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UNIRIO – UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CLA- CENTRO DE LETRAS E ARTES
ESCOLA DE TEATRO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO
DOUTORADO EM TEATRO
AQUI HÁ UMA MARGEM
- TEATRO E EXÍLIO EM GERTRUDE STEIN -
por
INÊS CARDOSO MARTINS MOREIRA
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Teatro do Centro de Letras e Artes da universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro, para a
obtenção do título de doutor em teatro.
Orientadora: Prof. Dra. Flora Süssekind
Rio de Janeiro, novembro de 2007
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Moreira, Inês Cardoso Martins.
M838 “Aqui há uma margem” : teatro e exílio em Gertrude Stein / Inês Cardoso
Martins Moreira, 2007.
401 f.
Orientador: Flora Süssekind.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
Centro de Letras e Artes. Doutorado em Teatro, 2007.
1. Stein, Gertrude, 1874-1946 – Crítica e interpretação. 2. Teatro (Litera-
tura) – Estados UnidosHistória e crítica. 3. Teatro (Literatura) – Traduções.
4. Representação teatral – Séc. XX. I. Süssekind, Flora. II. Universidade Fede-
ral do Estado do Rio de Janeiro (2003- ). Centro de Letras e Artes. Doutorado
em Teatro. III. Título.
CDD - 792.0973
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If the world is round would a lion fall off.
(STEIN, Gertrude. The world is round)
MOREIRA, Inês Cardoso Martins. “Aqui há uma margem”: teatro e exílio em Gertrude
Stein. 2007. 401 f. Tese (Doutorado em Teatro)–Centro de Letras e Artes, Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
RESUMO
Esta tese, sobre a dramaturgia e o pensamento sobre teatro de Gertrude Stein, parte de
um elemento biográfico o auto-exílio -, que tomo emprestado às muitas biografias de
que Stein foi objeto e às autobiografias escritas por ela, para transplantá-lo para o estudo
da relação de desafio e deslocamento que a escritora mantém com alguns dos alicerces
das formas dramáticas canônicas. O estudo se desdobra em três vertentes mutuamente
complementares: a análise crítica dos textos de Stein, a experimentação cênica, baseada
em laboratórios de espacialização das peças steinianas, e a tradução para o português de
alguns dos seus textos teatrais.
Palavras-chave: Dramaturgia americana. Análise de dramaturgia. Gertrude Stein.
Teatro. Teatro Contemporâneo. Tradução de dramaturgia.
MOREIRA, Inês Cardoso Martins. “Aqui há uma margem”: teatro e exílio em Gertrude
Stein. 2007. 401 f. Tese (Doutorado em Teatro)–Centro de Letras e Artes, Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
ABSTRACT
This dissertation, on Gertrude Stein’s playwriting and meditations on theatre, has its
starting point in a biographic element the self-exile -, which I take from the many
biographies about Stein and from the autobiographies written by her, to translate to the
study of the relation of challenge and dislocation which the writer maintains with some
of the main foundations of the canonical dramatic forms. The essay takes three
directions mutually complementary: the critical analysis of Stein’s texts, the scenic
experimentation, based on staging laboratories of Stein’s plays, and the translation to
Portuguese of some of her texts.
Palavras-chave: Dramaturgia americana. Análise de dramaturgia. Gertrude Stein.
Teatro. Teatro Contemporâneo. Tradução de dramaturgia.
Sumário
Nota Introdutória p. 1
1. Comentário sobre a recepção crítica a Gertrude Stein. p. 10
1.1 A primeira recepção p. 12
1.2. Edmund Wilson e Donald Sutherland p. 22
1.3. Ryan, Bowers e Bay-Cheng p. 25
1.4. Outras leituras p. 39
1.5. Exílio / deslocamento / movimento p. 42
2. Lá não existe lá: exílios. p. 44
2.1 O ritmo do mundo visível p. 46
2.2 It is not real but it is really there p. 61
2.3 Identidade e paisagem p. 73
3. Quando eu sou eu sou eu eu: escrita e experiência. p. 89
3.1 Escritas do eu p. 91
3.2 Portrait writing p. 98
3.3 A peça-paisagem p. 104
4. “No lugar no lugar de tudo, num lugar”: anotações sobre o espaço. p. 115
4.1 Cortina, movimento e relação p. 116
4.2 A luz steiniana p. 124
4.3 O espaço textual p. 131
4.4 Os objetos, a casa, a selva. p. 139
5. Tempo e ritmo: Cinema – fotografia – movimento – teatro p.145
5.1 Quietude silenciosa e movimento rápido p. 146
5.2. “Ida-Ida” p. 174
5.3 Qual um está aí eu sou eu ou outro um”. p. 186
Conclusão p. 199
Bibliografia p. 204
ANEXOS
Anexo I – Traduções.
Ver-Ouvir Stein p. 212
Textos traduzidos p. 226
Anexo II – “Let us play a play” - Laboratórios Experimentais: Gertrude Stein em cena.
Memorial p. 327
Roteiro do espetáculo p. 368
1
NOTA INTRODUTÓRIA
Em disciplina ministrada pela Professora Flora Süssekind, em 1999, ainda
durante o curso de graduação em Teoria do Teatro, foi que tive contato pela primeira
vez com o teatro de Gertrude Stein. A disciplina, intitulada Análise das Concepções
Teatrais e Dramatúrgicas, voltava-se para as dramaturgias e escritos sobre teatro de
Harold Pinter e Gertrude Stein e abordava, ainda, a escrita nica do encenador
americano Richard Foreman. Dos três autores analisados, a obra de Gertrude Stein
chamou especialmente a minha atenção. E foi este o tema do trabalho que apresentei
então no final do semestre letivo. Neste trabalho, que intitulei Identidade e paisagem em
“Doutor Faustus liga a luz de Gertrude Stein, o que fiz foi tentar aproximar os
mecanismos de construção dramatúrgica usados pela autora nesta peça de 1938 de dois
textos ensaísticos seus: “Plays” e “What are master-pieces and why are there so few of
them”. O trabalho tratava dos personagens, nesta obra de Stein, do modo como ela os
apresenta e multiplica segundo um processo de desmonte de identidades.
Na ocasião, meu interesse pelo estudo de personagens e desmontes de
identidades estava diretamente ligado ao objeto da minha monografia de final de curso,
então definido, que seria a análise dos textos de ‘Strip-tease e teatro irregular’ do
poeta catalão Joan Brossa. Eu pretendia observar, na dramaturgia de Brossa, os
mecanismos de construção e de desconstrução das personagens, imagens e figuras que
povoavam seus textos. Ao longo do trabalho, desenvolvido no primeiro semestre de
2000, este estudo transbordou para além da alise dos personagens brossianos e me
permitiu levantar questões significativas para o estudo da cena contemporânea.
Questões que diziam respeito também à mudança de ângulo com que passei a pensar o
teatro durante os anos de minha formação universitária. O que se desenrolou ao longo
do trabalho sobre a poesia nica de Joan Brossa, e da elaboração de monografia cuja
versão final foi intitulada de A escrita como performance (análise de “Strip-tease e
teatro irregular”, de Joan Brossa), foi, na verdade, a formação de uma visão de teatro,
para mim, tão distinta daquela que eu tinha antes de ingressar na universidade que me
obrigou a pensar em recursos também distintos de leitura, interpretação, encenação.
Identifiquei, então, na dramaturgia de Gertrude Stein características que me
possibilitariam dar prosseguimento à investigação iniciada com a análise dos textos de
Brossa. E em 2001 ingressei no mestrado em teatro do Programa de s-Graduação da
UNIRIO com um projeto no qual eu pretendia dar conta da análise dos procedimentos
2
dramatúrgicos de Stein, no qual previa também a realização de Laboratórios
Experimentais com algumas de suas peças. Este trabalho pôde ser realizado,
entretanto, no primeiro semestre de 2004, depois da minha passagem direta do mestrado
para o doutorado, uma vez acatada pelo Programa de Pós-Graduação em Teatro da
UNIRIO a sugestão nesse sentido da banca de qualificação (composta pelas Profas. Beti
Rabetti, Maria Helena Werneck e Flora Süssekind) que avaliou o meu trabalho em maio
de 2003. O projeto ganhou outra dimensão graças a esta passagem de nível durante a
minha pós-graduação. E pude não só realizar as experimentações cênicas, como também
ampliar a abrangência do meu esforço de tradução de textos de Stein, trabalho este que
eu já vinha realizando desde o início da minha pesquisa.
O estudo passou a abarcar, então, três direções complementares. A primeira
delas é a análise de peças e libretos de Gertrude Stein, tomando como ponto de partida a
estreita ligação entre sua obra e sua condição de auto-exilada (a autora americana tendo
passado, como se sabe, a maior parte de sua vida em Paris), e me esforçando, assim,
para operar analiticamente, redefinindo-o, com um dado a rigor documental, biográfico.
Nessa linha, além da utilização de uma bibliografia crítica (selecionada), incluindo
estudos sobre exílio e sobre personagem, tempo e espaço no teatro moderno e no
contemporâneo, tomei como referência fundamental uma série de textos ensaísticos e
palestras, pertinentes a estas questões, da autoria da própria Gertrude Stein. Com
relação aos ensaios steinianos, trabalhei especialmente com “What are master-pieces
and why are there so few of them”, “Portraits and repetition”, “Poetry and Grammar” e
Plays”, este último uma revisão radical dos conceitos de peça de teatro, tempo teatral,
paisagem e personagem.
O segundo campo em direção ao qual a pesquisa se dirigiu foi o da produção de
um espaço de junção, de justaposição e interferência entre a prática teórica e a prática
cênica. Em laboratórios práticos operei, ao lado dos atores-pesquisadores que
trabalharam comigo, e sob a orientação da Profa Sylvia Heller, a passagem dos textos de
Gertrude Stein do papel para a cena. Estes laboratórios tiveram como objetivo a
obtenção de uma compreensão diferenciada sobre os processos de figuração e sobre as
concepções de espaço e tempo steinianos, trabalho complementar ao que procurei
realizar no campo da análise propriamente dramatúrgica. E que tencionava investigar
também o tipo de atuação, de encenação, o tipo de trabalho de ator que uma dramaturgia
como esta de fato exigia. A descrão dos encontros do Laboratório Experimental, e de
3
algumas questões que surgiram a partir das experimentações, pode ser lida no segundo
anexo a esta tese, que intitulei de Let us play a play”.
Ao longo de todo o processo de pesquisa me dediquei à tradução de obras de
Gertrude Stein. Este é o terceiro campo em que se desdobra esse trabalho. O Anexo II
deste estudo traz o resultado deste esforço que hoje inclui a versão para o português não
só de determinadas peças, como também de dois roteiros cinematográficos, de um
trecho de um romance e de um pequeno romance de Stein. A diversidade dos textos
traduzidos reflete, a meu ver, o tensionamento por parte de Stein dos modelos genéricos
que emprega e, ao mesmo tempo, a diversidade de caminhos para os quais o trabalho
com a sua obra acabou me levando.
Parto, então, neste trabalho, de um elemento biográfico
1
o auto-exílio -, que
tomo emprestado às muitas biografias de que Stein foi objeto e às autobiografias
escritas por ela, para transplantá-lo para o estudo da relação de desafio e deslocamento
que a escritora mantém com alguns dos alicerces das formas dramáticas canônicas. À
ação linear, ela contrapõe a repetição, a variação. Ao desenvolvimento cronológico da
trama, uma combinação de "quietude silenciosa e movimento rápido". À composição
psicológica ou às tipologias de personagens, opõe um questionamento incessante da
identidade. À representação, opõe uma forte presentificação espaço-temporal dos
materiais cênicos e verbais em forma de peça-paisagem, jogo rítmico que sua escrita
põe em evidência.
Passo agora à descrição dos capítulos que compõem esta tese e que perseguem,
em territórios diversos, a mutação desse traço biográfico em elemento analítico.
Começo realizando, no primeiro capítulo, um comentário panorâmico, e crítico, sobre a
recepção obtida pelo teatro de Gertrude Stein. Dividi o panorama em cinco seções, a
primeira delas tratando da recepção de Stein por seus contemporâneos, tomando por
base The critical response to Gertrude Stein (2000), a coletânea de artigos e resenhas
sobre ela organizada por Kirk Curnutt. Na segunda seção, me volto para a observação
1
Não posso, pela amplitude, chamá-lo de biografema, mas, como este, acompanha o fluxo das imagens
steinianas. Cito a explicação de Roland Barthes em Sade, Fourier, Loyola, de 1971: “Se fosse escritor, e
morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um amigável e desenvolto
biógrafo, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: ‘biografemas’, em que a
distinção e a mobilidade poderiam deambular fora de qualquer destino e virem contagiar, como átomos
voluptuosos, algum corpo futuro, destinado à mesma dispersão!; em suma, uma vida com espaços vazios,
como Proust soube escrever a sua, ou então um filme, à moda antiga, onde não há palavras e em que o
fluxo das imagens (esse flumen orationis, em que talvez consista a ‘porcaria’ da escrita) é entrecortado,
como salutares soluços, pelo rápido escrito negro do intertítulo, a irrupção desenvolta de um outro
significante”. (Barthes, Roland. Sade, Fourier, Loyola. Lisboa, Edições 70, 1979, p. 14-15).
4
dos comentários de dois críticos em especial (Edmund Wilson, e Donald Sutherland)
que, a meu ver, demonstraram uma percepção diferenciada de outros contemporâneos
seus para o trabalho de Stein, e mais especificamente para seu teatro. A terceira seção
do capítulo trata da descrição e da análise das abordagens mais aprofundadas da
dramaturgia steiniana, destacando três pesquisadoras que se dedicaram exclusivamente
ao teatro de Stein. São elas Betsy Alayne Ryan, que escreveu o livro Gertrude Stein’s
theatre of the absolute (1981), Jane Palatini Bowers, que publicou, em 1991,“They
watch me as they watch this”: Gertrude Stein Metadrama e Sarah Bay-Cheng, que tem
o estudo monográfico mais recente voltado para o teatro de Stein, Mama Dada:
Gertrude Stein’s avant-garde theater, publicado em 2004. Além destes três livros,
outros ensaios e artigos de relevância para o estudo da dramaturgia steiniana. É destes
ensaios que trata a quarta seção deste primeiro capítulo. Seguindo-se, ainda, uma quinta
seção, na qual procuro expor a minha própria abordagem, e, de certo modo, situar, em
meio a esses trabalhos, o meu estudo sobre o teatro e o pensamento teatral de Stein e a
maneira como pretendo dialogar com esses estudos críticos.
No segundo capítulo“Lá o existe lá”: exílio e escrita -, trato especificamente
dos modos de “exílio” em Stein. Este capítulo é dividido em três seções. Na primeira,
O ritmo do mundo visível”, procuro fazer um breve levantamento biográfico das
inúmeras mudanças geográficas pelas quais Gertrude Stein passou desde a infância. A
sua primeira autobiografia, a Autobiografia de Alice B. Toklas serviu de fonte
fundamental para este levantamento, além de algumas biografias de Gertrude Stein,
como a de John Malcolm Brinnin e a de Diana Souhami, dentre outras. Procuro
relacionar aí os exílios steinianos às reflexões sobre o exílio e a condição de exilado de
John Berger, Elias Canetti, Edward Said, Julia Kristeva e J. Gerald Kennedy. Este
último dedica um capítulo inteiro de seu livro Imagining Paris : Exile, Writing and
American Identity à análise da relação de Gertrude Stein com Paris, cidade em que ela
escolheu viver, destacando como a capital francesa teve papel fundamental na
construção da identidade de Stein como escritora.
A frase que título à segunda seção deste capítulo, It’s not real but it’s really
there, descreve, segundo Gertrude Stein, a relação que um escritor deve ter com seu país
de exílio. A autora afirma que os escritores devem ter dois países: “Aquele ao qual
pertencem e aquele no qual eles realmente vivem”. O segundo é romântico, é separado
deles, não é real, “mas está realmente lá”. Nesta seção procurei mostrar, por meio da
análise de uma passagem da peça Doutor Faustus liga a luz, que a frase usada por Stein
5
para descrever o país de exílio de um escritor pode ser também usada, de certo modo,
para descrever a organização espacial proposta por ela em algumas de suas peças. Em
seguida passo a observar, nesta mesma peça, e em Três irmãs que não são irmãs, a
relação que nelas se estabelece entre espaço e identidade.
Para finalizar esta seção volto a tratar do exílio de Gertrude Stein, fazendo uma
comparação entre as frases There is no chair therede “Três irmãs”, e There is no
there there, do livro Autobiografia de todo mundo. Nesta última frase Stein se refere ao
lugar em que ela viveu quando criança e que ela tem oportunidade de visitar quando faz
sua única viagem aos Estados Unidos depois de viver na França por três décadas.
A última subdivisão deste capítulo, que leva o título de “Identidade e paisagem”,
trata das diversas maneiras pelas quais Stein problematiza a identidade em seus
personagens. Por meio do uso de recursos como, por exemplo: metamorfoses, como as
que acontecem com os personagens de Look and long, ou nomes que são alterados ao
longo da peça, como ocorre com dois dos personagens de The mother of us all. Em
outras peças, surgem vozes sem dono, já que a autora não indica quem deverá enunciar
as falas, e surgem nomes que são ditos sem que estas figuras cheguem a entrar em cena,
e há, ainda, pronomes, tais como “eles”, “dela”, sem que se saiba quem são “eles” ou
quem é “ela”. Tais recursos utilizados por Gertrude Stein acabam por manter seus
personagens em um exílio constrdo dramaturgicamente.
No terceiro capítulo “Quando eu sou eu sou eu eu: escrita e experiência” -
parto da definição de experiência proposta por John Dewey em seu textoArt as
experience” (1934) para analisar a relação entre escrita e experiência na obra de
Gertrude Stein. Penso que é a instância autobiográfica, que permeia os variados
gêneros trabalhados por Stein, que permite observar esta relação.
Na primeira seção do capítulo, “Escritas do eu”, parto das considerações feitas
por Wendy Steiner, em seu texto Exact resemblance to exact resemblance. The literary
portraiture of Gertrude Stein (1979), e por James M. Cox, em seu texto Autobiography
in America”, para tratar das duas autobiografias de Stein: Autobiografia de Alice B.
Toklas e Autobiografia de todo mundo. Procuro perceber as características que
diferenciam estas duas autobiografias de autobiografias mais convencionais, a começar
pela descentralização do sujeito autobiográfico, verificável pelo título da primeira
delas, Autobiografia de Alice Toklas. Nesta, a personagem Alice Toklas, que seria, a
princípio, o sujeito do qual deveria tratar a autobiografia, é, no entanto, exilada de sua
6
própria autobiografia, e passa a funcionar como uma narradora que, na verdade, discorre
sobre Gertrude Stein, autora do livro e de quem a autobiografia realmente trata.
na sua segunda autobiografia, Autobiografia de todo mundo, além de o título
sugerir um sujeito autobiográfico indefinido, a identidade da própria autora, da própria
Stein, é constantemente questionada e relativizada. Stein questiona nesta autobiografia
até mesmo a veracidade das suas lembranças, sugerindo a impossibilidade do gênero
autobiográfico, uma vez que
você não consegue se lembrar direito e se se lembra direito não parece
direito e é claro que o parece direito porque não é direito. Voé
claro nunca é você mesmo.
2
Na segunda seção do terceiro capítulo, passo a tratar, não mais de suas
autobiografias, mas de seus “portrait writings”, nos quais Stein “pinta” os retratos dos
outros. Depois de escrever “Ada”, em 1910, retrato de Alice Toklas, Stein passa a
retratar quase todas as pessoas que conhece. Mas os retratos, a exemplo das duas
autobiografias, fogem daquilo que deveria ser seu objetivo fundamental. Em vez de
delinear com formas claras o retratado, nos portrait writings” steinianos não se
encontrarão descrições sicas ou biográficas.
Na terceira e última seção do capítulo, passo à alise da relação entre escrita e
experiência em algumas das peças de Gertrude Stein. E o que observarei, neste
momento, em primeiro lugar, serão as muitas referências biográficas ou autobiográficas
que surgem em seu teatro. Assim como a presença de personagens, frases ou pedaços de
conversa extrdos do seu cotidiano. Dou como exemplo de inserções autobiográficas
um trecho da peça O rei ou alguma coisa. E Contando os vestidos dela, peça que pode
ser lida como um auto-retrato do cotidiano de Gertrude Stein e Alice Toklas.
Outro indício da relação entre escrita e experiência nas peças steinianas é a sua
organização temporal, seu desenrolar num constante tempo presente - que o supõe
passado nem futuro. E a peça Três irmãs que não são irmãs serve de exemplo, pois seus
personagens, como se não pudessem lembrar de si mesmos, a todo o momento
reafirmam suas identidades. Este compromisso com o tempo presente é tematizado pela
autora em Plays, no qual ela define a noção de peça-paisagem. Neste ponto, eu cito
Wendy Steiner em seu livro Exact resemblance to exact resemblance, e sua síntese
2
STEIN, Gertrude. Autobiografia de todo mundo. Tradução de Júlio Castañon Guimarães e José
Cerqueira Cotrim Filho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. P.75
7
sobre a paisagem steiniana: “Uma peça, para Stein, não tem enredo. É pura atividade
visível”. Assim como a observação de uma paisagem, que é também “pura atividade
visível”.
A escrita steiniana em geral - e não seu teatro - seria como paisagem em
movimento, pois também atua num campo de constante experimentação, forçando os
limites dos neros e mesclando suas características, mantendo-se, desse modo, num
movimento constante entre um e outro. E entre repetições, variações, recomeços.
Passo, em seguida, ao Capítulo IV “No lugar no lugar de tudo, num lugar”:
Anotões sobre o espaço nas peças de Gertrude Stein”.
Se a escritora afirma em Plays que uma peça é exatamente como uma
paisagem”. E, considerando que uma paisagem é um lugar, um espaço sico, inicio este
capítulo, dedicado à questão do espaço nas peças de Gertrude Stein, voltando ao texto
Plays, ao início do raciocínio de Stein, a fim de compreender melhor esta relação que
ela estabelece entre teatro e paisagem. Faço, então, na primeira seção do capítulo -
“Cortina, movimento e relação” - um resumo de Plays, dando maior atenção às questões
espaciais tratadas por Stein aí. Como, por exemplo, suas considerações a respeito da
presença da cortina. Elemento que tanto a preocupa que a leva a exagerar ao extremo os
seus movimentos em algumas de suas peças, como em Listen to me (1936), na qual se
contam 34 movimentos deste tipo.
É importante observar que muito poucas peças de Stein foram encenadas até
hoje. A própria autora assistiu a apenas duas encenações e não pretendeu em nenhum
momento transpô-las para o palco ela mesma. Deve-se levar em consideração também
que, na maioria de suas peças, não indicações de cenário, de movimentos de entrada
e saída e de movimentações dos personagens em cena. Portanto, neste estudo, tento
observar índices de espacialidade que não estão muito explícitos nos textos. Detenho-
me, então, na luz steiniana, no “espaço textual” e nos objetos, na casa.
No quinto capítulo, sobre tempo, ritmo, movimento, analiso a relação de Stein
com o cinema, a fotografia, o telégrafo. Inicio a seção com um estudo do ensaio
Portraits and repetition”. O que me interessa observar aí é a distinção que ela faz entre
repetiçãoe “insistênciae tento mostrar também de que maneira estes conceitos são
trabalhados em seus textos. Minha abordagem para a questão da temporalidade em
Gertrude Stein tem início com as análises de seus dois roteiros cinematográficos, Um
filme” (1920) e “Filme: duas irmãs que não são irmãs” (1929). Passo, em seguida, à
8
análise da peça “Fotografia” e da maneira pela qual a autora trabalha a noção de
movimento no interior de suas peças. Neste capítulo abordo ainda as questões do duplo,
presentes em diversos textos steinianos, e a questão recorrente da identidade, discutida
por ela principalmente no ensaio “What are master pieces and Why are there so few of
them” e no livro “The geographical history of America”. Tento perceber de que maneira
Stein trabalha a temporalidade em sua obra, por intermédio das relações entre
movimento e não movimento, dos duplos e reproduções e da problematização das
identidades, destacando a técnica que ela chama de “quietude silenciosa e movimento
rápido”.
Para a realização desta tese contei com o auxílio de diversas pessoas às quais
gostaria de agradecer aqui. Devo ao Professor Haun Saussy, da Universidade de Yale,
o a obtenção de cópia do texto Mrs Emerson”, de Stein, que ele me mandou por
e-mail, quando eu estava na reta final da pesquisa, mas foi também graças à sua
gentileza, ao me apresentar aos bibliotecários da Beineke Library, de Yale, que pude
consultar os manuscritos de Stein, em viagem que fiz aos EUA em 2006. Agradeço a
Ana Bernstein por ter trazido para mim, dos EUA, uma pia do livro, que, na ocasião,
acabara de ser lançado, de Sara Bay-Cheng, sobre o teatro de Gertrude Stein e por me
ceder as gravações raríssimas das versões de Robert Wilson e do Wooster Group para a
ópera de Stein Doutor Faustus liga a luz. A Natalia Brizuela, que, pacientemente, fez
cópias para mim, na Biblioteca da Universidade de Berkeley, de todas as peças de Stein
que não se encontram nos três principais livros que reúnem sua dramaturgia. Foi graças
a Natália que pude ter acesso a todo o corpus dramatúrgico steiniano listado por Sara
Bay-Cheng ao final de seu estudo. A Dulce Cardoso pela colaboração na tradução do
texto, Filme. Duas irmãs que não são irmãs, escrito originalmente em francês, por
Gertrude Stein.
Agradeço também a todos os professores do Departamento de Teoria do Teatro
da UNIRIO que acompanharam meus estudos e esforços no sentido de um
aprimoramento intelectual ao longo desses anos, não durante a minha pesquisa de
mestrado e doutorado, como também durante toda a graduação, que iniciei em 1996.
Toda a minha formação universitária se fez na UNIRIO. Foi como bolsista de Iniciação
à Pesquisa, orientada pela Profa. Beti Rabetti, que aprendi a trabalhar em bibliotecas, a
observar com minúcia textos e documentos. A argüição generosa de José da Costa, ao
compor a banca da minha monografia, a de Maria Helena Werneck e Beti Rabetti, no
meu exame de qualificação, a leitura de Ana Bulhões de uma primeira versão do
9
memorial que relata o meu laboratório experimental, as sugestões bibliográficas de
Evelyn Furquin e Luiz Camillo Osório foram todas contribuições importantes para o
desenvolvimento do meu trabalho.
Agradeço, com muito carinho, à Profa. Sylvia Heller pela orientação do trabalho
realizado por mim nos Laboratórios Experimentais. E também aos atores-pesquisadores
que foram meus parceiros naquelas experimentações que marcaram para mim o
primeiro semestre de 2004: Angela Rebello, Letícia Medella, Luana Dias, Alia
Francyca, David Kaptzki, Tato Consorti, Christian Landi, Gisela Munk. Agradeço
também a Fernanda Donini, que, na reta final, aceitou trabalhar como assistente de
direção e substituiu um dos atores que precisou sair. Agradeço a Cica Modesto por se
dispor a assistir a um dos ensaios e não a me ajudar a pensar sobre o que eu estava
fazendo como a dar idéias para o figurino. Ao meu irmão Carlos Cardoso, fico grata por
ter me ajudado a trabalhar o som do espetáculo. Sem essas pessoas o espetáculo Eu me
ouço falando” não teria acontecido.
Agradeço, por fim, a Flora Süssekind, que foi quem primeiro me apresentou à
dramaturgia e ao pensamento teatral de Gertrude Stein e cuja orientação me incentivou
a tentar ir sempre além. A acreditar no meu trabalho e a ter coragem.
10
CAPÍTULO I
Comentário sobre a recepção crítica a Gertrude Stein
11
Quando me interessei pelo estudo da dramaturgia e do pensamento teatral
steinianos, em 1999, ainda nos últimos anos da minha Graduação em Teoria do Teatro,
o que primeiro me chamou a atenção foi o número reduzido de estudos sobre ela e de
traduções de obras da escritora para o português. O que havia disponível eram as suas
duas autobiografias, Autobriografia de Alice B. Toklas e A autobiografia de todo mundo
e o romance Três vidas. Caetano Veloso também traduzira um trecho de “Três vidase
quatro dos retratos steinianos haviam sido vertidos para o português por Augusto de
Campos e publicados pela Editora Noa-Noa, em 1989. Havia ainda uma tradução
portuguesa para o romance Ida. Mario Faustino publicara no suplemento literário do
Jornal do Brasil, sua versão para a palestra “Poesia e Gramática”. Sobre sua dramaturgia
ainda eram mais escassas as referências. Campos traduziu trechos de dois textos teatrais
steinianos, o libreto Quatro santos em três atos e a peça Escute aqui, versões que foram
publicadas em seu livro O anticrítico (1986). Julio Castañon Guimarães traduziu cinco
peças curtas publicadas na revista Percevejo 9. E havia ainda uma tradução de Fábio
Fonseca de Melo para a peça Doutor Faustus Liga a Luz publicada pela Editorial Cone
Sul. Até aquela ocasião eram essas as traduções que se encontravam disponíveis.
Estudar a obra de Stein e, sobretudo, tentar delimitar seu movente corpus
dramatúrgico envolve, ainda hoje, necessariamente, uma pesquisa bibliográfica extensa
pela crítica de língua inglesa e pelas edições e estudos que a tomam por objeto. Este,
que foi o percurso inicial do meu trabalho sobre Gertrude Stein, será reproduzido,
parcialmente, neste capítulo introdutório, que versará sobre a recepção crítica de Stein,
notadamente de sua dramaturgia. Cabendo assinalar como foram poucos os estudiosos a
se interessarem fundamentalmente por este aspecto de sua obra.
Serão focalizados aqui os ensaios monográficos voltados especialmente para os
seus textos teatrais, em particular os livros: Gertrude Stein’s theatre of the absolute
(1981), de Betsy Alayne Ryan; They watch me as they watch this: Gertrude Stein’s
metadrama (1991), de Jane Palatini Bowers e Mama Dada: Gertrude Stein’s Avant-
Garde Theater (2004), de Sarah Bay-Cheng. E, além destes trabalhos, que tratam
especificamente da dramaturgia steiniana, serão levados em consideração também
artigos e ensaios de outros críticos, que se dedicaram à análise de sua obra como um
12
todo, mas que comentam, em certos momentos, peças suas ou reflexões steinianas sobre
teatro.
Antes de apontar e discutir as principais hipóteses contidas nos estudos sobre o
teatro de Stein, da autoria de cada uma das três ensaístas citadas acima, considero
importante desenhar, em primeiro lugar, um breve panorama da recepção steiniana de
modo geral.
1. A primeira recepção
No ano de 2000, foi lançado um livro fundamental para o estudo da recepção
steiniana. Trata-se de The critical response to Gertrude Stein, extenso volume, editado
por Kirk Curnutt, professor da Troy State University Montgomery, do Alabama,
responsável por essa vasta reunião de resenhas, críticas, notas de jornal e ensaios sobre
Gertrude Stein, começando de 1909, ano em que a autora americana, exilada
voluntariamente na Fraa durante toda a sua vida produtiva, publica o livro Três vidas.
A compilação se estende até ensaios mais recentes, o último deles de 1996. Na
introdução ao seu trabalho, Kirk Curnutt fornece dados importantes e relevantes
contextualizações que ajudam a compreender as linhas mestras da recepção crítica a
Stein. Reforça, por exemplo, uma informação presente em alguns estudos biográficos,
assinalando que a escritora começou a publicar seus textos em editoras pequenas e que,
muitas vezes, pagava pela edição dos livros. As tiragens eram acanhadas, entre 500 e
1.000 exemplares. Esses livros tinham, portanto, uma distribuição bastante limitada e
muitos deles não chegaram a ser resenhados quando foram publicados pela primeira
vez. Os volumes How to write, Before the flowers of friendship faded friendship faded,
e Operas and plays, são alguns dos que quase não chegaram a ser comentados pela
crítica devido à parca distribuição da editora Plain Editions, criada por Gertrude Stein e
Alice Toklas.
Dentre estes três, o último, Operas and plays é um dos livros que reúne parte da
dramaturgia steiniana. Os outros dois volumes são Geography and plays (cujas resenhas
serão comentadas mais adiante) e Last operas and plays, publicado depois da morte da
autora, em 1949, pela editora Rinehart & Co. Stein teve que esperar quase três décadas
para ver um livro seu lançado por uma grande editora. A autobiografia de Alice B.
Toklas, publicada em 1933 pela Harcourt, foi um marco em sua vida e em sua trajetória
intelectual. O sucesso absoluto do livro levou-a a ser convidada para dar uma série de
palestras nos Estados Unidos em 1934. A experiência de voltar ao país de origem,
13
depois de quase quarenta anos morando na Fraa, e de ser, lá, tratada como celebridade
é descrita pela autora em sua segunda autobiografia, A autobiografia de todo mundo
(1937). Mas mesmo o sucesso da primeira Autobiografia, não daria a Stein a
estabilidade ansiada por ela no que dizia respeito à publicação de seus textos mais
experimentais. Livros como The world is round e Narration também tiveram que ser
editados pela Plain Editions, de Stein e Toklas. Mas o sucesso da primeira
Autobiografia contribuiu para que Stein tivesse oito títulos publicados pela Random
House entre 1934 e 1946, dentre eles a sua segunda autobiografia. Nenhum deles, no
entanto, alcançou o sucesso de vendas de A autobiografia de Alice B. Toklas
1
. O que
Curnutt considera interessante observar, apesar do histórico cheio de frustrações e de
altos e baixos no que se refere às relações de Stein com as grandes editoras, é que ela
o foi jamais relegada ao ostracismo. Desde 1913”, conta Curnutt, “com apenas Três
vidas e a edição caseira do retrato Mabel Dodge at the Villa Curonia, em seu currículo,
ela se tornou um assunto de contínuo espanto e interesse para a dia americana.”
2
Enfocando apenas a primeira recepção steiniana, destacam-se os textos de Mabel
Dodge e Carl Van Vechten a favor de Gertrude Stein, e, sobretudo, do seu “estilo
peculiar. Segundo Curnutt, antes mesmo das publicações dos textos de Dodge
(“Speculations, or Post-Impressionism in Prose”, em Arts and decorations em março de
1913) e Van Vechten (“How to read Gertrude Stein”, publicado em agosto de 1914), a
imprensa americana já alimentava um debate caloroso” entre aqueles que, como Dodge
e Van Vechten, admiravam e defendiam a escrita de Stein, e aqueles que se
perguntavam se ela estaria “querendo que levassem a sério suas incansáveis repetições
de sentido obscuro”, ou se ela não estaria na verdade “pregando uma peça, no estilo
dadaísta, debochando da seriedade do alto estabelecimento literário.
3
Enquanto suas
inteões eram debatidas, defendidas ou atacadas, seu trabalho era com freqüência
relegado a segundo plano”. O jornal Chicago Tribune, por exemplo, publicou um
1
Segundo o relato de James R. Mellow, em seu livro Charmed Circle. Gertrude Stein & Company, só
entre 1933 e 1935, o livro teve cinco edições, totalizando 11.400 cópias vendidas. “A primeira impressão
de 5.400 cópias esgotou em 22 de agosto de 1933, nove dias antes de sua publicação oficial.” Em 1934 o
livro foi traduzido para o frans por Bernard Faÿ. E em 1938 foi traduzido e publicado na Itália.
(conferir essas informações em MELLOW, James R. Charmed Circle. Gertrude Stein & Company. New
York / Washington, Praeger Publisheers, 1974. p.354.)
2
“As early as 1913, with only Three lives and the privately printed “Mabel Dodge at Villa Curonia” to
her credit, she became a long-running topic of consternation and concern in the American media.”
CURNUTT, Kirk. The critical response to Gertrude Stein. Greenwood Press: Westport, Connecticut,
London: 2000. p2.
3
“Did she mean for her abstruse flights into repetition to be taken seriously, or was she pulling a Dadaist
hoax by mocking the high seriousness of the literary establishment?” CURNUTT, Kirk. The critical
response to Gertrude Stein. Greenwood Press: Westport, Connecticut, London: 2000. p3.
14
versinho mico que se ocupava de fazer troça, usando o nome de Stein, da arte pós-
impressionista, da qual a escritora era colecionadora
4
.
O capítulo Contemporary commentary: Style, Influence, and the Debate over
Stein’s Purpose” do livro de Curnutt cobre o primeiro impacto de Stein e expõe uma
seleção de alguns dos textos que fomentaram este debate. É neste segmento do volume
que se encontram transcritos também os ensaios de Dodge e de Van Vechten, que
viriam muitas vezes a servir de refencia a boa parte da crítica favorável a Stein que a
eles se seguiu.
O ensaio de Mabel Dodge é provavelmente o primeiro a aproximar, ainda em
1913, a escrita steiniana à arte cubista. Diz ela:
Num amplo apartamento em Paris, cujas paredes estão cheias de
pinturas de Renoir, Matisse e Picasso, Gertrude Stein está fazendo
com as palavras o que Picasso está fazendo com a pintura.
5
A influência da arte pictórica e, em especial, da pintura cubista na escrita de
Stein é até hoje, não sem fundamento, analisada e estudada a fundo por diversos críticos
e estudiosos de Stein. É o caso do estudo de Randa Dubnick, The structure of obscurity:
Gertrude Stein, Language, and Cubism, publicado em 1984, só para citar um exemplo
de maior relevância.
Mas há, também, na seleção feita por Curnutt, uma série de textos inicos que
parodiam a escrita de Stein, ou que se servem dela para criticar de forma genérica o que
chamam de literatura s-impressionista. Como se verifica neste trecho, de autor
anônimo, publicado em The Atlantic Monthly em outubro de 1914:
Não é de conhecimento geral, acredito eu, que o pós-impressionismo
escapou do campo das artes pictóricas, e está correndo desenfreado
pela literatura. No momento, Miss Gertrude Stein é a principal
criminosa. Na verdade ela pode ser chamada de a fundadora de um
seleto círculo social, seo de uma escola.
6
4
Cito no original em inglês, o trecho final dos versinhos que se referiam ao quadro de Matisse Blue Nude:
“I called the canvas ‘Cow and Cud / And hung it on the line / Altho’ to me ‘twas vague as mud, / T’was
clear to Gertrude Stein” CURNUTT, Kirk. The critical response to Gertrude Stein. Greenwood Press:
Westport, Connecticut, London: 2000. p.3
5
“In a large studio in Paris, hung with paintings by Renoir, Matisse and Picasso, Gertrude Stein is doing
with words what Picasso is doing with paint.” Idem, p.151.
6
“It is not generally known, I believe, that post-impressionism has escaped from the field of pictorial art,
and is running rampant in literature. At present, Miss Gertrude Stein is the chief culprit. Indeed, she may
be called the founder of a coterie, if not a school.” Idem, p.161-162
15
O jornalista segue ironizando o trabalho de Gertrude Stein, bem como o que
diziam sobre ela, seus “admiradores”, como ele se refere a Mabel Dodge, que viria a
ser, ainda segundo o articulista, “também o objeto, ou tima,” de um dos retratos
escritos por Stein. Depois de considerar que não haveria mal algum em citar
aleatoriamente” trechos do retrato “Portrait of Mabel Dodge at Villa Curonia”, uma
vez que, segundo o crítico, o retrato possui um início, porém não tem meio, e apenas
um vago indício de final”, o jornalista inicia um parágrafo com a seguinte frase: “depois
de cem linhas disso, eu tenho vontade de gritar, tenho vontade de queimar o livro, entro
em agonia”.
Mais um exemplo de recepção debochada e agressiva aos textos de Stein é o
artigo de Richard Burton, chamado “Posing” e publicado em 1914. Burton inicia seu
texto em tom de ataque:
Houve alguma vez, na história que se conhece dos homens, um tempo
em que o falsificador e poseur teve maior sorte do que a que ele tem
nos tempos de hoje? Ou ela tem, que estou falando de uma mulher?
Acho que não. Por “sorte” quero dizer, ser levado evidentemente a
rio por tanta gente, e conseguido tanto espaço na imprensa pública.
Seria engraçado se não fosse tão irritante. (...)
O caso em questão é Gertrude Stein, “cubista” da literatura, futurista das
palavras, e, na opinião do articulista, “autopropagandista de extravagâncias pseudo-
intelectuais”. Pois, do seu ponto de vista, ela teria se limitado a escrever “pouco mais de
um livro cheio de inconcebíveis balbuceios idiotas, que fariam a fala de uma criança de
três anos parecer hegeliana. (...)
7
. Burton seguiria nesse tom agressivo e inico ao
longo de todo o artigo.
O crítico Alfred Kreymborg, este com um senso de humor mais afiado, mas não
menos cruel em suas afirmações, sugere ao leitor que imagine sua esposa chegando em
casa depois de um dia de compras, com um chapéu “maluco” na cabeça. O marido então
perguntaria “amavelmente”: “Onde você comprou essa coisa?” O crítico pede, em
seguida, ao leitor que imagine sua esposa lhe dando uma resposta seguindo o estilo de
7
“Was there ever in the known history of man a time when the faker and poseur had as good a chance as
he has today? Or she has, for I am thinking of a woman? I think not. By ‘chance’ I mean being taken with
apparent seriousness by so many people, and given so much space in the public print. It would be
amusing, if it were not so irritating.” (…)
The case in point is Gertrude Stein, ‘cubist’ of literature, futurist of words, and self-advertiser of pseudo-
intellectual antics. She has written a book or so of inconceivably idiotic drivel, compared with which the
babble of a three-year-old child is Hegelian.” Richard Burton “Posing” In: idem, p.163
16
Gertrude Stein. E ele cita, então, um trecho de Tender Buttons. A conversa entre
marido e mulher segue sempre com as respostas steinianas da esposa levando o marido
quase ao desespero, até ele próprio ceder ao estilo que o exasperava, e começar a se
referir à mesa de jantar usando, em sua estranha conversa com a mulher, mais um trecho
de Tender Buttons. Ironicamente, o casal passaria a se entender através da linguagem
peculiar steiniana.
8
Esses são apenas alguns exemplos de como o trabalho de Gertrude
Stein foi motivo de irritação e causou forte reação e polêmica nos meios literários e na
imprensa americana.
E o foi apenas em artigos de jornal que Stein viu seu estilo ser motivo de
piada e deboche. Um trecho do famoso filme Top Hat (O Picolino), de 1935, estrelado
pela dupla Fred Astaire e Ginger Rogers, no qual a personagem de Rogers compara um
telegrama ao estilo de escrita de Stein
9
, nos uma idéia da popularidade da escritora
nos Estados Unidos, nesse momento, ao mesmo tempo em que destaca o fato de essa
popularidade estar vinculada usualmente ao hábito de lembrar o nome de Stein para
fazer graça com tudo o que pudesse parecer a princípio ininteligível ou repetitivo.
Mas , além dos artigos de Mabel Dodge e Van Vechten, em meio à
compilação de Curnutt, um artigo de 1922, publicado no The New Republic, escrito por
Sherwood Anderson, que vale a pena citar como um exemplo de visão oposta àquela
que vigorava com relação ao trabalho de Stein.
Em seu texto curto, Anderson compara Stein a uma espécie de cozinheira de
palavras. E termina seu artigo com o seguinte parágrafo:
Ela está fazendo uma nova, estranha e, para os meus ouvidos, uma
doce combinação de palavras. Como um escritor americano eu a
admiro porque ela, na sua pessoa, representa algo doce e saudável na
nossa vida americana, e porque eu tenho um tipo de inabalável de
que o que ela está aprontando na sua cozinha de palavras em Paris tem
maior importância para os escritores de língua inglesa do que o
trabalho de muitos dos nossos artistas da palavra que são de mais fácil
entendimento e mais abrangentemente aceitos.
10
8
Ver: Curnutt, Kirk. The critical response to Gertrude Stein. Greenwood Press: Westport, Connecticut,
London: 2000. pp165-167.
9
Cito no original em inglês o trecho do diálogo em que Stein é mencionada: “Alberto Beddini (reading a
telegram): 'Come ahead. stop. Stop being a sap. stop. You can even bring Alberto. stop. My husband is
stopping at your hotel. stop. when do you start. stop.' I cannot understand who wrote this.
Dale Tremont: Sounds like Gertrude Stein.”
10
“She is making new, strange and to my ears sweet combinations of words. As an American writer I
admire her because she, in her person, represents something sweet and healthy in our American life, and
because I have a kind of undying faith that what she is up to in her word kitchen in Paris is of more
importance to writers of English than the work of many of our more easily understood and more widely
17
A “cozinha de palavras”, expressão usada por Anderson para se referir
carinhosamente às experimentações com a linguagem e com a língua inglesa que
Gertrude Stein estava fazendo, foi recebida pela crítica contemporânea, como os
exemplos citados podem mostrar, com grande surpresa. De fato a escrita de Stein
apresenta características, tais como o uso exaustivo de repetições, de jogos com a
sonoridade das palavras que muitas vezes se impõem ao sentido delas, como a
supressão da pontuação usual, ou melhor, o seu emprego particular da pontuação, como
a agramaticalidade e a opção da escritora por experimentações narrativas que se
distanciavam intensamente até mesmo do estilo de autores, contemporâneos a ela,
também em busca de novas linguagens, como James Joyce ou Virginia Woolf, por
exemplo. Alguns críticos tentavam ainda encontrar nestes escritores, pares para
Gertrude Stein. A personagem central do romance Lucy Church Amiably, por exemplo,
chegou a ser comparada por Lindley Williams Hubbell à personagem central de
Virginia Woolf no romance Orlando. uma resenha anônima ao livro Useful
Knowledge, na qual o autor toma o Ulisses de Joyce como referência para criticar a
escrita de Stein:
s podemos não gostar de Ulisses, mas Ulisses, como Igitur é o
trabalho de um artista. Esses o livros difíceis e obscuros quando
penetramos neles, mas não são estúpidos. O trabalho de Miss Stein é
estúpido. Ela não trabalha com os sentidos das palavras, não tem
nenhuma habilidade para empregar as palavras e as imagens.
11
Robert Coats, em artigo sobre a “escrita americana moderna”, “Books, books,
books: A brief consideration of some aspects of modern american writing”, publicado
em fevereiro de 1932, na revista The New Yorker, faz um breve estudo histórico do
romance como nero e conclui que, aos poucos, ao longo de sua trajetória, o romance
foi dando “cada vez menos importância” ao enredo (“plot”, em inglês). Na opino do
crítico, a única característica comum a escritores como “Joyce, Gertrude Stein, Virginia
Woof etc. é que eles realmente perderam o interesse pelo enredo”
12
. Se o crítico
accepted word artists.” ANDERSON, Sherwood. “Four American Impressions.”In: Curnutt, Kirk. The
critical response to Gertrude Stein. Greenwood Press: Westport, Connecticut, London: 2000. p171.
11
“We may not enjoy Ulysses; but then Ulysses, like Igtur, is the work of an artist. These are books
difficult, and obscure when we penetrate them, but they are not dull. Miss Stein is dull. She has no word
sense, no skill in employing words and images.” CURNUTT, Kirk. The critical response to Gertrude
Stein. Greenwood Press: Westport, Connecticut, London: 2000. p49.
12
Idem p.50
18
anônimo citado anteriormente compara Joyce a Stein, com o objetivo de depreciar a
segunda, e também não revelar grande apreço pelo primeiro (embora demonstre algum
respeito por seu trabalho), Robert Coats tenta, por sua vez, compreender globalmente o
fenômeno da literatura moderna, procurando identificar características comuns aos três
escritores que, todavia, apresentam modos bastante diversos de escrita. No entanto, o
mais freqüente é a escrita de Stein ser contraposta à de seus contemporâneos pelos
críticos que tentavam compreendê-la no quadro da literatura de seu tempo.
Havia também os que se ocupavam em verificar a expansão da influência
steiniania, mostrando como esse estilo singular estava sendo “copiadopor escritores
mais jovens, ou até mesmo pelos contemporâneos da escritora, inclusive os citados por
Coats. A escritora Edith Sitwell, por exemplo, em resenha sobre o livro Geography and
plays, ao final de seu texto, pediria aos jovens escritores que o imitassem Gertrude
Stein. Depois de comentar o volume, apontando suas “virtudes e falhas”, Sitwell, que
viria a ter um retrato seu escrito por Stein (chamado “Sitwell Edith Sitwell”), diz o
seguinte:
Ela está, no entanto, fazendo um trabalho pioneiro, e eu gostaria de
aproveitar esta oportunidade para implorar les jeunes que não a
atrapalhem imitando-a, mas que a deixem em paz para amadurecer seu
próprio destino literário.
13
Já Carl Van Vechten, em resenha também sobre Geography and plays, publicada
no The New Yorker Tribune em maio de 1923, antes de comentar o livro, aproveitaria
para listar os “seguidores” de Stein, aqueles que mais teriam sido influenciados por ela
desde a publicação de Três vidas, em 1909, e em especial pelo estilo do conto
“Melanctha”, um dos três publicados no livro. A lista de escritores que, segundo Van
Vechten, teriam sido influenciados pelo estilo inicial de Stein é longa, e inclui Dorothy
Richardson, James Joyce, May Sinclair, Zona Gale, Virginia Woolf, Katherine
Mansfield, Waldo Frank e Sherwood Anderson. Ao final da resenha, que pouco discute
os textos publicados no volume, Van Vechten elogia o senso de humor de Stein e
aproveita para alfinetar seus “seguidores”:
13
“She is, however, doing a valuable pioneer work, and I should like to take this opportunity of begging
les Jeunes not to hamper her by imitating her, but to leave her to work out her own literary destiny.
Idem.p.26
19
Deve ser acrescentado que o trabalho de Miss Stein é rico em uma
qualidade que notoriamente falta a seus discípulos e seguidores que
é o senso de humor. É um prazer lembrar que quando o mundo parar
de rir de Miss Stein, pode ainda rir com ela. Leia em voz alta “White
Wines”, uma das pas publicadas neste seu novo livro, e veja se não
concorda comigo.
14
Se Sitwell pede aos jovens que não tentem imitar o estilo steiniano e Carl Van
Vechten aponta seus “discípulos” de maneira nada elogiosa, o crítico Malcolm Cowley,
em resenha publicada, um bom tempo depois, já em 1946, no The Saturday Review, por
ocasião da publicação do volume Selected Writings of Gertrude Stein, compreenderia a
questão da inflncia exercida por Stein sobre outros escritores de maneira bastante
diversa. Comenta Cowley que, “com a exceção de três ou quatro textos, o livro que
registra seus experimentos” lhe parecia impossível de ler”, o que, no entanto, não o
impedira de influenciar de maneira definitiva a literatura americana:
Seu estilo é como um elemento químico inútil quando se encontra em
estado puro, mas poderoso quando se adicionam a ele outras misturas.
A prosa americana mudou inteiramente sua direção, em parte por
causa de Gertrude Stein.
15
Deixando de lado a questão da inflncia, é importante voltar neste ponto às
resenhas de Geography and plays, primeiro volume que reúne parte dos textos de Stein
que ela mesma identifica como peças e que são os objetos fundamentais desta tese. É
curioso observar que Van Vechten, ao longo da resenha citada, quase o comente o
livro. Ao invés disso, dedica-se a enumerar os seguidores de Stein, e a criticar aqueles
que debocham de sua forma de escrita sem jamais terem lido realmente os seus textos. É
somente ao final da resenha que o autor comenta o fato de não haver “nada muito
perturbador no delicioso Geography and plays”, convidando o leitor a “se deixar levar
pelo feito dessa encantadora de palavras”, que seria, na sua opinião, Gertrude Stein.
Van Vechten não discute nenhum dos textos reunidos em Geography and plays em
particular, no entanto, menciona, no último parágrafo de seu artigo, duas características
14
“It may be added that Miss Stein is rich in one quality which her disciples and followers notoriously
lack – that is, a sense of humor. It is pleasant to remember that when the world stops laughing at Miss
Stein it can still laugh with her. Read aloud “White Wines”, one of the plays in her new book, and see if
you can’t agree with me.” Idem.p.24-25
15
“With three or four exceptions, the book that record her experiments are unreadable (...). Her style is
like a chemical useless in its pure state but powerful when added to other mixtures. American prose has
changed its whole direction partly because of Gertrude Stein.” Idem, p.150
20
que seriam posteriormente repensadas por outros críticos, como peculiares à escrita de
Stein: o humor e o fato de que serem textos para ler em voz alta.
Em outra resenha, publicada no New York Call, em agosto de 1923, para o
mesmo Geography and Plays, e que leva o título de “Incitement to Riot”, frase que
pode ser traduzida para o português por “Estímulo ao tumulto”, John W. Crawford, seu
autor, também comentaria os efeitos de uma leitura em voz alta de Geography and
plays:
Ler Geography and plays em voz alta para quase qualquer grupo de
pessoas é experimentar uma descarga elétrica na sala; ninguém é
capaz de permanecer quieto sentado, ninguém consegue se manter em
silêncio. Todos gritam ao mesmo tempo. Eles ficam cada vez mais
raivosos, cada vez mais animados, cada vez mais excitados ao
extremo, rindo internamente cada vez mais até caírem numa
gargalhada. Ela [Stein] ganha vida, sem dúvida, quando lida em voz
alta.
16
Há, evidentemente um tom inico, de deboche, no comentário de Crawford. E,
talvez, uma vontade de responder de forma provocativa à sugestão de Van Vechten,
feita poucos meses antes, de que se percebia melhor o humor em Stein lendo-a em voz
alta. Mas o que chama atenção neste trecho da resenha de Crawford é que ele, como
Van Vechten, não se dedica a comentar os textos reunidos no livro. Muitos deles
assinalados pela própria autora como peças. Tanto um quanto outro parecem ignorar o
fato de haver textos ali designados como peças, como textos para o teatro. Parecem não
perceber a teatralidade presente neles e nem tentam entender por quê Stein os qualifica
como peças, uma vez que não obedecem a uma estrutura dramatúrgica convencional.
No entanto, a sugestão da leitura em voz alta por si já não seria um indício de haver
naqueles textos alguma teatralidade? E, com a intenção de provocar Van Vechten,
Crawford não chega a descrever uma quase performance envolvendo a leitura dos textos
de Stein e uma reação de tal modo exagerada do “público que beira ela mesma o
teatral, o farsesco? Quero chamar a atenção aqui para o fato de os críticos
contemporâneos a Stein, contemporâneos à publicação de Geography and plays, apesar
de o comentarem explicitamente o teatro steiniano, acabarem evidenciando em seus
artigos que não lhes passou totalmente despercebido o fato de que haver teatro ali.
16
“Reading aloud from Geography and plays to almost any gathering is to experience na electric
charging of the room; none is able to sit quiet, none is able to keep silent. Everyone shouts at once. They
become more and more angry, more and more exhilarated, more and more tickled in their larger, more
internal risibles until they guffaw. She comes alive, unquestionably, when she is read aloud.” Idem, p.27
21
Na coletânea de resenhas feita por Curnutt apenas um artigo que comenta o
segundo volume em que Stein reúne peças teatrais, Operas and plays. O artigo em
questão aborda, na verdade, de uma vez, quatro volumes editados pela Plain Editions,
Lucy Church Amiably, Before the flowers of friendship faded friendship faded, How to
write e Operas and plays. Publicado em outubro de 1933 na Contempo, periódico sobre
literatura publicado em Chapel Hill, na Carolina do Norte, entre os anos de 1931 e
1934, o artigo, já citado aqui, e escrito pelo poeta Lindley Williams Hubbell, dedica um
parágrafo a Operas and plays. Nele, o escritor retoma curiosamente o comentário de
Carl Van Vechten sobre o fato de o mundo poder ainda rir com Stein mesmo quando
parasse de rir dela. Lindley considera Operas and Plays “talvez o livro mais engraçado”
de Stein:
Nestas curtas peças de teatro para ler,o para encenar
17
(...), pessoas,
lugares, e coisas tomam parte num dos mais deliciosamente
inconseqüentes diálogos (...).
18
São estes, em síntese, os comentários sobre o teatro steiniano selecionados por
Curnutt em sua coletânea. É interessante observar que, mesmo tendo Stein especificado,
cuidadosamente, na maioria das vezes, se o texto era, para ela, uma peça ou o desde o
título mesmo da obra (como emPlease do not suffer. A play” ou “He said it. A
monologue”, publicadas em Geography and plays), as resenhas sobre este volume
tenham preferido não entrar na discussão sobre a questão de gênero que a escritora, ao
contrário, tenta provocar de saída ao nomear as peças e especialmente ao não respeitar a
poética teatral e as regras discursivas mais convencionais. Os artigos publicados
posteriormente, por ocasião da produção de “Four Saints in Three Acts”, em 1934, em
sua maioria criticam o libreto de Stein por ele, de acordo com essas leituras, deixar de
lado “sentido e significado” e por dar mais importância ao “ritmo e som” das palavras e
frases. Os resenhistas tendiam, no entanto, a “absolver” Stein, neste caso, da obrigação
de construir um sentido claro ou de contar uma história em sua ópera, uma vez que a
música não teria a obrigação de “fazer sentido”. Diz a esse respeito Kenneth Burke, no
17
No verbete da versão brasileira do dicionário de Teatro de Patrice Pavis, o termo “closet-drama” é
traduzido por “Teatro numa poltrona”, provavelmente levando em conta o termo em francês que é
“Théâtre dans un fauteuil”. Como me parece que o termo “teatro numa poltrona” é pouco usado
coloquialmente, porém, optei por não usar a tradução de Pavis e sim explicar na tradução do trecho o que
“closet drama” significaria.
18
“In these little closet-dramas (...) people, places, and things take part in some of the most delightfullly
inconsequential dialogue (...)”.CURNUTT, Kirk. The critical response to Gertrude Stein. Greenwood
Press: Westport, Connecticut, London: 2000, p.55
22
jornal The Nation, em fevereiro de 1934: “mesmo sendo nonsense, ela [a ópera] se sai
bem com a música”
19
.
Encontram-se, ainda, em The critical response to Gertrude Stein, comentários
feitos por dois críticos também próximos, historicamente, do contexto de produção de
Gertrude Stein e que escreveram, no entanto, sobre o seu teatro de forma, em minha
opinião, mais consistente. Um deles, Edmund Wilson, escreveria sobre o trabalho de
Stein enquanto ela ainda vivia. O outro, Donald Sutherland, trataria de suas peças quase
dez anos depois da morte da escritora em 1946. E seu estudo sobre ela, é até hoje obra
de leitura e refencia obrigatória para quem pretende analisar o processo de
composição steiniana.
Deixando de lado a compilação de Cornutt, passo a examinar, brevemente, o que
os dois comentaram sobre as peças nomeadas explicitamente por Stein de “peças”.
2. Edmund Wilson e Donald Sutherland
Edmund Wilson dedicaria um capítulo inteiro de seu livro O castelo de Axel (estudo
sobre a literatura imaginativa de 1870 a 1930), que foi publicado originalmente em
1931, à literatura de Gertrude Stein. Neste estudo, o crítico comenta, sobretudo, Três
Vidas, The Making of Americans (publicado pela primeira vez em 1934), alguns contos,
poemas e retratos, mas trata também, brevemente, do livro de Stein Geography and
plays (1922), que reúne, dentre outros textos, algumas de suas peças escritas entre 1913
e 1920. E nesse seu comentário sobre os escritos heterogêneos” aí reunidos, Edmund
Wilson percebe que há, nesse conjunto, uma curiosa espécie de ‘peça’”, que consistiria
para ele “simplesmente de longas listas de frases divididas em atos”. E que Wilson
considera uma forma de “variação” dos “estilos anteriores” da escritora. Variação com o
acréscimo de um aspecto positivo: “o humor dela é talvez a única de suas qualidades
que transparece com maior clareza em seus livros recentes” (neste ponto concordando
com o que já dizia Carl Van Vechten ainda em 1923). E com a adição de um problema
grave:
A maior parte do que Miss Stein publica hoje em dia deve, ao
que parece, permanecer absolutamente ininteligível mesmo ao
leitor mais favoravelmente disposto. (...) Pois vemos as
19
“Even as nonsense it sings well”. Idem, p.73.
23
ondulações que se expandem na sua consciência, mas não nos é
dada nenhuma pista quanto a que tipo de objeto ali afundou.
20
.
Este é o único comentário feito por Wilson sobre o teatro de Stein. É interessante
observar que, embora ele não ignore o fato, ao contrário dos críticos que resenharam
Geography and plays, citados anteriormente, o procedimento de Stein de assinalar
diretamente (Ex. “Byron, a Play”), em alguns dos seus textos, que se trata de peças, é
visto com clara ironia por Wilson, que certamente não poderia considerar como peças
textos que, como os dela, fugiam tanto às convenções do gênero. Daí dizer que se trata
de uma curiosa espécie de ‘peça’”. Peça entre aspas. “Quando escrevo alguma coisa
que qualquer outra pessoa consiga ver, então é uma peça para mim”
21
, diria Stein
poucos anos depois, na Autobiografia de todo mundo.
Donald Sutherland, vinte anos depois, em 1951, publica o livro Gertrude Stein.
A biography of her work, no qual um capítulo em que aborda o teatro de Stein:
“Movement in Space, or Plays”. Sua visão seria muito diversa da de Edmund Wilson.
Sutherland procura realizar, neste capítulo, uma análise abrangente, que cobre toda a
produção para teatro da escritora, preocupando-se em distinguir três fases na obra
dramatúrgica de Stein, ligadas, todas elas, a certo contexto geográfico particular.
Estas fases seriam, segundo o crítico: um primeiro período, sob a inflncia da
estadia de Stein e Toklas na Espanha, e que iria de 1913 até 1920; um segundo período,
sob a influência da paisagem bem próxima de Stein, a de sua casa de campo em
Bilignin, na França, período que comaria em 1922 e entraria pelos anos 1930, ao qual
se seguiria, ainda, um terceiro período, perto do fim da vida de Stein, que seria o dos
melodramas e das óperas escritos em Paris, cidade para a qual voltaria, com Alice
Toklas, em 1944.
Tratando das peças escritas no primeiro período de sua “biografia da obra
steiniana”, Sutherland teria uma visão bem diferente daquela apresentada por Edmund
Wilson. Diz ele:
A maioria das peças do primeiro período são, eu acho, literárias e não
para o palco, embora possam ficar muito interessantes no dio. Neste
período um número de pessoas ou coisas ou mesmo idéias se
apresentando juntas como existências no espaço constituía uma peça.
22
20
WILSON, Edmund. O castelo de Axel (Estudo sobre a literatura imaginativa de 1870 a 1930). São
Paulo, Editora Cultrix:1993. p.172
21
STEIN, Gertrude. Autobiografia de todo mundo. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1983.
22
“(...) most of the plays of the first period are, I think, literary and not for the stage, though they might
be very interesting on the radio. In this period a number of people or things or even ideas presenting
24
E, neste ponto do seu argumento, Sutherland citaria Stein, em particular o texto
Plays”. “Eu concluí”, diz ela, que qualquer coisa que não fosse uma história poderia
ser uma peça e eu até fiz peças-cartas e peças-anúncios.”
23
Sutherland, por sua vez,
concluiria seu raciocínio com a seguinte observação: “Sendo assim, o texto poderia ele
mesmo ser a peça, então muitos deles poderiam se sair bem no rádio
24
. A idéia de que
as peças de Stein funcionariam bem no rádio estaria de acordo com a sugestão de Van
Vechten de que uma leitura em voz alta de “White Winesrevelaria o humor presente
no texto.
A visão de Donald Sutherland de que o texto em si poderia já ser a peça me parece
bastante inovadora para a época em que ele escreve (1951). Uma vez que ainda hoje
muitos críticos consideram as primeiras peças de Stein como “não montáveis”, ou as
em apenas como “exercícios de escrita”. Esta é, por sinal, a opinião de Sarah Bay-
Cheng, em seu livro Mama Dada: Gertrude Stein’s Avant-Garde Theater, publicado em
2004. Depois, portanto, de toda a releitura de Stein empreendida por Robert Wilson,
Richard Foreman, Heiner Müller, ou pelo Wooster Group. E para mencionar montagens
históricas de peças que se encontram entre as primeiras escritas por Stein, há a produção
de Ladies’ Voices pelo Living Theater, montagem de 1951, encenada no apartamento de
Judith Malina e Julian Beck e, ainda, a encenação de What happened, primeira peça
escrita por Stein, pelo The Judson Poets’ Theater. A leitura do grupo para a peça em
1963 chegou a ser citada por Susan Sontag em seu ensaio “Against interpretation”,
como sendo a “coisa mais próxima do teatro da crueldade que temos”
25
. Na contramão,
também, de Stein, que dizia, ainda em 1913, em carta para Mabel Dodge: “Eu não quero
peças publicadas. Elas devem ser guardadas para encenação”
26
.
themselves together as existences in space constituted a play.” SUTHERLAND, Donald. Gertrude Stein.
A biography of her work. New Haven: Yale University Press, 1951. p103
23
“I concluded that anything that was not a story could be a play and I even made plays in letters and
advertisements” (Stein, citada por Donald Sutherland, p.103)
24
“To such na extend could the text in itself be the play, so that many of them might go well on the radio
(...)” Idem, p.103
25
“the closest thing to theatre of cruelty that we have” Sontag, citada por RYAN, Betsy Alayne .
Gertrude Stein's Theatre of the Absolute (Theater and Dramatic Studies, No. 21) Umi Research Press,
1984. p.141
26
''I do not want plays published. They are to be kept to be played” The Letters of Gertrude Stein and
Carl Van Vechten 1913-1946. ed. Por Edward Burns. Columbia University Press, 1986. p.21 nota.
25
3. Ryan, Bowers e Bay-Cheng
Feitas estas observações, e traçado esse quadro geral, no qual a dramaturgia
steiniana ocupa um espaço restrito, gostaria de passar agora para a exposição das
principais hipóteses que guiam os três livros que se dedicaram a aprofundar a análise
dos seus escritos teatrais. É importante ressaltar, mais uma vez, porém, a pequena
quantidade de estudos sobre a sua dramaturgia. De uma popularidade de base anedótica
ligada ao seu rculo de amizades em Paris e à caricatura de suas repetições
sistemáticas resultou um grande conjunto de artigos e livros mais interessados nas
histórias e nos comentários de Stein sobre Picasso, Braque ou Hemingway, do que na
sua própria obra. Outro elemento de interesse, o seu relacionamento estável com Alice
Toklas, deu origem a outro conjunto de artigos e ensaios biográficos mais preocupados
com o seu comportamento transgressor e com a vida de um casal homossexual
assumido e reconhecido nas primeiras décadas do século XX. Quanto às análises de sua
obra, o mais freqüente tem sido ou ignorar a sua produção dramatúrgica ou considerá-la,
como faz Wilson, apenas como “variação” do estilo steiniano.
Passando aos estudos de mais vulto sobre a sua dramaturgia, e seguindo
cronologicamente as datas de edão, o primeiro deles é Gertrude Stein’s theatre of the
absolute (1981), de Betsy Alayne Ryan.
A pesquisa de Ryan é extensa e aborda todo o corpus dramatúrgico de Stein, que
seria composto de 77 peças (listadas, em primeiro lugar, por Richard Bridgman no seu
estudo Gertrude Stein in Pieces). A lista de Bridgman, por sua vez, toma por base a lista
existente no Catálogo de Yale (onde está a coleção de manuscritos de Stein), elaborada
por Haas e Galup com a assistência da própria escritora.
Ao invés de trabalhar com a tipologia dramatúrgica sugerida por Stein, com as
três grandes divisões gerais segundo as quais classifica suas peças (“peças como
essência do acontecido”; “peças paisagem” e “peças narrativas”, as duas primeiras fases
expostas pela escritora em seu ensaio Plays e a terceira mencionada por ela em uma
carta a Carl Van Vechten por ocasião da escrita de Doutor Faustus liga a luz), e
reproduzidas freqüentemente por muitos de seus críticos, Ryan sugere outra abordagem.
Ela procura definir os traços (e contrastes) que aparecem, e que se definem como os
dominantes nas peças de Stein, não importando o período em que foram escritas.
26
O terceiro capítulo de sua tese é inteiramente dedicado à análise crítica
minuciosa destes traços e ao modo como eles se apresentam nas peças de Stein. Mas é
na introdução ao livro que Ryan define seus objetivos:
Este estudo crítico procura estabelecer a estética da dramaturgia
steiniana como uma tentativa séria de expressar sua concepção da
nova paisagem do século XX e revelar as cnicas usadas por ela para
realizar esta estética em suas 77 peças
27
Mais adiante, ainda na introdução, explicaria o que distingue o seu trabalho de
outros estudos sobre a escritora norte-americana:
Este é o primeiro estudo dos trabalhos de Stein que ateão
específica às cnicas exibidas em todas as 77 peças de Stein. Ao
invés de enfocar em profundidade poucas peças, o estudo se concentra
no corpo dramatúrgico relacionando-o às propostas teóricas de Stein e
relacionando as peças umas às outras. E ainda, o estudo tenta abordar
as peças com base nos traços que elas apresentam, usando técnicas de
playwriting tradicionais como contraponto para seu estilo único. Esta
abordagem permite uma indicação, no capítulo 4, da influência de
Stein sobre o teatro de vanguarda contemporâneo, onde as técnicas
steinianas abundam.
28
A importância do estudo pioneiro de Ryan deve ser destacada aqui. No primeiro
capítulo de sua tese, a autora analisa a estética de Gertrude Stein tendo como fontes
primárias os textos de Stein nos quais ela mesma expõe sua poética particular, seus
pensamentos e reflexões sobre escrita, identidade, contemporaneidade. Tomando como
base, Composition as explanation (1923), A autobiografia de Alice B. Toklas (1932),
Lectures in America (1934), Narration (1935), The geographical history of America or
the relation of Human Nature to the Human Mind (1935), A autbiografia de todo mundo
(1936), What are master pieces and why are there so few of them (1936), e Four in
America (1947), Ryan fornece um estudo bastante aprofundado que ajuda a
27
“This critical study seeks to establish Stein’s playwriting aesthetic as a serious attempt to express her
conception of the new landscape of the twentieth century and to reveal the techniques she used to realize
that aesthetic in her seventy-seven plays.” RYAN, Betsy Alayne. Gertrude Stein’s Theatre of the
absolute. Ann Arbor / London: UMI Research Press, 1984. p.1
28
“This is the first study of Stein’s work to give specific attention to the techniques exhibited by all the
seventy-seven of her play texts. Rather than focusing on a few plays in depth, it concentrates on the body
of her plays, relating them to her theoretical propositions and to each other. Further, it attempts to
approach the plays on the basis of the traits they exhibit in themselves, using traditional playwriting
techniques as counterpoints to her unique style. This approach enables an indication in chapter four of
Stein’s influence upon the contemporary avant-guarde theatre, where steinian techniques abound.” Idem
p.3
27
compreender, por exemplo, o que seria, segundo a sua opinião, toda a “crença estética
steiniana, analisando apenas uma passagem de How writing is written.
Diz Stein no trecho destacado por Ryan:
Cada geração está ligada ao que se pode chamar de vida diária: e um
escritor, pintor, ou qualquer tipo de artista criador, não está de modo
algum à frente de seu tempo. Ele é contemporâneo. Não pode viver no
passado porque este se foi. Não pode viver no futuro porque
ninguém sabe no que o futuro consistirá. Ele só pode viver no presente
de sua vida diária. Ele está expressando a coisa que está sendo
expressa por todas as outras pessoas em suas vidas diárias.
29
Ryan acredita visualizar nesta passagem toda a crença estética de Stein. “O
artista criador”, diz ela, “que pode apenas viver no presente de sua vida diária, expressa
este presente absoluto em seu trabalho”.
30
As reflexões de Ryan, sempre tomando por
base os textos de Stein, chegam a uma compreensão bastante abrangente do famoso
presente contínuo steiniano, como estando estreitamente vinculado ao presente da
vida cotidiana de Stein e às suas reflexões sobre as diferenças entre o século XIX e o
século XX. Para Stein, o século XIX carregava uma noção de movimento e dava uma
importância ao evento que o século XX já não daria mais. Diria Stein a esse respeito:
Eu me dei conta disso durante a guerra: o soldado comum americano
de pé na esquina de uma rua fazendo nada (...) era muito mais
excitante para as pessoas do que quando os soldados atacavam os
soldados alemães (...) Os eventos se tornaram tão contínuos que o fato
de que eles estavam em curso já não estimulava mais ninguém ... As
pessoas estão interessadas na existência.
31
Ryan, então, acrescentaria:
29
“Each generation has to do with what you would call the daily life: and a writer, painter, or any sort of
creative artist, is not at all ahead of his time. He is contemporary. He can’t live in the past because it is
gone. He can’t live in the future because no one knows what it is. He can live only in the present of his
daily life. He is expressing the thing that is being expressed by everybody else in their daily lives.” Stein,
citada por Ryan, p.7.
30
“The creative artist, who can live only in the present of his daily life, expresses that strict present in his
work.” Ryan, p.7
31
“I was struck with it during the war: the average dough boy standing on a street corner doing nothing –
(they say at the end of their doing nothing, “I guess I’ll go home”) – was much more exciting to people
than when the soldiers went over the top. Stein citada por Ryan, p.16.
28
Esta atenção total ao momento vazio de evento e à falta de
acontecimentos significantes no trabalho que advém dela foi
caracterizada por Stein e seus críticos como um ‘presente contínuo’.
32
É importante ressaltar aqui que o “presente contínuosteiniano difere do tempo
verbal “present continuous” também chamado de “present progressive”, da gramática da
língua inglesa. Para compreender melhor o “presente contínuosteiniano, vale a pena
recorrer, porém, à distinção que Donald Sutherland faz entre o “presente prolongado”
com o qual Stein trabalhou em seu livro The making of americans e o “presente
contínuo” que ela veio a desenvolver pouco depois em outros trabalhos seus. No
presente prolongado”, segundo Sutherland, há um tema que se mantém e se desenvolve
como “alguém que conta um, dois, três, quatro, cinco, e assim por diante”. Já o
presente contínuo”, diria Sutherland:
Seria um no qual cada unidade, mesmo se idêntica ou quase idêntica à
que a antecede é ainda, em seu presente, uma coisa que se basta
completamente, como quando se diz um e um, o segundo um é uma
existência presente e completa em si mesma, e não depende, como
dois ou três dependem, de algum um ou dois que o antecedam. (...) O
presente é tão contínuo que não permite nenhum retrospecto nem
nenhuma expectativa.
33
Aproveitei o estudo de Ryan para procurar introduzir a discussão sobre o
presente continuo” de Stein aqui, não para dar um exemplo do quão útil e
aprofundada é sua pesquisa no que diz respeito à estética steiniana, mas também porque
o conceito de “presente contínuo”, fundamental à obra da escritora norte-americana,
poderá ser identificado em muitas das peças analisadas nesta tese.
Além de uma análise geral da estética steiniana, Ryan procura trabalhar também,
ao longo do segundo capítulo do livro, a aplicação desta estética à produção
dramatúrgica de Stein. E seu estudo se estende ainda no sentido de comentar, no quarto
capítulo “a contribuição para o teatro” moderno e contemporâneo, das técnicas
características e da estética steinianas.
32
“This full attention to the non-eventful moment and the lack of development in the work which issues
from it was characterized by Stein and her critics as a ‘continuous present’.” Ryan, p.17
33
“But a continuous present ... would be one in which each unit, even if identical or nearly with the
previous one, is still, in its present, a completely self-contained thing, as when you say one and one, the
second one is a completely present existence in itself, and does not depend, as two or three does, on a
preceding one or two (…) the present is so continuous it does not allow any retrospect or expectation.”
Donald Sutherland citado por Ryan, p.18
29
Neste capítulo, Ryan cita trechos de críticas a algumas produções de peças de
Stein. Mas o que me parece mais importante realçar é o histórico traçado por ela e a
análise que realiza das encenações de textos de Stein. A primeira delas, a ópera Four
saints in three acts, estreou em fevereiro de 1934, com um elenco formado por atores
negros que interpretaram o libreto de Stein inteiramente musicado por Virgil
Thompson. Stein assistiu a essa montagem quando de sua visita aos Estados Unidos. Na
Autobiografia de todo mundo, ela comentaria essa experiência de ver encenada uma
peça sua.
A segunda produção de um texto seu foi A Wedding Bouquet. Transformada em
balé por Lord Gerald Berners e Frederick Ashton, o espetáculo estreou em Londres no
Sadler’s Wells theatre em 1937. O relato de Stein sobre o ensaio geral do balé assistido
por ela pode ser lido nos últimos parágrafos de sua Autobiografia de todo mundo.
Ryan não menciona, em sua lista de produções de peças de Stein, a montagem
de Identity a poem, escrita a partir de trechos de peças incluídas no livro The
geographycal history of America, por encomenda de Donald Vestal que pedira a
Gertrude Stein uma peça para ser encenada com marionetes. Dirigida por Vestal e com
músicas compostas por Owen Haynes, o espetáculo teve sua estia oficial na National
Puppetry Conference, em Detroit, em 9 de julho de 1936. A produção ainda contou com
uma introdução escrita por Thornton Wilder para ser incluída no programa da peça, e
que pode ser lida no volume The Letters of Gertrude Stein and Thornton Wilder, edição
organizada por Edward M Burns e Ulla E. Dydo com William Rice. Stein não assistiu à
performance, mas recebeu de Vestal fotografias da peça.
34
A primeira peça a ser montada sem música teria sido Yes is for a very young
man. Os produtores da montagem, que estreou em 1946, pediram a Stein que
modificasse a peça de modo a torná-la mais “naturalista, e a criar uma narrativa mais
compacta.Stein cedeu aos apelos. As montagens da mesma peça que se seguiram a
esta, no entanto, preferiram trabalhar com o texto original de Stein e sem os cortes feitos
por ela para a primeira produção.
Segundo a opinião de Ryan, essas primeiras produções teriam contribuído para
dar a Stein um reconhecimento como dramaturga num meio teatral mais convencional.
Estas montagens optaram, todavia, pelo não enfrentamento das dificuldades impostas
34
Cf . BURNS, Edward, DYDO, Ulla E. with RICE, William. (org.) The letters of Gertrude Stein and
Thornton Wilder. New Haven and London: Yale University Press, 1996. Appendice IV. Stein-Vestal: The
Puppet Play, p.361-363
30
por uma dramaturgia não tradicional. Basta lembrar que Virgil Thompson forjou para
Four saints in three acts as figuras de um “compadre” e uma “comadre”, personagens-
guias tradicionais do teatro de revista francês, usados para “costurar” o enredo.
As produções de Ladies’ Voices e de Dr. Faustus liga a luz, em 1951, pelo
Living Theatre, teriam sido as primeiras que, em vez de tentar conformar a escrita de
Stein aos moldes tradicionais, teriam escolhido os textos da autora justamente pelo
desafio que eles propunham ao teatro tradicional”. Mas, ainda na opinião de Ryan, o
grupo mais inovador em suas tentativas de abordagem do teatro de Stein ao longo das
décadas de 60 e 70, foi o The Judson Poets’ Theater, que produziu entre 1963 e 1979,
sete peças de Stein. Incluindo a montagem, já citada aqui, da peça “What happened”,
que se tornou famosa pela observação feita sobre ela por Susan Sontag em “Against
interpretation”.
Ryan prosseguiria o seu levantamento da recepção cênica de Stein, citando
algumas outras montagens de Stein e apontando os diretores Richard Foreman e Robert
Wilson como exemplos de encenadores influenciados por ela:
A presença do teatro de Stein não é sentida somente nas prodões de
peças suas: seu impacto mais significativo até agora tem sido por
intermédio da teoria e da técnica. Os conceitos que apontamos com
relação ao tempo (...) nas suas peças são de uso comum na vanguarda
teatral de hoje em dia (...). Partindo de alguma maneira do teatro de
Stein, o trabalho de Richard Foreman e o de Robert Wilson dependem
de técnicas nas quais Stein foi pioneira no teatro em 1913, e levam à
prática muitas das suas teorias.
35
O registro dessa presença steiniana na cena contemporânea norte-americana
parece ter influenciado diretamente o aumento dos estudos interessados em entender a
técnica teatral” de Stein, em estudar especificamente a sua dramaturgia, ou que
passaram a levar em consideração suas indagações sobre o teatro, especialmente o
conceito criado por ela de teatro-paisagem”, do qual tratarei mais adiante ao longo
desta tese. Para citar alguns exemplos, pode-se lembrar do parágrafo que o ctico
Marvin Carlson, em seu livro Teorias do teatro: estudo histórico-crítico, dos gregos à
35
“The presence of Stein’s theatre is not felt solely through production of her works: its most significant
impact so far, has been through theory and technique. The concepts we have isolated in relation to time
(...) in her plays are common usage in today’s theatrical avant-garde. (…) while departing in some ways
from Stein’s theater, the work of Richard Foreman and Robert Wilson depends on the very techniques
Stein pioneered in the theatre in 1913.” Ryan, p.146
31
atualidade, dedica às teorias teatrais de Stein expostas por ela em seu texto “Plays”.
36
Hans-Thies Lehmann, em seu estudo sobre o teatro pós-dramático, dedica toda uma
seção à “Landscape Play” steiniana, na qual indica Stein como uma das predecessoras
do momento pós-dramático e do teatro contemporâneo de modo geral, colocando-a ao
lado de Gordon Craig, Bertold Brecht, Antonin Artaud e Vsevolod Meyerhold.
37
A
coletânea de textos sobre teatro e espacialidade teatral, organizada por Una Chaudhuri e
Elinor Fuchs, publicada em 2002, chega a tomar emprestada a aproximação que Stein
faz entre teatro e paisagem e leva o título de Land/scape/theater. Além de o título deixar
evidente a influência do pensamento de Stein na organização da coletânea, no livro,
um capítulo inteiro, composto de três ensaios, e intitulado “Steinscapes”.
38
Com relação à influência exercida por Stein nos encenadores teatrais apontados
por Ryan, é possível lembrar um comentário feito por Robert Wilson, responsável pela
encenação de três de seus textos para teatro, “Doutor Faustus liga a luz” (1992), Saints
and singing (1997) e “Four Saints in Three Acts” (1996)
39
:
No início dos anos sessenta eu comecei a ler os trabalhos de Gertrude
Stein e também escutei as gravações dela falando. Isso foi na verdade
antes de eu começar a trabalhar no teatro e isso mudou a minha
maneira de pensar para sempre.
O outro encenador apontado e analisado por Ryan, Richard Foreman, tamm se
declarou influenciado pela escritora. Dirigiu “Dr Faustus liga a luz”, produzido para o
Festival d'Automne de Paris em 1982. E, em entrevista publicada em seu livro
Unbalancing Acts, revelaria a importância de Stein na elaboração dos roteiros de seus
espetáculos e na sua noção de escrita cênica:
Quando eu descobri Gertrude Stein, esclareceu-se para mim o que eu
vinha sentindo sobre a minha própria escrita, e isso me deu condições
para falar sobre o que eu já estava fazendo.
40
36
Conferir, CARLSON, Marvin. Teorias do teatro: estudo histórico-crítico, dos gregos à atualidade.São
Paulo: UNESP, 1997, p.391.
37
Conferir, LEHMANN, Hans-Thies. Postdramatic theatre. New York: Routledge, 2006.pp.62-63 e p.49
38
Conferir FUCHS, Elinor e CHAUDHURI, Una. Land/scape/theater. The University of Michigan Press,
2002. pp.121-185.
39
Luiz Roberto Galizia, em seu livro “Os processos criativos de Robert Wilson” já assinalava também a
influência steiniana sobre o diretor Bob Wilson. Conferir: GALIZIA, Luiz Roberto. Os processos
criativos de Robert Wilson. Rio de Janeiro: Perspectiva, 1986.
40
“When I discovered Gertrude Stein, it clarified what I’d been feeling about my own writing, and gave
me the terms to talk about what I’d really been doing.” FOREMAN, Richard. Unbalancing acts.
Foundations for a theater. Edited by Ken Jordan. New York: Theatre Communications Group, s/ data.
P.79
32
Eu não poderia deixar de incluir neste rol de encenadores influenciados por
Gertrude Stein, a brasileira Denise Stoklos, que incluiu em um de seus espetáculos
um texto de Stein, Miss Fur e Miss Skeene, e que, esteve em cartaz no Rio de Janeiro
com uma performance (Calendário de pedra) inspirada no poema de Stein “Book of
Anniversary”. E ainda, mais recentemente, o ator e performer Luiz Paetow, que traduziu
e encenou, em 2006, a palestra de Getrude Stein “Plays”, sob direção de Marcio
Aurélio.
Passo agora a comentar, então, o que caracteriza o segundo estudo, o de Jane
Palatini Bowers, a se voltar exclusivamente para a análise das peças de Stein. Trata-se
do livro “They watch me as they watch this”: Gertrude Stein Metadrama, publicado em
1991.
Considero importante apontar, em primeiro lugar, que Bowers, em seu estudo,
toma como peças não apenas as 77 estudadas por Ryan. Ela aumenta consideravelmente
o corpus dramatúrgico steiniano e explica - na sua lista cronológica de peças publicadas
de Stein - os critérios que usou para identificar os textos que, na sua visão, se
caracterizariam como peças:
Uma vez que Gertrude Stein se distancia tão radicalmente do drama
convencional, não é sempre imediatamente óbvio quais de seus textos
são pas. Trabalhos incluídos nesta lista cronológica de peças
publicadas de Stein seguem os seguintes critérios: 1. o título ou
subtítulo indicam que o texto é uma ópera ou pa, ou o texto aparece
no volume Operas and plays; 2. o texto consiste inteiramente de
diálogo; 3. o texto é dividido entre um texto principal e um “side text”
que inclui atribuições a personagens, divisões em atos/cenas, e
descrições espaciais; ou 4. o texto é metadramático e contém
evidência interna de que foi escrito para eventual performance.
41
Seguindo estes critérios, a lista de peças cresce muito. Se Ryan trabalhou com 77
textos, Bowers considera 103 textos steinianos como sendo peças.
41
“Because Gertrude Stein’s plays depart so radicaly from conventional drama, it is not always
immediately obvious which of her text are plays. Works included in this chronological list o Stein’s
published plays meet some combination of the following criteria: (1) the title or subtitle indicates that the
text is an opera or play, or the text appears in the volume Operas and plays; (2) the text consists entirely
of conversational address and response; (3) the text is divided into a main text and a side text which
includes characters ascriptions, acts/scene divisions, and scene settings; or (4) the text is metadramatic
and contains internal evidence that it was written for eventual performance.” BOWERS, Jane Palatini.
They watch me as they watch this: Gertrude Stein’s Metadrama. Philadelphia: University of Pennsylvania
Press, 1991. p.137
33
Na introdução de seu livro, Bowers assinala que alguns críticos costumam
dividir as peças de Stein em dois tipos: diálogos e paisagens (que seriam, no caso das
peças de Stein, subgêneros dentro do gênero drama). Observa, em seguida, que outros
críticos, mais recentes, não consideram que essa divisão em neros possa dar conta da
análise dos textos de Stein. É este o caso, por exemplo, de Bruce Kellner que, na sua
introdução para A Gertrude Stein Companion, diz que genre won’t do”. É tamm o
que pensa Marianne de Koven, em seu livro A different language (1983). Ela argumenta
que, na sua opinião, a divisão do trabalho de Stein em estilos cronológicos é mais
significativa do que a divisão em obras ou gêneros”
42
.
Bowers acredita, no entanto, que certo tipo de divisão em neros capaz de
fornecer uma visão particularmente rica da escrita de Stein e das formas dramatúrgicas
com que ela trabalha. Diz ela a respeito:
Stein certa vez aconselhou um escritor aspirante que ‘pensasse a
escrita como descoberta’. Este conselho se baseou na sua própria
prática, uma vez que, para Stein, escrever era descobrir. Quando o
processo de descoberta era experimentado num gênero literário
preexistente, Stein estava explorando um território que havia sido
mapeado cuidadosamente. As convenções do gênero marcam o
caminho. No entanto, um escritor que é um descobridor deve se
aventurar sozinho distanciando-se dos caminhos daqueles que
desenharam os mapas. Isso Stein fez. Suas peças não se parecem com
nada que existia antes delas, e elas são interessantes por suas
novidades, por se afastarem das convenções e a de outros dramas
não convencionais. Mas, apesar de toda a sua estranheza, elas o
ainda peças, que Stein não abandonou totalmente as convenções do
gênero; mas questionou as convenções e os limites impostos por elas à
livre brincadeira da linguagem e da criação.
43
Stein fez descobertas sobre o gênero dramático”, concluiria Bowers. E, apesar
de aceitar a atenção dada à questão do gênero por Betsy Alayne Ryan, discordaria da
tese da autora de que as peças de Stein “se distinguem dos retratos e dos romances, (...)
42
“The division of her [Stein’s] work into chronological styles is much more meaningful than the division
into works or genres.Marianne deKoven, citada por Bowers, p.1
43
“Stein once advised an aspiring writer to ‘think of the writing in terms of discovery.This advice was
based on her own practice since, for Stein, writing was discovery. When the process of discovery was
undertaken in a preexisting literary genre, Stein was exploring territory that had already been carefully
mapped. The conventions of the genre mark the way. Nonetheless, a writer who is a discoverer must
strike out on her own, away from the well-worn paths of the mapmakers. This Stein did. Her plays are
like nothing that ever came before them,, and they are exciting in their newness, in the ways in which
they depart from convention, and even from other unconventional drama. Yet, for all their strangeness,
they are still plays, for Stein did not abandon the conventions of the genre entirely; rather, she questioned
them and the limits they imposed on the free play of language and creation. The interplay between her
texts and the conventions of the genre leads Stein to make discoveries about the genre, and these
discoveries give her plays their value as theater texts.” Bowers, p.2
34
são expressões físicas cuja realização não está na página impressa, mas na performance
ao vivo”. E que, para impacto total elas devem ser vistas”, pois, “no teatro as peças
existem como fenômenos simples e concretos.”
44
Em oposição à tese de Ryan, no entanto, Bowers diz que as peças de Stein não
são ‘expressões físicas’; elas não enfatizam nem mesmo facilitam a realização sica da
peça no palco”. Na verdade, diz ela, “as peças de Stein se opõem à fisicalidade da
performance”. Pois o teatro de Stein é um teatro da linguagem”. “Suas peças”, afirma
Bowers, são autoconscientemente ‘literárias’, como se numa leitura aprofundada de
seus textos.”
45
Bowers exe, desta maneira, uma das principais teses que deverá defender em
seu estudo. A que se liga a outra hitese defendida por ela, e que já se pode ler no
subtítulo de seu livro, a de que o teatro steiniano é sempre metadramático. Entendendo-
se metadrama, tal como o define Bowers, isto é, como um drama que é, ao mesmo
tempo, auto-referencial e auto-reflexivo”:
Eu abordo o trabalho de Stein, como eu acredito que Stein o abordava,
com um interesse pelo seu processo de criação e pela descoberta, por
ela, por meio da experimentação, de novas maneiras de se fazer
literatura e linguagem. Esta abordagem me levou a ver as peças
escritas entre 1915 e 1936 (...) como peças auto-reflexivas que
questionam a maneira pela qual a linguagem funciona no teatro e que
estão interessadas na interação entre textualidade e performance. Por
essas peças serem sobre a linguagem no teatro, elas são metadramas.
46
Ainda no capítulo introdutório de seu livro, Bowers aponta a necessidade de uma
leitura cronológica das peças de Stein, pois acredita que “o processo de descoberta de
Stein se desenvolveu ao longo do tempo”, “com novas descobertas se desdobrando das
44
“Plays as distinguished from the novels and portraits (…) are physical expressions whose realization
lay not on the printed page, but in live performance. For full impact they have to be seen (…). In the
theatre the plays exist as simple, concrete phenomena.RYAN, Betsy Alayne. Gertrude Stein’s Theatre
of the absolute. Ann Arbor / London: UMI Research Press, 1984. p.40
45
“However, Stein’s plays are not ‘physical expressions’; they do not emphasize or even facilitate the
physical realization of the play on the stage. In fact, Stein’s is a theater of language: her plays are
adamantly and self-consciously ‘literary’, as I will show through close reading of her texts”, Bowers, p.2
46
I approach Stein’s work, as I believe Stein approached it, with an interest in her process of creation
itself and in her discovery, through experimentation, of new ways of making language and literature. This
approach has led me to see the plays written between 1915 an 1936 (…) as self-reflexive plays that
question the way language functions in the theater and that are concerned with the interaction between
textuality and performance. Because these plays are about language in the theater, they are metadramas.”
Bowers, p.4
35
que as antecedem.”
47
Esta leitura cronológica é, na verdade, a mais habitual quando se
trata da dramaturgia de Stein. Isso talvez se deva ao fato de a própria escritora, em seu
texto Plays”, traçar um histórico da sua relação com o teatro, desde a sua recepção
infantil e adolescente a algumas peças até o contato com textos escritos para o teatro,
principalmente a leitura das peças de Shakespeare, até chegar à escrita de peças, um
processo que ela mesma, em “Plays” dividiria em dois períodos, já referidos brevemente
aqui. O primeiro deles, no qual ela estaria trabalhando no sentido de escrever peças que
o contassem histórias, mas que revelassem a essência do acontecimento e o
segundo período, a que ela se refere como o das peças-paisagens ou “landscape plays”.
A esses dois períodos Stein adicionaria um terceiro, no qual ela estaria trabalhando com
a questão da narrativa nas peças de teatro. Este terceiro período, comumente chamado
de período narrativo, foi mencionado por Stein pela primeira vez em uma carta escrita a
Carl Van Vechten referindo-se ao processo de escrita de “Dr. Faustus liga a luz”. É
difícil, no entanto definir a organização cronológica da escrita de Stein, seguindo
invariavelmente a descrição oferecida pela própria autora. Pois Stein, como bem
observa Ryan, fornece informações contraditórias não sobre as datas em que teria
escrito as peças como quanto ao subnero a que elas pertenceriam.
Bowers, no entanto, divide seu estudo em quatro partes. Na primeira, ela aborda
as peças escritas entre 1915 e 1919. Estes seriam os textos que ela classifica como
peças de conversação” (“Conversation plays”). No segundo capítulo, Bowers pretende
dar conta das peças escritas entre 1920 e 1933. A este conjunto de textos, a autora
chama de “plays as lang-scape”. A autora explica que adaptou o termo usado por Stein,
“landscape” para “lang-scape” por considerar que o objeto dessas peças é, na verdade,
o “a paisagem em torno da casa de campo de Stein e Toklas” na França, em Bilignin,
como Stein algumas vezes alega” e sim a linguagem no teatro. O termo lang-scape
plays, cunhado por Bowers, e sua análise das peças de Stein deste período como peças
sobre a linguagem, passou a ser citado como referência fundamental em trabalhos de
outros críticos que se seguiram a ela. No terceiro capítulo de seu estudo, a pesquisadora
se volta para a leitura da palestra “Plays” e do livro The geographical history of
America e para duas peças, “Not and now” e “Listen to me”. No quarto e último
capítulo de seu livro, ela se concentra apenas em duas peças, consideradas em geral
como pertencentes ao período narrativo de Stein, Doctor Faustus liga a luz e The
47
“I present these readings chronologically because Stein’s process of discovery unfolds through time,
new discoveries evolving from old.” Bowers, p.2
36
mother of us all”. Neste estudo, porém, a pesquisadora não discute exatamente a questão
da narratividade nas duas peças, que ela considera peças anômalas dentro do corpo
dramatúrgico de Stein. Bowers opta por dar a elas uma leitura feminista uma vez que
acredita ter Stein, ao final da vida, se voltado para “um material especificamente
feminino e talvez com intenções feministas.”
48
Bowers analisa as peças de Stein de um ponto de vista bastante literário. Em seu
capítulo sobre as peças de conversação, ela chega a analisar os tipos de verbos usados
por Stein (estudo, aliás, do ponto de vista lingüístico, bastante rico), acreditando não
haver propriamente personagens nessas peças, mas sim o que ela chama de “falantes”.
