Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE DE MARÍLIA
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E TURISMO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
TÂNIA REGINA MONTANHA TOLEDO SCOPARO
O CRIME DO PADRE AMARO: DO ROMANCE AO FILME
MARÍLIA
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
TÂNIA REGINA MONTANHA TOLEDO SCOPARO
O CRIME DO PADRE AMARO: DO ROMANCE AO FILME
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Comunicação, Área de
Concentração em Mídia e Cultura, Linha de
Pesquisa: Ficção na Mídia, da Faculdade de
Comunicação, Educação e Turismo da Universidade
de Marília, como requisito à obtenção do título de
Mestre em Comunicação.
Orientadora: Profª. Dra. Ana Maria Gottardi
MARÍLIA
2008
ads:
UNIVERSIDADE DE MARÍLIA – UNIMAR
REITOR DR. MÁRCIO MESQUITA SERVA
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PRÓ-REITORA PROFª. SUELY FADUL VILLIBOR FLORY
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E TURISMO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO,
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: MÍDIA E CULTURA
COORDENADORA: ROSÂNGELA MARÇOLLA
ORIENTADORA: ANA MARIA GOTTARDI
UNIVERSIDADE DE MARÍLIA
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E TURISMO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
NOTAS DA BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO
Tânia Regina Montanha Toledo SCOPARO
O CRIME DO PADRE AMARO: DO ROMANCE AO FILME
APROVADA PELA COMISSÃO EXAMINADORA:
NOTA 10
Data da Defesa: 26 de maio de 2008
Banca Examinadora
Profa Dra Ana Maria Gottardi (ORIENTADORA)
Avaliação: 10
Prof. Dr. Romildo Antônio Sant’Anna
Avaliação: 10
Profa. Dra.
Rosane Gazolla Alves Feitosa
Avaliação: 10
Dedico este trabalho ao meu marido, JoRoberto,
por toda paciência, motivação e, sobretudo, por ter
me ensinado o valor do estudo. Às minhas duas
filhas, Camila e Carina, pelo amor e carinho
incondicional.
AGRADECIMENTOS
Agradeço em especial à Dra. Ana Maria Gottardi, pela orientação, carinho, apoio e
confiança depositada.
À professora Nícia Ribas D’Ávila, por nos brindar com aulas maravilhosas.
À professora Elêusis Miriam Camocardi, pelas aulas cheias de lágrimas, emoções e,
sobretudo, por me encaminhar aos estudos da Pós.
À professora Lúcia Marques Miranda, pela competência e dedicação.
Ao professor Romildo Antônio Sant’Anna, pelos preciosos comentários.
De modo particular, aos meus pais, irmãos, cunhados e sobrinhos que sempre
torceram por mim.
À minha querida Tânia Tinonin, pela amizade e companheirismo.
Aos meus novos colegas do Núcleo Regional de Ensino de Jacarezinho, pelo
carinho e compreensão.
A todos que de alguma forma me ajudaram na realização deste trabalho.
SCOPARO, T.R.M.T. O CRIME DO PADRE AMARO: DO ROMANCE AO FILME.
Marília, 2008, 174 p. Dissertação (Mestrado em Comunicação, Área de
Concentração em Mídia e Cultura: Ficção na Mídia). Faculdade de Comunicação,
Educação e Turismo, da Universidade de Marília, 2008.
RESUMO:
Este trabalho realiza um estudo semiótico entre linguagens midiáticas: faz uma
análise comparativa entre o romance O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós,
e sua adaptação para o cinema, o filme homônimo do diretor Carlos Carrera,
analisando o processo de transcodificação da linguagem da narrativa literária para a
linguagem cinematográfica. Levanta questões como a relação entre literatura e
cinema; a adaptação do texto literário pelo roteiro cinematográfico; os aspectos
técnicos da linguagem cinematográfica (enquadramento, movimentos da câmera,
focalização, diálogos, trilha sonora, etc.), procurando evidenciar o modo como a
linguagem literária e seus recursos narrativos foram transpostos para o cinema. A
análise revela que a adaptação cinematográfica transporta a trama para espaço e
época diversas, trazendo necessárias mudanças de conflitos e temas, mas que no
essencial mantém-se fiel ao texto queirosiano, demonstrando que os gêneros não se
repelem, mas se aproximam, ampliando as possibilidades de leituras significativas.
O estudo termina com a análise de cenas significativas do filme pela perspectiva da
semiótica greimasiana.
PALAVRAS CHAVES: Cinema. Literatura. Adaptação. Roteiro. Semiótica.
SCOPARO, T.R.M.T. O CRIME DO PADRE AMARO: DO ROMANCE AO FILME.
Marília, 2008, 174 p. Dissertação (Mestrado em Comunicação, Área de
Concentração em Mídia e Cultura: Ficção na Mídia). Faculdade de Comunicação,
Educação e Turismo, da Universidade de Marília, 2008.
ABSTRACT:
This work achieves an inter-semiotic study among mediatic languages: it makes a
comparative analysis between the novel O crime do padre Amaro, by Eça de Queirós
and its adaptation for the movies, the homonymous film by Carlos Carrera, exploiting
the process of transcodification of the language of the literary narrative to the
cinematographic language. It raises issues concerned to the relation between
literature and movies; the adaptation of the literary text through cinematographic
script; the technical aspects of the cinematographic language (close-up, camera
moves, focusing, dialogues, sound track, etc.), trying to evidence the way the literary
language and its narrative resources were crossed over to the movies. The analysis
reveals that the cinematographic adaptation crosses over the plot to the different
space and time, bringing necessary changes of conflicts and themes, but into the
essential it keeps itself exact to the queirosiano text, showing that the genders do not
repel one another, but they come near to, enlarging the possibilities of meaningful
readings. The study ends on the analysis of meaningful scenes of the film through
the perspective of the greimasiana semiotics.
Key words: Movies. Literature. Adaptation. Script. Semiotics.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................................13
CAPÍTULO I......................................................................................................................18
1. AMOSTRA DA TRAJETÓRIA DO FILME..............................................................18
1.1. Ficha técnica do filme...................................................................................................18
1.2. Ficção, literatura e cinema............................................................................................20
1.3. Da adaptação literária para a recriação fílmica.............................................................22
1.4. Produção....................................................................................................................... 27
CAPÍTULO II.....................................................................................................................33
2. ANÁLISE DA LINGUAGEM FÍLMICA....................................................................33
2.1. Aspectos técnicos da imagem cinematográfica ............................................................33
2.2. Da imagem à significação ............................................................................................37
CAPÍTULO III ..................................................................................................................89
3.ROMANCE E FILME: PERSPECTIVAS PARA UMA LEITURA COMPARATIVA. ....90
3.1. Narrador........................................................................................................................91
3.2. Personagens ................................................................................................................100
3.3. Conflito.......................................................................................................................107
3.4. Leitura do roteiro do filme..........................................................................................114
CAPÍTULO IV.................................................................................................................143
4. ABORDAGEM EM SEMIÓTICA SINCRÉTICA VERBO-CINEMATOGRÁFICA
.....143
4.1. Estruturas Discursivas ................................................................................................147
4.1.1. Sintaxe discursiva....................................................................................................147
4.1.2. Semântica discursiva ...............................................................................................149
4.2. Estruturas sêmio-narrativas de superfície...................................................................151
4.2.1. Estados de conjunção ou de disjunção ....................................................................151
4.2.2. Programas narrativos (PN) organizados em percursos............................................155
4.3. Estruturas sêmio-narrativas profundas .......................................................................157
4.4. Semiótica cinematográfica .........................................................................................159
4.4.1. Análise semiótica de uma cena do filme: O Crime do Padre Amaro......................160
CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................167
REFERÊNCIAS................................................................................................................171
LISTAS DE FIGURAS
CAPÍTULO I
Figura 1 -
Capa do DVD do filme.......................................................................................................18
CAPÍTULO II
Figura 01 – Primeira cena do filme.....................................................................................................37
Figura 02 – Padre Amaro na igreja.....................................................................................................41
Figura 03 – Imagem religiosa..............................................................................................................41
Figura 04 – Imagem religiosa..............................................................................................................41
Figura 05 – Padre Benito ao telefone..................................................................................................42
Figura 06 - Sanjuanera saindo do quarto...........................................................................................43
Figura 07 – Primeira missa do padre Amaro.......................................................................................43
Figura 08 – Consagração da hóstia....................................................................................................43
Figura 09 – Dionísia rouba dinheiro da cesta......................................................................................44
Figura 10 – Dionísia esconde o dinheiro.............................................................................................44
Figura 11 – Flerte entre Amélia e padre Amaro..................................................................................45
Figura 12 – Dionísia percebe o flerte..................................................................................................45
Figura 13 – Dionísia cospe a hóstia....................................................................................................45
Figura 14 – Dionísia e o jornalista Rubén...........................................................................................45
Figura 15 – Seqüência que mostra o interior da casa de Dionísia e o seu gato comendo uma
hóstia consagrada...........................................................................................................46
Figura 16 – Sanjuanera no restaurante..............................................................................................47
Figura 17 – Padre Benito....................................................................................................................47
Figura 18 – Amaro flertando com Amélia...........................................................................................47
Figura 19 – Amélia retribui o flerte......................................................................................................47
Figura 20 – Plano-contra-plano de Amaro..........................................................................................47
Figura 21 – Amélia servindo os padres...............................................................................................47
Figura 22 – Amélia no confessionário.................................................................................................48
Figura 23 – Amélia expõe seus pecados............................................................................................48
Figura 24 - Padre Mauro, Natálio e Amaro......................................................................................... 49
Figura 25 – Entrada repentina de padre Benito..................................................................................49
Figura 26 – Plano-contra-plano de Natálio..........................................................................................49
Figura 27 – Plano-contra-plano de Benito...........................................................................................49
Figura 28 – Seqüência do caminho para a propriedade do traficante Chato Aguilar..........................51
Figura 29 – Seqüência que mostra a Fazenda do traficante Chato Aguilar e a intimidade entre
ele e o padre Benito.........................................................................................................53
Figura 30 – Guerrilheiro e fotógrafo no banheiro................................................................................54
Figura 31 – Assassinato do fotógrafo.................................................................................................54
Figura 32 – Fotógrafo caindo..............................................................................................................54
Figura 33 – Travelling da cena............................................................................................................54
Figura 34 – Travelling da cena............................................................................................................54
Figura 35 – Travelling da cena............................................................................................................54
Figura 36 – Seqüência que mostra o escritório do jornal onde trabalha o jornalista..........................55
Figura 37 – Jornalista Rubén digitando a carta denúncia...................................................................56
Figura 38 – A carta denúncia..............................................................................................................57
Figura 39 – Reunião dos padres para discussão da matéria jornalística...........................................58
Figura 40 – Amélia na igreja...............................................................................................................59
Figura 41 – Imagem como testemunha..............................................................................................59
Figura 42 – Imagem como testemunha..............................................................................................59
Figura 43 – Detalhe para o rosto de Amélia.......................................................................................59
Figura 44 – Detalhe para a mão de Amaro.........................................................................................59
Figura 45 – Somente o par se destaca...............................................................................................59
Figura 46 – O primeiro beijo do casal..................................................................................................60
Figura 47 – Imagem como testemunha...............................................................................................60
Figura 48 – Seqüência do flagrante....................................................................................................61
Figura 49 – O casal novamente no confessionário............................................................................62
Figura 50 – Padre Amaro entrando na casa do sacristão...................................................................63
Figura 51 – Padre Amaro e o sacristão dentro da casa......................................................................63
Figura 52 – Amaro entrando no quarto...............................................................................................63
Figura 53 – Amaro senta na cama......................................................................................................63
Figura 54 – Amaro e o sacristão conversam.......................................................................................63
Figura 55 – Seqüência que mostra o primeiro encontro carnal do casal............................................66
Figura 56 –
Seqüência que mostra Amélia com o manto de Nossa Senhora.....................................67
Figura 57 – Seqüência da revelação da gravidez..............................................................................70
Figura 58 – Seqüência da confissão dupla.........................................................................................71
Figura 59 – Seqüência que mostra a decadência moral do padre.....................................................72
Figura 60 – Cenas de violência e de extorsão....................................................................................74
Figura 61 – Cenas do bispo na banheira...........................................................................................75
Figura 62 – Seqüência que mostra Amaro pedindo ajuda a Dionísia.................................................76
Figura 63 – Cenas da suspensão ad divinis........................................................................................77
Figura 64 – Cenas que revelam o desespero do padre......................................................................78
Figura 65 – Cenas que mostram Amélia sendo levada para a clínica................................................80
Figura 66 – Cenas dramáticas do aborto de Amélia...........................................................................81
Figura 67 – Cenas que mostram a morte de Amélia...........................................................................83
Figura 68 – Imagem religiosa como testemunha................................................................................83
Figura 69 – Cenas finais do filme: padre Benito condena o ato de Amaro.........................................85
Figura 70 – Últimas cenas do filme: a câmera se afasta.....................................................................86
CAPÍTULO III
Figura 01 – Cena de amor de um filme passando na televisão..........................................................98
Figura 02. Seqüência que revela a relação entre Sanjuanera e padre Benito....................................99
Figura 03 – Padre Natálio e padre Benito em um diálogo tenso.......................................................125
Figura 04 – Cenas das mãos, da voz e dos lábios traduzindo sensualidade....................................127
Figura 05 – Cena que mostra o quarto de Amaro.............................................................................129
Figura 06 – Cena em que Amaro descobre a relação entre padre Benito e Sanjuanera..................130
Figura 07 – Cena que mostra Martín como testemunha do flerte entre Amaro e Amélia.................130
Figura 08 – Cena que revela a sensualidade moderna de Amélia....................................................131
Figura 09 – A iluminação sugerindo sentidos para o texto visual....................................................132
Figura 10 – Imagem de Cristo testemunhando o primeiro beijo........................................................132
Figura 11 – Contraste entre Getsemani e o casal.............................................................................133
Figura 12 – Movimentos rápidos de Amaro.......................................................................................134
Figura 13 – O amanhecer como indicação da passagem do tempo.................................................135
Figura 14 – Interior da casa de Dionísia............................................................................................136
Figura 15 – Construção do hospital...................................................................................................136
Figura 16 – Amélia, uma bela rapariga.............................................................................................136
CAPÍTULO IV
Figura 01 – Cenas do Filme: O Crime do Padre Amaro, em que Amaro conta a Amélia aonde
vão se encontrar e ela vai até a igreja..........................................................................161
Figura 02 – Cenas do Filme: O Crime do Padre Amaro, em que Amélia mostra A Vida dos
Santos para Getsemani.................................................................................................163
Figura 03 – Cenas do Filme O Crime do Padre Amaro, em que Amélia consegue
realizar a paixão.............................................................................................................164
LISTAS DE QUADROS
CAPÍTULO I
Quadro nº 01 – Quadro demonstrativo dos principais técnicos do filme e suas funções..................27
Quadro nº 02 – Quadro demonstrativo dos personagens de destaque para o filme.........................29
CAPÍTULO II
Quadro nº 01 – Quadro demonstrativo dos planos.............................................................................34
Quadro nº 02 - Quadro demonstrativo da posição da câmera............................................................35
Quadro nº 03 – Quadro demonstrativo dos movimentos da câmera...................................................35
CAPÍTULO III
Quadro comparativo 01 – Enredo do romance e do filme.................................................................109
CAPÍTULO IV
Quadro nº 01 – Representação da Temporalidade...........................................................................148
Quadro nº 02 – Representação da Espacialidade.............................................................................149
Quadro nº 03 – Percurso Figurativo..................................................................................................150
Quadro Nº 04 – Estado Inicial dos Actantes Sujeitos........................................................................152
Quadro Nº 05 – Estado final dos Actantes Sujeitos..........................................................................152
Quadro nº 06 - Símbolos do Programa Narrativo..............................................................................154
Quadro nº 07 – Programa Narrativo..................................................................................................155
Quadro nº 08 – Quadrado Semiótico I...............................................................................................157
Quadro nº 09 – Quadrado Semiótico II..............................................................................................158
Quadro nº 10 – Gráfico Armazenador I.............................................................................................162
Quadro nº 11 – Gráfico Armazenador II............................................................................................164
Quadro nº 12 – Gráfico Armazenador III...........................................................................................165
13
INTRODUÇÃO
Quando os irmãos Lumière, em 1895, na França, fizeram rodar a primeira
película de celulóide num projetor de manivela, abriu-se uma porta a um mundo de
possibilidades, de sugestões e de impressões. Ele deu o nome de cinematógrafo
registrador de movimentos (do grego: kinema + grafein) que lhe serviu para gravar
imagens de figuras em movimento e depois para projetar tais imagens. Desde então
as viagens pela imaginação representadas nos filmes inauguraram um universo
povoado de magia: o mundo maravilhoso das imagens. Este mundo ilusionista
configura uma modalidade narrativa de cunho poético, que nos remete às mais
incríveis experiências alucinatórias de amores impossíveis, paixões arrebatadoras,
dramas insolúveis imaginados por cada um de nós nos sonhos e nos estados
alterados de consciência.
1
Essas imagens reproduzidas nas telas do cinema contêm histórias que
podem nos levar à alegria, à inquietação, ao espanto, às lagrimas e também à
reflexão, à revolta e à indignação. São algumas dessas emoções que extravasam do
quadro trágico da história criada por Eça de Queiroz, em 1875, adaptada para o
cinema pelo mexicano Vicente Leñero, em 2002, e dirigida pelo, também mexicano,
Carlos Carrera: El Crimen del Padre Amaro. Uma história que critica não apenas os
costumes clericais, mas também apresenta a vida mesquinha de uma cidade do
interior. Um filme condenado pela Igreja Católica, mas que foi sensação de
bilheteria no México e em outros países do mundo. O filme transpõe para um
ambiente moderno o romance original e aborda o acúmulo de elementos simbólicos
da história de maneira convicta e direta.
A transposição da linguagem literária para a linguagem audiovisual resulta
em algumas transformações, inevitáveis diante da mudança de veículo, dos
contextos diferentes e modos de produção. Essas transformações resultam em uma
nova obra, sujeita a comparações e críticas. Analisar esse processo implica tentar
compreender as especificidades que fazem parte da dinâmica dos campos de cada
linguagem, exigindo alterações na transposição da palavra para a tela de maneira a
1
ORLANDO, J.A. A Cidade dos Lunáticos. In: NAZARIO, L. (Org.). A Cidade Imaginária. São Paulo:
Perspectiva, 2005, p. 17.
14
permitir que o modelo fílmico se transforme em uma obra independente. Enquanto
um romancista tem à sua disposição toda a riqueza da linguagem verbal, um
cineasta lida com diferentes materiais de expressão: imagens em movimento,
iluminação, linguagem verbal oral (diálogos), sons e ruídos não-verbais (efeitos
sonoros), música, os movimentos da câmera, enquadramentos, planos, ângulos de
filmagem, cor, entre outros. Todos esses materiais podem ser manipulados de
diversas maneiras, portanto a diferença entre os dois meios não se reduz à diferença
entre linguagem escrita e a linguagem audiovisual. Devido a isso o presente trabalho
propõe-se a fazer uma análise comparativa entre a obra ficcional O Crime do Padre
Amaro e a adaptação para o cinema. Uma análise de como se deu a
transcodificação de texto verbal ficcional para o texto verbal e não-verbal audiovisual
cinematográfico.
A questão da adaptação cinematográfica de uma obra literária pode ser
discutida em muitas dimensões. No primeiro capítulo abordaremos a relação entre
ficção, literatura e cinema, a questão da adaptação e como se deu a produção do
filme e sua repercussão no mundo.
No segundo capítulo, a análise se voltará para a linguagem
cinematográfica. Apresentaremos considerações sobre como os aspectos técnicos -
sons, música, iluminação, câmera, planos, entre outros definem significações na
narrativa fílmica (em sua dimensão visual, verbal e sonora).
Mostraremos, no terceiro capítulo, a interpretação feita pelo roteirista em
sua transposição do livro, observando em que grau se aproxima ou se afasta do
texto de origem. Se aproximação entre alguns elementos básicos da narrativa:
narrador, personagem e conflito. Destacaremos também o que se manteve e o que
se modificou do texto original, os pontos de vista assumidos apresentando os
diferentes eventos e personagens, o ângulo e o grau de detalhamento observados
em determinadas situações. Realizaremos uma leitura do roteiro do filme, como ele
foi organizado. Enfim, faremos uma análise para se chegar à caracterização da nova
obra, observando os recursos interativos mobilizadores usados pelo adaptador até a
realização do espetáculo final.
No quarto capítulo, julgamos que um estudo semiótico entre linguagens
midiáticas, considerando a relação entre literatura e cinema como uma forma de
dialogismo intertextual, contribui para uma visão mais clara da comunicação
15
midiática atual. Faremos uma leitura nos níveis discursivo, narrativo e profundo de
um excerto extraído do romance, e uma leitura narrativa e discursiva de uma cena
análoga do filme.
A obra de Eça de Queirós, publicada pela primeira vez em 1875, não tem
simplesmente a intenção de contar a história amorosa de Amaro e Amélia, muito
pelo contrário, seu objetivo é analisar o comportamento humano frente a uma
sociedade decadente. O romance trata, claramente, do combate aos valores
religiosos, éticos e morais vigentes na sociedade portuguesa da época. É um
romance de tese, pois fica claro que o meio social e o instinto determinam o modo
de agir dos indivíduos. Nas narrativas realistas e naturalistas do século XIX
repousava uma noção dos efeitos corrosivos do tempo, como reflexo da
mecanização e trivialização de todos os aspectos da vida social e individual.
Portanto a questão central não é a história amorosa dos dois protagonistas, mas o
modo como o autor tece a narrativa e traz aos leitores os dados que permitem tomar
consciência do que se trata realmente a história.
Nesse contexto, observaremos no decorrer do trabalho, se o filme
conservou o objetivo primeiro do livro, ou seja, a crítica social de uma determinada
época, evidenciando a sua ideologia. Mostrar essa ideologia é uma maneira de
disseminar cultura e compartilhar conhecimentos.
Nossa pesquisa utilizará a metodologia da abordagem comparativa do
texto verbal e sua adaptação cinematográfica, demonstrada a partir do método
hipotético dedutivo.
As relações entre literatura e cinema são ltiplas e complexas,
caracterizadas por uma forte intertextualidade, por isso teorias sobre literatura,
cinema e mídia serão imprescindíveis. Na análise da significação da linguagem
cinematográfica, os estudos de Marcel Martin e Ismail Xavier serão fundamentais.
Os estudos sobre ficção, literatura e cinema dos autores Cristina Costa, G. Turner, J.
A. Orlando, J-C. Carrière, H. Capuzzo, Jurandir Machado da Silva, Massaud Moisés,
Tânia Pellegrini e V. M. Aguiar e Silva, serão de extrema importância para o suporte
teórico. Não poderia deixar de citar aqueles que darão apoio para a nossa
argumentação em relação à teoria narrativa, como Salvatore D’Onofrio e Domício
Proença Filho. As variações e as possibilidades de relacionamento dos dois meios
de expressão artística são praticamente infinitas. O presente trabalho não pretende
16
esgotá-las, mas procura uma chave para uma compreensão um pouco mais rica dos
processos construtivos da passagem de um código a outro.
Como a análise será centrada na transcodificação de linguagens,
necessidade de um estudo analítico sobre os passos para a construção do roteiro,
pois este é fundamental na produção de um filme. Segundo Comparato “(...) sem
material escrito não se pode dizer nada, por isso um bom roteiro não é garantia de
um bom filme, mas sem um roteiro não existe um bom filme”.
2
Portanto o roteiro é a
base de toda arte cênica e um estudo aprofundado sobre ele é de extrema
importância. Autores como Doc Comparato, Syd Field, David Howard e Edward
Mabley serão necessários para a análise do roteiro do filme.
Thompson
3
diz que a mídia, se levada a sério, exerce uma profunda
influência na formação do pensamento político e social do espectador. Por isso é
importante saber se a leitura cinematográfica que o autor faz do romance de Eça
não é apenas uma adaptação de uma das obras-primas do realismo-naturalismo
queirosiano, mas uma leitura criativa e crítica da conjuntura política e social da
sociedade portuguesa do século XIX.
A pesquisa também buscará suporte na semiótica greimasiana, pois ela
tem como objeto de investigação as linguagens possíveis e este trabalho procura
observar e descrever diversas possibilidades de sentido das obras focalizadas para
entender melhor a articulação argumental utilizada. Os estudos de Nícia Ribas
D’Ávila sobre semiótica visual e cinematográfica serão fundamentais para a
compreensão das dificuldades inerentes ao sincretismo para a desconstrução do
sentido. Somente através da reflexão teórica poder-se-á compreender o mundo das
palavras e das imagens e assim descrever suas funções e suas representações
sociais.
As partes que compõem este trabalho podem ser traduzidas no seguinte
objetivo geral:
Investigar o processo da transcodificação da linguagem verbal escrita do
romance para a linguagem visual cinematográfica. Verificar como se dá o trânsito
entre página e tela
2
COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro. Rio de Janeiro,: Rocco, 2000, p. 20.
3
THOMPSON, John B. A Mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis, RJ: Vozes,
2005, p. 15.
17
Nesse objetivo geral estão envolvidos objetivos específicos de diferentes
ordens, tais como:
1) mostrar que a ficção é um ato narrativo que pode ser compartilhado com o
cinema e através da produção deste descobrir como se constrói o mundo
maravilhoso do espetáculo cinematográfico;
2) analisar os elementos expressivos empregados na realização da obra: a
montagem, o trabalho de câmera, a fotografia, os cenários, a música, os diálogos, a
interpretação, tendo por base um texto literário;
3) investigar como um filme é construído, o seu roteiro, levando em
consideração o narrador, o personagem, o conflito, e as partes que compõem o
roteiro;
4) realizar um estudo semiótico entre as linguagens verbal e visual para
entender, interpretar e interagir com o objeto de estudo.
Ainda mais, durante as análises, identificar a ideologia do autor/roteirista
do romance/filme, uma vez que a ideologia alia-se às práticas sociais concretas e
imaginárias, que formam indivíduos em sujeitos ativos e participativos dos processos
sociais, culturais e políticos.
Evidentemente nosso trabalho não esgota a análise dessa relação
semiótica, pois vários outros enfoques que não foram discutidos. Fizemos uma
interpretação do processo de transcodificação da linguagem do romance para a
linguagem cinematográfica, porém o assunto margem para novas interpretações
e novos estudos.
18
CAPÍTULO I
1. AMOSTRA DA TRAJETÓRIA DO FILME
1.1. Ficha técnica do filme
Fig. 01 – Capa do DVD do filme.
El Crimen del Padre Amaro – 2002
Equipe Técnica:
Direção: Carlos Carrera
Adaptação: Vicente Leñero
Produtores: Alfredo Ripstein
Daniel Birman Ripstein
Co-produção: José Maria Morales
Produtora Executiva: Laura Imperiale
Fotografia: Guilhermo Granillo
Edição: Oscar Figueroa
Montador – Oscar Figueroa
Música Original: Rosino Serrano
Direção de Arte: Carmen Gimenez Cacho
Vestuário: Mariestela Fernández
Direção de Som: Santiago Nuñez
Descrição de Som: Mario Martinez
Nerio Barberis
Assistente de Direção: Miguel Lima
Produtores Associados: Atahealpa Lichy
Scot Evans
Claudia Becker
Post Produtores: Nerio Barbens e Alejandro
Clancy
Apoio: Ponds Sud Cinema -
Ministério de Assuntos Estrangeiros da França
e Centro National da Cinematografia
Coordenação Alameda Films: Juan Pablo
Goya
Wanda Films: Miguel Morales
19
Maria Victoria Alberca
Silvia Requena
Assessor Legal: José Luis Caballero
Projeto de Lançamento: Alejandro Del Olmo
Letícia Gómez Leon
Delgon Artes Gráficas
Continuidade – Gabriela Manroy
Ambientação – Ivonne Fuentes
Coordenadora de Arte – Mariana Omaña
Maquiagem – Aurora Chavira
Penteado – Tere Chávez
Efeitos Especiais – Sergio Jará
Orquestra - Mexfilm
Elenco:
Gael García Bernal – Padre Amaro
Ana Claudia Talancón – Amélia
Sancho Gracia – Padre Benito
Angélica Aragon – Sanjuanera
Luisa Huertas – Dionísia
Ernesto Gómez Cruz – Bispo
Gastón Melo – Martín
Damián Alcázar – Padre Natálio
Andrés Montiel – Rubén de la Rosa
Gerardo Moscoso – Doc
Alfredo González – Viejo
Verônica Langer: Amparito
Pedro Armendáriz – Prefeito
Lorenzo de Rodas – Don Paco
Roger Nevares – Padre Galván
Fernando Becerril – Galarza
Jorge Zárate – Padre Mauro
Rosa Maria Castillo – Chepina
Blanca Loaria – Getsemani
Juan Ignácio Aranda – Chato Aguilar
Martín Zapata – Agente PM
Dagoberto Gama – Lucas
Rogelio Rojas – Fotógrafo
Jorge Castillo – Matias
Marco Figueroa – Chente
Assaltante 1 – Enrique Vasquez
Assaltante 2 – Cristo Yañez
Marina Vera – Mulher do assaltante
Letícia Valenzuela – Doutora
Raúl Askenazi – Hueso
Carmen Gimenez Cacho – Madre Hada
Roberto Linares – Tiburón
Victor Hernández – Guarura
Isidra Morales – Comadre Dionísia
Martha Posternak – Esposa de Chato Aguilar
Inês Cuspinera – Madrinha do bebê Chato
José Luis Caballero – Padrinho do bebê Chato
Vanesa Barba – Bebê Chato
Paloma Cobos – Empregada PM
Enrique Gibardi – Amigo Narco 1
Jaime Cancino – Amigo Narco 2
Pablo Hoyos – Amigo Narco 3
Daniel Posternak – Amigo Narco 4
20
Dino Demichelis – Amigo Narco 5
Ana C. Izquierdo – Enfermeira
José Guadalupe Pintor – Novo sacristão
Coro “Siquem”:
Alejandro Alvarez
Miguel Ángel Alvarez
Ma. Del Rosário Rodríguez
Lilia Hernández
Beatriz Alvarez
Angel Cristian Cruz
Selenia Hurtado
Norma Angélica González
1.2. Ficção, literatura e cinema
Na sociedade que se caracteriza pela mediação discursiva e por uma
atitude crítica em relação a ela, a ficção se tornou a forma narrativa de
maior penetração. Apelando para uma inteligibilidade sensível e emocional,
ela estabelece um trânsito mais ágil entre culturas, classes e sexos,
restaurando a homogeneidade necessária do universo simbólico. Por essa
razão a ficção e a arte o formas comunicativas privilegiadas, capazes de
resgatar um contato mais íntimo e direto com a realidade.
4
Uma das mais importantes funções da cultura é permitir que passemos
idéias, valores e conhecimento de uma geração para outra. Desde que os seres
humanos começaram a falar, usaram a fala para passar idéias para as crianças.
A escrita ajudou a tornar o processo da fala muito mais sofisticado, pois coisas
mais complexas puderam ser escritas e repassadas. A mídia, por sua vez,
acrescentou novos níveis de conhecimento e imagens que podem ser
repassadas para gerações seguintes. Straubhaar e Larose, assim se pronunciam
sobre o assunto:
Os meios de massa mudaram o processo de transmissão de valores e a
socialização. Quando as culturas humanas eram exclusivamente orais, os
indivíduos aprendiam coisas primariamente com seus pais ou parentes, ou
de professores locais, pastores, narradores de histórias e outros que viviam
por perto e eram, provavelmente, muito parecidos com eles. (...) Hoje a
mídia assumiu muitos dos papéis tradicionais de narradores de histórias,
professores e mesmo pais. Com os meios de massa, o povo de uma nação
inteira ou, no caso particular de alguns livros, filmes, canções ou shows, o
povo de todo o mundo es ouvindo as mesmas histórias, idéias e
valores.
5
4
COSTA. Maria Cristina C. Ficção, Comunicação e Mídias. São Paulo:Senac, 2002, p. 15.
5
STRAUBHAAR, Joseph; LAROSE, Robert. Comunicação, mídia e tecnologia. São Paulo: Pioneira
Thomson Learning, 2004, p. 284-285.
21
A mídia do entretenimento pode ser ainda mais importante na função de
transmitir valores, pois ela é o narrador de histórias das sociedades modernas. o
é difícil entender o apelo irresistível desse tipo de mídia, pois, geralmente, ela
transmite ficção, que permite desdobramentos necessários de nossa mente, que nos
faz viver processos interpretativos de natureza mágica e mítica. O poder da ficção
transmitido, principalmente, através dos filmes, nos encanta e abre possibilidades
para vivermos experiências que não são as nossas, fazendo dela um espaço
privilegiado de elaboração da vida.
uma grande necessidade de reconhecer a importância da ficção na
cultura humana, tanto na formação das identidades culturais e individuais como na
constituição de valores e comportamentos aceitos e difundidos numa coletividade.
A comunicação incorporou de forma significativa o som e a imagem com
o rádio, o cinema e a televisão. A ficção adaptada para os meios de comunicação
contamina a vida do ouvinte e do espectador. Particularmente, interessa-nos a
adaptação para o cinema. Neste caso, o espectador projeta-se no universo fílmico.
O cinema molda o seu imaginário e contribui para o diálogo de várias culturas.
Firma-se, assim, como linguagem universal e diminui as distâncias entre os idiomas
e entre as classes sociais.
Ficção, literatura e cinema possuem entre si muitas ligações. A ficção é
uma forma especial de comunicação, pois migra de um campo cultural para outro e
dialoga com as várias linguagens: literatura, cultura oral, cultura popular de massa,
produção audiovisual, entre outras. São comédias, tragédias, melodramas, musicais,
suspense e terror que circulam, através de imagens, pelos campos audiovisuais.
Constitui-se, portanto, um ato narrativo compartilhado por estabelecer experiências
comuns e referenciais entre culturas, classes e sexos.
As técnicas de comunicação e de transmissão de cultura são várias
cinema, telenovela, propaganda, videoclipes – a força dessas técnicas está na
imagem, que é poderosa e tem um impacto muito grande de significação, pois
comporta uma carga visual e auditiva que se comunica imediatamente, sem
necessidade, às vezes, de palavras. A imagem tem seus próprios digos de
interação com o espectador. Assim, o texto escrito é um recurso que ajuda na
complementação dessa significação.
22
Essas tecnologias produtoras de imagens alteram sensivelmente a
maneira de ver o mundo, de senti-lo, de interagir com ele e de representá-lo por
meio da literatura e da arte. E de tal forma isso é verdade, que a cnica
cinematográfica e a dinâmica de suas imagens em movimento influenciaram a
técnica da narrativa literária. Por outro lado, houve, desde o início, uma influência da
literatura sobre o cinema, com o aproveitamento de textos ficcionais na narrativa
cinematográfica. Assim, a relação entre literatura e cinema pode ser vista sob a
forma de dialogismo intertextual. As narrativas, nesse contexto, são repetidas de
diversas maneiras, de maneira livre ou não.
Nosso objeto de estudo se enquadra neste último argumento: da literatura
para as telas do cinema contendo dialogismo intertextual. Vamos ver como tudo
começou, e como uma bela ficção oitocentista transformou-se em um filme, que
dialogou com seu texto de origem e também com o seu contexto, atualizando a
pauta da história.
1.3. Da adaptação literária para a recriação fílmica
Através de uma idéia básica, dá-se início a uma história. Essa idéia passa
a ser chamada de argumento a partir do momento em que ela é posta no papel na
forma de breve sinopse, contendo os personagens, o pano de fundo da história e a
trama básica. Este argumento é apresentado a um roteirista que desenvolve as
seqüências do roteiro, com as cenas e os diálogos. Com esse roteiro, o diretor pode
trabalhar e fazer algumas alterações ao longo da filmagem.
uma grande liberdade quanto a recriar histórias para o cinema.
