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Universidade Federal do Ceará
Centro de Humanidades
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
Dissertação de Mestrado
“Um barulho na cidade”: culturas
juvenis e espaço urbano
Kaciano Barbosa Gadelha
Fortaleza
Agosto 2007
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Kaciano Barbosa Gadelha
“Um barulho na cidade”: culturas juvenis e espaço urbano.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da Universidade Federal
do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título
de Mestre em Sociologia, sob a orientação da Profa.
Dra. Irlys Alencar Firmo Barreira.
Este exemplar corresponde à redação final do texto da Dissertação, defendida
e aprovada pela comissão examinadora em ___/___/____.
Comissão Examinadora:
___________________________________________.
Profa. Dra. Irlys Alencar Firmo Barreira (orientadora)
___________________________________________.
Profa. Dra. Peregrina de Fátima Capelo Cavlcante (UFC)
___________________________________________.
Profa. Dra. Isaurora Cláudia Martins de Freitas (UVA).
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“Só se descobre mundos em uma longa fuga quebrada”.
Gilles Deleuze
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Agradecimentos
A minha família, sempre presente em todos os momentos da minha vida.
À professora Irlys Barreira, pela sua orientação segura, madura e por ter me
confiado à execução deste projeto.
Ao CNPq, que com a concessão de uma bolsa tornou a realização desta
pesquisa possível.
Aos professores Cristian Paiva e Sulamita Vieira, pelas valiosas contribuições
no momento da defesa do projeto.
Aos amigos da turma de 2005, por tudo que passamos juntos e por me
tornarem o habitat sociológico algo agradável.
Em especial à professora Peregrina Capelo, pela docência generosa e longe
dos vícios acadêmicos que muitas vezes tornam o lugar da academia inóspito
às subjetividades nômades.
À Juliana Justa, pelas noites de Noise e seus devires.
À turma do Winterkurs 2007 Leipzig, pelos momentos intensos de amizade e
aprendizado em uma terra estrangeira: Vielen Dank!
4
RESUMO
Essa dissertação trata da relação entre as culturas juvenis e o espaço urbano a
partir dos espaços de lazer. O espaço investigado foi o Noise 3D Club,
estabelecimento localizado na área do entorno do Centro Cultural Dragão do
Mar. O autor discute as relações entre os estilos musicais e o modo de
apropriação da cidade, dando ênfase ao aspecto subjetivo e às dinâmicas
temporais das culturas juvenis. Os procedimentos metodológicos utilizados
consistiram na realização de entrevistas, trabalho de campo (observação
participante) e pesquisa em arquivos. O autor conclui apontando uma
percepção das culturas juvenis na cidade contemporânea cada vez mais
atravessadas pela efemeridade e transitoriedade dos laços sociais que se
estabelecem.
5
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................01
CAPÍTULO 1 UMA ARQUEOLOGIA DAS PAISAGENS
................................08
1.1 A Praia de Iracema, o Dragão e o entorno em uma perspectiva
cronológica.........................................................................................................14
1.2 O Centro, a praça, as ruas e a boate: encontros e desencontros no território
do fugaz ............................................................................................................33
CAPÍTULO 2 CULTURAS JUVENIS: PERCURSOS TEÓRICOS E
METODOLÓGICOS ..........................................................................................48
2. 1 Observações sobre o método ....................................................................49
2.2 As teorizações acerca da juventude e o momento das culturas juvenis
.........................................................................................................................................64
CAPITULO 3 ESTÉTICAS MUSICAIS: AS CENAS MUSICAIS E OS
TERRITÓRIOS DA SUBJETIVIDADE .....................................................................78
3.1 Joana, Paula e os diversos tempos da cena musical...................................87
3. 2 Cenas, performances e estilos: mapas de si e do mundo..........................98
3.3 Espacialidades virtuais: a comunidade Noise3D no Orkut .......................108
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................................117
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................119
ANEXOS
6
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa teve como ponto de partida o meu interesse pelas
práticas de lazer no espaço urbano, principalmente ligadas aos contextos
juvenis. Como investigador, mas também como agente, já que esse interesse
não partiu de um “olhar de fora”, mas da minha vivência na cidade de
Fortaleza, dos lugares que eu freqüentava para me divertir e dos gostos e
universos que eu ia descobrindo, também como jovem. A noção de juventude
com a qual trabalho se relaciona menos com o recorte etário, estando mais
ligada a um conjunto de símbolos e práticas contextuais que dão ao termo
juventude não uma unidade, e sim, uma multiplicidade de sentidos. Nesse
sentido, o artigo de Pierre Bourdieu, A juventude é apenas uma palavra, é
bastante elucidativo no que diz respeito à crítica da noção de juventude,
trabalhada apenas como recorte etário:
A idade é um dado biológico socialmente manipulado e
manipulável; e que o fato de falar dos jovens como se fossem
uma unidade social, um grupo constituído dotado de interesses
comuns, e relacionar estes interesses a uma idade definida
biologicamente já constitui uma manipulação evidente. Seria
7
preciso pelo menos analisar as diferenças entre as juventudes
(BOURDIEU, 1983, p.113).
Nessa “dupla captura” investigador-agente, um lugar da cidade de
Fortaleza me despertava bastante interesse: a área do Centro Cultural Dragão
do Mar. Tal Centro foi inaugurado oficialmente em 1999. O intuito era ter um
grande equipamento cultural que abrigasse museus, ateliês, cinemas, café etc.
A área escolhida para a construção foi a Praia de Iracema.
Porém, a área da Praia de Iracema onde o Dragão do Mar, como é
conhecido o centro, veio a ser instalado constituía a antiga área da Prainha. As
controvérsias se instalaram, já que, segundo os críticos do projeto, a
implantação do projeto não levou em conta todo o conjunto histórico-
arquitetônico da região. Passou-se, então, a falar do “Dragão do Mar”, o centro,
e o seu “entorno”.
Primeiro, porque, ao seu redor, havia um conjunto de galpões fechados,
resquícios do passado, quando formava então a área portuária, antes da
construção do Porto do Mucuripe (que teve construção iniciada em 1938 e
inauguração na década de 1950). Desde então, alguns desses galpões foram
destruídos e outros passaram a ocupar funções distintas, como
estacionamento etc. Com a inauguração do Centro se intensificou uma
ocupação da área ao seu redor, a partir da instalação de vários bares e boates
com uso diverso. Essa ocupação se deu de uma forma desenfreada, guiada
muitas vezes pelos ventos da especulação imobiliária. Desse modo, não
aconteceu uma integração entre as atividades desenvolvidas no Dragão do Mar
e no seu entorno.
Sem partir de uma investigação sobre a concepção e os impactos da
implantação do Centro Dragão do Mar (trabalho esse feito pela socióloga Linda
Gondim
1
), a minha pesquisa se dirigiu a um aspecto mais microscópico da
intensificação da ocupação do entorno do Centro Dragão do Mar pelos
equipamentos de lazer pago: o fato de essa zona ter se constituído como ponto
de encontro de grupos de jovens que freqüentavam esses espaços.
Antes de entrar em uma perspectiva cronológica de como se foi
constituindo aos poucos uma “mancha de lazer” nessa área da Praia de
1
GONDIM, Linda M. P. O Dragão do Mar e a Fortaleza (Pós-)Moderna: Cultura, Patrimônio e a
Imagem da Cidade. Relatório Final de Pesquisa-CNPq, Fortaleza-Ceará, 2005.
8
Iracema vou apresentar um quadro geral do que pode ser observado nas noites
a partir das quintas-feiras, quando se intensifica o fluxo de pessoas e as
atividades de lazer. O mosaico dessa paisagem não forma um todo ordenado.
Primeiro, porque essa ocupação do entorno por equipamentos de lazer pago
aconteceu de uma maneira não planejada. A área ainda guarda alguns signos
de seu passado, quando formava então a zona portuária antes da construção
do Porto do Mucuripe. Os traços dos galpões ainda estão presentes na
arquitetura, mesmo que exteriormente.
Ao mesmo tempo em que não há um resgate do passado histórico
dessa paisagem, esses traços aparecem constituindo simulacros de memória
2
.
Alguns galpões funcionam como estacionamento, outros estão fechados. Em
frente ao Hey Ho Rock Bar, há um galpão onde se vê apagado o símbolo da
antiga empresa que ali funcionava. Noutro vêem-se as placas para alugar. Em
um deles já funcionaram três boates em um espaço de tempo de cinco anos e
hoje se encontra fechado. Várias boates e vários bares já foram abertos e
fechados ali: Docas, Ritz Café, Domínio Público, Alfândega, Bar da Baiana,
Thor e Renaissance. Em 30 de junho de 2007, o Noise 3D foi adicionado a
essa lista.
No começo, eu estava preocupado em entender como foi se dando o
processo de ocupação dessa região da cidade por essa vida noturna, muito
ligada às culturas juvenis urbanas. Por culturas juvenis entendo o universo
simbólico, de práticas e rituais compartilhados pelos jovens investigados,
principalmente no que toca à apropriação do espaço urbano e aos universos
musicais que esses experimentam.
Não é de hoje que no campo das Ciências Sociais pesquisas sobre
grupos juvenis, espaços urbanos e estilos musicais aparecem como um objeto
de investigação. No Brasil, cito como exemplo o trabalho de Helena Abramo
(ABRAMO, 1994) sobre o movimento punk na cidade de São Paulo. A
ocupação de alguns espaços urbanos por esses movimentos faz com que se
aproximem, em termos de algumas semelhanças simbólicas, territórios
distantes como a Lapa Carioca, a Rua Augusta em São Paulo, o Bairro Alto em
2
Esses espaços não são ocupados seguindo uma noção de autenticidade, de uso legítimo,
onde haveria uma correspondência daquilo que está na fachada do prédio e aquilo que se
passa em seu interior.
9
Lisboa e o nosso entorno do Dragão do Mar. Isso nos impõe pensar as
montagens juvenis desses territórios urbanos, ligados também ao lazer e aos
estilos musicais para além dos códigos da identidade de lugar e da
demarcação das fronteiras oficiais da nação. Até certo ponto, eles são híbridos
e transnacionais (palavras muito em voga nos Estudos Culturais
contemporâneos). Mas isso seria algo ainda a ser investigado em outra
pesquisa, por exemplo, uma etnografia comparada entre territórios juvenis em
metrópoles distintas.
O que poderia parecer simples foi se tornando cada vez mais complexo.
Primeiro pela diversidade de culturas musicais encontradas no espaço
investigado: a cultura punk, pop, rock etc. Cada um desses mundos parecia
merecer uma etnografia própria. E, em apenas dois anos de pesquisa, senti
que eu não conseguiria dar conta desse universo, o que me levou a fazer um
recorte e escolher um desses locais e fazer um trabalho de campo mais
acurado: o Noise3D Club.
O segundo obstáculo se refere a essa efemeridade dos
estabelecimentos naquela região da cidade. Nada parece ter uma vida superior
a dois anos. Os clubes noturnos e bares inauguram e fecham em um intervalo
de tempo muito curto: de um a dois anos no máximo. O Noise 3D funcionou um
pouco mais de dois anos e meio: de 11 de novembro de 2004 a 30 de Junho de
2007. Uma paisagem efêmera, onde concretamente transitamos entre alguns
estabelecimentos que funcionam, outros fechados e alguns em ruínas. Em
frente ao Noise3D, há uma edificação em ruínas. Na verdade, só parte das
paredes está de pé. Lá dentro o mato “tomou conta”. Ali já me contaram que se
abrigam sem-tetos e batedores-de-carteira, podendo ser também o lugar para
“fumar um”
3
, ou simplesmente “fazer pegação”
4
. Já vi também policiais
adentrando aquele espaço na busca de apreender drogas ou alguns
responsáveis por assaltos.
Nesse jogo onde o concreto se torna descartável e essas paisagens se
misturam, vislumbro uma estética da ruína. Essa estética da ruína não diz
respeito somente ao aspecto físico desses lugares, mas ao conjunto das
3
Fumar maconha.
4
Namorar de uma maneira mais intensa, chegando quase a concretização do ato sexual, ou às
vezes realizando o mesmo.
10
práticas de ruína, de fissuras e de rachaduras no espaço urbano. Rachaduras
do ilícito, dos corpos em outros estados de consciência ou inconsciência, do
corpo alcoólico que transita pelas ruas, da “marola” debaixo das árvores com
pouca luz, dos estilhaços de garrafa, da lama, do lixo, dos carros de som
formando uma poeira sonora ensurdecedora, mas também da rua como
passarela onde desfilam as turmas seus estilos (as gramáticas corporais do
visual de vestes pretas da turma do metal; dos scarpins, adidas e all stars da
turma indie; da maquiagem preta e dos casacos da turma gótica, dos cabelos
coloridos). Ao contrário do pastiche pós-moderno, esse mosaico emerge como
um signo difuso de um espaço urbano marcado pelo entrecruzamento de vários
fluxos descodificados. Dessa forma, a ruína urbana surge me forçando a
pensar na atual cartografia da cidade a partir do encontro de espaços-tempos
dissonantes, gerando, para usar uma expressão de Antônio Arantes
(ARANTES, 2000), uma “guerra de lugares”. Isso significa pensar a partir da
noção de que os agentes sociais significam os espaços da cidade de maneira
diferenciada e de que essas significações podem entrar em conflito com outras.
Nesse sentido, fui levado a fazer resgates da memória dessa região da
cidade onde tanto o trabalho de Solange Schramm quanto a pesquisa de Linda
Gondim sobre o impacto da construção do Dragão do Mar, em 1999, serviram-
me como materiais para pensar a ocupação desse espaço da cidade. Parti
para a obra de Deleuze e Guattari, buscando ferramentas para compreender a
cidade sob outra ótica:
A cidade libera espaços lisos, que já não são os da
organização mundial, mas os de um revide que combina o liso
e o esburacado, voltando-se contra a cidade: as imensas
favelas móveis, temporária, de nômades e trogloditas, restos
de metal e tecido, patchwork, que já nem sequer são afetados
pelas estriagens do dinheiro, do trabalho ou da habitação”
(DELEUZE e GUATTARI, 1997, vol.5, p.188-189).
Isso me leva a pensar que qualquer estudo na cidade tem base em um
empirismo aberto às dimensões da alteridade, do imprevisível e do devir por
mais que existam certos vetores de objetivação na ocupação do espaço
urbano, dividindo os atores urbanos em classes sociais, faixas etárias, gêneros
etc. Meu problema de pesquisa consistiu em perguntar que montagens outras
do território urbano são possíveis de serem agenciadas pelas culturas juvenis.
11
Tais montagens apontam para variáveis outras que não as do planejamento
urbano: os códigos de afetividade e esteticidade que delineiam paisagens
subjetivas.
Estou então no território do lazer, no calendário das festas do Noise3D
Club. Walter Benjamin em suas “Teses sobre a Filosofia da História” afirma:
“Os calendários não contam o tempo como o relógio”. Adentrar na experiência
do lazer é primeiro compreender como essa experiência constitui um “espaço-
tempo”. Nesse sentido, a minha inspiração em Benjamin é também kantiana,
pois compreender algo é primeiramente pensar esse algo espaço-
temporalmente, ou ainda melhor, é preciso investigar como o lazer constitui um
dispositivo de espaço-tempo.
Ao fazer uma releitura da obra de Foucault, Deleuze denomina-a uma
filosofia dos dispositivos. Com isso, o autor reordena o conjunto da obra
foucaultiana não de maneira a fazer dela um todo de conceitos a serem
aplicados em qualquer situação. Deleuze propõe um uso da teoria equivalente
a uma caixa de ferramentas. Falar em termos de dispositivos não significa
pressupor formas de antemão, mas se tomar ferramentas e fazê-las funcionar:
As relações teoria-prática são muito mais parciais e
fragmentárias. Por um lado, uma teoria é sempre local, relativa
a um pequeno domínio, mais ou menos afastado. A relação de
aplicação nunca é de semelhança. Por outro lado, desde que
uma teoria penetre em seu próprio domínio ela encontra
obstáculos que tornam necessário que seja revezada por outro
tipo de discurso... Uma teoria é como uma caixa de
ferramentas... é preciso que sirva, é preciso que funcione. E
não para si mesma. Se não há pessoas para utilizá-la a
começar pelo próprio teórico que deixa então de ser teórico, é
que ela não vale nada ou que o momento ainda não chegou.
Não se refaz uma teoria; há outras a serem feitas (FOUCAULT,
1979, p. 69-71).
Os conceitos trabalhados nesta pesquisa seguem assim o princípio da
funcionalidade. Somente as ferramentas conceituais que me possibilitaram
compreender o universo das culturas juvenis estão expostas. Fruto também de
um trabalho etnográfico, procurei da melhor forma possível dar voz aos meus
informantes. Estão aqui expostos conceitos e vidas que tentam explicar o que
acontece em uma região da cidade. Que barulho é esse na cidade?
12
No primeiro capítulo, “Uma arqueologia das paisagens”, o leitor vai ser
confrontado com a perspectiva histórica da ocupação da antiga Prainha e da
Praia de Iracema, principalmente pelas atividades de lazer. O objetivo de tal
capítulo é mostrar os usos diversos daquela área e os significados sob o ponto
de vista de grupos sociais diversos.
No segundo capítulo, “Culturas juvenis: percursos teóricos
metodológicos”, exponho meus procedimentos metodológicos e discuto os
principais conceitos encontrados no meu trabalho. Isso não significa que todos
os conceitos sejam esgotados nesse capítulo. O terceiro capítulo vem
complementar o segundo e expor mais detalhadamente o universo dos gostos
musicais que atravessam as culturas juvenis.
Encerro com minhas considerações finais, esperando ter contribuído
para uma compreensão de fenômenos da vida juvenil da nossa cidade. O
barulho do Noise já não é mais audível nas noites da Rua Senador Almino.
Fico com a lembrança de suas noites em minha memória de psicólogo que fez
devir cientista-social nas noites de uma boate. Gostaria de operar como um
cineasta que através do movimento das imagens desloca o olhar do espectador
e mostra a sua perspectiva como um saber local e não a totalização de um
discurso sobre algo: um bom ou mau filme, plausível ou não plausível, que
inspire ao leitor pensar.
13
CAPÍTULO 1
UMA ARQUEOLOGIA DAS PAISAGENS
14
Figura 1-Mapa da Praia de Iracema. Fonte, SCHRAMM, Solange. Território Livre de Iracema:
só o nome ficou? Fortaleza, Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em
Sociologia UFC, 2001, p.137.
Esse é o mapa da área onde se encontra o Noise3D club. Uma vez, ao
fazer a apresentação do meu projeto de pesquisa em um encontro de Ciências
Sociais, fui criticado por não apresentar um mapa geográfico da área onde
estava o meu campo de pesquisa. Fiquei a perguntar-me sobre a relevância de
apresentar um mapa, em que somente a ocupação física se faz visível. O que
tal mapa nos diz dos processos de subjetivação, dos sentidos, das percepções
e dos afetos que atravessam as práticas de lazer e sociabilidade investigados?
O clube por mim investigado, o Noise3d Club, está localizado na área 1,
especificada como “Área de ocupação de ocupação vinculada ao antigo porto”.
As quatro áreas demarcadas entram na cartografia oficial como pertencentes
ao bairro “Praia de Iracema”, porém, o recorte delas nos faz perceber a
ocupação por usos diversos. O que ficou conhecida como Praia de Iracema, da
boêmia e do lazer, a área 2, teve sua ocupação marcada pela construção de
casa de veraneio pelas elites locais a partir da década de 1920 e,
15
posteriormente, pela construção de clubes, restaurantes e bares que vieram
consolidar a imagem dessa região como “Praia de Iracema”. A partir do uso
dessa área por essas atividades de lazer, os moradores reclamaram a
mudança do nome menos nobre de “Praia do Peixe” para Praia de Iracema.
Denominação que hoje entra na cartografia oficial englobando as quatro zonas
de um bairro em que pude encontrar tantas contradições e disputas.
Conhecida no passado como Praia do Peixe, a Praia de
Iracema emergiu na década de 1920 como balneário de
classes médias e alta da cidade, inaugurando uma alternativa
de lazer e moradia. Posteriormente, as obras do Porto do
Mucuripe e a destruição de casas, pelo avanço do mar,
provocaram mudança nas funções do bairro, cada vez menos
caracterizado como zona de moradia. Nas décadas de 1950 e
1960, o espaço litorâneo passou a servir freqüentadores que
emprestaram ao bairro uma espécie de identidade,
transformando-o em lugar de boêmios, artistas e intelectuais
(BARREIRA, 2007, p. 167-168).
Uma pergunta poderia ser feita: “Por que, então, falar das quatro áreas e
não apenas da área 3, a antiga área da Prainha, onde se insere o Centro
Dragão do Mar e o Noise3d Club?”. Justifico a opção, primeiro porque a história
do bairro Praia de Iracema é marcada por uma série de disputas e
deslocamentos. Por exemplo, quando a área 2 começou a ser apropriada pelas
elites locais na década de 1920, muitos de seus ocupantes mais humildes, na
maioria pescadores, se deslocaram para áreas mais próximas. A comunidade
do Poço da Draga foi um desses espaços anexos à Praia de Iracema. Destarte,
não dá para compreender isoladamente os conflitos em torno desse espaço da
cidade de Fortaleza.
Se os conflitos entre moradores, turistas e freqüentadores
considerados marginais, como prostitutas e consumidores de
drogas, caracterizam a disputa pelo espaço na Praia de
Iracema, pesquisa sobre áreas vizinhas ao Centro Dragão do
Mar mostra também a existência de situações semelhantes,
dotadas, no entanto, de especificidades. No Centro Dragão do
Mar, projetado para acolher diferentes segmentos sociais,
moradores de favela vizinha, Poço da Draga, reivindicam
participação e benefício (BARREIRA, 2007, p. 173).
Segundo, porque entre os entrevistados e informantes, as expressões “ir
à PI” (iniciais de Praia de Iracema); “ir ao Dragão” (quando na verdade estava
16
se falando não da freqüência ao Centro Cultural, mas aos equipamentos de
lazer que ficam no seu entorno), entre outras, mostraram-me outros modos de
nomeação que parecem não serem guiados pela delimitação oficial. Isso faz
com que operem na mente das pessoas outros contornos, bem como
diferentes princípios de delimitação e segregação do espaço urbano.
Dentre os quinze jovens por mim entrevistados e os informantes, que
não eram residentes do bairro, constituía fato desconhecido essas diferenças.
Guiados pelo uso para o lazer e também pela referência imponente do Centro
Dragão do Mar, as denominações “PI”, “Dragão” e “entorno” (esta em menor
freqüência, por mais surpreendente que possa parecer, pois a palavra
“entorno” é a mais presente nas discussões acadêmicas e também nos meios
de comunicação, quando se discute a relação do projeto de implantação do
Centro Cultural na área da Antiga Prainha) se tornam fluídas e bastante
intercambiáveis
5
. Com exceção de uma jovem que morava na comunidade
Poço da Draga, e mostrou conhecer um pouco da história das disputas nesse
espaço da cidade.
O fato também do bairro Praia de Iracema constituir objeto de tantas
investigações, seja no campo da Arquitetura ou do Planejamento Urbano, seja
no campo da Sociologia, História e demais Ciências Humanas, demonstra
também um interesse e uma pluralidade de visões e interpretações.
Principalmente após a inauguração do Centro Cultural Dragão do Mar em
1998, parece ter se intensificado uma “vontade de saber” sobre esse “pedaço”
da cidade. Tudo isso faz com que uma discussão histórica se torne relevante,
mesmo quando se está buscando a compreensão de uma prática atual.
Ao adotar uma visão física do bairro, o bairro como espaço geográfico, o
domínio simbólico precisa ser buscado, não como aquilo que viria preencher
um espaço, mas desde sempre como um constituinte do mesmo, pois o
homem habita o espaço produzindo cultura. A discussão da relação entre o
físico-geográfico e o simbólico não aparece desse modo como algo natural,
óbvio, mas fruto de uma perspectiva, entre outras possíveis.
Ao se articular lazer, espaço urbano e cultura juvenil, vislumbro pelo
menos quatro possibilidades, quando se faz o recorte através das variáveis
5
Um desses exemplos: “Eu freqüento ali, o âmbito ali do Dragão do Mar, Dragão do Mar não,
Praia de Iracema, aquele circuito ali desde 1995” (Paula, 26 anos, entrevista em 25/04/2006).
17
tempo e espaço. Exporei de maneira sumária as implicações teórico-
metodológicas de cada uma delas:
a) O espaço é fixo e físico, o tempo é variável, porém cronológico.
Se o espaço é físico e fixo, o mapa que abre esse capítulo nos serve
como instrumento de delimitação. Caberia, então, investigar que
práticas e usos acontecem no lugar. A história da atividade humana
entra em foco e, de certa forma, o lazer ficaria como coadjuvante, já
que nem sempre as atividades de lazer constituíam o eixo principal
da apropriação desse espaço (lembrar da presença de populares, da
história da ocupação pela atividade portuária). Com a percepção
cronológica, o tempo é trabalhado de acordo com as datas que
indicam mudanças ou tensões dessa apropriação do espaço urbano
b) O tempo continua variável e cronológico, podendo também haver
uma variação do espaço.
Aqui caberia a pergunta: “quantas cidades existem em uma cidade?”,
ou explicando melhor, “como as percepções, experiências da cidade,
imagens dos agentes sociais produzem vários sentidos para uma
cidade?”. Essas indagações, não com essas mesmas palavras,
foram-me postas, recentemente, pela professora Sulamita Vieira na
defesa do meu projeto de mestrado. Tal observação serviu para
atentar-me de uma precaução metodológica e também de leitura
deste trabalho. A área do entorno do Dragão do Mar não é o único
espaço de lazer para os jovens de Fortaleza. Os jovens que
freqüentam aquela área pertencem a um contexto específico, na
maioria de classe média, universitários, que possuem condições
econômicas e capital cultural para freqüentar tais bares e clubes, já
que o acesso é pago. O capital cultural impõe também o domínio dos
códigos que envolvem aquilo que se convencionou, no caso do clube
onde me detive mais a fundo, a chamar de “cena musical alternativa”,
produzida por jovens produtores e bandas locais que tentam
estabelecer um território em que seja possível a sua atuação.
18
c) O espaço é variável e o tempo é fixo e cronológico.
Ao tomar a formulação proposta no tópico anterior de que há vários
espaços de atuação juvenil na cidade de Fortaleza
6
, poderia me
perguntar sobre os lugares dessas culturas juvenis no cenário atual
da metrópole. O espaço se torna variável, não só porque há uma
multiplicidade de práticas (o surfe, o hip hop, as torcidas de futebol
etc.), mas também de espaços praticados na cidade por esses jovens
(a praia, o estádio, o centro, a periferia). Essa possibilidade ficou aqui
descartada, pois a presente pesquisa investiga um contexto de
cultura juvenil, não pretendendo fazer um inventário das diversas
práticas de lazer juvenil presentes em Fortaleza, trabalho que levaria
a uma demanda maior de tempo e que só seria possível também
com o apoio de uma equipe
7
.
d) Espaço e tempo são significados pelas montagens espaciais dos
agentes.
A ocupação de um espaço da cidade por um agente produtor de
significados (o homem enquanto produto e produtor da cultura)
implica também uma ocupação simbólica. Logo se faz necessário
repensar que experiência do tempo e do espaço está presente no
conjunto de práticas investigadas. Deixo então os mapas e os
relógios em busca do “tempo fora dos gonzos”. Isso significa, então,
organizar as práticas sociais não como objetos no espaço e no
tempo, mas como nos demonstra Arantes:
Essa dissociação lógica entre práticas sociais e tempo-espaço
ocorre, inclusive nos estudos que as situam num contexto que
se estrutura em função da lógica de determinações da
6
Proposição comprovada pelos estudos desenvolvidos sobre os grupos juvenis em Fortaleza.
Nessa linha ver o trabalho de Glória Diógenes (DIÓGENES, 2003), também a pesquisa de
Cynthia Studart Albuquerque sobre a cultura do surfe em Fortaleza, Nas ondas do surfe: estilo
de vida, territorialização e experimentação juvenil no espaço urbano (ALBUQUERQUE, 2006),
mostram as várias “Fortalezas” das juventudes que aqui se encontram.
7
Um trabalho desse porte foi realizado na cidade de Lisboa, por José Machado Pais (PAIS,
2003), onde o autor investigou os contextos juvenis da cidade, explorando três grandes áreas
da cidade, e também relacionando a isso a relação dessas diferentes culturas juvenis com as
classes sociais, o mundo do lazer e do trabalho e com os códigos e valores praticados por
essas juventudes. Tal empreitada deu-se em quatro anos de pesquisa de campo e trabalho
teórico.
19
economia, pensada como um domínio a rigor externo, anterior
e determinante das práticas sociais. Conforme alerta a
geógrafa Doreen Massey, a física ensina que é enganoso
pensar que, por um lado, haja coisas (neste caso relações
sociais) e, por outro, tempo e espaço. “Não é que as relações
entre os objetos ocorram no tempo e no espaço”, afirma ela,
mas são essas relações – elas próprias – que produzem o
espaço-tempo (ARANTES, 2000, p.86).
Nesse sentido, a investigação de práticas sociais no espaço e no
tempo levaria a outra orientação. Não mais a partir da naturalização
do discurso histórico, mas a partir da interpretação dos agentes e dos
dispositivos construídos por eles que marcam sua experiência do
tempo e do espaço urbanos. A experiência contemporânea da
metrópole não está desvinculada da perspectiva moderna sobre o
tempo. Da mesma forma, os múltiplos fenômenos que atravessam
as culturas juvenis urbanas nos indicam para variadas formas de
experiência da temporalidade.
As possibilidades a e b foram por mim trabalhadas a partir de uma
diferença que considero essencial: a maneira como a noção de tempo é
trabalhada. Ao seguir a primeira possibilidade me deparei com a tarefa de fazer
a reconstituição das áreas que compõem o bairro Praia de Iracema,
ressaltando seus diversos momentos. A noção de tempo segue a marcação do
calendário. Na segunda perspectiva, busquei trabalhar com uma noção mais
subjetiva do tempo. Os modos de territorialização das culturas juvenis na
cidade são marcados por configurações espaço-temporais mais efêmeras
(ARANTES, 2001).
1.1 A Praia de Iracema, o Dragão e o entorno em uma perspectiva
cronológica
1872- Coisas, pessoas e capitais
Os primeiros registros de ocupação da atual Praia de Iracema datam do
início do século XIX, aparecendo já no registro da Planta da Cidade feita em
1810 por Silva Paulet. Segundo Schramm (SCHRAMM, 2001), pode-se afirmar
20
essa ocupação ligada ao desenvolvimento das atividades portuárias
intensificadas nesse período. O desenvolvimento do comércio de importação e
exportação ocasionou a construção de diversos armazéns e de diversas casas
comerciais, principalmente Inglesas e Francesas.
No começo do século XIX, a tendência de instalação das Casas Inglesas
em busca do algodão intensificou a vida comercial da região. Com a guerra
pela independência norte-americana, o algodão passa a ser procurado em
outras regiões, pois era matéria-prima de grande valor para as indústrias
européias. Muitos comerciantes ingleses aportaram no Ceará no período de
1800-1850, dentre eles, Henry Ellery e John William Studart. Em 1811, chega
ao Ceará o irlandês William Wara e, em 1835, ele instala uma filial da
Singlehurst, a chamada “Casa Inglesa”. Assim, a região da Antiga Prainha,
devido a sua proximidade tanto com o Porto quanto com o Centro da cidade
passa e ser ocupada por armazéns e essas casas comerciais. Segundo
Raimundo Girão:
Ao lado das de John William floresceram as atividades
comerciais de Henry Ellery, este no ramo de exportação e
importação em larga escala, com armazéns da rua da
Alfândega e trapiche próprio para os seus embarques e
desembarques (...) O seu trapiche ou embarcadouro,
vulgarmente conhecido por “trapiche do Ellery”, ficava na antiga
Rua da Alfândega, hoje Dragão do Mar. Em frente à Igreja da
Prainha, em baixo na barranca (GIRÃO, 1959, p. 152).
A influência da Inglaterra e da França nas relações comerciais com o
Brasil e, particularmente, o caso do Ceará foi investigado por Denise Takeya
(TAKEYA, 1994). Segundo a autora, apesar de a Inglaterra ter sido a líder de
exportação para o Brasil e também de importação de produtos brasileiros, a
presença francesa começou a crescer a partir da época do Segundo Império
(meio do século XIX). O aumento da agroexploração cearense nesse período
atraiu não somente os ingleses, mas também os franceses, os quais, nessa
época, instalaram casas de comércio (Boris Fréres, Gradvohl Fréres e a Lévy
Fréres, para citar as três maiores). A Boris Fréres vai ocupar uma posição de
destaque. Estabelecida em 1872, a casa soube aproveitar o binômio
importação-exportação a seu favor, gerando vários devedores, principalmente
no período da seca de 1877. Onde hoje se encontra uma intensa vida noturna
21
ligada ao ócio e ao lazer preexistia uma vida diurna de intensa atividade
comercial. O prédio, no qual funcionava a sede da Boris Fréres, hoje abriga um
espaço cultural, bem atrás do Centro Cultural Dragão do Mar, porém outras
reminiscências desse período foram apagadas:
No caso de Boris Fréres filial, desconhecemos condições de
seus armazéns originais, na década de 70 (1870), Certo é,
entretanto, que o prédio, onde ainda hoje funciona a empresa,
construído nos anos 90, constitui um imponente e extenso
conjunto de armazéns, anexos ao escritório. Instalado,
originalmente, em frente ao prédio da Alfândega de Fortaleza,
ele possui uma pequena torre, de onde era possível
acompanhar o movimento de entrada e saída dos navios do
porto (TAKEYA, 1994, p.129).