A autora imagina supostas montagens de algumas das peças, montagens que poderiam
ou o vir a ser fiéis ao texto ou nas quais o hipotético diretor poderia vir a cometer
equívocos resultantes de uma não compreensão do texto de Stein. Na sua visão “a
linguagem está em primeiro plano, e os personagens, assim como os objetos, as
condições e as ações, são desenfatizados.”.
49
No capítulo sobre as “lang-scapes” há uma passagem que, a meu ver, merece ser
citada e comentada:
Stein trata suas palavras como se fossem objetos concretos que se
relacionam uns com os outros espacialmente, isto é, visualmente na
página e sonoramente no ar. Seu uso da língua assume uma materialidade
equivalente, em presença, à materialidade dos outros elementos do
evento da performance.
50
Eu não compartilho da opinião de Bowers de que não há personagens nas peças
de conversação de Stein, e também não acredito que montagens de textos de Stein
possam ser “fiéis” ou não ao texto. Considero serem personagens, como se verá mais
adiante, as vozes sem nome que surgem em seus textos, os nomes e pronomes
mencionados nos textos, mas que não chegam a figurar em cena. Acredito ainda que
personagens em textos que se caracterizam como mologos, tais como “He Said it”, ou
“Capitão Walter Arnold”. Estas vozes monologantes são lidas por mim como
48
Marianne DeKoven citada por Bowers p.3.
49
“Language is foregrounded and characters, like objects, conditions, and actions, are de-emphasized.”
Bowers,p.20.
50
“Stein treats her words as though they are material objects related to each other spacially, that is,
visually on the page and sonorously in the air. Her language assumes a materiality equal in presence to
the materiality of the other elements of the performance event.” Bowers, p. 26.
37
personagens. Assim como os personagens que ao início do texto estão mortos, na
peça “Uma peça”, traduzida por mim e incluída no anexo de traduções desta tese.
Quanto a montagens “fiéis” às peças, acredito, sim, que há leituras cênicas para elas que
são de certo modo independentes do texto escrito. No entanto, concordo com a idéia,
exposta por Bowers nesta citação, de que as palavras são como objetos concretos na
página. E penso que já aí, nesta concretização das palavras, existe teatralidade nas peças
de Stein, ainda antes de elas saírem do papel e migrarem para o espaço da cena, ainda
antes, até mesmo, de elas ganharem aspecto sonoro audível numa leitura em voz alta.
Esta minha hipótese será discutida ao longo desta tese. Não só nos capítulos que
analisam as peças em seus diversos aspectos, como no conjunto de traduções realizadas
por mim e no memorial sobre os Laboratórios Experimentais que resultaram, sim,
numa migração do texto para a cena, num esforço de trazer a teatralidade contida no
texto para o espaço da cena.
O estudo mais recente dedicado exclusivamente ao teatro de Gertrude Stein, é o
livro de Sarah Bay-Cheng, Mama Dada: Gertrude Stein’s avant-garde theater,
publicado em 2004, como já indiquei.
Bay-Cheng foca seu trabalho na análise de oito textos que ela acredita que “Stein
escreveu especificamente como dramas ou ‘scenarios’ (roteiros) textos aos quais ela
se referiu como peças ou roteiros de cinema em notas ou cartas, que ela tentou ver
produzidos, e nos quais ela demonstrou estar a par da forma (mesmo trabalhando contra
a forma).
51
Embora ela privilegie, em seu livro, apenas estes oito textos (as peças “Four
saints in three acts”, They must. Be wedded. To their wife”, “Listen to me”, “Doutor
Faustus liga a luz”, Yes is for a very young man” e “The mother of us all” e os
roteiros: “A movie”, de 1920 e “Film. Deux soeurs qui ne sont pas soeurs”, de 1929), ao
final do livro, Sarah Bay-Cheng organiza uma grande lista cronológica de peças
baseando-se nas duas listas elaboradas previamente por Betsy Ryan e por Jane Bowers.
Bay-Cheng não acrescenta mais nenhuma peça às listas anteriores, mas soma as
duas, realizadas pelas duas outras estudiosas, enumerando um total de 111 peças. Esta
seria, portanto, a lista mais completa de peças de Stein compilada até este momento.
51
“In this study I have focused on eight of the texts that, I believe, Stein wrote specifically as dramas or
scenarios texts thar she referred to as plays or screenplays in notes and letters, that she attempted to
have produced, and in which she demonstrated her awareness of form (even as she worked against this
form).” BAY-CHENG, Sarah. Mama Dada : Gertrude Stein’s avant-garde theater. New York: Rutledge,
2004. p141
38
Bay-Cheng faz questão de deixar claro, no entanto, que ela própria acredita que “muitas
das peças curtas de Stein, particularmente aquelas de antes de 1920, foram meramente
exercícios de escrita não planejadas para serem produzidas.”
52
Ela deixa, então, para o
leitor a tarefa de determinar quais dos 111 textos de Gertrude Stein listados ao final do
seu trabalho podem de fato ser considerados peças.
na introdução ao seu livro, Bay-Cheng deixa clara a hipótese que será
defendida por ela ao longo de todo o estudo:
O desenvolvimento da visão dramática [de Stein] pode ser
totalmente compreendido se relacionado a três tendências artísticas e
culturais do século XX: o desenvolvimento da vanguarda, a evolução
do cinema e o surgimento da homossexualidade como identidade.
53
É importante observar que a vanguarda a que Sarah Bay-Cheng se refere aí é o
teatro de vanguarda do início do século XX, que teria influenciado Gertrude Stein, e
o, é evidente, à vanguarda da década de 1970, citada por Betsy Ryan, e que teria, ao
contrário, sido influenciada pelo trabalho de Stein.
Bay-Cheng data de 1895 a gênese de uma formação cultural que envolveria estes
três elementos: o teatro de vanguarda, originário da virada do século XIX para o XX, o
aparecimento do cinema e da “identidade homossexual”, que ela conceitua seguindo a
tendência dos estudos de gênero (Gender Studies) - como “queerness”. A estréia de
Ubu Rei” em 1896 é considerada o marco do teatro de vanguarda. O início do cinema
tem como marco, para ela, o filme “Workers leaving the Lumière Factory”, de 1895. E
o conceito identitário de homossexualidade teria sua afirmação pública, em sua opinião,
com o julgamento, altamente noticiado, de Oscar Wilde, também em 1895.
“Como resultado desses acontecimentos culturais”, diz ela, “as histórias do
teatro de vanguarda, do cinema e do queerness partilham de mais do que apenas um
ponto de origem mútuo. Estes três acontecimentos ecoam a imprevisibilidade do início
do século XX em muitos artifícios formais: repetição, fragmentação, não-linearidade, e,
talvez surpreendentemente para o filme, a não representação da realidade.”
54
52
“I believe that many of Stein’s shorter works, particularly those before 1920, were merely writing
exercises and not intended for production.” Idem, p.142
53
“The development of her dramatic vision can only be fully understood, moreover, in relation to three
dominant cultural and artistic trends of the twentieth century: the development of the avant-garde, the
evolution of cinema, and the emergence of homosexuality as an identity.” Bay-Cheng, p.4
54
“As a result of these cultural developments, the histories of the theatrical avant-garde, cinema and
queerness share more than just a mutual point of origin. These three echo the unpredictability and
39
Ainda na sua introdução, numa subdivisão textual que Bay-Cheng intitula de
Gertrude Stein: a cinematic, avant-garde queer”, ela afirma que “a influência, em
Stein, das peças e performances de vanguarda, do filme e de sua própria identidade
‘queer’ podem explicar muitos dos aspectos de quebra-cabeças do seu drama”. Como o
seu uso de uma trama o linear, da repetição, da fragmentação ou sua completa
eliminação do personagem, e, ainda, o uso da simultaneidade e de um “presente
contínuo” peculiar
55
.
4. Outras leituras.
Não poderia deixar de comentar brevemente aqui outros estudos que abordaram o
teatro de Gertrude Stein. O primeiro a ser levado em consideração é o livro de Steven
Watson, Prepare for Saints. Publicado em 2000, o volume é inteiramente dedicado ao
período de sete anos que compreendeu a escrita de “Four saints in three acts” por Stein,
de 1927 até a estréia da ópera em 1934. O minucioso estudo biográfico dos bastidores
da produção do espetáculo, feito por Watson, aborda desde o início da amizade entre
Virgil Thompson (compositor das músicas de Four Saints) e Gertrude Stein, passando
por uma descrição da colaboração entre os dois artistas na crião da ópera, os ensaios,
até a estia do espetáculo, a temporada na Broadway, o sucesso alcançado e o legado
que a montagem deixaria para o teatro americano moderno.
Ainda sobre “Four saints in three acts”, um capítulo do vasto e fundamental
estudo, de Ulla Dydo, Gertrude Stein: the language that rises. Este livro, segundo
explica a própria Dydo, uma das maiores conhecedoras do trabalho de Stein, é o registro
de uma longa temporada de estudo debruçada sobre os manuscritos da escritora
depositados na Biblioteca Beinecke da Universidade de Yale, trabalho ao qual ela se
dedica desde 1979. Pois, informa Dydo, “os manuscritos nos dão acesso ao processo
criativo de Steine explica:
Eles incluem não apenas as linhas que foram afinal impressas como
também outros elementos que eu gradualmente aprendi a ler: traços do
ato físico de escrever, movimentos da mão no espaço, seqüências
visuais de palavras, revisões, anotações, papel, caneta e lápis, traçado,
instability of the early twentieth century in several shared formal devices: repetition, fragmentation,
nonlinearity, and, perhaps surprisingly for film, the nonreproduction of reality.” Idem, p.8
55
“The influence on Stein of avant-garde plays and performances, film, and her own queer identity can
explain many of the most puzzling aspects of her drama.” Conferir: Bay-Cheng, p.18
40
apagamentos, rabiscos, nomes, endereços, números de telefone, e
dobras de canto de ginas de cadernos de anotações carregadas de
mensagens tudo isso é contexto para os seus textos e a sua mente
enquanto trabalhava.
56
Ao contrário do que ela própria já fizera em ensaio anterior sobre “Four Saints”
e do que outros críticos costumam fazem - que é tratar a peça isoladamente do resto da
obra de Stein, por conta da singularidade que o sucesso da montagem de 1934 deu a ela
-, Dydo, no seu novo estudo sobre a peça, se dispõe (como vem fazendo ao longo do
volume com toda a obra steiniana) a ler a peça “dentro da seqüência cronológica da obra
de Stein, depois de A diary’, ao lado do final de ‘Regular regularly in narrative’ e
‘Three sitting here’, e chegando a Lucy Church Amiably”. O contexto destes e de
outros trabalhos e eventos do verão de 1927 [ano em que a peça foi escrita]”, explica
Ulla Dydo, “lança luz sobre o texto.”
57
Dydo anuncia ainda que tratará da peça como um “trabalho literário”, sem levar
em consideração a colaboração posterior com Thompson, a partitura musical composta
para ela e nem, portanto, os dados sobre a montagem de 1934. Pode-se dizer, neste caso,
que o trabalho de Dydo difere inteiramente do de Steven Watson, no que diz respeito ao
objeto de estudo de um e de outro. Os dois estudos se aproximam, entretanto, ao se
debruçarem, tanto um quanto outro, sobre o contexto (como diz Dydo) e sobre os
bastidores (como diria Watson) em meio aos quais foram produzidas a peça e a
encenação.
Ainda sobre a mesma peça, há o ensaio “Four Saints in three acts: Play as
landscape”, de Norman Weinstein, publicado em coletânea organizada por Harold
Bloom, reunindo ensaios sobre a obra de Stein. O ensaio de Weinstein segue rumo
diferente daquele escolhido pelos outros dois críticos citados. “Four Saints” é citada por
Gertrude Stein, em seu texto “Plays” como exemplo de peça-paisagem. Weinstein segue
o raciocínio de Stein e tenta perceber as técnicas usadas por ela (como o cut-up method,
56
“They include not only the lines eventually printed but also other elements that I gradually learned to
read: traces of the physical act of writing, movement of the hand in space, visual sequences of words,
revisions, notes, paper, pen and pencil, lineation, erasures, doodles, names, addresses, phone numbers,
and dog-eared corners of notebooks conveying messages all contexts for her texts and her mind at
work.” DYDO, Ulla E. Gertrude Stein: the language that rises:1923-1934. Evanston, Illinois: Northern
University Press, 2003. p.3
57
I am now, however, reading it in the chronological sequence of her work, after ‘A diary’, alongside
the end ofRegular Regularly in Narrative’ and ‘Three sitting here,’ and leading to Lucy Church Amiably.
The context of these and other works and events of the summer of 1927 thows light on the text.’ Idem,
p.172-173
41
por exemplo, que será analisado ao longo desta tese) e analisando o texto da peça de
acordo com o conceito de paisagem exposto por Stein em sua palestra.
Além destes três exemplos que enfocam a peça “Four saints in three acts”,
ainda outros ensaios e capítulos de livros que abordam ou uma peça em especial, ou um
período da escrita de Stein, mas que de algum modo enfocam sua produção
dramatúrgica.
O ensaio de Shirley Neuman, Would a viper have stung her if she had only
had one name?’ : Doctor Faustus Lights the Light”, enfoca, como o título diz, a
versão para a lenda de Fausto dada por Stein. Em seu trabalho, a autora procura mapear
os textos, espetáculos, outros textos de Stein, escritos antes ou durante a escrita da peça
e os acontecimentos na vida de Stein, que teriam servido, como diria Ulla Dydo, de
contexto” para Doutor Faustus e, principalmente, para a criação da personagem da
peça Margarida Ida e Helena Anabela. Assim como Dydo, Neuman analisa os
manuscritos da peça, realizando um atento estudo filológico do processo de criação do
texto.
No livro Gertrude Stein and the essence of what happens, Dana Cairns Watson
dedica um capítulo ao volume Geography and plays. Neste capítulo, Watson mostra
que Stein desvia a sua atenção do modo como a conversação revela personalidades,
para o modo como a conversação é, ela mesma, uma estrutura de significância cuja
investigação mais aprofundada é de grande valia.”
58
Marianne DeKoven, em A diferent language: Gertrude Stein’s experimental
writing, se propõe a enfocar a produção de Stein no período que se estende entre sua
primeira publicação, Três vidas, e A autobiografia de Alice B. Toklas. A autora chama
atenção para este período em particular devido ao seu caráter experimental e argumenta
que sua importância estaria não na influência exercida sobre outros autores, mas por
ser um “exemplo de uma linguagem culturalmente alternativa.” O estudo de DeKoven,
seguindo uma ordenação cronológica, aborda, no capítulo 5, intitulado “Voices and
Plays”, as primeiras peças steinianas, chamando a atenção para o movimento que
haveria, neste período, na escrita de Stein, em direção a uma inserção na forma
dramática, visível, segundo ela, em textos como “What happened”, “A curtain raiser” e
“White wines”, para citar apenas algumas peças.
58
“This chapter shows that Stein turns her attention from the way conversation reveals personality to the
way conversation is itself a significant structure worthy of further investigation.” WATSON, Dana Cairn.
Gertrude Stein and the essence of what happens. Wanderbilt University Press, p.12
42
Para finalizar essa lista de estudos críticos de que ofereço aqui apenas uma breve
amostragem, gostaria de acrescentar uma referência ao ensaio de Dinnah Pladott,
Gertrude Stein: exile, feminism, avant-garde in the american theater.” O breve estudo
de Pladott toma o exílio em Gertrude Stein como ponto de partida para tratar de
questões mais amplas, socialmente falando, como a relação entre feminismo e
vanguarda. O objetivo de Pladdot é perceber de que maneira o exílio múltiplo da
escritora (que, na sua visão, consistiria tanto na sua opção em viver longe de seu país de
origem, quanto no fato de ser uma mulher lésbica e judia), teria influenciado Stein de na
escrita de suas peças. Pladott, tomando como base trica estudos de Julia Kristeva,
Jacques Derrida e Michel Foucault, concentra-se principalmente na peça “The mother of
us all”. A leitura deste ensaio foi de grande relevância na idealização do meu projeto
de estudo sobre Gertrude Stein, uma vez que a noção de exílio funciona, também para
mim, como elemento fundamental para pensar o teatro steiniano. Os dois trabalhos, no
entanto, tomam caminhos bastante diversos, como vou demonstrar mais adiante e ao
longo de minha tese.
5. Elio / deslocamento / movimento
A título de síntese provisória, posso dizer que, de modo geral, a recepção da obra
de Gertrude Stein tenta entendê-la quase sempre privilegiando a relação do seu
trabalho com a sua biografia, nos piores casos colando a ela o vasto anedotário que
envolve a escritora, nos melhores estudos de fundo biográfico buscando-se quase tudo
nas suas autobiografias e correspondências. Tentando inclusive compreender a enorme
variedade de gêneros e subgêneros trabalhados por Stein, obedecendo a explicações ou
cronologias fornecidas por ela mesma em suas palestras, entrevistas, e biografias, ou
criando camisas-de-força classificatórias para a variedade de formas produzidas
livremente por Stein. Estas tentativas de classificação acabam por aprisionar a obra de
Stein que, ao contrário, buscava libertar os gêneros de seus limites. Outro caminho
usual é o de ver a sua obra como dependente diretamente de alguns dos movimentos
artísticos do século XX, como o cubismo ou o dadaísmo. Stein como reflexo de Picasso.
Stein como exemplo de Dadaísmo. Tentando, assim, encontrar um par artístico ou
rótulos que possam dar conta de uma escrita que, na verdade, resiste a essas leituras
comparativistas ou apenas biográficas.
43
No meu trabalho, estou certamente dialogando com estes críticos. E também
com essas leituras preocupadas com questões de gênero, identidade, com o estudo de
formas testemunhais. Tento, no entanto, me distanciar, de certa maneira, delas. Minha
abordagem do teatro steiniano pelo viés do exílio não se restringe ao fato biográfico de
Stein ter escolhido viver toda a sua vida produtiva em Paris, longe do seu país natal, dos
Estados Unidos. Meu objetivo é estender esta noção de exílio e esta opção pelo
deslocamento para além do dado biográfico. E trabalhar como deslocamento a maneira
pela qual Stein força os limites dos gêneros e identidades, por exemplo.
O livro de T.J. Demos, The Exiles of Marcel Duchamp
59
, procura analisar os
trabalhos de Duchamp, realizados durante os períodos de deslocamento geográfico do
artista, através da influência que a experiência do exílio teria exercido nestas obras.
Neste ponto eu encontraria no estudo de T.J. Demos algo em comum com a leitura que
procurei fazer da escrita steiniana, tomando o viés do exílio como ponto de partida para
uma tentativa de compreensão do pensamento e do trabalho de Gertrude Stein.
E seguindo o que foi apontado por Donald Sutherland, ainda em 1951, procuro
ler o texto steiniano enquanto cena, antes mesmo de ele sair do papel. Deslocando,
assim, a cena - do espaço exterior para dentro do espaço textual. Ou, ao contrário,
tentando deslocar o texto - do papel para o espaço da cena. Foi o que tentei fazer nos
meus “Laboratórios Experimentais” em 2004. procurei trabalhar com algumas peças
justamente do primeiro período steiniano (1913-1920), justamente as consideradas por
muitos como as “não montáveis”, ou com as pequenas peças inseridas em The
Geographical history of America, que não se acham dentre as listas de peças de
Gertrude Stein mencionadas aqui. E exilando-as, ainda, de sua língua de origem, por
meio de um exercício duplo de tradução não cênica, mas lingüística também. Pois
minha leitura não se restringe ao texto em seu original em inglês, mas absorve a
transposição para o português como mais uma instância de deslocamento. Desse modo,
acompanhando o exílio intrínseco à trajetória e às peças de Stein, tento exilá-las
metodicamente uma vez (a cena no texto), e mais outra (a tradução), e outra vez mais (a
encenação). Lendo-as de modo a ''make the looking have in it an element of moving
(Stein).
60
59
DEMOS, T.J. The exiles of Marcel Duchamp. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 2007
60
“fazer com que o olhar contenha em si um elemento de movimento” STEIN, Gertrude . “Portraits and
repetition” in: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The Library of America, 1998.p.308
44
CAPÍTULO II
Lá não existe lá
- exílios -
45
“A imigração, imposta ou escolhida, para além das fronteiras nacionais ou do
povoado para a metpole”, comentava John Berger em 1985, “é a experiência essencial
do nosso tempo”. E talvez seja também essencial à prática artística moderna e
contemporânea. Basta pensar em Samuel Beckett, James Joyce, Ernest Hemingway,
Henry Miller, Elizabeth Bishop, no já referido exílio americano de Duchamp, e no
próprio Berger, dentre os inúmeros expatriados exemplares na vida cultural do século
XX. Exílios voluntários ou forçados, “a imigração não é unicamente o feito de deixar
um país, de atravessar o oceano, de viver entre os estrangeiros”, acrescenta Berger, “é
também desfazer o sentido de mundo e ao limite extremo se abandonar ao irreal”
1
.
Com isso, transforma-se esse desenraizamento literal ou vivencial em elemento
essencial à própria experiência artística nos exemplos citados. E de maneira peculiar no
caso da obra de Gertrude Stein, que será objeto deste estudo, no qual vou procurar
tratar, como já assinalei, do seu teatro e do modo como a condição de auto-exilada afeta,
em particular, as noções de identidade, tempo e espaço em seu trabalho, assim como a
sua poética e escrita dramatúrgica de modo geral.
Antes de analisar a repercussão do exílio voluntário em sua obra, entretanto, é
importante ter em mente que falar do deslocamento geográfico steiniano o pode se
limitar à evocação da sua agora tica residência parisiense à Rue de Fleurus 27, ao
lado de Alice Toklas. Pois a experiência migratória tem lastro bastante vasto na sua
vida. E, mesmo durante a temporada em Paris, há muitas viagens, muitos afastamentos
da sua residência nuclear. Parece possível, inclusive, relacionar diretamente essa
mobilidade constante, assim como a maior permanência em determinados lugares, a
algumas de suas escolhas artísticas, a certos textos steinianos em particular. Por isso o
levantamento dessas viagens e endereços variados e a ênfase em alguns dados
biográficos seus podem ser fundamentais para o estudo dessa relação entre exílio e
criação artística na obra de Gertrude Stein.
1
“L’émigration, imposée ou choisie, au-delà des frontières nationales ou du village à la métropole, est
l’expérience essentielle de notre temps. (...).L’émigration n’est pas uniquement le fait de quitter un pays,
de traverser l’eau, de vivre parmi des étrangers, c’est aussi défaire le sens du monde - et à l’extrême limite
- s’abandonner à l’irréel.” BERGER, John. L’exile. In: La lettre internationale, 1985
http://www.peripheries.net/article195.html?var_recherche=John+Berger 30 de outubro de 2007.
46
O RITMO DO MUNDO VISÍVEL
Partindo então do ponto de vista biográfico, é importante atentar, em primeiro
lugar, para os inúmeros exílios aos quais Gertrude Stein se expôs voluntária ou
involuntariamente, desde a infância. Nascida em Allegheny, Pensilvânia em 1874,
muda-se com a família para Viena em 1875. Os Stein permanecem na Áustria até
Gertrude Stein completar quatro anos e meio, quando sua mãe decide mudar-se com os
filhos para Passy, cidade nos arredores de Paris, a fim de estar mais próxima do marido,
que passava então mais tempo a trabalho na França do que na Áustria. Em 1878, Daniel
Stein, o pai de Gertrude, vai de novo aos Estados Unidos numa viagem de trabalho. Um
ano depois, Amélia, sua mãe, cansada da ausência do marido, e da ngua francesa que
o tinha conseguido aprender, embarca com os filhos de volta para o país natal. E, após
uma breve estada em Nova York, os Stein cruzam o país e se instalam na Califórnia,
onde Gertrude Stein passa o resto da infância e adolescência. Viagens resumidas pela
própria escritora da seguinte maneira:
Creio que todos conhecem a minha história de cor. Morei em
Viena, dos seis meses aos quatro anos, dos quatro aos cinco
fiquei em Paris, e dos cinco aos dezessete na Califórnia. Fiz o
primário e o ginásio na escola de East Oakland, e nasci na
cidade de Allegheny, Pensilvânia.
2
Estes primeiros anos de vida passados entre várias cidades, entre países
diferentes, marcam o início de uma trajetória biográfica na qual se segue uma série de
deslocamentos que imem a ela uma mobilidade geográfica constante. O escritor Elias
Canetti, em seu livro autobiográfico A língua absolvida, relata uma experiência de
deslocamento durante a sua infância e adolescência semelhante ao vivido por Gertrude
Stein. Entre 1905 e 1921, ou seja, desde seu nascimento até os 16 anos de idade, o autor
vive, até 1911, na cidade de Ruschuk, na Bulgária; depois se muda com os pais para
Manchester, Inglaterra, onde ficam até a morte de seu pai. Em Viena, na Áustria, ele
vive de 1913 até 1916, quando parte para Zurique, na Suíça, lá permanecendo até 1921.
Canetti descreve, neste volume de sua biografia, não só os lugares nos quais viveu, mas,
principalmente, sua relação com as diversas línguas que povoaram sua infância e
2
Gertrude Stein citada por SOUHAMI, Diana. Gertrude and Alice. Tradução Irene Cubric, Rio de
Janeiro: José Olympio, 1995. p.21.
47
adolescência, inclusive o aprendizado do alemão, que passou a ser para ele uma “língua
materna” aprendida tardiamente.
Em Ruschuc, cidade “onde viviam pessoas das mais diferentes origensconta
Canetti, “num dia podiam-se ouvir sete ou oito idiomas”
3
. Na Bulgária, seus pais
falavam alemão entre si, língua que fica proibida ao jovem Elias até a morte de seu pai,
quando sua mãe decide finalmente ensiná-la, ela mesma, a ele. Com os filhos, parentes e
amigos, seus pais falavam ladino (um castelhano antigo). Quando a família se mudou
para a Inglaterra, seus pais passaram a se comunicar com as crianças em inglês e o
ladino ficaria “relegado a segundo plano”. Ainda na Inglaterra, o menino tomaria aulas
de francês e, quando a mãe decide se mudar para Viena, é que percebe a necessidade de
ensinar ao filho mais velho, então com oito anos, o aleo, para que ele não perdesse
nenhum ano na nova escola por não saber bem o idioma. Uma experiência
multilingüística parecida marcaria a infância de Gertrude Stein, que até os cinco anos,
vivendo na Áustria e na França, “só podia ouvir e falar alemão e francês”
4
, já que seus
pais, sendo ambos descendentes de alemães tinham o inglês como segunda língua.
De volta à América, porém, o pai da escritora insistiria para que esquecessem o
francês e o alemão, purificando o seu inglês americano. Gertrude Stein aprendera a
balbuciar em alemão e depois em francês, mas nunca leu nada antes de aprender inglês.
É como diz, para ela os olhos são mais importantes que os ouvidos e quis o acaso que
então como sempre o inglês fosse sua única língua”
5
.
Enquanto Canetti vai, ao longo da infância, aprendendo várias línguas, sem
esquecer nenhuma, Gertrude Stein, apesar de ter aprendido a falar na Áustria, em
aleo e em francês, desenvolve uma relação diferente com estes idiomas. Porque ela
o chega a aprender totalmente ambas as línguas, nessa época. O aleo permanece
como uma lembrança da infância, e o francês ela volta a usar quando vai morar em
Paris, porém não se preocupa em dominar todas as regras gramaticais deste idioma. E
suas leituras, mesmo vivendo na França, são feitas quase que somente na língua
materna, tornando-se o inglês sua “única língua”, o que criaria para ela um exílio
lingüístico dentro de um exílio geográfico.
3
CANETTI, Elias. A língua absolvida. Tradução Kurt Jahan. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
P.12.
4
SOUHAMI, Diana. Gertrude and Alice. Tradução Irene Cubric, Rio de Janeiro: JoOlympio, 1995.
p.23.
5
STEIN, Gertrude. Autobiografia de Alice B. Toklas. Tradução de Milton Persson. Porto Alegre: L&PM
Editores LTDA, 1984. p.65.
48
O ensaísta contemporâneo Edward Said, que também viveu um exílio lingüístico
desde a infância, relata experiências que vale a pena comentar, sob este ponto de vista.
Nascido em Jerusalém, Said passaria seus anos de formação escolar no Egito. Lá, dentre
as escolas blicas inglesas destinadas a “formar uma geração de árabes com laços
naturais com a Inglaterra”
6
, Said aponta uma em especial, o Victoria College, no Cairo,
onde, embora não houvesse nenhum aluno matriculado que tivesse o inglês como língua
materna, era obrigatório o uso da ngua inglesa e todos os estudantes que fossem
pegos falando qualquer outra nguareceberiam alguma punição. Said conta sobre
isso:
O árabe, minha língua nativa, e o inglês, minha língua de escola, foram
misturadas inextrincavelmente: eu nunca soube qual teria sido minha
primeira língua, e não me sinto totalmente em casa em nenhuma delas,
embora eu sonhe nas duas. Toda vez que eu falo uma frase em inglês,
eu me pego ecoando-a em árabe, e vice-versa.
7
Voltando a Gertrude Stein, embora com sua mudança para Paris, em 1903, aos
29 anos, ela passe a conviver constantemente com duas nguas, o inglês e o francês,
estas duas nguas no seu caso, ao contrário do de Said, não se misturam, uma vez que
Stein considera o inglês como a língua para escrever e o francês uma língua para falar.
É o que observa Judith P. Sounders em seu ensaio em torno do livro de Gertrude Stein
Paris França (1939):
Escrevendo em inglês enquanto ouve o francês falado diariamente em
torno dela, Stein uma linha divisória entre o seu mundo interior
criativo e um mundo exterior de affairs mundanos e efêmeros.
8
Se, para Said, as duas línguas se fundem, mesclando deste modo os dois mundos
entre os quais o autor se insere (a terra de origem e a de exílio), no caso de Stein, o
convívio com as duas línguas, impõe ainda mais um duplo universo, ime mais uma
divisão ao seu cotidiano, o seu mundo interior se contrapondo ao exterior.
6
SAID, Edward. Between Worlds. In: LRB Vol 20, No.9. London Review of Books 1997-99.
7
Ibidem, p.4.
8
Writing in English while hearing French spoken daily all around her, Stein sees sharp dividing line
between her own creative inner world and an outside world of efemeral, mundane affairs”.
SOUNDERS,
Judith P. Gertrude Stein’s ‘Paris France” and American Literary TraditionIN: BLOOM, Harold (ed.)
Gertrude Stein. Modern Critic Views. New York, Philadelphia, Chelsea House Publishers, 1986. P.124.
49
Uma vez instalada com seu irmão no apartamento da Rue de Fleurus, 27,
Gertrude Stein permaneceria vivendo em Paris até a sua morte. Fazendo, em quatro
décadas de estadia, apenas uma única visita aos Estados Unidos, viagem que seria
descrita minuciosamente por ela na sua Autobiografia de todo mundo (1936). Mas a
escolha de Paris como lugar de moradia não a impediria de manter ainda uma
duplicidade de residência, pois, depois da Primeira Guerra, alugaria uma casa de campo
em Belley, onde ficava seis meses a cada ano junto com Alice Toklas. E, mesmo antes
de alugar a casa de Belley, as duas costumavam passar o verão na Espanha, viajando
constantemente por lá. Na primeira dessas viagens, descrita na Autobiografia de Alice
B. Toklas (1932), elas escolheram visitar Ávila, Madrid, Toledo e Cuenca. E de Cuenca
voltariam a Madri e terminariam a viagem em Granada, onde ficariam “algum tempoe
onde Gertrude Stein aproveitaria para “trabalhar como nunca”
9
. Embora não se diga na
Autobiografia de Alice B. Toklas a duração da temporada espanhola, pode-se perceber,
pelo relato, que essa estadia foi longa. E, durante este período de viagem, foi que “o
estilo de Gertrude Stein começou a mudar”
10
, como nos conta a Alice” narradora
fictícia da Autobiografia. Pois teria sido na Espanha, mais especificamente em Granada,
que pela primeira vez Gertrude Stein teria sentido “vontade de exprimir o ritmo do
mundo visível”, enquanto antes desta temporada interessara-se apenas “pelas entranhas
das pessoas, pelo seu caráter e o que se passa no íntimo”
11
.
A escolha do lugar para passar o verão, no caso das duas, podia também ser
totalmente aleatória. Como quando “descobrem” junto com um amigo, William Cook,
uma região que depois seria “invadida” por uma “multidão de americanos”:
Naquele verão, tendo encontrado as Ilhas Baleares no mapa, fomos
para Mallorca e no naviozinho da travessia estava Cook. Tamm
tinha encontrado a ilha no mapa. Ficamos pouco tempo por lá, mas ele
passou o verão inteiro e aí, depois, voltou e foi o pioneiro solitário de
toda a imensa multidão de americanos que descobriu Las Palmas a
partir daí. Todos nós voltamos de novo durante a guerra.
12
Mas as viagens não se restringiam às temporadas de veraneio. A pseudo-Alice
da Autobiografia conta, em dado momento, sobre uma ocasião em que as duas, mal
9
STEIN, Gertrude. Autobiografia de Alice B. Toklas. Tradução de Milton Persson. Porto Alegre: L&PM
Editores LTDA, 1984. P.100
10
Ibidem, p.101
11
Ibidem, p.101
12
Ibidem, p.105
50
chegando a Paris, de volta da Espanha, resolveriam partir quase que imediatamente para
a Itália a convite de Mabel Dodge.
Convidou-nos a ir a Florença para ficarmos em sua casa.
Tencionávamos passar o verão, como era então nosso hábito, na
Espanha, mas estaríamos de volta em Paris no outono e aí talvez
pudéssemos ir. Quando chegamos da Espanha, encontramos vários
telegramas urgentes de Mabel Dodge pedindo para que fôssemos para
Villa Curonia e então fomos.
13
Houve deslocamentos menos intempestivos e ligados a circunstâncias históricas
bem definidas. Quando eclode a Primeira Guerra, por exemplo, Stein e Toklas estão na
Inglaterra e são obrigadas a permanecer aí desde julho até o mês de outubro quando
finalmente conseguem voltar para a França. Neste caso, a guerra ime, então, a
Gertrude Stein um exílio involuntário. Mas um exílio não da América, sua terra natal, e
sim de Paris o seu lugar de escolha. “Estávamos outra vez em casa”, escreve Gertrude
Stein sobre o retorno a Paris depois da longa estadia em Londres. Paris e o apartamento
da Rue de Fleurus passam a ser considerados a sua casa” então. Mas, mesmo então,
ficam pouco tempo em “casa”. Pois quando chega a primavera seguinte decidem ir para
Palma “e esquecer um pouco a guerra”
14
. Desta vez num exílio voluntário, elas
permanecem na ilha por um ano até a primavera seguinte”
15
. Nesta longa estadia em
Palma de Mallorca, Gertrude Stein escreveria várias das peças publicadas em
Geography and Plays (1908-20). Porém, quando finalmente voltam para Paris, neste
momento percebem que não podem perder mais tempo. “Resolvemos entrar logo na
guerra”
16
, conta “Alice”, e decidem então trabalhar como voluntárias para o Fundo
Americano para Feridos Franceses:
Um dia íamos passando pela Rue des Pyramides e vimos um fordeco
dando marcha à com uma moça americana ao volante e no carro lia-
se: Fundo Americano para Feridos Franceses. Pronto, exclamei, é isso
que vamos fazer. Pelo menos, continuei para Gertrude Stein, você
dirige o carro e eu me encarrego do resto.
17
13
Ibidem, p.109
14
Ibidem, p.135
15
Ibidem, p.138
16
Ibidem, p.141
17
Ibidem, p.141
51
E, como voluntárias, obedecem às exigências estratégicas do cenário bélico. A
primeira região para onde Alice Toklas e Gertrude Stein são mandadas é Perpingnan. E,
depois de um brevíssimo intervalo de volta a Paris, partem, desta vez para mes, e,
depois de Nîmes, são mandadas para a Alsácia. “Aliceconta que “durante estas longas
viagens [Gertrude Stein] recomeçou a escrever bastante”, pois “a paisagem, aquela vida
tão diferente a estimulavam”
18
.
Todos esses exemplos mostram como, mesmo tendo Paris como centro de
referência, Gertrude Stein escolhe manter-se em constante circulação. Além de exilada
de seu país de origem, torna a exilar-se da cidade escolhida para morar. E os novos
exílios alimentam o seu trabalho. Mesmo as viagens feitas por ocasião da guerra
instigam Gertrude Stein a escrever. Manter-se fora do lugar entendido como a “casa”,
sempre em movimento, fixar-se, de certo modo em um “lugar nenhum”, parece ser a
condição necessária para Gertrude Stein produzir seus textos e refletir sobre as questões
que a preocupam. É a paisagem de Bilignin no vale dodano, por exemplo, que a leva
a perceber que uma peça de teatro é exatamente como uma paisagem”
19
, reflexão
exposta em seu texto “Plays” (1935).
Mas apesar de estar sempre abandonando Paris, percebe-se ao longo do relato
das inúmeras viagens que o apartamento da Rue de Fleurus é um ponto de referência
fundamental: “Voltamos como sempre à Rue de Fleurus”
20
, diz “Alice Toklas”, numa
das voltas para casa”. Paris e mais especificamente o apartamento torna-se para elas o
único lugar estável. Mesmo passando temporadas longas distante da cidade Gertrude
Stein afirma que precisa de Paris. Chega a discutir com Alice quando esta revela que
gostaria de permanecer em Ávila, na Espanha para o resto da vida. É a Alice narradora
da Autobiografia que conta a discussão:
Dirigimo-nos imediatamente para Ávila e na mesma hora fiquei
perdidamente apaixonada. Tenho que ficar eternamente em Ávila,
insisti. Gertrude Stein ficou muito contrariada. Tudo bem com Ávila,
mas, insistiu, precisava de Paris.
21
18
Ibidem, p.155
19
STEIN, Gertrude. “Plays” IN: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The Library of
America, 1998. p.263.
20
STEIN, Gertrude. Autobiografia de Alice B. Toklas. Tradução de Milton Persson. Porto Alegre: L&PM
Editores LTDA, 1984. P.101.
21
Ibidem, p.98
52
Para que pudesse manter-se em exílio constante era preciso estabelecer um lugar
fixo, para onde se pudesse sempre retornar. Este lugar era Paris. Talvez, por isso,
quando os alemães chegaram perto da cidade, Gertrude Stein tenha ficado inconsolável:
No último dia Gertrude Stein não conseguiu nem sair do quarto. Ficou
sentada a se lamentar. Amava Paris, não pensava nos manuscritos
nem nos quadros, pensava só em Paris e sentia-se inconsolável.
22
A cidade passa a ser para ela o lar, o foyer, no sentido descrito por John Berger
em seu texto sobre o exílio. Para ele a partir da compreensão do termo foyer (lar,
lareira) é que se pode tratar da questão da expatriação:
Em sua origem, o foyer representa o centro do mundo, não no sentido
geográfico, mas no sentido existencial (...). O foyer é o centro do
mundo pois é onde a linha vertical cruza a horizontal. A linha
vertical vai ao céu e desce ao país dos mortos, sob a terra. A linha
horizontal representa a circulação terrestre, todos os caminhos que
conduzem através da terra a outros lugares.
23
O foyer seria então o coração do real”. Sem um foyer, um lar, “nós não
saberíamos onde nos refugiar, nós estaríamos perdidos no o-ser e na irrealidade. Sem
um foyer tudo se decomporia em fragmentos”
24
. O sentido da imigração, segundo
Berger, pode ser totalmente compreendido, se também o for o significado original da
palavra foyer. E mesmo se a imigração é voluntária, opção pela busca de melhores
condições de vida ou mesmo quando “viver e morrer entre os estrangeiros parece menos
absurdo do que viver perseguido e torturado por seus compatriotas”, mesmo nestes
casos, “a imigração significa ainda desmantelar o centro do mundo, e se instalar num
mundo confuso, desorganizado e fragmentado
25
.
Observe-se que Gertrude Stein é uma exilada fora do comum, uma vez que ela
o sai de seu país por viver perseguida por seus compatriotas, nem mesmo em busca de
22
Ibidem, p.126
23
“A l’origine, le foyer représente le centre du monde, non pas au sens géographique, mais au sens
existentiel. (...) Le foyer est le centre du monde, car c’est là où la ligne verticale croise l’horizontale. La
ligne verticale monte au ciel et descend au pays des morts, sous la terre. La ligne horizontale représente la
circulation terrestre, toutes les routes qui mènent à travers la terre à d’autres lieux.” BERGER, John.
L’exile. In: La lettre internationale, 1985
http://www.peripheries.net/article195.html?var_recherche=John+Berger 30 de outubro de 2007
24
Sans un foyer au centre du réel, on ne sait pas où se réfugier, on est perdu dans le non-être et dans
l’irréalité. Sans un foyer, tout se décompose en fragments.” Ibidem.
25
“Vivre et mourir parmi des étrangers peut sembler moins absurde que vivre persécuté et torturé par ses
compatriotes. Tout cela est vrai. Mais émigrer signifie toujours démanteler le centre du monde, et
l’aménager dans un monde confus, désorganisé et fragmentaire.” Ibidem.
53
trabalho e de melhores condições de vida. Mas, mesmo sendo o seu um exílio com
características bastante particulares, é possível perceber nos textos steinianos, (que serão
analisados mais adiante) como a representação do espaço, especialmente em sua
dramaturgia, ilustra este desmantelamento do centro do mundo dando ao lugar uma
mobilidade constante, como se não pudesse haver uma fixidez espacial em sua ficção.
Se Berger assinala a noção de irrealidade como uma das características da
expatriação, Julia Kristeva, por sua vez, ao tratar da condição do exilado, em seu livro
Estrangeiros para nós mesmos (1988) percebe que o estrangeiro suscita uma nova
idéia de felicidade”:
É uma felicidade do desenraizamento, do nomadismo, o espaço de um
infinito prometido.
26
Por estar em “nenhum lugar, nenhum tempo” num espaço que se assemelharia a
um trem em marcha, um avião em pleno ar”
27
, o estrangeiro encontraria a segurança
de “poder se estabelecer em si”
28
. Mas e Kristeva continua seu raciocínio apesar de
fixado em si mesmo, o estrangeiro na verdade se multiplicaria em “falsos selfs”:
O que equivale a dizer que, estabelecido em si, o estrangeiro não tem
um si. No limite, uma segurança oca, sem valor, que centra as suas
possibilidades de ser constantemente outro, ao sabor dos outros e das
circunstâncias. Eu faço o que se quer, mas não sou “eu” meu “eu”
esem outro lugar, meu eu” não pertence a ninguém, meu “eu’ o
pertence a “mim”... “eu” existe?
29
É difícil não perceber coincidências entre este comentário de Kristeva sobre o
estrangeiro e os questionamentos sobre a própria identidade que atormentam os
personagens da peça Doutor Faustus liga a luz (1938), de Stein. Logo em sua segunda
fala na peça, Doutor Faustus não se apresenta sem antes se indagar sobre quem ou o que
ele é:
O que me importa não nem lá. O que eu sou. Eu sou Doutor
Faustus que sabe tudo consegue tudo (...).
30
26
KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Tradução Maria Carlota Carvalho Gomes. Rio de
Janeiro: Rocco, 1994. P.12
27
Ibidem, p.15.
28
Ibidem, p.16.
29
Ibidem, p.16.
30
STEIN, Gertrude. Doutor Faustus liga a luz. Tradução de Fábio Fonseca de Melo. São Paulo: Editorial
Cone Sul. P.17.
54
Num outro momento, o personagem questiona se haveria alguma diferença entre
um cãozinho e um homem, num mologo no qual, ao final, menino, cãozinho e
homem parecem fundir-se numa identidade confusa que leva Doutor Faustus a voltar à
pergunta inicial sobre “o que sou eu”:
Homem e cãozinho ozinho e homem sozinhos os dois
consomem os dois podem falar tudo num segundo com
amargura ou ternura, homem e cãozinho isso cada um pode
assumir um compromisso cada um pode muito bem dizer tudo
isso e mais além, homem e cãozinho qual a diferença entre um
homem e um cãozinho quando eu digo nenhuma eu vou embora
ele vai embora vai embora pra ficar não ninguém vai embora o
cãozinho o menino eles podem ficar agora eu posso ir embora
(...) e não tem jeito de dizer eu e um cão e um menino não tem
jeito não, um menino se um menino vai crescer pra ser um
homem eu sou um menino eu sou um cão é um cão um menino
é um menino um cão e o que sou eu eu não posso dizer nem
saber o que sou oh o que sou eu.
E então ele espera um momento e diz
Oh o que sou eu.
31
E o é apenas Dr. Faustus que levanta vidas sobre sua identidade. A
personagem Margarida Ida e Helena Anabela entra em conflito semelhante agravado
pelos quatro nomes que possui:
E eu eu sou Margarida Ida ou eu sou Helena Anabela
Oh eu sou ela
Eu sou Margarida Ida ou eu sou Helena Anabela
Eu sou ela oh eu sou ela
Eu sou Margarida Ida ou eu sou Helena Anabela.
(...)
Ele dirá
Ele dirá que eu sou Margarida Ida que eu sou Helena Anabela
Ele dirá.
32
Conflito expresso num outro momento por Margarida Ida e Helena Anabela por
meio de uma caão:
Bem-me-quer ou mal-me-quer
Quem quer ou quem não quer
Aqui estou eu quem me quer
Mas você você você
Você faz ou não faz
Você é ou não é
31
Ibidem, p.33.
32
Ibidem, p.32
55
Aqui estou eu não é
Mas você você você
Você é como você não é.
33
O menininho e a menininha demonstrariam a mesma aflição, em Doutor Faustus
liga a luz desejando descobrir quem são:
Senhor Serpente querido Senhor Serpente, ele é menino eu sou
menina ela é menina eu sou menino a gente não quer chatear mais mas
a gente oh a gente faz a gente quer saber que ela é menina que eu sou
menino (...) ela é menina ele é menino por favor Senhor Serpente por
favor Senhor Serpente diga que sim.
34
As identidades dos personagens vão sendo deste modo questionadas e
desmontadas constantemente, de modo que nunca se fixa um “eu” permanente e
imutável para qualquer um deles ou para o leitor/espectador de Stein. No início do
terceiro ato da peça, por exemplo, Doutor Faustus chega mesmo a dizer que não gosta
da palavra “mim”:
Se elas fazem assim
É só pra mim
Ah eu não gosto da palavra mim
35
Vale observar que, se é central no pensamento de Gertrude Stein, a questão da
identidade, esta é muitas vezes problematizada a partir de sua relação com o espaço. É o
que se pode notar em diversas passagens de seu livro Autobiografia de todo mundo
(1937), no qual ela narra sua visita aos Estados Unidos, trinta anos depois de ter deixado
a terra natal. É de especial relevância, deste ponto de vista, a descrição de sua passagem
pela rua onde morou durante a infância e adolescência na Califórnia. A presença do
lugar levando Stein a refletir sobre sua própria identidade, sobre “quem tem que ser a
própria pessoa”:
Ah, a 13ª Avenida era a mesma estava em péssimo estado e as casas
eram certamente algumas delas as mesmas de então e o havia
nenhum edifício grande e estavam meio abandonadas e, muito mato e
arbustos cresciam sim ela poderia ser a 13ª Avenida de quando eu
morava lá. Não é claro a casa, a casa a casa grande os grandes jardins
33
Ibidem, p. 50
34
Ibidem, p.53
35
Ibidem, p.56
56
os eucaliptos e as roseiras naturalmente não existiam mais, de que
adiantaria, se eu tivesse sido eu então meu cachorrinho me conheceria
mas se eu não tivesse sido eu então esse lugar não poderia ser o lugar
que eu via, não gostei da sensação, quem é que tem que ser a própria
pessoa dentro de si próprio, ninguém e de que adianta ter sido assim se
você vai continuar existindo e se não então por que é diferente e se
isso é diferente então por que não. Não gostei de nada que estava
acontecendo. Mais tarde muito mais tarde tudo isso foi dar em The
Geographical History of America que escrevi, de que adianta ser um
garotinho se se vai crescer e se tornar um homem. Bem com alguns
acontece com outros não.
36
O afastamento do país de origem, o auto-exílio, fornecendo um distanciamento
de suas referencias de infância, parece suscitar a questão da relação entre identidade e
memória, no seu caso. Pois, como conclui Gertrude Stein, ao relatar a conversa que teve
com um amigo sobre sua história e a de seu irmão:
E a identidade é engraçada ser você mesmo é engraçado pois você
nunca é você mesmo para si mesmo exceto na medida em que se
lembra de você mesmo então é claro você não acredita em si mesmo.
Na verdade esse é o problema de uma autobiografia você é claro o
acredita realmente em si mesmo por que acreditaria, você sabe bem
tão bem que não é você mesmo, não poderia ser você mesmo porque
você não consegue se lembrar direito e se se lembra direito não parece
direito e é claro que o parece direito porque não é direito. Voé
claro nunca é você mesmo.
37
Se a memória é condição para a fixação de uma identidade, ao questionar a
confiabilidade da própria memória, Stein põe em dúvida a veracidade das próprias
histórias que acabara de contar ao amigo. Se a memória não pode ser confiável, então
“vosabe muito bem que você não é você mesmoe de que adiantaria ter sido um
garotinho se se vai crescer e se tornar um homem”. O que a impele ao questionamento
constante da identidade como fundamento da criação artística. Como num outro ensaio
seu, What are master pieces and why are there so few of them (1936), onde a autora
chega a concluir que, no ato da realização de uma obra prima, é preciso que não haja
mesmo uma identidade em jogo:
A coisa que alguém descobre gradualmente é que alguém não tem
identidade isto é quando alguém está no ato de fazer alguma coisa.
Identidade é reconhecimento, você sabe quem você é porque você e
outros se lembram de alguma coisa sobre você mas essencialmente
36
STEIN, Gertrude. Autobiografia de todo mundo. Tradução de Júlio Castañon Guimarães e José
Cerqueira Cotrim Filho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. P. 309
37
Ibidem P.75.
57
você não é isto quando você está fazendo alguma coisa, eu sou eu
porque meu cachorrinho me conhece mas, criativamente falando o
cachorrinho saber que você é você e você reconhecer que ele te
conhece, isso é o que destrói a criação.
38
O que importa observar, por agora, é a relação entre esta necessidade de um não-
reconhecimento de si mesma como condição sine qua non para a criação. O exílio seria
então condição imprescindível para a prática literária. Pois, de certo modo, a distância
do país de origem, de tudo que lhe era familiar, das referências da infância e da
juventude, e até mesmo da sua ngua materna, o inglês, também proporcionam a Stein
uma espécie de “esquecimentoda própria identidade, abrindo para ela o espaço da
criação. Espaço, inclusive, para a criação de uma “identidade” como escritora.
Mais adiante vou analisar de que maneira Gertrude Stein enfrentou
dramaturgicamente esta questão, relativizando as identidades dos personagens de
algumas de suas peças.
Voltando agora às considerações de Julia Kristeva, sobre o problema da língua
estrangeira para o exilado, elas podem ajudar a entender a relação de Gertrude Stein
com as duas línguas com as quais ela passa a se relacionar: o inglês, idioma materno, no
qual ela escreve, e o francês, idioma com o qual ela se comunica com os amigos e com
os habitantes de Paris. Diz Kristeva:
Não falar a sua língua materna. Habitar sonoridades e lógicas cortadas
da memória noturna do corpo, do sono agridoce da infância. Trazer
em si, como um jazigo secreto ou como uma criança deficiente
benquista e inútil - , essa linguagem de outrora, que murcha sem
jamais abandoná-lo. Vose aperfeiçoa num outro instrumento, como
nós nos expressamos com a álgebra ou o violino. (...) Você tem o
sentimento de que a nova língua é a sua ressurreição: nova pele, novo
sexo. Mas a ilusão se despedaça quando você se ouve, no momento de
uma gravação, por exemplo, em que a melodia de sua voz lhe volta
esquisita, de parte alguma, mais próxima da gagueira de outrora do
que do código atual.
39
38
“The thing one gradually find out is that one has no identity that is when one is in the act of doing
anything. Identity is recognition, you know who you are because you and others remember anything
about yourself but essentially you are not that when you are doing anything. I am I because my little dog
knows me but, creatively speaking the little dog knowing that you are you and yours recognizing that he
knows, that is what destroys creation.” STEIN, Gertrude. “What are master-pieces and why are there so
few of them.” IN: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The Library of America, 1998.
P.355.
39
KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Tradução Maria Carlota Carvalho Gomes. Rio de
Janeiro: Rocco, 1994. P.22.
58
Os constrangimentos vividos pelo estrangeiro, apontados por Kristeva, em
decorrência da utilização de uma nova língua, bem como o sofrimento de ter que
sufocar a ngua materna dentro de si, parecem não ter sido vividos por Stein. Antes,
pelo contrário, o contato com o inglês intensifica-se com a distância, no seu caso. A
língua materna passa a ser seu instrumento de trabalho e o fato de estar num lugar no
qual uma outra língua é usada por ela para se relacionar socialmente permite que
repense a gramática inglesa e crie uma língua particular” para escrever. O seu conforto
em relação ao convívio com as duas nguas é tematizado na Autobiografia de Alice B.
Toklas. , quando indagada por Alice, por que nunca lia livros em francês, Gertrude
Stein responde:
Sabe, eu sinto é com os olhos e para mim não faz nenhuma diferença a
língua que eu ouço, eu não ouço línguas, ouço timbre de voz e ritmos,
mas com os olhos vejo palavras e frases e para mim existe uma
única língua, o inglês. Uma das coisas que mais me agradou durante
esses anos todos é viver rodeada por pessoas que não sabem inglês.
Isso me deixa mais completamente a sós com os meus olhos e o meu
inglês. Do contrário não sei se teria sido possível manter esta total
intimidade com minha própria língua. E eles, nenhum deles puderam
ler uma palavra do que escrevo, a maioria aliás nem sabia que eu
escrevia. Não, eu gosto é de viver no meio de uma porção de gente e
de ficar completamente sozinha com o inglês e comigo mesma.
40
Gertrude Stein não se preocupa em absoluto, também, com o fato de falar bem
ou não o francês. Isso o causa a ela qualquer constrangimento.
Falo mal francês e escrevo pior ainda mas Pablo [Picasso] também ele
diz que escrevemos e falamos o nosso francês.
41
A relação que ela estabelece com a língua francesa é mais um exemplo revelador
da particularidade de seu exílio. Gertrude Stein não pretende adaptar-se ao novo país, à
nova cidade. Não anseia por amenizar suas diferenças e tentar aproximar sua
personalidade ou seu estilo de vida daquele que seria o de um francês. A
impossibilidade, que constitui uma das maiores angústias dos exilados, de deixar de ser
estrangeiro num país estrangeiro, é uma questão que não preocupa Stein. Ao contrário,
40
STEIN, Gertrude. Autobiografia de Alice B. Toklas. Tradução de Milton Persson. Porto Alegre: L&PM
Editores LTDA, 1984. P.62.
41
STEIN, Gertrude. Autobiografia de todo mundo. Tradução de Júlio Castañon Guimarães e José
Cerqueira Cotrim Filho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. P.20.
59
sua condição de estrangeira lhe é favorável. Ela escolhe ficar sozinha com o seu inglês.
Na verdade, como ela mesma explicita, é esta condição de estrangeira que permite a ela
manter intimidade com sua língua. E é esta conexão com o inglês que faz dela uma
exilada duas vezes: pelo exílio geográfico de seu país, e pelo exílio lingüístico que ela
se impõe no novo país escolhido para morar.
A recusa a ler a literatura francesa e a sua não preocupação em falar bem o
francês, em tornar-se íntima da ngua do país de exílio mantêm-na neste “lugar”
habitado por ela e pelo seu idioma. A solidão idiomática acaba por proporcionar-lhe
tal liberdade com relação à ngua que ela, se, num primeiro momento, chega até mesmo
a criar palavras, experimento logo abandonado, passa em seguida a reinventar a ngua
por meio de uma interpretação particular da gramática inglesa, que seria exposta em seu
texto “Poetry and Grammar”, publicado em 1935 no volume Lectures in America.
Antes de partir para a observação de seus textos teatrais, gostaria ainda de
apresentar alguns pontos discutidos por J. Gerald Kennedy em seu livro Imagining
Paris : Exile, Writing and American Identity. Para discutir, assim como Berger e
Kristeva, a expatriação e a condição do estrangeiro, Kennedy focaliza sua atenção mais
especificamente no grupo de americanos, dentre eles Gertrude Stein, que, no início do
século XX escolheu Paris como local de moradia e produção. Tratando desses
americanos em Paris, o autor centra seu livro nas seguintes questões:
O que é lugar? Como nós conceitualizamos e assimilamos nosso
ambiente? De que maneira o lugar afeta a nossa noção de quem nós
somos? Porque nós lembramos e sonhamos com lugares? O que
significa “representar” um lugar numa narrativa?
42
Kennedy defenderia a hipótese de que “nós nos encontramos e nos conhecemos
principalmente através da conexão que formamos com um lugar”
43
. E passa então a
analisar de que maneira, para cada um dos escritores observados (além da de Gertrude
Stein, são analisadas as obras de Hemingway, Henry Miller, Scott Fitzgerald e Djuna
Barnes), a cidade de Paris e a condição de exilados afetaram suas produções literárias.
No primeiro capítulo “Place, self and writing”, Kennedy discute noções de lugar,
identidade, escrita e em que medida o lugar afeta as construções de identidade.
42
“What is place? How do we conceptualize and assimilate our surroundings? How does place affect our
sense of who we are? Why do we remember and dream about places? What does it mean to ‘represent’ a
place in a narrative?” KENNEDY, J. Gerald. Imagining Paris: exile, writing, and American identity. New
Haven & London: Yale University Press, 1993. p. xi.
43
“We find or know ourselves principally through the attachments we form to a place.” Ibidem,p.8
60
Analisando “The enormous room”, do poeta E.E. Cummings, o autor nota que é a
cidade de Paris que reflete mais claramente a mudança interna em Cummings” depois
de seu retorno de um campo de prisão na França. As referências a Paris sugeririam “a
função potencial do lugar em toda representação textual do eu’”
44
. em Snows of
Kilimanjaro” de Ernest Hemingway, texto no qual o protagonista é um escritor que nos
seus últimos momentos de vida num safári na África “visualiza uma série de cenas em
sua mente a estação de trem em Karagath, a vila Alpina de Schruns, um riacho de
trutas na Floresta Negra”
45
, Kennedy observa que
ao descrever esta recherche du temps perdu, Hemingway reflete
menos sobre o tempo do que sobre a primazia do espaço na construção
do eu’ do escritor. Se a memória é o da identidade, imagens de
espaço determinam o ato da lembrança (...). Cada um dos lugares nos
quais ele viveu possui uma pista para a identidade essencial ameaçada
pelo deslocamento absoluto da morte.
46
O papel fundamental do lugar no processo de construção do eu é ainda
observado nos trabalhos de Joyce (Dubliners, Portrait of the artist as a young man e
Ulysses), Virginia Woolf (To the lighthouse) e Thomas Wolfe (Look Homeward
Angel). “Estes últimos exemplos sugerem a possível correlão na ficção entre uma
elaboração de espaço e um projeto autobiográfico”
47
, diz Kennedy.
Finalmente, o autor ressalta a importância da escrita de autores exilados para o
estudo do espaço. Segundo Kennedy a passagem de terras familiares e nativas para
cenas estrangeiras coloca em termos mais tidos a diferea entre um lugar e outro e
produz a perspectiva do deslocamento”
48
. Observação que serviria de base para o
segundo capítulo do seu livro, no qual o ensaísta se concentra na análise da obra de
Gertrude Stein.
O capítulo é iniciado com a observação de que Stein, dentre os escritores e
artistas analisados por ele que se mudaram para Paris no início do século XX, foi a
única que fixou residência naquela cidade e que passou o resto de sua vida na França,
até a sua morte em 1946. Kennedy tenta mostrar, com uma análise de alguns textos da
44
Ibidem, p.4
45
Ibidem, p.10
46
But in depicting this ‘recherche du temps perdu’, Hemingway reflects less on time than on the
primacy of place in the writer’s conception of self. If memory is the crux of identity, images of place
determine the act of remembrance (...). Each of the places in which he has lived holds a clue to the
essencial identity threatened by the absolute displacement of death.” Ibidem,p.11
47
These last exemples suggest a possible correlation in fiction between an elaboration of place and an
autobiographical project.” Ibidem,p.23
48
Their passage from familiar, native grounds to na alien scene poses in the sharpest terms the difference
between one place and another and produces the perspective of displacement.” Ibidem,p.25
61
escritora, como, apesar de sua frase famosa sobre a metade de sua vida passada em Paris
“não a metade que me fez mas a metade na qual eu fiz o que fiz”
49
-, a cidade exerceu
papel fundamental na construção de sua identidade como escritora. E, ao longo de sua
reflexão sobre a relação de Stein com Paris, Kennedy exe o ponto de vista da própria
Gertrude Stein sobre a necessidade de se ter dois países para que se possa escrever. Cito
o trecho em que Stein desenvolve esta questão:
Todo o mundo que escreve está interessado em viver dentro de si
mesmo de modo a relatar o que está dentro dele mesmo. É por isso
que os escritores têm que ter dois países. Aquele ao qual pertencem e
aquele no qual eles realmente vivem. O segundo é romântico, é
separado deles, não é real mas está realmente lá.
50
Um lugar não real, mas que está realmente lá: esta é a descrição de Stein para o
país de exílio que possibilitaria ao escritor estar verdadeiramente apenas em contato
com o seu interior. Neste ponto, gostaria de passar à análise da dramaturgia de Gertrude
Stein, onde se podem perceber as conseqüências criativas dessa concepção de “lugar”.
Com esse objetivo, volto-me, agora, para uma tentativa de compreensão da noção de
espaço cênico que a autora apresenta em suas peças, voltado para a possibilidade de se
tentar criar, no âmbito dramatúrgico, um espaço que “não é real mas está realmente lá”.
Pois esta frase paradoxal de Stein talvez possa dar conta, não da sua experiência
como auto-exilada, não da definão do país de exílio para um escritor, mas também
da sua experiência literária de deslocamento, e da noção de espaço que se pode ler em
suas peças, da qual tratará de modo mais minucioso o quinto capítulo deste estudo.
IT IS NOT REAL BUT IT IS REALLY THERE
Se pensarmos no espaço cênico de modo geral, no cenário construído em um
palco, no lugar fictício onde se desenrola uma peça de teatro, talvez possamos definir
este espaço, como um lugar que “não é real, mas que está realmente lá”. Sim, porque, de
49
“Not the half that made me but the half in which I made what I made.” Gertrude Stein citada por
KENNEDY, J. Gerald. Imagining Paris: exile, writing, and American identity. New Haven & London:
Yale University Press, 1993. p.40
50
“After all everybody, that is, everybody who writes is interested in living inside themselves in order to
tell what is inside themselves. That is why writers have to have two countries, the one where they belong
and the one in which they live really. The second one is romantic, it is separate from themselves, it is not
real but it is really there.”
Gertrude Stein citada por KENNEDY, J. Gerald. Imagining Paris: exile,
writing, and American identity. New Haven & London: Yale University Press, 1993. P.43
62
fato não é real, por mais realista que seja o cenário, por mais que se tentem imitar
ambientes familiares. Por mais que o soonde os atores se sentam seja um sofá de
verdade”, que a comida servida numa cena de almoço seja também uma comida de
verdade”. A criação de um espelho cenográfico do real, será sempre um espelho, o
será o real. Mesmo que se opte pela representação da peça - no caso de uma peça
histórica, por exemplo - no lugar em que aquele epidio verídico ocorreu. Mesmo em
casos como este, o espaço cênico será fictício, porque será o espaço da representação. O
lugar pode ser o mesmo, mas a representação em si o transforma. Ele deixa de servir ao
cotidiano, para nele se instaurar um outro tempo, e conseqüentemente um novo espaço.
Este novo espaço será não-real. Espaço de ficção. Mas ao mesmo tempo que não é real,
este espaço nico de fato está lá”. Pode-se vê-lo, tocá-lo, transitar por ele. Está lá,
mesmo que o cenário não seja realista, que a encenação opte pelo palco vazio, mesmo
assim, o palco existe lá servindo de suporte para a representação. Haverá, portanto,
sempre, um “chão”, uma área delimitada na qual se desenrolaa ão e na qual se
instalará a ficção.
E se o espaço no teatro poderia, de um modo geral, ser definido com a frase de
Stein “it is not real, but it is really there”, no caso de algumas de suas peças, a
organização espacial contém em si mesma este paradoxo, faz dele aspecto
preponderante da composição. Neste sentido, o espaço teatral steiniano se apresentaria
como meta-teatral, por ser teatral e ao mesmo tempo por representar o espaço teatral.
Esta hitese pode ser melhor verificada e compreendida por meio da observação de
alguns exemplos, como o desta fala da personagem Margarida Ida e Helena Anabela da
peça Doutor Faustus liga a luz:
Eu sou eu sou meu nome é Margarida Ida e Helena Anabela (...).
Eu sou eu e eu estou aqui e como sei como é selvagem o mundo é
como é selvagem as selvas são a selva chamam as selvas de casaco do
homem pobre mas elas me cobrem e se elas cobrem como é selvagem
elas são selvagens e selvagens e selvagens como o, como sei como
são selvagens as selvas se nunca vi uma selva não. (...)
51
51
estou usando a tradução de bio Fonseca de Melo para Doutor Faustus liga a luz, mas me permiti a
liberdade de corrigir, neste parágrafo a frase que, a meu ver foi interpretada erroneamente pelo tradutor.
Transcrevo, então o trecho em seu original no inglês e em seguida a tradução de Fábio Fonseca de Melo:
I am I and I am here and how do I know how wild the wild world is how wild the wild woods are the
woods they call the woods the poor man’s overcoat but do they cover me and if they do how wild they are
wild and wild and wild they are, how do I know how wild woods are when I have never ever seen a wood
before.
E agora a tradução de Fábio Fonseca para este pagrafo:
Eu sou eu e eu estou aqui e como sei como é selvagem o mundo é como é selvagem as selvas são a selva
chamam de selvas o pobre homem de terno mas eles me cobrem e se eles cobrem como é selvagem eles
63
Uma vez eu estava não estarei mais nas selvas jamais elas estão pra
e eu estou pra cá pra cá ou lá, oh onde oh onde é lá oh onde oh onde é
cá e os animais selvagens animais todo lugar será.
Ela senta.
Eu quero (diz conversativa) eu quero se eu quisesse que quando eu
sentasse isto não estivesse aqui mas ali ali onde eu teria uma cadeira
ali onde eu não teria que olhar em volta medrosa todavia tudo onde
havia uma cadeira e um tapete debaixo dela me faria saber que ali fica
ali, mas aqui aqui contudo fica nada nada como um tapete nada como
uma cadeira (...)
Ela se levanta com suas mãos ao seu lado
Ela abre e fecha os olhos e abre-os de novo
Se meus olhos estão abertos e meus olhos estão fechados eu vejo eu
vejo, eu vejo nenhum tapete eu vejo nenhuma cadeira eu vejo as
selvas selvagens aqui e acolá que diferença me faz se fecho os olhos
diferença nenhuma as selvas as selvas as selvas estão lá (...)
52
As selvas selvagens onde está Margarida Ida e Helena Anabela vão se instalando
através do discurso. São as palavras que impõem o lugar. Mas antes de este lugar se
impor, a personagem encontra-se num espaço nulo, num lugar nenhum – eu estou aqui
(...) mas aqui aqui contudo fica nada
-
que vai ganhando forma na medida em que a
própria fala contínua e repetitiva da personagem a convence de que ela realmente está
nas selvas selvagens. A cena pode ser lida também como metáfora para o próprio palco
teatral: lugar nenhum onde se insere qualquer idéia de espaço que se queira. Mas são os
paradoxos da fala de Margarida que interessa observar, pois eles ao mesmo tempo em
que instalam a personagem num lugar definido, em seguida, graças a uma idéia
contrária, situam-na novamente num espaço vago, indefinido. A alternância dos dêiticos
aqui”, “lá”, “cá”, “aco e “ali” contribuindo para a impressão de mobilidade das
selvas que ora estãoelas estão pra lá e eu estou pra cá”, ora aqui e aco eu vejo
as selvas selvagens aqui e acolá”.
Margarida, em sua fala, sugere pelo menos três iias de espaço: o espaço nulo
(“aqui contudo fica nada”), as selvas selvagens das quais ela não consegue escapar e,
por fim, um espaço que se oporia às selvas, que representaria o ambiente confortável de
uma casa: uma cadeira e um tapete. Estes três ambientes se alternam no decorrer do
discurso da personagem, provocando no leitor/espectador, uma impressão de
mobilidade, de indefinição espacial. O leitor, junto com a personagem, duvida do
espaço cênico que está sendo proposto. Nenhum dos três espaços se instaura
são selvagens e selvagens e selvagens como são, como sei como são selvagens as selvas se nunca vi uma
selva não.
52
STEIN, Gertrude. Doutor Faustus liga a luz. Tradução de Fábio Fonseca de Melo. São Paulo: Editorial
Cone Sul. pp.27-28.
64
completamente. Mesmo quando a floresta parece mais presente, os outros dois
ambientes hipotéticos como que a circundam sugerindo que a qualquer momento eles
podem se apresentar com maior força. A presença das selvas é posta constantemente em
dúvida por Margarida Ida e Helena Anabela, de forma que este espaço, mesmo no
âmbito ficcional, parece irreal. Muito embora ele esteja lá. E tanto está lá que a
personagem é de fato atingida por uma picada de cobra. As selvas, que antes apenas
rodeavam Margarida Ida, que pareciam estar ao alcance de seus olhos (Se meus olhos
estão abertos e meus olhos estão fechados eu vejo eu vejo, (...) vejo as selvas selvagens
aqui e acolá”), mas não de suas mãos, de súbito a atingem diretamente por meio de uma
picada de cobra.
O discurso de Margarida Ida e Helena Anabela, a princípio, parece configurar-se
como uma narração de algo já passado “Uma vez eu estava não estarei mais...,
embora algumas frases antes de tal comentário, a personagem tenha declarado nunca ter
visto “uma selva não”. A esta “destemporalidade” e “desespacialidade” inicial do
discurso contrapõe-se uma presentificação da narração e consequentemente uma espécie
de invasão espacial. É como se a floresta entrasse no presente da personagem e fosse se
instalando ao seu redor enquanto ela senta”, olha em volta” e constata a ausência de
uma cadeira e de um tapete, elementos que poderiam salvá-la das selvas das selvas
selvagens” que impõem sua presença através da palavra. Este cenário que se deixa ver
pela fala é um recurso também utilizado por Shakespeare, dramaturgo admirado por
Stein. Os espaços em suas peças vão se transformando e basta um anúncio feito por um
personagem em cena para que a narrativa salte, por exemplo, de um país a outro. Na
peça “Ricardo III”, o personagem principal, em sua primeira fala, anuncia o lugar em
que está, York:
Now is the winter of our discontent made glorious summer by this sun
of York.
53
O espaço é definido logo na primeira frase dita em cena. Mas, enquanto o Duque
de Gloster de Shakespeare encontra-se num espaço fixado por suas palavras, Margarida
Ida e Helena Anabela de Stein parece mais apanhada pelo espaço do que instalada nele.
53
SHAKESPEARE, William. “Richard III” In: The complete works of William Shakespeare. Preface by
Sir Donald Wolfit; Introduction and glossary by Dr Bretislav Hodek. London . New York . Sydney .
Toronto: Spring Books, 12
th
impression 1970. P.561 (Agora o inverno do nosso descontentamento foi
convertido em glorioso verão por este sol de York).
65
Ela é antes invadida por uma floresta não muito bem vinda. Se York é um lugar imóvel
e definido pelo personagem que ali se instala tranqüilamente, a selva selvagem de
Margarida Ida é móvel e inconstante. Por outro lado, ainda tendo como referência as
peças de Shakespeare, a selva do personagem de Stein faz lembrar a floresta que se
move em direção ao castelo de Macbeth ao final da tragédia. As duas florestas móveis e
temíveis, de certa forma, invadem o espaço dos dois personagens. Ambas não-reais, mas
estão realmente lá. No caso da floresta de Macbeth ainda um jogo entre real e irreal.
O protagonista da peça, conta com a impossibilidade da existência de uma floresta que
anda, profetizada pelas bruxas, até ser apanhado por ela. É, portanto, uma floresta
potencialmente irreal que surge diante do personagem e parece tornar-se real. Mas não é
tampouco uma floresta real, é uma floresta de soldados disfarçados de arbustos, uma
representação de floresta. Não é real, mas está lá.
Voltando à floresta móvel de Margarida Ida e Helena Anabela, este cerio, que
vai sendo constrdo por palavras, faz lembrar, ainda, a análise feita por Alberto
Tassinari para o quadro Guitarra, 1913, de Pablo Picasso, em seu livro O espaço
moderno”.
Mais ou menos do que a percepção de uma guitarra, a pintura dá a ver
como que a sua imaginação. Uma imaginação em processo, literal, à
vista. Não é mesmo por esquemas, alguns mais alusivos, outros mais
concretos, alguns que se movimentam, outros mais estáticos, que se
tenta, pela imaginação, visualizar um objeto tridimensional?
54
O que se a ver no texto steiniano é também um processo de imaginação da
floresta. Tanto para a personagem quanto para o espectador ou leitor da peça as palavras
o montando uma imaginação de selva. Numa outra passagem de seu livro, Tassinari
define o espaço moderno como um território do fazer, onde o feito pode mostrar-se
ainda como se fazendo”. Para ele “desnudar a imaginação (...) é como pôr a arte
fazendo-se à nossa frente”. Pode-se considerar que Stein realiza teatralmente tal
operação: montando com palavras um cenário que vai se fazendo diante do espectador.
Tomando ainda, como objeto de análise, a peça Doutor Faustus liga a luz e a
personagem Margarida Ida e Helena Anabela, mas agora observando a relação entre
organização espacial e definição de identidade, pode-se dizer que é a espacialidade
debilmente definida que leva a personagem a questionar, mais uma vez, sua identidade.
54
TASSINARI, Alberto. O espaço moderno. São Paulo: Cossac & Naify Edições, 2001. p.42.
66
E, neste ponto, sua condição cênica se assemelharia à de um expatriado. Quando a
indefinição espacial afeta a noção de “eu”, os personagens precisam a todo o momento
repetir quem são e onde estão. Como faz Margarida Ida e Helena Anabela:
Seria a mesma tela se meu nome não fosse Margarida Ida e Helena
Anabela seria a mesma tela eu desistiria até por um tapete e uma
cadeira e pra ficar não pra mas pra (e ela deixa escapar um
guincho) eu estou pra e não estou e eu sou Margarida Ida e
Helena Anabela.
55
Graças aos recursos de o fixação do lugar, Gertrude Stein problematizaria
ainda as convenções teatrais referentes ao espaço, transformando a entrada de um
personagem em cena num questionamento mais amplo sobre o espaço teatral. É o que
parece ocorrer na cena em que Margarida Ida e Helena Anabela vai procurar Dr.
Faustus:
Só então à distância há um chamado.
Doutor Faustus Doutor Faustus você está aí Doutor Faustus eu
estou aqui Doutor Faustus, eu estou indo Doutor Faustus, aonde
Doutor Faustus oh aonde Doutor Faustus oh aonde es Doutor
Faustus oh aonde está Doutor Faustus diga Doutor Faustus onde
esvocê Doutor Faustus onde está.
(...)
E o menino diz
Tem alguém é claro que alguém alguém alguém
vem lá oh alguém oh sim alguém vem
E todos juntos eles dizem
Onde está ninguém diz ninguém diz está lá. Alguém es
e ninguém diz que alguém não está lá. Alguém alguém está alguém
alguém alguém diz está onde aonde é isso onde é isso aonde é isso
onde, aqui é aqui aqui é ali alguém alguém diz aonde é onde.
56
“Aqui”, “ali”, “alguém”, “ninguém”. A autora procura manter as indefinições de
lugar e identidade até que a própria repetição acabe por impor os personagens em cena.
depois desta espécie de suspensão que prepara a chegada da personagem é que
ocorre a entrada de fato em cena de Margarida Ida e Helena Anabela e assim o diálogo
entre ela e Faustus pode se dar.
Mas não é apenas em Doutor Faustus liga a luz que Gertrude Stein “joga” com
as noções de espaço e identidade. Em sua peça “Três irmãs que não são irmãs” busca-se
55
STEIN, Gertrude. Doutor Faustus liga a luz. Tradução de Fábio Fonseca de Melo. São Paulo: Editorial
Cone Sul. p29.
56
Ibidem, pp.33-34
67
o mesmo jogo que, por sinal, se pode notar pela contradição expressa no título do
texto.
A peça se inicia com as três irmãs apresentando-se e revelando que são três
irmãs que não são irmãs, que são “três irmãs que são órfãs”. Em seguida a esta fala
entram dois irmãos que se declaram dois irmãos que são irmãos e que não são órfãos.
Até este momento não nenhuma indicação de lugar nem em rubricas nem nas falas
dos personagens. Estes parecem estar em uma espécie de lugar nenhum, em um lugar
neutro. Feitas as apresentações, uma das irmãs indaga:
E agora que todo o mundo sabe exatamente o que nós somos o que
cada um de nós é, o que nós vamos fazer.
57
Discutem um pouco a questão até que um dos irmãos dá uma idéia:
Eu tenho uma idéia uma bela idéia, uma boa idéia, vamos jogar um
jogo
58
um jogo de assassinato.
59
A idéia é aceita por todos. E entra-se na segunda cena. Só então uma
indicação cenográfica feita pela rubrica:
Uma sala levemente escurecida, um sofá, e uma cadeira e um copo
d’água, as três irmãs sentadas no sofá juntas, a luz de repente vai
embora.
É interessante notar que o espaço se estabelece não em função das identidades
dos personagens, mas sim em função do jogo que é combinado. Apesar de a rubrica
indicar o ambiente de uma sala, em determinado momento uma das personagens que
estava adormecida no sofáacorda e olha embaixo da cama”. A cama, que não havia
sido mencionada na rubrica que descreve o cenário surge em cena e passa a ter fuão
essencial para o jogo de assassinato estabelecido pelos personagens: um corpo é
encontrado embaixo da cama e uma personagem esconde-se do suposto assassino
57
STEIN, Gertrude. “Three sisters who are not sisters”. In: Selected operas and plays of Gertrude Stein,
edited and with na introduction by Malcolm Brinnin. Pittsburgh and London: University of Pittsburgh
Press, 1993. P.239 (Ver, em anexo, a minha tradução desta peça de Stein).
58
No original em inglês, let us play a play”. A tradução tentou manter o jogo de palavras substituindo
“playpor “jogo”. Com isso perdeu-se a referencia ao termo teatral “play, “peça”.
59
STEIN, Gertrude. “Three sisters who are not sisters”. In: Selected operas and plays of Gertrude Stein,
edited and with an introduction by Malcolm Brinnin. Pittsburgh and London: University of Pittsburgh
Press, 1993. P.240.
68
metendo-se embaixo dela. Neste caso, o ambiente, antes descrito como uma sala, ganha
subitamente um móvel que pertenceria normalmente a um quarto de dormir. É mesmo o
jogo que ime suas regras. Se uma cama se torna necessária, coloca-se uma cama em
cena, não importando se o ambiente definido anteriormente é o de uma sala, ou outro
cômodo qualquer de uma casa. Então, se em Doutor Faustus liga a luz é o jogo de
palavras que instaura os cenários, emTrês irmãs que não são irmãs” é o jogo da
representação (ou o jogo do teatro / “play a play”) que define o lugar.
A cena que início ao jogo de assassinato proposto pelos personagens é a
seguinte:
Jenny. Olhe a cadeira.
Helen. Qual cadeira.
Jenny. A única cadeira.
Ellen. Eu não consigo ver a única cadeira.
Jenny.(com um grito) Olhe a única cadeira.
Todas três juntas. Não tem nenhuma cadeira lá.
Samuel. Não não tem nenhuma cadeira porque eu estou
sentado nela.
Sylvester. E não tem nenhum ele lá porque eu estou sentado nele.
Jenny. Qual um vai assassinar qual um.
Samuel. Espere e veja
.
A cadeira, objeto que volta a aparecer nesta peça, representaria uma
possibilidade de fixidez do lugar. Uma pessoa de pé está, pode-se dizer, mais na
iminência do movimento do que uma pessoa sentada. Sentar instauraria alguma
imobilidade, ou ao menos uma interrupção mais decisiva no movimento. Margarida Ida
e Helena Anabela anseia por uma cadeira e um tapete. Elementos que a fixariam em um
espaço definido e que interromperiam o movimento da selva que se move em palavras
em direção a ela. Nem o vazio, nem a selva, ela anseia pela estabilidade de uma cadeira
sobre um chão (um tapete).
É interessante ainda observar que a frase Não tem nenhuma cadeira lá” em sua
versão original em inglês, “there is no chair there”, assemelha-se à famosa frase de
Gertrude Stein quando visita Oakland, cidade onde ela viveu, na Califórnia:
What was the use of my having come from Oakland it was not natural
to have come from there yes write about it if I like or anything if I like
but not there, there is no there there.
60
60
Gertrude Stein citada por KENNEDY, J. Gerald. Imagining Paris: exile, writing, and American
identity. New Haven & London: Yale University Press, 1993. P.73. Este mesmo trecho, em português,
pode ser lido em STEIN, Gertrude. Autobiografia de todo mundo. Tradução de Júlio Castañon Guimarães
69
Se, por um lado, Gertrude Stein define o lugar escolhido por um expatriado para
viver como um lugar não-real, mas que está lá, por outro lado, ao visitar sua terra natal,
a autora resume sua experiência com uma anulação daquele lugar real: “lá não havia lá”.
A frase definidora do país de expatriação pode ser invertida para definir o lugar de
origem: é real, mas o está . Neste sentido, a cadeira, na peça “Três irmãs que não
são irmãs”, pode funcionar como representação teatral deste espaço real que não está
e que é a sua “casa”, seu país de origem. Oakland evidentemente estava lá, continuou
existindo no mesmo lugar, mas Gertrude Stein não vê o lugar de onde ela veio, então,
para ela, ele não está lá. Assim como a cadeira também está lá, mas as irmãs não a em
porque Samuel está sentado nela. Assim como Samuel impede as irmãs de verem a
cadeira, algo se sobrepõe à Oakland natal, impossibilitando Stein de vê-la.
Seguindo esta linha de raciocínio, talvez se possa fazer uma analogia entre a
cadeira, tanto em Doutor Faustus liga a luz, quanto em “Três irmãs que não são irmãs”,
e a “casa”, o país de origem. O expatriado, como já foi visto, ao deixar seu país lança-se
num “lugar nenhum”, num espaço de um “infinito prometido”, instala-se “num mundo
confuso, desorganizado e fragmentado”, ou ainda se abandona “ao irreal”. As selvas
selvagens de Margarida Ida tomadas a Dante - anunciam este mundo confuso, este
abandono ao irreal, enquanto que a cadeira e o tapete podem ser entendidos como o
foyer, o lar, o lugar estável que foi deixado para trás pelo exilado. No entanto, a volta ao
país de origem o traria a sensação de estabilidade esperada. O estrangeiro não
reconhece nele o seu lar. Neste sentido, de fato, “lá não havia lá”.
Neste ponto caberia observar algumas passagens do livro de Gertrude Stein
Autobiografia de todo mundo, no qual, como já foi mencionado, Stein narra sua visita
aos Estados Unidos depois de trinta anos de sua partida. A autora, na construção mesma
de suas frases, revela a sensação de instabilidade espacial que a volta ao lugar de origem
lhe causa. Veja-se, por exemplo, este trecho no qual, ainda do navio, ela a Estátua da
Liberdade e seu amigo Kiddie que estava no porto para recepcioná-la:
e José Cerqueira Cotrim Filho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, p.307. “...de que adiantava eu ter
vindo de Oakland não me era natural ter vindo de lá mas sim escrever a respeito de lá se eu gostasse ou de
qualquer coisa se eu gostasse mas não lá, não existe lá.” Cito em inglês para observar a frase final
“there is no there there”.
70
Aí então vimos que o navio se aproximava e lá estava o
Kiddie e isso era reconfortante, estava ele e havia muita gente com
ele.
Estava ficando mais próximo mas o Kiddie estivera conosco
na França e assim talvez não fosse a América e afinal a América é
onde s nascemos e sempre havia sido embora por trinta anos não a
tivéssemos tocado com nossos pés ou mãos e assim era como se
tivéssemos vindo sempre mas não era exatamente assim.
61
A sensação de desmantelamento do centro do mundo citada por John Berger
parece evidente no relato desta chegada. Estar no seu lugar de origem parece tão irreal
ou impensável que aquele lugar, para Stein, poderia ainda ser a França. Ao mesmo
tempo revela-se a sensação de se ter sempre estado lá. Estes paradoxos, relacionados à
maneira por meio da qual a autora define (ou não define) os espaços em sua ficção,
remetem à própria experiência de expatriação vivida e escolhida por Stein.
Agora, observe-se o início do capítulo “De volta”, deste mesmo livro. Desta vez
a autora está de novo na França, em sua terra de exílio voluntário:
Tudo estava acabado e estávamos de volta, é claro tudo continuava a
acontecer por onde havíamos estado mesmo que o
estivéssemos mais e era como que se não tivéssemos estado. Afinal
havíamos estado lá
62
.
Como diz Kristeva, o estrangeiro por viver em “nenhum lugar, nenhum tempo
se estabelece em si. O ser sendo a única possibilidade de espaço real, os espaços físicos,
sejam os do país de origem ou os do país de exílio, tendem a tomar contornos fictícios,
irreais. J. Gerald Kennedy identifica em Stein um “repúdio ao lugar” que explica
justamente em função de um compromisso com a sua interioridade:
Comprometendo-se com uma interioridade absoluta, Stein funda seu
projeto numa rejeição dupla: um vôo geográfico para fora do país ao
qual ela “pertence” e um afastamento imaginário do país romântico”
no qual ela vive. Sua repúdia ao lugar, um tipo de auto-deslocamento
(auto-displacement) torna-se um índice de integridade, um sinal de
compromisso com o que está dentro dela.
63
61
STEIN, Gertrude. Autobiografia de todo mundo. Tradução de Júlio Castañon Guimarães e José
Cerqueira Cotrim Filho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. P.181.
62
Ibidem, p.315.
63
KENNEDY, J. Gerald. Imagining Paris: exile, writing, and American identity. New Haven & London:
Yale University Press, 1993. p.44.
71
Instalada em si, Gertrude Stein problematiza em sua escrita a indefinição do
lugar onde está. Tanto na sua chegada à América, quanto no seu retorno à Fraa, o
espaço é, no lugar da narrativa, posto em vida. Até chegar a uma constatação
definitiva “Afinal havíamos estado lá” no discurso um jogo de variação que
alterna “estar” e “não estar”, põe em dúvida o lugar em que se está –“talvez não fosse a
América”e onde se esteve – “era como se não tivéssemos estado”. Durante a narrativa
de seu percurso pelas diversas cidades na América pelas quais Gertrude Stein passou,
ela comenta o estranhamento que alguns lugares suscitam nela. É o que acontece na sua
visita a Cambridge, por exemplo:
Fomos para Cambridge à noite (...). Cambridge foi engraçado pois
foi o lugar que não reconheci nada. Considerando que eu havia
passado quatro anos era particularmente surpreendente que nada de
que eu me lembrasse estivesse lá nada mesmo. (...) Não voltei lá
talvez eu devesse ter recomeçado mas naquele dia Cambridge estava
tão diferente que era como se eu nunca tivesse estado não havia
nada que tivesse a menor relação com qualquer lugar que tivesse
havido lá. Perdi Cambridge sem mais delongas. Isto é engraçado.
64
A frase era como se eu nunca tivesse estado lá”, referente a Cambridge se
repete, com variações, quando de sua volta à França, mas, desta vez, referindo-se à
recente estadia na América: “mesmo que não estivéssemos mais e era como que se
o tivéssemos estado”. Gertrude Stein “perde” Cambridge, pois o lugar de que ela se
lembrava não havia mais. Neste caso, é o tempo, mais de trinta anos, que se encarrega
de transformar o lugar a tal ponto que ela não consegue reconhecê-lo. Mas, no caso
da segunda frase, não há um espaço tão longo de tempo separando a visita à América da
constatação de que era como se o tivéssemos estadolá. A autora, mais uma vez,
reitera sua desconfiança na memória. E, portanto, no passado. Fosse ele um passado
distante (no caso da memória de Cambridge) ou um passado recente (no caso da visita à
América). O seu compromisso é unicamente com o tempo presente. E, mais
especificamente, com o presente da escrita, em que não passado, memória, nem
identidade. E é justamente nesta “ausência” de uma identidade fixada pela memória que
a autora se reconhece e se define como gênio”:
64
STEIN, Gertrude. Autobiografia de todo mundo. Tradução de Júlio Castañon Guimarães e José
Cerqueira Cotrim Filho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. P. 199.
72
E assim eu sei realmente o que é um gênio, gênio é alguém que o
tem que se lembrar dos duzentos anos de que todo mundo tem que se
lembrar
65
.
Afinal, no momento mesmo da escrita, no ato de escrever, a autora compromete-
se em estar em apenas num lugar e num tempo: o seu presente, dentro de si mesma.
Talvez por isso, as grandes árvores sem raiz do vale de Yosemite, na Califórnia, a
tivessem impressionado tanto:
era alto e frio e chegamos um pouco tarde mas o diretor do vale se
ofereceu para nos levar para ver as grandes árvores e fomos. Gostei. A
coisa mais impressionante quanto a elas era que não tinham raízes será
que alguém queria alguma coisa mais interessante do que isso que as
mais velhas as mais sólidas e as maiores árvores que existem não
tenham fundações, estavam assentadas e o vento não as carregava
estavam bem assentadas. Foi muito emocionante. Muito bonito e
muito emocionante.
66
Gertrude Stein, num certo sentido, se assemelharia a estas árvores sem
fundações. Com suas raízes fixadas em terra nenhuma, a autora, no entanto, parece
estável, “bem assentada”, num lugar” que seria o da sua escrita. As palavras a
manteriam num estado permanentemente flutuante. Não parece ser à toa, neste sentido,
que andar de avião, para Stein, foi uma coisa extraordinariamente natural e agradável
muito mais simples e natural do que qualquer coisa mesmo andar, talvez tão natural
quanto falar mas certamente mais natural do que qualquer outra coisa.” Naturalidade
adquirida logo que ela compreende que o ar embaixo é lido quando voestá sobre
ele, é tão sólido quanto a água”
67
. E é na América vista de cima, do avião, que Stein
reconhece o cubismo:
As seções quadradas de terra compõem um quadro e ir sobre a
América assim dessa maneira faz qualquer um saber por que a pintura
pós-cubista era o que era. A linha vagueante de Masson estava a
linha confusa de Picasso indo e vindo e seguindo ela mesma até um
começo estava lá e suponho que Léger devesse estar mas não o vi
por lá.
68
65
Ibidem, p.130
66
Ibidem, p.305
67
Ibidem, p.204
68
Ibidem, p.204
73
E, mais ainda, ao descobrir a América de verdade”, ela parece reconhecer-se a
si mesma:
Todos vieram e falaram comigo os pilotos e as aeromoças e então fui
onde o piloto fica e falei com eles e me sentei numa de suas cadeiras e
fiz o manche mexer um pouco e tudo foi muito agradável mas mais foi
olhar para baixo e descobrir a América de verdade. As linhas retas e as
seções quadradas de terra, e as linhas das montanhas na Pensilvânia
linhas muito retas, isso tornou claro eu ter estado com o cubismo e
com tudo mais que se seguiu a ele.
69
Se, por um lado, os lugares que deveriam lhe parecer familiares, como Oakland,
por exemplo, dão a ela uma sensação de desconforto ou mesmo de não reconhecimento,
por outro lado, a América vista de cima, é a “América de verdade”. Mais real do que os
lugares pelos quais ela passa. Mas, mesmo vista de cima, a América não lhe parece por
vezes real:
Eu gostava de olhar para baixo e vê-los eu gostava realmente gostava
de olhar eu gostava de olhar para baixo e ver tudo ou de olhar para
fora e ver tudo gostava de olhar para tudo e estava tudo e estava
realmente mas era difícil de acreditar que estava realmente lá.
Qualquer um que nasceu só consegue perceber essas coisas com
relação a algumas coisas mas não com relação a essa coisa mas
mesmo assim se as pessoas estiveram fora então isso tudo não é o
real quanto qualquer outra coisa.
70
Com estas frases, Stein define seu lugar de origem, assim como definirá seu
lugar de expatriação como o sendo real, mas estando realmente lá. Se, para Gertrude
Stein, nenhum dos dois países parece real, mais uma vez se percebe que talvez o único
lugar que, em sua narrativa, se configuraria como real” seria o lugar dessa própria
escrita. E este é tão real quanto o ar é sólido quando você está sobre ele”.
IDENTIDADE E PAISAGEM
Como já foi assinalado, em “What are master pieces and why are there so few of
them”, Gertrude Stein analisa a questão em torno do que definiria uma obra-prima,
partindo da afirmativa de que, “no ato de fazer algo”, o criador “não possui identidade”.
Eu sou eu porque meu cachorrinho me conhece”, diz Stein, mas reconhecer que o
69
Ibidem, p.205
70
Ibidem, p.270
74
cachorro o conhece, é o que destrói a criação
71
. O não reconhecimento de si seria,
portanto, segundo Stein, condição para a criação artística. A autora passa, em seguida,
ainda no mesmo ensaio, a observar o assunto do qual devem tratar inevitavelmente as
obras-primas. E o que conclui a este respeito é que, para serem obras-primas, essas
criações, se não podem ser baseadas na iia de identidade, devem, no entanto,
tematizar obrigatoriamente a identidade:
Mas o que uma obra-prima deve mais ser sobre é ser sobre
identidade e tudo o que ela é. E sendo assim a obra-prima
não deve ter nenhuma identidade.
72
Diz a escritora, neste sentido, que, se, dos gregos, por exemplo, o que permanece
o são seus costumes, mas sim suas obras de arte, isto seria porque, enquanto os
costumes estariam relacionados às necessidades da natureza humana, as obras-primas,
para Gertrude Stein, só seriam obras-primas se desnecessárias. E também sem qualquer
relação com a natureza humana, mas sim com a mente humana. Os costumes estariam
relacionados, então, à identidade e esta à natureza humana. Ao contrário das obras-
primas, que, como os criadores, não podem fixar identidades, muito embora este seja o
assunto do qual deveriam se ocupar.
É possível relacionar esta reflexão de Stein sobre a identidade e as obras-primas,
exposta no ensaio “What are master-pieces and why are there so few of them”, a uma
outra reflexão sua, enfocando especificamente o teatro. Trata-se do texto “Plays”
73
, no
qual Gertrude Stein realiza uma genealogia do seu pensamento teatral, traçando um
histórico de suas considerações sobre o teatro, desde uma análise da recepção infantil a
uma representação (sempre tomando por base sua própria experiência como
espectadora, leitora e autora de peças), passando pelo melodrama, por Shakespeare, pelo
71
STEIN, Gertrude. “What are master-pieces and why are there so few of them.” IN: STEIN, Gertrude.
Writings 1932-1946. New York: The Library of America, 1998 p.355
72
“But what can a master-piece be about mostly it is about identity and all it does and in being so it must
not have any.” Ibidem. P.360-361.
