153
.
A re-escravização desses africanos era, de fato, uma prática constante no
Brasil. A Lei de 1831, para os ingleses, não tivera, sequer, uma aplicação
simbólica. Além do mais, segundo Graham, Christie, bem como o próprio governo
britânico, estava interessado em acabar de vez com a escravidão no Brasil. Era
raciocínio predominante que, onde houvesse escravidão, poderia também
ressurgir o tráfico de escravos, e assim a Inglaterra podia legitimamente
interessar-se pelo assunto. Mas, obviamente, o interesse britânico em liquidar
152
Idem, p. 142.
153
Ibidem, p. 144. Ver, também, a respeito dos africanos livres em São Paulo durante o século
XIX; BERTIN, Enidelce. Os meia-cara: africanos livres em São Paulo no século XIX. São Paulo:
FFLCH-USP, Tese [Doutorado em História], 2006. Segundo Enidelce Bertin, para o Estado, os
africanos livres não eram livres, por isso estavam sujeitos ao controle através da tutela. Essa
historiadora argumenta ainda que, embora os africanos livres estivessem inseridos no contexto do
fim do tráfico africano, sua experiência cotidiana guardava estreita relação com a escravidão
praticada na cidade, não apenas porque os lugares de trabalho e sociabilidade muitas vezes eram
comuns a escravos e libertos, como também porque, não raramente, não eram vistos sequer uma
porção de liberdade pelos administradores públicos e pelos arrematantes particulares. BERTIN,
Enidelce. Os meia-cara: africanos livres em São Paulo no século XIX. São Paulo: FFLCH-USP,
Tese [Doutorado em História], 2006, p. 11.
70
com a escravidão no Brasil transcendia o tráfico de escravos, refletindo profundas
preocupações de articulados grupos de interesses britânicos
154
.
O “incidente Christie” que ocorreu entre os anos de 1862 e 1863 tocava,
em grande parte, nas questões referentes à escravatura brasileira, e diante das
exigências da Inglaterra, o Brasil rompeu relações diplomáticas. Após esse
incidente o governo brasileiro começou a tomar medidas e a discutir com maior
afinco a questão da escravatura e o futuro do sistema escravista no país,
culminando com a aprovação da Lei do Ventre Livre em 1871. Enfim,
transformaria em lei parte dos projetos apresentados pelo deputado Pimenta
Bueno referente à reforma servil. Segundo Paula Beiguelman, eram cinco projetos
no total:
O primeiro concedia a liberdade aos nascituros; o segundo criava o
fundo de emancipação, e estabelecia o pecúlio e a alforria forçada, uma
vez pago o valor do escravo; o terceiro ordenava a matrícula da
escravatura; o quarto concedia liberdade aos escravos da nação; o
quinto tratava da libertação gradual dos de propriedade dos
conventos
155
.
Em meados da década de 1870, os abolicionistas, emergindo com o
discurso da “defesa da ordem”, começaram a se destacar no Parlamento do
Império movidos, principalmente, como constatou Célia Marinho Azevedo, pelo
sentimento de medo em relação aos negros, sempre tão presente entre os
primeiros emancipacionistas e pela decorrente imagem do escravo como uma
espécie de besta humana
156
.
Joaquim Nabuco em um de seus discursos na sessão de 10 de agosto de
1880 afirmava, energicamente, que
154
Ibidem, p. 144.
155
BEIGUELMAN, Paula. O encaminhamento político da escravidão no Império. IN. História Geral
da Civilização Brasileira. HOLANDA, Sergio Buarque de (org.) t. 2 v. 3. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2003, p. 205.
156
AZEVEDO, lia Marinho. Batismo da liberdade: os abolicionistas e o destino do negro. In.
História: questões & debates. Curitiba, nº9, jan. 1988, p. 40.
71
[...] esta questão não é dessas de que o Governo pode o cogitar. O
Governo pode ter a opinião formada, de que é perigoso iniciar qualquer
medida, e de que se não deve dar um passo mais nesse caminho. O
governo pode pensar que a lei de 28 de setembro resolveu inteiramente
a questão; pode pensar que esta lei é o estatuto de liberdade para todos
os brasileiros, que fora dela não esperança para o escravo; mas o
que o governo não pode dizer é que não cogita de uma questão desta
ordem, porque é uma questão que se prende à própria vida do País,
porque se o Governo não cogita, cogitam todos, e mais do que os
abolicionistas e do que os escravos, os próprios senhores, que vêem
crescer cada dia em torno de si a onda da insurreição.
Mas se o governo o cogita hoje, peço licença para dizer ao nobre
ministro da agricultura que dez anos o honrado presidente do
Conselho cogitava desta questão. Peço a Câmara que atenda aos
termos em que estas frases são redigidas.
Em questões desta ordem não palavras de mais como não deve
haver palavras de menos.
As palavras neste caso têm uma significação real e positiva; têm um
sentido claro, porque, se elas não podem provocar esperanças na
grande massa dos escravos que não sabem ler, podem alimentar,
todavia as esperanças de alguns desses desgraçados que acreditam na
sinceridade, na energia, e na coerência dos homens políticos
157
.
Está claro nas palavras de Nabuco a crença na incapacidade dos escravos
de tomarem as rédeas de suas próprias vidas e destino. Para o deputado
abolicionista, a questão da abolição deveria ter um encaminhamento político
dentro do parlamento, evitando que tomasse as ruas e senzalas.
No entanto, Nabuco sabia que a questão não ficaria restrita apenas aos
ilustrados no Parlamento. Mais adiante, em fala na sessão do mesmo dia proferiu
as seguintes palavras:
Senhores, os partidos não podem tomar compromissos em palavras
mais solenes, nem mais claras; se, depois de os tomar, eles querem
desmenti-los, a habilidade achará sempre o meio de pôr de acordo suas
palavras com o seu procedimento.
Senhores, a idéia emancipadora é uma idéia que está sendo tratada com
a maior moderação.
Quando um homem que não transige com a escravidão vem e propõe ao
Parlamento brasileiro um prazo de 10 anos para se realizar a
emancipação dos escravos, prazo que chegue exatamente até essa
157
Annaes do Parlamento. Sessão de 10 de agosto de 1880.
72
meta que o Visconde de Sousa Franco no Senado pedia, isto é, que 10
anos depois da lei de 71 se fizesse uma nova lei, e se marcasse um
prazo que não excedesse de outros 10 anos para a emancipação total;
quando um homem traz um projeto que pode ser tachado de transação
com a escravidão, deve ele ser acusado de estar atirando fachos sobre
barris de pólvora? Senhores, quando uma sociedade confessa que tem
por alicerces barris de pólvora, não é muito que ela veja por toda a parte
o facho do incendiário
158
. [grifo nosso].
Joaquim Nabuco estava atento aos fatos e acontecimentos da época. As
revoltas de escravos e as crescentes insurreições começavam a causar temor
entre os proprietários. No ano de 1886, o Presidente da Província de São Paulo, o
Sr. João Alfredo Corrêa de Oliveira, em relatório apresentado à Assembléia
Legislativa Provincial, disse que no ano anterior,
prestando a devida attenção a certos syntomas de um plano de
insurreição de escravos que receavam os proprietários do oeste da
provincia e que se dizia acertado para o dia 24 de dezembro, tomei as
medidas preventivas que me pareceram necessárias, de modo que não
se realizou aquelle intento criminoso
159
.
As autoridades cuidaram de colocar panos quentes nos acontecimentos. O
relatório do Chefe da Polícia nos leva a crer que houve uma tentativa de abafar os
fatos ocorridos para acalmar a população. O relator é cauteloso em suas palavras
ao afirmar que
Alguns fatos indicativos de uma insurreição de escravos, cautelosamente
preparada para o dia 24 do mez findo, por maus conselheiros no oeste
da Província e felizmente a tempo pela polícia descoberta para ser
convenientemente sufocada pelas medidas de prevenção, que foram
sabiamente tomadas por V. Ex., trouxeram muitas localidades em
sobressalto por alguns dias; principalmente porque coincidiram elles com
boatos aterradores, espalhados sem critério, e com assassinatos de
feitores de algumas fazendas daquella parte da Província
160
.
158
Annaes do Parlamento. Sessão de 10 de agosto de 1880.
159
Relatório apresentado a Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo pelo presidente da
província João Alfredo Corrêa de Oliveira, no dia 15 de fevereiro de 1886. São Paulo, Typ. de
Jorge Seckler & C. 1886.
160
Relatório do Chefe da Polícia. Anexo ao Relatório apresentado a Assembléia Legislativa
Provincial de São Paulo pelo presidente da província João Alfredo Corrêa de Oliveira, no dia 15 de
fevereiro de 1886. São Paulo, Typ. de Jorge Seckler & C. 1886.
73
Maria Helena Toledo Machado, analisando as mesmas fontes, afirma que
em seu relatório anual o Presidente da Província declarou que, embora alguns
fatos tivessem indicado a possibilidade de ocorrência de uma insurreição de
escravos no oeste da Província, as medidas preventivas adotadas na ocasião
haviam sido suficientes para sufocá-la
161
.
Ao que tudo indica, as autoridades da época acreditavam que esses
acontecimentos que “trouxeram muitas localidades em sobressalto por alguns
dias” deveriam ser decorrência de “boatos aterradores, espalhados sem critério, e
com assassinatos de feitores de algumas fazendas daquella parte da
Província”
162
.
Boatos que, segundo Maria Helena Toledo Machado, durante os últimos
meses do ano tinham implicado em constantes sobressaltos, deslocamento de
tropas, pânico das populações e minuciosas investigações. Dessa forma, ainda
de acordo com a historiadora, fazendo coro às declarações oficiais, desde logo os
jornais da Província trataram de menosprezar os eventos que poucos dias antes
haviam colocado em polvorosa a região, debitando as ocorrências mais aos
ânimos excitados do povo, do que ao perigo concreto de eclosão de um
movimento de escravos
163
.
Mais adiante em seu relatório, o Chefe da Polícia usou de certo cinismo ao
relatar que
Tudo isso passou, sem que tivesse que lamentar alteração na ordem
pública, não obstante esses assassinatos que não se prendendo á dita
insurreição, foram factos isolados, que quasi sempre se dão, e que
muitas vezes se explicam pelos maus tratos infligidos por esses feitores
161
MACHADO, Maria Helena P. T. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da
década da abolição. São Paulo: EDUSP, 1994, p. 226.
162
Relatório do Chefe da Polícia. Anexo ao Relatório apresentado a Assembléia Legislativa
Provincial de São Paulo pelo presidente da província João Alfredo Corrêa de Oliveira, no dia 15 de
fevereiro de 1886. São Paulo, Typ. de Jorge Seckler & C. 1886, p. 4.
163
MACHADO, Maria Helena P. T. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da
década da abolição. São Paulo: EDUSP, 1994, p. 226.
74
á seus feitorisados, sem se lembrarem de que a dignidade humana,
embora nestes amortecida pela falta de educação e pela posição
degradante pode arrojar-se temerária, produzindo os effeitos da
tempestade, ou da onda impetuosa
164
.
Como bem observou Maria Helena Toledo Machado, circunscrevendo as
ocorrências aos limites do boato e do nico exagerado, todos se furtavam a
admitir que a perda do controle do processo social de extinção da escravidão
perigosamente se delineava nos horizontes cafeeiros de São Paulo
165
.
nesse período, materializava-se o declínio da escravidão enquanto
sistema de trabalho e instituição. O nosso advogado e parlamentar abolicionista
Joaquim Nabuco, integrante da elite intelectual do império poderia não
compreender as angústias e ansiedades de milhares de pessoas acometidas pelo
cativeiro. Está claro que a intenção de Nabuco era dar um encaminhamento
político à questão da abolição da escravidão no Brasil, ou seja, por via
estritamente legal, de modo a afastar outra forma de emancipação da grande
massa de escravos, assim como ocorreu no Haiti ou no Sul dos Estados Unidos.
Mas Nabuco sabia perfeitamente que o barril de pólvora estava prestes a explodir.
Certamente, era do conhecimento de Nabuco que insurreições vinham
pipocando desde muitos anos atrás. Como reação ao sistema escravocrata, a
rebeldia negra e as constantes insurreições foi um processo contínuo,
permanente e não esporádico. De acordo com Robert Conrad, a fuga e a
formação de quilombos começaram em 1559 e vieram até a abolição
166
.
Diferente de Joaquim Nabuco, José do Patrocínio emergiu com um
discurso de cunho radical, motivado por uma grande paixão pela liberdade dos
164
Relatório do Chefe da Polícia. Anexo ao Relatório apresentado a Assembléia Legislativa
Provincial de São Paulo pelo presidente da província João Alfredo Corrêa de Oliveira, no dia 15 de
fevereiro de 1886. São Paulo, Typ. de Jorge Seckler & C. 1886, p. 4.
165
MACHADO, Maria Helena P. T. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da
década da abolição. São Paulo: EDUSP, 1994, p. 226.
166
CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1978, p. 19.
75
escravos. O abolicionismo de Joaquim Nabuco era, antes de tudo, filantrópico e
político; José do Patrocínio tinha uma motivação de cunho pessoal. Filho de
escrava e nunca reconhecido legalmente pelo pai, estava gravado em sua pele o
entusiasmo pela abolição da escravatura no Brasil.
No início da década de 1880, Jodo Patrocínio à frente da Associação
Central Emancipadora, promoveu um abolicionismo popular, utilizando como
instrumentos de ação a imprensa e os comícios públicos. Patrocínio foi um
intenso e eficaz orador nas reuniões abolicionistas, autor de milhares de palavras
sobre a questão da escravidão.
Robert Conrad lembra que
Patrocínio possuía a reputação de ser um reformista incondicional.
Influenciado pelas obras de Pierre Proudhon, adotara o grito de guerra
“A Escravidão é um roubo”, tendo continuado a agir até 1888 como se
acreditasse verdadeiramente nesse aforismo. (...) Emotivo, tenso, teatral,
romântico, ele alcançava seus públicos através da imprensa, com um
humor áspero e poderosos apelos emocionais. “Sua grande força era a
emoção”
167
.
Escreveu José do Patrocínio no jornal Gazeta da Tarde no dia 27 de julho
de 1887:
Nesta guerra, porém, as forças são desiguais. De um lado estão os
abolicionistas, que não m como armas senão a sua na santa causa
que defendem e pela qual estão prontos a dar a vida; uma raça
acobardada por longos séculos de sofrimento; o terror do povo
acostumado a ver subir ao cadafalso, ou ser espingardeado na praça
pública, o Direito, ficando o despotismo jubiloso a tripudiar impune sobre
o seu cadáver.
De outro lado está o Governo, armado com a venalidade da maior parte,
com o desespero da cobiça dos senhores de escravizados, com a falta
de escrúpulo de quem se hipotecou ao interesse de uma instituição, que
é a nossa vergonha perante o mundo.
167
CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1978, p. 188.
76
Governo da escravidão, o Ministério é a encarnação da barbaria; não
trepida em assalariar delatores, como não hesita em proteger
assassinos
168
.
O historiador Humberto Fernandes Machado revela que as ruas centrais da
capital do Império, com destaque para a Rua Uruguaiana, onde se encontrava a
redação da Gazeta da Tarde, principal órgão abolicionista da Corte e cujo
proprietário era José do Patrocínio, foram palcos de comícios públicos e
festividades, quando foram libertos alguns escravos, entre discursos repletos de
alegria e entusiasmo
169
.
Na cidade de São João Baptista do Rio Claro, como bem nos mostra
Warren Dean, em abril de 1871, 57 fazendeiros apresentaram ao presidente da
Província uma petição para que ele colocasse uma guarnição militar permanente
no município
170
.
Para ratificar suas palavras Dean utilizou-se de uma documentação
consistente que descreveu da seguinte forma:
Actualmente cresce de importancia a necessidade de força publica na
cidade, a disposição das authoridades quando do volcão que pisamos
principião as explosões. No dia 27 do corrente a 11/2 hora da tarde vinte
escravos de José Ferraz de Sampaio, depois de terem assassinado o
feitor, sahirão em pleno dia da Fazenda passando por Limeira as 4 horas
da tarde, e dirigindo-se alem com plena confiança de não serem
perseguidos, por levarem a convicção que tinhão exercido um direito. Os
abaixo assignados não comentão o facto, mas acreditão que elle não
nasceu de mesma causa que tem nascido outros de idêntico desfexo, e
esperão de V Exª as providencias precisas para que a Cidade se
liberte do terror em que se acha
171
.
168
Gazeta da Tarde, 27 de julho de 1887.
169
MACHADO, Humberto Fernandes. Palavras e Brados. A Imprensa Abolicionista do Rio de
Janeiro (1880-1888). São Paulo: FFLCH-USP, Tese [Doutorado em História Social], 1991.
170
DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977, p. 125.
171
Apud DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 125.
77
Segundo Dean, outro pedido com a mesma finalidade fora enviado duas
semanas antes por 275 fazendeiros e comerciantes de Campinas. Referia-se,
justamente, ao aumento da população escrava e reconhecia , utilizando-se aqui
de fontes documentais, “divorcio perenne das duas raças”, que eram “inimigos
não se tratando com afagos e carinhos”, e que havia, além disso, “circunstâncias
peculiares” que justificavam “sérias aprehensões”
172
[grifo do autor].
Sobre a referida documentação, Dean é contundente ao afirmar que não se
pretextava revoltas, o requerimento especialmente punha de lado tal receio
como infundado. O que preocupava os fazendeiros era mais difuso e perigoso.
Antigamente, citando mais uma vez a carta, os escravos eram quase todos
africanos, num “estado de embrutecimento e pouquidade de inteligência” que
permitia aos proprietários dominá-los facilmente. Agora, porém, tinham sido
substituídos por brasileiros
173
; estes, sem dúvidas, provenientes do tráfico
interprovincial.
Na petição, exposta e muito bem analisada por Dean, os fazendeiros
argumentam que os escravos
Nascidos e educados entre nós e conseqüentemente participando da
nossa índole, costumes, e dotados de uma esphera intelectual muito
mais dilatada que a de seos primitivos troncos, tendem a aspirações
compatíveis com o seo desenvolvimento e portanto a liberar-se daquella
subserviencia passiva dos primeiros.
Sua communhão intima pela promiscuidade e alargada pelo cruzamento
com a população livre, dá-lhes um typo intermediário às raças africana e
latina e os tem habilitado a discutir o direito de propriedade que a lei lhes
impõe e a duvidar da legitimidade e procedencia desse mesmo direito.
Suas faculdades alcanção o que era inattingivel aos africanos. Seo
espirito mal suporta o jugo da escravidão e tenta emancipar-se delle,
como n’olo revelão factos repetidos em toda parte.
Assim é que perguntando-se um escravo de S. João do Rio Claro, por
que motivo havia assassinado seo senhor, respondera elle “que não
172
DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977, p. 125.
173
Idem, p. 126.
78
sabia a rasão por que havia de trabalhar toda a sua vida em proveito
exclusivo de um homem igual a si”
174
. [Grifo do original]
Esses documentos, comenta Dean, revelam muito sobre o sistema
escravagista, após o fim do tráfico. Ainda que os responsáveis pela petição
fossem provenientes da classe dos fazendeiros, já eram críticos da argumentação
abolicionista, antes que o abolicionismo representasse qualquer desafio político.
De acordo com esse historiador, os fazendeiros acreditavam que
Os escravos não mereciam sua sorte, e a aquisição de uma cultura
brasileira dava-lhes direito à liberdade. Os fazendeiros reconheciam que
a força poderia dem diante manter uma lei sem legitimidade. Sua
única justificativa era a necessidade de salvaguardar a existência e...
prosperidade, avultadas aos olhos da Província e do Império”, da região
de Campinas ou seja, a prosperidade dos fazendeiros. Em 1871 os
donos de escravos eram falidos morais, obrigados a implorar que o
governo central assumisse maior parcela do custo grandemente
aumentado da repressão
175
.
Para Warren Dean, estes requerimentos lançam luz sobre as razões da
promulgação da Lei do Ventre Livre. Ainda que se tenha dito com freqüência que
a lei surgiu em meio à crescente inquietação dos escravos, ela veio “apenas”
ratificar o que era costumeiro na relação entre escravos e senhores, que era a
compra da alforria por meio da formação do pecúlio, além de concretizar a idéia
da libertação dos nascituros, que, aliás, não era nova. no Primeiro Reinado,
recomendara-se a libertação do ventre da escrava. Emilia Viotti da Costa comenta
que em 1837, Antonio Ferreira França, cuja ação em prol da emancipação foi
notável nesse período, apresentava à Câmara um projeto visando libertar os
nascituros
176
.
Portanto, seria necessário as mais elogiosas palavras proferidas por
Joaquim Nabuco do alto da tribuna da Câmara em 03 de novembro de 1880,
174
Apud DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 126.
175
DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977, p. 126.
176
COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala a colônia. 4 ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP,
1998, p. 448.
79
sobre o Visconde do Rio Branco, dois dias após a sua morte? Peco aqui pela
extensão da citação, mas creio ser um mal necessário. Vamos às palavras do
ilustre abolicionista.
Ouvi com a mais profunda atenção os discursos pronunciados sobre o
eminente estadista que anteontem faleceu, e sinto que neste momento
solene perante a Câmara reunida, devo destacar exatamente o lado de
sua carreira, o ponto culminante de sua vida que de ser iluminado
pela história quando todos os outros tiverem mergulhado na sombra.
Senhores, o luto nacional que acompanhou o préstito mortuário do
Visconde do Rio Branco mostra bem que não perdemos nele somente
um homem de partido. Os partidos são divisões intestinas, são
oposições constantes no seio do País, e o que havia ali era a
unanimidade da dor pública e a figura que se debruçava sobre o túmulo,
era a figura invisível da Pátria.
(...)
É que houve um momento em que o Visconde do Rio Branco foi mais do
que o homem do partido, foi o homem da Nação, a consciência do País;
houve um momento em que lhe coube modelar o futuro de nossa pátria,
deixar o seu cunho por tal forma impresso nos destinos nacionais que,
por mais que este país viva, a história nunca se de esquecer e o seu
lugar nunca há de diminuir.
A lei que disse à escravidão: “Contenta-te com as vítimas do tráfico;
nutre-te do sangue de um milhão e meio de africanos que foste buscar
por meio dos piratas negreiros nos mercados de Guiné e de Angola; mas
não toques no filho de nenhuma escrava, porque ele é um cidadão”,
essa lei, Senhores, é obra sua
177
. [Grifo nosso].