Sabe-se que não eram somente artigos de primeira necessidade que
vinham da Europa nessas embarcações, mas muitos supérfluos como roupas,
tecidos e outras bugigangas chegavam made in Europa... A uma economia das
coisas se liga também uma economia dos signos e dos afetos. Isso já
apontavam os primeiros estudos no campo da Antropologia Econômica (vide
Mauss, Ensaio sobre a Dádiva e Malinowski, Os argonautas do Pacífico
Ocidental). Tal aspecto implicaria falar mais do que o modo de transação de
mercadorias, significaria entrar no domínio simbólico e imaginário. A esse
respeito, Raimundo Girão dá uma pequena pista sobre esse período em sua
Geografia Estética de Fortaleza:
Ingleses; por esse tempo, os títulos de muitas lojas e bares
pertencentes a brasileiros, tais como Casa Manchester, Túnel
de Londres, Ship Chandler, Casa Reeckell. Até mesmo o que
importávamos de Lisboa era... made in England, observa o
citado Hugo Vitor. “A própria moda impunha os seus caprichos
ao Ceará, segundo os modelos da ofuscante corte da Rainha
Vitória, chegados através do afamado figurino de Londres” –
“Young Ladies Journal” (2).. Ganha precisão de contornos a
nova função da Cidade – a função comercial, fundamentada
em tão indisfarçável prosperidade (GIRAO, 1959, p.155-156).
O conjunto arquitetônico da área da Prainha não tem sentido por si
mesmo, se não o ligarmos a todo o imaginário que está carregado. A influência
inglesa e francesa desse período construiu territórios (não de pedra, mas no
sentido de territoriliazação, tal como pensado por Deleuze e Guattari). São os
22
signos de modernidade, os estilos de vida, as edificações e os agenciamentos
coletivos do desejo que nos fornecem uma melhor idéia do que seria essa
“paisagem portuária” do século XIX. Logo não basta falar dos fluxos de pedras
ou dos fluxos de dinheiro, mas é preciso restaurar a cartografia em um sentido
mais amplo. Nesse sentido, o trabalho de Tião Ponte aproxima-se daquilo que
nós é dito por Raimundo Girão, ao apontar essa ligação entre as novas
paisagens subjetivas, os novos hábitos construídos nesse período.
No que toca a Fortaleza, o processo remodelador que
significou sua inserção na Belle Époque teve como base
econômica as grandes exportações de algodão através de seu
porto a partir da década de 1860 (...) Empolgados com esse
crescimento, burguesia enriquecida com vendas de algodão,
negociantes estrangeiros radicados na cidade, médicos e
demais elites políticas e intelectuais procuraram modernizar a
cidade por meio de reformas e empreendimentos que a
alinhasse aos padrões materiais e estéticos das grandes
metrópoles ocidentais (PONTE, 2006, p.70).
1925 Do Peixe ao Luxo: novas paisagens, memórias nômades e ruínas
urbanas.
Na década de 1920, a área portuária começa a sofrer algumas
transformações. O mar que antes só interessava aos comerciantes ou aos
pescadores que habitam aquela área passa a ser objeto de usufruto pelas
elites. A praia aparece, então, como um espaço de lazer e deleite para as elites
(SCHRAMM, 2001 e BEZERRA, 2005). A área onde hoje se encontra o Estoril
era habitada por pescadores, formando a Praia do Peixe. Com a apropriação
da região pelos bungalows das famílias mais abastadas, os pescadores
recuaram, muitos para a área portuária, no qual hoje se encontra a comunidade
do Poço da Draga, por trás do prédio da antiga Alfândega. O nascimento da
“Praia de Iracema” está ligado à criação de um novo “espaço-tempo” de lazer
na cidade.
As primeiras narrativas sobre a Praia de Iracema remontam a
época de sua “criação”, quando deixou de ser a Praia do Peixe,
a praia da venda do peixe, mas a bucólica Praia de Iracema,
inspirada na heroína de Alencar. Conforme já referido, os
novos grupos que, em meados da década de 1920, acorriam à
praia impuseram-lhe uma nova denominação. Pretendiam,
23
assim, forjar-lhe uma nova imagem, na tentativa de extirpar sua
história anterior, vinculada aos moradores pobres do bairro,
como será visto. Ao ato de apossar-se territorialmente da Praia,
somou-se uma apropriação simbólica, por parte das elites,
resultando na “fundação” de um novo lugar. A Praia de Iracema
“nasce”, assim, em 1925 a partir do estabelecimento de sua
denominação (SCHRAMM, 2001, p.63).
Com isso vai-se consolidando a imagem de lugar bucólico de lazer,
enquanto a região da Prainha vai sofrendo mudanças. Desde sempre a região
do Mucuripe foi tida como a mais apropriada para abrigar o porto da cidade.
Mas as obras do novo porto iniciaram-se somente em 1938 e a inauguração
ocorreu na década de 50.
Durante esse período, surgia, entre tantas contradições, a imagem da
“Praia de Iracema” ligada ao lazer. Foram construídos os equipamentos que se
seguem: 1930 (Igreja São Pedro), 1931 (Ideal Clube). Na década de 1940,
temos o Hotel Iracema Plaza (Edifício São Pedro). Em 1944, a Vila Morena,
residência do comerciante José Magalhães Porto passa a abrigar o U.S.O.
(United States Organization), clube dos soldados americanos instalados em
Fortaleza, no período da Segunda Guerra Mundial, ficando famoso por suas
noitadas e “coca-colas”
8
.
Os antigos moradores, pescadores que recuaram para áreas mais
próximas, não deixaram de freqüentar os poucos espaços que ainda podiam
usufruir como a piscininha, em que o banho de mar era uma atividade
prazerosa. Entre diversas apropriações, o bairro emerge como lugar
atravessado por vários usos e memórias. Schramm aponta que mesmo
ocupando uma posição hegemônica sendo a memória da Praia de Iracema
boêmia, devido à apropriação do lugar pelas elites da cidade, outras memórias
subsistiram como “vozes esquecidas” ou “não ouvidas”. Assim, nesse percurso,
percebo vários espaços-tempos. Tais vozes entram na cartografia da cidade a
partir do momento em que formam campos de tensão, através dos quais
vislumbra-se a estagnação da área portuária e a territorialização por outros
fluxos:
8
“A repercussão que o clube, de acesso exclusivo aos estrangeiros, teve na cidade deveu-se
às suas noitadas patrocinadas pelo governo americano, com danças, jogos e shows de
celebradas artistas do cinema, como a famosa Heddy Lamar. Presenças bem vindas eram das
moças da terra, que passaram a ser conhecidas como “coca-colas”, numa alusão ao famoso
refrigerante, que ainda não era consumido na cidade” (SCHRAMM, 2001, p.41).
24
Com a mudança do porto, também entrou em estagnação a
área dos armazéns e as casas comerciais ligadas aos negócios
de exportação, na região conhecida como Prainha, mas
imediações da Praia de Iracema. Alguns dos estabelecimentos,
além de prédios residenciais, que já existia, desde o inicio do
século, permaneceram na área, passando a ser ocupados por
usuários pobres. Outros edifícios tiveram seus usos alterados,
com a instalação de prostíbulos (SCHRAMM, 2001, p.46).
Durante a década de 1940, a Praia de Iracema se consolida como lugar
boêmio, enquanto a região portuária é ocupada por outros usos. A década que
inicia com um apogeu do lugar termina marcando seu declínio. O aumento das
marés em decorrência da construção do novo porto no Mucuripe ocasionou
uma grande repercussão nos meios formadores de opinião da cidade:
Parte do casario foi destruído em decorrência das correntes
marítimas, o que acarretou também significativa diminuição da
faixa de praia. A transformação da paisagem obrigou a saída
dos antigos moradores e freqüentadores dando início a um
discurso melancólico sobre a praia que “o mar carregou”.
Nesse período, a imprensa local começava a falar em
decadência da Praia de Iracema, associando o encanto do
bairro à sua apropriação pela elite (BEZERRA, 2005, p. 13).
A autora usa a expressão “que o mar carregou”, mostrando a referência
à música composta por Luís Assunção, nessa época, em que a Praia de
Iracema foi avançada pelas marés, na qual o autor diz: “Adeus, adeus/ Só o
nome ficou/ Adeus, Praia de Iracema/ Praia dos Amores que o mar carregou...”
Dessa forma, um fenômeno físico é reinterpretado e associado ao imaginário
sobre o bairro de forma a consolidar a “fantasia de Iracema” que transforma
aquela paisagem no paraíso do lazer e da boêmia.
Seja contra o mar, seja contra os pobres e bárbaros, Iracema sobrevive
como uma grande dama decadente de passado duvidoso (não esqueçamos
seu antigo nome, Praia do Peixe, e do quão menos nobre para as elites era a
presença de vilas de pescadores). Aos poucos, sua cafetinagem pelo dinheiro
vai se tornando óbvia, ambígua e problemática. Vozes começam a entrar em
disputa. Esquecida brevemente na década de 1950, o bairro passa a ser lugar
de encontro daqueles que resistem durante o período da ditadura. Os anos
1960 e 1970 são marcados por novos hábitos e práticas: como “fumar o pôr-do-
25
sol” na Ponte Metálica (BEZERRA, 2005, p. 15). O Estoril, mesmo não estando
mais no seu auge, era o ponto de encontro principal. A sua decadência serviu
também para evidenciar as contradições presentes em seu seio:
É importante ressaltar que a Iracema vivenciou, entre meados
dos anos 1960 e 1980, uma imagem de bairro decadente. O
bairro era habitado por famílias de classe média e média baixa,
e havia uma ocupação irregular, por meio da construção de
casas de madeira ou papelão... O público que se dirigia ao Bar
e Restaurantes Estoril e Ponte dos Ingleses, mesmo fazendo
parte de uma elite da cidade, era marginalizado por questões
ideológicas (BEZERRA, 2005, p.16).
Na década de 1980, um novo segmento de estabelecimentos comerciais
se instalou na Praia reanimando o cenário de disputas. Bares como o Cais Bar,
Pirata e La Trattoria surgem nessa época marcando outra fase do bairro, na
qual o turismo mais especulativo se instaura. A disputa por espaços traz
problemas como o congestionamento de veículos, a intensa vida noturna dos
estabelecimentos e a conseqüente poluição sonora da região. Entre antigos e
novos comerciantes, fica a disputa por qual forma de lazer seria ideal para se
instalar no bairro. Os moradores fundam em 1984 a AMPI (Associação de
Moradores da Praia de Iracema). Alguns segmentos, principalmente ligados às
classes médias, artistas e intelectuais, fazem reivindicações pela preservação
do bairro. Mas não eram vozes unânimes: “Comerciantes e moradores
defendiam opiniões divergentes, ou seja, o bairro era cenário de vozes em
conflito” (BEZERRA, 2005, p.19).
De uma apropriação forçada pelos novos hábitos da elite o mosaico da
Praia de Iracema aparece como uma zona subordinada ao deleite das elites.
Tal apropriação de um espaço da cidade não está isenta de fissuras urbanas,
provocadas por esse em bate de forças e disputas na região. Uma cidade, em
tempos de especulação pelo capital, tem como conseqüência a proliferação de
novos agentes (de pescadores que migram, de prostitutas que chegam, de
novos comerciantes que se estabelecem no bairro).
Esses fluxos demonstram a artificialidade na construção de algumas
imagens urbanas. Talvez os arquitetos, gestores e alguns sociólogos que tanto
almejam uma requalificação democrática da área ainda não tenham chegado a
um dos problemas centrais: a “Praia de Iracema” tornou-se um mito, mais
26
imaginário do que real. Como no romance de Alencar, em que muitos queriam
crer na existência real da índia Iracema, parece que tais gestores, arquitetos e
sociólogos insistem na imagem de uma Iracema mítica, imaculada que operaria
a fusão pacífica do branco e do índio, do explorador e do explorado. Na
verdade, a Praia de Iracema foi um bairro da cidade construído na
desapropriação, exclusão e disputas no espaço urbano.
Tanto os estudos de Schramm (SCHRAMM, 2001) como os de Roselane
Bezerra (BEZERRA, 2005) mostram a história do bairro como uma história de
conflitos entre memórias e práticas de apropriação do espaço. A passagem de
Praia do Peixe à Praia de Iracema não impediu que os diversos fluxos, dos que
não tinham em Iracema a sua “Praia dos Amores”, “invadissem” seu espaço e
transformarem sua paisagem. Iracema nasceu e sobrevive cafetinada, antes
pelos bungalows das elites, hoje pelas boates onde há a prostituição dos
garotos e das garotas, os quais vêm dos mais diversos bairros de Fortaleza.
Tal atividade impera na vida noturna das ruas de Iracema, principalmente na
região em torno da Ponte dos Ingleses, rasgando o cartão postal da cidade.
Antes de tudo é preciso se perguntar sobre essa tomada da região pela
atividade prostitutiva como um sintoma aberto do que foge, daquilo que não se
pode esconder: a Fortaleza das desigualdades sociais. Iracema sobrevive sob
a acusação de submissão ao capital estrangeiro e ao turismo sexual. A capital
da especulação imobiliária, do sexo fácil de michês e prostitutas em suas
noites, seu bares, seus recantos e seus paredões.
1998 O Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e o seu entorno.
Neste contexto, o Centro Dragão do Mar de Arte e cultura é
mais um dos projetos que se multiplicam pelas cidades
grandes e médias de diversos países, conjugando cultura,
patrimônio, lazer e turismo, a partir da requalificação de áreas
históricas ou da construção de edifícios com arquitetura
arrojada. Além disto, ele foi apresentado pelo governo estadual
como “âncora” de uma política cultural que pretendia inserir a
capital cearense no processo de globalização (GONDIM, 2005,
p.198).
Em agosto de 1998, começa a funcionar ainda em fase experimental o
Centro Cultural Dragão do Mar que seria inaugurado oficialmente em 28 de
27
abril de 1999. O impacto dessa obra no imaginário contemporâneo de
Fortaleza se reflete na própria maneira como se refere à área da antiga
Prainha. Tal área não fazia parte de lazer e boêmia da Praia de Iracema. O
espaço era composto por galpões fechados, alguns sobrados e outros
estabelecimentos. A sua redescoberta para fins de lazer durante a década de
1990 ocorreu com a inauguração de bares como o “Coração Materno” e o
“Besame Mucho”, localizados na Rua Dragão do Mar. Com a abertura do
Centro Dragão do Mar, em 1998, a área passa a ser incorporada e mencionada
como porção inicial da Praia de Iracema. O Centro atraiu o interesse pelo seu
entorno. Com a compra de alguns desses galpões e casas antigas para a
instalação de bares e boates, densamente localizados nas ruas Dragão do Mar,
José Avelino e Amirante Jaceguaí, consolidou-se outra “mancha de lazer” nos
arredores da Praia de Iracema.
A longa investigação da socióloga Linda Gondim demonstra que não dá
para compreender a implementação desse Centro Cultural sem relacioná-la
também ao projeto político e cultural em que ele se insere (GONDIM, 2005).
Em outro tipo de análise, dessa vez não em relação com as macro-estruturas
do social, caberia investigar como, mesmo ou apesar dessa imbricação entre o
modelo político e econômico de maiores dimensões, os agentes sociais se
apropriam desse espaço e que percepções eles nos apontam.
Nota etnográfica 24.04.05
Imagens da Cidade – A exposição apresenta o resultado do projeto
de capacitação do CDMAC, IMAGENS DA CIDADE – educação
patrimonial através da xilogravura, que aliou a transmissão e
valorização da técnica tradicional à percepção histórica e artística do
espaço urbano entre os jovens moradores do entorno do Dragão.
Fui à exposição com uma “sede de dados”. O que mais me
interessava era o fato de ter sido um trabalho feito por jovens
moradores do entrono do centro (a Comunidade do Poço da Draga).
Quando eu pensava em encontrar imagens do entorno, das ruas, das
pessoas me deparei com várias imagens do espaço do Centro
Dragão do Mar (o planetário, anfiteatro, escadas etc.) e eu fiquei me
perguntando: cadê o entorno? Era uma percepção não do entorno,
mas do Centro Dragão do Mar. Em uma delas ainda chegava a
aparecer o planetário e por trás uma rua estreita que lembrava as
ruas da comunidade do Poço da Draga. Eram imagens feitas por
jovens que moravam no entorno, exclusivamente na comunidade
Poço da Draga, mas que apagaram o entorno de suas xilogravuras.
28
Procurei algum monitor da exposição quando encontrei justamente
uma jovem que tinha participado do Projeto e autora de uma das
xilogravuras. Comecei a perguntar sobre o que era morar perto do
Centro e de que forma ela se via envolvida com o Centro. Ao que a
jovem me respondeu:
“Cultura é tudo, sem cultura você não é nada. É muito bom morar
perto do Dragão. O pessoal lá da rua tem opção de lazer grátis aqui,
muita gente traz os filhos pro“Brincando no Dragão” que acontece
todo domingo em baixo do Planetário. E ainda tem o fato de que
muita gente lá da rua conseguiu emprego com a SERVAL
9
”.
O Centro aparece nesse relato como um atrator da “cultura”, fazendo da
cultura uma propriedade que pode ser dividida entre os que possuem ou não
“cultura”. Nesse sentido, a cultura se desloca-se de sua conceituação
antropológica na qual é vista enquanto produção simbólica e imaginária das
relações sociais e passa a ser fetichizada, tornando-se uma “coisa”, embora
não palpável, mas possível de ser transmitida de onde se tem para onde não
se tem. Apesar de ser uma visão do senso comum sobre cultura, muito desse
tipo de pensamento que faz operar uma série de práticas está presente nas
próprias políticas culturais de uma maneira subentendida.
Félix Guattari chamava tal visão de conceito reacionário de cultura. Para
o autor, existiriam três sentidos contemporâneos de cultura: cultura-valor,
cultura alma-coletiva e cultura mercadoria (GUATTARI e ROLNIK,1986). No
primeiro sentido, o de cultura-valor, o autor apresenta a visão da cultura
hierarquizante entre os que têm e os que não têm cultura (cultos e incultos). No
segundo sentido, cultura alma-coletiva, a questão deixa de ser o ter ou não ter,
mas a democratização da cultura, todos têm uma identidade cultural. O risco
desse segundo sentido é o endurecimento de identidades culturais e a não
percepção da cultura enquanto dinâmica. No terceiro sentido, cultura
mercadoria, define-se a mercantilização dos bens simbólicos a partir da
capitalização da cultura.
Ao priorizarem a imagem do Centro Cultural, os jovens mostraram o
impacto do Centro Dragão do Mar como signo demarcador do local. Isso faz
com que percebamos o Centro Dragão do Mar como único lugar relevante da
cultura e do patrimônio na área. A jovem me informou que todos os
9
Empresa de serviço terceirizado que contrata pessoas para trabalhar na limpeza e segurança
de outros estabelecimentos.
29
participantes da oficina de xilogravura eram moradores do Poço da Draga e, no
seu relato, ela expõe o Dragão tanto como lugar do lazer como também de
oportunidade para quem mora em seu entorno. Mas as pesquisas, feitas sobre
as conseqüências da construção do Centro Dragão do Mar para o seu entorno,
mostram-nos uma heterogeneidade de opiniões sobre aspectos positivos e
negativos (COSTA, 2003; GONDIM, 2005 e OLIVEIRA, 2006).
De certa forma, o Centro trouxe uma visibilidade para a antiga área da
Prainha, causando um impacto naqueles que moram ao seu redor. A
comunidade Poço da Draga, onde reside a jovem do relato citado, fica
localizada entres as avenidas Pessoa Anta, Almirante Tamandaré e Rua Boris.
Tornada quase invisível pelo prédio da Caixa Econômica Federal, a
comunidade teve sua ocupação iniciada principalmente a partir dos
deslocamentos das vilas de pescadores da Praia de Iracema e também por
trabalhadores do antigo porto. O trabalho de Heloísa OIiveira ressalta a
constante ameaça de remoção da comunidade (OLIVEIRA, 2006). Tal fato vem
elucidar que a relação com o Centro Dragão do Mar não trouxe somente
benefícios para aquela população.
Contudo, mesmo sendo vizinhos do Centro Dragão do Mar, os
moradores não se sentem à vontade para freqüentá-lo, pois se
sentem excluídos daquele “mundo cultural”. Muitas vezes a
falta de roupa adequada ou o “não saber se comportar” são
decisivos. A exclusão simbólica, aliada à exclusão social,
contribuiu para acirrar as relações entre o Poço da Draga e o
Dragão do Mar (OLIVEIRA, 2006, p.61).
Soma-se a esse problema o projeto de construção do Centro
Multifuncional de Eventos e Feiras do Ceará, que seria instalado na área do
Poço da Draga, acarretando a remoção da comunidade
10
. Por outro lado, os
arquitetos e críticos do projeto do Centro Dragão do Mar questionam o fato de
não ter ocorrido uma política integrada de requalificação do conjunto
arquitetônico do entorno, remanescente do período portuário. Essa relação do
10
Em O Poço da Draga e a Praia de Iracema: convivência, conflitos e sociabilidades
(OLIVEIRA, 2006), podemos encontrar um tratamento mais detalhado dessas questões. Fruto
também de uma pesquisa etnográfica, a autora nos aponta a heterogeneidade entre o “Poço” e
a “Praia de Iracema”; mesmo estando ligados geograficamente: “O Poço da Draga parece
mesmo uma área a parte da Praia de Iracema. Um passeio pela Rua dos Tabajaras vai mostrar
dois mundos diferentes” (OLIVEIRA, 2006, p.66).
30
Dragão com o seu entorno é um problema que está desde sua origem e já foi
fruto de várias análises. Vejamos essa matéria de quatro de novembro de
2001, na qual a jornalista Ethel de Paula entrevistou o secretário de cultura da
época Nilton Almeida:
Ethel (...) Em relação ao Estado, acho que a questão central é
que, originalmente, o Dragão foi pensado como um vetor para
que, no entorno dele, se criasse um corredor cultural, houvesse
um tipo de ocupação que contemplasse não só a “cultura da
birita”, como foi apontado por um dos entrevistados na época
da reportagem...
Nilton Almeida – E não tem, não? Tem o Alpendre, o Teatro
Boca-Rica: o Estado fez um investimento no sentido de induzir,
agora, não é possível é que o Estado seja cobrado pela
instalação de “n” equipamentos culturais satélites. Aí tem que
entrar a iniciativa privada. E os instrumentos existem para isso:
financiamentos pela Caixa Econômica Federal, pelo Banco do
Nordeste, pelo BNDES. Há uma série de linhas de
financiamentos (Jornal O Povo, 4 de novembro de 2001).
O secretário tenta justificar a atitude tomada pelo Estado, dentro da
visão de que o Centro seria um atrator de uma ocupação cultural espontânea,
acreditando-se na sua potencialidade de por si mesmo atrair uma
requalificação cultural da área. Hoje, o entorno é um misto de casas culturais,
bares, boates, galpões abandonados e ruínas. Isso faz com que o “entorno”
constitua um lugar problemático para gestores, arquitetos e acadêmicos que
partem de uma visão crítica da implantação do Centro Dragão do Mar de Arte e
Cultura.
A pesquisa de Linda Gondim demonstra a relação da concepção do
Centro Dragão do Mar com a política cultural do “governo das mudanças” que
queria inserir Fortaleza na “era da globalização” (GONDIM, 2005). Na verdade,
tal política queria dar ao Ceará uma imagem de modernidade, nem sempre
condizendo com a realidade de intensa desigualdade social existente no
Estado. Surge, com esse intuito, um interesse no governo de Tasso Jereissati
pela pasta da Cultura.
Na verdade, a idéia de utilizar a política cultural como
estratégia para inserir o Ceará no processo de globalização
parece ter sido um recurso utilizado a posteriori, para viabilizar
a transformação da Secretaria da Cultura num órgão
prestigiado pela contribuição que pudesse dar ao marketing
31
político e ao projeto de desenvolvimento dos “governos das
mudanças”. Especificamente, a apresentação da produção
simbólica como elemento econômico contribuiu para a
implementação, durante o segundo mandato de Tasso
Jereissati, de uma decisão tomada no final do Governo Ciro
Gomes: construir um centro cultural que oferecesse um novo
“espaço público” para a capital e simultaneamente
incrementasse sua atratividade para o turismo, pela oferta de
uma opção diferenciada do binômio praia/forró (GONDIM,
2005, p.131).
Assim, instala-se uma política cultural em um novo tempo, apresentando
a cultura como objeto de valorização da imagem da cidade. De certa forma, a
antiga área portuária da Prainha, onde antes havia toda uma vida ligada à
economia das coisas, hoje, quando o capitalismo se volta para uma
mercantilização da cultura, se constitui como pólo de mercantilização dos
símbolos. Tal tendência lembra a requalificação cultural da região industrial do
Ruhr na Alemanha, no início do ano 2000. A área, anteriormente abrigada por
minas e indústrias pesadas passou a ser um pólo cultural:
O terreno da antiga fábrica metalúrgica da empresa Thyssen,
ao norte de Duisburg: lá se encontra o galpão da fundição
transformado em teatro grego; o galpão dos ventiladores é
agora um dos mais lindos teatros de dança e representações
da Europa (Deutschland, no. 3/2002 Junho/Julho, p. 58).
Essas mudanças nas paisagens urbanas são indícios de que a
metrópole contemporânea está sendo cada vez mais atravessada por
edificações que se referem não mais ao universo do trabalho, mas aos signos
da cultura, nos quais a referência ao lazer e ao consumo são evidenciadas.
Outro exemplo seria a Potsdamer Platz, em Berlin, com seus prédios
transparentes, onde funcionam os escritórios da Sony, ou a fábrica da Porsche
em Leipzig em um edifício em forma de diamante. Em uma nova economia dos
serviços, a paisagem urbana contemporânea se transforma a partir da
construção de grandes centros de lazer, entretenimento e consumo como os
shopping centers. Jeremy Rifkin em A era do acesso afirma que estamos
mudando para um novo capitalismo, um capitalismo cultural. Cada vez mais
deixamos de consumir objetos, para consumir “experiências de vida”.
32
Agora, a economia voltou sua atenção para a última esfera
independente remanescente da atividade humana: a cultura.
Ritos culturais, eventos comunitários, reuniões sociais, as
artes, esportes e jogos, movimentos sociais e engajamentos
cívicos estão ocupando a esfera comercial. A grande questão
dos próximos anos é se a civilização poderá sobreviver com
um governo e uma esfera cultural extremamente reduzidos e
onde apenas a esfera comercial é deixada como o mediador
básico da vida humana (RIFKIN, 2001, p.9).
Vale salientar que não estamos falando de grandes espaços públicos
como parques e praças, onde o acesso é gratuito. Ainda no entorno,
ambulantes, taxistas, flanelinhas, traficantes, michês e prostitutas também
querem sua fatia nessa zona comercial de lazer e cultura. Do Dragão ao
entorno, tudo parece estar à venda. No Centro Dragão do Mar, com raras
exceções, nada de disrruptivo emerge de seus cinemas, museus e teatros.
Tudo está para ser visto, por um olhar anestesiado, previamente construído:
imagens-clichês do vaqueiro, do nordeste, da memória etc. As imagens perdem
sua força de ativação, de afecção que nos faz problema. Do museu ao bar ou à
boate, isso não faz mais tanta diferença.
Civilização da imagem? Na verdade civilização do clichê, na
qual todos os poderes têm interesse em nos encobrir as
imagens, não forçosamente em nos encobrir a mesma coisa,
mas encobrir alguma coisa na imagem (DELEUZE, 2005, p.32).
O Centro entra no jogo da produção de uma nova imagem da cidade, de
uma Fortaleza cosmopolita e cultural. Tal produção tem sua base de
sustentação política no “governo das mudanças”, responsável pela realização
de grandes obras no Estado do Ceará, que respaldariam essa modernização.
Ainda que os indicadores sociais contradissessem essa “modernidade”.
Essa “vontade de modernidade”
11
aponta uma ruptura com o tradicional
e busca respaldo em signos globais, combinando o global e o local em uma
mesma estética. Nesse ponto, a concepção arquitetônica do Centro Dragão do
Mar foi um divisor de opiniões: enquanto os arquitetos do projeto faziam defesa
dessa estética (pós?)-moderna; os seus críticos denunciavam a falta dos
11
“As imagens modernistas põem a tônica na competitividade, na tecnicidade, na cultura
empresarial e na internacionalização da cidade, instigando uma gestão de recursos de
natureza empresarial” (FORTUNA, 2001, p.235).
33
signos da arquitetura local, das referências regionais, a dita “cearensidade” ou
“brasilidade”. Fausto Nilo, responsável pelo projeto, justifica sua posição:
É um edifício que ao mesmo tempo que tem a pretensão de
criar uma linguagem local, se submete, com humildade, a uma
brincadeira de citação de muitas arquiteturas que nos
formaram, principalmente as européias. Então, teve detalhes
do Niemyer, misturado com Le Corbusier, lá na frente, umas
coisas de Gregotti e Aldo Rossi ou de repente das fazendas do
Ceará (Fausto Nilo apud Gondim, 2005).
Outro aspecto característico de uma estética pós-moderna, denunciada
por seus críticos, residiria no fato de o Centro entrar no desenho urbano de
Fortaleza em desconexão com o conjunto arquitetônico que havia antes
(COSTA, 2003; HARVEY, 2001)
12
. As tentativas de uma requalificação
integrada foram poucas e ineficazes. Dentre elas, o Programa Cores da
Cidade, uma parceria das tintas Ypiranga com a Fundação Roberto Marinho.
O programa foi realizado em várias cidades do Brasil, com o objetivo de
preservar os diferentes equipamentos arquitetônicos de tais cidades, a partir de
sua importância histórica para a memória das cidades. Em Fortaleza, a
intenção era trabalhar a área do centro histórico de Fortaleza, o que não
acabou ocorrendo. Dividido em etapas, o projeto efetivamente só atingiu a área
do antigo porto, reformando a fachada de 56 imóveis do entorno do Centro
Dragão do Mar. A escolha dos imóveis foi alvo de crítica, por ter deixado de
fora imóveis de valor histórico e patrimonial, como o Seminário da Prainha e o
Teatro São José, por exemplo, que estão localizados nessa área (BARREIRA,
2007; COSTA, 2003 e GONDIM, 2005).
Contudo, o pouco êxito do projeto se deveu em parte pelo fato de o
Programa Cores da Cidade ter operado apenas uma maquiagem na fachada
dos edifícios, sem um suporte simbólico de referência quanto ao uso e ao
próprio modo como os agentes sociais se apropriam do espaço urbano. De que
maneira uma estratégia urbana de preservação poderia estar articulada com o
uso de tal espaço preservado por atividades que seguem os ventos da
12
Segundo Harvey: “O pós-modernismo cultiva um conceito de tecido urbano como algo
necessariamente fragmentado, um palimpsesto de formas passadas e superpostas umas às
outras” (HARVEY, 2001, p.69).
34
lucratividade e da ocupação sazonal? O discurso da preservação parece,
então, entrar em conflito com o uso esporádico e efêmero do espaço:
Embora um cenário mais vivo e colorido seja hoje vislumbrado
na antiga região portuária de Fortaleza, é fato que o programa
Cores da Cidade também não foi suficiente para consolidar
atividades na área durante os diversos período do dia – tarefa
que, de resto, ficava fora de sua proposta... a maioria dos
imóveis da área assumiu a função comercial – como na maioria
das cidades onde o programa Cores da Cidade atuou – ou
relacionadas ao turismo. Estas atividades garantem a vitalidade
dos espaços em um curto período do dia (COSTA, 2003,
p.137).
Porém, não se pode negar que o Centro atraiu para as suas atividades
um público heterogêneo, colocando-se com uma das principais opções de lazer
cultural acessível ao público, como mostra os relatórios de observação da
pesquisa feita por Linda Gondim
13
. Somou-se a isso a instalação de bares e
boate, o que gerou uma poluição sonora aos fins de semana, e a ocupação
nômade dos ambulantes, e teve como conseqüência uma disputa pela
ocupação do espaço público. Isso se reflete nos meios formadores de opinião,
por exemplo, através dessa matéria publicada no Jornal O Povo, em 30 de
Agosto de 2005, intitulada “O problema no Dragão do Mar”:
“A briga é antiga. Vendedores ambulantes que ficam nas ruas
do entorno do centro Cultural Dragão do Mar, na Praia de
Iracema, há mais de dez anos travam uma disputa com a
Secretaria Executiva Regional II para permanecer no local. A
Prefeitura alega que a via pública não pode ser ocupada por
comércio ambulante e que a ordem é retirar os bancos e
carrinhos da área” (Jornal O Povo, 30 de Agosto de 2005).
A presença desses outros atores é tornada incômoda. Eles veiculam
outra montagem do espaço urbano, como estratégia de sobrevivência para
esses agentes, que tentam de alguma forma colher benefícios da instalação do
Centro e dos equipamentos de lazer pagos que trazem para eles uma boa
clientela. Um das contravenções desses carrinhos de ambulantes é a venda de
13
“A característica de relativa heterogeneidade social dos freqüentadores é confirmada pelos
relatórios de observações, nos quais é recorrente a menção à presença de pessoas cujo
aspecto denota a pertença a classes e grupos sociais menos favorecidos “(GONDIM, 2005, p.
173).
35
bebida alcoólica, que não é permitida, mas é o principal produto procurado, já
que os carrinhos comercializam a bebida num preço muito mais acessível do
que o cobrado no interior das boates, por exemplo. Entre outros, também,
acontece um circuito ilícito de comercialização de “bagulho” (maconha), para
“fazer a cabeça” (estado de efeito após o uso da erva). O consumo de álcool e
algumas substâncias ilícitas aparecem ligados a esse contexto como fazendo
parte daquele momento, ou como me disse Tiago
14
, 19 anos: “Aqui é um
espaço livre, de curtição”.