73
Em 1934 Gertrude Stein foi convidada para dar uma rie de conferências nos Estados Unidos. Em
outubro ela e Alice Toklas deixaram a França e partiram de navio para a América onde permaneceram até
maio de 1935. durante estes meses viajaram pelo país e Gertrude Stein apresentou conferências em
diversas cidades. Cinco destas conferências, escritas em 1934, foram publicadas originalmente no livro
“Lectures in América” Nova York: Random House, 1935. Uma delas era “Plays”.
75
Balé Russo, por Isadora Duncan, até o ponto do ensaio em que passa a tratar de sua
compreensão da peça teatral “exatamente como uma paisagem.”
74
Antes, porém, de relacionar teatro e paisagem, Gertrude Stein questiona, em
Plays”, a utilidade de se contarem histórias no teatro:
Todo o mundo conhece tantas histórias e qual é a razão de se contar
uma outra história. Qual a razão de se contar uma história que
tantas e todo o mundo sabe tantas e conta tantas.
75
Levando este raciocínio às últimas conseqüências, Gertrude Stein conclui, então,
que tudo o que o é uma história pode, no entanto, ser uma peça. Por isso, em peças
como “A Curtain Raiser” (1913) e “Vozes de mulheres” (1916)
76
, ela quis “contar o que
pode ser contado se o se conta nada”. E em “What Happened. A Play” (1913), seu
primeiro texto teatral, teria se interessado pelo fato de cada pessoa ser uma pessoa
única, e conhecer, e se relacionar com outras tantas pessoas únicas, fato cuja expressão
ideal se daria no teatro:
Eu comecei a pensar que que cada um é aquele um e que
há um monte deles cada um sendo aquele um, a única
maneira de expressar isso cada um sendo aquele um e
havendo uma porção deles se conhecendo uns aos outros
era numa peça.
77
E Stein quis tematizar este assunto, estas singularidades, “sem contar o
acontecimento, mas fazer da peça a essência do acontecimento”
78
. Ela diz ainda, em
Plays, que esteve sempre interessada em “descobrir o que faz cada um ser aquele um”
79
,
o que a teria levado, inclusive, a escrever uma grande quantidade de Portraits (como os
de Picasso, Mabel Dodge, Carl Van Vechten). E, se, segundo observa, o que faz com
74
STEIN, Gertrude. “Plays” IN: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The Library of
America, 1998. P.263
75
“Everybody know so many stories and what is the use of telling another story. What is the use of telling
a story since there are so many and everybody knows so many and tells so many.” Ibidem. P.260
76
A peça está citada com o título em português porque há uma tradução dela por Julio Castañon
Guimarães, publicada na revista O percevejo nº9.
77
“I came to think that since each one is that one and that there are a number of them each one being that
one, the only way to express this thing each one being that one and there being a number of them
knowing each other was in a playSTEIN, Gertrude. “Plays” IN: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946.
New York: The Library of America, 1998. p.261
78
Ibidem, p.261
79
Ibidem, p.261
76
que as pessoas sejam o que elas são não são as histórias que elas ouvem, contam e
conhecem, o que procura exatamente nesses Portraits, é “contar o que cada um é sem
contar histórias”
80
, fazendo o mesmo nas peças, onde se trata de contar o que aconteceu
sem todavia contar histórias.
Estas reflexões, em Plays, a levariam à conclusão de que “uma peça é
exatamente como uma paisagem”. Não como uma história. A paisagem não se move,
mas nela tudo está em relação, uns elementos em relação com os outros. Cada detalhe
está em relação com cada detalhe em uma paisagem. Do mesmo modo, numa peça, os
elementos estão lá e em relação uns com os outros. Isso seria uma paisagem, não uma
história:
Eles os pombos podem contar a sua história se eles e vocês quiserem
ou mesmo se eu quiser mas histórias o histórias mas que eles
ficam no ar não é uma história mas uma paisagem. Que os espantalhos
ficam no chão é a mesma coisa poderia ser uma história mas é um
pedaço da paisagem.
81
Segundo a concepção steiniana de paisagem, uma paisagem está sempre no
presente. Enquanto uma história possui presente, passado e futuro, tem começo, meio e
fim, tem continuidade. A paisagem não. A paisagem está lá, ela não “foiou “viveu” ou
aconteceu”, ela apenas está lá. Não tem memória, nem, portanto, identidade. Do ponto
de vista dos personagens teatrais steinianos, se alguns também parecem possuir apenas
o presente, e nenhuma memória, além de identidades a todo o momento postas à prova,
outros dos possíveis personagens de suas peças, não chegam nem mesmo a fazer parte
da cena, não chegam a estar mesmo na paisagem, a não ser como referência de falas
alheias. Nos dois casos, porém, mantém-se a exigência de tematização da identidade,
conforme expressa em “What are master pieces and why are there so few of them”.
Trata-se, entretanto, não de tematização, mas problematização da identidade. O que
se dá por meio de recursos diferenciados empregados por ela em sua dramaturgia.
Alguns dos quais tomo como exemplo, a seguir, dessa sua exigência concomitante de
tematização e de problematização das identidades e de seus personagens.
80
Ibidem, p.76
81
“They the magpies may tell their story if they and you like or even if I like but stories are only stories
but that they stay in the air is not a story but a landscape. That scarecrows stay on the ground is the same
thing it could be a story but it is a piece of the landscape.” Ibidem. P.268
77
Um dos recursos, empregados por Stein, neste sentido, é o da transformação:
personagens que se modificam no decorrer da peça, chegando mesmo a se
metamorfosearem em coisas impensáveis, como acontece com as figuras de “Look and
long”. Nesta peça, os primos Oliver, Muriel, Susie e Silly, são surpreendidos no jardim,
em frente a uma casa, por uma aparição que aponta para cada um deles e anuncia as
metamorfoses a que serão submetidos. O primeiro a receber a “maldição” é Oliver:
You you, one of these days you will split in two, you, you.
82
A seguinte é Muriel:
you will get thin, get thin oh so thin, that you can slip through a ring
nobody can find you nobody can find where you have been nobody,
nobody, nobody not even he.
83
E, por fim, Silly e Susie ouvem seus destinos:
Silly will turn into Willy and Susie will turn into an egg and Willie
will sit on the egg, and so they will wed Willie and the egg, although
the egg is bad.
84
Feitas as profecias, a aparição desaparece. Os personagens parecem não dar
muita importância às suas falas, mas, no segundo ato, tentariam burlar os destinos
previstos. Oliver aparece todo amarrado por cordas com o objetivo de manter juntas as
partes de seu corpo, que, segundo a aparição, se dividiriam. Muriel traz duas enormes
garrafas de leite, uma em cada mão, pretendendo, com isso, manter o seu peso. Silly e
Susie apenas lamentam seu triste fim.
A primeira transformação a ocorrer na peça seria, porém, a da própria aparição,
que surge, pela segunda vez, com a aparência de uma velha. E, como uma fada, a
aparição em forma de velha toca, então, cada um dos demais personagens com uma
82
STEIN, Gertrude. “Look and Long” In: Selected operas and plays of Gertrude Stein, edited and with an
introduction by Malcolm Brinnin. Pittsburgh and London: University of Pittsburgh Press, 1993. 249
(“você você, um dia desses você vai se dividir em dois, você, você.”)
83
Ibidem, p.249 (“Você vai ficar magro, ficar magro ah tão magro, que você pode passar por um anel
ninguém pode te achar ninguém pode saber onde você esteve ninguém, ninguém, ninguém nem mesmo
ele.”)
84
Ibidem, p.249 (“Silly vai virar Willy e Susie vai virar um ovo e Willie vai sentar no ovo, e então eles
vão casar Willie e o ovo, apesar do ovo estar ruim.”).
78
varinha e eles vão se transformando também exatamente como previra. No terceiro ato,
quando os quatro se acham metamorfoseados, a aparição surge mais uma vez com
nova aparência. Agora aparece disfarçada de poodle francês. E o poodle perguntaria aos
personagens transformados se eles gostariam de ter um cachorrinho como ele. Diante
das respostas afirmativas, o cachorrinho acabaria transformando cada um deles de novo
no que eram antes. E assim acaba a peça, num movimento de figuração, desfiguração,
refiguração. É o cachorrinho, portanto, que, uma vez que passa a pertencer aos
personagens, os reconhece como donos e restaura suas identidades. É o seu cachorrinho
que os reconhece, como no comentário de Stein no seu ensaio sobre as obras-primas.
Além desta peça, toda ela centrada na transformação, há ainda outros exemplos
de personagens que têm sua forma física ou seus nomes modificados. Dr. Faustus de
Doutor Faustus liga a luz, em dado momento, ganha de Mephisto aparência de homem
jovem. Os personagens Jo the Loiterer e Indiana Elliot de The mother of us all” (1946)
quase chegam a trocar de nomes depois do casamento. A princípio Indiana se recusa a
tomar o nome do futuro marido, mas depois faz uma proposta diferente. O marido
passaria a usar o seu nome e ela passaria a usar o dele. Jo the Loiterer passaria então a
se chamar Jo Elliot. Embora ele não chegue a cumprir a promessa e mantenha o seu
nome original, a simples possibilidade da troca o leva a uma espécie de “crise de
identidade”:
All right I never fight, nobody will know it’s me, but what can I do, if
I am not she and I am not me, what can I do, if a name is not true,
what can I do but do as she tells me.
85
Além dessas transformações e trocas, Gertrude Stein às vezes explora a
semelhança como recurso de problematização de identidades. Por vezes surgem figuras
que, numa mesma peça, têm nomes com sonoridades bem parecidas, como Silly/Willie
e Susie, de “Look and long”, por exemplo, ou, noutras vezes, personagens cujos nomes
são quase iguais. É o que acontece com as irmãs Helen e Ellen de Três irmãs que não
são irmãs”. E se, nestes casos, a semelhança entre os nomes dos personagens sugere um
85
STEIN, Gertrude. “The mother of us all” In: Stein, Gertrude Last operas and plays. Edited and with an
introduction by Carl Van Vechten. New York: First Vintage Books Editions, 1975. P.82 (« tá certo eu
nunca brigo, ninguém vai saber que sou eu, mas o que eu posso fazer, se eu não sou ela e eu não sou eu, o
que eu posso fazer, se um nome não é verdadeiro, o que eu posso fazer além de fazer o que ela me
manda.”).
79
(uma Helena) que se divide em dois (Helen e Ellen), no caso da Margarida Ida e Helena
Anabela, de Doutor Faustus liga a luz ocorre o oposto. Ela é um personagem cujo
acúmulo de referentes sugeridos pelos seus quatro nomes, sugere uma variedade (quatro
identidades femininas) que no entanto resulta num nome composto só, numa figura.
Os personagens de “A play called not and now” (1936) também vivem uma
situação ambígua. Aí, os personagens são identificados como alguém que se parece com
outra pessoa, famosa, reconhecível. A lista de personagens merece, por isso mesmo,
transcrão:
Characters
A man who looks like Dashiel Hammet
A man who looks like Picasso
A man who looks like Charlie Chaplin
A man who looks like Lord Berners
and man who looks like David Greene
Women
A woman who looks like Anita Loos
A woman who looks like Gertrude Atherton
A woman who looks like Lady Diana Grey
A woman who looks like Katharine Cornell
A woman who looks like Mrs Andrew Greene
86
Carl Van Vechten, na introdução para o terceiro volume de peças de Gertrude
Stein, Last operas and plays (1949), observa que certamente esta peça teria sido
inspirada por um jantar em Beverly Hills oferecido a Stein quando de sua viagem aos
Estados Unidos. Veja-se o que Gertrude Stein relata sobre o acontecimento em A
Autobiografia de todo mundo:
Devíamos ir jantar em Beverly Hills o que no mesmo que
Hollywood isso eu disse devíamos encontrar Dashiell Hammett
Charlie Chaplin Anita Loos o marido dela e Mamoulian que estava
dirigindo todas as coisas e fomos.
87
86
STEIN, Gertrude. “A play called not and nowIn: Stein, Gertrude Last operas and plays. Edited and
with an introduction by Carl Van Vechten. New York: First Vintage Books Editions, 1975. P.422
(« Personagens / um homem que se parece com Dashiel Hammet / Um homem que se parece com Picasso
/ Um homem que se parece com Charlie Chaplin / Um homem que se parece com Lord Berners / Um
homem que se parece com David Green / Mulheres / Uma mulher que se parece com Anita Loos / Uma
mulher que se parece com Gertrude Atherton / Uma mulher que se parece com Lady Diana Grey / Uma
mulher que se parece com Katherine Cornell / Uma mulher que se parece com Mrs Andrews Green”).
87
STEIN, Gertrude. Autobiografia de todo mundo. Tradução de Júlio Castañon Guimarães e José
Cerqueira Cotrim Filho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. P.300.
80
A contar pelo grupo de convidados para o jantar, pode ter sido este evento social
realmente a fonte de inspiração para que ela escrevesse sua peça. Mas Stein opta por
o fazer das próprias celebridades seus personagens, e sim fazer personagens que
fossem figuras que se parecessem com as celebridades. Há, nesta escolha uma ironia
com relação ao fato de que as próprias celebridades são obrigadas, geralmente, a se
manterem sempre parecidas consigo mesmas, ou seja, com algo nelas que as fez
célebres. Para se tornarem celebridades, elas sofrem uma perda forçada de identidade,
porque o obrigadas a ser não mais elas mesmas, mas um esquema de gestos, trejeitos
e peculiaridades. Num certo sentido, quando uma pessoa vira uma celebridade, ela deixa
de ser ela mesma e passa a ser alguém que se parece com ela. Exilada de si mesma, ela é
obrigada a representar o papel dela mesma.
Os personagens de Gertrude Stein nesta peça, assim como as celebridades que
eles espelham, sofrem a perda de possíveis individualidades. Não são mais do que
alguém que se parece com outro alguém”, e seus gestos, atos e falas na peça são
descritos tendo sempre como referencial as celebridades com as quais eles se parecem,
de modo que eles não chegam a angariar nenhum traço peculiar que os distinga daqueles
aos quais se assemelham. O homem que se parece com Chaplin, por exemplo, chega a
fazer uma tentativa de distinção, mas mesmo esta se por aproximação com relação à
celebridade com a qual ele se parece:
The one that looks like Charlie Chaplin said.
Charlie Chaplin looked like me.
88
Aquele que se parece com o Doctor Gideon, por sua vez, diz algo que não seria
exatamente o que Doctor Gideon teria dito:
All the characters are there and the one that looks like Doctor Gideon
is the one that says what has just been said only it is not what Doctor
Gideon would say but is said by the one who looks like him.
89
88
STEIN, Gertrude. “A play called not and nowIn: Stein, Gertrude Last operas and plays. Edited and
with an introduction by Carl Van Vechten. New York: First Vintage Books Editions, 1975. P. 423 (“O
que se parece com Charlie Chaplin disse. / Charlie Chaplin se parecia comigo”)
89
Ibidem, p.422 (Todos os personagens estão lá e aquele que se parece com Doutor Gideon é o que diz o
que acabou de ser dito que não é o que Doutor Gideon diria mas é dito por aquele que se parece com
ele.”)
81
No decorrer da peça, feitas as apresentações dos personagens, Stein passaria a
descrever suas ações: Estes são os personagens e isso é o que eles fazem”
90
. E esse “o
que eles fazem” não é muito mais do que olharem uns para os outros:
The one who looks like Dashiell Hammett looks at the one that looks
like Picasso and both together look at the one that looks like Lord
Berners, and then they all say, we do not look like any other one and
they did not and do not.
91
E continuarem a parecer com quem se parecem:
The one who looks like Anita Loos was looking like Anita Loos at
any time and this made that one looks like Anita Loos as she looked at
any time. The one who looks like Gertrude Atherton kept on looking
like Gertrude Atherton just kept on looking like Gertrude Atherton
(...) and so each one of them who looked like the one she looked like
saw that she looked like the one she looked like and that the other
ones who looked like the ones they looked like did look like them as
they could and did look like them which they did they look like
them.
92
Parecer com quem já se parecem acaba por constituir-se por si só na ação
dramática da peça. A escrita da peça se dá de tal maneira que não se pode definir estes
personagens de outro jeito senão como sendo aqueles que se parecem com tal ou qual,
que não há qualquer ão ou fala que lhes ofereça possibilidade de se distinguirem dos
modelos. E, quer vão embora ou fiquem, isso não importa, já que eles são apenas alguns
que se parecem com outros. Veja-se este trecho:
90
“these are the characters and this is what they do”
91
Ibidem, p.423 (“Aquele que se parece com Dashiell Hammett olha para aquele que se parece com
Picasso e os dois juntos olham para aquele que se parece com Lord Berners, e então todos dizem, nós não
nos parecemos com nenhum outro e eles não se pareciam e não se parecem.”)
92
Ibidem, p.434 (“Aquela que se parece com Anita Loos estava se parecendo com Anita Loos em
qualquer momento e isso fez com que ela se parecesse com Anita Loos como ela era em qualquer
momento. Aquela que se parece com Gertrude Atherton continuou se parecendo com Gertrude Atherton
continuou se parecendo com Gertrude Atherton (...) e então cada uma delas que se parecia com quem
se parecia viu que se parecia com quem se parecia e que os outros que se pareciam com quem se pareciam
realmente se pareciam com eles o quanto podiam e realmente se pareciam com eles o que eles faziam eles
se pareciam com eles.”)
82
Hullo they say and they do each go away. Not that that makes any
difference, as the real one is not there but just the one that is just like
him.
93
Se o jantar que realmente aconteceu serve de inspiração para a peça, Gertrude
Stein consegue fazer um “retrato” da festa sem inserir nele seus personagens
verdadeiros. Mas, uma vez que os “verdadeiros” não poderiam de fato estar na festa,
porque precisariam manter-se parecidos com as celebridades que eles de fato eram, seus
personagens são duplamente teatrais. Já que, como celebridades, são, em realidade, uma
representação deles mesmos, e, também por estarem inseridos numa peça, seriam algo
como representações de representações das celebridades de fato presentes no jantar real.
Mas suas figuras nem chegam a ser representações das celebridades. Não o nem elas,
nem representações delas. São figuras que se parecem com outras, e que, no entanto,
o se definem de outra maneira. Stein trabalha, nesta peça, um exercício de
apagamento da personagem, pois talvez seja a única maneira de ter representado o
mecanismo verdadeiro de produção das celebridades e não representações delas, pois
mesmo as “verdadeiras” seriam ainda representações, trejeitos.
E se era forçoso apagar a personagem, a identidade, as formas artísticas que
neles se apoiavam também estariam com os dias contados:
Lloyd Lewis disse que sua mãe lhe disse, quando ele contou a
ela que eu havia dito que o romance como forma estava morto, acho
que ela está certa, os personagens de livros não têm peso na vida do
leitor da maneira como costumavam ter e se não têm o romance como
forma está morto.
Digo a todos os jovens agora que escrevam ensaios, no final
das contas desde que o personagem não tem mais importância porque
não escrever meditações, as meditações o sempre interessantes,
quem medita não precisa nem de personagens nem de identidade.
94
Mas Gertrude Stein, contrariando a própria história, continua a escrever peças.
que, nelas, quase se pode dizer que o que faz é uma tentativa de se desfazer dos
personagens, quando ainda estão lá. Diluindo às vezes suas identidades até o ponto de
o dar a eles nenhuma voz. Há, em suas primeiras peças publicadas em Geography and
93
Ibidem, p.422 (“Alo eles dizem e eles cada um vai embora. Não que isso faça alguma diferença, já que
o real não está lá mas apenas aquele que é exatamente como ele.”).
94
STEIN, Gertrude. Autobiografia de todo mundo. Tradução de Júlio Castañon Guimarães e José
Cerqueira Cotrim Filho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. P.110.
83
plays, alguns textos nos quais as vozes parecem sem dono. o há indicação didascálica
para quem estaria enunciando as frases. E se pode listar, nestas peças, um bom número
de figuras que são apenas referidas e não chegam mesmo a ‘entrar’ em cena. Não m
qualquer representação concreta. Se, em “Not and now”, o que seriam representações
concretas, espelhos de celebridades, são, na realidade, quase vultos que se pareceriam
com eles, mas que não são eles ou tampouco seus representantes, ou tampouco
parecidos, mas dotados de individualiade, nestas outras peças marcadas pelo
apagamento, não há nem mesmo vultos. As figuras estão fora de cena.
Observe-se, por exemplo, o que acontece em Contando os vestidos dela (1917):
PARTE I
ATO I
Quando eles não me viram.
Eu vi eles de novo.
Eu não gostei.
ATO II
Eu conto os vestidos dela de novo.
ATO III
Você pode desenhar um vestido.
ATO IV
Em um minuto.
95
Este início já revela a presença de duas figuras que dialogam. Há uma pergunta –
“você pode desenhar um vestido” – seguida de uma resposta – “em um minuto”.
Embora Stein não a elas um nome que as identifique no decorrer do texto (mantendo
a numeração de atos e dando a entender que talvez fossem eles os enunciadores das
falas), a presença das duas figuras se dá, entretanto, por meio do diálogo. Mas , ainda,
neste trecho inicial, outra forma de presença e ausência misturadas no seu uso do
pronome eles”, que se refere a figuras que nunca chegam a se materializar em cena. E
também no emprego do pronome possessivo “dela”, de “eu conto os vestidos dela de
novo”. Quem são eles”? A quem se refere esse “dela”? A figura referida na terceira
pessoa, não teria, então refencia material, representatividade em cena. No decorrer do
texto - que segue esta estrutura de divisão em partes e estas em atos, nos quais se
95
STEIN, Gertrude. Contando os vestidos dela. Uma peça. Tradução de Inês Cardoso Martins Moreira.
Rio de Janeiro: Viveiros de Castro Editora, 2001. P.5
84
agrupam as falas, até o fim - voltam a aparecer pronomes que, como estes “eles” e
dela”, se referem a terceiros que não se presentificam na cena.
Veja-se agora o que acontece num outro texto de Stein, “Capitão Walter Arnold
(1916):
Será que você é capaz de esquecer Minerva.
Cometi o erro.
Quero dizer Mônica.
Será que você é capaz de esquecer
Mônica.
Ou Polybe.
96
Mônica, Minerva e Polybe o apenas nomes. Não se sabe mais nada sobre eles
além de seus nomes. Também não estão em cena. Não chegam a angariar voz ou corpo.
Em contrapartida, as vozes que dialogam nesta peça, que se presentificam aí, não são
identificadas por nomes. Não são identificadas nem mesmo por números ou letras ou
por uma seqüência de atos como em Contando os vestidos dela”. As frases se seguem
de modo fluente e a autora não fornece nenhuma indicação sobre quem as enuncia.
Outros nomes surgem em “Vozes de mulheres”. Nesta peça, com exceção da
Srta. Williams, a quem uma fala é dirigida “realmente Srta. Williams não quero dizer
que eu era mais velha. / Mas você era” - os outros nomes são de personagens apenas
mencionados que não entram em cena: “É Geneviève não sabe disto.”; Sr. Richard
Sutherland. Este é um nome que conheço”; “Coitada da Augustine”
97
.
“A seguir. Vida e cartas de Marcel Duchamp” (1920), outro texto seu, aponta
outro recurso de problematização de identidades e personagens. Pois, se também
apresenta procedimentos de apagamento, não há aí diálogos claros, como em Vozes de
mulheres”, em “Contando os vestidos dela” e em “Capitão Walter Arnold”. Há, neste
caso, uma voz na primeira pessoa que reflete, por vezes, sobre si mesmo, como nestes
exemplos:
Mas seque sou sensato. Não sou tão eficiente em simpatia
ou sentimento comum.
96
STEIN, Gertrude. “Capitão Walter Arnold”, tradução de Julio Castañon Guimarães. In: O Percevejo:
revista de Teatro, Crítica e Estética . ano 8 . N.9 . 2000. Departamento de Teoria do Teatro . Programa de
s-Graduação em Teatro . UNIRIO. P.239
97
STEIN, Gertrude “Vozes de mulheres”, tradução de Júlio Castañon Guimaes. In: O Percevejo: revista
de Teatro, Crítica e Estética . ano 8 . N.9 . 2000. Departamento de Teoria do Teatro . Programa de Pós-
Graduação em Teatro . UNIRIO. P.242
85
(...)
Qualquer pergunta me desvia de mim
(...)
Como me sinto facilmente delgada.
98
Outras vezes o personagem reflete sobre outros temas, que não ele mesmo, como
por exemplo nesse comentário:
Do ponto de vista do branco toda cor é cor. Do ponto de vista do
preto. Preto é branco. Branco é preto. Preto é preto. Branco é preto.
Branco e preto é preto e branco. O que lembro quando estou aqui é
que palavras não são pássaros.
99
Mas, mesmo esta voz monologante, também cita nomes de figuras que não
chegam a ser representadas em cena:
Isto quer dizer que pontos de novel semelhaa o aqueles que
fazem Henry dominante. Henry dominante de fato abafa Emil. Emil é
oportuno. Ele não exagera exemplos. Até mesmo hesita.
100
Incluindo-se, nesse desejo de eliminação do personagem, até mesmo aquele cujo
nome – Duchamp - está no título da peça, mas que, no entanto, também o se
concretiza como personagem em cena. Antes pelo contrário, a voz monologante
esforça-se mesmo por retirá-lo do texto:
Eu estava procurando ver se podia deduzir Marcel daí mas o
posso.
101
É interessante notar como, se, por um lado, Stein faz de pessoas reais seus
personagens, ela, por outro lado, paradoxalmente, os retira da cena. As celebridades de
Not and now” são substitdas por outros que se parecem com elas e Marcel Duchamp
também é anunciado, evocado, mas não chega a ser representado exatamente como
personagem em “A seguir. Vida e cartas de Marcel Duchamp”.
98
STEIN, Gertrude. “A seguir. Vida e cartas de Marcel Duchamp” tradução de Julio Castañon
Guimarães. In: O Percevejo: revista de Teatro, Crítica e Estética . ano 8 . N.9 . 2000. Departamento de
Teoria do Teatro . Programa de Pós-Graduação em Teatro . UNIRIO. P.243
99
Ibidem, p.243
100
Ibidem, p.243
101
Ibidem, p.243
86
Veja-se agora o que ocorre ao final da peça “Três irmãs que não são irmãs”.
Como já foi mencionado, o jogo teatral proposto, que era o de representar uma peça de
assassinato, toma lugar e instaura aí um espaço de ficção. Segue-se uma série de
assassinatos que levam os personagens a se questionarem sobre quem seria o assassino.
A dúvida é semelhante à que caracterizaria qualquer romance de suspense, se não
houvesse nesta peça uma particularidade: os personagens Jenny e Samuel duvidam até
mesmo de si próprios. Pensam que talvez eles mesmos pudessem ser os assassinos.
Pois, como elementos que pertencem a uma paisagem, na qual haveria o tempo
presente, estes personagens parecem desprovidos de memória, como se o pudessem
lembrar do que fizeram na cena anterior e conseqüentemente se teriam ou não matado
alguém. Ao final da peça, na qual todos acabam mortos, a cena volta ao “lugar nenhum”
inicial e os personagens entram num outro questionamento. Desta vez perderam-se entre
realidade” e “ficção” e já não podem mais distinguir se estão vivos ou mortos:
As luzes se acendem e estão eles todos como na primeira
cena.
Jenny. Se que nós encenamos isso nós estamos mortos, nós somos
irmãs, nós somos órfãs, nós nos sentimos esquisitos, nós estamos
mortos.
Sylvester. Claro que nós não estamos mortos, claro que nós nunca
estivemos mortos.
Samuel. Claro que nós estamos mortos, vocêo vê que estamos
mortos, claro que estamos mortos.
Helen. (Indignadamente) Eu não estou morta, eu sou uma órfã e
uma irmã que não é irmã mas eu não estou morta.
Ellen. Bem se ela não está morta eno eu não estou morta. É
muito bom muito bom mesmo o estar morta.
Jenny. Oh cala a boca todo o mundo, cala a boca, vamos todos para
a cama, esna hora de ir para a cama órfãs e todos e irmãos também.
E eles vão.
Finis.
102
Os personagens desta peça vivem um exílio até mesmo dentro do lugar ficcional
a que parecem pertencer, pois os cenários iniciais e finais, previstos pelo texto de Stein,
retratam um espaço nulo. Mas não há, nesta peça, apenas um exílio espacial. Esses
personagens são também exilados de suas próprias identidades, pois, ao final da peça
encontram-se expatriados de si mesmos. Confundem-se com o jogo e o se distinguem
102
STEIN, Gertrude. “Three sisters who are not sisters”. In: Selected operas and plays of Gertrude Stein,
edited and with na introduction by Malcolm Brinnin. Pittsburgh and London: University of Pittsburgh
Press, 1993. P.246
87
mais como irmãs ou irmãos, como órfãos, órfãs ou mesmo se estão vivos ou mortos.
Exílio semelhante viveriam as personagens de Look and long” que, como no caso de
Oscar, podem ser divididos em dois, podem perder a própria consistência física (no caso
de Muriel que emagrece, até sumir, e de Susie que vira um ovo), ou ver a própria
identidade sexual trocada (é o caso de Silly que se transforma em Willie).
as figuras ou vozes que surgem em “Vozes de mulheres”, “Contando os
vestidos dela”, Capitão Walter Arnold” e “A seguir. Vida e cartas de Marcel
Duchamp” sofrem de um tipo distinto de exílio estrutural. Há, de um lado, as vozes, em
geral sem nome, cujas identidades encontram-se ausentes das indicações dramatúrgicas
pois o possuem qualquer indicação que as identifique, que são apenas frases que se
seguem sem que se diga quem as enuncia. E os nomes citados por estas vozes sem
dono que, no entanto, encontram-se desprovidos de representação física prevista em
cena.
Há ainda os casos de desidentificação apresentados tanto pelas celebridades
mencionadas por Stein, que ficam sem representação concreta no seu texto, quanto
pelos personagens que se parecem com elas, mas que, no entanto, não o, por sua vez,
nem seus representantes, nem têm individualidade própria, na peça “Not and Now”. E
o anúncio do personagem Marcel Duchamp, que, apesar de dar nome à peça “A
seguir vida e cartas de Marcel Duchamp”, também não seria retratado diretamente em
cena, não teria uma representação física visível indicada textualmente.
Todas estas figuras, com as diferenças apontadas, vivem em um outro tipo de
exílio construído dramaturgicamente, pois parte delas está fora de cena: as frases ditas
por ninguém, vozes sem dono, os nomes citados em cena que, no entanto, não têm voz,
as celebridades que se fazem presentes por meio de outros, que se parecem com elas
mas que, no entanto, não são elas, o Marcel, que está no tulo, mas não se materializa
como personagem concreto na peça. Todos estes elementos da ficção teatral steiniana
estão e não estão ali, como a Alice Toklas que narra a sua autobiografia fictícia, como
Gertrude Stein fazendo questão de escrever em inglês, morando na França. Todos eles
estão presentes, de algum modo, no texto, na sua dramaturgia, mas, no entanto, não
estão previstos concretamente no espaço nico. Estão e o estão ali. São como que
exilados da paisagem que caracterizaria, na opinião de Stein, uma peça. E estão, ao
mesmo tempo, em condição semelhante à daqueles que, “no ato de fazer algo”, não
88
podem possuir identidade”, à definição do escritor como auto-exilado proposta, no
ensaio sobre as obras-primas, por Gertrude Stein.
Mas, se por um lado Stein opta por impor um exílio a estes personagens, assim
como à identidade autoral “no ato de fazer algo”, por outro lado há uma forte presença,
em seus textos, de elementos autobiográficos. O que resulta numa espécie de inclusão
da própria autora não em suas duas “autobiografias” de outros, como também em
suas peças, retratos, ensaios e palestras. Mas ainda nestas auto-inclusões nos próprios
escritos, nestes traços autorais distribuídos por toda a sua obra, mantêm-se identidades
problemáticas, vozes sem dono, eus que se desviam de si. É dessa paisagem
autobiográfica e de sua problematização por Gertrude Stein que tratará o próximo
capítulo.
89
CAPÍTULO III
Quando eu sou eu sou eu eu:
Escrita e experiência
90
uma estreita relação entre escrita e experiência na obra de Gertrude Stein. O
que se observa na grande quantidade de retratos (portrait writings”) produzidos por
ela, nas duas autobiografias e no seu trabalho constante com formas pessoais de escrita,
como o ensaio e a meditação. Mas há, também, na sua obra, um movimento de perda de
identidade que parece questionar a coesiva subjetividade que sustenta geralmente os
retratos e autobiografias. A preocupação com a identidade, como foi observado no
capítulo anterior, é, na verdade, uma questão presente em toda a obra de Gertrude Stein.
Este tema aparece não em suas reflexões sobre o teatro e sobre a possibilidade das
obras-primas, questões expostas respectivamente em “Plays” e “What are master pieces
and why are there so few of them”, como também em seus romances e peças. Mas a
questão da identidade problemática sem vida se intensifica quando se trata de seus
portrait writings”. Neste capítulo vou tentar perceber a dominância da instância
autobiográfica, acompanhada das indagações sobre a identidade, nos escritos de
Gertrude Stein, considerando os variados gêneros e estilos com que trabalha. E
entendendo ainda que é esse teor biográfico, somado a suas identidades problemáticas,
que , de certa maneira, evidencia a relação entre escrita e experiência em sua obra.
Parto, então, da definão de experiência, visualizada no âmbito artístico, que é
proposta por John Dewey em seu texto “Art as experience” (1934):
Experiência no grau em que é experiência possui grande vigor. Em
vez de significar estar calado dentro dos próprios sentimentos e
sensações privados, significa um alerta e ativo comércio com o
mundo; conforme o seu nível significa completa interpenetração entre
“self” e o mundo de objetos e eventos.
1
Pois é esta interpenetração entre “self” e mundo que eu acredito desempenhar
papel essencial na escrita de Gertrude Stein. É ela que parece justificar suas escolhas de
gênero ou forma narrativa. Dentre elas, a opção dominante, em sua obra, inclusive a
teatral, pela exposição da experiência pessoal, pelo trabalho e pela transformação de
espécies características da “escrita do eu”.
1
DEWEY, John. Art as experience, New York: Perigee Book, 1980
91
ESCRITAS DO EU
Começando pelas análises de suas duas autobiografias, o que se nota ainda na
primeira delas, a Autobiografia de Alice B. Toklas, é a descentralização do sujeito
autobiográfico, verificável já pelo título. Pois se trata de uma autobiografia que é escrita
por outro. Mas o que se dá, de verdade, é que se trata mesmo da autobiografia de quem
a está escrevendo (Gertrude), embora esta esteja sendo contada por um outro narrador,
por um narrador fictício (Alice). Pois Gertrude Stein toma emprestada a voz de Alice
Toklas para falar de si mesma na terceira pessoa.
Wendy Steiner, ao comentar a primeira autobiografia steiniana, destaca a frase
reveladora de Stein, ao final do livro, revelando quem de fato estava escrevendo a
narrativa. Trata-se do ponto em que a autora (Stein) toma a palavra para dizer que iria
escrever a autobiografia de Alice para ela e que iria “escrevê-la com a mesma
simplicidade com que Defoe escreveu a autobiografia de Robinson Crusoe”
2
. É para a
relação entre a autora e a personagem da narradora que Wendy Steiner chama atenção
na passagem a seguir:
A comparação com Robinson Crusoe também sugere que Stein
pensou que Defoe estava falando sobre ele mesmo por meio da
invenção de um personagem que falava na primeira pessoa. Isto o
quer dizer que todo o romance em primeira pessoa seja uma
autobiografia, mas sim que toda autobiografia envolve a criação de
um personagem semi-real separado do escritor. A escolha de Toklas
como este personagem imediatamente foca a atenção sobre a relação
especial entre ela e Stein. Pois se o herói de um romance é uma
criação se não a projeção do seu autor, então a narradora, Toklas,
embora existente por direito nato e tratando a autora Stein como um
personagem de sua narrativa, é também uma criação e uma projeção
de Stein.
3
A ensaísta compreende, portanto, que autora e personagem, Stein / Toklas, se
mesclam na criação da “Alice Toklas” narradora da autobiografia. Há, em sua opinião, o
paradoxo de ela fazer de Toklas personagem, embora esta seja uma pessoa real, mas
2
STEIN, Gertrude. Autobiografia de Alice B. Toklas. Tradução de Milton Persson. Porto Alegre: L&PM
Editores LTDA, 1984. P.208.
3
STEINER, Wendy. Exact resemblance to exact resemblance. The literary portraiture of Gertrude Stein.
New Haven and London: Yale University Press. 2
nd
printing, 1979. p.186-187.
92
também a possibilidade de “Alice” ser ao mesmo tempo uma projão da própria Stein.
E é nesta mistura que se encontra a particularidade desta autobiografia. É o que a
diferencia de escritos biográficos tradicionais, nos quais o narrador em primeira pessoa
é de fato o autor e é o sujeito autobiográfico que relata suas próprias memórias. A
autobiografia de Gertrude Stein é mais do que o relato de uma experiência, do que a
descrição de uma vida, ela é também a experiência de se ver sob a perspectiva de outro.
James M. Cox, em seu texto “Autobiography in America”, observa que Gertrude
Stein, “saindo de si mesma”, encontrava, assim, curiosamente, uma poderosa estratégia
de auto-observação. A estratégia de "escrever através de sua companheira Alice B
Toklas", mas, de fato, "falando sobre ela mesma". Pois, diz Cox:
(...) como os outros autobiógrafos americanos ela pôde chegar a si
mesma indo para fora. Ao atingir ela mesma sendo, o imaginando
sua companheira íntima, ela não estava de maneira nenhuma tentando
angariar uma perspectiva objetiva sobre si. Ela estava, sim, unindo
percepção biográfica e autobiográfica num só ato criativo, deste modo
aniquilando prioridades e deixando apenas a percepção anedótica
sobre a página como puro ato e puro fato não uma nova vida no
tempo, mas uma nova existência no espaço.
4
Ser e não imaginar sua companheira”: este seria um dos pontos centrais da
forma autobiográfica na Autobiografia de Alice B. Toklas. De fato, Gertrude Stein se
propôs não a escrever a autobiografia de Alice Toklas, mas também procurou
preservar o estilo de sua companheira, o que implicou num abandono de seu próprio
estilo. A biógrafa Diana Souhami conta que, do manuscrito original, Stein teria cortado
frases inteiras nas quais se revelariam as particularidades de sua escrita:
Em sua Autobiografia, Gertrude assumiu a voz de Alice, seu estilo
amargo e lúcido, suas frases imperativas, as ironias, suas piadas
peculiares e a pontuação regular. Escrito na primeira pessoa, a obra
lembrava tanto Alice, que os amigos acreditaram que ela tivesse
desempenhado um papel essencial em sua criação; Alice negou tudo.
Sua única função, segundo suas repetidas afirmações, foi datilografar,
editar, orientar e servir de inspiração.
(...)
Num dos primeiros cadernos de exercícios, Gertrude abandonou a
“voz” de Alice e voltou ao próprio estilo (...): O resultado que tenho
tido é que eu tenho o que tenho e sempre tenho como sempre terei o
4
COX, James M. “Autobiography and America” In: Miller, J. Hillis (ed.). Aspects of Narrative. New
York/ London, Columbia University Press, 1971, p.171.
93
que tive para ter o que tenho”. Todos esses ‘gertrudismos’ foram
eliminados do manuscrito definitivo.
5
A escrita da autobiografia teria, portanto, provocado em Stein um deslocamento
de si mesma. Segundo conta o biógrafo John Malcolm Brinnin, “em busca de temas
para sua literatura, ela nunca havia se distanciado de si mesma”
6
. Seu estilo teria soado
falso para ela:
A coisa importante era que pela primeira vez ao escrever (...), eu senti
alguma coisa fora de mim enquanto escrevia, até esse momento eu
sempre tivera apenas o que havia dentro de mim enquanto escrevia.
7
O ato da escrita dessa autobiografia implicaria, então, o num exercício de
recordação e descrição de fatos, mas numa experiência de ser outro até o ponto de
assumir sentimentos alheios. Há, então, nesta primeira autobiografia, um duplo exílio.
Por um lado trata-se da autobiografia de Alice, que a narração é toda na primeira
pessoa, na voz de Alice, no entanto, a personagem central da Autobiografia de Alice B.
Toklas, não é Alice B. Toklas, mas sim Gertrude Stein. A Alice narradora, na verdade,
discorre quase que inteiramente, em sua autobiografia, sobre Gertrude Stein, e não sobre
ela mesma. Sua própria trajetória, suas vontades, seus sentimentos são revelados apenas
em relação ou comparados aos de Stein. Alice Toklas estaria, deste modo, exilada de
sua própria autobiografia. Mas, se entendermos que se trata de fato da autobiografia de
Gertrude Stein, esta também estaria exilada da própria autobiografia, que,
contrariando o gênero em que escreve, a autora criara uma “personagem” para narrar em
primeira pessoa sua autobiografia.
A segunda autobiografia de Stein é uma Autobiografia de todo mundo.
também, logo no título, já se vê uma impossibilidade, pois todo mundo” não é o sujeito
possível de uma autobiografia. Além disso, no decorrer do livro, a autora questiona a
própria identidade, chegando mesmo a r em dúvida a possibilidade de qualquer um
5
SOUHAMI, Diana. Gertrude and Alice. Tradução Irene Cubric, Rio de Janeiro: José Olympio, 1995.
P.175.
6
“In her search for literary subjects she had never really gone any further than herself.” BRINNIN, John
Malcolm. The third rose. Gertrude Stein and her work. Boston / Toronto: An Atlantic Monthly Press
Book, 1959. p.308
7
“The important thing was that for the first time in writing, (...) I felt something outside me while I was
writing, hitherto I had always had nothing but what was inside me while I was writing.” Stein, citada por
BRINNIN, John Malcolm. The third rose. Gertrude Stein and her work. Boston / Toronto: An Atlantic
Monthly Press Book, 1959. p.308
94
escrever uma autobiografia. Mas, para analisar a maneira como Gertrude Stein relativiza
a própria identidade, e, portanto, a integridade do sujeito autobiográfico, é interessante
observar algumas passagens da Autobiografia de Alice Toklas e da Autobiografia de
todo mundo nas quais a autora fornece definições bastante precisas de características
suas, para posteriormente, por meio de paradoxos e contradições, desfazer a
personalidade anteriormente constrda.
Logo no início da Autobiografia de Alice B. Toklas, Gertrude Stein, através das
palavras de “Toklas”, se autodefine como um gênio:
Devo dizer que apenas três vezes em toda a minha vida me deparei
com um gênio e cada vez ouvi uma campainha tocar dentro de mim,
sem a menor possibilidade de engano, e também devo dizer que cada
um desses casos ocorreu antes que houvesse qualquer reconhecimento
geral da qualidade de gênio neles existente. Os três gênios a que me
refiro o Gertrude Stein, Pablo Picasso e Alfred Whitehead. Conheci
muita gente importante, conheci altas personalidades, mas apenas três
gênios de primeira grandeza.
8
A sua qualidade de nio é definida no início do livro sem que haja qualquer
dúvida sobre esta condição. No entanto, Gertrude Stein, na Autobiografia de todo
mundo, demonstra dúvidas sobre o que seria mesmo um nio e sobre a sua própria
condição de gênio. Por isso se pergunta:
O que é um gênio. Se você é um como você sabe que você é um. o
é uma convicção muitas pessoas estão convencidas de que são em
algum momento ao longo de suas vidas mas elas não são e qual é a
diferença entre não ser e ser. Existe é claro uma diferença mas qual é.
E se você pára de escrever se você é um gênio e parou de escrever será
que você ainda é um gênio se você parou de escrever. Eu gostaria de
saber disso.
9
É importante esclarecer aqui que, quando Stein escreve sua Autobiografia de
todo mundo, ela tinha conhecido o sucesso de sua primeira autobiografia. A viagem aos
Estados Unidos, e o fato de ter sido lá recebida como celebridade, faz com que a autora
experimente em seguida, uma espécie de bloqueio que a deixa sem conseguir escrever
durante um período. O reconhecimento do público, em seu caso, a leva a questionar os
8
STEIN, Gertrude. Autobiografia de Alice B. Toklas. Tradução de Milton Persson. Porto Alegre: L&PM
Editores LTDA, 1984. P.9
9
STEIN, Gertrude. Autobiografia de todo mundo. Tradução de Júlio Castañon Guimarães e José
Cerqueira Cotrim Filho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. P.92.
95
efeitos da fama para um escritor. Ela viria a tratar deste assunto em muitos de seus
trabalhos posteriores à temporada nos Estados Unidos. O romance Ida, e a peça Doutor
Faustus liga a luz, são dois dos textos em que a autora tematiza a questão. Mas voltando
à Autobiografia de todo mundo, acrescente-se, a esta citação, ainda uma outra na qual a
autora questiona a identidade num momento em que não consegue escrever nada:
Durante todo esse tempo não escrevi nada. Não havia escrito nem
estava escrevendo nada. Não havia nada dentro de mim que precisasse
ser escrito. Nada precisava de qualquer palavra e não havia palavra
alguma dentro de mim que não
pudesse ser falada e conseqüentemente
não havia palavra alguma dentro de mim. E eu não estava escrevendo.
Comecei a me preocupar com identidade. Eu sempre fora eu porque
tinha palavras dentro de mim que tinham que ser escritas e agora
qualquer palavra que eu tivesse dentro de mim poderia ser falada não
precisava ser escrita. Eu sou eu porque meu cachorrinho me conhece.
Mas será que eu era eu quando eu não tinha nenhuma palavra escrita
dentro de mim. Isto era muito chato. Algumas vezes pensei em tentar
mas tentar é morrer e assim na verdade não tentei. Não estava
escrevendo nada.
10
Há, sobre estas passagens, pelo menos duas observações a serem feitas. Uma diz
respeito ao questionamento de sua condição de gênio, que havia sido afirmada de forma
tão irretorquível na primeira autobiografia. E a segunda observação a se levar em conta
diz respeito ao fato de Stein, na verdade, revelar um reconhecimento de si mesma
apenas como escritora. Se não palavras a serem escritas, então ela não sabe mais
quem ela é. Não se reconhece mais.
No ensaio “Subjectivity and the aesthetics of national identity in Gertrude
Stein’s The autobiography of Alice B. Toklas”, Phoebe Stein Davis procura mostrar de
que modo Gertrude Stein define freqüentemente a identidade, em seu livro, a partir da
afirmação de identidades nacionais. E o é só a sua identidade que se acha submetida à
definição do país de origem, seus outros retratados recebem o mesmo tratamento. Davis
cita diversas passagens da autobiografia nas quais Stein se refere às pessoas que ela
conhece, ou que freqüentavam seu apartamento, indicando suas nacionalidades:
A descrição de Alice para as noites de sábado repetidamente
respondem a pergunta que ela sabe que está na cabeça dos leitores
‘quem são eles todos’ com uma lista de nacionalidades. Ela explica,
‘grupos de pintores e escritores húngaros ... passaram por lá’ e ‘uma
quantidade de alemães’. Ela acrescenta que ‘Havia uma razoável
quantidade de americanos’. Os indivíduos o freqüentemente
conhecidos somente por suas nacionalidades: ‘o outro alemão que
10
Ibidem, p.71
96
veio até a casa naqueles dias era um tolo’; ‘havia um outro alemão de
quem eu tenho que admitir, nós duas gostamos’. Embora passemos a
conhecer esses dois homens por seus nomes em outra passagem, eles
são apresentados e reconhecidos em primeiro lugar pelas suas
identidades ‘alemãs’.
11
Com relação à própria nacionalidade americana de Gertrude Stein, Davis
aponta um trecho do livro em que a narradora, “Alice Toklas”, da Autobiografia fala,
por exemplo, de uma conversa que teria tido com Picasso, na qual o pintor lhe revelara
ter visto uma foto, mostrada por Stein, do presidente americano Lincoln. Depois de ver
a foto, Picasso teria tentado arrumar seu cabelo de forma a ficar parecido com o
presidente. Alice, neste instante, teria percebido que Gertrude Stein “era total e
completamente americana”
12
. Apesar de ser definida, neste trecho, como completamente
americana, a escritora, em outros momentos, relativizaria, e muito, esta auto-
identificação feita aí sob a forma de comentário de Toklas. Como se verá a seguir.
Na sua segunda autobiografia, na qual ela dedica a maior parte da narrativa à
estadia nos Estados Unidos, depois de 35 anos de ausência, morando na França, Stein,
ao se ver de novo, em seu país de origem, percebe que não pertence mais àquele lugar.
Há, neste livro, uma passagem na qual ela está dirigindo um automóvel e toma, em certo
momento, um retorno proibido. Gertrude Stein explica então que os sinais de trânsito
são diferentes na América e acaba dizendo a um guarda que ela não é daquele lugar,
demonstrando sentir-se então uma estrangeira em seu próprio país. Numa outra
passagem, Stein se refere a certas decisões que tomara, ainda aos dezesseis anos, e as
define como algo tipicamente californiano. Então conclui: “elas foram tomadas quando
eu era californiana”
13
. Somem-se a isso, ainda, as diversas passagens nas quais a autora
compara o comportamento e a personalidade dos americanos aos dos franceses. O
distanciamento que ela toma, nesses trechos, dos dois grupos, das duas culturas,
separados por ela, é bem verdade, por fronteiras nacionais, faz parecer que ela própria
o pertence na realidade a nenhum deles.
A possibilidade de redução da identidade à nacionalidade, se é esboçada às
vezes, em sua obra, acabaria descartada diante de afirmações como essas. O fato de não
11
DAVIS, Phoebe Stein. Subjectivity and the aesthetics of national identity in Gertrude Stein’s “The
Autobiography os Alice B. Toklas.” In: Twentieth Century Literature. Spring, 1999.
http://www.findarticles.com p.8
12
STEIN, Gertrude. Autobiografia de Alice B. Toklas. Tradução de Milton Persson. Porto Alegre: L&PM
Editores LTDA, 1984. P.18
13
STEIN, Gertrude. Autobiografia de todo mundo. Tradução de Júlio Castañon Guimarães e José
Cerqueira Cotrim Filho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983 p.300.
97
se sentir mais uma californiana, se revelaria numa frase como a seguinte escrita no
tempo passado: “quando eu era californiana”. Era e o é mais. Enquanto que por outro
lado, a Alice” narradora da Autobiografia de Alice B. Toklas, serviria aí como
contraponto a Stein, pois “Alice” é, sim, definida como uma californiana. A primeira
frase do livro já apresentaria “Alice” anunciando seu estado e cidade de origem, e a
influência que isso exerceria ao longo de sua vida em suas prefencias de moradia:
Nasci em São Francisco da Califórnia. Por isso sempre preferi morar em cidades de
clima ameno.”
14
Mais adiante na Autobiografia, Alicereafirmaria seu forte vínculo
com o estado onde nasceu, revelando na frase escrita no tempo presente, ter
permanecido, mesmo depois de afastada de seu país de origem por décadas, uma
californiana. Diz “Alice”: “Eu, como californiana, posso muito bem entender.”
15
Ao
contrário de Alice”, Stein não se compreenderia mais como a californiana que foi aos
dezessete anos. O sujeito oculto da autobiografia tem sua identidade desmontada, deste
modo também no que diz respeito a alguma possibilidade de identificação com seu país
e com seu estado natal. a perspectiva da adoção da nacionalidade como sustentáculo
da identidade, mas esta vinculação também se deixa abalar.
Pois se os gêneros “biografiae “autobiografia” servem para fixar, fortalecer e
delimitar a subjetividade e a identidade do retratado, Gertrude Stein se utiliza dessas
formas literárias com o intuito de dissolver exatamente a base identitária do sujeito
autobiográfico. Neste sentido, ao questionar a identidade, ela joga com os limites do
próprio gênero. Limites que já começam a ser questionados nos títulos, nas capas, nos
pontos de partida das duas autobiografias, nas quais se trata de escrever uma
autobiografia que é uma alterbiografia ou de autobiografar um outro” plural, mas cuja
amplitude é tão grande que se mostra absurda: “todo mundo”.
E, no segundo capítulo da segunda autobiografia, Stein chega mesmo a afirmar a
impossibilidade completa do gênero:
E a identidade é engraçada ser você mesmo é engraçado pois você
nunca é você mesmo para si mesmo exceto na medida em que se
lembra de você mesmo então é claro você não acredita em si mesmo.
Na verdade esse é o problema de uma autobiografia você é claro o
acredita realmente em si mesmo por que acreditaria, você sabe bem
tão bem que não é você mesmo, não poderia ser você mesmo porque
14
STEIN, Gertrude. Autobiografia de Alice B. Toklas. Tradução de Milton Persson. Porto Alegre: L&PM
Editores LTDA, 1984.7
15
STEIN, Gertrude. Autobiografia de Alice B. Toklas. Tradução de Milton Persson. Porto Alegre: L&PM
Editores LTDA, 1984. p.64
98
você não consegue se lembrar direito e se se lembra direito não parece
direito e é claro que o parece direito porque não é direito. Voé
claro nunca é você mesmo.
16
Num outro momento, a escritora afirma que “na medida em que você é você
para si mesmo não há a sensação de tempo para você”. Sim, porque “vo é você
mesmo para si em qualquer momento em que vose apresente para si dentro de si
mesmo”, no entanto, se num outro momento você consegue “ter lembrança de si
mesmo”, mas não consegue “sentir a si mesmo
17
, então, para ser você mesmo, é
preciso que você não esteja se lembrando de si mesmo. Neste caso, autobiografias
tornam-se impossíveis, pois se trata de recordações de si mesmo. Se aquele que
recorda já o é o sujeito autobiográfico, então, para Stein, haveria a possibilidade de
uma autobiografia se ela fosse a autobiografia de um outro, de Alice B. Toklas ou de
todo mundo, por exemplo. Seguindo este raciocínio, Gertrude Stein não poderia
escrever a autobiografia de Gertrude Stein. Então, o sujeito autobiográfico, ao mesmo
tempo em que vai sendo delineado para o leitor durante a leitura, vai também sendo
apagado neste mesmo processo. Aquele que as suas autobiografias diante de si o
retrato de um sujeito autobiográfico que, ao mesmo tempo em que está sendo “pintado”,
está também sendo “apagado”, retocado, suas curvas vão mudando e se transformando
conforme a leitura vai se encaminhando. Pode-se dizer, então, que a experiência de uma
escrita autobiográfica marcada pela construção e desconstrução do sujeito
autobiográfico vai sendo partilhada, deste modo, pela escritora com o leitor de suas
obras.
PORTRAIT WRITING
Passo agora das autobiografias para a análise de uma outra forma de escrita
bastante explorada por Stein, na qual não se fazem auto-retratos”, mas “retratos” de
outros. Trata-se de seus “portraits writings”. E são muitos os seus retratos. Pois
Gertrude Stein dedica boa parte de seus escritos à composição de retratos das muitas
pessoas que freqüentavam sua casa à Rue de Fleurus 27, em Paris. O primeiro destes
16
STEIN, Gertrude. Autobiografia de todo mundo. Tradução de Júlio Castañon Guimarães e José
Cerqueira Cotrim Filho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. P.75.
17
Ibidem, p.317.
99
perfis teria sido Ada (1910), no qual retrata Alice Toklas. Seguiram-se muitos outros e
segundo conta a narradora “Alice Toklas” de Autobiografia de Alice B. Toklas:
Esse foi o início da longa série de perfis. Escreveu, praticamente,
sobre todo mundo que conhecera, de todas as maneiras e em todos os
estilos.
Depois de Ada vieram os perfis de Matisse e Picasso, e Stieglitz, que
estava muito interessado na série e em Gertrude Stein, publicou-a num
número especial de Camera Work.
Dedicou-se então a breves retratos de todo mundo que entrava e saía
do sobrado.
18
“Alice” conta ainda que cada um dos retratados recebia o seu retrato para ler e
que “todos ficavam contentíssimos”. Mabel Dodge, amiga de Stein e Toklas, gostou
tanto do seu que mandou publicá-lo e fez uma sugestão a Gertrude Stein:
Mabel Dodge concebeu imediatamente a idéia de que Gertrude Stein
devia ser convidada, de uma casa de campo a outra, para fazer perfis
de milionários americanos que lhe proporcionariam uma carreira
simplesmente empolgante e lucrativa. Gertrude Stein achou graça.
19
A idéia de fazer de Gertrude Stein uma espécie de “retratista” de milionários,
mas de retratos escritos e não de retratos pintados, instiga a reflexão sobre a
especificidade desta escrita. Os neros pessoais escolhidos por Stein - retratos,
autobiografias - são geralmente utilizados com a intenção de se fixarem identidades, de
delinear e estabelecer, com desenho claro, as personalidades sob observação. Mas, no
caso dos retratos steinianos, não é bem assim que acontece. Seus retratos não são
descrições literais dos objetos retratados. Seus personagens figuram nos títulos, mas,
muitas vezes, não há, nos textos, informações que permitam ao leitor compor uma
figura tida a partir de uma descrição sica ou biográfica. Como já foi observado, no
capítulo anterior, Gertrude Stein conta em seu texto “Plays”, que sempre estivera
interessada em descobrir o que faz de cada um aquele um:
Eu tinha antes de começar a escrever peças escrito muitos portraits. Eu
sempre tive em toda a minha vida um enorme interesse em descobrir o
18
STEIN, Gertrude. Autobiografia de Alice B. Toklas. Tradução de Milton Persson. Porto Alegre: L&PM
Editores LTDA, 1984. p.97.
19
Ibidem, p.112.
100
que fazia de cada um aquele um e então eu escrevi um grande número
de retratos.
20
Mas o que faz cada pessoa ser o que ela é, segundo Stein, não são as histórias:
Todo o mundo ouve histórias mas o que fez cada um ser o que é não é
isso. Todo o mundo ouve histórias e sabe histórias. Como não
saberiam porque isso é o que qualquer um faz e que todo mundo
conta. Mas em meus retratos eu tentei contar o que cada um é sem
contar histórias e agora em minhas pas eu tentei contar o que
aconteceu sem contar histórias para que a essência do acontecido fosse
como a essência dos retratos, o que fez o acontecido ser o que é.
21
Nem as histórias, nem as descrições, portanto, que figuram em seus retratos, são
representacionais. Observe-se, por exemplo, este trecho do retrato de Braque (1913)
publicado em Geography and Plays. Dentre as seis páginas que comem o retrato, em
apenas dois parágrafos a autora parece estar se referindo mais diretamente ao objeto de
seu retrato:
Brack and neuresthenia and lean talk with a marvel and make a
spittoon clear with a mixing in a mustache. The sense is in that.
(...)
Brack, Brack is the one who put up the hooks and held the things up
and ate his dinner. He is the one who did more. He used his time and
felt more much more and came before when he came after. He did not
resemble anything more.
22
Neste caso, o nome do pintor foi transformado num som similar ao seu nome
real. Não há uma preocupação com a representação do artista, mas elementos que são
colados uns aos outros formando uma montagem de peças que se justapõem. Como num
retrato cubista, o objeto representado está ali, mas o como um objeto único e sim pela
sobreposição de elementos que o comem.
A lista de retratos inclui também o do escultor Michael Brenner (1885 -1969), de
origem lituana, que estudou em Paris, na Academia Julian, e que manteve, em seguida,
ao longo de toda a sua vida, um estúdio na Rue Lhomond 52, no Quartier Latin.
Brenner, responsável por um busto em bronze de Stein, foi também o responsável por
20
STEIN, Gertrude. “Plays” IN: Look at me now and here I am. Writings and Lectures. 1909-45. Edited
by Patricia Meyerowitz. Penguin Books. P.75 (a tradução é minha)
21
Ibidem, p.76-77.
22
STEIN, GertrudeBraque” In: STEIN, Gertrude. Geography and plays. With an introduction by
Cyrena N. Pondrom. Madison: The University of Wisconsin Press, 1993. p.145
101
algumas das primeiras publicações da escritora na revista "The Soil" da qual era diretor
de arte. Mas, ao se dedicar ao retrato do amigo, o foco de interesse de Stein teria sido,
segundo “Alice”, sua dificuldade em terminar suas obras. O que a levara a escrever para
ele um retrato também incompleto:
E Brenner, Brenner o escultor que nunca terminava nada. Tinha uma
cnica admirável e uma porção de idéias fixas que o impediam de
trabalhar. Gertrude Stein gostava e até hoje gosta muito dele. Uma vez
posou para ele semanas a fio e fez um perfil incompleto dele
simplesmente ótimo.
23
A característica de Brenner, de não conseguir terminar os trabalhos, ao invés de
simplesmente descrita em seu retrato, é reproduzida nele. Stein tenta capturar a figura a
ser retratada na própria forma da sua escrita. O retrato seria, neste caso, uma re-criação
de seu objeto, mais do que uma descrição dele. Neste sentido, pode-se dizer que é como
se o próprio retrato absorvesse nele a experiência de ser” o retratado.
ainda um outro retrato que merece comentário para caracterizar a “portrait
writingsteiniana. Refiro-me a The portrait of one (1913), que teria sido escrito por
Stein a fim de retratar um então desconhecido”. Alice Toklas e Gertrude Stein teriam
ido assistir ao balé “Sacre du Printemps”, de Stravinsky. Pouco antes de começar o
espetáculo, um desconhecido teria se juntado a elas em seu camarote:
Pouco antes de se iniciar o espetáculo, a quarta cadeira do nosso
camarote ficou ocupada. Nos viramos para ver e estava um rapaz
alto e atlético, que podia ser holandês, escandinavo ou americano,
usando uma camisa de gala toda pregueada na frente, cheia de
babados minúsculos. Era impressionante, nem sequer tínhamos ouvido
falar que camisas desse tipo estivessem na moda. Nessa mesma noite,
ao chegarmos em casa, Gertrude Stein escreveu uma descrão do
desconhecido intitulada Perfil de Alguém
24
.
O desconhecido retratado por Gertrude Stein seria posteriormente identificado.
Era Carl Van Vechten, que ficaria amigo de Stein e Toklas e teria direito, mais tarde, a
um segundo retrato intitulado Van or twenty years after. A second portrait of Carl Van
Vechten.
O primeiro retrato foi publicado em Geography and Plays sob o título de “One
(Van Vechten)”. Reproduzo aqui um trecho do texto:
23
STEIN, Gertrude. Autobiografia de Alice B. Toklas. Tradução de Milton Persson. Porto Alegre: L&PM
Editores LTDA, 1984. P.98.
24
Ibidem, p.115
102
One.
In the ample checked fur in the back and in the house, in the
by next cloth and inner, in the chest, in mean wind.
One.
In the best most silk and water much, in the best most silk.
One.
In the best might last and wind that. In the best might last and
wind in the best might last.
(...)
Two.
A touching white shinning sash and a touching white green
undercoat and a touching white colored orange and a touching piece
of elastic. A touching piece of elastic suddenly.
25
O desconhecido se transforma em personagem de Gertrude Stein em duas
versões. Em seu retrato e na descrição mais literal de sua aparão no camarote que é
feita na Autobiografia. Entre as duas formas de retratar, uma diferença. Na
Autobiografia, há uma narrativa do episódio. O desconhecido aparece no camarote, fica
até o final do espetáculo e se retira sem se apresentar. também uma breve descrição
da sua aparência física (“um rapaz alto e atlético, que podia ser holandês, escandinavo
ou americano, usando uma camisa de gala toda pregueada na frente, cheia de babados
minúsculos”). Já no retrato “One” não uma seqüência narrativa de acontecimentos ou
uma descrição sica. A figura do desconhecido é composta de cores (“white shinning” ,
white green”, “white colored orange”), tipos de tecido e peças de vestuário (“fur”,
cloth”, silk”, “sash”, “undercoat”, “elastic”). Os elementos são enumerados, mas não
são organizados no discurso de modo a compor uma imagem fixa da figura humana
retratada. É como se o texto fornecesse ao leitor os instrumentos para que o próprio
leitor compusesse a imagem. Temos as cores, algumas peças de roupa e tipos de tecido,
mas é preciso combinar as peças para que surjam diante dos olhos o retrato e a figura.
Some-se a isto a informação de que as cores são, na verdade, todas branco: “verde
branco”, “branco brilhante” e “branco colorido de laranja”. Todas as cores são brancas,
que se trata de um desconhecido e o que se sabe sobre ele é um vazio, um branco.
Assim como dentro deste “one” retratado, apenas “vento”: and inner in the chest in
mean wind”.
Os retratos, diante do interesse steiniano em descobrir “o que faz de cada um
aquele um”, visavam descrever não o exterior das pessoas, como elas eram por fora, ou
25
STEIN, Gertrude. “One (Carl Van Vechten)” In: STEIN, Gertrude. Geography and plays. With an
introduction by Cyrena N. Pondrom. Madison: The University of Wisconsin Press, 1993. Pp.199 - 200.
103
como pareciam ser, mas aquilo que fazia delas o que elas eram. No caso do
desconhecido retratado, Stein se na impossibilidade absoluta de descrever qualquer
característica pessoal, já que ela, na verdade, conhece apenas sua aparência exterior.
Então, o que se pinta neste retrato é um fantasma em branco, cujo interior é vento. Neste
texto, então, Stein experimenta criar o retrato de alguém desconhecido. Na
impossibilidade de acentuar alguma característica, seu personagem acaba por
assemelhar-se a um fantasma feito de vento por dentro, a uma negação do retrato, a um
“none”:
One.
None in stable, none in ghosts, none in the latter spot.
26
Mas, antes de entrar na análise de suas peças, gostaria ainda de observar um
último retrato. O do pintor inglês (1870-1948) Harry Phelan Gibb, que viveu alguns
anos em Paris, e se tornaria amigo da escritora, recebendo, com freqüência, ajuda
financeira sua em momentos de dificuldades. Este retrato foi traduzido para o português
por Augusto de Campos e eu o cito aqui na sua tradução integral:
Um retrato de um Harry Phelan Gibb
Algum um sabendo que tudo é saber que algum um é alguma
coisa. Algum um é alguma coisa e está conseguindo está conseguindo
esperar essa coisa. Está sofrendo.
Está conseguindo esperar e esconseguindo dizer que isso é
alguma coisa. Está sofrendo essofrendo e conseguindo esperar que
conseguir dizer que está conseguindo esperar é alguma coisa.
Está sofrendo, está esperando, está conseguindo dizer que
qualquer coisa é alguma coisa.
Está sofrendo, está esperando, es conseguindo dizer que
alguma coisa é alguma coisa. Está esperando conseguir esperar que
alguma coisa seja alguma coisa. Está esperando conseguir dizer que
es conseguindo esperar que alguma coisa seja alguma coisa. Está
esperando conseguir dizer que alguma coisa é alguma coisa.
27
Neste retrato, a autora não fornece dados para a construção de uma imagem
visual da aparência do retratado, mas retrata” a espera e o sofrimento de seu amigo.
Traça um perfil de sua espera, não o perfil de alguém, de um interior ou exterior. Mas o
meio escolhido por Stein para expor o retratado é o que importa observar. Mais uma vez
26
Ibidem, p.199 (“Um. / Nenhum em estável, nenhum em fantasmas, nenhum no último lugar”).
27
STEIN, Gertrude. Um retrato de um Harry Phelan Gibb. Tradução: Augusto de Campos. Jornal Folha
de São Paulo, 21/07/1996.
104
o é feita uma descrição literal da angústia, mas o próprio mecanismo de repetição de
palavras e frases, que variam minimamente, impõe ao texto um ritmo que se assemelha
à anstia da espera em si. O retrato de alguém que espera acaba por se constituir num
retrato da própria espera. A escrita no tempo presente contribui ainda mais para a
criação, no ato da leitura, de uma espécie de presentificação da espera. O leitor é
convidado a ter a experiência da espera do retratado no momento mesmo da leitura. A
sua experiência de espera sobrepõe-se à do retratado.
Tanto no retrato de um desconhecido, quanto no retrato de Harry Phelan Gibb, o
personagem retratado é “pintado” no decorrer da leitura. O ato da leitura como que
torna presente de novo o da escrita, no que concerne a composição das figuras. Se,
numa cena teatral, os personagens e as situações se presentificam diante de uma platéia,
nos portrait writings” steinianos são as figuras retratadas que se concretizam diante dos
olhos do leitor no momento da leitura.
A PEÇA-PAISAGEM
Passo, então, à análise da relação entre escrita e experiência em algumas das
peças de Gertrude Stein. Em primeiro lugar, é interessante observar que em suas
peças a presea de personagens e frases colhidos diretamente da vida real, o que
confere a estes textos imediata referência biográfica. Wendy Steiner chega mesmo a
classificar a peça A seguir. Vida e cartas de Marcel Duchamp como uma biografia. Isso
apesar de afirmar também que este texto, junto com The life of Juan Gris. The life and
death of Juan Gris (1927), estaria, em sua opinião, mais próximo do retrato (os dois
textos representando estilos diversos de retrato) do que das biografias propriamente
ditas, como a que Gertrude Stein fez de Pablo Picasso, em seu livro Picasso.
Mas o que estarei tematizando aqui são as peças e, para exemplificar a tentativa
de Stein de trazer para sua dramaturgia elementos do cotidiano, da vida real, cito
comentário de Julio Castañon Guimarães que, na introdução às suas traduções de cinco
peças curtas de Stein, alerta o leitor para o fato de que os textos de Gertrude Stein são
“muitas vezes carregados de referências a fatos reais, às vezes de sua vida doméstica”,
essas referências podendo “ser cifradas, de modo que são perceptíveis se
acompanhadas de informações específicas”, ou podendo “ocorrer simplesmente”, como
105
no caso da “menção de determinado nome (por exemplo, numa das peças, surge o nome
Polybe, que era o nome de um dos cachorros de Gertrude Stein)”
28
.
Alem da menção ao nome de seu cachorro Polybe, que aparece na peça Capitão
Walter Arnold. Uma peça, há, em meio ao conjunto de textos traduzidos por Guimarães,
outros exemplos facilmente identificáveis. É o caso de um trecho de O rei ou alguma
coisa (convida-se o público a dançar) (1917). Esta é uma peça toda dividida por
números de páginas. Não personagens aparentes e as “falas” seriam ditas (pode-se
supor) pelas páginas que se seguem. O trecho que seria a “fala” da página XXIV revela-
se bastante autobiográfico:
Página XXIV
Havia uma pequena refeição de maçã.
Por um bebê que está molhado.
Molhado de beijos.
Havia uma boa vaca grande fora.
Fora de um bebê gordo como uma
senhora.
Gordo de beijos.
Haverá uma boa vaca fora.
Fora de um bebê sem dúvida ora.
Nem ela também cobriu de beijos.
Ela e bocejos.
É isto.
29
Carl Van Vechten, em sua introdução para o último volume de peças de
Gertrude Stein, Last operas and Plays, nos conta que “Baby” (bebê, na tradução de
Guimarães) era o apelido que ele usava para chamar sua amiga Gertrude Stein. Graças à
biógrafa Diana Souhami, sabemos que, dentre os vários apelidos usados por Alice para
Gertrude Stein, está: “Gorducha”. A frase “bebê gordo como uma senhora”, neste caso,
parece referir-se, portanto, à própria Gertrude Stein. A menção a “vacas” também é um
indício de citão autobiográfica, pois “vacas”, diz Souhami, “de acordo com as teorias
dos especialistas nos irmãos Stein, significavam orgasmos”:
Gertrude fez diversas referências a elas em seus textos. (...) Gertrude
descreveu uma de suas histórias, A book concluding as a wife has a
cow. A love story, como seu Tristão e Isolda”.
30
28
GUIMARÃES, Júlio Castañon. Gertrude Stein. In: O Percevejo: revista de Teatro, Crítica e Estética.
Ano 8. N.9. 2000. Departamento de Teoria do Teatro. Programa de Pós-Graduação em Teatro. UNIRIO.
P.238.
29
STEIN, Gertrude. O Rei ou alguma coisa (convida-se o blico a daar) tradução de Júlio Castañon
Guimarães In: O Percevejo: revista de Teatro, Crítica e Estética. Ano 8. N.9. 2000. Departamento de
Teoria do Teatro. Programa de Pós-Graduação em Teatro. UNIRIO.
106
Uma pequena investigação biográfica como esta leva a uma leitura bastante
diferenciada da estrofe citada. Este é um dentre inúmeros exemplos de inserções
biográficas cifradas ou não em seus textos. Nem todas elas, entretanto, são fáceis de
identificar.
Há, também, uma peça que pode ser considerada como um retrato da vida
cotidiana de Alice Toklas e Gertrude Stein. Trata-se de Contando os vestidos dela, peça
referida anteriormente neste estudo, que é dividida em “partes”, sendo que cada parte
é subdividida em atos. Para cada ato correspondem ou uma ou duas frases. Não
nenhuma outra indicação didascálica no texto, o que leva à suposição de que os atos
seriam os enunciadores das falas. Transcrevo um trecho da peça para observação de seu
conteúdo autobiográfico:
PARTE XXXVII
ATO I
Conta os vestidos dela.
ATO II
Coleciona os vestidos dela
ATO III
Limpa os vestidos dela.
ATO IV
Eis o sistema.
PARTE XXXVIII
ATO I
Ela poliu a mesa.
ATO II
Conta os vestidos dela novamente.
ATO III
Quando você pode vir.
ATO IV
Quando você pode vir.
Cito, a título de exemplo, estas duas partes, pois acredito que estas frases
resumem parcialmente a organização doméstica da vida de Alice Toklas e Gertrude
Stein. passagens na Autobiografia de Alice Toklas que dão a entender que Toklas
30
SOUHAMI, Diana. Gertrude and Alice. Tradução Irene Cubric, Rio de Janeiro: José Olympio, 1995.
P.103
107
seria a responsável pelos afazeres domésticos. Na Autobiografia, é a própria Alice-
narradora que resume, assim, suas funções caseiras:
Sou muito boa como dona-de-casa, como jardineira, como
bordadeira, como secretária, como editora e como veterinária e
tenho que fazer tudo isso ao mesmo tempo.
31
Na Autobiografia de todo mundo, Gertrude Stein conta que, em Chicago, as duas
teriam ficado hospedadas em um apartamento cedido a elas por Thornton Wilder. A
organização da casa e dos afazeres é explicada por Stein:
Eu deveria escrever quatro conferências e Alice Toklas deveria
manter a casa arrumada em Chicago e era para que tudo fosse
muito agradável e foi.
32
Ao final deste parágrafo se poderia perfeitamente acrescentar a frase de
Contando os vestidos dela: Eis o sistema”. Além de revelar o cotidiano íntimo da
dupla, a peça é quase que inteiramente escrita em forma de diálogo, supondo a
existência de duas vozes que conversam. Estas conversas curtas sobre assuntos variados
que, por vezes, parecem pertencer a um contexto que não está explicitado nas peças,
lembram uma colagem de falas. E servem de exemplo do cut-up method” steiniano,
estudado, dentre outros autores, por Norman Weinstein, em seu texto “Play as
landscape”, no qual trata do método dramatúrgico de Stein na peça Four saints in three
acts:
Cortes ou trechos de conversações cotidianas foram removidos
dos seus discursos inteiros e arranjados arquitetonicamente.
33
Tais pedaços de conversas cotidianas podem ser identificados não em Four
saints in three acts, mas também em Contando os vestidos dela, como nesta passagem:
PARTE XXXI
31
STEIN, Gertrude. Autobiografia de Alice B. Toklas. Tradução de Milton Persson. Porto Alegre: L&PM
Editores LTDA, 1984. P.208.
32
STEIN, Gertrude. Autobiografia de todo mundo. Tradução de Júlio Castañon Guimarães e José
Cerqueira Cotrim Filho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, p.277.
33
WEINSTEIN, Norman. “Four Saints in three acts: play as landscape” In: BLOOM, Harold (ed.)
Gertrude Stein. Modern Critical Views. NY, Philadelphia, Chelsea House Publishers, 1986. P.116. (a
tradução é minha).
108
ATO I
Reflita mais.
ATO II
Eu quero mesmo um jardim.
ATO III
Você quer.
ATO IV
E roupas.
ATO V
Eu não menciono roupas.
ATO VI
Não você não mencionou mas eu mencionei.
ATO VII
É eu sei disso.
34
Se a observação deste trecho leva apenas à suposição de que as frases seriam
extraídas de diálogos cotidianos, uma frase em outra peça de Gertrude Stein que, se
sabe, teria mesmo sido dita por um amigo e reutilizada por Stein. Segundo uma carta
escrita por Jo Barry e reproduzida por Carl Van Vechten, em seu texto introdutório a
Last operas and Plays, o personagem Jo the Loiterer da peça The mother of us all, teria
sido inspirado nele próprio.
Observemos o trecho da carta na qual se explica o nome do personagem:
Vopode estar interessado na origem do nome de Jo the Loiterer:
Gertrude Stein estava inserindo algumas das pessoas que ela conhecia
(...) e me perguntou o que eu queria. Eu disse que eu queria vagar pelo
palco e falar comigo mesmo, enquanto Susan B. e Daniel W.
discursam um para o outro. Então o personagem ficou sendo por um
tempo Jo the Wanderer (Jo o vagante). Então eu contei a ela sobre
quando eu fui preso em Ann Arbor na universidade por fazer piquete.
Mas a acusação foi vadiagem! (loitering) Não havia nenhuma lei
contra fazer piquete. Eu fui julgado culpado e fiquei na prisão por uma
noite. Foi que eu disse: qualquer um pode ser chamado de vadio!”
35
34
STEIN, Gertrude. Contando os vestidos dela. Uma peça. Tradução de Inês Cardoso Martins Moreira.
Rio de Janeiro: Viveiros de Castro Editora, 2001.
35
VECHTEN, Carl Van. “How many acts are there in it?” In: Stein, Gertrude Last operas and Plays.
Edited and with an introduction by Carl Van Vechten. New York: First Vintage Books Editions, 1975.
P.XI (a tradução é minha)
109
Com uma variação, a frase de Jo Barry - Any one can be called a loiterer
(Qualquer um pode ser chamado de vadio) - é repetida por Jo the Loiterer na peça:
Anybody can be accused of loitering
36
(Qualquer um pode ser acusado de vadiagem).
Esta anedota é bastante reveladora do quanto Gertrude Stein não se inspirava
na vida real, como se permitia colher, na realidade, no seu dia a dia, fatos, personagens
e situações. The mother of us all, por exemplo, põe em cena pessoas reais muito
próximas a ela, tais como o compositor Virgil Thompson, a dramaturga Constance
Fletcher e Donald Gallup, bibliógrafo e colecionador que Stein conheceu em Paris,
quando ele ficou sediado em 1944, para citar apenas alguns nomes. E a peça tem
como personagem central a figura de Susan Brownell Anthony (1820-1906), que,
depois da guerra civil americana, reivindicando também salário igual para trabalho
igual, lutou, de modo pacífico, pelo direito de voto para as mulheres e para os negros
nos Estados Unidos. Ela foi, também, a primeira pessoa, naquele país, a ser presa e
julgada, em novembro de 1872, sem que pudesse falar em sua autodefesa, por votar
ilegalmente, recusando-se, todavia, a cumprir a sentença e pagar "um lar sequer de
uma penalização injusta". Não o nome da personagem, Susan B., foi utilizado, mas
também partes de alguns de seus discursos foram transcritas para a peça, segundo anota
Jane Palatini Bowers
37
. No entanto, os demais personagens da peça, que contracenam
diretamente com Susan B., não tiveram qualquer relação com a personagem real. São,
antes, figuras que freqüentaram o cotidiano de Stein.
De modo que Gertrude Stein não se preocupa em fazer da peça uma biografia
fiel da Susan B. verdadeira. Em sua peça, a ativista é inserida, junto com seus discursos
e seus ideais, em um contexto dramatúrgico que difere daquele que seria adequado a
uma representação fiel da história. Ao rodear sua personagem histórica por figuras que
pertencem a outra realidade, a outro tempo, o da própria Stein, vai-se notando, por outro
lado, que a escritora estaria mesclando sua própria personalidade à da figura histórica
tematizada. Embora Alice Toklas, em carta enviada a Carl Van Vechten, o tenha
alertado que Stein nunca teria “sentido” que Susan B. era ela mesma, Van Vechten
lembra que, quando a peça foi apresentada, muitos dos presentes identificaram Susan B.
a Gertrude Stein:
36
STEIN, Gertrude. “The mother of us all” In: Stein, Gertrude Last operas and Plays. Edited and with an
introduction by Carl Van Vechten. New York: First Vintage Books Editions, 1975. P.55
37
BOWERS, Jane Palatini. They Watch Me As They Watch This : Gertrude Stein's Metadrama. University
of Pennsylvania Press, 1991.
110
Os paralelos entre as carreiras de Miss Stein e Miss Anthony são
óbvios; em alguma medida eles não são de maneira nenhuma secretos.
No movimento final quando a estátua de Susan B., desvelada no Halls
of Congress reflete sobre sua “longa vida", sua "longa longa
vida”, que se lhe revela um tormento “não para o que foi ganho mas
para o que foi feito”, fica muito evidente que muito do que Gertrude
Stein escreveu sobre Susan B. nesta peça, concluída pouco antes de
sua morte, pode muito bem ser aplicado à própria autora.
38
Mais uma vez, a autora se mescla à sua personagem, como havia acontecido
na sobreposição da perspectiva steiniana à da Alice Toklas fictícia que narra a
Autobiografia. E elementos que as aproximam: não a nacionalidade, a capacidade
de afirmação num campo em que a presença feminina era pouco estimulada (a literatura,
o ativismo político), como também o fato de ambas terem sido objeto freqüente de sátira
e ridicularização em charges, paródias e ataques diretos por parte da imprensa potica
ou cultural. Outro aspecto curioso é o fato de, depois de 1850, quando as duas se
conhecem, Susan B. Anthony ter passado a contar com Elizabeth Cady Stanton (1815-
1902), como companheira inseparável”, na luta pela emancipação feminina. A dupla
oitocentista Susan B. Anthony e Elizabeth Cady” espelharia, de certa forma, a outra,
mais moderna, constituída por Alice B. Toklas e Gertrude Stein.
Há ainda uma outra coincidência que liga as duas personalidades em The mother
of us all. O pai de Susan B. chamava-se Daniel, assim como o da própria Stein. Lembre-
se que o pai de Susan B., Daniel Anthony, também contrário à escravidão, exerceu
papel muito importante na formação e na independência futura da filha. Acreditando
que as mulheres deviam receber toda a educação que desejassem, construiu uma escola
num dos quartos da própria casa para o ensino dos seus filhos e de outras crianças
interessadas. Quanto a Daniel Stein, judeu alemão levado para a América ainda criança,
o que se sabe, a seu respeito, de fundamental, é que se tratava de homem dominador,
que se mudou diversas vezes, carregando a família para a Áustria, a França, e, de volta
para os Estados Unidos, graças a uma grande capacidade de empreendimento, e a
investimentos em linhas férreas, geridos depois pelo filho Michael, deixaria seus filhos
em situação financeira segura por toda a vida, permitindo a Gertrude Stein, por
exemplo, dedicação em tempo integral à literatura. Stein aproveita-se, então, da
identidade de nomes entre o seu pai e o de Susan B. Anthony para inserir na primeira
38
VECHTEN, Carl Van. “How many acts are there in it?” In: Stein, Gertrude Last operas and Plays.
Edited and with an introduction by Carl Van Vechten. New York: First Vintage Books Editions, 1975
p.XII (a tradução é minha).
111
cena de The mother of us all uma personagem que se chama G.S. e que, em suas duas
únicas falas na peça, tem por função descrever o próprio pai.
Na sua primeira intervenção, G.S. diz:
My father name was Daniel, Daniel and a bear, a bearded Daniel, not
Daniel in the lion’s den not Daniel, yes Daniel my father had a beard
my father’s name was Daniel.
39
E em sua outra fala reafirmaria:
My father name was Daniel he had a black beard he was not tall not at
all tall, he had a black beard his name was Daniel.
40
Nestas duas falas, então, a autora faz de si mesma personagem da peça. Apesar
de o pai da verdadeira Susan B. chamar-se Daniel, a Susan B. fictícia de Gertrude Stein
afirma, numa fala no prólogo da peça, que seu pai não se chamava Daniel. Com as
frases ditas por G.S. e por Susan B. referentes aos seus respectivos pais, Gertrude Stein
estabelece uma conexão entre autora e personagem. Mas a estabelece aí por negação. O
nome do pai de Susan o é Daniel. Mas o próprio fato de Stein inserir-se na peça,
comentando o nome de seu pai, cria entre ela e sua personagem uma unidade que, no
entanto, é paradoxalmente rompida quando Susan B. diz que o nome de seu pai não é
Daniel.
Seria possível citar, ainda, nessa breve amostragem, mais um último exemplo no
qual a voz da autora se faz presente numa de suas peças. Trata-se da peça Do let us go
away (1916), na qual, diversamente do que acontece em Contando os vestidos dela,
onde as falas parecem ditas pelos “Atos” da peça, personagens talvez mais
convencionais, com figuras de mais fácil reconhecimento, mais nítidas. Neste texto,
aparentemente de leitura mais regular, há rubricas que indicam entre parênteses os
nomes dos personagens que devem falar as linhas que se seguem a elas. Mas, ao final do
texto, depois que a autora encerra a peça com a expressão “the end”, surge ainda uma
última “fala”, mas sem qualquer indicação de enunciador:
39
(“O nome do meu pai era Daniel, Daniel e um urso, um Daniel barbudo, não Daniel na caverna do leão
não Daniel, sim Daniel meu pai tinha uma barba o nome do meu pai era Daniel.”)
40
STEIN, Gertrude. “The mother of us all” In: Stein, Gertrude Last operas and Plays. Edited and with an
introduction by Carl Van Vechten. New York: First Vintage Books Editions, 1975. P.53 (“O nome do
meu pai era Daniel ele tinha uma barba preta ele não era alto nem por alto alto, ele tinha uma barba preta
o nome dele era Daniel.”).
112
Yes I have a brother.
Sitting at a café.
41
Provavelmente se referindo a um dos dois irmãos com quem ela tinha uma
relação mais próxima, Gertrude Stein insere nestas últimas frases da peça, que
extrapolam até mesmo o final do texto, a sua própria voz de autora, como se ela fosse
um de seus personagens. Como uma voz dentro-e-fora da peça.
Mas o é apenas na presença de dados biográficos ou autobiográficos que se
exe a relação entre escrita e experiência nas peças de Gertrude Stein. Como voltarei a
destacar diversas vezes nesta tese, ainda uma preocupação, por parte da autora, em
fazer com que suas peças se desenrolem num constante tempo presente, que não supõe
passado ou futuro. Seus personagens invariavelmente precisam reafirmar as próprias
identidades, como se houvesse para eles o momento da cena, de forma a o
conseguirem reter as informações passadas. É o que acontece, por exemplo, com as
personagens de Três irmãs que não são irmãs, que, depois de se apresentarem para o
público no início da peça, repetem incessantemente, em seguida, que são irmãs que o
são irmãs, como se esta informação se perdesse caso não fosse reiterada a cada instante.
Wendy Steiner comenta, com precisão, esta questão da relação entre imediatez e
memória no teatro steiniano em seu livro Exact resemblance to exact resemblance:
O que tinha de início impressionado a ela [Gertrude Stein] com
relação ao drama era que a emoção do público estava sempre à frente
ou atrás da ação no palco. Ela chama a isso uma ncope
42
(“syncopation) (Plays, p.93) da emoção do público com a ação da
cena. Sendo uma escritora profundamente mimética, ela achou esta
discrepância temporal esteticamente sem gosto, e uma das
considerações mais importantes na sua própria dramaturgia se tornou
a manutenção de uma unidade completa entre a ação imediata no
palco e a experiência do público. Stein comentou sobre uma peça mais
tarde como algo que eu não vejo mas é algo que alguém consegue
ver isso é o que faz uma peça para mim” (Everybody’s
Autobiography, p.193). Este acento na visão é vital, pois implica uma
relação direta e imediata entre o público e o que ele vê, sem a
participação da meria ou da antecipação.
43
41
STEIN, Gertrude “Do let us go away In: STEIN, Gertrude Geography and Plays (1908-20). The Four
Seas Company: Boston, 1922 (Introduction by Sherwood Anderson) p.226. (“Sim eu tenho um irmão. /
Sentado num café).
42
Síncope: padrão rítmico em que um som é articulado na parte fraca do tempo ou compasso,
prolongando-se pela parte forte seguinte. (Dicionário Houaiss).
43
STEINER, Wendy. Exact resemblance to exact resemblance. The literary portraiture of Gertrude
Stein. New Haven and London: Yale University Press. 2
nd
printing, 1979. (a tradução é minha)
113
Como já foi observado, Gertrude Stein expõe, em seu texto “Plays”, uma extensa
reflexão sobre o teatro. A seu ver, uma peça não deveria contar histórias. Pois já que
tantas histórias e todo mundo conhece tantas”, não haveria utilidade em se contar mais
histórias ainda, no teatro. Na medida em que seu raciocínio vai se desdobrando neste
texto, Stein acaba por concluir que uma peça é exatamente como uma paisagem. Pois
numa paisagem os elementos estão lá, e estão em relação uns com os outros, e mais:
pois uma paisagem não conta uma história. Wendy Steiner anota, a respeito dessa
analogia, que:
Os elementos da paisagem não têm uma vida interior, uma identidade
ou história que possam levar o leitor para fora da experiência imediata
da paisagem como um todo.
44
Ao eliminar da peça o enredo, a história e personagens carregados de
subjetividade, passado, biografia, e ao passar a identificar uma peça à idéia de
paisagem, Gertrude Stein teria então atingido seu objetivo de fazer da experiência de se
assistir a uma peça, um momento no qual a emoção do público e os eventos no palco
estarão comprometidos apenas com o presente no qual se desenrola a ação. Se o
história a ser contada, o espectador não precisa se preocupar com a memória do que se
passou no palco, nem com a antecipação do que virá a acontecer. O espectador apreende
o momento como um todo, assim como o observador de uma paisagem.
Pois, conforme lembra Wendy Steiner:
Uma peça para Stein não tem enredo, é pura atividade visível.
45
Esta ntese feita por Steiner do que seria uma peça para Gertrude Stein também
poderia ser aplicada a uma paisagem: “sem enredo, ela é pura atividade visível”. Esta
noção do teatro como um lugar (uma paisagem é, afinal, um lugar) no qual os elementos
se relacionam uns com os outros sem contar histórias sugere a idéia de uma pintura em
movimento. Ou do ato mesmo de pintar visto não como um processo que teria como
objetivo produzir um quadro, uma obra, mas do ato de pintar como um fim em si
mesmo. O próprio ato sendo a obra. O palco seria uma tela em branco e os elementos
44
Ibidem, p.173.
45
Ibidem, p.172
114
que comporiam a peça: cenários, entradas e saídas de atores ou objetos, palavras ditas
em cena, luz etc. seriam os instrumentos, as cores que “pintariam” o quadro em
movimento.
Mas ainda um outro tipo de movimento que intercepta a estabilidade dos
gêneros trabalhados por Gertrude Stein, e comentados neste capítulo. É o movimento da
própria escrita steiniana que tende a forçar os limites de cada um destes gêneros.
Gertrude Stein faz questão de identificar a que gênero pertence cada texto seu. Suas
peças, na sua maioria, contêm ainda no tulo, como se viu, a informação de que são
peças, assim como os títulos de muitos de seus retratos indicam o gênero ao qual
pertencem. No entanto, essa etiquetagem muito freqüentemente se auto-contradiz. Um
gênero interfere no outro. E desloca os limites do outro.
Suas autobiografias possuem características de ensaio, já que nelas a autora
exe reflexões sobre os mais variados temas. Algumas de suas peças também se
assemelham a ensaios (é o caso de Byron. A play” [1933], por exemplo. A própria
peça é uma reflexão sobre a escrita de uma peça) ou a biografias (como já foi
mencionado com relação a “A seguir. Vida e cartas de Marcel Duchamp”). Por outro
lado, seus ensaios são pontuados por informações autobiográficas (para expor suas
idéias sobre teatro em Plays”, Stein traça um histórico de sua própria experiência com
peças teatrais e conta até mesmo quais são as lembranças que guarda dos primeiros
espetáculos que viu ainda criança). Ao forçar os limites dos gêneros e ao romper
fronteiras que os separam uns dos outros, mesclando suas características, Gertrude Stein
estaria criando um constante campo de experimentação onde sua escrita atua num
movimento permanente, onde sua escrita também se presentifica como paisagem em
movimento.
115
CAPÍTULO IV
“No lugar no lugar de tudo, num lugar”:
Anotações sobre o espaço
116
Cortina, movimento e relação.
Começo essa reflexão sobre o espaço teatral na obra de Gertrude Stein com um
comentário do encenador americano contemporâneo Richard Foreman:
Para fazer teatro, tudo o que você precisa é de um espaço definido e
coisas que entram e saem desse espaço. Você poderia até fazer uma
peça sem ator. Uma jarra poderia ser jogada dentro de um espaço
vazio, e um minuto mais tarde uma vara vinda de fora da cena poderia
empurrar esta jarra alguns metros à frente. Isso funcionaria como
teatro.
Teatro é presença e ausência. Alguém ou alguma coisa está ou em
cena ou fora dela.
1
Para Richard Foreman, portanto, teatro é feito de entradas e sdas, presenças e
ausências. Mas, para estabelecer essas presenças e ausências, há que se ter antes de tudo
um espaço definido”. Isto é: o “espaço da representação”. E, ao se delimitar este
espaço, haverá sempre um fora e um dentro dele. Haverá sempre presença e ausência.
Peter Brook concebe de forma semelhante os elementos essenciais para se ter uma
ação dramática”:
Posso escolher qualquer espaço vazio e conside-lo um palco nu. Um
homem atravessa este espaço enquanto outro o observa.
Isto é suficiente para criar uma ação dramática.
2
Às entradas e saídas propostas por Foreman, Brook acrescenta a presença do
público como elemento necessário e não admitiria, também, segundo o trecho citado, a
ausência do ator em cena. Mas ambos concordam que deve haver a delimitação de um
espaço. Gertrude Stein, no seu ensaio “Plays”, tematizado aqui noutros capítulos, e no
qual ela expõe diretamente suas idéias sobre teatro, adota perspectiva distinta. E observa
que uma peça teatral seria, a seu ver, como já assinalei anteriormente, “exatamente
como uma paisagem”
3
. Mas será preciso voltar, ainda uma vez, ao início do raciocínio
1
FOREMAN, Richard. Unbalancing acts. Foundations for a theater. Edited by Ken Jordan. Foreword by
Peter Sellars. Theatre Communications Group. New York. p.9
2
BROOK, Peter. O teatro e seu espaço. Tradução de Oscar Araripe e Tessy Calado. Editora Vozes:
Petrópolis, 1960. p.1
3
STEIN, Gertrude. “Plays” IN: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The Library of
America, 1998. P.263.
117
de Stein para compreender o que esse comentário significa em termos de conceituação
espacial e qual a relação que ela de fato estabelece entre teatro e paisagem.
Stein parte, neste ensaio a respeito de sua experiência particular com o teatro, de
uma sensação habitual de desconforto que a acompanhava ao assistir a qualquer
representação teatral, a qualquer peça mesmo. O desconforto adviria do fato de que,
observa ela, haveria dois tempos presentes necessariamente na representação. O da
própria representação cênica e o da sua recepção imediata. E o andamento da emoção
no palco estaria sempre em descompasso com o andamento da emoção sentida pelo
público diante da representação que se desenrola à sua frente. Isso se daria por vários
motivos, que vão sendo apresentados, aos poucos, pela autora. A começar da presença
mesma da cortina nos teatros.
Sobre este primeiro elemento, na verdade um fator espacial, mas com função de
delimitação temporal, assinala Stein:
Em primeiro lugar no teatro a cortina e a cortina faz com que
uma pessoa sinta que não vai ter o mesmo “tempo” que a coisa que
esatrás da cortina. A sua emoção de um lado da cortina e o que
esdo outro lado da cortina não vão estar caminhando juntas. Uma
estará sempre atrás ou à frente da outra.