Equívocos de Joaquim Nabuco à parte, sabemos que o acesso à cidadania
por parte dos ex-escravos e os filhos de escravas nascidos após a Lei de 28 de
setembro de 1871 estaria longe de se concretizar. Sobre a questão da cidadania
Chalhoub afirma que
Na segunda metade do século XIX, o problema era definir os direitos
políticos dos descendentes de escravos. Após a lei de 1871, havia o
temor de que os filhos de escravas nascidos livres em virtude da lei
viessem a adquirir cidadania plena ao atingir a maioridade, tornando-se
agentes formais do mundo político. A solução à brasileira desse
problema combatida e criticada por intelectuais de proa, como Joaquim
Nabuco e Machado de Assis, foi elidir critérios raciais de exclusão e
passar a exigir com modos rigorosos de aferiçãoa capacidade de ler
e escrever para a qualificação de eleitores (Lei de Reforma Eleitoral de
177
Annaes do Parlamento. Sessão de 03 de novembro de 1880.
80
1881). Numa penada milhares e milhares de descendentes de
escravos viram-se alijados da política formal nas décadas seguintes
178
.
A falta do envolvimento dos escravos na questão era clara aos olhos de
Nabuco e deveria ter uma compensação “simbólica”, representada na figura do
Visconde do Rio Branco, na tentativa, talvez, de conter as agitações nas ruas,
restringindo a “questão do elemento servil” ao Parlamento, dando para ela um
encaminhamento político, que era, indubitavelmente, o maior objetivo de Joaquim
Nabuco.
Nabuco sabia perfeitamente que o encaminhamento político dado à
questão da emancipação total dos escravos era bastante complexo e girava em
torno de interesses múltiplos. Segundo Sidney Chalhoub, há, nesse caso, o
conflito entre os princípios da primazia da liberdade e o da defesa irrestrita do
direito de propriedade privada
179
.
Para esse historiador, esse é um dos eixos fundamentais do debate a
respeito do encaminhamento político, que se devia dar à “questão servil” na
segunda metade do século XIX. Afinal, discutir a liberdade dos escravos,
significava interferir no pacto liberal da defesa da propriedade privada e, além
disso, era a própria organização das relações de trabalho que estava em jogo.
Chalhoub faz a observação de que o assunto era delicado, porque nele cintilava o
perigo de desavenças ou de rachas mais sérios no interior da própria classe dos
proprietários e governantes
180
.
A Lei de 28 de setembro de 1871 não se referia apenas à liberdade dos
nascituros e ao direito de formação de pecúlio por parte dos escravos. A Lei
178
CHALHOUB, Sidney. Solidariedade e liberdade: sociedades beneficentes de negros e negras
no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX. IN: Quase-cidadão: histórias e antropologias
da pós-emancipação no Brasil. Org. Flavio dos Santos Gomes e Olivia Maria Gomes da Cunha.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, p. 220.
179
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na
Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 99.
180
Idem, p. 99.
81
implicava também na prática de controle social que estava contida, mesmo que
começando a se corroer, nas mãos dos senhores. Ainda apoiado em Machado de
Assis, utilizando aqui mais uma de suas frases, Sidney Chalhoub lembra muito
bem que
Um dos pilares da política de controle social na escravidão era o fato de
que o ato de alforriar se constituía numa prerrogativa exclusiva dos
senhores. Ou seja, cada cativo sabia perfeitamente que excluídas as
fugas e outras formas radicais de resistência, sua esperança de
liberdade estava contida no tipo de relacionamento que mantivesse com
seu senhor particular. A idéia aqui era convencer os escravos de que o
caminho para a alforria passava necessariamente pela obediência e
fidelidade em relação aos senhores.
181
A Lei de 28 de setembro de 1871 tirou a batuta das mãos dos senhores e a
transferiu para o Estado, principalmente em relação às alforrias, legalizando o
direito do escravo, quanto à formação do pecúlio para a compra de sua liberdade,
“carinhosamente” apelidada pelos fazendeiros paulistas de “alforria forçada”
182
.
A chamada Lei do Ventre Livre minou aos poucos a autoridade moral do
senhor sobre o escravo e, conseqüentemente, do regime escravagista. Em Rio
Claro, a partir de 1871, o padrão das alforrias viu-se claramente afetado por
condições estranhas aos limites das fazendas. Uma onda de alforrias teve lugar
em 1871 e 1872, quando 30 escravos foram libertados, sem dúvida, segundo
Warren Dean, em decorrência da aprovação da Lei do Ventre Livre. Esse
historiador afirma que
Outra enxurrada de 38 alforrias ocorreu em 1878-79, durante a crise de
crédito e a ocorrência um súbito aumento nas compras de escravos no
mercado interprovincial. Nessas circunstâncias, tornou-se de repente
necessário levantar dinheiro rapidamente, surgindo as primeiras
transferências de escravos. Em Rio Claro a primeira alforria desse tipo
ocorreu em 1876. Maria Luiza Ferraz libertou um escravo chamado José,
pelo qual recebeu 2000 mil-réis de Antonio Galdino de Oliveira, um dos
181
Ibidem, p. 100.
182
Não apenas os fazendeiros utilizaram-se do termo, mas também diversos deputados paulistas
defensores de um período mais longo para a extinção da escravidão utilizaram-no,
freqüentemente, em seus discursos. Ver Annaes da Assembléia Legislativa da Província de São
Paulo.
82
filhos do Visconde de Rio Claro, o qual assinou então um contrato
separado com José, que deveria trabalhar para ele por 600 mil-réis por
ano, até liquidar aquela soma. Nessa mesma época, alguns escravos
abriram contas na Vara dos Órfãos com o objetivo de comprar a própria
liberdade. Seis deles conseguiram pagar seu preço em 1879, com
pecúlios
183
.
A Lei de 1871 veio dar um grande golpe no sistema escravagista, ao
legalizar as chamadas “alforrias forçadas” e libertar o ventre, lembrando a
prerrogativa da devida indenização ao senhor. Segundo a historiadora Elciene
Azevedo, os debates mais acirrados em torno deste projeto diziam respeito à
indenização dos senhores, que se veriam privados dos “frutos” gerados por seus
ventres escravos. O projeto foi aprovado com a prerrogativa aos senhores de
escolherem entregar as crianças com oito anos de idade a uma instituição pública
e receber 600$000 réis como indenização, ou manter o nascituro sob seu domínio
até os 21 anos de idade, usufruindo de seus serviços
184
.
Como o trabalho de uma pessoa jovem tinha um valor maior do que os
títulos, que seriam resgatados com desconto, os senhores quase sempre
preferiam conservar os ingênuos; e essa decisão não tinha, em determinados
casos, intuitos egoístas. Afinal, Rio Claro, como nos mostra Warren Dean,
Não contava com instituições que pudessem tomar conta dos pupilos do
Estado, e pelo menos as crianças ficavam com os pais. Em alguns
aspectos o estatuto legal dos ingênuos era observado integralmente. Os
registros locais não mostram a venda de qualquer ingênuo e, quando
acompanhavam suas mães, não se estabelecia um preço mais elevado.
Em um testamento em que um avaliador incluíra ingênuos como parte de
um inventário, o escrivão passara um risco por essa parte,
acrescentando o comentário “sem efeito”. Ingênuos, como os escravos
adultos, eram registrados de acordo com a Lei de 1871. Os ingênuos
podiam facilmente liquidar a vida ao dono de sua mãe, pagando a
quantia correspondente aos 600 mil-réis do título
185
.
183
DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977, p. 131.
184
AZEVEDO, Elciene. O direto dos escravos: lutas jurídicas e abolicionistas na Província de São
Paulo na segunda metade do século XIX. Campinas: UNICAMP, 2003, p. 96. [tese-doutorado em
História]. Conferir, também, entre outros, CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. Uma história
das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
185
DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977, p. 134.
83
É claro que dar valor aos serviços dos ingênuos e omitir a condição dos
filhos das escravas nascidos após 1871 foram mecanismos de adaptação à
legislação vigente a fim de evitar prejuízos ao patrimônio escravista. O valor dos
serviços prestados era uma forma de avaliar o uso da força de trabalho de
indivíduos que poderiam, compulsoriamente, ser utilizados na produção até os 21
anos de idade e, junto à omissão deliberada da condição de ingênuos para
algumas crianças, pode significar que, na prática, a situação dos filhos das
escravas não havia mudado tanto quanto objetivava a lei
186
.
Esses ingênuos não recebiam salários e permaneciam sujeitos à disciplina
das plantações, com exceção da aplicação de castigos físicos excessivos. Eles
eram considerados livres, na medida em que houvesse uma intervenção por parte
dos pais ou quando as autoridades interviessem em favor desses indivíduos
menores de 21 anos de idade.
2.2. Benedito e o longo caminho para a liberdade.
Nas décadas de 1870 e 1880, os escravos cada vez mais buscavam
legitimar os seus direitos através da justiça. Os tribunais, portanto, acabavam se
tornando arenas de lutas jurídicas cada vez mais eficazes nos caminhos em
busca da liberdade. Para isso utilizaram-se, os escravos, do respaldo de homens
letrados para intercederem por eles nos tribunais em favor da liberdade
187
.
186
TEIXEIRA, Heloísa Maria. Reprodução e famílias escravas em Mariana (1850-1888). São
Paulo: Dissertação [Mestrado em História Econômica] – FFLCH - USP, 2001, p. 70.
187
Conferir, entre outros as ações movidas por um desses letrados bastante conhecido, chamado
Luiz Gama, bem como sua trajetória em São Paulo. MENUCCI, Sud. O precursor do abolicionismo
no Brasil. Luiz Gama. São Paulo: Nacional, 1938. AZEVEDO, Elciene. Orfeu de carapinha: A
trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp,
1999.
84
Pensando dessa forma, Benedicto, escravo de Dona Maria Joaquina da
Conceição vinha desde 1873 juntando seu pecúlio.
O processo de ação de liberdade envolvendo Benedicto é discreto e diz
pouca coisa de seu protagonista. Menciona apenas a sua idade e sua cor na data
em que deu entrada com a ação de liberdade: Benedicto teria “38 annos”, e era
de “cor preta”
188
.
A iniciativa de Benedicto em começar a juntar pecúlio mostra que os
escravos não estavam alheios ao que se passava nos mais diversos setores da
sociedade. Dessa forma, as estratégias não ficariam restritas apenas ao campo
das relações entre escravo e senhor, tendo como baliza um comportamento
específico, mesmo no que diz respeito às compras das alforrias. A Lei de 28 de
setembro de 1871 possibilitou aos cativos novas estratégias para transformar seu
estatuto jurídico, além de utilizarem as ações judiciais como um novo mecanismo
para ascender socialmente à condição de liberto.
Foi pensando dessa forma que Benedicto, em 1876, fez um depósito em
juízo de 153$000 (cento e cinqüenta e três mil réis) e, em 1877, outro depósito de
75$000 (setenta e cinco mil réis), totalizando 228$000 (duzentos e vinte e oito mil
réis), registrado no cartório do Senhor Tito Belizário. Ora, de acordo com o artigo
4º da Lei nº 2040 de 28 de setembro de 1871
É permitido ao escravo a formação de um pecúlio com o que lhe provier
de doações, legados e heranças, e com o que, por consentimento do
senhor, obtiver do seu trabalho e economias. O governo providenciará
nos regulamentos sobre a collocação e segurança do mesmo pecúlio
189
.
Benedicto era uma dos muitos exemplos de que os escravos estavam
atentos ao que se passava no País. O fato dele começar a juntar pecúlio desde
188
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor. Benedicto, escravo de Dona Maria
Joaquina da Conceição. Processo nº 008 Caixa CCR 38/153 – 1885/1886.
189
Collecção de Leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro. 1872.
85
1873 é uma forma de mostrar que os escravos viam na Lei de 1871 uma outra
possibilidade para se alcançar a tão sonhada liberdade. Tendo o escravo a soma
suficiente para indenizar seu preço ao senhor – a manumissão forçada passava a
ser um direito expresso em lei, o que efetivamente fazia diferença
190
.
Dessa forma, a Lei de 28 de setembro de 1871, constituiu-se em
instrumento fundamental para a saída do cativeiro, uma vez que, como afirma
Chalhoub, os senhores não poderiam impedir no quotidiano, que os escravos
fizessem suas economias, e depois não poderiam se negar a conceder-lhes a
alforria por indenização de preço, porque tal direito dos negros ficava estabelecido
no artigo 4.º, § 2.º, da lei de 28 de setembro. Apesar das ambigüidades e
vacilações do texto, havia agora chances mais reais de os escravos atingirem a
alforria, mesmo contra a vontade dos senhores
191
.
Sabemos perfeitamente que, apesar de diversas estratégias dos escravos
para conseguirem suas alforrias, antes de 1871, todos os atos relacionados à
alforria dependiam, em grande medida, da vontade do senhor. Após esse ano,
principalmente com a promulgação da Lei nº 2040 de 28 de setembro, houve uma
maior intervenção do Estado e da justiça, principalmente em casos de impasse.
Até certo ponto, continuavam privativas de ambas as partes a negociação do
preço para a compra da alforria, porém para a obtenção do pecúlio, era
necessário o consentimento do senhor mas, no quotidiano dos escravos,
principalmente os de ganho, era extremamente difícil o senhor ter um controle
rígido sobre o cativo, principalmente nos anos que antecederam a abolição.
Assim ocorreu com Benedicto, lembrando que houve um depósito de
153$000 (cento e cinqüenta e três mil réis) no ano de 1876 e outro no valor de
75$000 (setenta e cinco mil réis) no ano de 1877, totalizando 228$000 (duzentos
190
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na
Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 158.
191
Idem, p. 158.
86
e vinte e oito mil réis)
192
. Os documentos não explicam o longo espaço de tempo
decorrido para que Benedicto entrasse com a ação de liberdade.
Benedicto teve sua ação de liberdade impetrada no dia 29 de abril de 1885
e tinha como curador o Doutor Salvador Meyer de Vasconcelos. A senhora de
Benedito, Dona Maria Joaquina da Conceição não concordou com a quantia
apresentada por ele e pediu um valor exorbitante para a época, 1:200$000 (um
conto e duzentos mil réis)
193
. Segundo Warren Dean, o preço médio de um
escravo do sexo masculino, no ano de 1885, com idade entre 15 e 29 anos, era
de 870$000 (oitocentos e setenta mil réis)
194
. Kátia Mattoso revela que o preço do
escravo é um jogo de variáveis, algumas das quais totalmente alheias ao próprio
escravo e outras, ao contrário, intimamente ligadas à sua pessoa. O preço do
escravo depende da concorrência, da distância entre o porto de embarque e o
ponto de venda, da especulação, da conjuntura econômica, depende ainda de
sua idade, sexo, saúde e de sua qualificação profissional
195
.
De acordo com Mattoso, diversas transformações ocorreram no interior do
sistema escravista durante a segunda metade do século XIX, como a proibição do
tráfico de escravos, que contribuíram para a elevação dos preços dos cativos; e
que, posteriormente, na década de 1880, houve uma considerável baixa
196
. Para
Mattoso esse período
É de inflação galopante entre 1850 e 1869 data do fim da Guerra do
Paraguai seguida de um declínio inflacionário que vai até os anos de
192
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor. Benedicto, escravo de Dona Maria
Joaquina da Conceição. Processo nº 008 Caixa CCR 38/153 – 1885/1886.
193
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor. Benedicto, escravo de Dona Maria
Joaquina da Conceição. Processo nº 008 Caixa CCR 38/153 – 1885/1886.
194
DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977, p. 125.
195
MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3. Ed. 2003, p. 77-78.
196
A essa baixa se deve a algumas práticas de escravos de se tornarem imprestáveis, recusando-
se a trabalhar ou executando mal as tarefas, depreciando seu próprio valor de mercado, e dando
origem a longas querelas senhoriais entre comprador e vendedor acerca da boa e da qualidade
do escravo negociado; além da imigração de trabalhadores europeus começar a se intensificar
nas regiões produtoras de café em São Paulo. Ver, principalmente, MATTOSO, Kátia de Queirós.
Ser escravo no Brasil. 3. Ed. 2003.
87
1880, sobrevindo então certa estabilidade nos últimos anos do Império.
(...) O preço do cativo atinge seu ápice nos anos 1860 e 1870, para logo
baixar sensivelmente, após a década de 80
197
.
Benedicto estava com “38 annos”, e não poderia ser aplicado à ele o valor
pedido por Dona Maria Joaquina, pois, sua capacidade de produção era menor do
que a de um homem com 25 anos de idade.
Diante desse impasse, Benedicto foi enviado para a avaliação, e a partir,
justamente desse ponto, houve uma maior intervenção da justiça nas compras
das alforrias pelos próprios escravos.
Chalhoub mostra que
Havia primeiramente a chance de um entendimento informal e, caso as
partes se acertassem quanto ao preço, bastava ir ao cartório registrar a
alforria; não havendo acordo nessa tentativa inicial, o escravo se fazia
acompanhar por uma pessoa livre e partia para a ação judicial, sendo
freqüente que as partes alcançassem um entendimento antes que se
fizesse necessário o arbitramento através de peritos
198
.
Como reza o parágrafo 2º do artigo 4º da Lei de 28 de setembro de 1871,
O escravo que por meio de seu pecúlio, obtiver meios para
indemnização de seu valor, tem direito a alforria. Se a indemnização não
for fixada por acordo, o será por arbitramento. Nas vendas judiciaes ou
nos inventários o preço da alforria será o da avaliação
199
.
Personagens que circulam bastante por entre as páginas do processo são
os curadores de Benedicto. Primeiramente quem aparece como curador de
Benedicto é Salvador Meyer de Vasconcelos até a nomeação dos avaliadores,
sendo eles, por Dona Maria Joaquina da Conceição: Estevam Xavier de
197
MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3. Ed. 2003, p. 93.
198
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na
Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 161-162.
199
Collecção de Leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro. 1872.
88
Negreiros, Joaquim Firmino de Oliveira e Claudio Luiz da Silva Braga; pelo
Curador de Benedicto: Francisco Leite da Fonseca Jr., Fernando da Costa Pinho
e Francisco de Arruda Sampaio; e pelo juiz, José Barbosa dos Santos
200
.
Ao estudar as ultimas décadas da escravidão na Corte, Chalhoub explica
que cada parte indicaria um perito para realizar a avaliação do escravo. No
entanto
Se as avaliações fossem díspares, o juiz apontaria um terceiro perito que
tinha de escolher qual das duas avaliações lhe parecia mais justa. Esse
terceiro perito não podia simplesmente tirar a média das duas avaliações
anteriores; ele tinha de se decidir por uma delas. Esse método talvez
impedisse que os peritos das partes oferecessem avaliações descabidas
– para mais ou para menos -, pois isso diminuiria suas chances de vitória
no desempate
201
.
Pois bem, me parece que a sorte do nosso personagem não andava das
melhores. A história de Benedicto começou a mudar em 22 de julho de 1885, e
passou a caminhar para um final feliz, quando houve a substituição de seu
curador. Salvador Meyer de Vasconcelos pediu dispensa por ter que se mudar
para Belém do Descalvado e foi substituído pelo Doutor Job Marcondes Rezende.
Como num passe de mágica, o processo de Benedicto, que andava a passos de
tartaruga, começou a dar uma guinada.
Diversos historiadores demonstraram a importância que tiveram os
advogados na libertação de escravos
202
, fazendo, portanto, do Direito e da Justiça
uma arena de luta contra o regime escravagista.
200
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor. Benedicto, escravo de Dona Maria
Joaquina da Conceição. Processo nº 008 Caixa CCR 38/153 – 1885/1886.
201
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na
Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 163.
202
Cf. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão
na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os
significados da liberdade no sudeste escravista Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1998. GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no
tempo de Antonio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. AZEVEDO,
Elciene. O direto dos escravos: lutas jurídicas e abolicionistas na Província de São Paulo na
89
Ao assumir a causa de Benedicto em 22 de julho de 1885, uma avaliação
foi marcada para o dia 25 do mesmo mês, porém os avaliadores não se
apresentaram para fazer a referida avaliação, muito menos a senhora de
Benedicto, Dona Maria Joaquina da Conceição. O curador de Benedicto, Doutor
Job Marcondes Rezende apresentou um requerimento no dia 03 de agosto de
1885 que dizia:
Por seu Curador, diz o libertando Benedicto, na acção de liberdade por
indemnização e valor, que não tendo realizado as intimações dos
arbitradores Joaquim Firmino de Oliveira, Francisco Leite da Fonseca
Junior e Estevam Xavier de Negreiros para prestarem juramento e
avaliarem o supplicante. Requer o mesmo a V.S. digne-se
comparecerem na Sala da Camara no dia 8 do corrente mez, as 11
horas da manhã, afim de prestarem juramento e avaliarem o supplicante
intimando-se igualmente a sua senhora D. Maria Joaquina da Conceição
para apresentar á elle supplicante no mesmo dia, lugar e hora refferidos
afim de ser avaliado
203
.
Uma nova avaliação foi marcada para o dia 8 de agosto de 1885, porém
nessa nova avaliação ocorreu o mesmo episódio da avaliação anterior: não
compareceram os avaliadores e nem Dona Maria Joaquina. O curador de
Benedicto tomou, então, uma medida drástica; apresentou um novo requerimento
para “que seja realizada uma diligencia e sejam intimados os mesmos
avaliadores, mais Dona Maria Joaquina da Conceição no dia 14 do corrente mez
sob penna de multa de 50$000 a 100$000”
204
. Esse foi o último documento do
processo correspondente ao ano de 1885.
Os documentos voltaram um ano depois. E quem um ano estava viva,
no dia 19 de agosto de 1886 já era falecida. Há no processo uma nota de
segunda metade do século XIX. Campinas: UNICAMP, Tese [Doutorado em História], 2003. Entre
outros.
203
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor. Benedicto, escravo de Dona Maria
Joaquina da Conceição. Processo nº 008 Caixa CCR 38/153 – 1885/1886.
204
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor. Benedicto, escravo de Dona Maria
Joaquina da Conceição. Processo nº 008 Caixa CCR 38/153 – 1885/1886.
90
falecimento de Dona Maria Joaquina Conceição que deixou filhos menores
205
.
Dona Maria Joaquina era uma senhora proprietária de escravos com uma
mentalidade tipicamente escravista da época. Perdigão Malheiro em seu clássico
A escravidão no Brasil mostra a ilegitimidade da escravidão perante as leis natural
e divina, porém o jurista reconhece a legalidade da posse de escravos, do direito
consumado da propriedade escravista e, conseqüentemente, da indenização
pela perda desse mesmo direito
206
.
Com a palavra o nosso grande jurista:
Concordo em que o Direito absoluto, desconhecendo inteiramente a
propriedade-escravo, nega o direito à indenização; também concordo em
que esta solução tem a grande vantagem de não onerar os Cofres
Públicos com uma despesa avultadíssima. Porém a questão não deve
ser decidida e julgada segundo o Direito Natural, nem somente pelas
vantagens ou ônus dos Cofres Públicos. A escravidão não vive e existe
senão pela lei positiva, que a reconheceu, legitimou, manteve, e tornou-
se para bem dizer cúmplice. Segundo ela, o escravo é uma verdadeira
propriedade, coisa, possuído e sujeito a transações como tal, sob a fé,
garantia e salvaguarda da mesma lei. É, pois, de inteira justiça humana
que seja ela respeitada em todas as suas conseqüências, e portanto
também quanto à indenização, que é não de rigorosa justiça em tal
caso, mas de eqüidade; quase que uma desapropriação por utilidade
pública, ou humanitária na expressão de Lamartine
207
.