O procedimento do nômade – o sem-teto, o camelô, o favelado,
o migrante – é sempre tático. Ele não dispõe de dispositivos de
planejamento e coerção: sua ação é ditada pelas necessidades
de sobrevivência individual. Ele instrumentaliza tudo o que está
ao seu alcance: o morador de rua usa a torneira do posto de
gasolina, o camelô toma para si um pedaço da calçada, o
favelado ocupa áreas junto a autopistas e viadutos e faz
ligações clandestinas de luz. Toda a infro-estrutura urbana vai
sendo pontualmente requisitada e redirecionada para outros
usos (PEIXOTO, 2002, p. 100-101).
Nos rastros dessas capilaridades do social, as quais funcionam a
margem do planejamento urbano e do uso racional do espaço da cidade (e
aqui caberia a pergunta: racional sob o ponto de vista de quem? seria racional
um modelo social que produz a exclusão de certos bens a determinados
indivíduos?), percebo uma trama social complexa que nos apontam para outros
modos de olhar a cidade. Ao seguir esses mesmos rastros, me vi forçado a
trabalhar com outra visão do tempo e do espaço, que saíssem do plano da
macro-estrutura da História e da Oficialidade, com a inserção nesses
microcosmos do social, nessas estratégias de habitar e se apropriar da cidade.
Quando comecei minhas andanças pelo Dragão e o seu entorno, parecia
que um “outro mundo” se desnudava, que não os das discussões sobre
arquitetura, patrimônio e memória. De início, o lugar da cultura para uns é
rotina de trabalho para outros, se pensarmos nos funcionários de bares e
boates, também do Centro, além dos ambulantes. Uma jovem senhora que fica
com sua banquinha sempre em frente ao Hey Ho Rock, Bar na José Avelino,
14
Os nomes de todos os informantes são fictícios, atendendo ao pedido daqueles que pediram
para não serem identificados. Apenas os nomes de bandas e dos locais (boates, clubes, ruas
etc.) foram deixados como os originais
36
certa noite, contou-me que deixava seu filho pequeno com sua mãe para vir
trabalhar, vendendo balas, bebidas e cigarros na porta da boate.
Outras subjetividades transitam ali completamente desconectadas do
que acontecia, sem-tetos presos a uma realidade outra pelas amarras do
psiquismo e da arbitrária normalidade em que residimos. No início do trabalho
de campo, todos esses elementos me interessavam. Meus olhos e meus
ouvidos estavam superexcitados por tudo o que acontecia. Eu já saía de casa
(no Conjunto Marechal Rondon, bairro pertencente à Grande Jurema, na
Caucaia, município da região metropolitana de Fortaleza) com os meus
sentidos ligados.
De casa até o Dragão tomava dois ônibus. O primeiro até o terminal do
bairro Antônio Bezerra. De lá ia a bordo da linha Antônio Bezerra – Mucuripe
que passava na Praia de Iracema, seguindo a Avenida Abolição até seu
destino final no Porto do Mucuripe. Nesse terminal, entre às 21h-23h, poucas
linhas têm em suas paradas uma fila tão numerosa de passageiros a espera de
ônibus, isso nas noites de sexta e mais intensamente aos sábados, como essa
que tomo rumo ao “campo de pesquisa”. Percebo, então, que não sou o único
a me dirigir a Praia de Iracema, as roupas e as conversas me revelam que a
maioria tem como destino final o Dragão e a Praia de Iracema. É hora de “sair
pra balada”.
No papel de pesquisador, eu encarnava um devir-voyeur
15
daquelas
vidas, das quais eu buscava captar seus signos. Certa noite, percebi que a fila
estava cheia de jovens vestidos de preto, rapazes de cabelo comprido, moças
com longos vestidos negros e maquiagem carregada de sombras etc. A cada
parada outros jovens adentravam, falavam das paqueras, bebedeiras dentre
outras coisas. Uma das moças puxou da sua bolsa uma pequena garrafa de
cachaça, popularmente conhecida como celular. Eles aproveitavam que o
ônibus estava lotado, não dando vistas do que estavam fazendo nem ao
motorista, nem ao cobrador do ônibus. Eu ia logo atrás e do meu lado estava
15
“Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimese), mas encontrar a zona de
vizinhança, de indiscernibilidade ou indeferenciação tal que já não seja possível distinguir-se de
uma mulher, de um animal ou de uma molécula: não imprecisos nem gerais, mas imprevistos,
não-preexistentes, tanto menos determinados numa forma quanto se singularizam numa
população” (DELEUZE, 1997, p. 11). Ou seja, não significa que me tornei um voyeur, ou
assumi tal identidade, mas que operei em mim um modo voyeur de conduta.
37
sentado um rapaz de cabelos compridos, todo de preto que atendia pelo nome
de Chicão.
O ônibus deixou de ser, então, para mim apenas um meio de transporte
da casa ao campo. O ônibus apresentava-se como uma forma de transição,
que me possibilitava ir lapidando o olhar e a escuta. No ônibus era possível ter
uma visão de alguns estratos que freqüentavam a área do entorno: jovens,
garçons de bares e restaurantes, seguranças etc.
Certa vez, chamou-me bastante atenção à conversa explícita de duas
garotas de programa no ônibus, sem o menor receio de estarem sendo
ouvidas, já que sabemos do estigma social que carregam essas trabalhadoras.
Uma das garotas se queixava que não gostava de atender alguns estrangeiros,
principalmente italianos, porque apesar de “eles pagarem bem, acham que são
donos da gente, teve um que ficou com raiva, porque eu disse que não ia
atender e mandei outra menina”. Pelo desenrolar da conversa, entendi que elas
trabalhavam em uma casa de conveniência nas intermediações da Praia de
Iracema, onde eram agenciadas. Eram moças bastante jovens, aparentando
uns vinte e poucos anos. A outra discordava do que a amiga dizia e falava de
um “gringo”, o qual a tinha levado para o hotel em que estava hospedado. A
moça contava que ela nunca tinha estado em um lugar “tão alinhado” e que “
ele tinha um computador daqueles mulhé que é tipo uma caixinha, que abre e
fecha”. Supus que ela estava falando de um lap top; reencontrar a inocência de
uma prostituta diante de um computador portátil, pareceu-me um signo
revelador da exclusão de uma série de atores sociais aos avanços
tecnológicos, mostrando uma moral duvidosa do sistema político-econômico
em que vivemos...
Esses pequenos estratos de conversas, ouvidas às vezes sem querer,
poderiam ter passado tranqüilamente desapercebidos. Mas possuem uma
riqueza elucidativa do ponto de vista de uma antropologia urbana, desde
sempre preocupada em compreender esses contextos que formam o tecido
social: encontro de línguas, origens sociais, acesso à informação e ao
conhecimento etc. Foi a partir desses indícios, semelhantes a pequenas pontas
de novelos, que estive atento para puxar a pista da compreensão dos
fenômenos sociais. O ônibus não é só um meio de transporte, mas é também
um meio de mistura desses agentes (jovens, garçons, ambulantes, prostitutas
38
etc.). O que nos faz pensar a cidade atravessada por diversos mundos,
fisicamente próximos em um meio de transporte, mas apontando para redes de
sociabilidades diversas: o trabalho, o lazer e o sexo.
Esses mundos se tocam, cruzam, relacionam, mas não se
confundem. Há aqueles indivíduos que atravessam
constantemente as fronteiras, desempenhando diferentes
papéis sociais, de acordo com contextos e situações (VELHO,
1999, p. 17-18).
De certa forma, esses lugares do nosso cotidiano são produções sociais
ricas de sentido, e o trabalho do pesquisador geralmente começa quando nos
pomos a perguntar, na pista daquilo que disse José Machado Pais: “como é
que o quotidiano vivido de pequenas significâncias se pode transformar num
mundo concebido de sociológicas relevâncias?” (PAIS, 2003, p.170). Essas
primeiras significâncias, esses ecos de conversas, pedaços de vida roubados
por minha escuta bisbilhoteira foram os primeiros motivadores a buscar outra
chave de compreensão para as relações entre espaço e tempo na cidade.
Essas ocupações pelo lazer e pelo trabalho informal se inscrevem nas
liminaridades do tecido social conforme têm apontado vários estudos
(ARANTES, 2000; FONSECA, 2003 e CANEVACCI, 2002).
a experiência urbana contemporânea propicia a formação de
uma complexa arquitetura de territórios, lugares e não-lugares,
que resulta na formação de configurações espaço-temporais
mais efêmeras e híbridas do que os territórios sociais de
identidade tematizados pela antropologia clássica. Essas
configurações tendem a se formar à margem dos territórios que
têm sido interpretados como expressão de identidades
fortemente enraizadas em determinados lugares, claramente
contrastadas e bem definidas” (ARANTES, 2000, p. 106).
1.2 O Centro, a praça, as ruas e a boate: encontros e desencontros
no território do fugaz
Falar das noites do entorno do Dragão do Mar significa relatar
perambulações nas suas ruas, seus bares e suas praças. O meu primeiro
ponto de aterrissagem foi justamente os locais onde as galeras se
encontravam, se agrupavam antes de adentrarem o espaço das boates.
39
Conhecia a região já há bastante tempo, pois era um freqüentador assíduo
desse lugar. Um desses pontos de encontro das turmas de amigos ficava
embaixo do Planetário do Centro Dragão do Mar. As boates abrem entra as
22:00-23:00h, mas “o bom mesmo é entrar quando já estar “bombando”... eu é
que num vou entrar logo, espero a galera chegar, não vou nem varrer lá dentro
– risos” (Tiago, 19 anos, estudante).
“Estar bombando” significa que a casa está cheia, pois ninguém gosta
de entrar em um lugar vazio, muito menos sozinho. O circuito de bares e
boates disputa o público e alguns estabelecimentos aparecem como lugares da
moda. Aos poucos, percebi que essa permanência no lado de fora até por volta
da meia-noite era um procedimento freqüente, servia também como momento
de encontro entre amigos e estabelecimento de novos laços, hora de conhecer
aquele amigo do amigo, das apresentações e tomar uma cervejinha ou chopp
de vinho do Bar do Bexiga, bastante popular entre os jovens.
A rotatividade dos estabelecimentos faz com que a efemeridade seja um
fenômeno permanente daquela área. Do começo da pesquisa de campo, em
março de 2005, até sua conclusão em setembro de 2006, três bares e duas
boates fecharam suas portas. Através de conversas informais, descobri que
uma dessas boates era propriedade de um português, o qual possui outra
grande boate que ainda está em bom funcionamento na região do entorno. A
boate que foi fechada era dirigida ao público GLS (gays, lésbicas e
simpatizantes). Poucos meses após seu fechamento, surgiu, no galpão da
boate, uma casa de forró. Perguntei, então, ao meu informante se o dono tinha
vendido o galpão para outra pessoa, ao que ele me respondeu que não, o
português ainda era o dono e decidiu fechar, pois a boate GLS não tava
rendendo mais tanto dinheiro.
A maioria das boates está entregue às mãos de promoters. Promoter é a
pessoa responsável pela produção das festas e pela definição do público-alvo
da boate. O promoter elabora um projeto e apresenta ao dono, estabelecendo
o tipo de proposta que tenha para o local e o retorno financeiro do negócio. Se
o dono analisar que o projeto tem um retorno financeiro, ele aceita a proposta e
dá carta branca ao promoter. Ou seja, os produtores das festas não são os
donos do estabelecimento. Os donos estão interessados nas festas como um
negócio, enquanto que geralmente promoters/produtores e o público estão
40
interessados nos contextos de lazer e sociabilidade através dos gostos
musicais que as festas produzem.
Isso faz com que o fechamento de um estabelecimento não signifique
necessariamente o desaparecimento de seu público nas ruas do entorno. Uma
informante que freqüenta a área há muito tempo me lembra de uma época
anterior ao Centro Dragão do Mar onde havia casas noturnas na Praia de
Iracema nas quais sempre aconteciam festas de heavy metal. Mesmo com o
fechamento de tais casas, o público continuava a freqüentar o espaço das ruas
ao seu redor e agora o entorno do Dragão como ponto de encontro:
Nessa época, o foco, 95 96 [1995-1996], era assim: era banda
de heavy metal e as guitar bands, né, mais aquele som de
guitarras e tal. Então, depois que chegou aquela parte ali do
Dragão do Mar, inclusive a gente tocou no Padangue
Padangue, o que eu acho engraçado é que as pessoas que se
vestem de preto, botam né aqueles sobretudos enormes e
ainda vão pra ali... era freqüente aquele pessoal se encontrar
ali embaixo da cúpula [da cúpula do Planetário do Centro
Dragão do Mar] e ficava ali né, naquele gueto ali conversando
e tal, e era totalmente caracterizado. Era como se tivesse
revivendo aquela música, aquele heavy metal. Como é que eu
posso dizer? Aquela imagem do heavy metal, do Black metal,
aquela coisa pesada do coturno e tal, do olho preto à La Kiss
[banda de rock] (Paula, 26 anos, entrevista em 25/04/2006).
Fica então a pergunta: se havia público, por que fechou? Um dos
discursos sobre o Noise 3D, em 30 de junho de 2007, pode ser elucidativo da
questão. Na verdade, uma das razões que podem ser apontadas é que esse
público dito fiel constitui uma minoria frente ao que é necessário para manter
um estabelecimento em funcionamento. O que, na maioria das vezes, faz lotar
uma casa é outro tipo de público, mais esporádico que é guiado pela “moda”
dos locais. Isso se deve a quanto determinada boate consegue manter em
evidência aos olhos dos jovens que sempre buscam novos lugares para se
divertir. Uma palavra nativa é muito comum para falar de locais que eles julgam
já saturados: “cansado”. A estratégia de publicidade se torna fundamental.
Algumas boates colocam desde cedo, nas redondezas do Centro Dragão do
Mar, jovens panfletando flyers das festas que irão acontecer (ver a foto que
abre essa seção). A presença de um público presente é fator apontado por
esse relato na comunidade do Orkut do Noise3d club: muita gente precisa
41
aprender que a CENA ALTERNATIVA, como algo conceitual que vai além do
gosto pela música que tá tocando, precisa essencialmente de um público
pagante e presente” (extraído em 10/07/07).
Figuras 2 e 3 Flyer da festa “Me Leva”, frente e verso.
Assim, na formação desses territórios, conjugam-se os interesses
financeiros, a produção cultural e as formas de habitar o espaço urbano pelo
lazer de uma maneira efêmera e fragmentária. O seguinte flyer (volante) de
uma festa aparece como uma imagem-síntese dessa complexidade.
O flyer comunica a imagem de uma pós-experiência de lazer através da
foto de alguém que volta para casa depois de uma noite de festa. Como meio
de divulgação ele já não prende seu texto o “depois da festa”. O “depois da
festa”, o “ter o que contar” é o produto principal e mostra que a satisfação foi
obtida restando apenas voltar para casa. A intensidade da festa se torna tão
fugaz que desde já (num flyer convite) ela já é significada como memória.
A estratégia efêmera dos espaços entra em sintonia com uma visão
fugaz da experiência. Em Modernidade Líquida, o sociólogo Zygmunt Bauman
defende uma análise da sociedade contemporânea a partir da flexibilidade das
formas de coesão social. Tal flexibilização veio a definir a “modernidade”,
segundo o autor (BAUMAN, 2001, p. 14-15). Porém, a flexibilização das formas
42
de coesão não significa descontrole ou caos social, já que cada vez mais há
uma necessidade de regulação dos fluxos sociais. Se o começo da Sociologia
é marcado pelo interesse por essas instituições totais que promovem a coesão
(a religião, o Estado, o trabalho, principalmente); a Sociologia contemporânea
tem buscado justamente compreender a trama social no momento em que tais
instituições parecem estar em crise ou mostrar que o jogo social é muito mais
tenso e maleável. Até meados da década de 1980, as análises ligadas ao
pensamento de Marx foram responsáveis por apontar que a modernidade fazia
operar dentro de si uma série de contradições. A célebre máxima de Marx e
Engels “Tudo que é sólido desmancha no ar”, extraída do Manifesto
Comunista, foi constantemente retomada enquanto crítica dos pilares da
modernidade (BERMAN, 1986).
No debate contemporâneo, novas noções e referências teóricos entram
em jogo: palavras como “rede”, “desencaixe”, “complexidade”,”desconexão” e
“exclusão” passam a habitar a ordem do discurso sociológico. Tais conceitos
servem para interpretar as atuais formas de coesão social por meio das
transformações operadas, principalmente, pelo impacto dos avanços
tecnológicos e das mudanças no modo de vida das pessoas inseridas em uma
economia mundial de mercado; notadamente produtora de um grande
contingente de pessoas que vivem à margem de seus benefícios. Bauman
aponta uma experiência do espaço e do tempo guiada pela instantaneidade:
A nova instantaneidade do tempo muda radicalmente a
modalidade do convívio humano e mais conspicuamente o
modo como os humanos cuidam (ou não cuidam, se for o caso)
de seus afazeres coletivos, ou antes o modo como
transformam (ou não transformam, se for o caso) certas
questões em questões coletivas” (BAUMAN, 2001, p.147).
A grande cidade parece ser o lugar mais apropriado para verificar esses
encontros fugazes entre indivíduos. Importante lembrar que o nascimento das
Ciências Sociais é marcado também pela consolidação dos grandes centros
urbanos pós-Revolução Industrial. A vida nas grandes cidades aparece como
preocupação para os primeiros cientistas sociais. As transformações que
trazem mudanças nos arranjos sociais suscitam novas formas de compreensão
e decifração. As grandes cidades do século XIX surgem como espaços-críticos
43
para usar uma expressão de Paul Virilio (VIRILIO, 1993). As linhas das
transformações econômicas, políticas e culturais vão traçando a cartografia
dessas novas paisagens.
Quando me debrucei sobre os trabalhos de Benjamin, Park e Simmel
sobre a vida nas grandes cidades, percebi já neles um questionamento sobre
os princípios de coesão social impostos pela metrópole e as novas
sensibilidades que dela emergem. O cerne de suas análises está no empirismo
urbano, ou seja, no trabalho, na arte de viver na grande cidade. Em A
metrópole e a vida mental, Simmel se propõe analisar a influência da metrópole
na vida mental dos indivíduos (SIMMEL, 1979). Benjamin parte da poesia de
Baudelaire para fazer uma descrição da Paris do Segundo Império
(BENJAMIN, 1981). Em Park, essa via de análise através da subjetividade
aparece explícita já no início de seu texto:
Antes a cidade é um estado de espírito, um corpo de costumes
e tradições e dos sentimentos e atitudes organizados, inerentes
a esses costumes e transmitidos por essa tradição. Em outras
palavras, a cidade não é meramente um mecanismo físico e
uma construção artificial (PARK, 1979, p.26).
O fato é que os autores não desconsideram as transformações objetivas
que redefinem o espaço urbano, mas não fazem das atitudes dos agentes uma
mera conseqüência disso, usando um esquema causa-efeito. Eles buscam
compreender essa experiência urbana de maneira imanente, tornando
indivíduo e sociedade coextensivos. Os fenômenos cognitivos-perceptivos dos
agentes entram então em uma sociologia molecular. Não a grande sociologia
das infra-estruturas econômicas e das representações coletivas, mas a
sociologia menor
16
dos gestos, sentimentos, percepções, desejos,
16
No sentido de minoritário trabalhado por Deleuze e Guattari (DELEUZE e GUATTARI, 1997).
Para os autores, o devir-menor ou minoritário não está em uma relação de inferioridade a algo
que seria majoritário seja no sentido numérico ou hierárquico. Menor é todo campo de
capilaridades que formam uma rede além e aquém do plano representacional e identitário. Ver
também o trabalho de Tiago Themudo, Gabriel Tarde: sociologia e subjetividade, no qual ao
ressonar a sociologia de Gabriel Tarde na filosofia de Deleuze e Guattari, o autor afirma: “Cada
microacontecimento exige a reunião de uma multiplicidade sub-representativa de componentes
cuja composição é da ordem das singularidades, não podendo, portanto, ser completamente
recuperada pelo conceito da representação. Não podemos recompor as condições iniciais de
um fenômeno histórico, tal como em um sistema reversível que passamos das causas aos
efeitos e dos efeitos às causas sem o menor problema. Isto não pode ser feito com a história,
nem com a vida” (THEMUDO, 2002, p.94).
44
propagações e múltiplos sentidos que muitas vezes não se definem por uma
grande representação, seja de classe, seja fruto de uma consciência coletiva
operando pela crença.
Para Simmel, o espaço social da metrópole põe em cheque a autonomia
da individualidade. As forças sociais tendem a esmagar essa esfera que deve
ser resguardada para a sobrevivência do trato social. Segundo Simmel, existiria
um tipo metropolitano de individualidade. A metrópole seria uma formação
social superestimulante. Os sons, as imagens e as pessoas tornam a cidade
grande um lugar onde os sujeitos são bombardeados de estímulos o tempo
inteiro. Tudo isso faz com que o fato de ter que sobreviver na grande metrópole
implique um trabalho de encontrar diversas pessoas e estar preparado para as
muitas relações impessoais. A grande cidade interfere na interioridade dos
agentes. Sua análise se torna rica ao romper dentro do campo sociológico as
dicotomias clássicas indivíduo-sociedade, interioridade-exterioridade,
resguardando a heterogeneidade desses campos, mas fazendo-os
coextensivos:
A técnica da vida metropolitana é inimaginável sem a mais
pontual integração de todas as atividades e relações mútuas
em um calendário estável e impessoal. Aqui, novamente as
conclusões gerais de toda a presente tarefa de reflexão se
tornam obvias, a saber, que, de cada ponto da superfície da
existência – por mais intimamente vinculados que estejam à
superfície – pode-se deixar cair um fio de prumo para o interior
das profundezas do psiquismo, de tal modo que todas as
exterioridades mais banais da vida estão, em última análise,
ligadas às decisões concernentes ao significado e estilo de
vida (SIMMEL, 1979, p.15).
Interioridade psíquica e exterioridade social não aparecem então
separadas, mas formam continuidades. Logo indivíduo e sociedade constituem
pólos de um mesmo plano, fazendo-me pensar na imagem da dobra discutida
por Deleuze
17
. O interior é uma dobradura do fora: das relações sociais passa-
se ao universo das relações consigo (interioridade psíquica). Não é pela vida
da total coerção que o indivíduo se torna um efeito das relações sociais. Pois
essa dobradura interior não forma um vazio, mas um campo de forças, em que
insistem um desejo e uma singularidade.
17
DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.
45
Se o mito moderno do indivíduo autônomo insiste em sobreviver, isso
acontece, porque ele é um dos vetores que ainda faz funcionar as forças dessa
interioridade, ainda que não seja o senhor delas. Nesse jogo tenso, é preciso
reexaminar a idéia de indivíduo e compreender os agenciamentos que vão do
indivíduo à sociedade.
Ao contrário de naturalizar a noção de individualidade, a Sociologia
deve buscar compreender os rearranjos das relações sociais em sua interface
com as relações consigo, problematizando as forças que perpassam o campo
social. Simmel abre o início de A metrópole e a vida mental com a seguinte
proposição:
Os problemas mais graves da vida moderna derivam da
reivindicação que faz o indivíduo de preservar a autonomia e
individualidade de sua existência em face das esmagadoras
forças sociais, da herança histórica, da cultura externa e da
técnica de vida (SIMMEL, 1979, p.11).
Ele não conceitua, mas continua seu texto com uso desse termo: técnica
de vida. O que procuro extrair de seu trabalho para minha investigação reside
nessa sua compreensão de um socius a partir da mudança, fazendo uma
análise focada no campo da prática. Simmel se perguntava sobre o presente
da metrópole: que nova vida é essa que se redesenha na grande cidade? como
ela está em conexão com a mutação dos esquemas de cognição e
sensibilidade dos indivíduos? seriam essas técnicas de vida os artifícios da
sociabilidade? o campo prático das relações consigo e com os outros?
Ao procurar uma noção de indivíduo/subjetividade no domínio social
onde os elementos da sensibilidade e da interioridade sejam possíveis de
serem discutidos nas Ciências Sociais, insisto na possibilidade de falar das
relações espaço-tempo na metrópole contemporânea a partir das paisagens
subjetivas dos agentes. Excluo as argumentações de que tal fato não seria um
“problema sociológico”. Fico com a perspectiva de Deleuze quando ele
redefine, a partir do exame da obra de Foucault, a relação da subjetividade
moderna com o social:
E o que dizer, enfim, dos nossos próprios modos atuais, da
moderna relação consigo? Quais são nossas quatro dobras?
46
Se é verdade que o poder investe cada vez mais nossa vida
cotidiana, nossa interioridade e individualidade, se ele se faz
individualizante, se é verdade que o próprio saber é cada vez
mais individualizado, formando hermenêuticas e codificações
do sujeito desejante, o que é que sobra para nossa
subjetividade? Nunca “sobra” nada para o sujeito, pois a cada
vez, ele está por se fazer, como um foco de resistência,
segundo a orientação das dobras que o subjetivam o saber e
recurvam o poder. A subjetividade moderna reencontraria o
corpo e seus prazeres, contra um desejo tão submetido à Lei?
(DELEUZE, 1988, p. 112-113).
A cada vez o sujeito está por se fazer em tensão com as forças sociais.
Simmel encontra na atitude de indiferença perante o outro, denominada atitude
blasé, a resistência do cosmopolita a essas forças: “Não há talvez fenômeno
psíquico que tenha sido tão incondicionalmente reservado à metrópole quanto
a atitude blasé” (SIMMEL, 1979, p.15). O fluxo de pessoas faz com que os
sujeitos refugiem-se em suas personalidades. O culto ao “eu” aparece como
estratégia de sobrevivência a esse fluxo de alteridades aterrorizador da cidade
grande. As condições sociais da cidade grande criam assim uma economia
coletiva dos afetos, operando na maioria das vezes inconscientemente. Não há
uma racionalização, porém uma incorporação de uma sensibilidade urbana
compondo um “estilo de vida”.
Dos nervos superestimulados do cosmopolita simmeliano passo ao
flâneur de Benjamin. O sentido principal da flanerie é o olhar. Benjamin toma
como analisador o modo que a vida urbana aparece na literatura de Baudelaire
e também em relação com outros escritores: Poe, Victor Hugo, Dickens. Pois,
segundo Benjamin, Baudelaire não era o único que apontava as mudanças nas
atitudes dos sujeitos nessa paisagem urbana em mudança constante
(BANJAMIN, 1981). Ao olhar do flaneur acrescento também os vetores da
velocidade. Paul Virilio aponta a partir da história da cidade de Paris, que é
também o campo de Benjamin, a passagem de cidade fortaleza para cidade via
de trânsito (VIRILIO, 1993). Enquanto na fortaleza o controle se exerce entra
as substâncias que devem entrar e aquelas que devem sair, na cidade sem
muros a relação é menos com as substâncias do que com as velocidades. Em
uma cidade aberta à circulação de homens, coisas e signos, esse controle
urbano se exerce no regulamento das velocidades.
47
Quando Benjamin problematiza o flaneur na literatura, ele introduz outra
sensibilidade diferente da atitude blasé simmeliana que faz o indivíduo se
proteger da superestimulação da metrópole. Benjamin encontra na literatura
um vetor de desaceleração da velocidade na experiência urbana. O flaneur é
aquele que olha, observa os fluxos, não de uma maneira indiferente, mas
misturando-se na massa. Benjamim escreveu sobre a fotografia e o cinema
que surgia na sua época, conhecendo bem a potência do olhar frente às
visibilidades. A fotografia desacelera o tempo, captura momentos e afetos. O
cinema opera uma montagem do olhar, trabalhando com um tempo fictício que
não é mais o tempo da vida real, mas o tempo da imagem. A subjetividade-
flaneur, encontrada na literatura daquele período opera uma intervenção óptica
em um mundo social anestesiado que não teria mais tempo para a percepção
desse universo microssociológico da vida cotidiana. Benjamin rompe com a
banalização do que é visto:
Para o flaneur, há um véu entre ele e esse quadro. A massa é
esse véu; ela balança nos “complicados meandros das antigas
metrópoles”. Ela faz com que o horrível o encante. Só quando
esse véu se rasga, liberando o flâneur para um desses “locais
normalmente cheios de gente”, é que, estando “eles
completamente vazios da batalha das ruas”, ele chega então a
ver a cidade sem maiores distorções (BENJAMIN, 1981, p. 86).
O flaneur faz funcionar uma esquize no olhar. Entre ele e aquilo que é
dado à visão, ele introduz o elemento do vazio, desconfiando do que está
sendo visto. Algo falta ser visto, é preciso parar e observar bem essa massa
que encobre o olhar. A multidão torna-se um problema, pois é preciso se
misturar a ela, mas depois estranhá-la e afastar-se para uma visão sem
distorções da paisagem urbana.
O olhar do alegórico a perpassar a cidade é o olhar do
estranhamento. É o olhar do flâneur, cuja forma de vida
envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma
vindoura do homem da cidade grande. O flaneur ainda está no
limiar tanto da cidade grande quanto da classe burguesa. Em
nenhuma delas ele se sente em casa. Ele busca o asilo na
multidão. Em Poe e Engels encontram-se as primeiras
contribuições para a fisionomia da multidão. A multidão é o véu
através do qual a cidade costumeira acena ao flaneur enquanto
fantasmagoria (BENJAMIN, 1981, p.39).
48
Nesse mesmo período, Benjamin ressalta também a efervescência da
literatura de detetive, principalmente os escritos de Edgar Allan Poe, traduzidos
por Baudelaire. A subjetividade-detetive se aproxima da subjetividade-flaneur,
pois ambas não tratam o visível com obviedade. O campo do olhar não é
campo das plenitudes, mas é atravessado por microvazios. Em toda
visibilidade, insiste o (in)visível desterritorializando as paisagens.
Também, no campo da literatura, é possível vislumbrar essa crítica do
olhar imediato. Em A carta roubada Poe põe em cheque a plenitude do olhar.
A personagem da Duquesa esconde uma carta no lugar mais visível, tão visível
que passa despercebida por todos. Qual o melhor esconderijo para algo? No
conto de Poe o melhor esconderijo não é o mais distante da visão, e sim o que
está mais a vista. Tanto em Poe como em Benjamin, o olhar deixa de ser uma
constatação e passa a ser um exercício de sensibilidade.
Park, juntamente com os outros autores que compuseram a Escola de
Chicago, será um dos pioneiros na percepção da grande cidade como uma
formação social diferenciada. Assim como há o Estado ou a Nação, existe uma
formação social denominada metrópole, sendo preciso investigar a construção
desse espaço social. Park tem uma percepção mais microssocial da metrópole,
buscando compreender os diversos mundos que existem em uma grande
cidade:
A vida e a cultura urbanas são mais variadas, sutis e
complicadas, mas os motivos fundamentais são os mesmos
nos dois casos. Os mesmos pacientes métodos de observação
despendidos por antropólogos tais como Boas e Lowie no
estudo da vida e maneiras do índio norte-americano deveriam
ser empregados ainda com maior sucesso na investigação dos
costumes, crenças, práticas sociais, e concepções gerais de
vida que prevalecem em Little Italy, ou no baixo North Side de
Chicago, ou no registro dos folkways mais sofisticados dos
habitantes de Greenwich village e da vizinhança de
Washington Sqauere em Nova Iorque (PARK, 1979, p. 26).
Park propõe assim uma cartografia desses nomadismos que compõem a
metrópole. A cidade surge como espaço atravessado por vários fluxos:
nacionalidades, línguas, estratégias de sobrevivência e estilos de vida. O autor
acaba fazendo um inventário de vetores que fazem da cidade um lugar
49
marcado pela multiplicidade. Ele reconhece como Benjamin o valor dos
ficcionistas desse período na compreensão do espaço urbano, porém sugere o
método etnográfico como ferramenta eficaz na investigação do fenômeno
urbano:
Estamos em débito principalmente com os escritores de ficção
em nosso conhecimento mais íntimo da vida urbana
contemporânea. Mas a vida de nossas cidades requer um
estudo mais inquisidor (PARK, 1979, p.28).
Assim não somente os textos científicos, mas a literatura, a música, o
cinema e outras produções artísticas podem servir de artefatos na construção e
interpretação de mundos. Da mesma forma, eles podem inspirar à criação das
ferramentas metodológicas. Em Benjamin, a expressão estética do flaneur na
literatura fornece um modo de exercitar o olhar a partir de uma experimentação
da sensibilidade que trabalhar a dimensão do olhar e do tempo. Simmel me
levou a buscar um modo de explicação para a relação entre os fenômenos
perceptivos-cognitivos e as formações sociais, fazendo-me ver os
agenciamentos coletivos desses modos de perceber e sentir. Para além dos
mapas, é preciso fazer uma arqueologia das paisagens subjetivas.