Segundo Ismail Xavier:
A interação entre as mídias tornou mais difícil recusar o direito do cineasta à
interpretação livre do romance ou peça teatral, e admite-se até que ele pode
inverter determinados efeitos, propor outra forma de entender certas
passagens, alterar a hierarquia dos valores e redefinir o sentido da
experiência das personagens. A fidelidade ao original deixa de ser o critério
maior de juízo crítico, valendo mais a apreciação do filme como nova
23
experiência que deve ter sua forma,
e os sentidos nela implicados, julgados
em seu próprio direito.
6
Assim, a reestruturação de obra literária pode resultar em um produto
diferente do texto original. Adaptar um texto significa reinterpretar aspectos da
narrativa a fim de adequá-la à linguagem de outro veículo, no caso deste objeto de
estudo, o cinema. O que chamamos de adaptação pode ser, portanto, uma versão,
uma inspiração, um aproveitamento temático, uma recriação. Afinal, livro e filme
podem estar distanciados no tempo; escritor e cineasta podem não ter a mesma
sensibilidade artística. Sendo assim, espera-se que a adaptação dialogue não
com o texto de origem, mas também com o seu próprio contexto.
Isso se confirma no filme O Crime do Padre Amaro, título em português,
que teve sua idéia matriz na obra homônima de Eça de Queirós. O diretor Carlos
Carrera buscou no romance oitocentista o argumento para dar início à versão
moderna. O diretor e o roteirista, Vicente Leñero, começaram a trabalhar na história
de Eça e decidiram fazer as mudanças necessárias para que fosse possível fazer a
adaptação, de modo livre, ao país mexicano. Fizeram uma recriação do original.
Carlos Carrera conta em uma entrevista que o roteiro ficou engavetado por três
anos, pois nenhum produtor mexicano queria fazer o filme: “No México, a indústria
cinematográfica esligada ao poder político e à Igreja.”
7
Apesar das mudanças que
fizeram para adaptar o romance à atualidade, eles tentaram respeitar a essência do
romance, as suas personagens, as situações e a abordagem da hipocrisia ligada à
Igreja.
Antes do início de suas filmagens, O Crime do Padre Amaro criava
polêmica no México, onde vários grupos ligados à Igreja Católica tentaram impedir a
realização do filme. Essa movimentação acabou servindo de publicidade gratuita,
fazendo com que todos os ingressos fossem vendidos em seu primeiro fim de
semana de exibição no México.
O filme teve, também, boa repercussão fora do país. Assim como os
filmes brasileiros, os mexicanos sofrem oscilações, com bons e fracos períodos. O
6
PELLEGRINI, Tânia. [et al.]. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Senac São Paulo: Instituto
Itaú Cultural, 2003, p. 61.
7
OLIVEIRA, M.J. Entrevistas Carlos Carrera. Cinecartaz.Publico.Pt, Lisboa, Seção Cinecartaz.
Disponível em http://cinecartaz.publico.clix.pt/entrevista.asp?id=72291. Acesso em: 05/03/2008.
24
Crime do Padre Amaro conseguiu arrecadar, ao redor do mundo, a quantia de um
milhão e oitocentos mil dólares. No México, bateu todos os recordes de bilheteria.
Em 2003, recebeu várias indicações de melhor filme:
Uma indicação ao Oscar, na categoria de Melhor Filme Estrangeiro de 2003.
Uma indicação ao Globo de Ouro, na categoria de Melhor Filme Estrangeiro.
Uma indicação ao Goya, na categoria de Melhor Filme Estrangeiro de Língua
Espanhola.
8
Entre outros prêmios:
Prêmios Ariel, México Prêmios de Melhor Direção, Melhor Roteiro
Adaptado, Melhor Edição, Melhor Efeitos sonoros, Melhor Ator
Coadjuvante (Damián Alcázar), Melhor atriz coadjuvante (Angélica
Aragón), Melhor Ator num Papel Menor (Gastón Melo), Prêmio de Melhor
Figurino.
Indicações para o Prêmio Ariel, México para Melhor Atriz ( Ana Claudia
Talancón), Melhor Direção de Arte e Melhor Maquiagem.
Festival de Havana – Prêmio de Melhor Roteiro.
O diretor mexicano Carlos Carrera, após a exibição do filme, ganhou as
manchetes como pivô de uma grande discussão cultural em seu país. Sua
adaptação levantou acusações contra a Igreja católica diante de atos de corrupção
cometidos por alguns de seus membros e despertou a ira das autoridades religiosas
de seu país. Entretanto, ganhou êxito comercial no mundo cinematográfico por
arrastar quase cinco milhões de mexicanos para as salas de exibição. Na época do
lançamento, Carrera conversou por telefone de seu escritório com a Revista de
Cinema, sobre a situação dos diretores de seu país. Durante o bate papo, lembrou
também a repressão da Igreja contra o filme, que, na contramão, acabou ajudando a
popularizá-lo. Abaixo, segue a entrevista:
Revista de Cinema - O sucesso de O Crime do Padre Amaro é um caso isolado ou
é um sinal do crescimento do cinema mexicano contemporâneo?
8
PUGLIESE, T. Artigo escrito na sessão adorocinema.com, disponível em
http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes . Acesso em 05/03/2008.
25
Carrera - Ainda que haja um ou outro êxito de público ou de crítica, o cinema
mexicano continua atravessando um momento difícil. Não há apoio do governo e,
tampouco, um estímulo fiscal que mobilize produtores privados, levando-os a investir
na produção cinematográfica.
Revista de Cinema - Seu filme gerou protestos da Igreja em seu país. Acredita que
a polêmica provocada por O Crime do Padre Amaro apenas realçou a força de suas
denúncias?
Carrea - A polêmica fez bem ao filme, uma vez que muita gente foi ao cinema
atraída por ela. Fizemos cerca de cinco milhões de espectadores pouco depois da
estréia. No fundo, O Crime do Padre Amaro é apenas uma confirmação do que
de corrupto na Igreja. Ele expõe como as autoridades religiosas tinham dificuldade
para encobrir seus próprios erros.
Revista de Cinema - Como descobriu Eça de Queirós e seu livro?
Carrera - Descobri a literatura de Eça lendo A Relíquia. deparei com O Crime do
Padre Amaro há cerca de cinco anos, quando meus produtores me apresentaram o
livro. Li a pedido deles e percebi que o tema da hipocrisia no interior da Igreja
permanecia bastante atual. Daí surgiu a idéia da adaptação.
9
Que brilhante idéia de Carrera: a adaptação da obra de Eça, apesar
das repressões religiosas, foi um sucesso. O diretor mexicano valeu-se de sua
interpretação crítica da obra original portuguesa e recriou outra obra de arte.
Podemos vê-las como dois extremos de um processo que comporta alterações de
sentidos, mas em que prevalece a essência principal: a magia da ficção interpondo-
se entre leitores e espectadores para um mundo repleto de sedução e a constatação
da capacidade dos criadores dessas obras em fabular o passado e o futuro,
potencializando uma aliança entre eles baseada na possibilidade de ver o mundo
por meio dos sonhos.
Apesar do sucesso de público do filme e dos prêmios recebidos, a
recepção positiva não foi unânime. polêmica quanto ao seu valor como
9
Entrevista para Revista de Cinema. Disponível em:
http://www2.uol.com.br/revistadecinema/edicao33/cinema_latino/index. Acesso em: 06/03/2008.
26
adaptação do romance de Eça de Queirós, como podemos constatar no texto de
Romildo Sant’Anna, professor universitário, escritor e crítico de cinema, que em sua
crônica publicada no livro Liberdade Azul e no site da Triplov.com, Lisboa, Portugal,
em 23/02/2003, diz:
“O Crime do Padre Amaro” é, em si, a própria imagem do
grotesco e um monumento aos filmes em estilo “mundo cão”. Perde-se na
ingenuidade das denúncias óbvias, das delações correlatas, das situações
previsíveis. Nele, a ética social convertida em enredo de cinema se reduz à
chantagem e à mentira, à exploração de doentes mentais, aos
envolvimentos lascivos e festas de jagunços, ao fanatismo doentio, ao
ambiente clandestino dos encontros proibidos e das “clínicas de aborto”, à
banalização dos mitos sagrados e elementares da existência.
10
Outro crítico, Celso Sabadin, jornalista e crítico de cinema da Rádio CBN,
escreveu o seguinte para a revista eletrônica Cineclick, em 16/01/2003:
A trama escrita em 1875 podia até causar furor na época, mas hoje este
tipo de drama eclesiástico já não é visto com tanto interesse. Mesmo porque
o diretor Carlos Carrera opta por uma narrativa extremamente convencional
e linear, usando e abusando do estilo folhetinesco, típico das novelas
feitas em seu país. A indicação ao Globo de Ouro soa exagerada.
Vemos portanto que, como toda obra de arte, margem a opiniões e
apreciações divergentes, o que é bom, pois, como sabido, a unanimidade é
suspeita. De qualquer forma, reiteramos Ismail Xavier sobre o assunto da
adaptação:
O livro e o filme nele baseado são vistos como dois extremos de um
processo que comporta alterações de sentido em função do fator tempo, a
par de tudo o mais que, em princípio, distingue as imagens, as trilhas
sonoras e as encenações da palavra escrita e do silêncio da leitura.
10
SANT’ANNA, Romildo. O Crime do Padre Amaro. Disponível em:
http://www.triplov.com/romildo/2008/O crime do padre Amaro.html. Acesso em 07/05/2008.
27
Assim, deve valer mais a apreciação do filme como uma nova obra de
arte independente, com sua nova forma e sentidos julgados em seu próprio direito.
1.4. Produção
Roteiro pronto, com cenas, seqüências, personagens, diálogos, o filme
entra na etapa de produção e filmagem. A partir da sinopse inicial, são feitas as
escolhas dos responsáveis para a realização do filme: a equipe de filmagem, o
elenco que vai interpretar os personagens, o produtor, o co-produtor, o diretor de
fotografia, o montador, entre outros. São, também, nessa etapa, avaliados os
recursos necessários para o gasto com rolos de filme, equipamentos, figurino,
viagens e salários.
Ao começar a rodar as filmagens, o diretor escolhe planos e seqüências
tendo como base o roteiro. As seqüências que vemos nos filmes, provavelmente não
seguem nessa ordem. Por critérios de racionalização, a ordem seguida é de acordo
com a ocupação de estúdio e deslocamento para extras. Na edição final, é escolhida
a seqüência lógica de narrativa desejada pelo diretor.
Carrera, com certeza, fez uma escolha feliz das seqüências para o filme,
pois alcançou o sucesso desejado desde que ele tinha 13 anos e pegou uma
câmara Super 8 e fez aquilo a que chamou “o meu primeiro filme”. Porém, nessa
época, estava longe de imaginar que iria para Los Angeles a reboque de um
romance português.
Foi feliz também na escolha dos profissionais que o ajudaram na
realização do sucesso. Abaixo, um quadro demonstrativo de alguns desses
profissionais e suas funções e participações.
Quadro nº 01 – Quadro demonstrativo dos principais técnicos do filme e suas funções.
REALIZADORES FUNÇÕES
Carlos Carrera: nasceu na cidade do
México, em 1962. Estudou Comunicação
Diretor trabalha o desenvolvimento do
roteiro com o produtor e o roteirista (
28
na Universidade Ibero-americana e
cursou o Centro de Capacitación
Cinematográfica, onde estudou
produção.
ganhou mais de 30 prêmios em nível
internacional)
Vicente Leñero: escritor famoso no
México, nasceu em 1933, em
Guadalajara. Formou-se em Jornalismo
pela Escuela de Periodismo Carlos
Septén Garcia e Engenharia Civil pela
Faculdade de Engenharia da
Universidade Autônoma de México.
Roteiro e Adaptação trabalha com o
diretor e o produtor no desenvolvimento
do roteiro ou formato ( roteirista de rádio,
cinema e televisão; escritor de sucesso;
teatrólogo; e muitas premiações)
Alfredo Ripstein: produtor consagrado
no México. Trabalhou como gerente de
produção e produtor executivo.
Produtor desenvolve o conceito, o
orçamento do programa e trabalha com o
roteirista; aprova o método do diretor, a
iluminação e o cenário ( fundador da
Companhia Alameda Films, S.A., que
produziu e co-produziu mais de 120
filmes; recebeu muitos prêmios)
Daniel Birman Ripstein: Nasceu na
cidade do México, em 1970; sua carreira
começou em produção, como vice-
gerente de produção
Produtor - membro volante do júri da
Academia Mexicana de Artes e Ciências
Cinematográficas, vice-diretor de
distribuição da Alameda Films e membro
do conselho editorial do caderno cultural
do Jornal Reforma
Alameda Films: fundada em 1948,
produziu mais de 120 filmes.
Produtora Cinematográfica ( é uma das
poucas produtoras cinematográficas da
era de ouro do cinema mexicano que
continua em atividade até hoje)
José Maria Morales: fundador e
proprietário da Wanda Films e co-
Co-produtor ( co-produziu mais de 20
filmes e distribuiu mais de 80 filmes de
29
proprietário da Wanda Visão. famosos diretores)
Wanda Vision: companhia produtora e
distribuidora de cinema independente,
europeu e latino-americano, fundada em
1997
Produtora Cinematográfica
produtora de vários filmes de sucesso)
Guillermo Granillo: no início de carreira
foi operador de câmera, 1991.
Diretor de Fotografia consulta o
diretor/produtor/cenógrafo sobre o
conceito e o design da produção e
desenvolve o todo de iluminação (
participou de vários filmes famosos)
Oscar figueroa: Iniciou como assistente
de edição, em 1987.
Editor (recebeu vários prêmios e foi
editor de filmes famosos)
No quadro abaixo, o elenco que participou do filme (personagens de
destaque para a realização da história do filme).
Quadro nº 02 – Quadro demonstrativo dos personagens de destaque para o filme.
ELENCO PARTICIPAÇÃO
Gael García Bernal nasceu em
Guadalajara, Jalisco, México. Jovem de
olhos penetrantes e sorriso cativante,
famoso por fazer personagens ousados.
Já recebeu várias premiações.
Padre Amaro personagem principal
que seduz a jovem Amélia. Abriga em
si paixões contraditórias.
Ana Claudia Talancón - jovem atriz de
22 anos, mexicana. Protagonizou várias
novelas e recebeu vários prêmios.
Amélia personagem principal que se
apaixona pelo padre Amaro. É um claro
exemplo da confusão entre o amor divino
e o amor carnal, facilitada pela mística
católica.
Sancho Gracia nasceu em Madri,
Espanha, grande ator veterano do teatro,
Padre Benito pároco da cidade de Los
Reyes, Aldama, xico. Amante da mãe
30
cinema e televisão. Tem mais de 30
longas em seu currículo e vários
prêmios.
de Amélia.
Angélica Aragon mexicana, atriz de
teatro, novelas e filmes, atuou em mais
de 24 longas, tanto mexicanos quanto
norte-americanos. Já recebeu muitas e
merecidas premiações.
Sanjuanera mãe de Amélia, dona do
restaurante da cidade e amante do padre
Benito.
Luisa Huertas – atriz mexicana com três
décadas de trabalho no cinema e na
telavisão.
Dionísia – mulher simples, do povo. Tem
a mente perturbada. Vive sua loucura
através da religião, que, paradoxalmente,
serve-lhe como elo com a realidade.
Damián Alcázar ator mexicano e foi
um dos pilares do que alguns chamam o
Novo Cinema Mexicano, estrelando
muitos dos filmes que resgataram o
prestígio da cinematografia do seu país.
Padre Natário
personagem
perseguido pela igreja por dar
assistência a tropas guerrilheiras da
região rural em que trabalha.
Ernesto Gómez Cruz um dos grandes
atores do cinema nacional mexicano,
com mais de 60 produções em seu
currículo e com grande diversidade de
papéis.
Bispo personagem que lida com o
poder e a administração da igreja. Na
ação narrativa, ele compactua com
outros padres na corrupção e no
envolvimento com o narcotráfico.
Outras participações importantes para a
história:
Gastón Melo Martín sacristão da igreja, pai de
Getisemaní.
Pedro Armendáriz Prefeito da cidade de Los Reyes
Verônica Langer Mulher do prefeito
Roger Nevares Padre Galván
31
Jorge Zárate Padre Mauro
Blanca Loaria Getsemaní, menina doente que
presencia os encontros entre Amaro e
Amélia.
Andrés Montiel Rubén de la Rosa, jornalista apaixonado
por Amélia
A produção foi rodada ao longo de um período de aproximadamente seis
semanas e meia, do início de novembro ao final de dezembro de 2001, com
locações na Cidade do México (na colônia Guerrero, entre outros lugares); no estado
de Veracruz (Xalapa, Xico e Coatepec) e no estado do México (Tepetlaztoc).
Acerca da trilha sonora, Carrera comenta que “ela foi pensada como um
recurso para acrescentar novos elementos, e não para ilustrar emoções”. Isso se
confirmará nas análises das imagens no capítulo seguinte. O filme apresenta, além
da música original de Rosino Serrano e de canções de Pablo Montero, artistas como
José Guadalupe Esparza e Júlio Preciado, entre outros.
Segundo Carrera, seu filme pretende dar voz, por meio da criação de
personagens consistentes, a posturas e questionamentos distintos diante da
espiritualidade. Mais que a maldade da natureza humana como criatura maniqueísta,
o que importa é a complexidade das motivações humanas. O Crime do Padre Amaro
lhe interessa por seu alcance humano e pelas possibilidades que lhe oferece de
mostrar as motivações humanas, sempre complexas, nunca unidimensionais. o
se trata de um jogo entre as forças do bem e do mal, e sim uma amostra das fibras
de que são feitos os seres humanos. Em 2002, em algumas cidades do México, a
situação retratada em seu livro não mudou grande coisa. Apesar dos concílios, das
conferências episcopais e das encíclicas, a igreja nem sempre está a serviço de
seus fiéis.
11
Conflitos religiosos no México são conhecidos desde que os
colonizadores espanhóis impuseram o catolicismo no século XVI. O artigo 24 da
11
Notas da produção disponível em: http://www.webcine.com.br/notaspro/npcripam.htm. Acesso em
22/03/2008.
32
Constituição mexicana garante que "cada pessoa é livre para professar a crença
religiosa que mais lhe agradar". Entretanto, os cristãos enfrentaram perseguições
incessantes em algumas cidades, muitas vezes sob olhares complacentes das
autoridades eleitas. Eles foram vítimas de uma mistura corrupta de religião e política.
Os conceitos religiosos dos maias fundiram-se com o dogma Católico Romano,
resultando no catolicismo sincretista predominante hoje em muitas cidades
mexicanas.
33
CAPÍTULO II
2. ANÁLISE DA LINGUAGEM FÍLMICA
2.1. Aspectos técnicos da imagem cinematográfica
Livro e filme utilizam linguagens diferentes, pois são sistemas de
comunicação diversos. Enquanto o livro atém-se à linguagem escrita, no filme vemos
uma linguagem de imagens, sons, movimentos, jogos de câmera, planos,
enquadramentos... O Crime do Padre Amaro é um filme com uma cuidadosa
produção. Carlos Carrera o hesita em cortar e montar os planos-seqüências em
diferentes enquadramentos; ele aproxima, em vários momentos, a câmera dos
atores para ressaltar detalhes da cena, faz montagens que mostram minúcias em
primeiro plano, em plano médio, plano americano, plano geral. Utiliza a técnica da
profundidade de campo para mostrar maior interação entre a narrativa e a
elaboração plástica da imagem. Tudo isso para narrar a história de maneira objetiva
(mas com bastante subjetividade) e para parecer real. Os movimentos de câmera, as
técnicas das luzes, do som, fundamentam encadeamentos narrativos que
desencadeiam em nossa consciência afetos e associações entre imagens, emoções
e personagens. Essas técnicas da linguagem particular do cinema permitem
viagens exploratórias, as quais influenciam nossas emoções pessoais.
Carrière afirma que “o cinema ama a ambigüidade, a emoção indefinida” e
nos leva a apreender coisas que não são explícitas, nem definíveis.
12
Um olhar, uma
mão, um cenário, pequenos objetos podem conter alguma coisa significativa.
Quadros, cenas, seqüências, planos, câmeras podem aderir ao estado emocional do
narrador e dos personagens. Planos fixos e discretos travellings podem criar
inquietações. A câmera, os atores e os objetos num espaço podem criar uma
coreografia fabulosa que leva a uma tensão ou uma confusão emocional colocando
em destaque o conflito e suscitando um jogo entre o interior e o exterior, seja do
personagem ou do espaço.
12
CARRIÈRE, J-C. A Linguagem Secreta do Cinema. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 34-35.
34
O cinema tem um modo bem particular de narrar a realidade. Imagens
visuais, linguagem verbal, sons não-verbais, música, iluminação são diferentes
materiais de expressão utilizados pelo cineasta na construção de uma obra fílmica.
Para a nossa análise tomaremos as noções cnicas e a nomenclatura
utilizada para a concepção das imagens relacionadas aos movimentos de câmera.
A expressividade do discurso se constrói a partir dos planos, que são as
tomadas de cenas entre dois cortes. Deixemos a palavra com Xavier, que explicará
as nomenclaturas e as técnicas básicas:
Classicamente, costumou-se dizer que um filme é constituído de
seqüências unidades menores dentro dele, marcadas por sua função
dramática e/ou pela sua posição na narrativa. Cada seqüência seria
constituída de cenas cada uma das partes dotadas de unidade espaço-
temporal. Partindo daí, definamos por enquanto a decupagem como o
processo de decomposição do filme (e portanto das seqüências e cenas)
em planos. O plano corresponde a cada tomada de cena, ou seja, à
extensão de filme compreendida entre dois cortes, o que significa dizer que
o plano é um segmento contínuo da imagem.
13
(grifo nosso)
Assim, é na articulação dos planos que se deve produzir um sentido
lógico e coerente para o texto visual. Ismail Xavier, ao tomar conceitos de
decupagem clássica, classifica quatro planos, e é nessa perspectiva que faremos a
nossa análise:
Quadro nº 01 – Quadro demonstrativo dos planos.
Plano Geral Cenas amplas, mostra todo o espaço da
ação.
Plano Médio ou de Conjunto Mostra o conjunto de elementos
envolvidos na ação (figuras humanas e
cenário).
Plano Americano Corresponde ao ponto de vista em que
as figuras humanas são mostradas da
cabeça até a cintura, aproximadamente.
13
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e
Terra, 2005, p. 27.
35
Primeiro Plano (close-up)
Focaliza um detalhe.
Quanto ao ângulo ou posição da câmera:
Quadro nº 02 - Quadro demonstrativo da posição da câmera.
Câmera Alta (plongeé)
De cima para baixo.
Câmera Baixa (contra-plongeé)
De baixo para cima.
Metz utiliza o termo plongeé para câmera alta, e contra-plongeé para
câmera baixa, termos adotados neste capitulo. Martin
14
também adota esta
nomenclatura e destaca a significação psicológica das imagens filmadas a partir
desses ângulos. A contra-plongeé geralmente uma impressão de superioridade;
em plongeé, ao contrário, ocorre um efeito de rebaixamento.
Há, também, os movimentos de câmera:
Quadro nº 03 – Quadro demonstrativo dos movimentos da câmera.
Travelling
Deslocamento da câmera num
determinado eixo.
Panorâmica Rotação da câmera em torno de um eixo,
vertical ou horizontal, sem deslocamento
do aparelho.
No capítulo que segue, outros recursos - como som, iluminação,
profundidade de campo - serão abordados. Vamos apresentar algumas
considerações sobre como esses aspectos técnicos definem significações na
narrativa fílmica ( em sua dimensão visual, verbal e sonora). Mas antes vamos nos
inteirar sobre o conteúdo da obra que será analisada em uma breve sinopse:
14
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2003, p. 41
36
O Crime do Padre Amaro, um dos grandes romances da língua
portuguesa, percorre a história de um padre, Amaro, que se envolve com uma
jovem, Amélia, e a seduz engravidando-a; drama que se encerra com a morte dela.
Publicada pela primeira vez em 1875, essa obra é a mais polêmica de todas as
escritas por Eça de Queiroz, pois trata do comportamento nocivo e corrupto não
dos padres, mas do clero em geral. Além disso, existe um combate aos valores
éticos e morais vigentes na sociedade portuguesa da época. Além da descrição
minuciosa e abundante que imprime forte visualidade ao romance, o livro contém
alguns elementos que a ficção no cinema procura: narrativa repleta de
acontecimentos, forte carga sentimental e dramática e um pano de fundo composto
de episódios que levam à análise psicológica e crítica da sociedade a partir do
comportamento de determinados personagens de pequenas cidades do interior,
vistos com uma ironia mordaz e maliciosa, que se constitui como uma arma de
combate. Esses elementos são encontrados em abundância no romance realista do
final do século XIX, que têm fornecido matéria a certo número de adaptações para o
cinema, tais como, Memórias Póstumas, do diretor André Klotzel; Dom, de Moacyr
Góes, (esses dois filmes baseados em romances de Machado de Assis); Primo
Basílio, de Daniel Filho, adaptado do romance de Eça de Queirós; entre outros.
A fábula do filme O Crime do Padre Amaro (2002) passa-se no México,
em época mais atual. O jovem padre Amaro acaba de ser ordenado e em breve irá
para Roma continuar seus estudos, graças à boa relação que mantém com o bispo.
Antes, contudo, deve trabalhar em uma paróquia. Ele é enviado para Los Reyes, em
Aldama, México, para atuar sob as ordens do padre Benito, que secretamente vive
uma existência corrupta e contraditória. Amaro conhece a linda e devota Amélia,
filha de Sanjuanera, dona do restaurante mais importante da cidade e amante do
padre Benito. Diante do mundo real, Amaro é confrontado com a hipocrisia da Igreja,
que condena as guerrilhas existentes na cidade, mas convive com chefes do tráfico
de drogas.
Esta é a história que dará subsídios para a análise que nos propomos a
realizar. Selecionamos algumas imagens do filme para investigarmos as técnicas
filmicas que dão um sentido especial ao todo da história.
37
2.2. Da imagem à significação
A complexidade da produção cinematográfica torna essencial a
interpretação, a leitura ativa de um filme. Inevitavelmente precisamos
examinar minuciosamente o quadro, formar hipóteses sobre a evolução da
narrativa, especular sobre seus possíveis significados, tentar obter algum
domínio sobre o filme à medida que ele se desenvolve. O processo ativo da
interpretação é essencial para a análise do cinema e para o prazer que ele
proporciona.
15
Fig. 01 – Primeira cena do filme.
Comecemos, então, pela primeira imagem do filme, para entendermos o
processo da interpretação. A fim de localizar geograficamente o espectador, o diretor
em um grande plano geral mostra a primeira área de ação do filme: quatro crianças
brincando em frente a uma cruz em um campo que margeia a rodovia por onde
passa o ônibus que conduz o padre Amaro ao chegar à cidadezinha de Los Reyes,
no México. A cruz, mais próxima da câmera, em primeiro plano, surge mais
iluminada que o resto da cena, não distinguindo os rostos das crianças.
Segundo Martin “a imagem constitui o elemento de base da linguagem
cinematográfica. Ela é a matéria-prima fílmica e desde logo, porém, uma realidade
particularmente complexa.”
16
Por um lado resulta da atividade automática de um
15
TURNER, G. op. cit., p. 69.
16
MARTIN, op. cit. , p. 21.
38
aparelho capaz de reproduzir a realidade, que capta aspectos precisos e
determinados dessa realidade, porém, ao mesmo tempo, essa atividade se orienta
no sentido desejado pelo realizador. Quando o homem intervém, sua influência
sobre o objeto filmado é decisiva e a realidade que aparece é subjetiva. “A imagem
fílmica proporciona, portanto, uma reprodução do real cujo realismo aparente é, na
verdade, dinamizado pela visão artística do diretor.”
17
Como se na imagem que estamos analisando, uma cruz que foi
colocada ali pela vontade do realizador da obra fílmica. Essa imagem com a cruz
tem sentido subjetivo, uma vez que o diretor começa a construir a ação em função
das suas intenções, ele começa a impor sua subjetividade ao espectador.
Observemos o estilo artístico da cruz, ao inverso da expressão renascentista, cuja
harmonia do todo era garantida por cada detalhe da obra em perfeito equilíbrio, cada
detalhe separadamente como um todo harmônico, a cruz que vemos na imagem
nega a linha, nega a busca de elementos homogêneos, tem tendência sensualista,
caracterizada pela busca do detalhe num exagerado rebuscamento formal, próprio
do estilo barroco. Nesse sentido, a imagem da cruz nos remete a algo capaz,
através da composição de paradoxos, de instituir sentidos em diferentes planos. Na
realidade, podemos dizer que ela é a metáfora da narrativa que virá a seguir, pois o
espectador entrará em contato, neste filme, com o comportamento pernicioso não
dos padres, bem como do clero em geral, e o falso discurso moralista da sociedade.
Logo, um dos núcleos mais importantes dessa história é a denúncia das relações
promíscuas entre a Igreja e o poder. A negação do equilíbrio pela escolha do estilo
irregular, assimétrico, remete-nos ao conteúdo polêmico da história que vamos
analisar.
A figura da cruz constitui um ícone de caráter universal e, como vimos, de
significados diversificados. É o mais conhecido símbolo cristão. Ela nos remete ao
sacrifício que Jesus Cristo ofereceu pelos pecados das pessoas. Vejamos alguns
significados dados por alguns autores:
Romildo Sant’Anna:
Sua imagem não exprime a confluência dos opostos, mas junção do vertical
e horizontal em nossas vidas, o celestial e o terreno, o infinito e a finitude, o
17
Ibid., p. 25
39
sagrado e o profano, o paraíso incorpóreo e a existência pulsante.
Denotando o fim, conota o início da vida desfolhada no silêncio da noite,
mas que assegura a aurora e renascer. Assim, não forma plástica ou
engenho visual que mais nos simbolizem no tempo, no sonho e nos fatos.
Pela cruz, o sobrenatural nos tangencia nas dimensões da inocência e da
culpa. As coisas mais triviais se envolvem em mistérios, basta o enlace com
ela.
18
Chevalier e Gheerbrant:
A tradição cristã enriqueceu prodigiosamente o simbolismo da cruz,
condensando nessa imagem a história da salvação e a paixão do Salvador.
A cruz simboliza o Crucificado, o Cristo, o Salvador, o Verbo, a segunda
pessoa da Santíssima Trintade. Ela é mais que uma figura de Jesus, ela se
identifica com sua história humana, com a sua pessoa.
19
Houaiss:
Instrumento em que Jesus Cristo esteve crucificado e que se tornou símbolo
da religião cristã; qualquer representação da cruz onde Cristo foi morto ou
da crucifixão, em forma de adereço, objeto de devoção; para o cristianismo,
o mistério da expiação mediante a morte de Cristo no Calvário; o próprio
cristianismo; paixão e morte de Cristo; simbolicamente, redenção dos
cristãos por meio de tal paixão
20
De acordo com seus significados, a cruz recupera a trajetória bíblica e
encerra uma mediação com a figura de Cristo e, dessa forma, seu valor revela-se
muito importante para a vida dos cristãos. A veneração à cruz resume a crença em
um ente superior, invocada para aliviar os mais diferentes males, principalmente
espirituais, tornando-se, assim, símbolo que atrai e projeta experiências ricas e
significativas àqueles que rezam e pagam promessas por graças recebidas. Por
essa crença, as pessoas são arrebatadas pela possibilidade de ligação com um ser
superior, realizando nessa atmosfera sagrada uma união com as representações,
18
SANT’ANNA, Romildo. A Cruz. Disponível em: http://www.triplov.com/romildo/2008/cruz.html.
Acesso em 02/05/2008.
19
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005, p.
310.
20
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2001, p. 880.
40
que se tornam importantes no sentido de orientação, dentro de uma sociedade, e
uma possibilidade de comunicação.
A cruz, portanto, como símbolo cumpre uma função poderosa, pois
transforma um objeto em uma potente realidade de transcendência oportunizando
uma ligação com o sagrado. Muitos cristãos estão imersos num universo de imagens
e de símbolos e de outras representações, que adquirem significados que dão
sentido à sua existência.
A cruz aparece presente na vida religiosa das pessoas desde a sua
infância, remetendo a momentos importantes vividos na família e na comunidade,
representando a presença de Cristo, de fé e de proteção. Sendo assim ela remete à
justiça, à sabedoria, ao amor e ao poder de Deus. Ela é a personificação da simetria,
“a confluência dos opostos”. No entanto, a cruz que vemos na imagem está caída
para um lado. O homem gosta de se comparar à vertical, que cresce para cima,
logo, a cruz caída nos remete a algo que está fora de ordem. Assim, a cruz caída, da
cena inicial, adquire poderoso valor simbólico, prenunciando a história que vamos
assistir.
Observemos, também, como a iluminação pode ser utilizada como um
meio natural de dirigir a atenção do espectador para um determinado elemento
específico do quadro, enquanto outros o obscurecidos.
21
A cruz está iluminada,
ela é o objeto dominante da cena. A história que vamos conhecer é sobre o poder, a
hipocrisia da Igreja, o apelo sensual, os descaminhos, a injustiça e a morte. A cruz,
pela sua significação simbólica, representa o oposto disso: é a salvação, o amor, a
vida, a luz, o caminho, a justiça, a valorização do espírito. Portanto quando a cruz foi
posta caída, na primeira cena do filme, representando um personagem-objeto, que
prenunciará a tragédia na história, o espectador deve ficar atento para a
significação que vem dessa posição e o que virá na continuidade da história “é
preciso tentar enxergar muitas outras coisas não perceptíveis a qualquer um. É
preciso não apenas olhar, mas examinar; ver, mas também conceber; aprender, mas
também compreender”
22
Por tudo isso, reiteramos que essa imagem é uma metáfora do filme; a
cruz caída como símbolo de uma narrativa que vai discutir o cristianismo sob alguns
21
TURNER, op. cit. , p. 62.
22
MARTIN, op. cit., p. 145.
41
aspectos: da ministração do dogma cristão pelas personagens dos padres na
narrativa, suas práticas religiosas (a crítica vai muito além da mera consideração do
celibato clerical); da recepção e entendimentos das virtudes cristãs pelos fiéis da
narrativa: como as beatas agem em relação aos dogmas da Igreja, a atração sexual
dos padres; a mistura de catolicismo e crendices: a personagem Dionísia mistura
religião e crendices populares; a manipulação do poder da Igreja: a relação entre o
bispo e os padres com o narcotráfico, a perseguição ao padre Natálio e ao jornalista
Rubén; a visão de que os fins justificam os meios: as doações do narcotráfico para a
igreja local a fim de construir um hospital. Enfim, a necessidade de analisar a
simbologia existente nessa relação, tanto no que diz respeito aos dogmas cristãos
quanto às práticas religiosas realizadas pelas personagens da narrativa fílmica.
Também é importante para a compreensão da visão crítica da narrativa as
cenas do primeiro contato de Amaro com sua paróquia:
Fig. 02 – Padre Amaro na igreja.
Fig. 03 – Imagem religiosa.
Fig. 04 – Imagem religiosa.
Em plano geral, com a câmera localizada ao fundo, fig. 02, em altura
normal, vemos o padre Amaro entrando pela primeira vez na igreja da cidade.
Através da localização distante da câmera, Amaro aparece bem menor em relação
ao tamanho da igreja. Essa posição da câmera, que parte do geral para mostrar o
42
específico, introduz a construção da síntese da história do filme: o poder da Igreja
sobre as ações humanas. Amaro entra no seu interior e, em plano médio, a câmera
passa a ser testemunha ativa dos acontecimentos através dos olhos do padre ao
observar as imagens religiosas enfeitando as paredes da paróquia. Com a
iluminação que vem de fora, através da porta aberta ao público, a câmera mostra,
agora em plano fechado, figs. 03 e 04, os detalhes das esculturas. A Igreja Católica
está espalhada em todas as partes do Ocidente e as imagens religiosas inseridas no
seu interior já fazem parte do patrimônio cultural da humanidade. Elas são as
principais armas na evangelização e no ensino, usadas como estratégia de
aprimoramento e uniformização do imaginário popular. As imagens religiosas são
arquétipos formadores do inconsciente e dão origem às fantasias individuais, no
filme, serão testemunhas “passivas” das fantasias dos personagens principais.