Mais adiante, utilizando-se de um sólido conhecimento jurídico-filosófico,
Perdigão Malheiro conclui que
Os serviços do escravo pertencem a seu senhor por toda a vida do
escravo; e é nisto que consiste verdadeiramente o seu domínio; é um
direito adquirido pelo senhor; a lei não lho pode arbitrariamente tirar.
Reduzir o prazo é, pois, reduzir esse direito, é desapropriar; é além disto,
alterar os direitos adquiridos de terceiros por virtude de hipotecas,
penhores, ou outros títulos. A indenização é, portanto, em tese devida
mesmo em tal caso (de redução de prazo), embora se estabeleçam
205
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor. Benedicto, escravo de Dona Maria
Joaquina da Conceição. Processo nº 008 Caixa CCR 38/153 – 1885/1886.
206
PENA, Eduardo Spiller. Pajens na casa imperial: jurisconsultos, escravidão e a Lei de 1871.
Campinas: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2001, p. 310.
207
MALHEIRO, Perdigão. A escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico, social. Petrópolis:
Vozes, 1976, p. 164-165.
91
regras especiais para ela; o contrário é ilusório, um verdadeiro
sofisma
208
.
Perdigão Malheiro via, então, a escravidão como legal, amparada pelo
Direito Positivo, mesmo reconhecendo sua ilegitimidade. Eduardo Spiller Pena,
em uma incansável busca por documentos que versam sobre essa questão, foi
bastante feliz ao encontrar uma fala de Perdigão Malheiro no Parlamento, como
deputado, quando na sessão de 12 de julho de 1871, saiu às turras com o
Visconde do Rio Branco. O deputado-jurista tenta, nessas palavras explicar a sua
aparente incoerência.
(...) eu mostrei que o escravo era propriedade, mas propriedade por
direito civil; e portanto a escravidão, embora ilegítima, é legal, se a lei a
mantém.
Quem conhece o direito sabe perfeitamente que ilegitimidade e
ilegalidade importam duas idéias muito distintas. Isto dizia o direito
romano: Nec semper quod licet honesto um est [nem sempre o que é
lícito, é honesto]
209
.
Voltemos, então, aos maiores interessados nessas questões, Benedicto e,
não mais naquele momento entre os vivos, Dona Maria Joaquina. Claramente
Dona Maria Joaquina estava defendendo a sua “propriedade” amparada em lei e,
pela perda dessa “propriedade”, desejava ela ser indenizada por um valor que,
segundo ela, era justo.
mencionamos anteriormente que a sorte de Benedicto começou a
mudar. Certamente, no caso de Benedicto, a demora da justiça em julgar seu
caso foi um ponto positivo para o desfecho da sua história. Outro fato que
beneficiou Benedicto foi o falecimento de Dona Maria Joaquina durante o
andamento do processo. A morte de Dona Maria Joaquina foi o fato mais
importante que aconteceu na vida de Benedicto. Ora, em 1885 e mais adiante
208
Idem, p. 165.
209
Annaes do Parlamento. Sessão de 12 de julho de 1871. Apud PENA, Eduardo Spiller. Pajens
na casa imperial: jurisconsultos, escravidão e a Lei de 1871. Campinas: Editora da UNICAMP,
Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2001, p. 310.
92
1886, a base legal de todo o sistema escravagista estava em plena
“decomposição”
210
e a avareza de Dona Maria Joaquina em defesa da
propriedade era um empecilho para Benedicto transformar seu estatuto social e
ascender à liberdade.
Como desfecho dessa complicada história, no mesmo dia da nota de
falecimento de Dona Maria Joaquina, o Dr. Job Marcondes Rezende, curador de
Benedicto, claramente não respeitando as dores fúnebres da família da finada,
apresentou o seguinte requerimento:
Por seu curador diz o libertando Benedicto, no arbitramento para a
indenização de seu valor, que depois de houver-se nomeado e aprovado
louvados, falleceu sua senhora Dona Maria Joaquina da Conceição, e
que então é o termo da causa proceder-se a habilitação dos herdeiros de
sua senhora para com eles continuar nos termos do processo. Mas
tendo-se de fazer inventário dos bens da mesma finada no juízo de
orphão, por ter deixado herdeiros menores, quer o supplicante tratar de
sua liberdade em dito inventário por ser mais fácil e expedito, o que não
succede si tiver de promover a habilitação refferida, que é muito mais
demorada. Para assim proceder, se faz mister que o supplicante se
habilite, perante o Juiz de Orphãos, colher os documentos
comprobatoriais do seu pecúlio.
São João Baptista do Rio Claro, 19 de agosto de 1886
O Curador do Libertando
Dr. Job Marcondes Rezende
211
No dia 20 de agosto de 1886, o juiz Joaquim José Madeira proferiu sua
sentença declarando livre “o preto Benedicto pelo depósito em juízo da quantia de
163$000”
212
. O valor arbitrado ficou abaixo do valor depositado por Benedicto,--
para quem não se recorda, 228$000 (duzentos e vinte e oito mil réis) -, e muito
aquém do valor proposto por Dona Maria Joaquina.
210
Isso mesmo meus caros, decomposição”, como um corpo morto sendo corroído e
dilacerado, esperando apenas que os vermes o reduzam ao pó, o que ocorre em 13 de maio de
1888.
211
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor. Benedicto, escravo de Dona Maria
Joaquina da Conceição. Processo nº 008 Caixa CCR 38/153 – 1885/1886.
212
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor. Benedicto, escravo de Dona Maria
Joaquina da Conceição. Processo nº 008 Caixa CCR 38/153 – 1885/1886.
93
De acordo com a documentação Benedicto não foi avaliado, pois em todo o
processo não sequer um auto de avaliação. Durante o andamento de uma
ação de liberdade o escravo o deveria ficar em companhia de seu senhor. Por
qual razão Dona Maria Joaquina emperrou o andamento do processo envolvendo
Benedicto? Indubitavelmente era o valor da indenização e o desejo de lucrar com
a alforria de sua “propriedade”.
Em meio a tantos mistérios que estamos a cavar eis que, também, no dia
20 de agosto de 1886 foi emitido um documento indenizando Benedicto com parte
do sítio pertencente aos herdeiros de Dona Maria Joaquina, sua ex-senhora
213
.
Certamente determinados fatos mudaram a sorte de Benedicto,
melhorando-a. Primeiro: a troca de curador foi fundamental para a ação tomar o
rumo que tomou. Segundo: o falecimento de sua senhora. Quanto aos mistérios
deixados pelas lacunas da documentação e as razões de Benedicto ter comprado
sua alforria por um valor abaixo do esperado e, mais ainda, ter sido indenizado
com parte do sítio de sua ex-senhora ficarão sem respostas.
2.3. As doenças ‘chronicas’ aos dezoito ‘annos’ de idade.
As estratégias utilizadas por escravos e curadores nos caminhos rumo à
liberdade foram das mais variadas. É sabido que determinadas leis foram
promulgadas no sentido de beneficiar e proteger os senhores proprietários de
escravos, porém, apresentavam brechas e lacunas que permitiriam aos escravos
utilizarem-se das mesmas brechas e lacunas nos tribunais para saírem da
condição social de escravos.
213
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor. Benedicto, escravo de Dona Maria
Joaquina da Conceição. Processo nº 008 Caixa CCR 38/153 – 1885/1886.
94
Lucimar Felisberto dos Santos afirma, categoricamente, que ser escravo
significava antes de tudo, um estatuto jurídico, que se caracterizava por não ter o
indivíduo a posse de sua liberdade
214
. Portanto, ao conseguir a sua liberdade por
meio da alforria, o indivíduo daria um importante passo para ascender
socialmente dentro de uma sociedade com mentalidade tipicamente escravocrata.
Mas os caminhos para a tão sonhada liberdade não eram fáceis. Os
escravos enfrentavam, muitas vezes, verdadeiros calvários por um longo período
de tempo, como ocorreu com Benedicto. Mas para a escrava Marcelina os
caminhos para a liberdade, com uma breve parada na barra tribunal, foram menos
tortuosos que o do personagem anterior.
Marcelina, através de seu curador Raphael Ferraz de Sampaio, entrou com
uma ação de liberdade por indenização de valor no dia 19 de julho de 1886. Em
seu primeiro requerimento escreve:
Diz a parda Marcelina, escrava do Major João Alves da Silva Cruz, que
possuindo a quantia de 200$000 que exibe é sufficiente para indenizar a
seo senhor ao preço justo da sua liberdade, que aos termos do art. §
2º da Lei nº 2040 de 28 de setembro de 1871 ser declarada livre. Requer
portanto a V. S. que com meio manda citar ao seo senhor para na
primeira audiencia vir accordar sobre o preço de seo valor. Na falta de
accordo para nomear e approvar avaliadores que arbitram a indenização
sob penna de revelia.
São João Baptista do Rio Claro, 19 de julho de 1886.
Por seu curador, Raphael Ferraz de Sampaio.
215
Não ficou claro nos autos se o curador de Marcelina era advogado ou um
astuto rábula, pois juntamente com o requerimento fez um pedido de dados da
214
SANTOS, Lucimar Felisberto dos. Cor, identidade e mobilidade social: crioulos e africanos no
Rio de Janeiro. (1870-1888). Niterói: UFF, 2006, [Dissertação Mestrado em História Social], p.
47.
215
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor. Marcelina, escrava do Major João Alves
da Silva Cruz. Processo nº 007 – 1886 Caixa CCR 1 40/153 – 1886.
95
matrícula de Marcelina. Esta escrava foi matriculada sob o número 1135 de
propriedade do Major João Alves da Silva Cruz, onde também consta:
Nome da escrava, Marcelina; sexo, feminino; cor, parda; idade, dezoito
annos; estado, solteira; aptidão física, trabalho apta; profissão,
lavadoura; lugar em que foi matriculada pela primeira vez, São Paulo,
município de São Sebastião; data da matricula, vinte e hum de agosto de
mil oitocentos e setenta e does; numero de ordem da matricula,
tresentos e quarenta e oito; data da averbação, 07 de março de 1878.
Nada mais consta.
São João Baptista do Rio Claro, 20 de abril de 1886
216
.
Curiosamente o curador de Marcelina fez mais um depósito de 100$000
(cem mil réis) no dia 21 de julho de 1886. Não se sabe a procedência do dinheiro,
nem o porquê do referido depósito, e na audiência da tarde do mesmo dia o
curador apresentou a quantia de 300$000 (trezentos mil réis)
217
.
Na audiência do dia 28 de julho de 1886, os esclarecimentos prestados
pelo Major João Alves da Silva Cruz indicam que não era possível entrar em
acordo com a parda Marcelina sobre o preço de sua indenização. A justificativa
utilizada pelo Major foi de que
Achando-se a escrava hypothecada a herança do finado Manoel Alves
de Oliveira, em cuja divida tem perante os orphãos, não pode por isso
transigir com o preço da mesma, requerendo, portanto que este seja
dado por meio de louvados na forma da lei
218
.
Os processos de ação de liberdade movidos na Comarca de São João
Baptista do Rio Claro são um tanto confusos. Chegam a faltar documentos em
meio aos processos por desorganização das autoridades da época ou mesmo dos
arquivos.
216
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor. Marcelina, escrava do Major João Alves
da Silva Cruz. Processo nº 007 – 1886 Caixa CCR 1 40/153 – 1886.
217
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor. Marcelina, escrava do Major João Alves
da Silva Cruz. Processo nº 007 – 1886 Caixa CCR 1 40/153 – 1886.
218
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor. Marcelina, escrava do Major João Alves
da Silva Cruz. Processo nº 007 – 1886 Caixa CCR 1 40/153 – 1886.
96
Os documentos não revelam quem foi Manoel Alves de Oliveira, mas os
autos e os depoimentos deixam claros que o Major João Alves da Silva Cruz tinha
uma dívida com o finado e hipotecou a escrava Marcelina, assegurando essa
dívida, que após o falecimento de Manoel Alves de Oliveira ficou com seus filhos.
Porém, em nenhum momento se menciona o valor da referida dívida.
Como não houve acordo inicial, Marcelina, assim como Benedicto, foi para
avaliação de peritos.
Pelo curador da parda Marcelina o offerecidos Sérgio Gurgeo Baptista
Cotrim, Carlos Eduardo de Oliveira e Benedito Leite de Freitas Junior.
Pelo senhor de Marcelina são offerecidos Jacyntho Frederico Moreira,
Antonio Augusto Guimarães e Joaquim José de Sá. Mais Antonio Leite
Ferraz pelo juiz
219
.
Como no processo de Benedicto dentre os três peritos oferecidos seria
escolhido um de cada parte; pelo curador de Marcelina o escolhido foi Benedito
Leite de Freitas Junior, pelo senhor de Marcelina o escolhido foi Joaquim José de
Sá. O terceiro perito, aquele apontado pelo juiz, indicaria a avaliação que lhe
parecesse mais justa. Esse terceiro perito não poderia simplesmente tirar a média
das duas avaliações anteriores, ele tinha que decidir entre uma delas. Chalhoub
lembra bem que esse método talvez impedisse que os peritos das partes
oferecessem avaliações desproporcionais – para mais ou para menos
220
.
Mas o astuto curador, antes que se realizasse a avaliação, apresentou um
atestado médico assinado pelo Doutor Alipio Meira, dizendo que “tratou por algum
219
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor. Marcelina, escrava do Major João Alves
da Silva Cruz. Processo nº 007 – 1886 Caixa CCR 1 40/153 – 1886.
220
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na
Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
97
tempo na caza do Doutor Paschoal Algieri da escrava Marcelina que soffre de
doença chronica”
221
.
Não é de nosso conhecimento que “doença chronica” seria essa, e nem o
porquê de Marcelina ficar por “algum tempo na caza do Doutor Paschoal Algieri”;
mas os meios utilizados para se obter um valor não muito alto à indenização de
Marcelina pareciam estar dando resultados.
A justiça já deixava a desejar no Brasil oitocentista, e a avaliação de
Marcelina, assim como a de Benedicto, demoraram para serem realizadas, e no
dia 11 de outubro de 1886, Raphael Ferraz de Sampaio, curador de Marcelina,
apresentou o seguinte requerimento:
Diz o curador da libertanda Marcelina, escrava do Major João Alves da
Silva Cruz que havendo sido requerido por este juízo o arbitramento da
mesma libertanda para o fim de sua liberdade, que os louvados
nomeados ainda o procederam a avaliação, juntando a supplicante
requer a V. S. se digne a marcar um prazo aos fins louvados para dentro
dele fazerem a avaliação sob penna de serem multados de 50$000 a
100$000, intimando-se para este fim os louvados.
São João Baptista do Rio Claro, 11 de outubro de 1886.
Pelo curador da libertanda
Raphael Ferraz de Sampaio.
222
A estratégia utilizada pelo curador de Marcelina foi a mesma do curador de
Benedicto, a de fazerem a avaliação sob a pena de multa; e no dia 15 de
novembro de 1886 o curador pediu a substituição do perito Benedito Leite de
Freitas Junior por Marcellino Antonio do Valle
223
.
221
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor. Marcelina, escrava do Major João Alves
da Silva Cruz. Processo nº 007 – 1886 Caixa CCR 1 40/153 – 1886.
222
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor. Marcelina, escrava do Major João Alves
da Silva Cruz. Processo nº 007 – 1886 Caixa CCR 1 40/153 – 1886.
223
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor. Marcelina, escrava do Major João Alves
da Silva Cruz. Processo nº 007 – 1886 Caixa CCR 1 40/153 – 1886.
98
Até o momento se passaram, então, pouco mais de quatro meses e, com
tantas idas e vindas de requerimentos e audiências, a avaliação foi feita e
expedida no dia 19 de novembro de 1886. Segundo os avaliadores em suas
respectivas avaliações:
Nós abaixo assignados avaliadores nomeados juramentados para a
avaliação da escrava Marcelina pertencente ao Major João Alves da
Cruz para sua liberdade por indenização de valor.
Joaquim José de Sá: 500$000
Marcellino Antonio do Valle: 400$000
Antonio Leite Ferraz: concorda com a ultima avaliação de 400$000.
224
Como Marcelina havia feito um depósito de 200$000 (duzentos mil réis)
e outro no valor de 100$000 (cem mil réis), para completar o valor da indenização
atribuída pelos peritos no dia 22 de novembro de 1886 foi realizado o depósito
complementar de 100$000 (cem mil réis). No outro dia, o Major João Alves da
Silva Cruz assinou o recibo da indenização de valor de sua ex-escrava e o juiz
municipal Joaquim José Madeira expediu a sentença concedendo liberdade à
Marcelina.
Bernardina, também com 18 anos e também com problemas de saúde, foi
um pouco mais feliz em sua ação de liberdade, apesar do preço de sua
indenização ficar a quase 60% acima do valor pago pela parda Marcelina por sua
liberdade.
A preta Bernardina, escrava de Leonidas Moreira, entrou com a ação de
liberdade no dia 25 de junho de 1886, prontamente, logo na primeira petição
passou a ser representada pelo curador Dionysio Caio da Fonseca.
224
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor. Marcelina, escrava do Major João Alves
da Silva Cruz. Processo nº 007 – 1886 Caixa CCR 1 40/153 – 1886.
99
Diz a preta Bernardina, escrava de Leonidas Moreira que tendo obtido a
quantia de 600$000 para libertar-se é sufficiente para indenizar o seo
senhor.
A supplicante tem menos de 30 annos e por isso não deve ser avaliada
por mais de 675$000 reis conforme o disposto no art. 3º do regimento de
14 de novembro de 1885; mas pode e deve ser avaliada por menos
attento ao seo estado de saúde que é assaz precário, como pode
attestar qualquer médico que a examine
225
.
De início, o curador de Bernardina pediu a certidão de matrícula, que foi
expedida em 26 de junho de 1886. Bernardina foi matriculada na cidade de São
João Baptista do Rio Claro no dia 14 de agosto de 1872, sendo que, à época,
estava com 4 annos de idade, e era filha de Eulália
226
.
Quando foi matriculada, Bernardina era escrava da, nada menos, avarenta
Dona Maria Joaquina da Conceição. Isso deixa claro que Dona Maria Joaquina
gostava de lucrar com a venda de escravos, talvez isso possa explicar o valor tão
alto da indenização de Benedicto pedido por ela.
Pois bem, os autos o nos mostram as bases da negociação entre Dona
Maria Joaquina e Leonidas Moreira envolvendo a preta Bernardina, nem se ela
passou pelas mãos de outro proprietário. O processo é bastante curto, omite
informações que seriam importantes para se reconstruir a história de Bernardina.
Mas o o processo em si é curto, o espaço de tempo em que ele correu
também foi curtíssimo, pois se passaram apenas cinco dias da data da entrada de
sua ação e o término com a sentença do juiz municipal concedendo a sua
liberdade.
Leonidas Moreira aceitou o valor máximo oferecido por Bernardina, ou seja,
o valor máximo pelo qual Bernardina poderia ser avaliada. E no dia 30 de junho
de 1886 Bernardina fez um depósito de 675$000 (seiscentos e setenta e cinco mil
225
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor. Bernardina, escrava de Leonidas
Moreira. Processo nº 008 – 1886 Caixa CCR 1 40/153 – 1886.
226
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor. Bernardina, escrava de Leonidas
Moreira. Processo nº 008 – 1886 Caixa CCR 1 40/153 – 1886.
100
réis). No mesmo dia o senhor de Bernardina assinou o recibo de indenização e o
juiz municipal Doutor José Joaquim Madeira expediu a sentença concedendo a
liberdade à Bernardina
227
.
As estratégias utilizadas pelas escravas e por seus curadores são
semelhantes, mas cada uma com suas peculiaridades e objetivos. No caso de
Marcelina, o atestado assinado pelo médico Alipio Meira surgiu às vésperas do
arbitramento, com a clara intenção de sensibilizar os peritos frente ao seu estado
de saúde, mas também confrontando com as esperanças do senhor em conseguir
um aumento no valor da indenização. Aparentemente o atestado médico teria sido
forjado, uma vez que na certidão de matrícula consta que Marcelina estaria “apta
ao trabalho”
228
.
Portanto, as estratégias tanto de Marcelina e de seu curador, quanto do
seu senhor foram satisfeitas. Ora, se por um lado, Marcelina e seu curador
desejavam que o valor da indenização o tivesse uma alta exagerada, por outro
lado, o senhor tinha a expectativa de obter um aumento do preço da escrava no
mínimo de 20% à 30%.
Quanto ao estado de saúde de Bernardina, ao que parece, era mesmo
precário e seu curador utilizou-se disso para evitar que Bernardina fosse
submetida a uma cansativa prova de avaliações. Além de prontamente
estabelecer um valor, onde, caso fosse submetida a avaliação, seu preço não
poderia ultrapassá-lo. Nesse caso, houve um acordo entre Bernardina e seu
senhor, quanto ao valor oferecido por ela para a indenização.
Em ambos os casos, temos que considerar a astúcia das escravas e de
seus curadores, principalmente do curador de Marcelina, Raphael Ferraz de
227
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor. Bernardina, escrava de Leonidas
Moreira. Processo nº 008 – 1886 Caixa CCR 1 40/153 – 1886.
228
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor. Marcelina, escrava do Major João Alves
da Silva Cruz. Processo nº 007 – 1886 Caixa CCR 1 40/153 – 1886.
101
Sampaio. Percebemos que Raphael Ferraz tinha uma ampla rede de
relacionamentos e isso contribuiu para que a história de Marcelina terminasse da
forma que terminou. O atestado médico e a substituição do perito Benedito Leite
de Freitas Junior por Marcellino Antonio do Valle foram, indubitavelmente,
fundamentais para o desfecho da ação. Quanto a Bernardina e seu curador,
Dionysio Caio da Fonseca, por mais que o valor da indenização tenha sido alto,
evitou-se uma possível avaliação, o que fez com que Bernardina obtivesse sua
liberdade no curtíssimo prazo de cinco dias.
Destacamos também o pecado da avareza de muitos proprietários de
escravos que, com o sistema começando a se dilacerar, continuavam lutando
na tentativa de tirar o máximo proveito da escravidão, até a última gota de
sangue.
2.4. As liberdades condicionais.
Os caminhos para se alcançar a liberdade eram estreitos e os escravos
para chegarem à tão almejada liberdade deveriam, indubitavelmente, se
utilizarem das mais variadas estratégias. Percorrendo esse árduo caminho,
muitos escravos se deparavam com situações difíceis como a “liberdade
condicional”.