Tomei a inspiração na flaneurie benjaminiana e parti em busca de
recompor um mapa a partir das sensibilidades que transitavam o entorno do
Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. Os meus sentidos ocuparam um
papel fundamental nesse primeiro trabalho que não era ainda o da elaboração
de um discurso coerente, mas a coleta de impressões e significados. As
experiências de contato no espaço fechado dos bares e boates são guiadas
pelo princípio da acessibilidade via consumo. O cenário de vários
estabelecimentos de lazer pago faz com que se rearranje o espaço da rua:
busca de vagas para carros, ambulantes comercializando bebidas e jovens que
se agrupam. Esses espaços noturnos de lazer pago, ao produzirem um modo
de encontrar-se na cidade, tornam-se paradigmáticos de um novo tipo
de espaço público mas não civil se destina a servir aos
consumidores, ou melhor, a transformar o habitante da cidade
em consumidor. Nas palavras de Liisa Uusitalo, “os
consumidores freqüentemente compartilham espaços físicos de
consumo, como salas de concertos ou exibições, pontos
50
turísticos, áreas de esportes, shopping centers e cafés, sem ter
qualquer interação social real”. Esses lugares encorajam a
ação e não a interação. Compartilhar o espaço físico com
outros atores que realizam atividade similar dá uma
importância à ação, carimba-a com a “aprovação do número” e
assim corrobora seu sentido e a justifica sem necessidade de
mais razões (BAUMAN, 2001, p.114).
O trabalho de campo mostrou-me uma relação desses espaços,
localizados no entorno do Centro Dragão do Mar, que não os reduz somente ao
acesso através do consumo, não reduzindo esses jovens habitantes da cidade
apenas em consumidores. As minhas “perambulações” pelas ruas, pelas
praças e pelos pontos de encontro evidenciaram um contingente de jovens que
não eram consumidores das festas das boates, mas que iam todas as noites de
fim de semana, pois era um “point” de encontro entre as diversas galeras.
Durante toda a noite, enquanto as festas aconteciam do lado de fora das
boates como a Órbita, Armazém 47, Hey Ho e Noise3D, os carros de som, as
barracas de bebida ajudavam um contingente de jovens que faziam a festa do
lado de fora. Alguns vêm com seus carros, acompanhados por potentes caixas
de som que tocam estilos musicais diversos, do forró ao funk. Uma dessas
turmas que acompanhei mais de perto, nessa experiência do lado de fora, era
um grupo de amigos que sempre se encontrava embaixo da cúpula do
Planetário do Centro Dragão do Mar antes de ir a uma das duas boates que
ficavam perto do Centro, onde aconteciam festas ao público GLS (gays,
lésbicas e simpatizantes).
“Vai entrar hoje?” pergunta Pedro.
“Vou não! Oh, bicha!” responde Bruno.
“Por que mona? Hoje vai lotar... Vai ter tanto boy de bem”
“Não sei não... Prefiro ficar do lado de fora. Beijo muito mais. Lá dentro
ficam todas de nariz empinado e não dão nem a confiança pra você”. Retruca
Bruno.
Eu já conhecia bastante a boate de que falavam, pois já a havia
freqüentado muitas vezes. Mas estava no momento buscando conhecer mais
movimentos e turmas. O que achei interessante foi o fato de a cúpula do
Planetário do Centro Dragão do Mar ter se constituído ponto de encontro de
várias turmas. Não somente os roqueiros vestidos de pretos se encontravam
51
ali, também havia esses jovens gays e lésbicas que se agrupavam em torno do
lazer dirigido ao um público definido em termos de sua orientação sexual.
Nesse grupo, muitos usavam a expressão “ir ao Dragão” como sinônimo de “ir
a boate”. Estavam no Dragão, mas não iam a alguma peça, exposição e a
algum museu. Não estavam em nenhum equipamento, mas num espaço vazio,
embaixo do Planetário. Usavam a expressão “ir ao Dragão”, pois não queriam
revelar sua orientação sexual (que seria enunciada, já que a boate é voltada
explicitamente para gays e lésbicas) para os pais ou outros amigos. Além dos
roqueiros havia também, no espaço da praça, pequenas rodinhas de punks que
não adentravam nenhum espaço de lazer pago e tinham na praça Almirante
Saldanha seu lugar. Ficavam bebendo, fumando até pela manhã, muitos
dormindo nos bancos, esperando amanhecer para tomarem seus ônibus e
voltarem para casa.
Essas minhas “perambulações” entre grupos, boates e festas foram
construindo para mim um mapa vivido do entorno. Havia os pontos de encontro
(o espaço embaixo da cúpula do Planetário, a Praça, a calçada da boate – na
qual se ficava pelo menos uma hora antes de entrar); os pontos de
abastecimento (carrinho de bebida e sanduíches) e as vias de movimento (do
dançar, curtir, “lazear”). Um mapa vivido, pois é construído a partir da
experiência:
Por isto, o mapa é devir; ler um mapa é cartografá-lo; é
apreendê-lo sempre em uma forma outra, que não aquela que
supostamente lhe deu origem, é tornar-se parte dele. E,
justamente, a tarefa do cartógrafo social é a de acompanhar os
movimentos. Perceber entre sons e imagens a composição e
decomposição dos territórios, como e por quais manobras e
estratégias se criam novas paisagens (MAIRESSE, 2003,
p.270).
As turmas mostram estarem bastante acostumadas com esse cenário
efêmero de boates que inauguram e fecham suas portas em um curto período
de tempo. Seguindo um pouco discursos dos informantes entrevistados
apresentam que os grupos juvenis têm uma relação ambígua, pois o
fechamento dos espaços não acarreta necessariamente um desaparecimento
de pequenas turmas das ruas do entorno.
52
Eu acho que esgotava canto. Aí esgotava canto... As pessoas
ficavam cansadas de irem só aquele. Não sei assim, eu vejo
assim: pra gente que tocava, faltava mais espaço pra gente
tocar. Eu acho que ficava faltando, mas era e realmente um
dos debates era realmente isso. Por que os lugares
acabavam? Um dos motivos era de que realmente isso. Por
que os lugares acabavam? Um dos motivos era de que
realmente o pessoal que tomava conta do local não via mais
rentabilidade naquilo” (Paula, 26 anos, entrevista).
Eu vejo essa questão das gerações, de cada geração lógico, a
gente conta uma geração de 10 anos, mas eu noto assim que
nesse grupo é tão rápido que de cinco anos as coisas mudam.
Primeiro, veio o Ritz, aliás antes havia o Domínio Público, mas
eu não andava lá pois era muito novo. Meu irmão mais novo
curtia lá e comecei a freqüentar aquela parte ali do Dragão por
causa dele. Depois veio Ritz que os meninos do projeto tinha
essa questão de dar um apoio às bandas locai. E depois o
Noise que veio pra consolidar esse núcleo de valorização dos
alternativos daqui. Porque não tem espaço na cidade (Sérgio,
23 anos).
Os espaços da cidade são apropriados pelos jovens, formando territórios
possíveis para o exercício das sociabilidades; o lazer, a música, os gostos
comuns são os meios pelos quais essa territorialização juvenil se exerce.
Assim os clubes e as boates aprecem como espaços dentro desse território
juvenil. Porém, eles não estão livres da interferência de outros movimentos: a
dispersão, a rentabilidade e a durabilidade desses locais não estão de todo
garantidas. O discurso do “não ter espaço” mostra que há um desejo da
constituição de uma “terra firme”, de consolidação desses territórios onde estão
inseridos os jovens. Através desses discursos, percebo também que um tempo
é esculpido, interpretado: “tempo do Noise”, “tempo do Ritz” etc. Esses tempos
englobam mais do que o período de funcionamento de um clube. Nesses
tempos, estão todos os blocos de experiências que os agentes acumularam,
constituindo uma memória afetiva do lugar.
O espaço e o tempo vão sendo esculpidos nas trajetórias, deixando de
ser variáveis objetivas, formando paisagens subjetivas. Os mapas urbanos
tratados aqui são intensivos/afetivos. O desenho da urbe se faz outro e
requisita mais que traçados, sons, estilos e vozes. A subjetividade desdobra-se
em paisagem:
53
O urbano corresponde a uma forma de encontro e dispersão
dos elementos da vida social: coisas, pessoas, signos... A
cidade possui uma realidade espessa de sentidos relacionados
aos seus habitantes... Os corpos não estão na cidade, eles a
habitam e são sustentados por ela, podendo-se mesmo falar de
uma cidade subjetiva, guarida ou trincheira dos
sujeitos/habitantes, espécie de morada, de universo de
referência onde se constroem territórios existenciais
(FONSECA, 2003, p. 256).
CAPÍTULO 2
CULTURAS JUVENIS: PERCURSOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS
A idéia de partida que a dispersão das turmas que transitavam pelo
entorno do Dragão do Mar também se fazia acompanhada por uma vida curta
dos bares e das boates não foi descartada, porém a relação desses fatores não
pode ser reduzida a um esquema causa-efeito. Primeiro, porque a formação
dessas culturas musicais não se resumia ao lazer via consumo. A rua e a praça
também eram pontos de atuação dessas culturas, não se restringindo ao
espaço fechado de clubes e boates. Segundo, porque o tratamento estrito dos
clubes e das boates como negócio, inserindo-os dentro da indústria do lazer,
deixa de considerar o quanto eles têm que entrar em sintonia com os
movimentos juvenis para poderem captar os atuais contextos, ou seja, buscar
saber o que os jovens gostam de ouvir.
Os signos, as gramáticas corporais, enfim, os contextos que essas
turmas apresentavam (o rock, o punk, o pop, a dance music etc. – a orientação
54
do público das boates dava-se em função desses gostos musicais) obrigou-me
a fazer um recorte e tomar um desses contextos como analisador das relações
entre grupos juvenis e lazer naquele espaço da cidade do entorno do Centro
Dragão do Mar.
O primeiro passo depois de identificar alguns pontos de encontro, onde é
visível a grande presença deles, foi tentar uma aproximação. Fui informado
então que um novo estabelecimento constituía ponto de encontro de várias
galeras, identificados como indie: o Noise3D Club. Inaugurado em 04 de
novembro de 2005, apenas quatro meses antes de eu começar o trabalho de
campo, o lugar estava chamando atenção por ter uma programação voltada ao
rock alternativo e a valorização de bandas local.
O Projeto Noise3D, segundo seus elaboradores, não está ligado apenas
a um espaço físico, pois antes de existir o Clube, havia a festa Noise3D, que
acontecia no antigo Ritz Café, casa noturna também voltada à cena alternativa
que existia a um quarteirão, onde hoje fica o Noise 3D. A festa Noise acontecia
uma vez ao mês. Noise vem do inglês e significa barulho, o 3D refere-se às
inicias dos nomes dos três Dj´s que tocavam na festa. A festa consistia na
apresentação desses Dj´s mais o encerramento com uma banda local.
Outra peculiaridade do Noise3D residia no fato de os responsáveis pelo
programa Noise3D serem os próprios donos do clube. O interesse não era
somente financeiro, seus donos estavam preocupados em criar um espaço,
voltado a cena musical independente de Fortaleza. As festas aconteciam de
quinta à sábado e, às vezes, aos domingos.
A programação variada envolvia tanto festas com discotecagem quanto
apresentação de bandas locais. O espaço físico tinha dimensões bastante
reduzidas, onde em dia de casa cheia se torna impossível andar sem esbarrar
noutras pessoas. Seus freqüentadores apelidaram o local afetivamente:
“clubinho”. Seu público consistia de jovens numa faixa etária que ia desde os
dezoito anos de idade (limite de faixa etária para entrar, mas que não impedia
que do lado de fora fosse sempre possível encontrar menores de idade) até os
trinta e poucos anos. Em sua maioria, o público constituía-se de estudantes e
artistas provenientes das classes médias da cidade de Fortaleza.
2.1 Observações sobre o método
55
Poderia resumir meu trajeto etnográfico como uma história de encontros
e desencontros. Deleuze e Guattari (DELEUZE e GUATTARI, 1997) reclamam
outro modelo de cientificidade que conseguisse incorporar as ambulações do
conhecimento. José Machado Pais (PAIS, 2006), sociólogo português, pensa
as deambulações que o investigador faz no trabalho de pesquisa. Tanto Pais
como Deleuze, cada um à sua maneira, reivindicam uma antropologia urbana
(no caso de Pais
18
) e uma ciência em sentido geral (no caso de Deleuze e
Guattari) que explore o trajetivo, o ambulante, os encontros e os desencontros
de uma experiência de conhecimento.
Seria preciso opor dois tipos de ciências, ou de procedimentos
científicos: um que consiste em “reproduzir”, o outro que
consiste em ‘seguir”. Um seria de reprodução, de iteração e
reiteração; o outro, de itineração, seria o conjunto das ciências
ditas itinerantes, ambulantes. Reduz-se com demasiada
facilidade a itineração a uma condição da técnica, ou da
aplicação e da verificação da ciência. Mas isto não é assim:
seguir não é mesmo que reproduzir e nunca se segue a fim de
reproduzir (DELEUZE e GUATTARI, 1997, vol. 5, p.39).
“Seguir não é mesmo que reproduzir”: isso a Antropologia já o sabe há
muito tempo. Impossível mimetizar o outro pesquisado. Geertz, em sua teoria
interpretativa da cultura, afirma que o texto etnográfico é sempre um relato de
segunda, terceira, “n” mãos (GEERTZ, 1989). A empatia, a simpatia e mesmo a
apatia pouco têm a ver com o ofício do antropólogo. A empatia por acreditar
numa compreensão plena do outro, tal compreensão só seria possível se as
diferenças entre “eu” e o “outro” pudessem ser anuladas, o que de fato não
acontece, pois tenho sempre a “experiência do outro” em perspectiva. A
simpatia? Bem, muitos ainda acreditam que uma boa etnografia é feita de
antropólogos simpáticos, o grupo daqueles que “sabem chegar”, caindo no
engodo de pensar que a melhor antropologia é aquela feita pelo “amigo do
18
PAIS, José Machado. Nos rastos da solidão. Lisboa: Âmbar, 2006. Nesse livro, o autor
afirma: “As ciências sociais exploram muito o <<objetivo>> e o <<subjetivo>> mas muito pouco
o <<trajetivo>> - feito de contatos, aproximações, trajetos, deambulações. Muito do
estranhamento do quotidiano dá-se nos chamados <<espaços intersticiais>> - espaços de
aparente neutralidade, também designados de <<territórios circulatórios>> ou
<<transversais>>” (PAIS, 2006, p. 22).
56
nativo”. Os simpáticos
19
vão até o meio do caminho. Enquanto os apáticos,
esse conseguem ir até o final da empreitada, mas sem serem afetados por
nada, não é possível vislumbrar a carne e o sangue de suas etnografias, como
diria Malinowski (MALINOWSKI, 1976).
Não fui apático, nem empático e, apesar da tentação, tampouco
simpático. No papel de etnógrafo, eu me definiria como um seguidor. Não
estava a seguir a solidão de outros, como Machado Pais (PAIS, 2006). Meu
objeto era outro: o lazer de grupos de jovens que freqüentavam uma boate. Eu,
na minha solidão de pesquisador, seguia o rastro dos que sozinhos a uma
primeira vista não estavam. Uma solidão habitada: Daniel, Patty, Paula... mas
também, Deleuze, Guattari, Pais... Do campo empírico ao conceitual, eu estava
a seguir seus rastros.
O primeiro obstáculo foi justamente vencer a barreira da solidão.
Kaciano se lembra de Cassiel, o anjo de Asas do Desejo, filme do diretor Wim
Wenders de 1986. Numa Berlim dividida, o anjo transitava entre vários espaços
da cidade a ler o pensamento das pessoas (metro, biblioteca, ruas, praças
etc.). Pais denomina o método dos anjos de Wenders de “observação invisível”,
ver sem ser visto (PAIS, 2006, p.21). Harvey, em A condição pós-moderna,
dedicou um capítulo do seu livro a esse mesmo filme, mostrando como ele é
paradigmático de um novo espaço-tempo, inaugurado pela cidade dita “pós-
moderna” (HARVEY, 2001). Esse espaço-tempo se faz marcado pela
fragmentação. A cidade pós-moderna não forma uma unidade, ela é uma
bricolagem de vários mundos, línguas, contradições. A velocidade dos fluxos
compõe seu retrato.
Não é possível observar a cidade contemporânea em uma perspectiva
na qual aquele que olha estaria em uma posição estática a captar o
movimento. O olho daquele que olha se desterritorializa a todo instante. Nos
filmes de Wenders, a fórmula “ver sem ser visto” tem exatamente essa função.
Em Paris Texas, de 1984, o cineasta usa a mesma fórmula para afirmar que o
olhar por ele mesmo nada fixa. O olhar é ponto de fuga, movimento, ao mesmo
19
A esse respeito, Deleuze faz uma crítica da relação simpática com o conhecimento: “Não
basta uma boa vontade nem um método bem elaborado para ensinar a pensar, como não
basta um amigo para nos aproximarmos do verdadeiro. Os espíritos só se comunicam no
convencional; o espírito só engendra o possível. Às verdades da filosofia faltam a necessidade
e a marca da necessidade. De fato, a verdade não se dá, se trai; não se comunica, se
interpreta, não é voluntária, é involuntária” (DELEUZE, 2003, p.89).
57
tempo em que capta algo. Como cineasta, Wenders conhece bem a máquina
óptica, a qual opera com duas matérias-prima nada sólidas: luz e velocidade.
Se a velocidade é a luz, toda a luz, então a aparência é o que
se move, e as aparências são transparências momentâneas e
enganosas, dimensões do espaço que não passam de
aparições fugitivas, assim como as figuras, os objetos
percebidos no instante do olhar, este olhar que é, a um só
tempo, o lugar e o olho (VIRILIO, 1993, p.48).
Olhar é transitar. Se nos detivermos com mais atenção nessa articulação
do olhar com o espaço, perceberemos que esse último se encontra em
movimento constante. Existe um senso comum de que Fortaleza seria uma
cidade sem memória, mas, como mostra César Guimarães (GUIMARÃES,
1997), a memória pouco se relaciona com uma forma plena do tempo, mas
sim, com o vazio e o esquecimento.
A vontade de memória se afirma porque há o movimento. Esse
movimento desterritorializa as paisagens. Desse modo, a memória não
ocuparia uma relação oposta à desterritorialização, já que ela fixa,
desterritorializando a potência do movimento. Freud, em Recordar, repetir,
elaborar, fornece uma profícua teoria da memória a partir da Psicanálise:
“lembrar-se do que nunca existiu”. O problema da memória reside menos no
resgate de mundos e muito mais na criação de mundos. Guimarães afirma ao
também analisar a obra de Wenders:
Wenders não é nostálgico. É, sim, o último dos realistas,
desejoso de reencontrar o liame entre as imagens e o mundo
empobrecido ou engolido pela saturação imagética:
condenados a ver apenas um visível que não nos deixa olhar
para outro lado, graças à onipresença do hiperrealismo da
fotografia publicitária e à incessante, incansável repetição da
pequena imagem televisiva, perdemos – como afirma o anjo
Cassiel em Tão longe, tão perto – a capacidade de enxergar o
invisível. Por outro lado, já não há mais tempo na própria
imagem, não há mais nem mesmo o que ver na imagem, a não
ser o consumo voraz, instantâneo, passageiro e distraído
(GUIMARÃES, 1997, p. 21-22).
Sobre a ocupação da área do entorno do Centro Dragão do Mar por
bares e boates, que intensificou a vida noturna daquele espaço, discute-se
sempre o fato de tais estabelecimentos apresentarem uma vida efetiva
58
bastante breve. Sempre que há o fechamento de um espaço representativo
desse circuito de lazer e vida noturna, a nostalgia da terra perdida é cantada
por freqüentadores e também pela imprensa. Mesmo antes da construção do
Centro, ainda na década de 1990, quando houve uma redescoberta da antiga
Prainha pelo lazer, o discurso nostálgico já se fazia presente. Por exemplo,
nessa matéria de 1993, que fala da migração de bares (como o Coração
Materno) da Praia de Iracema para a região da Antiga Prainha, que passa a ser
incorporada como início da Praia de Iracema, publicada no jornal O Povo,
intitulada “Em busca da Iracema Perdida”:
Todos os Caminhos da Noite levam a Praia de Iracema.
Enaltecida. Celebrada. Cantada em verso e prosa. O bairro à
beira-mar reina há mais de uma década como símbolo da
boêmia cearense, resistindo sempre à tradição de mudança de
points da cidade. Mas enfim sopram os ventos da
modernidade. Junto com ele uma radical transformação na
paisagem bucólica do local... Por isso mesmo, muitas das
figurinhas carimbadas da Praia de Iracema emigram em busca
de novos lugares para a cervejinha nossa de cada dia. A
pacata Dragão do Mar, escondida entre velhos casarões e
calçadas pouco iluminadas, foi elevada a condição de novo
point etílico-cultural de Fortaleza (Jornal O Povo, 03 de Abril de
1993).
Reclamo outro olhar que escape do lugar comum da cidade “sem
memória, onde nada dura”. O clube que investiguei não escapou ao “destino do
entorno”. Inaugurado em 11 de novembro de 2004, o Noise 3D Club teve que
ser fechado em 30 de junho de 2007. Dentre as várias razões, a falta de
público que já não lotava o pequeno espaço do Noise 3D.
Sua morte foi anunciada pela imprensa e por freqüentadores como
fazendo parte do ciclo da “mudança de points”. Esses discursos corroboram a
imagem da Fortaleza “sem memória”. Não à toa, a matéria do jornal lança mão
da metáfora do filme para interpretar esse fato, pois o filme é a forma plena
para explicar a criação de mundos dotados de sentido através de imagens:
O filme já é conhecido e o desfecho dele não consegue mais
ser surpresa para ninguém. Alguém com a melhor intenção
abre um espaço dedicado à música independente na cidade.
No entanto, pouco tempo depois, por mais que todo mundo
aplauda a iniciativa, o lugar fecha as portas e deixa uma legião
de ex-freqüentadores se lamentando à espera do próximo
59
mártir que vai se sacrificar por um ideal somente. Aconteceu
assim, no fim dos anos 90, com o badalado Domínio Público e,
um pouco mais tarde, com o Ritz Café. Agora é a vez do Noise
3D Club passar por essa situação. O clube, inaugurado no fim
de 2004 e transformado no reduto favorito de fortalezenses,
anunciou a sua despedida da cena cearense no último mês. O
motivo? Para além, exatamente, a falta de perspectiva e de
motivação. No calendário, 30 de junho está marcado como
último dia de festa (Jornal O Povo, 04 de Junho de 2006).
A performance da saudade acusa a cidade que tudo esquece. A última
festa lotou a casa. A festa de despedida, em 30 de junho de 2007, foi relatada
com discursos emocionados na comunidade virtual do clube na internet:
Gente... Sem palavras... Uma noite pra entrar na história...
Nunca ser esquecida! Parecia Igo como a último dia de vida na
terra, todas em frenesi! 6h da manhã e ainda tinha muita gente
pulando ao som de M.I.A., NEW ORDER etc. [...] Nunca vou
me esquecer do Noise, dos amigos que fiz lá (Adams).
Lindo! Emocionante! A garganta, o peito apertava e a saudade
agora pulsará a cada final de semana que eu me lembrar que
meu querido Noise não mais estará lá à minha espera. Foi bom
rever lá muitas pessoas que haviam deixado de freqüentar o
N3D (fossem quais forem seus motivos, foi bom revê-los
todos). Foram tantos adjetivos que acabei lembrando do mais
apropriado para um momento como de ontem: ÉPICO!
(Danilo).
Tantas casas alternativas vieram e fecharam em Fortaleza...
mas essa, sem demagogia, realmente tinha um diferencial.
Fiquei impressionado mesmo com a vibração da morte de
ontem. Triste porque o sentimento de perda de um lugar (algo
que nos remete ao apego mesmo, àquela coisa de ser
permanente, nosso canto) é grande. Feliz por ver todo aquele
prestígio e que, apesar das inúmeras dificuldades, o Noise fez
a diferença na vida e no coração de vários que passaram por
ali (Felipe).
Quando Freud investigava os seus pacientes, descobria que nas
sessões de análise, muitos diziam recordar de traumas, geralmente abusos na
primeira infância por um adulto (FREUD, 1979). Com o decorrer da análise,
Freud observava que tais relatos não eram verídicos. Por que, então,
elaboravam o discurso do trauma? Ao invés de descartar as elaborações dos
pacientes, por não terem uma veracidade factual, Freud procurou compreender
o que esses discursos faziam funcionar. Se havia sintoma, sofrimento psíquico,
60
por que sustentar a causa em um discurso que recordava algo que não
aconteceu?
Freud passa da hipótese do trauma para a fantasia. A fantasia articula o
desejo, funcionando como imagem-mundo. A fantasia compõe uma cena de
sentido para o sintoma
20
. A investigação de Freud me serve de inspiração para
não cair no “tribunal da memória”; mas encarar essas “cenas de discursos”
como montagens dos agentes que tentam ordenar campos de sentido sobre as
“coisas”.
Quando mostrei no capítulo anterior os vários tempos da Praia de
Iracema, fazendo o que denominei “arqueologia das paisagens”, já tinha em
vista os discursos da “degradação”, do “esquecimento” e da “pouca
durabilidade” dos espaços. Esse discurso sempre retorna quando certas áreas
vão perdendo sua vitalidade. O fato de eles sempre retornarem mostram a sua
ineficácia justificativa, pois o que eles combatem volta a ocorrer: “O filme é
conhecido e o desfecho dele não é mais surpresa para ninguém”. Aponto,
então, outra estratégia teórico-metodológica que não trabalhe mais com o
discurso da nostalgia. Na posição de investigador, procurei ocupar uma
posição que inserisse uma compreensão capaz de para além das
subjetividades, inserisse o discurso dos agentes uma rede discursiva de
práticas que se repetem. Afastei-me dessa maneira da armadilha de comprar o
reclame nativo do “Por que as casas fecham?”, não confundindo o problema
social com problema sociológico. O método que adoto compreende a cidade a
partir da polifonia.
Polifonia significa, logo, afirmar uma nova ordem do discurso:
não mais totalizado e centrado, mas – por assim dizer –
desordenado e descentrado, sem genealogias, errante as mais
variadas subjetividades. A polifonia favorece a emergência do
conceito de texto: um ritual torna-se um texto etnográfico a ser
interpretado, como a fachada de um edifício, o movimento de
uma parte da metrópole, o estilo de uma subcultura juvenil, a
focalização do último filme sobre Los Angeles (CANEVACCI,
2002, p.129).
20
O sintoma em Freud já é uma interpretação, como afirma Foucault: “Inclusive Freud, não
interpreta símbolos, mas interpretações [...] É pelo que Freud interpreta, a linguagem dos seus
doentes, o que lhes lhes oferecem como sintomas; a sua interpretação, nos termos que essa
interpretação for dada (FOUCAULT, 1987, p.23).
61
Dentre os textos aqui explorados, tenho: entrevistas, matérias de jornais,
mídias alternativas, imagens, mapa, pedaços de conversas, letras de músicas
e volantes. Até chegar ao Noise 3D, primeiramente, fiz uma sondagem entre
outras boates do entorno do Dragão do Mar, indo às festas, conversando com
pessoas, até ser levado ao Noise 3D por intermédio de uma amiga. Até esse
momento, não conhecia muito sobre a cena do rock alternativo em Fortaleza. O
que eu sabia vinha através de amigos que tocaram em bandas. Em Março de
2005, quando comecei a pesquisa, o Noise 3D, a casa, tinha apenas quatro
meses de inauguração. O meu primeiro passo foi procurar saber como surgiu o
projeto. Até falar com Dado, um dos donos do clube e também idealizador do
Projeto Noise 3D, que já expliquei sua origem no primeiro capítulo, fui
freqüentando as festas do Noise 3d e fazendo um levantamento sobre o
cenário da música independente. Passei a escutar músicas que não tinha o
hábito de ouvir, de bandas de rock do Brasil e do exterior dos anos 1980 e
1990 (Joy Division, New Order, Nirvana, The Smiths, Kraftwerk, 2Fuzz,
Forgotten Boys, Multiplex, Kohbaia e Montage). Com a vivência de campo, fui
acumulando hábitos como o de fumar. Ao perceber que em toda festa tinha
sempre alguém que pedia fogo ou cigarro, vi nisso uma oportunidade de
conseguir um pouco da atenção daqueles que eu pesquisava. E funcionou
muito bem. Sempre que estava a fumar, vinha sempre alguém pedir cigarro. A
partir daí eu ia “jogando conversa”. Geralmente, fazia o mesmo que muitos:
ficava do lado de fora do clube, observando o movimento de quem chagava.
Muitos já se conheciam de há muito tempo, o que confirmei depois nas
entrevistas, já tinham acompanhado a história de outras casas noturnas que se
fecharam (Domínio Público, Universal Bar, Ritz Café etc.). Com a minha
caderneta, anotava algumas informações, às vezes muito simples: o nome de
uma rua, de uma banda para pesquisar suas músicas, o nome de pessoas e
outras notações. As conversas do lado de fora da boate foram ótimas
oportunidades para fazer novos contatos e ir aos poucos deixando de ser tão
estrangeiro aquele universo.
Para Simmel, a condição de estrangeiro, definido como aquele chega e
fica, implica aproximação e interação. O tipo estrangeiro não se confunde com
o viajante, pois este último estaria sempre de passagem, retornando a terra
natal. A experiência do ser estrangeiro é uma experiência do “estar entre”. O
62
estrangeiro é aquele que vive numa terra, já não mais a sua, com a qual não
tem laços de parentesco, localidade, ou língua (SIMMEL, 1983). Teoricamente,
sua ação é livre, pois não está presa a moral daqueles que não são
estrangeiros, os de dentro do grupo. Ao mesmo tempo, o estrangeiro participa
do grupo como alguém de fora. A teoria do estrangeiro de Simmel muito se
aproxima do que vivenciei no trabalho de campo, ao me inserir dentro de um
grupo de gostos e práticas, que até então não eram minhas. Tive que olhar
essa minha experiência e as experiências dos outros não como mais um
membro do grupo, mas como um “pesquisador”, figura “estrangeira” aquele
universo. Simmel serviu aqui para me orientar e reencontrar uma objetividade
prática:
O estrangeiro não está submetido a componentes nem a
tendências peculiares do grupo e, em conseqüência disso,
aproxima-se com a atitude específica de “objetividade”. Mas
objetividade não envolve simplesmente passividade e
afastamento; é uma estrutura particular composta de distância
e proximidade, indiferença e envolvimento... Objetividade não
significa de maneira alguma não-participação (que geralmente
exclui tanto a iteração subjetiva quanto a objetiva), mas um tipo
específico de participação (SIMMEL, 1983, p.184).
Vários encontros marcaram o percurso do meu trabalho de campo. O
primeiro contato com um dos donos do estabelecimento, em abril de 2005,
forneceu-me pistas e uma agenda de nomes e bandas que eu não poderia
deixar de conhecer. Acompanhei a trajetória da banda Montage, que havia
surgido poucos meses atrás, dezembro de 2004. Com a banda Montage pude
acompanhar a trajetória que uma banda local tem que atravessar até se
consolidar e as estratégias que lança mão para isso. Outro informante
privilegiado foi Paula, quem me abriu muitas direções para compreender como
se alternavam os espaços em que a cena alternativa se instalava e de que
forma isso seguia os grupos acompanhava. Paula tinha sido ex-vocalista de
uma banda de rock local, composta somente de mulheres. Além disso, já tinha
discotecado em algumas festas do Noise 3D. Sua história com a cena
alternativa local já tinha algum tempo, 10 anos. Ela começou a tocar em banda
aos 16 anos. Aos poucos, fui apresentado a outros nomes e montando minha
rede de contatos.
63
De fato, a observação participante se converteu em participação
observante
21
(WACQUANT, 2002), pois muito do que coletei se deve a esses
encontros na rua, nas mesas de bar e nas festas. Ao olhar, ouvir e escrever da
etnografia clássica poderia acrescentar o beber, fumar, dançar (pois não dava
para ficar parado a noite inteira no espaço da boate. Uma música
extremamente alta somente e um ambiente com pouca luz impedia-me de
escrever algo.
Ao contrário de outras boates, o Noise3D tem uma pequena área onde
se transita esbarrando nas pessoas quando a casa fica cheia como nesse dia.
O ambiente escuro, a mesa de sinuca em frente ao bar e um pequeno corredor
que nos leva à pista de dança. Lá, o som “troava” e as pessoas entoavam o
refrão da música e alguns arriscavam coreografias. Assim, os corpos entravam
no ritmo, não de uma maneira ordenada, mas cada um ao seu modo ia
“curtindo” o som naquele pequeno espaço com pouca luz onde algo sempre
acontece nas noites de quinta a domingo... É hora da “night”, “balada”,
“curtição”, do “bate-cabelo” para os mais entendidos. Na mecânica do
cronômetro, todos os dias são iguais, têm um mesmo número de horas. Mas na
experimentação do devir, o espaço liso do tempo é estriado por territorialidades
cheias de sentido.
O som muito alto das festas me impedia a manutenção de qualquer
diálogo por muito tempo. Então, recorri ao olhar, como primeiro recurso
metodológico, ocupando uma posição de flâneur nos primeiros momentos do
campo. Observei, por exemplo, que embora o clube esteja aberto a partir das
23 horas, somente a partir da meia noite e meia ou uma hora, é que o público
começava a entrar no local. Mais tarde. Enquanto isso, todos ficavam do lado
de fora, bebendo ou conversando com os amigos, e isso de maneira quase
ritual, já que todos os sábados eram assim. O “lado de fora” era o lugar do
encontro, das conversas nas rodinhas de amigos, do “baseado” partilhado
embaixo das árvores.
Depois de algumas idas às festas, fui percebendo que tinha um público
que sempre se repetia. Embora, por exemplo, pudesse encontrar diferenças
entre o público de sexta e o de sábado. Aos sábados, na maioria das vezes
21
WACQUANT, Loic. Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2002.
64
acontecia a apresentação de bandas. Ficando quintas e sextas destinadas à
discotecagem. Além disso, às quintas-feiras, acontecia a Noite da Cinderela,
em que à meia-noite alguém era sorteado no meio da festa para discotecar.