Em outra tomada, em plano médio, fig. 05 a mera nos mostra padre
Benito, que dirige anos a paróquia da pequena cidade de Los Reyes, sentado e
ao telefone; atrás dele a câmera focaliza Sanjuanera, sua amante, levantando-se:
Fig. 05 – Padre Benito ao telefone.
Já, em outra, fig. 06, uma câmera, em plongeé, acompanha a
personagem saindo do quarto para ir ao banheiro. Esse ponto de vista acentua a
condição dessa mulher em relação à sociedade, ou seja, inferior, sempre em
segundo plano na vida do padre, sempre se escondendo, e confronta o
relacionamento dos dois com a moral vigente da sociedade mexicana:
43
Fig. 06 - Sanjuanera saindo do quarto.
Essa seqüência tem a função de denotar o verdadeiro sentido do que é
privado e da vivência dúbia dos clérigos em geral, resgata o sentido de distância
entre o homem e a mulher que dualizam sentimentos e ações e revela uma intensa
crítica ao catolicismo. É o primeiro registro, no filme, da realidade hipócrita existente
no meio eclesiástico.
Fig. 07 – Primeira missa do padre Amaro. Fig. 08 – Consagração da hóstia.
Nas seqüências acima, vemos a primeira missa do padre Amaro na igreja
da cidade de Los Réyes. Em plano geral, com a câmera fixa na entrada da igreja, fig.
07, vemos o seu interior, repleto de fiéis sentados nos bancos de madeira. Na
seqüência, um close-up das mãos do padre com a hóstia sendo partida, fig. 08, hora
da comunhão. Sabemos que há grande respeito entre os fiéis e a hóstia consagrada.
A Eucaristia tem um profundo significado para os cristãos (representa o corpo de
Cristo), por isso a mera explora e mostra de maneira minuciosa o transcorrer de
uma missa, e carrega o espectador para dentro do filme a fim de participar, junto
com os fiéis, daquele momento.
44
No Dicionário de Símbolos, a hóstia apresenta o seguinte significado:
No cristianismo, é o Cristo, cujo sacrifício na cruz e a partilha do pão na
Ceia são comemorados pela liturgia da Eucaristia. O corpo sacrificado e
ressuscitado do Cristo é, então, representado e simbolizado pelo pão sem
levedo em forma de disco fino, dito hóstia, distribuído na comunhão. Sua
forma e composição têm suscitado toda uma floração de símbolos no
sermonário: a pequenez da hóstia significaria humildade; sua forma, a
obediência perfeita; sua finura, a economia virtuosa; sua brancura, a
pureza; a ausência de levedo, a benignidade; o cozimento, a paciência e a
caridade; a inscrição que leva, a discrição espiritual; as espécies que não
perdem a identidade, sua permanência; a circunferência, a perfeição
consumada.
23
Quando a câmera carrega os espectadores para junto dos fiéis e fá-los
participar da liturgia da missa, quer que eles percebam o significado simbólico desse
ato litúrgico e associe-o às seqüências posteriores que irão mostrar o caráter do
padre Amaro e poderão comparar esse ato com os símbolos sermonários da Igreja:
a humildade, a obediência, a pureza, a benignidade, a caridade, a discrição
espiritual e a perfeição e, assim, um julgamento inconsciente estará se formando em
relação à personagem de Amaro.
Fig. 09 – Dionísia rouba dinheiro da cesta.
Fig. 10 – Dionísia esconde o dinheiro.
23
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, op. cit., p. 497.
45
Fig. 11 – Flerte entre Amélia e padre Amaro.
Fig. 12 – Dionísia percebe o flerte.
Em plano fechado, na mesma seqüência, na hora das oferendas, a
câmera flagra uma personagem importante para a história, Dionísia, mulher simples
e do povo, rouba dinheiro da cesta de coleta e o esconde, fig. 09 e 10. A câmera
parece aderir ao estado de pudor, sem brio, da personagem e revela-nos o seu
caráter.
A camera continua a observar de perto os acontecimentos da missa,
aproximando-se dos personagens e mostrando particularidades significativas das
suas atitudes. Em um plano fechado, a câmera capta a troca de olhares entre Amélia
e o padre no momento da Comunhão, fig. 11. A mesma câmera flagra Dionísia, logo
atrás de Amélia, fig. 12, observando os dois. Ela percebe o flerte. Pela insistência na
focalização da personagem, fica sugerido o seu papel decisivo no desenrolar da
história. Nas imagens a seguir, já se vê sua primeira intervenção:
Fig. 13 – Dionísia cospe a hóstia.
Fig. 14 – Dionísia e o jornalista Rubén.
Na seqüência, em plano fechado, a câmera revela outro flagrante de
Dionísia, após a Comunhão, ela cospe a hóstia e guarda em um lenço, fig. 13.
Veremos mais tarde a finalidade desse gesto. Depois se aproxima de outro
personagem da história, Rubén, jornalista e namorado de Amélia, e conta-lhe que
Amélia gostou do novo padre, fig. 14. Plantou a semente da desconfiança.
46
Fig. 15 Seqüência que mostra o interior da casa de Dionísia e o seu gato comendo uma hóstia
consagrada.
Um longo plano, na seqüência seguinte, capta o interior da casa de
Dionísia, fig. 15. Em planos fechados o cenário se descortina no quadro. Em linhas
gerais, o estilo da personagem se abre para os espectadores, são muitos objetos
espalhados por todo o modo. A diretora de arte, Carmem Gimenez Cacho, foi
muito feliz na criação do ambiente: há entre os vários objetos, padres castrados,
muitas bonecas quebradas, santos e gatos por todo lado. uma mistura de
imagens sagradas e profanas, do infantil ao perverso. Esse espaço interno denuncia
a mente perturbada da personagem e isso se evidencia quando a câmera, em plano
fechado, mostra Dionísia dando a hóstia consagrada, guardada no lenço, para seu
gato doente. Ela não respeitou a Comunhão, mas percebemos pelas seqüências
posteriores que isso não significa que ela não tenha fé: em sua simplicidade acha
que o corpo de Cristo pode curar seu gato. O plano se fecha, nas duas últimas
cenas dessa seqüência, e um close-up capta o gato comendo a hóstia da mão de
Dionísia. Se a stia significa pureza, benignidade, discrição espiritual, perfeição,
então, esse ato, juntamente com o paradoxo das imagens, pode significar a
desestruturação, a corrupção e a hipocrisia das ações das personagens a partir
desse momento.
47
Fig. 16 – Sanjuanera no restaurante.
Fig. 17 – Padre Benito.
Fig. 18 –
Amaro flertando com Amélia.
Fig. 19 – Amélia retribui o flerte.
Fig. 20 – Plano-contra-plano de Amaro.
.
Fig. 21 – Amélia servindo os padres.
O início da questão carnal entre Amélia e o padre Amaro fica evidente
nesta seqüência. Em plano médio, um restaurante se abre para compor o quadro: é
simples e comum, serve-se comida caseira e é o melhor da cidade. Pertence à mãe
de Amélia, Sanjuanera. A seqüência acontece quase toda em plano-contra-plano,
Amélia e Sanjuanera servem os padres Benito e Amaro, figs. 16, 17 e 21, enquanto
eles conversam. Parece uma coreografia entre câmera, atores e objetos do
restaurante, as personagens estão sempre próximas. É através desta postura
dinâmica da câmera que podemos perceber os espaços e a elaboração dos
enquadramentos como um sentido de interesse pela compreensão da cena: as
48
trocas de olhares entre o padre Amaro e a menina Amélia, fgs. 18, 19 e 20, revelam
um flerte carregado de intenções que permite sentir um pouco mais o que está se
passando entre os dois, bem como sugere a existência de um prolongamento do
sentimento que os envolve.
Fig. 22 – Amélia no confessionário.
Fig. 23 – Amélia expõe seus pecados.
Um close-up flagra Amélia no confessionário, fig. 22. Sua confissão ao
padre é carregada de sensualidade, ela expõe seus pecados num diálogo carregado
de erotismo. Concomitantemente, a câmera, numa abertura ampla, capta uma luz
nos rostos das personagens, fig. 22 e 23, dando idéia de pouca profundidade no
quadro. luz somente em pontos especificos: apenas em uma parte do rosto de
Amélia e de Amaro, para detalhar bem suas expressões, o resto do quadro
permanece na penumbra, ficando “envolto num leve flou muito impressionista”
24
.
Com esse efeito, o fotógrafo conseguiu transmitir um misto de atrevimento,
liberalidade (luz) e ao mesmo tempo vergonha e pureza (flou) para a personagem
Amélia. Percebemos nestas cenas que a Amélia do filme não será vitima de Amaro,
ela é moderna, ativa, direta e flerta abertamente com o padre.
Outro detalhe importante para a significação da cena é a tela que se
interpõe entre o padre e Amélia. Nesta seqüência, Amélia expõe seus sentimentos
íntimos, seus sonhos eróticos a um padre. A tela do confessionário separa o desejo
que aflora nas personagens. Amélia representa a vida material, com seus pecados,
defeitos e desejos; e Amaro, a vida espiritual. A tela entre eles é para lembrá-los
disso. A iluminação, aqui, também lembra os filmes noir dacada de 1940, em que
uma iluminação claro-escura era usada para indicar motivos ocultos operando nas
personagens: Amélia e Amaro sentem desejos, até então, ocultos; porém, a partir de
24
Martin, op. cit., p. 204. - O termo flou, usado na linguagem cinematográfica, significa penumbra, nas
sombras.
49
agora, serão revelados e explorados por eles. A separação entre matéria e espírito
representada pela tela será definitivamente ignorada pelas personagens.
Fig. 24 - Padre Mauro, Natálio e Amaro.
Fig. 25 – Entrada repentina de padre Benito.
Fig. 26 – Plano-contra-plano de Natálio.
Fig. 27 – Plano-contra-plano de Benito.
Em outra seqüência, em plano médio, vemos os padres Mauro, Natálio e
Amaro, fig. 24, reunidos em uma sala; mais tarde, na mesma cena, entrará, também,
padre Galván, e depois uma outra câmera mostra a entrada repentina de padre
Benito, fig. 25. A partir desse plano, a seqüência segue o lugar-comum do
encadeamento de plano-contra-plano para acompanhar o diálogo entre os padres,
figs. 26 e 27, focalização que sublinha certa tensão entre padre Benito e padre
Natálio, que discutem questões como o celibato e a Teologia da Libertação (surgida
na segunda metade do século XX). Esses dois temas são extremamente importantes
para o enredo da história.
Percebemos, através dos diálogos, que um refúgio de cada
personagem em seu mundo pessoal e em suas paixões e intenções. Eles seguem
caminhos diversos aos pregados pela doutrina da Igreja católica, e o jogo das
relações sociais por trás das máscaras sociais é desvendado para o espectador. O
olho por trás da câmera focaliza as personagens com um penetrante espírito de
análise.
50
A questão do celibato, por exemplo, será decodificada pelos espectadores
toda vez que aparecerem cenas entre o padre Amaro e Amélia, entre padre Benito e
Sanjuanera, pois haverá um significado simbólico funcionando entre eles, como um
espelho refletindo um problema real do mundo humano: o celibato dos religiosos
católicos. Assim, a metáfora que atua nas imagens das quatro personagens trata de
assuntos do mundo real. Apelar para uma atitude de subversão dos valores morais
de uma sociedade traz ao trabalho da montagem das cenas um sentido de
cumplicidade entre os idealizadores do filme e o público.
A outra questão estará relacionada à corrupção da Igreja: padre Benito
sempre recebe ajuda financeira de um traficante de drogas local (que por ironia, vive
um paradoxo: é muito religioso) para converter os fundos em um hospital de primeiro
nível. Padre Natálio, de uma diocese local, é constantemente acusado de proteger e
dar assistência a tropas guerrilheiras na região rural em que trabalha. Ele é um
idealista, (e será, na continuidade da história, excomungado pela Igreja), da Teologia
da Libertação, movimento que incorpora a luta contra a pobreza à pregação do
Evangelho.
Compete à Teologia da Libertação a tarefa de discursar sobre Deus a partir
da ótica de um processo excludente e a partir da realidade concreta dos
excluídos. O teólogo da libertação, portanto, deve ter este duplo olhar: olhar
para Deus e olhar para o excluído. Olhar para Deus é a fonte de toda
libertação possível e o olhar para o excluído identifica onde há necessidade
de libertação.
25
Um caso parecido ao de padre Natálio aconteceu no Brasil em 1984:
Leonardo Boff, um dos idealizadores da Teologia, foi chamado para dar explicações
no Vaticano. Seus questionamentos a respeito da hierarquia da Igreja renderam-lhe
um processo junto à Congregação para a Doutrina da Fé. Em 1985, foi condenado a
um ano de “silêncio obsequioso”. Em 1992, diante de novas acusações pela Igreja,
decidiu largar de vez a batina. Suas obras combinando a Bíblia com pregação
política não agradaram a hierarquia da Igreja Católica. De qualquer modo, o
afastamento do cargo eclesial não o impediu de continuar desenvolvendo seu
25
CABRAL, Alexandre Marques. A Teologia da Libertação: o Cristianismo a favor dos excluídos.
Disponível em: http://www.achegas.net/numero/dois/a_ cabral.htm. Acesso em 02/05/2008.
51
trabalho de militância
26
, como acontece com a personagem do filme, que escolhe a
militância em detrimento da Igreja.
Fig. 28 – Seqüência do caminho para a propriedade do traficante Chato Aguilar.
A seqüência dessas imagens inicia-se com um travelling acompanhando
um carro que leva padre Benito à Fazenda, moradia do traficante Chato Aguilar que
mantém a igreja da cidade. O plano geral exibe o caminho até o portão da casa do
traficante.
Nessa mesma seqüência, ouve-se pela primeira vez uma música para o
filme, do compositor Rosino Serrano, autor da trilha sonora. As poucas músicas que
se ouvem no filme são compostas por um misto de peças clássicas e por canções
populares, de Pablo Montero, entre outros.
Normalmente, a música é a contribuição mais interessante do cinema e
segundo Jaubert, citado por Martim, “deve contribuir para tornar clara, lógica e
verdadeira a bela história que deve ser todo filme. Tanto melhor se o fizer
discretamente, outorgando ao filme uma poesia suplementar, a sua própria.”
27
É isso
que a música no filme denota, é discreta, uma dimensão sonora adequada ao
drama e intervém somente nos momentos importantes do filme (que nem sempre
são os mais cruciais da ação), como uma espécie de fundo sonoro limitado em sua
duração, discreto em seu volume e neutro no plano sentimental: sua função é
somente acrescentar à imagem um elemento de ordem sensorial e age como uma
espécie de mensagem secundária que se dirige ao inconsciente do espectador.
28
26
Essa informação foi retirada de uma publicação especial para o Jornal Pagina 20 do Acre:
Morena, M. Leonardo Boff fala sobre ética para os acreanos. TiãOnline, Acre, maio, 2002. Seção
TiãOnline Recomenda. Disponível em:
http://www.senado.gov.br/web/senador/tiaovian/online/TIAOnline/2002/m.. Acesso em: 15 fev. 2007.
27
MARTIN, op. cit., p. 127.
28
Ibid., p. 129.
52
A música clássica presente no filme é dotada desta qualidade
eminentemente desejável: discrição dramática e pudor ao sentimentalismo. Ela é
breve, livre e independente à tonalidade psicológica e moral do filme. Ela acrescenta
novos elementos à ação, mas não ilustra emoções.
Na continuidade da seqüência, uma panorâmica percorre o cenário que
se abre para os espectadores: a intimidade da casa do traficante, a festa de batismo
de seu filho e a intimidade entre ele e o padre Benito. Os planos se alternam em
conjunto, americano e fechado, para apontar toda a festa. Vejamos as cenas:
53
Fig. 29 Seqüência que mostra a Fazenda do traficante Chato Aguilar e a intimidade entre ele e o
padre Benito.
A música presente, agora, é uma canção tropical, uma balada regional
que confere uma tonalidade alegre ao ambiente festivo. Um aspecto relevante a ser
abordado neste sentido: as canções populares sempre surgem quando o grupo dos
traficantes ou da comunidade rural aparece nas cenas e as sicas clássicas
quando o clero é focalizado. Percebemos que as escolhas musicais presentes no
filme se subordinam às classes sociais dos personagens: a popular agrada à classe
menos favorecida e excluída; e a clássica, à mais intelectualizada.
Muitas fotos do traficante, sua família e do padre Benito juntos são
tiradas. Observemos o jogo de planos utilizados nas imagens em preto-e-branco.
Conforme o fotógrafo vai clicando sua máquina, os planos se alternam em conjunto,
depois médio, fechado e por último um close-up. O espectador percebe a
importância dessas fotos para a continuação da ação. A sucessão desses planos
cria dinamismo e constrói um leve suspense para a cena: vai do todo para o ponto
que enfatiza a familiaridade, a amizade muito próxima entre traficante e padre.
54
Fig. 30 – Guerrilheiro e fotógrafo no banheiro.
Fig. 31 – Assassinato do fotógrafo.
Fig. 32 – Fotógrafo caindo.
Fig. 33 – Travelling da cena.
Fig. 34 – Travelling da cena.
Fig. 35 – Travelling da cena.
Um corte seco. Outra seqüência. A imagem agora é no interior do
banheiro da Fazenda. Um plano médio e outro americano, figs. 30 e 31, apontam o
assassinato do fotógrafo por um membro da comunidade do padre Natálio, o
idealista da Teologia da Libertação. Um travelling, com panorâmica vertical de cima
para baixo, fgs. 32, 33, 34 e 35, percorre o corpo do fotógrafo e revela o chão
coberto de sangue. A canção regional Soy el chingón, de Chigones, da banda Los
Razos, contribui para a construção do ritmo da cena, acentuando, pelo contexto, a
dimensão trágica das imagens. Houve, assim, um confronto entre as linguagens
sonora e visual, acrescentando à violência da cena um tom carnavalesco.
55
Fig. 36 – Seqüência que mostra o escritório do jornal onde trabalha o jornalista.
Outro corte seco. A cena agora é no jornal da cidade, num plano geral,
vemos o cenário criado para representar o escritório do editor, na primeira imagem
dessa seqüência: escrivaninha, cadeiras, quadros na parede, telefone e vários
papéis espalhados pela mesa, ambiente comum a todos os escritórios. No mesmo
plano, em outra cena, vemos as fotos tiradas na casa do traficante sendo entregues
ao jornalista Rubén. O plano se fecha, na última cena da seqüência, e a foto é
revelada para o espectador. Neste momento, Rubén decide seu futuro. Los Reyes é
uma cidade pequena, do interior do México, onde todos se conhecem e ele vai
mexer com dois poderes antagônicos e também, no filme, próximos: a Igreja e o
tráfico. Através das fotos e do artigo que ele vai escrever, a relação do padre com as
drogas e toda a hipocrisia e corrupção da Igreja serão denunciadas e reveladas.
Carlos Carrera, diretor do filme, disse em entrevista, quando lançou o
filme, que a abordagem da hipocrisia e do cinismo contribuiu para a controvérsia
gerada pela Igreja. Segundo afirma ele, a relação da Igreja com o tráfico é muito
comum no México:
56
A Igreja está ligada aos grupos econômicos, que são muito poderosos. As
relações entre os clérigos e os narcotraficantes são muito freqüentes. Não
foi por acaso que o meu projeto esteve cinco anos na gaveta. Durante todo
esse tempo, nenhum produtor de cinema estava interessado em fazer o
filme, porque no México a indústria cinematográfica está ligada ao poder
político e à Igreja. Deparamo-nos com muitas pressões. Aliás, em vários
países da América Latina O Crime do Padre Amaro pôde ser exibido à
noite. (...) Eu sabia que o filme poderia ser considerado como uma espécie
de falta de respeito, porque a cultura é algo vivo.
29
Após a denúncia, o jornalista Rubén será dispensado do Jornal,
demonstrando o poder da Igreja local sobre a mídia na cidade onde se passa a
história. Segundo Carrera, casos similares a este em termos de pressão é comum
em cidades pequenas do México. houve muitas represálias contra jornalistas que
tocaram no assunto da relação Igreja/Tráfico; a mídia sofreu repressões no passado
e manteve silêncio ou, aparentemente, mudou de opinião. Parece que agora é
diferente, mais liberdade de expressão, nenhuma questão ou ponto de vista são
mais censurados.
30
Fig. 37 – Jornalista Rubén digitando a carta denúncia.
29
OLIVEIRA, op., cit.., Entrevistas Carlos Carrera.
30
Esse depoimento foi retirado do DVD do filme
57
Fig. 38 – A carta denúncia.
Um outro aspecto da linguagem cinematográfica que devemos observar
nas imagens acima são alguns procedimentos narrativos secundários que aparecem
e devem ser comentados. Esses procedimentos têm como objetivo “fazer progredir a
ação, contribuindo com um elemento dramático ou com a significação de uma
atitude ou um conteúdo mental dos personagens. Esses procedimentos são, sem
dúvida, menos importantes (...) mas nem por isso deixam de ser especificamente
cinematográficos.”
31
Vemos o jornalista, em um plano médio, fig. 37, digitando a matéria com a
denúncia da relação padre/Igreja. Esse procedimento apresentar uma manchete
no jornal cujo texto comenta o conteúdo da ação visual tem um papel importante
na ação, pois proporcionará a uma comunidade conservadora a prova do
envolvimento dos padres com o narcotráfico. Essa atitude da personagem fará com
que ele perca o emprego. Observemos como a câmera focalizou o jornalista, do alto,
em plongeé, enquadramento que antecede o que vai acontecer com ele e o
mostra como um joguete da fatalidade, ilustrando a sua pequenez diante do poder
da Igreja. Um plano fechado mostra o conteúdo (não-elipse) da matéria digitada, fig.
38.
31
MARTIN, op. cit., p. 183.
58
Fig. 39 – Reunião dos padres para discussão da matéria jornalística.
Numa outra seqüência, distinguimos, na primeira cena, em plano geral, os
padres reunidos para discutirem o conteúdo da matéria jornalística. O cenário,
agora, é uma sala na casa paroquial. sofás, mesinha de centro, estante com
livros, um quadro com o retrato do Papa João Paulo II, tudo em tons claros, sem
ostentação. Aqui o cenário não significa senão aquilo que é, não tem outra
implicação, é uma sala comum cuja luminosidade vem da janela aberta ao lado da
estante.
A partir de plano dio, a seqüência segue em plano-contra-plano.
Alternadamente os padres comentam o assunto do jornal. A seqüência termina em
padre Benito, que se explica, justifica suas ações, defende aquilo em que acredita,
ou seja, não se deve ser exigente com o dinheiro que vem para as obras de
59
caridade para a comunidade. No caso, o dinheiro do tráfico era para a construção do
hospital da cidade, segundo ele “é dinheiro ruim que se converte em bom” ou seja,
prega a máxima de que “os fins justificam os meios”.
Apesar de saber que sua atitude não tem justificativa ética, defende sua
posição. A câmera, nesta seqüência, é somente uma testemunha muda, converte a
focalização em objetividade visual para que o espectador tire suas próprias
conclusões quanto à atitude do padre Benito e à reação da Igreja.
Fig. 40 – Amélia na igreja.
Fig. 41 – Imagem como testemunha.
Fig. 42 – Imagem como testemunha.
Fig. 43 – Detalhe para o rosto de Amélia.
Fig. 44 – Detalhe para a mão de Amaro.
Fig. 45 – Somente o par se destaca.
60
Fig. 46 – O primeiro beijo do casal.
Fig. 47 – Imagem como testemunha.
A seqüência dessas imagens inicia-se em plano médio e revela Amélia
ajoelhada na igreja, fig. 40. Depois a câmera focaliza as imagens religiosas, figs. 41
e 42, e volta, em close-up, fig. 43, a fixar-se em Amélia com detalhe para o rosto da
jovem, enfatizando sua angústia interior. Um segundo plano aponta a mão de padre
Amaro nos ombros e depois no rosto da jovem, fig. 44 e 45. É obvia a intenção que
suas mãos revelam neste momento decisivo para a trama. Nesta cena ocorrerá a
relação entre os dois, que partirão do desejo abstrato ao desejo concreto, do plano
platônico, com flertes e olhares, ao material. uma estranha e subjetiva urgência
no intento da realização do “amor” entre eles. Os amantes têm pressa, mesmo
sabendo que um hiato entre a ação que pretendem e a reação da sociedade à
qual pertencem, pois vão ferir as rígidas normas e regras da sociedade e da Igreja. A
partir desse momento, eles assumirão desejos e estará declarada a mutação na
trajetória inicial prevista para cada um deles
32
. A profundidade de campo os
aproxima da câmera e isola-os do mundo exterior, uma intenção entre a narrativa
e a elaboração plástica da imagem, uma relação de proximidade entre câmera,
atores e os detalhes da iluminação. um jogo de sombra e de luz que a
profundidade de campo proporciona, onde a sombra não é o inverso da luz, mas
acompanha a luz, para melhor valorizá-la e colaborar na sua plena manifestação.
33
Os tons suaves das cores compõem o ambiente, são poéticas e optam pela
discrição, o momento pertence somente aos dois personagens da cena, não
necessidade de cores fortes para chamar atenção, eles são o centro das atenções.
32
CAPUZZO, H. Lágrimas de Luz – o drama romântico no cinema. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999,
p. 74.
33
CHEVALIER; GHEERBRANT, op. cit. p. 277.
61
A câmera começa um jogo de imagens: o fundo se desfoca e somente o
par é destacado, fig. 46, o plano se fecha nos dois, eles se beijam, parece que
um breve e quase imperceptível congelamento da imagem, como se quisesse
eternizar esse instante de intimidade. A câmera se move em um segundo plano e
revela a imagem de Cristo, fig. 47, um Cristo que sofre, chora, testemunha.
Percebemos a importância desse movimento da câmera, que se torna mais densa,
causando um grande impacto opondo o plano religioso e superior (a imagem de
Cristo) e o plano profano e inferior (a união carnal) deste modo intensificando
consideravelmente a ação da imagem sobre o espectador. A densidade dramática
funde-se nos dois planos de imagem Amaro-Amélia/Cristo, numa expressão de
duração indeterminada, mas intensa, transmitindo uma palpitação como se a
imagem estivesse viva. Essa sensação constitui uma espécie de síntese do ponto de
vista de uma câmera subjetiva.
34
Fig. 48 – Seqüência do flagrante.
Detalhe para um novo plano, a câmera, numa rotação do eixo horizontal
(panning), flagra uma terceira personagem e minimiza a sensação de isolamento, de
tensão e de sensualidade que a cena proporcionava. Ao fundo da igreja, em plano
médio, na primeira cena da seqüência, Dionísia observa os dois. Observemos como
34
MARTIN, op. cit., p. 205-206.
62
a iluminação “constitui um fator decisivo para a criação da expressividade da
imagem.”
35
O casal vive um drama sombrio e o jogo de luz e sombra interveio como
fator de dramatização: o flagrante. Alguém da sociedade descobriu a paixão
proibida. Na última cena, a câmera volta ao plano anterior, e avistamos Amélia se
afastando.
Fig. 49 – O casal novamente no confessionário.
Em outra seqüência, novamente o casal aparece no confessionário. A
câmera agora é subjetiva, seu olho se identifica com o do espectador por intermédio
da emoção dos dois personagens. Mais ainda, o espectador identifica-se a eles,
numa forte combinação de desejo e ao mesmo tempo de fuga, de medo. Um diálogo
consistente se inicia. Falam de amor. O que dizem têm significados diferentes. Um
deles fala do amor espiritual; o outro, do amor carnal. uma fuga dele e uma
insistência dela. A tela do confessionário é, novamente, um obstáculo para o desejo
deles, obstáculo material e simbólico, representando um muro entre a liberação dos
desejos carnais e o celibato imposto pela moral da Igreja. Um plano fechado para
seus dedos, na última cena, que tentam se tocar através da tela. A profundidade de
campo consegue um efeito lírico através da suavidade do foco no rosto de Amélia. A
câmera entra no interior de suas emoções, de seus sentimentos e o amor, o
35
Ibid., p. 56.
63
desejo explodindo através de seus olhos, de suas faces sorridentes. um corte
seco.
Fig. 50 Padre Amaro entrando na casa do
sacristão.
Fig. 51 Padre Amaro e o sacristão dentro da
casa.
Fig. 52 – Amaro entrando no quarto.
Fig. 53 – Amaro senta na cama.
Fig. 54 – Amaro e o sacristão conversam.
Aqui, a câmera, em plano americano, fig. 50 acompanha padre Amaro
caminhando para a casa do sacristão da igreja, senhor Martin, pai da doente
Getsemani. Um segundo plano, fig. 51, revela os dois entrando nas dependências
da casa. O cenário, nessa seqüência, é importante, pois essa é a casa onde haverá
os encontros de padre Amaro e Amélia. Ao reconhecermos o interior da casa como
sendo de classe social baixa (quarto simples, paredes mal cuidadas, cores
desbotadas pelo tempo), estamos lendo os signos desta decoração para lhes dar um
64
conjunto de significados sociais e, assim, a narrativa avança por intermédio do
arranjo de elementos no quadro e os personagens podem se revelar para nós.
Martin e sua filha são pessoas simples, do povo, dependentes da caridade da igreja,
personagens secundários, mas que terão uma expressiva participação no desenrolar
da narrativa. Martin pontuará um acontecimento com um comentário que ajudará a
movimentar a ação: ele será o delator dos encontros amorosos entre Amaro e
Amélia. Martin não é ousado em suas aspirações, é servil, e mostrar-se-á fiel apenas
a um personagem da trama, padre Benito, a quem falará sobre os encontros em sua
casa.
Pelos olhos de padre Amaro, que por sinal se confundem com os olhos
dos espectadores, a câmera vai revelando todo o cenário. Um plano mais fechado
do padre entrando em outro quarto, fig. 52, parecido com o primeiro, paredes sujas,
descascadas, objetos pendurados na parede, uma cama. O plano se abre, fig. 53, e
vemos o padre sentar-se na cama. Detalhe no mesmo plano, um gato corta o quarto
passando por baixo da cama e entre os personagens da cena, figs. 53 e 54. Amaro
neste momento avalia o cômodo, pois será ali o encontro amoroso entre os amantes,
arquitetando uma simulação, uma mentira para Martin.
Sabemos que tudo o que é mostrado na tela tem um sentido e, na maioria
das vezes, uma segunda significação
36
, o cenário é mostrado e nenhum detalhe é
aleatório. Segundo o Dicionário de Símbolos “O simbolismo do gato é muito
heterogêneo, pois oscila entre as tendências benéficas e as maléficas, o que se
pode explicar pela atitude, a um tempo, terna e dissimulada do animal.”
37
Portanto o gato não entrou neste cenário por acaso, uma relação simbólica entre
ele e o padre Amaro, este também aparenta ser, nesse momento, uma pessoa terna
e gentil, mas sabemos que está ali por motivos escusos.
Notemos, por exemplo, que os olhos do ator do filme são verdes, olhos de
gato, cujo simbolismo está ligado à idéia de traição, principalmente na tradição
literária. Lembremos-nos dos olhos de Capitu, os célebres olhos de ressaca, do
romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Olhos poderosos, ambíguos que
atraem e arrastam, envolventes, sensuais, astuciosos. Os olhos do padre Amaro
podem ser comparados aos olhos de Capitu, dominadores, infiéis ou suspeitos.
36
Idem, p. 92.
37
CHEVALIER; GHEERBRANT, op. cit., p. 461.
65
Aristóteles ressaltava a primazia da visão na interação com o próximo. Os
psicólogos, também, sabem muito bem que as intenções, desejos, fantasias e
frustrações estão nos olhos; no entanto, não é preciso ser filósofo ou psicólogo para
reconhecermos nos olhos do padre as suas verdadeiras intenções.
Parece-nos que a câmera ao focalizar os dois no mesmo ambiente, o gato
passando pela cena e o padre conversando com o sacristão, conseguiu realizar
plenamente um jogo de significados, fazendo deles, em parte, o próprio significado
da cena. A corporeidade, imanente na expressão do olhar do padre, busca e acha
suas simbologias na passagem do gato pelo quarto e traz subjacente um significado
real, a dissimulação, sua verdadeira intenção.
A relação das duas imagens padre/gato, confrontadas na mente do
espectador, irá produzir um choque psicológico que facilitará a percepção e a
assimilação da idéia do diretor: Amaro, através da dupla face, da dissimulação, tenta
não revelar as verdadeiras intenções de seus atos exteriores e, assim, no que diz
respeito ao relacionamento afetivo, sexual com Amélia, ele estará, por hora,
protegido.
66
Fig. 55 – Seqüência que mostra o primeiro encontro carnal do casal.
Finalmente, o encontro carnal entre os jovens, Amélia e Amaro. Os dois
estão no quarto da casa do Sacristão, Martin. A imagem do fundo está na penumbra,
desfocada e um plano médio, depois fechado, destaca o casal nas primeiras cenas.
A iluminação define e modela os contornos dos rostos e corpos do casal e produz
uma atmosfera emocional. São dois jovens enamorados. Reparemos no
detalhamento com que a câmera mostra as cenas. O beijo no rosto, travelling nos
seios, os olhares que trocam revelam uma sensualidade latente e, ao mesmo, tempo
quase virginal. Vários segundos dessa seqüência são gastos para os planos que
detalham o rosto, os seios, o beijo, as carícias, a descrição do corpo da jovem. A
subjetividade do olhar masculino confunde-se com o olhar da platéia. uma
cumplicidade entre o olhar da câmera e o olhar do público. Uma expressiva
construção de planos, iluminação e respiração compõe essas imagens.
Amaro, enquanto a despe, recita o poema Cântico dos Cânticos, do Rei
Salomão, da Bíblia, adaptado para esta cena do filme:
Como o lírio/ Entre os espinhos/ Assim é minha amada/ Entre as mulheres/
Teus cabelos/ São como um rebanho de cabras/ Que se esparramam pelo
Galaad/ Teus lábios/ São uma fita de púrpura/ Teus seios são/ Crias
gêmeas de gazela/ Pastando entre lírios/ E são jóias/ As curvas de tuas
cadeiras/ Teu umbigo/ É uma ânfora redonda/ Em que não falta o vinho/
Teu ventre é um feixe de trigo/ Rodeado de lírios/ A fonte do jardim/
Manancial de águas vivas/ Corrente que brota do Líbano/ Teus lábios
destilam néctar/ Minha amada/ Em tua língua/ mel e leite/ Tuas vestes
têm/ A fragrância do Líbano
38
.
38
Esse poema foi transcrito do filme.
67
O papel dessa voz é importante para mostrar a dicotomia entre imagem e
som e traz para a cena um impacto bastante sensual e constitui um material
expressivamente rico para a completude do ato entre o casal.
Depois a seqüência continua em silêncio. Não intervenção de voz nem
de música, somente o som dos corpos e da respiração, sons da situação real, sem a
habitual justaposição imagem-som, própria do cinema, em que a trilha sonora
acrescenta significados e intenções à cena. naturalmente um forte apelo erótico
que dispensa qualquer outro elemento artificial sonoro: o silêncio sublinha a
naturalidade da cena, deixa-a menos sentimental, uma vez que o ato do casal é
condenado pela igreja e pela moral da sociedade, ou seja, essa ausência de sons
nem glorifica, nem critica a cena, é neutra. Em seguida há uma elipse obedecendo a
um movimento da câmera que, após mostrar as carícias do casal, afasta-se
discretamente.