Francisca, escrava de Dona Maria Antonia de Godoy Romeira iniciou a
busca por sua liberdade no mês de fevereiro de 1887. Ela teria em seu poder
parte do dinheiro correspondente à indenização de seu valor, e para completar a
soma necessária, realizou um contrato com Francisco Maciel, para que este
arcasse com o restante; em contrapartida, Francisca deveria prestar serviços
durante três anos à Francisco Maciel. Na petição inicial, tendo como curador o
102
Doutor Job Marcondes Rezende, o mesmo do qual Benedicto foi curatelado, este
argumenta:
Diz Francisca, escrava de D. Maria Antonia de Godoy Romeira, residente
neste, que acha-se matriculada na collectoria desta cidade, com 46
annos de idade, em 4 de julho de 1886, com valor venal de 450$000.
Possuindo a supplicante a quantia de 200$000, e querendo libertar-se,
contractou com Francisco Maciel para que este completasse o seu valor,
obrigando-se a supplicante a pagal-o mediante a prestação de serviços
por tres annos, o que foi acceito pelo dito Maciel, que entrou com a
quantia de 241$000.
Exhibindo a supplicante a quantia de 441$000, correspondente ao valor
da nova matricula, feita a dedução de 2% correspondente ao primeiro
caso, em face do art. §§ 1, 2 e 3 do Dec. 9602 de 12 de junho de
1886, requer a V.S. digne-se mandal-a depositar, passar carta de
liberdade a supplicante com a clausula de prestação de serviços por tres
annos a Francisco Maciel, e em seguida intimar sua senhora para
levantar o depósito, devendo a carta de liberdade ser entregue a própria
supplicante.
São João Baptista do Rio Claro, 21 de fevereiro de 1887.
Por seu curador,
Doutor Job Marcondes Rezende.
229
Ora, de acordo com o parágrafo do artigo da Lei nº 2040 de 28 de
setembro de 1871
É, outrosim, permittido ao escravo em favor da sua liberdade, contractar
com terceiro a prestação de futuros serviços por tempo que não exceda
de sete annos, mediante o consentimento do senhor e approvação do
Juiz de Orphãos.
230
Não somente contratos com terceiros moviam as liberdades condicionais. A
condição para a liberdade, como nos mostra Lucimar Felisberto dos Santos,
poderia ser a de servir por longos anos a seu proprietário ou a seus herdeiros
231
.
229
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor Liberdade Condicional-Prestação de
serviços por tres annos. Francisca, escrava de Dona Maria Antonia de Godoy Romeira. Processo
nº 018 – 1887 Caixa CCR 2 41/153 – 1886/1887.
230
Collecção de Leis do Império do Brazil. Rio de Janeiro, 1872.
231
SANTOS, Lucimar Felisberto dos. Cor, identidade e mobilidade social: crioulos e africanos no
Rio de Janeiro. (1870-1888). Niterói: UFF, 2006, [Dissertação Mestrado em História Social], p.
68.
103
Leitores mais desavisados poderiam supor que a situação do escravo não
haveria de mudar. Na prática o indivíduo continuaria a trabalhar, mas por um
período especificamente determinado, para aquela pessoa com quem foi feito o
contrato. Porém, Enidelce Bertin mostra que muitos desses indivíduos eram re-
escravizados
232
.
Sobre as práticas de reescravização, Keila Grinberg argumenta que assim
como foram abundantes as demandas de escravos pela liberdade na justiça do
século XIX, também muitas foram as tentativas feitas por libertos de manter sua
alforria, assim como as ações de reescravização. Segundo Grinberg ao longo do
século XIX, essas práticas foram se tornando cada vez menos legítimas, abrindo
espaço para uma intensa discussão jurídica a respeito da vigência das leis, que
tratavam das ações de escravidão e de revogação da alforria
233
.
Embora os procedimentos jurídicos das ações de manutenção de
liberdade e escravidão fossem diferentes, ambos podem ser aqui
definidos como sendo de reescravização, pois suscitaram debates
distintos daqueles realizados nas ações de liberdade: além da
verificação da veracidade das versões contadas por ambas as partes,
como em qualquer processo, nesses casos tratava-se de discutir em que
medida era possível voltar atrás em um doação de liberdade,
principalmente quando o indivíduo em questão fora libertado muito
tempo
234
.
Ainda, conforme nos mostra Keila Grinberg, ao invés da passagem do
estado da escravidão para o estado de liberdade, que ocorria nas ações de
liberdade, os processos de reescravização tratavam de discutir as possibilidades
e a própria legitimidade da passagem da liberdade para a escravidão
235
.
232
BERTIN, Enidelce. Alforrias na São Paulo do século XIX: liberdade e dominação. o Paulo:
Humanitas/FFLCH/USP, 2004.
233
GRINBERG, Keila. Reescravização, direitos e justiça no Brasil do século XIX. In. LARA, Silvia
Hunold; MENDONÇA, Joseli Maria Nunes (orgs.). Direitos e justiça no Brasil: ensaios de história
social. Campinas: Editora da UNICAMP, 2006, p. 104.
234
Idem, p. 107.
235
Ibdem, p. 107.
104
Nas liberdades condicionais esses indivíduos que ficavam entre a liberdade
e o cativeiro eram conhecidos como statuliber. Sidney Chalhoub e Eduardo Spiller
Pena dedicam parte de seus estudos
236
a analisar o chamado statuliber, é claro
apoiados nos escritos de Perdigão Malheiro. Chalhoub diz que
Perdigão Malheiro esclarece inicialmente que a questão dos escravos
alforriados ou manumitidos “sob condição suspensiva” era um verdadeiro
tormento para legisladores e jurisconsultos no direito romano. Para os
romanos, o statuliber era aquele indivíduo que tinha a liberdade
determinada para um certo tempo, ou dependente de condição”.
Reconhecia-se que esse indivíduo tinha “posição diversa do escravo que
ainda tal se conservava, sem todavia ser havido por plenamente livre”
237
.
Sabemos da fragilidade jurídica referente a esta questão no Brasil
oitocentista. O próprio Perdigão Malheiro admite dificuldades para entender a
questão do statuliber mas, tomando como ponto de referência o Direito Romano,
o jurista argumenta que
O escravo manumitido com um prazo ou termo in diem ou ex die, ou sob
condição suspensiva, era constituído entre os Romanos em posição
diversa do escravo que ainda tal se conservava, sem todavia ser havido
por plenamente livre. Era o que os Romanos denominavam statuliberi,
para designar aqueles que, sendo de feito livres, dependiam de que se
realizasse a condição ou chegasse o dia designado para que o fossem
de direito
238
.
Era como se fizesse uma “escala” no caminho para a liberdade. Francisca
não tinha outra saída, senão contratar com “Francisco Maciel para que este
completasse o seo valor”
239
. Uma das esperanças para se conseguir a tão
almejada liberdade podia passar por essa “escala” nas mesmas daquelas
236
São eles: CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. Uma história das últimas décadas da
escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; PENA, Eduardo Spiller. Pajens na
casa imperial: jurisconsultos, escravidão e a Lei de 1871. Campinas: Editora da UNICAMP, Centro
de Pesquisa em História Social da Cultura, 2001.
237
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na
Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 128.
238
MALHEIRO, Perdigão. A escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico, social. Volume I.
Petrópolis: Vozes, 1976, p. 114.
239
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor Liberdade Condicional-Prestação de
serviços por tres annos. Francisca, escrava de Dona Maria Antonia de Godoy Romeira. Processo
nº 018 – 1887 Caixa CCR 2 41/153 – 1886/1887.
105
condições impostas por Francisco Maciel. Quando este desembolsou a quantia de
241$000 (duzentos e quarenta e um mil réis), para completar o valor da
indenização da preta Francisca, ela estava convicta de que estaria em
liberdade, porém condicional, dependendo de “tres annos de prestação de
serviços a Francisco Maciel”
240
.
Enidelce Bertin revela que nas alforrias condicionais, a restrição à liberdade
dava-se pela imposição de condições a serem cumpridas pelo libertando durante
meses, anos ou até um evento anteriormente determinado
241
.
Francisca foi matriculada pela primeira vez na cidade de Taubaté sob o
número 2.336 no ano de 1872. Foi feita uma nova matricula em São João Baptista
do Rio Claro no ano de 1886 sob o número 86, relação 8, e consta:
Francisca; escrava de Dona Maria Antonia de Godoy Romeira; sexo,
feminino; côr, prêta; quarenta e seis annos de idade; estado, solteira;
filha de Gertrudes; aptidão para o trabalho, apta para o trabalho;
profissão, serviços da roça
242
.
Sendo de serviços da roça, as possibilidades de Francisca obter pecúlio
eram das mais difíceis, se ficasse restrita ao meio rural. Mas sabemos
perfeitamente que as possibilidades de o escravo obter pecúlio nos limites
urbanos eram as mais variadas, principalmente no que diz respeito ao sexo
feminino.
Em ambiente estrategicamente determinado pela elite rioclarense, em meio
a casarões que se erguiam no sertão da província paulista, fruto dos recursos
240
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor Liberdade Condicional-Prestação de
serviços por tres annos. Francisca, escrava de Dona Maria Antonia de Godoy Romeira. Processo
nº 018 – 1887 Caixa CCR 2 41/153 – 1886/1887.
241
BERTIN, Enidelce. Alforrias na São Paulo do século XIX: liberdade e dominação. o Paulo:
Humanitas/FFLCH/USP, 2004, p. 91.
242
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor Liberdade Condicional-Prestação de
serviços por tres annos. Francisca, escrava de Dona Maria Antonia de Godoy Romeira. Processo
nº 018 – 1887 Caixa CCR 2 41/153 – 1886/1887.
106
financeiros advindos com o café, além do progresso trazido pela linha férrea
inaugurada há mais de uma cada anterior a data em que Francisca entrou com
sua ação de liberdade -, mulheres, em sua maioria circulavam pelo centro da
cidade, vendendo os mais diversos produtos, desde alimentos a manufaturas
243
.
Francisco Maciel residia na cidade de o João Baptista do Rio Claro em
seus limites urbanos, portanto, uma mudança do meio rural para o meio urbano
seria vantajosa para Francisca, pois poderia ter uma fonte de renda. Além dos
serviços que estaria prestando à Maciel, poderia estar utilizando-se dessa renda
para indenizar o seu “bem feitor” e antecipar a sua liberdade plena.
Os contratos a prazo eram uma espécie de auto-alforria à prestação, e os
pecúlios consistiam em geral de dinheiro ganho com o trabalho ou emprestado e
não doado. Em Rio Claro, como nos mostra Warren Dean, de 1877 a 1884, essas
formas de pagamento da liberdade pelos próprios escravos constituíam cerca de
metade para o total dos adultos, e de 1885 a 1887, cerca de dois terços
244
.
Em estudo sobre a cidade de São Paulo no século XIX, Maria Odila Leite
da Silva Dias observa que avultava na cidade a disponibilidade de uma mão-de-
obra feminina, que os comerciantes não queriam e as raras manufaturas
aproveitavam mal
245
. De acordo com essa historiadora, brancas, pobres, escravas
e forras faziam o comércio mais pobre e menos considerado, que era o dos
gêneros alimentícios, hortaliças, toucinho e fumo
246
.
Rio Claro não se diferenciava da Capital da Província, tanto em seu
aspecto social quanto econômico. A elite e os jornais da época comemoravam as
conquistas da cidade e se gabavam afirmando que São João Baptista do Rio
243
Diário do Rio Claro, 2 de fevereiro de 1887.
244
DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977, p. 134.
245
DIAS, Maria Odila L. S. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo:
Brasiliense, 1995, p. 23.
246
Idem, p. 23.
107
Claro era a terceira cidade de maior importância para a Província de São
Paulo
247
.
Condicionada, portanto, a sua liberdade, Francisca fez o depósito para
indenizar sua senhora no dia 22 de fevereiro de 1887 no valor de 200$000
(duzentos mil réis), e quitou o seu valor total no dia 2 de março de 1887,
depositando o restante do valor de 241$000 (duzentos e quarenta e um mil réis) –
aquele desembolsado por Francisco Maciel -, perfazendo um total de 441$000
(quatrocentos e quarenta e um mil réis). A sentença concedendo a sua liberdade
foi expedida pelo juiz municipal no dia da quitação, 3 de março de 1887.
Nessa história há, ainda, um ponto de interrogação jurídico. Francisca,
quando de sua ultima matricula em 1886, tinha um valor venal estipulado em
450$000 (quatrocentos e cinqüenta mil réis) e seu preço caiu para 441$000
(quatrocentos e quarenta e um mil réis); houve, portanto, a dedução de 2% do
valor correspondente e referente a essa questão não apenas o artigo em seus
parágrafos 1, 2 e 3 do Decreto nº 9602 de 12 de junho de 1886 rezava sobre
casos assim. Em 1885, com a promulgação da Lei de 3270 de 28 de setembro,
conhecida como a Lei Saraiva-Cotegipe, apelidada de a Lei dos Sexagenários
pois regulava a liberdade dos escravos maiores de 60 anos -, casos dessa
espécie já estariam regulamentados. A Lei em seu artigo 3º e parágrafo
determinava:
Art. Os escravos inscriptos na matricula serão libertados mediante
indemnização de seo valor pelo fundo de emancipação ou por qualquer
outra forma legal.
§1º Do valor primitivo com que fôr matriculado o escravo se deduzirão:
No primeiro anno....................................................................................2%
No segundo............................................................................................3%
No terceiro..............................................................................................4%
No quarto................................................................................................5%
No quinto................................................................................................6%
247
O Século XIX. 1 de setembro de 1886.
108
No sexto.................................................................................................7%
No setimo...............................................................................................8%
No oitavo................................................................................................9%
No nono................................................................................................10%
No decimo............................................................................................10%
No undecimo........................................................................................12%
No decimo segundo..............................................................................12%
No decimo terceiro...............................................................................12%
Contar-se-há para esta dedução annual qualquer prazo decorrido seja
feita a libertação pelo fundo de emancipação ou por qualquer outra forma
legal
248
.
Menos sorte tiveram as meninas Francisca e Virgínia, respectivamente de
quinze e nove anos de idade, que, em seus caminhos rumo à liberdade
esbarraram com um espertalhão que se utilizou de todos os meios possíveis para
continuar a usufruir dos serviços das meninas.
Francisca e Virginia eram escravas do esperto Elias de Almeida Leite, e
entraram com uma ação de liberdade por não constarem no registro de matricula,
conforme o artigo 1º parágrafo 2º da Lei de 28 de setembro de 1885. E como reza
o referido artigo e, para melhor compreensão seus três primeiros parágrafos:
Art. 1º Proceder-se-ha em todo o Imperio a nova matricula dos escravos,
com declaração do nome, nacionalidade, sexo, filiação, si fôr conhecida,
occupação ou serviço em que fôr empregado, idade e valor, calculado
conforme a tabella do § 3º.
§ A inscripção para a nova matricula far-se-ha á vista das relações
que serviram de base á matricula especial ou averbação effectuada em
virtude da Lei de 28 de setembro de 1871, ou á vista das certidões da
mesma matricula, ou da averbação, ou á vista do titulo do domino,
quando nelle estiver exarada a matricula do escravo.
§ 2º Á idade declarada na antiga matricula se addicionará o tempo
decorrido até o dia em que for apresentada na Repartição competente a
relação para a matricula ordenada por esta Lei.
A matricula que fôr effectuada em contravenção ás disposições dos §§
e será nulla, e o Collector ou Agente Fiscal que a effectuar
incorrerá em uma multa de cem mil réis a tresentos mil réis, sem prejuízo
de outras penas em que possa incorrer.
248
Collecção de Leis do Império do Brazil. Rio de janeiro: 1886.
109
§ O valor a que se refere o art. será declarado pelo senhor do
escravo, não excedendo o máximo regulado pela idade do matriculando,
conforme a seguinte tabella:
Escravos menores de 30 annos....................................................900$000
Escravos de 30 a 40 annos...........................................................800$000
Escravos de 40 a 50 annos...........................................................600$000
Escravos de 50 a 55 annos...........................................................400$000
Escravos de 55 a 60 annos.......................................................200$000
249
Era o ano de 1887. Francisca e Virginia estariam, respectivamente, com
“quinze annos de idade” e “nove annos de idade”
250
. Francisca e Virginia eram
filhas da também escrava de Elias de Almeida Leite, a preta Luiza , que teria dado
a luz à Francisca no ano de 1872 e à Virginia no ano de 1878, portanto, após a
promulgação da Lei de 28 de setembro de 1871, a chamada Lei Rio Branco, mais
conhecida como a “Lei do Ventre Livre”. Em seu artigo primeiro, a Lei instituía que
“os filhos da mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta Lei
serão considerados de condição livres”
251
. Mais adiante, em seu parágrafo
primeiro, abria uma grande lacuna, beneficiando os proprietários de escravos. As
primeiras linhas do referido parágrafo diz:
Os dictos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos
senhores de suas mães, os quais terão obrigação de crial-os e tratal-os
até a idade de oito annos completos.
Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá a
opção, ou de receber do Estado a indemnização de 600$000, ou de
utilisar-se dos serviços do menor até a idade de 21 annos completos
252
.
Francisca e Virginia não deveriam, de forma, alguma terem sido
matriculadas como escravas, que tinham nascido na condição jurídica de
“livres”. Elias de Almeida Leite era, portanto, o tutor das meninas e não o senhor,
uma vez que a mãe delas, a preta Luiza, ainda era sua escrava.
249
Collecção de Leis do Império do Brazil. Rio de janeiro: 1886.
250
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor Liberdade Condicional. Francisca e
Virginia, escravas de Elias de Almeida Leite. Processo 013 1887 Caixa CCR 1 43/153
1887/1888.
251
Collecção de Leis do Império do Brazil. Rio de janeiro: 1872.
252
Collecção de Leis do Império do Brazil. Rio de janeiro: 1872.
110
Estamos diante de um sistema complexo, de leis mal interpretadas, de uma
justiça falha e, principalmente de um avaro e esperto proprietário de escravos. No
dia 7 de junho de 1887, Elias de Almeida Leite apresentou um requerimento ao
juiz municipal:
Diz Elias de Almeida Leite que havendo sido intimado do despacho de
V.S. para offerecer de direito os autos de liberdade, digo, os autos em
que as libertas Francisca e Virginia requerem a sua liberdade allegando
não ter o supplicante dado os seus nomes a matricula de conformidade
com o art. 1º § 7º da Lei de 28 de setembro de 1885, vem por meio deste
declarar a V.S.ª que com data de 28 de julho de 1880 por escriptura
publica nas vistas do Tabelião Molina concedera-lhes liberdade com a
condição porém de prestar serviços ao supplicante durante a sua vida,
como si ve pelo documento juncto. Determinando a citada a que se
proceder a matricula das escravas existentes no Imperio esclaro que
as supplicadas não deviam ser matriculadas por estarem libertas desde
o anno de 1880, embora com condição de prestação de serviços, e o
supplicante incorreria no crime de reduzir pessoas livres ao captiveiro si
as matriculasse. O supplicante requer, pois, que junctando-se a presente
e o documento incluso aos autos, digne-se V.S.ª não deferir a petição
das referidas libertas.
Rio Claro, 2 de junho de 1887
Elias de Almeida Leite
253
A escritura de liberdade, que se encontra no processo, está datada no dia
23 de março de 1887, possivelmente foi uma transcrição da primeira de 1880, ou
uma esperta estratégia de Elias de Almeida Leite frente à ação de liberdade que
as meninas moviam contra ele.
Escriptura de liberdade que passa Elias de Almeida Leite a favor de suas
escravas Francisca e Virginia, como abaixo se declara.
Saibão quantos esta escriptura virem que no anno do nascimento do
Nosso Senhor Jesus Christo de mil oito centos e oitenta, aos vinte e oito
de julho, nesta cidade de Rio Claro, em meu Cartorio, apareceu Elias de
Almeida Leite, deste municipio, lavrador, conhecido meu e das
testemunhas adiante assignadas, perante as quais por elle foi dito, que
livre e espontaneamente concede liberdade a suas escravas Francisca,
preta, filha de Luiza, solteira, de quinze annos mais ou menos de idade e
Virginia sua irmã, preta de nove annos mais ou menos de idade. [ilegível]
253
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor Liberdade Condicional. Francisca e
Virginia, escravas de Elias de Almeida Leite. Processo 013 1887 Caixa CCR 1 43/153
1887/1888.
111
(...) cuja liberdade lhe infere com a condição de acompanhar a elle
outorgante durante sua vida e prestar-lhe durante ella os serviços
compatíveis com a sua idade e façam gosando plena liberdade depois
de seu fallecimento.
Rio Claro, 23 de maio de 1887.
254
Alguns pontos do documento estão ilegíveis, mas como estamos a cavar
mistérios nos sentimos felizes com as pistas que temos.
Não sabemos se as informações contidas na carta de liberdade, que
passou Elias de Almeida Leite à Francisca e Virginia são verídicas. Consta nesse
documento duas datas distintas, 28 de julho de 1880 e 23 de maio de 1887.
Diante dessas informações temos inúmeras dúvidas. Qual a verdadeira data do
documento? E principalmente, qual a verdadeira idade das duas meninas? Não
nos resta dúvidas, de que Elias de Almeida Leite era um espertalhão bastante
influente e com uma ampla rede de relacionamentos, que se viu diante de uma
situação em que poderia perder sua mão-de-obra.
A justificativa encontrada foi, portanto, a de que Francisca e Virginia não
deveriam ter sido matriculadas, uma vez que estariam elas “libertas desde o anno
de 1880”, com a condição de prestação de serviços por toda a vida de Elias de
Almeida Leite.
Curiosamente não menção de curador algum representando as
meninas, como se as menores sozinhas estivessem impetrando uma ação em
favor de suas liberdades.
Com um cenário montado, estrategicamente, para favorecer Elias de
Almeida Leite, o “proprietário” das meninas, seria fácil prever a sentença do juiz
municipal José Joaquim Madeira, que foi expedida no dia 14 de junho de 1887.
254
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor Liberdade Condicional. Francisca e
Virginia, escravas de Elias de Almeida Leite. Processo 013 1887 Caixa CCR 1 43/153
1887/1888.
112
Achando-se libertas condicionalmente as requerentes não poderiam ser
matriculadas, visto acharem-se obrigadas a prestação de serviços,
conforme a escriptura de liberdade constando nos autos junctos, não
tem, portanto, lugar o que as libertas requerem.