Uma vez por mês acontecia o Indie Noise, festa em que se
apresentavam três bandas locais e lotava a casa quando acontecia. Indie vem
de independente e ligaria-se ao movimento de bandas que queriam fazer sua
música, mas sem o apoio das grandes gravadoras e da grande mídia.
Independente significava assim poder criar, ainda sem que se tenha uma infra-
estrutura de grande divulgação para isso. As bandas “indie” logo se
espalharam pelo mundo. Indie mais do que implicar a carência de atenção da
grande mídia a todo um circuito de criação musical que proliferava naquele
período, passou a denominar uma estética. Outro tipo de festa possuía uma
temática retrô, de tributo a bandas dos anos 1970, 1980 e 1990.
Figura 4. Flyer de uma das festas do Noise
3D. Detalhe do tênis “all star”, muito usado
nos anos 1980 e que tem retornado como
acessório do estilo indie.
65
Títulos de festas bem como músicas de bandas locais em inglês são
algo comum na cena alternativa, mostrando a influência da estética musical do
rock feito nos países de língua inglês (particularmente Inglaterra e Estados
Unidos). As gramáticas de sentido, utilizadas pelos jovens, levaram-me a
repensar os sentidos de localidade e identidade. A metrópole contemporânea é
atravessada por fluxos globais, permitindo o encontro de mundos e culturas. Na
verdade, penso que existe uma antropofagia dos códigos. A qualquer momento
um signo de fora está sendo devorado e reinterpretado, assumindo uma outra
forma. De certa forma, isso faz parte da dinâmica da cultura, pois nenhuma
apropriação de um signo cultural de outra cultura acontece de forma passiva.
Várias bandas alternativas locais compõem letras e cantam em inglês, mesmo
quando falam da cidade de Fortaleza. Por exemplo, nessa música da Banda
Montage, Floor, Floor, Floor:
Dani sing and Shake
In Fortaleza beachs
Teen prostitucion paradise...
Eat rapadura
Fuck rapariga
22
A ligação com outros pólos de culturas juvenis em outras cidades do
Brasil se faz presente. Bandas como Multiplex e também Forgotten Boys, na
opinião de alguns a melhor banda da cena independente do Brasil, fizeram
shows no Noise 3D. Dominar essa gramática de sons e estilos constituiu
trabalho árduo, mas importante. Nesse ponto, as culturas juvenis que
investiguei mostram mais nitidamente sua relação com a espacialidade da
cidade, criando identidades híbridas.
A globalização tem como base sustentadora a metropolização
do mundo: nenhuma parte dos mundos-culturas pode declarar-
se fora da nova forma-metrópole, enquanto essa não possui os
limites dos muros para constituir a sua identidade fixa no
espaço, mas caracteriza-se por um mutante fluxo comunicativo
(CANEVACCI, 2002, p. 122).
22
Dani dança e rebola/ nas praias de Fortaleza/ paraíso da prostituição adolescente/ coma
rapadura/ foda rapariga.
66
Quanto ao ordenamento das variáveis empíricas, o trabalho de campo
pôs-me a indagar sobre como determinadas experiências que não tem o
discurso como seu eixo de articulação. No clube, o “curtir o som” das festas se
apresenta muita mais como uma experiência corporal, produzindo uma carne
sonora, vibrante ao som dos acordes e das batidas. “Curtir o som” implica um
agenciamento de sentidos que trabalham ao mesmo tempo: ouvir, cantar,
dançar, ousar coreografias e “sentir” a música. Em uma conversa com Linda,
informante que freqüentava o Noise 3D, numa certa ocasião em que eu pedia
dicas sobre bandas e músicas para conhecer mais sobre a cena alternativa,
emiti a seguinte sentença:
“Eu estou pesquisando muito sobre o indie rock para entender mais esse
tipo de música...” Nem chego a terminar o meu raciocínio, e minha informante
logo se adianta com uma cabeça erguida e um ar superior dizendo:
“Eu não pesquiso música, eu vivo a música”. Essa intervenção da minha
informante operou semelhante a um corte. Ao tentar mostrar meu interesse em
adentrar no universo da cena alternativa, no território daqueles que vivenciam
essa cena a nativa marcou o meu lugar. Ela mostrava que ocupávamos
posições diferentes. O tom dela me assustou, foi firme e soava quase a um
“coloque-se no seu lugar, você não é um de nós”. Fiquei um bom tempo a
refletir sobre isso, pois isso aconteceu já depois de uns seis meses de trabalho
de campo. Já tinha feito algumas entrevistas, freqüentava as festas e escutava
muita coisa, que acabou sendo incorporada aos meus gostos musicais, mesmo
depois de concluída a pesquisa.
Ainda a encontrei várias vezes e pedi para entrevista-la, porém não foi
possível a ocorrência da entrevista. Pois sempre me dava uma desculpa por
causa do trabalho ou da faculdade. Depois de três tentativas, acabei desistindo
de entrevistá-la, pensando que, de certa forma, ela acabou me dando uma
contribuição valiosa. Sua intervenção veio em um momento preciso,
ressaltando os limites da compreensão etnográfica, pois jamais nos tornamos o
outro que pesquisamos. Às vezes, levamos muita “cortada” dos nossos
informantes, quando apressadamente nos vemos seduzidos com a
possibilidade de vivenciarmos o seu mundo como eles o vivenciam. Nessas
horas, um pouco de prudência pode indicar a medida certa para não cair em
uma confusão.
67
“Curtir o som” e “viver a música” indicavam a composição de uma pele
sonora, um corpo sonoro. Constituíam experiências que não poderiam ser
interrompidas no momento em que aconteciam para serem compreendidas, da
mesma forma que não se interrompe um ritual ou um transe para compreendê-
los. O falar sobre o ritual, o transe, o “curtir o som” ficam sempre como algo
aquém. Ao perguntar sobre o tipo de música a André, em uma entrevista, ele
responde-me:
Porque música mesmo é aquela que deixa você fascinado com
vontade de viver. Adoro quem curte Nirvana e muitos outros.
Tem várias pessoas que sabem o que é uma boa música.
Outras não sabem: pobres criaturas, não estão vivas mais
perambulando por aí (André, 17 anos, estudante).
Os mapas sonoros (dos gestos musicais aos que se adere) formam
mapas afetivos (de sensibilidades corporais e sentimentos). Nas situações de
entrevista, procurei articular os três eixos que conduzem a essa pesquisa: a
relação com o espaço, as culturas juvenis e os gostos musicais. O lugar das
entrevistas formalizadas, por condições de exeqüibilidade, nunca era o espaço
do clube, nem no momento das festas. O momento da entrevista era uma outra
experiência. Geralmente, quando conhecia alguém e queria uma entrevista, eu
falava sobre a pesquisa e explicava que se tratava de um projeto de
dissertação de mestrado. Alguns eram receptivos e achavam interessante.
Com a festa acontecendo, muitos me davam e-mail e telefones. Mas, durante a
semana, quando ligava para relembrar o compromisso marcado, tinham
esquecido, outros davam desculpas para a falta de tempo.
As situações de entrevistas evidenciaram-me outro conjunto de
espacialidades. Fiz entrevistas no lugar de trabalho de uma informante, no
campus da universidade, na casa de alguns deles. A faixa etária dos
entrevistados foi dos 16 aos 27 anos de idade. O fato de não haver uma grande
diferença etária entre eu e meus entrevistados me favoreceu no sentido de
conquistar maior confiança. De fato, mesmo com a presença do gravador, isso
ajudou a criar um clima favorável e natural para entrevista, apesar de se saber
que numa situação de entrevista gravada os sujeitos tendem sempre a
apresentar de uma maneira representada o seu discurso, de forma que ele
apareça o mais articulado possível.
68
Na casa de um informante durante uma entrevista, este me pediu
licença antes da entrevista começar para enrolar um baseado, pois ele dizia
que as idéias fluíam melhor quando ele fumava. Diante desse fato, eu disse
não me importar, já que ele abriu as portas da sua casa para mim e revelava
seus gostos, isso mostrava uma confiança. Permiti e apenas recusei quando
ele me ofereceu um trago. Ao ir conhecendo mais pessoas nas festas do Noise
3D clube, acabei me tornando uma “figurinha batida” nas noites de sexta e
sábado no clubinho.
Quando transcrevia as entrevistas, anotava todas essas situações
paralelas da entrevistas: local, hora, de que maneira a entrevista fluía, de que
modo aconteciam e os gestos. Essas situações paralelas me ajudaram a
compreender o modo como os agentes se portavam, constituindo também uma
forma de decifração deles. No que toca aos aspectos performáticos, para
decifrá-los, recorri a semiótica da performance que vem tratar a performance
como uma linguagem. Essa teoria é trabalhada por Cohen (COHEN, 2004), da
qual tomo sua definição para trabalhar nesta pesquisa:
A performance é antes de tudo uma expressão cênica: um
quadro sendo exibido para uma platéia não caracteriza uma
performance; alguém pintando esse mesmo quadro, ao vivo, já
poderia caracterizá-la. A partir dessa primeira definição,
podemos entender a performance como uma função do espaço
e do tempo P=F(s,t); para caracterizar uma performance, algo
precisa estar acontecendo naquele instante, naquele local
(COHEN, 2004, p. 28).
Quanto às formas de decifração do material coletado, tomei também a
teoria dos signos de Deleuze, no que diz respeito ao ato de pensar e as
escolhas teóricas no modo de interpretar e traduzir os dados. Os referenciais
por mim expostos se justificam em relação à sua funcionalidade e ao modo
como me permitiram articular as idéias que fui elaborando durante a pesquisa.
O que nos força a pensar é o signo. O signo é o objeto de um
encontro; mas é precisamente a contingência do encontro que
garante a necessidade daquilo que ele faz pensar. O ato de
pensar não decorre de uma simples possibilidade natural; é, ao
contrário, a única criação verdadeira. A criação é a gênese do
ato de pensar no próprio pensamento. Ora, essa gênese
implica alguma coisa que violenta o pensamento, que o tira de
seu natural estupor, de suas possibilidades apenas abstratas.
69
Pensar é sempre interpretar, isto é, explicar, desenvolver,
decifrar, traduzir um signo. Traduzir, decifrar, desenvolver são a
forma da criação pura (DELEUZE, 2003, p.91).
Os dados por mim apresentados trazem a marca da minha
interpretação, não sendo possível por eles mesmos extrair outros modos de
compreensão, pois isso implicaria outro modo de coleta dos mesmos dados.
Eles constituíram para mim signos que me forçaram a pensar, elaborar,
teorizar.
O caráter contingente da minha pesquisa supõe que outro pesquisador
poderia produzir um mapa diferente do que apresento aqui. Meu objetivo é que
o leitor tenha nesse trabalho um léxico, uma chave de compreensão para as
relações entre culturas juvenis e espaço urbano, no quadro da cena musical
alternativa da cidade de Fortaleza. Pela via dessas cenas, as culturas juvenis
evidenciam suas relações com o tempo e o espaço e nos fornecem pistas para
pensar a inserção dessas culturas no quadro geral da sociedade. A seguir,
passo a discutir as vertentes teóricas que produziram um saber acerca da
juventude e os problemas que elas introduziram no domínio do conhecimento.
2.2 As teorizações acerca da juventude e o momento das culturas
juvenis
A juventude ou adolescência, sem ainda entrar aqui em uma discussão
sobre a diferença entre essas denominações, começa a ser pensada em dois
campos distintos: Psicologia e Sociologia. Calligaris indica o estudo de
Granville Stanley Hall (HALL, 1904 apud CALLIGARIS, 2000) como marco. Hall
era psicólogo e sua pesquisa, que levou cerca de duas décadas, tinha como
objetivo compreender o fracasso escolar dos adolescentes norte-americanos
de sua época:
É a obra fundadora dos estudos sobre adolescentes. Hall pode
ser considerado o pai da adolescência, seu inventor. Ele se
preocupou com a precocidade dos jovens do seu tempo, os
quais lhe pareciam chegar cedo demais às ruas, às fábricas,
aos braços de parceiros sexuais e também às prisões. De fato,
essa precocidade não constituía novidade nenhuma. O que era
novo, naquele momento, naquele começo do século 20, era a
preocupação de Hall (CALLIGARIS, 2002, p. 76-77).
70
Uma massa de jovens chega às ruas. Enquanto no sentido psicológico a
adolescência deixa de ser apenas uma fase do desenvolvimento e aponta para
uma compreensão mais ampla da produção social dessa fase do
desenvolvimento, no sentido sociológico o tema da juventude constitui
primeiramente um problema para o social, essa nova preocupação. O que fazer
com tantos jovens? O que eles pensam? Quem eles são? Ao observar o
argumento de Calligaris fica clara a preocupação com a inserção desses jovens
na ordem social.
Mas, ao se deter com mais atenção nesses discursos, o que se atenta é
a invenção da categoria juventude no campo teórico como uma fase em
carência ou em disfunção: precisando ser escolarizada, ser afastada do perigo
das ruas, da violência e do uso promíscuo do corpo. Num primeiro momento,
os saberes sobre a juventude se articulam nesse sentido.
Com esse intuito, a adolescência passou a ser interesse de vários
saberes e práticas do final do século XIX e começo do século XX: a Psicologia,
a Psiquiatria, a Medicina, o Serviço Social, a Pedagogia. Importante ressaltar
que a noção de adolescência teve sua origem científica no discurso médico-
psicológico, ao contrário do termo juventude, que vai ser base dos primeiros
estudos sociológicos. O campo do Serviço Social teve que buscar no discurso
médico-psicológico e sociológico uma base de compreensão dessa fase da
vida. Por não possuir um solo epistemológico firme, o Serviço Social insere-se
muito mais como uma prática social que do que necessariamente uma ciência
independente. Assim, nas práticas da assistência social e das políticas
públicas, os termos “adolescência”, “juventude” e “menor-idade” aparecem
como sinônimos e são alternados no vocabulário corrente. Porém, os termos
“jovem”, “adolescente” e “menor” têm origem em matrizes discursivas distintas.
De modo sumário, farei um inventário dessas diferenças de origem,
mostrando também seus pontos de conexão, apontando as ressonâncias
desses discursos no campo das Ciências Sociais. Antes de ser objeto para um
saber, essa fase da vida dita “adolescente” ou “juvenil” foi interpretada
71
socialmente pela literatura
23
, pelas práticas socais de associação e formação
dos jovens e também por aquilo que veio a constituir na era moderna uma
experiência humana e também um objeto para o saber: a interioridade
individualizada; o indivíduo como esfera autônoma para além dos
constrangimentos sociais
24
.
A racionalização da vida moderna decorrente das transformações
político-econômicas recompôs as formas de sociabilidade. O surgimento de
uma experiência íntima estabeleceu as condições epistemológicas de
possibilidade de uma “ciência da intimidade” (SENNETT, 1998). Historicamente
produzida, a interioridade psíquica tem suas raízes no processo de construção
da sociedade ocidental moderna.
Foucault demonstra de que modo as sociedades modernas elaboram
uma nova concepção de verdade quer permite ordenar os indivíduos e
gerenciar as possibilidades (FOUCAULT, 1997). A individualidade moderna foi
produzida não somente no campo do saber, mas foi fruto de uma articulação
saber-poder, a partir de um conjunto de práticas sociais concretas de
disciplinamento. Foucault denominou as sociedades ocidentais modernas a
partir do século XVIII como sociedades disciplinares. As sociedades
disciplinares são caracterizadas por Foucault por um investimento político dos
corpos dos indivíduos:
O indivíduo é sem dúvida o átomo fictício de uma
representação “ideológica da sociedade”; mas é também uma
23
Na Alemanha, a literatura do Bildungsroman (romance de formação) desenvolvido no século
XVIII ocupou um papel fundamental na formação da idéia da juventude como fase de
preparação para vida adulta e formação do cidadão moderno, a partir dos princípios da
Filosofia Iluminista. A literatura de formação funcionava como uma pedagogia da juventude. A
esse respeito, ver o trabalho de Bárbara Freitag (FREITAG, 1994, p. 89): “A literatura torna-se,
assim na forma do Bildungsroman clássico, uma agência de socialização comparável à família
e a escola. A instituição literária confunde-se no século das luzes, com a mensagem
pedagógica desse século”.
24
Essa noção de uma individualidade autônoma, inaugurada na modernidade, vai constituir o
ponto problemático para duas ciências então emergentes no século XIX: a Psicologia e
sociologia. A primeira buscando compreender o psiquismo como uma experiência individual,
onde o homem afirmaria sua singularidade, a partir de seu comportamento e seu caráter. Já a
sociologia viria a buscar compreender as determinações sociais do indivíduo, não reduzindo a
esfera do social ao individual; inaugurando, então, um outro olhar sobre indivíduo “sob o prisma
dos constrangimentos sociais” (Irlys Barreira discute as diversas versões nas ciências sociais
do pensamento sobre essa tensão indivíduo-sociadade – BARREIRA, Irlys. O lugar do
indivíduo na sociologia: sob o prisma dos constrangimentos sociais. Revista de Ciências
Sociais, volume 34 número2. Fortaleza: 2003, p. 57-63 - Em uma perspectiva histórica, cito “A
sociedade dos indivíduos” de Nobert Elias).
72
realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder
que se chama a “disciplina”. Temos que deixar de descrever
sempre os efeitos de poder em termos negativos ele “exclui”,
“reprime”, “recalca”, “censura”, “abstrai”, “mascara”, “esconde”.
Na verdade o poder produz; ele produz realidade produz
campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o
conhecimento que dele se pode ter se originam nessa
produção (FOUCAULT, 1997, p. 161).
O momento histórico das sociedades disciplinares marca o surgimento
das ciências do homem. Necessita-se conhecer o corpo que se quer disciplinar:
o corpo individual em seus mínimos detalhes. Tal corpo é formado nos vários
espaços da sociedade (a casa, a escola, a fábrica, o hospital e a prisão), de
modo que as disciplinas se organizam na dispersão dos espaços institucionais,
nos quais os indivíduos transitam.
Todas as ciências, análises ou práticas com radical “psico”, têm
seu lugar nessa troca histórica dos processos de
individualização. O momento em que passamos de
mecanismos histórico-rituais de formação da individualidade a
mecanismos científico disciplinares, em que o normal tomou o
lugar do ancestral, a medida o lugar do status, substituindo
assim a individualidade do homem memorável pelo homem
calculável, esse momento em que as ciências do homem se
tornaram possíveis, é aquele em que foram postas em
funcionamento uma nova tecnologia do poder e uma outra
anatomia política do corpo (FOUCAULT, 1997, p. 161).
O corpo adolescente emerge no período das sociedades disciplinares a
partir do regime discursivo da Psicologia do Desenvolvimento. Tal psicologia
vai adotar duas condições do adolescer: uma condição organogênica (a
adolescência entra no campo da Psicologia Evolutiva como um período natural
no ciclo da vida humana – infância, adolescência, idade adulta, velhice – tendo
como ponto de partida as transformações corporais da puberdade
25
) uma
condição sociogênica (a adolescência vista dentro da história e da cultura como
uma produção social, a qual impõe aos jovens exigências simbólicas de
25
Tal Psicologia Evolutiva não ignora os fatores histórico-sociais, mas os compreende apenas
como apêndice, apelando para uma condição biológica universal, sendo antes de tudo o
indivíduo o produto da biologia. Maurício Knobel (ABERASTURY e KNOBEL, 1981, p.24)
corrobora com a tese evolutiva afirmando que “quando se estabelecem critérios diferenciais de
caráter social, sócio-cultural, econômico, etc., como predominantes no estudo da adolescência,
se está desviando, pelo menos em parte, o problema básico fundamental da circunstância
evolutiva que significa esta etapa, com toda a sua bagagem biológica individualizante”.
73
preparação para a vida adulta). A essa última associa-se o discurso
Psiquiátrico, ao falar de uma “síndrome da adolescência” (ABERASTURY e
KNOBEL, 1981).
Se a marcação biológica da puberdade serve para precisar o início da
adolescência, segundo a tese evolutiva, o fim dela cai numa imprecisão de
definição. O discurso organicista falha ao não perceber a experiência
adolescente também como produto da cultura, em que o biológico e o social
são culturalmente significados
26
: “O final da puberdade ou “maturidade sexual
física” segundo Laufer, nem mesmo o endocrinologista sabe definir” (ALBERTI,
1996, p. 23).
A matriz psicológica produz o conceito de adolescência, primeiramente,
como processo psíquico organicamente condicionado. Essa corrente vai sofrer
transformações, particularmente, com as críticas elaboradas pela Psicanálise e
pela Psicologia Social. A teoria psicanalítica deslocará a relação puberdade-
adolescência, ao afirmam a condição discursiva do sujeito (RASSIAL, 1999).
Segundo a Psicanálise, a esfera do desejo e da sexualidade não pode ser
reduzida ao primado da genitalidade, já que o homem produz um discurso
sobre o seu corpo e o seu desejo. A Psicologia Social vem respaldar com o
discurso histórico e sociológico a relatividade da experiência adolescente
dentro da história e da cultura:
A adolescência investida por um dispositivo de saber-poder
(médico-higienista e psicopedagógico) aparece no centro de
uma nova séria de instituições que ganham uma maior
problematização no século XIX: a família e a escola. Se a
problematização da infância é contemporânea da reinvenção
da família moderna, a adolescência foi problematizada a partir
da reorganização das práticas escolares e correcionais pelas
práticas médicas. Na virada para o século XX, aparece um
novo objeto das ciências médicas e psicopedagógicas, um
novo saber que é acompanhado de novos dispositivos de
poder, instituições novas ou reconfiguradas pelo discurso, cujo
objetivo é produzir a adolescência (ORTEGA, 2002, p. 141-
142).
26
Neste ponto caberia a crítica antropológica à visão de que a cultura ocuparia um papel
suplementar no desenvolvimento humano: “Em vez de a cultura funcionar simplesmente para
suplementar, desenvolver e ampliar capacidades organicamente baseadas, lógica e
geneticamente anteriores a ela, ela parece ser o ingrediente dessas capacidades. Um ser
humano sem cultura seria, provavelmente, não um macaco intrinsecamente talentoso, embora
incompleto, mas apenas uma monstruosidade totalmente sem mente e, em conseqüência, sem
possibilidade de ser trabalhada” (GEERTZ, 2002, p. 141-142).
74
Mesmo com a crítica aos discursos evolucionista e organicistas, a
Psicologia continuará, contudo, com a idéia do adolescente como um “ser em
crise”. A adolescência passa a aparecer em ruptura com outro modo de ser, o
ser criança. Os significados elaborados pelos indivíduos dão sentido ao que é
vivido como crise. Essa crise seria um momento de resignificação de si mesmo.
Diferente de outras sociedades, nas quais a passagem da criança para adulto é
marcada por rituais, os quais operam uma passagem simbolicamente eficaz; a
nossa sociedade, segundo os teóricos da crise adolescente, imporia ao jovem
um tempo de espera, de preparação para a vida adulta. Surge, então, a tese da
moratória social, que tem em Erik Erikson e sua obra Identidade, Juventude e
Crise, primeiramente publicada em 1968, o seu maior expoente, reverberando
a idéia da moratória social também no discurso sociológico (ERIKSON apud
CALLIGARIS, 2000; apud GROPPO, 2006).
Enquanto até o final dos anos 1960, o discurso psicológico oscilou desde
uma visão organicista até psicossocial da “crise adolescente”; o discurso
sociológico enfatizou a preocupação com a juventude habitante das periferias
dos grandes centros urbanos (a categoria juventude será muito mais freqüente
no discurso sociológico do que o termo adolescente). Os primeiros discursos
da Sociologia da Juventude vieram marcados pela escola funcionalista,
detendo-se em sua maior parte sobre o tema da delinqüência juvenil,
principalmente nas décadas de 1920 e 1930, com as pesquisas feitas pela
Escola de Chicago (ABRAMO, 1994; GROPPO, 2006).
Ao partir de uma visão da sociedade como um organismo, o olhar
funcionalista da Sociologia da Juventude se volta para o modelo da integração
juvenil. De que forma os jovens estariam integrados a ordem social? Assim,
formulou-se uma idéia de renovação da sociedade pela juventude: os jovens de
hoje são essenciais para a definição da sociedade de amanhã. Essa renovação
afirmaria o princípio funcionalista que, após um período de disfunção no
funcionamento do organismo social, haveria o retorno ao equilíbrio da ordem
social. A idéia da juventude como um período conflituoso operaria essa
desequilibração e, posteriormente, um rearranjo do tecido social. Um dos
sociólogos da dita “utopia juvenil” será Karl Mannheim (MANNHEIM apud
75
ABRAMO, 1994; MANNHEIM apud GROPPO, 2006). Os movimentos juvenis,
nos anos 1960 e 1970, foram interpretados segundo essa linha:
O primeiro impacto desses movimentos foi favorável ao modelo
esboçado por Mannheim. Eles foram, em porção considerável,
responsáveis pela revisão da concepção funcionalista sobre as
rebeldias juvenis. De modo geral, pode-se dizer que, nos anos
1960, parte importante das ciências sociais procurou
compreender as rebeldias como dramáticas revelações das
contradições dos sistemas sociais em crise e dos processos
geoistóricos destrutivos, muitas vezes considerando a
possibilidade destes movimentos levarem os sistemas a
reformas e até revoluções (GROPPO, 2006, p. 6).
Nos anos 1960 e 1970, a historicidade da infância e da juventude ganha
outra visibilidade com os estudos de Philippe Ariés e Jacques Donzelot. Ariés
discute a historicidade da ocupação das crianças, apontando ao final de sua
obra não somente a infância, mas também a juventude como uma produção
histórico-social ocidental (ARIÉS, 1981). A análise de Donzelot da formação do
setor dos trabalhadores sociais na França, no final do século XIX até meados
do século XX, investiga como o campo dos trabalhadores sociais volta-se para
o ordenamento das famílias populares, produzindo diferenças no território
social: infância e adolescência x menor-idade, família burguesa x família
popular (DONZELOT,1986).
Em torno da criança a família burguesa traça um cordão
sanitário que delimita seu campo de desenvolvimento: no
interior desse perímetro o desenvolvimento de seu corpo e de
seu espírito será encorajado por todas as contribuições da
psicopedagogia postas a seu serviço e controlado por uma
vigilância discreta. No outro caso [o da família popular], seria
mais justo definir o modelo pedagógico como o de liberdade
vigiada. O que constitui problema, no que lhe diz respeito, não
é tanto o peso das pressões caducas, mas sim o excesso de
liberdade, o abandono nas ruas, e as técnicas instauradas
consistem em limitar essa liberdade, em dirigir a criança para
espaços de maior vigilância, a escola ou a habitação familiar
(DONZELOT, 1989, p.48).
Enquanto na família burguesa há uma produção da criança e do jovem,
em que o saber médico se associa à uma experiência sócio-educativa em uma
economia do corpo e do prazer; na família popular, o problema da carência, da
delinqüência e abandono faz surgir a uma economia social do menor. São
76
como menores-de-idade que a prole das famílias populares é percebida pelo
Estado e pelas práticas de assistência. E essas duas instituições não são
sinônimas. Ao jovem das camadas populares vai ser reclamado um direito à
adolescência, ou seja, ela não está lá como um dado. Ao menor, essa figura do
discurso jurídico-pedagógico encontra aqui sua origem. A infância e
adolescência do menor estão sempre em situação de vulnerabilidade. Basta
perceber os resquícios desse pensamento, atualmente, por trás de algumas
políticas públicas, voltadas para a juventude. Por exemplo, no terror que elas
têm da figura do jovem de periferia ocioso, na preconceituosa equação: jovem
+ periferia + tempo livre (que passa a ser discursado como ócio) = perigo, pois
o ócio das classes populares, sob certo olhar, guarda sempre uma suspeita
27
.
Em Culturas Juvenis, José Machado Pais faz uma classificação das
correntes teóricas da Sociologia da Juventude em duas grandes correntes: a
corrente geracional e a corrente classista. Segundo o autor, sob o prisma das
correntes geracionais estaria a compreensão da juventude como uma fase da
vida, enfatizando o aspecto funcional e unitário da juventude. Diferente da
Psicologia Evolutiva que coloca essa fase da vida na história natural do
desenvolvimento humano, as correntes geracionais interpretariam a juventude
como “geração social” (PAIS, 2003, p. 48). Dentro desse grupo, entrariam as
teorias funcionalistas da socialização das gerações, em sua interface com os
discursos médico e psicológico.
As teorias da “socialização contínua” foram dominantes nos
anos 50, quando médicos e psicólogos detinham o monopólio
do discurso sobre os jovens, ao assimilarem a adolescência à
crise de puberdade e ao definirem a juventude como um
período difícil de maturação psicológica que deveria conduzir à
idade adulta. É durante esse período que adquirem relevância
os conceitos de identidade ou autonomia juvenil. Mesmo
quando a sociologia (nos anos 60, com o funcionalismo)
começa a explicar a juventude como “fonte de problemas”,
diversos são os estudos que, na linha da teoria da socialização
27
No caso atual do Brasil, essa vontade de ocupar os jovens, como se as culturas juvenis
agenciadas nos morros, favelas e periferias não tivessem outro destino se não fosse a
intervenção dos segmentos estatais e da inflação não-governamental de algumas instituições
deve ser repensada, pois não é isso que mostram alguns estudos (por exemplo, o trabalho de
Glória Diógenes sobre as gangues de periferia e a cultura do funk e do Hip-Hop em Fortaleza,
DIÓGENES, 1998). O que deve se seguir é um reexame crítico dessas políticas. Sociólogos e
antropólogos poderiam ter um papel interessante na ruptura com esses preconceitos sociais e
na construção/análise de outras formas de fazer mais potencializadoras.
77
contínua, acabam por reconhecer as atitudes positivas dos
jovens perante a família, a escola e a autoridade (PAIS, 2003,
p. 50).
As noções de identidade e autonomia tornam-se importantes. Pela via
da identidade, os jovens tentariam montar territórios de sentido, para aquilo que
seria denominado como uma fase ambígua e de indecisões. A tensão entre
esses significados e aqueles elaborados pela geração anterior ocasionaria o
conflito de gerações. As transformações econômicas e sociais fazem com que
os jovens experienciem um universo de significados diferentes daquilo que foi
vivenciado por seus pais. Esse fato foi bastante nítido nas gerações do pós-
guerra dos anos 1950 e 1960.
Nos Estados Unidos, o avanço de uma sociedade de consumo e a
produção de bens em massa, com ênfase as telecomunicações (a difusão da
TV nos lares e a propagação de novos hábitos de consumo), responsáveis pela
difusão de novos estilos de vida. Na Europa, o reparo econômico dos prejuízos
gerados pela Segunda Grande Guerra, através do Plano Marshall, levou
também a mudanças de hábitos, por exemplo, a forte participação das
mulheres na reconstrução dos países devastados pela guerra, tanto sob o
regime capitalista quanto socialista, favoreceu a reivindicação de uma
emancipação feminina. Os estilos urbanos passam a ser veiculados com maior
velocidade através da indústria cultural: cinema, música, televisão etc. No
Brasil, essa efervescência cultural teve que entrar em embate com a instalação
do regime militar em 1964. Situação semelhante a outros países da América
Latina, favorecendo a proliferação de movimentos de esquerda,
particularmente, da esquerda juvenil estudantil dos setores médios urbanos. As
vanguardas juvenis reivindicam sua autonomia em ruptura com as gerações
anteriores. Porém, o discurso de universalizar os anos 1960 e 1970 como era
da total rebeldia juvenil deve ser relativizado, cuidando para não fazer uma
homogeneização de diferentes contextos:
Nos anos 60 e 70, como se disse, a juventude começou a ser
considerada e analisada como suporte de uma cultura
radicalizada, rebelde e conflituosa, desejosa de uma afirmação
de autonomia em relação ao mundo dos adultos. Em parte,
alguns movimentos juvenis – não representativos da geração
demográfica juvenil, perfeitamente localizados e datados
78
(beatniks, hippies, etc.) induziam generalizações abusivas ao
conjunto da juventude (PAIS, 2003, p. 53)
A juventude foi reinterpretada nos anos 1960 e 1970 pela via do conflito.
Não mais o conflito psicológico individual, mas o conflito inerente à condição
juvenil enquanto forma de sociabilidade, a juventude como grupo social.
Primeiramente, essa interpretação do conflito social juvenil estaria associada a
condição de classe. Atrelada à essa posição de classe, aparece a questão da
reprodução social, marcada por Bourdieu na sua compreensão da juventude
em uma entrevista, intitulada A juventude é apenas uma palavra:
Um dos fatores desta confusão das oposições entre as
juventudes de diferentes classes é o fato de diferentes classes
sociais terem tido acesso de forma proporcionalmente maior ao
ensino secundário e de, ao mesmo tempo, uma parte dos
jovens (biologicamente) que até então não tinham acesso à
adolescência, terem descoberto este status temporário, “meio-
criança-meio-adulto”; “nem criança, nem adulto”. Acho que é
um fato social muito importante. Mesmo nos meios
aparentemente mais distanciados da condição estudantil do
século XIX, isto é, na pequena aldeia rural, onde os filhos dos
camponeses ou artesãos freqüentam o ginásio local, mesmo
neste caso, os adolescentes são colocados, durante um tempo
relativamente longo, numa idade em que anteriormente eles
estariam trabalhando em posições quase-exteriores ao
universo social que define a condição de adolescente
(BOURDIEU, 1983, p.144).
Bourdieu pode ser classificado, usando a classificação de Machado
Pais (PAIS, 2003), como pertencente à corrente classista, pois a condição de
classe ainda ocupa um grande papel na determinação da condição juvenil.
Nesse artigo, o sociólogo francês não está sozinho na compreensão
denominada classista. Ainda dentro da corrente classista, os estudos da Escola
de Birmingham, na Inglaterra, vão ocupar um destacado papel.