Fig. 56 –
Seqüência que mostra Amélia com o manto de Nossa Senhora.
68
Nessa seqüência, fig. 56, novamente o encontro do casal no quarto. A
iluminação privilegia os protagonistas, modela seus corpos e produz uma atmosfera
aparentemente inocente e ao mesmo tempo sensual. Vemos emoções literalmente
indescritíveis percorrerem silenciosamente as expressões do casal. Estes recursos
provocam no espectador uma sensação de paralisação, parece que tudo fica em
silêncio para revelar somente o drama da ação. Em plano médio, na segunda cena
da seqüência, vemos Amaro se aproximar de Amélia e vesti-la com um manto azul,
bordado, confeccionado pela mulher do prefeito da cidade para ser doado à imagem
de Nossa Senhora que fica no altar da igreja. Depois, o plano se abre e revela o
casal brincando, rindo e se abraçando. Aqui, também, o fundo sonoro é composto
somente de sons produzidos por seres humanos, o sica para intervir como
contraponto social ou psicológico para fornecer ao telespectador um ponto de vista
subjetivo da complexidade da cena. O espectador é quem vai se pronunciar sobre o
ato do casal. A seqüência, a princípio, parece um jogo inocente entre adolescentes,
pois o objeto que, dramaticamente, poderia tomar parte maior das atenções, é
suavizado pela descontração do jovem casal. A câmera enfatiza esse jogo ambíguo
entre imagem e comportamento. Sabemos pelo contexto geral da narrativa que
Amaro é um personagem complexo, capaz de emanar uma inquietante ambigüidade
emocional e moral. Isso fica reforçado nessas cenas. O sacrilégio cometido por ele
ao usar o manto em Amélia (como se a igualasse a Nossa Senhora) é suavizado
pelo jogo tecnológico fílmico para deixar transparente ao espectador essa dupla face
do personagem.
O desrespeito à Igreja, o desprezo pelas convenções cristãs ficam mais
intensificados quando pensamos no significado de Nossa Senhora para a grande
maioria das pessoas religiosas. Segundo as crenças cristãs, na simbologia da
imagem de Nossa Senhora há os significados de defensora, protetora, patrona.
Defensora dos pobres, protetora dos que sofrem e patrona dos oprimidos. E,
sobretudo, símbolo da pureza, do milagre da concepção sem o “pecado” da relação
carnal. Títulos como esses expressam a fé do povo na Senhora que traz uma
mensagem de libertação e de esperança. Tudo isso envolvido por um manto azul: o
céu, a esperança do paraíso.
A Consagração que o povo faz à Nossa Senhora é como uma auto-
entrega, como um filho que se joga nos braços da mãe, para que ela cuide dele,
69
fazendo-o feliz. Todo esse simbolismo imanente na atitude de sacrilégio do padre
torna a cena ainda mais dramática ao pensarmos que possivelmente esse ato
poderá ser o índice da tragédia que virá a acontecer com Amélia
Há, também, uma exploração de possibilidades de se buscar nos
arquétipos de nossa cultura outras significações para os acontecimentos dessa
seqüência. Busquemos, então, nas tecnologias do imaginário, dispositivos de
intervenção, formatação, inferência e construção das bacias semânticas que
determinarão a complexidade do jogo de inocência e sedução que sublinha essa
cena do jovem casal.
39
Podemos inferir, aqui, a história de Édipo, personagem de
uma tragédia grega, que mata o pai e casa-se com a mãe. Sigmund Freud um
significado simbólico para esta história, o complexo de Édipo: quando um rapaz
atinge seu período sexual tende a fixar a sua atenção nas pessoas do sexo oposto
no ambiente familiar. O conteúdo dessa história se relaciona com o nosso rapaz do
filme, Amaro. Ele fixa em Amélia sua atenção libidinosa e a transforma em uma
pessoa da família, que no caso, por ele ser religioso, em Nossa Senhora, ou seja, a
representação religiosa da “mãe”.
A força que advém da simbologia do manto faz surgir também uma outra
significação secundária e latente sob o conteúdo imediato da imagem, uma metáfora
que atua no seu significado simbólico , como um espelho que reflete os problemas
do mundo humano, real, um tipo de ataque a um voto fundamental da igreja: o
celibato, lei disciplinar da Igreja Católica desde o século XII. A câmera, no entanto,
mostra-o de maneira delicada, com uma sensualidade quase infantil, parecendo
mais uma cena de amor verdadeiro que uma cena constrangedora e imoral, segundo
os preceitos da Igreja e da sociedade. Há, também, nesta seqüência, verdadeiros
paradoxos: o pecado, a pureza, a lei disciplinar e a liberdade, a verdade do
sentimento (dela), e a impossibilidade de assumir compromisso, apesar da paixão
(dele), concretizando, assim, com a complexidade das imagens à grandiloqüência
dos sentimentos contraditórios do casal e do espectador. Fica no ar a explosão de
sentimentos que emana dessa seqüência. É inegável a sua força dramática, mas as
interpretações sobre a forte carga metafórica de suas imagens são reservadas aos
espectadores.
39
SILVA, Juremir machado da.. As tecnologias do imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2003, p. 20.
70
Fig. 57 – Seqüência da revelação da gravidez.
Nestas imagens, temos o ponto crucial do filme, fim das brincadeiras
inocentes, dos flertes, do namoro inconseqüente. Começa o dilema do casal, e a
violência corrosiva da história adquire seu valor dramático. Em plano médio se
alternando com close-up e a partir destes, com seqüências encadeadas em plano-
contra-plano, vemos as expressões de preocupação, espanto e tristeza do casal.
Amélia revela sua gravidez e percebemos, nitidamente, a incerteza na face dele e a
decepção na dela. Aqui, outra metáfora simbólica do mundo real, uma situação
comum na nossa realidade. Não há, nessa seqüência, somente um contexto
religioso. O problema da gravidez inesperada é uma situação real que pode
acontecer com qualquer um, em qualquer época ou momento, em qualquer situação,
com o peso da responsabilidade recaindo principalmente sobre a mulher. Os olhos
do padre deixam transparecer o egoísmo, a hipocrisia do ser humano na sua reação
imediata de repúdio, atitude muito comum por parte dos homens em situação
semelhante. Nesta cena, há, também, um apelo para a racionalidade ética do
receptor, problematizando o conteúdo simbólico da gravidez para todas as camadas
sociais. O conflito do casal resume-se na ótica do conflito humano e na
incompreensão emocional do cotidiano das pessoas. Ao assistir a essa cena, o
espectador projeta a realidade virtual da ficção, vista pelas imagens, para a sua
realidade e reconhece os defeitos humanos que podem prejudicar tanto outra
71
pessoa. “No cinema, a construção de um universo social é autenticado pelos
detalhes da mise-en-scène
40
, ou seja, para tudo que está no quadro da tomada,
que, nesta seqüência, fica bem marcada pelo olhar de repúdio e pela atitude de
negação do padre. O espectador reconhece e se identifica com esse aspecto
explicitamente social da cena.
Após essa seqüência, os problemas da personagem Amélia irão adquirir
maior tensão temporal. A subjetividade proposta pela reação do padre ao saber da
gravidez prepara o espectador para a intensidade que cada detalhe das cenas
posteriores terá na trajetória da vida de Amélia. A particularização do conflito da
personagem permitirá uma eficiente participação do espectador quando a câmera
revelar detalhes que permitirão reconhecer a atmosfera dramática da narrativa,
preparando catarticamente o espectador para os acontecimentos que irão ser
apresentados nas seqüências seguintes. A atenção agora estará voltada para a
construção da atitude dos personagens centrais da trama. As articulações do
conteúdo das cenas terão que ser coerentes com os recursos da linguagem fílmica,
para mostrar a transformação do frágil amor do casal num turbilhão visual de cenas
dramáticas e violentas.
Fig. 58 – Seqüência da confissão dupla.
40
TURNER, op. cit., p. 66.
72
Em plano médio, na primeira imagem, a câmera focaliza padre Benito, na
capela, ajoelhado e rezando. Ele sabe, através do sacristão Martin, dos encontros
entre Amaro e Amélia. A câmera modifica o ponto de vista da mesma cena de um
plano a outro, tornando-a mais densa ao conferir ao mesmo espaço a presença do
padre Amaro, em plano inferior, com imagem desfocada, sentado atrás de padre
Benito. A câmera, primeiramente fixa, depois com rotação ao longo do eixo
horizontal (panning) movimenta-se em plano-contra-plano para mostrar o confronto
entre os dois personagens, expressa a sua tensão mental e a densidade dramática
atinge um ponto máximo quando padre Benito faz uma confissão dupla: dos seus
pecados e dos pecados de Amaro. Essa cena termina em violência e a história
começa a tomar seu rumo trágico, com o derrame de Padre Benito.
Fig. 59 – Seqüência que mostra a decadência
moral do padre.
A partir dessa seqüência, veremos a decadência moral do padre Amaro.
Observemos, na primeira imagem, a expressão de seu rosto: a câmera, em plano
médio, revela uma pessoa rancorosa. E mais, suas ações justificam seu semblante,
pois ele dispensa os serviços do sacristão Martin, segunda imagem da seqüência,
aproveitando-se de sua posição superior, revelando-se como um ser capaz de
mesquinhez e egoísmo. A vileza do padre é acentuada na última cena dessa
seqüência: Martin junta os parcos pertences, a filha doente e parte submisso, sem
reação, numa muda aceitação da injustiça de uma sociedade dividida entre ricos e
73
poderosos, e pobres desvalidos. Ressoa, aqui, o teor crítico do texto de Eça de
Queirós, ácida voz contra a Igreja e o clero de sua época; Vicente Leñero, roteirista
do filme, conserva-o com fidelidade através das imagens.
É sabido que no imaginário popular a igreja é a defensora dos pobres,
que pratica a caridade e que tem por finalidade a assistência material e espiritual
prestada aos mais pobres da sociedade, ação fundada em valores como altruísmo e
bondade. Corroborando essa imagem, a Igreja Católica, desde o início de sua
expansão na Europa, prega a caridade como valor a ser cultivado para quem deseja
a salvação. Contra essa imagem aparente de piedade insurge o ato de Amaro,
deixando perceber uma câmera subjetiva que toma partido diante das implicações
morais do espetáculo.
A dimensão aqui é ainda mais complexa; a piedade é o valor aparente, a
Igreja revela na verdade outros valores: apego à autoridade, à riqueza, aos valores
materiais. O bispo e outros padres da história confirmam esses valores. O único
padre que realmente pratica a piedade é excomungado.
Assim, Amaro é um exemplo usado para criticar a Igreja com um todo.
Portanto, sua atitude é inaceitável não para a Igreja, mas para um crítico que
valorize as virtudes morais: o olhar crítico da câmera.
74
Fig. 60 – Cenas de violência e de extorsão.
Na seqüência inicial dessas imagens, vemos Amélia, em plano médio,
conversando com Amaro sobre a gravidez. O padre repudia a criança. A câmera em
movimentos ágeis acompanha cada detalhe das expressões do casal. A
particularização desse conflito permite uma calorosa participação emocional do
espectador, pois, novamente, é uma metáfora simbólica do mundo real. É uma
cena violenta, em que o detalhe do diálogo é acompanhado de perto pela câmera,
que revela a intensidade dramática da situação, com ênfase novamente na
hipocrisia e no egoísmo do padre. Amaro perde o controle e esbofeteia Amélia,
arrepende-se, abraça-a: a violência das imagens é acompanhada de perto por uma
câmera ágil, alterando os planos médios, close-up, americano. A trilha sonora
restringe-se aos sons humanos: respirações ofegantes, desesperados.
Intensificando a alta voltagem emocional, a câmera enquadra somente o drama do
casal, deixando o resto do quadro na penumbra..
um corte nessa seqüência de agressão explícita e ela retorna, nas
duas últimas imagens, mostrando o casal na cama: outra cena violenta, agora não
mais física, mas emocional. Envolve extorsão, manipulação, perversidade: Amélia
diz a Amaro que o jornalista Rubén, seu ex-namorado, está na cidade. Insinua que
talvez ele queira se casar com ela. Amaro não rejeita essa possibilidade, ao
contrário, pergunta se ela quer isso. Detalhe do plano para as mãos entrelaçadas
do casal, na última cena, Amaro suplicante e Amélia impotente, solidão às voltas
com a fatalidade. Há, nesse detalhe das mãos, uma espécie de fusão evanescente
da hipocrisia humana, a integração entre a corrupção de quem tem o poder e a
impotência dos mais fracos. Amélia aceita. Neste ponto, o filme mostra seu objetivo,
atinge a raiz de uma situação real, além do que se vê na tela. Os personagens estão
sozinhos, confusos, desesperados e nada os deterá agora.
75
Fig. 61 – Cenas do bispo na banheira.
O bispo, nesta seqüência, em plano médio, é mostrado em toda sua
humanidade: nu. Ao telefone, lida com o poder, a administração, os problemas.
Pede ao Padre Amaro que entregar a carta de excomunhão, pessoalmente, ao
padre Natálio, acusado de proteger e dar assistência às tropas guerrilheiras da
região rural. Na ação da narrativa, Natálio é o único padre realmente piedoso, que
reforça o imaginário popular de que a Igreja é a defensora dos pobres, como foi
discutido anteriormente.
Ao mostrar o bispo nu, vemos outra metáfora dramática incorporada no
enredo do filme: a máscara da hipocrisia da igreja novamente é revelada. A imagem
da nudez do bispo desempenha um papel direto na ação, proporcionando um
elemento explicativo para a compreensão do ato do personagem: a saída do padre
Natálio da diocese favorece as relações entre a igreja e o chefe do tráfico de drogas,
que ajuda a Igreja com donativos altos para suas obras. A câmera subjetiva revela a
não-ética do bispo neste segmento e novamente a voz crítica de Eça se sobressai
mostrando uma sociedade regida pelo poder e pelos valores materiais sobrepondo-
se ao valor de solidariedade e responsabilidade. As vozes de Eça e Leñero se
fundem para contestar ao absurdo e à injustiça de um sistema que vigora uma
política capitalista que defende valores ligados à disputa de poder e ao lucro.
76
Novamente, o cinema, nesta montagem, procura produzir um padrão de
relação capaz de remeter a platéia a uma discussão sobre a realidade social,
construindo uma metáfora para acionar a consciência e especialmente a percepção
do que está acontecendo, da mesma forma como fazia Eça no seu texto engajado
no desvelamento da hipocrisia religiosa. Esta narrativa cinematográfica traz
criticamente a realidade social para o discurso fílmico, revelando também seu
engajamento.
(...) um cinema disposto a advogar em defesa da supremacia do imaginário,
tal cinema intelectual concentra-se, sem heroísmo e sem a liturgia dos
poderes criadores da subjetividade, na produção de metáforas capazes de
provocar uma reflexão sobre as relações que a consciência estabelece
entre o mundo e o modo como, nesse comércio consciência/mundo,
consolidam-se determinadas estruturas de espaço e tempo
41
.
Fig. 62 – Seqüência que mostra Amaro pedindo ajuda a Dionísia.
A câmera, na primeira imagem, revela padre Amaro no interior da casa
de Dionísia. A iluminação, nessas cenas, privilegia os rostos dos personagens para
41
XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico: a opacidade e a transparência, 3ª ed. São Paulo: Paz
e Terra, 2005, p. 124.
77
enfatizar o movimento da câmera que segue suas emoções, tentando ler nos olhares
dos atores como a história evolui para eles. A partir do plano médio, a seqüência
segue mostrando a situação: padre Amaro pede à Dionísia que arranje um médico
para fazer um aborto, não lhe dizendo para quem. Neste momento, vemos, num
encadeamento plano-contra-plano, a câmera focalizar ora o rosto de Amaro, ora o
de Dionísia. Percebemos o desconcerto dele e a desconfiança dela. Amaro nunca
ousa dizer claramente o que quer, procura sempre passar a responsabilidade de
seus atos para outros resolverem. É o que faz agora, oferecendo dinheiro para
Dionísia resolver seu problema e cala-se. Vemos o semblante irônico de Dionísia, na
última imagem, ao perceber as verdadeiras intenções do padre.
Percebemos que Amaro, realmente, não está mais preocupado com a
ética e com a moral, pois tomou uma decisão e fez uma escolha dentre diferentes
cursos de ações. Todos os seus movimentos e ações agora estarão sendo pautados
por essa decisão. A conseqüência desse ato será dramática e trágica.
Fig. 63 – Cenas da suspensão ad divinis.
Nessa seqüência, em plano médio, na primeira imagem, Amaro encontra
padre Natálio e lhe entrega a suspensão ad divinis por mostrar sua indisciplina
obstinada e colocar-se ante um grupo considerado terrorista pela Santa Sé,
desobedecendo ao Código Canônico, que estabelece obediência exclusiva ao
78
Romano Pontífice. O espaço aqui representado é o do campo onde padre Natálio
mora e prega os ensinamentos da Bíblia aos considerados guerrilheiros. A
iluminação é natural, vemos frestas de luz do sol entrando por entre as ripas de
bambu que sustentam a cabana simples e pobre do padre.
Padre Natálio simboliza as pessoas que lutam por uma causa que
consideram justa. Sabe que seu fim está próximo. O primeiro aviso acaba de
chegar, o ad divinis, depois possivelmente virão as recriminações da sociedade e,
por fim, os capangas do chefe do tráfico para matá-lo. Sob o olhar de Amaro,
Natálio a suspensão da Igreja. Um plano fechado, na última cena da seqüência,
mostra os dois se abraçando. Os olhos do padre Natálio demonstram tristeza e
preocupação. Após alguns momentos de silêncio, os dois voltam a conversar. Uma
cena sugestiva, prenhe de significados: padre Amaro pergunta a Natálio o que ele
pensa sobre o aborto. Neste momento, Amaro perde a chance de sua possível
salvação. Ele não conta o motivo da pergunta, não pede ajuda, conselhos. Poderia
ser um momento epifânico, de revelação e transformação, seus sentimentos são
verdadeiros, demonstra dúvidas pelos atos tomados, poderia ter se salvado com a
ajuda do outro padre. Mas o momento se rompe.
Fig. 64 – Cenas que revelam o desespero do padre.
79
Após a conversa com padre Natálio, Amaro vai à igreja. Neste ponto da
trama, podemos pensar no passado, observar o presente e imaginar o futuro das
personagens. Antes, eles brilhavam, agora, fracassam, o porvir haveremos de
imaginar. Amaro, na seqüência acima, percebe que perdeu sua chance da salvação.
A câmera, em close-up, sugere uma tensão ou uma confusão emocional na imagem
do padre com as mãos no rosto, em desespero e depois ajoelhado, rezando e
pedindo proteção à Santa. Coloca em destaque o conflito do personagem. Chega
Amélia e lhe diz que aceita o aborto. A iluminação é dramática, esculpindo as
sombras e os seus rostos, criando uma obscuridade voltada para a interioridade das
personagens. A câmera observa de perto a angústia dos dois, parece ficar grudada
neles e de repente eles saem de foco. Vemos, então, em contra-plongeé, na última
cena, a imagem da Santa, observando-os. Os olhos dela se confundem com o olhar
subjetivo da câmera, como uma manifestação sensível da condenação da Igreja e
da sociedade.
Nessa seqüência, damos-nos conta de como a dramaturgia narrativa e
visual pode ser tensa e fazer com que o espectador fique grudado nos atos
contraditórios das personagens e no desenrolar do drama. O conflito interno dos
dois é revelado através das bem elaboradas técnicas filmicas, que demonstram uma
ousada interação entre a narrativa e a elaboração plástica da imagem. A câmera
testemunha o conflito, fazendo com que o espectador condene o futuro ato das
personagens.
80
Fig. 65 – Cenas que mostram Amélia sendo levada para a clínica.
Em enquadramento fechado, na primeira cena dessa seqüência, vemos
Amélia e Amaro se encontrando para irem à clínica. Os dois se abraçam. Dionísia os
acompanha. Na cena seguinte, um travelling da estrada e uma panorâmica
percorrem o caminho para o local. Quando chegam, Amaro e Dionísia aguardam
fora e Amélia entra. Uma porta lisa, cinza, sem textura se fecha quando ela entra no
quarto. Um vazio. Um nada. Do lado de fora, na última cena, Amaro reencontra um
senhor conhecido e se depara com a lembrança de como ele era quando chegou à
cidade. No início do filme, Amaro o ajudou, foi prestativo, deu-lhe dinheiro, parecia
um bom moço. Agora, este senhor é segurança na Clínica. Agradece a Amaro a
ajuda recebida. Em pouco tempo, no decorrer da narrativa, a ética, a honestidade, a
integridade foram colocadas à prova. A mobilidade da câmera evidencia a
ambigüidade da relação dos dois personagens, e pode-se observar a dificuldade de
Amaro ao se deparar com o lado bom de sua personalidade. Essa percepção o
constrange. Para o espectador a lembrança de suas ações boas anteriores se
superpõem como decalques sobre as imagens atuais e um sentimento de empatia
se mistura com a de aversão pelo personagem.
81
Fig. 66 – Cenas dramáticas do aborto de Amélia.
De repente, um grito. Amaro e Dionísia saem correndo e entram na
clínica. A seqüência é rápida. Um travelling acompanha a ação. Amaro carrega
Amélia, desacordada e com muito sangue, para o carro. A cena é dramática. O som
somente humano passa uma impressão da realidade e aumenta a credibilidade da
imagem. Consegue sublinhar com força a tensão dramática do momento. A câmera
objetiva fornece ao espectador uma compreensão da totalidade das ações dos dois
personagens, dando-lhe uma dimensão violenta e corrosiva da realidade dos
abortos nas clínicas clandestinas.
Sabemos que o aborto é uma prática proibida em muitos países do
mundo, criando situações de perigo para mulheres que decidem interromper a
gestação. Essa proibição faz com que o aborto seja feito em condições precárias,
com o uso de equipamentos sem a devida esterilização. Esse tipo de prática resulta
em doenças, infecções generalizadas e morte. Amélia representa, nesta seqüência,
82
milhares de mulheres que perdem o apoio da família ou do pai da criança ao
saberem que estão grávidas. Mulheres pobres, sem acesso à saúde privada, que
recorrem a clinicas clandestinas para interromperem a gravidez. Essa representação
da realidade faz parte do poder que o cinema tem. Ele pode nos possuir e às vezes
confundir o que é ficção e o que é verdade. Vemos imagens realistas que, no
entanto, são representações superdimensionadas do real. Porém, a avidez da nossa
observação é inevitável. A intensidade do som e da imagem nos torna mais
suscetíveis ao poder da mensagem
42
e através de instrumentos de persuasão da
linguagem fílmica, rendemo-nos à emoção e experimentamos a forte impressão de
que o filme pode nos tocar diretamente e fazer-nos pequenos diante da realidade
mostrada.
Amaro sabe do perigo que Amélia corre, porém é ciente também de que a
Igreja Católica se opõe e proíbe o aborto e exerce uma pressão muito forte sobre a
sociedade para manter essa lei. Assim, covarde, egoísta e frio submete Amélia a
essa situação de perigo.
42
TURNER, op. Cit. , p. 111.
83
Fig. 67 – Cenas que mostram a morte de Amélia.
Um plano fechado, na primeira cena da seqüência, mostra Amaro e
Amélia dentro do carro. O padre nervoso, desesperado perante a situação que criou.
Amélia, tima, agoniza se esvaindo em sangue. Uma câmera subjetiva enfoca o
conflito individual do padre, que tenta acordá-la, não acreditando na perda abrupta e
irreversível. Suas mãos manchadas de sangue representam a crueldade, a fraqueza,
a falta de inteligência, de força para resolver o problema. Amaro cometeu um crime,
egoisticamente fez uma monstruosidade em nome de sua carreira.
Fig. 68 – Imagem religiosa como testemunha.
Vejamos como a montagem fílmica se processa para formar uma
linguagem coerente com a ação dramática da narrativa. Após a morte de Amélia, o
prefeito da cidade e sua esposa conversam sobre o acontecido. Os dois estão à
mesa, tomando café, em uma rotina da manhã, e falam sobre o acontecido: a
irresponsabilidade do jornalista, suposto pai da criança, em levar Amélia para fazer
aborto em clínica clandestina. Resolvido o problema do padre. Ninguém fica
sabendo, a culpa recai sobre o ex-namorado de Amélia, o jornalista Rubén. O
encadeamento das duas ações em uma seqüência lógica dos acontecimentos se
processou na mente do espectador e se fez a compreensão: a ação foi transportada
com facilidade da cena do aborto para a casa do prefeito, e a explicação para a
84
sociedade do que aconteceu com Amélia foi dada com bastante consternação pela
primeira dama. Houve uma continuidade temporal, em espaços diferentes para a
coerência da narrativa.
Observemos a imagem da Santa, em primeiro plano, na casa do prefeito.
Novamente, uma observadora passiva dos acontecimentos dramáticos das ações
das personagens. O dinamismo visual da relação de continuidade do plano anterior
para este suscita as relações possíveis psicológicas na mente do espectador para a
compreensão da totalidade da narrativa. A imagem contestadora das figuras
religiosas, presenciando, silenciosamente, o drama humano, sempre presentes nos
momentos de hipocrisia, confirma novamente a máxima do filme: uma crítica à
sociedade a partir do comportamento de determinados personagens e uma denúncia
social frente ao abuso do poder.
Essas imagens contestadoras foram sugestões do texto de Eça, pois em
várias passagens no romance, o narrador faz referencias à presença de imagens
sagradas, ora como objeto de desejo, ora como testemunha condenatória dos atos
do casal, funcionando como objetos-personagens. Amélia, no romance, sentia um
amor físico pelos objetos religiosos; e as imagens silenciosas testemunharam os
primeiros momentos de sedução do casal. A crítica na voz de Eça foi aproveitada
por Leñero e Carrera, que a transcodificaram para as telas do cinema.
Podemos fazer um paralelo entre as imagens sempre presentes, no
romance, no filme e o coro grego no teatro da Antiguidade Clássica. Muitos
dramaturgos da sociedade da antiga Grécia tiveram papel fundamental na história
da literatura. Eles compunham seus dramas para apresentações nos anfiteatros
sempre acompanhados de música. O coro, na Antiguidade, dialogava com os atores,
havia uma espécie de conversa entre eles, surgindo, assim, a ação dramática, cerne
da tragédia grega. Não há esse diálogo explicito entre as imagens do filme analisado
e os personagens do drama, mas um diálogo silencioso, os olhos das imagens
acompanham todos os momentos dramáticos das cenas, como uma recriminação
aos atos presenciados. A sua recriminação silenciosa fica por conta da percepção
do espectador.
Na dramaturgia de nossa época, Woody Allen, diretor, roteirista, ator e
músico, utiliza o coro grego no filme “Poderosa Afrodite” (1995) para apresentar a
trama e anunciar os passos que se seguirão. Neste coral estão personagens da
85
mitologia grega que entoam canções para explicar os acontecimentos ao
espectador. Allen mostra a sua visão dos clássicos da tragédia grega, utilizando o
coro como elemento narrativo e também como guia e conselheiro da personagem
principal. Woody Allen é ferrenho crítico da sociedade, provoca reflexões das
próprias mazelas humanas. Ele utiliza o coro grego como recurso irônico para narrar
essas mazelas, o diretor Carlos Carrera usa as imagens como recurso dramático:
são os olhos da sociedade através dos olhos das imagens recriminando os atos dos
personagens. São sentimentos verdadeiros o que vemos nos olhos da Virgem.
Fig. 69 – Cenas finais do filme: padre Benito condena o ato de Amaro.
Última seqüência do filme. Planos alternados, entre geral, médio e
fechado vão nos mostrando as cenas finais da ficção narrativa. A direção cria uma
atmosfera de realismo pela descrição da cena: o corpo de Amélia velado no interior
da igreja, enfeitada com muitas flores é revelado para os espectadores e o som da
primeira trilha sonora realizada para o filme enche o ambiente. A sonoplastia, neste
86
momento, se comunica diretamente com as emoções dos espectadores e age sobre
os seus sentidos intensificando a sensibilidade para as tomadas finais: a câmera,
em plano fechado, mostra-nos o sofrimento da mãe e o repúdio do padre Benito,
que, sentado em cadeira de rodas, fita Amaro com olhar acusador e dá-lhe as costas
em sinal de repúdio, afastando-se da cerimônia. Neste ato uma violência não
explícita que é registrada pela câmera seguindo-o pelo corredor da igreja. Por outro
lado, a iluminação realça o aspecto sombrio do ambiente, pois as velas provocam
sombras que realçam a atmosfera de tristeza. Olhando para o interior da igreja, tudo
parece perfeito, bonito, nada fora do lugar. uma coreografia subjacente entre a
câmera, os atores, os objetos da igreja num espaço onde se misturam calor
humano, solidariedade, não-ética, não-moral, hipocrisia.
Fig. 70 – Últimas cenas do filme: a câmera se afasta.
O movimento retroativo de travelling, da câmera, intensifica a tragicidade
da história por meio das cenas finais, criando uma densidade dramática e atingindo
87
um ponto máximo: a crítica contra a ação do padre Amaro. Esse movimento
expressa um estilo distintivo que traz a manifestação de um olhar ético, de
dignificação perante os acontecimentos. A câmera se afasta da cena, lentamente,
repudiando a ligação com o narcotráfico, a extorsão ao jornalista, a demissão do
sacristão, a negação da criança, o não apoio à Amélia, o aborto, o abuso do poder, a
falta de ética. Esse tipo de recurso da câmera passa aos espectadores a impressão
de impotência e de solidão de algumas personagens presentes na cerimônia, por
sua duração insistente e pela tristeza do conteúdo da cena. A imoralidade deixa de
ser a quebra do celibato, e passa a ser a atitude criminosa de Amaro. Na verdade,
ele é o assassino de Amélia. Um personagem que causa repúdio ao olho crítico da
câmera e também aos dos espectadores. Um arquétipo do mal com quem nenhum
homem se identifica.
É curioso, incrível como a ficção pode nos comover e incitar para uma
reflexão sobre a vida e a sociedade. Uma história carregada de dramas individuais,
psicológicos e sociais que faz pensar e refletir, faz com que nos voltemos ao nosso
interior e percebamos como somos ignorantes e sabemos pouco de nós mesmos.
Precisamos que milhares e milhares de imagens enviem mensagens do reflexo de
nós mesmos para percebermos quem somos. Isso é cinema. Isso é o que faz um
bom filme. Jean-Claude Carrière assim se pronuncia sobre esse assunto:
Assim, num nível mais profundo, devemos questionar se a imagem
cinematográfica é necessária às nações. A habilidade de contar a nós
mesmos nossas próprias histórias, utilizando os meios mais modernos, de
estudar a nós mesmos, em nossos próprios espelhos, será apenas uma
forma de realçar a vida ou será essencial para a vida em si?
Acredito que seja essencial para a vida
.
43
O cinema é essencial para a cultura nacional, para as pessoas, para a
vida. Cinema é uma história vista na tela que nos enriquece, diverte e emociona. “Dá
a impressão de que é a própria vida que vemos na tela, brigas verdadeiras, amores
verdadeiros. Mesmo quando se trata de algo que sabemos não ser verdade (...) a
imagem cinematográfica permite-nos assistir a essas fantasias como se fossem
43
CARRIÈRE, op. cit., p. 168
88
verdadeiras”.
44
Enfim, cinema é pura arte. Arte de iludir, de sonhar, de fazer pensar,
de fazer mudar e transformar. O caráter mágico das imagens cinematográficas
aparece com clareza por entre as técnicas fílmicas que ajudam na construção da
ilusão. O poder da câmera objetiva e subjetiva que cria e recria a realidade. Os
enquadramentos transformando a realidade exterior em matéria artística. Os
diversos tipos de planos para clarear a percepção da narrativa. A iluminação criando
uma atmosfera expressiva. A música agindo na nossa sensibilidade. Enfim, o
vestuário, o cenário, a cor, as elipses, as metáforas, a montagem e tantos outros
recursos que auxiliam na construção da fantasia maravilhosa que é o cinema. Uma
arte de iludir que estimula a sociabilidade, a participação na coletividade, e,
principalmente, a imaginação. Essa amplitude de significados que a linguagem
cinematográfica nos concede remete às palavras de Ana Maria Gottardi, na
apresentação de seu livro A retórica das mídias e suas implicações ideológicas, e
conclui esse capítulo:
A linguagem da mídia é um jogo retórico de sedução para prender o
receptor, para encantá-lo, entretê-lo, seduzi-lo, convencê-lo ou cooptá-lo, de
acordo com sua natureza, suas intenções ou sua época e reflete, em suas
estratégias e artimanhas, os conteúdos ideológicos do contexto cultural, da
situação, de uma intenção específica.
45
44
BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 12 - 13.
45
GOTTARDI, Ana Maria (Org.). A retórica das mídias e suas implicações ideológicas. São Paulo:
Arte & Ciência, 2006, p. 9.
89
CAPÍTULO III
3. ROMANCE E FILME: PERSPECTIVAS PARA UMA LEITURA COMPARATIVA
... a adaptação é uma transcriação de linguagem que altera o suporte
lingüístico utilizado para contar a história. Isto equivale a transubstanciar, ou
seja, transformar a substância, que uma obra é a expressão de uma
linguagem. Portanto, já que uma obra é uma unidade de conteúdo e forma,
no momento em que fazemos nosso conteúdo e o exprimimos noutra
linguagem, forçosamente estamos dentro de um processo de recriação, de
transubstanciação
46
.
Como vimos, a questão da adaptação pode ser discutida em muitas
dimensões. Neste capítulo, faremos uma leitura comparativa entre o romance e o
filme: se aproximação entre alguns elementos básicos de uma obra de ficção
narrador, personagens e conflito, como se realizou o jogo intertextual entre eles e
até que ponto são dependentes ou independentes. Sabemos que toda narrativa
ficcional, seja um romance, um roteiro ou qualquer outra obra, repousa na
construção de um espaço, onde alguma coisa acontece, e de uma ação, organizada
num enredo, que se desenrola colocando em conflito os personagens ao longo de
um determinado tempo. A sucessão das ações se faz por meio do discurso, através
da voz perceptiva de um narrador, formando uma sucessão de enunciados postos
em seqüência.
No romance de Eça de Queiroz, O Crime do Padre Amaro, a história se
passa em Leiria, uma pequena vila de província, em Portugal, por volta de 1878. A
ação se desenvolve através de dois personagens, o padre Amaro e a jovem Amélia,
que se envolvem em uma paixão proibida. O padre corrupto seduz e leva à morte a
infeliz Amélia, sob a proteção do confessionário e da superstição. Pela voz de um
narrador, o discurso flui em sucessivas seqüências que relatam o comportamento
humano frente a uma sociedade decadente. nesta obra uma análise minuciosa e
aprofundada da sociedade e uma busca da verdade por trás das aparências. O
estilo preciso e irônico, próprio de Eça, expressa uma visão de mundo altamente
crítica.
46
COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1995, p. 330.
90
Esta obra é fruto do moderno pensamento filosófico e científico da
geração de 70, cuja influência está nas idéias de Proudhon, Taine, Darwin, Spencer,
Hegel, Renan e Quinet. O mundo físico passava a ser visto e avaliado sob o prisma
da ciência e da experimentação e os valores místicos e religiosos enaltecidos pelo
Romantismo eram veemente atacados. Eça, nessa época, era membro do grupo
Cenáculo, anti-românticos que organizavam conferências públicas em que se
discutiam diversas questões: os princípios socialistas, a sociedade portuguesa, o
clero e a educação romântica. Como confirma Moisés Massaud:
Apoiando-se nas idéias de Proudhon, prega a revolução que se vinha
operando na política, na ciência e na vida social. Para tanto, havia que
considerar a Literatura um produto social, condicionado a determinismos
rígidos. A fim de ilustrar suas observações, Eça critica acerbamente o
Romantismo e defende o Realismo, como a corrente estética que realiza o
consórcio entre a obra de arte e o meio social
47
.