Rio Claro, 22 de junho de 1887
Joaquim José Madeira
255
A história de Francisca e Virginia nos mostra como, em determinados
momentos, pessoas das classes desfavorecidas tinham acesso às leis, é claro em
caráter puramente hierárquico. Thompson analisando a sociedade inglesa do
século XVIII, faz observações sobre o que ele chamou de o domínio da lei, que
deveria se caracterizar por sua imparcialidade, sendo que, para ele, o domínio da
lei é apenas uma máscara do domínio de uma classe
256
.
A história é confusa e cheia de enigmas e, por que não dizer, de falcatruas
levantadas por Elias de Almeida Leite. Está claro que as meninas desconheciam
essa escritura de liberdade, mas a duvida maior é quanto à idade das meninas na
data de entrada da ação de liberdade.
Como havíamos mencionado anteriormente, se Francisca tivesse quinze
anos de idade e Virginia nove naquele ano de 1887 já seriam consideradas livres;
porém se as informações contidas na escritura de liberdade fossem verídicas – de
que Francisca e Virginia teriam essas idades no ano de 1880 o caso dava uma
reviravolta, é claro em favor de Elias de Almeida Leite. Mas se as informações
tivessem sido forjadas, caracterizar-se-ia um desrespeito à Lei de 28 de setembro
de 1871, a qual viria beneficiar as meninas.
255
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor Liberdade Condicional. Francisca e
Virginia, escravas de Elias de Almeida Leite. Processo 013 1887 Caixa CCR 1 43/153
1887/1888.
256
THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987, p. 350.
113
Os caminhos para a liberdade estavam à frente de cada indivíduo
submetido ao cativeiro, mas o acesso a eles era difícil e os inimigos que iriam
encontrar eram muitos, visíveis ou invisíveis, concretos ou abstratos; Francisca e
Virginia esbarraram em todos eles.
2.5. Estratégias matrimoniais e solidariedade nas ações de liberdade.
Somente nos últimos anos os estudos sobre a família escrava vêm
ganhando uma maior atenção por parte de historiadores da escravidão no Brasil.
Entre os estudos de maior destaque está o de Robert Slenes, Na senzala uma
flor: esperanças e recordações da família escrava Brasil Sudeste, século XIX,
onde esse historiador observa o papel exercido pela família cativa no processo de
desestabilização do sistema escravista, tendo como baliza a herança cultural
africana para as possíveis representações que os cativos faziam de suas próprias
experiências
257
.
Segundo a historiadora Hebe Mattos
A família nuclear e a rede de relações pessoais e familiares a ela ligada
permanecem essenciais na experiência dos homens livres por todo o
século XIX, como havia sido no período colonial. Também para os
escravos, a obtenção de maiores níveis de autonomia dentro do cativeiro
parece ter dependido, em grande parte, das relações familiares e
comunitárias que estabeleciam com outros escravos e homens livres da
região
258
.
257
Além de SLENES, Robert. Na senzala uma flor: esperanças e recordações da família escrava –
Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, ver entre outros: FARIA, Sheila
de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1998; ALVES, Mauricio Martins. Formas de viver: formação de laços parentais entre
cativos em Taubaté (1680-1848). Rio de Janeiro: UFRJ, 2001. [Doutorado em História].
258
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: o significado da liberdade no sudeste escravista
– Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 64-65.
114
De acordo com Robert Slenes, experiências e heranças culturais em
comum acabaram se sobrepondo, ainda na primeira metade do século XIX, às
forças que promoviam a introversão familiar, pelo menos nas plantations do
Sudeste, criando instituições cruciais para a formação de solidariedades e
identidades escravas
259
.
Ora, a formação de um tronco familiar, com laços de sangue e parentesco
cerimonial, era indispensável para a emergência de uma estável classe de cor,
pois as instituições legais e econômicas fundavam-se na família
260
. Em Rio Claro,
segundo Dean, é provável que existisse alguma forma de organização social além
do casal escravo, no seio da população cativa, mas disso quase não restou
sinal
261
.
Se uma possível formação familiar se mostrou importante no Brasil
oitocentista, as estratégias matrimoniais de escravos na tentativa de ascender
socialmente ao status de libertos se mostraram bastante eficazes. Agostinho e
Miliana, escravos de Joaquim Corrêa de Negreiros, utilizaram-se dessa estratégia
matrimonial em seus caminhos rumo à liberdade, quando, em 10 de janeiro de
1887, apresentaram uma ação de liberdade por indenização de valor.
Dizem Agostinho e Miliana, escravos de Joaquim Corrêa de Negreiros
que o primeiro supplicante tendo de idade 31 annos é seu valor venal o
da segunda classe do art. do dec. 9517, de 14 de novembro de 1885,
que com o rebate de 2% se reduz a quantia de 784$000 art. § 1 da
Lei de 28 de setembro de 1885 e como é permitida a liberalidade
directa de terceiro Lei cit. art. § 9 a segunda supplicante offerece
em favor de seu marido o capital de 200$000 em depósito como prova a
certidão juncta. Esta quantia com a de 584$000 que o primeiro
supplicante exhibe perfazem 784$000 – preço de sua liberdade.
259
SLENES, Robert. Na senzala uma flor: esperanças e recordações da família escrava Brasil
Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 17.
260
DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977, p. 89.
261
Idem, p. 89. Warren Dean argumenta ainda que “as crianças com freqüência eram afastadas
dos pais e vendidas. Os livros de escravos mostram que eles eram separados das mães aos oito
anos de idade, quando já se mostravam capazes de executar algum trabalho”.
115
Requerem portanto a V. S.ª que, depositado o dinheiro intimem-se o
senhor dos supplicantes para levantar o preço e que se passe carta de
liberdade ao primeiro supplicante
262
.
O processo é bastante curto e percebe-se a praticidade com que foi levado.
Não consta nome de curador algum. um pedido de certidão de matricula feito
pelo próprio Agostinho, que foi expedida no dia 12 de janeiro de 1887. Matriculado
sob o número 831, consta na certidão:
Agostinho; sexo, masculino; cor, parda; idade, trinta e hum annos;
estado, cazado; filiação, filho de Helena; aptidão para o trabalho, apto
para o trabalho; profissão, pajem
263
.
Ao que parece, Agostinho era dotado de certo conhecimento jurídico, pois
ele próprio tomou frente a sua ação. prontamente um acordo feito com seu
senhor referente à quantia apresentada pelo casal, induzido pelo arcabouço
jurídico lançado mão na petição inicial. Se a estratégia matrimonial se fazia
importante para se conseguir a liberdade, no campo do Direito, as estratégias
jurídicas se faziam necessárias; Agostinho e Miliana se utilizaram de ambas as
estratégias.
Mesmo os autos estando obscuros, ou seja, não oferecendo clareza em
suas argumentações, no dia 15 de janeiro de 1887, o juiz municipal concedeu a
liberdade conjunta ao casal Agostinho e Miliana pelo valor de 784$000
(setecentos e oitenta e quatro mil réis)
264
, com Miliana recebendo sua liberdade
juntamente com seu marido Agostinho.
Temos que levar em conta, também, que Joaquim Corrêa de Negreiros não
estava colocando empecilhos nas ações de liberdade movidas por seus escravos.
262
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor - Agostinho e Miliana, escravos de
Joaquim Corrêa de Negreiros. Processo nº 007 – 1887 Caixa CCR 2 41/153 – 1886/1887.
263
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor - Agostinho e Miliana, escravos de
Joaquim Corrêa de Negreiros. Processo nº 007 – 1887 Caixa CCR 2 41/153 – 1886/1887.
264
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor - Agostinho e Miliana, escravos de
Joaquim Corrêa de Negreiros. Processo nº 007 – 1887 Caixa CCR 2 41/153 – 1886/1887.
116
De família tradicional na cidade de São João Baptista do Rio Claro, Joaquim
Corrêa de Negreiros era dono da firma Corrêa & Filhos, era também proprietário
do preto Antonio, que no mesmo mês daquele ano de 1887, entrou com uma ação
de liberdade por indenização de valor ao seu senhor, ou à firma de seu senhor.
Diz Antonio, escravo da Firma Corrêa & Filhos, que desejando ser
declarado liberto exhibe para esse fim a quantia de 900$000 e requer a
V.S.ª que depositada a quantia recebida em mãos a quem V.S.ª julgar
conveniente manda citar a Joaquim Corrêa de Negreiros representante
daquella firma expedindo-se ao supplicante a respectiva carta de
liberdade.
São João do Rio Claro, 8 de janeiro de 1887
Por seu curador
Raphael Ferraz de Sampaio.
265
Ao contrário de Agostinho e Miliana, Antonio na primeira petição,
apresentou-se através do curador Raphael Ferraz de Sampaio, oferecendo a
quantia de 900$000 (novecentos mil réis) como indenização de seu valor à Firma
Corrêa & Filhos, certamente de propriedade de Joaquim Corrêa de Negreiros.
No mesmo dia, Raphael Ferraz de Sampaio, curador de Antonio fez um
pedido da certidão de matrícula de Antonio, que foi matriculado sob o número
1710 na cidade de São João Baptista do Rio Claro no ano de 1872, e como
consta:
Antonio; sexo, masculino; cor, preta; idade, quatorze annos de idade;
estado, solteiro; filiação, filho de Bernardino e Felicidade; aptidão para o
trabalho, apto para o trabalho; profissão, da roça.
266
Antonio estava com 14 anos de idade no ano da matricula, portanto no ano
de 1887 estaria com 29 anos de idade. Tinha um núcleo familiar efetivo, com pai e
mãe e isso, certamente, teve profunda influência para o desfecho dessa história.
265
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor - Antonio, escravo de Joaquim Corrêa de
Negreiros. Processo nº 008 – 1887 Caixa CCR 2 41/153 – 1886/1887.
266
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor - Antonio, escravo de Joaquim Corrêa de
Negreiros. Processo nº 008 – 1887 Caixa CCR 2 41/153 – 1886/1887.
117
E, mais uma vez, assim como na ação de Agostinho e Miliana, Joaquim José
Corrêa de Negreiros o ofereceu resistência à liberdade de Antonio. Dotado de
um espírito empreendedor, Joaquim Corrêa de Negreiros talvez estivesse
prevendo o colapso do sistema escravagista em um futuro próximo.
Da mesma forma, que Agostinho e Miliana, Benedicto e sua mulher
Ignácia, escravos da herança de Dona Maria Inocência de Athayde entraram com
uma ação de liberdade por indenização de valor no dia 7 de maio de 1887.
Dizem os escravos Benedicto e Ignácia, matriculados na collectoria
desta cidade, pertencentes a herança de Dona Maria Innocencia de
Athayde, o primeiro com 44 annos e o segundo com 39 annos, como se
mostra com a inclusa certidão de matricula, que querem libertar-se
mediante a exhibição de seu valor legal, que é para cada um dos
supplicantes de 588$000, attentos as disposições do art. do dec.
9517, de 14 de novembro de 1885, e art. §§ e do Dec. 9602
de 12 de junho de 1886.
Os supplicantes usando, pois do direito que lhes é reconhecido pelas leis
sobre o elemento servil exhibem a presente quantia de 1:176$000, e
requerem a V.S.ª digne-se mandal-a depositar em poder de pessoa
idonea, e que com a devida venda que impetrasse seja citado o herdeiro
Manoel Joaquim de Athayde, sob cujo poder se acham os supplicantes,
para vir levantar e receber o depósito, passando-se a carta de liberdade
aos supplicantes.
São João do Rio Claro, 7 de maio de 1887.
Por seu Curador.
Doutor Job Marcondes Rezende.
267
Logo de início, Benedicto e Ignácia, em sua primeira petição, estão
representados por um curador, o nosso conhecido Doutor Job Marcondes
Rezende. Esse curador era bastante astuto e prontamente fez um pedido da
cópia da certidão de matrícula, a qual foi expedida no dia 24 de maio de 1887, e
como consta na certidão de Benedicto:
267
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor - Benedicto e Ignácia, escravos da
herança de Dona Maria Innocencia de Athayde. Processo 023 1887 Caixa CCR 1 43/153
1887/1888.
118
Benedicto; sexo, masculino; cor, preta; idade, 44 annos; estado, cazado;
filiação, desconhecida; aptidão para o trabalho, apto para o trabalho;
profissão, serviços da lavoura.
268
Benedicto teria sido matriculado na cidade de São João Baptista do Rio
Claro, no dia 27 de setembro de 1886, sob o número 174. Na certidão de Ignácia
consta:
Ignácia; sexo, feminino; cor, parda; idade, 39 annos; estado, cazada;
filiação, filha de Francisco e Gertrudes; aptidão para o trabalho, apta;
profissão, serviços da lavoura.
269
Ignácia também foi matriculada na cidade de São João Baptista do Rio
Claro, no mesmo dia em que foi efetuada a matrícula de Benedicto, 27 de
setembro de 1886, sob o número 175. Ambos, como constam nas certidões,
tiveram seus valores venais estipulados em 600$000 (seiscentos mil réis).
Utilizando-se dos meios jurídicos, o curador conseguiu a dedução de 2%
no valor de cada escravo, estando seus valores agora em 1:176$000 (um conto,
cento e setenta e seis mil réis), em vez de 1:200$000 (um conto e duzentos mil
réis). Feito o depósito desse valor no dia 24 de maio de 1887, no dia 10 de junho
de 1887, o juiz municipal Joaquim José Madeira expediu a sentença julgando
liberto o casal de escravos.
Julgo por sentença libertos os escravos Benedicto e sua mulher de nome
Ignácia, pertencentes a herança de Dona Maria Innocencia de Athayde,
visto terem depositado o valor correspondente a suas liberdade, como
tudo consta nos presentes autos, para que se possam entrar no gozo de
seus direitos.
São João do Rio Claro, 10 de junho de 1887.
268
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor - Benedicto e Ignácia, escravos da
herança de Dona Maria Innocencia de Athayde. Processo 023 1887 Caixa CCR 1 43/153
1887/1888.
269
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor - Benedicto e Ignácia, escravos da
herança de Dona Maria Innocencia de Athayde. Processo 023 1887 Caixa CCR 1 43/153
1887/1888.
119
Joaquim José Madeira.
270
Certamente, o fato de estarem constituídos em famílias teve um peso
grande nessas ações de liberdade, e os escravos utilizaram-se desse argumento
como instrumento e estratégia para alcançarem a liberdade contribuindo para
isso, também, a aprovação da Lei nº 1695 de 15 de setembro de 1869, que
proibia a separação da família por venda ou doação.
As ações de liberdade analisadas envolvendo cativos, que mantinham
laços matrimoniais ou filhos que ainda estavam em cativeiro, sempre tiveram suas
sentenças favoráveis, além de não sofrerem obstrução por parte dos senhores. A
parda Margarida, por exemplo, escrava de Agostinho Leme do Prado, de “49
annos de idadee era “cazada com o liberto Matheus de 63 annos de idade”,
comprou sua liberdade, com a ajuda do companheiro por um preço relativamente
baixo para os padrões da época: 75$000 (setenta e cinco mil réis)
271
.
A família nuclear deve ter sido um forte atrativo para a ocasional conquista
da estabilidade sob a forma de contratos anuais. De acordo com Warren Dean,
isso permitia a alguns libertos ultrapassar a condição de servos e juntarem-se aos
imigrantes na transformação do regime de grandes lavouras na década de
1880
272
.
Existia, portanto, um jogo de interesses nessas alforrias. Os senhores
concediam as alforrias para não perder mão-de-obra potencial em determinados
postos de trabalho na pujante lavoura cafeeira.
270
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor - Benedicto e Ignácia, escravos da
herança de Dona Maria Innocencia de Athayde. Processo 023 1887 Caixa CCR 1 43/153
1887/1888.
271
AHMRC. Acção de liberdade por indenização de valor - Margarida, escrava de Agostinho Leme
do Prado. Processo nº 031 – 1886 Caixa CCR 1 41/153 – 1886/1887.
272
DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977, p. 81.
120
Percebemos, então, que nos últimos anos em que vigorou a escravidão no
Brasil, particularmente na cidade de Rio Claro, os senhores acatavam essas
“alforrias forçadas” conjuntas, como última tentativa de manter certo número de
trabalhadores em determinados postos de serviços, uma vez que, mesmo com a
crescente chegada de trabalhadores estrangeiros, alguns postos de trabalho não
seriam ocupados pelos imigrantes. A ocupação desses postos de trabalho por
indivíduos com núcleo familiar estruturado seria, portanto, mais seguro que pelo
jovem negro ex-escravo - solteiro e itinerante.
121
CAPÍTULO 3
O DIFÍCIL ACESSO À CIDADANIA.
Embora a mudança de status social não significasse uma mudança brusca
de vida, nem a rápida ascensão social, a condição de liberto vinha a solidificar
determinados padrões de trabalho e de vida. Está claro que a mentalidade da elite
dos cafeicultores da região de Rio Claro tendeu a deixar a massa desses libertos
à margem da economia de exportação, resistindo à integração ao sistema
produtivo.
Diversos historiadores enfatizaram a dependência desses homens livres
dos grandes proprietários de terras, principalmente nas zonas cafeeiras. É
indiscutível a condição subalterna e subordinada dos homens livres na sociedade
escravista, porém, de acordo com Maria Odila Leite da Silva Dias, as relações de
dependência no conjunto da população dos marginalizados era certamente mais
fluida do que deixam entrever alguns autores. Segundo essa historiadora, com
desenvolvimento da economia cafeeira e a intensificação de controle social,
costumes ancestrais de roças volantes transformavam-se em recursos de
resistência à fixação, à dependência pessoal e ao trabalho permanente
273
.
Era uma realidade da época, homens livres destituídos de propriedades
terem uma vida itinerante, uma vez que a lavoura de subsistência implicava
trabalho em determinadas épocas do ano e disponibilidade em outras. Talvez isso
pudesse explicar o menor grau de dificuldade para se conseguir a alforria por
meio da compra por escravos dotados de um núcleo familiar (como Agostinho e
273
DIAS, Maria Odila L. S., Sociabilidades sem história: votantes pobres no Império, 1824-1881.
In. Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 2001, p. 62.
122
Miliana, Benedicto e Ignácia, e Antonio, vistos no capitulo anterior), em relação ao
insucesso das ações de liberdade movidas por outros escravos, despossuídos de
um núcleo familiar efetivo.
Os grandes proprietários praticavam uma intensa política de concentração
de terras, de tal modo que esses indivíduos, ao saírem do cativeiro, pudessem vir
a ser contratados como parceiros ou assalariados e para determinadas
ocupações, pessoas em unidades familiares eram mais vantajoso para os
proprietários de terras. Assim, a propriedade da terra e o trabalho familiar
ocupavam posições fundamentais no contexto de crise do escravismo
274
.
Os proprietários, segundo Hebe Mattos,
estavam de acordo que deviam tentar agir solidariamente, no sentido de
evitar que concorressem entre si pela força de trabalho, inviabilizando
por esse meio alguns dos segmentos de proprietários. As lideranças
abolicionistas consideravam, porém que a simples concessão de alforria
não seria suficiente para impedir a livre movimentação dos libertos, que
já se fazia acentuada e tenderia a aumentar. Para eles, somente o
pagamento de salários garantiria a colheita de 1888 e apenas a parceria
com trabalho familiar fixaria não só o imigrante, mas também o liberto
275
.
As ocupações a que se dedicavam os trabalhadores livres sós eram de
natureza temporária, como transportar tropas, servir como camaradas ou
auxiliares de tropeiro, aceitar empreitadas de derrubadas de matas, preparar
terras ou, sobretudo, contratar-se como jornaleiros em obras públicas
276
.
Não se descarta, eventualmente, a possibilidade do homem vir a migrar
juntamente com sua família; Hebe Mattos e Ana Lugão Rios mostram isso com
clareza no livro Memórias do Cativeiro, para algumas localidades do Rio de
274
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: o significado da liberdade no sudeste escravista
Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. Ver também da mesma autora: Ao sul
da história: lavradores pobres na crise do trabalho escravo. São Paulo: Brasiliense, 1987.
275
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: o significado da liberdade no sudeste escravista
– Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 240.
276
Idem, p. 64.
123
Janeiro
277
, mas, para a região de Rio Claro, a tendência era de que indivíduos
provenientes do cativeiro, membros de um núcleo familiar efetivo, viessem a
ocupar postos de trabalho relegados pelas famílias estrangeiras.
Maria Cristina Cortez Wissenbach argumenta que
A adesão aos padrões de organização social e modo de vida dessa
população heterogênea pelos egressos da escravidão oscilou com
certeza nas diferentes regiões, condicionada, sobretudo, pelas vias
diferenciadas de substituição do trabalho escravo. As variações podem
ser notadas, como por exemplo, entre as áreas cafeeiras. Em
determinadas zonas de São Paulo, onde os colonos estrangeiros,
numericamente abundantes, puderam suprir as necessidades das
plantações comerciais, os trabalhadores negros foram relativamente
dispensados, aderindo ao modo de vida caipira, caboclo, empregando-se
esporadicamente, ou dispersaram-se em direção às cidades
278
.
Após a obtenção da alforria, seja ela forçada ou não, e mesmo após a
abolição legal da escravidão, antigos escravos estavam entrando em um novo
campo, dotado de novas relações de poder, porém, com antigos senhores, ainda
tentando manter certo status quo escravista.
A partir da segunda metade do culo XIX, a manutenção e a restrição
legal do gozo pleno dos direitos civis e políticos aos libertos tornavam o que
atualmente se identifica como ‘discriminação racial’, uma questão crucial na vida
de amplas camadas das populações urbanas e rurais do período
279
. Para Hebe
Mattos
Apesar da igualdade de direitos civis entre os cidadãos brasileiros
reconhecida pela Constituição Imperial de 1824, os brasileiros não-
brancos continuavam a ter até mesmo o seu direito de ir e vir
277
Ver, principalmente, RIOS, Ana Lugão; MATTOS, Hebe. Memórias do cativeiro: família,
trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
278
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Da escravidão à liberdade: dimensões de uma
privacidade possível. IN: História da vida privada no Brasil. Org. Nicolau Sevcenko. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p. 53.
279
MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2000, p. 21.
124
dramaticamente dependente do reconhecimento costumeiro de sua
condição de liberdade. Se confundidos com cativos ou libertos, estariam
automaticamente sob suspeita de serem escravos fugidos – sujeitos,
então, a todo tipo de arbitrariedade, se o pudessem apresentar sua
carta de alforria
280
.
Para esses indivíduos egressos do cativeiro, o acesso à liberdade não
significou o fim imediato da escravidão. Flávio dos Santos Gomes e Olivia Maria
Gomes da Cunha argumentam que a sujeição, a subordinação e a
desumanização, que davam inteligibilidade à experiência do cativeiro, foram
requalificadas num contexto posterior ao término formal da escravidão, no qual
relações de trabalho, de hierarquia e de poder abrigaram identidades sociais, se
não idênticas, similares àquelas que alguns historiadores qualificaram como
exclusivas ou características das relações senhor-escravo
281
.