Os jovens das periferias das grandes cidades constituíram objeto de
estudo nos anos 1960 e 1970, na Inglaterra, pela Escola de Birmingham, no
CCCS (Centre for Contemporany Cultural Studies). As culturas juvenis das
classes operárias são reinterpretadas como cultura de classes. Dessa forma,
elas são entendidas como subculturas. Na verdade, tais culturas juvenis
refletiriam o desejo de ascensão social desses jovens. As práticas de lazer e
consumo expressariam a vontade de entrar em outro universo simbólico, do
79
qual se sentiam excluídos como filhos da classe operária. O acesso ao
consumo se reflete na incorporação de padrões veiculados pela mídia e o
mainstream. Ao mesmo tempo, o rock emerge nesse cenário, ocupando a
função de música de protesto e linguagem universal da juventude para além
das divisões de classe que esses jovens buscariam romper (ABRAMO, 1994
FREIRE FILHO e FERNANDES, 2005).
Os autores dessa escola passam a dar grande importância ao aspecto
performático e espetacular das culturas juvenis e suas ligações com o universo
hedonista do lazer e do consumo. A Escola de Birmingham entraria em ruptura
com as correntes geracionais na Sociologia da Juventude, ao deslocar o
conflito juvenil do conflito de gerações para os conflitos de classe.
Com esses estudos, o caráter espetacular e as estilísticas juvenis são
postos cada vez mais em evidência. A noção de subcultura passa a ser alvo de
críticas, pois as multiplicidades juvenis demonstram em suas experiências
formas de socialização para além do determinismo das classes e novas
ferramentas conceituais são incorporadas na compreensão desses fenômenos:
os pós-subculturalistas aspiram, em linhas gerais, a reavaliar a
relação entre jovens, música, estilo e identidade... Como
conseqüência deste esforço revisionista, proliferam novas
terminologias (canais, subcanais, redes temporárias de
subcorrentes; cenas; comunidades emocionais; culturas clubs;
estilos de vida; neotribos), em substituição ao conceito de
subcultura, cujo valor heurístico- alega-se – solapa diante das
mutáveis sensibilidades e múltiplas estratificações e interações
das culturas juvenis do pós-punk (FREIRE FILHO e
FERNANDES, 2005, p.4).
A exaltação do caráter espetacular e estilístico das culturas juvenis faz
com que o universo do lazer seja um dos campos privilegiados de investigação,
pois nele o aspecto estético e performático das manifestações aparece de
forma mais explícita. Grande parte dos estudos da sociologia pós anos 1970
partiram nessa direção (GROPPO, 2006; MAFFESOLI, 1987). Mesmo assim,
no campo educacional e psicológico, ainda haveria uma tentativa de
recuperação moral, pelas instituições sociais, justificando a adolescência como
uma fase em perigo, tal como expõe Rosângela Soares:
80
Quem são os monstros que habitam a adolescência? A
sexualidade, a música – especialmente o rock – e a mídia –
com maior força a televisão. Porém, respondendo à questão
relacionada ao responsável pelo controle das criações
monstruosas, a família é o que existe de mais reincidente em
nossa cultura. É a instituição social mais conclamada na
salvação do declínio moral da juventude (SOARES, 2000,
p.15).
Esse tipo de análise da juventude, que a coloca como problema ao lado,
por exemplo, da questão da corrupção moral ou da violência tornou-se
bastante freqüente e ressoa até hoje no território das ciências humanas, o
perigo é uma naturalização da juventude como fase transgressiva e violenta.
Os Estudos Culturais contemporâneos questionaram as ligações
juventude-perigo, juventude-violência. Henri Giroux faz essa discussão ao
analisar o filme americano Kids, evidenciando práticas sociais que concebem
os jovens como seres naturalmente em risco. Giroux denuncia o que chama de
uma política de “demonização da juventude”, que a produz como uma fase
perigosa e contrária à ordem (GIROUX, 1996). Tal naturalização da juventude
só viria a justificar práticas de normalização/fixação das subjetividades
juvenis
28
.
Helena Abramo, ao abrir seu estudo “Punks e Darks no espetáculo
urbano” faz um apanhado dos saberes sobre as culturas juvenis urbanas. Seu
momento: os anos 1980 e os espaços da cidade de São Paulo (ABRAMO,
1994). Sua grande contribuição foi se perguntar quem eram esses punks e
darks desse período. Quem eram esses jovens, que não eram mais os
delinqüentes ou marginais das primeiras análises sociológicas, nem os
revolucionários que formaram a fantasia idealizada dos anos 1960 dos
movimentos estudantis e da contracultura. Ao fazer uma cartografia do seu
tempo, a autora sai do “lugar-comum” ao encontrar uma positividade das
culturas jovens urbanas, atreladas as cenas musicais do punk e do rock e sua
relação como resposta a um presente. O argumento da autora desfaz a
28
A juventude não é somente uma invenção no campo do saber, mas também produção de
subjetividades pela mídia, práticas sociais como o consumo, lazer etc. Uma boa dica de
pesquisa seria fazer uma arqueologia do imaginário juvenil na produção cinematográfica, um
dos vetores mais fortes de produção do imaginário coletivo juvenil: de Juventude Transviada de
1959, passando por Laranja Mecânica de Kubrick, indo até Beleza Americana ou Elephant, o
campo midiático e artístico parece muitas vezes estar a frente da compreensão antropológica e
sociológica desse imaginário.
81
linearidade enganosa da sucessão geracional e da rendição ao consumo, o
qual ocasionaria uma alienação desses jovens.
Ao tomar o movimento punk do final dos anos 1970 e 1980, por
exemplo, temos a dissolução de algumas dicotomias que muitas vezes
emperram a análise desses fenômenos, dentre elas, as duas que considero
mais perigosas são: a oposição global/local e a resistência/alienação. Os punks
não eram revolucionários em um sentido estrito de que formariam uma
resistência organizada buscando a mudança estrutural da sociedade. Porém, a
sua estética apontava para outros territórios do desejo e da subjetividade. O
som “cru” das guitarras e o visual de roupas rasgadas, jeans desbotados e
peças como as botas de operários fizeram da estética punk um vetor de
criação e visibilidade do espaço da grande cidade. Os punks cartografaram as
grandes cidades através de seus dejetos e de suas ruínas físicas e humanas,
atreladas a isso as experimentações com o corpo e com o desejo.
Nos anos 1980, tivemos a possibilidade de reencontrar nas paisagens
urbanas as micropolíticas do desejo e da subjetividade. Tal fato ajudou a
desconstruir a idéia do “ou tudo ou nada”: ou uma cultura juvenil traz um
engajamento político ou é apenas um fenômeno de consumo e hedonismo.
Nesse sentido, entra também o trabalho de Magnani, embora sendo sobre o
lazer das classes populares, mas em ruptura com um tempo em que: “uma
pesquisa sobre o lazer era vista quase como diletantismo, pois se considerava
que havia mais coisas importantes a se tratar, como o mundo do trabalho ou da
política” (MAGNANI, 1998, p.11).
Reencontrar as territorializações das metrópoles a partir do lazer, das
estéticas musicais, das práticas corporais trouxe uma contribuição na
compreensão das políticas de sociabilidade contemporâneas. Outras variáveis
entraram em cena, outras ferramentas conceituais. Através também desses
estudos, pode-se revisitar algumas formulações e campos de investigação
clássicos, por exemplo: a relação espaço-tempo, o determinismo de classe, a
antropologia urbana, a sociologia do consumo e da produção cultural.
Os jovens na sociedade não constituem uma classe social, ou
grupo homogêneo como muitas análises permitem intuir. Os
jovens compõem agregados sociais com características
continuamente flutuantes. As idealizações que procuram
82
unificar os sentidos dos momentos sociais da juventude
tendem a ser ultrapassadas pelo contínuo movimento da
realidade (CARRANO, 2003, p.110).
Assim, no fluxo do tempo, as culturas juvenis vêm ganhando novas
formas de definição e vastas têm sido as perspectivas metodológicas. Sem
pretender um consenso conceitual, aponto cada vez mais uma perspectiva em
que a heterogeneidade das práticas e símbolos que atravessam essas culturas
me faz pensar na especificidade/regionalidade dos saberes produzidos acerca
delas. Porém, enquanto montagem de uma rede discursiva, tais saberes se
comunicam, sendo passíveis de críticas e problematizações.
O fato de se enfatizar o caráter espetacular e estilístico das culturas
juvenis contemporâneas não significa deixar de levar em conta os contextos
sociais, ou seja, de qual lugar essas culturas emergem. Canclini (CANCLINI,
2005), ao investigar o quadro social das culturas juvenis dos setores médios e
populares urbanos na atual América Latina, ressalta que as condições de
segurança social (ter um emprego, uma casa, um lugar na universidade) fazem
com que os jovens passem a se preocupar desde cedo com a sua
sobrevivência. A inserção no mercado de trabalho abrevia a adolescência,
enquanto momento de espera e de preparação para a vida adulta. Desde cedo,
muitos jovens já estão tendo que enfrentar problemas de “gente grande”, como
se diz popularmente. Ao mesmo tempo, esses jovens são confrontados
permanentemente com os estímulos de uma sociedade que tem no consumo
uma forma de inclusão social. Da mesma forma, as transformações pelas quais
essa sociedade passa, principalmente pelos meios tecnológicos, afetam
decisivamente as formas de socialização entre os jovens:
Nos estudos sobre consumo e recepção descobrimos que a
maioria dos jovens preferem filmes de ação e entedia-se com
os que tratam dos amplos aspectos da subjetividade ou dos
processos íntimos. É possível interpretar, diante das
dificuldades de saber o que fazer com o passado e com o
futuro as culturas jovens consagram o presente, consagram-se
o instante. Diálogos simultâneos na internet, videoclipes e
música a todo volume nas discotecas, no carro, na solidão do
walkman. Instalações que duram pelo tempo em que estiver
aberta a exposição, performances só visíveis no dia em que se
inauguram (CANCLINI, 2005, p. 218).
83
Seguindo um pouco dessas intuições e contribuições, procurei pensar as
paisagens contemporâneas, formadas pelas culturas juvenis. Ao me deparar
com um espaço da cidade de Fortaleza, territorializado pela cena musical
alternativa, encontrei uma trama social complexa de produtores,
freqüentadores, bandas, Djs entre outros. O conceito de cultura juvenil com o
qual procuro operar aqui se aproxima da definição de Pais (PAIS, 2003).
Entendo a condição juvenil como conjunto de significados estruturantes e
estruturados, elaborados pelos jovens e incorporados por eles. A experiência
em grupo associada às práticas de lazer constitui importante meio de partilha
de significados e construção de uma experiência coletiva do ser jovem. Os
gostos musicais são por mim compreendidos como formas estéticas
catalisadoras na formação desses territórios de atuação juvenil.
CAPITULO 3
ESTÉTICAS MUSICAIS: AS CENAS MUSICAIS E OS TERRITÓRIOS DA
SUBJETIVIDADE
Jumbo Eletro Moderno, interpretada por Multiplex
Sábado à noite
Eu na tenho nada pra fazer
Onze e meia eu saio e vou pra porta do Gourmet
Se hoje estou, espacial
Não é nada de anormal e
Todos sabem o que eu não sei
Comigo o meu cigarro fora-da-lei
Moderno vai moderno vem
Como é moderna a noite do meu bem
Na Rua Augusta – consolação também
Como é moderna a noite do meu bem
RAP: Todos os dias uma nova surpresa, nada pra comer
nada na mesa.Em todos os dias a mesma emoção –Meia
noite e meia no meio do centrão. Então você já sabe o
que vai ser. Então você é só escolher
84
É moderno é interno é um processo muito pessoal é um
Inverno no inferno quando...”.
Composta pela banda paulista de eletro Jumbo Eletro, essa música foi
tocada pela banda paulista Multiplex na ocasião em que se apresentaram no
Noise3D, em 14 de junho de 2006. Banda integrante da cena alternativa de
São Paulo, algumas de suas músicas eram conhecidas do público do clubinho,
pois muitos dos DJ´s que tocaram no Noise 3D a tinham como fazendo parte
do seu repertório. O nome “Moderno” é usado para fazer menção a uma certa
experiência. O cenário urbano apresentado é o espaço da cidade de São
Paulo, as intermediações das Ruas Augusta e Consolação, zonas marcadas
pelo circuito underground paulista. A letra descreve o trajeto entre paisagens. O
que daria então sentido ao moderno?
A banda apresentou-se de uma maneira performática. O vocalista usava
uma grande cabeleira vermelha, uma calça colada e muita maquiagem no
rosto. Fez gestos, poses, xingou a platéia com palavrões, chegando a mostrar
seus órgãos genitais ao final da apresentação. O público grita, vaia e pede
mais. Enquanto ele cantava a música “Moderno”, mencionando lugares da
cidade de São Paulo, a platéia reagia gritando o nome de ruas e lugares da
cidade de Fortaleza: “Dragão do Mar”, “Santos Dumont”, Bairro de Fátima” e
numa atitude de deboche com risos e vaias “Pirambu”, “Leste-Oeste”, “Barra do
Ceará” etc. O contraponto do “ser moderno” seria freqüentar esses outros
espaços, o que mostra a relação do ser alternativo, “underground” ao ser
diferente. As pessoas se diferenciam pelos espaços que freqüentam.
As cenas musicais começam a serem pensadas a partir dos Estudos
Pós-subculturalistas (ver capítulo anterior) durante as décadas de 1970 e 1980.
A palavra “cena” surge na verdade não como conceito, mas categoria nativa no
campo do consumo e da produção cultural dos estilos musicais juvenis pós-
anos 1970 (principalmente do rock independente, do punk e do pós-punk). Com
a difusão dos estilos musicais, o termo passa a denominar a segmentação dos
campos de atuação juvenil de acordo com os gostos musicais.
Uma cena pressupõe atores. Mas as cenas musicais pós-anos 1970
pressupõem antes de tudo produtores, agentes que trabalhem para a
construção desse espaço. Difícil definir o ponto de origem de uma cena. Na
85
verdade, um conjunto de fatores e a articulação de determinados grupos fazem
com que uma cena aconteça.
O termo “cena” ainda envolve uma dimensão menos espetacular: a
preparação parta a cena. Com o termo “cena”, os pesquisadores estavam não
apenas preocupados em compreender a aparição espetacular de certos grupos
juvenis no espaço urbano. Na cena, está em jogo o trabalho silencioso de
redes de sociabilidade, trocas de informações etc. Com a mudança e os
avanços nos meios de comunicação, principalmente a internet, a formação de
redes de trocas de músicas, de discussão entre grupos de jovens, contribuiu
para composição de uma flexibilidade entres as cenas musicais e de
intercâmbio entre elas.
A noção de cena musical – definida por Strahl, como um tipo
específico de contexto cultural urbano e prática de codificação
espacial – oferece meios diferenciados para compreender os
complexos circuitos, afiliações, redes e pontos de contatos que
informam as práticas culturais e as dinâmicas identitárias dos
grupos juvenis, no contexto dos espaços urbanos. A natureza
versátil das cenas problematiza a noção de que um simples
determinante (classe, gênero, raça) agiria como princípio
organizador da expressão cultural coletiva. Graças ao seu
caráter flexível e antiessencialista, às suas conotações de fluxo
e corrente, movimento e mutabilidade, o conceito permite uma
abordagem mais amplas tanto dos contextos industrial,
institucional, histórico, social e econômico como das
estratégias estéticas e ideológicas que sustentam a produção
musical urbana (FREIRE FILHO e FERNANDES, 2005, p.5).
Para compreender mais sobre o universo da cena musical alternativa, foi
preciso refazer alguns percursos através de entrevistas com pessoas que
estavam nessa cena, em Fortaleza, há bastante tempo. Nesse espaço
compartilhado de gostos musicais se imiscuem como se vê várias variáveis.
Como possibilidade de sociabilidade e produção de subjetividades, esses
espaços de lazer nos dizem muito mais do que a veiculação de um estilo
musical com fins lucrativos. Nesse sentido, comecei a pesquisa na busca de
entender o que é essa paisagem chamada: cena musical. O primeiro problema
a deparar-me seria explicar como Fortaleza entra nessa rede das cenas
musicais e por que os produtores e as bandas locais falavam de uma ausência
de cena musical ou de uma anti-cena.
86
A edição do Jornal O Povo de 27 de agosto de 2006 traz como tema de
um dos seus Cadernos (“Vida e Arte”) a cena musical alternativa de Fortaleza,
atentando para uma descoberta de tal cena pela mídia. Mas, ao mesmo tempo,
problematizando se em Fortaleza teríamos uma Cena ou Anti-Cena. A primeira
matéria do caderno traz como título: “A Anti-Cena”. Alguns dos problemas,
apontados que justificariam a não denominação do circuito musical alternativo
de Fortaleza como Cena, seriam a falta de uma organização dessa rede a
dependência de sua sobrevivência somente a partir de iniciativas individuais e
isoladas:
O reconhecimento não obedece um manifesto único. Aponta
para todo os lados. E, ainda sem veiculação da grande mídia, a
movimentação não se apresenta como uma “cena”, segundo a
opinião de quem a faz. “Acontece por esforço e mérito das
próprias bandas. “Cena” realmente aqui não levanta e não
divulga banda. Fortaleza é meio que uma anti-cena. Ninguém
aqui precisou dizer que é do Ceará. Foi mais pela questão
musical do que pela geográfica. Em Recife, você lá é pós-
mangue-bit ou mangue-bit. Montage, Cidadão Instigado e
Karine Alexandrino hoje são reconhecidos fora, mas não tem
uma fusão musical entre si”, observa Eric Barbosa, guitarrista
do Fóssil (Jornal O Povo, 27 de Agosto de 2006).”
Mesmo assumindo alguns problemas que emperrariam o funcionamento
desse circuito musical como cena, os agentes aos descreverem toda a
estratégia de veiculação, formação de público e montagem de uma rede de
contato apontam mecanismos que nos levam a aproximar do conceito de Cena.
Talvez, Fortaleza não seja uma Cena, no sentido ideal do termo, mas opera
como uma “vontade de cena”; um desejo de consolidação de um espaço social
de legitimação e garantia de sobrevivência dessa rede musical. A isso se junta
a criação de espaços na cidade como os clubes que ajudam na divulgação do
estilo musical, sendo ponto de encontro e de sociabilidade para os jovens
integrados nessas culturas musicais. O problema em Fortaleza como aponta a
mesma matéria: “O circuito de boates e casas noturnas de entretenimento
fecham-se (Jornal O Povo, 27 de Agosto de 2006)”.
Um desses espaços, de certa forma, garantido para a Cena Musical, foi
Noise 3D, com a visão que existia um público para tal cena. Desde então,
comecei a delinear um mapa dessa cena ao ir encontrando pessoas que
87
freqüentava, o local, entrevistando produtores, integrantes de bandas e DJs. O
clube funcionava de quinta a domingo e tinha programação específica para
cada um desses dias.
O fato de muitos apontarem Fortaleza como uma “anti-cena” refere-se,
antes de tudo, aos dispositivos que mantém a cena em constante
funcionamento: gravadoras de selo independente, que tornasse possível para
as pequenas bandas que surgem uma forma de divulgar seu material. Mídias
que permitam uma constante publicização da vida da cena, por exemplo, no
caso da cidade do Rio de Janeiro, a cena independente dispõe de revistas
alternativas como a “Outra Coisa” e a “Laboratório Pop” (FREIRE FILHO e
FERNANDES, 2005, p.11). E, por fim, as casas noturnas voltadas a cena
alternativa ou independente (usarei esses dois termos alternadamente) são
escassas e não conseguem se sustentar por muito tempo.
Também optei pelo termo “cena”, devido ao seu sentido usual, uma
categoria nativa dos produtores, freqüentadores e participantes de bandas
entrevistadas ao referirem-se ao universo em que participam. “Fazer parte da
cena” ou “trabalhar pela cena” são algumas das expressões que encontramos
nos discursos desses agentes. O que está em jogo nessa categoria é toda a
complexidade prática da montagem de territórios das culturas musicais. No
espaço da cena musical, pode-se vislumbrar:
a associação com as mídias, sejam as de maior alcance e
poder, sejam as alternativas (como fanzines, revistas, produção
independente de CDs e vídeo clips etc.);
as redes de solidariedade, mas também de disputa entre os
produtores, donos de estabelecimento e formadores de opinião;
a formação de um público da cena, que também é um agente
produtor, pois faz da cena musical um espaço de sociabilidade.
O fato de as cenas independentes do eixo Sul-Sudeste do Brasil
apresentarem uma maior estabilidade e disporem de dispositivos que mantêm
uma cena em bom funcionamento faz com que a imagem das cenas
alternativas de cidade como São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre sejam
tornadas modelos para as demais. Por isso falamos em anti-cena, quando, na
88
verdade, a definição pela via do negativo, daquilo que não somos, não garante
um denominador comum, ou seja, um princípio de coesão e articulação, mas
apenas um apontar das nossas falhas frente aos modelos de outras cidades.
Interessante seria atentar que em Fortaleza as “coisas” acontecem
diferentemente; a nossa cidade impõe um conjunto de variáveis locais.
Neste capítulo, busco compreender a cena musical como uma unidade
complexa, pois a cena é a forma-síntese do meu objeto de investigação. No
território da cena, estão articuladas as linhas de subjetividade, de espacialidade
e de esteticidade. A descoberta de que não poderia me desligar do conceito de
cena para compreender as culturas juvenis na área do entorno do Centro
Dragão do Mar me veio no decorrer das entrevistas. Passei a entrevistar jovens
que tocaram em bandas ou produziram festas e ainda aqueles que
trabalhavam na produção de mídias alternativas (especificamente fanzines). No
espaço do Noise3D, não era difícil encontrar essas pessoas. Na verdade, todos
se conheciam de alguma maneira, o que me levou de um informante ao outro,
seguindo as indicações que me eram dadas. Encontrei informantes
privilegiados. Por motivos pessoais e pedidos de alguns a identidade dos
informantes foi resguardada, usando aqui nomes fictícios.
Adentrar o universo da cena musical implica dominar um conjunto de
códigos. Conhecer bandas, estilos e saber falar sobre isso; ter um mínimo de
vocabulário que se deve conhecer para poder conversar com as pessoas.
Saber qual a diferença entre eletropop e eletropunk, punk, pós-punk, indie,
EMO, etc., o que cada um desses termos significa. Nas situações de
entrevistas, esses termos apareciam, e deparava-me com a tarefa de ir atrás
de investigar mais sobre um estilo musical. Eu procurava conhecer mais
através das indicações que meus informantes forneciam-me de nomes de
bandas e páginas da internet, onde eu poderia encontrar mais informações,
baixar músicas e videoclipes, entre outras coisas. Olhar um fenômeno estético
significa mais do que apresentar as condições sociais de emergência de uma
nova prática estética e o que os seus agentes dizem sobre ela. Tal tarefa pede
do cientista social uma compreensão dos estilos musicais.
Marcel Mauss dedica, em seu Manual de Etnografia, um capítulo
especial à estética (MAUSS, 1972). Nesse capítulo, o autor inicia uma
discussão sobre os conceitos da arte, dentre eles, a noção de belo. Para isso,
89
retoma um debate clássico desde Kant: o que faz algo ser considerado belo?
Mauss como Kant afirma não ser possível uma definição objetiva do belo. O
conceito de belo é subjetivo e sensível. Ao investigar um objeto estético, deve-
se interrogar sobre as emoções daqueles que o produzem e também, daqueles
que o contemplam. Paralelamente, torna-se necessário apresentar os
conceitos que são elaborados dentro do próprio campo estético. Dentre eles, a
noção de estilo, com a qual trabalho aqui, já que menciono os estilos musicais.
O estilo remete ao próprio conjunto de códigos que atravessam a produção do
objeto estético, da mesma forma que o modo como ele é produzido.
O conjunto dos tipos, dos instrumentos, dos objetos estéticos
em uso numa sociedade determinada numa determinada
época constitui o estilo. O estilo corresponde ao conjunto do
caráter estético no qual uma sociedade, num dado momento,
deseja viver. A determinação desse momento é difícil de se
fazer, pois aqui intervém a noção de gerações. Sabemos que
as modas mudam com as gerações, mas ignoramos onde
começam e onde acabam essas gerações (MAUSS, 1972,
p.109).
Nesse ponto, o aspecto importante é que o estilo artístico guarda uma
relação reflexiva com a sociedade. Esse desejo da sociedade traduzido, ou
melhor, diagnosticado pelo artista constitui um signo, no qual a sociedade pode
ler a si mesma. Porém, o signo estético não opera de modo descritivo, ele
questiona, produz problemas. O rock foi rotulado, desde o seu nascimento,
como “a” música da juventude, pela mídia e por alguns segmentos da
sociedade. Pode-se questionar que nem todos os jovens do planeta escutam
rock, ou o têm como estilo musical predileto. Mas, mesmo assim, nas
sociedades ocidentais, o rock e a juventude se encontram intimamente
relacionados. Mesmo aqueles que não gostam de rock, já escutaram ou de
alguma maneira se depararam com esse estilo musical. O rock foi uma das
formas de expressão musical de maior alcance sobre as juventudes.
O rock como gênero musical se estabelece com uma estrutura
circular, de repetição da base musical e das atitudes corporais;
por isso se torna imediatamente reconhecível e reproduzível, e
se configura como uma “cultura de máscara”, podendo ser
vestida e imitada ao infinito. É dessa maneira que o rock´n roll,
quando nasce, nos anos 50, vai poder ser adotado e servir de
90
expressão para “um grupo social emergente: a adolescência”
(ABRAMO, 1946, p.96).
Os movimentos juvenis, nos anos 1960 e 1970, tiveram um grande papel
na difusão do rock. Da mesma forma, a indústria cultural soube apropriar –se
dessa expressão musical, constituindo o cenário lucrativo do consumo musical
juvenil. Começou a haver então uma segmentação do rock em diversos estilos.
Essa ligação do rock com a indústria cultural se caracterizou por ambigüidades
e tensões, não sendo possível marcar uma fronteira nítida no campo do rock.
Essa ligação do rock com a indústria cultural caracterizou-se por ambigüidades
e tensões, não sendo possível marcar uma fronteira nítida no campo do rock
entre “música-mercadoria” e “música-arte”. O olhar romantizado tende a ver
sempre o rock como uma expressão política de resistência e contestação dos
valores pela juventude. Porém, ao mesmo tempo em que eram porta-vozes da
contracultura
29
, os grupos de rock consolidaram-se como um fenômeno
milionário de vendas.
Retomando Mauss, podemos dizer que o estilo musical interpreta a
sociedade, fornecendo novos mapas de sentido para as vidas existentes. A
música deve então ser relativizada a partir dos grupos com os quais se
relaciona. Inserida em um quadro social mais amplo, a música tem que
negociar seus códigos com outras esferas da sociedade: a política, econômica
etc. Os estilos musicais não são produções individuais, mas produções das
sociedades e é dentro das sociedades que tais estilos fazem sentido:
Nada mais impermeável que a música de uma sociedade por
outra sociedade, a música de uma idade por outra idade; no
entanto nada mais fácil de imitar que uma música ou uma arte.
Será preciso estudar os casos de não adopção, do mesmo
modo como os casos de adopção, pois não há evolução natural
nem evolução sobrenatural. A invenção de cada sociedade faz-
se segundo determinadas modas que mudam com os lugares,
as gerações... Os problemas referentes a invenção são
geralmente mal postos: temos sempre a impressão de
29
“A contracultura nasceu, em 1965, no bairro de Haight Aisburg em São Francisco. Era a
modelagem física de um grupo de jovens, que cada vez mais se ampliaria e estenderia,
percebendo que os valores da sociedade em que viviam não os faziam felizes, os alienavam e
envolviam numa engrenagem de que eles, como indivíduos, eram apenas uma peça a mais. A
proposta numa vida baseada no amor a todas as coisas e no presente, sem hipotecas sobre o
futuro. Eram os chamados flower childrens ou filhos das flores. Ocupavam-se com os trabalhos
manuais, o artesanato, a agricultura, apanhar sol, ingerir substâncias que expandiam a mente
e, sobretudo, compor música e escutá-la” (ARIAS, 1979, p.114-117).
91
invenção individual; é a única forma como a concebemos
porque, entre nós, o inventor é considerado como um indivíduo
poderoso e que criou tudo (MAUSS, 1972, p.119-120).
Ao falar-se de um rock independente ou alternativo, pressupõe-se que
haveria um tipo de rock que seria dependente. O rock como linguagem musical
incorporou uma série de influências, tornando-se um estilo bastante flexível que
soube se adaptar a diferentes territórios, sendo transformado por onde
passava. Tal fato levou autores a falarem de uma condição estrangeira do rock
(CAIAFA apud ABRAMO, 1994, p.91). O rock como linguagem musical
“universal”, na verdade, acaba sendo cada vez mais metamorfoseado. O
movimento do rock independente surgiu no final dos anos 1970, nos Estados
Unidos e na Inglaterra, a partir da transformação do rock em uma moda. As
bandas independentes estavam preocupadas em produzir sua música, sem
considerar teoricamente o fato de ser ou não um sucesso comercial. Tais
bandas pregavam a idéia da “música pela arte” e não a “música pelo sucesso”.
Foram influenciadas principalmente pelo movimento punk que se contrapunha
aos ditames do mercado musical. Surgia dessa forma o indie rock.
A estética indie baseava-se na proposta de uma produção autoral acima
das pressões comerciais. O formato musical se destacava pela valorização do
som das guitarras. As bandas se apresentavam em pequenas casas noturnas e
clubes, gravando seus discos em pequenas gravadoras. Bandas como The
Smiths e Sonic Youth fazem grande sucesso, passando a haver um interesse
das grandes gravadoras pelas bandas alternativas. Na década de 1990, as
bandas norte-americanas, marcadas pela influência do grunge e do punk como
Nirvana fazem grande sucesso de público e vendas. O rock independente
mostra que não é tão autônomo assim. Longe dos grandes cenários de
visibilidade (Londres, Nova York ou Seattle), a cena musical do rock alternativo,
no Brasil, teve seu surgimento na década de 1980, sendo um movimento dos
grupos jovens de classes médias urbanas das grandes cidades como Rio e
São Paulo (ABRAMO, 1994). Muitos se empreitaram em construir bandas e
tocar em festas nos clubes, nas faculdades e nos espaços que pouco a pouco
iam aparecendo. Faltavam os meios para consolidar uma cena alternativa do
rock no Brasil. O que se tem hoje foi garantido com muito esforço por parte
daqueles que fazem a cena. As fortes influências inglesas e norte-americanas
92
repercutiram nas letras compostas em inglês por boa parte das bandas. O
visual também tenta se aproximar do que é visto lá fora.
Ao conhecer duas informantes, Joana e Paula, que atuavam na cena
indie de Fortaleza, Paula, desde 1997, e Joana, desde 2000, decidi a partir de
suas histórias como produtoras de festas e também integrante de bandas,
mostrar suas trajetórias como imagens-sínteses do percurso de um jovem
dentro dessa cena. Muito antes do surgimento do Noise 3D em novembro de
2004, Fortaleza já passou por um circuito de locais dedicados a cena
alternativa: Domínio Público, Cidadão do Mundo, Peixe Frito, para citar alguns.
Os territórios das cenas musicais são também territórios existenciais,
onde se visualiza componentes de subjetividades dos jovens. As trajetórias dos
grupos operam marcas nas subjetividades dos indivíduos. Em Cartografia
Sentimental, Suely Rolnik analisa as transformações das paisagens subjetivas
no Brasil pós-anos 60 (ROLNIK, 2006). Ao trabalhar a noção de subjetividade
como uma produção eminentemente social, tal como foi pensada por Deleuze e
Guattari (DELEUZE e GUATTARI, 1997), a autora reencontra as potências
sensíveis das subjetividades naquele período. Para ela, não só as paisagens
geográficas são cartografáveis:
Paisagens psicossociais também são cartografáveis. A
cartografia, nesse caso, acompanha e se fez ao mesmo tempo
que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de
sentido – e a formação de outros: mundos que se criam para
expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os
universos vigentes tornam-se obsoletos. Sendo tarefa do
cartógrafo dar língua para afetos que pede passagem, dele se
espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades
de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra,
devore as que lhe parecem elementos possíveis para
composição de cartografias que se fazem necessárias
(ROLNIK, 2006, p.23).
3.1 Joana, Paula e os diversos tempos da cena musical
Joana atua na cena musical já há bastante tempo. Jovem, 27 anos,
classe média, com a matrícula trancada no curso de Filosofia, ela começou
suas atividades, ligadas ao lazer, organizando festas e semanas culturais na
Faculdade, no ano de 2000. Daí partiu para a formação de uma banda, a
93
Deuses Diets, com mais três amigos. Conheci Joana pessoalmente em uma
das festas do Noise 3D por intermédio de sua irmã. A entrevista aconteceu no
dia 25/04/2006, no seu local de trabalho, uma escola de idiomas, logo após o
expediente.
“Joana: A primeira festa que eu fiz foi em 99, o “Abril pra Arte”. Era uma
festa não. Na verdade, era uma semana com palestras, oficinas, filmes, um
monte de coisa, durou foi até 2001. E era muito legal. A última. Ah não, a última
foi no Fábrica. Ah é! Deixa pra lá. Abril pra Arte tinha calourada. Mas na
verdade era uma semana com muita coisa legal... Em 2003, eu fiz o Fábrica lá
na UECE, voltada para a cultura pop. Aí fiz o Cereja Mecânica, que era um
grupo que inicialmente faria festas. Geralmente, eu fiz várias festas, no Pachá
também. La Cereja Mecânica...
Kaciano: Quem compunha o grupo?