Assim, a obra de Eça não tem simplesmente a intenção de contar a
história de Amaro e Amélia, essa o é a questão central do texto, mas o modo
como o autor tece a narrativa e traz aos leitores os dados que permitem a este uma
visão crítica do segmento social focalizado. Assim, o objetivo primeiro do livro é a
crítica social de uma determinada época, evidenciando a ideologia do autor.
Vamos começar nossa leitura comparativa traçando os perfis dos
narradores do romance e do filme, se o autor deste conservou a ideologia daquele.
3.1 Narrador
Aguiar e Silva
48
faz uma distinção sobre o conceito de autor e narrador
que aproveitaremos na nossa leitura comparativa, uma vez que temos nas obras
analisadas, romance e filme, vozes que se mesclam entre os autores dos dois textos
e as entidades portadoras de discurso que permanecem sempre no primeiro plano
47
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1990, p. 161
48
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria e metodologia literárias. Lisboa: Universidade aberta,
2002, p. 85.
91
da leitura, da consciência e da audição-visão, como é o caso das imagens, e por
isso a distinção entre autor e narrador afigura-se de grande importância.
Segundo ele, quando alguém escreve algo (uma carta, um texto, uma
reportagem, um depoimento, uma experiência) verificam-se atos de enunciação em
que o eu do sujeito da enunciação, num momento e num lugar determinados, produz
enunciados, se identifica com um sujeito empírico e historicamente existente (possui
identidade). Portanto quem escreve um texto literário é um indivíduo empírico, que
existe. o sujeito da enunciação literária, o eu que se manifesta no texto, que fala
no texto, pode ou não se identificar com o indivíduo que escreve.
bastante tempo que existe a consciência de que o eu do texto literário
não é identificável com o eu empírico. No entanto, pouco tempo que a
metalinguagem do sistema literário estabelece de modo fundamentado a distinção
entre autor empírico, autor textual e o narrador.
O emissor oculto ou presente no texto literário é uma entidade ficcional,
imaginária, que mantém com o autor empírico relações que podem ir do tipo
marcadamente isomórfico (semelhantes) ao tipo marcadamente heteromórfico
(diferentes). Em qualquer caso, nunca essas relações se poderão definir como uma
relação de identidade, nem como uma relação de exclusão mútua. Deve definir-se
como uma relação de implicação. A designação mais adequada atribuída ao emissor
do texto ficcional, responsável pela enunciação literária, é de autor textual
“entidade que, aceitando, modificando, rejeitando convenções e normas do sistema
literário, programa e organiza a globalidade do texto (...) tem de ser considerado a
instância da qual dependem as vozes que concretamente falam nos textos literários:
o narrador nos textos narrativos, o sujeito lírico ou o falante lírico nos textos líricos
49
.”
Feita essa distinção, podemos observar que o autor empírico, Eça de
Queiroz e Vicente Leñero, do romance e do filme respectivamente, manifestou-se no
texto no momento da construção da obra literária, da escrita, como um autor textual
marcadamente isomórfico e com relação de implicação e, assim, construiu um
narrador fictício que representará o discurso narrativo. Tanto na escrita quanto nas
imagens, vemos as vozes irônicas e denunciadoras dos autores empíricos por trás
dos autores textuais e sucessivamente dos narradores dos dois textos. Tomemos
49
Ibid., p. 86.
92
um exemplo no romance, quando Dr. Gouveia fala de religião a João Eduardo,
pretendente de Amélia:
- Meu rapaz, tu podes ter socialmente todas as virtudes; mas, segundo a
religião de nossos pais, todas as virtudes que não o católicas são inúteis
e perniciosas. (...) Se tu fores um modelo de bondade mas não fores à
missa, não jejuares, não te confessares, não te desbarretares para o
senhor cura és simplesmente um maroto. Outros personagens maiores
que tu, cuja alma foi perfeita e cuja regra de vida foi impecável, têm sido
julgados verdadeiros canalhas, porque não foram batizados antes de terem
sido perfeitos.(...) o meu vizinho Peixoto, que matou a mulher com pancadas
e que vai dando cabo pelo mesmo processo de uma filha de dez anos, é
entre o clero um homem excelente, porque cumpre os seus deveres de
devoto e toca figle nas missas cantadas.
50
Como vimos, a voz de Eça se faz presente neste excerto, ele se coloca
sob a bandeira da Revolução e denuncia, em coerência com as idéias da época,
uma das instituições vigentes: a Igreja. Pela figura do narrador, ele se põe
claramente para nós. O personagem Gouveia representa em todo o seu pensar o
sistema de idéias em nome do qual é feita a crítica ao clero, da vida sacerdotal e da
prática religiosa.
No filme, também percebemos a voz do autor empírico, Vicente Leñero.
Mas, aqui, far-se-á necessária uma explanação sobre o papel do narrador em texto
fílmico. O narrador é uma figura que sempre se coloca entre s e os
acontecimentos como mediador de uma entidade maior cuja voz nos resume o
ocorrido. Na narrativa fílmica isso fica claro através da posição da câmera na
montagem de uma determinada cena e ao inserir textos no fluxo das imagens. Ela
não mostra simplesmente essa cena, “há toda uma literatura voltada para o seu
papel como narrador no cinema, que nos permite dizer que a câmera narra, e não
apenas mostra
51
.” Isso porque ela se parece com um narrador ao escolher
determinados ângulos de algo que está filmando para mostrar ao espectador: ela
define esse ângulo, “a distância e as modalidades do olhar que, em seguida, estarão
sujeitas a uma outra escolha vinda da montagem que definirá a ordem final das
50
QUEIRÓS, Eça. O crime do padre Amaro. São Paulo: Ática, 2004. p. 183.
51
PELLEGRINI, op. cit., p. 74.
93
tomadas de cena e, portanto, a natureza da trama construída por um filme”
52
. Assim,
quando, no final do filme, a câmera se posicionou em um travelling para trás para
narrar o repúdio ao crime praticado pelo padre, ela mediou, à visão critica do autor
empírico e consequentemente à do diretor, a expressão do aniquilamento moral da
sociedade e produziu intratextualmente a interpretação do universo do mundo
narrado.
Ao iniciar uma obra, o autor empírico precisa, antes de qualquer coisa,
optar entre duas atitudes relativamente à instância enunciadora do discurso: manter-
se ausente dos acontecimentos ou introduzir-se neles. Quando o narrador em obras
literárias, como o romance, introduz-se na história, dizemos que ele é narrador de
pessoa, ou seja, é uma personagem. Quando se mantém fora dos acontecimentos, é
narrador de 3ª pessoa, não participa como agente da história narrada.
No romance de Eça, temos, portanto, um narrador de pessoa, que se
reveste de um caráter interventivo, através de juízos. Os comportamentos das
personagens e as suas motivações são objeto de uma narração onisciente: o
narrador descreve e analisa tudo o que se passa no interior delas, penetra no
âmago das consciências como em todos os meandros e segredos da organização
social”
53
, possui uma visão panorâmica e total de tudo.
Como própria da visão determinista da existência humana que marcou o
realismo, o narrador do romance, que tudo conhece na sua trama, antecipa-se na
apresentação de uma série de aspectos que levam a supor os defeitos
caracterizadores da moral do padre Amaro. Desta maneira, traça um retrato dele,
que se estrutura a partir de sua origem, seu aspecto físico, sua psicologia, seu
temperamento e sua indolência, o que lhe permite aceitar passivamente um destino
que não escolhera:
A senhora marquesa resolvera desde logo fazer entrar Amaro na vida
eclesiástica A sua figura amarelada e magrita pedia aquele destino
recolhido: era afeiçoado às coisas de capela, e o seu encanto era estar
aninhado ao das mulheres, no calor das saias unidas, ouvindo falar de
santas.
As criadas, ... , utilizavam-no nas suas intrigas umas com as outras: era
Amaro o que fazia as queixas. Tornou-se enredador, muito mentiroso.
52
PELLEGRINI, loc. cit.
53
AGUIAR E SILVA, op. Cit., p. 299.
94
Era extremamente preguiçoso, e custava de manhã arrancá-lo a uma
sonolência doentia em que ficava amolecido ...
Nunca ninguém consultara as suas tendências ou a sua vocação.
Impunham-lhe uma sobrepeliz; a sua natureza passiva, facilmente
dominável, aceitava-a, como aceitaria uma farda.
54
Como se vê, o narrador comunica a moral do padre através de sua
própria voz narrativa. A personagem é modelada de acordo com a teoria
determinista de Hippolite Taine (1825-1893), pela qual a arte deveria reproduzir
situações condicionadas pelo meio, pela herança e circunstâncias. Amaro é
conduzido ao sacerdócio sem nenhuma vocação, por imposição da Marquesa de
Alegros, que o adotara. Tanto Amaro como Amélia, desde a infância, se mostram
impulsionados por um ambiente de exaltações sentimentais. Amélia tem um
processo educacional similar, sempre em volta da religião, como podemos
identificar:
A mamã era muito visitada por padres
Foi assim crescendo entre padres
Deus aparecia-lhe como um ser que sabe dar o sofrimento e a morte, e
que é necessário abrandar, rezando e jejuando, ouvindo novenas,
animando os padres.
55
Então o sonho mudava: era um vasto céu negro, onde duas almas
enlaçadas e amantes, com hábitos de convento e um ruído inefável de
beijos insaciáveis, giravam, levadas por um vento místico; (...)
56
Neste último exemplo, o sensualismo mostrado pelo narrador está ligado
aos estudos de uma retaguarda ideológica, própria do movimento realista a que Eça
pertencia cientificismo, positivismo, republicanismo, teoria de Taine, de Claude
Bernard
57
, entre outros. Eça, através da voz do narrador, introduz seus estudos
nestas áreas para a caracterização das personagens.
Em outros momentos, a subjetividade da narração onisciente se faz
presente dentro do espírito realista, privilegiando elementos da narrativa que lhe
54
QUEIRÓS, op. cit. p. 30-31.
55
Ibid., p. 59-60.
56
Ibid., p. 63.
57
MOISÉS, op. cit. , p. 191.
95
permitem demonstrar teses sociais. O narrador faz crítica ao misticismo e à
educação religiosa baseando-se nos estudos da época, especialmente em Joseph-
Ernest Renan (1823-1892), que era radical em seu anticlericalismo e nome de
primeira grandeza na evolução do racionalismo do século XIX. No seminário, Amaro
em uma litografia da Virgem uma mulher sensual; ironicamente, mais tarde, nos
encontros sexuais com Amélia, ele chega a adorá-la como se fosse a Virgem:
“... esquecia a santidade da Virgem, via apenas diante de si uma linda moça loura;
amava-a; suspirava, despindo-se olhava-a de revés lubricamente; ...”
58
“Foi assim que uma manhã lhe fez ver uma capa de Nossa Senhora, ...
- Oh filhinha, és mais linda que Nossa senhora!”
59
O narrador também demonstra esse anticlericalismo e o sensualismo
místico na figura de Amélia:
“sentia um vago amor físico pela igreja; desejaria abraçar, com pequeninos beijos
demorados, o altar, o órgão, o missal, os santos, o u, porque não os distinguia
bem de Amaro, e pareciam-lhe dependências da sua pessoa.”
60
A convicção intelectualista da época a respeito da existência de
conhecimentos de natureza científica repercute também nos personagens
secundários, quando o narrador parece convencido de seu caráter negativo, como
podemos notar na descrição do pároco José Miguéis:
“comilão dos comilões... palavras muito rudes... arrotava no confessionário...
61
Ou quando apresenta o cônego Dias:
“Ultimamente engordara, o ventre saliente enchia-lhe a batina; e a sua cabecinha
grisalha, as olheiras papudas, o beiço espesso faziam lembrar velhas anedotas de
frades lascivos e glutões.”
62
Ou mesmo quando a agressividade ideológica se manifesta na prática
coletiva: os padres, as beatas e o conjunto social de Leiria:
58
QUEIRÓS, op. cit., p. 35.
59
Ibid., p. 247-248.
60
Ibid., p. 95.
61
Ibid., p. 17.
62
Ibid., p. 17-19
96
Nos linfáticos a natureza comprimida produzia as grandes tristezas, os
silêncios moles: desforravam-se então no amor dos pequenos vícios: jogar
com um velho baralho, ler um romance, obter de intrigas demoradas um
maço de cigarros – quantos encantos do pecado!
63
Estava também a Sra. D. Josefa, a irmã do cônego Dias. ... vivia num
perpétuo estado de irritação, os olhinhos sempre assanhados, contrações
nervosas de birra, toda saturada de fel. Era temida... a estação central das
intrigas de Leiria.
64
Do lado do Arco, na correnteza de casebres pobres, velhas ficavam à porta;
crianças sujas brincavam pelo chão, mostrando seus enormes ventres nus;
e galinhas em redor iam picando vorazmente as imundícies esquecidas...
criadas ralham ...soldados, com a sua fardeta suja, ...e dois oficiais ociosos
... conversavam, esperando, a ver quem viria.
65
Desse modo, percebemos que o narrador se dedica ao estudo detalhado
das personagens secundários que compunham os círculos de amizade de Amaro e
Amélia e que transitavam pela intriga, constituindo o clima sócio-cultural e moral da
narrativa. Vemos nas suas descrições a preponderância da ação do meio social em
deteriorar a moral dos personagens. O narrador enfatiza as descrições para
notarmos o provincianismo, a mesquinhez e o preconceito que circundavam os
protagonistas.
Enfim, para imprimir maior abrangência à sua crítica, ao final do romance,
o narrador desloca a situação narrativa da cidade de Leiria para Lisboa. Registra,
então, a fala do cônego Dias, do padre Amaro e do conde de Ribamar, junto à
estátua de Camões, os últimos acontecimentos: a Comuna e o republicanismo. O
narrador, de forma crítica, apresenta o personagem Conde perante a situação social
do país, revelando-nos a sua hipocrisia:
- Senão, vejam vossas senhorias isto! Que paz, que animação, que
prosperidade!
E com um grande gesto mostrava-lhes o Largo do Loreto, que àquela hora,
num fim de tarde serena, concentrava a vida da cidade...pelos bancos de
praça gente estirava-se num torpor de vadiagem; um carro de bois, aos
solavancos sobre as suas altas rodas, era como o símbolo de agriculturas
atrasadas de séculos ... algum burgues enfastiado lia nos cartazes o
anúncio de operetas obsoletas; nas faces enfezadas de operários havia
como a personificação das indústrias moribundas...E todo este mundo
decrépito se movia lentamente...
66
63
Ibid., p. 36.
64
Ibid., p. 51.
65
Ibid., p. 23.
66
Ibid., p. 358.
97
Como podemos observar, Eça de Queirós, através do narrador
onisciente, move-se dentro de sua rica descrição, do Largo do Loreto para a praça,
daí para os carros de bois e procura mostrar os tipos que se revelam decadentes,
denuncia as misérias humanas, destaca as satisfações das necessidades instintivas
e materiais e os condicionamentos hereditários e desmascara os males sociais que
são próprios das características da literatura realista-naturalista. Enfim, a voz
presente na instância enunciadora do discurso do romance O Crime do Padre
Amaro é dotada do poder da onipresença: sabe tudo o que se passa no íntimo dos
personagens e tece considerações acerca de julgamentos de valor. Essa escolha
pelo autor empírico normalmente é praticada por este ter uma inclinação moralizante
ou irônica das situações do cotidiano.
Essa situação retratada no final do romance não tem paralelo semelhante
no filme, porém a voz crítica de Eça presente nessa denúncia da hipocrisia do poder
se faz presente em toda a história do filme, através do olho crítico da câmera em
narrar as situações semelhantes de clara demonstração de descaso e de hipocrisia
da classe dominante da cidade de Los Reyes.
Assim, no filme, podemos dizer que temos o mesmo tipo de narrador - ele
é intruso, expõe sua opinião, é onisciente - a diferença está na escolha que a
câmera faz do ângulo para narrar as ações dos personagens. A voz por trás da
câmera es na visão que o diretor possui de determinada situação para, então,
revelar seu ponto de vista (como posicionamento ético e ideológico) ao espectador.
O narrador, no romance, utiliza o recurso da descrição para retratar as cenas e
mostrar sua ideologia; também, no filme, a descrição é usada como recurso
cinematográfico: o narrador pode usar a panorâmica, o traveling, a iluminação, as
mudanças de planos para situar a cena, para integrá-la no seu meio, além de poder
interferir no fluxo da ação e revelar sua voz subjetiva e crítica perante a situação
retratada. Assume a posição de narrador onisciente, que sabe tudo e que faz uso de
comentários, intervém no fluxo da história e coloca em pauta certos conceitos e
idéias. Podemos constatar isso na seqüência abaixo:
98
Fig. 01 Cena de amor de um filme passando na
televisão.
A imagem acima vem de uma televisão colocada na seqüência em que
uma discussão entre os padres sobre o celibato e a Teologia da Libertação. Eles
comem, bebem e assistem a um filme. Vejamos o olho da câmera nessa situação
retratada, o narrador faz um paralelo entre a discussão e a cena mostrada no filme
pela televisão: celibato e união carnal, evidenciando a oposição entre uma e outra.
Padre Benito, como foi analisado, tem relações carnais com Sanjuanera. Amaro,
depois dessa seqüência, também terá com Amélia. O narrador cria um tratamento
crítico e irônico produzido pela presença simultânea de uma cena em que os padres
estão bêbados depois de uma discussão sobre celibato e liberdade e uma outra
visível pela televisão de um casal enamorado se beijando em total liberdade de
sentimentos. Essa seqüência expressa o movimento subjetivo da mera e a voz
interior do narrador perante o conflito psicológico-moral vivido pelos personagens.
Um cineasta criativo mostra como o cinema pode ser tão profundo quanto à
literatura, ao explorar os recursos de imagem para dar significação às cenas. Ele
narrou sua perspectiva diante dos temas abordados entre os padres, escolheu o
ângulo, a distância, o casal se beijando para deixar claro a vida paradoxal e hipócrita
dos padres.
Muitas vezes somente a escolha do ângulo não esclarece o ponto de vista
do narrador. outras implicações que merecem ser explanadas: o narrador, no
filme, algumas vezes, não explicita a sua opinião, não faz sua voz audível de modo
explicito, deixa que e espectador faça as suas inferências a partir do modo como
apresenta os fatos. É o caso da cena em que o padre Amaro descobre as relações
íntimas entre o cônego Dias e a mãe de Amélia, como podemos observar abaixo:
99
Fig. 02. Seqüência que revela a relação entre
Sanjuanera e padre Benito.
Na primeira imagem, a câmera revela Sanjuanera saindo do quarto do
padre Benito e vemos, na seqüência, somente a expressão de surpresa do padre,
deixando para o espectador a interpretação subjetiva do que significou essa
descoberta para ele. Houve um corte seco da seqüência, não houve outros indícios
de revelação do que se passava no interior de Amaro.
outra diferença que observamos na narração de um filme: a forma que
a voz descreve o interior das personagens, pois na tela elas atuam para uma câmera
e não há um narrador com poderes de penetrar nos pensamentos das personagens,
de expor as suas idéias e de explicar o que elas estão sentindo. Com certeza o
roteirista está sempre às voltas com esse tipo de problema. Então para mostrar ao
espectador o que se passa no interior das personagens, ele introduz ações. Através
das ações e do diálogo podemos identificar as emoções interiores das mais simples
às mais complexas. Na cena em que o padre Amaro, logo após saber da gravidez,
esbofeteia Amélia e em seguida a abraça e beija, descobriremos que essa atitude
dupla de emoções se baseia no que nos será revelado ainda, através das ações,
sobre o padre. Neste momento não entendemos muito bem essa atitude, pois ele,
até então, ainda não se revelara um mau caráter. A câmera, a partir dessa
seqüência, vai mostrando ao espectador, com todo o cuidado, cenas em que ficarão
claras as verdadeiras intenções de Amaro: sua ascensão ao poder na hierarquia da
Igreja. Descobriremos, assim, que essa atitude extrema do padre se deu pelo fato de
sua convivência com os padres de Los Reyes e pela sua ganância tornando-o,
assim, uma pessoa sem escrúpulos. As suas boas intenções, no começo do filme,
paulatinamente vão se corrompendo e se vendendo aos interesses da igreja, por
isso seu desespero ao saber da gravidez.
100
O cinema clássico privilegiava a não inferência nas histórias. Quem
buscou outras formas de narrar foi o cineasta russo Eisenstein. “Seus filmes sempre
estiveram marcados por uma postura francamente discursiva, em que o narrador faz
uso de comentários, intervém no fluxo da história, a interrompre mesmo para colocar
em pauta certos conceitos e idéias”
67
. Ele inovou os todos de montagem
modernos para que o cinema pudesse se aproximar da literatura no trato da
subjetividade, do drama interior das personagens, de seus pensamentos. Eisenstein
provou, junto com outros cineastas modernos, que a adaptação pode ser tão
prazerosa quanto a literatura quando há exploração mais radical dos recursos da
linguagem filmica. Com certeza, após a sua inovação, os filmes puderam passar
muito mais informações, mais arte, imaginação, vida e proporcionar muito mais
prazer aos espectadores.
3.2. Personagens
Falar de personagens significa lembrar de alguns caminhos trilhados
antes que definiram esse elemento da narrativa. Os críticos gregos diziam que a
personagem era o reflexo da pessoa humana e uma construção que obedece às
leis do texto. O conceito de verossimilhança interna também provém deles: o
narrador não precisa narrar o que realmente acontece acerca do mundo real, mas de
representar o que poderia acontecer, ou seja, o que é possível, verossímil de
acontecer.
Essa concepção de personagem serviu de modelo até meados do século
XVIII, quando o conceito de personagem mudou: não era apenas como reflexo da
pessoa real, mas como modelos a serem imitados, imbuindo a esses seres o
estatuto de moralidade humana. A personagem seria construída a partir dos
modelos humanos.
Essas concepções foram usadas desde a Idade Média até a Renascença,
mas a partir da segunda metade do século XVIII esse conceito começa a mudar
sendo substituída por uma visão psicológica, ou seja, a personagem passa a ser a
representação do universo psicológico de seu criador. Essa mudança de perspectiva
67
PELLEGRINI, op. cit. p. 70.
101
percorre todo o século XIX, pois é nessa época que o sistema de valores da estética
clássica se declina e o romance se modifica para angariar um novo público: o
burguês. São romances que se entregam às paixões e sentimentos humanos,
depois vêm os romances psicológicos, análise das almas, romances de crítica e
análise da realidade social, os estudos científicos dos temperamentos e dos meios
sociais. Enfim, “renovam-se os temas, exploram-se novos domínios do individuo e
da sociedade, modificam-se profundamente as técnicas de narrar, de construir a
intriga, de apresentar as personagens”.
68
Nesse tempo, os seres fictícios não são
mais vistos como imitação do mundo real, mas como projeção da maneira de ser
do autor empírico.
É dentro desta última concepção que Eça de Queirós construiu seu
personagem principal: o protagonista padre Amaro. Ele é o eixo em torno do qual
gira a ação. Para que haja o conflito da história, o autor precisa também de um
antagonista - a dificuldade para se alcançar a meta do protagonista. Em muitos
romances, o antagonista é outra pessoa, ou um grupo social. Nesse tipo de histórias,
ocorre um conflito externo, pois o protagonista e o antagonista são pessoas
diferentes, em oposição uma a outra. No romance, Amaro é o seu próprio
antagonista. O conflito é travado dentro dele mesmo, há, portanto, um conflito
interno. O narrador o transformou em tima das circunstâncias em que foi criado.
Todas suas atitudes eram conseqüências de seu convívio com a madrinha, com o
seminário, com a sociedade de Leiria. Amaro se debatia entre o celibato e os
desejos carnais, pois aquele lhe foi imposto e não o aceitava. Há, também, no
desenrolar da trama, oposições externas, das personagens secundárias do romance
ou do próprio meio, do clero e da sociedade de Leiria, mas o conflito predominante
é o que ele trava consigo mesmo.
O narrador, então, para compor seu personagem, faz um retrato extenso,
rico e pormenorizado de Amaro, tanto físico e psicológico-moral, como ainda
completa com a sua história genealógica para haver a íntima conexão com o meio
sociológico: Amaro é filho de uma criada da marquesa de Alegros. Com a morte da
mãe, foi adotado pela marquesa. Ela cuidou de sua educação e decidiu que ele seria
padre. O ambiente da casa da marquesa e o seminário moldaram o seu caráter
indolente e passivo. Quando sacerdote em Leiria, aceita o servilismo beato da casa
68
AGUIAR E SILVA, op.cit., p. 249.
102
da senhora Joaneira, e de Amélia, e o cinismo e hipocrisia do clero, tornando-se
um deles também.
O retrato de Amaro situa-se no início do romance. Primeiro ele é
mencionado pelo narrador para anunciar sua chegada em Leiria:
(...) soube-se em Leiria que estava nomeado outro pároco. Dizia-se que era
um homem muito novo, saído apenas do seminário. O seu nome era Amaro
Vieira. Atribuía-se a sua escolha a influências políticas, e o jornal de Leiria,
A Voz do Distrito, que estava na oposição, falou com amargura, citando o
Gólgota, no favoritismo da corte e na reação clerical.
69
Como podemos observar, o retrato de Amaro, nessa passagem,
anuncia o discurso ideológico do narrador: troca de favores para conquista de
benefícios, o clero e o governo agiam de forma a manter uma situação confortável
para os dois lados. Depois o narrador vai retratando Amaro aos poucos:
“...um homem um pouco curvado, com um capote de padre....era uma boa figura de
homem
70
”, em seguida uma referência à sua infância:
Amaro era...um mosquinha morta. Nunca brincava, nunca pulava ao sol .....
As criadas de resto feminizavam-no; achavam-no bonito, aninhavam-no no
meio delas, beijocavam-no, faziam-lhe cócegas, e ele rolava por entre as
saias, em contato com os corpos...... era Amaro o que fazia as queixas.
Tornou-se enredador, muito mentiroso....Era extremamente preguiçoso, e
custava de manhã arrancá-lo a uma sonolência doentia em que ficava
amolecido....Sobretudo começara a reparar muito nas mulheres...foi
entrando como uma ovelha indolente na regra do seminário....ardia como
uma brasa silenciosa o desejo da mulher
71
.
Nessas caracterizações, o narrador construiu, por meio de pistas
fornecidas pela narração e pelas descrições, o perfil de Amaro, que transita pela
intriga e simboliza o mundo que ele quer retratar: cresceu em um ambiente
feminizado, tornou-se medroso e preguiçoso. Desde pequeno teve contato com a
vida eclesiástica e embora não tivesse vocação, torna-se padre, como poderia se
tornar qualquer outra coisa; sua natureza passiva o impedia de ir contra o que as
pessoas lhe impunham. Fraco e sem vocação para o sacerdócio, Amaro é dominado
69
QUEIRÓS, op. cit., p. 18.
70
Ibid., p. 24.
71
Ibid., p. 31-35
103
por seus instintos naturais de homem e passa a pensar muito em mulheres. Essa
preocupação da caracterização pormenorizada da personagem feita pelo narrador,
tem como objetivo justificar o seu caráter e suas ações na trama da história.
O nome escolhido pelo narrador também tem uma justificativa, pois é um
elemento importante na caracterização da personagem “...funciona frequentemente
como um indício, como se a relação entre o significante (nome) e o significado
(conteúdo psicológico, ideológico, etc.) da personagem fosse motivada
intrinsecamente.”
72
O nome Amaro revela que a personagem pertence a um
determinado estrato social – proletariado – pois é comum, Amaro Vieira, sem
pompa, sem luxo, que pode ser próprio de um filho de empregada. O nome Amaro
vem do latim, amarus, e significa amargo. Temos muitos indícios no desenrolar da
história de que Amaro se transformou em uma pessoa amarga, por ser padre sem
vocação, por não aceitar o celibato, nem respeitar os ensinamentos da Igreja.
Tornou-se indolente, não pensava nas conseqüências de seus atos, um cético, um
cínico. Provavelmente, também, a escolha do seu nome pelo narrador é devido à
semelhança com o nome Amélia, sua parceira no romance. O autor precisava achar
um nome que se aproximasse do significado do nome Amélia: sofredora, cúmplice.
Amaro, além de combinar, ainda traz uma característica do personagem: amargo.
Assim criou-se a personagem.
Há, também, duas habituais categorias usadas na teoria literária para
designar as personagens na narrativa ficcional: personagens simples e permanentes
ou que se modificam ao longo da narrativa, o complexos. Dentro dessas
concepções, podemos caracterizar Amaro como uma personagem simples, pela sua
formação de natureza passiva e facilmente dominável. Esperamos dele ações de
pouca integridade moral. Em todo desenrolar da história, vemos uma personagem
agindo de acordo com os seus princípios e nenhuma reação da sua parte
surpreende o leitor. O seu tipo não evolui, não tem personalidade individualizada, é
um ser moldado segundo o meio em que foi criado. Não há espanto nenhum quando
o leitor descobre que ele vai tentar seduzir Amélia de qualquer maneira, e para isso
vai usar vários recursos desonestos: Amaro usa os bilhetes de confissão de João
Eduardo para convencer Amélia de que o seu namorado não era uma pessoa
religiosa; conta-lhe que foi seu namorado quem escreveu a “calúnia” sobre os
72
AGUIAR E SILVA, op. cit., p. 261.
104
padres no jornal da cidade e a convence se desvencilhar do rapaz: “Case com ele, e
perde para sempre a graça de Deus!”.
73
Seduz a menina e a leva para a cama;
convence-a a ensinar o alfabeto para a doente Totó, na casa do sineiro, como
desculpa para seus encontros amorosos e consegue lhe colocar o manto de Nossa
Senhora para satisfazer sua fantasia. Toda essa evolução da personagem para
conquistar Amélia não traz sustos ao leitor, pois se espera dele atitudes imorais que
satisfaçam seus desejos.
Enfim, o narrador criou Amaro como um ser desprezível, que a sociedade
não reconhece como um herói próprio de romances românticos, mas um anti-herói,
por sua configuração psicológica e moral decadente. Apresentou-o com uma figura
repleta de defeitos e limitações, uma personagem atravessada por angústias e
frustrações, desagregada do meio que lhe foi imposto. Podemos dizer que Amaro foi
vítima da sociedade que o formou e fez de Amélia uma vítima maior de suas
manipulações e desejos secretos. De qualquer forma, como o próprio título do
romance sinaliza, a personagem centraliza a trama narrativa.
a criação da personagem Amaro para a adaptação no filme foi um
pouco diferente, o roteirista respeitou várias características da personagem do
romance, porém transformou-a numa figura mais humana e menos tima da
realidade em que viveu.
Na maioria dos filmes a história gira em torno de uma personagem
central, o protagonista, o núcleo dramático principal. Um ser com capacidade de
expressão e de ação. Para facilitar a ação, essa personagem deve ser bem
desenvolvida, sua composição deve seguir três fatores: físico, social, psicológico.
Suas emoções têm de coincidir com seu intelecto, é isso que dá identidade à
personagem.
74
A identidade da personagem Amaro, do filme, segue algumas
características que diferem do Amaro do romance. Primeiramente, a personagem
no romance tem um único perfil, de traço fixo. Amaro, no filme, é personagem
complexa, por apresentar uma personalidade até certo ponto contraditória: sua
conduta no início do filme é uma, na evolução da personagem, devido a múltiplos
contratempos sofridos no decorrer da trama, sua conduta vai se modificando, ele
oscila entre o bem e o mal. O protagonista é também seu antagonista, uma batalha é
73
QUEIRÓS, op. cit., p. 160.
74
COMPARATO, op. cit. p. 130.
105
travada dentro dele. Seus desejos e necessidades convergem em uma personagem
mais complexa, os conflitos externos ajudam a tornar visível seu conflito interno. Isso
lhe dá vida própria e o espectador consegue identificar seu caráter.
Ao criar Amaro, o roteirista se muniu de algumas características básicas
para formar seu perfil: delicado, confuso, solitário, bom/mal, inteligente, covarde,
obstinado, incrédulo, malicioso, cruel/benevolente, indeciso/impulsivo, impetuoso,
egoísta, ambicioso, leal/desleal, complexo, mascarado, amargurado, mordaz,
volúvel, oportunista, gentil/brutal, bonito, arrogante, viril, incerto, impotente,
insinuante, voluptuoso, racista, bajulador, cético.
75
Assim, Amaro tomou forma, foi lhe dada uma personalidade, comportar-
se-á em função de sua vontade própria. No início do filme, a personagem não surgiu
na sua totalidade, vimos apenas uma faceta de sua personalidade, sua parte boa:
ele está indo de ônibus para a cidade a que foi designado e no caminho uma
quadrilha se interpõe e assalta os passageiros. Amaro, então, ajuda um
companheiro de viagem. A partir do desenvolvimento da trama, ele vai se revelando
aos espectadores.
Segundo Field, para construir uma personagem é necessário primeiro
criar um contexto, depois preenchê-lo de conteúdo; em seguida, dentro desse
contexto, definir a necessidade da personagem, seu ponto de vista, suas atitudes,
sua personalidade, seu comportamento.
76
O contexto em que Amaro foi inserido,
conhecemos:
Amaro é enviado para a cidade interiorana de Los Reyes, em Aldama, no
México. Lá encontra padre Benito, que dirige a paróquia local. Logo no inicio, Amaro
descobre a ligação ilícita entre o padre e a proprietária de um restaurante , senhora
Sanjuanera, e de Amélia. Também descobre que o padre tem relação com o
comandante do narcotráfico da região. Nesses arranjos , padre Benito não vê
problemas morais, pois acha que tudo isso é um mal lamentável, mas necessário,
que as doações generosas do traficante financiam a construção de um moderno
hospital. É dentro desse contexto que Amaro se envolve com a filha de Sanjuanera,
Amélia, que, ao se apaixonar, termina seu namoro com o jornalista Rubén. Em
75
Ibid. p. 131-132.
76
FIELD, Syd. Manual do roteiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 25-29
106
retaliação, este desenterra uma série de escândalos envolvendo os padres e o crime
organizado. Esse escândalo provoca a ira do bispo, que escolhe o padre Natálio
como bode expiatório; este ajuda os camponeses da região montanhosa, mas é
acusado de entrar em contato com guerrilheiros e é excomungado. Nesse ínterim,
Amélia fica grávida, Amaro tenta se livrar da responsabilidade e a leva para uma
clínica de aborto clandestina, onde ela morre devido a uma hemorragia. Ao final do
filme, Amaro oficia a missa de corpo presente.
Temos, portanto, o contexto em que a personagem se criou para atuar no
conflito estabelecido. Amaro, ao conviver com os padres, formou um ponto de vista
em relação ao que via e passou a viver como um deles, definindo, assim, sua
citada personalidade.
Como podemos perceber, alguns pontos divergem entre romance e filme.
Neste, não é dado a conhecer a infância de Amaro, portanto ele não é produto do
meio em que foi criado. Não conhecemos o seu passado, sua conduta vai sendo
mostrada aos poucos e vai se transformando devido ao que e ao conflito em que
é inserido. Aos poucos vamos entrando em contato com seus sentimentos, através
das suas ações na tela. A personagem no filme é completamente verdadeira, tudo
que sente tem que expor para que possamos definir seu perfil, através de diálogos,
olhares, expressão corporal, gestos, etc.