A liberdade foi experimentada e inventada por esses indivíduos, que não a
conheciam, e não meramente restaurada. Por isso, segundo Flávio dos Santos
Gomes e Olivia Maria Gomes da Cunha, o território da liberdade é pantanoso e
muitos dos sinais, que sacralizaram a subordinação e a sujeição, tornaram-se
parte de um ambíguo terreno no qual, ex-escravos e “livres de cor”, tornaram se
cidadãos em estado contingente: quase cidadãos
282
.
Silvia Lara enfatizou que as ações de escravos e libertos ao longo dos
séculos revelam alguns diferentes significados de liberdade. Às vezes, ser livre
significou poder viver longe da tutela e do teto senhorial ou poder ir e vir sem
controle ou restrições; outras vezes, significou poder reconstituir laços familiares e
mantê-los sem o perigo de ver um membro da família ser comercializado pelo
senhor. Muitas vezes, a liberdade significou a possibilidade de não servir a mais
280
Idem, p. 21.
281
GOMES, Flavio dos Santos; CUNHA, Olivia Maria Gomes da. Que cidadão? Retóricas da
igualdade, cotidiano da diferença IN: Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-
emancipação no Brasil. Org. Flavio dos Santos Gomes e Olivia Maria Gomes da Cunha. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2007, p. 11. Ver, também, MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: o
significado da liberdade no sudeste escravista – Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1998.
282
Idem, p. 13.
125
ninguém, e, aqui, a palavra liberdade adquire dimensões econômicas,
conectando-se à luta pelo acesso à terra: durante a escravidão e depois da
abolição, muitos ex-escravos lutaram para manter condições de acesso à terra
conquistadas durante o cativeiro
283
.
Através das fontes, que consideramos essenciais para as estratégias e
propósitos da pesquisa, como os processos criminais, imprensa e documentos
diversos, buscamos compreender como as marcas simbólicas e físicas não foram
alteradas, mesmo diante de reformas jurídicas e institucionais, e pessoas de cor,
egressas do cativeiro, o foram colocadas em situação de igualdade frente à
sociedade e aos outros cidadãos brasileiros.
Dessa forma, o objetivo deste capítulo será o de avançar no sentido de
recuperar as práticas quotidianas, costumes, solidariedades, resistência, modos
de viver e agir de ex-escravos, no período posterior à abolição da escravidão.
Procurar-se-á revelar dimensões da experiência negra no cativeiro; experiência
essa, que, deu aos ex-escravos noções diferentes de liberdade, concentrando-se
na reconstituição nas formas de organização e das trajetórias de vida de
indivíduos egressos do cativeiro na cidade de Rio Claro.
3.1. Cenas do quotidiano após a abolição: ainda a violência e o “preto”.
Os documentos que registram aspectos da vida quotidiana do homem
pobre, livre e de cor na sociedade brasileira oitocentista é farta e variada, bem
como os estudos historiográficos que, nos últimos anos, vem dando uma maior
atenção a esses homens e mulheres que marcaram o cenário daquele período.
283
LARA, Silvia Hunold. Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil. IN: Revista Projeto
História. São Paulo, nº 16, fev. 1998.
126
Nos capítulos anteriores, através da análise de alguns processos criminais
e ações de liberdade, percebemos a defesa de determinados valores com recurso
até da violência. Observarmos também, a partir do conteúdo de diversas ações de
liberdade, que às vezes o senhor facilitava alforrias forçadas de pessoas
pertencentes a um núcleo familiar efetivo, mostrando claramente, um jogo de
interesses. A história envolvendo o “preto” Jacyntho e Antonio Calixto tem todos
esses ingredientes, e teve início num crime:
No dia 29 de abril [1894] próximo passado, as cinco horas da tarde, mais
ou menos, na dicta fazenda Paraguassú, deste município, o denunciado
desfechou inesperadamente uma espingarda de que se achava armado
sobre o offendido Antonio Calixto, também colono dessa fazenda,
matando-o
284
.
Durante todo o processo Jacynto foi mencionado apenas como “preto”. Não
menção de sobrenome, indicando que determinados termos, que antes eram
atribuídos para indicar a condição jurídica do indivíduo que permanecia submetido
ao regime escravo, continuavam sendo utilizados para identificar um homem que
vivia em liberdade mesmo após a abolição.
Este processo foi carregado de enigmas e obscuridades em determinados
momentos. Porém as testemunhas se esforçaram para reconstituir as cenas do
crime e traçar um perfil dos envolvidos. Na medida em que se lêem os
depoimentos passamos a observar e compreender o funcionamento do mundo
em que viviam aquelas pessoas.
284
AHMRC-OAP. Sumanário de culpa 1894. Processo 019/1894. Caixa: CCR 1893/94 2
56/153. A Justiça - Autora. O preto Jacyntho - Réu.
127
A primeira testemunha arrolada no processo foi Guilherme Golenbick,
“natural da Allemanha, com quarenta e trez annos de idade, cazado,
administrador da fazenda Paraguassú, deste município de Rio Claro”
285
.
Os altos postos de trabalho, como administradores de fazenda, na região
de Rio Claro eram, quase sempre, ocupados por imigrantes. Não a descrição
de Guilherme Golenbick no processo mostra isso, mas também o número de
anúncios em jornais locais da época.
ADMINISTRADOR
Pessoa italiana habilitada para administrar fazenda de café offerece seus
préstimos aos Srs. Fazendeiros.
Dirigir-se ao Sr. Capitão Felisberto Brandão, n’esta cidade, que dará as
verdadeiras referencias
286
.
Sobre o “facto crime” Guilherme Golenbick diz que:
Elle depoente as seis horas da tarde mais ou menos estando junto com
seu ajudante no chiqueiro dos porcos, ouviu o disparo de uma arma de
fogo ao lado da colônia, e logo depois lhe foi avisar o camarada Renato
que o colono preto de nome Jacyntho havia atirado com espingarda no
colono Antonio, vindo elle depoente immeditamente ao lugar
encontrou morto, mas não chegou a avistar o assassino, sabendo que
fora o preto Jacyntho por haverem informado, e porque elle se ocultara
da fazenda deixando ficar a espingarda
287
.
O “por haverem informado” ou o “ouviu dizer” era comum em depoimentos
de testemunhas de crimes no Brasil do século XIX, assim como as expressões
“sabe por ver” e “sabe por ouvir dizer” ou “ser público e notório”. Aos poucos as
testemunhas vão desenhando uma avaliação pública do réu e o que se diz sobre
285
AHMRC-OAP. Sumanário de culpa 1894. Processo 019/1894. Caixa: CCR 1893/94 2
56/153. A Justiça - Autora. O preto Jacyntho - Réu.
286
Diário do Rio Claro. 6 de março de 1894.
287
AHMRC-OAP. Sumanário de culpa 1894. Processo 019/1894. Caixa: CCR 1893/94 2
56/153. A Justiça - Autora. O preto Jacyntho - Réu.
128
o seu perfil moral e propensões, bem como seu envolvimento com o fato em
julgamento
288
.
Guilherme Golenbick mesmo não tendo presenciado o crime de que foi
vitima o colono da fazenda que administrava, Antonio Calixto, afirmou,
categoricamente, que foi o “preto Jacyntho quem cometeu o crime por haverem
lhe informado”
289
.
O testemunho de Renato Calixto é um pouco mais elaborado e nos uma
visão das relações sociais no interior da fazenda Paraguassú, de propriedade do
Dr. Bento Prado, além de detalhar momentos anteriores ao acontecimento do
crime.
Renato Calixto era natural de Itu, tinha “trinta e oito annos de idade; estado,
cazado; profissão, carreiro; empregado do Doutor Bento Prado; residente na
fazenda Paraguassú, neste districto
290
.
Em seu depoimento Renato Calixto disse:
Que hontem as seis horas da tarde, estando dentro de sua caza que é
na fazenda e não na colonia que é distante da mesma, juncto com o
preto José Calixto, pai do assassino Jacyntho, e do lado de fora achava-
se o finado Antonio Calixto com mais outros colonos, elle depoente viu
ahi passar por occasião, que sahio a porta, o preto Jacyntho que se
dirigiu a caza de seu padrinho Felisardo e de lá voltando com uma
espingarda estando elle depoente dentro da caza ouviu um tiro, e viu
seu primo Antonio Calixto offendido, e os que ali se achavão dizendo que
fora Jacyntho que atirara em Antonio com a espingarda que trazia na
mão e que deixou ficar ahi mesmo na fazenda, cuja espingarda, elle
288
VELLASCO, Ivan de Andrade. As redes de solidariedade da cor: o caso dos compadres Manoel
e Laurindo. In. Revista História, São Paulo, v. 25, nº1, p. 147-169, 2006, p. 151.
289
AHMRC-OAP. Sumanário de culpa 1894. Processo 019/1894. Caixa: CCR 1893/94 2
56/153. A Justiça - Autora. O preto Jacyntho - Réu.
290
AHMRC-OAP. Sumanário de culpa 1894. Processo 019/1894. Caixa: CCR 1893/94 2
56/153. A Justiça - Autora. O preto Jacyntho - Réu.
129
depoente ouviu dizer que não é do assassino, mas que lhe havião
mandado entregar a seu próprio pai, o preto José
291
.
O depoimento de Renato Calixto deixou claro o parentesco dele, Renato,
com a vitima, Antonio Calixto: eram primos; e do “preto” Jacyntho com José
Calixto: o segundo era pai do primeiro. Porém, não fica claro se algum
parentesco entre Renato e Antonio Calixto com Jacyntho e JoCalixto. Mesmo
tendo sobrenomes idênticos, tanto Renato e Antonio, assim como José que
tinham Calixto em seus sobrenomes, seria imprudente afirmar algum grau de
parentesco entre eles, uma vez que muitos libertos terminavam adotando o
sobrenome de seus antigos senhores, o que fazia com que muitos tivessem o
mesmo sobrenome, sem, necessariamente, fazer parte da mesma família
292
.
Quanto a Felisberto, padrinho de Jacyntho não há, nos autos, indicação de quem
seja ele, além de padrinho do réu.
Ao que tudo indica, tendo grau de parentesco ou não, aqueles indivíduos
tinham relações bastante próximas, pois poderiam, no período em que viveram
em cativeiro, pertencer ao plantel de um mesmo senhor. O certo é que Renato e
Antonio Calixto eram primos; e José Calixto e Jacyntho eram pai e filho,
respectivamente, o que nos faz deduzir que determinados fazendeiros optavam
pela contratação de mão-de-obra em unidades familiares, também no caso de
libertos que ocupavam postos de trabalho inferiores.
Um anúncio do jornal Diário do Rio Claro, de 3 de junho de 1893 ilustra
essa preferência de muitos fazendeiros de Rio Claro nos anos que seguiram a
abolição da escravidão.
COLONOS
291
AHMRC-OAP. Sumanário de culpa 1894. Processo 019/1894. Caixa: CCR 1893/94 2
56/153. A Justiça - Autora. O preto Jacyntho - Réu.
292
XAVIER, Regina Célia Lima. A conquista da liberdade: libertos em Campinas na metade do
século XIX. Campinas: UNICAMP, 1996, p. 137.
130
Na fazenda S. Luiz, Estação de Morro Pelado, precisa-se de até 30
familias de colonos. Esta fazenda dista 1 légua da freguesia, tem
bastante lavoura nova, terra de primeira qualidade, muito productiva e
faz-se bastante vantagem aos colonos.
Para tratar na mesma fazenda
293
.
Certamente os imigrantes eram preferidos para contratos de colonos,
obtendo a melhor situação nas fazendas. Mas em Rio Claro havia brasileiros
trabalhando em quase todas as propriedades
294
.
Os trabalhadores nacionais sofreram, certamente, concorrência efetiva da
mão-de-obra estrangeira a partir da década de 1880. Thomas Holloway
argumenta que
As chegadas anuais de imigrantes eram em média inferiores a 6.000 no
período de 1882-1886, mas com o estabelecimento da Sociedade
Promotora, a alocação de subsídios para transporte e a construção da
hospedaria, a imigração elevou-se para mais de 32.000 em 1887 e
quase 92.000 em 1888. (...) De 1889 ao início do século seguinte,
chegaram quase 750.000 estrangeiros a São Paulo, dos quais 80 por
cento eram subsidiados pelo governo
295
.
São poucos os estudos que tratam das relações sociais entre
trabalhadores estrangeiros e escravos ou ex-escravos nas fazendas de café em
São Paulo. Um dos poucos relatos é o de Thomas Davatz, que data da década de
1850 e expressa apenas uma opinião individual carregada de eufemismos.
Segundo Thomas Davatz
Os habitantes negros do Brasil são de um modo geral homens de bom
aspecto e de boa compleição. Não fosse a sujeição inata aos brancos, a
maldição de Noé sobre Cam que os mantém subjugados, ser-lhes-ia
fácil, dado o seu número considerável, vingarem-se dos seus traficantes
293
Diário do Rio Claro. 3 de junho de 1893.
294
DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977, p. 154-155.
295
HOLLOWAY, Thomas H. Imigrantes para o café: café e sociedade em São Paulo, 1886-1934.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 68.
131
e opressores. Ao que eu saiba, no entanto, isso jamais ocorreu, ao
menos em grande escala
296
.
Davatz levou à risca o texto bíblico no qual a lenda da maldição de Cam
encontrou sua formulação canônica. Para Davatz o destino do povo africano,
cumprido através dos milênios depende de um evento único, remoto, mas
irreversível: a maldição de Cam, que recai sobre seu filho Canaã e de todos os
seus descendentes. O povo africano será negro e será escravo: eis tudo
297
.
As representações, isto é, idéias, valores conceitos e concepções que
Davatz tinha dos escravos estavam influenciadas pelos princípios de origem
judaico-cristã. Assim ele construiu representações que deram sentido e
explicaram a sua posição e de seus pares, numa comparação com a situação dos
escravos na sociedade brasileira da década de 1850.
Mas na década de 1890, na fazenda Paraguassú em Rio Claro parece que
não havia obstáculos para a interação entre trabalhadores estrangeiros e
nacionais de cor. O depoimento do italiano Luigi Balttani, “de dezenove annos de
idade, solteiro, colono da fazenda Paraguassú”, além de mostrar essa interação,
evidencia detalhes do crime.
Domingo passado (29 de abril) as cinco horas da tarde mais ou menos,
estando elle depoente na frente da caza de Renato, na fazenda, em
companhia do finado Antonio e outros colonos e ahi chegou o preto
Jacyntho, também colono da fazenda armado com uma espingarda,
montado a Cavallo e quando de frente ao finado Antonio disparou a arma
de fogo sobre o peito da victima que entrando porta para dentro cahio
exalando o ultimo suspiro. Elle depoente ignora se havia entre o
assassino e o assassinado algum precedente que determinasse o
atentado
298
.
296
DAVATZ, Thomas. Memórias de um colono no Brasil: 1850. Tradução, prefácio e notas de
Sergio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. Da Universidade de São
Paulo, 1980, p. 75.
297
Ver BOSI, Alfredo. Sob o signo de Cam. In. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia
das Letras, 1992.
298
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56/153. A Justiça - Autora. O preto Jacyntho - Réu.
132
Alguns postos de trabalho eram oferecidos preferencialmente aos
imigrantes provenientes da Europa. Porém, não havia postos de trabalho
considerados “superiores” para todos os que aqui chegaram e, inevitavelmente,
esses imigrantes ocuparam os mesmos postos de trabalho que alguns
trabalhadores nacionais ocupavam
299
. Luigi Balttani foi um exemplo disso,
lembrando que muitos chegavam sem qualificação alguma.
Inevitável, também, era a interação, e não a solidariedade, mas
também, os conflitos existentes entre estrangeiros e brasileiros, como ocorreu
entre Joaquim Bento e Domingos Spatafora
300
.
Quanto ao crime nada sabemos sobre os reais motivos que levaram o
“preto” Jacyntho a efetuar o disparo de uma espingarda sobre o peito de Antonio
Calixto, matando-o. Em um comunicado para a retirada do corpo de Antonio
Calixto assinado pelo Delegado de Policia João Ladislau datado de dia 30 de abril
de 1894 consta:
Tendo vindo da fazenda Paraguassú do Senhor Bento Prado, neste
município, o cadaver de um individuo de cor preta, colono da mesma
fazenda, que se diz haver sido assassinado com arma de fogo por um
individuo também colono da mesma fazenda, cujo cadaver acha-se
depositado na cadea pública. Quem se achar responsável favor retirar
aqui na cadea
301
.
Talvez o depoimento que mais se aproxime de uma explicação plausível é
o de Joaquim Fernandes, “natural de São João do Rio Claro, de 28 annos de
idade, de serviços da roça, solteiro, colono da fazenda Paraguassú”
302
. Em seu
testemunho Joaquim Fernandes disse:
299
Para compreender o fenômeno, principalmente na cidade de São Paulo ver, entre outros,
SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza: 1890-1915.
Ed. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2003.
300
Ver capítulo 1 - item 1.1.
301
AHMRC-OAP. Sumanário de culpa 1894. Processo 019/1894. Caixa: CCR 1893/94 2
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302
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56153. A Justiça - Autora. O preto Jacyntho - Réu.
133
Que a 29 de abril, pelas cinco horas da tarde mais ou menos na fazenda
Paraguassú, onde a testemunha é empregado achava-se sentado na
porta da caza de Renato que também é empregado em dicta fazenda
quando chegou o preto Jacyntho em cuja frente da caza onde estavão, o
denunciado disse “querem morrer rapaziada” e como não houve
resposta o denunciado Jacyntho deu um tiro com a dicta espingarda em
Antonio Calixto, que sendo carregado porta dentro de caza ahi falleceu,
esvaindo-se em sangue, fugindo immediatamente a cavallo o
denunciado
303
.
Percebe-se certa harmonia dentro da fazenda entre os indivíduos que
habitavam, sendo quebrada pelo crime. Os motivos reais que justificassem o
crime não foram mostrados pelas pessoas envolvidas na trama, a não ser um
“querem morrer rapaziada”, o que, de certa forma, não justificaria determinado
crime.
Em suma, as relações estabelecidas dentro de um mesmo grupo social
podem conter, além da solidariedade e harmonia, como algumas testemunhas
desenharam o habitat onde residiam –, a violência. Porém, seria difícil fazer uma
avaliação da presença dessa violência dentro daquele grupo social da fazenda
Paraguassú pela falta de informações sobre o que motivara Jacyntho a praticar o
crime. Conforme as informações contidas nos autos, o homicídio cometido por
Jacyntho não vai além da futilidade.
Jacyntho não esperou para dar explicações e nem ser punido dentro dos
rigores da lei, fugindo immediatamente a cavallo”
304
. Mais tarde foi condenado
por crime de homicídio, de acordo com o artigo 294 do Código Penal de 1890.
303
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56153. A Justiça - Autora. O preto Jacyntho - Réu.
304
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56/153. A Justiça - Autora. O preto Jacyntho - Réu.
134
3.2. A cor e a mobilidade social: o caso do liberto João Grande.
DOZE POBRES
Tendo o abaixo assignado feito uma promessa de dar jantar a 12 pobres,
convida os pessoas que se acharem nestas circunstancias a
comparecerem na sua casa, rua 5, n. 50, as 3 horas da tarde de hoje.
Findo o jantar cada pobre receberá uma esmola.
No domingo, 24 do corrente, haverá em sua casa um páu de sebo,
contendo no topo a quantia de 50$, que pertencerá ao felizardo que
subir.
Rio Claro, 23 de junho de 1894.
João Grande
O anúncio acima foi publicado no jornal Diário do Rio Claro no dia 23 de
junho de 1894. Anúncio que poderia passar despercebido em meio a tantos
outros e a confusa diagramação dos jornais da época, não fosse o autor do
anúncio: João Grande.
A história de João Grande chegou até nós por meio da denúncia feita por
Amancio de Camargo Neves contra João Grande no dia 14 de março de 1888.
Entre a data da denúncia (1888) e a do anúncio (1894) passaram-se pouco mais
de seis anos e nesse espaço de tempo ocorreram fatos que marcaram não a
história do Brasil, como a abolição da escravidão, a queda da Monarquia e o
advento da República, mas também a vida de João da Silva de Oliveira, o João
Grande.
A denúncia:
Amancio de Camargo Neves, administrador da fazenda de sua mãe
Donna Ritta Benedicta de Camargo, vem trazer ao conhecimento de V.S.
os seguintes factos que considera atentado de direitos dos proprietários
de fazendas deste município.
Eis os factos:
135
João Grande geralmente conhecido como ajustador de libertos
empreguistas nas fazendas agrícolas esteve ultimamente com uma
turma de libertos na fazenda Santa Rita neste município, pertencente a
mãe do denunciante, capinando os cafezaes, a principio tratou com o
dicto João a quantia de doze mil réis por mil pés [de café], dias tardou
exigia quinze mil para capinar, que dizia a ser trabalhoso, obrigando-se a
ficar o resto do serviço seguinte ao 1º tracto de 12 mil réis, que é
elevadíssimo o preço para esse trabalho
305
.
Dias depois, João Grande passou a exigir um valor de 20$000 vinte mil réis
para o serviço de capinar o restante do cafezal na fazenda Santa Rita. Amancio
de Camargo Neves esbravejou diante dessa exigência feita por João Grande.
Seguindo com a denúncia:
Em tal exigência se constitui uma violação ao tracto feito, é ainda
absurdo em relação ao preço de seu ultimo trabalho e, foi elle João
Grande despedido com tantas outras pessoas da fazenda, mas ao sahir,
conforme o seu costume já conhecido, seduzio outros pretos libertos da
própria fazenda que trabalhavão recebendo salários pelo mesmo
jornal, que elle João Grande prometeu salário melhor se viessem em sua
companhia. Os pretos aliciados são a mulher Maria e um crioulo de
nome Pedro.
Pelos factos expostos provam que João Grande seduz e leva em sua
companhia trabalhadores que estavam nos serviços das fazendas
ganhando salário sazonal desorganizando assim o serviço da mesma
fazenda que alias se carece de falta de trabalhadores por causa de
especuladores da ordem de João Grande, que anarchião e desorganisão
sem o menor escrúpulo todo o trabalho neste e em outros municípios da
Província
306
.
João Grande compareceu à delegacia local no dia 23 de março de 1888
acompanhado por seu advogado, o Doutor Job Marcondes Resende, bastante
conhecido por defender escravos em ações de liberdade. No auto de qualificação,
datado daquele mesmo dia em que compareceu à delegacia consta:
305
AHMRC-OAP. Processo 032/1891. Caixa: CCR 1890/91 48/153. Amancio de Camargo
Neves - Denunciante. João Grande – Denunciado.
306
AHMRC-OAP. Processo 032/1891. Caixa: CCR 1890/91 48/153. Amancio de Camargo
Neves - Denunciante. João Grande – Denunciado.