Joana: Era eu, o Deinny, Laudenir, a Joyce, o Diego e a Nina. O Helano
que tá na Alemanha e o Deinny eram os Djs. O Laudenir fazia a parte gráfica e
eu junto com a Joyce fazia parte de ir atrás dos lugares para fazer as festas,
expor esse conceito que a gente queria levar. Na verdade, não tinha muitos
locais. A gente só tinha o Ritz. Já não era por fins lucrativos pois não tinha
como. A gente fazia isso porque é muito ruim a gente tá numa cidade que não
tem nada que a gente goste. A gente buscava fazer coisas, pra que pelo
menos a gente pudesse se divertir. A idéia era essa, a gente se divertir mesmo.
No caso do Cereja, foram muitas insatisfações. Primeiro, insatisfação musical,
que até hoje permanece, né (risos). Muitas vezes você, pelo menos eu,
dificilmente me divirto musicalmente. Eu me divirto pela companhia das
pessoas. A minha parte era pegar músicas do Português e do Espanhol. Mas a
minha parte foi a primeira a ser rejeitada pelo público. O povo gosta é do inglês
mesmo. Isso já era meados de 2004 pro final.
Porque tem essa coisa de onda. Tem uma coisa anterior, aí já vem a
próxima, aí já passam a odiar totalmente a anterior. O pessoal do EBM odeia o
Eletro, é incrível. Eu acho que é o lugar. Os lugares tem predisposições
culturais, não é que eu seja determinista, mas eu acho que tem. Fortaleza, por
exemplo, só tem o Fil de Dj de hardtechno... Porque o pessoal aqui gosta de
coisa alegre, aquela coisa tropical. E Porto Alegre, por exemplo, que é uma
94
cidade mais fria, o clima bem diferente, o pessoal gosta mais dessas coisas
mais darks: EBM, Darkwave etc. Tanto que o eletro tá meio out lá. Porque o
Eletro é muito alegre. Por isso, o Montage ficou aquelas coisas. Montage é a
única coisa mais ou menos contemporânea que tem em Fortaleza. Porque o
resto... Eu digo até ao Laudenir: não queira que eu goste dessas bandas,
porque eu não gosto. Tou por fora. Não quero saber de rock. Agora só quero
saber de ópera. Estou ouvindo Maria Callas. Não quero saber de nada disso aí.
O eletro combina muito com Fortaleza, porque é putaria, Drogas, é alegria
mesmo.
Eu acho que é uma coisa mesmo de predisposição da cidade e do clima.
Tu pegou uma coisa difícil... Eu não sei como uma cidade pode ter uma
vocação totalmente não cultural como Fortaleza. Assim, é difícil de entender
porque existe um ciclo de existência pros lugares. Por exemplo, O Universal
marcou uma época, mas foi só a época, acabou. Acho que durou meses, não
foi nem um ano. O Ritz também, durou mais, mas foi aquele período. Cada um
desses lugares trazia uma vertente. Eu acho que pelo fato de ser um público
selecionado, foi mudando de lugar, mas as pessoas continuando as mesmas e
tal. Então eu acho assim, que apesar dessa rotatividade de lugares, falta um
espaço específico. Por exemplo, no Universal, tocava a mesma coisa que toca
no Noise hoje em dia, mudou o quê? Mudou a empolgação das pessoas,
porque as pessoas envelhecem e amadurecem, né? No Noise ficou aquela
coisa, todo mundo vai porque não tem mais pra onde ir. Em geral é assim.
Muitas pessoas que vão de quinta a domingo lá, é porque não tem realmente
mais lugar, eu não tenho mais saco, eu vou aqui e acolá mesmo. Mas eu acho
que o que acontece é isso: muda muito o lugar, mas a coisa continua a
mesma” (Joana, 27 anos, entrevista em 21/02/2006).
A entrevista com Joana se deu num momento crítico, justamente quando
estava a refletir sobre o caráter transitório das pessoas e dos lugares. Joana e
outros jovens, com os quais tive contato acompanharam alguns dos momentos
da cena musical independente. Seus depoimentos mostraram que o
engajamento nessa cena se deu por motivos pessoais, tendo que lidar com
adversidades como a falta de recursos e de apoio para os projetos que
criavam.
95
O meu contato com essas pessoas foi bastante enriquecedor. Primeiro,
porque ao chegar ao Noise 3D Clube, tudo para mim soava como uma
novidade. Eu não tinha até então contato com a cena “indie” e o fato de
deparar-me com aquele espaço me fazia pensar em um caráter inovador. O
que de certa forma contrariava o logos nativo daqueles mais antigos, que me
apontaram um desgaste dos espaços e uma eterna repetição do mesmo: “as
mesmas pessoas ouvindo as mesmas músicas de sempre”. Sem generalizar as
visões dos informantes que dessa forma me falaram, tomei seus discursos
como blocos de sentido que por uma vivência maior e mais remota da cena
independente em Fortaleza, conseguindo elaborar isso no tempo. A
descartabilidade física entra em choque com a manutenção de uma única
estética.
No fundo, isso acaba constituindo um ciclo de lugares e de discursos
que sempre vem a tona quando um desses estabelecimentos fecham. A
manutenção desse ciclo se ratifica pelo funcionamento dos índices que definem
o território da cena musical alternativa em Fortaleza: a escassez de espaços, a
vontade de um solo firme, o discurso nostálgico que reclama um espaço que já
existiu ou um espaço por vir se fosse possível, pois o discurso dos agentes tem
como ponto de partida um olhar retrospectivo do que ainda estar por vir: “tenho
certeza que vai acabar fechando e vai ser mais um para muita gente ficar
chorando sua perda” (Anderson, 23 anos, entrevista). Esse ciclo,
aparentemente inconstante, mantém-se pela constância de ritmos, o suposto
“conservadorismo musical” que menciona Joana.
Deleuze e Guattari pensam uma relação do ritmo com o território. Para
eles, o ritmo é harmonia, composição e articulação, deixando para fora o que
causa caos e desarticulação (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 115-170). No
ritmo, os territórios são demarcados. O discurso do “natal”, do território que se
perde para ser novamente reencontrado entra na composição do ritmo. Dessa
maneira, o discurso da terra natal tem uma função ativa segundo Deleuze e
Guattari, pois ele produz diferenças e demarca fronteiras, ocupando um papel
relevante na composição de mundos. No presente caso das cenas musicais, a
“lógica do natal” não é ponto de enclave, mas um dispositivo ativo em pleno
funcionamento: usuários, donos de estabelecimentos, jornalistas e acadêmicos.
Esses agentes fazem funcionar “lógica do natal”, assemelhando-se ao que
96
acontece de maneira geral com a Praia de Iracema. A relação entre tempo e
espaço na cena musical alternativa através da lógica do natal, do território a ser
reencontrado, impedindo a novidade disrruptiva, a qual levaria a outro
ordenamento das paisagens:
Daí o afeto próprio ao natal, tal como o ouvimos no lied, de ser
sempre perdido ou reencontrado, ou tender para a pátria
desconhecida. No natal, o inato tende a deslocar-se: como diz
Ruyer, ele está de certo modo mais à frente, mais adiante do
ato; ele diz respeito menos ao ato ou ao comportamento do
que às próprias matérias de expressão, à percepção que as
discerne, as seleciona, ao gesto que as erige ou que as
constitui através dele mesmo (é por isso que há períodos
críticos onde o animal valoriza um objeto ou uma situação,
impregna-se de uma matéria de expressão, bem antes de ser
capaz de executar o comportamento correspondente). No
entanto, isto não quer dizer que o comportamento esteja
entregue aos acasos do aprendizado, pois ele é
predeterminado por esse deslocamento, e encontra em sua
própria territorialização regras de agenciamento. O natal
consiste, portanto, numa descodificação da inatidade e uma
territorialização do aprendizado, um no outro um com o outro
(DELEUZE e GUTTARI, 1997, vol.4, p. 145-146).
Para Deleuze e Guattari, as paisagens subjetivas são como territórios.
Indivíduos ou grupos somos atravessados por três tipos de linhas: linhas de
segmentaridade dura, linhas de segmentaridade flexível e linhas de fuga. As
formações sociais estão em constante devir. Por isso, Deleuze e Guattari não
pensam a sociedade somente a partir do plano institucional. As capilaridades,
as tramas de minorias constituem a sociedade: “A cada momento, o que foge
em uma sociedade?” (DELEUZE e GUATTARI, 1997, vol. 3, p.79).
No campo das segmentaridade duras residem as divisões identitárias e
os aspectos institucionais que definem a subjetividade como produção social (a
família, a classe, o gênero e o trabalho). No campo das segmentaridades
flexíveis, estão os pequenos desvios, os interstícios das segmentaridades
duras, os seus outros possíveis; mas que não decompõem aquilo que é
constituído pelo primeiro tipo de linhas. No terceiro tipo, as linhas de fuga,
nelas encontramos os processos de ruptura e decomposição que transformam
as cartografias. Os três tipos de linhas se encontram intimamente ligados, e as
formações sociais não são atravessadas somente por um tipo de linha.
97
Poder-se-ia acreditar que os segmentos duros são
determinados, predeterminados socialmente, sobrecodificados
pelo Estado; tender-se-ia, em contrapartida, a fazer da
segmentaridade maleável um exercício interior, imaginário ou
fantasioso. Quanto à linha de fuga, não seria esta inteiramente
pessoal, maneira pela qual um indivíduo foge, por conta
própria, foge às “suas responsabilidades”, foge do mundo, se
refugia no deserto, ou ainda na arte... etc. Falsa impressão. A
segmentaridade maleável não tem nada a ver com o
imaginário, e a micropolítica não é menos extensiva e real do
que a outra. A grande política nunca pode manipular seus
conjuntos molares sem passar por essas micro injeções, essas
infiltrações que a favorecem ou que lhe criam obstáculos; e
mesmo, quanto maiores os conjuntos, mais se produz uma
molecularização das instâncias que eles põem em jogo.
Quanto às linhas de fuga, estas não consistem em fugir do
mundo, mas antes em fazê-lo fugir, como se estoura um cano,
e não há sistema social que não fuja/escape por todas as
extremidades, mesmo se seus segmentos não param de se
endurecer para vedar as linhas de fuga (DELEUZE e
GUTTARI, 1997, vol. 3, p. 78).
Os territórios existenciais, agenciados pelas culturas juvenis, compõem
espaços-tempos subjetivos. Paula, 26 anos, tocou em um abanda de rock com
amigas de 1996 a 2003. Aos 16 anos, orgulha-se de ter conjuntamente com
amigas formado a primeira banda de rock somente com integrantes do sexo
feminino. Os lugares femininos de Joana e Paula evidenciam uma abertura
num cenário onde a atuação masculina se faz mais visível. Não é mais tão
difícil ver mulheres nos vocais ou ocupando outras funções nas bandas, ou
ainda como Djs nas festas.
Paula já tinha discotecado em algumas festas do Noise 3D. Mas, por
uma infeliz coincidência, sempre nos desencontrávamos. Paula era conhecida
por seu estilo de se vestir, nada que usava parecia óbvio isso me fazia pensar
que seu modo de se vestir tentava conferir-lhe uma autenticidade,
singularidade. Consegui o seu contato através de Cláudio que me deu a dica
de entrevistá-la, pois era uma pessoa que estava na cena musical há bastante
tempo, já tendo tocado em bandas e discotecado em festas. Durante a
entrevista, ela menciona ter algo para em entregar que achava ser importante
para eu conhecer mais sobre sua história, mas pediu para que eu tivesse muito
cuidado com o que ela me entregaria.
O tempo de espera, para receber o material que me foi entregue por
Paula, demonstrava o quanto o mesmo tinha de valor sentimental. Foi preciso
98
ganhar sua confiança. Nas noites do Noise 3D, sempre que eu a encontrava,
ela se lembrava do que havia prometido na entrevista e dizia que ia me ligar e
me entregar durante a semana. Isso se passou até que dois meses depois da
entrevista, ela me liga e pede para encontrar –me no outro dia na universidade,
pois já tinha coletado tudo o que tinha para mim. Quando nos encontramos, ela
trazia uma pasta verde que não fechava direito de tão cheia que estava.
Sentados à uma mesa, naquela tarde, tive uma conversa com minha
informante muito mais valiosa do que durante a entrevista. Ele abriu a pasta e
mostrou o que tinha e contou o valor de cada coisa. O arquivo de Paula se
compunha de fotos, matéria de jornais em que tinha saído e recortes de
revistas.
Logo quando sua banda surgiu em 1997, elas foram matéria de um
caderno do Jornal O Povo, sobre bandas de rock compostas por mulheres.
Com muito orgulho, ela me diz que ganhou sua primeira guitarra aos 16 anos
em um sorteio que teve em um show de rock na Praia de Iracema. Desde
então não saía de sua cabeça, queria ser uma “rocker” (roqueiro ou cantora de
rock). Tinha mais duas amigas que estavam com a mesma vontade. Então se
juntaram e formaram a banda. Como freqüentavam as festas, conheciam
muitas pessoas e muitos amigos homens que tocavam em bandas. Pediram a
alguns deles que ensinassem a elas a usar os instrumentos.
“Foi assim que eu aprendi a tocar guitarra... quando eu penso, a gente
fez uma loucura, foi tudo na marra mesmo. Mas a gente não teve medo.
Apesar de ser uma novidade aqui em Fortaleza, já havia na cena alternativa de
outras cidades bandas com meninas como a Penélope de Minas Gerais e a
“Cansei de ser sexy”... Foi um tempo muito legal. Essa galera que toca em
banda daqui, eu conheço quase tudo... A gente passou por muita coisa juntos.
Teve shows que eu nunca me esqueço, como uma vez que sai chorando do
palco, porque, enquanto eu tocava, eu vi um carinha que eu gostava muito na
época beijando outra menina, joguei a guitarra no chão e sai chorando no meio
do show...” (Paula, conversa informal)
Com muito orgulho ela mostrava-me os fanzines que tinha produzido, o
que me despertou atenção (dois dos fanzines estão reproduzidos
99
integralmente, ver anexos). Os fanzines são mídias alternativas surgidas nos
Estados Unidos em 1929. O fanzine inseriu-se como uma alternativa de baixo
custo e livre formatação para grupos que pretendiam divulgar suas idéias. O
termo fanzine veio do ingês: junção das palavras fanatic (fanático, fã) e
magazine (revista). Uma revista feita por fãs de algo. A estética zine, como
também é conhecido, muito se assemelha a estética pop, desenvolvida pelos
pop artistas norte americanos, como Andi Warhol e Roy Liechtenstein a partir
da década de 1950.
A Pop Art surge nos Estados Unidos, nos anos 1950 e tem como
proposta estética a crítica a sacralização da arte. Os pop artistas levaram para
os museus objetos até então considerados alheios ao universo da arte e
pertencentes à cultura do consumo: quadrinhos, latas de sopa, jornais,
celebridades do cinema e da música etc. Os objetos e as pessoas da cultura
cotidiana de uma sociedade de consumo em emergência eram as matérias-
primas desses artistas. Os pop artistas sofreram acusações de estarem
fazendo uma apologia da sociedade de consumo, enquanto, na verdade,
criticavam-na.
Figura 5. Campbell´s soup, 1962, Andy Warhol.
100
Se a arte parte do pressuposto da sacralização daquilo que é belo: o
objeto estético se destaca pela sua rara singularidade: a sociedade de
consumo impõe o princípio da descartabilidade das coisas. Os signos da arte
se pretendem raros, únicos e universais (um quadro de Picasso será sempre
uma obra de arte, mesmo com o passar dos anos). Já os signos do consumo
são efêmeros, produzidos em série e são periodicamente substituídos por
outros mais novos e mais aperfeiçoados em sua funcionalidade. Dessa forma,
quando Warhol insere nos museus um quadro de uma lata de sopa Campbell,
o signo estético entra em tensão com o signo do consumo. Um signo efêmero
não ameaçaria o estatuto da arte? A lata de sopa, retirada do seu contexto de
origem, ganha outro significado que não mais aquele do anúncio publicitário.
Os pop artistas criticaram a noção de original na arte e os modos de produção
do objeto estético:
Mediante la impresión de líneas a tinta china reproduce el
dibujo originário, desvalorizando así el concepto de original,
uma de lãs vacas sagradas en la historia del arte. Por outro
lado, esta técnica desacostumbrada, mejor dicho inusual, no se
diferencia tanto de los procedimentos de reprodución
habituales em el arte (la xilogravura, la caleografia, el
aguafuerte o la litografia) como para atribuirle um valor
revolucionário. El postulado según el cual la exclusividad es
una (y no la única) condición necessária para que um trabajo
se considere uma obra de arte, no afecta al procedimento del
papel secante. Andy Wahrol emprendió uma embestida
subversiva contra la doctrina del original a través de su
esporádica participación real en la elaboración de algumas
hojas que, mediante la colaboración e inscripción, se
consideraban unicamente cuasi-originales (HONNEF, 2000, p.
22-26).
O dispositivo da Pop Arte operava a partir do modelo da cópia e do
simulacro, definido por Deleuze (DELEUZE, 2003). Os objetos na Pop Arte são
copiados e extraídos do seu cenário de sentido, porém, não deixam de ser
reconhecidos: a lata de sopa ou a pepsi-cola dos quadros de Warhol são as
mesmas dos anúncios publicitários.
101
Figura 6 Close before Striking (Pepsi-Cola), 1962 Andy Warhol.
Essa chamada ao reconhecimento do objeto em uma outra esfera
produz um efeito de sentido diverso. Eles não reivindicam uma autenticidade (a
legítima pepsi ou a autêntica sopa Campbell). Os objetos ficam alocados na
forma da arte como falsidades, objetos de consumo que não pedem para
serem consumidos:
O factício e o simulacro não são a mesma coisa. Até mesmo se
opõem. O factício é sempre uma cópia da cópia, que deve ser
levada até o ponto em que muda de natureza e se reverte em
simulacro (momento da Pop´Art) (DELEUZE, 2003, p.271).
A estética pop vai influenciar o movimento da contracultura nos anos
1960, onde os fanzines passam a ser utilizados pelos jovens como estratégia
de comunicação. No caso do Brasil, os fanzines vão aparecer muito ligados
aos contextos juvenis e aos movimentos alternativos. Durante o trabalho de
campo, coletei algumas amostras de zines. Paula produziu três edições do
fanzine Dress que levava o mesmo nome da sua banda.
O modo como o fanzine é feito fica ao livre arbítrio de seu criador. O
processo quase sempre opera por conjunções e disjunções de materiais
coletados, às vezes, em outras mídias que são destacados e colados no
fanzine (pedaços de revistas, textos da Internet, fotos etc.). Destacados desses
102
lugares, eles entram no fanzine com outro intuito de sentido, lembrando o
procedimento da Pop´Art. A influência da estética pop é visível nos dois
primeiros fanzines que compõem os anexos (anexos fanzines): materiais
descartáveis como o rótulo de uma fita cassete é usado no primeiro fanzine. O
Popscene (cena “pop”, traduzindo para o português) divulgava a realização da
festa de mesmo nome que acontecia no Noise 3D em tributo ao rock alternativo
dos anos 1990.
Os textos poderiam aparecer tanto em formas de pequenos artigos ou
resenhas até estilos mais livres. Para produzir um fanzine a baixo custo são
necessários um pouco de material base e criatividade. Paula forneceu-me as
matrizes dos fanzines com as figuras cortadas e coladas, textos escritos a mão.
Essas matrizes do Popscene ainda não são o fanzine totalmente finalizado.
Depois de fotocopiada a matriz é recortada e encadernada com cola. Como
exemplo de um fanzine finalizado, anexei Dress para ilustrar dois momentos da
composição do zine.
“Eu fazia os zines, e a proposta dos zines era justamente dar o espaço
pras bandas daqui. E eu tinha também a proposta de mandar os zienes para
outros estados. Eu mandei pro Rio, mandei pra São Paulo, Brasília, Recife,
enfim. Obtive respostas de algumas pessoas e foi legal, só que justamente não
persistiu. Aí eu fui deixando e aí a idéia se perdeu... Mas na época foi legal
porque, depois quando tu vê, tu vai ver que era um zine que era só, né... Era
amador lógico, mas tinha essa proposta de mostrar banda e tal. E era mais ou
menos isso, mais no sentido de divulgar mesmo” (Paula, 26 anos,).
Quando sua banda acabou, em 2003, Paula deixou de produzir os zines
que hoje ela guarda como uma lembrança. A trajetória da sua banda,
semelhante à de Joana, mostram que essa vivência da cena é atravessada por
muitas inconstantes. Somem-se a isso os projetos de vida desses jovens.
Nenhuma delas acreditava na possibilidade de ver na música o meio de
garantir sua sobrevivência, um trabalho. A música entrava em suas vidas como
uma atividade paralela para a qual dispendiam seus esforços. Um membro de
banda que entrevistei, teve que vender seu computador para juntar grana para
103
gravar um CD. Paula vendia os zines por um real, tentando pelos menos obter
o que tinha gastado na confecção deles.
Pelo fato de, posteriormente, as trajetórias se encaminharem para outros
destinos que não o da música, não significa que a “cena musical” tenha sido
algo secundário. Na verdade, a experiência da cena é vivida intensamente e
talvez possamos inseri-la em outro circuito de temporalidade. Como fala
Fonseca, sobre a força de alguns agentes que se apropriam do espaço urbano:
Produtores desconhecidos, esses sujeitos, tal como artistas da
vida, produzem trilhas que não se enquadram nas estatísticas,
realizando performances individuais e coletivas que os torna
comparáveis aos melhores surfistas que, ao se moverem em
um meio móvel e fluido buscam tirar partido de forças que lhes
são estranhas e realizam suas evoluções como configurações
irrepetíveis, porque efeitos de uma complexa rede associativa
de elementos conjugada às suas habilidades intuitivas e
práticas (FONSECA, 2003, p.255).
3. 2 Cenas, performances e estilos: mapas de si e do mundo
As cenas musicais e as culturas juvenis emergentes, a partir dos anos
1980, trazem a marca dos novos estilos de vida, perdendo um pouco o tom de
protesto contra a sociedade, característico das décadas anteriores. Essa
estetização faz com que alguns autores definam essas cenas como
“espetaculares” (ABRAMO, 1994). Em contraposição a conceitos como classe
ou geração, a palavra “estilo de vida” entra no vocabulário teórico para definir a
composição dessas novas cartografias. A noção de estilo pertence ao campo
da estética. O fato de conceitos como classe social, geração e cultura de
resistência ainda estarem presentes nas problematizações sociológicas sobre a
condição juvenil mostra também quanto essa continuava sendo vista sob o
ponto de vista de sua importância política (ABRAMO, 1994; PAIS, 2003;
FREIRE FILHO e FERNANDES, 2005).
As culturas juvenis emergentes no cenário dos anos 1980 apontam para
outros componentes: as sonoridades dos estilos musicais, a visualidade dos
corpos e os códigos de afeto. A noção de estilo de vida e os componentes
estéticos dessas culturas passam a ser valorizados. As formas do estético são
interpretadas pelas formas do político, pois em um primeiro momentos os
aspectos estéticos das culturas juvenis são interpretados como formas de
104
resistência. A contribuição desses primeiros estudos se concretizou na
relativização do sentido do “político” e mostrar que uma forma de expressão
juvenil é um modo de interpretar o mundo e questioná-lo. Os estudos sobre o
movimento punk foram o carro chefe dessas análises (ABRAMO, 1994;
COHEN, 2004). Contudo, o risco que se correu consistiu em se buscar por trás
do estilo sempre um componente político de protesto. Porém, se estética e
política podem estar imbricadas, elas não se confundem, sendo necessário
resguardar suas diferenças. A relação dessas culturas juvenis com a sociedade
vai ser menos de embate, do que de mistura e metamorfose, evidenciando a
caráter difuso e complexo da sociedade.
Os anos 80 são marcados pela releitura: cria-se a estética do
new wave, do pós-moderno, que vê, a ser uma retomada, um
re-mix, embalado por uma tecnologia eletrônica que não existia
na época, de tudo o que se produziu em termos de arte nesse
século: surrealismo, kitsch, expressionismo, ultra-realismo etc.
Esse processo de simbiose, de fusão de várias influências, não
se caracterizaporém pela integração. A composição das
diversas formas e idéias não se fecha pela síntese, e sim por
justa posição, por collage (COHEN, 2004, p. 147).
Os primeiros temas dessas releituras são o individualismo e o caráter
sentimental. A performance entra como forma de apresentação das
subjetividades. O indie rock como estilo não deixou de seguir essa onda. As
paisagens indies misturam elementos retrô com a modernidade
contemporânea. Os escarpins, mas também os tênis adidas e all stars, o visual
retrô (ver flyers de festas em anexos), os videoclipes em preto e branco etc.
Arthur, estudante, 22 anos, fala que se identifica com o estilo indie não
somente como expressão musical, mas também como visual.
“Eu gosto do visual indie, pois sempre tem alguma coisa de moderno,
mas que ao mesmo tempo também não é... O indie é uma mistura disso tudo: é
um pouco dos [anos] 80, do 90, fazendo uma mistura disso tudo, criando cada
um seu estilo. Sempre tem esse viés: passado e presente. Eu gosto assim,
sabe, pegar uma coisa dos anos 50 e trazer pro meu 2006 e fazer do meu jeito
né, procuro muita coisa em brechó. Aqui em Fortaleza não tem muito canto pra
105
procurar essas coisas, roupas e acessórios, mas pego muito coisa com amigos
que viajam” (Arthur, 22 anos, estudante, entrevista).
A despolitização dos estilos musicais favoreceu sua incorporação pela
“indústria cultural”. Quando os estilos passaram a formar mapas subjetivos, a
indústria cultural apareceu como meio de articulação, ajudando na
multiplicação e difusão das tendências. A cena independente entra nos anos
1990, já segmentada e trabalhada pela grande mídia:
A partir daí, o movimento que existia apenas no circuito
underground já está absorvido pela “indústria cultural”
(indústrias de moda e fonográfica principalmente). Inicia-se a
fase daquilo que se chamou “guerra de estilos”, que vem a ser
a multiplicação de tendências a partir do punk e do new wave
gótico, tecnopop, ska, oi, rockabillity, para dar alguns exemplos
– surgindo com essas novas correntes dezenas de grupos
(COHEN, 2004, p. 148).
Na enciclopédia virtual Wikipedia
30
, contam-se dezoito subgêneros do
indie rock: baroque pop, britpop, disco punk, dunedin sound, garage rock
revival, indietronic, lo-fi, mad chester, math rock, noise pop, nugaze, psych folk
(ou freak folk ou ainda new weird america), pos-punk revival, pos-rock,
sadcore, shoegaze e twee pop. Explicar o que significa cada uma dessas
denominações não é tarefa fácil, nem para aqueles que estão na cena do rock
alternativo há muito tempo. Dentre esses subgêneros, no Noise 3d Club o
britpop dos anos 1990 exerce uma maior influência, sendo constantemente
referenciado nas festas que o clube promove. O britpop engloba o conjunto de
bandas de rock do cenário britânico, por exemplo: Blur, Oasis, Radiohead,
Franz Ferdinand. O punk se faz presente em bandas locais como a Kohbaia. O
eletropunk aparece com a banda Montage, que obteve um grande destaque no
cenário local, sendo assunto de matérias em jornais de Fortaleza e outras
cidades.
“O pólo principal da cena aqui de Fortaleza é o indie rock. Não tem
como. Pode perguntar a todo mundo que vem logo a resposta: “Ah, eu gosto de
indie! Essas bandas dos Estados Unidos e da Inglaterra principalmente. Teve
30
http://www.wikipedia.com
106
um época que Placebo [banda de eletro], meu Deus, era o Máximo! E o indie é
muito vasto dentro dessa questão, não existe só um estilo indie. Mas o
principal, no sentido de ritmo, é o som das guitarras. Tem muita banda indie
atualmente, não adianta nem citar. Tem muita muita banda nessa linha: The
Strokes, Franz Ferdinand, Kaiser Chiefs. O indie é o principal. Todas as bandas
de Fortaleza são indie [risos]: Mary Poppins, Silenzio ... O indie tá em tudo. É
um slogan: tudo é indie! O indie tem várias influências. Na época dos anos 80:
The Smiths, Morissey e o pessoal dos 90... Esse grupo indie do Brasil teve
muita dificuldade de aceitar coisas mais abrasileiradas, sabe. Los Hermanos,
Cachorro Grande eram praticamente cópias das bandas indies estrangeiras.
Aqui em Fortaleza teve aquelas bandas em inglês, que eram boas bandas, mas
cópias. Nada que fosse ritimicamente brasileiro. De uns tempinhos para cá é
que eles vem aceitando essas bandinhas que tem uma estética indie, mas que
cantam em português. Mas acaba sendo a mesma coisa. Você pega uma
banda como a “Cachorro Grande”, parece uma banda da Inglaterra, mas no
geral são as guitarras a la britpop que imperam (Joana, entrevista).
O global e o local se hibridizam na estética indie. Bandas brasilieras
cantam em inglês, misturam idiomas e influências musicais, jogando com os
códigos territoriais da nação e da maternidade da língua. O universo do rock
alternativo não tem mais um solo de origem, há muito ele perdeu a natalidade.
Londres, Seatle, São Paulo e Fortaleza: em todos esses lugares não há a
produção de um, mas vários rocks. Os signos sonoros migram pelas mídias
(cds, televisão, Internet e fanzines), assimilados por jovens que os transformam
através dessas capturas. Capturas de mundo que compõem também capturas
da subjetividade em seu aspecto afetivo. Perguntados por que gostam de rock,
alguns jovens explicitaram as seguintes respostas :
“Porque eu gosto de música e o meu tipo predileto é o rock. Porque eu
gosto de tocar por ter uma leve ambição artística e porque graças ao rock eu
conheço muita gente da minha vida” (Arthur, 22 anos).
“Pra mim, ter uma banda é uma forma de me expressar, tipo;
escrevendo letras e soltando minha energia tocando. Eu nunca tinha tocado na
107
vida, quando toquei senti que eu estava em outro lugar, todos lhe olhando,
esperando você tocar. Apesar de dar muito medo, é legal estar ali passando
sua energia para outras pessoas. Pois é, além das dificuldades que você
encontra é muito bom” (Sergio, 23 anos, integrante de banda).
“Eu acho que é a vontade de afetar os outros como eu fui afetado pelo
rock. É aquela coisa de dizer alguma coisa sem se sentir mal por isso porque
você está se divertindo. Ter uma banda e organizar um show é parecido com
masturbação: é muito sangue e suor por segundos de prazer” (Jorge, 24 anos,
também integrante de banda).
A banda cearense Montage mostra esse jogo com os códigos territoriais
pela cena musical que funciona de maneira transnacional e rizomática
31
. A
música está em constante devir, ela se transforma nos territórios que
atravessa. O rock como linguagem musical mutante se desterritorializa de onde
emerge e se reterritorializa em outro ponto: de Fortaleza à São Paulo, de
Londres à Berlin etc. Nas suas linhas, em cada um de seus pontos de inflexão,
outros sentidos, novos mapas de mundo.
“Elas são "alongada"
Elas são "esticada"
Elas são "flexível"
Ela pula, ela gira, ela da cambalhota
São as ginasta carioca
Vai Daiane, vai Daniele
Vai Daiane, vai Daniele
É no cavalo com alça, é na barra assimétrica
Ela é adversária da Catherine Ivanov,Toma sol no posto 9
Vai Daiane, vai Daniele
É no cavalo com alça, é na barra assimétrica
Vai Daiane, vai Daniele
É no cavalo com alça, é na barra assimétrica
Ela é adversária da Catherine Ivanov,Toma sol no posto 9
Vai Daiane, vai Daniele
É no cavalo com alça, é na barra assimétrica” (Ginastas Cariocas – Montage)
31
“A música nunca deixou de fazer passar suas linhas de fuga, como outras tantas
multiplicidades de transformação”, mesmo remetendo seus próprios códigos, os que a
estruturam ou a arborificam; por isto a forma musical, até em suas rupturas e proliferações, é
comparável à erva daninha, um rizoma” (DELEUZE e GUTTARI, 1997, vol. 1, p. 21).
108
Quando comecei o trabalho de campo e até o momento da entrevista,
em 21 de fevereiro de 2006, a banda Montage era composta por três
integrantes, hoje, o trio se tornou uma dupla. O estilo musical é o eletropunk. A
idéia de Montage veio da cena eletrônica. Montagem significa mistura de sons
e batidas, combinando estilos diferentes: o eletro e o punk, o funk e o rock,
também elementos da cultura popular (uma das músicas da banda Montage é
a versão eletrônica para um ponto de umbanda, intitulada “Raio de Fogo”). O
jogo com os códigos territoriais em “Ginastas Cariocas” aparece na menção às
duas ginastas brasileiras: Daiane dos Santos (gaúcha) e Daniele Hipólito
(paulista). O ritmo dessa música é o ‘funk carioca”, misturado com a música
eletrônica.
Nota etnográfica extraída do diário de campo –
17/12/2005, Agora sim é Montage!