No filme, Amaro aparentemente tem uma alma boa, que se justifica
devido a várias passagens na história: como foi dito, ao ajudar um companheiro
de viagem, ao ser gentil com a mulher do prefeito, carinhoso com Amélia e sua
mãe, ao ficar consternado vendo Amélia se esvaindo em sangue: entra em
desespero e chora convulsivamente, portanto um jovem com boas intenções, com
fé, ele reza, faz a missa com devoção. No entanto, paulatinamente, vai se
corrompendo e se vendendo aos interesses da igreja. Diante da promessa de uma
melhor posição política dentro da instituição, a generosidade e a riqueza espiritual
vão se convertendo em puro egoísmo e amargura. Ele abriga em si paixões
contraditórias. Quer preservar sua relação com a jovem Amélia, sem que isso afete
sua carreira. Corrompe-se, também, através das relações com os membros da
sociedade de Los Reyes. Como vemos, Amaro é apresentado dentro de um contexto
moderno, mas sofre, como qualquer padre a imposição do celibato pela Igreja. Nisso
ele difere de Amaro do romance. No resto, o muito parecidos. Os dois almejam
107
uma melhor posição na igreja, possuem relação com o poder, têm ambição, são
egoístas e obstinados em conseguir o que querem, no caso, a menina Amélia.
Enfim, os dois teorizam a realidade observada pelos autores, Eça e Leñero, cada um
contemporâneo em seu momento de criação. Eles conscientizam o leitor e o
espectador respectivamente dos problemas sociais, de acordo com o instrumental
ideológico de cada um, e também mostram os conflitos humanos que angustiam e
desesperam pessoas de todas as camadas sociais de uma sociedade. As duas
personagens fazem parte de obras marcadas por uma análise minuciosa e profunda
da sociedade e pela busca da verdade por trás das aparências, cada uma em seu
tempo.
3.3. Conflito
Como vimos, em uma narrativa sempre uma personagem central,
que o autor caracteriza para desenvolver as ações. Podemos classificar esse tipo de
narrativa como romance de personagem, pois o conflito está centrado no
personagem principal. Como o próprio título indica. É um romance/filme cujo conflito
é centrado na personagem do padre Amaro, que trava lutas internas e externas para
alcançar seu objetivo: seduzir Amélia sem perder sua posição na igreja. A
personagem se encontra em conflito consigo mesma, com uma força maior interna –
o desejo proibido por Amélia e a posição na igreja - e outras menor, secundárias,
externas todos os personagens secundários que dificultam as relações com
Amélia. Explicitaremos melhor o conceito de conflito pela voz de Howard e Mabley:
O conflito é ingrediente essencial de qualquer trabalho dramático, seja no
palco ou na tela. Sem conflito não teremos história capaz de prender o
público. Uma história retrata uma luta na qual a vontade consciente de
alguém é empregada para atingir uma meta específica, uma meta difícil de
ser alcançada e cuja consecução encontra resistência ativa. O conflito é o
próprio motor que impele a história adiante; ele fornece movimento e
energia à história.
77
77
HOWARD E MABLEY, op. cit. p. 81
108
Podemos acrescentar à voz dos autores que o conflito é essencial para
qualquer obra ficcional - romance, conto, teatro, filme, entre outros - ou trabalho
dramático, no palco ou na tela. Assim podemos incluir nossos dois objetos de
leitura: o romance e o filme.
Para contar a história de Amaro, os autores possivelmente dividiram a
narrativa em três momentos distintos e tradicionais: exposição ou preparação,
desenvolvimento ou complicação e desenlace. A terminologia e suas diferenças
conceituais variam de autor para autor, mas qualquer que seja a terminologia serve
de base, ponto de partida, para qualquer análise de narrativa.
Toda história evolui, à medida que ela vai se desenrolando, modifica-se,
está em constante movimento. A divisão em três momentos distintos é importante
para situar o leitor/espectador e também para dar unidade na história. No primeiro
momento o autor apresenta a personagem e introduz o conflito em torno do qual
será construída a narrativa. Neste momento, a personagem adquire um objetivo e os
primeiros obstáculos começam a surgir. No segundo momento, os obstáculos se
intensificam e pode haver mudança na personagem, ela evolui, desenvolve-se. As
tramas secundárias acontecem nesse momento. No terceiro, a mudança na
personagem se manifesta com mais intensidade e pode ser definitiva, também a
resolução do conflito central e dos secundários. Veremos mais adiante como essa
divisão se deu nas histórias analisadas.
Vários são os que participaram em debates sobre a função da narrativa
na sociedade primitiva e na sociedade moderna, entre eles estão o antropólogo
Claude Lévi-Strauss, o folclorista Vladimir Propp, o especialista em semiótica Roland
Barthes e o teórico britânico de estudos culturais Stuart Hall. O amplo interesse
nesse campo está na universalidade da narrativa. Todos os povos, em qualquer
lugar ou tempo, contam histórias. Ela sentido no nosso mundo. Segundo
Turner
78
, foi nas pesquisas de Vladimir Propp que se constatou que a estrutura e a
função das narrativas são muito parecidas em qualquer cultura humana. Ele
apresentou várias funções organizadas em grupos narrativos, indicando seu lugar na
evolução da trama, que aproveitaremos, com modificações para se adequar à nossa
leitura, para organizar o enredo da história de Amaro. Como nossa leitura envolve
78
TURNER, op. cit. p. 74
109
duas obras, faremos dois quadros comparativos, um para a história do romance e
outro para a do filme, assim, poder-se-á destacar o que se manteve e o que se
modificou do texto original.
Quadro comparativo 01 – Enredo do romance e do filme
QUADRO DO ENREDO DO ROMANCE
DE EÇA DE QUEIRÓS
QUADRO DO ENREDO DO ROTEIRO
DE VICENTE LEÑERO
MOMENTO: PREPARAÇÃO DA
HISTÓRIA
(apresenta os personagens, introduz o
conflito, o objetivo é estabelecido e os
primeiros obstáculos vão aparecendo)
MOMENTO: PREPARAÇÃO DA
HISTÓRIA
(apresenta os personagens, introduz o
conflito, o objetivo é estabelecido e os
primeiros obstáculos vão aparecendo)
1. Alguém chega ou sai:
Morte do padre José Miguéis, em Leiria,
Portugal. Amaro é nomeado no lugar e
vai para a cidade e com a indicação do
cônego Dias, hospeda-se na casa da
senhora Joaneira, onde conhece Amélia
e sente desejo por ela. um flash back
retratando a vida de Amaro desde a
infância e outro de Amélia.
2. Impõe-se sobre o “herói” uma
proibição ou norma:
Em uma reunião na casa de Amélia,
Amaro sente ciúmes do seu namorado, o
escrevente João Eduardo. Amaro
descobre as relações ilícitas entre o
cônego Dias e a senhora Joaneira.
1. Alguém chega ou sai:
Padre Amaro, recomendado pelo bispo,
chega à cidade de Los Réyes, México,
para atuar na paróquia local. Na igreja
conhece padre Benito que o hospeda em
um quarto na casa paroquial. As
refeições são feitas na pensão da
senhora Sanjuanera, mãe de Amélia,
onde a conhece.
2. Impõe-se sobre o “herói” uma
proibição ou norma:
Amaro descobre as relações ilícitas
entre o padre Benito e a mãe de Amélia.
Padre Amaro reza sua primeira missa e
vê Amélia com seu namorado, o
jornalista Rubén. Há um flerte entre
Amaro e Amélia na hora da comunhão.
110
MOMENTO: COMPLICAÇÃO DA
HISTÓRIA (Os obstáculos se
intensificam, mudança no
personagem central, surgem as tramas
secundárias)
MOMENTO: COMPLICAÇÃO DA
HISTÓRIA (Os obstáculos se
intensificam, mudança no
personagem central, surgem as tramas
secundárias)
3. A proibição é violada:
Amaro aproveitando-se da descoberta
da união ilícita, modifica seu
comportamento em relação à Amélia.
Assim, o amadurecimento do “amor”
entre eles, acontece o primeiro beijo.
Amaro muda de casa temendo um
escândalo, depois retorna e recomeçam
as trocas de olhares entre eles.
4. O antagonista tenta obter
informações e passa a saber
algo sobre sua vítima:
João Eduardo, enciumado, publica no
jornal “Voz do Distrito”, um comunicado
assinado sob o pseudônimo de “Um
Liberal”. Nesse artigo, denuncia os
envolvimentos políticos e amorosos dos
padres. Além disso, insinua a relação
entre Amaro e Amélia.
5. O “vilão” tenta enganar a vitima
para controlá-la, ou tomar
posse de seus pertences:
Amaro afasta-se da casa e João
Eduardo reata o namoro com Amélia
3. A proibição é violada:
Com a descoberta da relação entre
padre Benito e a senhora Sanjuanera,
Amaro se sente livre para flertar com
Amélia. Amadurece a relação. Amélia se
revela muito sensual no confessionário.
Amaro descobre, também, as relações
entre a Igreja e o chefe do tráfico de
drogas, Chato Aguilar.
4. O antagonista tenta obter
informações e passa a saber
algo sobre sua vítima:
o jornalista Rubén desconfia de um
envolvimento entre Amélia e Amaro,
enciumado, escreve um artigo
denunciando a relação dos padres com
o tráfico de drogas.
5. O vilão” tenta tomar posse do
que acha que é seu:
Amélia, enfurecida pelo conteúdo do
artigo, termina o namoro. Rubén tenta
uma reaproximação, mas não consegue.
111
6. O “herói” descobre a armação
do vilão” e planeja uma ação
contra ele, para isso recebe
uma ajuda:
Amaro descobre, por intermédio do
padre Natário, quem era o autor do
comunicado e os dois padres
desmascaram João Eduardo. Amaro
está cada vez mais obstinado para
conseguir Amélia.
7. O “herói” e o vilão” se
enfrentam num combate direto:
João Eduardo, bêbado, ataca Amaro,
que não reage.
8. O “herói” triunfa e o “vilão” é
derrotado:
Os padres armam uma mentira contra
João Eduardo, ele perde tudo, Amélia, o
emprego e sai da cidade. Amaro é
glorificado pelas beatas freqüentadoras
da casa de Amélia. Acontecem, então,
os encontros sexuais entre Amélia e
Amaro na casa do sineiro.
9. O “herói” é perseguido:
Amélia engravida. Amaro e o cônego
Dias procuram por João Eduardo, pois
pretendem casá-lo com Amélia. Amélia,
para esconder a gravidez, sai da cidade
sob o pretexto de ajudar sua madrinha.
Ela se afasta de Amaro, sente culpa e
sofre alucinações, terrores
6. O “herói” planeja uma ação
contra o “vilão”, para isso
recebe uma ajuda:
Amaro escreve um desmentido do artigo
e publica no jornal. Através de uma
imposição do bispo, pede o afastamento
do jornalista da redação do jornal
7. O “herói” triunfa e o “vilão” é
derrotado:
Rubén perde o emprego e sai da cidade.
Na missa, Amaro fala da “calúnia” contra
a igreja e a desmente. Os fiéis
acreditam, saem da missa e vão jogar
pedra na casa do jornalista e glorificam a
Igreja. Intensifica-se a paixão entre
Amaro e Amélia
8. O “herói” e o vilão” se
enfrentam num combate direto:
Rubén, bêbado, ataca Amaro, que não
reage.
9. O “herói” é perseguido:
A consciência de Amaro o persegue, se
auto flagela, mas o desejo por Amélia é
maior e os encontros sexuais acontecem
na casa do sacristão. Padre Benito
descobre os encontros, recrimina Amaro.
Discutem. Benito sofre um derrame.
Amélia conta sobre a gravidez. Amaro
propõe que ela procure seu ex-
112
supersticiosos. A mãe de Amélia e o
cônego Dias passam esse tempo na
praia, mas a mãe não sabe de nada.
Amélia passa a receber as visitas do
abade Ferrão e do Dr. Gouveia.
10. Uma difícil tarefa é estipulada
para o “herói”:
Amaro precisa se livrar da criança que
irá nascer. Através de Dionísia, sua
empregada, faz os preparativos para
entregar a criança para uma ama-de-
leite.
11. A tarefa é realizada:
O parto de Amélia é muito complicado.
No final, a criança nasce bem e Amaro a
entrega a uma “tecedeira de anjos”.
Amélia, depois do parto, quer ver a
criança, como ela não lhe é entregue,
começa a ter convulsões e morre.
Amaro, ao saber da morte de Amélia,
tenta recuperar o filho, mas é tarde, a
criança também havia falecido. Amélia é
velada e o abade Ferrão reza por ela.
namorado. Amélia o procura, mas ele
não a quer mais.
10. Uma difícil tarefa é estipulada
para o “herói”:
Amaro não quer a vinda da criança,
propondo, então, o aborto. Amélia, sem
escolha, aceita. Com a ajuda de
Dionísia, mulher do povo, supersticiosa,
e que sabe da relação dos dois, encontra
uma clínica clandestina.
11. A tarefa é realizada:
Na clínica, Amélia tem complicações, o
aborto não certo e ela tem
hemorragia. Amaro, desesperado, leva-a
para um hospital, não consegue chegar,
Amélia morre no caminho.
MOMENTO: DESENLACE DA
HISTÓRIA (a história principal e as
secundárias são resolvidas, o
reconhecimento, o conflito acaba)
MOMENTO: DESENLACE DA
HISTÓRIA (a história principal e as
secundárias são resolvidas, o
reconhecimento, o conflito acaba)
12. O “herói” é coroado: Amaro deixa a
cidade de Leiria e parte para Lisboa.
12. O “herói” é coroado: Amaro reza a
missa no velório de Amélia. Ninguém
113
Amaro e cônego Dias se encontram em
Lisboa e, sem qualquer remorso,
conversam sobre as últimas novidades
de Leiria. Amaro se encontra muito bem
na nova paróquia. faz confissões em
mulheres casadas.
desconfia do padre. A responsabilidade
recai sobre o seu ex-namorado. Padre
Benito, em cadeira de rodas, seqüela do
derrame, repudia o ato de Amaro e sai
da igreja. Amaro permanece no local,
rezando pela menina Amélia.
A estrutura básica que Propp propôs era para contos de fada, por isso
fez-se necessário uma adaptação para poder organizar o enredo das obras
analisadas. Como sabemos, a história de Amaro não se enquadra em um conto de
fadas ou fantástico, porém, em alguns aspectos a sua estrutura consegue se
adequar às histórias analisadas, por isso a utilizamos para compor os enredos e
podermos observar, paralelamente, as diferenças no contexto do conflito.
Com os enredos postos lado a lado, pudemos perceber que
diferenças; no entanto, o conflito central das obras permaneceu bastante
semelhante. É importante que a obra realizada a partir de outra deva ter vida
própria. O filme adaptado preservou sua autonomia, porém verificamos que a
relação intertextual com a obra literária é explícita e a autonomia total, impossível.
O crime do padre Amaro ao ser retratado na tela ignora alguns aspectos
ricos próprios da narrativa, como por exemplo, alguns diálogos, as sutis entrelinhas
significativas na narrativa de Eça que o podem ser transmitidos pela câmera.
também que pensar nas diferenças dos dois meios de comunicação. O escritor de
romance tem a sua disposição a linguagem verbal, as metáforas e as figuras de
linguagem; e o cineasta possui uma gama de recursos técnicos para serem
manipulados de diversas maneiras. Essas diferenças são bastante significativas na
hora da transposição do romance para o filme. Mas o importante dessa relação é
que haja uma forma de dialogismo intertextual e isso podemos afirmar que houve na
adaptação do romance. O roteirista conseguiu transformá-la em uma narrativa
coerente. Por exemplo, não menção da infância do casal, no filme, para que
pudéssemos identificar a personalidade de cada um, porém a forma como os
personagens foram caracterizados, seus diálogos, suas atitudes, conseguiram
passar aos espectadores certas facetas do caráter de Amaro e Amélia próprios do
114
romance. Os capítulos I ao III foram supridos no filme. Amaro é apresentado na
cidade com uma recomendação do bispo. O local onde o padre fica hospedado
também é diferente, o roteirista o colocou na casa paroquial, porém ele ia todos os
dias no restaurante da mãe de Amélia, e, então, o autor resgata do romance as
conversas entre os padres, a reunião familiar com a família de Amélia, os encontros
contínuos dos dois, as trocas de olhares, o flerte. Tudo foi retratado, com os
recursos próprios do cinema - efeitos sonoros, iluminação, câmera, planos,
traveling, diálogos - com bastante semelhança de conteúdo e a partir desses
encontros entre os personagens, surgiu o mesmo conflito do romance.
3.4. Leitura do roteiro do filme
Faremos agora uma leitura do roteiro do filme sob a perspectiva de
Howard e Mabley
79
, ou seja, os elementos básicos da roteirização e/ou as
ferramentas eficazes na criação do roteiro. Juntamente com a montagem do roteiro,
realizaremos uma leitura comparativa entre romance e filme.
a) Conflito, protagonista, objetivo e obstáculos: o conflito central, nas
duas histórias, gira em torno do dilema do padre Amaro: conquistar Amélia e
continuar no sacerdócio. Deste conflito, vieram obstáculos em séries: para Amaro
alcançar seu objetivo, travou, no romance, uma luta com o escrevente João
Eduardo, depois com a culpa supersticiosa que Amélia sentia pela relação dos dois,
em seguida com a gravidez e o filho que nasceu, e por último com a morte dos dois.
No filme, Amaro trava, também, uma luta com o namorado de Amélia, depois com o
padre Benito, que não aceitava a relação, em seguida com a sua consciência.
até mesmo uma passagem em que ele causa flagelo em si mesmo em forma de
protesto contra seus pensamentos libidinosos, uma forma de autopunição. Por fim, a
gravidez e consequentemente a morte de Amélia. Com relação à consciência, a
personagem de Amaro difere nas duas obras. No romance, ele era mais frio, mais
um representante da observação científica da realidade da época, um personagem
de existência concreta e com uma dialética mais social. O Amaro do filme é mais
contemporâneo, pois o autor, na adaptação, propôs-se a mostrar uma
79
HOWARD E MABLEY., op. cit., p. 75
115
documentação da vida humana, tornando-se mais um prolongamento ou uma
continuação da vida que uma simples fuga pela imaginação. Afastou-se, assim, dos
quadros estáticos do romance realista ou espelho da vida. Amaro, no filme, tem um
significado que ultrapassa a dissecação do personagem realista, ele tem um
significado como personagem que representa o homem de hoje, ou seja, o vazio do
homem de hoje: sem passado, pensa no presente, sem vida interior, com alguma
consciência, e quer de todo jeito se garantir para o futuro.
Na adaptação, para compor o conflito, houve a tematização para
questões da atualidade, principalmente, em cidades do interior do México. O autor
fez da ficção um comentário à realidade contemporânea mexicana. Falou do tráfico
de drogas, muito intenso nessas cidades, do poder que a Igreja ainda exerce nos
meios de comunicação e na política. As conexões entre o romance literário e o
roteiro, no sentido de mobilização nacional e de promoção de uma identidade
político-ideológica, foram muito parecidas. Os dois seguiram a via moral para
estabelecer a identificação do leitor/espectador com o universo ficcional e a
realidade atual. O drama dos dois resulta do embate entre a ordem dos laços morais
tradicionais de uma sociedade e os valores do presente, fundados na paixão carnal,
que levam à perdição ou à desgraça. Em ambas as obras, Amélia foi derrotada pela
paixão e Amaro sai incólume.
b) Premissa e abertura: a premissa é a situação preexistente à
introdução do protagonista e seu objetivo. No início do filme, o ônibus que levava
Amaro a caminho para Los Reyes é interceptado por uma quadrilha de guerrilheiros.
Eles roubam os passageiros e vão embora. muita ação nessa abertura de cena
do filme. O diretor escolheu essa abertura, porque Amaro vai se deparar com esse
tipo de conflito no interior da cidade. Ele vai descobrir que padre Natário protege
essas pessoas contra o grupo do traficante Chato Aguilar e devido a essa relação,
Natário será excomungado, como expliquei no capitulo anterior. No romance, a
premissa é a apresentação de alguns personagens, com suas falhas humanas e
de caráter negativo que estarão em volta de Amaro o tempo todo e que caracteriza a
mediocridade da sociedade em que o padre será inserido.
c) Tensão principal, culminância e resolução: a tensão principal de um
roteiro aponta em direção do conflito geral da história; pode seu uma ou mais
tensões. Dados os obstáculos, começamos a questionar o que vai acontecer: Amaro
116
consegue seduzir Amélia? A tensão principal começa quando Amaro começa a
flertar com Amélia e consegue levá-la para a cama. Depois várias outras tensões
que são conseqüências dessa primeira: Amélia vai fazer o aborto? Amaro não será
descoberto? Será que Amélia morre? O que vai acontecer com o padre? No
romance temos as mesmas tensões, a tensão principal confere semelhança às
obras. Podemos acrescentar mais uma pergunta: o que vai acontecer com o filho do
padre? Uma vez que, no romance, a criança nasce viva. A culminância é o ponto
alto do roteiro, na literatura podemos dizer que é o clímax da história. No filme, a
culminância se dá com o parto de Amélia, sua morte. No romance, é também o parto
de Amélia e acrescentamos o destino de seu filho. A resolução seria o ponto em que
o público ou leitor poderiam relaxar, a questão é resolvida: No filme, Amaro reza a
missa no velório de Amélia e ninguém descobre que ele é o pai da criança. No
romance, Amaro também não é descoberto e, depois da morte de Amélia, deixa a
cidade de Leiria e vai para Lisboa levar uma vida anônima.
d) Tema: o tema é o ponto de vista do escritor em relação à história que
vai contar. Podemos perceber esse ponto de vista na resolução da história. É nesse
ponto que o autor nos revela sua interpretação da obra. Ele cria uma culminância e
uma resolução que pareçam satisfatórias diante daquilo que ele pensa em relação
ao assunto abordado. “O tema é aquela área do dilema humano que o autor
escolheu explorar sob uma variedade de ângulos e de maneira complexa, realista e
plausível”.
80
O elo temático no filme e no romance fica claro no momento da morte
de Amélia, todo o repúdio pelos acontecimentos que levaram ao seu calvário, os
escritores culminaram na morte da vítima. Sua morte simboliza a falta de respeito,
de solidariedade, de amor, de carinho que muitos seres humanos sentem pelo
próximo. Pela visão dos escritores pudemos detectar a estreita vida de província,
com a intriga local, as pessoas mesquinhas, os padres, as beatas hipócritas,
pretensiosos, miseráveis. É o cerne da luta do ser humano entre ser bom ou mal, ter
prestígio ou ser caridoso, entre pertencer ou ser livre. Amaro viveu todos esses
dilemas durante seu percurso na história do romance/filme. A conseqüência de seus
atos levou Amélia à morte.
e) Unidade: a trajetória de Amaro nas duas obras em busca de seu
objetivo cria uma unidade de ação e isso à história um aspecto de algo inteiro. A
80
Ibid., p. 97
117
unidade na história do romance/filme vem dos esforços de Amaro em seduzir
Amélia, continuar com ela e permanecer no sacerdócio sem ser descoberto pela
sociedade. Mesmo quando ele entra nos subenredos da vida de padre ou das
intrigas da sociedade, não se distancia de seu objetivo primeiro.
f) Exposição: alguns fatos relativos à vida do personagem principal são
muito importantes para entendermos suas atitudes. No romance, a exposição em
fleshback da infância de Amaro, deu-nos a visão da formação de seu caráter. no
filme, essa exposição se de maneira mais sutil, através de diálogos, do
comportamento social de Amaro. Quando, no início do filme, ele ajuda um
passageiro, percebemos que seu caráter será melhor que o Amaro do romance.
Aos poucos essa impressão se esmorece e devido a várias circunstâncias, seu
caráter se mostra menos altruísta. São várias exposições do comportamento de
Amaro que fazem montar seu perfil humano e faz-nos antever o final da narrativa.
De qualquer forma, ele é mais complexo que o personagem do romance, a sua
postura diante do conflito é mais ambígua, ele alterna ações altruístas e
mesquinhas. O início (episódio do ônibus) já é um índice disso.
g) Caracterização: a busca pelo objetivo determina o curso dos
acontecimentos na história e constitui a chave para entendermos o comportamento
das personagens e estas ficam caracterizados pelas suas atitudes. Amaro quer
Amélia e a busca por este objetivo revela muita coisa a respeito do lado mesquinho,
egoísta e perturbado de sua personagem e ajuda a criar os fatos que constroem a
história. Quando Amaro, no romance, inventa histórias sobre o namorado de Amélia,
para ela sentir repugnância e terminar o namoro, notamos sua falta de caráter, seu
egoísmo. No filme, Amaro, ao despedir o sacristão de suas funções porque ele
denunciou seu relacionamento com Amélia para padre Benito, percebemos sua falta
de humanidade, de caridade com pessoas menos favorecidas. Essas
caracterizações vão sendo fornecidas para o leitor/espectador aos poucos, no
decorrer da história e ajudam-nos na caracterização da personalidade de Amaro.
h) Desenvolvimento da história: para que uma história se desenvolva é
necessário que o protagonista busque alternativas ou tentativas de resolver seu
problema. Ele precisa sempre avançar em direção à sua meta para que as cenas
aconteçam, culminem na tensão principal e, finalmente, cheguem à resolução. Por
exemplo, o problema de Amaro, no começo do romance, é a dificuldade em
118
conseguir ficar sozinho com Amélia. Sua primeira tentativa é frustrada pela chegada
de alguém na cozinha da casa de Amélia, mas ele não desiste, através de algumas
artimanhas, consegue o que quer, Amélia fica grávida e com a decisão que ele toma,
cria-se a tensão principal do último ato: a morte de Amélia. No filme, acontece quase
a mesma coisa, Amaro fica obcecado por Amélia e vai tentar de tudo para consegui-
la, quando se frustra, tenta novamente, seus atos vão construindo a história até a
tensão principal: também a morte de Amélia. Esses momentos em busca de
soluções, ou as complicações que surgem, que realçam e dão sentido ao todo da
história e aumenta o envolvimento do leitor/espectador na história do romance/filme.
I) Ironia dramática: momentos na narrativa, em que o leitor ou o
espectador fica sabendo de algo antes que o próprio personagem e isso cria a ironia
dramática de uma passagem do texto, esse momento é chamado de revelação.
Quando isso acontece, o escritor fica obrigado a criar um momento para o
reconhecimento por parte do personagem daquilo que se sabe. Esses momentos
dão maior dramaticidade para a história. No romance, Amaro desconhece o autor do
comunicado que denuncia os padres, mas o narrador deixa claro para o leitor quem
ele é. Até descobrir, Amaro pratica ações que não o prejudiquem ainda mais perante
os olhos da sociedade beata de Leiria. O leitor o fica relegado à posição de
testemunha, ele participa da antecipação dos acontecimentos futuros que se
encontram no drama. No filme, não a revelação porque o artigo é assinado e
todos ficam sabendo ao mesmo tempo. Porém, em uma outra cena, quando padre
Benito descobre a relação entre Amaro e Amélia, somente o espectador tem a
revelação, na hora do reconhecimento por parte de Amaro, a ironia da situação
força dramática à cena: Benito começa a se confessar para Amaro, sua confissão é
dupla, dos seus pecados e os de Amaro. Este fica surpreso, sem ação, até se
enfurecer e brigar com padre Benito, que cai ao chão, com derrame. O espectador
participa ativamente em cenas assim, pois está imbuído de um saber maior que o do
personagem e isso lhe dá uma posição de superioridade.
J) Preparação e conseqüência: Quando um personagem se prepara
para uma próxima cena dramática, dá-se o nome de preparação. No romance, antes
da cena do manto de Nossa Senhora, o narrador mostra Amélia em casa, em
conflito com sua consciência, ajoelha-se e reza para Nossa Senhora lhe dar
tranqüilidade, mas esta o lhe responde, ela o se livra do peso angustiante da
119
condenação “ficava toda murcha, torcendo as mãos, abandonada da graça”.
81
Em
seguida sai de casa ao encontro dele e ao entrar na igreja, nem olha os santos com
medo deles. Uma manhã padre Amaro lhe entrega um manto de Nossa Senhora
para vestir e os dois se amam com paixão, Amélia esquecida de sua consciência se
entrega com volúpia. A preparação antes dessa entrega aumentou o impacto desse
momento dramático e acentuou a revolta emocional do leitor. No filme, essa
mesma passagem, -se de forma mais suave. O manto é entregue para Amaro
pela mulher do prefeito, para vestir a imagem de Nossa Senhora da igreja. No local
do encontro do casal, na casa do sacristão, Amélia mostra figuras de santos para
Getsemani, filha do sacristão, fala sobre as imagens e depois deixa o livro nas mãos
da menina e entra no quarto. Amaro a espera e os dois começam a se beijar, ele
interrompe e pega o manto para vestir Amélia. O diretor, como foi dito no capitulo
anterior, não coloca música, ele cria uma atmosfera muito real e faz parecer um jogo
de criança. Com a preparação antes da cena, a falta de música, o som somente
humano, o espectador não sente grande revolta pela implicação simbólica que há
por trás da significação do manto de Nossa Senhora. A atmosfera criada agiu como
apelo direto à emoção do público e a conseqüência do ato do casal não foi de
repúdio, funcionou como uma reviravolta emocional, sem grande choque.
L) Pista e recompensa: à medida que uma história se desenrola, uma
pista pode ser plantada para ajudar a construir a trama da narrativa. Geralmente a
recompensa vem perto da resolução da história. Essa pista assemelha-se a uma
metáfora, que age no inconsciente e deve facilitar a percepção de uma idéia que o
narrador quer exprimir.
Nas histórias analisadas, não temos pistas de suspense, próprias de
narrativas policiais, mas sim pistas subjetivas das facetas da personagem Amaro. No
desenvolvimento da intriga, no romance/filme, o narrador vai apresentando um
conjunto de rastros para adensar o caráter de Amaro, quer pelo seu comportamento
e atitudes, quer pelas relações sociais que mantém com a comunidade e com o
clero. É por esse recurso que o narrador mantém a curiosidade do leitor/espectador
para o que vai acontecer no percurso da narrativa. Ao longo da história do romance,
o narrador cria algumas crises que envolvem rompimento com a família, perda dos
pais, morte da tia protetora, abandono no seminário, desejo reprimido, ciúmes,
81
QUEIRÓS, op. cit. p. 247.
120
egoísmo, mentiras, obsessão, traição e por fim assassinato. Esses dramas
individuais e sua manifestação na fatura do texto nos dão as pistas do caráter de
Amaro e vislumbramos o desenlace da narrativa. Uma recompensa às avessas vem
com a confirmação do caráter negativo, no final do romance, e as conseqüências
deste para com a vítima da história. No filme, as crises criadas para o padre também
nos fornecem as pistas de sua personalidade: a caridade, o desejo por Amélia, a
busca da satisfação desse desejo, a ambição, o fechar os olhos para a corrupção da
Igreja, a admiração pelo padre Natálio (que representa a pureza de ideais, dando
uma indicação do pendor ideológico do filme), a negação do filho, o egoísmo, o
desespero pela perda da jovem. Através destas pistas, vamos criando uma
perspectiva hora positiva, hora negativa das atitudes do padre. Amaro do filme difere
um pouco do Amaro do romance em relação ao caráter. No filme vislumbramos
algumas atitudes positivas que no romance não são apresentadas: a caridade e o
desespero pela morte de Amélia. Mas a recompensa no filme suplanta as nossas
expectativas, para tornar o desenlace mais emocionante e inesperado, o narrador
demonstra sua aversão aos fatos apresentados de forma espetacular quando afasta
a câmera da última cena apresentada. Uma demonstração do repúdio pelos atos do
padre.
H) Elementos do futuro e anúncio: um bom escritor ou roteirista quer
sempre prender a atenção do leitor/espectador para o futuro dos acontecimentos da
trama. O anúncio serve para indicar o que vem adiante e isso os incentiva a esperar,
antecipar, a temer, a torcer, o que faz com que haja a sua efetiva participação na
história. O título da história de Amaro pode ser considerado elementos de futuro e
anúncio dos fatos que ocorrerão no drama, pois “nos leva a antecipar alguma coisa,
sem contudo sermos capazes de adivinhar qual será o resultado de fato”.
82
Muitas
passagens na história podem servir, também, de exemplos. No romance, quando
cônego Dias descobre os encontros entre Amaro e Amélia, antecipamos uma briga
entre os dois padres, o que acaba acontecendo, porém Amaro se defende afirmando
saber dos encontros entre o cônego e a senhora Joaneira. Ficamos ansiosos em
saber por algo que pode ou não acontecer de forma como Amaro espera, e não
ficamos surpresos, devido às pistas que o narrador plantou do caráter do cônego
Dias, quando ele “murcho” volta atrás de sua primeira atitude, e acaba por rir e
82
HOWARD E MABLEY., op. cit., p. 123.
121
felicitá-lo. Diferentemente do que ocorre no filme, nesta mesma passagem, pelas
atitudes mais reservadas de padre Benito, reveladas pelas imagens anteriores,
esperamos uma reação de total aversão, o que acontece. Ao saber dos encontros,
padre Benito enfurecido ataca padre Amaro, no clamor da discussão, Benito sofre o
ataque do coração.
No romance, Amaro entrega o filho para uma “tecedeira de anjos”
consciente de que lhe acontecerá e ficamos na expectativa se as coisas vão ocorrer
da maneira como ele previu. No filme não há essa criança, pois Amélia faz um
aborto. Porém, quando Amaro propõe esse ato, o associamos com o título do
filme O Crime do Padre Amaro e antecipamos o desenlace dessa ação, pois a
palavra crime sugere que uma morte irá acontecer. O futuro dos acontecimentos foi
plantado no momento em que Amaro pede que Amélia tire a criança e apontou o
que viria adiante, usando as intenções das personagens. Esses dois elementos são
excelentes recursos para manter o leitor/espectador envolvidos na história e fazê-los
participar.
I) Plausibilidade: aquilo que pode ser admitido, razoável. Na ficção, o
escritor se compromete com a plausibilidade das situações criadas durante a
narrativa, por meio de argumentos e evidências. Podemos dizer que as situações
expressas na história dO crime do padre Amaro são críveis, plausíveis. Os atos do
protagonista do romance nascem de uma lógica daquilo que o antecedeu e as
conseqüências são verossímeis comparadas com a realidade. Mesmo no filme, onde
não há um argumento antecedente de seus atos, as situações vividas por ele a partir
do momento em que ele chega à cidade, são justificativas plausíveis dos fatos que
acontecem. Todos os temas abordados nas histórias foram mais que um mero
registro do fluxo da realidade, através de formas criativas dessas realidades, os
escritores do romance/filme deixaram suas visões sobre as coisas que povoam o
mundo: religião, política, crime sem castigo, aborto, miséria. Através das atitudes
dos personagens, o narrador apresentou um painel verossímel de algumas condutas
humanas. Por exemplo, os atos de Amaro e de outros padres chocam-se com os
ensinamentos da igreja. Temos muitos casos anunciados pelos meios de
comunicação de casos ilícitos ligados a membros pertencentes à comunidade
religiosa e que continuam pregando em missas ou cultos religiosos.
122
A aliança entre a igreja e os políticos é outro exemplo da plausibilidade.
Tanto no romance como no filme está claro o envolvimento do clero com os políticos.
A igreja utiliza a sua influência e o seu poder de persuasão para conseguir votos
para os seus candidatos. No romance, padre Natário, utilizando-se de um falso
milagre, conseguiu votos para o seu candidato:
O padre Natário na última eleição tinha arranjado oitenta votos!
- Cáspite! – Disseram.
- Imaginem vocês como? Com um milagre! (...)
Tinha-se entendido com um missionário, e na véspera da eleição
receberam-se na freguesia cartas vindas do Céu e assinadas pela Virgem
Maria, pedindo, com promessas de salvação e ameaças do Inferno, votos
para o candidato do governo. De chupeta, hem?.
83
No filme, a união entre o clero e os políticos é mostrada através do
prefeito da cidade que ajuda a igreja em troca, também, de votos. Há uma passagem
bem clara dessa aliança quando a mulher do prefeito entrega dinheiro, no
confessionário, para padre Amaro e diz que é para a construção do hospital. Em
outra passagem, no entanto, o prefeito comenta com seus amigos do partido sobre
essa “amizade” entre ele e os padres, que na verdade é para troca de favores.
Nem é preciso dizer que isso acontece com freqüência na nossa
realidade, basta ir a uma pregação de em ano de eleições para escutarmos um
pronunciamento eleitoreiro por parte da comunidade religiosa.