136
Nome, João Silva de Oliveira; filiação, filho de Francisca Silva de
Oliveira; Liberto; natural de Pelotas; Estado, cazado; do serviço da
lavoura; sabe ler e escrever
307
.
Não sabemos quando João Grande chegou a Rio Claro. Mas, ao que
parece, ele fixou residência naquela cidade na condição de liberto. A
mobilidade espacial de indivíduos provenientes do cativeiro era constante no
Brasil desde o período Colonial. A historiadora Sheila de Castro Faria, em seu
livro A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial, revela que
O intenso movimento de ex-escravos extrapolava as condições
materiais; ao mesmo tempo, se distinguia do de “pardos livres” e de
“brancos” por ser mais acelerado. A primeira situação que o liberto
abandonava era a de cativo. Distanciando-se, buscava reconhecer a sua
liberdade, mesmo deixando para trás laços, rituais ou consangüíneos,
estabelecidos na época do cativeiro
308
.
Maria Cristina Cortez Wissenbach argumenta que a existência de
populações tradicionalmente nômades marcou a fisionomia de extensas regiões
do Brasil colonial e imperial. Segundo essa autora
Excluindo as zonas de povoamento mais denso e estável, localizadas no
litoral e nos centros urbanos, a dispersão em grandes extensões
geográficas, a mobilidade e a miscigenação foram características que
marcaram a fisionomia e o viver de largos contingentes que se
deslocavam periodicamente no interior de uma mesma área ou em
direção a outros pontos do país. Os traços dessa infixidez aparecem
disseminados por quase todos os habitantes das zonas rurais, que
assimilaram de seu passado histórico e étnico e que continuavam a
expressá-la em constantes mudanças, quando deixavam para trás
moradias, capelas e até mesmo bairros rurais, prenunciando com suas
roças volantes a marcha e a contramarcha das lavouras monocultoras
309
.
307
AHMRC-OAP. Processo 032/1891. Caixa: CCR 1890/91 48/153. Amancio de Camargo
Neves - Denunciante. João Grande – Denunciado.
308
FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 108.
309
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Da escravidão à liberdade: dimensões de uma
privacidade possível. IN: História da vida privada no Brasil. Org. Nicolau Sevcenko. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p. 56. Ver, também, DIAS. Maria Odila L. S. Sociabilidades sem
história: votantes pobres no Império, 1824-1881. In. Historiografia brasileira em perspectiva. São
Paulo: Contexto, 2001.
137
Essa mobilidade espacial era provocada pela estrutura da sociedade
escravocrata que relegava aos homens libertos um “viver à margem” da economia
e um aproveitamento residual. Essa mobilidade foi intensificada pelo monopólio
da propriedade da terra, pelos grandes latifúndios e pela presença ainda
marcante de escravos num território que oferecia grandes extensões ainda não
ocupadas. Mudar de lugar sempre foi hábito dos homens livres pobres
310
.
A decisão de migrar se fazia necessária aos ex-escravos com o objetivo de
melhorar suas condições de vida. Mas João Grande detinha além de sua
liberdade uma vez que, as distinções legais entre escravos, libertos e livres
estabeleciam uma hierarquia até mesmo entre os afro-descendentes
311
- certa
autonomia e astúcia, o que certamente significava ameaça à ordem que a elite da
época queria impor.
As práticas de João Grande, dentro da concepção dos fazendeiros,
poderiam ameaçar a “ordem” e a “organização” das fazendas. Aos olhos de um
observador do século XXI, João Grande era um “empreendedor”, se é que o
termo cabe para aquela época. Ele tinha uma companhia que recrutava mão-de-
obra de ex-escravos para o trabalho nas fazendas, fazendo com que os
fazendeiros pagassem um preço maior por determinadas tarefas.
As testemunhas, à medida que davam seus depoimentos, também,
ilustravam as estratégias de João Grande para recrutar mão-de-obra e, ao mesmo
tempo, acobertavam e o defendiam das acusações.
310
Idem, p. 57.
311
Ver, principalmente, SANTOS, Lucimar Felisberto dos. Cor, identidade e mobilidade social:
crioulos e africanos no Rio de Janeiro. (1870-1888). Dissertação [Mestrado em História Social].
Niterói: UFF, 2006.
138
O depoimento de Maria, “ex-escrava de Donna Ritta de Camargo, de
cincoenta annos de idade, trabalhadora da roça, natural da Província da Bahia”
312
,
revela:
Perguntada sobre o facto occorrido na fazenda de Donna Ritta de
Camargo, respondeu que o accusado presente retirou-se da fazenda de
Donna Ritta de Camargo onde estava trabalhando e retirou-se tambem
no mesmo dia os seus trabalhadores, e que em companhia destes sairão
ella, depoente com seu marido Adão e seu filho Pedro. Que ella
depoente com seu marido Adão e seu filho Pedro pedirão ao accusado
para os tomar como camaradas, allegando-lhe que erão livres e que
expontaneamente havião de sahir da fazenda de Donna Ritta de
Camargo. E que ella, depoente não foi sedusida para deixar a fazenda
de Donna Ritta de Camargo, que por sua livre vontade abandonou a
fazenda
313
.
Os depoimentos de Adão, marido de Maria, e também ex-escravo de Dona
Ritta de Camargo e de seu filho, o liberto Pedro, seguem o mesmo protocolo e,
como se houvessem previamente ensaiado, dizem “que erão livres e que
expontaneamente havião de deixar a fazenda de Donna Ritta de Camargo”
314
.
Maria, juntamente com seu marido Adão e seu filho Pedro, é mais um
exemplo da preferência de alguns senhores em conceder alforrias a indivíduos
membros de unidades familiares para não perder mão-de-obra na lavoura, ou
seja, como mencionamos anteriormente, havia sim, um jogo de interesses na
concessão dessas alforrias.
Segundo as historiadoras Hebe Mattos e Ana Rios
A defesa das alforrias em massa, que se generalizou entre muitos
senhores, buscava fundamentalmente resgatar essa ascendência moral
sobre os cativos, perdido o argumento da violência na nova conjuntura
312
AHMRC-OAP. Processo 032/1891. Caixa: CCR 1890/91 48/153. Amancio de Camargo
Neves - Denunciante. João Grande – Denunciado.
313
AHMRC-OAP. Processo 032/1891. Caixa: CCR 1890/91 48/153. Amancio de Camargo
Neves - Denunciante. João Grande – Denunciado.
314
AHMRC-OAP. Processo 032/1891. Caixa: CCR 1890/91 48/153. Amancio de Camargo
Neves - Denunciante. João Grande – Denunciado.
139
política. Os que a advogavam confiavam não na gratidão dos libertos,
mas principalmente na força dos laços comunitários e familiares entre os
cativos para mantê-los, se o nas fazendas, pelo menos na região.
Embasavam-se, assim, em um saber senhorial sobre os libertos que
buscavam acionar como forma de recuperar o controle da situação
315
.
Assim, a situação estava fugindo do controle por conta da atuação de João
Grande em recrutar libertos para trabalho em sua companhia. Os parâmetros
utilizados pelos senhores para avaliar as conseqüências das alforrias em massa
eram, quase sempre, os mesmos: a eficácia para restabelecer a ordem e o
controle senhorial sobre o processo de libertação. Hebe Mattos e Ana Rios
argumentam que a expectativa dos senhores que optavam pela manumissão era
lograr com ela a permanência dos trabalhadores e um mínimo de mudança na
organização produtiva da fazenda
316
. Porém, João Grande estava colocando essa
organização em xeque.
Esta história complicada que requer atenção para os pequenos detalhes
que a envolvem, arrasta-se até o ano de 1891. Durante esse intervalo de tempo
deu-se a abolição da escravidão, sem indenização, que, sabe-se bem, foi uma
experiência traumática para os senhores das províncias cafeeiras do Império, que
concentravam em suas fazendas os últimos cativos das Américas
317
. Mas, ao que
parece, não era esse o caso de Donna Ritta de Camargo. Ela utilizou as alforrias
como estratégia para manter os ex-escravos em sua fazenda.
De acordo com Hebe Mattos e Ana Rios:
Nos últimos meses da Monarquia e ainda na primeira década
republicana, os ex-senhores continuaram a tentar fazer prevalecer sua
ascendência sobre os homens nascidos livres, seus descendentes, bem
315
MATTOS, Hebe Maria; RIOS, Ana Maria. Para além das senzalas: campesinato, política e
trabalho rural no Rio de Janeiro pós-abolição. IN: Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-
emancipação no Brasil. Org. Flavio dos Santos Gomes e Olivia Maria Gomes da Cunha. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2007, p. 56.
316
Idem, p. 57.
317
Idem, p. 55.
140
como sua influência sobre as autoridades locais para forçar os libertos a
continuarem onde sempre haviam estado
318
.
João Grande ameaçava tudo mudar quando passou a fazer o recrutamento
de trabalhadores, libertos de preferência, para integrarem a sua companhia e,
certamente, os ex-escravos não iriam continuar onde sempre haviam estado. O
depoimento de Manoel Pimentel, “de trinta e seis annos de idade, natural de Itu,
cazado, empregado da lavoura”
319
, é revelador.
Disse Manoel Pimentel em 18 de agosto de 1888:
Pedro, trabalhador da fazenda de Donna Ritta de Camargo dizia a elle,
depoente que ia sahir da fazenda e ia trabalhar para companhia do
acusado presente, porque este dissera que os trabalhadores que o
quiserem ficar na fazenda poderihão sahir e ir para a companhia do
accusado.
Perguntado se o liberto Victor, conhecido por Vitinho, não fora convidado
pelo accusado presente a abandonar o serviço na fazenda de Donna
Ritta, negou dizendo não lembrar de ter ouvido nada a respeito
320
.
Mais uma vez o “ter ouvido” ecoa, e dessa vez, a favor de João Grande.
Não sabemos quem era o liberto Victor, conhecido por Vitinho. Ele apareceu
apenas nessa passagem do testemunho de Manoel Pimentel e não foi, sequer,
arrolado entre as testemunhas. Nesse depoimento o termo utilizado foi
“convidado” em vez de “seduzido” como apareceu na denúncia feita pelo filho de
Dona Ritta de Camargo e administrador da fazenda, bem como no depoimento da
ex-escrava Maria.
O jogo de palavras era fundamental e as testemunhas sabiam
perfeitamente o seu papel dentro de toda a trama. As testemunhas, orientadas
pelos advogados, definiam as características, e desenvolvimento e finalmente os
318
Ibidem, p. 61.
319
AHMRC-OAP. Processo 032/1891. Caixa: CCR 1890/91 48/153. Amancio de Camargo
Neves - Denunciante. João Grande – Denunciado.
320
AHMRC-OAP. Processo 032/1891. Caixa: CCR 1890/91 48/153. Amancio de Camargo
Neves - Denunciante. João Grande – Denunciado.
141
resultados e o desfecho do processo - que residiam as fontes básicas de
elucidação do delito ocorrido, acabando por constituir o campo de argumentos
que definiria a sorte ou o azar do réu
321
.
O depoimento de outra testemunha, Maria de Tal, “de dezoito annos de
idade, natural de Rio Claro, de serviço da roça”
322
é exemplo dessas
argumentações, certamente com orientações do advogado Job Marcondes
Resende. Maria de Tal em seu depoimento disse que
Não sabe si o accusado presente seduzio os trabalhadores Adão e
Pedro para abandonar a fazenda de Donna Ritta de Camargo. Ella,
depoente soube por ter visto os trabalhadores acompanhar o accusado.
Que o administrador da fazenda do Doutor José Calazans de Negreiros,
Paulino Fonseca Barbosa, sabia que o accusado convidou os
trabalhadores da fazenda Santa Rita para sahir da mesma fazenda e ir
para a sua companhia
323
.
Esse testemunho é elucidativo. Maria de Tal utilizou os termos “seduziu” e
“convidou” de acordo com as circunstâncias para favorecer o acusado. Ela não
sabia se João Grande ‘seduziu’ os trabalhadores, mas que uma terceira pessoa,
Paulino Fonseca Barbosa sabia que João Grande ‘convidou’ os trabalhadores
para saírem da fazenda Santa Rita e ir para a sua companhia. Além dessa
inteligente argumentação, no depoimento de Maria de Tal, aparecem mais dois
personagens: Paulino Fonseca Barbosa e o Doutor José Calazans de Negreiros.
Paulino Fonseca Barbosa, “de quarenta e seis annos de idade, natural de
Cabreúva, administrador da fazenda do Doutor José Calazans de Negreiros”
324
foi
chamado para depor e disse que:
321
VELLASCO, Ivan de Andrade. As redes de solidariedade da cor: o caso dos compadres Manoel
e Laurindo. In. Revista História, São Paulo, v. 25, nº1, p. 147-169, 2006, p. 151.
322
AHMRC-OAP. Processo 032/1891. Caixa: CCR 1890/91 48/153. Amancio de Camargo
Neves - Denunciante. João Grande – Denunciado.
323
AHMRC-OAP. Processo 032/1891. Caixa: CCR 1890/91 48/153. Amancio de Camargo
Neves - Denunciante. João Grande – Denunciado.
324
AHMRC-OAP. Processo 032/1891. Caixa: CCR 1890/91 48/153. Amancio de Camargo
Neves - Denunciante. João Grande – Denunciado.
142
O accusado esteve por vezes com sua turma capinado café na fazenda
do Doutor José Calazans de Negreiros e que sabia por ouvir falarem que
era de costume do accusado presente convidar trabalhadores para sahir
das fazendas e ir para a sua companhia. Sobre o facto, disse nada
saber.
325
O “ouviu falar” aparece novamente no depoimento de Paulino Fonseca
Barbosa, certamente como estratégia para favorecer João Grande, pois estava
muito distante de basear-se em informações plenamente seguras.
O Doutor José Calazans de Negreiros não foi arrolado entre as
testemunhas, mas encontramos um anúncio no jornal Diário do Rio Claro do dia
16 de junho de 1892 a pedido dele.
CAMARADAS
Precisa-se de alguns para o trabalho de lavoura. Prefere-se os
nacionaes, paga-se 80$000 por mez e dá-se alimentação. Para tractar
com o Sr. José Calazans de Negreiros
326
.
Ao que parece, o Doutor José Calazans de Negreiros contratava os
serviços da companhia de João Grande para trabalhar em sua fazenda. Era
cômodo para Negreiros contratar os serviços da companhia onde estava
concentrada parte da mão-de-obra disponível no mercado, em vez de procurar
por trabalhadores avulsos, já que sua preferência era por trabalhadores nacionais,
ou seja, quase sempre ex-escravos. Mas, mesmo assim ele continuava a
anunciar em jornais da época a procura de trabalhadores nacionais
327
.
Nos depoimentos das testemunhas havia um ponto de congruência em
todos eles: a afirmação de um novo status jurídico, a condição de liberto. No
depoimento da ex-escrava Maria, esta, além de ter um grande envolvimento
325
AHMRC-OAP. Processo 032/1891. Caixa: CCR 1890/91 48/153. Amancio de Camargo
Neves - Denunciante. João Grande – Denunciado.
326
Diário do Rio Claro. 16 de junho de 1892.
327
Encontramos outro anúncio semelhante no dia 6 de novembro de 1892 no mesmo jornal.
143
dentro da trama no processo judicial, criou um espaço de representação próprio,
onde afirma a sua condição de ser livre e não estar mais subjugada ao cativeiro,
argumentando que “por sua livre vontade abandonou a fazenda”
328
.
Quanto ao nosso personagem João Grande pouco, ou nada, sabemos
sobre ele antes daquele 14 de março de 1888, nem como conseguiu sua alforria,
nem como chegou a Rio Claro. A história de João Grande tem suas
peculiaridades. Para um indivíduo de cor ascender socialmente era bastante difícil
e, o primeiro passo, para isso seria obter a alforria; e para consegui-la, as
estratégias poderiam ser das mais variadas indo de um comportamento especifico
até as ações de liberdade requeridas judicialmente.
Mas João Grande mais do que um simples liberto. Ele ascendeu na
hierarquia social apesar de marcado por determinadas distinções, principalmente
relacionadas a sua cor e a sua condição de liberto, que não faziam dele um
cidadão pleno, o que talvez tenha funcionado como estímulo para galgar degraus
sociais; mas tendo, também, a colaboração de pessoas ligadas à elite como o
Doutor José Calazans de Negreiros.
Mesmo por interesse próprio, o fato de João Grande recrutar mão-de-obra
de libertos para trabalhar em sua companhia era um grande passo para esses
indivíduos buscarem novas formas de vida, que não as restritas às fazendas de
onde provinham. Porém, resta saber se não encontrariam situações piores que
aquelas vividas nas fazendas. Ao que parece, a julgar pelos esforços
despendidos pela família da ex-escrava Maria, a situação seria um pouco melhor
na companhia de João Grande do que na fazenda de Dona Ritta de Camargo.
Assim no dia 13 de agosto de 1891 o Juiz José Machado Pinheiro emitiu a
sentença:
328
AHMRC-OAP. Processo 032/1891. Caixa: CCR 1890/91 48/153. Amancio de Camargo
Neves - Denunciante. João Grande – Denunciado. [Grifo nosso].
144
Julgo improcedente a denuncia feita por Amancio de Camargo Neves
contra João da Silva de Oliveira, vulgo João Grande, a vista da prova
dos autos e conforme o Direito.
São João do Rio Claro, 13 de agosto de 1891.
José Machado Pinheiro
Quanto ao anúncio de jantar aos pobres, as esmolas depois do jantar e o
pau de sebo? Talvez a propaganda e as festividades do s de junho, além da
própria promessa tivessem mais importância para João Silva de Oliveira, o João
Grande, do que o fato de ajudar os miseráveis que lá compareceram.
3.3. Memória e história da escravidão: violência, trabalho, magia e
identidade.
No início da década de 1970, o Professor Paulo Rodrigues, jornalista na
cidade de Rio Claro produziu um vídeo em que entrevistou descendentes de
escravos daquela cidade. Foram duas as entrevistas de pouco mais de nove
minutos cada uma, onde tratou principalmente da questão da terra que os
envolvia e a qual não é meu propósito tratar aqui, por falta de documentação.
O vídeo que foi a nós disponibilizado pelo Professor Paulo Rodrigues não é
o original gravado na década de 1970. O que utilizamos foi uma cópia produzida
para divulgação na década de 1990, já digitalizada que, portanto, sofreu influência
tecnológica. O objetivo da gravação do vídeo era documentar o longo processo
envolvendo as terras que foram doadas aos escravos por Dona Maria Tereza de
145
Jesus, viúva do Senhor Ubaldino Leite Penteado, e que foram subtraídas por
políticos e empresários locais
329
.
Paulino da Mata era filho de João da Mata escravo de Ubaldino Leite
Penteado. o foi mencionado, durante a entrevista, a sua idade, nem o local de
seu nascimento. Segundo seu depoimento seu pai “conduzia os escravos”.
Acreditamos que João da Mata tinha alguns privilégios e trabalhava como feitor
na fazenda de Ubaldino Leite Penteado.
A violência e o sofrimento são recorrentes nas narrativas do entrevistado e,
a partir disso, ele formula uma hipótese genérica em que todos os senhores
seriam maus. Paulino da Mata tenta mostrar o caráter cruel que teve a
escravidão, sendo os castigos físicos e o trabalho um fardo que o escravo
carregou até o fim do cativeiro.
Entrevistador: O Senhor lembra-se dos fazendeiros baterem nos
escravos?
Depoente: Batia. Na roça, na roça, metia a cabada de enxada. Meu avô
[uuu] chorava.
E: Como o Senhor lembra disso? Tinha lugar para amarrar, pra bater,
alguma coisa assim?
D: Tinha lugar sim, tinha a cheringa. Amarrava e metia o coro. Cabada
de enxada.
E: Eles batiam nos escravos então?
D: [ooo]. Eles batia. Os escravos foi a classe de gente mais ordinária que
existiu nessa terra. Isso é um povo que o vigorando muito bem
329
Mencionei que não iria entrar na questão das terras por falta de documentação. Mas esforços
não faltaram para que tivesse acesso a, pelo menos, o testamento de Dona Maria Tereza de
Jesus em que deixa as suas terras aos escravos, principalmente ao escravo João da Mata. As
informações que temos, é de que existem três cópias: uma no Arquivo Municipal, outra no
Cartório de Notas de Rio Claro, e outra em poder de um bisneto do escravo João da Mata. A cópia
que se supôs estar no Arquivo Municipal o foi localizada; no Cartório de Notas não foi
possível ter acesso à cópia; restou a nossa ultima alternativa: a cópia que supostamente estaria
em poder do bisneto de João da Mata. A referência que tínhamos desse familiar era que ele
trabalha como engraxate na praça do centro da cidade, Praça do Camelódromo, como
popularmente é chamada, e denominaram como sendo “sobrinho do Nei”. Não havia nome.
Mesmo com referências vagas fomos até a praça procurar por ele. Havia, pelo menos, oito
engraxates, a maioria idosos, mas nenhum deles era o que procurávamos. Mesmo assim, ficamos
uma tarde inteira na praça, onde ninguém deu informações que nos
levassem adiante na
esperança de que surgisse um “engraxate sobrinho do Nei”. Não surgiu.
146
devido a judiação que fizeram com os escravos. O Senhor precisava ver.
O Senhor precisava ver o que o tal dos escravos... Que nem eu falei um
dia desses: não era preciso escravo. Pra que fazê essa judiação. Metia o
pau. Cabada de enxada
330
.
Paulino da Mata à medida que relata sua vida e sua experiência do período
em que viveu o ambiente do cativeiro, mesmo não sendo cativo pois
acreditamos que tenha nascido após a promulgação da Lei do Ventre Livre em
1871 -, projeta sua leitura e seu conhecimento do passado através da história oral
que, de acordo com Paul Thompson, é uma história construída em torno de
pessoas
331
.
Paulino da Mata projeta, na memória individual, a memória coletiva, uma
vez que as lembranças permanecem coletivas e são lembradas por outros, ainda
que se trate de eventos que envolveram somente um indivíduo e objetos que
somente esse indivíduo viu. Maurice Halbwachs lembra que não é preciso que os
outros estejam presentes, materialmente distintos de nós, porque sempre
levamos conosco e em nós, certa quantidade de pessoas que o se
confundem
332
.
Há, portanto, nas narrativas de Paulino da Mata a construção da memória
coletiva a partir da memória individual. Contribui para essa construção o fato de
Paulino ter vivido e presenciado determinados fatos que marcaram suas
lembranças como os castigos físicos aos escravos. Na sua identificação entre
escravidão e violência, a vertente que mais se nota é a que o relaciona aos
castigos impostos e à violência física e moral. Ao contrário daqueles
descendentes que não tiveram a “oportunidade” de presenciar esses mesmos
fatos.
Hebe Mattos e Ana Rios argumentam que
330
PAULINO DA MATA. Entrevista a Paulo Rodrigues. 1973.