4
A preocupação da autora concernente à presença da cortina e à separação que ela
estabeleceria entre o que está de um lado ou de outro, entre quem está à frente ou atrás,
a levaria a trabalhar à exaustão as subidas e descidas da cortina em algumas de suas
peças. Como, por exemplo, em “Listen to me” (1936), na qual se contam 34
movimentos da cortina. E, neste caso, além de a cortina ter se transformado em
elemento narrativo característico, já num momento bem próximo ao final da peça, Stein
aproveitaria para declarar por que, na verdade, gostava da cortina a ponto de
presentificá-la de tal maneira:
Eu gosto da cortina porque a cortina tem sempre a cortina para ver. Se
você vê a cortina então qualquer um pode ver que atrás dela não é um
dois três.
5
4
“In the first place at the theatre there is the curtain and the curtain already makes one feel that one is not
going to have the same tempo as the thing that is there behind the curtain. The emotion of you on one side
of the curtain and what is on the other side of the curtain are not going to be going on together. One will
always be behind or in front of the other.” Ibidem, p.245.
5
“I like the curtain because a curtain has always a curtain to see. If you see the curtain then anybody can
see that after it it is not one two three.” STEIN, Gertrude.“Listen to me” In: STEIN, Gertrude Last operas
118
A menção à contagem aritmética tradicional, a um dois três”, evidenciando aí
uma temporalidade narrativa linear com a qual Stein procura romper, no caso desta
peça, por intermédio de um excesso de descidas e subidas da cortina. A cada movimento
se instauraria um novo começo, e não uma seqüência do movimento anterior. Depois de
um”, não se acharia o dois”, e em seguida o “três”, como de hábito. As interrupções e
novos começos fazendo com que depois de “um” venha um outro “um”, em que tudo se
inicia novamente. Exemplifico com um curto trecho da peça, em que quatro
movimentos da cortina:
Curtain.
Action just as so which is so
Curtain.
Any one counting to-day does not count once a day. This is what
Lilian would say if Sweet William were not in the way.
Sweet Willian cannot go away. How can Sweet William stay if they
are or are not counting to-day.
In no way is every day a part of speech
Curtain.
Sweet William remarkably cannot go away.
Curtain.
6
Ainda tratando da cortina e de números, Stein escreve uma peça bastante curta,
com o título de A curtain raiser
7
, já mencionada brevemente neste trabalho. , amplia-
se, de modo evidente, o significado da palavra mesma cortina”, que passa a o ser
mais apenas aquilo que separa cena e platéia. Transcrevo a peça na íntegra para que se
possa aval-la melhor. Note-se que a seqüência de números aqui não obedece a uma
ordem cronológica. E, deste modo, os números funcionam como unidades numéricas
isoladas, e não como elementos que fazem parte de uma seqüência cronológica linear:
UMA CORTINA
Seis.
Vinte.
Ultrajante.
Atrasado,
Fraco.
and plays. Edited and with an introduction by Carl Van Vechten. New York: First Vintage Books
Editions, 1975. p.421.
6
idem. p.400
7
STEIN, Gertrude. Geography and Plays. (Introduction by Sherwood Anderson). The University of
Wiscosin Press: Wisconsin, 1993 (Introduction by Sherwood Anderson), p.202.
119
Quarenta.
Mais em qualquer umidade
8
.
Sessenta e três certamente.
Cinco.
Dezesseis.
Sete.
Três.
Mais metódico. Setenta e cinco.
9
A expressão curtain raiser”, traduzida por “cortina”, na versão em português
do Dicionário de Teatro de Patrice Pavis, significa:
Peça (geralmente em um ato) representada com o espetáculo
principal, em relação ao qual muitas vezes ela é tematicamente
diferente (farsa antes da tradia).
10
No Brasil, o termo “cortina” significava também, nos espetáculos de revista, um
número que acontecia na frente da cortina com o objetivo de entreter o público enquanto
o cenário era trocado. Se pensarmos na expressão em inglês, ou mesmo na sua tradução
para francês, lever de rideau”, percebe-se que ela aponta para a idéia de uma peça que
“levanta a cortina”, ou “abre a cortinae que, portanto, aconteceria na frente da cortina.
Antes da sua abertura, portanto. Stein não revela no texto se os números devem ser
falados em cena ou se totalizam a quantidade de personagens que se encontram no
palco, como numa rubrica. Ou se indicam a observação, por parte da Cortina, dos
próprios movimentos a que é submetida. Ou do que diante de si. Fica a cargo do
leitor da peça fazer sua própria interpretação.
Outra leitura possível poderia ser a de que se trata da contagem mesma do
tempo. E, neste caso, a peça seria escrita tomando como ponto de vista o olhar do
espectador, que contaria a variação de tempo da peça e comentaria a cena com as
expressões ultrajante”, “fraco”, “metódico”. A expressão atrasado” remetendo, neste
8
No original em inglês a frase é: more in any wetness. A tradução literal parece sem sentido, mas há uma
expressão “he is wet behind the ears” que significa “é ainda inexperiente”. Há uma outra “wet with tears”
que significa “lacrimoso”. Stein pode estar jogando com alguma destas acepções para a palavra wet.
Considerando que as outras expressões usadas ao longo do texto são adjetivos, “ultrajante”, “atrasado”,
“fraco”, esta expressão poderia ser traduzida por “lacrimoso” ou “inexperiente”. Optei, no entanto por
manter uma tradução literal da frase.
9
Conferir originais e referencias no anexo Traduções.
10
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução para a língua portuguesa sob a dirão de J. Guinsburg
e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999. p.76
120
caso, mais especificamente ao problema ao qual se dedicava Stein no começo do ensaio
Plays”, o do descompasso entre as emoções do público e as da cena.
Outro aspecto que comprometeria, segundo Stein, a sincronização entre o
andamento das emoções de quem e o andamento daquilo que está sendo visto seria a
maneira pela qual os personagens geralmente são apresentados ao público. E Gertrude
Stein faz uma distinção crucial, nesse sentido, no seu ensaio “Plays”, entre o que seria
uma cena excitante na vida real e o que seria excitante no teatro. Na vida real, segundo
ela, uma cena excitante é excitante se os personagens são conhecidos. A cena se
torna excitante para quem a ou toma parte nela quando os personagens, já
previamente conhecidos, atuam de modo estranho, desconhecido:
Sim seria, seria praticamente impossível numa cena real haver uma
cena realmente excitante se todos fossem estranhos porque geralmente
falando é a contradição entre o jeito como você sabe que as pessoas
que você conhece incluindo você mesmo reagem ou o jeito como elas
estão reagindo ou sentindo ou falando que faz de qualquer cena que
seja uma cena excitante uma cena excitante.
11
No teatro, ao contrário, seria impossível produzir tal familiaridade, afirmaria
Stein, porque em primeiro lugar quando os atores estão lá eles estão lá e eles estão
naquele exato momento
12
. Ao ler uma peça de teatro, ou, pelo menos, ao se ler uma
peça de Shakespeare, por exemplo, seria necessário voltar sempre à lista de
personagens. Ou, segundo Gertrude Stein, pelo menos durante todo o primeiro ato, e
seria “de certo modo, necessário fazer o mesmo enquanto a peça é encenada”. Deste
modo, haveria sempre um descompasso entre a emoção do público e a emoção no palco.
Mas, acrescentaria ela, algo em que se deveria pensar com relação ao teatro é que há
alguns raros momentos, na vida real, nos quais ocorrem cenas excitantes sem que
ninguém tenha familiaridade com ninguém. Mas nestes casos,
Vocês são todos desconhecidos mas tão completamente
desconhecidos, incluindo você para vo mesmo assim como os
outros para eles mesmos e para vo que eles não são realmente
11
STEIN, Gertrude. “Plays” IN: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The Library of
America, 1998. p.252 “Yes it would, it would be practically impossible in the real scene to have a really
exciting scene if they were all strangers because generally speaking it is the contradiction between the
way you know the people you know including yourself act and the way they are acting or feeling or
talking that makes of any scene that is an exciting scene an exciting scene”.
12
“In the first place when the actors are there they are there and they are there right away”. ibidem, p.254.
121
indivíduos e visto que é assim [estas cenas excitantes] têm a vantagem
e a desvantagem de que dão procedimento a uma rie de sensações de
completudes que se seguem o próximas umas das outras que quando
tudo acaba você não consegue se lembrar você não consegue
realmente reconstruir a coisa, a coisa que aconteceu.
13
Neste ponto, ainda tendo em vista o ensaio “Plays”, que é realmente uma espécie
de poética teatral da autora, ela traça um histórico da sua própria experiência como
espectadora, leitora e autora de peças. Relata, por exemplo, a sua reação ao assistir,
ainda na adolescência, a uma peça representada pela companhia da atriz francesa Sarah
Bernardt. Nas suas palavras, eis o motivo principal do seu interesse:
Eu sabia um pouco de francês é claro mas realmente isso não estava
importando, era tudo o estrangeiro e a voz dela era tão variada e
tudo era tão francês que eu pude descansar nisso sem problemas. E foi
o que eu fiz.
Era melhor do que ópera porque seguia em um fluxo. Era melhor do
que o teatro porque você não precisava tornar aquilo conhecido. As
maneiras e costumes do teatro francês criaram uma coisa nela mesma
e que existia em si mesma e para si mesma assim como as peças
poéticas que eu costumava tanto ler, tinha tantos personagens assim
como tinha naquelas peças e você não precisava conhecê-los eles eram
tão estrangeiros, e o cenário estrangeiro e realmente substituiu a
poesia e as vozes substituíram os retratos. Foi para mim um prazer
muito simples direto e comovente.
14
Levando em conta que seria impossível produzir familiaridade no teatro entre os
personagens e o público, não é de estranhar que o fato de ser tudo tão estrangeiro tivesse
agradado particularmente a Stein. Principalmente se lembrarmos que ela própria
escolheu estar constantemente numa situação de estrangeira, não ao exilar-se de seu
país, mas também ao manter-se quase que em constante circulação, como foi observado
no segundo capítulo desta tese. E, percebendo ainda que, nos momentos de maior
13
“You are all strangers but so completely strangers, including you yourself to yourself as well as the
others to each other and to you that they are not really individuals and inasmuch as that is so it has the
advantage and the disadvantage that you proceed by a series of completions wich follow each other so
closely that when it is all over you cannot remember that is you cannot really reconstruct the thing, the
thing that has happened.” ibidem, p.253.
14
“I knew a little french of course but really it did not metter, it was all so foreign and her voice being so
varied and it all being so french I could rest in it untroubled. And I did. It was better than the opera
because it went on. It was better than the theatre because you did not have to get acquainted. The manners
and customs of the french theater created a thing in itself and it existed in and for itself as the poetical
plays had that I used so much to read, there were so many characters just as there were in those plays and
you did not have to know them they were so foreign, and the foreign scenery and actuality replaced the
poetry and the voices replaced the portraits. It was for me a very simple direct and moving pleasure.
STEIN Gertrude. “Plays” in. STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The Library of America,
1998. p.259.
122
excitação, nos quais os personagens tornavam-se completamente estranhos para si
mesmos e para os outros, não era mesmo possível reconstruir o acontecimento, Stein
questionava a utilidade de se contarem histórias no teatro. É interessante observar, neste
ponto, a relação entre estes personagens que seriam dois (que numa cena excitante se
tornam desconhecidos até para eles mesmos) e o sujeito autobiográfico dividido que
surge em suas duas autobiografias. Se, na primeira, um eu que se parte em dois no
duplo Stein/Toklas, na segunda, há um sujeito autobiográfico impossível, umtodo
mundo” hipotético. Enquanto na primeira o sujeito se divide em dois, na segunda se
multiplica ao infinito, na figura de um todo mundo” tão fragmentado e estrangeiro que
seria mesmo impossível contar suas histórias.
Mas, voltando ao texto “Plays”, essa inutilidade de contar histórias no teatro,
levaria a recepção de uma peça a um prazer que consistiria, sobretudo, na observação
das vozes e inflexões. Ou, como já foi dito anteriormente, seguindo o comentário de
Wendy Steiner, numa “pura atividade visível”, como na observação de uma paisagem.
Pois como descreve Stein em Plays”:
A paisagem tem a sua organização e afinal uma peça tem que ter a sua
organização e estar em relação uma coisa com a outra coisa e como a
história não é a coisa que qualquer um está sempre contando
alguma história então a paisagem o se movendo mas estando
sempre em relação, as árvores com as montanhas as montanhas com
os campos as árvores entre elas qualquer pedaço dela com o céu e
então cada detalhe com qualquer outro detalhe, a história só tem
importância se você gosta de contar ou gosta de ouvir uma história
mas a relação está lá de qualquer forma. E sobre essa relação eu queria
fazer uma peça e eu fiz um grande número delas.
15
Uma peça seria, então, como uma paisagem onde os elementos se encontram em
relação uns com os outros. A autora não menciona em Plays” algo como as entradas e
saídas tão caras ao diretor americano Richard Foreman. Ela determina sim que haja
elementos em cena e afirma que estes elementos existem em função das relações que
estabelecem uns com os outros. Mas, para ela, a cena é uma paisagem. E uma paisagem
15
. “The landscape has its formation and as after all a play has to have formation and be in relation one
thing to the other thing and as the story is not the thing as any one is always telling something then the
landscape not moving but being always in relation, the trees to the hills the hills to the fields the trees to
each other any piece of it to any sky and then any detail to any other detail, the story is only of importance
if you like to tell or like to hear a story but the relation is there anyway. And of that relation I wanted to
make a play and I did, a great number of plays.” Ibidem, p.264-265
123
é, tamm, um lugar, um espaço. Considerando que uma peça é uma paisagem, Stein
liberta-se do compromisso de contar histórias.
Neste capítulo procurarei trabalhar algumas das formas pelas quais se apresenta
este espaço teatral na dramaturgia de Gertrude Stein. E não deixa de ser curioso que eu
tenha iniciado a minha reflexão com citações de dois encenadores, justamente num
ensaio que irá tratar das iias de uma escritora que, durante a sua vida, na verdade, não
viu seo duas, de suas dezenas de peças, encenadas
16
, e que não pretendeu se
aventurar, em momento algum, na atividade de diretora teatral. Portanto, no seu caso, a
concepção espacial implícita no seu teatro revela-se, além das referências embutidas em
algumas reflexões críticas suas, nos próprios textos dramáticos (a maioria deles jamais
encenada até hoje).
A primeira dificuldade está no fato de as peças de Stein forçarem a forma
dramática a ponto de, em alguns casos, nos perguntarmos que elementos de um
determinado texto poderiam levá-lo a ser considerado realmente como dramaturgia. Por
vezes não indicações de quem emite as falas, ou então um mesmo personagem emite
todas as falas de uma cena, ou as rubricas são todas escritas no tempo passado, ou os
atos se repetem continuamente sem haver a preocupação com uma ordem cronológica,
e, no que concerne ao tema deste capítulo, na maioria de suas peças não geralmente
qualquer indicação cenográfica.
Mas atos, cenas, falas, personagens e rubricas. Os elementos que comem
um texto dramatúrgico estão presentes nas peças de Stein. Podem-se descobrir, por isso
mesmo, no estudo destes textos, diversas formas de concepção espacial que fogem aos
tipos mais comuns de espacialidade, nos quais se sabe com freqüência quem” diz que
falas, para “quem” os personagens se dirigem ou “onde as cenas se passam.
Oferecendo, nesse sentido, a dramaturgia steiniana uma oportunidade para se
repensarem as noções convencionais de espaço teatral.
16
Gertrude Stein assistiu a duas montagens de peças suas. A primeira foi a montagem da ópera Four
saints in three acts, que ela assistiu durante a sua estadia nos Estados Unidos e a segunda foi a montagem
da peça The wedding bouquet em Londres. A própria autora relata em seu livro Autobiografia de todo
mundo, estas duas experiências. Dentre as montagens mais contemporâneas para os textos de Stein a
encenação dirigida por Robert Wilson de Four saints in three acts, em 1996, Saints and singing, em 1997
e Doutor Faustus liga a luz em 1992. Esta última foi também dirigida por Richard Forman em Berlim, em
1982. A companhia teatral Wooster Group, montou em 1998, uma versão para Doutor Faustus liga a luz,
que trabalhava com o texto de Stein e com o filme “Olga’s House of Shame”, de 1964. O espetáculo
levou o título de “House/Lights”.
124
Um primeiro ponto a considerar, na dramaturgia steiniana, são as falas, que, em
suas peças, por vezes, parecem surgir de lugar nenhum, e não parecem ser emitidas
também por qualquer personagem. Mas estas vozes imem sua presença em cena e
preenchem de som o “espaço vazio da representação. Chamo de espaço vazio o
espaço nas peças de Stein em que a autora não explica em rubricas onde a cena se passa.
Voltarei a isso mais adiante neste capítulo
Outro ponto a observar é sua concepção de luz, que destaco aqui, analisando, em
particular, duas das peças de Stein, Doutor Faustus liga a luz e Três irmãs que não são
irmãs. Além da ocupação do espaço pelas vozes, da presença determinante da luz,
procurarei observar, ainda, outras formas de representação espacial que surgem nas
peças steinianas, como, por exemplo, o modo como o espaço se constrói por meio das
palavras pronunciadas em cena, como já foi visto no segundo capítulo deste estudo, na
fala de Margarida Ida e Helena Anabela em “Doutor Fausto liga a luz”, por exemplo.
Observarei também como, em algumas peças, Stein cola o espaço teatral ao espaço do
papel, da escrita mesma, de que são exemplares textos como O rei ou alguma coisa
(convida-se o público a dançar) e For the country entirely – a play in letters.
A LUZ STEINIANA
Antes de abordar as particularidades da utilização da luz nas peças de Gertrude
Stein, que se observar que a iluminação teatral é, de certo modo, um elemento que
determina e dimensiona espacialmente a cena trabalhando de fora para dentro. Quer
dizer, as fontes de luz, os refletores, são, em geral, posicionadas fora de cena, no
urdimento, nas coxias ou mesmo sobre a platéia. E, de fora, o operador de luz desenha o
espaço cênico. que se observar evidentemente que o feixe de luz, cuja fonte quase
sempre se encontra num espaço “fora da cena”, invade a cena e interfere nela. Deste
ponto de vista ela está dentro da cena, tanto quanto ou mais do que fora dela. Mas me
interessa aqui perceber o refletor como um “olhoque, “de fora”, olha para dentro da
cena. Mesmo que este “olho”, que esta fonte de luz esteja em cena” e seja operada de
dentro do espaço cênico, por um ator, ou por um técnico de iluminação, como acontece
muitas vezes sobretudo em espetáculos mais contemporâneos, no momento em que esta
fonte de luz (seja ela uma lanterna, um refletor) aponta seu feixe para um ator ou um
objeto, ou para um canto do espaço cênico, ela e aquele que a opera, como que se
125
retiram da cena de certo modo para colocar sob o foco determinado detalhe que se quer
ressaltar.
E é a este “olhoque aponta e foca, e ilumina um ou outro detalhe da cena, mas
que também se desenha como externo a ela, que se pode associar, por exemplo, o olhar
de fora, com que Stein, exilada voluntária, enxerga seu ps de origem e sua língua
materna. Lembre-se, a esse respeito, que, mesmo ao visitar os Estados Unidos, depois
de muitos anos fora, é ainda com um olhar de fora, de cima, do avião, que ela melhor
reconhece a América e analisa a geografia de sua terra natal. E, mesmo quando dentro
da cena”, em terra firme, Stein aponta seu olhar, como um refletor, para o país de
origem, ora fornecendo dele uma visão geral, iluminando toda “a cena”, ora se voltando
para detalhes, como quando se refere às árvores sem raízes do vale de Yosemite, na
Califórnia, por exemplo, em sua Autobiografia de todo mundo.
É interessante, então, observar de que maneira Gertrude Stein trabalha, em
algumas de suas peças, este elemento, de certa forma, “exiladoda cena, dando-lhe
funções que extrapolam suas funções habituais. Funções essas que são descritas neste
trecho por Adolphe Appia (1862-1928):
A luz é de uma flexibilidade quase milagrosa. Ela possui todos os
graus de claridade, todas as possibilidades de cores, como uma paleta,
todas as mobilidades; pode criar sombras, irradiar no espaço a
harmonia de suas vibrações exatamente como o faria a música. Com
ela controlamos todo o poder expressivo do espaço, se este espaço é
colocado a serviço do ator.
17
Considerado um dos pioneiros da cena moderna, Appia ofereceu uma grande
colaboração à moderna iluminação teatral. Lee Simonson em seu texto The ideas of
Adolphe Appia defende que foi ele quem trouxe para o palco a luz dramática que já era
utilizada na pintura. “A luz importante no teatro é aquela que delineia sombras. Apenas
ela define e revela”, pois, explicaria Appia:
(...) Sem o poder unificador da luz, nossos olhos seriam capazes de
perceber o que são os objetos, mas não o que eles expressam. (...) A
17
Adolphe Appia citado por Patrice Pavis in: PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução para a
língua portuguesa sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999.
P.202.
126
flexibilidade, a fluidez da luz podem evocar os valores emocionais de
uma performance, mais do que os factuais.
18
E Appia propunha que a luz fosse o “pintor da cena”. “O poeta-músico
19
pinta
seu quadro com luz”, sugere. Depois das inovadoras idéias de Appia, a iluminação
teatral ganhou grande destaque na encenação. Patrice Pavis chega a apontar, em seu
Dicionário de teatro, que o iluminador é hoje muitas vezes a “personagem chave da
representação”:
A luz intervém no espetáculo; ela não é simplesmente decorativa, mas
participa da produção de sentido do espetáculo. Suas funções
dramatúrgicas ou semiológicas são infinitas: iluminar ou comentar
uma ação, isolar um ator ou um elemento da cena, criar uma
atmosfera, dar ritmo à representação, fazer com que a encenação seja
lida, principalmente a evolução dos argumentos e dos sentimentos etc.
Situada na articulação do espaço e do tempo, a luz é um dos principais
enunciadores da encenação, pois comenta toda a representação e até
mesmo a constitui, marcando o seu percurso. Material milagroso de
iniguavel fluidez e flexibilidade, a luz o tom de uma cena,
modaliza a ação cênica, controla o ritmo do espetáculo, assegura a
transição de diferentes momentos, coordena os outros ritmos cênicos
colocando-os em relação ou isolando-os.
20
Dentre todas as fuões exercidas pela luz, que são elencadas por Patrice Pavis
no verbete a esse respeito do seu dicionário, não se encontra sinalizada, todavia, a
possibilidade de a luz ocupar a posição de ator na cena. No entanto, em alguns casos,
ela pode exercer tal função. No balé futurista Fireworks (1917), por exemplo, baseado
em composição de Stravinski de mesmo nome, e criado por Giacomo Balla, os únicos
performers” eram o cenário e a luz:
O cenário era uma versão tridimensional de uma das pinturas de Balla
e ele próprio conduzia o balé de luz com um teclado de controles de
iluminação. Não apenas o palco, mas também o auditório, era
alternadamente iluminado e escurecido nesta performance sem ator.
21
18
Adolphe Appia, citado por Lee Simonson em seu texto The ideas of Adolphe Appia IN: BENTLEY,
Eric. The theory of the modern stage. Applause Theatre Books: New York, 1997, p.33
19
Vale lembrar que Appia estava preocupado em compreender como deveriam ser encenadas as óperas de
Wagner, daí o termo poeta-músico, utilizado por ele.
20
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução para a língua portuguesa sob a dirão de J. Guinsburg
e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999. p.202.
21
GOLDBERG, RoseLee. Performance Art. NY: Abrams, 1988. p.24
127
Um outro exemplo de uso da luz como protagonista da cena está no balé, de
Francis Picabia, Rêlache (1924). O cerio para este balé, dirigido por Francis Picabia e
com músicas compostas por Eric Satie, levado à cena em 1924, possuía uma parede de
fundo, feita de discos de prata, sendo que cada disco era adornado com luzes extra-
brilhantes, que, em determinado momento do espetáculo, eram acessas em potência
máxima, “cegando” o olhar do público para todo o resto.
22
Nos dois exemplos citados,
a luz não é utilizada para revelar ou esconder algum elemento da cena, nem mesmo com
o intuito de criar uma atmosfera dramática, realçar sentimentos ou as emoções que estão
em jogo na cena. Mas sim como elemento atuante, como actantes. E atingindo, portanto,
quase a condição de personagem.
Saindo agora do campo da performance e entrando no campo da dramaturgia,
observe-se mais um exemplo de utilização da luz como protagonista da cena. Trata-se
do quadro “Três movimentos”, um dos inúmeros esquetes que comem o texto
dramático Strip-tease e teatro irregular (1980) do poeta catalão Joan Brossa (1919-
1998), no qual a luz é dona de um pequeno momento cênico:
Pela direita entra uma moça que atarraxa uma lâmpada do bocal que
es sobre uma mesinha cinza colocada na metade do palco, ao lado
da cortina. A mpada se acende e a moça sai. A luz da lâmpada é
quase imperceptível. Pouco a pouco apagam-se as luzes do palco.
Somente fica acesa a lâmpada, que aparece na escuridão. Pausa.
Pouco a pouco volta a iluminar-se o palco, a ficar como
anteriormente. A luz da lâmpada volta a ficar imperceptível. Aparece
a moça, desatarraxa a lâmpada e sai.
23
A moça que entra em cena, neste quadro, cumpre apenas a função de atarraxar e
desatarraxar a lâmpada. Durante uma pausa, então, apenas a fraca luz da lâmpada
aparece na escuridão. Numa inversão do que ocorre normalmente no teatro, onde luzes
se acendem para que se possa ver quem ou o que se quer mostrar no palco, aqui, todas
as luzes se apagam para que se possa ver apenas a variação de intensidade de uma
lâmpada.
Se, tanto nos espetáculos de Balla e Picabia, quanto no texto didascálico de
Brossa, pode-se compreender a luz como elemento cênico diretamente atuante, é na
22
GOLDBERG, RoseLee. Performance art. NY, Abrams, 1988. P.90/91
23
BROSSA, Joan. Strip-tease e teatro irregular. Tradução para o português de Edla van Steen. Inédito.
128
peça de Gertrude Stein, Doutor Faustus liga a luz, que ela aparece claramente como
personagem, capaz de expressar sentimentos, dançar e reagir à cena.
Na peça de Stein, Fausto vende sua alma em troca da invenção da luz elétrica. E
passa a ser obrigado a conviver com uma realidade onde as luzes artificiais estão em
toda parte e a luz natural foi apagada. A rubrica inicial sugere um “brilho de luz
elétrica” atrás de Fausto. Após a primeira cena de Fausto com Mefisto a seguinte
rubrica:
Faustus dá-lhe um chute horrível, e Mephisto foge e as luzes elétricas
só eno começam a ficar bem alegres. (...)
Doutor Faustus sentado sozinho rodeado por luzes elétricas.
24
Depois desta primeira reação das luzes elétricas (“começam a ficar bem alegres”
p.20), elas passam a assumir vários comportamentos que as humanizam. Elas vêm e vão
(“durante este tempo as luzes elétricas vêm e vão”p.22), ficam mais fortes (“só neste
instante as luzes elétricas ficam mais fortes mas nada acontece”p.22), tornam-se lidas
(“neste instante a luz elétrica torna-se pálida de novo”p.23),o embora (“Doutor
Faustus olha as luzes elétricas irem embora”p.23). Em outro momento as luzes entram e
saem de cena e dançam: “As luzes elétricas começam a daar e uma a uma saem e
entram”( p.26). Estas indicações dos movimentos das luzes, de entradas e saídas, de
posicionamentos (elas rodeiam Faustus, por exemplo) propõem uma inversão de
lugares. Se, normalmente, as fontes de luz estão localizadas “fora de cena”, ou fora do
“focode atenção, em Faustus, elas parecem estar dentro da cena, ocupam o espaço do
palco, locomovem-se pelo cenário. São elas que estão “em foco”. É como se tivessem
sido retiradas de seu “exíliohabitual para serem inseridas no centro da ação. Embora
continuem ainda “exiladas”, só que, agora, de seu lugar exterior mais habitual.
E não a movimentação e as expressões de sentimento das luzes as tornam
humanas, aí, mas também o fato de se moverem uma a uma”. Quer dizer, as luzes não
são uma massa meio informe, e que se espalha pelo espaço. Se elas entram e saem,
uma a uma, é como se ganhassem, então, um corpo, uma forma delimitada. Elas não se
mesclam umas com as outras, são unidades separadas e que se movem de modo
independente. Entram e saem “uma a uma”.
24
STEIN, Gertrude. Doutor Faustus liga a luz. Tradução de Fábio Fonseca de Melo. São Paulo: Editorial
Cone Sul. P.20.
129
No terceiro ato da peça, Stein indica, em uma rubrica, que “as luzes elétricas
brilham, mas a sala está escura” (p.55). Neste momento uma dissociação entre a
iluminação da cena (sala escura) e a atuação das luzes elétricas. Ao instaurar-se esta
separação, fica evidente que as luzes de Faustus podem ser mesmo consideradas
personagens da peça, já que, em dado momento, podem não possuir nem mesmo a
função de iluminar a cena. São, neste caso, duplamente exiladas: de seu lugar habitual, e
de suas funções habituais. Elas o estão inseridas dentro da cena para iluminar. Mas
sim para serem iluminadas. A proposta de iluminação desta cena (sala escura) servindo
para realçar, neste caso, o brilho das luzes etricas, num efeito semelhante ao proposto
por Joan Brossa em seu quadro “Três movimentos”. Tanto no quadro de Brossa, quanto
na cena de Stein a luz passa a ocupar a posição de protagonista. E, ao final do Faustus
steiniano, tudo “afunda na escuridão e está tudo escuro” (p.69).
O que se percebe, ao observar o comportamento da luz neste Faustus de
Gertrude Stein, é que a autora trabalha com gradações, variações da oposição entre claro
e escuro. As suas luzes elétricas ora ficam opacas, ora brilham com intensidade, ora
imitam a luz do sol (“O sol oh o sol as luzes reluzem e brilham como o pôr-do-
sol”p.47), ora brilham, mas não iluminam a cena. E, no fim da peça, há a escuridão.
Curiosamente, Stein escrevera uma outra peça, ainda em 1915, e, portanto, anos
antes de Doutor Faustus liga a luz (que foi escrita em 1938), na qual não se tematiza
a luz, como o título é uma espécie de inversão do título de Doutor Faustus. A peça He
didn’t light the light
25
, publicada no livro Painted Lace, é um diálogo no qual se
constata que “ele não acendeu a luz dele no dia anterior. E, em seguida, o diálogo
prossegue sempre em torno de a luz estar ou não acesa, de ele ter ou não acendido a luz
e se a luz deve ou não ser acesa, se o fato de o a haver acendido causaria alguma
perturbação, ou não. Parece haver também uma oposição entre a luz de um fósforo (“E
se ele acender o fósforo
26
”) e a tentativa de acender a luz elétrica (“Eles tentaram
acender a luz. Voquer dizer a luz elétrica.
27
) E, ao final da peça se questiona: “Por
que eu me preocupei com a luz”
28
.
A preocupação com a luz voltaria a ocupar a mente de Stein quando, anos mais
tarde, ela chega aos Estados Unidos e, principalmente em Nova York, seu nome
25
STEIN, Gertrude. “He didn’t light the light” In: Painted lace and other pieces (1914-1937). Books for
Libraries Press, Freeport: New York, 1969. pp.17-19.
26
“And if he strikes the match” (idem, p.17).
27
“They tried to light the light. You mean the electric light.” (idem, p.17).
28
“Why did I mind the light” (Idem, p.19).
130
escrito em painéis luminosos no alto dos prédios. Doutor Faustus liga a luz refletiria
também esta interferência das luzes elétricas brilhando à sua volta, transformando-a em
celebridade depois do sucesso alcançado com a Autobiografia de Alice B. Tocklas. Mas,
em 1915, quando Stein escreve “He didn’t light the light”, as luzes acesas não causavam
perturbação e sim conforto: “To-night we have light. Good night.”.
Não há, na peça de 1915, os matizes entre claro e escuro que, em Doutor
Faustus, Stein depois viria a explorar. Na peça de 1915 apenas luz ou o luz. As
gradações e variações de intensidade de luz surgiriam depois. Em Doutor Faustus liga a
luz, como já se viu, e em Três irmãs que não são irmãs.
De forma bastante diferente e com propósitos também diversos, na peça “Três
irmãs que não são irmãs há, no entanto, a mesma alternância entre luminosidade e
escuridão que se vê em Doutor Faustus e que é também tematizada na conversação de
He didn’t light the light”.
Todas as variações da luz, em “Três irmãs”, são indicadas
por Gertrude Stein em suas rubricas. Não , neste caso, nenhuma indicação de cor para
a luz. As mudanças sugeridas dizem respeito ao fato de a cena estar iluminada ou no
escuro, ou levemente iluminada, ou levemente escurecida. A primeira rubrica da peça
descreve o cenário:
Uma sala levemente escurecida, um sofá, e uma cadeira e um copo
d’água, as três irmãs sentadas no sofá juntas, a luz de repente vai
embora.
29
Depois desta rubrica há um pequeno diálogo, que se dá no escuro e, quando a luz
volta, há, na sala, apenas o cadáver de um dos personagens. No apagar seguinte de
luzes, o corpo desaparece da sala. Toda a peça é pontuada pela luz que apaga, acende,
diminui de intensidade, colaborando na criação de uma atmosfera de suspense. Estas
variações da luz também proporcionam uma dose de humor à cena steiniana, pois a
autora faz, aí, claramente, uma paródia ao suspense enquanto gênero no qual, muitas
vezes, as cenas mais apavorantes ocorrem em espaços mal iluminados ou no total escuro
onde apenas vozes e gritos são ouvidos. Pois a quantidade de vezes, em “Três irmãs que
o são irmãs”, em que a luz apaga e acende, sem que haja qualquer explicação para
estas variações, já resultaria num efeito cômico.
29
STEIN, Gertrude. “Three sisters who are not sisters”. In: Selected operas and plays of Gertrude Stein,
edited and with na introduction by Malcolm Brinnin. Pittsburgh and London: University of Pittsburgh
Press, 1993. P.240. Conferir o texto em sua versão original em inglês no anexo com as traduções.
131
E esta inexplicabilidade para os súbitos black outs confere, ainda, à luz certa
autonomia, como se ela tivesse “vida própria” e decidisse por si mesma os momentos de
apagar e acender. Neste ponto, assemelha-se às luzes elétricas criadas por Dr. Faustus.
Mas com a diferença de que as luzes de Faustus estão de fato dentro da cena, enquanto,
em “Três irmãs que não são irs”, estamos falando da iluminação da cena e não da luz
enquanto figura, enquanto personagem que atua e reage, como ocorre em Faustus. Mas
esta “vida própria” que a iluminação parece ter em “Três irmãs” revela, na verdade, a
presença constante de um narrador da cena, de um “autor” que, de fora, comanda a
movimentação. Neste caso, é interessante que Gertrude Stein tenha escolhido marcar de
maneira especial sua presença de autora justamente através da luz, que é o elemento
cuja fonte emissora geralmente se acha exilada da cena, e interfere no espaço
cenográfico parecendo atuar de fora dele. Assim como ela própria escrevendo em inglês
e morando na França; escrevendo sobre si mesma, mas mantendo-se exilada de sua
própria autobiografia ou ainda observando a América, desenhando a sua geografia, mas
segundo uma “vista de cima”, aérea, de longe. Ou, por outro lado, examinando detalhes
do país escolhido por ela para viver e trabalhar, a França, com um olhar de
investigadora, de pesquisadora. Olhando de fora, portanto, mas chegando perto de seu
objeto de estudo, como uma lanterna na mão de um ator ilumina alguma parte do corpo
de um outro logo a sua frente. Esse olhar atento e aos detalhes, pode se perceber nesta
passagem do livro “Paris França”, em que compara os animais franceses ao povo
francês:
duas coisas que os animais franceses não fazem (...). Os gatos não
brigam tanto e não uivam tanto e as galinhas não ficam atarantadas ao
correr de um lado para o outro da rua, quando começam a atravessar a
rua elas seguem em frente que é o que também faz o povo francês.
30
O ESPAÇO TEXTUAL
Patrice Pavis, no verbete sobre o “Espaço textual”, no seu Dicionário de teatro,
afirma que o texto ganha espacialidade, no teatro, no momento da sua enunciação:
30
STEIN, Gertrude. Paris França. Tradução de Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,
2007.
132
(...) na maneira pela qual frases, discursos e réplicas se desenvolvem
num determinado lugar. Esta dimensão visual do discurso é ou pode
ser – tornada sensível no teatro. (...) mas o espaço se insere igualmente
em certas formas de textualidade, e isto , desde que a atenção se dirija
não ao que o discurso procura figurar (o que ele representa
dramaticamente) mas à sua enformação significante: a partir do
momento em que um texto é poético (opaco) demais para figurar um
referente, ele tende a cristalizar-se e a autocongelar-se (assim, Les
Burgraves” de Hugo são uma das primeiras tentativas de atrair a
atenção do espectador para a materialidade e a espacialidade” dos
versos recitados). Uma estrutura repetitiva de termos ou de parágrafos
produz o mesmo efeito: não entendendo o texto ou a razão da
repetição, o ouvinte fica sensível a uma enunciação de massas de
palavras ou de frases (cf. em G. STEIN, R. FOREMAN ou em R.
WILSON, em A letter to Queen Victoria” ou I was sitting on my
patio”, em que o texto é dito duas vezes por dois atores, sem que a
informação seja aumentada, o que reforça a imagem de um texto
projetado no espaço).
31
No caso das experimentações de Stein, se poderiam acrescentar, ainda, ao
verbete de Pavis, os casos nos quais o texto molda, ele mesmo, o espaço ficcional da
representação. É o que ocorre na peça Doutor Faustus liga a luz, no momento da
primeira aparição em cena da personagem Margarida Ida e Helena Anabela. Como já foi
visto em capítulo anterior, são as palavras de Margarida Ida e Helena Anabela que
impõem o espaço ficcional a ser imaginado, que instalam em cena a floresta, “as selvas
selvagens” que circundam a personagem. Nesta cena, Gertrude Stein parece construir
um cenário de palavras, um cenário textual no qual se instala a personagem.
Mas não é apenas quando as palavras definem o cenário que Gertrude Stein
trabalha o espaço como texto. Talvez se possa chamar ainda de espaço textual um outro
procedimento que se revela com bastante freqüência na dramaturgia steiniana. São
momentos nos quais o texto remete ao seu suporte, à folha de papel. Diversas frases
aludem ao momento e ao lugar da escrita. Em algumas delas, inclusive, Stein usa a
palavra “aqui”, remetendo ao lugar da escrita. Ou comenta o contraste entre preto e
branco, como se observasse a tinta borrando o papel no momento mesmo em que
escreve. Como, por exemplo, neste trecho da peça “A seguir. Vida e cartas de Marcel
Duchamp”:
31
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução para a língua portuguesa sob a dirão de J. Guinsburg
e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999. p.138
133
O que lembro é isto. Lembro preto e branco. Do ponto de vista do
branco toda cor é cor. Do ponto de vista do preto. Preto é branco.
Branco é preto. Preto é preto. Branco é preto. Branco e preto é preto e
branco. O que lembro quando estou aqui é que palavras nãoo
pássaros.
32
Se, neste trecho, é o ato de escrever que está em questão, os modelos discursivos
que orientam a estruturação das peças For the country entirely – a play in letters” e “O
rei ou alguma coisa (convida-se o público a dançar)”, por exemplo, estariam
abertamente colados à sua escrita.
A primeira delas, como o título anuncia, é uma peça escrita em forma de carta.
Mas não se trata de uma única carta ou ainda de uma troca de correspondência regular.
Parece mais uma colagem de pequenos trechos de cartas que se juntam. A autora joga
com as frases normalmente utilizadas em corresponncias, tais como “Dear sir”, “Dear
girl”, “Dear Mr. And Mrs. Eaton”, Sincerely yours”, etc. Estas expressões vão se
repetindo, dando a impressão de que constantemente volta-se ao começo, ou ao final
sem começo nem meio de alguma carta. A peça, por ser escrita em cartas, encontra-se
colada à materialidade da página. Se na cena de Margarida Ida e Helena Anabela o texto
define a espacialidade, neste exemplo pode-se dizer que ocorre uma inversão: aqui
uma espacialização do texto.
Tal processo pode ser mais bem compreendido com a observação do que
acontece na peça “O rei ou alguma coisa (convida-se o público a dançar)”
33
. Esta é toda
dividida em páginas. Pode-se entender que o livro é o espaço cênico onde a peça se dá.
E as páginas que se sucedem atuam de duas formas. Comem o cenário textual de um
livro e atuam, por vezes, quase como personagens da peça. Para cada página um
trecho de diálogo. Quando há diálogo, não há indicação de quem estaria em cena
conversando, mas quando o há diálogo tem-se a impressão de que são as próprias
páginas que emitem suas falas, como se pode observar, por exemplo, no trecho a seguir:
PÁGINA XLII
Esplêndida manhã tarde.
PÁGINA XLIII
Tal como a do príncipe.
32
STEIN, Gertrude. A seguir. Vida e cartas de Marcel Duchamp. tradução de Júlio Castañon Guimarães
In: O Percevejo: revista de Teatro, Crítica e Estética . ano 8 . N.9 . 2000. Departamento de Teoria do
Teatro . Programa de Pós-Graduação em Teatro . UNIRIO. p.243
33
STEIN, Gertrude “O rei ou alguma coisa (convida-se o público a dançar)”, tradução de Júlio Castañon
Guimarães. In: O Percevejo: revista de Teatro, Crítica e Estética . ano 8 . N.9 . 2000. Departamento de
Teoria do Teatro . Programa de Pós-Graduação em Teatro. UNIRIO. Pp.244-250.
134
PÁGINA XLIV
Páginas de devorar.
PÁGINA XLV
Páginas de esquentar
PÁGINA XLVI
Nem uma palavra de advertência a eles.
Observe-se agora este outro exemplo, no qual se especifica a participação das
páginas enquanto elementos atuantes, enquanto personagens:
PÁGINA XVI
Você disse não disse.
PÁGINA XVIII
Muito provavelmente pulei.
PÁGINA XIX
Passe passe.
Quando a cena passa para a página XX, o discurso volta a ser escrito em forma
de diálogo, ainda no interior da mesma página:
PÁGINA XX
Você nunca deve se apressar.
É mesmo.
Agora entendo.
Note-se que entre as páginas XVI e XVIII fica faltando a página XVII, então a
“falada página XVIII, “acho que pulei”, refere-se ao fato de, no texto, se ter mesmo
pulado a página anterior. Mais um exemplo da escrita se voltando para a sua
materialidade, e tratando da diagramação do texto na página, está nesta seguinte e
brevíssima “fala”:
PÁGINA LII
Aqui há uma margem.
Em outros momentos, a palavra “aqui” parece também remeter à folha de papel.
Observem-se alguns exemplos:
Eu a vejo
Você onde.
135
Aqui.
Pense um minuto pense um minuto aqui.
Você pode criar estações.
Posso criar estações aqui.
O uso do dêitico
(do grego dêixis - ‘mostrar’, ‘apontar’)
“aqui”, nestes trechos
voltando-se constantemente para a folha de papel. Observe-se a definição para o termo dêitico
dada por Graciela Reyes:
Os sistemas dêiticos de tempo, espaço e pessoa têm, como
ponto de referência ou centro dêitico, o momento de falar: o momento
presente (tempo), o lugar presente (espaço) e o falante e o ouvinte
(pessoa). Os referentes dos dêiticos, por estarem fora do texto, só
podem ser interpretados se se conhece a situação extralingüística. E
isto quer dizer que o significado dos dêiticos varia segundo quem fala,
quando e onde. O falante é o centro do seu próprio sistema dêitico, e
seu discurso está organizado a partir desse centro formado por eu,
aqui, agora.
34
O lugar e o momento da escrita são presentificados, por Stein, então, no uso
repetido da palavra “aqui”. E no último exemplo (posso criar estações aqui”), a palavra
estações, no original em inglês “stations”, poderia também ser traduzida por lugar,
posição, localização. Seria, então, como se a autora considerasse a possibilidade de se
criarem lugares ainda no âmbito da escrita.
A palavra “lugar”, aliás, surge em outros momentos desta mesma peça:
PÁGINA XXXI
Mudo de lugar.
De modo nenhum.
Vou sentar.
Este lugar é meu.
Ou nesta frase:
PÁGINA XXXIII
Qualquer lugar para ficar.
Já a página L “diz”:
34
REYES, Graciela. Los procedimientos de cita: estilo directo e indirecto.. ed.. Madrid: Arco Libros,
1995, p. 13
136
Conte em lugares
Talvez esta última frase indique a intenção da autora de fazer, das suas páginas,
nesse texto, estações ou lugares, como se o leitor estivesse caminhando ao longo da
peça-livro” e, a cada página, fizesse uma pequena parada. Se as páginas são numeradas
e devemos “contar em lugares”, então, cada página-estaçãopoderia ser compreendida
como um espaço. Segundo esta lógica, pode-se entender a “fala” da página XXI, “pense
um minuto pense um minuto aqui”, como um convite a uma pausa um pouco mais
longa, a uma pausa para pensar. As páginas, na peça de Stein, desempenhariam, então,
múltiplas funções: a de organizar o texto em partes separadas, a de personagens e,
finalmente, a de representarem, elas mesmas, as estões criadas por Stein.
É impossível não lembrar, no caso destas páginas-estações”, das inúmeras
viagens de Stein, dos diversos lugares pelos quais ela passa ou nos quais ela permanece
por um tempo mais longo: Mallorca, Fiesole, Londres, para citar apenas alguns. E ainda
o subtítulo da peça “Convida-se o público a dançar”, parece propor mais do que uma
simples caminhada pelas “páginas-estações”, parece convidar a uma dança de lugares,
cheia de ritmos diversos. paradas que são mais longas (“Pense um minuto pense um
minuto aqui.”). Em outras, o ritmo é apressado e os lugares se sucedem mais
rapidamente, marcados por frases curtas ou mesmo por um passe, passe”, indicando
que não ali nenhuma parada. Em outras situações há, ainda, a disputa por
determinado lugar (“esse lugar é meu”), lembrando uma dança das cadeiras. Em outros
momentos se anseia simplesmente por uma parada, um descanso (“Qualquer lugar para
ficar.”). É interessante compreender o hábito de Gertrude Stein de permanecer em
movimento constante, de estar sempre se deslocando de um lugar a outro, de uma
cidade a outra, fixando residências temporárias de um ano aqui, de três meses ali e
assim por diante, como uma grande dança de lugares. Note-se também, que não nesta
peça-dança” nenhum lugar que possa ser considerado central com relação aos outros
lugares. Não uma hierarquia, sim uma pluralidade de “páginas-estações” que se
sucedem.
137
Mas há uma outra peça de Gertrude Stein, na qual também se tematizam lugares,
que interessa lembrar aqui. É a peça “Capital capitals” (1923)
35
. Nela, as capitais é que
são os personagens. E, se normalmente uma capital remete a uma centralidade ou
hierarquia dentro de um espaço geopolítico nacional, nesta peça, Gertrude Stein
consegue descentralizar a idéia de capital, utilizando recursos de pluralização das
capitais.
Um destes recursos é a sucessão de nomes de capitais, logo no início da peça,
numa espécie de jogo de ABC. Observe-se este trecho:
All the capitals that begin with A.
Aix Arles and Avignon.
Those that begin with be Beaux.
That makes four.
Those that begin with B.
Barcelona.
Marseille and Mallorca.
You mean Palma.
Yes P.
Palma de Mallorca.
Do this in painting.
Will you have a strawberry.
Outcropping of the central mountain foundation.
Mountain formation and capitals.
Strawberries and capitals.
Letters a b and m and capitals.
Logo em seguida começa um diálogo entre as capitais. Mas as que dialogam não
são identificadas por nomes e sim por uma numeração aparentemente ordenada: first
capital, second capital, third capital, fourth capital. Não se fala de uma capital
específica, nem das capitais de um modo geral enquanto centros. sim uma
proliferação indistinta de capitais. A quarta capital diz, a certa altura: “Capitais são
muitas há muitas capitais”
36
. E a terceira capital não é a única terceira capital: “Há uma
grande quantidade de terceiras capitais”
37
. Também não há como manter entre elas uma
relação de hierarquia. Não uma que seja mais central que outra. São dispostas uma ao
lado da outra. Repare-se na “fala” da quarta capital: “Ao meu lado” (“At my side”):
First Capital: Decide.
35
STEIN, Gertrude.. “Capital Capitals” (1923). In: STEIN, Gertrude. Operas and plays. Foreword by
James R Mellow. Station Hill Arts: Barrytown, 1998. pp.61-70.
36
“Capitals are plenty there are plenty of capitals”
37
“There are a great many third capitals”
138
Second Capital: To reside.
Third Capital. And what beside.
Fourth Capital. My side.
Fourth Capital. At my side.
Mesmo quando se considera o fato de as capitais serem identificadas por
primeira, segunda, terceira e quarta, o que poderia significar que há alguma hierarquia
entre elas, esta hitese é logo desfeita pelo fato de elas também se acharem
identificadas por letras que não seguem seqüência hierárquica alguma:
First Capital Capital C.
Second Capital Capital D.
Third Capital Capital Y.
Fourth Capital Capital J.
E, também, pelo fato de nenhuma delas se apresentar como melhor, maior, mais
interessante ou mais central do que a outra. Elas são descritas não uma em comparação
com a outra, mas pelas suas características particulares:
Fourth Capital. The fourth capital is the one where we do dream of
pepers. It is astonishing how a regular curtain can be made of red
peppers. A long curtain and not to high.
Third Capital. The third capital is one in which thousands of apples
are red in color and being so they make us in no way angry.
Second Capital. The second capital is one in which butter is sold. Can
butter be sold very well.
First Capital. The first capital is the one in which there are many more
earrings. Are there any more earrings there than elsewhere.
Todos estes esforços de descentralização e proliferação das capitais lembra a
afirmação de John Berger sobre o exílio, já citada no primeiro capítulo deste trabalho,
de que “a imigração significa desmantelar o centro do mundo, e se instalar num mundo
confuso, desorganizado e fragmentado”. A escritora Gertrude Stein, auto-exilada,
ilustra, nesta peça, de modo particular, um desmantelamento dos centros do mundo ao
colocar em evincia a proliferação de capitais, os incontáveis “centros”:
We have often been interested in the use of the Word capital. A state
has a capital a country has a capital. An island has a capital. A main
land has a capital. And a portion of France has four capitals and each
139
one of them is necessarily on a river or on a mountain. We were
mistaken about one of them.
E se são tantas as capitais, são tantos os centros, então, não poderia haver de fato
um único centro do mundo. E os deslocamentos reforçam essa colagem geográfica
desierarquizada.
OS OBJETOS, A CASA, A SELVA.
Não esquecendo, porém, que “capital” é ainda a designação para a letra
maiúscula em inglês, pode-se dizer que a peça “Capital capitals” também elabora uma
textualização do espaço. As capitais” são também as letras maiúsculas distribuídas na
geografia textual. Mas, as indicações espaciais steinianas não se restringem nem às
figurações do próprio espaço da escrita, nem à geografia propriamente dita. Como se
pode notar por meio de outro texto de Stein. Observemos, então, o dimensionamento
espacial em “Contando os vestidos dela”.
Mesmo não havendo rubricas claras que informem em que lugar preciso se passa
a ação, a peça “Contando os vestidos dela
38
pode ser considerada, como observei
neste ensaio, como um retrato da vida cotidiana de Gertrude Stein e de sua companheira
Alice Toklas. O título da peça, que é repetido no decorrer do texto como um comando
(“conta os vestidos dela” ou “conta os vestidos dela novamente”, ou, numa outra
variação, coleciona os vestidos dela”), já remete para uma atividade doméstica. Além
desta, outras frases como, por exemplo, ela poliu a mesa”, reforçam a iia de afazeres
domésticos. A isso se adiciona a menção a elementos e objetos pertencentes a uma casa.
Como janela (“O significado de janela é ar”), porta (“Uma porta deve estar fechada”),
jardim (“Eu quero mesmo um jardim.”). Fala-se, também, de móveis, como mesa (Em
troca de uma mesa.”), de objetos de decoração, como uma escultura (“Você pode dizer
que gosta de escultura negra.”) ou de peças de roupa. Pois, além dos vestidos, uma
capa (“Lembra que eu quero uma capa.”) e toda a
PARTE XXIII
é dedicada às peças de
roupas:
PARTE XXIII
38
STEIN, Gertrude. Contando os vestidos dela. Uma peça. Tradução de Inês Cardoso Martins Moreira.
Rio de Janeiro: Viveiros de Castro Editora, 2001.
140
ATO I
s precisamos de roupas.
ATO II
E lã.
ATO III
E luvas.
ATO IV
E tudo à prova d’água.
Não esquecer, também, a menção a um cachorro, animal doméstico favorito de
Alice Toklas e Gertrude Stein. As duas criaram muitos cachorros ao longo de sua vida
em comum, animais que, em geral, se fazem presentes nos textos de Stein. O nome de
Polybe, um dos cachorros de Stein, aparece na peça Capitão Walter Arnold” e Byron,
outro de seus cachorros, tem uma peça toda dedicada a ele: “Byron, a play”, para dar
alguns exemplos. Em “Contando os Vestidos Dela”, o animal doméstico aparece da
seguinte maneira: “O cachorro. Você quer dizer lido”. Todos esses indícios de
móveis, roupas, cachorro, afazeres dosticos, servindo de referência ao lar, o que se
confirmaria ao final da peça, quando se menciona claramente a casa:
PARTE XLL
ATO I
Eu não entendo essa volta prá casa.
ATO II
Ao entardecer.
Portas, janelas e modos de uma casa voltam a aparecer na peça Doutor
Faustus liga a luz. Desta vez em rubricas de indicação de cenário. Na primeira rubrica
da peça, aliás, a autora forneceria uma indicação mais convencional do lugar no qual a
cena i se passar: “Faustus, de pé, à porta de seu quarto, com os braços erguidos no
batente olhando para fora” (p.17). Já o terceiro ato se passaria “na casa de Fausto”, com
“Fausto em sua cadeira” e “a sala escura” (p.55). E a personagem Margarida Ida e
Helena Anabela surge, por sua vez, na janela dizendo: “eu não sou a lua e estou na
janela Doutor Faustus” (p.57). Uma cadeira e um tapete são os móveis pelos quais a
141
personagem Margarida Ida anseia, para que possam resgatá-la das “selvas selvagens”
onde ela se encontra. Lembrando-se que, como já foi dito no primeiro capítulo, os dois
elementos, cadeira e tapete, neste caso, sintetizariam o ambiente fechado de uma casa,
em oposição ao espaço aberto, e que parece sem limites, da floresta que está “aqui e lá”
:
(...) aqui à beira é tudo selvagem eu ouço eu ouço que aqui tudo
que é selva é selvagem e eu estou aqui e aqui é aqui e aqui estou
eu sentada sem cadeira sem tapete, oh alguém faça com que um
tapete e uma cadeira me salvem das selvas das selvas selvagens
em tudo aqui e lá onde tudo é selvagem selvagem (...) (p.28)
Mesas, objetos e modos aparecem também em outra peça, “Objects lie on a
table”
39
. James R. Mellow, na sua introdução para o livro Operas and plays, de
Gertrude Stein, nota que, nesta peça, “parece que” Stein “pretendeu fazer uma peça
sobre o tema da natureza morta”
40
.
Logo no início da peça, uma frase sobre a observação de objetos sobre a
mesa, como se eles fossem um quadro: “nós vivemos ao lado deles e olhamos para eles
então eles estão sobre a mesa então
41
. E todos olham para o quadro de objetos:
“Babies look, boys look and we look. We look there”. E Stein parece se referir a um
quadro cubista, pois menciona também o fato de os objetos terem sido reconhecidos:
Objects have been recognised as a knife, a pot, a pan, a cover, a ladle, carrots and a salt
cellar” (p.108).
No parágrafo que cito a seguir, ela parece estar dando uma explicação sobre a
disposição dos objetos num quadro cubista:
He will say that objects are to-day recognised with something with
which to play. And we will reply this is not why we like them here but
the real reason is that we have not displaced them for a violin simply
because of this reasoning. We have displaced them because we have
replaced them.
Mas a peça trata também da relação que se dá entre os objetos sobre uma mesa e
as casas:
39
STEIN, Gertrude. “Objects lie on a table” In: STEIN, Gertrude. Operas and Plays. Station Hill Press:
New York, 1998. pp.105-111.
40
MELLOW, James R. “The word plays of Gertrude Stein”. In STEIN, Gertrude. Operas and Plays.
Station Hill Press: New York, 1998. p.7.
41
“we live beside them and look at them and then they are on the table then.”
142
What is the difference between houses and a table. What is the
difference between objects on a table and furniture in houses. Had you
ever thought of that. Object on a table make a standpoint of
recompense and result, furniture in houses do decide matters. (p.108).
A peça poderia ainda ser lida tomando como ponto de vista a relação que Stein
estabelece entre os elementos tematizados por ela. E, neste sentido, voltamos à noção
desenvolvida por ela de uma peça como paisagem. E, como numa paisagem, na natureza
morta, os objetos estariam em relação uns com os outros tamm. E, nesta peça, Stein
“joga” com os objetos, tirando-os de seus lugares, substituindo-os e colocando-os em
relação uns com os outros, como na paisagem.
Pode-se dizer, inclusive, que esta operação de tirar do lugar, repor, substituir,
seria o que a autora faz com os elementos que comem uma dramaturgia. Os
personagens, por exemplo, confundem-se com os atos, em peças como Contando os
vestidos dela”, na qual eles emitem as falas.
As rubricas invadem o texto das falas, como neste trecho da peça Doutor
Faustus liga a luz:
E o cão diz obrigado
E o menino diz como é bela
E a mulher diz cure ela e diz que ela é Margarida Ida e Helena
Anabela
Termos que seriam rubricas, como “e o cão diz”, “o menino diz”, “a mulher
diz”, misturam-se com o texto que deverá ser dito pelos personagens. Não nenhuma
separação ou pontuação entre eles que os distinga
42
. Outra maneira de “desrespeitar”
regras da convenção dramática seria a indicação de inúmeros recomeços no corpo da
peça, tal como ocorre em “Byron, a play.” Nesta peça, o título é repetido pelo menos
sete vezes. E, a cada repetição, um novo começo é introduzido. Ainda nesta mesma
peça, os atos se sucedem sem obedecer a uma ordem cronológica. O Ato I repete-se
incessantemente. E em determinado momento, os Atos I e II ocorrem ao mesmo tempo,
ou, se forem entendidos como personagens, emitem juntos a mesma fala. Em uma cena
42
Na montagem para esta peça, pelo “Wooster Group”, as “rubricas” são de fato enunciadas em cena
pelos atores, de modo que todo o texto da peça se presentifica na cena.
143
da peça Listen to me, onde parece haver um diálogo, percebe-se que quem emite todas
as falas é o mesmo personagem, e este personagem é também um ato:
Quarto Ato. E o que é o ar.
Quarto Ato. O ar é lá.
Quarto Ato. O ar é lá no que há no ar.
Por gentileza observem que tudo é de uma laba e pois útil. o
produz sentimento, contém uma promessa, é um prazer, não necessita
de estímulo, é só.
Quarto Ato. O ar é só.
Quarto Ato. Sim o ar é só.
Quarto Ato. Só de que.
Quarto Ato. O ar é só de ar.
Quarto Ato. Sim o ar é só de ar.
Quarto Ato. Sim
Quarto Ato. O ar
Quarto Ato. É só
Quarto Ato. De ar.
43
E, assim como os atos tomam o lugar de personagens, às vezes os personagens
são adereços ou elementos da paisagem. É o que se passa, por exemplo, na peça “Four
saints in three acts”, na qual, segundo a própria Stein:
eu fiz os santos serem a paisagem. Todos os santos que eu fiz e eu fiz
vários deles, porque afinal há numa paisagem um grande número de
pedaços de coisas todos estes santos juntos fizeram a minha
paisagem.
44
O conceito de paisagem, introduzido por Stein em seu texto Plays”, parece,
nesse sentido, de fato nortear a escrita de suas peças. De modo que todos os elementos
que compõem, em geral, o exercício da dramaturgia, desde os mais materiais, como a
folha de papel, que serve de suporte para a escrita, à cortina, que separa cena e platéia,
até os organizacionais, como os atos ou capítulos, ou os ficcionais, como os
personagens, todos são entendidos pela autora como elementos desta paisagem. As
43
Trecho da peça Listen to me traduzido por Augusto de Campos e publicado no volume: CAMPOS,
Augusto. O anticrítico. São Paulo: Companhia das letras, 1968. p.189.
44
“I made the saints the landscape. All the saints that I made and I made a number of them because after
all a great many pieces of things are in a landscape all these saints together made my landscape.” STEIN,
Gertrude. “Plays” IN: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The Library of America, 1998.
p.267.
144
únicas “regras” que seriam seguidas à risca por Stein se referem ao fato de os elementos
deverem estar dispostos na paisagem e em relação uns com os outros.
Desse modo, então, assim como na sua descrição do que seria uma cena
excitante na vida real, isto é: aquela na qual todos se conhecem, mas atuam de modo
estranho, do mesmo jeito, os elementos que comem a sua dramaturgia (atos,
personagens, cortina, rubrica, luz), embora sejam familiares a todos, nas peças de Stein,
atuam de modo estranho, surgem deslocados de seus lugares habituais, exercendo
funções que não parecem condizer com o que se espera deles. Mas por meio das quais
se incluem, no entanto, na paisagem. E, nela, não contam histórias, mas estão
invariavelmente (mesmo que às vezes de modo pouco aparente) “em relação”. Com
isso, esses elementos dramatúrgicos tornam-se tão estrangeiros, com relação às suas
funções habituais, quanto a peça apresentada em francês pela companhia de Sarah
Bernhardt que fascinara Gertrude Stein quando jovem. Podendo-se, nesse sentido,
sintetizar o efeito geral desse jogo de relações que comem a paisagem teatral
steiniana de modo bastante semelhante à descrição oferecida pela escritora, em “Plays”,
para a apresentação da atriz francesa a que assistira muitos anos antes:
(...), era tudo tão estrangeiro e a voz dela era tão variada e tudo era tão
francês que eu pude descansar nisso sem problemas. E foi o que eu
fiz.
45
45
Ibidem. P.258
145
CAPÍTULO V
Tempo e ritmo
Cinema fotografiamovimento – teatro
146
Como eu disse um motor vai dentro e o carro anda, mas o meu
assunto meu assunto fundamental como artista não era saber
para onde o carro vai quando ele anda mas sim o movimento
dentro que é a essência da ida dele.
1
(Gertrude Stein)
1. “Quietude silenciosa e movimento rápido”
É a partir da compreensão da noção de movimento exposta por Stein em
Portraits and repetition” que pretendo iniciar a minha discussão aqui sobre as relações
que observo entre tempo, repetição, cinema e teatro em sua obra. Na palestra “Portraits
and repetition” (1935), onde Stein reflete sobre os retratos
2
escritos por ela ao longo de
toda a sua trajetória literária, a autora, apesar de se concentrar nos mecanismos de
escrita próprios aos retratos, oferece vasto material sobre as questões do tempo, do
movimento e da repetição (que ela procura distinguir aí do que chama de “insistência”).
Essas reflexões apresentam a poética temporal que orienta seus escritos e contribuem
decisivamente para uma análise da temporalidade no teatro steiniano.
Mas antes de passar à discussão sobre a tematização e o modo de atuação do
tempo no teatro de Stein é preciso compreender, em primeiro lugar, a preocupação da
escritora com relação à diferença, conceitualmente crucial, no seu caso, entre repetição
e insistência, observando de que maneira essa diferenciação afeta a compreensão de sua
escrita.
Segundo as observações de Stein, todos se interessam por histórias policiais,
porque, “não importa quantas vezes as testemunhas contem a mesma história a
insistência é diferente”. Haveria então, nesse exemplo, repetão, uma vez que as
testemunhas contam, diversas vezes, a mesma história, mas, a cada vez que ela é
contada de novo, isso é feito de maneira um pouco diferente. Qualquer pequena coisa
que se modifique transformaria, segundo Stein, essa repetição em insistência. Outro
1
“As I say a motor goes inside and the car goes on, but my business my ultimate business as an artist was
not with where the car goes as it goes but with the movement inside that is the essence of its going.”
STEIN, Gertrude. “Portraits and repetition” In: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The
Library of America, 1998.p.305
2
Uma análise mais aprofundada dos retratos steinianos pode ser encontrada na tese de Luci Maria Collin
Lavalle, “A composição em movimento: as dinâmicas temporal e espacial nos retratos literários de
Gertrude Stein”, defendida na USP em 2003. E no livro de Wendy Steiner, Exact resemblance to Exact
resemblance. STEINER, Wendy. Exact resemblance to exact resemblance. The literary portraiture of
Gertrude Stein. New Haven and London: Yale University Press. 2
nd
printing, 1979
147
exemplo de insistência (e o repetição) empregado por ela são os saltos de um sapo: “É
exatamente como um sapo saltando ele nunca consegue saltar exatamente do mesmo
jeito ou dando a mesma distância a cada salto.” o canto de um ssaro se
aproximaria, na sua opinião, mais da repetição do que da insistência: “Um ssaro
cantando é talvez a coisa mais próxima da repetição”. No entanto, continuaria, “se você
ouvir eles também variam as insistências”.
3
Ou seja, mesmo o canto dos pássaros, que
pode soar como uma repetição infinita do mesmo tema, segundo a percepção auditiva de
Stein, também apresenta alguma variação.
Narrando, como era do seu agrado, um caso biográfico exemplar, Stein buscaria
num episódio juvenil experiência fundamental para sua diferenciação entre insistência e
repetição. Conta ela que, ainda aos dezessete anos, quando foi morar com suas tias em
Baltimore, foi que se deu conta de que a repetição era algo essencial à expressão
humana. Revela que as tias tinham o hábito de contar e recontar histórias conhecidas
muitas e muitas vezes, mas que, ao fazerem isso, elas o estavam exatamente
repetindo, elas estavam insistindo. E fora então que Stein começara a atentar para a
diferença entre repetir e insistir. Pois percebera que às vezes todas as tias estavam
ouvindo enquanto falavam, até que uma ou outra parava subitamente de ouvir. Isso
significava que uma delas estava começando a repetir, ou estava cansada de acrescentar
coisas novas. Não estava mais insistindo, e sim repetindo.
Stein percebe então, segundo relata na conferência sobre os retratos, a existência
de uma conexão inevitável entre o ouvir e o falar (como atos exercitados ao mesmo
tempo). E verifica, ainda, que, se é uma pessoa que está falando e ouvindo, há uma
concentração ainda maior neste ato de ouvir e falar. Falar e ouvir funcionariam como
uma coisa e não como se fossem duas coisas separadas. “Se você quiser, é como o
motor funcionando dentro do carro que se move, eles são parte da mesma coisa”.
4
Para
ela, falar-e-ouvir (ao mesmo tempo) é algo que acontece no momento presente e que
o pressupõe nenhuma memória prévia. E seria por meio dos atos de falar e ouvir que
3
“It is very like a frog hoping he cannot ever hop exactly the same distance or the same way of hopping
at every hop. A bird’s singing is perhaps the nearest thing to repetition but if you listen they too vary their
insistence.STEIN, Gertrude. “Portraits and repetition” In: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New
York: The Library of America, 1998.p.288
4
if you like, like the motor going inside and the car moving, they are part of the same thing.” STEIN,
Gertrude. “Portraits and repetition” In: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The Library of
America, 1998. p.290
148
Stein compreenderia “o ritmo da personalidade de qualquer pessoa”
5
. Ela explica que o
movimento que existe dentro de cada pessoa era o que interessava a ela retratar:
E assim estou tentando lhes contar o que fazer retratos
significava para mim, eu tinha que descobrir o que era aquilo
dentro de qualquer um, e por qualquer um quero dizer cada um
eu tinha que descobrir dentro de cada um o que estava neles isso
era intrinsecamente excitante e eu tinha que descobrir não pelo
que eles diziam o pelo que eles faziam o por quanto ou por
quão pouco eles se pareciam com outros mas eu tinha que
descobrir isto pela intensidade de movimento que havia dentro
de cada um deles. (...) eu tenho que descobrir o que está se
movendo dentro deles que faz eles serem eles e eu devo
descobrir como eu pela coisa se movendo excitadamente dentro
de mim posso fazer um retrato deles.
6
Mas algo a incomodava, no que dizia respeito a captar o ritmo de uma
personalidade, e esse algo era a interferência do olhar, pois se, no ato de ouvir e falar,
o lembrança, segundo diz, “qualquer pequeno movimento, qualquer pequena
expressão é uma semelhança” e uma semelhança pressupõe que uma lembrança. Em
outras palavras, alguém sempre se parece com outro alguém, e esta semelhança se
evidenciaria nos pequenos gestos e nas pequenas expressões a que Stein se refere, e que,
se não são captados pelo ouvir-e-falar, poderiam ser visualizados pelo olhar. Essa
interferência da lembrança de outra pessoa e, portanto, da memória, atrapalharia a
percepção do ritmo de certa personalidade, que era o que interessava a Stein quando
procurava produzir o retrato de alguém.
Vejamos sua explicação:
Qualquer um é claro por uma pequena coisa, por um pequeno
trejeito por uma pequena expressão, qualquer um é claro se parece
com alguém, e qualquer um pode perceber esta coisa perceber esta
semelhança e ao perceber eles tem que se lembrar de alguém e isto é
uma coisa diferente de escutar e falar. Em outras palavras fazer o
retrato de uma pessoa é enquanto eles estão existindo, e enquanto eles
estão existindo o tem nada a ver com se lembrar de alguém ou
alguma coisa. Vocês vêem o que eu estou dizendo. Mas é claro que
vêem. Vocês vêem que há duas coisas e não uma e se alguém quer
5
“the rhythm of anybodys personality.” STEIN, Gertrude. “Portraits and repetition” In: STEIN,
Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The Library of America, 1998 p.293
6
“And so I am trying to tell you what doing portraits meant to me, I had to find out what it was inside any
one, and by any one I mean every one what was in them that was intrinsically exciting and I had to find
out not by what they said not by what they did not by how much or how little they resembled any other
one but I had to find it out by the intensity of movement that there was inside in any one of them. (...) I
must find out what is moving inside them that makes them them, and I must find out how I by the thing
moving excitedly inside in me can make a portrait of them.STEIN, Gertrude. “Portraits and repetition
In: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The Library of America, 1998 p.298.
149
fazer um retrato de alguém e não dois você pode ver que alguém pode
ficar incomodado completamente incomodado com essa coisa.”
7
A interferência da semelhança da pessoa retratada com outra pessoa e, portanto,
a lembrança desta outra pessoa, tornaria impossível para Stein fazer apenas um retrato
daquela pessoa, pois a lembrança de alguma outra certamente se “intrometeria”,
podemos dizer assim, fazendo com que o retrato acabasse se multiplicando. Stein
comenta, então, a técnica cinematográfica, procurando explicar de que maneira o
cinema teria oferecido uma solução para o problema do olhar, que levaria à percepção
da semelhança e, por conseguinte, à memória e a uma “confusão do tempo presente com
o passado e o futuro
8
. Diz ela:
Por mais estranho que pareça o cinema ofereceu uma solução
para essa coisa. Numa imagem em movimento contínuo de
alguém não lembrança de nenhuma outra coisa e aquela
coisa existindo, é de certo modo se vocês preferirem um retrato
de qualquer coisa e não uma porção deles.
9
Mais adiante, a escritora desenvolveria esse argumento, relacionando seus
retratos e os fotogramas de um filme:
Numa cena de cinema dois fotogramas nunca são exatamente
iguais cada um é um pouco diferente do que veio antes, e eno
nos meus primeiros retratos (...) não havia repetão (...) e eu
disse muitas vezes que alguém é alguma coisa, a cada
momento há uma diferença uma diferença suficiente para
que aquilo possa continuar e ser alguma coisa presente. (...)
Para fazer isso não pode haver lembraa, lembrança é
repetição, lembraa é também confusão.
10
7
“Any one does of course by any little thing by any little way by any little expression, any one does of
course resemble some one, and any one can notice this thing notice this resemblance and in so doing they
have to remember some one and this is a different thing from listening and talking. In other words the
making of a portrait of any one is as they are existing and as they are existing has nothing to do with
remembering any one or anything. Do you see my point, but of course yes you do. You do see that there
are two things and not one and if one wants to make one portrait of some one and not two you can see that
one can be bothered completely bothered by this thing.” STEIN, Gertrude. “Portraits and repetitionIn:
STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The Library of America, 1998. P.293
8
“... caused confusion of present with past and future time” STEIN, Gertrude. “Portraits and repetition”
In: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The Library of America, 1998. p.301
9
“Funnily enough the cinema has offered a solution of this thing. By a continuous moving picture of any
one there is no memory of any other thing and there is that thing existing, it is in a way if you like one
portrait of anything not a number of them.” STEIN, Gertrude. “Portraits and repetition In: STEIN,
Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The Library of America, 1998 p.293-294.
10
“In a cinema picture no two pictures are exactly alike each one is just as much different from the one
before, and so in those early portraits there was (…) no repetition. (…) and I did a great many times say
it, that somebody was something, each time there was a difference enough so that it could go on and be a
present something. (…) in order to do this there must be no remembering, remembering is repetition,
150
Segundo Stein, sempre que lembraa, repetição, mas a existência
humana, o estar ouvindo e escutando, que se no tempo presente, não pressupõe a
lembrança, e, portanto, não se mistura com passado nem com futuro, e não comporta a
repetição, e sim a insistência. Ou em suas palavras:
Como eu digo o que uma pessoa repete é a cena na qual está
atuando, os dias nos quais está vivendo, o ir e vir que se está
fazendo, sempre que uma pessoa está se lembrando, isso é
repetição, mas existir como ser humano, que é estar ouvindo e
escutando nunca é repetição. Não é repetão se é o que você
realmente está fazendo porque evidentemente a cada vez a
ênfase é diferente.
11
É possível relacionar esta diferea entre repetição e insistência às reflexões
steinianas comentadas aqui, presentes em outro ensaio seu, “What are master pieces
and why are there so few of them”. Neste texto, a escritora argumenta que para se fazer
uma obra-prima é preciso não ter identidade. Por identidade leia-se:
Identidade é reconhecimento, você sabe quem você é porque
você e outros se lembram de alguma coisa sobre você mas
essencialmente você não é isso quando está fazendo alguma
coisa.
12
Ou seja, quando se está vivendo ou “fazendo alguma coisa” e se está
inteiramente comprometido com o tempo presente deste “fazer”, não se tem identidade,
porque não há lembrança e, portanto, não há repetição.
Voltando, então, à relação que Stein faz entre o cinema e este comprometimento
com o presente, cabe ressaltar um comentário de Beth Hutchison presente em seu ensaio
Gertrude Stein’s film scenarios”. Observa a ensaísta que Stein, nessas passagens em
que trata de cinema, revela possuir conhecimento “da natureza de uma seqüência
remembering is also confusion.” STEIN, Gertrude. Portraits and repetition” In: STEIN, Gertrude.
Writings 1932-1946. New York: The Library of America, 1998 p.294-295.
11
“As I say what one repeats is the scene in which one is acting, the days in which one is living, the
coming and going which one is doing, anything one is remembering is a repetition, but existing as a
human being, that is being listening and hearing is never repetition. It is not repetition if it is that which
you are actually doing because naturally each time the emphasis is different” STEIN, Gertrude. “Portraits
and repetition” In: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The Library of America, 1998
p.295
12
“Identity is recognition, you know who you are because you and others remember anything about
yourself but essentially you are not that when you are doing anything.” STEIN, Gertrude. “what are
master pieces and why are there so few of them” In: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York:
The Library of America, 1998. p.355
151
cinematográfica, assim como da essência da montagem (p.35). Hutchison explicaria da
seguinte maneira o que da técnica cinematográfica Gertrude Stein lançou mão em seu
comentário sobre a insistência e a repetição:
Ao invés de repetir, uma seqüência de filme consiste de um
vasto número de imagens quase duplicadas que se combinam na
memória para criar a imagem de um objeto que persiste no
tempo.
13
Enquanto se preocupava com a interfencia do olhar na percepção do ritmo, ou,
pode-se dizer, do movimento interno de seus retratados, é justamente na mídia que
trabalha diretamente com o olhar que Stein encontra a solução para retratar o
“movimento dentro” sem fazer retratos que fossem apenas descrições e sem compor
mais de um retrato para um objeto ou pessoa. Como observa Sarah Bay-Cheng,
Stein percebeu que no filme o olho não registra a lembraa do fotograma individual, e
apenas as imagens correndo juntas em movimento
14
.
E para exemplificar o que Stein experimentava em seus primeiros retratos com
relação à insistência e não à repetição, vou citar um trecho daquele que seria, segundo a
própria Stein revela na Autobiografia de Alice B Toklas, o seu primeiro retrato, “Ada”,
publicado em Geography and plays e escrito em 1910:
Algum um que estava vivendo estava quase sempre ouvindo.
Algum um que estava amando estava quase sempre ouvindo.
Este um que estava amando estava quase sempre ouvindo. Este
um que estava amando estava contando sobre ser um então
ouvindo.
15
Nas duas primeiras frases a única coisa que muda é o primeiro verbo: “vivendo”
(living), na primeira, e “amando” (loving), na segunda. Na terceira e na quarta frases,
Stein varia a insistência de modo diferente: no lugar do “algum um” (some one) das
13
“Rather than repetition, a film shot consists of a vast number of almost duplicated images which
combine in the memory to create the image of one object persisting through time. HUTCHISON, Beth.
“Gertrude Stein’s film scenarios” Literature/Film Quarterly 17.1 (1989) p.35
14
“Stein recognized that in film the eye has no memory of the individual frame, seeing only the images
run together in movement.” BAY-CHENG, Sarah. Mama Dada : Gertrude Stein’s avant-garde theater.
New York: Rutledge, 2004.
p.30
15
“Someone who was living was almost always listening. Some one who was loving was almost always
listening. That one who was loving was almost always listening. That one who was loving was telling
about being one then listening.” STEIN. Gertrude Geography and Plays (1908-20). With an introduction
by Cyrena N. Pondrom. The University of Wisconsin Press: Madison, Wisconsin: 1993 p.16
152
duas primeiras frases, entra “Este um” (That one), no início das frases. Tanto na terceira
quanto na quarta frase, Stein mantém os verbos “amando” e “ouvindo”. E na quarta
frase ela muda o último dos fragmentos, que se mantém nas outras três frases, e que as
faz soar como repetição, “que estava” e “estava quase sempre”. O primeiro, “Que
estava” ainda persiste na última frase, mas “estava quase sempre” sofre uma mudança
um pouco mais brusca do que as outras expressões, transformando-se em “estava
contando sobre ser um entãoe ela mantém o verbo final, que se repete nas quatro
frases: “ouvindo”. Stein faz desta forma pequenas mudanças de uma frase para outra,
trabalhando as palavras no interior das frases de modo a que se torne quase
imperceptível, numa leitura corrida, o que exatamente mudou de uma frase para outra.
Percebe-se, entretanto, que houve mudança e que, portanto, se criou movimento.
Exatamente como cada fotograma de uma seqüência cinematográfica muda um detalhe
e cria movimento. Como bem observou Bay-Cheng, “o olho não registra a lembrança do
fotograma individual”, vê apenas a imagem em movimento. O olho, num primeiro
momento, também não registra cada uma das sutis mudanças operadas por Stein em
cada uma das frases (é preciso um exame mais atento, quase que investigatório para que
se aponte cada alteração), mas tanto o olho quando a audição (se o texto for lido em voz
alta) percebe a insistência, e, portanto, o movimento que atravessa o texto.
Toda esta explanação sobre as reflexões de Stein quanto a movimento, repetição
e insistência leva necessariamente, neste capítulo, à discussão da questão do tempo no
teatro e no cinema. E é por intermédio de uma conversa que Stein teria tido com Charlie
Chaplin nos anos 30 que pretendo passar da questão dos retratos para a dramaturgia
steiniana para cinema e teatro. A descrição desta conversa está em sua segunda
autobiografia, a Autobiografia de todo mundo, na qual Stein conta suas experiências
durante a visita que fez aos Estados Unidos em 1934. Nesse encontro, os dois teriam
tematizado, de um lado, o movimento, no caso de Chaplin, e, de outro, no de Stein, o
“não fazer nada”, que era o que dizia ter pretendido alcançar ao escrever a peça “Four
saints in three acts”.
É interessante observar que, antes de iniciar a descrição da conversa, Stein
compara Chaplin a um toureiro cigano chamado Gallo que, segundo a escritora, “não
podia matar um touro mas conseguia fazê-lo se mover melhor do que qualquer outro
[toureiro] conseguiu.” Note-se que, nesta comparação, já está implícita a idéia de
movimento (do cinema) sobre a qual Stein reflete em Portraits and repetition e que
153
também se acha presente nesta conversa com Chaplin, de cujo relato transcrevo o
seguinte trecho:
[Charlie Chaplin] disse que naturalmente estava
decepcionado, ele conhecera os filmes mudos e neles podiam
fazer alguma coisa que o teatro não havia feito podiam mudar o
ritmo mas se havia uma voz acompanhando é claro que não se
podia nunca mudar o ritmo estava-se sempre preso pelo ritmo
dado pela voz. Falamos um pouco sobre Four Saints [in three
acts] e qual havia sido a minha idéia, eu disse o mais
empolgante era quando nada estava acontecendo, eu disse que
os santos é natural não deviam fazer coisa alguma se você era
santo era o bastante e um santo existir era tudo, se você os
fazia fazer alguma coisa as coisas perdiam o sentido eles eram
exatamente como qualquer um assim eu quis escrever uma peça
onde ninguém fazia coisa alguma onde não havia a menor
movimentação e escrevi era Four Saints e era empolgante e ele
disse certo ele compreendia. (...) Ele queria a sensação do
movimento inventada por ele e eu queria a sensação de não
fazer nada inventada por mim, seja como for ambos gostamos
de conversar mas nós dois tínhamos que parar para sermos
educados e deixar o outro dizer alguma coisa.
16
No ensaio “Plays”, de que tratei anteriormente, um dos exemplos que Stein
usa para explicitar o conceito criado por ela de “peça paisagem” é justamente “Four
Saints in three acts”. Como numa paisagem, ela diz, os objetos estão ali se relacionando
uns com os outros, mas eles o contam uma história. Stein diz também que “nada se
move de fato numa paisagem, mas as coisas estão ”. Os santos, de “Four saints”,
compunham, nesta peça, a paisagem de Stein. Eles não precisavam fazer nada porque
ser santo já era o bastante, como ela explica a Charles Chaplin. Então, claro, criar o
“não fazer nada” numa peça de teatro seria como que o oposto da criação do
movimento, que é justamente a proposta de onde parte o cinema: a criação de
movimento a partir da seqüência de imagens congeladas (que caracterizariam a
fotografia). Mas Stein conta que, enquanto estava escrevendo “Four Saints”, ela
precisava “ver os santos” e “sentir os santos”. Curiosamente o que a fazia realmente
sentir e ver um de seus personagens era uma série de fotografias tiradas no Boulevard
Raspail, em Paris, que criavam uma seqüência parecida com a técnica usada pelo
cinema para produzir movimento.
Eis o que Stein conta sobre isso em “Plays”:
16
STEIN, Gertrude. Autobiografia de todo mundo. Trad. Júlio Castañon Guimarães e José Cerqueira
Cotrim Filho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. P.300-301.
154
Eles tiram a fotografia de uma jovem vestida com roupas
comuns e pouco a pouco em fotografias sucessivas eles a
transformam numa freira. Essas fotografias são pequenas e a
coisa muda quatro ou cinco vezes mas no final é uma freira (...)
Durante anos eu parei e olhei para essas fotografias quando
estava caminhando e finalmente quando eu estava escrevendo
Santa Teresa ao olhar para essas fotografias eu vi como Santa
Teresa existia saída da vida de uma jovem mocinha comum
para a vida de uma freira. E eno tudo era real e eu segui
escrevendo.
17
A inspiração para tornar real o personagem Santo Inácio estaria em outra
fotografia, desta vez estampada numa porcelana, vista por ela numa vitrine. Era a
imagem de “um jovem soldado dando esmola a um mendigo e tirando seu capacete e
sua armadura e deixando-os aos cuidados de outro”. Essa imagem tornou Santo Inácio
real para Stein, embora “não tão real quanto Santa Teresa nas fotografias, mas real
mesmo assim”, diz ela.
Stein quis escrever uma peça onde não houvesse movimento, mas precisava, por
outro lado, criar retratos para que seus personagens se tornassem “reais” para ela.
Lembre-se que o interesse de Stein, ao escrever o retrato de alguém ou alguma coisa,
era perceber a intensidade de movimento que havia dentro deles. Santa Teresa é,
evidentemente, mais real para ela do que Santo Inácio, pois, na seqüência de fotografias
que inspiram Santa Teresa, movimento, exatamente como nas seqüências de
fotogramas que criam a impressão de movimento no cinema. Se não há movimento na
peça, e os santos estão lá e não fazem nada, há, no entanto, um tipo de movimento que
se encontra no interior dos personagens. O movimento que faz com que eles sejam reais
para Stein. Mas esta combinação entre movimento interno e estagnação externa não
resolve, para ela, a questão do movimento em Four saints in three acts”.
Pois, como explicaria bem no final do texto “Plays”, Stein queria que houvesse
movimento “dentro e fora”:
Eu também queria que a peça tivesse o movimento das freiras
muito ocupadas num movimento contínuo mas plácido como
uma paisagem deve ser porque afinal a vida num convento é a
vida de uma paisagem, ela pode parecer excitante uma
paisagem algumas vezes realmente parece excitante mas a sua
17
“They take a photograph of a young girl dressed in the costume of her ordinary life and little by little in
successive photographs they change it into a nun. These photographs are small and the thing takes four or
five changes but at the end it is a nun. (…) For years I had stood and looked at these when I was walking
and finally when I was writing Saint Thérèse in looking at these photographs I saw how Saint Thérèse
existed from the life of an ordinary young lady to that of the nun. And so everything was actual and I
went on writing.” STEIN, Gertrude. “Plays” In: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The
Library of America, 1998. p.268
155
característica é a de que uma paisagem se em algum momento
tivesse que sumir teria que sumir para ficar.
18
Sendo assim, haveria um movimento dentro dos personagens que faria com que
eles existissem na peça e haveria um movimento fora deles, que é o movimento que
existe numa paisagem, e que também poderia ser descrito como “contínuo mas plácido”,
como o das freiras se agitando, ocupadas, no convento. Tanto num convento quanto
numa paisagem haveria uma combinação semelhante entre estagnação e movimento.
Assim como no cinema: movimento, mas o não-movimento das fotografias
congeladas, que, montadas em seqüência, criam uma imagem de movimento. Ou,
conforme se em Plays”, haveria uma outra combinação ainda, que o cinema teria
tomado emprestado ao teatro, ou, mais especificamente, a uma técnica que, segundo
Stein, teria sido inventada pelo ator, dramaturgo e diretor norte americano William
Gillette. Uma técnica que se mostraria especialmente evidente na peça “Secret Service”,
de Gillette:
Gillette tinha inventado uma nova técnica, quietude silenciosa
e movimento pido. É claro que isso já tinha sido feito no
melodrama pelos vilões particularmente em peças como the
Queen of Chinatown e naquelas que tinham operadores de
telégrafo. Mas Gillette não fez isso apenas ele arquitetou isso e
isso fez com que a cena inteira a peça inteira fosse essa cnica
quietude silenciosa e movimento pido. Uma pessoa não se
perturbava mais com o teatro, você precisava se familiarizar é
claro mas isso rapidamente se resolvia e depois disso nada mais
era perturbador. Na verdade Gillette criou o que o cinema
repetiu mais tarde ao misturar o conto (the short story) e a cena
mas ainda o problema de que o cinema é no final das contas
uma fotografia e uma fotografia continua a ser uma fotografia e
no entanto será que pode vir a ser uma outra coisa. Talvez possa
mas isso é uma outra questão.
19
18
“I also wanted it to have the movement of nuns very busy and in continuous movement but placid as a
landscape has to be because after all the life in a convent is the life of a landscape, it may look excited a
landscape does sometimes look excited but its quality is that a landscape if it ever did go away would
have to go away to stay.” STEIN, Gertrude. “Plays” In: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New
York: The Library of America, 1998. p.269
19
“Gillette had conceived a new technique, silence stillness and quick movement. Of course it had been
done in the melodrama already by the villains particularly in such plays as the Queen of Chinatown and
those that had to do with telegraph operators. But Gillette had not only done it but he had conceived it and
it made the whole stage the whole play this technique silence stillness and quick movement. One was no
longer bothered by the theater, you had to get acquainted of course but that was quickly over and after
that nothing bothered. In fact Gillette created what the cinema later repeated by mixing up the short story
and the stage but there is yet the trouble with the cinema that it is after all a photograph, and a photograph
continues to be a photograph and yet can it becomes something else. Perhaps it can but that is a whole
other question.” STEIN, Gertrude. “Plays” In: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The
Library of America, 1998. p.259
156
Não foi possível encontrar registros visuais ou sonoros da peça “Secret Service”,
de William Gillette, citada por Stein em Plays” como a melhor daquela época, dentre
os melodramas sobre a guerra civil, e na qual ele teria desenvolvido a sua técnica de
quietude silenciosa e movimento rápido (“silence stillness and quick movement”).
Mas foi possível encontrar uma resenha da peça publicada no New York Times em 13 de
maio de 1895. Assim como a reprodução de um cartaz, no qual se lê, sobre a peça: “It
looks like a plot on our telegraph lines!”.
157
A menção ao telégrafo, tanto no cartaz da peça quanto no ensaio Plays”, de
Stein, não parece ser coincidência. Acredito, pelo contrário, que ajude a compreender e
definir essa técnica a que a autora chama de “quietude silenciosa e movimento rápido”.
158
Pela resenha do New York Times, sabe-se que, na peça de Gillette, o personagem
principal é um espião do Norte dos Estados Unidos que, durante a guerra civil
americana, se faz passar por um oficial de cavalaria ferido, cuja missão é tomar o
controle do escritório de telégrafo da cidade de Richmond e mandar uma mensagem
falsa para o General em comando dos Confederados ordenando-o a recuar as tropas. No
livro The Cambridge History of American Theatre, de C. W. E. Bigsby e Don Burton
Wilmeth, lê-se:
Gillette era um mestre no que se refere a capturar os detalhes
de atuação nas suas rubricas, descrevendo uma explanação para
cada momento, em busca da aparência de realidade e chegou a
insistir que uma mensagem telegráfica fosse batida
corretamente no terceiro ato [de sua peça Secret Service].
20
A cena em que a mensagem é batida no aparelho de telégrafo é de grande
importância para a trama da peça, uma vez que é neste instante que o espião é pego em
flagrante enviando a mensagem. Ao pedir, em rubrica, que a mensagem telegráfica
fosse de fato batida em cena, Gillette criava, na verdade, quase uma suspensão no ritmo
da trama para que se observasse o ritmo da batida de uma mensagem de telégrafo em
Código Morse. Uma vez que o digo Morse, usado para esse tipo de transmissão de
mensagem, era todo baseado em um ritmo preciso, para que a mensagem pudesse ser
inteiramente compreendida, Gillette inseriu no andamento da peça, o tempo e o ritmo
reais da batida de uma mensagem. Mesmo que poucas pessoas na platéia fossem
capazes de compreender a mensagem que estava sendo enviada, por escutar o ritmo
da batida do telégrafo, toda a platéia era obrigada a perceber, mesmo sem compreender
a mensagem, o ritmo real de uma mensagem sendo enviada emdigo Morse.
Acho importante dar aqui algumas informações sobre o digo Morse. Ele é
todo baseado em pontos e traços (ou dits e dahs, respectivamente) que, combinados,
formam as letras, os números e a pontuação. Para se saber quando acaba uma letra e
começa outra, que se fazer uma pausa correspondente a um dah ou três dits. Entre
cada uma das palavras há que se fazer uma pausa correspondente a sete dits. E,
seguindo este ritmo, a mensagem é transmitida. Se pensarmos no Código Morse como
uma alternância entre pausas de silêncio e os movimentos rápidos das batidas de pontos
20
“Gillette was masterful at capturing acting detail in his stage directions, creating a moment-by-moment
explication of apparent reality, and even insisted that a telegraph message in Act III be accurately clicked
out” The Cambridge History of American Theatre Volume 2, 1870 – 1945. Edited by Don B. Wilmeth,
Christopher Bigsby. Cambridge University Press: Cambridge, 1999. P.274
159
e traços, pode-se fazer uma analogia entre o Código Morse e o que Stein chama de
quietude silenciosa e movimento rápido”. Stein, segundo se pode aferir por seus
comentários em “Plays”, teria assistido à peça de Gillette e, certamente, atentado para a
cena da batida da tecla do telégrafo em tempo real (mesmo que ela não comente
especificamente esta cena no texto, ela nos a entender isso). E parece ter percebido
que Gillette estende para toda a peça a relação temporal que entre movimento e
barulho, e uma calma silenciosa das pausas na batida do telégrafo.
Stein diz, ainda em “Plays”, que a técnica criada por Gillette permitiu a ela não
ficar mais “perturbada pelo teatro”. Lembre-se que a autora menciona, logo no início do
ensaio, que a coisa que a perturbava no teatro era justamente o que ela chamava de
tempo sincopado”, de falta de sincronia entre a emoção do público e a emoção do que
ocorre no palco:
Eu digo a sua emão no que diz respeito à peça está sempre
ou ats ou na frente da peça para a qual você está olhando e à
qual você está assistindo. Então a sua emoção como um
membro da platéia nunca vai estar no mesmo tempo da ação da
peça.
21
Quando Gillette cola o tempo real da batida da mensagem no telégrafo ao tempo
fictício da peça, ele, de alguma maneira, resolve para Stein o problema do tempo da
emoção no palco estar atrás ou à frente do tempo da emoção do público. Neste momento
pelo menos, a cena e o público estão juntos, vendo e escutando as batidas do telégrafo
num mesmo e único tempo real. E como todo o digo Morse é inteiramente baseado
em dois elementos gráficos (o ponto e o traço) combinados com um elemento temporal
(que é o ritmo com que os traços e pontos são descritos no tempo e no espaço), o
problema de ver e ouvir ao mesmo tempo também se resolve de certo modo para Stein.
Pois o gráfico de pontos e traços produzido pelo telégrafo se harmoniza inteiramente
com o som e o ritmo das batidas na tecla do aparelho. Observe-se esta foto que mostra
um detalhe da reconstituição de um telégrafo usado na Guerra civil americana:
21
“I say your emotion concerning that play is always either behind or ahead of the play at which you are
looking and to which you are listening. So your emotion as a member of the audience is never going on at
the same time as the action of the play.STEIN, Gertrude. “Plays” In: STEIN, Gertrude. Writings 1932-
1946. New York: The Library of America, 1998. p.244
160
Enquanto o dedo do operador bate os pontos e os tros na tecla única do
aparelho, o registro gráfico deste som é desenhado na fita branca no momento da batida.
Visão e audição se unem no tempo e no espaço.
Observemos esta foto do primeiro telegrama enviado por Samuel F. B. Morse,
de Washington para Baltimore em 1844:
É de uma variação na combinação entre pontos e traços, como a foto acima
mostra, que se definem letras, números e pontuação. Pode-se compreender que os traços
e pontos venham a se repetir, como no gráfico acima, mas, a cada repetição, uma
mudança na combinação e, portanto, algum movimento. Stein diria que, neste caso, e
em toda mensagem em digo Morse, haveria não uma repetição, e sim uma
insistência. Como no trecho analisado aqui do retrato “Ada”, no qual a autora,
trabalhando com poucas palavras, cria movimento no seu texto apenas variando a
combinação entre elas.