Amaro cometeu vários crimes, dentre eles o de assassinato, pois foi
responsável pela morte de Amélia, e, no romance, de seu filho também. Porém o
padre não é punido. Por que não houve punição? Basta assistirmos aos noticiários
diários para presenciarmos crimes de todas as espécies sendo praticados sem que
haja punição para eles. Tanto Eça quanto Leñero procuraram denunciar o
comportamento dos padres e mostraram seus ceticismos em relação à derrota do
bem pelo mal porque é isso o que acontece na vida real. Acreditamos que a
punição possa ter existido: para a sociedade em geral. Na nossa realidade vemos
pessoas com atitudes iguais as do padre e mostrar as falhas do personagem pode
ter a intenção de fazer o leitor/espectador se indignar e mudar seu comportamento.
83
QUEIRÓS, op. cit., p. 87.
123
Eles consideram o conteúdo da história como algo que o autor considera verdadeiro,
e com algo comprometido com o assunto que está sendo retratado, portanto algo
que deva ser levado em conta, ser pensado e refletido.
J) Ação e atividade: Quando lemos ou vemos uma atividade sendo
realizada por um personagem, possivelmente estaremos associando a essa
atividade a alguma ação significativa que vai levar a história adiante, pois toda ação
precisa ter um propósito para ser justificada. Nas histórias analisadas, temos vários
exemplos de uma atividade com ação dramática. Vamos ver uma: no romance,
quando Amaro observa o manto de Nossa Senhora e contempla Amélia, vemos
nessa atividade as intenções maquinadas por ele e depois a ação dessas intenções
se revela dramática para a possível visão religiosa do leitor/espectador. Mesmo para
Amélia, a ação do padre não foi totalmente aceita. no filme, essa passagem foi
mais dramática. Amaro recebe o manto e o leva ao encontro com Amélia. Essa
atividade tinha uma intenção capaz de expressar a emoção e o desejo de Amaro. A
cena foi montada sem diálogo, pois este foi desnecessário para a sua composição. A
imagem é poderosa e fica marcada na memória, é mais eficaz que o diálogo. Em
outro momento, podemos ver Amaro recitar o poema Cântico dos Cânticos, da
Bíblia, adaptado para o filme. Amaro o faz para seduzir Amélia. A letra do poema
assume um sentido de ação para conseguir seu objetivo. Esse mesmo poema é
novamente recitado no final do filme: quando Amélia está no carro, toda
ensangüentada devido ao aborto mal sucedido, ela recorda-se do idílio que foi o
momento da concepção do filho ao ouvir o poema da voz de Amaro. Em off, recita-o.
Grande efeito dramático, uma situação paradoxal: trágica e lírica, a cena da sua
morte e o lirismo erótico do poema. No romance, um poema também é usado para
aguçar o desejo de Amélia: Cânticos a Jesus, “uma obrazinha beata, escrita com um
lirismo equivoco, quase torpe que à oração a linguagem da luxuria”.
84
Amaro o
lia em seu quarto enquanto pensava em Amélia. Essas leituras incutiram-lhe
atividade o propósito de fazer Amélia -lo também, um objetivo que s em prática.
Isso foi antes da consumação dos seus desejos e essa ação, a leitura do poema,
aguçou ainda mais o desejo de Amélia por Amaro.
84
Ibid., p. 77.
124
l) Diálogo: O diálogo bom e eficaz surge da personagem, da situação e
do conflito; revela personagens, e leva a história adiante”.
85
É um elemento de
identificação das personagens, através dele podemos caracterizá-las e julgarmos
suas atitudes. No romance, em uma reunião entre os padres, o diálogo entre eles
faz-nos vislumbrar a crítica do narrador em relação ao caráter negativo das atitudes
dos padres. O narrador deixa entrever a boa vida levada pelos padres, comparando-
a à dos mendigos, que viviam como animais. O diálogo usado pelos padres mostra a
ironia do narrador ao descrever os padres comendo enquanto falam sobre a miséria
do povo :
- Muita pobreza por aqui, muita pobreza! Dizia o bom abade. Ó Dias, mais
este bocadinho da asa!
- Muita pobreza, mas muita preguiça, considerou duramente o padre
Natário. Em muitas fazendas sabia ele que havia falta de jornaleiros, e
viam-se marmanjos, rijos como pinheiros, a choramingar Padres-Nossos
pelas portas. – Súcia de mariolas, resumiu.
- Deixe lá, padre Natário, deixe lá! Disse o abade. Olhe que pobreza
deveras. Por aqui famílias, homens, mulher e cinco filhos, que dormem
no chão como porcos e não comem senão ervas.
- Então que diabos querias tu que eles comessem? Exclamou o cônego
Dias lambendo os dedos depois de ter esburgado a asa do capão. Querias
que comessem peru? Cada um como quem é!.
86
Nesse diálogo, a fala dos padres explicou e exprimiu nuanças do caráter
deles de forma a poder identificá-los como pessoas mesquinhas e egoístas,
contrapondo-se aos ensinamentos pregados pela igreja: caridade, bondade, ajuda
material e espiritual aos mais necessitados.
No filme analisado, podemos observar essa dialética através dos diálogos
entre os padres ao discutirem sobre o celibato e a Teologia da Libertação. Como no
romance, o narrador deixa perceber a dualidade entre o que pregam e o que fazem.
Ao falarem do celibato, sabemos que padre Benito o prega, mas não o pratica. Em
um momento padre Amaro diz:
“Se o celibato fosse opcional, muitos problemas seriam evitados, não é, padre?”
O que o padre Benito responde:
85
HOWARD E MABLEY., op. cit., p. 137.
86
QUEIRÓS, op. cit., p. 85
125
“Isso é uma bobagem. É mais fácil ver um Papa mexicano que o fim do celibato.”
Notamos nesse discurso a falta de comprometimento com as leis da Igreja
e também uma crítica a ela. Em plena era moderna, a igreja ainda ser tão retrógrada
em relação a isso.
Quando o assunto passa para a Teologia da Libertação, a imagem revela
exaltação nas expressões do padre Benito e Natálio da mesma forma que suas
palavras revelam tensões verbais:
Fig. 03 Padre Natálio e padre Benito em um
diálogo tenso.
Nessas cenas observamos um debate entre os padres, comprometido
com a verdade explícita nas imagens. Estas revelam exaltações em suas
expressões da mesma forma que suas palavras revelam tensões verbais. O diálogo
entre eles é um fator constitutivo da imagem e é coerente e plausível com o que
dizem. As expressões dos rostos dos padres denunciam a complexidade do que
dizem. Vejamos qual é o diálogo entre eles:
Quando padre Benito fala que tem um assunto importante para tratar,
padre Natálio pergunta:
Gostaria de saber quais são as acusações contra mim, padre.
Os efeitos da sua maldita Teologia da Libertação.
O que a teologia da libertação tem a ver?
O bispo tem informações precisas, padre Natálio, de que você es
protegendo ou ajudando guerrilheiros na sua região.
Que guerrilheiros?
Você dá armas para eles, ou esconde as armas deles.
Mentira! Isso não é verdade. Não há guerrilheiros lá, traficantes. Os
traficantes dos irmãos Aguilar. Chato Aguilar
Estou falando de guerrilheiros.
126
E eu, de traficantes que invadem terras de camponeses e os obrigam a
plantar papoula. Eles os ameaçam e os matam caso se recusem a auxiliá-
los. Pistoleiros e traficante. Estão na comunidade e matam a minha gente.
O bispo sabe que você ajuda guerrilheiros.
E não sabe que Chato Aguilar lava dinheiro com doações? Doações para o
seu maldito centro hospitalar.
Você não sabe de nada!
Eu sei de tudo. Sei o que acontece na minha comunidade.
Se não vai me ouvir, vai arcar com as conseqüências.
87
Sabemos quais são as conseqüências: a excomunhão do padre Natálio.
Esse diálogo não se encontra no romance, pois a trama que se desenvolve entre os
padres do filme o possui correlação com a trama do romance. Neste não
envolvimento dos padres com o tráfico de drogas. Como vimos o diálogo entre os
padres é tenso, cheio de acusações. Percebemos, também, um jogo de afirmações
e negações, onde ora se sobreleva a certeza com tom acusatório, ora o tom se
encarrega de manter a negação. Esse clima pesado é conseguido pelo fato de
sabermos de antemão que padre Benito é comprometido com o tráfico, que dele
podemos duvidar, negando a validade de suas afirmações. Imagem e diálogo, nessa
seqüência, mantêm-se fiel ao sentido que transmitem: a verdade e a coerência entre
si.
87
Diálogo retirado do filme da forma como eles falaram.
127
Fig. 04 – Cenas das mãos, da voz e dos lábios traduzindo sensualidade.
Nessa seqüência, o cotejo da voz de Amaro com o gesto das mãos no
corpo de Amélia suscitou um efeito de contraponto - mãos, voz e lábios traduziram
sensualidade ao ato do casal: “Como o lírio/ Entre os espinhos/ Assim é minha
amada/ Entre as mulheres...” Este jogo de contraste ressalta ainda na cena em que
Getsemani, em sua cama, se contorce e grita cada vez que escuta, no quarto ao
lado, os movimentos de amor entre Amaro e Amélia, ao mesmo tempo em que a voz
em off de Getsemani chega até o quarto contrastando com o ato sensual do casal.
Em outra seqüência do filme, quando Amaro busca a ajuda de Dionísia
para encontrar uma clínica clandestina para fazer o aborto em Amélia: ao entrar na
sua casa, escutamos uma sica sacra, esse efeito de som libera as imagens de
seu papel explicativo e exprime o conteúdo dramático daquilo que irá acontecer;
neste momento, as imagens sozinhas o conseguiriam traduzir o significado do ato
do padre.
Em outro momento, temos outra dualidade contrastante: enquanto Amélia
faz o aborto, fora Amaro se depara com o homem a quem ajudou no início do
filme; o diálogo ameno entre eles é o oposto do que ocorre dentro da clínica.
Quando Amélia sai da clínica e Amaro desesperado a leva para outro hospital, no
caminho, em meio a lágrimas de agonia, escutamos outra voz em off “teus seios são
crias de gazela”, revivendo o momento da primeira relação sexual. Esse efeito
proporciona uma dimensão psicológica real do pensamento de Amélia ou de Amaro:
como tudo aquilo começou e suas conseqüências, conferindo um tom de nostalgia e
tristeza à cena. Depois o silêncio e a eloqüência do primeiro plano do casal para
dar ênfase ao desespero de Amaro diante do drama que está vivendo.
128
Por fim, o diálogo é um recurso importante do cinema, poderoso para
emprestar significados à cena, sendo portanto essencial a perfeita relação entre fala
e ação.
M) Elementos visuais: No romance, esse recurso toma forma pela
descrição. O narrador mescla diálogos entre as personagens e descrições, das
personagens, da paisagem, do ambiente, do objeto, para compor sua história. Pela
voz do narrador descobrimos como é Amaro, “uma boa figura de homem”
88
, ou
Amélia, “uma bela rapariga, forte, alta, bem-feita”
89
, a cidade de Leiria, “Em roda da
Ponte a paisagem é larga e tranqüila. Para o lado de onde o rio vem são colinas
baixas, de formas arredondadas...”
90
, os outros personagens, o “bilioso” Natário, o
“bestial” Brito, o “lascivo” cônego Dias, o “bom” abade Ferrão, as “velhas” D. Maria
da Assunção, D. Josefa Dias, as irmãs Gansosos e o indefinido Libaninho, a
situação social de Portugal, “E assim uma burguesia entorpecida esperava deter,
com alguns polícias, uma evolução social: e uma mocidade, envernizada de
literatura, decidida destruir num folhetim uma sociedade de dezoito séculos”.
91
Enfim, através das descrições, dos diálogos, o narrador vai montando um vasto
dossiê sobre as mazelas da sociedade portuguesa do século XIX. Os personagens e
os ambientes possuem existência concreta, não coube uma visão romanesca, mas a
observação dos fatos, com assuntos contemporâneos para a época. Conscientizou
os leitores dos problemas sociais, de acordo com a ideologia do movimento artístico
a que pertencia.
Quanto ao filme, os elementos visuais foram bastante trabalhados no
capítulo anterior. Vimos que no discurso fílmico, os recursos são muito variados: a
câmera, as elipses, metáforas, recursos sonoros, os diálogos, iluminação, os planos,
enquadramentos, o vestuário, o cenário, a cor, enfim, tudo que ajuda a compor uma
história para ser projetada em uma tela de cinema.
Sem parecer repetitivo ou cansativo, falaremos mais um pouco sobre os
elementos visuais do filme, seguindo, também, as técnicas para roteiro de Howard
e Mabley. A descrição da cena deve incluir informação detalhada referente a uma ou
88
QUEIRÓS, op. cit., p. 24.
89
Ibid., p. 29.
90
Ibid., p. 19.
91
Ibid., p. 354.
129
mais das áreas
92
que explicaremos abaixo. É importante que haja a descrição dos
elementos visuais dentro de um roteiro, pois ajuda na construção da cena e
determina o estilo da história. O diretor, com certeza, cria detalhes, planos, e outros
recursos, mas primeiramente ele olha o que o roteiro indica, depois faz as
adaptações ou mudanças necessárias. Escolhemos algumas cenas para explicitar
essas áreas que os autores propõem:
1. Locação física da cena:
Fig. 05 – Cena que mostra o quarto de Amaro.
No romance, Amaro residia na pensão da e de Amélia, no filme, o
roteirista mudou para a casa paroquial. Vejamos a locação onde Amaro se encontra:
quarto escuro, iluminação que vem da porta mostrando a figura do padre , ele em pé,
observando o quarto. Alguns desses itens se encontravam no roteiro, o diretor,
depois a enquadrou para mostrar mais determinado ponto que outro, para destacar
algo que ele achava mais importante. Nesta cena, ele quis que Amaro parecesse um
estranho, havia acabado de chegar à cidade, não conhecia quase ninguém; sua
figura, na penumbra, mostra o desconforto que possivelmente estaria sentindo e
também sugere que ele será o centro de todo o drama da história.
92
As descrições de 1 a 11 que compõem as áreas propostas por Howard e Mabley são escritas da forma como
colocamos na análise e se encontram nas págs. 143-144 da obra já citada anteriormente.
130
2. Indicações sobre o universo da história:
Fig. 06 – Cena em que Amaro descobre a relação entre padre Benito e Sanjuanera.
Nessa cena, Amaro descobre a ligação ilícita entre padre Benito e a mãe
de Amélia. A descrição deste conteúdo é bastante semelhante entre o romance e o
filme. O roteirista retirou do romance de Eça essa passagem e a transpôs para a
imagem com bastante fidelidade:
(...) ao passar diante da sala de jantar sentiu no quarto da S. Joaneira,
através do reposteiro de chita, uma tosse grossa; surpreendido, afastou
sutilmente um lado do reposteiro, e pela porta entreaberta espreitou. Oh
Deus de Misericórdia! A S. Joaneira, em saia branca, atacava o colete; e,
sentado à beira da cama, em mangas de camisa, o cônego Dias resfolegava
grosso!.
93
A indicação do universo da história é dada a conhecer para o diretor
para que ele possa comandar a câmera para o melhor ângulo que indique a
hipocrisia da igreja.
3. Quais os personagens presentes e indicações sobre a condição ou
aparência física deles:
93
Ibid., p. 79.
131
Fig. 07 – Cena que mostra Martín como testemunha do flerte entre Amaro e Amélia.
A primeira missa do padre e o flerte entre Amélia e Amaro. O roteirista
muito possivelmente deve ter orientado para a junção no mesmo quadro desses três
personagens. O sacristão Martin como personagem secundário, mas importante em
alguns momentos da narrativa: será ele que denuncia os amantes, ele é quem
testemunha o primeiro olhar entre Amaro e Amélia, como vemos nesta cena.
Sempre por perto, como sondando. Sua presença neste flerte entre os dois amantes
será o inicio de outros momentos parecidos. A descrição da aparência do sacristão:
pessoa simples, do povo. De Amélia: menina bonita, com roupa de domingo para
missa, cabelo arrumado. Amaro, logicamente, de batina. Essas podem ser as
recomendações do roteirista.
4. As ações especificas dos vários personagens:
Fig. 08 – Cena que revela a sensualidade moderna de Amélia.
Esta cena não tem correlação no romance, é uma criação do roteirista,
para mostrar a sensualidade moderna da jovem Amélia. O filme é transportado para
2002, portanto as atitudes dos jovens de hoje são diferentes das retratadas no
século XIX: Amélia sobe uma escada vestindo mini-saia, tropeça para ser segurada
pelo bonito padre, essas ações são indicações do roteirista para melhor situar o
diretor nas tomadas de decisões no momento da gravação.
5. Uma indicação sobre o tamanho da imagem, movimento da câmera ou do
personagem, e/ou uma sugestão da composição dos elementos visuais no
enquadramento, sem ditar as particularidades ao diretor, sem dúvida o
encarregado de tomar as decisões finais:
132
Fig. 09 – A iluminação sugerindo sentidos para o texto visual.
Nesta cena, Amaro comunica a Amélia onde será o encontro dos dois.
Existe este momento no romance, porém o local e como é dada a notícia são
diferentes. Vejamos a imagem: iluminação centrada entre os dois personagens,
vinda do fundo, clareando parcialmente o casal. Destaque para o formato da luz:
como foi focalizada, a impressão de uma stia ao fundo e o casal no centro
dela. Sabemos que todo o drama da história envolve a proibição da igreja frente ao
amor carnal dos padres, portanto a escolha desse ângulo, dessa iluminação, desse
plano, pode ter sido sugerida pelo roteirista e o diretor criou uma imagem
espetacular.
6. Dicas sobre o estilo da história que está sendo contada e sobre o estilo de
cada cena quando houver mudanças (do presente a um flashback, do real à
fantasia, do surrealista ao lúcido).
Fig. 10 Imagem de Cristo testemunhando o
primeiro beijo.
Podemos observar a imagem de Cristo observando a cena do primeiro
beijo entre Amaro e Amélia. No romance, o narrador em alguns momentos faz
referência à presença de imagens, ora como objeto de adoração e sensualidade:
133
“sentia um amor físico pela igreja; desejaria abraçar, com pequeninos beijos
demorados, o altar, o órgão, o missal, os santos, o u, porque não os distinguia
bem de Amaro, e pareciam-lhe dependências da sua pessoa”,
94
ora como objeto de
pavor: “Ao entrar na igreja não rezava, com medo dos santos”,
95
e em outros
momentos como observadora indignada dos acontecimentos: “E Amélia atravessou
rapidamente a igreja, de cabeça baixa e olhos nas lajes, como se passasse entre as
ameaças cruzadas dos santos indignados”.
96
Este último, o roteirista aproveitou bem
em sua transposição, são vários momentos em que ele coloca as imagens como
recriminadoras dos atos do jovem casal, uma vez que ela é representante dos
ensinamentos da igreja. A figura silenciosa de Jesus testemunha o fato: crítica
silenciosa do diretor. Aliás, o próprio Eça sugere isto: os Santos como testemunhas
condenatórias. Sobre esse assunto, falamos no capitulo anterior, demonstramos
aqui somente a semelhança e a diferença entre romance/filme. Agora, o estilo
escolhido pelo roteirista, da imagem de Cristo observando a cena, é bastante
voltada para o imaginário cristão, para alguns até surreal, porém a dica proporciona
ao diretor uma ampla escolha dos elementos visuais, e ele o fez com bastante
critério e a cena transmite sensualidade e ao mesmo tempo choca o espectador.
No romance, o primeiro beijo acontece no sítio de Joaneira, mãe de Amélia, e, com
certeza, a mudança física do local pelo roteirista proporciona um impacto dramático
muito maior.
7. Contrastes entre cenas ou entre momentos diferentes dentro de uma mesma
cena.
Fig. 11 – Contraste entre Getsemani e o casal.
94
Ibid., p. 95.
95
Ibid., p. 247.
96
Ibid., p. 249.
134
A sugestão, aqui, parece-nos bastante apropriada: Getsemani em delírio
ao sentir as vibrações sensuais vindas do quarto ao lado. O contraste é gritante e
perturbador. A menina é doente, não sai da cama e sente prazer ao imaginar o que
está acontecendo no quarto ao lado. O casal é jovem, sadio, bonito e estão se
amando. Depois, o diretor montou a cena e o contraste oferecido concretiza um dos
temas apresentados pela história: a falta de respeito pelos menos favorecidos. No
romance, o narrador apresenta o mesmo contraste, o local físico também é o
mesmo, a personagem da menina doente difere somente no nome: Totó, o clima de
delírio e sensualidade permanece também igual.
8. Indicação de mudanças no andamento e no ritmo.
Fig. 12 – Movimentos rápidos de Amaro.
O roteirista, com certeza, pode sugerir ou interferir no andamento e no
ritmo das tomadas de uma cena, mas com bastante critério, prudência e delicadeza,
para não ofender o diretor, que o trabalho de montagem de uma cena fica a
critério dele e sugestões o bem vindas desde que não atrapalhe seu objetivo final
para a cena. Na cena acima, Amaro está tirando Amélia da clínica clandestina. A
sugestão pode ter vindo em relação aos movimentos rápidos de Amaro, para que
caracterize bem seu desespero perante a situação criada por ele, ou seja, a morte
de Amélia. Não há correlação dessa cena com uma passagem do romance, uma vez
que Amélia, no romance, não sofre aborto.
135
9. Indicação de luz, textura e cor:
Fig. 13 – O amanhecer como indicação da passagem do tempo.
Nessas cenas, vemos Amélia se esvaindo em sangue. Na primeira
imagem temos o amanhecer, para que possamos imaginar o tempo percorrido entre
a chegada de Amélia na clínica e sua saída: noite alta e inicio do outro dia, o tempo
de seu martírio. A indicação da tomada para o amanhecer serve para conscientizar o
espectador do sofrimento de Amélia. Depois, a sugestão do sangue em cor bem
acentuada e em abundância para criar o clima de pesadelo vivido principalmente por
Amélia. Em outra cena, a claridade do dia é a iluminação natural para registrar a
angústia do padre. Esses artifícios acrescentam novos elementos à ação final
realística da cena e o amanhecer surte um efeito de emoção mesclada com
melancolia e tristeza no espectador, pois contrasta a idéia de início do dia com a de
fim da vida de Amélia. As cenas da figura 13 não têm correspondência com a
história do romance, uma vez que neste Amélia não faz aborto, ela tem a criança na
casa de sua madrinha, com ajuda de um médico e morre depois, de convulsão, ao
saber que seu filho fora embora. Amaro nem mesmo está presente neste momento.
10. Indicação de sons, tanto objetivos (gerados por fontes presentes na tela)
quanto subjetivos (usados para efeito dramático, como o batimento cardíaco
de um personagem durante momento de perigo).
136
Neste quesito, vamos utilizar as mesmas imagens da fig. 13: a indicação
de som, nestas cenas finais do filme, foi o barulho do carro enquanto Amaro percorre
o caminho que leva ao hospital mais perto e após a morte de Amélia, a sugestão de
uma música suave, sacra que transmite desalento e dor enquanto Amaro tenta
reanimar Amélia. Neste momento, ela sustenta a ação e age sobre os sentidos
criando uma ambientação intensificadora da sensibilidade do espectador.
11. Dicas para o figurinista, para o diretor de arte, cabeleireiro, paisagistas e
todos os outros profissionais que contribuem para aquilo que o público de fato
vê e ouve na tela.
Fig. 14 – Interior da casa de Dionísia.
Fig. 15 – Construção do hospital.
Fig. 16 – Amélia, uma bela rapariga.
As dicas para essas imagens foram bem realistas diante da significação
que elas representam. Na primeira, fig. 14, como dissemos anteriormente, é a
casa de Dionísia, muito bem retratada, os vários objetos e o modo da disposição
deles traduzem bem a mente perturbada da dona da casa.
Na segunda imagem, fig. 15, a sugestão foi para uma construção que
simbolizasse um hospital e como vemos, o prédio está em processo de reforma, com
terra no chão, pedras soltas ao redor; num detalhe da cena, a sugestão da
presença do sacristão, novamente em um momento em que ocorre um flerte entre
Amaro e Amélia.
137
Na terceira, fig. 16, a dica foi para compor a personagem de Amélia:
jovem, bonita, meio despojada, sensual sem ser vulgar, cabelos longos, lisos. Essa
descrição faz jus à descrição do narrador no romance: “uma bela rapariga, forte, alta,
bem-feita”.
97
Ao examinar as características gerais desta última imagem,
perceberemos novamente que tudo o que é mostrado na tela tem um sentido, e que
perceberemos através da reflexão. Esta imagem sugere ao espectador mais do
que o conteúdo aparente. O diretor deu à imagem um conteúdo implícito: um índice
da tragédia que iria acontecer com Amélia. Esta imagem faz parte da cena em que
Amélia após ser esbofeteada por Amaro, quando este soube da gravidez, vai para a
cama com o padre e se reconciliam. Nesta seqüência, o filme mostra seu objetivo, a
raiz da trama, o conflito do casal, a gravidez indesejada. Os personagens se
mostram desesperados e a imagem revela a tragédia que está por vir: a morte de
Amélia. Reparemos nos cabelos dela, desalinhado e com um fio cortando a sua
face. Esse conteúdo implícito sugere uma marca da morte de Amélia: o sangue.
Como sabemos, Amélia morre se esvaindo em sangue devido ao aborto mal
sucedido. A imagem, portanto, sugere para além do conteúdo dramático e explicito
da ação.
Retornando para a primeira imagem, fig. 14, no romance, a casa de
Dionísia é muito velha, “com a madeira carunchosa, ..., algumas litografias
desbotadas pendiam lugubremente de grandes pregos negros,..., os soalho, todos
escarrados, as paredes riscadas de fósforos...”.
98
Como vemos na imagem e na
descrição do romance, a casa das duas personagens são velhas, mas diferem nos
objetos espalhados e na significação deles. A personagem do romance não é
perturbada e os objetos que ela guarda são para empenhar, pois ela precisa de
dinheiro. Outrora, Dionísia, não passava dificuldades, fora a Dama das Camélias
99
,
personagem de Alexandre Dumas Filho, romance em que a personagem viveu a
igualdade dos sexos entre homem e mulher. É a história de uma elegante cortesã
francesa, em meados do século XIX, que encanta por sua beleza e mantém um
romance com um rico progenitor da emergente burguesia urbana. A comparação
entre Dionísia e a personagem do romance pára nesse quesito: de cortesã (por isso
97
QUEIRÓS, op. cit., p. 29.
98
Ibid., p. 100.
99
Ibid., p. 100.
138
a referencia à Dama das camélias), pois no romance de Dumas, a personagem ao
saber que seu relacionamento seria a ruína da família de seu amado, renuncia a ele
e fica reconhecida, na sociedade, como a cortesã mais honesta e guardiã da falsa
moral burguesa da época. Como sabemos, Dionísia, no romance de Eça, encobria o
caso amoroso do padre com Amélia por “algumas meias libras”,
100
e na história do
filme, ela recebeu dinheiro do padre para indicar uma “tecedeira de anjos” para fazer
o aborto em Amélia. Sendo assim, Dionísia não é honesta, nem uma guardiã de
bons costumes.
O hospital, na segunda imagem, fig. 15, também é sugestão do roteirista,
no romance não envolvimento da igreja com o tráfico. No filme, Chato Aguilar,
chefe da quadrilha, lavava dinheiro do tráfico e repassava para o padre Benito
construir o hospital para a cidade. É sabido que o tráfico de drogas nas cidades
mexicanas continua crescendo e a violência entre autoridades mexicanas e
membros dos poderosos cartéis vem eclodindo em todo o país, deixando muitos
mortos e as cidades desamparadas. Vejamos o envolvimento da Igreja com os
membros dos cartéis pela voz do próprio diretor, em entrevista gravada para o DVD
do filme:
Há, no México, muitas histórias ligando padres a traficantes. Há duas razões
para a relação entre padres e traficantes no México: uma é a convivência,
outra, a falta de opção. Diga a um traficante que não batizará seu filho,
estará encrencado. Tem-se, aqui, mais um ponto para debate: usar ou não
o dinheiro das drogas para fazer o bem. O padre Benito quer construir um
hospital. Tem o lado bom e o lado ruim. Traficantes apesar de serem
assassinos, têm tendências filantrópicas em suas comunidades, são sempre
benfeitores e, por isso, estimados. Por isso, têm força e o protegidos pela
comunidade. Beneficiam a comunidade, mas para que isso seja possível,
matam e coisas do gênero. Neste filme não tem mocinhos, nem bandidos.
101
Como podemos perceber, pela narração do diretor do filme, um
possível envolvimento entre a igreja e o tráfico no México. Pelas notícias da
televisão e pelos jornais, a violência provocada pelo tráfico de drogas atinge todas
as regiões do país, toda a demografia, incluindo crianças e músicos populares. Os
jornais mexicanos relatam mortes e violências geradas pelo tráfico diariamente. É
100
Ibid., p. 225.
101
O crime do padre Amaro. Carlos Carrera. México: Alameda Films, 2002. 118 min. Drama. DVD
vídeo. Dolby Digital. Colorido
139
muito triste e afeta a todos de uma forma ou de outra. Essa realidade, Carrera
conseguiu transportar para o seu filme. A questão do envolvimento entre a Igreja e
as autoridades da cidade de Los Reyes e o tráfico partiu da realidade mexicana, do
que se pela televisão e pelos jornais. Ficção e realidade se unem para dar força
ao conteúdo do drama do filme. A ficção se realiza, aqui, com plena comunhão entre
ela e tudo o que existe fora dela, é um ato compartilhado, garantindo os significados
das relações. Vejamos pelas palavras de Howard e Mabley:
(...) a ficção espraia-se por entre grupos de diversas origens e estabelece
experiências comuns, referenciais e compartilháveis. O desenvolvimento e a
aceitação da ficcionalidade que acontece na sociedade midiática moderna,
somados à relação cada vez mais mediada a que se sujeitam as pessoas,
deram à sociedade um caráter espetacular, que torna cada vez mais
indefinidos os limites entre ficção e realidade.
102
A descrição detalhada das cenas para a montagem do filme que compõe
um roteiro facilita na composição das mesmas e “também ajuda a determinar o
universo da história e fornece indicações dos muitos tipos de contrastes entre cenas
ou até mesmo de mudanças dentro de uma mesma cena”
103
. Na nossa análise,
serviu para identificarmos mais algumas diferenças e semelhanças no conteúdo das
histórias analisadas.
Voltemos, agora, à leitura do roteiro do filme:
N. Cenas dramáticas: em uma boa cena necessidade de haver um
objetivo, os obstáculos, uma culminância e uma resolução e o protagonista que a
compõe o precisa ser o mesmo da história toda. Por exemplo, quando o narrador
do romance criou a passagem em que João Eduardo escreve o comunicado
denunciando os padres para a Voz do Distrito sob o pseudônimo O Liberal, ele é,
naquele momento, o personagem central da intriga da narrativa. Apesar de ele ser
um personagem secundário no contexto da história, conduz a ação e faz o conflito
acontecer, é o dono da cena, leva-a adiante para outros acontecimentos. Em termos
gerais, uma ação dramática se resume em: alguém quer muito algo, mas um
obstáculo o atrapalha, a ação acontece em algum lugar, em certo momento e às
vezes responde o porquê do sucedido. Então temos: João Eduardo quer Amélia. No
102
COSTA, op. cit., p. 15.
103
HOWARD E MABLEY, op. cit., p. 143.
140
entanto o padre Amaro é o seu antagonista, pois a quer também e leva algumas
vantagens, uma vez que Amélia é muito devota à religião. O que ele faz? Escreve
um comunicado para o Jornal local denunciando a hipocrisia dos padres. Com isso
consegue afastar Amaro da casa de Amélia e reata o namoro com ela. Na
conseqüência dessa ação temos uma elipse temporal e uma transição para a
próxima ação: Amaro fica afastado por um bom tempo do aconchego do lar da
família de Amélia, depois desmascara João Eduardo, faz a jovem se afastar dele e
volta a freqüentar a casa. Resolvida essa situação.
Essa ação dramática é transportada para o filme com muita semelhança:
a cena retrata o jornalista Rubén, também apaixonado por Amélia. Ele sente ciúme
do padre, percebe os flertes entre eles, portanto Amaro é seu antagonista e seu
obstáculo. Rubén também não gosta dos padres, descobre a ligação entre eles e o
tráfico. O que faz? Escreve um artigo denunciando a ligação. Amélia ao descobrir
que foi ele o autor da “difamação”, desmancha o namoro. Em conseqüência, Amaro
se aproxima mais ainda de Amélia e faz o jornalista perder o emprego. Tanto no
romance como no filme, por algum tempo João Eduardo/Rubén foram os
protagonistas da ação; através dos diálogos, das descrições, dos elementos da
linguagem escrita ou fílmica, soubemos de suas emoções, seus sonhos, seus
medos. A cena pertenceu a eles. Depois, a história flui e segue adiante para outras
cenas dramáticas.
O. Observações especiais: o romance é uma forma artística mais apta a
expressar as perplexidades da nossa realidade. Os melhores ficcionistas em prosa
souberam revestir as personagens do mais profundo sentido humano. Eça é um
modelo desses artistas e Carrera bebeu em sua fonte para enriquecer sua história
imaginária com a reflexão da realidade, o pensamento político, a revolução ética.
Romance e filme têm nos aspectos sociais e nos dramas pessoais a mistura perfeita
para formar a trama das histórias. São histórias de confronto entre o desejo e o
pecado. Amaro e Amélia são seres humanos bem distintos, a força motriz por trás do
conflito entre eles tem a ver com o poder, a religião, a política, a vaidade, a
corrupção. O choque entre essas forças cria e sustenta as histórias.
Tanto o romance como o filme possuem características da tragédia. Na
tragédia clássica, as personagens eram isentas de conflitos íntimos. Elas eram
apresentadas como figuras radiantes, vencedoras, envoltas numa auréola de glória,
141
quando, de repente, vêem-se vítimas de uma alteração brusca do destino. Um
acontecimento terrível que os conduzem à desgraça e ao mundo das sombras.
Assim é o caso de Édipo, rei de Tebas, que casa com a rainha viúva e de repente
tudo desaba ao seu redor. Os poemas de Homero, tanto a Ilíada como a Odisséia,
oferecem vários desses momentos de infelicidade: o desespero de Aquiles quando
perde o seu amigo Pátroclo num combate; O encontro de Ulisses com Aquiles na
morada dos mortos; a humilhação de Príamo, o velho rei de Tróia, que é obrigado a
suplicar a Aquiles pela devolução do corpo do filho. O objetivo do poeta é enaltecer
a bravura e os feitos dos combatentes e não provocar compaixão nos leitores ou
ouvintes. A Tragédia Moderna retoma e amplia os temas da Tragédia Clássica, uma
vez que estes se debruçam sobre o exame do papel do homem no mundo. A
diferença está em que, nesta, o individuo é cercado pelo destino, enquanto que,
naquela, afirma a sua individualidade a qualquer preço de modo que o herói
enfrenta conflitos que dependem de seu caráter e não é figura radiante nem
glorificada. No romance de Eça, o destino dos personagens é decorrente não mais
de insondáveis desígnios celestes, como nas tragédias gregas, porém de outras
condições determinantes. As personagens são típicas representantes deste
determinismo circunscrito à contingência humana, dele advém a tragédia, e não
mais de um ente superior.
Atentamos na forma como Eça e Leñero promovem o relacionamento de
Amaro e Amélia, conduzindo-os a uma situação trágica. O conflito, presente nos
pares do romance/filme, processa-se em desiguais níveis de tensão, e vai-se
resolver, também, de modo diverso. No romance, o trágico revela-se na morte
premeditada do filho de Amélia por Amaro. No filme, a conseqüência do aborto mal
sucedido leva à morte a protagonista. Há, portanto, no romance um nível maior de
tensão e uma revolta maior ainda contra a personagem de Amaro. No filme, Amaro é
um ser complexo e paradoxal, motivo antagônico e ambíguo do nosso desprezo,
mas, também, de nossa piedade pelo tipo de ser humano que ele representa:
bom/mau/obstinado/covarde/leal/desleal/gentil/brutal, ou seja, cheio de contradições
devido ao meio em que vive.