331
THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 44.
332
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006, p. 30.
147
A recorrente informação de que o a ou a avó, ex-escravos,
simplesmente se recusavam a falar do tempo do cativeiro configura-se,
de fato, como mais uma coincidência narrativa a ser considerada. A
ausência da memória genealógica da escravidão da maioria das famílias
negras brasileiras e os silêncios voluntários, relatados por muitos
daqueles que se referiram diretamente a um antepassado escravo,
possuem um significado óbvio que não pode ser negligenciado
evidenciam as dificuldades de construir uma identidade positiva com
base na vivência da escravidão
333
.
Nas narrativas de Paulino da Mata o trabalho vem, genericamente,
associado a castigos físicos e às revoltas.
Entrevistador: Trabalhavam de que hora a que hora?
Depoente: Não tinha hora não.
E: o dia inteiro, de sol a sol.
D: O dia inteiro. Não tinha regra, não tinha nada.
E: Não tinha as folgas? Domingo?
D: Nada, nada. Domingo, vai descascar milho pro porco. Domingo, vai
fazer tal coisa. E cala a boca. Psiu, psiu. Sem vergonha.
E: alguns se revoltavam ou não?
D: Se revoltava... mas morria.
E: Eles matavam.
D: [ooo] se matava? Matava sim. Quantos deles não morreu aí
334
.
Mesmo sendo levado pelas perguntas do entrevistador, Paulino da Mata
toca em um ponto crucial: a questão do tempo do trabalho. Muitos dos escravos
que estavam, não em Rio Claro, mas em toda a Província de São Paulo, eram
provenientes do tráfico interprovincial, principalmente das províncias do
Nordeste
335
, onde tinham adquirido determinados “direitos”, como a utilização
333
RIOS, Ana Lugão; MATTOS, Hebe. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-
abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 54.
334
PAULINO DA MATA. Entrevista a Paulo Rodrigues. 1973.
335
Importante lembrar que os mercados, tanto interno como externo, influíam na demanda por
mão-de-obra entre grandes proprietários. As condições climáticas também tinham impacto
significativo na economia de determinadas regiões do País. Barickman revela que a seca de 1857-
61 coincidiu com a queda de mais de 50% das exportações de açúcar da Província da Bahia,
coincidiu, também com o início do ciclo do café em Rio Claro. O esvaziamento de mão-de-obra
escrava se deu, principalmente, nas áreas mais afetadas por fatores responsáveis pelo declínio
econômico. Muitos proprietários do sertão nordestino tinham como única mercadoria para
148
dos domingos e feriados religiosos para descanso, ou, os escravos podiam utilizar
esses dias para suplementar a dieta com a produção de suas próprias hortas das
quais podiam vender o excedente nos mercados locais ou ao proprietário, e
guardar o dinheiro para fazer compras ou poupar para acabar comprando a sua
liberdade ou a de um ente querido
336
. Talvez muitas das revoltas ocorridas nas
fazendas em São Paulo de devessem, principalmente, ao tempo de trabalho e às
reivindicações dos escravos buscando garantir algum dia de descanso semanal.
O pólo a partir do qual se definiam os ritmos do trabalho e do descanso, o
sistema de exploração do trabalho, com suas cadências transitórias, determinava
as margens de tempo livre e, por conseguinte, as atividades autônomas dos
escravos
337
. De acordo com Maria Helena Toledo Machado,
O sistema de exploração do trabalho com seus ritmos alternativos e as
margens da autonomia escrava estiveram fortemente entrelaçados,
levando para o dia-a-dia das fazendas os mais ferozes conflitos entre os
escravos e seus senhores
338
.
Ainda segundo essa historiadora
comercializar o próprio escravo, e principalmente dessas áreas o fluxo de saída de mão-de-obra
escrava foi mais intenso. Em outras áreas como o Recôncavo e a Zona da Mata, menos afetadas
pelas secas, o trabalho escravo insistia em permanecer. Segundo Barickman, numa análise
retrospectiva, os senhores de engenho baianos, por continuarem a empregar a mão-de-obra
escrava e por não se prepararem para o fim inevitável da escravidão, talvez pareçam irracionais,
ou totalmente míopes. Mas um juízo desse tipo feito a partir da perspectiva do presente, deixa de
levar em conta que, mesmo na década de 1870 e início de 1880, os senhores da zona canavieira
tradicional do Recôncavo ainda contavam com um número significativo de trabalhadores
escravizados. Tal juízo também deixa de levar em conta aquilo que os senhores de engenho
baianos não podiam prever: a seca de 1888-91, a queda forte dos preços internacionais do
açúcar, a partir de mais ou menos 1880, e a perda do mercado norte-americano no final da
década de 1890. Nem tampouco podiam antecipar a rapidez com que as condições políticas no
Brasil sofreriam mudanças na década de 1870 e mais ainda na de 1880 - mudanças essas que
permitiram a abolição imediata da escravidão em 1888. Na verdade, ainda em 1881, os
proprietários de escravos, não na Bahia, tinham motivos racionais para esperar que o regime
servil ainda se mantivesse no Brasil até o fim do século e talvez, até 1910. Ou seja, erraram em
seu cálculo da longevidade política da escravidão. Mas seu erro não demonstra sua
irracionalidade; atesta, antes, sua incapacidade de prever o futuro com certeza absoluta.
BARICKMAN, B. J. Até a véspera: o trabalho escravo e a produção de açúcar nos engenhos do
Recôncavo baiano. (1850-1881). Afro-Ásia, v. 21-22, 1998-99, p. 177-237, p. 229.
336
SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, SP: EDUSC, 2001, p. 99.
337
MACHADO, Maria Helena P. T. O plano e o pânico. Os movimentos sociais na década da
Abolição. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora da UFRJ/EDUSP, 1994, p. 21.
338
Idem, p. 22.
149
O sistema disciplinar das fazendas, na medida em que exigia ritmos de
trabalho cada vez mais concentrados, sobretudo nas áreas em que a
cafeicultura expandia-se, como as novas regiões à Oeste, tendia a
engolir as margens de autonomia dos plantéis. De outro, porém, os
grupos de escravos passavam a reivindicar, mais e mais abertamente, o
cumprimento daquilo que se percebia como obrigações senhoriais. Um
ritmo de trabalho próprio ao grupo, a injustiça dos castigos, os direitos à
folga semanal, a alimentação e o vestuário, o recebimento de
estipêndios pelo trabalho realizado a mais e a manutenção de uma
economia independente na forma das roças e do pequeno comércio
foram, muitas vezes, os argumentos que em seu conjunto justificavam os
ataques violentos dos plantéis contra senhores e seus feitores
339
.
As fugas, os suicídios e a feitiçaria aparecem nas narrativas de Paulino
dentro de um mesmo contexto: eram estratégias de resistência, ou para se
livrarem do sofrimento do cativeiro, ou pelo menos, amenizar aquele sofrimento.
Entrevistador: E os escravos fugiam ou não?
Depoente: Alguns fugia, alguns se matava.
E: Se matavam?
D: É. Alguns se matava.
E: Se matavam com o que?
D: É, com, com... enforcava... outros...
(...)
E: E o Senhor lembra de alguma dessas feitiçarias?
D: Feitiçaria? Claro que me lembro. Queimava pórva [pólvora]. Tratava
de queimar pórva [pólvora].
E: Aonde queimava pólvora?
D: Qualquer lugar assim. Dentro de casa. Na sexta-feira maior. Na sexta-
feira maior assim.
E: Mas queimava para que a pólvora?
D: Rebatendo, rebatendo pra vê se acalmava aquela judiação
340
.
O suicídio e as fugas encontram-se aqui como mecanismo de resistência e
negociação utilizado por vários escravos para obter alguma autonomia ou até
mesmo a liberdade; optavam pelo suicídio, mesmo que os benefícios não fossem
339
Ibidem, p. 25
340
PAULINO DA MATA. Entrevista a Paulo Rodrigues. 1973.
150
para si, que fossem para seus pares, além de deixar a vida e o sofrimento
causado pelos males do cativeiro.
As feitiçarias e as mandingas estavam presentes durante o período colonial
e imperial; tinham fortes relações com as tentativas dos escravos se protegerem
contra a violência excessiva dos senhores e tantas outras humilhações da
escravidão
341
.
A forma de feitiçaria mais comum no Brasil, durante o período colonial era
a bolsa de mandinga, ou simplesmente mandinga, ou pat
342
. Essas feitiçarias
ou mandingas, segundo Gabriela dos Reis Sampaio,
Eram quase sempre feitas de pano branco e continham as mais variadas
combinações de elementos, como orações escritas em pedaços de
papel, lascas de pedra d’ara e outros tipos de pedra, raízes, ervas,
enxofre, lvora, balas de chumbo, ossos de defunto, cabelos, unhas,
grãos, hóstias. Os motivos alegados para o uso das bolsas de mandinga
eram, em geral, a proteção contra os malefícios, ou garantia do “corpo
fechado”, isto é, protegido contra doenças e acidentes
343
.
O suicídio e as feitiçarias passam, necessariamente, por questões que
permeiam a cultura africana. Uma melhor compreensão do suicídio praticado por
escravos se beneficia não apenas das novas discussões sobre a escravidão,
mas, também, dos estudos sobre temas correlatos, tais como as atitudes diante
da morte e as concepções culturais africanas
344
. As mandingas, assim como os
341
Idem, p. 402.
342
SOUZA. Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular
no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
343
SAMPAIO. Gabriela dos Reis. Tenebrosos mistérios: Juca Rosa e as relações entre crença e
cura no Rio de Janeiro Imperial. IN: CHALHOUB, Sidney; et al. (org.) Artes e ofício de curar no
Brasil: capítulos de história social. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003, p. 401-402.
344
Ver, entre outros, FERREIRA, Jackson. Por hoje se acaba a lida: suicídio escravo na Bahia
(1850-1888). Salvador: Afro-Ásia, v. 31, 2004, p. 197-234. Também: VENÂNCIO, Renato Pinto. A
última fuga: suicídio de escravos no Rio de Janeiro (1870-1888). In: Revista de História, nº 1,
1990, p. 80-89. GOULART, José Olimpio, Da fuga ao suicídio: aspecto de rebeldia dos escravos
no Brasil. Rio de Janeiro: Conquista, 1972.
151
calundus foram os predecessores do candomblé no Brasil
345
. Gabriela dos Reis
Sampaio lembra que
Para melhor entender a formação dessa religião no Brasil, deve-se
investigar a importância de certas orientações tradicionais africanas, que
permaneceram em grande medida com os cativos, apesar das
diferenças e especificidades dessas orientações em cada contexto e das
transformações que ocorreram com a mudança forçada para as
Américas. (...) A presença dessas orientações de origem africana nas
bolsas de mandinga tinham um sentido muito especifico, no contexto da
escravidão colonial, ligados às tentativas dos negros de sobreviver em
um ambiente hostil e violento como o que enfrentavam no Brasil
346
.
A África aparece nas narrativas de Paulino da Mata não apenas como
referência de ancestralidade, mas também de identidade. Ele busca, através de
novas tecnologias como o cinema -, saber/conhecer resquícios de seu passado
africano.
tive no cinema. Nunca pude conseguir pra saber o mundo da África
mais direito. Todo sábado ia no cinema. Todo sábado ia no cinema. Mas
a África é uma coisa, um lado perdido pra mim
347
.
Não sabemos a data do falecimento do Senhor Paulino da Mata. Mas ele
deixou para nós uma “imagem” que poderia representar muitos descendentes de
escravos no Brasil que viveram e tiveram a experiência in loco de ser um
“observador” da sociedade e sistema de trabalho baseado no escravismo. Quanto
ao passado africano dele? Ele morreu com a frustração de não ter conhecido
parte de si. Uma identidade perdida, uma cidadania jamais alcançada. Um
brasileiro morreu sem ter o direito de reconhecer-se como cidadão, muito menos
conhecer a si mesmo.
345
SAMPAIO. Gabriela dos Reis. Tenebrosos mistérios: Juca Rosa e as relações entre crença e
cura no Rio de Janeiro Imperial. IN: CHALHOUB, Sidney; et al. (org.) Artes e ofício de curar no
Brasil: capítulos de história social. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003, p. 402.
346
Idem, p. 402.
347
PAULINO DA MATA. Entrevista a Paulo Rodrigues. 1973.
152
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O progresso e a modernidade trazidos para Rio Claro pelo café foram,
indubitavelmente, fruto da opulência desse produto que transformou não a
economia local, mas o cenário urbano da cidade.
A inauguração da estação ferroviária em 11 de agosto de 1876 veio a
beneficiar e dar impulso à economia e a acumulação cafeeira; onde antes se
escoava o café para a Capital da Província de São Paulo e para o Porto de
Santos através de mulas, durando cerca de três dias, reduziu-se esse tempo
drasticamente com a substituição das mulas pelo trem. O cenário urbano
transformava-se. Casarões que se erguiam do chão eram mostras da riqueza dos
fazendeiros cafeicultores rioclarenses.
Mas, os pilares dessa riqueza foram erguidos por mãos escravas, que com
os mercados favoráveis ao café o seu número, na cidade, aumentava a cada ano;
mesmo com a elite, política e letrada da época, associando as idéias de
progresso, modernização e civilização às transformações urbanas e
populacionais, permanecia o silêncio sobre questões étnicas ante os
trabalhadores. Silenciamento, que se fazia, por vezes, de forma politizada.
Tentou-se, portanto, nas ultimas décadas do culo XIX, impor uma nova
ordem social a partir dos projetos de modernização e civilização idealizados pelas
elites urbanas da cidade de Rio Claro, onde estavam no centro das atenções as
reformas urbanísticas, o desenvolvimento econômico e a inserção de
trabalhadores estrangeiros provenientes da Europa. Paralelamente a isso, houve
a tentativa de se resistir a essa imposição a partir da articulação dos mais
diversos grupos sociais; particularmente, os escravos, os forros e os ex-escravos.
153
Foi nesse cenário que nos deparamos com histórias como a de Joaquim
Bento; Anna e Maria Ambrosina; Marcelino; e a associação e estranha
solidariedade entre os libertos João Gonçalves, João Garcia, Manoel Carneiro,
Honorato Bravo com o escravo Francisco. Histórias marcadas por sucessos e
fracassos, violência e denúncia, solidariedade e conflitos; mostrando que esses
sujeitos sociais construíram suas próprias noções de liberdade em suas trajetórias
no quotidiano escravista.
A complexidade das relações sociais no final do século XIX sugere que
havia uma “cultura da violência” que, na década de 1890, chegou até a fazenda
Paraguassú, colocando um fim na aparente harmonia lá existente. Violência,
também, mostrada com sofrimento nas narrativas do Senhor Paulino da Mata.
Ao analisar e retomar o fio do quotidiano de alguns “figurantes mudos” da
nossa história pretendeu-se reconstituir e interpretar suas experiências e
sociabilidades à luz do significado que se davam à liberdade numa sociedade
escravocrata; mesmo depois de abolida a escravidão. Isso significou observar,
através das fontes analisadas, as diversas questões relacionadas a maneira como
esses indivíduos, egressos do cativeiro, foram inseridos na sociedade brasileira
no final do século XIX; mostrando, também, o aspecto multifacetado que teve o
quotidiano do cativeiro no Brasil.
No decorrer do trabalho procuramos mostrar que à margem do discurso
oficial e mesmo de um processo histórico contraditório que resultou na Lei de 13
de maio de 1888, circularam personagens que, de distintas maneiras, utilizaram-
se de brechas deixadas pela legislação tentando transformar seu estatuto jurídico
e ascender à liberdade; falo aqui do direito ao pecúlio e das ações de liberdade
movidas por escravos nos tribunais, onde buscavam a liberdade por um caminho
difícil e tortuoso, que nem sempre chegava ao resultado esperado.
154
Dentro da baliza temporal que nos propusemos estudar foram promulgadas
as leis que mais marcaram o sistema escravocrata no Brasil: a Lei Rio Branco de
28 de setembro de 1871 (Lei do Ventre Livre), a Lei Saraiva-Cotegipe de 28 de
setembro de 1885 (Lei dos Sexagenários) e por fim a Lei de 13 de maio de 1888
(Lei Áurea); essas leis mostraram claramente o aspecto gradual que teve a
“questão do elemento servil” no parlamento imperial do Brasil. Mas, paralelamente
e concomitantemente às discussões políticas, a atuação de escravos, libertos e
homens livres foi fundamental no desmoronamento do sistema escravocrata no
País.
Porém, mesmo após a ascensão à liberdade, muitos indivíduos egressos
do cativeiro continuaram sendo subjugados, carregando as marcas do seu
passado gravadas na simples cor da sua pele.
155
FONTES
1. Fontes manuscritas
Acção de liberdade por indenização de valor. Processo 008 1885/1886 Caixa
CCR 38/153 1885/1886. Benedicto, escravo de Dona Maria Joaquina da
Conceição.
Acção de liberdade por indenização de valor. Processo 007 1886 Caixa CCR
1 40/153 – 1886. Marcelina, escrava do Major João Alves da Silva Cruz.
Acção de liberdade por indenização de valor. Processo 008 1886 Caixa CCR
1 40/153 – 1886. Bernardina, escrava de Leonidas Moreira.
Acção de liberdade por indenização de valor. Processo 031 1886 Caixa CCR
1 41/153 – 1886/1887. Margarida, escrava de Agostinho Leme do Prado.
Acção de liberdade por indenização de valor. Processo 007 1887 Caixa CCR
2 41/153 1886/1887. Agostinho e Miliana, escravos de Joaquim Corrêa de
Negreiros.
Acção de liberdade por indenização de valor Liberdade Condicional. Processo
013 1887 Caixa CCR 1 43/153 1887/1888. Francisca e Virginia, escravas
de Elias de Almeida Leite.
Acção de liberdade por indenização de valor Liberdade Condicional-Prestação
de serviços por tres annos. Processo nº 018 1887 Caixa CCR 2 41/153
1886/1887. Francisca, escrava de Dona Maria Antonia de Godoy Romeira.
Acção de liberdade por indenização de valor. Processo 008 1887 Caixa CCR
2 41/153 – 1886/1887. Antonio, escravo de Joaquim Corrêa de Negreiros.
Acção de liberdade por indenização de valor. Processo 023 1887 Caixa CCR
1 43/153 1887/1888. Benedicto e Ignácia, escravos da herança de Dona Maria
Innocencia de Athayde.
156
Processo nº 004. Caixa: CCR 1885 1 - 38/153. A Justiça contra Domingos
Bianqui.
Processo nº 010. Caixa: CCR – 1885 – 38/153. A Justiça contra Sabino de Tal.
Processo 019. Caixa: CCR 1885 1 - 39/153. A Justiça contra João
Gonçalves, João Garcia, Manoel Ramos, Manoel Carneiro, Honorato Bravo e
Francisco (escravo de Antonio Pompeu de Toledo).
Processo 015. Caixa: CCR 1886 2 - 40/153. A Justiça contra Bibiana
(escrava de Sebastião de Barros Silva).
Processo 022. Caixa: CCR 1886 2 - 41/153. A Justiça contra Antonio
Joaquim de Andrada e Maria da Cunha.
Processo 026. Caixa: CCR 1886 1 - 40/153. A Justiça contra Joaquim
Bento.
Processo 032/1891. Caixa: CCR 1890/91 48/153. Amancio de Camargo
Neves - Denunciante. João Grande – Denunciado.
Sumanário de culpa 1894. Processo 019/1894. Caixa: CCR – 1893/94 2
56/153. A Justiça - Autora. O preto Jacyntho - Réu.
2. Fontes impressas
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Collecção de Leis do Império do Brazil. Rio de Janeiro: Laemmert, 1872.
157
Collecção de Leis do Império do Brazil. Rio de janeiro: Laemmert, 1886.
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Diário do Rio Claro. 3 de junho de 1893.
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O Século XIX. 1 de setembro de 1886.
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1886. São Paulo, Typ. de Jorge Seckler & C. 1886.
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Corrêa de Oliveira, no dia 15 de fevereiro de 1886. São Paulo, Typ. de Jorge
Seckler & C. 1886.
158
Relatório da Câmara Municipal de São João do Rio Claro enviado ao Presidente
da Província de São Paulo. 10 de junho de 1888.
159
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167
ANEXOS
168
Sentença do juiz Dr. Joaquim José Madeira, em que liberta o escravo Beneticto e
sua mulher Ignácia. Arquivo Histórico Municipal de Rio Claro “Oscar de Arruda
Penteado”.
169
Primeira página do processo envolvendo as libertas Anna e Maria Ambrosina e o
italiano Domingos Bianqui.
170
Denúncia de castigo físico de um senhor em um ingênuo. O Tempo, 23 de julho
de 1885. Museu Histórico e Pedagógico “Amador Bueno da Veiga”.
171
Jornal pró-abolição, O Século XIX faz críticas ao sistema escravocrata mostra a
contradição desse sistema com a independência do Brasil. 19 de setembro de
1886. Museu Histórico e Pedagógico “Amador Bueno da Veiga”.
172
Primeira página do processo em que é denunciante Amancio de Camargo Neves
e denunciado o liberto João Grande. Arquivo Histórico Municipal de Rio Claro
“Oscar de Arruda Penteado”.
173
Testemunho de Maria, ex-escrava de Dona Ritta de Camargo. Processo em que é
denunciante Amancio de Camargo Neves e denunciado o liberto João Grande.
Arquivo Histórico Municipal de Rio Claro “Oscar de Arruda Penteado”.
174
Folha de rosto do processo em que é réu o preto Jacynto. Arquivo Histórico
Municipal de Rio Claro “Oscar de Arruda Penteado”
175
Anúncio no jornal Diário do Rio Claro a pedido do Senhor José Calazans de
Negreiros. 16 de junho de 1892. Museu Histórico e Pedagógico “Amador Bueno
da Veiga”.
176
Anúncio a pedido publicado no jornal Diário do Rio Claro, a procura de posto de
administrador de fazenda. 6 de março de 1894. Museu Histórico e Pedagógico
“Amador Bueno da Veiga”.
177
Anúncio a pedido, assinado por João Grande, publicado no jornal Diário do Rio
Claro em 23 de junho de 1894. Museu Histórico e Pedagógico “Amador Bueno da
Veiga”
178
Fruto da opulência do café, casarões erguiam-se nas áreas centrais da cidade.
Foto: anônimo. Museu Histórico e Pedagógico “Amador Bueno da Veiga”.
179
Frente da estação ferroviária inaugurada em 11 de agosto de 1876.
180
Fachada do Gabinete de Leitura inaugurado em 11 de maio de 1890.
181
Atestado de falecimento em que a falecida Lucia é descrita como “preta” em 25 de
junho de 1894.
182
Outro atestado de falecimento em que a falecida Carolina também é descrita
como “preta”.
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