Para usar outro exemplo, lembro um trecho do retrato “If I told him. A
completed portrait of Picasso”, no qual Stein trabalha apenas com quatro palavras de
uma silaba, “he”, “and”, “as” e “is”, dando ritmo e movimento ao texto de acordo
161
com a variação da combinação entre essas palavras. Observe-se o trecho e veja-se se
o pode ser comparado ao gráfico de uma mensagem em Código Morse:
He he he he and he and he and and he and he and he and and
as and as he and as he and he. He is and as he is, and as he is
and he is, he is and as he and he and as he is and he and he and
and he and he.
22
Os sons das palavras “he”, “and”, as” e “is”, funcionariam como os pontos,
traços e pausas do Código Morse. São as diferentes combinações entre os sons dessas
quatro palavras que conferem ritmo, temporalidade e movimento ao texto. A audição da
gravação, feita por Stein, deste retrato reforça a noção de ritmo que interessa a ela, o
que se observa claramente em sua leitura, por meio da qual se verifica a maior
importância dada por ela ao ritmo e à sonoridade das palavras, do que exatamente ao
“sentidomais evidente que a combinação entre elas pode ter. O sentido, neste caso,
como em tantos outros textos de Stein, estaria justamente na combinação entre os sons
das palavras e as pausas entre elas.
Ao ouvir Stein lendo seu texto e em seguida ouvir o som dos dits e dahs do
Código Morse, pode-se perceber que de fato uma coincidência no jogo entre som e
silêncio presente nesses dois “textos”. Ao ouvir a leitura de Stein ou ao ler seu texto,
percebe-se, por exemplo, que o tanto o som quanto a grafia da palavra “and” se estende
um pouco mais do que o som e a grafia da palavra “he”, assim como os sons do dit do
Código Morse são mais curtos do que os do dah. As pausas, quase imperceptíveis, aliás,
tanto no retrato de Picasso, produzido por Stein, quanto no digo, se acham
reforçadas, no texto steiniano, pelos pontos e rgulas usados por ela ao escrever.
Vale ainda lembrar um dos filmes apontados por Sara Bay-Cheng como tendo
exercido mais forte influência sobre Gertrude Stein, um curta metragem de D.W.
Griffith chamado “The Girl and her Trust(1912). Neste filme, a mocinha da história é
uma operadora de telégrafos “admirada por todos”. Ao se ver, em dado momento, em
apuros, abordada por dois ladrões, ela pede socorro batendo um telegrama. Um dos
ladrões, mesmo estando do outro lado da porta, escuta as batidas da moça na tecla do
22
Há uma tradução de Augusto de Campos para este retrato, que mantém, na transposição para o
português, tanto o ritmo procurado por Stein quanto a repetição de monossílabos. Usei para análise o
texto em inglês, para mostrar a sonoridade criada pela autora e para comparação com a gravação feita por
ela deste retrato, cuja sonoridade se assemelharia as da batida do código morse. Segue o trecho traduzido
por Augusto de Campos: “Se se se se e se e se e e se e se e se e e como e como se e como se e se. Se é e
como se é, e como se é e se é, se é e como se e se e como se é e se e se e e se e se.”
162
telégrafo e entende, pelo ritmo da batida, a mensagem que ela está enviando. Vale a
pena assistir ao filme (a que não é difícil ter acesso hoje, por meio da internet), e
perceber que o gosto de Stein pelo telégrafo não se resume à peça de Gillette, e aos
melodramas sobre a guerra civil americana, principalmente aqueles “que
tinham
operadores de telégrafo”, mas que se manifesta também nas suas referências
cinematográficas.
23
A técnica a que Stein chama de “quietude silenciosa e movimento rápido” e
ainda a tematização da fotografia como elemento base para a criação de movimento no
cinema são duas características que se dão a ver nos dois únicos roteiros
cinematográficos escritos por Gertrude Stein.
O primeiro deles, “A movie”, foi escrito em inglês em 1920. O segundo,
elaborado nove anos depois, em 1929, foi escrito em francês e levou o título de “Film,
Deux soeurs qui ne sont pas soeurs”. Beth Hutchison, em seu ensaio “Gertrude Stein’s
Film Scenarios”, aponta distinções evidentes entre os dois roteiros, esperáveis em textos
escritos com um intervalo de tempo tão grande:
Refletindo os dez anos que os separam, os roteiros de Stein
diferem um do outro na técnica, uso do espaço, trama, estrutura
temporal e exploração da natureza do cinema. O primeiro de
seus roteiros, Movie”, data de 1920. “Movieapresenta uma
história de espionagem e heroísmo na Primeira Guerra Mundial,
com o acréscimo de uma perseguão de carro, uma parada sob
o arco do triunfo e uma parceria entre um pintor americano e
sua empregada doméstica francesa. “Film” é uma meditação
sobre aparência e diferença, realidade e fotografia, que é em
última instância um exame filosófico da natureza mesma do
cinema.
24
Na opinião de Sarah Bay-Cheng, “A Movie” teria tido como referência mais
direta os populares filmes mudos americanos que eram distribuídos na época, enquanto
“Film” se aproximaria mais dos filmes franceses de vanguarda. O convívio da autora
com artistas como Man Ray, Luis Buñuel, Marcel Duchamp, André Breton, Francis
23
O filme pode ser assistido no site youtube:
http://www.youtube.com/results?search_query=%22the+girl+and+her+trust%22&search=Search
24
“Reflecting the ten years separating them, Stein’s scenarios differ from each other in technique, use of
space, plot, temporal structure and exploitation of the nature of film. The first of her scenarios, ‘Movie
dates from 1920. ‘Movie’ presents a story of spying and heroism in World War I, complete with a car
chase, a parade under the Arc de Triomphe, and a partnership between an American painter and his
French domestic servant. ‘Film’ is a meditation on appearance and difference, reality and photography
that is ultimately a philosophical examination of the nature of film itself.” HUTCHISON, Beth. “Gertrude
Stein’s film scenarios” Literature/Film Quarterly 17.1, 1989. p.35
163
Picabia e Tristan Tzara, que freqüentavam seu studio na Rue de Fleurus nº27, teria
influenciado o seu segundo roteiro cinematográfico. Não seria à toa que “Film” teria
sido escrito em francês e “A Movie” em inglês.
25
Em “A movie”, Stein usa a primeira guerra mundial como pano de fundo para
contar a história de um pintor que, por estar sem dinheiro, resolve se tornar motorista de
táxi. Quando os Estados Unidos entram na guerra, ele decide se tornar um “soldado
americano”. Por ser taxista e, portanto, conhecer bem a cidade de Paris, ele é
encaminhado para o Serviço Secreto e passa a exercer a função de agente enquanto
continua dirigindo seu táxi. Os acontecimentos que se seguem, envolvem, além do
pintor, do táxi (que é quase um personagem na história), e da sua empregada doméstica
bretã, uma série de outras figuras: dois oficiais americanos que pedem ao pintor que os
conduza “para fora da cidade em direção ao sul, primeira cidade grande”, um “doce
soldado americano” ferido, que se encontra num hospital em Avignon, (outros) dois
oficiais americanos que visitam o soldado ferido e “dois americanos trapaceiros”. Além
destes figurantes, Stein retrata também a si mesma e a Alice Toklas em seu roteiro. Nele
são mencionadas “duas senhoras muito encantadoras” que “compram toda a comida boa
e agradável em Avignon”, e que servem de auto-retrato bem evidente para a dupla.
O pintor americano parece ter sido inspirado em William Cook, amigo de Stein
que se tornou taxista por falta de dinheiro. E parece ter sido ele quem ensinou Stein a
dirigir. Tanto a referência a William Cook quanto o relato de que Stein e Toklas,
morando na França, iam, durante o período da guerra, de fato fazer compras em
Avignon no inverno, o fatos que se acham registrados por Stein na Autobiografia de
Alice B. Toklas. Mas não são apenas os personagens de “A movie” que têm por base
modelos reais, também a guerra e uma série de retratos” de fatos, momentos e
curiosidades relacionadas a este período que Stein apresenta em seu roteiro. A famosa
procissão de táxis, em Paris, que levou cerca de 6.000 soldados para a Primeira Batalha
do Marne
26
, por exemplo, serve literalmente de pano de fundo para a cena em que o
pintor americano, sentado num café, decide tornar-se taxista:
25
Conferir BAY-CHENG, Sarah. Mama Dada : Gertrude Stein’s avant-garde theater. New York:
Rutledge, 2004 pp.39 e 42
26
A Primeira Batalha do Marne foi uma batalha da Primeira Guerra Mundial que durou de 5 de
Setembro a 12 de Setembro de 1914. Foi uma vitória franco-britânica sobre a Alemanha. A batalha do
Marne foi um dos momentos decisivos da I Guerra Mundial. No fim de Agosto de 1914 toda a tropa da
Tríplice Entente na Frente Ocidental foi forçada a recuar em direção a Paris. Ao mesmo tempo as duas
principais forças alemãs continuavam avançando pela França. Segundo as diretrizes do plano Schlieffen,
o avanço alemão se fazia em um movimento duplo de duas grandes alas, a esquerda que penetrava pela
fronteira da Renânia com a Lorena e enfrentava o sistema de defesa fortificado francês, e a direita, que
164
Pintor americano senta num café e contempla carteira vazia
enquanto xis se enfileiram por Paris carregando soldados
franceses para a batalha do Marne. Eu acho que vou ser um
motorista de táxi aqui na alegre Parie diz o pintor americano.
Segundo relatos bastante conhecidos sobre a Primeira Batalha do Marne, esta
se tornaria famosa pelos aproximadamente 600 táxis parisienses usados para transportar
os soldados para o local do combate.
27
Não a saída dos táxis de Paris em direção ao
campo de batalha, no entanto, se tornaria memorável, mas também o veículo empregado
então pelos taxistas. O carro em si, o Renault AG, se transformaria em parte da história
militar francesa, em peça de museu, como mostra essa foto de um dos táxis de la
Marne” (como ficou conhecido o evento), que se acha em exposição no Musée de
l’Armée em Paris:
invadiu pela lgica e faria uma grande e progressiva conversão, avançando em terririo francês no
sentido nordeste - sudoeste, com a intensão de capturar Paris e surpreender a retaguarda inimiga. A
tomada da capital francesa parecia inevitável. Foi então organizado um contra-ataque pelo chefe militar
de Paris, Joseph Simon Gallieni, ao longo do rio Marne para parar a ofensiva alemã. A batalha começou
no dia 5 de Setembro quando a Sexta Infantaria Francesa, liderada pelo general Michel-Joseph Maunoury,
encontrou a Primeira Infantaria Alemã. A ajuda britânica veio em 9 de Setembro, o que obrigou o
recuo da Alemanha.” http://pt.wikipedia.org/wiki/Primeira_batalha_do_Marne
27
Conferir, por exemplo, o verbete da enciclopédia Online Wikipedia:
http://en.wikipedia.org/wiki/First_Battle_of_the_Marne
165
também registros fotográficos que mostram os carros deixando a cidade de
Paris. A foto a seguir retrata os táxis se enfileirando por Paris”, a exata descrição que
Steindo evento em seu roteiro:
Apesar de Stein ter escrito o roteiro em 1920, portanto apenas dois anos depois
do final da guerra e seis anos depois da Primeira Batalha do Marne, o evento é captado
por ela enquanto registro fotográfico, momento histórico transformado em fotografia.
À ação privada e em primeiro plano do pintor sentado no café e contemplando sua
carteira vazia, Stein contrapõe um evento passado que, por ter se tornado histórico, é,
para a autora, no momento presente da escrita, estático, sem movimento, uma fotografia
ou cartão postal da Primeira Guerra. Embora, no roteiro, pareça haver um movimento
mais intenso na procissão de táxis, “que se enfileiram por Paris carregando soldados
para a batalha do Marne”, do que na ação quase estática do pintor contemplando sua
carteira vazia, ao se perceber a dimensão histórica que o evento dos “táxis do Marne”
tem para Stein, no momento mesmo em que está escrevendo seu texto, o ponto de vista
se inverte. E onde haveria confusão, movimento e barulho, há o não movimento, a
paralisia e o silêncio de uma foto, fazendo com que a simples contemplação de uma
carteira por um personagem dentro de um café, ganhe mais movimento do que a
agitação que uma foto como a que reproduzi acima sugere.
Num outro trecho do roteiro, ocorre situação semelhante. O passado está
presente num cenário de fato imóvel. A ação transcorre tendo como pano de fundo
cenográfico um verdadeiro cartão postal da França, a Pont du Gard. É diante e sobre
este monumento histórico estático que há um movimento intenso. Observe-se o trecho:
166
Pintor americano na cama sob cuidados de freira enfermeira
francesa mas um jeito de escapar e ir para Pont du Gard em
táxi consertado. sob a sombra daquele monumento
imperecível do esfoo e do poder da Roma antiga duelo
excitante. Policial francês pintor americano, táxi, e.d. Bretã,
dois americanos trapaceiros com motocicletas nas quais eles
tentam escapar sobre o topo da Pont du Gard, grande façanha,
eles são finalmente capturados.
Se a Primeira Batalha do Marne não é reencenada por Stein em seu roteiro, a
autora cria, no entanto, uma outra batalha”, envolvendo um dos também históricos
táxis de Marne” numa grande façanha na qual são capturados “dois americanos
trapaceiros”. Mais uma vez se contrapõe uma imagem estática a da Pont du Gard,
“monumento imperecível do esforço e do poder da Roma antigaa um movimento
intenso “duelo excitante”. A “quietude silenciosa” aqui representada pelo monumento
entra em contraste com o “movimento rápido do duelo travado naquele cenário de
cartão postal.
No primeiro trecho citado e comentado, há, no entanto, uma combinação mais
conflitante entre “quietude silenciosa” e “movimento rápido”. Em segundo plano,
estaria o que seria o “movimento rápido”, o enfileiramento de táxis por Paris, e, em
primeiro plano, a “quietude silenciosa” do pintor contemplando a carteira vazia. Mas,
como se viu, a confusão de táxis carrega, por seu conteúdo histórico, a quietude
silenciosa” da fotografia, do documento, enquanto a bita decisão do pintor de tornar-
se um motorista de táxi aqui na alegre Paris” se configura como “movimento rápido
em contraponto à “quietude” mesma da própria falta de dinheiro e à imagem fotográfica
dos táxis abandonando Paris com as tropas de soldados.
Ao final do roteiro, Gertrude Stein se refere a um outro momento histórico, desta
vez decisivo, ao final da guerra, e retrata o dia do Armistício, mais especificamente a
parada sob o Arco do triunfo em 11 de novembro de 1918. No roteiro, lê-se o seguinte:
Depois de muitas outras aventuras tão famosos ficaram pintor
americano, e.d. Bretã e táxi que na marcha sob o arco no triunfo
final dos aliados o táxi por pedido especial do general Pershing
veio na retaguarda da procissão depois dos tanques, a bretã
dirigindo e o pintor americano brandindo a bandeira americana
Old Glory e a tricolor.
167
Neste caso, Stein insere no momento histórico passado (e, portanto, a seu ver,
estático, fotográfico) os seus personagens de ficção. É como se ela pudesse recortá-los e
colá-los no cartão postal do dia do Armistício. Dentro da fotografia, numa sobreposão
de elementos, a “quietude silenciosa” da imagem do evento passado, e agora, de certo
modo, congelado no tempo, se vê invadida pela agitação dos seus personagens fictícios,
pelo táxi, pela bretã na direção e pelo pintor, que, afinal, acaba produzindo ainda mais
movimento ao fechar a parada brandindo as duas bandeiras.
Estes são apenas três exemplos em que se pode observar a manipulação do
tempo por Stein, por meio de um contraste ou de uma combinação entre movimento e
fixidez. Mas, numa visão mais geral do roteiro, ao longo de todo o texto se alternam
momentos de “quietude silenciosa” e “movimento rápido”. Alternam-se momentos que
podemos definir como cheios de pontos e traços e outros dominados pelos silêncios.
Alternam-se momentos de pausas sonoras e visuais e outros de grande agitação
barulhenta.
No início do roteiro cinematográfico, o pintor está pintando no campo francês
perto estrada de ferro”. Esta imagem, quase estática e fotográfica, é interrompida,
porém, pelo movimento de uma “locomotiva da mobilização” que “passa com
notificação para vilas”. A passagem do barulhento trem como que invadindo o silêncio e
a calma de um pintor diante de sua tela e da paisagem que contempla e retrata. Depois
que decide se tornar taxista, o pintor “senta no estúdio tentando aprender nomes de ruas
com ajuda de empregada doméstica camponesa bretã”. Segue-se a este momento de
quietude, do pintor estudando com a moça bretã, uma “cena”, resumida em uma frase,
na qual o pintor “vira motorista de táxi”. A esta passagem brusca de tempo, e da ação
tranqüila de estudo para a transformação súbita do pintor em taxista, se poderia definir
como produtora de um “movimento rápido”. Em seguida, Stein, ao invés de descrever
alguma situação, fornece ao leitor uma sugestão de cena: “Cena comum em Paris
tempos de guerra.Esta seqüência, que não é descrita em detalhes pela autora, situa
temporalmente o roteiro: em Paris durante a guerra. No parágrafo subseqüente, a autora
trata da entrada dos Estados Unidos na guerra e o pintor-motorista de táxi decide, então,
ser um “soldado americano”. Ele é designado para o Serviço Secreto. Depois de entrar
para o Serviço Secreto, o pintor americano ensina inglês para a empregada doméstica
bretã, leva dois homens para a estação, um de cada vez, leva dois oficiais americanos
para fora de Paris, manda a empregada bretã enviar telegramas a todos os parentes dela
perguntando se eles conhecem americanos que estão ficando para sempre na França, e é,
168
ainda, designado para uma missão: o chefe do Serviço Secreto lhe carta branca para
descobrir quem anda roubando dinheiro do departamento de acomodação e alimentação.
As aventuras vividas pelo pintor francês, com seu táxi, e pela empregada doméstica
bretã, na tentativa de solucionar o caso, envolvem uma viagem na neve, pelas
montanhas, até Avignon, um acidente de carro provocado por dois americanos de
motocicleta, uma estadia no hospital onde conhecem um soldado americano ferido, que
descreve dois oficiais americanos que o tratavam muito bem, a fuga do hospital, a
batalha final com os trapaceiros americanos na Pont du Gard, “muitas outras aventuras”,
além da fama e, finalmente, da participação no desfile, sob o Arco do Triunfo, no final
da guerra. Todos esses acontecimentos são descritos em apenas três páginas de texto.
Pois o roteiro cobria um período de tempo histórico relativamente longo. Começando
com a Primeira Batalha do Marne, em 1914, e terminando no dia do Armistício em
1918.
O parágrafo no qual o pintor americano decide ser soldado é um exemplo do
estilo de escrita escolhido por Stein para dar ao texto um ritmo quase frenético:
América entra na guerra pintor americano quer ser soldado
americano. Oficial de recursos humanos entrevista ele. O que
você faz, dirijo táxi. Você conhece Paris, Serviço Secreto para
você continue dirigindo táxi.
O parágrafo composto de quatro frases, citado acima demonstra como Stein,
usando poucas palavras e frases curtas, registra uma grande quantidade de ocorrências:
os americanos entram na guerra, o pintor americano decide participar da guerra, é
entrevistado pelo oficial de recursos humanos e designado para o Serviço Secreto e
autorizado a continuar dirigindo seu táxi. Tudo isso é resolvido rapidamente numa
escrita telegráfica que quebra com a fluidez da passagem de tempo, criando um
movimento como que em staccato. A escrita telegráfica, formada por frases curtas,
quase sem elementos gramaticais de coesão, funciona aqui de modo semelhante ao dos
fotogramas cinematográficos. Cada frase é plena de informão e curta a ponto de poder
ser captada pelo olhar numa visada, como um fotograma. Mas é como se Stein, ao
contrário do que faz nas frases do trecho comentado aqui do retrato “Ada”, pulasse
rios fotogramas e deixasse os que resumem em si toda a informação de que ela
necessita. Os cortes bruscos não produziriam deste modo uma ilusão de movimento
como a que o cinema criava (por meio de uma continuidade, resultante de uma sucessão
169
de fotogramas quase iguais), exibindo, ao contrário, uma série de imagens quase
estáticas cuja seqüência criava um outro tipo de mobilidade, bastante diferente daquela
que buscava reproduzir o movimento real (como o cinema parecia perseguir). Stein
insistia em fazer, deste modo, em seu roteiro cinematográfico, quase o contrário do que
o cinema de sua época procurava fazer. Ela não tentava criar uma impressão de
movimento contínuo. Daí o não-uso de elementos de coesão no texto, tornando-o
telegráfico. Daí o uso de frases curtas. O excesso de acontecimentos, a alternância entre
momentos calmos e outros de grande movimentação, a sobreposição da imagem estática
e da ação, esses sim seriam os recursos usados por Stein para conferir ritmo e
movimento ao texto.
A alternância entre momentos de grande agitação, entre parágrafos de frases
curtas, nos quais uma grande quantidade de coisas acontece, e outros parágrafos em que
uma espécie de calmaria, nos quais as frases são mais longas, parecem dar a este
roteiro a forma de uma escrita marcada pela técnica do “movimento rápido” e da
quietude silenciosa”, como a descrita por Stein em “Plays”. O parágrafo que antecede
o analisado anteriormente seria um exemplo claro, na minha opinião, de “quietude
silenciosa”. Cito aqui os dois parágrafos juntos para que se observe a alternância de
ritmo que há neles:
Com preguiça de acordar cedo de manhã ele passa algumas de
suas noites escuras ensinando a garota camponesa bretã
empregada doméstica a dirigir táxi para que ela possa substituí-
lo quando ele quer dormir.
América entra na guerra pintor americano quer ser soldado
americano. Oficial de recursos humanos entrevista ele. O que
você faz, dirijo táxi. Você conhece Paris, Serviço Secreto para
você continue dirigindo táxi.
Enquanto no primeiro parágrafo citado acima se passam diversas noites nas
quais quase nada acontece, a não ser o aprendizado da garota bretã a dirigir o táxi, no
parágrafo seguinte, como foi visto, uma grande agitação, uma grande quantidade
de acontecimentos. A técnica de escrita dando ritmo ao que se conta em ambos os
parágrafos. No primeiro trecho, uma única frase longa se estende “preguiçosamente”
por todo o parágrafo, espelhando as noites longas, a preguiça e a vontade de dormir do
pintor, assim como a ausência de acontecimentos aventurescos na narrativa. algo
assim até na descrição da empregada doméstica bretã, à qual Stein se refere pela
primeira vez como “empregada doméstica camponesa bretã”. E, neste parágrafo, a
autora acrescenta ainda a palavra garota”, prolongando a longa descrição da moça.
170
Na mistura de francês com inglês, como está no texto original, Stein se refere a ela aqui
como “Bretonne femme de ménage peasant girl”. A partir do momento em que os
Estados Unidos entram na guerra, e o pintor se torna soldado, a ação ganha um ritmo
mais aventuresco, e Stein passa a se referir à garota como “Bretonne f.m.” ou “f.m.
Bretonne(que na tradução ficou “e.d. bretã”), como se ela não tivesse mais tempo de
escrever todas aquelas palavras a cada vez que tivesse que se referir à moça. A própria
trama agilizando deste modo a escrita de Stein.
Antes de receber sua primeira missão como soldado americano do Serviço
Secreto, o pintor ainda tem tempo de ensinar inglês à garota bretã para que ela possa
substit-lo se for preciso”. um pequeno momento de relativa calma antes de os dois
partirem para Avignon atrás dos suspeitos do roubo de dinheiro. Neste pequeno
momento de relativa calma, no entanto, Stein cria uma outra espécie de movimento que
reflete novamente a preguiça” do pintor, contrastando-a com a demanda de trabalho
que o táxi exige dele. Neste trecho, a autora usa um outro recurso para criar movimento,
o recurso da repetição. Observe-se o trecho:
Uma noite ele seu jornal sob a luz. Policial manda ele sair,
não quer quer ler.
Homem se aproxima quer ir para a estação.
Pintor tem que levá-lo. Volta, lendo de novo.
Um outro homem vem quer ir para a estação. Pintor o leva.
Volta para ler de novo. Dois oficiais americanos aparecem.
Querem ir para a estação.
Pintor diz Cansado da estação levo vocês para Berlim se
quiserem. Estação não. Oficiais dizem te damos muito se você
nos levar para fora da cidade em dirão ao sul, primeira cidade
grande.
Neste trecho Stein trabalha com técnica diferente daquela usada nos dois
parágrafos analisados anteriormente. Aqui, a vontade do pintor de ficar parado sob a
luz, lendo seu jornal, ou seja, sua vontade de não fazer nada, é interrompida pela
obrigação de levar pessoas à estação. Se no parágrafo composto pela frase longa, o que
foi comentado antes, a atividade tranqüila de ensinar a empregada bretã a dirigir o táxi
o é interrompida por nenhuma outra ação, neste trecho, a ação calma de ler jornal do
pintor é constantemente interrompida. Seja pelo policial que pede a ele que saia de onde
está, seja pelos passageiros que pedem a ele para levá-los à estação, seja pelos oficiais
que ele acaba de fato levando para fora da cidade. Para contrastar o movimento intenso
171
do táxi para e para cá, com o movimento quase parado, com o quase não-movimento
do pintor lendo o jornal, Stein trabalha com frases curtas, novamente telegráficas, e com
parágrafos também breves, constituídos de frases sintéticas. Assim como a ação de ler o
jornal é interrompida, também as frases e parágrafos são encurtados, interrompidos. A
cada parágrafo ou frase entra um novo personagem, ou um acontecimento novo que
muda a ação. No primeiro parágrafo, o personagem permanece parado apesar de o
policial o mandar sair. No segundo, surge um homem, no terceiro, o pintor o leva à
estação, volta e lê de novo, no quarto parágrafo, o pintor-taxista leva outro homem para
a estação, no quinto, ele volta a ler novamente. A leitura é interrompida a cada momento
com um intervalo cada vez menor. No primeiro parágrafo, ele parece não obedecer ao
policial e continuar lendo, no terceiro parágrafo ele interrompe pela primeira vez sua
leitura para levar um homem à estação, mas ele volta e retoma a ação de ler (“lendo de
novo”). Quando surge o segundo homem, ele é obrigado a interromper a leitura que
tinha conseguido retomar. Quando aparecem os dois oficiais americanos, tem-se a
impressão de que o pintor mal teve tempo de voltar à sua leitura. Ele “volta para ler de
novo”, mas, imediatamente depois de sua volta, ele é obrigado a lidar com os dois
oficiais. As ações de ir, vir e ler vão ficando cada vez mais rápidas a cada repetão. Até
que o pintor nem consegue mais chegar sequer a reiniciar sua leitura. É interrompido
antes disso. E decide interromper também as idas e vindas do táxi à estação.
A estas repetições da cena da leitura do jornal, e das idas e vindas do táxi,
correspondem outros tipos de repetição. O trabalho com os duplos, por exemplo,
recorrente neste seu primeiro roteiro cinematográfico, também pode ser compreendido
como uma forma de repetição. Ou de insistência, como talvez Stein preferisse desig-
lo.
No que diz respeito aos personagens, muitos deles possuem duplos de diferentes
tipos. A parceria entre o pintor e a empregada doméstica bretã faz dos dois uma espécie
de dupla em que um pode, em certo momento, funcionar como duplo do outro, ocupar o
lugar do outro (como motorista do táxi). Por outro lado, o pintor e seu táxi também
formam uma outra parceria, na qual a empregada doméstica bretã é apenas coadjuvante.
também os dois oficiais americanos que o pintor se recusa a levar a estação. Depois,
em meio a uma proliferação de “americanos esquisitos” (que a empregada doméstica
bretã descobre graças aos telegramas que recebe de seus familiares), destaca-se uma
dupla de americanos “não tão esquisitos”. É em busca destes dois que o pintor decide
partir com seu táxi e a moça bretã. São, outra vez, dois os americanos em motocicletas
172
que surgem na estrada e causam um acidente com o táxi. Dois oficiais americanos
voltam a aparecer na descrão de um soldado ferido presente no roteiro. E, na Pont du
Gard, se encontra mais uma dupla de americanos. Tratando-se, desta vez, de “dois
americanos trapaceiros com motocicletas”. Essas duplas de americanos acabam por
criar uma espécie de confusão, em “A movie”, no que diz respeito à identidade destes
personagens. Não se sabe ao certo, em dado momento, se os dois oficiais americanos
que pagam o pintor para tirá-los da cidade, seriam os mesmos americanos de
motocicleta que atravessam o caminho do táxi. Pode-se subentender, no entanto, que os
dois oficiais descritos pelo soldado ferido sejam os mesmos americanos trapaceiros que
tentam escapar em motocicletas na Pont du Gard. Se estão pilotando motocicletas,
subentende-se que talvez se trate, neste caso, dos mesmos americanos em motocicletas
que causaram o acidente com o táxi. E os “dois americanos não tão esquisitos”, que
aparecem no telegrama recebido pela garota bretã, talvez fossem, na verdade, no final
das contas, os trapaceiros em motocicleta que recebiam o dinheiro roubado.
Além desta proliferação de duplas de americanos, as duas americanas
descritas em um dos telegramas que a empregada doméstica recebe e que, como já se
viu, teriam por modelo a dupla Stein e Toklas, que a autora se diverte em auto-retratar e
inserir neste roteiro em uma pequena participação. A dupla de americanas da história do
pintor-taxista teria, portanto, um duplo não fictício na escritora e em sua companheira
Alice Toklas. Assim como o próprio pintor americano teria por modelo um duplo
também real. Pois, como foi apontado, e Stein conta na Autobiografia de Alice B.
Toklas, foi o seu amigo William Cook quem serviu de inspiração para o personagem do
roteiro.
No final de “A movie”, outra duplicação: o pintor vem na retaguarda da
procissão brandindo não uma, mas duas bandeiras: a francesa, a tricolor, e a americana
Old glory (nome atribuído pelo capitão William Driver à bandeira de seu país na
primeira metade do século XIX e popularizado ao final da Guerra Civil americana).
E, voltando ao início do roteiro, a cena que se oferece é a do “Pintor americano
pintando no campo francês”. Aí, além da paisagem do campo francês, a reprodução
dela no quadro que o pintor está pintando. O quadro duplica a paisagem na qual o pintor
se acha inserido. E todos, pintor, paisagem e quadro estão, por sua vez, dentro de um
filme, que, como diz Stein em “Plays”, é “no final das contas uma fotografia”. E uma
fotografia que é uma tentativa de refiguração da realidade. O trabalho com duplos, ou
melhor, com uma proliferação de duplos, de telegramas, de parentes da garota bretã e de
173
americanos esquisitos em toda parte”, parece refletir, ainda, a idéia de reprodução e
produção em série que tanto o cinema quanto a fotografia carregam como tros
constitutivos das imagens produzidas por eles e que os caracterizam como meios
técnicos.
Sarah Bay-Cheng, no segundo capítulo de seu livro Mama Dada, no qual ela se
dedica à análise dos dois roteiros cinematográficos de Stein, observa que os comentários
feitos por Walter Benjamim sobre cinema e repetição, em seu ensaio “A obra de arte na
era de sua reprodutibilidade técnica”
28
, ecoam algumas das afirmações feitas por Stein
em suas palestras. A coincidência de temas parecendo corroborar o que Stein diz em
Portraits and repetition” sobre “pertencer ao seu tempo”:
(...) qualquer um pertence ao seu próprio tempo e esse nosso
tempo era sem dúvida o tempo do cinema e da produção em
rie. E cada um de nós do seu jeito particular é obrigado a
expressar o que o mundo no qual estamos vivendo está
fazendo.
29
A produção em série, tematizada por Benjamim em seu ensaio, é um assunto
com o qual Stein lidou muitas e muitas vezes, o só nas palestras proferidas nos
Estados Unidos e depois publicadas no volume “Lectures in America”, pouco antes de o
ensaio de Benjamim ser publicado. A questão da produção em série também é abordada
por Stein no interior de seus retratos, roteiros e peças. Tanto na sua forma da escrita
quanto enquanto tema e objeto de reflexão. Os assuntos que a preocupam, e que Stein
exe em suas palestras, tornam-se, para ela, problemas formais também. E recebem
configuração peculiar em sua escrita. A questão da produção em série, por exemplo, se
faz presente, no primeiro roteiro steiniano, no espanto e na irritação da empregada bretã
ao constatar a presença de “americanos esquisitos em toda parte”, espalhados por toda a
França. Estes “americanos esquisitos” que não se distinguem em nada uns dos outros
seriam, portanto, iguais, repetições de um mesmo, resultado de uma espécie de
produção em série de “americanos esquisitos” que se espalham pelo país. Sarah Bay-
Cheng compara a questão da “perda da aura” acarretada pela reprodutibilidade técnica,
28
BENJAMIM, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidadecnica”. In: BENJAMIM,
Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e politica. São Paulo: Brasiliense, 1994. pp165-196.
29
“Any one is of one’s period and this our period was undoubtedly the period of the cinema and series
production. And each of us in our own way are bound to express what the world in which we are living is
doing.” STEIN, Gertrude “Portraits and repetition” In: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New
York: The Library of America, 1998. p.294
174
a que se refere Benjamim em seu ensaio, ao problema da identidade infinitamente
explorado por Stein em seus textos:
A escrita de Stein sugere que assim como as obras de artes
visuais não são mais únicas, os seres humanos também estão se
tornando meramente réplicas uns dos outros.
30
Não acho que seja o caso de deduzir, a partir dos textos e da escrita de Stein, que
a autora tivesse passado a perceber os seres humanos como réplicas. Concordo, no
entanto, que o tratamento que ela aos personagens e às figuras fictícias que surgem
em seus textos refletem muitas vezes a questão da produção em série de que se ocupa
continuadamente. Acredito, porém, que é principalmente com a arte e com o
pensamento sobre arte produzidos em seu tempo que Stein dialoga em sua escrita, e
o, como sugere Bay-Cheng no trecho citado, com a percepção de seres humanos reais
e sua indistinção na vida moderna.
2. “Ida-Ida”
Questões como a da identidade, tendo em vista o cinema, a fotografia e sua
possibilidade ilimitada de reprodução, são temas explorados por Stein também no seu
segundo roteiro para cinema, escrito em 1929, e em sua peça “Uma fotografia” (1920),
que será analisada mais adiante. Cito, aqui, na íntegra, o roteiro “Filme. Duas irmãs que
o são irmãs”
31
para analisá-lo em seguida:
Filme
Duas irmãs queo são irmãs
Na esquina de uma rua de um bairro fora de Paris uma
lavadeira de uma certa idade com sua trouxa de roupa que estava indo
entregar, pára para pegar em suas mãos e olhar a foto de dois poodles
brancos e ela a olha com ardor. Um carro de dois lugares estacionava
ao longo da calçada. De repente duas senhoras descem do carro e se
precipitam sobre a lavadeira pedindo para ver a foto. Ela a mostra e as
duas senhoras ficam cheias de admiração até o momento em que uma
jovem que está penteada como se tivesse acabado de receber um
prêmio num concurso de beleza e depois de ter se perdido na rua,
30
BAY-CHENG, Sarah. Mama Dada : Gertrude Stein’s avant-garde theater. New York: Rutledge, 2004
“Stein’s writing implies that just as the visual work of art is no longer unique, human beings, too, are
becoming merely replicas of one another”. p.33
31
Conferir o texto no original em francês, incluído adiante, e as referências presentes na seção
“Traduções” desta tese.
175
passa e neste momento o carro vazio, se apressa em entrar e
começa a chorar. Neste momento, as duas senhoras entram no carro e
jogam a jovem para fora. Ela cai em cima da lavadeira que começa a
lhe fazer perguntas, e o carro, dirigido pelas duas senhoras parte, e de
repente a lavadeira vê que ela não tem mais sua foto. Ela um jovem
e imediatamente conta a ele a história.
Algumas horas mais tarde, diante de um balcão de depósito,
na rue du Dragon, tem outra lavadeira mais jovem com sua trouxa de
roupa. O carro das duas senhoras se aproxima, ra, e as duas
senhoras saltam e mostram à lavadeira a foto dos dois poodles
brancos. Ela olha com prazer e excitação, mas é só. Exatamente neste
momento a jovem do prêmio de beleza se aproxima um grito de
alegria e se precipita em direção ao carro. As duas senhoras entram
em seu carro e, enquanto entram, deixam cair uma trouxa pequena,
mas estão sempre de posse da foto e elas partem precipitadamente.
Dois dias depois a primeira lavadeira está novamente na rua
com sua trouxa de roupa e ela a jovem do prêmio de beleza se
aproximar com uma trouxa pequena na mão. E ao mesmo tempo ela
o jovem. Eles estão todos os três agora juntos e de repente ele
passa, o carro, com as duas senhoras e com elas um poodle branco
de verdade e na boca do poodle tem uma trouxa pequena. Os três na
calçada o vêem passar e não entendem nada daquilo ali.
No caso deste segundo roteiro, Stein não trabalha com a idéia de a imagem
fotográfica servir de base para a criação de movimento no filme, como havia feito em
“A movie”, mas faz da fotografia objeto ou personagem central do roteiro. E a
fotografia se apresenta quase como um símbolo da questão do duplo, aqui explorada
de maneira ainda mais explícita pela autora.
Todo o roteiro é divido em três parágrafos que às vezes chamarei de
movimentos. Os três movimentos parecem seqüências repetidas. Os mesmos
personagens ou personagens parecidos aparecem em cada um deles. Assim como os
acontecimentos, principalmente nos dois primeiros parágrafos, são extremamente
semelhantes. As tabelas abaixo mostram o seguinte: na primeira delas, a relação de
personagens e de objetos que aparecem em cada um dos movimentos e a ordem em que
figuram em cada parágrafo; na segunda, apenas distribuí os três parágrafos em uma
tabela, lado a lado, a fim de analisar os três acontecimentos horizontalmente.
PERSONAGENS E OBJETOS
1º parágrafo 2º parágrafo 3º parágrafo
-
uma lavadeira de uma certa
idade
-
outra lavadeira mais
jovem
-
a primeira lavadeira
-
uma trouxa de roupa
-
trouxa de roupa.
-
trouxa de roupa
176
-
foto de dois poodles brancos
-
O carro
-
a jovem do prêmio de beleza
-
Um carro de dois lugares
-
duas senhoras
-
uma trouxa pequena.
-
duas senhoras
-
a foto dos dois
poodles brancos
-
o jovem.
-
uma jovem que está penteada
como se tivesse acabado de
receber um prêmio num
concurso de beleza
-
a jovem do prêmio de
beleza
-
o carro
-
um jovem
-
uma trouxa pequena
-
as duas senhoras
-
um poodl
e branco de verdade
-
uma trouxa pequena.
O texto
1º parágrafo 2º parágrafo 3º parágrafo
Na esquina de uma rua de um
bairro fora de Paris uma
lavadeira de uma certa idade
com sua trouxa de roupa que
estava indo entregar, pára para
pegar em suas mãos e olhar a
foto de dois poodles brancos e
ela a olha com ardor.
Algumas horas
mais tarde, diante de
um balcão de depósito,
na rue du Dragon, tem
outra lavadeira mais
jovem com sua trouxa
de roupa.
Dois dias depois a primeira
lavadeira está novamente na rua
com sua trouxa de roupa
Um carro de dois lugares
estacionava ao longo da
calçada.
O carro das
duas senhoras se
aproxima, pára, e as
duas senhoras saltam e
mostram à lavadeira a
foto dos dois poodles
brancos.
e ela vê a jovem do prêmio de
beleza se aproximar com uma
trouxa pequena na mão.
De repente
duas senhoras
descem do carro e se
precipitam sobre a lavadeira
pedindo para ver a foto.
Ela olha com
prazer e excitação, mas
é só.
E ao mesmo tempo ela o
jovem.
Ela a mostra e as duas
senhoras ficam cheias de
admiração
Exatamente
neste momento a jovem
do prêmio de beleza se
aproxima dá um grito
de alegria e se
precipita em direção
ao carro.
Eles estão todos os três agora
juntos
até o momento em que uma
jovem que está penteada como
se tivesse acabado de receber
um prêmio num concurso de
beleza e depois de ter se
perdido na rua, passa e neste
momento vê o carro vazio, se
apressa em entrar e começa a
chorar.
As duas
senhoras entram em seu
carro e, enquanto
entram, deixam cair
uma trouxa pequena,
e de repente
ele passa, o carro,
com as duas senhoras e há com
elas um poodle branco de verdade
e na boca do poodle tem uma
trouxa pequena.
177
Neste momento, as duas
senhoras entram no carro e
jogam a jovem para fora.
mas estão
sempre de posse da foto
Os três na caada
o vêem passar
e não entendem nada daquilo ali.
Ela cai em cima da lavadeira
que começa a lhe fazer
perguntas,
e elas partem
precipitadamente.
e o carro, dirigido pelas duas
senhoras parte,
e
de repente
a lavadeira
que ela não tem mais sua foto.
Ela vê um jovem e
imediatamente conta a ele a
história.
A começar pela observação dos personagens na primeira tabela, note-se que, em
todos os três movimentos, aparecem uma lavadeira, uma trouxa de roupa, o carro, as
duas senhoras e a jovem do concurso de beleza. A foto dos dois poodles brancos surge
nos dois primeiros movimentos e no terceiro, o poodle, ao invés de figurar numa foto, é
um cachorro de verdade que está dentro do carro das duas senhoras. Há ainda um jovem
que aparece no primeiro e no terceiro parágrafos, e uma trouxa pequena que surge uma
vez no segundo parágrafo e duas vezes no terceiro. Dentre as figuras do roteiro, as
que se mantêm idênticas, que seriam as duas senhoras, o carro e o jovem. Já as
lavadeiras, são duas, há a mais velha e a mais jovem. Ambas, no entanto, mantêm uma
relação de duplicata, como se uma fosse a reprodução envelhecida da outra. Estas duas
figuras podendo ser lidas como um comentário steiniano sobre a própria técnica
cinematográfica de empregar uma série de fotogramas em sucessão para criar a ilusão
de movimento. Como se uma lavadeira fosse o fotograma seguinte da outra. Ou o
fotograma anterior, já que a mais velha aparece antes da mais jovem.
A presença dessas duas lavadeiras, uma mais jovem e outra mais velha, ambas
carregando suas trouxas de roupa, lembra a seqüência de fotografias que inspiraram
Stein a criar a personagem Santa Teresa de “Four Saints in three acts”. Com a diferença
de que ali há um movimento linear de passagem de tempo a cada fotografia que vai, aos
poucos, transformando uma jovem mocinha numa freira. No caso destas duas
lavadeiras, não uma transformação gradual. Há, sim, uma mudaa brusca: aparece
uma mais velha e em seguida outra mais jovem. É como se Stein eliminasse as
fotografias intermediárias, que fazem com que se observe a passagem da mocinha à
freira, ou da lavadeira jovem à mais velha, e fosse direto de uma extremidade imagética
à outra. Então ambas as lavadeiras poderiam realmente ser a mesma, principalmente se
levarmos em consideração o que Stein diz com relação à memória, lembrança e
178
identidade. Como foi observado, e citado no segundo capítulo desta tese, diz Stein na
Autobiografia de todo mundo: “vonunca é vomesmo para si mesmo exceto na
medida em que se lembra de você mesmo então é claro você não acredita em si
mesmo”. E acrescenta um pouco mais adiante neste mesmo parágrafo Você é claro
nunca é você mesmo”. A segunda lavadeira, portanto, poderia perfeitamente ser a
primeira lavadeira, mas é outra, porque a mais velha não tem mais a lembrança da
jovem. A jovem, portanto, é outra.
De que adianta ser um garotinho se se vai crescer e se tornar um homem”, diria
Stein na mesma autobiografia. É claro que há uma passagem de tempo do primeiro para
o segundo parágrafo. “Algumas horas mais tarde” é que aparece a lavadeira mais jovem.
E, no terceiro parágrafo, se diz: “dois dias depois a primeira lavadeira está novamente
na rua com sua trouxa de roupa”. Repare, no entanto, que, apesar de Stein apontar
claramente as passagens de tempo, ela naturalmente não respeita esta linearidade
temporal, uma vez que a primeira lavadeira parece não ter saído do lugar desde o
primeiro parágrafo, dois dias antes. É como se ela tivesse ficado congelada no tempo.
Assim como a moça do concurso de beleza e o jovem que aparecem, também dois dias
depois, no terceiro parágrafo, novamente no mesmo lugar. A repetição de
acontecimentos não corrobora a passagem linear de tempo, ao contrário, a desmente.
Assim como Stein escreve uma seqüência de primeiras cenas ou inverte a ordem das
cenas e atos em muitas de suas peças, aqui também, ela especifica as passagens de
tempo para em seguida desfazer a seqüência temporal por meio da repetição de
acontecimentos semelhantes.
Voltando, além das lavadeiras, ao conjunto geral de objetos e personagens,
ainda outros elementos, no interior do roteiro, que sofrem alguma transformação. as
trouxas de tamanhos diferentes que aparecem a princípio nas os das lavadeiras, mas
que depois começam a proliferar de maneira pouco usual, aparecendo em lugares
estranhos a elas, como, por exemplo, caindo-lhes das mãos ou do carro das duas
senhoras, ou nas mãos da jovem participante do concurso de beleza, ou, finalmente, na
boca do cachorro poodle.
A jovem do concurso de beleza, que, no final, também aparece segurando uma
trouxa, parece sofrer ela mesma alguma mudança. Se, no primeiro movimento, é jogada
para fora do carro das duas senhoras, no segundo, ela “se precipita em direção ao carro”,
com as duas senhoras entrando em seguida no carro e deixando cair uma trouxa
pequena. Nada mais é dito sobre a jovem do concurso de beleza aí. No terceiro
179
movimento, no entanto, é ela quem aparece com uma trouxa pequena na mão. No
primeiro movimento, a jovem é jogada fora como se fosse um objeto, uma coisa, uma
trouxa. No segundo, as duas senhoras deixam cair uma trouxa, que é uma coisa, um
objeto, ou a jovem do concurso de beleza. Sob o ponto de vista das duas senhoras, a
jovem não tem a menor importância, então tanto pode ser uma pessoa (que chora ou
grita de alegria) quanto um objeto, uma trouxa que elas deixam cair. Não
coincidentemente, no terceiro movimento, quando as duas senhoras não estão mais
interessadas em nenhum daqueles outros personagens, e passam em seu carro sem nem
parar, a jovem aparece carregando uma trouxa. Ela e a trouxa são como uma coisa.
Mas há também os personagens e os objetos e tudo o que acontece com eles.
Observando a segunda tabela, percebe-se que nos eventos, elementos que se repetem
sempre com alguma variação. No primeiro é a lavadeira que tem uma fotografia na mão
e a “olha com ardor”. As duas senhoras, ainda neste parágrafo, pedem para ver a foto
que as deixa “cheias de admiração”. no segundo movimento, são as duas senhoras
que mostram a foto a uma segunda lavadeira que a
olha com prazer e excitação, mas é
só”. O gesto de olhar a foto se repete, os personagens também: lavadeiras, duas
senhoras, fotografia. Mas do primeiro para o segundo parágrafo, a fotografia muda de
os. Sai das os da lavadeira e passa para as mãos das duas senhoras. Não são mais
as senhoras que querem ver a foto, mas são elas mesmas que querem que a segunda
lavadeira veja a foto. Outro elemento que muda é a maneira com que cada personagem
olha para a foto: a primeira lavadeira “com ardor”, as duas senhoras “cheias de
admiração” e a segunda lavadeira “com prazer e excitão”.
Estes acontecimentos o concomitantes com o que se passa com a jovem do
concurso de beleza. Esta passa por três movimentos distintos. No primeiro parágrafo ela
o carro, entra dentro dele, começa a chorar e é jogada para fora. No segundo
parágrafo, ela surge novamente, vê o carro de novo “dá um grito de alegria e se
precipita em direçãoa ele. No terceiro movimento ela surge sem manifestar qualquer
tipo de emoção. Apenas se aproxima com uma trouxa pequena na mão. Ao jovem a
quem a história é contada no primeiro parágrafo, nada se passa. Mas, no final do roteiro,
ele se junta à moça do concurso de beleza e à primeira lavadeira. Os três vêem o carro
passar e “não entendem nada daquilo”. Os únicos personagens que compreendem o que
se passa são as duas senhoras e o cachorro poodle, que é também a fotografia, que afinal
ganha “vida” e movimento ao se transformar num cachorro “real”.
180
Haveria ainda outro dado a comentar, no que diz respeito à questão do
movimento, neste roteiro. Logo numa primeira leitura percebe-se que Stein usa diversas
vezes palavras como precipitadamente” (“précipitament”), “se apressa” (“se dépêche”),
de repente” (“tout à coup), “imediatamente” (“tout de suite”). Estas expressões dão ao
texto a iia de que as coisas acontecem sem maiores explicações, de que não um
desenvolvimento específico da narrativa que leva os personagens a se apressarem ou a
se precipitarem. Os eventos acontecem mesmo “de repente”, como se Stein excluísse do
filme vários fotogramas, de modo a que, de um para outro, haja um salto no tempo e os
movimentos fiquem entrecortados. Como a passagem da lavadeira mais velha para a
mais jovem e vice-versa. A estes movimentos rápidos, se contrapõem os gestos
silenciosos de olhar. Há os olhares lançados para a fotografia e já comentados aqui, e
o olhar, no terceiro movimento, da lavadeira para a jovem do concurso de beleza e para
o jovem que se aproxima. E o olhar silencioso dos três para o movimento do carro
que passa, desta vez, sem parar. Eles vêem, mas não entendem. Sobre isso, em seu
ensaio sobre os roteiros de Stein, Beth Hutchison comenta que “Film é, então, sobre ver,
mas não enxergar, sobre observar, mas não entender”.
32
Com relação ao fato de a fotografia se transformar no cachorro, no final do
roteiro, de acordo com a análise de Beth Hutchison, o o referido no roteiro do filme
seria uma referência direta a Basket, o poodle de Gertrude Stein. Na Autobiografia de
Alice B. Toklas, conta-se a história da aquisição do cachorrinho Basket. O cachorrinho
teria visto Stein e pulado imediatamente em seu colo. Segundo a leitura de Hutchison,
Basket e Stein se viram e imediatamente se reconheceram. Em
Film o reconhecimento entre cachorro e dono se baseia numa
fotografia. Um dos dois cachorros na foto toma então forma
substancial, se tornando um cachorro verdadeiro. A história do
encontro de Stein com Basket é então adaptada para permitir
um jogo sobre as noções de identidade e realidade, aparência e
retrato, ficção e biografia; que o as questões que continuam
ocupando a mente de Stein nos anos trinta em obras como Ida.
33
32
“Film is thus about viewing but not seeing, about watching but not understanding” HUTCHISON,
Beth. “Gertrude Stein’s film scenarios” Literature/Film Quarterly 17.1 (1989) p.38
33
“Basket and Stein saw and immediately ‘recognized’ each other, the dog jumping into the arms of heis
new owner. In Film, the ‘recognitionof dog and owner is based upon a photograph. One of the two dogs
in the photo then takes on substantial form, ‘becoming’ the real dog. The story of Stein finding Basket is
thus adapted to enable a play on the notions of identity and reality, likeness and portrait, fiction and
biography; that is, the problems which continued to engage Stein through the thirties in works like Ida
HUTCHISON, Beth. “Gertrude Stein’s film scenarios” Literature/Film Quarterly 17.1 (1989) p.37
181
E, já que Hutchison cita o romance steiniano Ida, é interessante observar que,
para além dos duplos e das proliferações de personagens e de eventos, presentes no
interior dos textos de Stein (como, nos dois roteiros analisados, “os americanos
esquisitos”, em “A movie”, e as trouxas de roupa, em “Film”, para dar dois
exemplos), certos duplos que se desdobram para além de uma única obra. O título de
“Filme. Duas irmãs que não são irmãs”, por exemplo, encontra par no título da peça
Três irmãs que não são irmãs. Um melodrama”.
Da mesma forma, o segundo roteiro de Stein seria depois retomado pela autora
em Ida. Neste caso, entretanto, a trama do roteiro cinematográfico, ao ser inserida por
Stein no romance, sofre uma mudança de ponto de vista. A jovem do concurso de
beleza que, no roteiro, tem participação apenas secundária - uma vez que a trama gira
em torno das duas senhoras e da fotografia - no romance se transforma na protagonista
Ida. É sob o ponto de vista da jovem do concurso de beleza, portanto, que Stein
reescreve o roteiro. Cito o trecho do romance em que se reconhece o enredo de “Filme.
Duas irmãs que não são irmãs”:
Apareceu um homem mais velho que por acaso foi onde estavam
votando. Ele não sabia que estavam votando para o concurso de beleza
mas que estava ele votou também. E evidentemente ele votou
nela. Qualquer um teria votado. E então ela venceu. A única coisa que
ela podia fazer depois era ir para casa e foi o que ela fez. Ela tinha que
dar uma volta enorme senão eles descobririam onde ela morava é
claro que ela teve que dar um endereço e ela deu, e ela foi para e
depois ela saiu de novo para fora da cidade onde ela morava.
No caminho, logo no final da cidade ela viu uma mulher carregando
uma enorme trouxa de roupa para lavar. Essa mulher parou e ficou
olhando para uma fotografia, Ida parou também e era espantoso, a
mulher estava olhando para a fotografia, ela estava com ela na mão,
do cachorro de Ida, Love. Isso era espantoso.
Ida ficou tão surpresa que tentou pegar a fotografia e bem nessa hora
veio um automóvel, havia duas mulheres dentro dele, e o automóvel
parou e elas saíram para ver o que estava acontecendo. Ida pegou a
fotografia da mulher que estava distraída olhando para o automóvel e
Ida entrou no automóvel e tentou ligar o motor, as duas mulheres
entraram no automóvel, jogaram Ida para fora e partiram no
automóvel com a fotografia. Ida e a mulher com a enorme trouxa de
roupa para lavar foram deixadas lá. As duas ficaram paradas e o
disseram uma palavra.
Ida foi embora, ela era uma lindeza, ela ganhara o prêmio ela fora
considerada a mais bela mas ela estava desnorteada e então ela viu um
pacote no chão. Uma das mulheres do automóvel deve ter deixado
cair. Ida pegou o pacote e depois foi embora.
Eno Ida fez tudo o que uma Miss Beleza faz mas volta e meia ela
se perdia.
182
Um dia ela viu um homem ele parecia que tinha acabado de vir de
uma fazenda e com ele vinha uma mulher muito pequena e atrás dele
uma mulher de tamanho comum. Ida ficou pensando sobre eles. Um
dia ela viu novamente a mulher com a enorme trouxa de roupa para
lavar. Ela estava falando com um homem, era um homem jovem. Bem
nesta hora um automóvel com duas mulheres passou e dentro dele
estava o cachorro de Ida Love, Ida tinha certeza de que era Love, é
claro que era Love e na boca dele havia um pacote, o mesmo pacote
que Ida apanhara do chão. Tudo isso aconteceu e a mulher com a
trouxa de roupa e o homem jovem e Ida, eles todos ficaram parados e
olharam e eles não disseram nenhum deles disse nada.
34
Ulla Dydo, no segmento de seu livro Gertrude Stein: the language that rises, em
que se dedica à análise do segundo roteiro de Stein para cinema, observa como é curioso
o fato de a escritora voltar à trama de “Film”, dez anos depois, desta vez num romance:
Em Ida Um Romance, escrito com dificuldade durante mais de três
anos, de 1937 a 1940, muito depois de Stein ter se tornado uma
celebridade, ela finalmente integra os elementos desajustados de
fantasia que haviam entrado no filme num momento em que ela se
esforçava enormemente para obter publicidade e fama. O que no filme
ficara incompreensível torna-se compreensível uma vez que é
incorporado a Ida, onde ele se encaixa apropriadamente e onde podia
falar sobre o que acontecera a ela com a fama, a publicidade e o
estrelato.
35
Dydo observa também que, no romance, os personagens que aparecem em
“Film” e que “não são identificados em 1929, passam a ser identificados mais tarde”,
angariando inclusive nomes próprios, quando ressurgem no romance. A jovem do
concurso de beleza, presente no roteiro, encontra seu par na personagem Ida, e o poodle
branco é agora o cachorro de Ida, Love. Mesmo as duas irmãs que não são irmãs,
mencionadas no tulo do roteiro, em Ida passam a se referir à própria protagonista e à
sua irmea, criada por ela mesma, e a quem ela passa a chamar de Winnie, por ter
sido a vencedora (winner) do concurso de beleza. no roteiro cinematográfico, as duas
irmãs do título podem ser compreendidas como sendo as duas senhoras que, como já foi
visto, espelham a própria Gertrude Stein e Alice Toklas. Dupla de senhoras sobre as
quais o leitor do roteiro poderia se perguntar, como observa Dydo: duas mulheres em
34
Ver original e referencia no anexo Traduções.
35
“In Ida A Novel, written with trouble over more than three years, from 1937 to 1940, long after Stein
had become a celebrity, she finally composed the odd elements of fantasy that had entered the film at the
moment of her great efforts at publicity and fame. What in the film had remained incomprehensible
became comprehensible once it was incorporated into Ida, where it properly belonged and could speak of
what had happened to her with fame, publicity, and stardom.” DYDO, Ulla E. Gertrude Stein: the
language that rises:1923-1934. Evanston, Illinois: Northern University Press, 2003.p.424
183
que relão misteriosa? Como irmãs de sangue numa família ou amantes por
escolha?
36
.
Como Stein e Toklas, que encontram duplos ficcionais tanto no primeiro quanto
no segundo roteiro e ainda no romance Ida, também Ida, a personagem, possui diversos
duplos ou versões de si mesma. Muito anterior ao romance, a jovem do concurso de
beleza do filme. A personagem do romance, segundo relata a própria Stein, é inspirada
no escritor americano e amigo de Stein, Thornton Wilder. ainda a personagem Rose
do livro escrito para criaas, The world is round, que seria uma versão mais jovem,
infantil, de Ida, que também possui um cachorro grande e branco chamado Love”
37
.
Shirley Neuman, em seu ensaio “‘Would a viper have stung her if she had only had one
name?’”, aponta ainda outros desdobramentos da personagem Ida. Em 1938, por
exemplo, Stein escreveria um retrato, que não seria publicado, cujo título é “A portrait
of Daisy to Daisy on her birthday”, no qual a personagem Daisy cria também para si
própria, uma gêmea:
Daisy era gêmea. Quer dizer, ela criou uma para si...
Daisy começou a sentar e escrever.
Ela fez Daisy.
Se você fez ela você pode matar ela.
Não se ela é Daisy.
E Daisy fez Daisy.
Um um um.
38
Ainda no mesmo ano, Stein escreveria também uma peça curta chamada
“Lucretia Borgia. A play”. Nela, a autora a Lucrécia outros nomes, uma vez que “é
preciso ter cuidado com o nome Lucrécia rgia”. Ao longo da peça seu nome passa a
ser Gloria, Jenny ou Winnie. E, em dado momento, ela cria para si uma irmã:
36
“There are two women, in what mysterious relations, as blood sisters in a family or lovers by choice?”
DYDO, Ulla E. Gertrude Stein: the language that rises:1923-1934. Evanston, Illinois: Northern
University Press, 2003. p.424
37
STEIN, Gertrude. “The World is round” In: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The
Library of America, 1998. p.537
38
“Daisy was a twin. That is she made herself one… / Daisy began to sit and write. / She made Daisy. / If
you made her can you kill her. / Not if she is Daisy. / And Daisy made Daisy. One one one.” Trecho do
retrato “A portrait of Daisy to Daisy on her birthday, de Gertrude Stein, citado por Shirley Neuman.
NEUMAN, Shirley. “ ‘Would a viper have stung her if she had only had one name?’: Doctor Faustus
Lights the Lights” In: Gertrude Stein and the making of literature. Eds. Ira Bruce Nadel and Shirley
Neuman, 168-193. Boston, MA: Northeastern University Press, 1998. p.178
184
LUCRETIA BORGIA
ATO I
O nome de Lucretia era Jenny, e o de sua irmã era Winnie. Ela
não tinha nenhuma irmã.
O nome de Lucretia era Jenny isso é a melhor coisa a fazer.
A gêmea de Jenny era Winnie e isso é a melhor coisa a fazer.
LUCRETIA BORGIA
ATO I
Jenny era gêmea. Quer dizer ela fez uma para ela.
39
Uma gêmea de nome Winnie reaparece no romance Ida. A própria Ida,
personagem do romance, ao nascer, já teria trazido “com ela sua gêmea, então ali estava
ela Ida-Ida”
40
. Ela nasce duas (o que se reflete na repetição do nome: Ida-Ida), mas,
na verdade, é uma, como Lucrécia Bórgia
cuja irmã se chama Winnie, mas que, na
verdade, o tem nenhuma irmã. Um pouco mais adiante no romance, Ida decide criar
para si mesma uma irmã gêmea, pois está “cansada de ser uma”. Ela diz então ao seu
cachorrinho Love:
Sim, Love ela disse a ele, você sempre teve a mim e agora
você vai ter duas, eu vou ter uma gêmea sim eu vou Love, estou
cansada de ser só uma e sendo uma gêmea uma de nós pode sair
e uma de nós pode ficar, sim Love sim eu vou sim eu vou ter
uma gêmea.
41
Como aponta Ulla Dydo, Stein passaria mais de três anos escrevendo o romance.
Ao longo deste período, ela escreve outros textos, dentre eles os citados “Lucretia
Borgia. A play”, “A portrait of Daisy to Daisy on her birthday”, e algumas versões para
Ida. Em 1938, Stein volta-se para a escrita da peça Doutor Faustus liga a luz e escreve
39
“Lucretia’s name was Jenny and her sister’s name was Winnie. She did not have any sisters. /
Lucretia’s name was jenny and that is the vest thing to do / Jenny’s twin was Winnie and that was the best
thing to do. / (…) Jenny was a twin. That is she made herself one.” STEIN, Gertrude “Lucretia Borgia. A
playIn. Reflection on the atomic bomb. Volume I of the previously uncollected writings of Gertrude
Stein Edited by Robert Bartlett Haas. Black Sparrow Press: Los Angeles, 1973. P.118-119
40
“And as Ida came, with her came her twin, so there she was Ida-Ida.” STEIN, Gertrude. Ida, In:
STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The Library of America, 1998. p.611.
41
“Yes Love she said to him, you have always had me and now you are going to have two, I am going to
have a twin yes I am Love, I am tired of being just one and when I am a twin one of us can go out and one
of us can stay in, yes Love yes I am yes I am going to have a twin.” STEIN, Gertrude. Ida, In: STEIN,
Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The Library of America, 1998. p.613
185
em carta para Thornton Wilder: “Ida virou uma ópera, e é uma beleza, é mesmo, uma
ópera sobre Fausto
42
. O fato de Ida ter se transformado na ópera de Stein sobre Fausto,
assim como o estudo das relações entre as versões de Ida e o histórico do conjunto de
textos escritos ao longo destes três anos, é assunto amplamente discutido no ensaio de
Shirley Neuman, mencionado aqui. A personagem Margarida Ida e Helena Anabela,
de Doutor Faustus” pode ser vista, portanto, dentro desse conjunto textual, como uma
outra versão para a Ida do romance. O nome quádruplo de Margarida Ida e Helena
Anabela se emparelharia ao duplo nome com que Ida é apresentada ao leitor no primeiro
parágrafo do romance e com o qual ela depois viria a assinar uma das cartas que escreve
a sua irmea: “Ida-Ida”. Esta Ida-Ida, duas vezes Ida, se desdobraria ainda numa
outra que é afinal ela mesma e que ganha o nome de Winnie. A Margarida Ida e Helena
Anabela da ópera tem, pois, um duplo em Ida-Ida-Winnie, do romance Ida.
As meas que surgem em “Duas irmãs que não são irs” transformam-se em
trimeas, no melodrama Três irmãs que não são irs”, peça na qual figuram Jenny,
Hellen e Ellen. em “Lucrécia Bórgia”, Lucrécia se desdobra em Glória e em Jenny,
que cria, por sua vez, para si a gêmea Winnie. E, em “Doutor Faustus liga a luz”, a
personagem Margarida Ida e Helena Anabela aparece no manuscrito (como observa
Shirley Neuman) ao longo do primeiro ato, como Ida e Anabela”. Entre a redação do
primeiro e do segundo atos, Stein teria escrito “Lucretia Borgia” e “A portrait of Daisy”.
“Como são úteis os nomes”, diz ela em “Lucrécia Bórgia”. Percebendo a “utilidade” dos
nomes, a autora, ao retomar o trabalho sobre a ópera, acrescenta, então, a “Ida e
Anabela”, mais dois nomes. nesse momento a personagem passa a ser chamada de
“Margarida Ida e Helena Anabela”. De duas para três, de três para quatro, as meas
o proliferando nos textos de Stein.
A este movimento de reprodução de meas corresponde um outro, de
transbordamento para além das fronteiras de uma única obra. O roteiro “Filme. Duas
irmãs que não são irmãs encontra, então, um meo no trecho do romance Ida no qual
é inserido. Uma personagem “transforma-se” numa ópera, numa personagem dentro
desta ópera, num retrato, em “A portrait of Daisy”, e numa outra peça, “Lucretia
Borgia”, para depois voltar ao romance. um movimento não só de uma obra a outra.
Mas também de um gênero a outro. Retratos, roteiros, romances, livro para crianças,
42
“Ida has become as opera, and it is a beauty, really is an opera about Faust.” BURNS, Edward, DYDO,
Ulla E. with RICE, William. (org.) The letters of Gertrude Stein and Thornton Wilder. New Haven and
London: Yale University Press, 1996. p.217
186
peças, óperas. Ida é experimentada em todas estas formas de escrita, multiplica-se em
nomes, em gêmeas, trimeas, quadrimeas e também emneros literários.
3. “Qual um está aí eu sou eu ou outro um”.
Todas essas duplicações, reproduções e proliferações, que surgem nos textos
steinianos comentados aqui, refletem não só o problema da identidade, longamente
explorado por Stein, como também a possibilidade de reprodução que possui uma
fotografia. Na peça “Fotografia”
43
, a escritora problematiza mais uma vez esta questão,
trabalhando de novo commeos e com a iia de reprodução. A peça, escrita em 1920,
portanto no mesmo ano em que Stein escreve seu primeiro roteiro cinematográfico,
começa com os seguintes versos:
Para uma fotografia nós precisamos de uma parede
Ver estrelas.
Fotografias são pequenas. Elas se reproduzem bem.
Eu amplio melhor.
Este começo parece fazer clara referência ao cinema. Lembre-se que Stein diz
em Plays” que o cinema é uma fotografia. Uma fotografia que precisa de uma parede,
como o filme, que necessita de uma supercie para ser projetado. E se o cinema é uma
fotografia que precisa ser projetada sobre uma superfície, então a imagem ampliada, e
projetada, é um duplo, uma gêmea da fotografia pequena que está na máquina de
projeção que, por sua vez, a amplia na tela. De forma que tanto a iia de ampliação
quanto a da reprodução das fotografias, expressas neste trecho da peça de Stein, também
parecem se referir ao cinema, pois a projeção amplia imagens pequenas, que se
reproduzem duas vezes, de um fotograma para outro e, novamente, do fotograma para a
tela grande da sala de projeção. Algo assim como o que acontece com as meas nos
textos de Stein. Fotografias gêmeas que, projetadas na tela e exibidas em seqüência,
produzem a impressão de movimento do cinema.
À idéia de projeção, implícita no início desta peça, se poderia contrapor um
trecho do texto Mrs. Emerson”, publicado pela primeira vez em 1927 num periódico
sobre cinema chamado “Close-up”. Neste segundo texto, -se, a certa altura: “Eu não
43
Conferir originais e referencias no anexo Traduções
187
consigo ver eu não consigo ver eu o consigo ver. Eu não consigo ver”
44
. Como já
observara Sarah Bay-Cheng, esta passagem parece se referir aos momentos anteriores à
projeção de um filme, momentos nos quais a sala de cinema já se encontra, porém, em
total escuridão. Nas novas casas não janelas para ventilação nem para qualquer
outro uso” diria Stein, num outro trecho de “Mrs Emerson”, provavelmente se referindo
mais uma vez aos locais de exibição, sem janelas, nas quais se projetavam as fitas.
Neste mesmo parágrafo, a escritora menciona, ainda, “luzes gentilmente maravilhosas”,
e certas formas alegres”. Tanto as “formas alegres” quanto as “luzes maravilhosas”, de
“Mrs. Emerson”, podem ser vistas como correspondentes ao “ver estrelasreferido na
peça “Fotografia”. Estrelas, afinal, são luzes e, juntas, criam formas. Ver estrelas é
também o que se faz quando se vai ao cinema. Stein se referia provavelmente também
às atrizes dos filmes, estrelas” do cinema americano.
Casas também aparecem na peça “Fotografia”: “Eu descrevo uma casa
diferente”. A casa diferente de Stein seria a casa sem janelas. As casas sem janelas que
aparecem em “Mrs. Emerson”. Em “Fotografia”, as casas também se multiplicam,
surgem casas gêmeas com portas gêmeas. No trecho citado a seguir, como faz em
muitos outros textos seus, Stein, em dado momento, recomeça a peça:
Deixa eu ouvir a história do gêmeo. Então nós começamos
Fotografia.
O sub título. Gêmeo.
Dois um gêmeo. – entra.
Margot.Não uma gêmea.
Lilases. – Para um gêmeo.
Não te esqueças de mins. – por um gêmeo.
Casas gêmeas.
s estamos pensando em casas gêmeas. Eu digo.
Será que eu li tudo sobre gêmeos.
E agora para andar como gêmeos andam.
Duas gêmeas têm duas portas.
Uma gêmea é um tédio.
Eu exercito mais. Eu ando diante da porta das gêmeas.
Para a “história do gêmeo” Stein o título de “Fotografia”. Uma fotografia
teria sempre um gêmeo. É a reprodução de algo, possui sempre um par, um duplo. Neste
caso o recomeço de Stein pode ser compreendido como um gêmeo, um duplo inserido
dentro da peça. E como “fotografias se reproduzem bem”, as flores têm seus nomes
escritos no plural: “Lilases” (“lilacs”) e Não te esqueças de mins
(“
Forget me nots”).
44
STEIN, Gertrude “Mrs. Emerson” In. Close Up 1:2 (August 1927), pp.23-29.
188
O nome desta última flor, aliás, encontra um correlato em uma das frases que Stein usa
em diversos de seus textos: “When this you see remember me.” (“Ao ver isso lembre-se
de mim”)
Em Mrs. Emerson”, as gêmeas são como as irmãs que não são irmãs em Ida,
emFilm”, em “Três irmãs que não são irmãs”, em “A portrait of Daisy” ou em
“Lucretia Borgia”. “Minha irela não é minha ir minha irela não é minha
irmã”, lê-se no texto publicado em “Close up”. Irmãs que não são irmãs, duas que são
uma, uma personagem tem quatro nomes e é uma. Em “Fotografia”, há a frase: gêmeos
são um”. Em “Portraits and Repetition”, Stein diz, em citação já mencionada aqui, que
alguém é alguma coisa, a cada momento uma diferença uma diferença suficiente
para que aquilo possa continuar a ser alguma coisa presente”. Para ser presente, é
preciso ser único, ser um.Um um um”, como acrescenta Stein em “A portrait of
Daisy”. Em outro momento, este um apresentaria alguma diferença que o faria ser
outro, ou um gêmeo de si mesmo. Em “Mrs. Emerson”, surgem os personagens Paula,
Bertha e Bessie, que se confundem e se distinguem ao longo do texto até que Stein
desiste repentinamente de resolver se elas são a mesma ou rias:
Eu digo que eu realmente conheço Bessie. Bessie se
parece com Bertha. Paula se parece com Bessie. Bessie se
parece com Bertha Bessie se parece com Bertha. Eu não
pretendo determinar se Paula e Bertha e Bessie são
claramente separadas.
45
A presença de figuras gêmeas nos textos analisados corroboraria a observação de
Stein de que alguém sempre se parece com outro alguém, como se em Portraits and
repetition”. No que diz respeito ao cinema, a questão da fama e do estrelato, com a qual
a autora passou a conviver depois do sucesso, nos Estados Unidos, de sua Autobiografia
de Alice B. Toklas, esta percepção se estenderia para as figuras famosas que ela encontra
em Hollywood. Em peça chamada “Not and Now”, já brevemente comentada no
segundo capítulo desta tese, a autora cria, então, personagens que seriam como
gêmeas” de figuras famosas: “um homem que se parece com Charlie Chaplin” e um
45 “I say I do know Bessie. Bessie resembles Bertha. Paula resembles Bessie. Bessie ressembles Bertha
Bessie ressembles Bertha. I do not offer to determine whether Paula and Bertha and Bessie are distinctly
separated.” STEIN, Gertrude. “Mrs. Emerson” In: Close Up 1:2 (August 1927), pp. 23-29
189
homem que se parece com Dashiel Hammet” figuram na lista de personagens, citada
anteriormente na íntegra. As celebridades e estrelas encontram seus “gêmeos” nas
fotografias, que, por sua vez, podem ser ampliadas nas telas dos cinemas, duplicadas e
reproduzidas ilimitadamente. Assim, na peça de Stein, as figuras famosas são apenas
reflexos delas, fotografias ou projeções das verdadeiras, mas não são as verdadeiras, são
sempre outras que se parecem com elas.
A noção da fotografia como sendo gêmea de algo, a duplicação, a proliferação e
o movimento provocado por essas reproduções ao infinito, ora de imagens em seqüência
no cinema, ora de figuras e objetos em seus roteiros e peças, ora de uma espécie de
excesso de nomes para um personagem, ou, ainda, de cenas e frases e personagens
recriados em diversos textos, e trabalhados em diversos neros, acaba por ir de
encontro a outra questão importantíssima para Stein, a da identidade, sobre a qual já
apresentei alguns comentários nos capítulos anteriores deste estudo. Ela se acha
presente, em sua obra, desde os seus primeiros retratos, mostrando-se mais explicita,
porém, nos textos posteriores à visita aos Estados Unidos, movida pelo sucesso
alcançado pela Autobiografia de Alice B. Toklas. A proliferação de meos em seus
textos exe esta preocupação com a questão da identidade. E Stein produziu uma
verdadeira coleção de textos sobre este tema. Dentre eles, várias pequenas peças dentro
de um livro que sofre, ele também, de uma espécie de problema de identidade,
especialmente no que diz respeito ao gênero ao qual pertence. Um livro que é um
ensaio, uma reflexão, uma história de detetives, uma peça, e, ainda, um retrato de
Thornton Wilder.
Se seus retratos, peças, romances e autobiografias invariavelmente trazem, já em
seus títulos, o gênero ao qual pertencem, mesmo quando fogem às regras da espécie
discursiva referida, o livro The geographical history of America or the relation of
human nature to the human mind (1936) apresenta um movimento constante entre os
variados gêneros literários. Em princípio dividido em capítulos, que não seguem uma
seqüência cronológica, o livro aos poucos vai introduzindo outros gêneros em sua
estrutura interna. Uma peça, outra peça, um retrato de Thornton Wilder, uma ode a
Thornton Wilder, várias autobiografias numeradas (“Autobiografia I”, “Autobiografia
número II”), histórias de detetive, uma seção chamada “A história da minha vida”,
dentre outras subdivies. A certa altura o texto passa a ser dividido em páginas, que
também não respeitam ordem cronológica. E há rias peças curtas suas incluídas no
livro.
190
Dentre elas, uma que trata especificamente da questão da identidade, e que
retoma em parte o tema discutido por ela na palestra “What are master pieces and why
are there so few of them”. Interessa analisá-la aqui. O título é Parte IV. A questão da
identidade. Uma peça”
46
. Nela reaparece o cachorro que reconhece seu dono, assim
como o poodle do segundo roteiro cinematográfico de Stein que, ao reconhecer o dono,
se transformaria num cachorro de verdade. Reaparece também a idéia do um que é algo
inteiro no momento presente e passaria a ser outro um instante depois ou anterior
àquele, como o fotograma de um filme: “Qual um está aí eu sou eu ou outro um. / Quem
é um e um ou um é um”.
Se for possível se falar de meos, nesta peça, que se considerar a
multiplicação de uns”, sendo cada “um”, meo dos outros “uns”. A cada vez que
Stein escreve a palavra um”, o “umseguinte não é mais o “um” anterior. É outro
um”. O tempo se espacializa aí na folha de papel. Os pontos e traços, que a máquina de
telégrafo grafa no papel, são lidos não como repetições de sinais iguais. Cada ponto e
cada traço carregam em si um significado diferente. Não são os mesmos, são outros,
expressando outra idéia. Do mesmo modo, a cada vez que Stein grafa no papel “um”, o
tempo da escrita e o espaço da folha os transformam em diferentes “uns” e não em
repetições de um mesmo “um”. Como cada um dos fotogramas de um filme. Cada um
deles constitui uma coisa em si, inteira. Como o momento presente do presente
contínuo” steiniano, no qual o “umse basta. E a maneira natural de se contar seria,
portanto, para ela, de um em um. É o que a autora explica neste trecho do texto Poesia
e Gramática”:
Afinal de contas a maneira natural de contar não é que um
mais umo dois e sim seguir contando um por um como fazem
os chineses como faz qualquer pessoa como fazem os espanhóis
como faziam minhas tiazinhas. Um mais um mais um mais um
mais um. Essa é a maneira natural de seguir contando.
47
46
Original e referências no anexo Traduções
47
STEIN, Gertrude. “Poetry and Grammar” In: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The
Library of America, 1998. pp313-336. Cito aqui a tradução do poeta Mario Faustino publicada em 1957,
no “Suplemento Literário do Jornal do Brasil”.
191
E cada um destes “uns”, que teriam “uma existência completa em si mesma”
48
,
como observa Donald Sutherland, acabam enfrentando, na peça “Identity”, uma espécie
de crise de identidade, fazendo perguntas como qual um está aí”, por exemplo.
também os vários “eus” que se vêem em situação semelhante aos uns”
citados acima. E, nesta peça, ao contrário do que acontece em “Filme. Duas irmãs que
o são irmãs”, o cachorrinho falha em reconhecer seu dono, o que faz com que “eu”
perca a identidade:
O cachorro engasga por causa de uma bola porque é uma bola que
engasgou qualquer um. / Ele quer gentilmente lembrar que isso não tem nenhum
interesse.” O cachorro engasga, não lembra, e eu” perde sua identidade
momentaneamente: “Eu sou eu porque meu cachorrinho me conhece, mas talvez ele não
me conheça e se ele não conhecesse eu não seria eu. Ah não ah não”. “Eu” continua
afirmando quem é e se baseando no fato de ser reconhecido pelo seu cachorro, mas
desta vez é o “coro” que diz a “eu” que isso não prova nada:
Coro. Eu sou eu porque meu cachorrinho me conhece.
Coro. Isso não prova nada sobre você isso só prova alguma
coisa sobre o cachorro.
E mesmo sobre o coro não se sabe exatamente quem ele seja:
Cachorros e pássaros e um coro e uma terra plana.
Como vo gosta do que você é. Os pássaros sabem, os cachorros
sabem e o coro bem o coro sim o coro se o coro qual é o coro.
A terra plana não é o coro.
Natureza humana não é o coro.
A mente humana não é o coro.
Transpiração não é o coro.
Lágrimas não são o coro.
Comida não é o coro.
Dinheiro não é o coro.
O que é o coro.
Coro. O que é o coro.
De qualquer forma há a questão da identidade.
E isso também tem a ver com o cachorro.
O cachorro é o coro.
Coro. Não o cachorro não é o coro.
48
“But a continuous present ... would be one in which each unit, even if identical or nearly with the
previous one, is still, in its present, a completely self-contained thing, as when you say one and one, the
second one is a completely present existence in itself, and does not depend, as two or three does, on a
preceding one or two (…) the present is so continuous it does not allow any retrospect or expectation.”
Donald Sutherland citado por Ryan, p.18
192
Nem o “coronem os uns” nem os “eus” e “vocês” que surgem na peça podem
saber realmente quem são. Só o cachorro poderia dizer a você quem você é:
Eu sou eu porque meu cachorrinho me conhece, mesmo se o
cachorrinho é um cachorrão, e ainda assim um cachorrinho me
conhecendo não me faz mesmo ser eu não não mesmo porque afinal
ser eu eu sou eu não tem realmente nada a ver com o cachorrinho me
conhecer, ele é meu público, mas um público nunca prova a voque
você é você.
Mas o cachorro é aquele que se lembra de você, e, portanto, ao se lembrar de
você, quem ele reconhece não é mais você, e sim uma lembraa. A lembrança de
alguém não é mais aquele alguém. É um outro. Na peça, “eu”, no entanto, continua
tentando afirmar quem é para, logo em seguida, questionar essa afirmação:
Cena I
Eu sou eu sim senhor eu sou eu.
Eu sou eu sim Senhora sou eu eu.
Quando eu sou eu sou eu eu.
E qualquer cachorrinho não é a mesma coisa que eu sou eu
Coro. Ou é.
Com grimas nos meus olhos ou é.
E aí nós temos a coisa toda.
Sou eu eu.
E se eu sou eu porque meu cachorrinho me conhece sou eu eu.
Sim senhor sou eu eu.
Sim senhora ou sou eu eu.
O cachorro responde sem perguntar porque o cachorro é a resposta a
tudo que é esse cachorro. Mas eu não. Sem lágrimas eu não.
49
Até desistir de querer ser reconhecido por seu público, que é constituído de seu
cachorro, “eu” afirma, sem lágrimas”: “eu não”. que Eu” não é como um cachorro
ou como “a resposta de tudo o que é esse cachorro”. “Eu” estaria de certo modo
abdicando de ter uma identidade. Ou não reconhecendo que é quem seu cachorro, ou
seu público lhe diz. Voltando deste modo a se perguntar sou eu eu?”
Ninguém me conhecendo me conhece.
E eu sou eu eu.
49 Observe-se que em frases tais como “Eu sou eu sim senhora sou eu eu”, em português, sem o ponto de
interrogação, não fica clara a idéia de pergunta. No texto original em inglês, a inversão do verbo auxiliar
prescinde do ponto de interrogação para que fique claro que se trata de uma pergunta: “I am I yes
Madame am I I”.
193
Os duplos eus, “eu eu”, que se sucedem na peça, como gêmeos uns dos outros,
seriam também como “Ida-Ida” do romance Ida, e todos os outros gêmeos dos textos
estudados aqui.
Para este tema, o da identidade, Stein escreveu ainda uma outra peça, para ser
montada com bonecos pelo marioneteiro Donald Vestal. O texto, publicado em What
are master-pieces, com o título de “Identity a poem”, é, na verdade, uma retomada de
“A questão da identidade”, com algumas modificações, no entanto. E, além desta versão
para marionetes, há uma outra, que não é uma peça, e que se chama “Identity A tale”.
Identity: A Tale” transforma-se num poema, depois numa conversação, em
seguida num mote, num aforismo e, finalmente, numa história. É um texto curto, de
uma página e meia, e que sofreria de um problema de identidade semelhante ao que
sofre o livro no qual a peça “Identity” está inserida, The geographical history of
America. Nos dois trabalhos, Stein varia o gênero no qual o texto se encaixaria.
Em The geographical history of America, em certo momento, a autora tematiza
claramente o jogo com os gêneros que vem fazendo ao longo do livro:
Este livro inteiro agora será uma história de detetives sobre
como escrever.
Uma peça sobre a relação da natureza humana com a mente
humana.
E um poema sobre como começar de novo
E uma descrição de como a terra é quando você a olha o que
talvez possa ser uma pa se puder ser feita em um dia e é talvez uma
história de detetives se puder ser descoberta.
Qualquer coisa é uma história de detetives se puder ser
descoberta e pode qualquer coisa ser descoberta.
Sim.
50
Sobre este trecho, Wendy Steiner, em seu livro, Exact Resemblance to exact
resemblance, dedicado à análise dos retratos steinianos, comenta:
50
“The whole book now is going to be a detective story of how to write. / A play of the relation of human
nature to the human mind. / And a poem of how to begin again / and a description of how the earth looks
as you look at it which is perhaps a play if it can be done in a day and is perhaps a detective story if it can
be found out. / anything can be a detective story if it can be found out and can anything be found out./
Yes.” “The geographical history of America or The relation of human nature to the human mind”. In:
STEIN, Gertrude. Writings: 1932-1946. New York: The Library of America, 1998. p.410
194
Aqui os gêneros não o definidos formalmente em conexão
com os textos, mas o perspectivas diferentes sobre o mesmo texto.
Um gênero é simplesmente uma orientação quanto a uma obra
literária. Conseqüentemente, uma exposão teórica pode ser vista
como uma história de detetives se é uma busca pelo conhecimento;
como uma peça se ela representa uma relação entre os elementos
envolvidos; como um poema se retorna constantemente ao seu foco e
elabora apenas um tema; como uma descrição se cria uma
simultaneidade entre a percepção e o que é percebido; novamente
como uma peça se respeita a unidade de tempo aristotélica entre a
“ação” e a experiência artística; e novamente como uma história de
detetives se ela própria é o objeto de conhecimento
.
51
A delimitação do corpus dramatúrgico de Stein é questionada por cada uma das
três pesquisadoras que se dedicaram ao estudo de sua obra teatral: Jane Palatini Bowers,
em Gertrude Stein’s theatre of the absolute (1981), aborda exclusivamente as 77 peças
de Stein listadas por Richard Bridgman no livro Gertrude Stein in pieces. Betsy Alayne
Ryan, autora de They watch me as they watch this, vai além das 77 estudadas por
Bowers. Como destaquei no primeiro capítulo desta tese, Ryan aumenta a abrangência
desse corpus, seguindo alguns critérios, tais como o fato de o “o texto consistir
inteiramente de diálogoou de apresentar rubricas, por exemplo, fatores que indicariam
tratar-se de dramaturgia. Já Sarah Bay-Cheng, em Mama Dada: Gertrude Stein’s avant-
garde theater, quando lista as peças de Stein, e as apresenta no final do livro, inclui
tanto as 77 estudadas por Bowers quanto os textos posteriormente considerados teatrais
por Ryan. Bay-Cheng, no entanto, faz questão de afirmar que ela própria não considera
as peças curtas escritas por Stein antes de 1920 como peças. Estas, para ela, seriam
“meramente exercícios de escrita” e não teriam sido “planejadas para serem
produzidas”. E ela escolheria estudar apenas oito textos de Stein, os que considerou
dramaturgicamente “mais importantes”. Se para cada uma destas pesquisadoras foi
preciso definir o que era uma peça, para poderem estabelecer qual seria de fato o seu
objeto de estudo, o comentário de Wendy Steiner sobre o trecho citado acima, de The
geographical history of America, propõe, no entanto, um outro modo de olhar para uma
obra steiniana no que diz respeito ao gênero ao qual ela costuma se achar associada.
51
Here the genres are not defined formally in connection to texts, but are different perspectives on the
same text. A genre is simply an orientation toward a piece of writing. Hence, a theoretical exposition can
be seen as a detective story if it is a search after knowledge; as a play if it depicts the relation among the
elements involved; as a poem if it constantly returns to its focus and elaborates a single issue; as a
description if it creates a simultaneity between the perception and the perceived; again as a play if it
respects the Aristotelian unity of time between the “action” and the artistic experience; and again as a
detective story if it itself is the object of knowledge.” STEINER, Wendy. Exact resemblance to exact
resemblance. The literary portraiture of Gertrude Stein. New Haven and London: Yale University Press.
2
nd
printing, 1979. p.196-197
195
Os neros (...) são perspectivas diferentes sobre o mesmo texto”, diz Steiner,
seguindo, desse ângulo, o que Gertrude Stein decide quanto ao jogo entre gêneros em
The geographycal history:
Este livro inteiro agora se uma história de detetives (...) uma peça
(...) um poema (...) uma descrição (...) que talvez possa ser uma peça
(...) e é talvez uma história de detetives se puder ser descoberta.
52
É curioso notar que, apesar de Stein expor desta maneira a questão dos gêneros
em The geographical History of America, as peças curtas incluídas por ela no interior
do livro não sejam consideradas peças por nenhuma das três autoras que se dedicaram
especificamente ao estudo de sua dramaturgia. Em nenhuma das três listas de peças de
Gertrude Stein organizadas por elas, constam os trechos de The geographical history of
America aos quais Stein chama de peça”. Tudo o que eu não consigo ver, mas outros
conseguem ver é uma peça para mim”, diria a escritora. Neste estudo, em que também
me concentrei nas peças de Stein, procurei me concentrar naquelas que, como a própria
Stein observa, eu conseguia “ver”. E dentre as peças que eu pude ver, houve textos que
o eram considerados peças nem pela própria Gertrude Stein. Mas que, aqui, são
analisados sob o ponto de vista da “quietude silenciosa e do movimento rápidoque eu
pude enxergar neles.
As “insistências” de Stein sobre um mesmo tema, como o da identidade, por
exemplo, que a levaram a elaborar textos em gêneros variados e inclusive a mesclar
conto, poema, conversação, mote, aforismo e “história”, como faz em Identity, a Tale”,
demonstram o que Stein assinalou sobre o movimento em “Portraits and repetition”: a
cada vez que alguém está fazendo alguma coisa, não há repetição,
se é o que você realmente está fazendo porque evidentemente a
cada vez a ênfase é diferente, assim como o cinema tem a cada
vez uma leve diferença para fazer com que aquilo tudo se mova.
E cada um de s precisa fazer isso, senão não haveria
existência. Como Galileu observou, isso realmente se move.
53
52
“The whole book now is going to be a detective story (...) A play (...) a poem (...) a description (...)
which is perhaps a play (...) and is perhaps a detective story if it can be found out.” “The geographical
history of America or The relation of human nature to the human mind”. In: STEIN, Gertrude. Writings:
1932-1946. New York: The Library of America, 1998. p.410
53
“It is not repetition if it is that which you are actually doing because naturally each time the emphasis is
different just as the cinema has each time a slightly different thing to make it all be moving. And each one
of us has to do that, otherwise there is no existing. As Galileo remarked, it does move.” STEIN, Gertrude.
“Portraits and repetition” In: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The Library of America,
1998 p.295
196
E como tudo se move mesmo, o que a princípio poderia ser visto como dado
biográfico – o exílio - foi se transformando, ao longo desta tese, em guia para a
compreensão da escrita e da estética de Stein, do seu modo de ver o mundo e do seu
processo de composição. Da forma-sempre-em-processo dos seus escritos, do modo
como identidades transitam entre os personagens, dos deslocamentos espaciais e dos
ritmos que se combinam e contradizem no interior de textos que transitam também entre
gêneros e voltam, com mesmo nome, sob outra forma, como é o caso de Ida, por
exemplo.
movimento, então, no passeio de um gênero para outro, dentro de um mesmo
texto, na elaboração de um tema em vários gêneros diferentes, ou no trabalho de ruptura
das regras de um nero (como faz Stein em suas peças ou nas autobiografias, por
exemplo). E movimento também na construção e na desconstrução de estruturas
temporais, como nas passagens de tempo de Film”, e na pulsação do ritmo de uma
escrita baseada na oposição entre “quietude” e “movimento”. Assim como
movimento nos meos que são um, que são três, que são quatro, e que, ao mesmo
tempo, são “um um um”. E também na repentina presentificação do momento da
escrita no tempo presente de sua leitura, como se vê, em “Vida e cartas de Marcel
Duchamps”, no uso da palavra “aqui” remetendo à folha de papel em que se encontra o
texto: “O que lembro quando estou aqui é que palavras o são pássaros”, ou, em A
questão da identidade”, num comentário de Stein sobre o que acabara de escrever, auto-
elogio que se encontra inserido no corpo da peça: Como isso foi bem dito”. O
momento da escrita pode se presentificar ainda quando o texto steiniano se mostra
colado ao próprio suporte. Ulla Dydo cita, em seu livro, um exemplo muito bom, o do
texto cujo tulo refletiria a relação da escrita à mão de Stein com o espaço do caderno
em que estava escrevendo. “Five words in a line”, disse a escritora, o que queria dizer,
como observa Dydo, exatamente isso, que apenas cinco palavras cabiam na linha
daquele caderno em que Stein escrevia
54
. Exemplos como estes remetem o leitor
diretamente ao momento passado da escrita, trazendo de volta este instante e criando
movimento onde haveria estaticidade. Como o pintor americano, brandindo as bandeiras
americana e francesa, criava movimento no interior da imagem estática do momento
histórico passado. Como na escrita telegráfica, incorporada por Stein, que, variando
54
conferir: DYDO, Ulla E. Gertrude Stein: the language that rises:1923-1934. Evanston, Illinois:
Northern University Press, 2003. p.353-354
197
traços” e pontos”, e, alternando “quietude silenciosa” e “movimentos rápidos”,
transformava a “repetição” em “insistência”.
movimento principalmente ao se fazer com que uma aparente contradição - o
movimento nenhum dos santos na paisagem de “Four Saints in three acts”, por exemplo,
versus o movimento interno que faz os personagens serem “reais” – exponha, na
verdade, uma combinação. Uma combinação entre movimento manifesto e impressão de
o-movimento, entre movimento interno e externo, traços e pausas que configuram o
ritmo da escrita steiniana.
movimento nessas aparentes contradições, em frases que se podem colher na
Autobiografia de todo mundo, como “Lá não havia lá- sobre o lugar onde ficava sua
casa de infância. Ou como “o ar é lido quando você está sobre ele”, observação feita
por Stein ao viajar de avião sobre a América. Ou, ao chegar de navio aos Estados
Unidos, e avistar ao mesmo tempo um amigo, o Kiddie, que estivera com ela na França,
e a Estátua da Liberdade, teve a sensação de que os dois países se confundiam: “Estava
ficando mais próximo mas o Kiddie estivera conosco na França e assim talvez ainda não
fosse a América”. Contradições que encontram reflexo em seus ensaios, como no
argumento exposto em “What are master pieces and why are there so few of them” de
que, para se fazer uma obra-prima, o se poderia ter identidade e que, no entanto,
identidade deveria ser o tema de que uma obra prima deveria tratar.
As contradições se reproduzem também em suas peças, como na inserção de
personagens reais nos textos, ao lado, ao mesmo tempo, de uma espécie de retirada
deles da cena, como na tentativa de deduzir Marcel daí” em Vida e cartas de Marcel
Duchamps”. Ou como nos personagens que são parecidos com as celebridades reais em
Not and Now”. Figuras que estão e, ao mesmo tempo, o estão em cena. Como ela
exe, sobre o teatro, em “Plays”, “a coisa fundamental sobre peças” é o tempo
sincopado da emoção do público com relação à emoção que acontece no palco.
Contradição que Stein, no entanto diz ser uma combinação.
55
É também, ao mesmo tempo, como uma contradição e uma combinação que
descreve o seu país de exílio: “É real mas não eslá”. E a contradição combinação
que existe, na percepção de Stein, na cidade de Paris é a seguinte: Paris França é
55
STEIN, Gertrude. “Plays”. IN: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The Library of
America, 1998. p.244
198
excitante e calma”
56
. O que quase repete o modo como descrevia a técnica interpretativa
e dramatúrgica que tanto admirou em William Gillette. “Excitante e calma”, a cidade
em que escolhe viver. “Quietude silenciosa” e “movimento rápido”, o par em contraste-
combinação que ela admira na peça de Gillette e com que passa a orientar sua escrita.