Eis que sobe ao palco Daniel Peixoto (vocalista): cabelo
loiríssimo, saia rodada de véu branco, camisa colada, botas
pretas de um legítimo rocker, herdeiro da estética punk. Daniel
grita: “Agora sim! Agora sim é Montage! Montage é uma banda
de eletropunk, eletropunk e outras coisas... Secaracteriza por
ser uma banda onde o som eletrônico é bastante forte. Ao lado
disso, a inovação em relação a outras bandas é o uso do Live
P.A., mesa de som com Dj que faz parte da performance da
banda... A banda é composta por Daniel Peixoto, Patrick Bachi
e Leco Jucá. A banda “O quarto das cinzas” já havia tocado
antes, mas basta a Montage subir o palco para que o público
que estava do lado de fora do Noise 3D voltasse para interior
do clube. O espaço vai ficando cada vez menor. O prestígio da
Montage parece estar em alta. Esse é o segundo show da
banda que assisto no Noise 3D e sinto um público bem maior
que no primeiro. Daniel faz poses. Há uma grande
interatividade com o público, aquela efervescência coletiva das
massas que assustavam os pensadores do final do século XIX
(Freud, Wundt, Durkheim, Tarde...) Daniel, ao se colocar de
saia e todo maquiado, mescla o feminino travesti com a atitude
109
rocker. Daniel Peixoto é uma montagem, no sentido as drag-
queens dão a esse termo. Um corpo-montagem, um corpo
como apresentação estética de si... Pura superfície a ser
trabalhada: corpo-pop, corpo-louco contemporâneo, onde essa
interioridade exibida na superfície vai perdendo o seu peso e
torna um capital volátil. Talvez o esgotamento das potência do
corpo contemporâneo tenha como linhas de fuga alguns
desses corpos-loucos, levados até às últimas conseqüências:
Benflogin – Montage
Lexotan
Diazepan
Hactapan
Ripnol
Rivotril
Dualite
Desobese in
Diampax
Inibex
Citoteque
Stop the Baby
Dramim
Pra mim
Ketamin
Pra mim
Valiun
Vale um
Valiun
Vale um
Prozac Vale um
Dramin Vale um
Valiun
Vale um
Valiun
Vale um
Benflogin pra mim
Benflogin faz bem faz mal faz bem
faz mal faz mal pra mim
Pra mim
pra mim pra mim
Benflogin
Valiun Vale um
Valiun Vale um
I Love my Pils
Ode to my Pils
I Tok All my Pils
110
O corpo fissurado é cantado em coro pela banda e pela platéia.
Corpos simulacros do nosso contemporâneo: roqueiros,
performers –montagens de estilos que vivem nas capilaridades
das modas e tendências – alternativos, estilistas do cotidiano
que habitam a cidade. Montage – eu preciso de você. Daniel
canta as forças ausentes do nosso contemporâneo.
A trajetória da banda Montage marcou um diferencial entre as bandas
locais. Em menos de um ano, a banda já havia sido convidada para tocar fora
do estado e ganhava destaque na internet, sendo um a das bandas de
Fortaleza que tinham um maior número de acessos em seu site virtual, bem
como a maior quantidade de membros na comunidade do orkut dedicada à
banda. Ao contrário de outras bandas, que chegam a esperar anos por uma
oportunidade de gravar um CD ou tocar no eixo sul-sudeste, a Montage ainda
no seu primeiro ano de existência passa a freqüentar o âmbito do eixo
alternativo de cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Nesta
última cidade, a banda tocou na festa “Orgástica”, importante evento da cena
alternativa gaúcha. Sucedem a tudo isso matérias em jornais como “Folha de
São Paulo” e a revista Bizz. O reconhecimento da banda também foi destaque
na imprensa local:
Da forma que apareceu, há quase um ano, até se credenciar
como revelação, o trio Montage foi rápido. Daniel Peixoto (voz),
Patrick Bacchi (voz e guitarra) e Leco Jucá (Live P.A.) logo
esboçaram uma carreira por todo Brasil. Sucesso de público
nas noites do apertado Noise 3D Club, o trio se apóia em
tendências atuais (Jornal O Povo, 03 de janeiro de 2006).
O fato de a banda ter rompido um pouco com o ritual do tempo de
espera para dar um salto mais alto, faz parte da postura da banda que apostou
em não repetir o que vinha sempre acontecer com bandas de amigos que logo
findavam. Montage apostou na ruptura com os rótulos de que a cena
alternativa deveria ficar fora do circuito comercial e da grande mídia, pois tal
fato faria com que ela perdesse sua essência. A banda surgiu na cena
independente de Fortaleza em Janeiro de 2005, tendo feito seu primeiro show
no Noise 3D. Nessa mesma entrevista do jornal O Povo, o vocalista faz uma
111
declaração que polemiza com o ethos alternativo da música como arte
independente:
A sinceridade do nosso trabalho é que a gente quer foto no
jornal, ganhar dinheiro e comer todo mundo. Uma sinceridade
diferente, a gente fala disso nas nossas músicas (Jornal O
Povo, 03 de janeiro de 2006).
Em 21 de Janeiro de 2006, Montage faz seu show de aniversário de um
ano no Noise 3D. Dessa vez, consegui conversar com seu produtor e registrei
em vídeo esse show. Acompanhei a passagem de som e conversei um pouco
com eles. Daniel pode ser considerado um legítimo performer, tem um carisma
principalmente com o público mais jovem, não sendo possível ficar muito tempo
ao seu lado, pois sempre aparece alguém solicitando sua atenção, as pessoas
queriam ter fotos dele. Em 31 de janeiro de 2006, pouco mais de uma semana
depois do show de aniversário, numa tarde de terça-feira me dirigia a casa de
Daniel para uma entrevista com a banda. O outro membro (Leco) teve um
compromisso e não pode comparecer.
Patrick era estudante de Comunicação na mesma universidade em que
estudo. Leco trabalhava com música. Daniel já tinha sido produtor do programa
da Karine Alexandrino (cantora da cena alternativa de Fortaleza) para uma Tv
local dirigida ao público jovem. Daniel, 22 anos, nascido no Crato, veio para
Fortaleza estudar e logo entrou em contato com o universo musical, tornando-
se uma figurinha conhecida em festas da cena alternativa local. Na casa de
Daniel, estavam Patrick e o produtor da banda, Ricardo.Os três estavam muito
empolgados com o que estava acontecendo, iam viajar em março para São
Paulo. Só que, dessa vez, iam ficar um período mais longo, a idéia era migrar
pro eixo Sul-Sudeste, pois lá a cena alternativa era mais consolidada.
Daniel: Quando uma banda ta começando é muito difícil as pessoas
acreditarem, principalmente as pessoas que importam mesmo. Assim, que
realmente vão mover alguma coisa. E assim, a gente trabalhou toda a mídia da
banda quase cem por cento, se não fosse pela mídia impressa local, pela
internet. A gente circulou muito em sites, muito visitados e diversos segmentos.
A gente teve matéria em sites de moda, em sites de universidade, de música.
No site em que a gente disponibilizava nossas músicas, que disponibiliza as
112
músicas que é o trama, o cyber online sempre tava rolando. E com o tempo a
gente começou a perder assim o controle das coisas. Depois de quatro meses,
eu descobri uma matéria de um site que tinha publicado no interior de Goiânia,
umas coisas assim, que a Internet é um veículo muito rápido. Eu sempre soube
usá-la muito bem ao meu favor. E só fiz agregar coisas da banda a isso. Essa
questão da imagem é tudo muito simples.
Ricardo: desde o primeiro dia. A partir do primeiro show já tinha fotolog,
já tinha comunidade no orkut. Depois do primeiro show.
Daniel: E aí foi sendo divulgado pela internet mesmo. E do trama passou
pro E-mule, e outros sites de baixar música. É, em São Paulo, parece bizarro,
eu andava na rua e passava carro gritando: “Vai Daiane!”. As pessoas falam na
boate, no metrô, pessoas que são da cena. O eletro tem uma coisa muito
bacana que eu pude observar dessas vezes que eu fui. Ele tem um público
muito fiel, fora daqui, porque aqui ainda está se construindo. O que é novidade
eles todos conhecem. E, de certa forma, essas pessoas que usam internet
abraçaram mesmo que a banda. Porque você vê outras bandas, em
comparação, por exemplo, nossa comunidade no orkut tem mais de 1000
pessoas. Tem outras bandas que são mil vezes mais pop do que a gente e que
não tem nem a metade da nossa quantidade de pessoas da nossa
comunidade. O Jumbo Eletro que eu acho, que é a maior banda de eletro mais
famosa do país, que já tá no circuito há um tempo; a comunidade da gente é
pário com a deles, assim. Eles têm o quê? Quatro anos de banda. E a gente ta
só há um ano. É uma coisa também que as pessoas começaram a observar
isso também - tá entendendo? - que tinha alguma coisa ali... aí entra por
curiosidade e acaba gostando. Aí fala pra outra, boca à boca e nessa história
que a coisa acontece. A gente, mês que vem, em março, vaia pro sul do país,
que é uma coisa que são contatos com pessoas que viram fotolog, foram
através do fotolog, ouvir a música, saber se as pessoas conheciam e indicar
para outras. É isso!
Kaciano: Essa história da construção do público de vocês aqui em
Fortaleza. Como vocês se vêem em relação ao que já havia antes na cena
local?
Daniel: A história da internet é muito responsável por isso também,
porque ela dá uma aproximação direta com a gente. Quem visita nosso site
113
sabe que foi um de nós que colocou aquilo ali que tá escrito, escolheu aquela
foto. Então é o que a gente queria passar, e as pessoas podem dizer o que
elas acham a respeito... lá... Ou é da mesma forma com os fãs do orkut. Eu
sempre respondo as pessoas que entram na comunidade. Elas fazem questão
de ir lá no meu perfil e perguntar onde é que está a música. Elas querem ver,
sabe se eu posso responder. E aí o público vira mesmo que fiel.
Patrick: O nosso público do Noise não é mais só o público que freqüenta
o Noise. Tem gente que você vê que com certeza não vai ali. Porque você não
vê. Você vai na quinta, sexta e sábado. Eu acho que... Não sei cara. Além
desse público fiel da internet, tem mais gente que não se agregou a isso”
(Entrevista em 31 de janeiro de 2006).
3.3 Espacialidades virtuais: a comunidade Noise 3D no Orkut.
Antes mesmo de a Internet ter se tornado uma realidade presente no
universo cotidiano de milhões de pessoas, Paul Virilio já pensava uma
transformação das relações das pessoas com o espaço através das
tecnologias audiovisuais (VIRILIO,1993). Por exemplo, a televisão é citada pelo
autor como uma terceira janela
32
. A televisão tele transporta imagens e signos
de mundos distantes em um tempo instantâneo, não é obrigatório se locomover
para conhecer novos mundos. Aos poucos, a Tv foi descobrindo a
interatividade. Mas seria com a difusão da Internet nos anos 1990 que uma
maior potência de interatividade seria posta a serviço das pessoas,
reordenando as coordenadas espaço-temporais dos sujeitos.
Atualmente, com a ubiqüidade ótico-eletrônica e sua incidência
sobre a configuração do território, poderíamos parafrasear essa
afirmação declarando, a propósito das metamorfoses
teletopológicas da cidade: na forma-imagem, a criação está
frente ao homem de uma maneira inteiramente nova e, nesta
interface, ela parece lhe pertencer inteiramente. Não é
necessário dizer, portanto, que o termo “inteiramente aqui é
apenas uma ilusão de ótica, uma ilusão simultaneamente
energética e cinemática, de onde este termo, ótica eletrônica,
32
“A terceira janela, nós a conhecemos há pouco, é a tela da televisão, janela removível e
portátil que se abre sobre um “falso-dia”, o da velocidade da emissão luminosa, abertura
introvertida que não se abre mais para o espaço vizinho, mas para além, para além do
horizonte perceptivo” (VIRILIO, 1993, p. 62).
114
ótica que não resulta mais tanto das propriedades de
transmissão eletrônica instantânea, desta transparência das
distâncias que renova não somente as aparências físicas dos
materiais, mas também a configuração morfológica do
ambiente humano (VIRILIO, 1993, p.61-62).
O uso da Internet pelos jovens das classes médias urbanas tem
transformado as relações que se estabelecem entre eles. Não podemos nos
esquecer que a Internet não é um direito, mas um bem, do qual muitos estão
privados, o que levou a se falar de uma exclusão digital e a criação do grupo
dos desconectados. Cada vez é possível interagir sem sair de casa. Nas salas
de chat, pessoas buscam fazer novas amizades, novos amores, modos de
escapar da solidão cotidiana e da atmosfera da fria metrópole
contemporânea
33
. Os espaços virtuais têm uma temporalidade e existências
próprias. Neles os indivíduos podem forjar n identidades. A Internet funciona
em rede, não tem um ponto de origem, ela está em todos os lugares. A relação
com o real não opera por semelhança, mas por desvio, hibridização.
Em 2004, surge uma nova ferramenta de interatividade na Internet
criada pelo matemático turco Orkut Buyukkoketen. A ferramenta ganha seu
nome: Orkut. O Orkut é um página virtual de relacionamentos onde as pessoas
interagem através de perfis. Os perfis constituem individualidades virtuais
identificadas por uma série de dados: nome, gênero, idade, país de origem,
gostos musicais, opção sexual, gostos culinários, ocupação profissional. O
usuário não é obrigado a fornecer todos esses dados, e tem livre arbítrio para
criar um perfil de acordo com a sua vontade. Perfis inventados são uma
constante no Orkut. Na verdade, um nome, uma senha de acesso e um e-mail
são as condições para se cadastrar no Orkut
34
.
No Orkut, as ferramentas de busca pelo nome dos perfis permitem
pessoas buscarem outras, o que tornou a ferramenta bastante popular,
principalmente entre os brasileiros. Além disso, os perfis podem se associar a
comunidades. As comunidades são criadas pelos próprios usuários do Orkut.
Os temas das comunidades são livres. Nos tópicos são postadas as datas das
33
Em Nos rastos da solidão, Machado Pais investiga os afectos virtuais, os laços afetivos que
se estabelecem entre pessoas que se conhecem apenas na realidade virtual, evidenciando as
formas contemporâneas do habitar e da solidão (PAIS, 2006).
34
Recomendo ao leitor para uma melhor visualização do Orkut uma visita a sua página:
http://www.orkut.com.
115
festas e fóruns de discussão que acompanhei durantes dois anos. Enquanto o
espaço físico do Noise 3D clube é um espaço de lazer, onde os amigos se
encontram para dançar, beber, se divertir, o espaço virtual da comunidade, no
Orkut, aparece muito mais como um fórum de discussão e debate sobre temas
ligados a cena alternativa e discussões sobre alguns acontecimentos. Existe
ainda uma identificação afetiva com o espaço do clube em comunidades
anexas como “Eu queria morar no Noise 3D”, mostrando que o lugar de
diversão tem um valor afetivo, significado pela casa, lugar de segurança e
abrigo. Antes do fechamento do clube, em 30 de junho de 2007, houve uma
movimentação intensa em tópicos que lamentavam o fechamento de mais um a
casa alternativa em Fortaleza:
“se o noise fechar, vai ser uma tristeza muito grande para todos
que gostam de frequentar o clubinho. as pessoas vão passar a
dar valor, mas vai ser tarde. e pelo que agente ver, sempre
acontece isso e o pessoal não aprende. enfim, só sei que a
cidade vai ficar mais chata e insuportavel.ah,que merda, nem
acredito, não fecha noise! mesmo se abrir algo parecido
depois, não vai ser o noise inferninho =~” (Joaquim)
“esse negoço de "fortaleza província", a cidade isso-e-aquilo, é
um modo de nós mesmo ficarmos jogando a culpa nos "outros"
que não temos nem a noção de quem sejam. Acho que esse
tipo de desculpa não vai pra frente, porque somos nós que
freqüentamos.
e em relação ao fechamento do noise, não imagino como vai
ser depois do seu fechamento oficial. cara não consigo
imaginar mesmo. porque sair, é sinônimo de noise3d. e agora,
o que vai ser? o noise é o único, é de extrema importância que
ele continue aberto e tal.
lembro das primeiras vezes que eu fui, que eu pensava
"caralho, eu tô no noise3d, tão famoso noise3d!" e ficava
observando cada detalhe da clubinho under, maravilhado.
tem que haver soluções.tem.
não,o noise não vai fechar. não pode fechar” (Pedro).
“Realmente esse era um fim anunciado. Eu nunca fui fan de
badalações, mas o Noise já me deu vários e bons motivos pra
sair de casa num sábado "e às vezes domingo", mesmo que
cansado e tendo que ir trabalhar na manhã seguinte. Foi no
Noise que ví ótimas bandas nascerem e crescerem dentro da
cena local. Posso falar de 69% Love, Montage, Red Run,
Plastique Noir, Silenzio e outras bandas que já tem a cara do
Noise. Posso falar ainda de "n" bandas que já passaram por lá.
Posso falar de "n" festas muito criativas que já aconteceram na
casa.
116
E agora? Claro que é apenas a minha opinião, mas acho que
várias bandas vão ficar "sem teto" com o fim da única casa que
apóia(va) a música independente dessa cidade” (Nyelsen).
Em 30 de junho de 2007, o Noise fecha as suas portas, mais um clube
da cena alternativa se fechou. Sem querer entrar no mérito da discussão
nativa, o que me interessa aqui é perceber que tipo de comunidades são essas
criadas pelas cenas musicais. A ferramenta da Internet nos permite pensar que
o sentido dessa comunidade parte de uma comunhão de gostos e identificação.
Onde ficaria então o lugar do outro? Daqueles que não se identificam com esse
ideal? Sennett em O declínio do homem público nos chama atenção sobre o
sentido que a palavra de comunidade vai ganhar nas sociedades
contemporâneas (SENNETT, 1998). Nessas sociedades, a comunidade perde
o seu caráter democrático de aceitação das diferenças. A civilidade pressupõe
a convivência entre pessoas diferentes que respeitam mutuamente cada uma
as idiossincrasias das outras. Sennett caracteriza o contrário disso como uma
tirania da intimidade, que definiria não a comunidade, mas um comunalismo
fraticida de pessoas que excluem a dimensão da diferença no âmbito da
civilidade e passam a constituírem territórios fechados para sua sobrevivência
social.
A comunidade se tornou ao mesmo tempo um retraimento
emocional com relação à sociedade e uma barricada territorial
no interior da cidade. A guerra entre psique e a sociedade
adquiriu assim um foco verdadeiramente geográfico, que veio a
substituir o antigo foco do equilíbrio comportamental entre o
público e o privado. Esta nova geografia é a do comunal versus
o urbano; o território dos cálidos sentimentos e o território da
indiferença impessoal (SENNETT, 1998, p.366).
Na busca das transformações que reordenaram as relações entre o
público e o privado, Sennett diagnostica a confusão dessas duas esferas em
nossa sociedade. Primeiro, a força do imaginário psicológico, seja através de
seu vocabulário ou da preocupação exacerbada com o que “realmente” está
sentindo cada agente em uma determinada situação de interação no cenário
público. O sentido de “autenticidade” surge como critério de avaliação do
envolvimento das pessoas, pois por trás desse trato social em público existe
117
uma região íntima a ser descoberta, conhecida para que aquela relação por
mais superficial que seja consiga ser considerada como “verdadeira”.
No campo político, o esvaziamento objetivo do debate público e a cultura
da personalidade política, tendo como conseqüência um carisma incivilizado.
As discussões sobre os projetos, vistos como ferramentas visando a um bem
comum, sacrificando os interesses pessoais em função de um interesse
coletivo impessoal perdem espaço para uma personalização da política. Senett
dá o exemplo do presidente que se torna interessante para o público não pelos
seus projetos de governo, mas pelo valor de sua personalidade, seu caráter: se
é um bom pai ou toma café com a família. A esfera da intimidade esvazia o
campo político quando se torna a fonte de sua credibilidade: “Os membros de
uma sociedade íntima tornam-se artistas desprovidos de arte”. (SENNETT,
1998, p.46)
Ao lermos a citação anterior, temos a idéia de que existe uma arte da
vida pública que seria desconstruída pela tirania da intimidade. E qual seria
essa arte do estar em público? Sennett nos traz a imagem do teatro mundo,
onde os termos papel, expressão e representação devem ser explicitados para
uma melhor compreensão dessa “arte da vida pública”. Essa visão do mundo
social como teatro já fazia parte de uma tradição do pensamento:
É a tradição do theatrum mundi. A vida como um espetáculo de
fantoches encenado pelos deuses, esta era a visão de Platão
nas Leis; a sociedade como um teatro era o lema do Satyricon
de Petrônio. Nos tempos cristãos, era freqüente pensar-se que
o teatro do mundo tinha uma platéia composta por único
espectador, Deus, que assistia angustiado dos céus ao
pavonear-se ao mascarar-se de seus filhos aqui na terra. Por
volta do século XVIII, quando se falava do mundo como teatro,
começou-se a imaginar um novo público para sua postura:
espectadores uns dos outros, e a angústia divina dando lugar a
um auditório que se deseja usufruir, embora um tanto
cinicamente, a representação e as falsas aparências da vida
diária”. (SENNETT,1998, p.53).
Em quais condições a vida social se apresenta como um theatrum
mundi, fazendo a ligação entre o palco e a rua? É no contexto das grandes
cidades do século XVIII que temos a emergência dessa ligação. São as
condições históricas (o aumento demográfico, os fluxos migratórios, a divisão
do trabalho e o surgimento de novas ocupações sociais) que introduzem essa
118
necessidade da sobrevivência no domínio público. O teatro mundo é uma
resposta a essas novas condições da sociabilidade. A necessidade de usar
máscaras de uma forma equilibrada de acordo com cada situação da vida
social impõe ao agente social o trabalho de um ator.
Teatro e cidade colocam as mesmas exigências. Tanto num como
noutro temos o defrontamento com uma platéia de estranhos. O problema do
ator assim como o do cosmopolita, reside em conseguir a crença dos outros.
No teatro, a resposta é o enredo, o roteiro que guia a interpretação dos atores,
bem como o conjunto das regras que garantem a plausibilidade da encenação.
Na grande cidade, é a constituição de uma geografia pública. Na vida
metropolitana, as diversas situações (encontro em um café, praça, repartição
públic) impõem a composição de uma etiqueta que dê conta desses encontros
imediatos, mas cotidianos e regulares. Os agentes sociais precisam sobreviver
de uma maneira satisfatória. O cosmopolita e o ator têm papéis a
desempenhar.
O que as comunidades de gostos impõem é justamente uma pobreza
nesse trabalho de elaboração dos códigos de civilidade, gerando uma cultura
de intolerância ao outro. Em março de 2005, um episódio marcou as diferenças
entre freqüentadores do Noise 3D e de outra casa noturna que ficava a um
quarteirão : a expulsão de um casal gay que se beijou dentro da boate órbita.
Imediatamente, surgiram tópicos de protesto contra o preconceito na
comunidade do Noise 3D. Porém, o que acabamos vendo nesse protesto uma
troca de preconceitos por ambos os lados entre as turmas e os seus estilos. Na
comunidade do Orkut do Órbita:
“Vao se beijar na Puta que o Pariu
Como ja foi dito tem lugar apropriado para isso.
Se eu acender um charuto daqueles bem fedidos na Orbita, o
segurança vai mandar eu apagar pq estou incodando os
outros.
Nao é discriminação é RESPEITO E EDUCAÇÃO.
E vou avisando se eu ver dois caras se beijando la quebro uma
garrafa na cabeça dos viadinhos. Mas vou jogar a garrafa de
longe pq vai sangrar e nao quero ver sangue aidetico perto de
mim” (Zé Foda)
Na comunidade do Noise, em resposta ao tópico da comunidade do bar
Órbita forma postados mais de 43 depoimentos em contra a atitude do
119
freqüentador do Órbita. O que gostaria de ressaltar aqui é o fato de a
argumentação acabar caindo em preconceito mútuo:
“nunca gostei do orbita....nunca msmo.
fui 2 vezes e so...e fui meio q obrigado..foi suficiente
nao frequento akele lugar..
e nem eh pelo risco de levar garrafada..
as pessoas sao ridiculas...
eu poderia descrever melhor...mas eles nao merecem meu
tempo e eu preciso me aprontar..dançarei bem mto placebo hj
no noise...
ate la!” (Daniel).
“gente preconceituosa e intolerante...
tem em todo lugar do mundo, independente do tipo de
discriminação. Numa cidade como Fortaleza, repleta de "cabra-
macho" e "gato-véi" no modo de pensar e de agir, a coisa não
seria diferente. A Órbita é apenas mais um ponto de encontro
deles, entre tantos outros. Devo ter ido lá umas 4 ou 5 vezes
nesses mais de 5 anos de atividades da casa e sempre sai
frustrado com a sensação de "O que é que eu tô fazendo
aqui?". A frequência do Noise é totalmente diferente. São os
orfãos do Ritz, alguns remanescentes do finado Domínio
Público, do Universal e uma galera nova de cabeça aberta que
tá começando a sair na noite. O Noise nasceu no momento
certo. O negócio é aproveitar” (Evandro).
“como ja disse em outra comunidade, falo aqui tb, é triste
quando acontece algo desse tipo no ambiente onde trabalho.
Intolerancia existe em toda parte dessa cidade, a orbita nao é
excessão. Alem disso, ja aconteceu senao me engano uma
revolta GLS por la, a anos atras, quando um casal de lesbicas
foram repremidas. No dia seguinte, foram varios casais de
homosexuais mostrar sua idgnidade pela atitude da casa
noturna.
Bom, mesmo nós q ficarmos revoltados por que certos
individuos escreveram aquelas baboseiras na comunidade do
orbita, tb nao podemos ser ignorantes de generalisar todos q
andam pela orbita. Tem pessoas bacanas q andam por la tb.
Como Esdras falou, toco por la(logico, muita coisa q nao
gosto, mas é $$$ trabalho) e faço o q eu posso nas sextas e
sabados. Mesmo assim ainda sou meio mal visto. Problema de
um dj underground querendo ganhar a vida numa cidade
provinciana q nao sabe a diferença de um house para um
techno, deixa quexa pra la.
Tem muita gente legal q vai antes para orbita escutar a drive in
nos sabados e depois vao para o noise. Normal. Nao podemos
ser tao preconceituosos tb, pq gente, "gato veio", "machuu réi",
Bombados, playbas, patyys, ou qualuer facçao "acefalada"
dessas, vcs encontrarao em todo canto dessa cidade, no
trabalho, na facul, cinema, aonde for...Sei la, tb nao podemos
no enfiar numa rendoma de vidro inabalavel.
Tomara claro, q o noise tb nao se torne mais um "hype" como o
amiccis, pq ja estao havendo algumas açoes nao muito
120
interessantes, como furtos, tentativa de brigas como vi aqui em
outros topicos.
(Rodrigo).
As comunidades de gostos musicais impõem princípios de identificação
que muito se diferencia do que foi apontado por Sennett sobre aquilo que
constituiria uma vida pública vigorosa. A alteridade daquele que não conheço,
que não consigo decifrar me caus (SENNETT, 1998)a receio. Os territórios da
vivência na sociedade contemporânea são territórios da segurança. O espaço
público é substituído pelos territórios guardados por fronteiras visíveis da
segurança e dos muros, como também as simbólicas dos signos de distinção.
Comunidades afetivas passam a ser mais comuns entre jovens. O “indie”
não é somente um som, mas um estilo de vida e codificação da subjetividade.
Um dos fenômenos que vem acontecendo atualmente nas culturas juvenis
musicais é a rivalidade entre “tribos” de estilos diferentes e o caráter cada vez
mais de fraternidade afetiva no circuito dessas tribos. Entre os entrevistados
“ser indie” era algo contraditório, já que entrava em rivalidade com outros
grupos, como os Emos
35
. Apesar de Fortaleza não ter um circuito de bandas
ligadas à estética EMO, dizer que alguém é EMO, que se veste como EMO, é
motivo de chacota e exclusão entre os amigos. Ao mesmo tempo há também
uma segregação dos “indies” pelos metaleiros, que se referem aos “indie” como
“coisa de bichinha, aquele cabelinho liso, fazendo aquela pastinha e aquelas
roupinhas” (Ralf, 23 anos).
Bauman corrobora com Sennett na visão de uma fragilidade nas formas
de coesão das sociabilidades contemporâneas e define um tipo de comunidade
que ele chama de cloakroom comunity. Cloakroom são os lugares onde os se
deixam os casacos, geralmente em museus, boates ou teatros, para serem
retirados à saída (BAUMAN, 2001). Em português poderíamos dizer uma
“comunidade de cabide”, mas ainda não seria esse o sentido exato da palavra.
A maioria das comunidades explosivas contemporâneas são
feitas sob medida para os tempos líquidos modernos mesmo
35
EMO vem do inglês emocore, uma vertente do hardcore, tipo de rock com letras melódicas
que falam de sentimentos, emo é dimunitivo de emotive. Os emos procuram através do
exagero sentimental, expressar o que sentem nas roupas, maquiagens e atitudes.
121
que sua dimensão possa ser projetada territorialmente; elas
são extraterritoriais (e tendem a obter sucesso mais
espetacular mais livres quanto forem das limitações territoriais)
– precisamente como as identidades que invocam e mantêm
precariamente vivas no breve intervalo entra a “explosão” e
“extinção”. Extraem poder não de sua possível duração mas,
paradoxalmente, de sua precariedade e de seu futuro incerto,
da vigilância e investimento emocional que sua frágil existência
demanda a gritos (BAUMAN, 2001, p. 227-228).
“Explosão” e “extinção” se tornam algo regular no funcionamento dos
territórios contemporâneos. A cena alternativa de Fortaleza há muito tempo já
conhece esse fenômeno. A fragilidade de sua manutenção e os discursos que
emergem de freqüentadores e pela mídia não sou o outro dessa regularidade.
Eles não estão na contra corrente desse fenômeno, pois esse “lamentar” faz
com que novos espaços surjam e também se fechem em um curto período de
tempo. O entorno do Centro Dragão do Mar não se insere num regime de
“anormalidade urbana”. A cidade contemporânea produziu novas formas de
habitar. Se elas são boas ou ruins, esse não é o mérito da questão, pois
cairíamos, dessa for,ma num discurso moral sobre a cidade. Entre essas
nessas formas de habitar, onde a limitação territorial não é mais suficiente para
ter uma projeção dos laços sociais entre os indivíduos, agrupamos as cenas
musicais. E, justamente, os jovens são aqueles que mais estão em contato
com essas formas, produzindo relações com espaço e o tempo que reclama
princípios de definição inexistentes até então. As cenas musicais articulam-se
em rede. O Noise 3D fechou suas portas, mas a sua comunidade virtual ainda
existe na internet e continua “viva”. A cada dia, há mais depoimentos que
lamentam seu fechamento físico. A existência virtual é como um fantasma.
122
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Figura 7 Fechamento do Noise 3D
A potência das minorias não se mede por sua capacidade de
entrar e de se impor no sistema majoritário, nem mesmo de
reverter o critério necessariamente tautológico da maioria, mas
de fazer valer uma força dos conjuntos numeráveis, por
pequenos que eles sejam, contra a força dos conjuntos
numeráveis, mesmo que infinitos, mesmo que revertidos ou
mudados, mesmo que implicando novos axiomas ou mais que
isso, uma nova axiomática. A questão não é de modo algum a
anarquia ou a organização, nem mesmo o centralismo e a
descentralização, mas a de um cálculo ou concepção dos
problemas que concernem à axiomática dos conjuntos
numeráveis (DELEUZE e GUATTARI, 1997, vol. 5, p.175).
Dispersos, mas conectados os agentes da cena continuam suas
perambulações pela cidade. Outros espaços para as festas e para suas
123
empreitadas. O Projeto Noise 3D ainda está em funcionamento. Agora sem o
local fixo, o Projeto vai ter apenas realizações esporádicas, como um
acontecimento. Certamente, será a ocasião de reencontrar os “noisers” (ex-
freqüentadores do Noise 3D Club). Também me despeço deles, mas com uma
série de hábitos incorporados, de ouvir músicas e ir às festas de rock
alternativo, como as que acontecem de vez em quando no Motel 90.
36
Um devir-outro do pesquisador. Talvez seja esse o maior aprendizado
de uma pesquisa. Quando a experiência se materializa; a escrita, os blocos de
vida vão ganhando sentido e você se percebe o que se passou. Os tempos do
campo, da aula e da escrita não se articulam de uma maneira harmônica. Eles
são antes turbulências visuais e sonoras na memória intensiva e afetiva de
quem os vivenciou.
A experiência ocidental do tempo está cindida em eternidade e
tempo linear contínuo. O ponto de divisão, através do qual
estes se comunicam, é o instante como ponto inextenso e
inapreensível. A esta concepção, que condena ao fracasso
toda tentativa de dominar o tempo, deve-se opor aquela outra
segundo a qual o lugar próprio do prazer, como dimensão
original do homem, não é nem o tempo pontual contínuo nem a
eternidade, mas a história (AGAMBEN, 2005, p. 127).
As culturas juvenis conhecem bem essa experiência intensiva do tempo
do prazer. Essa vivência de um agora: é preciso viver tudo agora porque isso
tudo vai passar. Mas o que passa, transforma as paisagens subjetivas. Os fios
da vida são tecidos, os encontros e desencontros, amizades, amores e outras
experiências. Paula sempre me dizia: “meu tempo de Noise passou”. Quando a
encontrava e falava de algum show e perguntava por que ela não tinha ido,
pois era o tipo de música que ela gostava, ela vinha com essa fórmula. A
palavra inglesa noise significa barulho. E o que produz um barulho? Um
embate de corpos ou de forças em um momento. De repente um barulho,
forças se encontram e se dispersam, volta o silêncio, já passou.
Um barulho acontece em um lugar da cidade. Por mais de dois anos o
barulho tinha endereço na Rua Senador Almino de quinta e domingo. Com o
fechamento do Noise, aquela paisagem voltou ao silêncio urbano. E onde estão
aqueles garotos?
36
Prostíbulo localizado no centro da cidade de Fortaleza, onde, às vezes, acontecem shows de
bandas de rock, encabeçados pela banda Kohbaia.
124
“And all of you are looking for some solution
No one can stop us now
We are on revolution
And what you're doing now, we've just done”
37
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