56
STEIN, Gertrude. Paris França. Tradução de Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,
2007. p.33
199
CONCLUSÃO
O trabalho de estudo da vasta e variada obra de Gertrude Stein pode levar o
pesquisador por inúmeros caminhos. No que diz respeito a suas reflexões sobre teatro,
por exemplo, poder-se-ia considerar um estudo aprofundado sobre a influência de
Shakespeare na sua dramaturgia. Ou antes, sobre a influência de Shakespeare sobre a
sua maneira de pensar a poesia e a prosa. Ou ainda sobre as muitas refencias que ela
faz ao dramaturgo em diversas de suas obras. Para citar apenas uma, em The world is
round, por exemplo, a identidade da personagem central, Rose, é questionada, logo na
primeira parte do livro, intitulada Rose Is a Rose”, a partir da possibilidade de ela vir a
ser outra caso seu nome não fosse Rose. Observe-se a passagem:
Rose was her name and would she have been Rose if her name
had not been Rose. She used to think and then she used to
think again.
1
A passagem certamente não coincidentemente cita a cena da peça Romeu e
Julieta, na qual Romeu renega seu nome em nome do seu amor. Cito a passagem da
peça de Shakespeare na qual Julieta, de seu balcão, divaga, sem saber que Romeu a
escuta:
Julieta Somente teu nome é meu inimigo. Tu és tu mesmo
sejas ou não um Montequio. Que é um Montequio? o é
mão, nem pé, nem braço, nem rosto, nem outra parte qualquer
pertencente a um homem. Oh! Sê outro nome! Que em um
nome? O que chamamos de rosa, com outro nome exalaria o
mesmo perfume tão agradável; e assim, Romeu, se não se
chamasse Romeu, conservaria essa cara perfeição que possui
sem o título. Romeu, despoja-te de teu nome e, em troca de
teu nome, que não faz parte de ti, toma-me toda inteira!
Romeu Tomo-te a palavra. Chama-me somente amor” e
serei de novo batizado. Daqui para diante jamais serei
Romeu.
2
O questionamento levantado por Shakespeare com relação ao fato de uma rosa
possuir o mesmo perfume se não se chamasse rosa, é retomado por Stein, no trecho
1
STEIN, Gertrude. “The World is round” In: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The
Library of America, 1998.P.537
2
SHAKESPEARE, William. “Romeu e Julieta” In: SHAKESPEARE, William. Tragédias. Traduções
de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros. São Paulo: Abril Cultural, 1981. p.41
200
citado de The world is round. Trecho cujo subtítulo, também não coincidentemente é
“Rose is a rose” e que remete por sua vez ao verso de Stein “Uma rosa é uma rosa é
uma rosa é uma rosa”, que aparece pela primeira vez em seu poema “Lifting Belly”, e
que depois se repete, mais de uma vez, em diversos textos seus. O verso de Stein pode
ser lido também como uma referência à tematização da rosa por Shakespeare, na fala
citada de Julieta. É certo que a rosa é tema tratado vastamente na poesia de modo geral,
como observa a própria Stein. Tão utilizado que mencionar o nome rosa uma única vez
apenas talvez o causasse efeito algum. Era preciso que se repetisse o nome. Sobre o
seu famoso verso, no qual repete quatro vezes a palavra, Stein teria observado “eu penso
que nessa linha a rosa está vermelha pela primeira vez na poesia inglesa em cem anos”
3
.
Observando a fala de Julieta com mais atenção e tendo em mente as reflexões de
Stein sobre “Poesia e gramática”, pode-se perceber que não é a rosa que lhe chama a
atenção neste trecho da peça. A famosa frase de Julieta nesta fala: What’s in a name?”
(Que em um nome?) é repensada, de certo modo, por Stein no ensaio mencionado
justamente quando divaga sobre os nomes. Eis o que diz em “Poesia e gramática”:
Um substantivo é um nome de uma coisa, ora que uma
coisa tem nome escreva sobre ela. Um nome é adequado ou
não é. Se é adequado então porque continuar a chamá-lo, se
não é então chamá-lo por seu nome não vale a pena.
As pessoas se vogosta de acreditar nisso podem ser feitas
por seus nomes. Chame qualquer pessoa de Paulo e acabará
sendo um Paulo e chame qualquer pessoa de Alice e acabará
sendo uma Alice talvez sim talvez não (...). As coisas uma
vez nomeadas o nome não continua a fazer nada por elas e
assim sendo por que escrever em substantivos. Os
substantivos são o nome de qualquer coisa e limitar-se a
nomear nomes está certo quando queremos fazer uma
chamada, mas será que serve para alguma outra coisa.
Decerto em alguns lugares da Europa e da América as
pessoas gostam de fazer chamada.
Revelando com humor que um nome serve mesmo para se fazer uma
chamada, Stein de certo modo concorda aqui com a Julieta de Shakespeare quando ela
diz “o que em um nome?”. Stein percebe também que um nome é apenas o nome de
alguma coisa, não mais do que isso. O que realmente importaria seria o que estivesse
dentro desta coisa. Observe-se o que se segue ao trecho citado anteriormente:
3
Stein citada por Augusto de Campos. CAMPOS, Augusto. O anticrítico. São Paulo: Companhia das
letras, 1968. p.181.
201
Conforme estou dizendo um substantivo é um nome de uma
coisa, e portanto devagarinho se você sente o que está dentro
daquela coisa você não a chama pelo nome pelo qual é
conhecida. Todo mundo sabe disso pela maneira como agimos
quando estamos enamorados e um escritor deveria ter sempre
aquela intensidade de emoção por qualquer que seja o objeto
sobre o qual escreve. E portanto e eu o digo uma vez mais e
mais a gente não usa substantivos.
4
“A gente não usa substantivos”, diz Stein, mas escreve sobre as coisas que têm
nome: “ora já que uma coisa tem nome escreva sobre ela”. E como interessa a ela o que
está dentro” das coisas que têm nome, Stein pode variar os nomes das coisas e figuras
em seus textos como bem entende. Como já foi mencionado, a sua Lucrecia Borgia, da
peça “Lucrecia Borgia”, chama-se ora Gloria, ora Jenny, ora Winnie. Este jogo com os
nomes se estende para outros textos seus.
O uso dos nomes e substantivos, por Stein, poderia abrir um outro viés de
pesquisa da obra de Stein. E afastando-nos de Shakespeare para nos aproximarmos mais
de Stein, seria possível investigar em sua obra somente a questão do uso dos nomes.
Voltando à Rose de The world is round, que deixei pensando sobre se ela seria
Rose se seu nome não fosse Rose, observe-se até onde a levam as reflexões sobre o
próprio nome:
They all had names and her name was Rose, but she
used to cry about it would she have been Rose if her
name had not been Rose.
5
A frase would she have been Rose if her name had not been Roseremete a
outra frase, esta dita por uma personagem que possui não um, mas quatro nomes e que
também se pergunta se seria a mesma coisa se seu nome não fosse Marguerite Ida and
Helena Annabel”: Would it do as well if my name was not Marguerite Ida and Helena
Annabel would it do as well”. O drama vivido por Margarida Ida pode ser comparado ao
choro de Rose em torno de sua identidade ligada a um nome. Margarida Ida estaria
disposta a desistir até de seus quatro nomes por uma cadeira e um tapete. I would give
up even that for a carpet and a chair”, diz a personagem logo depois de se perguntar se
4
Stein, Gertrude. “Poesia e gramática”, em tradução de Mario Faustino.
5
STEIN, Gertrude. “The World is round” In: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The
Library of America, 1998.P.537
202
ficaria tudo igual se seu nome não fosse Margarida Ida e Helena Anabela. Os quatro
nomes da personagem nos levam de volta à peça “Lucrecia Borgia” que “cria para si
uma mea”. Sobre a hitese de ter uma gêmea, a garota Rose, de nove anos, do livro
The world is round, também se questiona:
Would she have been Rose if her name had not
been Rose and would she had been Rose if she
had been a twin.
6
Volta-se então à questão do gêmeo, do duplo, da identidade, nos três textos
observados rapidamente. Uma peça (Lucrecia Borgia), uma ópera (Doutor Faustus) e
um livro para crianças (The world is round). sobre a recorrência de temas na obra de
Gertrude Stein vários estudos poderiam ser escritos.
Nesta tese que concluo, abrindo para outras possibilidades de estudo da obra de
Gertrude Stein, optei por tratar de questões como identidade, tempo e espaço em suas
peças. A pesquisa foi abrindo um leque, no entanto, que apontava, sem fugir a esses
temas, presentes em cada um dos capítulos, para vários outros caminhos possíveis e
inesperados de investigação. Caminhos que, no interior do estudo sobre o tempo, me
levaram ao telégrafo e ao Código Morse, por exemplo. Estudo que me possibilitou
descobrir uma melhor forma de compreensão de uma das técnicas trabalhadas por Stein
em seus textos, a da “quietude silenciosa e movimento rápido”.
Assim como, a partir de uma rápida leitura da página inicial de The world is
round, foi possível pensar na referência a Shakespeare, na reflexão sobre o uso de
substantivos, nas reflexões sobre duplos, gêmeos e problemas de identidade em Stein,
também foi possível verificar uma espécie de diálogo que entre seus textos. Do
mesmo modo, em cada um dos capítulos que constituem esta tese, foi possível olhar
muitas vezes para um mesmo texto, sob diferentes pontos de vista, sob novos ângulos
de investigação. Por isso, o ensaio “Plays”, por exemplo, é estudado no capítulo que
trata mais de perto da questão do exílio e de sua relação com a escrita steiniana. E
depois é visto novamente, no capítulo que trata do espaço nas peças de Stein, e mais
uma vez ainda, quando o olhar se volta para as questões do tempo e do movimento nas
obras da autora. E não só Plays” é retomado aqui, mais de uma vez, mas peças como
Contando os vestidos dela, ou mesmo cenas de textos mais longos, como a da primeira
6
STEIN, Gertrude. “The World is round” In: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The
Library of America, 1998.P.537
203
entrada de “Margarida Ida e Helena Anabela”. Estes textos são vistos e revistos sob
novos aspectos, para dar apenas alguns exemplos.
E o estudo das peças de Stein me levou ainda para breves análises de outras
formas de escrita exploradas pela autora, como seus retratos ou suas autobiografias. O
exílio como linha mestra para pensar os textos e reflexões steinianas, acabou por impor,
também à tese, um movimento que se por meio de uma insistência em alguns textos,
em alguns temas, e que levou o estudo a trabalhar sempre na margem, nas fronteiras
entre gêneros, entre biografia e ficção, entre movimento e o movimento, entre
quietudes silenciosas e movimentos rápidos, entre identidades e desidentificações, e
entre contradições que são também combinações. E a se perguntar, sem cessar, o que
no nome play, peça, quando se está frente aos textos de Stein.
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ANEXO I
TRADUÇÕES
Introdução: VER-OUVIR STEIN p. 212
1. “Cada tarde. Um diálogo” (1916) p. 226
2. Por favor não sofra. Uma peça” (1916) p. 234
3. “Contando os vestidos dela. Uma peça” (1917) p. 241
4. Bonne Anne. Uma peça (1916) p. 261
5. Três irmãs que não são irmãs. Um melodrama” p. 263
6. Uma peça” (1936) p. 277
7. Parte IV A questão da identidade. Uma peça” (1936) p. 281
8. Uma cortina” (1913) p. 290
9. Ele disse. Monólogo” (1915) p. 292
10. “Fotografia” (1920) p. 305
11. “Você vê o nome” (1918) p. 311
12. “Um filme” (1920) p. 313
13. “Filme. Duas irmãs que não são irmãs” (1929) p. 318
14. Trecho do romance Ida (1941) p. 320
15. “O que ela vê quando ela fecha os olhos. Um romance” (1936) p. 322
212
VER-OUVIR STEIN
Gertrude Stein viveu num exílio duplo. Geográfico, já que passou a maior parte
de sua vida na França. E lingüístico, já que continuou, mesmo fora dos Estados Unidos,
se comunicando e escrevendo em inglês. Também o pesquisador dedicado à sua obra, se
em situação parecida. O enfrentamento com a dramaturgia de Gertrude Stein me
levou, dada a escassez de textos seus em português, a um exercício obrigatório de
tradução, e a um movimento constante entre dois idiomas. Esse exercício de tradução se
desdobraria, na verdade, para mim, em dois. Unindo, no meu caso, o trabalho de verter
para a língua portuguesa as peças originalmente escritas em inglês e a transposição de
algumas destas peças do texto para a cena.
Quanto ao exercício de tradução cênica realizei até agora quatro experiências
distintas. As duas primeiras foram leituras de textos de Stein organizadas por mim e
apresentadas na Fundação Casa de Rui Barbosa. A primeira, em maio de 2001, a
segunda em abril de 2003. Estas duas experiências de vocalização seriam gravadas,
durante as apresentações, e a audição posterior das fitas acabaria me levando a repensar
e rever as primeiras versões das minhas traduções para as peças de Stein. E me
instigaria também a ir além da simples leitura, planejando tentativas de espacialização
para alguns dos textos. O que me encorajaria a levar adiante uma terceira experiência,
na verdade uma experimentação de mais longa duração, e mais aprofundada: um
laboratório de um semestre com alunos de teatro da UNIRIO, cujo objetivo principal era
investigar as possibilidades cênicas de Stein. Como resultado, em agosto de 2004,
apresentamos o espetáculo Eu me ouço falando” (frase da peça “Por favor não sofra”),
que sintetizaria as experimentações realizadas durante todo o período do curso. Três
meses depois ocorreu uma quarta experiência de tradução de Stein para o palco, durante
o evento A Universidade e o artista pensando teatro fazendo teoria -, organizado
pelo Departamento de Teoria do Teatro também da UNIRIO. intercalei uma leitura
performatizada de alguns dos textos teatrais de Stein ao vídeo-registro do espetáculo
Eu me ouço falando”. E diante de uma platéia de estudantes e professores de teatro, e
ao lado de duas das atrizes (Ângela Rebello e Fernanda Donini) que trabalharam
comigo, me vi instigada a conjugar a discussão sobre esses exercícios teatrais ao
trabalho de tradução lingüística que continuo realizando. Conjugação que tem sido
também, para mim, um exercício duplo (cênico, lingüístico) de interpretação do trabalho
steiniano.
213
Vocalizações e experimentações cênicas à parte, gostaria, entretanto, de me
voltar aqui para a questão das versões de Stein emngua portuguesa. No que diz
respeito à sua produção dramatúrgica, que é bastante vasta, e foi coletada parcialmente
nos volumes Geography and Plays, Operas and Plays e Last Operas and Plays, o
material em português é realmente bastante escasso. Por isso procurei me dedicar em
especial à tradução de algumas de suas peças curtas. Até este momento, verti para o
português “Uma cortina (1913), “Contando os vestidos dela. Uma peça”
1
(1917),
“Cada tarde. Um diálogo” (1916), “Por favor não sofra. Uma peça” (1916), Bonne
Anne. Uma peça” (1916), “Ele disse. Monólogo” Três irmãs que o são irmãs. Um
melodrama” (1943), “Fotografia. Uma peça em cinco atos” (1920), Voo nome”
(1918), “Uma peça (1936) e “A questão da identidade” (1936). Ao longo da minha
pesquisa de doutorado a lista de traduções foi se estendendo para além dos textos que
são definidos por Stein como peças, e incluindo, os dois roteiros cinematográficos
escritos por ela, “A Moviee “Filme. Deux soers qui ne sont pas soers”, um pequeno
trecho do romance Ida (1941) e o romance curto “O que ela quando ela fecha os
olhos” (1936)
As seis primeiras peças listadas estão publicadas no volume Geography and
plays
2
. “Três irmãs que não são irmãs”, os romances Ida e “O que ela quando ela
fecha os olhos” encontram-se na coletânea Gertrude Stein Writings: 1932-1946
3
. Os
dois roteiros cinematográficos foram incluídos por Stein em seu livro Operas and Plays.
Vo o nome”, originalmente publicada em Bee time vine and other pieces, foi
depois retomada por Jane Palatini Bowers em seu livro They watch me as they watch
this, onde a pesquisadora inclui a peça na íntegra. As outras duas (“Uma peça” e A
questão da identidade”) são duas das pequenas peças que Stein inclui em seu livro The
geographical history of America
4
.
O exercício de tradução destes textos me fez perceber o quanto este é um meio
eficaz de aproximação e análise do seu teatro. Posso dizer, desse ponto de vista, que o
esforço de transposição e recrião das peças de Gertrude Stein é necessariamente
uma forma de abordagem crítica, de exercício interpretativo. E qualquer exercício de
1
Esta tradução foi publicada em 2001 na coleção Moby Dick da Viveiros de Castro Editora.
2
STEIN, Gertrude. Geography and plays. With an introduction by Cyrena N. Pondrom. Wisconsin: The
University of Wisconsin Press, 1993.
3
STEIN, Gertrude. Gertrude Stein Writings: 1932-1946. New York: The Library of America, 1998.
4
STEIN, Gertrude. The geographical history of America or The relation of human nature to the human
mind. In: STEIN, Gertrude. Gertrude Stein Writings: 1932-1946. New York: The Library of America,
1998. p.365
214
tradução da dramaturgia de Stein é também um diálogo com quatro de seus tradutores
para o português, que obtiveram até agora resultados mais significativos: Augusto de
Campos, Júlio Castañon Guimarães, Fábio Fonseca de Melo e Luci Collin.
Além destas, outras iniciativas de tradução de textos steinianos que merecem
citação. O poeta Mario Faustino publicou em 1957, no “Suplemento Literário do Jornal
do Brasil”, sua versão em português para a palestra Poetry and Grammar realizada pela
escritora durante sua turnê pelos Estados Unidos em 1934/1935; o romance Três vidas
foi publicado no Brasil em 1965, com tradução de Brenno Silveira e José Paulo Reis;
Caetano Veloso traduziu, e publicou na revista “Código 8” (1983), fragmentos de
“Melanctha”, uma das histórias de Três vidas. Ainda em 1983 a Editora Nova Fronteira
publicou a Autobiografia de todo mundo, traduzida por Júlio Castañon Guimarães e
José Cerqueira. E, com tradução de Milton Persson a Autobiografia de Alice B. Toklas
foi publicada no Brasil em 1984. ainda a tradução de Suzana de Moraes e Wally
Salomão para Dinheiro”, que saiu no suplemento Folhetim nº350, de 9/10/1983, da
Folha de São Paulo. E um trecho de “Portrait of Picasso” foi traduzido também por
Suzana de Moraes e publicado no encarte do CD de Adriana Calcanhoto “A fábrica do
poema(1994). Mas, o que me interessa abordar aqui, mais especificamente, não são as
versões em português de Stein em geral, mas as traduções brasileiras de seu teatro.
Augusto de Campos verteu, para o português, trechos de dois textos teatrais
steinianos, o libreto Quatro santos em três atos e a peça Escute aqui, versões que foram
publicadas em seu livro O anticrítico (1986). também quatro dos retratos” escritos
por Stein, traduzidos também pelo poeta paulista e reunidos, em 1989, em volume da
Editora Noa-Noa, de Santa Catarina. Dentre eles a sua versão para Um retrato de um.
Harry Phelan Gibb, seria republicada, uma década depois, no suplemento “Mais” da
Folha de S. Paulo em 21 de Julho de 1996, edição na qual Augusto de Campos
divulgaria, ainda, o segmento inicial de um outro retrato: Van ou vinte anos após (um
segundo retrato de Carl Van Vechten), de 1923. E exporia uma de suas preocupações
principais ao traduzir os textos de Stein:
Curiosamente Gertrude não faz da palavra, e muito menos da letra,
mas da frase (a sentença, o pagrafo) a célula-mater do seu discurso.
Desdobrada, primatizada, refratada em várias torções de posição, mas
não pulverizada, é sempre a sentença que constitui o foco de seu
discurso. No entanto em alguns momentos, a repetição das partes do
discurso (incluindo, sem preconceitos, conectivos, preposições e
outras “partes fracas” das orações), aliada à exploração das
215
sonoridades minimalistas do idioma, faz aflorar, molecularmente, a
palavra, submetida a uma inédita microscopia. Veja-se o início de Van
ou vinte anos após (um segundo retrato de Carl Van Vechten), de
1923, que dou no original, insubstituível e, a seguir, numa tentativa de
recriação não-literal que busca manter em português a sua elevada
taxa monossilábica: “Twenty years after, as much as twenty years
after in as much as twenty years after, after twenty years and so on. It
is it is it is it is, as if it. Or as if it. More as if it. As more. As more, as
if it. And if it. And for and as if it(“Vinte anos após, tal qual vinte
anos após tal qual tal vinte anos após, após vinte anos e tal. É e é e é e
é, tal qual se é. Ou se tal se é. Mais se qual se é. Qual mais. Qual mais,
se tal se é. E se é. Se tal qual se é.”).
5
O poeta e tradutor, apesar de classificar sua versão como uma “tentativa de
recriação não-literal”, dando atenção mais à forma, à sonoridade e à composição da
frase, por meio da repetição de monossílabos, acaba conseguindo, graças a esse
processo, resolver questões centrais ao próprio sentido do texto, que se encontra
entranhado a essa gramática peculiar. O uso de palavras de uma silaba só, que Augusto
de Campos procura manter em sua versão para esse início de “Van ou vinte anos após”,
é, aliás, uma questão que chegou a ser tematizada diversas vezes por Stein.
Uma delas é na peça Listen to me (Escute aqui, na versão de Campos), cujo
pequeno trecho traduzido por Augusto de Campos cito a seguir, primeiro em sua versão
original e depois no seu correspondente em português:
Fourth Act. And what is the air.
Fourth Act. The air is there.
Fourth Act. The air is there which is where it is.
Kindly notice that is all one syllable and therefore
usefull. It makes no feeling, it has a primise, it is a delight, it needs no
encouragement, it is full.
Fourth Act. The air is full
Fourth Act. Of course the air is full
Fourth Act. Full of what
Fourth Act. Full of it.
Fourth Act. The air is full of it.
Fourth Act. Of course the air is full of it.
Fourth Act. Of course
Fourth Act. The air
Fourth Act. Is full
Fourth Act. Of it.
Segue a versão de Augusto de Campos para o trecho:
5
CAMPOS, Augusto de. “Gertrude Stein”. In: Folha de São Paulo. Auditoria MAIS! Página 5-9. Edição
nacional de 21 de Julho, 1996.
216
Quarto Ato. E o que é o ar.
Quarto Ato. O ar é lá.
Quarto Ato. O ar é lá no que há no ar.
Por gentileza observem que tudo é de uma
sílaba e pois útil. Não produz sentimento, contém uma promessa, é um
prazer, não necessita de estímulo, é só.
Quarto Ato. O ar é só.
Quarto Ato. Sim o ar é só.
Quarto Ato. Só de que.
Quarto Ato. O ar é só de ar.
Quarto Ato. Sim o ar é só de ar.
Quarto Ato. Sim
Quarto Ato. O ar
Quarto Ato. É só
Quarto Ato. De ar.
Apesar de a língua inglesa possuir uma quantidade maior de palavras
monossilábicas do que a língua portuguesa, o tradutor consegue, neste trecho, manter os
monossílabos pedidos por Stein. Logo nos dois primeiros versos (ou falas), Campos
opta por traduzir o verbo to be”, conjugado aqui na terceira pessoa do singular (“is”),
pelo verbo ser, (“é”), quando poderia ter optado por usar o verbo “estar”, mas nesse
caso, se perderia o monossílabo “é”, que se repete ao longo do trecho traduzido. Outra
escolha que mantém o uso de monossílabos é a tradução da palavra “full por ”,
quando literalmente “full” seria cheio”, em português. o os monossílabos são
preservados, como a idéia de cheio fica clara com o uso da palavra “só”, no contexto
das frases. A tradução de Campos perde apenas o segundo sentido da expressão inglesa
“full of it”, mas que seria impossível preservar apenas com uso de palavras de uma
sílaba.
Júlio Castañon Guimarães, além de ter co-traduzido, como vimos, a
Autobiografia de todo mundo, e outros textos de Stein, publicou na revista O Percevejo
nº9 versões de cinco peças da escritora que fazem parte do volume Geography and
Plays, publicado em 1922. As peças traduzidas por ele são: “Capitão Walter Arnold,
Uma Peça”, de 1916; “Quero que isto seja uma peça, Uma Peça” de 1916, “Vozes de
mulheres”, de 1916, “A seguir. Vida e cartas de Marcel Duchamp”, de 1920; O rei ou
alguma coisa (convida-se o público a dançar)” de 1917.
Na sua introdução às traduções, Júlio Castañon exe algumas questões
problemáticas para quem estuda Stein. O primeiro ponto diz respeito ainda aos
monossílabos, cuja grande quantidade na obra da escritora também foi objeto de
reflexão por parte de Augusto de Campos. Outra questão relevante, assinalada por
217
Castañon, é a das assonâncias. Restando, ainda, o problema da pontuação, de interesse
particular quando se trata de seus textos teatrais.
Um ponto fundamental, nesse caso, é o fato de Gertrude Stein não usar jamais o
ponto de interrogação. O que, em se tratando da ngua inglesa, onde as frases
interrogativas são invertidas, é de mais imediata decodificação já que, nestes casos, o
ponto de interrogação se torna desnecessário. Em português não esta inversão, de
forma que a supressão do ponto pode tornar essas frases afirmativas ou ambíguas.
Castañon optou, na sua tradução de Stein, pelo uso de alguns “artifícios” que, em
português, tornam a frase interrogativa. Veja-se um exemplo tirado da peça “Vozes de
mulheres”:
Versão original:
Act IV
What are ladies voices.
Do you mean to believe me.
Have you caught the sun.
Dear me have you caught the sun.
6
Tradução de Júlio Castañon Guimarães:
Ato IV
O queo vozes de mulheres.
Me pergunto se você pretende acreditar em mim.
Será que você pegou sol.
Querida você terá pegado sol.
7
Ou então esta outra passagem, extraída de “The King or something. The Public
is invited to dance” (1917).
Original de Stein:
Page IX
Were you pleased with this.
Are you fond of blue flowers. Yes if you pick them. We will
pick them together.
8
6
STEIN, Gertrude. “Ladies Voices” In : STEIN, Gertrude. Geography and plays. With an introduction by
Cyrena N. Pondrom. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1993. p.203
7
STEIN, Gertrude. “Vozes de mulheres”, tradução de Julio Castañon Guimarães. In: O Percevejo: revista
de Teatro, Crítica e Estética . ano 8 . N.9 . 2000. Departamento de Teoria do Teatro . Programa de Pós-
Graduação em Teatro . UNIRIO.
8
STEIN, Gertrude. “The king or something (The Public is invited to dance)”. In: STEIN, Gertrude.
Geography and plays. With an introduction by Cyrena N. Pondrom. Wisconsin: The University of
Wisconsin Press, 1993. p.122
218
Tradução de Castañon:
Página IX
Será que você ficou satisfeita com isto.
Parece que você gosta muito de flores azuis. Gosto se você as
colhe. Então vamos colhê-las juntas.
9
No caso das traduções de Julio Caston, o uso de artifícios para indicar
interrogação (“me pergunto”; “será que”) é bastante eficaz, uma vez que o que está em
pauta é uma leitura silenciosa e não uma encenação ou leitura oral ou dramatizada
dos textos teatrais. E é também uma maneira encontrada pelo tradutor de respeitar a
opção de Stein pelo o uso dos sinais gráficos de interrogação. Não uso que é
justificado pela própria escritora em seu texto “Poesia e gramática”, que cito em
tradução de Mario Faustino:
Há umas pontuações queo interessantes e há umas pontuações que
não são. Vamos começar pelas que não são. Destas aquela mas a
primeira e a mais e a completamente mais desinteressante é o ponto de
interrogação. O ponto de interrogação está direito quando é usado
sozinho, quando é usado como marca de gado ou quando podia ser
usado como decoração mas em relação à escrita é completamente,
inteiramente completamente desinteressante. É evidente que se você
faz uma pergunta você faz uma pergunta mas qualquer pessoa que
pode ler um pouco que seja sabe quando uma pergunta é uma pergunta
pelo jeito como é escrita na escrita. Portanto eu pergunto a você
portanto por que tanto por que usar o ponto de interrogação. Além
disso sua forma não dá certo com os tipos ordinários de imprensa e
assim não agrada nem ao olho nem ao ouvido e é portanto como um
substantivo, apenas um nome desnecessário de alguma coisa. Uma
pergunta é uma pergunta, qualquer pessoa pode ver que uma pergunta
é uma pergunta e assim por que acrescentar a ela o ponto de
interrogação quando está aí quando a pergunta já es aí na escrita.
Portanto eu nunca consegui usar o ponto de interrogação, sempre o
achei revoltante (...). Se você não sabe que uma pergunta é uma
pergunta para que serve ser uma pergunta.
Castañon procura substituir o ponto de interrogação pela forma interrogativa
como a frase é escrita, de modo que, mesmo o texto estando vertido para o português, o
9
STEIN, Gertrude. “Vozes de mulheres”, tradução de Julio Castañon Guimarães. In: O Percevejo: revista
de Teatro, Crítica e Estética . ano 8 . N.9 . 2000. Departamento de Teoria do Teatro . Programa de Pós-
Graduação em Teatro . UNIRIO.
219
leitor possa saber “quando uma pergunta é uma pergunta pelo jeito como é escrita na
escrita”
.
Continuando o diálogo com esses quatro tradutores do teatro de Gertrude Stein,
chegamos a Fábio Fonseca de Melo, que traduziu a peça Doutor Faustus liga a luz.
Fábio de Melo não usa os artifícios” interrogativos propostos por Júlio Castañon para
explicitar as frases interrogativas, mas sugere que toda a peça seja lida como afirmação
e interrogação justapostas, como uma grande dúvida, como pergunta exclamativa”.
Na minha experiência ainda pequena como tradutora de Gertrude Stein, devo
dizer que o que houve de minha parte foi um esforço de tradução levando em conta
principalmente a encenação possível daqueles textos (mesmo os que não são apontados
a princípio como peças, como os romances e roteiros cinematográficos), e, nesse
sentido, optei, na maioria dos casos, pela não utilização dos dispositivos empregados
por Castañon para transformar as frases em interrogativas, uma vez que no ato da
enunciação as interrogações ficariam claras. Por outro lado, acho que nem todas as
frases de Stein podem ser lidas “como afirmações e interrogações justapostas”, como
propõe Fabio Fonseca de Melo. Talvez a melhor solução, ao se pensar na leitura
silenciosa dessas traduções, seria considerar a hipótese de uma publicação bilíngüe.
Como a que saiu recentemente na revista Oroboro nº1”, da peça O que aconteceu”
(“What happened”), traduzida por Luci Collin. Nesta publicação, a versão para o
português foi editada tendo o texto original ao lado, o que possibilita ao leitor conferir,
no original, a cada linha, quais seriam as frases interrogativas, quais as afirmativas, e
ainda aquelas que apresentam dubiedade de interpretação.
Para facilitar o trabalho com os atores que participaram das duas leituras,
organizadas por mim, de peças de Stein na Casa de Rui Barbosa, optei por expor, em
alguns casos, o sinal de interrogação entre parênteses, ao final das frases mais
claramente interrogativas. São estas versões, com as interrogações aparecendo entre
parênteses, que também utilizei para trabalhar com os atores que participaram do curso
mencionado ministrado por mim, no primeiro semestre letivo de 2004 na Escola de
Teatro da UNIRIO. Mas, acredito, a partir da experiência que tive então, que esta não é
a melhor solução, uma vez que há gradações de entonação para uma frase interrogativa
que ficam, muitas vezes perdidas, no ato da emissão, pois os atores ao lerem o texto
com os pontos de interrogação entre parênteses tendem a acentuar a entonação das
frases interrogativas, mais ainda do que se os sinais estivessem sem parênteses,
220
deixando assim de aproveitar nuances que poderiam ser melhor exploradas caso os
sinais gráficos não estivessem ali.
Talvez fosse o caso de lembrar, com relação às interrogações sem sinal gráfico
de interrogação, um comentário de Augusto de Campos segundo o qual sugere que se
leiam os textos de Gertrude Stein com os ouvidos:
Talvez os seus textos devessem ser encarados mais como libretos
(como os “ouviu” Virgil Thomsom) do que como obras definitivas, ou
definitivamente fixadas no papel. Ou como letras (na acepção de letras
de música), mais próximas da conversa e da fala do que da poesia
escrita e estrita. Gertrude afirmava que preferia ouvir com os olhos.
Quem sabe não devamos lê-la com os ouvidos.
Augusto de Campos sugere aí então que há uma musicalidade intrínseca ao texto
steiniano. Musicalidade que também foi notada por Hélio Oiticica em carta para Wally
Salomão de 21 de maio de 1972:
Ler Gertrude Stein é ler-ouvir é tudo de mais importante pra quem lê
pensa escreve: vou lh-enviar este pocket book dos Writings lectures
&tc.: eu e Haroldo fomos a uma leitura de 24 horas de coisas dela e
vi-ouvi como é importante não só ler como ouvir: Ela tem um texto
genial sobre as relações de som do-com visual e coloca de modo
nunca visto a multi-ambivalência do ver ouvir ver visual & sensorial.
Acrescentem-se a estas citações dois elementos de corroboração. O primeiro é a
existência de gravações de Gertrude Stein lendo alguns de seus textos. A audição destas
gravações faz perceber que há um ritmo na sua escrita que pressupõe uma fala, ou antes,
que o sentido, nos seus escritos, por vezes se constrói na sonoridade mesma da fala. Um
outro fato é o de que a própria Gertrude Stein achava agradável ouvir suas próprias
peças lidas em voz alta. Em uma de suas biografias, há o relato feito por Paul Bowles de
que ela pedia freqüentemente a ele que lesse em voz alta trechos de seu livro Geography
and plays, e enquanto ele lia ela ria e pedia que repetisse um ou outro parágrafo.
Voltando então a Luci Collin, autora da tese A composição em movimento: as
dinâmicas temporal e espacial nos retratos literários de Gertrude Stein(2003), na
sua tradução para a peça “What happened”, ainda no que diz respeito aos sinais gráficos
de interrogação, uma observação por fazer. A tradutora opta por o usar recursos que
indiquem quando a frase é interrogativa e quando é afirmativa. No caso desta peça, em
221
particular, tais artifícios seriam mesmo desnecessários, uma vez que as frases
interrogativas, na sua maioria, são seguidas por respostas. Como neste exemplo:
Um aniversário, que é um aniverrio, um aniversário é um discurso, é
uma segunda vez quando há tabaco, é só uma vez quando há veneno.
E na versão original:
A birthday, what is a birthday, a birthday is a speech, it is a second
time when there is tobacco, it is only one time when there is poison.
Há, no entanto, ao menos uma frase que, em português pode ser interpretada
tanto como interrogação quanto como afirmação:
Paralisia, por que a paralisia é uma sílaba por que não é mais vívida.
Agora se observe a mesma frase em seu original em inglês:
Paralysis why is paralysis a syllable why is it not more lively.
Neste caso, a segunda oração que come a frase (why is it not more lively”) é
claramente interrogativa, enquanto que na sua versão para o português ela pode ser lida
como uma resposta à primeira oração da frase. Neste caso, o original impresso ao lado é
de grande valia, uma vez que esclarece que ambos os “por ques” da frase são
interrogativos.
Além do não uso dos pontos de interrogação, há, na tradução de Collin uma
interpretação curiosa do texto que se revela na escolha do uso do singular, quando em
inglês a frase pode estar tanto no singular quanto no plural. Ao longo de toda a peça “O
que aconteceu”, Stein exibe, entre parênteses, alguns números: (um)”, depois
(cinco)”, mais à frente “(dois)”, e assim por diante. Estes números entre parênteses
sugeririam, a princípio, rubricas indicando quantos personagens se encontrariam em
cena. Pois bem, o ato dois começa com a indicação “(três)”. Segue-se um trecho de três
pequenos parágrafos e depois mais uma indicação entre parênteses, traduzida por Collin
da seguinte maneira: “(O mesmo três)”. Em ings, a frase The same three” pode ser
traduzida tanto por “o mesmo três” quanto por “os mesmos três”. A segunda opção
222
sempre me pareceu mais coerente, uma vez que é comum que se use tal expressão, em
dramaturgia, para indicar que os mesmos três personagens permanecem em cena. No
entanto, a opção de Collin por manter a frase no singular oferece uma possibilidade de
leitura diferente: a de que os números seriam, eles próprios, os personagens da peça, e
o indicações de quantos personagens estariam em cena.
A opção da tradutora pode parecer estranha, a princípio. Mas não se levarmos
em conta que Stein, em suas peças, joga com os elementos que comem uma
dramaturgia, mudando-os de função, a ponto de atos funcionarem, por vezes, como
personagens e de rubricas confundirem-se com falas, para dar apenas dois exemplos,
dentre muitos, dos jogos críticos, realizados pela escritora, com a retórica e as estruturas
dramáticas. É pensando nisso que não parece nada absurda a idéia de que os números
sejam não quantidade, mas figuras em cena. E menos absurda ainda se lembrarmos de
uma passagem do livro The geographical history of America, na qual a autora propõe
fazer do número oito um público:
Eu desejo muito seriamente fosse eu eu que oito fosse um
público. Você se importa oito. (…) A coisa que é importante sobre
números é que qualquer um deles tem nomes bonitos.
Eno eles são usados em jogos em loterias em peças em jogos
com cenas e em tudo.
10
E é também neste livro, The geographical history of America, que se encontra a
peça, traduzida por mim, “A questão da identidade” na qual se não são números que se
apresentam como figuras em cena, são “lágrimas” que viram um personagem em
diálogo com um “coro”.
Esboçados alguns dos problemas mais evidentes de tradução, seria o caso de
perguntar de que maneira esse exercício crítico e linguístico ajuda a compreender os
mecanismos dramatúrgicos de Gertrude Stein.
O que eu pude perceber, nos meus primeiros contatos com a dramaturgia
steiniana, foi uma sensação de estranhamento, de estar diante de algo estrangeiro”, à
primeira vista irreconhecível considerando a visão mais habitual do que é um texto
teatral. Sensação semelhante, talvez, à que teve a própria Stein ao assistir a um
espetáculo encenado pela companhia de Sara Bernhardt, quando era ainda jovem,
10
“The geographical history of America or The relation of human nature to the human mind”. In: STEIN,
Gertrude. Writings: 1932-1946. New York: The Library of America, 1998. I wish very seriously were I I
to have eight be an audience. Do you mind eight. (…) The thing about numbers that is important is that
223
experiência relatada por ela em seu texto “Plays”, e mencionada anteriormente nesta
tese:
Eu sabia um pouco de francês é claro mas realmente isso não estava
importando, era tudo o estrangeiro e a voz dela era tão variada e
tudo era tão francês que eu pude descansar nisso sem problemas. E foi
o que eu fiz.
11
Mas o meu espanto inicial diante da dramaturgia de Stein não se limitou ao fato
de o texto estar noutra língua. E o exercício de tradução me levou a perceber que essa
sensação de estranhamento até certo ponto se mantinha, mesmo o texto estando já
vertido para o português. Comecei a observar, então os mecanismos usados por
Gertrude Stein para obter esse efeito de “estrangeirização” do texto nas suas peças.
Em primeiro lugar isso se realiza por meio da própria gramática. Há, por
exemplo, um uso diferenciado, bastante particular, dos pronomes. Em Três irmãs que
o o irs” alternam-se os pronomes ela (she/her), ele (he/him), alguém
(someone/somebody), ninguém (nobody), algum (some) e um (one) num mecanismo de
repetição próprio à autora. Nesta mesma peça, passagens nas quais a autora separa a
palavra “someone” transformando-a em duas palavras “some one”. A minha tradução
opta, neste caso, pela reutilização de uma solução poética encontrada por Augusto de
Campos em sua versão para “Um retrato de um. Harry Phelan Gibb”. Veja-se o início
deste texto:
Algum um sabendo que tudo é saber que algum um é alguma coisa.
Algum um é alguma coisa e está conseguindo está conseguindo
esperar essa coisa. Está sofrendo.
Agora observe-se a tradução que procurei fazer para uma das cenas de Três
irmãs que não são irmãs”:
As luzes se apagam. Quando elas voltam a se acender, o
policial se foi e Ellen assassinada está no chão.
Jenny olha timidamente de debaixo da cama para fora e dá um
grito:
Oh mais uma e agora eu sou só uma e agora eu serei a uma
assassinada.
any of them have pretty names.Therefore they are used in gambling in lotteries in plays in playing in
scenes and in everything. (p.406)
11
STEIN, Gertrude. “Plays” IN: Look at me now and here I am. Writings and Lectures. 1909-45. Edited
by Patricia Meyerowitz. Penguin Books. P.73
224
E timidamente ela se esgueira de volta para embaixo da cama.
Cortina
ATO 3
Jenny embaixo da cama. Samuel desta vez não como um
policial mas como um apache entra se esgueirando.
Samuel. Aha eu vou matar algum um.
Jenny. (embaixo da cama) Ele não pode me ver não ele o
pode, e de qualquer modo eu vou matar ele primeiro, sim eu
vou.
Este uso da palavra someone” como duas palavras separadas encontra-se
também em outros textos de Gertrude Stein. Como no retrato que fez para Alice Toklas,
“Ada”, por exemplo, texto já comentado aqui no quinto capítulo desta tese:
Some one who was living was almost always listening. Some one who
was loving was almost always listening. That one who was loving was
almost always listening. That one who was loving was telling about
being one then listening. That one being loving was then telling stories
having a beginning and a middle and an ending.
12
Além do estranhamento gramatical, há também, em Stein, um humor que é
extraído da forma e do som das palavras e não apenas do seu sentido mais imediato. Ou
que se aproveita da sua significação usual para tornar cômica a simples repetição de
certos nomes. Os de duas senhoras, Furr (fur: pele de bicho) e Skeene (skin: pele de
gente), no texto Miss Furr and Miss Skeene, por exemplo:
Helen Furr had quite a pleasant home. Mrs Furr was quite a pleasant
woman. Mr Furr was quite a pleasant man. Helen Furr had quite a
pleasant voice a voice quite worth cultivating. She did not mind
working. She worked to cultivate her voice. She did not find it gay
living in the same place where she had always been living. She went
to a place where some were cultivating something, voices and other
things needing cultivating. She met Georgine Skeene there who was
cultivating her voice which some thought was quite a pleasant one.
Helen Furr and Georgine Skeene lived together then. Georgine Skeene
liked traveling. Hellen Furr did not care about traveling, she liked to
12
STEIN, Gertrude. “Ada” In: In: STEIN, Gertrude. Geography and plays. With an introduction by
Cyrena N. Pondrom. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1993. p.14
225
stay in one place and be gay there. They were together then and
traveled to another place and stayed there and were gay there.
13
Em outros textos, a referência a objeto tão cotidiano como uma cadeira - em
As três irmãs que não são irmãs, pode ficar absurda.
Uma sala levemente escurecida, um sofá, e uma cadeira e um copo d’água
,
as três irmãs sentadas no sofá juntas, a luz de repente vai embora.
Jenny.
Olhe a cadeira.
Helen.
Qual cadeira.
Jenny.
A única cadeira.
Ellen.
Eu não consigo ver a única cadeira.
Jenny.
(
com um grito
) Olhe a única cadeira.
Todas
três
juntas.
Não tem nenhuma cadeira lá.
Samuel.
Não não tem nenhuma cadeira lá porque eu estou sentado nela.
Sylvester.
E não tem nenhum ele lá porque eu estou sentado nele.
Jenny.
Qual um vai assassinar qual um.
Samuel.
Espere e veja.
E há, em Gertrude Stein, o que torna o seu teatro particularmente importante,
uma agramaticalização não apenas da ngua ou do riso, mas da prática dramatúrgica,
das convenções teatrais canônicas desde fins do século XVII.
Na direção da apreensão dos dispositivos mais característicos da
agramaticalidade teatral de Stein, ao lado desse trabalho de tradução e análise, recurso
auxiliar de grande importância é a leitura comparativa de dois ensaios fundamentais da
escritora: Poetry and Grammar e Plays. Pois o seu uso particular da gramática
(explicitado no texto Poetry and Grammar), na verdade, vai estar ligado à maneira
como Gertrude Stein compreende o teatro. E o torna “estrangeiro”. Como detectou
Mario Faustino, ainda em 1957, sobre toda a obra da escritora, em nota à sua tradução
de “Poetry and Grammar”,:
Num tempo em que quase todos falavam (...) em termos
pseudometafísicos, pseudomísticos, pseudo-ascéticos, pseudomágicos,
essa mulher chamava a atenção de seus leitores para pontos e vírgulas
e materiais de construção.
13
STEIN, Gertrude. “Miss Furr and Miss Skeene” In: In: STEIN, Gertrude. Geography and plays. With
an introduction by Cyrena N. Pondrom. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1993. p.17
226
Cada tarde
1
Um diálogo
Eu levanto
Então você levanta.
Nós estamos satisfeitas uma com a outra.
Porque vocês estão.
Porque nós estamos esperançosas.
Vocês têm algum motivo para estar.
Nós temos motivo para estar.
Qual é.
Eu não estou preparada para dizer.
Há alguma mudança.
Naturalmente.
Eu sei o que você quer dizer.
Eu acho que não eu não preciso ensinar nguas.
Seria tolo pra você também.
Seria aqui.
Seria em qualquer lugar.
Eu não gosto do Peru.
Eu espero que você goste.
Eu começo isso.
Sim você começou isso.
Claro que nós começamos.
É nós de fato comamos.
Quando nós vamos falar de outro.
Não hoje eu te garanto.
É certamente você citou isso.
Nós citamos tudo.
Para outra.
Eu não quero explicações.
Você quer dizer que você aprendeu cedo.
É exatamente o que eu quero dizer.
E eu sinto o mesmo.
Você sente isso ser o mesmo.
Não o tente.
Não tente ele.
Esta tarde não houve nenhuma pergunta sobre tentação ele não estava nem um pouco
interessado.
Nem ela estava.
Claro que ela não estava.
Não é realmente preciso perguntar a ela.
Eu achei preciso.
Você achou.
Certamente.
1
STEIN, Gertrude. “Every afternoon”. In: STEIN, Gertrude. Geography and plays. With an introduction
by Cyrena N. Pondrom. Madison: The University of Wisconsin Press, 1993. p.254.
227
E quando é o seu lazer.
Lendo e tricotando.
Lendo ou tricotando.
Lendo ou tricotando.
É lendo ou tricotando.
Ao anoitecer.
Ativamente primeiro.
Ele estava muito instalado.
Onde ele estava instalado.
Em Marseilles.
Eu não consigo entender palavras.
Você não consegue.
Você é enganada tão facilmente você não pergunta o que eles decidem o que eles estão
para decidir.
Não tem explicação.
Não o tem explicação.
Entre as refeições.
Você costura mesmo.
Ele era tão indispensável para mim.
Nós estamos igualmente satisfeitas.
Venha e fique.
Faça isso.
Você quis ser rude.
Ele quis.
Eu te pergunto porque.
Amanhã.
Sim amanhã.
Cada tarde.
Um diálogo.
O que vocês fizeram com o cachorro de vocês.
Nós o mandamos para o campo.
Ele era um transtorno.
De jeito nenhum mas nós pensamos que ele ficaria melhor lá.
É não é certo manter um cachorro grande na cidade.
É eu concordo com você.
É.
Chegando.
Sim certamente.
Seja mesmo rápida.
Não na respiração.
Não você sabe que você não se importa.
Nós dissemos sim.
Vem primeiro.
Isso soou como um bicho.
Você estava esperando alguma coisa.
Eu não sei.
Você não sabe sobre isso nada.
Você sabe que eu não acredito.
Ela sim.
Bom eles são diferentes.
228
Eu não sou muito cuidadosa.
diz isso de novo.
Aqui.
Aqui não.
Não receba madeira.
Não receba madeira.
Bom nós fomos e encontramos.
Amanhã.
Vem amanhã.
Vem amanhã.
Sim nós dissemos sim. Vem amanhã.
Chegando muito bem. Não seja impaciente. Não diga que não foi avisada. Você sabe
que eu quero um telegrama. Por que.
Porque imperadores não.
Eu não me lembro disso.
Eu não ligo para um longo tempo.
Um longo tempo para sumir.
Porque não.
Porque eu gosto dele.
Isso foi o que ela disse.
Nós dissemos.
Nós viremos alegremente sábado.
Ela vai.
Ah sim ela vai.
O que é uma conversa.
Nós todos podemos cantar.
Muita gente entra.
Muita gente entra.
Porque os dias passam tão rapidamente.
Porque nós estamos muito felizes.
É é isso então.
É isso.
É isso sim.
Quem gosta de margaridas.
Você me ouve.
Sim eu estou te ouvindo.
Muito bem então explique.
Que eu gosto de margaridas.
Que nós gostamos de margaridas.
Entre entre.
Sim e eu não vou chorar.
Não mesmo.
Nós vamos fazer picnic.
Ah sim.
Nós estamos muito felizes.
Muito felizes.
E contentes.
E contentes.
Nós vamos ir e ouvir Tito Ruffo.
Aqui.
229
Sim aqui.
Ah sim eu me lembro disso. Ele é pra estar aqui.
Para começar com o que nós compramos.
Bronca.
Se você se lembra você vai lembrar de outras coisas que te amedrontam.
Eu vou.
Sim e não é preciso a explicação não está em você andar primeiro de andar por último
de andar ao meu lado a única razão para ter muitos quartos é que eu escolhi assim.
Depois nós vamos dizer que vai chover.
Outro dia tinha luar brilhante.
Não aqui.
Não o aqui mas no todo tem mais luar brilhante do que em Brittany.
Vem de novo.
Entra de novo.
Vindo de novo.
Entrando de novo.
Vem de novo.
Eu digo que eu realmente entendo chamado.
Chamando ele.
Sim Polybe.
Vem.
Vem.
Vem de novo e traz um livro.
Nós o encontramos tão freqüentemente.
Nós pretendíamos corrigir isso. Você diz a luz.
Eu tenho orgulho dela. Você tem todo o motivo para ter e ela leva isso tão naturalmente.
É melhor que sejam as mãos dela.
Sim claro.
Nada pode pagar isso.
Repúblicas são tão ingratas.
Você deseja aparecer aqui.
Porque é claro nesse sentido.
Eu não conheço essas palavras.
É realmente baixo.
Você vê mesmo isso.
Eu não vejo isso dessa maneira.
Não você não você iria preferir as palavras bem e alto.
Diz isso pra mim.
Você sabe que eu nunca quis ser culpada.
Um esforço para comer rápido.
Você prometeu a ele.
Eu prometi a ele as madeiras.
As madeiras.
Agora não.
Você diz agora não.
230
A EVERY AFTERNOON
A DIALOGUE
I get up.
So do you get up.
We are pleased with each other.
Why are you.
Because we are hopeful.
Have you any reason to be.
We have reason to be.
What is it.
I am not prepared to say.
Is there any chance.
Naturally
I know what you mean.
I consider that it is not necessary for me to teach languages.
It would be foolish of you to.
It would here.
It would anywhere.
I do not care about Peru.
I hope you do.
Do I begin this.
Yes you began this.
Of course we did.
Yes indeed we did.
When will we speak of another.
Not today I assure you.
Yes certainly you mentioned it.
We mentioned everything.
To another.
I do not wish reasons.
You mean you are taught early.
That is exactly what I mean.
And I feel the same.
You feel it to be the same.
Don’t tempt him.
This evening there was no question of temptation he was not the least interested.
Neither was she.
Of course she wasn’t.
It’s really not necessary to ask her.
I found it necessary.
You did.
Certainly.
And when have you leisure.
Reading and knitting.
Reading or knitting.
Reading or knitting.
Yes reading or knitting.
231
In the evening.
Actively first.
He was very settled.
Where was he settled.
In Marseilles.
I cannot understand words.
Cannot you.
You are so easily deceived you don’t ask what do they decide what are they to decide.
There is no reason.
No there is no reason.
Between meals.
Do you really sew.
He was so necessary to me.
We are equally pleased.
Come and stay.
Do so.
Do you mean to be rude.
Did he.
I ask you why.
Tomorrow.
Yes tomorrow.
Every afternoon.
A dialogue.
What did you do with your dog.
We sent him into the country.
Was he a trouble.
Not at all but we thought we would be better off there.
Yes it isn’t right to keep a large dog in the city.
Yes I agree with you.
Yes
Coming.
Yes certainly.
Do be quick.
Not in breathing.
No you know you don’t mind.
We said yes.
Come ahead.
That sounded like an animal.
Were you expecting something.
I don’t know.
Don’t you know about it at all.
You know I don’t believe it.
She did.
Well they are different.
I am not very careful.
Mention that again.
Here.
Not here.
Don’t receive wood.
Don’t receive wood.
232
Well we went and found it.
Tomorrow.
Come tomorrow.
Come tomorrow.
Yes we said yes. Come tomorrow.
Coming very well. Don’t be irritable. Don’t say you haven’t been told. You know I
want a telegram. Why. Because emperors didn’t.
I don’t remember that.
I don’t care for a long time.
For a long time to pass away.
Why not.
Because I like him.
That’s what she said.
We said.
We will gladly come Saturday.
She will go.
Oh yes she will.
What is a conversation.
We can all sing.
A great many people come in.
A great many people come in.
Why do the days pass so quickly.
Because we are very happy.
Yes that’s so.
That’s it.
That is it.
Who cares for daisies.
Do you hear me.
Yes I can hear you.
Very well then explain.
That I care for daisies.
That we care for daisies.
Come in come in.
Yes and I will not cry.
No indeed.
We will picnic.
Oh yes.
We are very happy.
Very happy.
And content.
And content.
We will go and hear Tito Ruffo.
Here.
Yes here.
Oh yes I remember about that. He is to be here.
To begin with what did we buy.
Scolding.
If you remember you will remember other things that frighten you.
Will I.
233
Yes and there is no necessity the explanation is not in your walking first of walking last
of walking beside me the only reason that there is plenty of room is that I choose it.
Then we will say that it will rain.
The other day there was bright moonlight.
Not here.
No not here but on the whole there is more moonlight than in Brittany.
Come again.
Come in again.
Coming again.
Coming in again.
Come again.
I say I do understand calling.
Calling him.
Yes Polybe.
Come.
Come.
Come again and bring a book.
We meet him so often.
We meant to see about it. You mean the light.
I am so proud of her. You have every reason to be and she takes it so naturally.
It is better that it is her hands.
Yes of course.
Nothing can pay for that.
Republics are so ungrateful.
Do you desire to appear here.
Why of course in that sense.
I do not know those words.
It is really wretched.
You do see it.
I don’t see it that way.
No you wouldn’t you would prefer the words well and tall.
Say it to me.
You know I never wished to be blamed.
An effort to eat quickly.
Did you promise him.
Did I promise him the woods.
The woods.
Not now.
You mean not now.
234
POR FAVOR NÃO SOFRA
2
Uma peça
Genevieve, Senhora Marchand e Conde Daisy Wrangel.
(Senhora Marchand.) Onde ela nasceu e com quem estudou. Ela conhecia a Marquesa
de Bowers então ou não. Ela veio a conhecê-la na Itália. Ela aprendeu inglês em
Marrocos. Ela nunca esteve na Inglaterra nem estudou em Florença. Ela morou na casa
com os amigos do conde Berny e assim sendo ela os conheceu e ela conheceu ele. Ela
foi comer um jantar árabe.
Como ela veio a conhecer as pessoas que ela conhece. Eu não entendo isso.
Com quem ela estudou. Nós o temos certeza. Quando ela soube pela primeira
vez sobre Marrocos. Onde ela ouviu inglês.
Ela ouviu inglês falado a crianças.
(Conde Daisy Wrangel.) Ele fala inglês muito bem. Ele tem um defeito na sua fala. Ele
gosta de couve-flor e ervilhas verdes. Ele não encontra uma senhora boa como
cozinheira. Ele deseja pelo seu Italiano. É muito caro trazê-la. Ele gosta de cachorros.
Ele uma vez teve oito. Eles eram poodles pretos. Eles estavam vivendo num jardim na
propriedade de uma Duquesa. Ele os treinou para serem muito prestativos e ele tem
retratos deles todos. Ele tem freqüentemente escrito um livro. Ele escreve sobre arte às
vezes. Ele também pinta um pouco. Ele tem um amigo que pinta um quadro a cada
manhã e pinta um quadro a cada tarde. Ele não é desagradável. Ele não veio com ele.
Ele pediu para ver o cachorro que ele pensou que tinha crescido.
(Genevieve) Ela acredita em Franconville. O que é uma tempestade de trovão. Esta é a
minha história. Eu trabalhei num café em Rennes. Antes disso eu fui educada por uma
mulher que sabia tricotar e tudo o mais. Minha mãe e meu pai trabalhavam com
jardinagem. Eu fui desonrada por um açougueiro. Eu não sou particularmente apegada a
criaas. Minha filha é uma menina e é ainda uma pequenina. Ela está vivendo numa
região invadida mas agora está em Avignon. Eu tinha um casaco feito para ela mas não
coube muito bem nela e agora eu estou mandando o dinheiro então assim ele vai ser
feito em Verdun. Eu não sou necessariamente uma mulher muito feliz. Todos estão
desejando. Eu gosto de tricotar e eu gosto de comprar provisões. Sim eu gosto da
2
STEIN, Gertrude. “Please do not suffer. A play. In: STEIN, Gertrude. Geography and plays. With an
introduction by Cyrena N. Pondrom. Madison: The University of Wisconsin Press, 1993. p.262
235
capital. Tem bastante carne aqui. Eu não ligo para variedade. Eu prefiro vitela a frango.
Eu prefiro carneiro. Eu entendo que é difícil ter qualquer coisa.
(Senhora Marchand) Eu não escrevo com freqüência. Eu digo que eu vou mencionar se
um homem presta atenção numa mulher e então eu posso e eu posso dizer que eu não
tenho escrito. Eu vou fazer como eu gosto. Eu acho que o meu bebê é muito saudável.
Eu espero que ele não vá falar a ngua falada aqui mas eu não posso dizer isso a ele. Ele
é muito novo. Ele não está andando. Se as Dardenelles o forem arrancadas talvez elas
abram. Eu me ouço falando. Eu tenho uma laranjeira que está aberta. O sol entra. Por
dez dias durante dez dias chove e então até dezembro nós teremos bom tempo. Não tem
fogo na casa. Eu não gosto de olhar para este mapa. Vome dá licença enquanto eu
vou dar ao meu bebê o seu almoço.
(Conde Daisy Wrangel.) É o mesmo nome que o de uma ilha. s éramos de Courtland
e alguns são russos e alguns são prussianos e alguns são suecos. Nenhum é lituano.
Senhor Berenson é um lituano. Eu tenho um amigo dinamarquês que foi casado quatro
vezes. Sua última mulher é uma cantora. Ela é uma mulher casada. Sua primeira mulher
foi casada com quatro homens diferentes. Ela tem sido uma boa amiga para cada um
deles. Eles dizem isso. Eu não tenho nenhum prazer na minha temporada na Ilha porque
eu não como nada. Eu gostaria de ter alguma coisa.
(Genevieve) O conde esteve aqui. Ele quis ver o cachorro e ele disse que iria gostar de
-lo. Ele não estava muito bem. Ele esteve sofrendo. Ele não disse que seu amigo viria
com ele. Ele disse que pensava que não. Freqüentemente me dizem que os franceses são
tudo. Eu pergunto você acredita que os franceses estão ganhando. Eu acredito que os
franceses estão ganhando. Você precisa de manteiga para cozinhar
(Senhora Marchand.) Deixa eu te dar um ssego mais macio. Vogosta deste. Nós
viremos de novo para uma visita ao anoitecer. Este é o caminho mais curto. Sim eu
gosto de andar. Nós dizemos muito pouco quando estamos nos preocupando. Deixe-nos
ir embora. Nós não podemos porque meu marido não pode ir embora.
Nellie Mildred e Carrie.
(Nellie.) Escrita à o não está arqueada. Não é uma decepção ou um serviço é
freqüentemente atraente.
(Mildred.) É imitado. Seis lenços. Dois de um tipo quatro de outro.
(Carrie.) Ela escreve torto para a esquerda isso significa que ela toma muito cuidado
com sigo mesma.
236
(Senhora Marchand.) Ela não conhece nenhum deles. Ela conhece o Senhor Rothschild.
(Genevieve.) De que adianta ficar calmo quando a casa é construída para o inverno. O
inverno aqui é quente.
(Conde Daisy Wrangel.) Ele não vai ficar mais do que além de novembro.
William e Mary
(William.) Ele gosta de ler e beber. Ele bebe vinho. Ele também bebe siphon. Isso é
água com água esterilizada dentro. Ele bebe isso com e sem limão. Ele gosta muito de
andar. Ele não prefere o descanso. Ele é um pintor por profissão.
(Mary.) Mary está ganhando. Ela tem um iro que está lutando. Ele fez um anel para
ela. Ela tem uma mãe e um outro irmão. Nos perguntaram se ela gosta de nadar. Ela não
tem nenhum conhecimento sobre nadar.
(Senhora Marchand.) Ela é uma mulher larga e prefere caminhar. Ela caminha junto.
Nós encontramos ela e o Senhor Marchand que estava caminhando. Nós dissemos que
estava muito frio para caminhar.
(O nsul Inglês.) Está certo. O cachorro está com a mordaça muito apertada. Ele não
consegue respirar direito.
(Conde Daisy Wrangel.) Porque todos vocês falam comigo. Deixa eu contar sobre isso.
Entrando no primeiro escritório eu vi primeiro uma moça jovem. Eu disse a ela que ela
estava com aparência muito boa. Eu depois se voltei e fui até a outra moça. Eu disse
como vai eu lamentava não te ver no outro dia. Voestava fora quando eu chamei.
Meu amigo é um urso. Eu pensei que ele teria vindo comigo para chamar. Eu virei em
breve de novo.
(Senhora Marchand.) Eu não o conheço muito bem quero dizer meu marido chamou a
minha atenção para ele e eu soube que ele estava aqui. Não vai ser uma decepção para
nós.
(Genevieve.) Eu prefiro uma cesta a uma malha. É o único suvenir que eu vou ter. Eu
o quero dizer que eu não estou satisfeita. Eu não gosto de gastar 35 dólares tudo de
novo tudo tudo de novo. É exatamente o suficiente.
(Conde Daisy Wregel.) Tem muito o que escrever num jornal.
(Michael.) Michael era o filho de Daniel. Ele se mudou para uma casa. Ele estava
morando num hotel um inverno inteiro. Ele tem aquecimento e luz a vapor. s o
vimos fotografias do lugar.
(Jane.) Eu tenho cinco filhos o mais novo tem três anos. Muitos deles morreram.
237
(Felix.) Que tipo de lã voprefere preta ou colorida, pesada ou leve e para que uso
você deseja. Você também quer agulhas de tri e de que espessura.
(Alice.) O que nós comemos hoje. Nós comemos um porco muito jovem. É muito
delicioso. Eu nunca tinha comido um melhor.
(Genevieve.) Eu gosto de escolher a minha carne.
(Senhora Marchand.) Eu entendo tudo melhor. Eu gosto de ter que pensar e olhar para
mapas. Eu odeio ver tanto preto. Eu não quero dizer com isso que eu sou sombria. Eu
o sou isso. Eu me delicio com arredores.
(Genevieve.) eu quero gastar um dinheirinho com algumas coisas. Eu estou esperando o
barco. Eu não tenho nada para fazer a não ser dormir. Realmente o.
(Senhora Marchand.) Eu entendo espanhol.
(Conde Daisy Wrangel.) para me satisfazer e para satisfazer a ele eu não janto em casa.
(Harry Francis.) Sai na chuva e não está seco. O que eu devo colocar por debaixo.
Qualquer coisa que você gostar.
(Roger Henry.) porque você prefere um quadro de um barco.
Porque é útil.
(Senhora Marchand.) Eu estou tão decepcionada de manhã.
Nós estamos todos nós decepcionados.
(Senhora Marchand.) Eu não conheci você hoje.
Sim você conheceu.
Todo homem engolindo. Que.
(Senhora Marchand.) Eu disse a você que você tinha todos os motivos para esperar
tempo quente e agora está frio.
Não vai continuar frio por mais tempo eu espero. Estas são tempestades
equinociais. Elas duram de sete a dez dias.
(O nsul Inglês.) Ele tem tido algumas experiências desagradáveis mas ele tem uma
casa prazerosa. Ele tem uma vista para o mar e também para a floresta. É natural que ele
tenha escolhido aquela casa.
(Senhora Marchand.) Eu a conheci. Ela é muito agradável. Eu não pensei que ela fosse
mulher dele. Eu pensei que ela fosse filha dele.
Nós todos também.
238
PLEASE DO NOT SUFFER
A PLAY
Genevieve, Mrs. Marchand and Count Daisy Wrangel.
(Mrs. Marchand.) Where was she born and with whom did she go to school. Did she
know the Marquise of Bowers then or did she not. Did she come to know her in Italy.
Did she learn English in Morocco. She has never been to England nor did she go to
school in Florence. She lived in the house with the friends of the count Berny and as
such she knew them and she knew him. She went to eat an Arab dinner.
How did she come to know the people she has known. I do not understand it.
With whom did she go to school. We are not sure. When did she first know
about Morocco. Where did she hear English.
She heard English spoken to children.
(Count Daisy Wrangel.) He speaks English very well. He has an impediment in his
speech. He likes cauliflower and green peas. He does not find an old woman satisfactory
as a cook. He wishes for his Italian. It is too expensive to bring her down. He does like
dogs. He once had eight. They were black poodles. They were living in a garden on a
duchessestate. He trained them to be very willing and he has pictures of them all. He
has often written a book. He writes about art sometimes. He also paints a little. He has a
friend who paints a picture every morning and paints a picture every afternoon. He is
not disagreeable. He did not come with him. He asked to see the dog he thought he had
grown.
(Genevieve.) She believes in Fraconville. What is a thunder storm. This is my history. I
worked at a cafe in Rennes. Before that i was instructed by a woman who knew knitting
and everything. My mother and father worked at gardening. I was ruined by a butcher. I
am not particularly fond of children. My child is a girl and is still a little one. She is
living in an invaded district but is now in Avignon. I had a coat made for her but it did
not fit her very well and now I am sending the money so that it will be made at Verdun.
I am not necessarily a very happy woman. Every one is willing. I like knitting and I like
to buy provision. Yes I enjoy the capital. There is plenty of meat here. I do not care for
the variety. I prefer veal to chicken. I prefer mutton. I understand that it is difficult to
have anything.
(Mrs. Marchand.) I do not write often. I say I will mention it if a man pays attention to a
woman and so I can and I can say that I have not written. I will do as I like. I find that
my baby is very healthy. I hope he will not talk the language spoken here but I can not
say this to him. He is too young. He is now walking. If the Dardenelles are not taken
perhaps they will open. I hear myself speaking. I have an orange tree that is open. The
sun comes in. For ten days during ten days it rains and then until December we will
have good weather. There is no fire in the house. I do not like to look at that map. Will
you excuse me while I give my baby his luncheon.
(Count Daisy Wrangel.) It is the same name as an island. We were from Courland and
some are Russians and some are Prussians and some are Swedes. None are Lithuanians.
Mr. Berenson is a Lithuanian. I have a Danish friend who has been married four times.
His last wife is a singer. She is a married woman. His first wife has been married to four
different men. She has been a good friend to each one of them. They do say this. I have
no pleasure in my stay on the Island because I do not eat anything. I would like to have
something.
(Genevieve.) The count was here. He wanted to see the dog and he said he would like to
see him. He was not very well. He had been suffering. He did not say that his friend
239
would come with him. He said he thought not. I am often told that the french are
everything. I ask do you believe that the french are winning. I believe that the french are
winning. Do you need butter for cooking.
(Mrs. Marchand.) Let me give you a peach that is softer. Do you like this one. We will
come again for an evening. This is the shortest way. Yes I like walking. We say very
little when we are worrying. Let us go away. We cannot because my husband cannot go
away.
Nellie Mildred and Carrie.
(Nellie.) Handwriting is not curving. It is not a disappointment or a service it is
frequently prepossessing.
(Mildred.) It is copied. Six handkerchiefs. Two of one kind four of another.
(Carrie.) She backhands that means she takes good care of herself.
(Mrs. Marchand.) She does not know any of them. She knows Mr. Rothschild.
(Genevieve.) What is the use of being tranquil when this house is built for the winter.
The winter here is warm.
(Count Daisy Wrangel.) He will not stay longer than November.
William and Mary.
(William.) He is fond of reading and drinking. He drinks wine. He also drinks siphon.
This is water with sterilized water in it. He drinks it with and also without lemon. He is
very fond of walking. He does not prefer resting. He is a painter by profession.
(Mary.) Mary is winning. She has a brother who is fighting. He has made a ring for her.
She has a mother and another brother. We were asked does she like swimming. She has
not a knowledge of swimming.
(Mrs. Marchand.) She is a large woman and rather walking. She walks along. We met
her and Mr. Marchand who were walking. We said it was too cold for walking.
(The English consul.) All right. The dog is too closely muzzled. He can’t breath
properly.
(Count Daisy Wrangel.) Why do you all speak to me. Let me tell about it. In coming
into the first office I first saw one young lady. I told her she was looking very well. I
then went out and came back and went up to the other lady. I sad how do you do I was
sorry not to see you the other day. You were out when I called. My friend is a bear. I
thought he would have come with me to call. I will come soon again.
(Mrs. Marchand.) I don’t know him very well that is to say my husband has pointed him
out to me and I knew he was here. It will not be a disappointment to us.
(Genevieve.) I prefer a basket to a mesh. It is the one souvenir that I will have. I do not
wish to say that I am not pleased. I do not like to spend 35 dollars over again all over
again. It is exact enough.
(Count Daisy Wrangel.) There is a great deal to write in a newspaper.
(Michael.) Michael was the son of Daniel. He moved into a house. He had been living at
a hotel a whole winter. He has steam heat and light. We have not seen photographs of
the place.
(Jane.) I have five children the youngest is three years old. Many of them died.
(Felix.) What kind of wool do you prefer black or in color, heavy or thin and for what
use do you desire it. Do you also wish knitting needles and what thickness.
(Alice.) What did we have to eat today. We had very young pork. It is very delicious. I
have never eaten it better.
(Genevieve.) I like to choose my meat.
(Mrs. Marchand.) I understand everything better. I like to have to think and look at
maps. I hate to see so much black. I do not mean by that that I am sullen. I am not that. I
am delighted with surroundings.
240
(Genevieve.) I wish to spend a little money on some things. I am waiting for the boat. I
have nothing to do except sleep. Really not.
(Mrs. Marchand.) I understand Spanish.
(Count Daisy Wrangel.) To please him and to please me I do not dine at home.
(Harry Francis.) It hangs out in the rain and it is not dry what shall I put on underneath.
Anything you like
(Roger Henry.) Why do you prefer a picture of a boat.
Because it is useful.
(Mrs. Marchand.) I am so disappointed in the morning.
We are all of us disappointed.
(Mrs. Marchand.) I did not meet you to-day.
Yes you did.
Every man swallowing. What.
(Mrs. Marchand.) I told you that you had every reason to expect warm weather and now
it’s cold.
It won’t be long I hope. These are Equinoxial storms. They last from seven to
ten days.
(The English Consul.) He has had some trying experiences but he has a pleasant home.
He has a view of the sea and also of the woods. It is natural that he has chosen that
house.
(Mrs. Marchand.) I have not met her. She is very pleasant. I did not think she was his
wife. I thought she was his daughter.
So did we all.
241
CONTANDO OS VESTIDOS DELA
3
UMA PEÇA
PARTE I
ATO I
Quando eles não me viram.
Eu vi eles de novo.
Eu não gostei.
ATO II
Eu conto os vestidos dela de novo.
ATO III
Você pode desenhar um vestido.
ATO IV
Em um minuto.
PARTE II
ATO I
Acredita no seu erro.
ATO II
Age depressa.
ATO III
Não liga prá cara feia.
ATO III
Não seja descuidada.
PARTE III
ATO I
Eu sou cuidadosa.
ATO II
Sim você é.
ATO III
E obediente.
ATO IV
3
STEIN, Gertrude. “Counting her dresses. A play”. In: STEIN, Gertrude. Geography and plays. With an
introduction by Cyrena N. Pondrom. Madison: The University of Wisconsin Press, 1993. p.275
242
Sim você é.
ATO V
E trabalhadora.
ATO VI
Certamente.
PARTE IV
ATO I
Venha cantar e sentar.
ATO II
Repete
ATO III
Eu repito
PARTE V
ATO I
Você pode falar rápido.
ATO II
Você pode tossir.
ATO III
Faz ele lembrar de mim.
ATO IV
Lembra que eu quero uma capa.
PARTE VI
ATO I
Eu sei o que eu quero dizer. Como vai você eu te perdôo tudo e não há nada a perdoar.
PARTE VII
ATO I
O cachorro. Você quer dizer pálido.
ATO II
Não nós queremos marrom escuro.
ATO III
Eu estou cansada de azul.
PARTE VIII
243
ATO I
Será que eu uso meu azul.
ATO II
Usa.
PARTE IX
ATO I
Obrigada pela vaca.
Obrigada pela vaca.
ATO II
Muito obrigada.
PARTE X
ATO I
Colecionando os vestidos dela.
ATO II
Você vai ficar amolada.
ATO III
Não mesmo.
PARTE XI
ATO I
Você pode ficar agradecida.
ATO II
Por quê.
ATO III
Por mim.
PARTE XII
ATO I
Eu não gosto dessa mesa.
ATO II
Eu posso entender isso.
ATO III
Uma pena.
ATO IV
244
Pesa mais do que uma pena.
PARTE XIII
ATO I
Contar vestidos não é cansativo.
PARTE XIV
ATO I
Qual é a sua crença.
PARTE XV
ATO I
Em troca de uma mesa.
ATO II
Em troca de ou sobre uma mesa.
ATO III
Nós estávamos satisfeitas.
PARTE XVI
ATO I
Você pode dizer que gosta de escultura negra.
PARTE XVII
ATO I
O significado de janela é ar.
ATO II
E uma porta.
ATO III
Uma porta deve estar fechada.
PARTE XVIII
ATO I
Você dá conta.
ATO II
Você quer dizer vestidos.
ATO III
Eu quero dizer vestidos.
245
PARTE XIX
ATO I
Eu quero dizer um dois três.
PARTE XX
ATO I
Você sabe soletrar rapidamente.
ATO II
Eu sei soletrar muito rapidamente.
ATO III
A minha cunhada também sabe.
ATO IV
Ela sabe.
PARTE XXI
ATO I
Tem algum jeito de você sentar.
ATO II
Você quer dizer confortavelmente.
ATO III
Naturalmente.
ATO IV
Eu entendo você.
PARTE XXII
ATO I
Você está com medo.
ATO II
Eu não tenho mais medo de água do que eles.
ATO III
Não seja insolente.
PARTE XXIII
ATO I
Nós precisamos de roupas.
246
ATO II
E lã.
ATO III
E luvas.
ATO IV
E tudo à prova d’água.
PARTE XXIV
ATO I
Você pode rir de mim.
ATO II
E depois dizer.
ATO III
Casada.
ATO IV
Sim.
PARTE XXV
ATO I
Você se lembra de como ele olhava para as roupas.
ATO II
Você se lembra do que ele disse sobre desejar.
ATO III
Você se lembra disso tudo.
PARTE XXVI
ATO I
Ah sim.
ATO II
Vocês estão animados.
ATO III
E se divertindo.
ATO IV
Nós estamos.
PARTE XXVII
247
ATO I
Do que que eu posso dizer que eu gosto.
ATO II
Eu posso ver um monte de instâncias.
ATO III
Você pode.
PARTE XXVIII
ATO I
Para isso nós vamos fazer um arranjo.
ATO II
Você quer dizer alguns desenhos.
ATO III
Será que eu falo de arte.
ATO IV
Todos os números são bonitos para mim.
PARTE XXIX
ATO I
Claro que eles são.
ATO II
Quinta-feira.
ATO III
Nós ansiamos por quinta-feira.
ATO IV
Nós também.
PARTE XXX
ATO I
Ela estava zangada.
ATO II
Quem você está dizendo ela estava zangada.
ATO III
Ela estava zangada com você.
PARTE XXXI
248
ATO I
Reflita mais.
ATO II
Eu quero mesmo um jardim.
ATO III
Você quer.
ATO IV
E roupas.
ATO V
Eu não menciono roupas.
ATO VI
Não você não mencionou mas eu mencionei.
ATO VII
É eu sei disso.
PARTE XXXII
ATO I
Ele é cansativo.
ATO II
Ele não é cansativo.
ATO III
Não mesmo.
ATO IV
Eu posso contá-los.
ATO V
Você não me entende mal.
ATO VI
Eu não entendo ninguém mal.
PARTE XXXIII
ATO I
Você pode explicar meus desejos.
ATO II
De manhã.
249
ATO III
Para mim.
ATO IV
Sim ali dentro.
ATO V
você não explica.
ATO VI
Eu não forço uma resposta.
PARTE XXXIV
ATO I
Você pode esperar por ela hoje.
ATO II
Nós vimos um vestido
ATO III
Nós vimos um homem
ATO IV
Sarcasmo
PARTE XXXV
ATO I
Nós podemos nos orgulhar de amanhã.
ATO II
E as vestes.
ATO III
E as portas.
ATO IV
Eu sempre lembro das estradas.
PARTE XXXVI
ATO I
Você fala inglês.
ATO II
Em Londres.
ATO III
E aqui.
250
ATO IV
Comigo.
PARTE XXXVII
ATO I
Conta os vestidos dela.
ATO II
Coleciona os vestidos dela
ATO III
Limpa os vestidos dela.
ATO IV
Eis o sistema.
PARTE XXXVIII
ATO I
Ela poliu a mesa.
ATO II
Conta os vestidos dela novamente.
ATO III
Quando você pode vir.
ATO IV
Quando você pode vir.
PARTE XXXIX
ATO I
Respira por mim.
ATO II
Eu posso dizer isso.
ATO III
Não é engraçado.
ATO IV
Enquanto isso.
PARTE XL
ATO I
Você pode dizer.
ATO II
251
O quê.
ATO III
Já nos contaram.
ATO IV
Ah leia isso.
PARTE XLL
ATO I
Eu não entendo essa volta prá casa.
ATO II
Ao entardecer.
ATO III
Naturalmente.
ATO IV
Nós decidimos.
ATO V
De fato.
ATO VI
Se você quiser.
252
COUNTING HER DRESSES
A PLAY
PART I.
ACT I.
When they did not see me.
I saw them again.
I did not like it.
ACT II.
I count her dresses again.
ACT III.
Can you draw a dress.
ACT IV.
In a minute.
PART II.
ACT I.
Believe in your mistake.
ACT II.
Act quickly.
ACT III.
Do not mind the tooth.
ACT IV.
Do not be careless.
PART III.
ACT I.
I am careful.
ACT II.
Yes you are.
ACT III.
And obedient.
ACT IV.
Yes you are.
ACT V.
And industrious.
ACT VI.
Certainly.
PART IV.
ACT I.
Come to sing and sit.
ACT II.
Repeat it.
ACT III.
I repeat it.
253
PART V.
ACT I.
Can you speak quickly.
ACT II.
Can you cough.
ACT III.
Remember me to him.
ACT IV.
Remember that I want a cloak.
PART VI.
ACT I.
I know what I want to say. How do you do I forgive you everything and there is
nothing to forgive.
PART VII.
ACT I.
The dog. You mean pale.
ACT II.
No we want dark brown.
ACT III.
I am tired of blue.
PART VIII.
ACT I.
Shall I wear my blue.
ACT II.
Do.
PART IX.
ACT I.
Thank you for the cow.
Thank you for the cow.
ACT II.
Thank you very much.
PART X.
ACT I.
Collecting her dresses.
ACT II.
Shall you be annoyed.
ACT III.
Not at all.
254
PART XI.
ACT I.
Can you be thankful.
ACT II.
For what?
ACT III.
For me.
PART XII
ACT I.
I do not like this table.
ACT II.
I can understand that.
ACT III.
A feather.
ACT IV.
It weighs more than a feather.
PART XIII.
ACT I.
It is not tiring to count dresses.
PART XIV.
ACT I.
What is your belief.
PART XV.
ACT I.
In exchange for a table.
ACT II.
In exchange for or on a table.
ACT III.
We were satisfied
PART XVI.
ACT I.
Can you say you like negro sculpture
PART XVII.
ACT I.
The meaning of windows is air.
ACT II.
255
And a door.
ACT III.
A door should be closed.
PART XVIII.
ACT I.
Can you manage it.
ACT II.
You mean dresses.
ACT III.
Do I mean dresses.
PART XIX.
ACT I.
I mean one two three.
PART XX.
ACT I.
Can you spell it quickly.
ACT II.
I can spell very quickly.
ACT III.
So can my sister-in-law.
ACT IV.
Can she.
PART XXI.
ACT I.
Have you any way of sitting.
ACT II.
You mean comfortably.
ACT III.
Naturally.
ACT IV.
I understand you.
PART XXII.
ACT I.
Are you afraid.
ACT II.
I am not any more afraid of water than they are.
ACT III.
Do not be insolent.
PART XXIII.
256
ACT I.
We need clothes.
ACT II.
And wool.
ACT III.
And gloves.
ACT IV.
And waterproofs.
PART XXIV.
ACT I.
Can you laugh at me.
ACT II.
And then say.
ACT III.
Married.
ACT IV.
Yes.
PART XXV.
ACT I.
Do you remember how he looked at clothes.
ACT II.
Do you remember what he said about wishing.
ACT III.
Do you remember all about it.
PART XXVI.
ACT I.
Oh yes.
ACT II.
You are stimulated.
ACT III.
And amused.
ACT IV.
We are.
PART XXVII.
ACT I.
What can I say that I am fond of.
ACT II.
I can see plenty of instances.
ACT III.
Can you.
PART XXVIII.
257
ACT I.
For that we will make an arrangement.
ACT II.
You mean some drawings.
ACT III.
Do I talk of art.
ACT IV.
All numbers are beautiful to me.
PART XXIX.
ACT I.
Of course the are.
ACT II.
Thursday.
ACT III.
We hope for Thursday.
ACT IV.
So do we.
PART XXX.
ACT I.
Was she angry.
ACT II.
Whom do you mean was she angry.
ACT III.
Was she angry with you.
PART XXXI.
ACT I.
Reflect more.
ACT II.
I do want a garden.
ACT III.
Do you.
ACT IV.
And clothes.
ACT V.
I do not mention clothes.
ACT VI.
No you didn’t but I do.
ACT VII.
Yes I know that.
PART XXXII.
ACT I.
258
He is tiring.
ACT II.
He is not tiring.
ACT III.
No indeed.
ACT IV.
I can count them.
ACT V.
You do not misunderstand me.
ACT VI.
I misunderstand no one.
PART XXXIII.
ACT I.
Can you explain my wishes.
ACT II.
In the morning.
ACT III.
To me.
ACT IV.
Yes in there.
ACT V.
Then you do not explain.
ACT VI.
I do not press for an answer.
PART XXXIV.
ACT I.
Can you expect her today.
ACT II.
We saw a dress.
ACT III.
We saw a man.
ACT IV.
Sarcasm.
PART XXXV.
ACT I.
We can be proud of tomorrow.
ACT II.
And the vests.
ACT III.
And the doors.
ACT IV.
I always remember the roads.
PART XXVI.
259
ACT I.
Can you speak English.
ACT II.
In London.
ACT III.
And here.
ACT IV.
With me.
PART XXXVII.
ACT I.
Count her dresses.
ACT II.
Collect her dresses.
ACT III.
Clean her dresses.
ACT IV.
Have the system.
PART XXXVIII.
ACT I.
She polished the table.
ACT II.
Count her dresses again.
ACT III.
When can you come.
ACT IV.
When can you come.
PART XXXIX.
ACT I.
Breathe for me.
ACT II.
I can say that.
ACT III.
It isn’t funny.
ACT IV.
In the meantime.
PART XL.
ACT I.
Can you say.
ACT II.
What.
ACT III.
260
We have been told.
ACT IV.
Oh read that.
PART XLI.
ACT I.
I do not understand this home-coming.
ACT II.
In the evening.
ACT III.
Naturally.
ACT IV.
We have decided.
ACT V.
Indeed.
ACT VI.
If you wish.
261
BONNE ANNEE
4
Uma peça
Nós não entendemos por que eles não acham isso um bom mercado.
Nós realmente entendemos nosso prazer. Nosso prazer é fazer todo o dia o
trabalho daquele dia, cortar nossos cabelos e não querer olhos azuis e ser razoável e
obediente. Obedecer e não repartir cabelos. Este é o nosso dever e o nosso prazer.
Todos os dias nós levantamos e dizemos que estamos acordadas hoje. Por isso
queremos dizer que estamos de cedo e estamos de tarde. Nós tomamos o nosso
café e fumamos um charuto. Isso não é assim porque nós o chamamos por outro nome.
Nós gostamos do campo e nós somos pessoas exigentes. Não fique chateada com nada.
Não eu não vou ficar. Queridinha.
Nós te demos isso.
Sim.
Eu te dou isso.
Sim.
Você me dá isso.
Sim.
Sim senhor.
Porque eu digo sim senhor. Porque te dá prazer.
O que são as letras no meu nome.
O. e c e b e te.
Dirigindo um museu não uma pérola lá.
Me leve para Sevres eu não desespero.
Isso não deve ser colocado num livro.
Por que não.
Porque não deve.
Sim senhor.
Por favor fique rica.
Eu sou.
Eu também sou.
É claro que você é minha lindinha.
É claro que você é.
Não é necessário para mim falar que bom bebê.
Feliz ano novo.
4
STEIN, Gertrude. “Bonne Annee. A Play” IN: STEIN, Gertrude. Geography and plays. With an
introduction by Cyrena N. Pondrom. Madison: The University of Wisconsin Press, 1993. p.302
262
BONNE ANNEE
A PLAY
We do not understand why they do not think this is a good market.
We do understand our pleasure. Our pleasure is to do every day the work of that
day, to cut our hair and not want blue eyes and to be reasonable and obedient. To obey
and not split hairs. This is our duty and our pleasure.
Every day we get up and say we are awake today. By this we mean that we a up
early and we are up late. We eat our breakfast and smoke a cigar. That is not so because
we call it by another name. We like the country and we are pressed people. Do not be
upset by anything. No I won’t be. Dear one.
We have given you this.
Yes.
I give you this.
Yes.
You give me this.
Yes.
Yes sir.
Why do I say yes sir. Because it pleases you.
What are the letters in my name.
O. and c and be and tea.
Leading a museum not a pearl there.
Take me to Sevres I do not despair.
This must not be put in a book.
Why not.
Because it mustn’t.
Yes sir.
Please be rich.
I am.
So am I.
Of course you are my pretty.
Of course you are.
It isn’t necessary for me to mention what a good baby.
Happy New Year.
263
TRÊS IRMÃS QUE NÃO SÃO IRMÃS
5
Um melodrama
Nós somos três irmãs que não são irmãs, irmãs não. Nós somos três
irmãs que são órfãs.
Nós somos três irmãs que não são irmãs porque nós não tivemos a
mesma mãe nem o mesmo pai, mas porque nós somos três órfãs nós
três somos três irmãs que não são irmãs.
Entram dois irmãos.
Nós somos dois irmãos que são irmãos, nós temos o mesmo pai e a
mesma mãe e como eles estão mais vivos do que nunca nós não somos
órfãos nem por alto, nós não somos nem mesmo altos, nós não somos
valentes nós não somos fortes mas nós nunca agimos sem norte, este é
o tipo de irmãos que nós somos.
JENNY. E agora que todo o mundo sabe exatamente o que nós somos o que
cada um de nós é, o que nós vamos fazer.
SYLVESTER.
O que nós vamos fazer com isso.
JENNY. (Impacientemente) Não o o que nós vamos fazer com isso não há
nada para fazer com isso, nós somos três irmãs que não são irs, e
nós somos três órfãs e vocês dois não são, não há nada a fazer com
isso. o o que eu quero saber é o que nós vamos fazer agora. Agora o
que nós vamos fazer.
SAMUEL. Eu tenho uma iia uma bela iia, uma boa idéia, vamos jogar um
jogo um jogo de assassinato.
JENNY.
HELEN.
ELLEN.
Ah vamos sim.
SYLVESTER.
Eu não serei assassinado ou um assassino, eu não sou esse tipo de
5
STEIN, Gertrude. “Three sisters who are not sisters”. In: STEIN, Gertrude. Gertrude Stein Writings:
1932-1946. New York: The Library of America, 1998. p.705
264
irmão.
SAMUEL. Bem ninguém diz que você é, tudo o que você tem que fazer é ser uma
testemunha para o meu assassinato de alguém.
HELEN. E quem você vai assassinar.
SAMUEL. Você por exemplo. Vamos começar.
ELLEN. Ah eu estou tão contente de não ser gêmea, eu não ia gostar de ser
assassinada só por que tinha uma irmã que era gêmea.
JENNY. Ah não seja tola, gêmeos não têm que ser assassinados juntos, vamos
começar.
CENA 2
Uma sala levemente escurecida, um sofá, e uma cadeira e um copo
d’água, as três irmãs sentadas no sofá juntas, a luz de repente vai
embora.
JENNY. Olhe a cadeira.
HELEN. Qual cadeira.
JENNY. A única cadeira.
ELLEN. Eu não consigo ver a única cadeira.
JENNY. (com um guincho) Olhe a única cadeira.
TODAS
TRÊS
JUNTAS.
Não tem nenhuma cadeira lá.
SAMUEL. Não o tem nenhuma cadeira lá porque eu estou sentado nela.
SYLVESTER.
E não tem nenhum ele lá porque eu estou sentado nele.
JENNY. Qual um vai assassinar qual um.
SAMUEL. Espere e veja.
De repente a luz volta não há ninguém na sala e Sylvester está no chão
morto.
Cortina
265
ATO 2 CENA 1
A luz está acesa
Sylvester está no chão morto.
Jenny está adormecida no sofá.
Ela acorda e ela vê Sylvester no chão morto.
Oh ele está morto Sylvester está morto alguém o assassinou, eu queria
ter uma irmã uma irmã real oh é horrível ser uma órfã e ver ele morto,
Samuel o matou, talvez Helen tenha matado, talvez Ellen mas deveria
ser Helen a morta e onde está Helen.
Ela olha em baixo da cama e ela desata a chorar.
Lá lá está Helen e ela está morta, Sylvester matou ela e ela matou ele.
Oh a polícia a polícia.
Uma batida na porta e Samuel entra vestido como um policial e Jenny
não o reconhece.
JENNY. Sim Senhor Policial eu matei mesmo eles eu matei mesmo todos os
dois.
SAMUEL.
Aha eu sou um policial mas eu matei todos os dois e agora eu vou fazer
mais alguma matança.
JENNY. (Gritando) Ah ah.
E as luzes se apagam e depois as luzes se acendem de novo e Jenny
está sozinha, não há nenhum corpo ali e nenhum policial.
JENNY. Eu matei eles mas onde estão eles, ele matou eles mas onde está ele.
Uma batida na porta é melhor eu me esconder.
Ela se esconde em baixo da cama.
266
CENA 2
SAMUEL (Entra como um policial) Aha não tem ninguém morto e eu tenho que
matar alguém matar alguém morto.
Onde tem alguém para que eu possa matá-lo morto.
Ele começa a caçar ao redor e ele ouve um som, e ele está prestes a
olhar em baixo da cama quando Ellen entra.
ELLEN Eu estou procurando Helen que não é minha gêmea então eu o
preciso ser assassinada para agradar a ela mas eu estou procurando por
ela.
Samuel o policial sai do canto onde ele tinha estado escondido.
SAMUEL Aha vomatou ela ou aha você matou ele, não faz nenhuma diferença
porque agora eu vou fazer alguma matança.
ELLEN. Não eu querido gentil policial não eu.
SAMUEL. Eu não sou um policial eu sou um assassino, cuidado aqui vou eu.
As luzes se apagam. Quando elas voltam a se acender, o policial se foi
e Ellen assassinada está no chão.
Jenny olha timidamente de debaixo da cama para fora e dá um
guincho:
Oh mais uma e agora eu sou uma e agora eu serei a uma
assassinada.
E timidamente ela se esgueira de volta para debaixo da cama.
Cortina
267
ATO 3
Jenny embaixo da cama. Samuel desta vez não como um policial mas
como um apache entra se esgueirando.
SAMUEL.
Aha eu vou matar algum um.
JENNY.
(embaixo da cama) Ele não pode me ver não ele não pode, e de
qualquer modo eu vou matá-lo primeiro, sim eu vou.
De repente a sala escurece e ouvem-se vozes.
Eu sou Sylvester e eu estou morto, ela me matou, todos pensam que foi
Samuel quem me matou mas não foi não foi ela.
VOZ DE
HELEN.
Eu sou Helen e eu estou morta e todos pensam que foi Samuel quem
me matou mas não mesmo mesmo não mesmo foi ela.
UMA
TERCEIRA
VOZ.
Eu sou Ellen e eu estou morta, oh tão morta, tão muito muito morta, e
todo o mundo pensa que foi Samuel mas não foi não foi Samuel foi ela
ah sim foi ela.
A luz se acende e Jenny sozinha olha apreensivamente para dentro do
quarto de debaixo da cama.
JENNY.
Oh não foi Samuel quem matou eles o foi não, foi ela e quem pode
ser ela, pode ela ser eu. Oh horrível horrível eu se o crime foi meu.
Não pode ser mas talvez seja, (e ela se estica para cima muito alta)
bem se é então eu vou acabar com ele eu vou matá-lo Samuel e então
eles todos estarão mortos sim todos mortos mas eu não estarei morta
o ainda.
268
A luz diminui e Samuel entra se esgueirando como um apache.
SAMUEL
Eles dizem que eu não os matei eles dizem que foi ela mas eu sei que
fui eu e o único jeito de provar que eu matei eles todos é matando ela,
ahá eu vou encontrar ela e quando eu for o único um o único um que
ficou vivo eles saberão que fui eu que matei todos eles, eu Samuel o
apache.
Ele começa a olhar em volta e de repente ele uma perna de Jenny
saindo de debaixo da cama. Ele puxa a perna.
SAMUEL.
Aha é ela e eu vou matar ela e então eles vão saber que eu Samuel sou
o único assassino.
Ele puxa a perna dela e ela dá um temeroso chute que atinge a
têmpora dele. Ele cai de costas e enquanto ele morre,
SAMUEL.
Então é isso, ela é a uma que mata todos os uns, e deve ser isso porque
ela me matou, e isso foi o que eles quiseram dizer, eu matei eles cada
um, mas como era para ela me matar, ela matou todos eles todos eles.
E ela tem toda a glória, oh Ciel.
E ele morre.
Jenny sai se esgueirando de debaixo da cama.
JENNY.
Eu matei ele matei sim e ele matou eles matou sim e agora eles estão
todos mortos, nada de irmãos nada de irmãs nada de órfãos nada de
nada, nada além de mim, é não tem sentido viver sozinha, sem
ninguém para matar então eu vou matar a mim.
269
E ela o copo d’água.
JENNY
Aha isso é veneno.
Ela bebe e com uma convulsão ela cai morta. A luz escurece e as vozes
de todos são ouvidas.
Nós estamos mortos ela nos matou, ele nos matou irs e irmãos
órfãos e todos ele nos matou ela nos matou ela nos matou ele nos
matou e nós estamos mortos, mortos mortos.
As luzes se acendem e lá estão eles todos como na primeira cena.
JENNY.
Nós encenamos isso nós estamos mortos, nós somos irmãs, nós somos
órfãs, nós nos sentimos esquisitos, nós estamos mortos.
SYLVESTER.
Claro que nós não estamos mortos, claro que nós nunca estivemos
mortos.
SAMUEL.
Claro que nós estamos mortos, você não que estamos mortos, claro
que estamos mortos.
HELEN.
(Indignadamente) Eu o estou morta, eu sou uma órfã e uma irmã que
o é irmã mas eu não estou morta.
ELLEN.
Bem se ela não está morta então eu não estou morta. É muito bom
muito bom mesmo não estar morta.
JENNY.
Ah cala a boca todo o mundo, cala a boca, vamos todos para a cama,
está na hora de ir para a cama órfãs e todos e irmãos também.
E eles vão.
Finis.
270
THREE SISTERS WHO ARE NOT SISTERS
A Melodrama
We are three sisters who are not sisters, not sisters. We are three sisters
who are orphans.
We are three sisters who are not sisters because we have not had the
some mother or the same father, but because we are all three orphans
we are three sisters who are not sisters.
Enter two brothers
.
We are two brothers who are brothers, we have the same father and the
same mother and as they are alive and kicking we are not orphans not
at all we are not even tall we are not brave we are not strong but we
never do wrong, that is the kind of brothers we are.
JENNY. And now that everybody knows just what we are what each one of us
is, what are we going to do
SYLVESTER.
What are going to do about it.
JENNY. (Impatiently) no not what are we going to do about it there is nothing
to do about it, we are three sisters who are not sisters, and we are three
orphans and you two are not, there is nothing to do about that. No what
I want to know is what are we going to do now. Now what are we
going to do.
SAMUEL. I have an idea a beautiful idea, a fine idea, let us play a play and let it
be a murder.
JENNY.
HELEN.
ELLEN.
Oh yes let’s.
SYLVESTER.
I won’t be murdered or be a murderer, I am not that kind of a brother.
SAMUEL. Well nobody says you are, all you have to do is to be a witness to my
murdering somebody.
HELEN. And who are you going to murder.
SAMUEL. You for choice. Let’s begin.
271
ELLEN. Oh I am so glad I am not a twin, I would not like to be murdered just
because I had a sister who was a twin.
JENNY. Oh don’t be silly, twins do not have to get murdered together, let’s
begin.
SCENE 2
A room slightly darkened, a couch, and a chair and a glass of water,
the three sisters sitting on the couch together, the light suddenly goes
out.
JENNY. Look at the chair.
HELEN. Which chair.
JENNY. The only chair.
ELLEN. I can’t see the only chair.
JENNY. (with a shriek) look at the only chair.
ALL THREE
TOGETHER.
There is no chair there.
SAMUEL. No there is no chair there because I am sitting on it.
SYLVESTER.
And there is no him there because I am sitting on him.
JENNY. Which one is going to murder which one.
SAMUEL. Wait and see.
Suddenly the light goes up there is nobody in the room and Sylvester is
on the floor dead.
Curtain
ACT 2 SCENE 1
The light is on.
Sylvester is on the floor dead..
Jenny is asleep on the couch
She wakes up and she sees Sylvester on the floor dead.
Oh he is dead Sylvester is dead somebody has murdered him, I wish I
272
had a sister a real sister oh it is awful to be an orphan and to see him
dead, Samuel killed him, perhaps Helen killed him, perhaps Ellen but it
should be Helen who is dead and where is Helen.
She looks under the bed and she bursts out crying.
There there is Helen and she is dead, Sylvester killed her and she killed
him. Oh the police the police.
There is a knock at the door and Samuel comes in dressed like a
policeman and jenny does not know him.
JENNY. Yes Mr. Policeman I did kill them I did kill both of them.
SAMUEL. Aha. I am a policeman but I killed both of them and now I am going to
do some more killing.
JENNY. (screaming) Ah ah.
And the lights go out and then the lights go up again and jenny is all
alone, there are no corpses there and no policeman.
JENNY. I killed them but where are they he killed them but where is he there is
a knock at the door I had better hide.
She hides under the bed.
SCENE 2
SAMUEL (as a policeman comes in) Aha there is nobody dead and I have to kill
somebody kill somebody dead. Where is somebody so that I can kill
them dead.
He begins to hunt around and he hears a sound, and he is just about to
look under the bed when Ellen comes in.
273
ELLEN I am looking for Helen who is not my twin so I do not have to be
murdered to please her but I am looking for her.
Samuel the policeman comes out of the corner where he has been
hiding.
SAMUEL Aha you killed her or aha you killed him, it does not make any
difference because now I am going to do some killing.
ELLEN. Not me dear kind policeman not me.
SAMUEL. I am not a policeman I am a murderer, look out here I come.
The light goes out. When it comes on again, the policeman is gone and
Ellen murdered is on the floor.
Jenny looks out timidly from under the bed and gives a shriek:
Oh another one and now I am the only one and now I will be the
murdered one.
And timidly she creeps back under the bed.
Curtain
ACT 3
Jenny under the bed. Samuel this time not like a policeman but like an
apache comes creeping in.
SAMUEL.
Aha I am killing some one.
JENNY.
(under the bed) He can’t see me no he can’t, and anyway I will kill him
first, yes I will.
274
Suddenly the room darkens and voices are heard.
I am Sylvester and I am dead, she killed me, every one thinks it was
Samuel who killed me but it was not it was she.
HELEN’S
VOICE.
I am Helen and I am dead and everybody thinks it was Samuel who
killed me but not at all not not all not at all it was she.
A
THIRD
VOICE
I am Ellen and I am dead, oh so dead, so very very dead, and
everybody thinks it was Samuel but it was not it was not Samuel it was
she oh yes it was she.
The light goes up and Jenny alone looks out fearfully into the room
from under the bed.
JENNY.
Oh it was not Samuel who killed them it was not, it was she and who
can she be, can she be me. Oh horrible horrible me if I killed all three.
It cannot be but perhaps, (and she stretches up very tall) well if it is
then I will finish up with him I will kill him Samuel and then they will
all be dead yes all dead but I will not be dead not yet.
The light lowers and Samuel creeps in like an apache.
SAMUEL
They say I did not kill them they say it was she but I know it was me
and the only way I can prove that I murdered them all is by killing her,
aha I will find her I will kill her and when I am the only one the only
one left alive they will know it was I that killed them all, I Samuel the
apache.
He begins to look around and suddenly he sees a leg of Jenny sticking
275
out under the bed. He pulls at it.
SAMUEL.
Aha it is she and I will kill her and then they will know that I Samuel
am the only murderer.
He pulls at her leg and she gives a fearful kick which hits him on the
temple. He falls back and as he dies,
SAMUEL.
Oh it is so, she is the one who kills every one, and that must be so
because she has killed me, and that is what they meant, I killed them
each one, but as she was to kill me, she has killed all of them all of
them. And she has all the glory, Oh Ciel.
And he dies.
Jenny creeps out from under the bed.
JENNY.
I killed him yes I did and he killed them yes he did and now they are
all dead, no brothers no sisters no orphans no nothing, nothing but me,
well there is no use living alone, with nobody to kill so I will kill
myself.
And she sees the glass of water.
JENNY
Aha that is poison.
She drinks it and with a convulsion she falls down dead.
The lights darken and the voices of all of them are heard.
276
We are dead she killed us sisters and brothers orphans and all he killed
us she killed us she killed us he killed us and we are dead, dead dead.
The lights go up and there they all are as in the first scene.
JENNY.
Did we act it are we dead, are we sisters, are we orphans, do we feel
funny, are we dead.
SYLVESTER.
Of course we are not dead, of course we never were dead.
SAMUEL.
Of course we are dead, can’t you see we are dead, of course we are
dead.
HELEN.
(indignantly): I am not dead, I am an orphan and a sister who is not a
sister but I am not dead.
ELLEN.
Well if she is not dead then I am not dead. It is very nice very nice
indeed not to be dead.
JENNY.
Oh shut up everybody, shut up, let’s all go to bed, it is time to go to
bed orphans and all and brothers too.
And they do.
Finis.
277
Uma peça.
6
Começa com um homem morto e uma mulher morta e um cachorro morto mas
eles não estão mortos porque a peça continua.
Se o cachorro está morto a peça continua.
Se o exército está morto a peça continua.
Se o cachorro não está morto a peça continua.
Não mesmo não com certeza não.
Peça 2
Se o cachorro não está morto e a peça não continua o homem está morto.
Sim o homem está morto.
Se o homem está morto e a peça não continua ela continua. Sim continua.
Se a mulher está morta e o cachorro está morto e o homem está morto a peça
continua.
Certamente não a peça não continua.
O que isso significa.
Certamente não a peça não continua.
Isso significa que ela não continua no palco.
Certamente não não significa certamente não não no palco.
E assim não tem tempo nem identidade por favor tome cuidado para não
surpreender lágrimas.
No século dezenove não se surpreendiam lágrimas vivia-se com lágrimas porque
o homem e o cachorro e a mulher não estavam mortos quando qualquer coisa começou
no século vinte tudo que é qualquer um está morto quando pode e estava quando
começou então não há lágrimas não havia lágrimas.
Peça I
Agora como eles podem vir a ser agora.
Peça I
Qualquer coisinha é como ela começou.
Está mais claro que qualquer um que não há lágrimas agora.
Peça um
Tá certo peça um.
6
STEIN, Gertrude. “A playIn: STEIN, Gertrude. The geographical history of America or The relation
of human nature to the human mind. In: STEIN, Gertrude. Gertrude Stein Writings: 1932-1946. New
York: The Library of America, 1998. p.477.
278
Peça dois
Tem que ser dois pra acabar.
Mas tem isso.
Isso como não tem que ser isso isso não é isso.
Facilmente é.
Mais e mais uma obra-prima é.
Peça III
Eu começo a ver vê eu começo mas não tem começo não aí não aí.
Peça IV
Você vê é para ser.
Mas tem ser e também tem ver.
Peça V
Daí então.
Peça VI
A glória de saber o que é uma obra-prima.
Peça VII
É natural que ainda uma mulher deva ser quem faz o pensamento literário dessa
época.
279
A play
It begins with a dead man a dead woman and a dead dog but they are not dead
because the play goes on.
If the dog is dead does the play go on.
If the army is dead does the play go on.
If the dog is not dead does the play go on.
No indeed no certainly not.
Play 2.
If the dog is not dead and the play does not go on is the man dead.
Yes the man is dead.
If the man is dead and the play does not go on does it go on. Yes it does go on.
If the woman is dead and the dog is dead and the man is dead does the play go
on.
Certainly not the play does not go on.
What does it mean.
Certainly not the play does not go on.
Does it mean it does not go on the stage.
Certainly not it does not mean certainly not not on the stage.
And so there is no time and no identity please be careful not to surprise tears.
In the nineteenth century they did not surprise tears they dwelt with tears
because the man and the dog and the woman were not dead when anything began in the
twentieth century everything that is any one is dead when it can and did when it began
and so there are no tears were no tears.
Play I
Now how can they come to be now.
Play I
Any little thing is how it was begun.
It is clearer than any one that there are no tears now.
Play one.
Alright play one.
Play two.
It should be two to be through.
But there is that.
That as it has not to be that that is not that.
It easily is.
More and more a master-piece is.
Play III
I begin to see see I begin but there is no begin not in not in.
Play IV
Do you see it is to be.
But there is be as well as see.
Play V
280
So then.
Play VI
The glory of knowing what a master-piece is.
Play VII
It is natural that again a woman should be one to do the literary thinking of this
epoch.
281
Parte IV
A questão da identidade
Uma Peça.
7
Eu sou eu porque meu cachorrinho me conhece.
Qual é ele.
Não qual é ele.
Diz isso com lágrimas, não qual é ele.
Eu sou eu por que.
Então aí.
Eu sou eu onde.
Ato I Cena III
Eu sou eu porque meu cachorrinho me conhece.
Ato I Cena I
Agora esse é o jeito que eu joguei este jogo.
Mas não mesmo o como um é um.
Ato I Cena I
Qual um está aí eu sou eu ou outro um.
Quem é um e um ou um é um.
Eu gosto de uma peça de palco tal e tal.
Leho Leho.
Leho é um nome de um bretão.
Mas nós nós na América o somos retirados por um cachorro ah não não não mesmo
o mesmo retirados por um cachorro.
Cena I
O cachorro engasga por causa de uma bola porque é uma bola que engasgou qualquer
um.
Ele quer gentilmente lembrar que isso não tem nenhum interesse.
Parte I Cena I
Ele esqueceu que ele foi engasgado por uma bola o não esqueceu porque esta uma a
mesma uma não é a uma que pode engasgar qualquer um.
7
STEIN, Gertrude. “Part IV. The question of identity. A play” In: STEIN, Gertrude. The geographical
history of America or The relation of human nature to the human mind. In: STEIN, Gertrude. Gertrude
Stein Writings: 1932-1946. New York: The Library of America, 1998. p.401
282
Cena I Ato I
Eu sou eu porque meu cachorrinho me conhece, mas talvez ele não me conheça e se ele
o conhecesse eu não seria eu. Ah não ah não.
Ato I Cena I
Um cachorro dessa vez se engasgou sozinho que o engasgo parece com um espirro e
isso é inmodo.
Quando um cachorro é jovem ele parece ser um cachorro muito inteligente.
Mas depois ah depois o cachorro está mais velho.
Lágrimas vêm aos olhos mas não ao piscar.
E então o cachorro perambula por aí ele conhece quem ele conhece mas isso faz alguma
diferença.
Uma peça é exatamente isso.
Aqui está a peça.
Peça I Ato I
Como vai você o que você é.
Isso tem a ver com natureza humana.
Coro. Mas a natureza humana é negligenciada.
Sim é claro que a natureza humana é negligenciada tão negligenciada quanto qualquer
um.
Coro. E a mente humana.
Coro E a mente humana.
Ninguém ficou de fechar.
Ninguém ficou de fechar sobre o que a mente humana é.
E então finalmente então.
Coro. Não há esquerda e direita sem lembrança.
E lembrança.
Dizem que não há esquerda e direita sem lembrança.
Coro. Mas não há lembrança na mente humana.
Lágrimas. Não há coro na mente humana.
A terra é plana de cima do alto e quando eles vagam.
Coro. Tem terra plana e clima e dinheiro para a mente humana.
E aí lágrimas são tolas.
E aí venda e venda e venda não é dinheiro.
Mas dinheiro.
Sim dinheiro.
Dinheiro tem alguma coisa a ver com a mente humana.
Ninguém que tem um cachorro esquece dele. Eles podem deixá-lo para trás. Ah sim
podem deixá-lo para trás.
E o resultado.
Pode ser e o resultado.
Se eu sou eu então meu cachorrinho me conhece.
O cachorro escuta enquanto eles preparam comida.
Comida pode estar conectada com a mente humana mas o está.
Cena II
283
E como você gosta do que você é.
E como vai você o que você é.
E tem isso a ver com a mente humana.
Coro. E tem isso a ver com a mente humana.
Coro. E é a natureza humana nada interessante.
Cena II
Você entende qualquer coisa melhor sabendo onde ela está ou não.
Coro. Ou não.
Coro. Não não porque para saber onde você está você tem que se lembrar.
Coro. Sim não.
Coro. É claro sim não.
Coro. Então é claro ninguém pode estar interessado na natureza humana.
Coro. Ninguém está.
Coro. Ninguém está interessado na natureza humana.
Coro. Nem mesmo um cachorro.
Coro. Isso não tem nada a ver natureza humana não tem nada a ver com coisa
alguma.
Coro. Não não com um cachorro.
Lágrimas. Não não com um cachorro.
Coro. Eu sou eu porque meu cachorrinho me conhece.
Coro. Isso não prova nada sobre você isso só prova alguma coisa sobre o cachorro.
Lágrimas. Sim daí eu te disse natureza humana não é nada nada interessante.
Cena III
E a mente humana.
Coro. E a mente humana.
Lágrimas. E a mente humana.
Coro. É e a mente humana.
É claro a mente humana.
Tem isso alguma coisa a ver com eu sou eu porque meu cachorrinho me conhece.
Tem isso alguma coisa a ver com o que um país se parece.
Cena III
Cachorros e pássaros e um coro e uma terra plana.
Como você gosta do que você é. Os pássaros sabem, os cachorros sabem e o coro bem o
coro sim o coro se o coro qual é o coro.
A terra plana não é o coro.
Natureza humana não é o coro.
A mente humana não é o coro.
Transpiração não é o coro.
Lágrimas não são o coro.
Comida não é o coro.
Dinheiro não é o coro.
O que é o coro.
284
Coro. O que é o coro.
De qualquer forma há a questão da identidade.
E isso também tem a ver com o cachorro.
O cachorro é o coro.
Coro. Não o cachorro não é o coro.
Cena II
Qualquer cena pode ser cena II
Coro. E ato II
Não qualquer ato pode ser ato um e dois.
Cena II
Eu sou eu porque meu cachorrinho me conhece, mesmo se o cachorrinho é um
cachorrão, e ainda assim um cachorrinho me conhecendo não me faz mesmo ser eu não
o mesmo porque afinal ser eu eu sou eu não tem realmente nada a ver com o
cachorrinho me conhecer, ele é meu público, mas um público nunca prova a você que
você é você.
Ato III
Ninguém me conhecendo me conhece.
E eu sou eu eu.
E um cachorrinho fazendo um barulho faz o mesmo barulho que um pássaro.
Eu não estou errando.
Coro. Algumas coisas assim não e algumas coisas assim.
Cena I
Eu sou eu sim senhor eu sou eu.
Eu sou eu sim Senhora sou eu eu.
Quando eu sou eu sou eu eu.
E qualquer cachorrinho não é a mesma coisa que eu sou eu
Coro. Ou é.
Com lágrimas nos meus olhos ou é.
E aí nós temos a coisa toda.
Sou eu eu.
E se eu sou eu porque meu cachorrinho me conhece sou eu eu.
Sim senhor sou eu eu.
Sim senhora ou sou eu eu.
O cachorro responde sem perguntar porque o cachorro é a resposta a tudo que é esse
cachorro. Mas eu não. Sem lágrimas eu não.
Ato I Cena I
A necessidade de acabar não é a necessidade de começar. Como isso foi bem dito.
Cena II
285
Muito bem dito como tudo foi dito.
Cena II
Um fim de uma peça não é o fim de um dia.
Cena IV
Tendo dado.
286
Part IV
The question of identity
A Play
I am I because my little dog knows me. Which is he.
No which is he.
Say it with tears, no which is he.
I am I why.
So there.
I am I where.
Act I Scene III
I am I because my little dog knows me.
Act I Scene I
Now that is the way I had played that play.
But not at all not as one is one.
Act I Scene I
Which one is there I am I or another one.
Who is one and one or one is one.
I like a play of acting so and so.
Leho Leho.
Leho is a name of a Breton.
But we we in America are not displaced by a dog oh no no not at all not at all at all
displaced by a dog.
Scene I
The dog chokes over a ball because it is a ball that choked
any one.
He likes to kindly remember that it is not of any interest.
Part I Scene I
He has forgotten that he has been choked by a ball no not
forgotten because this one the same one is not the one that
can choke any one.
Scene I Act I
I am I because my little dog knows me, but perhaps he does not and if he did I would
not be I. Oh no Oh no.
Act I Scene I
A dog this time has choked by himself only the choke resembles a sneeze, and it is
bothersome.
When a dog is young he seems to be a very intelligent one.
But later well later the dog is older.
Tears come into the eyes but not by blinking.
287
And so the dog roams around he knows the one he knows but that make any
difference.
A play is exactly that.
Here is the play.
Play I Act I
How are you what you are.
This has to do with human nature.
Chorus. But human nature is neglected.
Yes of course human nature is neglected as neglected as any one.
Chorus. And the human mind.
Chorus. And the human mind.
Nobody is told to close.
Nobody is told to close about what the human mind is.
And so finally so.
Chorus. There is no left or right without remembering.
And remembering.
They say there is no left and right without remembering.
Chorus. But there is no remembering in the human mind.
Tears. There is no chorus in the human mind.
The land is flat from on high and when they wander.
Chorus There is flat land and weather and money for the human mind.
And so tear are vacant.
And so sale and sale is not money.
But money.
Yes money.
Money has nothing to do with the human mind.
Nobody who has a dog forgets him. They may leave him behind. Oh yes they may
leave him behind.
And the result.
May be and the result.
If I am I then my little dog knows me.
The dog listens while they prepare food.
Food might be connected with the human mind but it is not.
Scene II
And how do you like what you are.
And how are you what you are.
And has this to do with the human mind.
Chorus. And has this to do with the human mind.
Chorus. And is human nature not at all interesting.
Scene II
Do you understand anything better through knowing where it is or not.
Chorus Or not.
Chorus No not because to know where you are you have to remember.
Chorus Yes not.
Chorus. So of course nobody can be interested in human nature.
Chorus Nobody is.
Chorus. Nobody is interested in human nature.
Chorus. Not even a dog.
288
Chorus. It has nothing to do human nature has nothing to do with anything.
Chorus No not with a dog.
Tears. No not with a dog
Chorus. I am I because my little dog knows me.
Chorus. That does not prove anything about you it only proves something about the
dog.
Tears. Yes there I told you human nature is not at all interesting.
Scene III
And the human mind.
Chorus And the human mind.
Tears. And the human mind.
Chorus Yes and the human mind.
Of course the human mind.
Has that anything to do with I am I because my little dog knows me.
Has that anything to do with how a country looks.
Scene III
Dogs and birds and a chorus and a flat land.
How do you like what you are. The bird knows, the dogs know and the chorus well
the chorus yes the chorus if the chorus which is the chorus.
The flat land is not the chorus.
Human nature is not the chorus.
The human mind is not the chorus.
Perspiration is not the chorus.
Tears are not the chorus.
Food is not the chorus.
Money is not the chorus.
What is the chorus.
Chorus. What is the chorus.
Anyway there is the question of identity.
And that also has to do with the dog.
Is the dog the chorus.
Chorus. No the dog is not the chorus.
Scene II
Any scene may be scene two.
Chorus. And act II
No any act can be act one and two.
Scene II
I am I because my little dog knows me, even if the little dog is a big one, and yet a
little dog knowing me does not really make me be I no not really because after all being
I I am I has really nothing to do with the little dog knowing me, he is my audience, but
an audience never does prove to you that you are you.
Act III
No one knowing me knows me.
And I am I I.
And does a little dog making a noise make the same noise as a bird.
289
I have not been mistaken.
Chorus. Some kinds of things not and some kinds of things.
Scene I
I am I yes sir I am I.
I am I yes Madame am I I.
When I am I am I I.
And any little dog is not the same thing as I am I.
Chorus. Or is it.
With tears in my eyes or is it.
And there we have the hole thing.
Am I I.
And if I am I because my little dog knows me am I I.
Yes sir am I I.
Yes madame or am I I.
The dog answers without asking because the dog is the answer to anything that is the
dog. But not I. Without tears not I.
Act I Scene I
The necessity of ending is not the necessity of beginning.
How finely that is said.
Scene II
Very much as everything is said.
Scene III
An end of a play is not the end of a day.
Scene IV
After giving.
290
UMA CORTINA
8
Seis.
Vinte.
Ultrajante.
Atrasado,
Fraco.
Quarenta.
Mais em qualquer umidade
9
.
Sessenta e três certamente.
Cinco.
Dezesseis.
Sete.
Três.
Mais metódico. Setenta e cinco.
10
8
STEIN, Gertrude. “A curtain raiser”. In: STEIN, Gertrude. Geography and plays. With an introduction
by Cyrena N. Pondrom. Madison: The University of Wisconsin Press, 1993. p.202
9
No original em inglês a frase é: more in any wetness. A tradução literal parece sem sentido, mas há uma
expressão “he is wet behind the ears” que significa “é ainda inexperiente”. Há uma outra wet with tears”
que significa “lacrimoso”. Stein pode estar jogando com alguma destas acepções para a palavra wet.
Considerando que as outras expressões usadas ao longo do texto são adjetivos, “ultrajante”, “atrasado”,
“fraco”, esta expressão poderia ser traduzida por “lacrimoso” ou “inexperiente”. Optei, no entanto por
manter uma tradução literal da frase.
10
Tradução minha.
291
A CURTAIN RAISER
Six.
Twenty.
Outrageous.
Late,
Weak.
Forty.
More in any wetness.
Sixty three certainly.
Five.
Sixteen.
Seven.
Three.
More in orderly. Seventy-five
292
ELE DISSE
11
Monólogo
Falado.
Em Inglês.
Sempre falado.
Entre eles.
Por que você diz especialmente ontem.
Por que vodiz com compromisso especial marcado é isso um erro é isso um
grande erro. Isso eu sei. O que são e além de tudo há um desejo por lenços brancos.
Você os terá.
Isso é o que nós damos. s damos isso com um chapéu. Caramba. Muitas
pessoas são valiosas. E são mesmo. Eu não faço a pergunta.
Este é o meu medo.
Caramba Caramba eu pensei que o fogo estava apagado.
Eu acho muito saudável comer figos doces não figos secos eu não gosto de figos
secos.
Eu acho necessário comer ameixas adocicadas e uma maçã. Eu tenho tido a
sensação de que este é o único conselho que eu poderia dar. Tem feito sucesso. Eu fico
mesmo muito satisfeita com os resultados. Ninguém pode dizer que cabelo curto não
fica bem.
Quais são as obrigações da maternidade. Ler e dormir. Também copiar. Sim
obrigada.
Você está satisfeita.
Eu não estou satisfeita.
Eu estou deliciada.
Está sendo uma tarde muito fértil.
Não é muito provável que ela estivesse satisfeita
Prazeres da caça. Vogosta de bandeiras. Eu penso em pintá-las. Eu também
indago pela origem delas. Elas têm colorido simples ou possuem desenhos variados.
Ninguém pode estar tão satisfeito quanto eu estou pode estar mais satisfeito do que eu
estou. Eu estou ainda mais deliciada com as relações sociais que eu estabeleci com um
11
STEIN, Gertrude. “He said it”. In: STEIN, Gertrude. Geography and plays. With an introduction by
Cyrena N. Pondrom. Madison: The University of Wisconsin Press, 1993. p.267
293
número grande de conhecidos. Eu comecei com a inteão de mudar de mudar o
todo de ramificação. Eu não acho isso distinto. Então eu descobri que escolhendo e
pedindo a outras pessoas para suprir eu poderia ficar satisfeito. Isso já era.
Será que ele viu que ele ia matar um coelho. Muitos coelhos são difíceis. Eu não
quero comer o que ele ia nos dar.
Você não quer comer coelho.
Quem é o nosso simpatizante. Eu vejo claramente que você cometeu um erro.
Você me respondeu desafiadoramente. Eu não.
Longos espaços de tempo são preenchidos por mim explicando como cantar.
Como você canta.
Alguns cantam tão bem que riem.
Outros cantam tão bem que são rosas.
Eu estava muito satisfeita com o bordado muito muito satisfeita com o bordado.
Realmente.
Realmente eu penso sozinho.
E faço listas.
E faço listas.
Eu não faço listas.
Não trabalho fazer listas.
Eu sinto uma infinita satisfação de pensar que eu parei de me preocupar.
Realmente você nunca se preocupa.
Quem pode estar querendo abandonar um barco americano.
Ninguém.
Isso foi o que eu disse.
Eu disse isso a um inglês.
Governado. Seja mesmo governado.
Eu falo disso com muita gentileza. Eu não falo a ele sobre escuridão.
Ou ninguém.
Muitas pessoas temem a distração e se distraem com discussão. Não eu.
Eu sou singularmente adaptável. Eu não tenho opinião. Quando me perguntam
eu digo que é angustiante não estar certo. o é angustiante para mim. Eu me acomodo
a isso. Eu tenho tendência a ser falante.
Você tem.
Sim senhor.
294
É assim que eu digo isso. Eu peço a qualquer um para dizer uma jarra d’água.
Isso o é difícil. E rosas dentro dela. Eu prefiro amores-perfeitos. E você. Ou
margaridas. Não nós não estimamos flores selvagens. Esta não é a razão. A verdadeira
razão é o cheiro. Algumas pessoas gostam de cheiros fortes como rios chineses ou
flores de amendoeira ou mesmo angélicas. Eu gosto muito delas todas. E você.
Eu gosto.
No outro dia eu vi uma mulher tricotando ela estava fazendo isso não muito
rápido e então nós entendemos o motivo. Ela estava tricotando com algodão. Este é bem
o costume do campo.
Por que você quer ouvir isso.
Eu estava muito satisfeito com isso e agora eu quero dizer a vocês como fazer. É
isso o que perguntar. Vofaz enfeites. Vose satisfaz. Voé imaginativo. Vo
alguma utilidade para cor. Você procura por analogias estranhas. Vocês todos sempre
foram casados. Você acredita na história. Você tem autoridade.
Você pretende parecer egoísta. Pretende. Eu penso sobre isso.
Por que você fala sobre distâncias.
Você quer dizer uma série.
Sim é isso o que eu quero dizer. Você se lembra que eu disse isso
O que eu sinto hoje. Eu sinto que realmente sei como dar porte a uma mulher.
Você quer dizer que eu faço isso muito frio. Bem para ter certeza que eu sou
egoísta eu sento em frente ao fogo. Eu realmente tenho que te dar o melhor lugar só que
eu não gosto de mudar.
Você muito querida é tão doce comigo.
Um tapete no chão faz uma grande diferença.
Tem mesmo um granito que se chama mármore e é certo que se chame mármore
porque foi encontrado aqui. Você sabe onde é feito. Sim eu já vi.
Sim então eles dizem.
Vá dormir.
Esse é o meu modo.
Em falando eu tenho a crença em dizer que eu disse por último.
Algumas pessoas diferem de mim.
Isso é uma frase.
O que era que ela me lembrava.
É satisfatório.
295
muitos planos. Haverá uma boa crise. Eu não sei. Nos nossos afazeres. Não
as nações. o fale com ela sobre isso.
Eu não tenho certeza se eu gosto de liberdade.
Não tem.
Claro que não.
Nós continuamos dizendo o que ele disse.
Eu não entendo porque você me contradiz.
estamos eu tenho um casaco sobre os meus joelhos.
Não como falar inglês. Eu digo não como falar Inglês. O que voquer
dizer. Eu quero dizer que qualquer um pode começar e continuar. E acabar. É fácil o
suficiente e especialmente difícil quando tem um uso. Porque você diz troca. Eu não sei
o que eles dizem troca. Eles dizem que acreditam em troca. Eu freqüentemente falo
sobre nada.
O que eu tenho para dizer
Eu queria falar com você o que nós temos a ver com água. A água está em toda a
parte. Me imagine na cama. Nós fomos muito cuidadosos em perguntar sobre isso.
Não por dentes.
Porque você fala sobre isso não pela garota.
Ele não era é claro capaz de pagar pelo concerto.
Ele não era capaz é claro de pagar pelo concerto.
Eu não estou falando sobre mim.
Eu posso fornecer peles.
No verão.
Hoje.
Não está muito frio.
Mas vai ficar.
O que ele disse. Ele disse que era explicativo. Eu disse que era explicativo. Eu
disse que tomava cuidado ao escalar. Não para a cama. Sim para a cama. Por quê.
Porque nunca se sabe se as ripas vão agüentar. Eu me lembro dessa palavra.
O que ele disse hoje.
Um grande número de montanhas tem mar perto delas.
E a lua. A lua não tem maré.
Quando você diz isso.
Toda noite.
296
Por quê.
Porque eu nunca vi tanta noite de lua.
Eu sinto isso muito.
Muitas pessoas estavam ouvindo. A você ficando zangada.
Falando sobre sentimento.
Essa tarde nós fomos para Nova York e passamos o dia juntos. Nós dissemos por
qual caminho devemos andar.
Ao ler os jornais eu freqüentemente me choco com os diferentes modos pelos
quais eu me impressiono com as notícias. Será que eu deveria ser animado. Eu não
deveria. Senhor Sandling diz que eu sou. Eu sou mesmo.
Nós não esperamos isso hoje. Deixe-nos ir para Soller.
Todos vocês me ouçam.
Eu gosto de ver as rochas quero dizer as pedras.
Eu não quis dizer aquilo sobre o relógio.
Aqui estamos nós.
Senhora tem saudade de beijos.
Saudades muitas de beijos.
Eu gosto mesmo de dizer isso.
Você gostaria de ter dito isso antes. Não exatamente. Eu repito mais
freqüentemente. Muita gente te ouve. Não agora.
Tudo sobre o balanço. Balanço onde. Numa lâmpada. Você quer dizer
eletricidade. Sim eu quero dizer eletricidade. Cera.
Leia para mim.
Nós fomos até a cidade e nós encontramos o Senhor e a Senhora Somaillard.
Nós bebemos alguma coisa lá e nós dissemos se eles esperassem nós chamaríamos por
eles numa carruagem.s tínhamos várias coisas para tratar primeiro.
Eu quase disse isso junto.
E Eu acho que eles vão.
Pequenas caminhadas cansam você
Querido senhor. Este é o fim do dia e eu sou capaz de explicar que um grande
número de problemas foram tomados.
Eu sinto que tem que haver um tempo regular para as laranjas.
Ah sim claro.
Nunca eu tinha visto tantas árvores.
297
Foi uma surpresa para você.
Eu digo que eu estou certa de que muitas coisas podem ser ditas.
Chame isso um amor de fã.
Eu não quero ver pedaços.
Não quer
Realmente você não quer.
Deixando pedras de lado o que você acha do tempo e do país.
Eu acho os dois deliciosos.
Eu também.
E nós nos divertimos.
Ah muito.
É e a que horas você acorda
Às sete e meia.
Eu não acordo antes de nove.
Qual é o dia de hoje.
Desejos.
Ele deseja pensar.
Não os aflija.
O que nós fazemos é isso nós damos para eles.
O que ele disse
Ele disse que esperava estar doente. Ele disse que ele disse que ele esperava não
estar muito doente. Sim Senhor Lindo Webb.
Sim Senhora.
Você deve sempre falar o nome.
Eu não sinto que eu posso mencioná-lo.
Você acredita em mim
Você está surpresa de ter ido tão longe
Para mim não para mim.
Insultando sim ela está insultando ela pergunta se nós já ouvimos falar de um
poeta chamado Willis.
Alice já. Eu não. Ela diz que ele pertence a um grupo. Como Thoreau. Eu não
fiquei desagradada com a observação.
Nós vimos a festividade. Água é divertida.
Eu quero ir embora
298
Não mesmo eu não quero ir embora.
Dois meses.
Em dois meses.
Sinta educadamente a minha falta.
Chamar o que.
Chamar Milly.
Você não entende a diferença
Ele queria cinqüenta dólares por seis dias.
Nós não recusamos uma visita.
Ninguém recusa uma visita.
Eu recuso.
Eu sei.
Quase terminada. Que barulho foi esse.
Eu estou muito satisfeita de ter um bom fogo.
Aqui estão minhas estrelas e tiras.
Sim é a bandeira.
Que horas são.
É dia.
É claro e é manhã.
Eu sempre vou bem preparado.
É claro que você iria.
O que eu penso
Não é certo.
O que.
Que há muitos lugares onde um não estaria tão confortável.
Certamente eu não nego isso.
Nós temos sido tão felizes aqui. Sim mas isso não tem nada a ver com as
pessoas. Não não tem. Mas eu gosto de ver o que eu vejo aqui. Você sabe perfeitamente
bem que você vai ficar tão satisfeita quanto com alguma outra coisa.
Porque mulas andam juntas. Porque essas pessoas são religiosas. Vo foi
convidada.
Então eu vou terminar aqui.
É muito fácil agradar isso.caras e pires todos juntos.
299
Nós vamos fazer um picnic. Com galinha não hoje hoje nós vamos comer ovos e
salada e vegetais e pão preto e o que mais. Tabaco falso de contrabando clandestino.
Você quer dizer com isso que não é tabaco. Nãoo só folhas. Eu rio.
300
HE SAID IT
MONOLOGUE
Spoken.
In English.
Always spoken.
Between them.
Why do you say yesterday especially.
Why do you say by special appointment is it a mistake is it a great mistake. This
I know. What are and beside all there is a great desire for white handkerchiefs.
You shall have it.
This is what we give. We give it with a hat. Dear me. A great many people are
precious. Are they. I do not ask the question.
This is my fright.
Oh dear Oh dear I thought the fire was out.
I consider it very healthy to eat sugared figs not pressed figs I do not care for
pressed figs. I do not care for pressed figs.
I consider it necessary to eat sugared prunes and an apple. I have felt it to be the
only advice I could give. It has been successful. I really feel great satisfaction in the
results. No one can say that short hair is unbecoming.
What are the obligations of maternity. Reading and sleeping. Also copying. Yes
thank you.
Are you pleased.
I am not pleased.
I am delighted.
It has been a very fruitful evening.
It is not very likely she was pleased.
Pleasures of the chase. Do you like flags. I believe in painting them. I also
inquire as to their origin. Are they simple in color or have they various designs. Nobody
can be as pleased as I am can be more pleased than I am. I am further delighted with the
social relation I have established with a great many acquaintances. I began by intending
to change to change the method of branching. I do not find it distinguished. Then I
found that by choosing and asking other people to supply I could be satisfied. This is
history.
Did he see he would kill a rabbit. Many rabbits are troublesome. I do not care to
eat the one he was to give us.
You do not care to eat rabbit.
Who is our well-wisher. I see clearly that you have made a mistake. You have
answered me defiantly. I have not.
Large spaces of time are filled by my telling how to sing.
How do you sing.
Some sing so well they laugh.
Other sing so well that they are roses.
I was very pleased with embroidery very very pleased with embroidery.
Indeed.
Indeed I think alone.
And make lists.
And make lists.
I do not make lists.
It is no trouble to make lists.
301
I feel an infinite satisfaction on the thought that I have stopped worrying.
Indeed you never worry.
Who can be willing to leave an American boat.
No one.
This is what I said.
I said it to an Englishman.
Governed. Do be governed.
I speak of this very kindly. I do not tell him about darkness.
Or anybody.
Many people fear distraction and divert themselves with discussion. Not I.
I am singularly adaptable. I have no opinion. When I am asked I say it is
distressing not to be right. It is not distressing to me. I accommodate myself to it. I am
inclined to be talkative.
Are you.
Yes sir.
This is the way I say it. I ask any one to say a bowl of water. This is not difficult.
Then roses in it. I prefer pansies. Do you. Or daisies. No we do not consider wild
flowers. This is not the reason. The real reason is the odor. Some people like a strong
odor like china lilies or almond flowers or even tube-roses. I like them very much. I like
them all very much. Do you.
Yes I do.
The other day we saw a woman knitting she was doing it not so very quickly and
then we understood the reason. She was knitting with cotton. That is quite the custom of
the country.
Why do you wish do hear it.
I was very pleased with this and now I want to tell you how to do it. This is what
to ask. Do you make decorations. Do you please yourself. Are you fanciful. Have you
any use for color. Do you ask for strange resemblances. Have you all always been
merry. Do you believe in history. Have you authority.
Do you expect to seem selfish. Do you. I wonder about that.
Why do you talk about stretches.
You mean a series.
Yes I mean that. Do you remember that I said that.
What do I feel today. I feel that I do know how to air a woman. You man that I
make it too cold. Well to be sure I am selfish I sit before the fire. I really ought to give
you the best place only I don’t like to change.
You dear you are so sweet to me.
A carpet on the floor makes it a great difference.
Indeed there is a granite which is called marble and rightly called marble
because it is found here. Do you know where it is made. Yes I have seen it.
Yes so they say.
Go to sleep.
This is my way.
In speaking I have a belief in saying that I said it last.
Some people differ from me.
This is a sentence.
What was it she reminded me of.
It is satisfactory.
There are a great many plans. Will there be a good crises. I don’t know. In our
affairs. No the nations. Don’t speak to her of it.
302
I am not certain I like liberty.
Don’t you.
Of course not.
We go on saying what he said.
I can’t understand why you contradict me.
There we are I have a coat over my knees.
There is no way of speaking english. I say there is no way of speaking English.
What do you mean. I mean that anybody can begin and go on. And finish. It’s easy
enough and especially hard when there is a use. Why do you say exchange. They say
they believe in exchange. I often talk about nothing.
What have I to say.
I wish to speak to you what shall we do about water. The water is everywhere.
Imagine me in bed. We were not very careful to ask about it.
Not for teeth.
Why do you talk about it not for the girl.
He was of course not able to pay for the concert. He was of course not able to
pay for the concert.
I am not talking about myself.
I can supply furs.
In summer.
Today.
It is not very cold.
But it will be.
What did he say. He said it was explanatory. I said it was explanatory. I said I
was careful of climbing. Not into bed. Yes into bed. Why. Because you can never tell
about the slats. I remember that word.
What did he say today.
A great many mountains have seas near them.
And the moon. The moon has no tide.
When do you say that.
Every night.
Why.
Because I have never seen so much moonlight.
I feel it very much.
A great many people were listening. To your getting angry.
Talking about feeling.
This afternoon we went to New York and we spent the day together. We said
which way shall we walk.
In reading the papers I am often struck with the different way I am impressed
with the news. Should I be cheerful. I should not. Mr. Sandling says that I am. Indeed I
am.
We do not expect it today. Let us go to Soller.
All of you hear me.
I like to see the rocks I mean stones.
I didn’t mean it about the clock.
Here we are.
Mrs. misses kisses.
Misses kisses most.
I do like to say that.
303
Do you wish you had said it first. Not exactly. I repeat more often. A great many
people hear you. Not now.
All about the swing. Swing where. In a lamp. You mean electricity. Yes I mean
electricity. Wax.
Do read to me.
We went down to the town and we met Mr. and Mrs. Somaillard. We drank
something there and we said if the would wait we would call for them in a carriage. We
had several things to attend to first.
I nearly said it together.
Do I think that they will.
Do little walks tire you.
Dear Sir. This is the end of the day and I am able to explain that a great deal of
trouble has been taken.
I feel that there must be a regular time for the oranges.
Oh yes indeed.
Never have I seen so many trees.
It was a surprise to you.
I say that I am certain that a great many things can be said.
Call it a fan love.
I don’t care to see pieces.
Don’t you.
Indeed you don’t.
Leaving stones aside what do you think of the weather and the country.
I think them both delightful.
So do I.
And we enjoy ourselves.
Oh very much.
Yes and what time do you wake up.
At half past seven.
I don’t wake up till nine.
What is the date today.
Wishes.
He wishes to think.
Do not distress them.
What we do is this we give it to them.
What did he say.
He said he expected to be ill. He said he said he expected not to be very well.
Yes Mr. Lindo Webb.
Yes Mrs.
You should always speak the name.
I don’t feel that I can mention it.
Do you believe in me.
Are you surprised that you have gone so far.
To me not to me.
Insulting yes she is insulting she asks have we ever heard of a poet named
Willis.
Alice has. I have not. She says he belonged to a group. Like Thoreau.
I am not displeased with the remark.
Did we see the festivity. Water is amusing.
Do I want to go away.
304
Two months.
Politely miss me.
Call what.
Call Milly.
Don’t you understand the difference.
He wanted fifty dollars for six days.
We did not refuse a visit.
No one refuses a visit.
I do.
I see.
A little finish. What was that noise.
I am very pleased to have a good fire.
Here are my stars and stripes.
Yes it’s the flag.
What time is it.
Day time.
Of course and the morning.
I always go well prepared.
Of course you would.
What do I think.
Is not this certain.
What.
That there are a great many places where one would not be as comfortable.
Where we would not be so comfortable.
Certainly I don’t deny that.
We have been so happy here. Yes but that has nothing to do with the people. No
it hasn’t. But I like to see what I see here. You know perfectly well you will be just as
well pleased with something else.
Why do mules go together. Because those people are religious. They are very
religious. Were you invited.
Then I will finish it here.
This Is very easy to please. Cups and saucers altogether.
We are going to have a picnic. With chicken no today today we are going to
have eggs and salad and vegetables and brown brad and what else. False smuggled
contraband tobacco. You by that that it isn’t tobacco. No it’s only leaves. I laugh.
305
FOTOGRAFIA
12
1920
UMA PEÇA EM CINCO ATOS
Para uma fotografia nós precisamos de uma parede
Ver estrelas.
Fotografias são pequenas. Elas se reproduzem bem.
Eu amplio melhor.
Não diga isso na prática.
E então nós resistimos.
Faltam-nos pedras.
Agora nós cantamos.
São Cláudio e tu.
Santo Cláudio e alto.
Eu canto tu cantas, canções de aniversário tulipa pertence a vermelho creme e
verde e carmesim de modo que a casa escolhida tenha uma parede macia.
Ah venha e acredite em mim ah venha e acredite em mim hoje ah venha e
acredite em mim ah venha só um pouquinho.
A época não faz diferença.
Nem faz o Vieux Colombier.
Por que você pensa nisso de todo.
Eu descrevo uma casa diferente.
E Gabriela também.
Gêmeos.
Há um preconceito contra gêmeos.
Gêmeos são um. Isso significa quando eles se separam quando eles estão
separados ou juntos.
Deixa eu ouvir a história do gêmeo. Então nós começamos
Fotografia.
O sub título. Gêmeo.
Dois um meo. – entra.
Margot. – Não uma gêmea.
Lilases. – Para ummeo.
Não te esqueças de mins. – por um gêmeo.
Casas gêmeas.
Nós estamos pensando em casas gêmeas. Eu digo.
Será que eu li tudo sobre gêmeos.
E agora para andar como gêmeos andam.
Duas gêmeas têm duas portas.
Umamea é um tédio.
Eu exercito mais. Eu ando diante da porta das gêmeas.
Dúzias acima dos ovos dúzias acima.
Tardes vistas.
Sra Roberts.
Sra Lord
Sr. Andrew Reding.
12
STEIN Gertrude “Photograph” In: STEIN, gertrude. Gertrude Stein Last operas and plays. Edited and
with an Introduction by Carl Van Vechten. First Vintage Book Edition, 1975. p.152-154
306
Srta Nuttal
Sra. Reading
Entram e não convencem
Alsaciano entra junto.
Uma ngua cansa.
Uma ngua tenta ser
Uma ngua tenta ser livre.
Isso pode se chamar Twinny.
Ela tinha uma afilhada
Ardente.
Nós somos muito implacáveis
Nós somos implacáveis.
Estradas de ferro são um erro.
Elas nos insultam.
Agora eu posso originar protesto.
Senhorita Nuttal nasceu na América.
Senhora Roberts também nasceu lá.
Senhor Andrew Reding foi para a América.
Senhora Reading nasceu na América.
Senhora Lord nasceu no barco
Agora realmente isso não era o que eu queria dizer porque isso o descreve o
que eu sinto.
O que eu sinto é que um entra mais freqüentemente que outro e ainda assim eles
sempre vêm juntos. Isso o é exatamente assim. Eles vêm sim juntos mas uns m
mais freqüentemente que outros e nós gostamos de vê-los todos.
Eu posso suspirar para jogar.
Eu posso suspirar por uma peça.
Uma peça significa mais.
Ato Segundo
Dois autores. Coelhos são comidos.
Cães comem coelhos.
Lesmas comem folhas.
Expressões titubeiam
Flores silvestres bebem.
The Star Spangled banner.
Leia as notícias.
Ato III
Uma fotografia. Uma fotografia de várias pessoas se cada uma delas é
reproduzida se duas têm um bebê se ambos os bebês são meninos qual é o nome da rua.
Madame.
Ato IV
Nós dizemos que nós éramos quentes. Imagine AcAdam.
Nós dizemos que nós falávamos deles.
Joseph geme, Edith expia, o pássaro pertence ao trono.
Passarinho cante sobre uma intenção.
Era sua intenção me deprimir. Certamente eu não pedi uma tradução. Não
comprometa meu pai. Zero.
307
Baby estava tão interessada em uma parte da história. E eu, eu estava
interessada. E o que pérolas podem significar. Pérolas podem significar algum tipo de
razão. É bastante razoável. Eu estou com muito sono e ardendo.
Ardendo do sol de hoje.
Levante para cantar.
Ato V
Eu faço uma frase em Vincennes. É essa. Eu nunca vou racionalizar George
inteiramente.
308
Photograph
(1920)
A PLAY IN FIVE ACTS
For a photograph we need a wall.
Star gazing.
Photographs are small. They reproduce well.
I enlarge better.
Don’t say that practically.
And so we resist.
We miss stones.
Now we sing.
St. Cloud and you.
Saint Cloud and loud.
I sing you sing, birthday songs tulip belongs to red cream
and green and crimson so that the house chosen has a soft wall.
Oh come and believe me oh come and believe me to-day oh
come and believe me oh come just for one minute
Age makes no difference.
Neither does the Vieux Colombier.
Why do you think of that at all.
I describe a different house.
So does Gabriella.
Twins.
There is a prejudice about twins.
Twins are one. Does this mean as they separate as they are
separate or together.
Let me hear the story of the twin. So we begin.
Photograph.
The sub title. Twin.
Two a twin.–Step in.
Margot.–Not a twin.
Lilacs.–For a twin.
Forget me nots.–By a twin.
Twin houses.
We are considering twin houses. I say.
Have I read all about twins.
And now to walk as twins walk.
309
Two twins have two doors.
One twin is a bore.
I exercise more. I walk before the twins door.
Dozens above the eggs dozens more.
Afternoons seen.
Mrs. Roberts.
Mrs. Lord
Mr. Andrew Reding.
Miss Nuttall
Mrs. Reading
Come in and be lame.
Come in together Alsatian.
A language tires.
A language tries to be.
A language tries to be free.
This one can be called Twinny.
She had one god-daughter
Burning.
We are very bitter.
We are bitter.
Railroads are mistaken
They insult us.
Now I can occasion remonstrance.
Miss Nuttall was born in America.
Mrs. Roberts was also born there.
Mr. Andrew Reding went to America.
Mrs. Reading was born in America.
Mrs. Lord was born in a boat
Now indeed this is not what I meant to say for this does not
describe my feeling.
My feeling is that one comes in more frequently than another
and yet they always come together. This is not exactly so. They
do come together but some come more frequently than others and
we like to see them all.
I can sigh to play.
I can sigh for a play.
A play means more.
Act Second
Two authors. Rabbits are eaten.
Dogs eat rabbits.
Snails eat leaves.
Expression falters.
Wild flowers drink.
The Star Spangled banner.
Read the notices.
Act III
310
A photograph. A photograph of a number of people if each
one of them is reproduces if two have a baby if both the babies
are boys what is the name of the street.
Madame.
Act IV
We say we were warm. Guess McAdam.
We say we talked about them.
Joseph moan, Edith atone, the bird belongs to the throne.
Birdie sing about an intention.
Did you intend to depress me. Certainly not I asked for a
translation. Do not compromise my father. Zero.
Baby was so interested in one part of the story. And I, I was
interested. And what can pearls mean. Pearls can mean some sort
of reason. It is very reasonable. I am very sleepy and burned.
Burned by the sun to-day.
Stand up to sing.
Act V
I make a sentence in Vincennes. It is this. I will never reason away George.
311
VOCÊ VÊ O NOME
13
O nome que eu vejo é Howard.
É.
E a água que eu vejo é o mar.
É.
E a terra é a ilha.
É.
E o clima.
E o clima.
Frio
De fato.
E a razão.
A razão de quê.
A razão da luxúria.
Luxúria não é um nome.
Não é de fato.
E arbustos.
Você pode ter medo de arbustos.
Não eu.
Você quer dizer que está mais corajosa.
Mais e mais corajosa.
Qual é o significado de corrente
picos correntes.
Sim e aí.
E aí cores.
Cores verdes.
Lorde Melburn diz que azul não dá sorte.
Isso é medo.
Quando você pode nos ver.
Sempre que eu olho.
E quando você é cuidadosa.
Eu sou muito cuidadosa para sorrir.
Então nós temos o que queremos.
De fato vocês têm e é isso que nós desejamos.
Os desejos de vocês nos deixam felizes.
Não é difícil dirigir.
Cortina nos esconda.
Nós vamos.
Nós iremos.
Muito obrigada.
Você aprendeu isso antes.
Eu aprendo de novo.
Você sabe o que distingue os autores.
13
STEIN, Gertrude. “Can you see the name” In: Bee time vine and other pieces (1913-1927) New haven:
Yale university Press, 1953. pp.204-205
312
CAN YOU SEE THE NAME
The name that I see is Howard.
Yes.
And the water that I see is the sea.
Yes.
And the land is the island.
Yes.
And the weather.
And the weather.
Cold
Indeed.
And the cause.
The cause of what.
The cause of lust.
Lust is not a name.
Indeed not.
And bushes.
Can you fear bushes.
Not I.
You mean you are braver.
Braver and braver.
What is the meaning of current.
Current topics.
Yes and then.
And then colors.
Green colors.
Lord Melbourne says blue is unlucky.
This is fear.
When can you see us.
Whenever I look.
And when are you careful.
I am very careful to smile.
Then we have our way.
Indeed you do and we wish it.
We are glad of your wishes.
It is not difficult to drive.
Curtain let us.
We do
We will.
Thank you so much.
You learnt that before.
I learn it again.
Do you know the difference in authors.
313
UM FILME
14
Olhos são uma surpresa
Printzess um sonho
Zona se escreve com z
Sussurro se escreve com s
Serviço também
Os ESTADOS UNIDOS é cômico.
Agora eu quero falar para vocês sobre a doutrina Monroe. Nós temos muito
carinho pela doutrina Monroe nós respeitamos muito a doutrina Monroe.
Pintor americano pintando no campo francês perto estrada de ferro. Locomotiva
da mobilização passa com notificação para vilas.
Onde estão os turistas americanos para comprar meus quadros sacre nom d’un
pipe diz o pintor americano.
Pintor americano senta num café e contempla carteira vazia enquanto táxis se
enfileiram por Paris carregando soldados franceses para a batalha do Marne. Eu acho
que vou ser um motorista de táxi aqui na alegre Parie diz o pintor americano.
Pintor sentado no estúdio tentando aprender nomes de ruas com ajuda de
empregada doméstica camponesa bretã. Ele vira motorista de táxi. Cena comum em
Paris tempos de guerra.
Com preguiça de acordar cedo de manhã ele passa algumas de suas noites
escuras ensinando a garota camponesa bretã empregada doméstica a dirigir táxi para que
ela possa substituí-lo quando ele quer dormir.
America entra na guerra pintor americano quer ser soldado americano. Oficial de
recursos humanos entrevista ele. O que você faz, dirijo táxi. Você conhece Paris,
Serviço Secreto para você continue dirigindo táxi.
Ele continua dirigindo táxi e ensina inglês para e.d. bretã para que ela possa
substit-lo se for preciso.
Uma noite ele lê seu jornal sob a luz. Policial manda ele sair, não quer quer ler.
Homem se aproxima quer ir para a estação.
Pintor tem que le-lo. Volta, lendo de novo.
Um outro homem vem quer ir para a estação. Pintor o leva.
14
STEIN, Gertrude. “A Movie” In: STEIN, Gertrude. Operas and plays. Foreword by James R Mellow.
Station Hill Arts: Barrytown, 1998. pp.395-397
314
Volta para ler de novo. Dois oficiais americanos aparecem. Querem ir para a
estação.
Pintor diz Cansado da estação levo vocês para Berlim se quiserem. Estação não.
Oficiais dizem te damos muito se você nos levar para fora da cidade em direção ao sul,
primeira cidade grande.
Ele diz tudo bem tem que passar em casa primeiro para pegar seu casaco.
Para em casa chama e.d. bretã Ao trabalho manda telegrama para todos os seus
familiares, votem perentes em toda parte, pergunta tem algum oficial americano
ficando para sempre. Volto amanhã.
Volta amanhã. É chamado pelo chefe do Serviço secreto. Vai vê-lo. Dinheiro
vem desaparecendo do departamento de acomodação e alimentação aos montes. Vo
tem carta branca. Descubra algo.
Vai para casa. Encontra e.d. bretã rodeada de telegramas e cartas de parentes.
Americanos em toda parte mas em toda parte. Ela se queixa. Americanos esquisitos em
toda parte mas em toda parte todos eles disseram. Muitos americanos esquisitos em toda
parte. Dois americanos não tão esquisitos aqui minha quinta prima diz, ela está
ajudando no hospital em Avignon. Que soldado americano doce. Tão jovem tão alto tão
gentil. Não muito gravemente ferido mas vai ficar um tempo longo longo. Ele tem
recebido visitas de oficiais americanos que moram em uma villa. Duas senhoras muito
encantadoras moram lá também e elas gastam e elas gastam, elas compram toda comida
boa e agradável em Avignon. “Isso é alguma coisa William Sir”, diz a e.d. Bretã.
Está nevando mas não tem problema chegaremos lá no táxi. Vamos levar dois
dias e duas noites você dentro e eu fora. Rápido. Eles partem, o táxi pequeno e esquisito
vai por sobre as montanhas com ou sem ajuda, totalmente exausto ele está dentro, ela
dirigindo quando eles descem a montanha em direção a Avignon. Bem dois
americanos em motocicletas surgem e e.d. bretã perde a caba batida enorme. Pintor
americano acorda queimado, ele os dois e diz meu Deus e faz de conta que está
morto. Os dois são bastante prestativos. Uma equipe vem também e leva pintor
americano e todos para hospital. Dois americanos saem em motocicletas direção a
Nimes e Pont du Gard.
Chegada no hospital, entrevista com o americano ferido que descreveu dois
oficiais americanos que estavam sendo como irmãos para ele, nunca pensei que algum
oficial podia ser tão amigo de um soldado. Me levaram pra sair cuidaram de mim,
cigarros tudo beleza.
315
Para onde eles foram, para Nimes.
Sim Pont du Gard.
Pintor americano na cama sob cuidados de freira enfermeira francesa mas um
jeito de escapar e ir para Pont du gard em táxi consertado. sob a sombra daquele
monumento imperecível do esforço e do poder da Roma antiga duelo excitante. Policial
francês pintor americano, táxi, e.d. Bretã, dois americanos trapaceiros com motocicletas
nas quais eles tentam escapar sobre o topo da Pont du Gard, grande façanha, eles são
finalmente capturados. Eram eles que recebiam o dinheiro roubado.
Depois de muitas outras aventuras tão famosos ficaram pintor americanos, e.d.
Bretã e táxi que na marcha sob o arco no triunfo final dos aliados o táxi por pedido
especial do general Pershing veio na retaguarda da procissão depois dos tanques, a bretã
dirigindo e o pintor americano brandindo a bandeira americana Old Glory e a tricolor.
CORTINA
316
A MOVIE
Eyes are a surprise
Printzess a dream
Buzz is spelled with z
Fuss is spelled with s
So is business.
The UNITED STATES is comical.
Now I want to tell you about the Monroe doctrine. We think very nicely we
think very well of the Monroe doctrine.
American painter painting in French country near railroad track. Mobilisation
locomotive passes with notification for villages.
Where are American tourists to buy my pictures sacre nom d'un pipe says the
american painter.
American painter sits in cafe and contemplates empty pocket book as taxi cabs
file through Paris carrying French soldiers to battle of the Marne. I guess I'll be a taxi
driver here in gay Paree says the american painter.
Painter sits in studio trying to learn names of streets with help of Bretonne
peasant femme de menage. He becomes taxi driver. Ordinary street scene in war time
Paris.
Being lazy about getting up in the mornings he spends some of his dark nights in
teaching Bretonne femme de menage peasant girl how to drive the taxi so she can
replace him when he wants to sleep.
America comes into the war american painter wants to be american soldier.
Personnel officer interviews him. What have you been doing, taxiing. You know
Paris, Secret Service for you go on taxiing.
He goes on taxiing and he teaches Bretonne f. m. english so she can take his
place if need be.
One night he reads his paper under the light. Policeman tells him to move up,
don't want to wants to read.
Man comes up wants to go to the station.
Painter has to take him. Gets back, reading again.
Another man comes wants to go to the station. Painter takes him. Comes back to
read again. Two american officers come up. Want to go to the station.
Painter says Tired of the station take you to Berlin if you like. No station.
Officers say give you a lot if you take us outside town on way to the south, first big
town.
He says alright got to stop at home first to get his coat.
Stops at home calls out to Bretonne f. m. Get busy telegraph to all your relations,
you have them all over, ask have you any american officers staying forever. Be back to-
morrow.
Back to-morrow. Called up by chief secret service. Goes to see him. Money has
been disappearing out of quartermaster's department in chunks. You've got a free hand.
Find out something.
Goes home. Finds f. m. Bretonne surrounded with telegrams and letters from
relatives. Americans everywhere but everywhere. She groans. Funny Americans
317
everywhere but everywhere they all said. Many funny Americans everywhere. Two
Americans not so funny here my fifth cousin says, she is helping in the hospital in
Avignon. Such a sweet american soldier. So young so tall so tender. Not very badly hurt
but will stay a long long time. He has been visited by american officers who live in a
villa. Two such nice ladies live there too and they spend and they spend, they buy all the
good sweet food in Avignon. "ls that something William Sir," says the Bretonne f. m.
Its snowing but no matter we will get there in the taxi. Take us two days and two
nights you inside and me out. Hurry. They start, the funny little taxi goes over the
mountains with and without assistance, all tired out he is inside, she driving when they
turn down the hill into Avignon. Just then two Americans on motor cycles come on and
Bretonne f. m. losing her head grand smash. American painter wakes up burned, he sees
the two and says by God and makes believe he is dead. The two are very helpful. A
team comes along and takes american painter and all to hospital. Two Americans ride
off on motor cycles direction of Nimes and Pont du Gard.
Arrival at hospital, interview with the wounded American who described two
american officers who had been like brothers to him, didn't think any officers could be
so chummy with a soldier. Took me out treated me, cigarettes everything fine.
Where have they gone on to, to Nimes. Yes Pont du Gard.
American painter in bed in charge of French nursing num but manages to scape
and leave for Pont du Gard in mended taxi. There under the shadow of that imperishable
monument of the might and industry of ancient Rome exciting duel. French gendarme
american painter, taxi, f. m. Bretonne, two american crooks with motor cycles on which
they try to escape over the top of the Pont du Gard, great stunt, they are finally captured.
They have been the receivers of the stolen money.
After many other adventures so famous has become the american painter,
Bretonne femme de menage and taxi that in the march under the arch at the final
triumph of the allies the taxi at the special request of General Pershing brings up the rear
of the procession after the tanks, the Bretonne driving and the american painter inside
waving the american flag Old Glory and the tricolor
CURTAIN.
318
Filme
Duas irmãs que não são irmãs
Na esquina de uma rua de um bairro fora de Paris uma lavadeira de uma certa
idade com sua trouxa de roupa que estava indo entregar, pára para pegar em suas mãos e
olhar a foto de dois poodles brancos e ela a olha com ardor. Um carro de dois lugares
estacionava ao longo da calçada. De repente duas senhoras descem do carro e se
precipitam sobre a lavadeira pedindo para ver a foto. Ela a mostra e as duas senhoras
ficam cheias de admiração até o momento em que uma jovem que está penteada como
se tivesse acabado de receber um prêmio num concurso de beleza e depois de ter se
perdido na rua, passa e neste momentoo carro vazio, se apressa em entrar e coma a
chorar. Neste momento, as duas senhoras entram no carro e jogam a jovem para fora.
Ela cai em cima da lavadeira que coma a lhe fazer perguntas, e o carro, dirigido pelas
duas senhoras parte, e de repente a lavadeira que ela não tem mais sua foto. Ela
um jovem e imediatamente conta a ele a história.
Algumas horas mais tarde, diante de um balcão de depósito, na rue du Dragon,
tem outra lavadeira mais jovem com sua trouxa de roupa. O carro das duas senhoras se
aproxima, pára, e as duas senhoras saltam e mostram à lavadeira a foto dos dois poodles
brancos. Ela olha com prazer e excitação, mas é só. Exatamente neste momento a jovem
do prêmio de beleza se aproxima dá um grito de alegria e se precipita em direção ao
carro. As duas senhoras entram em seu carro e, enquanto entram, deixam cair uma
trouxa pequena, mas estão sempre de posse da foto e elas partem precipitadamente.
Dois dias depois a primeira lavadeira está novamente na sua rua com sua trouxa
de roupa e ela a jovem do prêmio de beleza se aproximar com uma trouxa pequena
na mão. E ao mesmo tempo ela o jovem. Eles estão todos os três agora juntos e de
repente ele passa, o carro, com as duas senhoras e com elas um poodle branco de
verdade e na boca do poodle tem uma trouxa pequena. Os três na calçada o vêem passar
e não entendem nada daquilo ali.
319
FILM
DEUX SOERS QUI NE SONT PAS SOERS
Au coin d’une rue d’um boulevard extérieur de Paris une blanchisseuse d’un certain
age avec son paquet de linge qu’elle était en train de livrer, s’arrête pour prendre dans
ses mains et regarder la photo de deux caniches blancs et elle la regarde avec ardeur.
Une automobile de deux places stationnait le long du trottoir. Tout à coup, deux dames
en descendente et se précipitent sur la blanchisseuse en demandant à voir la photo. Elle
la fait voir et les deux dames sont plaines d’admiration jusqu’au moment où une jeune
femme qui est coiffée comme si elle venait d’avoir un prix au concours de beauté et
après s’être égarée dans la rue, passe et à ce moment voit l’auto vide, se dépêche
d’entrer et se met à pleurer. A ce moment, les deux dames entrent dans l’auto et jettent
la jeune femme dehors. Elle tombe contre la blanchisseuse qui commence à la
questionner, et l’auto, conduit par les deux dames part, et tout à coup la blanchisseuse
voit qu’elle n’a plus sa photo. Elle voit un jeune homme et elle lui raconte tout de suite
l’histoire.
Quelques heures plus tard, devant un bureau de placement, rue du Dragon, il y a une
autre blanchisseuse plus jeune avec son paquet de linge. La voiture des deux dames
approche, s’arrête, et les deux dames descendente et font voir à la blanchisseuse la
photo des deux caniches blancs. Elle regarde avec plaisir et excitation, mais c’est tout.
Juste à ce moment la jeune femme du prix de beauté approche pousse un cri de joie et se
precipite vers la voiture. Les deux dames entrent dans leur auto et, en entrant, laissent
tomber un petit paquet, mais toujours elles sont en possession de la photo et elles partent
précipitamment.
Le surlendemain la première blanchisseuse est encore dans sa rue avec son paquet de
linge et elle voit la jeune femme du prix de beauté approcher avec un petit paquet à la
main. Et en même temps elle voit le jeune homme. Ils sont tous les trois alors ensemble
et tout à coup elle passe, l’auto, avec les deux dames et il y a avec elles un vrai caniche
blanc et dans la bouche du caniche est un petit paquet. Les trois sur le trottoir le regarde
passer et n’y comprennent rien.
320
Trecho do romance Ida
15
Parte dois
Apareceu um homem mais velho que por acaso foi onde estavam votando. Ele não
sabia que estavam votando para o concurso de beleza mas que estava ele votou
também. E evidentemente ele votou nela. Qualquer um teria votado. E então ela venceu.
A única coisa que ela podia fazer depois era ir para casa e foi o que ela fez. Ela tinha
que dar uma volta enorme senão eles descobririam onde ela morava é claro que ela teve
que dar um endereço e ela deu, e ela foi para e depois ela saiu de novo para fora da
cidade onde ela morava.
No caminho, logo no final da cidade ela viu uma mulher carregando uma enorme
trouxa de roupa para lavar. Essa mulher parou e ficou olhando para uma fotografia, Ida
parou também e era espantoso, a mulher estava olhando para a fotografia, ela estava
com ela na mão, do cachorro de Ida, Love. Isso era espantoso.
Ida ficou tão surpresa que tentou pegar a fotografia e bem nessa hora veio um
automóvel, havia duas mulheres dentro dele, e o automóvel parou e elas saíram para ver
o que estava acontecendo. Ida pegou a fotografia da mulher que estava distraída olhando
para o automóvel e Ida entrou no automóvel e tentou ligar o motor, as duas mulheres
entraram no automóvel, jogaram Ida para fora e partiram no automóvel com a
fotografia. Ida e a mulher com a enorme trouxa de roupa para lavar foram deixadas lá.
As duas ficaram paradas e não disseram uma palavra.
Ida foi embora, ela era uma lindeza, ela ganhara o prêmio ela fora considerada a mais
bela mas ela estava desnorteada e então ela viu um pacote no chão. Uma das mulheres
do automóvel deve ter deixado cair. Ida pegou o pacote e depois foi embora.
Então Ida fez tudo o que uma Miss Beleza faz mas volta e meia ela se perdia.
Um dia ela viu um homem ele parecia que tinha acabado de vir de uma fazenda e com
ele vinha uma mulher muito pequena e atrás dele uma mulher de tamanho comum. Ida
ficou pensando sobre eles. Um dia ela viu novamente a mulher com a enorme trouxa de
roupa para lavar. Ela estava falando com um homem, era um homem jovem. Bem nesta
hora um automóvel com duas mulheres passou e dentro dele estava o cachorro de Ida
Love, Ida tinha certeza de que era Love, é claro que era Love e na boca dele havia um
pacote, o mesmo pacote que Ida apanhara do chão. Tudo isso aconteceu e a mulher com
a trouxa de roupa e o homem jovem e Ida, eles todos ficaram parados e olharam e eles
o disseram nenhum deles disse nada.
15
STEIN, Gertrude. Ida, In: STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The Library of America,
1998. pp 620-621
321
Part Two
THERE WAS an older man who happened to go in where they were voting. He
did not know they were voting for the prize beauty but once there he voted too. And
naturally he voted for her. Anybody would. And so she won. The only thing for her to
do then was to go home which she did. She had to go a long way round otherwise they
would have known where she lived of course she had to give an address and she did,
and she went there and then she went back outside the city where she was living.
On the way, just at the end of the city she saw a woman carrying a large bundle
of wash. This woman stopped and she was looking at a photograph, Ida stopped too and
it was astonishing, the woman was looking at the photograph, she had it in her hand, of
Ida’s dog Love. This was astonishing.
Ida was so surprised she tried to snatch the photograph and just then an
automobile came along, there were two women in it, and the automobile stopped and
they stepped out to see what was happening. Ida snatched the photograph from the
woman who was busy looking at the automobile and Ida jumped into the automobile
and tried to start it, the two women jumped into the automobile threw Ida out and went
on in the automobile with the photograph. Ida and the woman with the big bundle of
wash were left there. The two of them stood and did not say a word.
Ida went away, she was a beauty, she had won the prize she was judged to be the
most beautiful but she was bewildered and then she saw a package on the ground. One
of the women in the automobile must have dropped it. Ida picked it up and then she
went away.
So then Ida did everything an elected beauty does but every now and then she
was lost.
One day she saw a man he looked as if he had just come off a farm and with him
was a very little woman and behind him was an ordinary-sized woman. Ida wondered
about them. One day she saw again the woman with a big bundle of wash. She was
talking to a man, he was a young man. Ida came up near them. Just then an automobile
with two women came past and in the automobile was Ida’s dog Love, Ida was sure it
was Love, of course it was Love and its mouth it had a package, the same package Ida
had picked up. There it all was and the woman with the bundle of was and the young
man and Ida, they all stood and looked and they did not any one of them say anything.
322
O que ela vê quando ela fecha os olhos
16
Um romance
Há um grande mérito em trabalhar duro num jardim tanto quando faz bom tempo
e alguma coisa cresce quanto quando faz tempo muito ruim e nada cresce.
Quando ela fecha os olhos ela vê as coisas verdes nas quais ela vem trabalhando
e então quando ela cai no sono ela as um pouco diferentes. As coisas verdes então
têm rzes pretas e as raízes pretas têm caules vermelhos e então ela fica exausta.
Evidentemente quando ela trabalha no jardim ela planta morangos e framboesas
e ela come eles e às vezes o cachorro come eles e depois durante dias ele o se sente
bem e finalmente ele fica tão fraco que não consegue se levantar mas pouco depois ele
está pronto para comer novamente.
Então um dia não é na verdade um dia porque cada dia é como um outro dia e
eles começam a não ter nada. Ela própria estava de luto porque sua mãe tinha morrido,
sua amorreu antes de sua mãe morrer e seu pai tinha cabelos encaracolados e tirou o
chapéu para que seus olhos pudessem ver que alguém parara de conversar com ele.
É um prazer não ter medo de nada. Se eles o têm nenhum filho eles não têm
medo de coisa alguma.
Muitos deles têm apenas um filho e isso não é o mesmo que não ter nenhum
filho. Se eles são casados e não têm nenhum filho então eles têm medo. Mas se eles o
são casados e não têm filho então eles não têm medo.
Nunca o tendo visto antes ele se torna seu empregado e mora na casa e é tão
íntimo como se tivesse sido um pai ou filhos. É estranho que, parece haver tanta
necessidade de sempre se ter conhecido uma pessoa e ele vem em resposta a um
anúncio e você nunca o vira antes e aí você vive com ele na casa.
No fim das contas nada muda a não ser o tempo e quando ela fecha os olhos ela
o vê nuvens nem céu ela vê florestas e coisas verdes crescendo.
Então os personagens deste romance são os que andam pelos campos e perdem
seu cachorro e os que não andam pelos campos porque eles não têm vacas.
Mas todos gostam de saber o nome deles. O nome deles é Gabrielle e Therese e
Bertha e Henry Maximilian Arthur e Genevieve e em um tempo qualquer aconteceu de
eles serem felizes.
16
STEIN, Gertrude. Writings 1932-1946. New York: The Library of America, 1998. p489-493
323
Capítulo um
Com que freqüência eles poderiam ter medo.
Gabrielle disse para qualquer um, eu gosto de dizer durma bem para cada um
deles, e ele realmente gosta de dizer isso.
Ele gosta de fazer uma coisa de cada vez por um longo tempo.
Mais céu no porque porque eles não gostam que as nuvens tenham essa cor.
Lembra qualquer coisa ruim.
E depois de vez em quando chove. Se chove na hora errada não dão frutos se
chove na hora certa não dão rosas. Mas se chove na hora errada então as rosas selvagens
duram um tempo longo e são de cor mais escura mais escura do que branco.
E isso faz Henry Maximilian Arthur sorrir. É bem capaz de o tempo ficar
favorável porque ele pode ficar quente o suficiente e também ele pode muito bem o
ficar quente ainda. E ele não está.
E por isso Henry Maximilian Arthur não está incil nem está virado de costas.
Capítulo II
Ela fez crescer doces ervilhas e cenouras e beterrabas. Ela fez crescer tomates e
rosas e cravos e ela fez crescer abóboras e milho e feijão. Ela não fez crescer salada nem
nabos nem camélias nem nastúrcios mas nastúrcios crescem de todo modo assim como
as hortênsias e heliotpios e brincos-de-princesas e peônias. Depois ela foi muito
cautelosa ao recusar pagar mais do que eles realmente valiam e isso leva Henry
Maximiliam Arthur à contemplação do dinheiro. Ele pode talvez nem jogá-lo fora. Ele
pode. Afinal de contas ele se apega muito ao que ele tem. Mas não ao dinheiro porque
quanto a isso não necessidade. Dinheiro é necessário àqueles que podem andar por
. E até agora Henry Maximiliam Arthur não faz isso.
Não importa quem o deixou onde ele está não importa não importa quem o
deixou onde ele está o importa. Lá ele está.
Não importa. Não importa que ninguém tenha deixado qualquer um onde ele
está. Isso não importa.
Todos os pássaros parecem ter se divertido e todos os pássaros parecem como se
parecesse que eles se divertiram.
Melhor não é diferente do que isso importar. Isso é melhor mesmo se isso não
importa.
324
De vez em quando Henry Maximiliam Arthur era acariciado por theresa.
Quando Theresa acariciava Henry Maximiliam Arthur Henry Maximiliam Arthur
gostava disso assim como preferia isso. Isso é o que é como isso era que importou assim
como não importou.
Grama cresce e faz uma sombra bem quando a grama cresce.
A grama podia fazer cegas em Henry Maximiliam Arthur enquanto elas
cresciam e ele não podia acariciar mas ele podia ser acariciado por Theresa assim como
as gramas podiam fazer cegas nele enquanto elas cresciam, quando a grama é cortada
ela é chamada de feno.
Um ano de grama é um ano de ái que pena. Quando grama cresce é ela que
crescem mas grama é grama e ái que pena é ái que pena.
Numa manhã ao anoitecer Henry Maximiliam Arthur estava acordado. Uma vez
toda manhã ele estava acordado e Theresa não estava lá e quando Theresa chegou Henry
Maximiliam Arthur como sempre estava lá.
É isso o que significa somar e uma vaca. Henry Maximiliam Arthur não
precisava de uma vaca. Theresa precisava Theresa tinha necessidade de uma vaca, mas
uma vaca morreu e isso foi uma perda uma perda de uma vaca e a perda do valor da
vaca e para substituir a vaca teria que haver uma vaca de tamanho médio e uma vaca
muito pequena. Mas Henry Maximiliam Arthur não tinha a mesma ansiedade.
325
What Does She See When She Shuts Her Eyes
A NOVEL
IT IS very meritorious to work very hard in a garden equally so when there is a
good weather and something grows or when there is very bad weather and nothing
grows.
When she shuts her eyes she sees the green things among which she has been
working and then as she falls asleep she sees them be a little different. The green things
then have black roots and the black roots have red stems and then she is exhausted.
Naturally as she works in the garden she grows strawberries and raspberries and
she eats them and sometimes the dog eats them and for days after he is not well and
finally he is so weak he cannot stand but in a little while he is ready to eat again.
And so a day is not really a day because each day is like another day and they
begin to have nothing. She herself was in mourning because her mother died and her
father had curly hair and took off his hat so that his eyes could see that somebody had
stopped to talk with him.
It is a pleasure to be afraid of nothing. If they have no children they are not
afraid of anything.
A good many of them only have one child and that is not the same as not having
any children. If they are married and have no children then they are afraid. But if they
are not married and have no child then they are not afraid.
Never having seen him before he becomes you servant and lives in the house
and just as intimate as if he had been a father of children. It is funny that, there seems to
be so much need of having always knows anybody and he comes to answer an
advertisement and you never saw him before and there you live in the house with him.
After all nothing changes but the weather and when she shuts her eyes she does
not see clouds or sky but she sees woods and green things growing.
So the characters in this novel are the ones who walk in the fields and lose their
dog and the one who do not walk in the fields because they have no cows.
But everybody likes to know their name. Their name is Gabrielle and Therese
and Bertha and Henry Maximilian Arthur and Genevieve and at any time they have
happened to be happy.
Chapter One
How often could they be afraid.
Gabrielle said to any one, I like to say sleep well to each one, and he does like to
say it.
He likes to do one thing at a time a long time.
More sky in why why do they not like to have clouds be that color.
Remember anything being atrocious.
And then one in a while it rains. If it rains at the wrong time there is no fruit if it
rains at the right time there are no roses. But if it rains at the wrong time then the wild
roses last a long time and are dark in color darker than white.
And this makes Henry Maximilian Arthur smile. It is just like the weather to be
agreeable because it can be hot enough and so it might just as well not be hot yet.
Which it is not.
And therefore Henry Maximilian Arthur is not restless nor is he turned around.
326
Chapter II
She grew sweet peas and carrots and beets. She grew tomatoes and roses and
pinks and she grew pumpkins and corn and bean. She did not grow salad or turnips nor
camelias nor nasturtiums but nasturtiums do grow and so do hortensias and heliotrope
and fuchsias and peonies. After she was very careful she refused to pay more than they
were worth and this brings Henry Maximilian Arthur to the contemplation of money. He
might even not then throw it away. He might. After all he clings very tightly to what he
has. But not to money because about that there is no need. Money is needful those who
can move about. And as yet Henry Maximilian Arthur does not do so.
No matter who has left him where he is no matter no matter who has left him
where he is no matter. There he is.
No matter. It does not matter that no one has left any one where he is. It does not
matter.
All birds look as if they enjoyed themselves and all birds look as if they looked
as if they enjoyed themselves.
Better is not different than does it matter it is better even if it does not matter.
Once in a while Henry Maximilian Arthur was caressed by Theresa. When
Theresa caressed Henry Maximilian Arthur Henry Maximilian Arthur liked it as well as
he liked it better. That is what is the way in which it was that it did as well as it did not
matter.
Grasses grow and they make a shadow so just as grasses grow.
Henry Maximilian Arthur. Could be tickled by grasses as they and he could not
caress but he could be caressed by Theresa as well as be tickled by grasses as they grow,
when grass is cut it is called hay.
A year of grass is a year of alas. When grass grows that is all that grows but
grass is grass and alas is alas.
Once evening morning Henry Maximilian Arthur was awake. Once every
morning he was awake and Theresa was not there and when Theresa came Henry
Maximilian Arthur was there just the same.
That is what adding means and a cow. Henry Maximilian Arthur had no need of
a cow. Theresa did Theresa had need of a cow, but a cow died and that was a loss a loss
of a cow and the loss of the value of the cow and to replace the cow there had to be a
medium sized cow and a very small cow. But Henry Maximilian Arthur did not share
the anxiety.
ANEXO II
“Let us play a play”
Laboratórios Experimentais: Gertrude Stein em cena
327
MEMORIAL
Foi a passagem do mestrado para o doutorado, indicada pela banca de qualificação e
aprovada pelo colegiado do PPGT no primeiro semestre de 2003, que me possibilitou a
realização dos laboratórios de encenação para os quais o meu pré-projeto de pesquisa de
Dissertação de Mestrado já apontava
1
. Voltei, então, à idéia inicial de um trabalho em três
frentes: “estudo, tradução e laboratório experimental”. E, no final do segundo semestre de
2003, convidei Sylvia Heller, professora do Departamento de Interpretação, para ser a
minha orientadora nesses laboratórios cênicos. Redigi, em seguida, a proposta do curso,
para ser submetida à aprovação do Departamento de Interpretação. A proposta, analisada
também pela orientadora da minha tese, Flora Süssekind, e pela professora Sylvia Heller,
seria aprovada, como disciplina optativa do Departamento de Interpretação (Técnicas
Paralelas), para o primeiro semestre de 2004.
No dia 13 de Abril de 2004, demos início ao curso, que chamei de Laboratórios
Experimentais: Gertrude Stein em cena e cujos principais objetivos seriam: investigar as
possibilidades nicas apresentadas pelos textos teatrais steinianos; contribuir para uma
discussão das noções de identidade e ritmo verbal, trabalhadas por Stein em suas peças;
proporcionar uma reflexão performativa sobre o trabalho do ator diante da dramaturgia
steiniana; e, ainda, criar uma zona de trabalho capaz de unir duas formas de prática teatral: a
1
no título do meu pré-projeto de Dissertação de Mestrado, Personagem e espaço nico em Gertrude
Stein: estudo e laboratório experimental, aprovado pela banca de ingresso no Programa de Pós Graduação
em Teatro (PPGT) da UNIRIO, em 2001, eu apontava para as duas vertentes que a pesquisa, ainda em nível
de Mestrado, deveria, tomar: “Uma delas, voltada para a análise da dramaturgia de Gertrude Stein, bem
como para a compreensão de sua poética teatral”, e outra que compreenderia tamm um exercício de
prática nica, baseado em laboratórios de encenação. Tais laboratórios de encenação, que deveriam contar
com alunos da graduação em Interpretação e em Teoria do Teatro, não puderam ser realizados durante o
período em que me encontrava ainda como mestranda do Programa. Foi possível realizar, no entanto, um
outro tipo de exercício: duas leituras de peças de Gertrude Stein na Fundação Casa de Rui Barbosa. A
primeira, ainda em maio de 2001, teve lugar durante o seminário “Vozes Femininas”, e contou com a minha
própria participação como atriz e com a participação de mais duas atrizes, convidadas por mim (Márcia
Cabrita e Ângela Rebello). Para a segunda leitura, que aconteceu em abril de 2003, convoquei cinco atores
(Daniela Pereira de Carvalho, Cristina Flores, Saulo Rodrigues, Letícia Isnard e Filipe Vidal) que leram,
comigo, as seguintes peças: Três irmãs que não são irmãs, Uma peça, A questão da identidade, Vozes de
mulheres, Quero que isto seja uma peça e A seguir. Vida e cartas de Marcel Duchamp, as três primeiras
traduzidas por mim e, as três últimas, por Julio Castañon Guimarães. Estas duas experiências de vocalização
de textos de Stein me levaram a pensar na possibilidade de em algum momento, me voltar, para tentativas de
espacializações das peças steinianas.
328
prática teórica e a prática cênica, fazendo com que uma prática questionasse a outra, numa
via sempre de mão dupla.
Passo agora ao relato dos dezoito encontros em que consistiu o curso. Note-se que o
relato dos cinco primeiros encontros - decisivos para os rumos que guiaram a minha
pesquisa - abriga duas vozes. Uma se destaca pelo uso de fonte normal, e está marcada por
um tom mais pessoal, correspondendo ao diário corrido das atividades nos Laboratórios
Experimentais. A outra, em itálico, adota forma mais ensaística, e corresponderá a um
esforço de conceituação paralelo ao trabalho descritivo e à definição dos exercícios e das
práticas interpretativas e de leitura cênica da obra teatral de Gertrude Stein. Do sexto
encontro em diante, o memorial mantém fluente o tom pessoal, que caracteriza a descrição
dos encontros, e a anotação das minhas impressões sobre eles, todos registrados por mim
num caderno de notas, sempre ao final do dia, ao final de cada experimentação.
Ao final do memorial, anexo o roteiro do espetáculo Eu me ouço falando”,
apresentado na UNIRIO em icio de agosto de 2004, como exercício cênico resultante das
experimentações desenvolvidas ao longo do curso.
Primeiro encontro 13 de abril de 2004
Apareceram para a primeira aula três alunos da escola, interessados em ouvir sobre o
que tratava a pesquisa. Dois eram do Departamento de Teoria e um do Departamento de
Interpretação. Eu tinha programado fazer uma introdução sobre Gertrude Stein: fornecer
aos alunos (que passarei a chamar de pesquisadores, pois foi este o papel deles ao longo de
todo o trabalho) alguns dados biográficos e bibliográficos, falar um pouco sobre seus textos
dramatúrgicos, suas óperas e sobre os textos fronteiriços, aqueles que se encontram entre
um gênero e outro, nos quais Stein força os limites dos gêneros. Planejei, também, explicar a
eles o que eram Laboratórios Experimentais” e o que significava para a minha pesquisa em
nível de doutorado uma experiência cênica com as peças de Stein. Apresentar a proposta do
curso, seus principais objetivos e os conceitos centrais que estariam norteando toda a
329
pesquisa seria também um assunto a ser tratado, além de fazer alguns comentários sobre o
exercício de tradução das peças de Gertrude Stein.
Depois desta conversa inicial, deveríamos partir para a audição das gravações das
duas leituras de peças de Stein organizadas por mim na Casa de Rui Barbosa e ainda as de
dois textos de Stein gravados por ela mesma. Planejei propor, então, alguns exercícios
práticos relacionados com as questões que deveriam ser trabalhadas ao longo do curso.
Evidentemente não chegamos aos exercícios práticos. A conversa inicial tomou
quase o tempo todo do encontro. E, assim mesmo, não cheguei a falar sobre os problemas
de tradução. Considerei também o fato de contarmos com apenas três pesquisadores e
preferi esperar o próximo encontro (quando provavelmente eu teria um número maior de
participantes) para dar início aos exercícios práticos.
Segundo encontro 20 de abril de 2004
Outros alunos se interessaram pelo curso. De três passamos para nove integrantes:
Adriana de Lima Machado e Ângela Rebello, do Departamento de Teoria, e Anília
Francisca, Letícia Medella, Christian Landi, Luana Dias, Renato Consorti, Gisela Munk e
Ramón Gonçalves, alunos do Departamento de Interpretação (os dois últimos não
continuaram no grupo, de modo que passamos a contar com sete integrantes). Tive, é claro,
que repetir tudo o que fora dito no primeiro encontro, para que os novos pesquisadores
tomassem conhecimento do trabalho que seria desenvolvido ao longo do curso. Depois de
uma hora de conversa sobre Gertrude Stein, sua obra, os objetivos dos Laboratórios, a
apresentação da bibliografia do curso etc., dispensei-os para que pudessem assistir a uma
mesa redonda com encenadores de teatro, evento organizado pelo Departamento de Teoria.
Mas, antes de dispensá-los, propus um exercio para casa, como forma de
provocar um primeiro contato com a obra steiniana, e para fazê-los perceber, desde então,
que eles atuariam nos Laboratórios como pesquisadores junto comigo e o como cobaias
da minha pesquisa. Propus, então, que eles lessem algumas peças de Stein e suas duas
autobiografias (Autobiografia de Alice B. Toklas e Autobiografia de todo mundo)
330
traduzidas para o português e já começassem a pensar em idéias cênicas para pequenos
trechos destes textos.
Terceiro encontro 27 de abril de 2004
Demos, enfim, início aos exercios práticos. Escolhi a peça “Três irmãs que não são
irmãs” como a primeira a ser trabalhada nos Laboratórios. Fizemos uma leitura da peça e
começamos o trabalho do dia, que intitulei Deslocamentos”.
§
Esse título procurava remeter imediatamente às constantes mudanças a que Stein
foi submetida desde sua infância. Deslocamentos a que me refiro mais detalhadamente no
segundo capítulo desta tese.
A questão do exílio, eixo da minha leitura das pas de Stein e, conseqüentemente da
minha tese, se transformou na principal das quatro questões centrais que norteiam a
pesquisa realizada nos Laboratórios Experimentais. Os outros três tópicos, que passo a
expor agora, e que eu já tinha explicado aos pesquisadores nas duas primeiras aulas, são:
1. espaço: questão diretamente ligada ao conceito de exílio, por um lado, e, por
outro, também estreitamente vinculada à visão steiniana de “peça como
paisagem”, perspectiva exposta por ela em seu texto “Plays” (STEIN,
G.1998:244);
2. identidade: tema trabalhado exaustivamente por Gertrude Stein, o em suas
peças, mas em quase toda a sua obra e
3) tempo presente: procuro trabalhar, neste aspecto, formas diversas de
tratamento do presente. O presente inerente ao espetáculo teatral, mas que Stein
aborda em primeiro plano na escrita de suas pas por meio de recursos tais
331
como: a repetição, o “começar novamente” (beginning again), a fragmentação
(pedaços de diálogos que parecem recortados de uma conversa mais longa), a
segmentação (os textos são, muitas vezes divididos em partes, em páginas, ou
mesmo em atos que se repetem e não obedecem a uma ordem cronológica), para
dar apenas alguns exemplos.
§
Os exercícios práticos deste terceiro encontro procuraram focalizar todos eles a
questão do exílio e mecanismos diversas de deslocamento. Como aquecimento, utilizamos o
jogo de bolas. Os atores deveriam andar ou correr pelo espaço da sala e jogar a bola uns
para os outros. Aos poucos outras bolas iam sendo introduzidas no jogo, o que mantinha os
atores em constante movimento e em constante estado de alerta, atenção e concentração.
O exercio seguinte teve como objetivo trazer o conceito de exílio para o corpo do
ator. Pedi aos atores que caminhassem pela sala sendo puxados por uma parte de seu corpo
(nariz, o, barriga, bunda, ombro etc.). Em seguida pedi que cada um escolhesse uma
parte do corpo que tentaria se exilar do resto, se libertar do corpo. A atriz Luana Dias
anotou acertadamente em seu caderno de notas que o interessante do exercício proposto
era trabalhar fisicamente com a idéia de exílio. Era um exercício individual que não tinha o
objetivo de ser subjetivamente emotivo”.
No terceiro exercício introduzi uma bolinha de handball para trabalhar o exílio de
forma diferente. A bolinha, ao chegar às mãos de cada um dos atores, deveria “ganhar vida
própria”. Assim como tínhamos trabalhado, no exercício anterior, com uma parte que, como
se quisesse ter uma vida própria, e, dissociada do corpo, tentasse se libertar dele, o mesmo
devia acontecer com a bolinha. O ator deveria, então, fazer parecer, por meio dos
movimentos da bolinha e da expressão de seu corpo e rosto, que o objeto era dono de seus
próprios movimentos. Alguns atores alcançaram resultados bastante interessantes. Nas mãos
de uma das atrizes, por exemplo, a bolinha teimava em bater em sua testa. Um outro ator
salvou a bolinha de um possível suidio, já que ela tentava se jogar pela janela. Uma outra
atriz tentava disfarçar seu constrangimento uma vez que a bolinha insistia em colar-se ao seu
sexo.
332
Propus ainda um quarto exercício: pedi aos atores que dispusessem, sobre uma mesa,
dois ou três objetos retirados das pprias bolsas. Eu mesma levei, nesse dia, alguns objetos
para serem usados no jogo. Depois pedi que os atores olhassem para os objetos, os
examinassem, mexessem neles. Apenas isso. Alguns atores, no entanto, como observou a
professora Sylvia Heller, presente neste dia ao laboratório, logo começaram a “representar”.
Em vez de realmente olharem os objetos, tocarem neles, tentando descobrir as suas
possibilidades de uso ou de manipulação, eles tendiam a uma “representação” desta relação
com os objetos. Pedi a cada um deles que escolhessem um ou dois objetos e criassem uma
seqüência nima de ações com eles, trabalhando com a mesa como suporte, como “chão”
para os objetos. Neste exercício, diferente do que acontecia no exercício da “bolinha que
ganha vida própria”, o ator-manipulador deveria “dar vida” ao objeto sem tentar fazer com
que o objeto mandasse” nele.
Ao final do encontro, conversamos sobre os exercícios realizados. Surgiram dúvidas
relacionadas às técnicas de manipulação de objetos e quanto à diferença entre o exercício
com os objetos e o exercio com a bolinha. Conversamos também sobre o que se pretendia
fazer no encontro seguinte: trabalharíamos a peça lida no início da aula, “Três irmãs que não
são irmãs”, com objetos. Optamos pelo uso apenas de garrafinhas de água de plástico. Elas
seriam os personagens que estariam, desta forma, exilados dos corpos dos atores.
§
Para conceituar a noção de exílio, questão essencial nos Laboratórios
Experimentais, eu me voltei, neste momento, para dois dentre os muitos autores que
trataram desse assunto: John Berger e Julia Kristeva. As reflexões destes dois autores
sobre os conceitos de exílio expostos no segundo capítulo desta tese serviram como guia
para as práticas experimentais. No caso de Berger, em especial, o desmantelamento do
centro do mundo” vivenciado, segundo o autor, pelo expatriado, norteou o trabalho no que
diz respeito à utilização do espaço cênico.
No que se refere às reflexões de Kristeva, foi o questionamento do “eu”, apontado
pela autora, que tomamos como base para a prática cênica. Retomo aqui trecho da citação
333
do livro de Kristeva, registrada no segundo capítulo da tese, para se possa compreender
o que se pretendeu fazer:
O estrangeiro (...) se multiplica em falsos ‘selfs’. O que equivale a dizer
que, estabelecido em si, o estrangeiro não tem um si. (...). Eu faço o que
se quer, mas não sou eu’ meu ‘eu’ está em outro lugar, meu ‘eu’ não
pertence a ninguém, meu ‘eu’ não pertence a ‘mim’... ‘eu’ existe?
(KRISTEVA, J. 1994: p.16).
Foi levando em conta esta reflexão de Kristeva, que optei por trabalhar o
personagem steiniano, num primeiro momento, utilizando objetos, que os atores estão
acostumados a “trazer o personagem para os seus corpos, num movimento de
aproximação. O objeto obriga-os a um movimento inverso, de afastamento. A intenção
seria, então, deslocar o “eu” fictício (o personagem) de dentro para fora do corpo do ator.
Colocar o “eu”, como diz Kristeva, “em outro lugar”. Este outro lugar seria o objeto.
§
Quarto encontro 4 de maio de 2004
Iniciei o encontro pedindo que cada ator decorasse uma frase curta da peça Três
irmãs que o são irmãs. Em seguida fizemos um esquentamento com as bolinhas,
semelhante ao que havia sido feito na terceira aula, mas com uma diferença: a cada vez que
o ator recebesse a bolinha, ele deveria, antes de lançá-la para outro ator, dizer a frase
decorada. Outras bolinhas foram sendo introduzidas no jogo, de modo que as frases,
ouvidas muitas vezes simultaneamente, foram sendo exaustivamente repetidas. Pedi para que
os atores buscassem maneiras diferentes de dizer as frases, que “brincassem com a
sonoridade do texto. A própria repetição já os levava a fazer isso naturalmente.
§
O que deveria ter sido apenas um aquecimento acabou resultando em um jogo
nico: a visualização dos atores em constante movimento, ocupando o espaço e o
movimento também das bolinhas, que cruzavam o espaço aéreo da sala, aliadas à
334
vocalização das frases, que se repetiam a tal ponto que não era, muitas vezes, possível
reconhecer de onde vinham as vozes, ou o ator que estava pronunciando tal frase, isso
tudo transformou o exercício de aquecimento em cena, em jogo teatral. O conceito
steiniano de que “uma peça é exatamente como uma paisagem” começava a se esboçar.
Também apareceram as vozes que parecem sem dono, próprias a Stein. Lembre-se que
em muitas de suas pas, a autora não insere rubricas que indiquem quem é o enunciador
de frases que, algumas vezes, estão dispostas em forma de diálogo. Ao leitor, nesses casos,
não é dada nenhuma informação sobre quem conversa, ou mesmo sobre quantas figuras
dialogam umas com as outras. Tem-se a impressão de que são vozes sem enunciador,
exiladas do corpo.
§
Depois de aquecidos, pedi que os atores trabalhassem em dupla as frases decoradas,
usando as garrafinhas como enunciadoras das frases, como personagens. Este exercício teve
a função de introduzir o trabalho com as garrafas sem compromisso com a seqüência das
falas na peça de Stein, de modo que as frases ditas no início da peça formaram pequenos
diálogos com falas extraídas de outros momentos do texto.
Direcionando o trabalho então para a possibilidade de encenação da peça “Três irmãs
que não são irmãs”, agora inteira, e tendo as garrafas como personagens, eu pedi aos atores
que se juntassem em grupos de dois ou três e preparassem a encenação de um pequeno
trecho da peça.
Ainda nesse encontro trabalhamos com uma outra peça de Stein: “O Rei ou alguma
coisa (convida-se o público a dançar)”, peça que é toda dividida em páginas como se ela
inteira formasse um livro. Essas páginas, por vezes, comportam-se como personagens e
falam na primeira pessoa (“acho que pulei”). Noutras vezes podem ser entendidas como
lugares (pense um pouco aqui”). Levando em conta a idéia de dança sugerida pelo título da
peça, e ainda as inúmeras viagens que Gertrude Stein e Alice Toklas faziam (deslocamentos,
como foi assinalado, e descritos por Stein em seu livro Autobiografia de Alice B. Toklas),
eu imaginei que, cenicamente, cada página poderia configurar uma estação (“posso criar
estações aqui”, lê-se em uma das páginas que comem a peça). Os atores se deslocariam de
335
uma estação” para outra e, a cada parada, leriam uma página do texto. O jogo tradicional
da “dança das cadeiras” seria, deste modo, uma possibilidade de encenação desta peça.
Criamos, então, nichos, que seriam as nossas cadeiras”, para alojarmos as páginas.
Os atores, como no jogo popular, deveriam andar pela sala até que o som da voz gravada de
Gertrude Stein, usado aqui como música, parasse de tocar. Durante a pausa cada ator
deveria correr para alguma “cadeira” e, um de cada vez, leria sua página na ordem
seqüencial proposta por Stein, respeitando, assim, a estrutura do texto steiniano e, ao
mesmo tempo, dispondo-o no espaço. O ator que ficasse sem cadeira, que sobrasse, teria a
liberdade de usar o espaço como quisesse, e até mesmo tentar dividir a leitura de alguma das
páginas com os outros atores. Fizemos várias rodadas dessa dança das cadeiras e depois
conversamos sobre as experimentações feitas neste encontro.
§
A noção de espaço em Stein, uma das questões que deveria orientar as práticas
nicas, começou a se definir melhor neste dia. Em primeiro lugar, no jogo de bolas.
se pôde experimentar cenicamente, de modo embrionário, a reflexão steiniana de que
uma peça é como uma paisagem. Como diz Stein em “Plays”, numa paisagem, os
elementos estão lá, e estão o tempo todo em relação uns com os outros. E mais: uma
paisagem não conta uma história, ela espacializa.
Assim como os elementos da paisagem, os atores, dispostos no espaço da sala, se
locomovendo ou não, se relacionando uns com os outros por meio do ato de jogar a bola e
pronunciando as frases da peça de Stein, também não contavam uma história, mas
formavam uma paisagem composta pelos seus corpos e vozes e pelas bolas.
O espaço foi também trabalhado, de forma diferente, noutro momento. No jogo da
dança das cadeiras proposto para a peça “O rei ou alguma coisa (convida-se o público a
dançar)”. Neste caso, mais uma vez, a questão do exílio norteou o exercício. O espaço foi
dividido de forma a que o se utilizasse o centro da sala. O que se tentou criar foi uma
pulverização deste centro nos “nichos” espalhados pela sala. Desta forma, acredito termos
trabalhado cenicamente o desmantelamento do “centro do mundo”. Desmantelamento
336
este, que, segundo John Berger, é vivenciado sempre por qualquer imigrante, mesmo
quando se trata de um exílio voluntário, como foi o caso de Gertrude Stein.
§
Quinto encontro 11 de maio de 2004
Depois de um primeiro exercício de esquentamento com bastões, orientado pela
professora Sylvia Heller, voltamos a trabalhar com a peça “Três irmãs que não são irmãs” e
com as garrafinhas. Divididos em grupos, os atores realizaram pequenas seqüências da peça
tendo as garrafas como personagens. Desta vez pedi que tentassem respeitar as rubricas
propostas por Stein em seu texto.
Surgiram algumas soluções cênicas interessantes. A performance de uma das atrizes,
por exemplo, acabou por materializar uma das rubricas da peça. Trata-se do trecho no qual
a personagem Jenny, quando percebe que talvez ela seja uma assassina, a prinpio faz como
que uma autoctica: “Oh horrível horrível eu se o crime foi meu”, mas logo depois passa a
se achar grandiosa e diz que então vai matar todos os demais personagens. A rubrica de
Stein para o momento de transição da personagem é: e ela se estica para cima muito alta”.
A atriz pediu a outro ator que dissesse a rubrica enquanto ela desenroscava e levantava a
tampinha de uma garrafa, como se o pescoço da personagem estivesse se esticando para
cima. Fazendo da tampinha a cabeça de Jenny e criando para ela um pesco comprido
invivel, ela realmente pareceu esticar-se “para cima muita alta”.
O exercício com as garrafas, além de trabalhar o personagem exilado do corpo do
ator, nos levou também a perceber que, uma vez que o personagem é transferido para um
objeto (uma garrafa), torna-se praticamente impossível criar para ele um perfil
psicológico”. Ou, ainda, tentar aproxi-lo de uma pessoa real. A rubrica de Stein, nesse
sentido, nos deu uma boa dica sobre como devemos lidar com as figuras que aparecem em
seus textos. Pois, em vez de indicar uma transformação emocional da personagem (Jenny
passa a se sentir poderosa, poderia ter sido uma alternativa, para Stein), a autora opta por
337
uma fisicalização dessa transformação, indicando um crescimento, ou, mais precisamente,
um estiramento físico da personagem, numa possível alusão à Alice de Lewis Carroll.
Mais uma vez, ao final do encontro, discutimos o problema da “representação”
quando se está diante das peças de Gertrude Stein. Lembramos que, na brincadeira do jogo
das cadeiras, os atores muitas vezes representavam que estavam lendo, quando deveriam
apenas ler em voz alta as páginas que comem a peça O rei ou alguma coisa”. Ou
representavam que estavam jogando, quando o jogo deve ser vivido, experienciado
realmente. Discutimos bastante até que encontramos uma maneira de, de certa forma, guiar
o trabalho dos pesquisadores dali por diante. Tomei como exemplo a peça “Três irmãs que
não são irmãs”, que estava sendo trabalhada por nós três encontros. Nesta peça os
personagens, num primeiro momento, espécie de prólogo, se apresentam e depois um deles
pergunta: “e agora o que nós vamos fazer com isso”. E a personagem Jenny responde: não
não o que s vamos fazer com isso não há nada para fazer com isso (...). Eu quero saber o
que nós vamos fazer agora. Agora o que s vamos fazer.” E então o personagem Samuel
tem uma idéia: “vamos jogar um jogo um jogo de assassinato.” Todos os outros concordam,
discutem ainda um pouco sobre quem vai matar e quem vai morrer sem, no entanto,
chegarem a nenhuma conclusão. E o jogo de assassinato começa. A fala de Samuel em
inglês é “let us play a play and let it be a murder”. A opção que fiz ao traduzir esta frase por
vamos jogar um jogo”, e não por vamos representar uma peça”, ou ainda “vamos fazer ou
montar uma peça”, ganhou um novo sentido. Inicialmente a minha preocupação era tentar
me aproximar o máximo possível da sonoridade e do jogo de palavras propostos por Stein
(play a play / jogar um jogo). A opção de substituir a palavra representar por jogar, que
tinha sido feita na tradução, passou a ser o eixo do trabalho nos Laboratórios Experimentais.
Sugeri aos atores que se relacionassem com os textos de Stein tendo sempre em
mente a idéia de jogo e não de representação. E se estávamos falando em jogo, sugeri
também que o se preocupassem com o personagem, com o quem”. Que conjugassem
menos o verbo “ser” e mais o verbo “estar”. E que acatassem como regra a fala da
personagem Jenny que diz que não nada a fazer com o que eles são, mas importa sim o
que eles vão fazer naquele momento. O conceito de jogo, instaurando, ainda, o tempo
338
presente, o momento presente, de maneira bem mais eficaz do que o conceito de
representação.
§
A fala citada da personagem Jenny, de “Três irmãs que não são irmãs”, permite
ainda refletir sobre a segunda questão que, desde o início dos encontros, deveria estar
norteando a pesquisa: a da identidade. “(...) nós somos três irmãs que não são irmãs e nós
somos três órfãs e vocês dois não são, não há nada a fazer com isso”. Como já foi visto no
segundo capítulo deste estudo, Gertrude Stein, em What are master pieces and why are
there so few of them”, diz que, para se criar uma obra-prima, é preciso não ter uma
identidade. No entanto, é justamente sobre identidade que uma obra-prima deve falar.
Nas suas peças, esta questão aparece de diversas maneiras. A começar pelo
problema de identidade sofrido pelos seus personagens, como ocorre com as três irmãs que
não são irmãs, por exemplo. O conflito de identidade das personagens já se apresenta
neste caso desde o título da peça.
Nos Laboratórios Experimentais, serão trabalhados outros textos nos quais a
autora reflete sobre identidade. Na peça “Quero que isto seja uma peça”, por exemplo,
Stein não explicita, em rubricas, quem está falando, embora se possam reconhecer pedaços
de diálogos ao longo da peça. Mas são vozes sem corpo, sem identidade fixa. Uma peça”
é uma peça curta que “começa com um homem morto, uma mulher morta e um cachorro
morto mas eles não estão mortos porque a peça continua”. A esta frase se seguem
perguntas do tipo: “se o homem está morto a peça continua”. A questão aí se volta para a
condição do próprio personagem teatral. O fato de estar vivo ou morto, o questionamento
mesmo da sua existência, definindo a continuidade ou não da peça. Na peça “Por favor
não sofra”, outra que também será trabalhada em aula, embora Stein indique em rubrica,
entre parênteses, alguns nomes de personagens, estes invariavelmente falam na terceira
pessoa e não na primeira do singular. De modo que ficamos sem saber se quem fala é o
personagem que está indicado nos parênteses ou é algum outro que falaria sobre eles.
Parece haver uma dissociação entre voz e corpo. Para dar, ainda, um último exemplo, a
339
personagem Margarida Ida e Helena Anabela da peça Doutor Faustus liga a luz”, além
de apresentar, no seu nome (são, na verdade, quatro nomes juntos), uma pluralidade de
identidades que se unem num corpo, repete, por diversas vezes, logo em sua primeira
entrada, seu próprio, e quádruplo, nome e o lugar onde ela se encontra. Como se
precisasse se convencer a todo o momento de quem ela é e de onde ela está.
Este último exemplo serve ainda para comentar a terceira questão que deveria ser
trabalhada no decorrer do curso. O tempo presente. A insistência de Margarida Ida e
Helena Anabela em dizer a todo o momento quem ela é e a repetição de frases tais como
“eu sou eu” e “eu estou aqui” fazem com que a personagem se apresente sempre num
tempo presente que não pressupõe passado nem futuro. Ela “existe” enquanto fala e a sua
fala constrói o presente da cena a cada palavra pronunciada. Há, é claro, outros recursos,
mencionados, usados por Stein para manter o leitor/espectador “preso” a este presente,
como quem assiste o a uma peça que tem começo, meio e fim, mas como quem
contempla uma paisagem que não tem começo nem meio nem fim e não conta nenhuma
história. Vale lembrar ainda que em What are master pieces and why are there so few of
them”, Stein comenta ainda que uma obra-prima deve falar não sobre identidade, mas
também sobre o tempo. O tempo deve ser tema de uma obra-prima.
Muitas vezes a escrita de Stein se volta para o ato de escrever (como na peça “for
the country entirely”, por exemplo, toda ela escrita em forma de cartas) ou para o
momento em que o texto foi escrito. Sobre essa referência ao presente da escrita, uma
passagem relevante do texto “Averdadeira’ obra de Gertrude Stein”, de Ulla Dydo
2
:
Certo número de pequenos cadernos de bolso, de teor privado,
sobreviveu entre os manuscritos de Gertrude Stein (através dos anos deve
ter havido muitos mais que não foram preservados). Nestes cadernos ela
às vezes escrevia seções inteiras de textos, hoje identificados, nos quais
ela estava trabalhando, junto com listas de coisas para fazer ou para
comprar, lugares para visitar e pequenos bilhetes de amor para Alice B.
Toklas, aos quais Toklas às vezes respondia. Mais tarde, tais partes dos
textos eram inseridos nos cadernos-manuscritos por Stein ou Toklas. Os
bilhetes e as listas às vezes adicionam contexto à obra – onde ela estava,
2
Ulla Dydo, professora emérita da Universidade da Cidade de Nova York, tem trabalhado com os
manuscritos de Gertrude Stein conservados na Biblioteca Beinecke da Universidade de Yale.
340
o que estava acontecendo, visitas inesperadas, cartas escritas, o tempo.”
(DYDO, U. 2002)
Ulla Dydo anota ainda que a mudança de um caderno de anotações para outro
afetava o texto. Assim como as capas dos cadernos e a diagramação da página (Stein
escrevia muitas vezes em cadernos de páginas quadriculadas) também interferiam na
forma e nos temas de seus textos. O momento da escrita ressurge, deste modo, a cada
leitura de um texto de Stein. E, no caso de se pensar na encenação de suas peças, o
momento presente da cena deve, a meu ver, ao mesmo tempo, refletir o momento presente
do ato da escrita. E também o presente do trabalho de experimentação que levou àquela
prática. Revelar o presente é uma forma de o resultado cênico expor o método de ensaios e
espelhar a escrita cênica ali em processo. E, ainda, sublinhar a relação dessa escrita
nica com o seu tempo, com a contemporaneidade. Exercitar hoje possibilidades de
encenação de Gertrude Stein é, deste modo, para mim, não uma tentativa de
aproximação da cena contemporânea, como também uma forma de refletir critica e
teatralmente sobre ela.
§
Sexto encontro 18 de maio de 2004
Neste encontro faltaram alguns dos pesquisadores, então não foi possível colocar em
prática o que tinha sido programado: exercitar cenas da peça “Três irmãs que não são irmãs”
sem as garrafas e sim com os próprios atores apresentando os personagens. Achei que seria
interessante observar se a maneira de abordar os personagens mudaria depois da experiência
com as garrafas.
Passamos então para a segunda parte da programação para aquela aula. A leitura de
duas peças que ainda não tinham sido trabalhadas nos encontros, mas que eu pretendia
abordar durante os Laboratórios: “Por favor não sofra” e “Uma peça. Conversamos sobre
as duas. Expus as minhas idéias cênicas para as duas peças. Para “Por favor não sofra” a
idéia seria a de criar uma atmosfera de romance policial. A peça começa com uma série de
apresentações de personagens que se configuram como afirmações na terceira pessoa, como
341
neste exemplo: Ele fala inglês muito bem. Ele tem um defeito na fala. Ele gosta de couve-
flor e ervilhas verdes”. Ou então são perguntas que tentariam delinear o personagem: “Onde
ela nasceu e com quem estudou. Ela conhecia a Marquesa de Bowers então ou não”. Ou
ainda um outro personagem fala na primeira pessoa: Esta é a minha história. Eu trabalhei
num café em Rennes”. Este icio, que, na verdade, dura quase metade da peça, me levou a
imaginar uma cena de investigação. O tema da peça poderia ser a busca por um assassino, se
houvesse algum morto, o que não há. Mas a investigação sobre quem são as figuras que
aparecem na dramaturgia. Neste dia, não fizemos nenhuma experimentação prática com base
nesta idéia, apenas conversamos sobre ela. E partimos para a leitura de Uma peça”, um
texto bastante curto, de duas páginas e meia, cujo início eu vou citar aqui, para depois
explicitar a idéia de encenação para esta peça:
Uma peça.
Começa com um homem morto e uma mulher morta e um cachorro
morto mas eles não estão mortos porque a peça continua.
Se o cachorro está morto a peça continua.
Se o exército está morto a peça continua.
Se o cachorro não está morto a peça continua.
Não mesmo não com certeza não.
Peça 2
Se o cachorro não está morto e a peça não continua o homem está
morto.
Sim o homem esmorto.
Se o homem es morto e a peça não continua será que ela
continua. Sim continua.
Se a mulher está morta e o cachorro está morto e o homem está
morto a peça continua.
Certamente não a peça não continua.
O que isso significa.
Certamente não a peça não continua.
isso significa que ela não continua no palco.
Certamente não não significa certamente não não no palco.
nesta peça uma espécie de diálogo entre peça 1” e “peça 2”, ao qual se juntam
mais adiante, no texto, “peça 3”, peça 4e assim por diante. Mas há ainda outros diálogos
que se dão no interior das falasde “peça 1” e “peça 2”. A idéia de encenação para esta
peça seria criar vários palquinhos nos quais se representariam as peças 1, 2, 3 e assim por
342
diante. Atrás de cada palquinho um ator manipularia bonecos que seriam o homem, a
mulher, o cachorro e o exército. Haveria também uma pequena platéia para estas
representações. Seriam eles que fariam as perguntas, respondidas pelos manipuladores dos
bonecos. Também não chegamos a pôr em prática esta idéia. Conversamos sobre ela e
ficamos de pensar como realizá-la: que tipo de bonecos poderíamos usar, como
confeccionar os palquinhos etc.
Ainda neste encontro ouvimos três gravações. Uma delas foi a de dois retratos de
Stein (“A valentine to Sherwood Anderson” e If I told him. A completed portrait of
Picasso”) lidos pela própria autora. A audição destas gravações nos levou a pensar na
questão da repetição das palavras e de como esta repetição acaba por mudar o sentido delas.
As outras duas gravações escutadas foram as de duas leituras de peças de Stein, realizadas,
ambas, na Fundação Casa de Rui Barbosa, e organizadas por mim. A atriz Ângela Rebello,
que havia participado de uma das leituras, e que estava naquele momento participando dos
laboratórios, comentou sobre a questão do ritmo que seria intnseco a alguns textos de
Stein, como na peça “Contando os vestidos dela”, por exemplo, lida por mim, pela própria
Ângela e pela atriz Márcia Cabrita, na primeira leitura. Encerramos o encontro com uma
rápida conversa sobre a relevância do ritmo quando se está diante dos textos steinianos.
Sétimo encontro 25 de maio de 2004
Começamos este encontro partindo para os exercícios práticos. Primeiro fizemos
um aquecimento com as bolinhas, semelhante ao que já havíamos feito na terceira e na
quarta aulas, com a diferença que, desta vez, cada ator poderia escolher a frase que quisesse
de qualquer uma das peças de Stein que já tinham sido lidas por nós até aquele momento. O
resultado foi que o que se ouvia e via eram os atores andando ou correndo pelo espaço,
jogando as bolas uns para os outros e dizendo as frases decoradas previamente, que haviam
sido recortadas de peças diversas de Stein.
Partimos então para o segundo exercício. Pedi aos pesquisadores que
individualmente tentassem pensar em espacializações para algum trecho de alguma das peças
343
de Stein. Cada um deveria conceber sua própria idéia, mas teriam a opção de fazer a cena
sozinhos ou de convidar outros atores para participarem também.
Em alguns exercícios, os atores tentavam encaixar o texto em uma partitura física,
uma seqüência de movimentos. Ou seja, qualquer texto poderia ser dito ao executar aqueles
movimentos. Não havia uma idéia de espacialização do texto, mas sim a aplicação de uma
técnica (a de construir partituras sicas) para resolver o “problema” da falta de sentido
dos textos steinianos. Conversamos, ao final da aula, sobre isso.
Por outro lado, dois exercios chamaram a atenção: num deles os atores
desrespeitaram um pouco as regras e se uniram para bolarem juntos a cena. E, ao invés de
trabalharem com um trecho de uma das peças, trabalharam com quatro ou cinco frases de
várias peças. O exercício, no entanto, obteve um resultado muito interessante. Bolado pelos
atores Ângela Rebello e Davi Kaptzki, a cena levava o título de o recomeço / coro /
identidade”. Quatro atores dispostos no espaço realizavam uma ação qualquer: um falava no
telefone celular, um escrevia, outro lia, outro amarrava o cadarço do sapato. Um de cada
vez dizia a sua fala e em seguida caía morto. Quando os quatro estavam no chão mortos, um
por um se levantava, se encaminhava para o centro e, voltado para a platéia, dizia “eu sou eu
porque meu cachorrinho me conhece”. Em seguida, repetiam a mesma frase em coro e
voltavam às posições e ações originais. A cena então recomeçava e se repetia ao infinito.
O outro exercício interessante, bolado pela atriz Letícia Medella, abordava a peça “O
Rei ou alguma coisa: convida-se o público a dançar”. A atriz misturou os cartões nos quais
as páginas que comem a peça estavam escritas e deixava-os cair no chão de maneira
estabanada. Em seguida a personagem tentava organizar os cares e a cada página que lia,
escrevia um trecho ou uma palavra no seu corpo. Achei muito interessante o gesto de
escrever no corpo trechos da peça, pois remete ao ato da escrita, gesto este que é muitas
vezes intrínseco aos textos de Gertrude Stein. Pedi, então, à atriz, que voltasse a fazer a
cena no encontro seguinte, sem se preocupar com a personagem estabanada que derruba os
cartões e tenta reorganizá-los. Pedi que deixasse de lado a personagem e desse ênfase à
leitura dos textos escritos nos cartões espalhados pelo chão e à escrita de partes deles em
seu corpo.
344
Ainda houve, num dos exercícios, pensado pelo ator Christian Landi, um
procedimento interessante. O ator pediu que outra atriz lesse em voz alta frases de uma peça
e ele em seguida repetia para a platéia a mesma frase em inglês. Como se as frases em
português precisassem de uma volta à sua língua de origem para serem compreendidas pelo
público.
Finalizei este encontro pedindo aos atores que pensassem e preparassem, sozinhos
ou em grupo, ações simples para a peça “Por favor o sofra”. Dei algumas idéias: pessoas
tomando chá, olhando quadros numa parede, por exemplo. A idéia seria juntar essas ações
aos diálogos da peça, ainda tendo em mente a criação de uma atmosfera de cena de
investigação.
Oitavo encontro primeiro de junho de 2004
Os exercícios que tinham sido pedidos no encontro anterior não foram apresentados
neste dia. Os pesquisadores precisaram de mais tempo para a preparação, para ensaios e até,
em alguns casos, para alguma produção de cenários, adereços e figurinos, para a
materialização de suas idéias. Trabalhamos então com o texto Uma peça”. Lemos mais uma
vez e partimos para tentativas de encenação da idéia que havia sido proposta por mim no
sexto encontro. Percebemos que precisaríamos de mais atores para realizar a idéia original
que era a de termos vários palquinhos. Optamos por apenas dois palquinhos que
representariam “peça 1” e “peça 2”. A atriz Ângela Rebello (“peça 1”) tentou montar uma
estrutura com uma mesa, uma cadeira e uma jaqueta de modo que o público não a visse.
Visse apenas os bonecos (a atriz trabalhou neste dia ainda com garrafinhas de água como
bonecos). O set escolhido pelo pesquisador David Kaptzki para “peça 2” foi inteiramente
diferente. O ator se colocou atrás de um baú aberto, de onde manipulava, usando cadarços
de sapatos como fios, bonecos de pano nordestinos, trazidos por Anília Francysca,
transformados em espécies de marionetes. O fundo do baú seria como um esconderijo ou
uma coxia para quando os bonecos estivessem fora de cena”.
Dividimos as falas da peça da seguinte maneira: as perguntas eram feitas pelos
manipuladores dos bonecos. E as respostas dadas pelo público composto pelos demais
345
atores. Quando começavam a aparecer as peças 3, 4, 5 etc., cada ator que compunha a
platéia tomava a cena para si, assumindo as falas” destinadas àquelas peças. Pensamos que
cada um deles poderia ter nas mãos um objeto que remetesse à idéia de palco ou de teatro:
um livro pop up, por exemplo, um chapéu de onde se pudesse tirar algo etc.
Trabalhamos toda a primeira metade do encontro nesta cena. Depois partimos para a
leitura da pa “A questão da identidade” e pedi aos pesquisadores que pensassem em idéias
nicas para trechos desta peça. Duas das cenas realizadas pelos atores foram interessantes.
Coincidentemente, um mesmo trecho da peça foi trabalhado por dois grupos diferentes. Cito
o trecho:
Ato I Cena I
Um cachorro dessa vez se engasgou por ele mesmo só que o
engasgo parece com um espirro e isso é incômodo.
Quando um cachorro é jovem ele parece ser um cachorro muito
inteligente.
Mas depois bem depois o cachorro fica velho.
Lágrimas m aos olhos mas não ao piscar.
E então o cachorro perambula por ele conhece quem ele conhece
mas isso faz alguma diferea.
Uma peça é exatamente isso.
Aqui está a peça.
Peça I Ato I
Como vai você o que vo é.
O grupo formado por Ângela, Letícia e Christian pensou a cena da seguinte maneira:
As duas atrizes, sentadas em cadeiras, liam a primeira parte do trecho (até mas isso faz
alguma diferença”) como se o estivessem lendo pela primeira vez. Sem dar quase nenhuma
entonação. Christian então entrava, apontando para elas e dizia: uma peça é exatamente
isso. / aqui está a peça”. As atrizes então subiam nas cadeiras em que estavam sentadas e
liam a última frase num tom mais teatral. Tomando atitude de quem está num palco,
atuando. O outro grupo, na verdade uma dupla, composta por Alia Francysca e Gisela
Munk, utilizou duas garrafinhas (que representavam cachorros) e um baú sobre o qual as
garrafinhas de água eram manipuladas.
Duas idéias tão diferentes para um mesmo trecho de uma pa me levaram a
considerar a possibilidade de apresentarmos no espetáculo, que encerraria a série de
346
encontros, repetições de cenas que seriam representadas de modos diferentes. De modo que
a idéia de Stein, de begining again”, de novos recomeços, e ainda de experimentar um
mesmo tema em diversas formas, se traduziria, na encenação, nas inúmeras possibilidades de
se ler cenicamente uma mesma peça, ou trecho dela.
Terminamos este encontro conversando sobre isso. E lembrando que um dos
principais objetivos dos laboratórios experimentais era justamente buscar possibilidades
nicas para os textos de Stein. Como os textos, e era o caso deste, raramente possuíam
rubricas que, de certa forma, guiassem a encenação, os dois grupos puderam propor idéias
tão distintas que a repetição por si só as tornava interessante.
Nono encontro 8/06/04
O exercício que tinha sido pedido na sétima aula foi apresentado neste encontro.
Três grupos preparam versões diferentes para trechos da peça Por favor não sofra”. Passo
à descrição de algumas destas apresentações.
O primeiro grupo, composto pelos pesquisadores Renato Consorti, Christian Landi,
Letícia Medella e Angela Rebello, preparou uma cena para as três primeiras falas da peça.
As vozes de cada um dos personagens foram gravadas numa fita cassete. Os três
personagens começavam a cena sentados, cada um numa cadeira, virados para a platéia.
Dois deles eram vestidos, um de cada vez, pela atriz Ângela Rebello, enquanto suas falas
saíam do toca fitas, acionado pela mesma atriz. O terceiro personagem vestia-se sozinho,
sem a ajuda de Ângela. Ao final desta parte da cena, os atores saíam de suas cadeiras e se
sentavam no chão, mais perto do público, diante de uma toalha onde estavam dispostos
pratos de comida que eram ingeridas pelos atores com as mãos, de forma escatológica.
Enquanto eles comiam, no gravador, ouvia-se a voz da atriz Ângela Rebello dizendo frases
da peça que mencionam alimentos. Os próprios atores, além de se dedicarem à ação de
comer, também diziam frases do texto que já tinha sido ouvidas em off anteriormente.
A pesquisadora Anília Francysca trouxe uma série de slides que ela mesma projetava
numa das paredes brancas da sala, enquanto Gisela Munk, usando a luz fraca que vinha da
janela, lia as três primeiras falas dos três personagens que se apresentam no início da peça.
347
Por sugestão da professora Sylvia Heller, presente neste encontro, foi feito um
exercício de improvisação no qual todos os atores liam alternadamente toda a peça Por
favor não sofra” tentando encontrar frestas de luz na sala escura, iluminada pelos slides que
eram projetados na parede por Anília. Os atores passaram a jogar com a iluminação
fornecida não só pela projeção dos slides como também pelas frestas de luz que vinham das
janelas (cobertas com pano preto) e das duas portas da sala.
Ainda neste encontro, foi trabalhada a cena de “Uma peça”. Desta vez a
pesquisadora Gisela Munk trouxe uma maquete que serviu de palco para os bonecos
playmobil trazidos e utilizados pela atriz Letícia Medella para fazer peça 1”, enquanto Davi
continuou trabalhando com os bonecos de pano e com o baú, tentando criar cnicas de
manipulação para bonecos que não foram, assim como os playmobils, originalmente feitos
para serem manipulados.
Voltamos, neste encontro, a trabalhar com a peça “Um rei ou alguma coisa”.
Fizemos a dança das cadeiras, tentando encontrar outras formas para o mesmo jogo e
Letícia repetiu a cena na qual ela escrevia no corpo frases desta mesma peça. Fiquei
pensando como essas duas maneiras de espacialização da peça poderiam ser mescladas.
Ao final do encontro, pedi aos atores que tentassem lembrar o que já tinha sido
trabalhado. E o que eles tinham achado interessante até aquele momento nos encontros.
Décimo encontro 15 de junho de 2004
Começamos conversando sobre os exercios que já tínhamos feitos até então. Os
atores se lembravam, e comentaram algumas cenas que eles acharam interessantes. A
pesquisadora Luana trouxe uma escie de pequeno diário no qual ela elencava alguns
resultados obtidos pelos exercícios que foram feitos e algumas das conversas que estes
exercícios suscitaram.
Davi trouxe, rascunhada num papel, uma idéia para a peça “por favor não sofra”. Os
atores deveriam ocupar, em pequenos grupos, ou sozinhos, todo o espaço da sala. Cada
grupo trabalharia com um trecho da peça aliado a uma ação. Toda a cena aconteceria
simultaneamente. O público deveria, então, caminhar pela sala escolhendo o que assistir. A
348
idéia da simultaneidade foi pensada por Davi, tomando como base a noção de teatro como
paisagem, exposta por Gertrude Stein em Plays. A sala inteira, ocupada pelos pequenos
grupos, formaria uma paisagem pela qual os espectadores poderiam caminhar e escolher o
que ver. Não haveria, portanto uma ordem cronológica a seguir. Cada espectador
construiria na sua caminhada uma ordem. Desta maneira nós estaríamos, de certa forma,
desrespeitando a estrutura do texto steiniano, o que, naquele momento, era para mim,
motivo de preocupação.
De todo modo, resolvemos, num improviso, experimentar a idéia de Davi. As cenas
simultâneas ocorreram da seguinte maneira: Letícia, sozinha preparou uma seqüência de
movimentos. Enquanto ela arrumava livros e outros objetos numa cadeira, ela dizia um
trecho da peça. Depois ela parava e pedia que os espectadores ali presentes ouvissem uma
gravação feita por ela mesma no dispositivo de gravação de um telefone celular. A idéia
inicial dela seria gravar esta voz num gravador que todos pudessem ouvir ao mesmo tempo.
Como não foi possível, tive a idéia de usar o telefone. Desse modo cada espectador escutava
sozinho o pequeno trecho gravado. Os outros esperavam. Esse tempo de espera, embora
não tenha sido proposital, tornou a cena interessante do ponto de vista do ritmo porque
havia um contraste entre a seqüência de movimentos executados pela atriz enquanto dizia o
texto e o tempo, quase morto, de espera, da própria atriz e dos outros espectadores,
enquanto um tinha o telefone colado ao ouvido. Interessante observar ainda que a
gravação tenha duração de apenas 28 segundos e, no entanto, a sensação, de quem estava na
espera para ouvir, era a de um tempo muito mais extenso.
Mais outras duas cenas foram preparadas para esse exercício: o próprio Davi
Kaptzki usou uma das falas do personagem Conde Daisy Wrangle para criar uma cena na
qual o personagem fala ao telefone enquanto parece ocupado em procurar algo entre textos
e papéis espalhados ao seu redor. O uso do telefone e, portanto, a presença de um
interlocutor, criado pelo ator, para o conde, fez sua fala, composta de frases muitas vezes
sem a menor conexão, parecer cheia de sentido, uma vez que havia um texto oculto, dito
pelo interlocutor ao telefone, que naturalmente contextualizava as frases soltas dentro de
uma conversa telefônica.
349
A terceira cena se aproveitava da primeira fala da Senhora Marchand, que dá início à
peça. A fala foi gravada num gravador portil de baixa potência que era acionado pela atriz
Luana enquanto Anília vestia um cabide como se estivesse, neste ato de vestir, montando a
personagem. O interessante deste exercício era que a personagem fora colocada fora do
corpo da atriz, num cabide de roupa à sua frente, e, ainda, que a voz da personagem viesse
de um gravador acionado por outra atriz, de modo que a personagem ficou fragmentada em
quatro: voz off acionada por uma das atrizes, cabide sendo vestido por uma outra atriz.
Nenhuma das duas atrizes chegava a assumir a personagem por inteiro, mas juntas
apresentavam, de forma fragmentária, a personagem ao público.
Com estas idéias fizemos algumas experimentações: em primeiro lugar, cada um dos
três grupos escolheu um espaço delimitado na sala para se apresentar. Assistimos todos a
cada uma das cenas separadamente. Em seguida, experimentamos a idéia original de Davi - a
de que as cenas fossem apresentadas simultaneamente, e que o público, no caso, éramos
apenas eu e a aluna do Departamento de Teoria, Adriana, percorresse a sala escolhendo o
que quisesse ver.
Depois desse exercício, que tomou a maior parte do tempo da aula, tivemos uma
conversa sobre a cena preparada por Davi. Expliquei ao ator que o fato de as frases
parecerem desconexas, na fala do Conde, era proposital e estrutural ao texto de Stein e que
eu não tinha como objetivo “resolver” o que parecia para o ator ser um problema”. Cheguei
a exemplificar que, se o telefone fosse utilizado como mero objeto cênico, mas que as frases
fossem ditas sem interrupções que sugerissem a figura de um interlocutor, o exercício teria
obtido um resultado mais próximo aos objetivos que queríamos alcançar, porque o telefone
seria descaracterizado como telefone e a fala do Conde não teria perdido sua característica
de desconexão.
Depois que os atores foram embora, a aluna de Teoria, Adriana, conversou comigo
sobre a necessidade que ela via de talvez se fechar um roteiro para o espetáculo que seria
apresentado ao final do semestre. Ela observou ainda que os atores, em sua opinião,
precisavam se concentrar, naquele momento, nos textos com os quais eles iriam trabalhar no
espetáculo. Achei também que era o momento de se construir um roteiro a partir do material
350
trabalhado durante esses dez primeiros encontros. Não porque os atores precisavam, sim,
se aprofundar no texto, mas também porque teamos muito pouco tempo para ensaiar.
___________________________________________________________
Durante a semana seguinte, elaborei uma primeira versão do roteiro do espetáculo
que apresentaríamos ao final do período de experimentações. Este roteiro foi pensado
sempre tendo em mente os objetivos originais dos laboratórios experimentais e,
principalmente, a idéia de que este espetáculo teria que ser necessariamente um espelho
daquilo que estava sendo trabalhado nos encontros com os atores. Minha proposta, que,
aliás, já tinha sido exposta a eles, era a de que o resultado final tivesse como preocupação
primeira ser uma amostra do estágio em que estávamos na pesquisa. Se os Laboratórios
tivessem continuidade, certamente continuaríamos investigando formas de espacialização
para as peças de Stein com as quais estávamos trabalhando e continuaríamos a abrir um
leque infinito de possibilidades de encenação. Para esta primeira versão do roteiro organizei
uma seleção de cenas que tinham sido criadas pelos pesquisadores durante os encontros.
Acrescentei apenas uma peça que ainda não tinha sido trabalhada pelo grupo: o texto
Quero que isto seja uma peça” abriria o espetáculo. Pensei em organizar o espaço dispondo
cadeiras nas quais o público se acomodaria contra duas das paredes da sala enquanto os
atores estariam posicionados contra as duas outras paredes da sala. O centro ficaria vazio,
preenchido apenas pelas vozes dos atores, durante toda a primeira peça a ser apresentada.
No desenho abaixo as estrelas representam as cadeiras e os círculos, os atores.
351
Nesta primeira versão do roteiro a ordem das cenas seria a seguinte:
1. “Quero que isto seja uma peça”
2. Algumas rodadas da dança das cadeiras (Exercício de espacialização
da peça O Rei ou alguma coisa. Convida-se o público a dançar” experimentado
nos primeiros encontros dos Laboratórios.).
3. “Uma peça”. Encenação da peça inteira como já havíamos
experimentado nos encontros dos dias 1º e 8 de junho.
4. Mais algumas rodadas da dança das cadeiras, que se concluiriam com
a cena da Letícia Medella escrevendo em seu pprio corpo trechos da peça
(cena apresentada pela própria atriz num dos encontros).
5. Três versões para o início da peça “Por favor não sofra”. Na primeira
versão trabalharíamos com os slides acionados por Anília Francysca, enquanto os
demais atores tentariam ler a peça procurando frestas de luz. A segunda versão
seria a que foi apresentada por Christian, Renato e Letícia, descrita
minuciosamente no nono encontro. A participão de Ângela Rebello (aluna
do curso de Teoria do Teatro) não seria possível, e seria também cortada a parte
final da cena, na qual os atores faziam uma espécie de piquenique. A terceira
352
versão seria a idéia pensada por Davi e experimentada no 10º encontro, na qual
cenas diferentes aconteceriam simultaneamente.
6. Voltaríamos a trabalhar com a dança das cadeiras e com a peça Um
Rei ou alguma coisa
7. Duas veres para uma mesma cena de A questão da identidade.” As
duas versões foram apresentadas e estão descritas no sétimo encontro.
8. Provavelmente no escuro os atores diriam as frases curtas da peça
Uma cortina” enquanto se preparariam para a última cena do espetáculo.
9. Cena criada pelos atores Ângela Rebello e Davi Kaptzki, apresentada
no dia 25 de maio e que levava o título de “o recomeço / coro / identidade”.
_________________________________________________________
Décimo primeiro encontro 22/06/04
Preparei para este encontro a apresentação da primeira versão do roteiro elaborada
por mim. E, ainda, trabalhar as duas peças, nele incldas, que não tinham sido exploradas
pelos pesquisadores. Experimentamos fazer uma leitura da peça que daria icio ao
espetáculo - “Quero que isto seja uma peça”. As falas haviam sido divididas por mim,
então, repetimos algumas vezes a proposta que era a de dizer o texto em pé, três atores em
cada extremo da sala, preenchendo o espaço vazio com suas vozes.
Percebi que os atores, talvez pela pouca intimidade com aquela peça em particular
tinham dificuldade em dar leveza ao texto, em perceber o humor que pode ser extrdo do
ritmo, da musicalidade intnseca ao texto, mesmo estando ele convertido para o português,
em tradução de Julio Castañon Guimarães. Enfrenta-se ainda o problema da busca por um
sentido, por alguma história que talvez se pudesse encontrar nas entrelinhas. Preocupados
com isso, os atores resistem à idéia de jogar, de brincar com as palavras e com o ritmo. Até
mesmo com o aparente não-sentido da seqüência de frases. E de encontrar, neste não-
sentido, graça e humor. Ou de rir do estranhamento que o texto nos causa.
353
Depois deste exercício, ficamos trabalhando apenas com os atores Christian Landi e
Luana Dias, que experimentaram exaustivamente, depois de decorarem as poucas frases da
peça Uma cortina”, de dizê-las, no escuro, de diversas maneiras. Neste exercício, quase
inteiramente guiado pela professora Sylvia Heller, foram trabalhados os seguintes temas:
Repetição, eco.
Mistura de línguas: português e inglês.
Ritmos diversos para a enunciação das palavras: falar em
mera lenta ou como se estivessem fazendo exercícios vocais, dar longas
pausas entre uma frase e outra, alternar ritmos ou dizer as falas da peça
como se se tratasse de uma lista de compras.
Estas foram algumas das instruções dadas por mim e por Sylvia aos atores enquanto
eles repetiam as falas e se movimentavam pelo espaço da sala.
Sylvia Heller teve uma idéia diferente da minha sobre a organização espacial
proposta por mim para o espetáculo. que estaríamos dispondo o público em cadeiras, e
que o segundo momento da peça sugeriria o jogo da dança das cadeiras, sua idéia era a de
colocar as cadeiras no centro da sala, dispostas exatamente como no jogo. Os atores
atuariam ao redor das cadeiras durante a peça “O rei ou alguma coisa”. Gostei da idéia uma
vez que, colocando o público no centro da sala, o espaço da cena seria descentralizado e
estaríamos trabalhando deste modo com a idéia de exílio, de estar fora do centro. Idéia que
norteia toda a minha pesquisa. Discutimos essa nova proposta de organização espacial e
ficamos de pensar de que maneira tiraríamos o público do centro da sala para dar início à
cena dos slides (Por favor não sofra”). Esta movimentação do público no meio do
espetáculo me desagradou a prinpio, mas, em seguida, achei que seria interessante, já que
estávamos trabalhando com a descentralização dos atores, tirarmos também o blico de
suas cadeiras, do seu centro e dispô-lo em outro lugar. Assim, estaríamos ora centralizando
o público e descentralizando os atores, ora descentralizando o público e centralizando os
atores.
354
Décimo segundo encontro 29 de junho de 2004
Primeiro ensaio da prática de montagem.
Cheguei à sala para começar a trabalhar às 16h30min. Não havia ninguém, a
princípio. Letícia chegou a seguir e comecei, então, a mostrar a ela as idéias para o roteiro
do espetáculo. Mostrei os desenhos que eu tinha feito e que descreviam a disposição
espacial em cada momento do espetáculo. Sugeri que, talvez, ela pudesse ser a atriz
responsável por tirar o público das cadeiras e movê-las até ficarem contra as paredes da sala.
O público seria deslocado, do meio para a parede logo as a segunda rodada da dança das
cadeiras, que emendaria na cena em que Letícia escreve frases da peça em seu pprio
corpo. Daí o interesse de ser ela a tirar o público de seu assento, usando a desculpa de que,
embaixo de cada cadeira, havia escrita uma frase que ela precisava ler. Esta foi a primeira
solução encontrada por nós para movimentar o público. Depois, quando já estávamos
ensaiando com as cadeiras, percebemos que a melhor coisa a fazer era deixar a Letícia
realizar a cena dela enquanto os outros atores pediriam ao público que se levantasse e
levariam as cadeiras para as paredes da sala. A movimentação do público aconteceria
simultaneamente à cena da Letícia, até que só ela ocupasse o espaço sozinha.
Um pouco mais tarde chegaram Davi e Christian. Christian trouxe a notícia de que o
pesquisador Renato Consorti, por motivos de trabalho, não iria mais poder participar da
prática de montagem e estaria deste modo abandonando o curso. Esperamos ainda a
chegada de Anília e de Luana. Esta última conseguiu estar às 18h30min. Combinamos
que os ensaios começariam sempre às 18h, uma vez que é este o horário em que todos os
atores podem estar presentes. O horário entre 16h30min e 18h ficaria então reservado para
se ensaiarem cenas separadas, ou para ser ocupado pelos atores que quisessem chegar mais
cedo para trabalharem, sozinhos, o que quisessem.
Começamos a ensaiar um pouco antes de Luana chegar. Colocamos algumas
cadeiras no centro da sala. Repetimos várias vezes Quero que isto seja uma peça”. Eu
mesma me encarreguei de substituir, neste início, a atriz Ângela Rebello
3
, que esteve ausente
3
Ângela era aluna do departamento de teoria e, estava cursando a disciplina como optativa e o como
Prática de Montagem. Portanto, não era obrigada a participar da montagem do espetáculo como atriz. No
entanto, paralelamente aos encontros regulares na UNIRIO, me reuni com ela para trabalhar o monólogo da
355
dos últimos encontros, mas que deveria participar do espetáculo. Seguimos o roteiro até a
cena dos slides, ou seja, até o momento em que o público deveria ser deslocado. Este
primeiro ensaio foi bastante proveitoso. Trabalhamos cada segmento com cuidado.
Principalmente a cena inicial e “Uma peça”, que é feita toda com bonecos. Davi foi
desenvolvendo uma técnica interessante para manipular bonecos que não foram,
originalmente, confeccionados para ganhar vida como marionetes ou bonecos de luva. Além
disso, ele acrescentou mais um boneco que é um personagem-narrador. A presença dos
bonecos ajudou o ator a trabalhar o texto com mais leveza e humor. Letícia também criou
momentos interessantes com os bonecos playmobil (que ela mesma trouxe). Principalmente
o final, deixando sozinha no palquinho a boneca playmobil mulher.
O jogo da dança das cadeiras parece ser um momento de grande diversão para os
atores. E este divertimento contagia quem assiste à brincadeira, mas o texto fica em segundo
plano. o é essa a intenção. A intenção é que haja uma quebra de ritmo quando há a
parada para a leitura das páginas que comem a peça. E que a leitura seja também para eles
um momento de prazer. que um outro tipo de prazer totalmente diferente daquele da
corrida frenética quando a música pára. Falta aos atores agora encontrar esse gosto pela
leitura de cada uma das páginas. Pedi a eles que tomassem cuidado com a leitura simultânea
(duas pessoas lendo, juntas, páginas diferentes). Talvez fosse melhor que isso não
acontecesse.
Ficou decidido que a cena da escrita no corpo seria feita por Davi e Letícia. Os
outros atores catariam as páginas espalhadas pelo chão depois da dança das cadeiras e
poderiam ler em voz baixa alguns trechos delas. Enquanto isso, Davi e Letícia estariam
pedindo a cada um dos espectadores que se levantassem de suas cadeiras. Depois vimos que
essa tamm não era a melhor solução para mover as cadeiras e o público de lugar
Terminamos o ensaio neste ponto.
__________________________________________________________________
personagem Margarida Ida e Helena Anabela, da peça “Doutor Faustus liga a luz”. Apesar de talvez não
poder participar da montagem, a atriz concordou em preparar esta cena e apresen-la para a turma, como
trabalho final do curso. Poucas semanas antes da estréia, porém, Ângela manifestou interesse e
disponibilidade em participar do espetáculo.
356
Sobre a saída de Tato Consorti, para mim ficou uma questão: se era possível realizar
o roteiro com menos um ator, se teamos que mudar coisas aqui e ali, como a segunda
versão para Por favor não sofra”, por exemplo, ou se ainda valeria a pena chamar alguém
para substit-lo.
Decidi, então, convidar Fernanda Donini para participar do espetáculo como atriz
(numa tentativa de substituição do pesquisador Tato Consorti), e para ser ainda minha
assistente de direção e de produção. Durante a semana seguinte, antes do dia do ensaio,
conversei algumas vezes com ela. Informei-a a respeito do trabalho e dei alguns textos de
Stein para que ela os lesse (além das pas incluídas no roteiro do espetáculo).
Conversamos, em reuno, sobre o roteiro e sobre algumas soluções possíveis para o uso da
luz no espetáculo.
A participação de Ângela Rebello foi confirmada nesse período. Inseri algumas
entradas da personagem Margarida Ida e Helena Anabela no espetáculo. Ela entraria em
cena dizendo partes de seu monólogo, pontuando o espetáculo, ligando as seqüências de
cenas e instaurando um ritmo diferenciado.
Além das entradas de Margarida Ida fizemos mais duas modificações no roteiro.
Decidimos que haveria duas rodadas da dança das cadeiras. No lugar da terceira rodada
pensei em usar o jogo de bolas com falas da peça “Três irmãs que não são irmãs”. Este
exercício foi experimentado no quarto encontro dos laboratórios. Embora fosse, a princípio,
um exercício de aquecimento, com a intenção também de fazer com que os atores tomassem
intimidade com o texto de Stein, a variação das vozes dos atores e a repetição de falas da
peça, junto ao movimento de pessoas ocupando o espaço da sala, teve um resultado
cenicamente bastante interessante. E mais: se a intenção, ao elaborar o roteiro, era a de
colocar em cena um trabalho ainda em processo, fazer do espetáculo uma amostra do que
fora experimentado nos encontros, achei pertinente inserir no roteiro um jogo de bolas que,
se, inicialmente, era apenas um exercício de aquecimento, ganhara surpreendente
dramaticidade e se constitra ludicamente como cena.
A outra modificação feita no primeiro roteiro foi na seqüência de cenas com a peça
Por favor não sofra”. Com a saída de Tato do elenco, seria mesmo complicado realizar a
segunda versão. Resolvi juntar as idéias contidas nas segunda e terceira versões numa só.
357
Nesta versão, Anília estaria vestindo um cabide, Davi e Cristian vestindo um ao outro e
Letícia vestindo-se sozinha. As três primeiras falas da peça seriam ditas simultaneamente
pelos três atores. Depois de “vestidos”, os personagens seguem o texto da peça da seguinte
maneira: o conde (Christian) joga cartas com Geneviève (Letícia) e Senhora Marchand
(Alia) diz o texto escrevendo. Esta iia de escrever, enquanto fala o texto, fora trazida
pelo pesquisador Davi Kaptzki ao propor a simultaneidade de ações para a peça “Por favor
não sofra” no encontro do dia 15 de junho.
_____________________________________________________________
Décimo terceiro encontro 6 de julho de 2004
Segundo ensaio da Prática de Montagem.
Fernanda Donini começou hoje como assistente e como atriz do espetáculo.
Anília chegou um pouco mais cedo para trabalharmos juntas na escolha dos slides. E
na determinação do momento em que eles deveriam ser trocados. deu tempo de
trabalharmos os slides da fala da Senhora Marchand.
Logo chegaram os outros atores, que foram apresentados a Fernanda. Sem perder
muito tempo com explicações começamos a trabalhar. Primeiro fizemos uma reunião na qual
conversamos sobre as modificações feitas durante a semana no roteiro. Falei sobre a
presença da personagem Margarida Ida, pontuando a cena, e expliquei a eles a minha idéia
para a segunda versão de “Por favor não sofra”, pensada a partir do que eles mesmos
fizeram durante os encontros.
Trabalhamos primeiro apenas as duas veres de Por favor não sofra” (assim
estaríamos dando continuidade ao trabalho feito no ensaio anterior, quando paramos
justamente neste ponto). Repetimos a segunda versão algumas vezes e percebemos que as
358
vozes da Senhora Marchand, do Conde e de Genevve deveriam ser ditas não inteiramente
em simultaneidade, mas em cânone. De modo que primeiro se ouviria a primeira frase da
Senhora Marchand, depois o Conde começaria sua ação e sua fala e, em seguida, seria a vez
de Geneviève. A cena terminaria com as últimas frases de Geneviève sendo ditas sem
nenhuma sobreposição de falas e o foco da cena se voltaria, então, apenas para ela falando e
terminando de se vestir.
Depois passamos todo o roteiro até a cena do jogo de bolas com frases da peça
Três irmãs que não o irmãs”. Eu mesma substit Ângela Rebelo fazendo as entradas de
Margarida Ida, para dar uma idéia aos atores (e a mim mesma) de como a dinâmica do
espetáculo estava fluindo.
Ainda antes de terminar o ensaio, pedi aos atores que tentassem relembrar a cena
escolhida para finalizar a peça. Luana substituiu, apenas neste dia, a Ângela, e Letícia
substituiu definitivamente o Tato, nesta cena. Trabalhamos mais a cena com a finalidade
mesma de lembrar de cada movimento dela, uma vez que fora experimentada uma única
vez.
O ensaio foi bastante proveitoso. Estávamos trabalhando para chegar a um borrão do
espetáculo inteiro e para podermos, assim, depois, afinar aqui e ali algumas coisas, trabalhar
com maior profundidade a enunciação dos textos pelos atores e ainda modificar uma ou
outra cena. Para chegarmos a um borrão completo da peça ficaram faltando apenas as duas
versões de “A questão da Identidade”, as entradas de Margarida Ida feitas pela Ângela e
Uma cortina”. Pouca coisa.
Antes de liberar os atores, conversamos rapidamente sobre a falta de energia, o tom
monocórdio em Por favor não sofra” e sobre o texto poder ser dito com mais leveza. Sobre
como curtir os pequenos diálogos que surgem.
Décimo quarto encontro 13 de julho de 2004
Planejei para este ensaio, começarmos com o jogo de bolas, como forma de
esquentamento e também para resolvermos como poderíamos finalizar o jogo. Decidimos
que a melhor maneira de encerrar seria com a Ângela dizendo a última frase da peça Três
359
irmãs que não são irmãs”: Ah cala a boca todo mundo, cala a boca, vamos todos para a
cama, está na hora de ir para a cama órfãs e todos e irmãos também.” Em seguida
deveríamos trabalhar as duas versões para o mesmo trecho de “A questão da identidade,
seguindo a seqüência do roteiro. Ângela, que tinha estado ausente, por motivo de trabalho,
durante as últimas semanas, voltou neste dia a freqüentar os ensaios.
Este foi o primeiro ensaio já com as cadeiras, emprestadas por Letícia, nas quais o
público iria se acomodar. A presença das cadeiras foi fundamental uma vez que elas têm
papel importante durante todo o início do espetáculo, quando ocupam o centro da sala, e na
cena da retirada do público das cadeiras e afastamento delas para as extremidades do
ambiente, deixando o centro livre e, conseqüentemente, mudando o ângulo de perspectiva
do olhar do público para o espaço da cena. Cenário e adereços começam a entrar. Os
bonecos de “Uma peça” foram os primeiros. As cadeiras entraram neste momento.
Trabalhamos as duas cenas de “A questão da identidade”. No caso da versão dada
para a cena por Luana e Anília, usando as garrafas de água como cachorrinhos, foi preciso
passar para Luana toda a cena que havia sido criada originalmente por Alia e Gisela (que
não fazia mais parte de elenco). Combinamos como seria feita a cena final da peça: o que
acontece a partir do jogo de bolas. Conversamos sobre o roteiro, lembramos cada cena e
começamos às 20h a passar o espetáculo corrido.
Percebi quantas coisas precisavam ser organizadas (cenário e contra-regragem) antes
de começar o espetáculo e durante seu desenrolar. Passamos muito tempo fazendo essas
arrumações, porque eu queria passar pela primeira vez o borrão da peça tentando parar o
mínimo possível. Estávamos todos precisando ter uma idéia da apresentação como um todo,
perceber o ritmo dela e cada ator precisava ter ciência do seu tempo em cena e fora de cena.
Não parei em nenhum momento para dirigir os atores, só para as transições (ainda precárias)
entre uma cena e outra, às vezes. Foi muito bom ver que já tínhamos um borrão do
espetáculo.
Margarida Ida e Helena Anabela começa a aparecer bem devagar, que é mesmo
como ela surge na pa “Doutor Faustus liga a luz, de Stein. Ângela trabalhou lendo, com
o texto na mão. Tentou algumas coisas, mas poucas ainda. Estava preocupada com o texto,
em como dizer o texto. Foi o primeiro ensaio dela na sala, junto com os outros atores.
360
Os próximos dois ensaios deveriam ser mais detalhados. As cenas deveriam ser
repetidas. Tínhamos que tentar comar mais cedo.
Tentei, já nesta primeira passagem da pa, fazer algumas coisas com a luz. Usando,
por exemplo, lanternas para iluminar algumas cenas, além da luz do refletor de slides. Ainda
havia, pom, o que pensar sobre a iluminação do espetáculo, porque a sala oferecia apenas
a luz fria no teto, como uma luz “de serviço”, tínhamos então que imaginar mais alternativas
para a iluminação: o uso de abajur, de lanternas, por exemplo.
Sylvia Heller e Cica Modesto (que eu pedi que desse uma ajuda no que dizia respeito
ao figurino) assistiram ao ensaio e fizeram comentários no final. Sylvia fez comentários mais
técnicos, enquanto Cica falou sobre a semelhança que ela viu, neste trabalho, entre os
nossos experimentos e “Strip-tease e teatro irregular” de Joan Brossa, objeto da minha
monografia de final de curso. Achei interessante ela ter percebido que a minha pesquisa em
nível de doutorado podia ser vista como uma continuação do pensamento que eu já estava
desenvolvendo, ainda na graduação, ao escolher os textos de Brossa. O “teatro irregular” da
dramaturgia do autor catalão pareceu a Cica similar às tentativas cênicas que nós estávamos
experimentando com um outro tipo de dramaturgia bastante diferente. A de Gertrude Stein.
Quanto ao figurino, Cica sugeriu que os atores usassem roupas de ensaio em tons de
cinza. Sobreposições de peças também foram aceitas.
Ângela observou, ao final do ensaio, em conversa comigo, que Margarida Ida estava
numa outra sintonia dentro do roteiro. Gostei do comentário. Queria mesmo que ela se
distinguisse no meio do espetáculo. Que cada entrada dela marcasse uma pontuão.
As transões precisavam ser trabalhadas e as cenas repetidas três ou quatro vezes,
cada uma delas. Se tivéssemos tempo para isso. Estávamos a quatro ensaios da estréia.
Encontro do dia 20 de Julho de 2004 15º encontro
Cheguei à sala às 16h30min para trabalhar com Ângela Rebello a revisão da tradução
do texto da última entrada de Margarida Ida. Enquanto estávamos apenas as duas, fechamos
a tradução definitiva, que se baseia, evidentemente, na tradução da peça feita por Fábio
361
Fonseca de Melo. Achávamos que alguns trechos precisavam ser revistos, que, no seu
contraste com o original em inglês, percebemos que algumas opções feitas pelo tradutor não
estavam de acordo com o nosso entendimento do texto. Tomamos, desse modo, a liberdade
de mexer um pouco na tradução.
Anília chegou um pouco mais tarde, como fora combinado, para trabalharmos os
slides de “Por favor não sofra”. Decidimos quais seriam exatamente os slides que entrariam
e em que momentos eles seriam trocados. Basicamente, a escolha inicial de Anília, quando
apresentou o trabalho pela primeira vez, foi mantida. Apenas acrescentamos alguns slides a
mais, trazidos pela ppria atriz. Um dos slides a serem acrescentados foi uma projeção com
o titulo da peça. Fizemos várias experimentações da projeção das palavras Por favor não
sofra” no corpo de Ângela, já vestida com roupa cinza. Este seria o primeiro slide exibido
depois da segunda aparição de Margarida Ida e Helena Anabela.
Antes de chegarem os demais atores, trabalhei um pouco com Anília o primeiro texto
da Sra Marchand (personagem de Por favor não sofra”), que não será dito em cena pela
atriz, mas gravado para ser tocado em off durante a segunda versão de Por favor não
sofra”.
Quando chegaram os outros atores, nos preparamos (cenário, som, luz, adereços,
cadeiras etc) para fazer uma passada de tudo. Hoje o elenco compareceu inteiro ao ensaio.
A aluna de teoria, Adriana, também estava. Pedi a ela que fotografasse o ensaio. Não foi
possível fazer duas passadas. Carlos Cardoso assistiu ao ensaio. Pedi a ele que me ajudasse a
pensar em soluções sonoras para a peça, principalmente para o uso da voz de Stein na cena
da dança das cadeiras. Em conversa posterior com o músico, ele sugeriu que se duplicasse a
voz de Stein e que se instalassem duas caixas de som, uma em cada extremidade da sala, de
modo que o público escutaria, saindo de uma caixa, um poema e, de outra, outro poema lido
pela escritora. Esse efeito proporcionaria à cena um volume de som maior e mais cheio.
Ao final do ensaio, marquei com a Ângela de chegarmos, no próximo encontro, às
16h30min, para trabalharmos as entradas de Margarida Ida. Eu e Fernanda ficamos de
marcar uma reunião de produção para decidirmos juntas quem iria fazer os black outs, onde
ficariam os atores em cada um dos momentos em que não estivessem em cena. Este era um
problema que pudemos perceber depois de ver mais de uma vez a peça corrida. Como
362
estaríamos todos dentro de uma sala, portanto sem coxias, decidimos que os atores
deveriam permanecer no seu interior durante toda a apresentação. Era necessário, então,
traçar qual seria a trajetória de cada um deles ao longo do espetáculo. E isso envolvia o
apenas onde eles ficariam quando “não estivessem em cena”, mas também o que fariam
durante este tempo. Por vezes apenas observariam a cena, outras vezes preparando contra-
regragem para a cena seguinte ou operando slide, lanterna, som.
Observei, no meu caderno de anotações, que este curso deveria ter sido dado em
dois semestres. Num deles faríamos um aprofundamento teórico das idéias de Gertrude
Stein e uma leitura mais aprofundada também de algumas de suas peças, sempre trabalhando
com a prática cênica, com a investigação de possibilidades cênicas. O segundo semestre
devendo ser, então, inteiramente dedicado a ensaios para a montagem do espetáculo. Os
atores teriam desenvolvido, desta forma, uma maior intimidade com o pensamento e com os
textos de Gertrude Stein.
Encontro do dia 27 de julho de 2004 décimo sexto encontro
Cheguei para ensaiar as entradas de Margarida Ida e Helena Anabela com a Ângela
às 16h40min. A atriz já estava me esperando na porta da sala. O ensaio se transformou em
uma conversa muito importante que mudou várias coisas no roteiro. Chegamos à conclusão,
eu e Ângela, de que a participação dela deveria ser menor, na apresentação, para que se
destacasse cada entrada em cena da figura de Margarida Ida. Com o roteiro do espetáculo
nas mãos começamos a pensar em soluções para a retirada da atriz de algumas cenas. A
dança das cadeiras e o jogo de bolas foram as mais fáceis de resolver sem a atriz. Pensamos
então, já que ela estaria fora de cena durante grande parte do espetáculo, sobre onde e o que
ela estaria fazendo. Estávamos conversando sobre isso, e sobre como resolver a ausência
dela em outras cenas, quando Davi chegou e se juntou a nós. Ângela deu a idéia de ela ler os
trechos da fala que lhe cabiam na cena de “uma peça”. A idéia da leitura nos levou a pensar
em mantê-la sentada em uma escrivaninha, espécie de escritório, iluminada por um abajur de
pé. Dali ela acompanharia toda a peça com o roteiro na mão, e leria o as suas falas de
363
Uma peça”, como funcionaria também como uma espécie de ponto ou de diretor de cena
do espetáculo. E seria, evidentemente, um ponto de referência para os outros atores.
Durante toda a primeira cena, Ângela, sentada em seu escritório, leria o primeiro
trecho da peça “Quero que isto seja uma peça”, dando início à apresentação. Ainda neste
primeiro momento, a atriz anunciaria cada cena da pa (cena 1, cena 2, e assim por diante)
e assumiria a condição mesma de ponto. O que, nesta cena, talvez porque os atores
permanecessem parados, enunciando as falas, muitas vezes se mostrava necessário. Com a
Ângela sentada em sua escrivaninha, a figura do ponto ficava exposta para o público e os
possíveis “brancos” dos atores passavam a não ser mais problema, mas sim parte do jogo.
Depois desta conversa, decidimos experimentar a idéia do ponto assim que todos os atores
tivessem chegado.
O início do ensaio foi bastante disperso. No entanto, eu e Sylvia Heller tomamos a
decisão de arrastar o projetor de slides, de um canto, encostado na parede, para o centro,
para que as imagens fossem projetadas na parede do fundo da sala. Colocamos também um
pano preto comprido embaixo do banco sobre o qual ficava apoiado o refletor. Assim, no
momento certo, eu arrastaria o banco, puxando-o pelo pano, e o refletor já estaria ligado,
com o primeiro slide sendo projetado no corpo das atrizes Ângela e Letícia até que a
imagem chegasse, sem distorções, até a parede do fundo.
Não pudemos contar com todo o elenco neste ensaio. De todo modo, passei, para os
atores que estavam presentes, as modificações feitas no roteiro devidas à participação
diferente da Ângela e às movimentações de contra-regragem que deveriam ser feitas por
mim e pelos próprios atores durante o espetáculo. Passei também para eles as informações
sobre onde eles deveriam ficar quando não estivessem em cena. Essas decisões foram
tomadas em reunião com Fernanda Donini no meio da semana.
Em seguida, já quase às 20h30min, trabalhamos a primeira cena com a Ângela
sentada em seu escririo” e funcionando como ponto para os atores. Depois de fixarmos
algumas regras referentes à relação dos atores com o ponto, fizemos algumas passadas que
foram surpreendentemente boas. Percebi que o branco, ou o erro, corrigido pelo ponto,
descontraía os atores. O texto passou, então, a ser dito com mais leveza, brincadeira e
humor. A relação com o ponto contribuiu muitíssimo para isso.
364
Trabalhamos ainda, um pouco, a cena dos palquinhos (“Uma peça”), com a Ângela,
mais uma vez, ocupando o lugar de ponto. E dizendo o texto a partir do seu escritório”.
Aproveitamos para trabalhar tamm, nesta cena, a manipulação dos bonecos. Davi
continuava experimentando coisas novas para fazer com eles. Trabalhando agora com
manipulação direta. Percebi que seria necessário colocar uma mesa ou um dos baús que
nhamos na sala para funcionarem como suporte para o Davi, que até então estava
trabalhando sentado no chão. Sobre o baú, o ator e os bonecos ficariam mais viveis para o
público e ele ficaria também no mesmovel que a Letícia e sua maquete de palquinho.
Não foi possível fazer uma passada da peça inteira neste ensaio.
A semana que se seguiu foi dedicada a muito trabalho de produção feito por mim,
pela Fernanda e pelos atores. O escritório” da Ângela precisou ser montado, as gravações
da voz de Gertrude Stein foram feitas e mais cadeiras foram levadas para a sala pela Letícia.
Os próprios atores trataram de seus figurinos.
______________________________________________________________
Encontro do dia 3 de agosto Décimo sétimo encontro
Antes de começar o ensaio, eu e Fernanda experimentamos diversas maneiras de
arrumar as 40 cadeiras no meio da sala. Acabamos optando por uma fileira comprida,
organizada como na brincadeira tradicional da dança das cadeiras: cada uma delas virada
para um lado.
Antes de passarmos a peça, experimentamos colocar o Davi em cima do baú para
fazer a cena dos bonecos. Tivemos que resolver também de que maneira o bsairia de cena
quando houvesse a abertura das cadeiras para as laterais da sala.
Nós nos reunimos, então, para lembrar o roteiro, fizemos a cena do jogo de bolas
como esquentamento e passamos a peça.
O ensaio foi parando muito que várias modificações tinham sido feitas. Tivemos
também que parar para ajustar mudanças de luz, entrada e saída do projetor de slides, saída
365
do palquinho da Letícia e do baú do Davi enquanto o público e as cadeiras seriam
transportados de lugar. Toda essa movimentação foi pensada e trabalhada neste ensaio.
Sylvia Heller estava presente e não assistiu ao ensaio como contribuiu com observações e
idéias. Paramos por motivos técnicos e para dirão de ator.
Encontro de 5 de agosto Décimo oitavo encontro.
Véspera da estréia.
Passamos a peça duas vezes. Uma vez parando e outra corrida. A segunda passada
foi considerada um ensaio geral.
6 de agosto de 2007 -- ESTRÉIA
No icio do primeiro espetáculo aberto ao público havia uma música vinda de fora
da sala que atrapalhou um pouco. Um pouco antes do momento em que os atores
deveriam tirar o púbico do centro, e mover as cadeiras para perto da parede, Christian se
adiantou e tirou do lugar, antes da hora, uma das espectadoras, a Tatiana Motta Lima. Ela
ficou, então, sozinha, com sua cadeira, encostada na parede, enquanto o resto do público
continuava sentado no meio da sala. Depois, em conversa com ela, Tatiana me disse que
gostou de ter sido deslocada antes do tempo. Pois de assistir de outra perspectiva à cena
que se passava ali.
A reação do público à cena final foi muito interessante. Houve um riso esparso, e um
pouco nervoso, por causa da repetição. A leve variação e o humor com que os atores diziam
o texto a cada repetição foi fundamental para o movimento da cena.
Fizemos mais dois espetáculos. O último foi registrado em deo pela professora Sylvia
Heller.
366
Esta amostra do que foram os experimentos com a espacialização de textos de
Gertrude Stein, realizados no âmbito do laboratório realizado na UNIRIO, me levou a
imaginar a possibilidade de dar continuidade a essa pesquisa em algum outro momento.
Agora, com a tese finalizada e depois de ter aprofundado um pouco mais os meus estudos
sobre Gertrude Stein, percebo que as experimentações poderiam tomar novos rumos. Para
além das idéias de exílio, jogo e tempo presente, que foram trabalhadas naquele primeiro
semestre de 2004, penso em outras questões que poderiam nortear novas experimentações,
como, por exemplo, a técnica de "quietude silenciosa e movimento rápido" a que Stein se
refere em "Plays". O trabalho com textos que não foram originalmente "rotulados" de peças
por Stein também seria outro caminho a tomar no âmbito de futuras experimentações. Os
roteiros cinematográficos poderiam, igualmente, ser explorados cenicamente, assim como as
diversas versões de Ida. Do roteiro cinematográfico ao romance, passando por Doutor
Faustus liga a luz: penso nesse percurso como uma hitese futura de trabalho.
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BIBLIOGRAFIA
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http://www.peripheries.net/default.htm
DYDO, Ulla E. Gertrude Stein: the language that rises:1923-1934. Evanston, Illinois:
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GUIMARÃES, Júlio Castañon. Gertrude Stein” . In: O Percevejo: revista de Teatro,
Crítica e Estética . ano 8 . N.9 . 2000. Departamento de Teoria do Teatro . Programa de
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KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Tradução Maria Carlota Carvalho
Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. P.12
SOUHAMI, Diana. Gertrude and Alice. Tradução Irene Cubric, Rio de Janeiro: José
Olympio, 1995.
367
STEIN, Gertrude “Vozes de mulheres, “A seguir. Vida e cartas de Marcel Duchamp,
Capio Walter Arnold”, “Quero que isto seja uma peça. Uma peça”, “O Rei ou alguma
coisa (convida-se oblico a dançar)” tradução de Júlio Castañon Guimarães. In: O
Percevejo: revista de Teatro, Crítica e Estética . ano 8 . N.9 . 2000. Departamento de Teoria
do Teatro . Programa de Pós-Graduação em Teatro . UNIRIO.
_______________ Autobiografia de Alice B. Toklas. Tradução de Milton Persson. Porto
Alegre: L&PM Editores LTDA, 1984.
________________ Autobiografia de todo mundo. Trad. Júlio Caston Guimarães e Jo
Cerqueira Cotrim Filho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
________________. Doutor Faustus liga a luz. Tradução de Fábio Fonseca de Melo. São
Paulo: Editorial Cone Sul.
________________. “For the country entirely. A play in letters” In: Geography and Plays
(1908-20). The Four Seas Company: Boston, 1922 (Introduction by Sherwood Anderson),
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_________________. A play” In: STEIN, Gertrude. The geographical history of America
or The relation of human nature to the human mind. In: STEIN, Gertrude. Gertrude Stein
Writings: 1932-1946. New York: The Library of America, 1998. p.477.
________________. “Please do not suffer. A play”. In: STEIN, Gertrude. Geography and
plays. With an introduction by Cyrena N. Pondrom. Madison: The University of Wisconsin
Press, 1993. p.262
________________. “Three sisters who are not sisters”. In: STEIN, Gertrude. Gertrude
Stein Writings: 1932-1946. New York: The Library of America, 1998. p.705
________________. “Plays”. In: STEIN, Gertrude. Gertrude Stein Writings: 1932-1946.
New York: The Library of America, 1998. p.244.
________________. “What are master pieces and why are there so few of them”. In:
STEIN, Gertrude. Gertrude Stein Writings: 1932-1946. New York: The Library of
America, 1998. p.353.
368
Roteiro da Prática de Montagem
“Eu me ouço falando”
Elenco: Ângela Rebello, Anília Francysca, Christian Landi, Davi Kaptzki, Fernanda
Donini, Letícia Medella e Luana Dias..
Cenário no início do espetáculo
Inês apaga a luz
1. Quero que isto seja uma peça”. Encenação da peça inteira.
369
Ângela, sentada em sua “escrivaninha”, acende o abajur e lê:
QUERO QUE ISTO SEJA UMA PEÇA
Uma Peça
Queria que isto fosse uma peça e falada
inteligentemente.
Os americanoso muito inteligentes.
Outros também são.
É verdade, de fato.
E todos os homens são corajosos.
(Inês acende a luz da sala. Cristian, Anília e Letícia estão encostados na parede do fundo da
sala. Fernanda, Davi e Luana na parede oposta. O público não vê bem os atores, apenas
escuta suas vozes).
370
Cena 1
Satisfazer.
Gosto de satisfazê-los.
Ele gosta de bolsas.
Você quer dizer bolsas prateadas.
É bolsas douradas.
Aqui tem outras bolsas.
Todas são carregadas em uma
procissão.
Todo dia.
Nem todo dia.
Os mártires e os cravos vermelhos.
Você quer dizer gerânios vermelhos.
Não quero dizer rosas vermelhas.
Bolsas têm essa palavra.
Agrade-me.
Agradar-me.
Chamou-me.
Ela esperava uma aflição.
Filhas.
Ou filhas.
371
A mais nova das crianças
Dizem.
Verdun.
Fechamos.
Aqui.
Estábulos ou motores.
Estábulos juntos.
Será que sabíamos alguma coisa sobre
casas em Mallorca.
Cena II
Então você ficou satisfeita comigo.
Cena III
Homens capazes. O que você pretende
fazer hoje.
Planejei telegrafar em resposta,
É isto.
O que você lhes disse.
Disse que eu estava encantada com as
fotografias.
Cena IV
A onde você ficaria triste por deixar
Mallorca.
Você quer dizer a ilha.
O sol.
Ou as pessoas.
Muitas pessoas não gostam das pessoas.
Cena V
Quinta Avenida em espanhol.
Quinta Avenida em espanhol.
372
Ou você disse água.
Guerra água.
Ouvi dizer que muitas pessoas
esperavam outra.
Uma à outra.
Ser um o outro.
Ser combatido.
Não diga luminoso.
Não é um dia luminoso.
Cena VI
Será que de fato fomos muito longe será
que fomos muito longe.
Cena VII
Não cometa um erro e perca licenças.
Aulas.
Aulas de memória.
Não vá tão longe e perca licenças.
Estávamos realmente satisfeitas com as licenças. Não estávamos realmente
satisfeitas com as licenças.
Eu estava muito satisfeita com as licenças.
Cena VIII
Você ficou espantada comigo.
Todos nós nos queixamos.
Você ficou espantada comigo.
Você não compreende a tentativa.
Você não compreende a tentativa de
gaguejar.
É de fato não.
Cena IX
373
Será que você ficou surpresa por ver
que tínhamos ido tão longe. Você quer
dizer em etapas. Não naturalmente não
em seleções. O que você selecionou.
Esponjas muito boas. Maso caras.
Não são necessariamente baratas. Percebemos que pediram um preço
excepcional aqui. Você tem toda razão
de supor isto. Estávamos totalmente
certas disso. É facilmente
compreensível que estejam
acostumados a negociar. Você quer
dizer barganhar. Não não quero dizer
isto quero dizer os que trabalham com metal.
Os que trabalham com metal têm
roupas novas. Em Palma. Sim em
Palma. Eu não queria mencionar esse
nome. Por que você não aprecia a
cidade. De modo algum.
O resto do dia foi gasto em visita.
Cena X
O fim dessa pequena placa.
Você quer dizer que não gostou da
cerâmica. Você quer dizer a marrom.
Não a amarela. Gostei gostei muito dela
de cara. Era muito grande. Esta não é a
maneira de dizer que você virá
novamente. Mas não queremos.
Cena XI
O que ela disse. Ela disse que podia ler
espanhol porque todas as palavras que
eram palavras de verdade se parecem
374
com francês.
Não quero dizer que estou
envergonhada.
Ah não de fato você não deve ser
culpada.
De modo algum.
Somos muito cuidadosas para andar
juntas. Por prazer. Por nosso prazer.
Sim de fato. Precisamos de você. Mais
do que nunca. Estou feliz por não
estarmos com frio. o aqui. Acredite-me.
Acredite em mim. Acredito.
(1ª entrada de Margarida Ida andando em volta das cadeiras)
Eu sou eu e meu nome é Margarida Ida e Helena Anabela. E Eu sou eu e eu estou aqui e
como sei como é selvagem o mundo como são selvagens as selvas selvagens são as selvas
chamam as selvas de casaco do homem pobre mas elas me cobrem e se elas cobrem o quão
selvagens elas são selvagens e selvagens e selvagens como o, como sei como são
selvagens as selvas se nunca vi uma selva não.
375
Inês liga o som: voz de Stein
Ângela vai para o seu “escritório”.
2. O rei ou alguma coisa (convida-se oblico a dançar)”: dança das cadeiras com
cinco atores: Letícia, Fernanda, Cristian, Luana e Anília. (apenas cinco rodadas).
Davi fica sentado no banco de madeira. Davi entra quando algm sai.
A última página a ser lida é a 21.
Quando acaba a dança das cadeiras, Davi pega os bonecos, Letícia vai para trás do
palquinho dela (Fernanda ajuda Lecia nessa hora).
376
3. Uma peça
Uma peça.
Começa com um homem morto e uma mulher morta e um cachorro morto mas eles não
estão mortos porque a peça continua.
Se o cachorro está morto a peça continua.
Se o exército está morto a peça continua.
Se o cachorro não está morto a peça continua.
Não mesmo não com certeza não.
Peça 2
377
Se o cachorro não está morto e a peça não continua o homem está morto.
Sim o homem está morto.
Se o homem está morto e a peça não continua será que ela continua. Sim continua.
Se a mulher está morta e o cachorro está morto e o homem está morto a peça
continua.
Certamente não a peça não continua.
O que isso significa.
Certamente não a peça não continua.
isso significa que ela não continua no palco.
Certamente não não significa certamente não não no palco.
E assim não tem tempo nem identidade por favor tome cuidado para não
surpreender lágrimas.
No culo dezenove não se surpreendiam lágrimas vivia-se com lágrimas porque o
homem e o cachorro e a mulher não estavam mortos quando qualquer coisa começou no
século vinte tudo que é qualquer um está morto quando pode e estava quando começou
então não há lágrimas não havia lágrimas.
Peça I
Agora como eles podem vir a ser agora.
Peça I
Qualquer coisinha é como ela começou.
Está mais claro que qualquer um que não há lágrimas agora.
Peça um
Tá certo peça um.
Peça dois
Tem que ser dois pra acabar.
Mas tem isso.
Isso como não tem que ser isso isso não é isso.
Facilmente é.
Mais e mais uma obra-prima é.
Peça III
378
Eu começo a ver vê eu começo mas não tem começo não aí não aí.
Peça IV
Você vê é para ser.
Mas tem ser e também tem ver.
Peça V
Daí então.
Peça VI
A glória de saber o que é uma obra-prima.
Peça VII
É natural que ainda uma mulher deva ser quem faz o pensamento literário dessa
época.
Inês liga o som: voz de Stein. Fernanda fica sentada no banquinho de madeira
4. O rei ou alguma coisa (convida-se o público a dançar): dança das cadeiras.
(Mais cinco rodadas).
No final do jogo Letícia fica em cena pegando do chão as páginas espalhadas e
escrevendo algumas palavras ou frases curtas no corpo.
379
Os outros atores vão tirando o público das cadeiras, vão arrumando as cadeiras nas
laterais da sala e catam do chão as páginas que restaram. Deixam apenas algumas. Os
atores deixam o espaço vazio. Fica só uma cadeira.
Letícia fica em cena mais um pouco.
Ângela apaga a luz do abajur e entra catando páginas..
Letícia sai.
380
(Segunda entrada de Margarida Ida)
Uma vez que eu estou dentro eu nunca mais vou sair as selvas estão e eu estou aqui e eu
estou aqui ou eu estou lá, oh onde oh onde é aqui oh onde oh onde é lá e os animais animais
selvagens estão em todo lugar.
Ela senta.
Eu queria (diz conversativa) eu queria se eu tivesse um pedido que quando eu sentasse isto
não estivesse aqui mas ali ali onde eu teria uma cadeira ali onde eu não teria que olhar em
volta medrosa todavia tudo onde havia uma cadeira e um tapete debaixo dela me faria
saber que ali fica ali, mas aqui aqui contudo fica nada nada como um tapete nada como uma
cadeira, aqui à beira é tudo selvagem.
Fernanda apaga a luz, Anília liga o projetor de slides e Inês arrasta até a posição certa.
Duas versões para a peça “Por favor não sofra.
O projetor de slides projeta no corpo da Letícia e da Ângela o título da peça.
381
Ângela e Letícia saem de cena.
Ângela leva a cadeira.
Ângela senta perto do público na cadeira que ela mesma tirou de cena, encostada na coluna.
Versão 1.
Cena pensada por Alia (slides) para o começo da pa. Enquanto Anília vai trocando
os slides, os atores se colocam na frente da imagem, de modo que ela é projetada parte
em seus corpos parte na parede branca da sala.
POR FAVOR NÃO SOFRA
Uma peça
Genevieve, Senhora Marchand e Conde Daisy Wrangel.
(Senhora Marchand.) Onde ela nasceu e com quem estudou. Ela conhecia a Marquesa de
Bowers então ou não. Ela veio a conhecê-la na Itália. Ela aprendeu inglês em Marrocos.
Ela nunca esteve na Inglaterra nem estudou em Florença. Ela morou na casa com os amigos
do conde Berny e assim sendo ela os conheceu e ela conheceu ele. Ela foi comer um jantar
árabe.
Como ela veio a conhecer as pessoas que ela conhece. Eu não entendo isso.
Com quem ela estudou. Nós não temos certeza. Quando ela soube pela primeira vez
de Marrocos. Onde ela ouviu inglês.
Ela ouviu inglês falado a crianças.
(Conde Daisy Wrangel.) Ele fala inglês muito bem. Ele tem um defeito na sua fala. Ele
gosta de couve-flor e ervilhas verdes. Ele não acha uma senhora satisfatória como
cozinheira. Ele quer o seu Italiano. É muito caro trazê-la. Ele gosta de cachorros. Ele uma
382
vez teve oito. Eles eram poodles pretos. Eles estavam vivendo num jardim na propriedade
de uma Duquesa. Ele os treinou para serem muito prestativos e ele tem retratos deles todos.
Ele freentemente escreve um livro. Ele escreve sobre arte às vezes. Ele também pinta um
pouco. Ele tem um amigo que pinta um quadro a cada man e pinta um quadro a cada
tarde. Ele não é desagradável. Ele não veio com ele. Ele pediu para ver o cachorro que ele
pensou que tinha crescido.
(Genevieve) Ela acredita em Franconville. O que é uma tempestade de trovão. Esta é a
minha história. Eu trabalhei num café em Rennes. Antes disso eu fui educada por uma
mulher que sabia tricotar e tudo o mais. Minha mãe e meu pai trabalhavam com
jardinagem. Eu fui desonrada por um açougueiro. Eu não sou particularmente apegada a
crianças. Minha filha é uma menina e é ainda uma pequenina. Ela está vivendo numa região
invadida mas agora está em Avignon. Eu mandei fazer um casaco para ela mas não coube
muito bem nela e agora eu estou mandando o dinheiro então assim ele vai ser feito em
Verdun. Eu não sou necessariamente uma mulher muito feliz. Todos estão desejando. Eu
gosto de tricotar e eu gosto de comprar provisões. Sim eu gosto da capital. Tem bastante
carne aqui. Eu não ligo para variedade. Eu prefiro vitela a frango. Eu prefiro carneiro. Eu
entendo que é difícil ter qualquer coisa.
Inês recomeça a projetar os slides de trás pra frente, e os atores se colocam na frente das
imagens, de costas para o projetor, como quem assiste a um filme. Depois se preparam para
a segunda versão: Davi e Cristian pegam as roupas e vão para o meio. Anília e Luana vão
para o fundo da sala (arrumam o cabide, as roupas e o gravador que vai tocar a fita com a
voz da Sra Marchand) e Letícia vai para o outro lado da sala. Letícia arruma, além das
roupas, os três banquinhos para o jogo de cartas.
Volta a frase “Por favor não sofra”.
Inês arrasta o projetor do meio ainda ligado até perto da mesa. Inês desliga o projetor e
Fernanda acende a luz.
Versão 2.
383
Alia vestindo um cabide, Davi e Cristian vestindo um ao outro e Letícia vestindo-se
sozinha. Três primeiras falas da peça são ditas simultaneamente pelos três atores.
POR FAVOR NÃO SOFRA
Uma peça
Genevieve, Senhora Marchand e Conde Daisy Wrangel.
(Senhora Marchand.) Onde ela nasceu e com quem estudou. Ela conhecia a Marquesa de
Bowers então ou não. Ela veio a conhecê-la na Itália. Ela aprendeu inglês em Marrocos. Ela
nunca esteve na Inglaterra nem estudou em Florença. Ela morou na casa com os amigos do
conde Berny e assim sendo ela os conheceu e ela conheceu ele. Ela foi comer um jantar
árabe.
Como ela veio a conhecer as pessoas que ela conhece. Eu não entendo isso.
Com quem ela estudou. Nós não temos certeza. Quando ela soube pela primeira vez
de Marrocos. Onde ela ouviu inglês.
Ela ouviu inglês falado a crianças.
384
(Conde Daisy Wrangel.) Ele fala inglês muito bem. Ele tem um defeito na sua fala. Ele
gosta de couve-flor e ervilhas verdes. Ele não acha uma senhora satisfatória como
cozinheira. Ele quer o seu Italiano. É muito caro trazê-la. Ele gosta de cachorros. Ele uma
vez teve oito. Eles eram poodles pretos. Eles estavam vivendo num jardim na propriedade
de uma Duquesa. Ele os treinou para serem muito prestativos e ele tem retratos deles todos.
Ele freentemente escreve um livro. Ele escreve sobre arte às vezes. Ele também pinta um
pouco. Ele tem um amigo que pinta um quadro a cada manhã e pinta um quadro a cada
tarde. Ele não é desagradável. Ele não veio com ele. Ele pediu para ver o cachorro que ele
pensou que tinha crescido.
385
(Genevieve) Ela acredita em Franconville. O que é uma tempestade de trovão. Esta é a
minha história. Eu trabalhei num café em Rennes. Antes disso eu fui educada por uma
mulher que sabia tricotar e tudo o mais. Minha mãe e meu pai trabalhavam com
jardinagem. Eu fui desonrada por um açougueiro. Eu não sou particularmente apegada a
crianças. Minha filha é uma menina e é ainda uma pequenina. Ela está vivendo numa região
invadida mas agora está em Avignon. Eu mandei fazer um casaco para ela mas não coube
muito bem nela e agora eu estou mandando o dinheiro então assim ele vai ser feito em
Verdun. Eu não sou necessariamente uma mulher muito feliz. Todos estão desejando. Eu
gosto de tricotar e eu gosto de comprar provisões. Sim eu gosto da capital. Tem bastante
carne aqui. Eu não ligo para variedade. Eu prefiro vitela a frango. Eu prefiro carneiro. Eu
entendo que é difícil ter qualquer coisa.
Fernanda apaga a luz. Anília senta na cadeira da Ângela e acende o abajur.
Cristian vai jogar cartas com Letícia.
Davi senta no chão perto da Fernanda que estará embaixo do interruptor de luz. Ângela
continua sentada na platéia, na coluna.
386
(Senhora Marchand) Eu não escrevo com freqüência. Eu digo que eu vou mencionar se um
homem presta atenção numa mulher e então eu posso e eu posso dizer que eu não tenho
escrito. Eu vou fazer como eu gosto. Eu acho que o meu bebê é muito saudável. Eu espero
que ele não vá falar a língua falada aqui mas eu não posso dizer isso a ele. Ele é muito
novo. Ele não esandando. Se as Dardenelles não forem arrancadas talvez elas abram. Eu
me ouço falando. Eu tenho uma laranjeira que está aberta. O sol entra. Por dez dias durante
dez dias chove e então até dezembro nós teremos bom tempo. o tem fogo na casa. Eu
não gosto de olhar para este mapa. Você me dá licea enquanto eu vou dar ao meu bebê o
seu almoço.
Letícia e Cristian acendem o abajur para iluminar o jogo de cartas
(Conde Daisy Wrangel.) É o mesmo nome que o de uma ilha. s éramos de Courtland e
alguns são russos e alguns são prussianos e alguns são suecos. Nenhum é lituano. Senhor
Berenson é um lituano. Eu tenho um amigo dinamarquês que foi casado quatro vezes. Sua
última mulher é uma cantora. Ela é uma mulher casada. Sua primeira mulher foi casada
com quatro homens diferentes. Ela tem sido uma boa amiga para cada um deles. Eles dizem
mesmo isso. Eu não tenho nenhum prazer na minha temporada na Ilha porque eu não como
nada. Eu gostaria de ter alguma coisa.
(Geneviève) O conde esteve aqui. Ele quis ver o cachorro e ele disse que iria gostar de -
lo. Ele não estava muito bem. Ele esteve sofrendo. Ele não disse que seu amigo viria com
ele. Ele disse que pensava que não. Freqüentemente me dizem que os franceses o tudo.
387
Eu pergunto você acredita que os franceses estão ganhando. Eu acredito que os franceses
estão ganhando. Você precisa de manteiga para cozinhar.
Letícia e Cristian apagam o abajur.
(Senhora Marchand.) Deixa eu te dar um pêssego mais macio. Você gosta deste. Nós
viremos de novo para uma visita ao anoitecer. Este é o caminho mais curto. Sim eu gosto
de andar. s dizemos muito pouco quando estamos nos preocupando. Deixe-nos ir
embora. Nós não podemos porque meu marido não pode ir embora.
Alia apaga o abajur
Inês ilumina Ângela.
(Terceira entrada de Margarida Ida)
Ângela se levanta de onde estava (encostada na coluna):
Ela se levanta com suas mãos ao seu lado ela abre e fecha os olhos e abre-os de novo
Se meus olhos estão abertos e meus olhos estão fechados eu vejo eu vejo, eu vejo nenhum
tapete eu vejo nenhuma cadeira eu vejo as selvas selvagens aqui e acoque diferença me
faz se fecho os olhos diferença nenhuma as selvas as selvas estão lá.
5. Jogo de bolas com frases de “Três irmãs que nãoo irmãs”
388
Inês ilumina Cristian que diz “Eu tenho uma idéia uma bela iia, uma boa idéia, vamos
jogar um jogo um jogo de assassinato” e joga a bola para Anília que diz: “Ah vamos sim”.
Fernanda acende a luz geral da sala. Todos os outros atores entram. Ângela vai sentar-se no
seu “escritório”. Luana e Davi entram com as outras duas bolas.
O jogo acaba quando a Ângela diz a última fala da peça “Três irs que nãoo irs”:
“Ah cala a boca todo mundo, cala a boca, vamos todos para a cama, está na hora de ir para
a cama órfãs e todos e irmãos também.”
Os atores que estiverem com bolas nasos guardam nas cestinhas pretas mais próximas.
Alia e Luana arrumam os bancos com as garrafinhas para fazer a cena delas. Levam
também duas lanternas
Ângela e Letícia preparam as cadeiras do outro lado da sala.
Davi senta na cadeira da Ângela. Cristian e Fernanda sentam perto do interruptor de luz.
6. Duas versões para um pequeno trecho de “A questão da identidade”.
Versão 1.
389
Cena com as garrafinhas.
A questão da identidade
Ato I Cena I
Um cachorro dessa vez se engasgou por ele mesmo que o engasgo parece com um
espirro e isso é incômodo.
Quando um cachorro é jovem ele parece ser um cachorro muito inteligente.
Mas depois bem depois o cachorro fica velho.
Lágrimas vêm aos olhos mas não ao piscar.
E então o cachorro perambula por ele conhece quem ele conhece mas isso faz alguma
diferença.
Uma peça é exatamente isso.
Aqui está a peça.
Versão 2.
Cena feita por Letícia, Ângela e Davi.
390
A questão da identidade
Ato I Cena I
Um cachorro dessa vez se engasgou por ele mesmo que o engasgo parece com um
espirro e isso é incômodo.
Quando um cachorro é jovem ele parece ser um cachorro muito inteligente.
Mas depois bem depois o cachorro fica velho.
Lágrimas vêm aos olhos mas não ao piscar.
E então o cachorro perambula por ele conhece quem ele conhece mas isso faz alguma
diferença.
(Davi acende o abajur. Fernanda apaga a luz da sala).
Uma peça é exatamente isso.
Aqui está a peça.
(Letícia e Ângela sobem nas cadeiras e Is ilumina as duas. Davi apaga o abajur).
Peça I Ato I
Como vai você o que você é.
Termina com as duas atrizes em pé em cima das cadeiras.
Mudança de luz:
391
Inês apaga a luz. Ângela desce da cadeira. Letícia, Anília, Luana e Davi iluminam a Ângela
com as lanternas durante a fala da Margarida Ida.
(Quarta entrada de Margarida Ida)
Seria a mesma tela se meu nome não fosse Margarida Ida e Helena Anabela seria a mesma
tela eu desistiria apor um tapete e uma cadeira e pra ficar não aqui mas lá, mas eu estou
aqui não estou e eu sou Margarida Ida e Helena Anabela e eu vejo eu vejo tudo isso oh
sim eu vi e estou aqui.
7. Uma cortina”:
Black Out. Os atores apagam as lanternas.
Enquanto dizem as falas de “Uma cortina, no escuro, Anília e Luana tiram os
banquinhos, as garrafinhas e as lanternas de cena. Fernanda tira as cadeiras do fundo da
sala. Davi pega tênis, Cristian pega celular, Letícia livros e Ângela bloco, caneta e
texto.
.
UMA CORTINA
Seis.
Vinte.
Ultrajante.
Atrasado,
Fraco.
Quarenta.
Mais em qualquer umidade.
Sessenta e três certamente.
Cinco.
Dezesseis.
Sete.
Três.
392
Mais metódico. Setenta e cinco.
Fernanda acende a luz e vai sentar no banquinho.
8. Cena pensada por Davi e Ângela: o recomeço / coro / identidade”. A cena se repete
infinitamente.
Alia, Luana e Fernanda ficam sentadas nos três banquinhos de madeira até o final da
peça.
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