Há, também, uma ironia no final do romance/filme: Amaro não é punido.
Por que o houve punição, uma vez que Eça e Leñero procuraram denunciar o
comportamento nocivo dos membros da Igreja? Justamente porque não estão
142
pintando uma situação ideal, mas desenhando uma sociedade corrupta, onde o mal
prevalece e os maus são premiados. Assim, tanto o livro como o filme são obras de
denúncia e daí advém o seu caráter transformador: mostrar as falhas da sociedade a
fim de levar o leitor/espectador à indignação e à tentativa de corrigir os rumos desta
mesma sociedade.
Enfim, romance e filme foram sucesso porque tratam de temas próprios
dos seres humanos, independentes do tempo histórico de cada um. Amor,
relacionamentos afetivos, sentimentos, questões sociais, temas políticos e outros
assuntos, relacionados à condição humana foram abordados de forma realista e
presente na vida dos leitores e dos espectadores.
143
CAPÍTULO 4
4. ABORDAGEM EM SEMIÓTICA SINCRÉTICA VERBO-CINEMATOGRÁFICA
No intuito de aprofundarmos o estudo da adaptação do romance de
Eça, O Crime do Padre Amaro, para o cinema, no filme homônimo, faremos uma
análise desta transcodificação sob o prisma da teoria semiótica.
A partir dos estudos de Ferdinand de Saussure, a lingüística atingiu
enormes progressos. Para ele a língua é um conjunto bem organizado de elementos
representativos: sistema de signos. Ou mais do que um sistema, um conjunto de
subsistemas que se integram: dimensões fônicas, morfológicas, sintáticas e
semânticas. Assim a significação global de uma palavra ou com outras na frase de
que fazem parte nasce “das relações fono-morfo-sintático-semânticas que estão na
base da organização desse complexo sistema”.
104
A língua acompanha as
mudanças da sociedade, é, portanto, uma criação social, que coloca à disposição do
individuo múltiplo repertório de possibilidades para o seu discurso. A literatura se
beneficiou desses estudos por ter na língua seu instrumento de manifestação. O
texto literário veicula uma forma especifica de comunicação que evidencia um uso
especial de discurso, que se efetiva na inter-relação autor/texto/leitor e admite
diferentes interpretações.
O conceito de dialogismo foi lançado pelo teórico soviético Mikhail
Bakhtin, que em oposição ao pensamento saussuriano, que privilegia a língua em
sua dimensão ideal, ele concentra suas atenções no discurso e entende que a
linguagem implica um conceito histórico-social: o homem se transforma num ser
histórico e social a partir dos signos que lhe comunicam o mundo. Estes signos são
impregnados de ideologia, pois reflete as estruturas sociais.
As palavras de um enunciado estariam assim carregadas de significação
vinculada a inúmeros contextos vividos, e toda comunicação envolveria a
interação de um falante, um destinatário e um “personagem” (de que se
fala) envoltos por um horizonte comum que possibilita a compreensão dos
elementos ditos e não ditos. (...) a realização de qualquer comunicação ou
interação verbal envolve uma troca de enunciados, situa-se na dimensão de
104
PROENÇA. Domício F. A linguagem literária. São Paulo: Ática. 1996, p. 23
144
um diálogo. (...) À luz desses posicionamentos, o discurso literário envolve
um cruzamento, um diálogo de vários textos.
105
Para o nosso estudo, interessa-nos o diálogo entre literatura e cinema.
A partir dos estudos do filósofo norte-americano Charles Sanders
Peirce, no começo do século XX, -se a constituição de uma ciência semiológica.
“Seu conceito de “interpretante” (signo que dá sentido a outro signo) e sua
classificação dos signos em ícone (relação imagética ou de semelhança), índice
(relação de contigüidade) e símbolo (relação convencional) constituem o fundamento
do estudo dos signos”
106
. Sobre a trilha de Peirce, caminha o semiólogo A. J.
Greimas, entre outros. Assim, a literatura se beneficia desses estudos que visam
analisar a língua.
Partindo desses estudos, este capítulo fará uma abordagem das
linguagens verbal e não-verbal, considerando a relação entre literatura e cinema
como uma forma de dialogismo intertextual. diversos enfoques para analisar-se
essa relação. Aqui, cabe apenas a interpretação da narrativa de um pequeno
excerto do romance de Eça e a relação deste com uma cena do filme de Leñero,
sob a luz das semióticas greimasiana e daviliana. Faremos uma leitura nos níveis
discursivo, narrativo e profundo do texto extraído do romance, e uma leitura narrativa
e discursiva das cenas do filme. A riqueza da história tratada no romance e do filme
mereceria uma análise detalhada de todos os aspectos semióticos. Limitar-nos-
emos, no entanto, em levantar alguns aspectos discursivos e mio-narrativos do
fragmento escolhido.
A escolha do fragmento do romance foi devido à semelhança existente
entre a linguagem romanceada e a transposição para a obra fílmica,
transcodificando-a.
A análise da narrativa fundamentou-se, ordenadamente, nas seqüências
a seguir:
Capítulo XVI
(...)
105
Ibid., p. 71.
106
D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do Texto: Prolegômenos e teoria da narrativa.. São Paulo: Àtica,
2002, p. 44.
145
Sequência 1
Encontravam-se todas as semanas, ora uma ora duas vezes,
de modo que as suas visitas caridosas à paralítica perfizessem ao fim do
mês o número simbólico de sete, que devia corresponder, na idéia das
devotas, às Sete Lições de Maria. Na véspera o padre Amaro tinha
prevenido o tio Esguelhas, que deixava a porta da rua apenas cerrada,
depois de ter varrido toda a casa e preparado o quarto para a prática do
senhor pároco. Amélia nesses dias erguia-se cedo; tinha sempre alguma
saia branca a engomar, algum laçarote a compor; a mãe estranhava-lhe
aqueles arrebiques, o desperdício de água-de-colônia de que ela se
inundava; mas Amélia explicava que “era para inspirar à Totó idéias de
asseio e de frescura”. E depois de vestida sentava-se, esperando as onze
horas, muito séria, respondendo distraidamente às conversas da mãe, com
uma cor nas faces, os olhos cravados nos ponteiros do relógio: enfim a
velha matraca gemia cavamente as onze horas, e ela, depois de uma
olhadela ao espelho, saía, dando uma beijoca à mãe.
Ia sempre receosa, numa inquietação de ser espreitada. Todas
as manhãs pedia a Nossa Senhora da Boa Viagem que a livrasse de maus
encontros; e se via um pobre dava-lhe invariavelmente esmola, para
lisonjear os gostos de Nosso Senhor, amigo dos mendigos e vagabundos. O
que a assustava era o Largo da Sé, sobre o qual a Amparo da botica,
costurando por trás da janela, exercia uma vigilância incessante. Fazia-se
então pequenina no seu mantelete, e abaixando o guarda-sol sobre o rosto,
entrava enfim na Sé, sempre com o pé direito.
Mas a mudez da igreja, deserta e adormecida numa luz fosca,
amedrontava-a; parecia-lhe sentir, na taciturnidade dos santos e das cruzes,
uma repreensão ao seu pecado; imaginava que os olhos de vidro das
imagens, as pupilas pintadas dos painéis se fixavam nela, com uma
insistência cruel, e percebiam o arfar que ao seu seio dava a esperança do
prazer. Às vezes mesmo, atravessada de uma superstição, para dissipar o
descontentamento dos santos, prometia dar-se nessa manhã toda à Totó,
ocupar-se caridosamente dela, e não se deixar tocar sequer no vestido
pelo Sr. Padre Amaro. Mas se ao entrar na casa do sineiro não o
encontrava, ia logo, sem se deter ao pé da cama da Tóto, postar-se à janela
da cozinha, vigiando a porta maciça da sacristia, de que ela conhecia uma
por uma as chapas negras de ferro.
Seqüência 2
Ele aparecia, enfim. Era então nos começos de março;
tinham chegado as andorinhas; ouviam-nas chilrear, naquele silêncio
melancólico, esvoaçando entre os contrafortes da Sé. Aqui e além, plantas
dos lugares úmidos cobriam os cantos de uma verdura escura. Amaro, às
vezes muito galante, ia procurar uma florzinha. Amélia impacientava-se,
rufava na vidraça da cozinha. Ele apressava-se; ficavam um momento à
porta, apertando-se as mãos, com olhos brilhantes que se devoravam; e iam
enfim ver a Totó e dar-lhe os bolos que o pároco lhe trazia no bolso da
batina.
A cama da Totó era na alcova, ao lado da cozinha; o seu
corpinho de tísica quase não fazia saliência enterrado na cova da enxerga,
sob os cobertores enxovalhados que ela se entretinha a esfiar. Nesses dias
tinha vestido um chambre branco, os cabelos reluziam-lhe de óleo; porque
ultimamente, desde as visitas de Amaro, viera-lhe uma birra de parecer
alguém”, como dizia encantado o tio Esguelhas, a ponto de se não querer
separar dum espelho e dum pente que escondia debaixo do travesseiro e
obrigar o pai a encafuar sob a cama, entre a roupa suja, as bonecas que
agora desprezava.
146
Amélia sentava-se um instante aos pés do catre, perguntando-
lhe se estudara o ABC, obrigando-a a dizer aqui e além o nome duma letra.
Depois queria que ela repetisse sem errar a oração que lhe andava
ensinando; - enquanto o padre, sem passar da porta, esperava, com as
mãos nos bolsos, enfastiado, embaraçado com os olhos reluzentes da
paralítica que o não deixavam, penetrando-o, percorrendo-lhe o corpo com
pasmo e com ardor, e que pareciam maiores e mais brilhantes no seu rosto
trigueiro tão chupado que se lhe via a saliência das maxilas. Não sentia
agora nem compaixão nem caridade pela Totó; detestava aquela demora;
achava a rapariga selvagem e embirrenta. A Amélia também pesavam
aqueles momentos, em que, para não escandalizar muito Nosso Senhor, se
resignava a falar à paralítica. A Totó parecia odiá-la; respondia-lhe muito
carrancuda; outras vezes persistia num silencio rancoroso, voltada para a
parede; um dia despedaçara o alfabeto; e encolhia-se toda encruada se
Amélia lhe queria compor o xale sobre os ombros ou conchegar-lhe a
roupa...
Enfim Amaro, impaciente, fazia um sinal a Amélia; ela punha
logo diante da Totó o livro com estampas da Vida dos Santos.
- Vá, ficas agora a ver as figuras ... Olha, este é S. Mateus,
esta Santa Virgínia... Adeus, eu vou acima com o senhor pároco
rezarmos para que Deus te saúde e te deixe ir passear... Não estragues
o livro, que é pecado.
Seqüência 3
E subiam a escada, enquanto a paralítica, estendendo o
pescoço sofregamente, os seguia, escutando o ranger dos degraus, com os
olhos chamejantes que lagrimas de raiva enevoavam. O quarto, em cima,
era muito baixo, sem forro, com um teto de vigas negras sobre que
assentavam as telhas. Ao lado da cama pendia a candeia que pusera sobre
a parede um penacho negro de fumo. E Amaro ria sempre dos preparativos
que fizera o tio Esguelhas a mesa ao canto com o Novo Testamento, uma
caneca de água, e duas cadeiras dispostas ao lado...
- É para a nossa conferência, para te ensinar os deveres de
freira, dizia ele, galhofando.
- Ensina, então! murmurava ela, de braços abertos, pondo-se
diante do padre, com um sorriso cálido onde brilhava um branquinho dos
dentes, num abandono que se oferecia.
Ele atirava-lhe beijos vorazes pelo pescoço, pelos cabelos; às
vezes mordia-lhe a orelha; ela dava um gritinho; e ficavam então muito
quedos, escutando, com medo da paralítica embaixo. O pároco depois
fechava as portadas da janela e a porta muito perra que tinha de empurrar
com o joelho. Amélia ia-se despindo devagar; e com as saias caídas aos
pés ficava um momento imóvel, como uma forma branca na escuridão do
quarto. Em redor o padre, preparando-se, respirava forte. Ela então
persignava-se depressa, e sempre ao subir para o leito dava um
suspirozinho triste.
Amélia podia demorar-se até ao meio dia. O padre Amaro
por isso pendurava o seu cebolão no prego da cadeira. Mas quando não
ouviam as badaladas da torre, Amélia conhecia a hora pelo cantar dum galo
vizinho.
- Devo ir, filho, murmurava toda cansada...
- Deixa lá... Estás sempre com a pressa...
Ficavam ainda uns momentos calados, numa lassidão doce,
muito chegados um ao outro. Pelas vigas separadas do telhado mal junto
viam aqui e além fendas de luz: às vezes sentiam um gato, com as suas
147
passadas fofas, vadiar, fazendo bulir alguma telha solta; ou um pássaro,
pousando, chilreava e ouviam-lhe o frêmito das asas.
- Ai, são horas, dizia Amélia.
O padre queria detê-la; não se fartava de lhe beijar a orelhinha.
- Lambão! murmurava ela. Deixe-me!
Vestia-se à pressa no escuro do quarto; depois ia abrir a
janela, vinha ainda abraçar o pescoço de Amaro, que ficara estatelado
sobre o leito; e ia enfim arrastar a mesa e as cadeiras, para a paralítica
sentir embaixo, saber que tinham acabado a conferência.
Amaro não findava ainda de a beijocar: ela então, para acabar,
fugia-lhe, ia escancarar a porta do quarto; o padre descia, atravessava em
duas passadas a cozinha sem olhar para a Totó, e entrava na sacristia.
Amélia, essa, antes de sair, vinha ver a paralítica, saber se
gostara das estampas. Encontrava-a às vezes com a cabeça debaixo dos
cobertores, que entalava e prendia com as mãos para se esconder; outras
vezes, sentada na cama, examinava Amélia com olhos em que se acendia
numa curiosidade viciosa; chegava o rosto para ela, com as narinas
dilatadas que pareciam cheirá-la.; Amélia recuava, inquieta, corando
também; queixava-se então de ser tarde, recolhia a Vida dos Santos, - e
saía, amaldiçoando aquela criatura tão maliciosa na sua mudez. (...).
107
4.1. Estruturas discursivas
4.1. 1. Sintaxe discursiva
O Nível discursivo incide nas estruturas abstratas do nível narrativo, as
categorias de pessoa, tempo e espaço e transforma os temas em figuras pelo
processo da figurativização. Segundo Fiorin
108
, “No nível discursivo, as formas
abstratas do nível narrativo são revestidas de termos que lhe dão concretude”. A
escolha do revestimento é de responsabilidade do enunciador. No ato de produção
do discurso, a enunciação deixa nele suas marcas e busca persuadir o enunciatário,
realizando um fazer persuasivo (fazer-crer) que o leve a um fazer informativo (fazer-
saber) e a um fazer factitivo (fazer-fazer), manipulador.
Ao projetar a enunciação, o sujeito dirige-se a uma escolha, de pessoa,
de tempo e de espaço. No enunciado que estamos analisando, estão projetados
uma pessoa (ele), um tempo (não agora = então) e um espaço (lá). Operou-se uma
debreagem enunciva e estabeleceu-se uma objetividade e certo afastamento do
narrador, identificado pela terceira pessoa como narrador-observador onisciente, e
107
QUEIRÓS, op. cit., p. 237-240.
108
FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 1999, p. 29.
148
onipresente (segundo alguns). De acordo com D’ Onófrio
109
, “dotado do poder da
onipresença: ele sabe o que se passa no céu e na terra, no presente e no passado,
no interior de cada personagem”.
Os verbos e os pronomes encontravam-se, erguia-se, dava-lhe, ele,
odiá-la denunciam a debreagem enunciva. Com isso, procurou-se o efeito de
sentido de uma exposição mais realista e com mais senso de detalhe dos fatos
relatados, como próprio de romances realistas da época. A preocupação desses
romances está em desvendar imparcialmente as mazelas da classe burguesa, nas
questões morais e nas relações sociais. Um exemplo significativo da onisciência do
narrador encontra-se no parágrafo do texto que está sendo analisado, quando por
meio da voz do narrador podemos perceber que Amélia se debate entre a paixão e a
moral: seqüência1 “Mas a mudez da igreja, deserta e adormecida numa luz fosca,
amedrontava-a; (...) imaginava que os olhos de vidro das imagens (...) percebiam o
arfar que ao seu seio dava a esperança do prazer. (...) para dissipar o
descontentamento dos santos, prometia dar-se nessa manhã toda à Totó, ocupar-se
caridosamente dela, e não se deixar tocar sequer no vestido pelo Sr. Padre
Amaro”.
A oposição de base sobre a qual se produz o sentido desse texto é
Paixão x Moral. Amélia em alguns momentos é arrebatada pela paixão e em outros
tenta redimir-se com a igreja por meio de atos benevolentes aos santos católicos e à
menina Totó. Essa negação da paixão e afirmação da moral manifesta-se por uma
debreagem enunciva. No discurso é na manifestação de um ela (Amélia) que se
produz parte do sentido do texto.
Temporalidade e Espacialidade
Valendo-se do tempo (então) o narrador pode dispor os acontecimentos
textuais:
Quadro nº 01 – Representação da Temporalidade
“Encontravam-se todas as semanas...”
Seqüência 1
temporalidade
109
D’ONOFRIO, op. cit., p. 60.
149
O narrador está expondo fatos de um tempo de então, anterior ao
momento da enunciação e marca a não concomitância entre o tempo da narrativa e
o tempo do narrado ou enunciado
A coordenada espácio-temporal acontece em tempo passado com verbo
predominantemente no pretérito imperfeito e o espaço é “distinto do aqui, em que
se produz a enunciação”.
110
Quadro nº 02 – Representação da Espacialidade
mas se ao entrar na casa do
sineiro”...
Seqüência 1
espacialidade
4.1.2. Semântica discursiva
Temas e Figuras
Segundo Platão & Fiorin
111
, na esteira greimasiana, “há dois níveis de
concretização dos esquemas narrativos: o temático e o figurativo. Este é mais
concreto do que aquele. Conforme o modo de concretização da estrutura narrativa,
temos dois tipos de texto: os textos temáticos e os figurativos” Os temas e as figuras
servem para revestir os esquemas narrativos abstratos. É neste nível de
concretização do sentido que se manifestam a ideologia e as intenções do sujeito da
enunciação.
Moldando-se ainda na teoria greimasisna, “as figuras são organizadas
em grupos, encadeadas umas às outras e essa rede de figuras chama-se percurso
figurativo”.
112
Os percursos figurativos remetem aos temas paixão e moral que vêm
revestidos pelos papéis temáticos figurativizadores de: a) Amélia, nas seqüências 1
e 2 (visitas caridosas, esmola, santos, cruzes, olhos, imagens, não escandalizar,
estampas, Vidas dos Santos); b) Amaro, nas seqüências 1, 2 (nem compaixão nem
caridade, enfastiado, detestava a demora, rapariga selvagem).
110
FIORIN, op. cit., p. 41.
111
SAVIOLI, Francisco Platão; FIORIN, José Luiz. Para entender o texto. São Paulo: Ática, 1992, p.
72.
112
Idem. Lições de texto: leitura e redação. Ática, 1996, p. 98.
150
A figurativização da moral surge com a oposição entre o pecado e a
paixão, sob a ótica da ideologia de uma sociedade, arquétipo da não-ética do casal.
No decorrer da narrativa, a consumação do desejo do casal cita figuras
que correspondem a dicotomização de comportamentos entre o sagrado e o
profano, entre o homem e a mulher:
Seqüência 3: “E Amaro ria (...)
- É para a nossa conferência, para te ensinar os deveres de freira, dizia
ele, galhofando...
- Ensina, então! ... de braços abertos... num abandono que se oferecia.”
Enfim, descobrimos que o homem definha ao longo dos dias, meses, anos
promiscuindo-se em intenções e ações espúrias, nunca transparentes e desprovidas
do mais sincero sentimento.
O percurso figurativo greimasiano pode ser assim figurativizado no
esquema daviliano:
Quadro nº 03 – Percurso Figurativo
Seqüência FIGURAS
Percurso
Figurativo
TEMA
SQ 1
Visitas caridosas
Esmola
Santos
Cruzes
Imagens
Da consciência
Da fé
Religiosidade e
Crença
SQ 2
Enfastiado
Nem compaixão
nem caridade
Detestava a
demora
Rapariga
selvagem
Do egoísmo
Da impaciência
Hipocrisia
(clero)
SQ 3
Nossa
conferência
Deveres de freira
Galhofando
Braços abertos
Abandono
que se oferecia
Do desrespeito
Da manipulação
Imoralidade
(clero e
sociedade)
Sexual
151
4.2. Estruturas sêmio-narrativas de superfície
Os actantes desta narrativa são figurativizados por S
1
e S
2
, no papel
temático dos atores Amélia e Amaro respectivamente, e Totó, a menina paralítica e
doente, denominada actante S
3
. Constam, ainda, outros personagens que são
somente mencionados, mas que, no momento, neste fragmento, não apresentam
grande importância para a narrativa.
Segundo Fiorin, “a narratividade é uma transformação situada entre dois
estados sucessivos e diferentes. Isso significa que ocorre uma narrativa mínima,
quando se tem um estado inicial, uma transformação e um estado final”.
113
Narratividade é um neologismo criado por Greimas e é considerada “como o
princípio mesmo da organização de qualquer discurso narrativo (...) e o-
narrativo”.
114
No texto que estamos analisando, há mudanças quanto ao estado dos
sujeitos, considerando o aspecto juntivo (conjuntivo e disjuntivo) em relação ao
Objeto-Valor. D’Avila afirma “Os sujeitos o investidos de funções predicativas que
definem o seu fazer (transformação) por meio de modalidades do /Saber/ Poder/
Querer/ Dever/ Fazer, e o Ser do sujeito narrativo =
(S U OV) ou (S OV) em situação de estado (ser/ estar/ permanecer/
ficar)”.
115
4.2.1 Estados de conjunção ou de disjunção
As Transformações dos sujeitos podem ser visualizadas no esquema
abaixo:
a) Estado Inicial dos actantes sujeitos:
113
FIORIN, op. cit., p. 21.
114
GREIMAS, A. J; COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Cultrix, 1979, p. 295.
115
D’ÀVILA, Nícia Ribas. Aladim e a lanterna mágica. (No prelo). Em Apostila, no programa de Pós-
graduação em Comunicação. Disciplina: “Semiótica, Comunicação e Linguagens”. Marília, UNIMAR,
2006, p. 03.
152
Quadro Nº 04 – Estado Inicial dos Actantes Sujeitos
Amélia, S
1
Conjunção: paixão, desejo. Disjunção: conflito moral, pecado,
descontentamento das imagens, vigilância
Amaro, S
2
Conjunção: desejo
Disjunção: a demora, Totó
Totó, S
3
Conjunção: presença do padre em sua casa
Disjunção: paralisia
b) Estado Final dos actantes sujeitos:
Quadro Nº 05 – Estado final dos Actantes Sujeitos
Amélia, S
1
Conjunção: consumação do desejo
Amaro, S
2
Conjunção: consumação do desejo
Totó, S
3
Conjunção: frustração, impotência, raiva
No percurso narrativo de S
1,
transformação de estado. No estágio
inicial, S
1
encontra-se em estado conjuntivo com a paixão e o desejo que sente por
S
2
. Ela se arruma e fica bonita para ir ao encontro dele, porém para chegar onde ele
se encontra, movida pelo Objeto-Valor (descritivo) OV = a consumação do desejo,
ela precisa de um objeto de valor (modal) Om =, ensinar catecismo para Totó.
Para que seu objetivo seja alcançado, ela estará conjunta a muitas
artimanhas, a manipulações, o que a faz sujeito do /poder-fazer/ e do /saber-fazer/,
modalidades atualizantes. Antes de realizar um PN - programa narrativo de
performance - S
1
possui as modalidades virtualizantes do /querer-fazer/ e do /dever-
fazer/. Destaca-se a sedução por meio da “saia branca a engomar, algum laçarote a
compor” e da “água-de-colônia de que ela se inundava”. S
1
sai de casa para
encontrar-se com S
2
. Seqüência 1.
No decorrer da narrativa, no caminho para a casa de Totó, S
3
, Amélia se
depara com a “vigilância incessante” de uma vizinha e na igreja com “a taciturnidade
dos santos e das cruzes” que representam sanção virtual por pressuposição
153
“repreensão ao seu pecado”. As imagens de santos são símbolos coletivos
importantes para os cristãos. As imagens religiosas o arquétipos formadores do
inconsciente e dão origem às fantasias individuais. Essas imagens são testemunhas
“passivas” das fantasias de Amélia, por isso ela tem medo e receio. Neste momento,
no entanto, a actante é dotada de um /saber/ e de um /poder-fazer/, manipulada
por Amaro. Por meio do engodo ‘ensinar catecismo para Totó’, ela veria seu amado.
Na casa de S
3
, Amélia ensina-lhe o ABC, mas esta, obcecada pelo padre
Amaro, seqüência 2, “... os olhos reluzentes da paralítica que não o deixavam,
penetrando-o, percorrendo-lhe o corpo com pasmo e com ardor...”, percebe o
engodo e coloca-se entre eles de forma carrancuda, “num silêncio rancoroso”, como
para retardar o encontro dos amantes. S
2
, nessas horas, impacientava-se com a
demora e chamava por S
1
que, rapidamente, colocava no colo de S
3
o livro com
estampas da Vida dos Santos e subia para o quarto com S
2
. Impotente na cama e
sem poder dizer nada, S
3
estendia o “pescoço sofregamente” e os seguia com os
olhos cheios de lágrimas de raiva.
No quarto, o desenlace principal da narrativa. Para Fiorin,
parafraseando Greimas, “A performance é a fase em que se a transformação
(mudança de um estado para outro) central da narrativa”.
116
O casal, S
1
e S
2
, entram
em conjunção com o Objeto-Valor abstrato consumação do desejo. Assumem o
papel de destinador sancionado da performance realizada e manifestam a realização
com uma indisfarçável satisfação, seqüência 3:
“- Devo ir, filho, murmurava toda cansada.
- Deixa lá... Estás sempre com a pressa...
Ficavam ainda uns momentos calados, numa lassidão doce, muito
chegados um ao outro. (...) O padre queria detê-la, não se fartava de lhe beijar a
orelhinha”.
A sanção é a última fase do esquema canônico da narrativa. É a
constatação de que a performance realizou-se. Nesse final de texto, os actantes,
satisfeitos, saem do quarto. Amaro, S
2,
“atravessa em duas passadas a cozinha sem
olhar para a Totó”, S
3
. Tem-se, aqui, a sanção de S
2
sobre S
3
. Amélia, S
1
, antes de
sair, vai ver a paralítica. Esta, na sua “maliciosa mudez”, sanção de S
3
sobre S
2
e S
1
,
116
FIORIN, op. cit., p. 23.
154
recrimina a actante que sai, “amaldiçoando aquela criatura”, sanção de S
1
sobre S
3
.
Seqüência 3.
Feitas essas considerações, podemos explicitar formalmente os
programas narrativos e organizá-los em percursos narrativos.
Quadro nº 06 - Símbolos do Programa Narrativo:
PN = Programa Narrativo
S
1
= Amélia
S
2
= Padre Amaro
S
3
= Totó
S
4
= Casal (actante dual = S
1
+ S
2
)
S
5
= Narrador
= Distribuição Sintagmática
U = Disjunção
= Conjunção
OV = Objeto-Valor
( ) = enunciado de Estado
[ ] = enunciado de Fazer
F = fazer
Om = objeto modal
Essas seqüências da narrativa podem ser assim sintetizadas:
1. - A preparação para o encontro:
Manipulação /Fazer querer-fazer/ por sedução e tentação; e /Fazer dever-
fazer/, por provocação:
a) ficar bonita (sedução e tentação)
b) ensinar catecismo para a Totó (aparente sedução, camuflando uma
provocação).
2 .- Os percalços e a competência /Querer, Dever, Saber e Poder-Fazer/
para /Fazer e Ser/:
a) Amélia × vigilância e imagens religiosas;
155
b) Amélia × catecismo
3 - Tentativa de disjunção entre Amélia e Amaro:
a) Amélia × Totó ;
b) Amaro × Totó
4 - Performance (Fazer-Ser):
a) Amélia e Amaro em conjunção com a consumação;
b) Totó em conjunção com a impotência
5 - Sanção sobre o PN do ato sexual:
a) Amaro x Totó;
b) Totó x Amélia;
c) Amélia x Totó
4.2.2. Programas narrativos (PN) organizados em percursos.
Quadro nº 07 – Programa Narrativo
Percurso de S
1
- PN principal.
PN Base F: S
1
[ ( S
1
U OV ) ( S
1
OV )] virtual
S
1
= Amélia; OV = PRAZER (consumação do desejo)
PN
1
: F: S
1
[( S
2
U OM
1
) ( S
2
OM
1
)] realizado
S
1
= Amélia; S
2
= padre Amaro; OM
1
= Sedução, tentação e provocação
ao padre
PN
2
: F: S
1
[( S
1
U OM
2
) ( S
1
OM
2
)] realizado
OM
2
A desculpa (ensinar o catecismo a S
3
)
PN
3
: F: S
4
[( S
3
U OM
3
) ( S
3
OM
3
)] realizado
S
4
= (S
1
+ S
2
); S
3
= Totó; OM
3
Vida dos Santos
PN
4
: F: S
4
[( S
4
U OM
4
) ( S
4
OM
4
)] realizado
S
4
= (actante dual); OM
4
Consumação
156
PN
5
: F: S
4
[( S
3
U OM
5
) ( S
3
OM
5
)] realizado
OM
5
= Decepção (por não conquistar S
2
)
PN
6:
F: S
3
[( S
1
U OM
6
) (S1 OM
6
)] realizado
OM
6
= Olhar intimidativo e curioso de Totó.
PN
7
: F: S
5
[( S
5
U OM
7
) ( S
5
OM
7
)] realizado
S
5
= narrador OM
7
= Constatação judicativa
O PN de Base indica-nos que o narrador, dirigindo-se ao leitor, apresenta-
lhe a instauração de um contrato entre S
1
sujeito em Estado de falta do Objeto-Valor
( a realização do desejo), e S
1
sujeito operador que sai na busca do referido objeto,
ideológico, para conjugar-se com esse valor. Nas diferentes espacialidades
mostramos as diferentes funções.
PN
1
: Para que essa realização aconteça, S
1
anseia a conjunção com S
2
.
Para tanto, usa das manipulações sedução, tentação (querer-fazer) e provocação
(dever-fazer).
PN
2
: No decorrer da narrativa, S
1,
para conseguir a conjunção com S
2
,
arruma uma desculpa para realizar seu desejo: ensinar catecismo para Totó; porém,
antes, entra em disjunção com elementos externos (vigilância dos vizinhos e
imagens religiosas).
PN
3
: Neste programa, o casal, S
4
, quer realizar o desejo, porém, outra
disjunção acontece. S
3
é um empecilho para a conjunção com o valor abstrato
desejado por S
1
e S
2
. Então, S
1
mostra o livro ‘Vida dos Santos’ para S
3
distrair-se.
PN
4
: Aqui, a mudança de estado concretiza-se, S
4
entra em conjunção
com o Objeto-Valor. A performance principal (de Base) é realizada
concomitantemente aos PN
5
e PN
6
. Para isso S
3
ficou em conjunção com a
decepção.
PN
7
: O narrador mostra a sua sanção sobre S
4
e S
3
ou seja, a
constatação das performances na realização do desejo pelo casal, S
4
, e da
insatisfação (deceptiva) de Totó, S
3
.
Pelo final da narrativa, percebemos um jogo de máscaras entre os
actantes. O narrador não consegue ser impassível diante dos sujeitos e manifesta o
157
seu desprezo de forma reiterada. No contexto do romance, Amaro é conduzido ao
sacerdócio sem vocação, despreza o próximo (Totó) e procura satisfação carnal.
Amélia, com um processo educacional ditado pela convivência com os padres, vê-se
envolvida com um deles. Os dois actantes principais dessa história, desde a infância,
são impulsionados por um ambiente de exaltações sentimentais e de um misticismo
vicioso, precisavam certas circunstâncias para que se encontrassem e
praticassem o adultério com suas convicções. Totó, mesmo sendo paralítica, doente,
percebe toda a máscara que reveste as ações dos dois amantes, por isso “examina
Amélia com olhos em que se acendia uma curiosidade viciosa” e Amélia, com seu
interior em pecado, “recuava, inquieta, corando”. Seqüência 3.
4.3. Estruturas sêmio-narrativas profundas
A oposição fundamental deste excerto é constituída pela categoria
Paixão X Moralidade, sendo este, o termo eufórico, sua essência, e aquele, o
disfórico (sua aparência). Essa categoria permite-nos inferir o quadrado semiótico de
primeira instância:
Quadro nº 08 – Quadrado Semiótico
I
COMPORTAMENTOS SOCIAIS
PAIXÃO MORALIDADE
NÃO-MORALIDADE NÃO-PAIXÃO
COMPORTAMENTOS NÃO SOCIAIS
A esses termos contrários / paixão x moralidade / contrapõem-se os seus
contraditórios / não-paixão x não-moralidade /. A paixão corresponde, em nível de
maior abstração - levando-nos à correspondência com o quadrado semiótico de
segunda instância: à hipocrisia; à moralidade, à religião.
158
Quadro nº 09 – Quadrado Semiótico II
SOCIEDADE ORGANIZADA
RELIGIÃO HIPOCRISIA
Moralidade Imoralidade
Paixão digna Paixão proibida (desenfreada)
NÃO-HIPOCRISIA NÃO-RELIGIÃO
Não imoralidade Amoralidade
Paixão comedida Paixão condenada
SOCIEDADE NÃO ORGANIZADA
Essa sintaxe de nível fundamental nos revela o funcionamento de duas
operações antitético:
1. Afirma a paixão, nega a paixão; afirma a moralidade: em relação à
Amélia.
2. Afirma a moralidade, nega a moralidade, afirma a paixão: em relação
ao casal: Amélia e Amaro.
A /paixão/, que desde o início do texto percebemos em Amélia, nas suas
manipulações para conseguir ver o padre Amaro, passa a dar sinais de /paixão
proibida/, quando receosa, inquietava-se com as imagens dos santos na igreja,
passando à paixão comedida. Aqui a consciência com a moralidade que a
sociedade impõe, deixava-a com medo e por isso passou a afirmar essa moralidade:
“prometia dar-se, nessa manhã toda, a Totó”, seqüência 1, ou seja, ser caridosa a
fim de ficar bem com a sua consciência.
No entanto, essa moralidade que Amélia às vezes buscava, perde-se ao
encontrar Amaro, fazendo o jogo da máscara: parecer + não-ser (mentira). Para
Totó, a doente, quando percebe que o casal a usava para conseguir realizar a
paixão, essa máscara cai e revela toda a hipocrisia da sociedade e da religião.
A história é uma crítica aos valores éticos e morais vigentes e revela-nos
toda a hipocrisia da sociedade e da religião O percurso figurativo concretiza o tema /
Moral x Paixão / e no nível discursivo um percurso temático administrador da
moral passional, que aflora e é de extrema importância: / Hipocrisia x Religião /.
Esses temas são concretizações dos esquemas narrativos: uma manipulação em
159
que o sujeito S
1
faz-quer fazer e faz-dever fazer; por isso usa das sedução e
tentação na primeira junção modal, e da provocação, na segunda, para conseguir;
na competência, o sujeito manipulado pelo querer e dever, adquire o poder e o
saber fazer, mesmo que contra o seu princípio moral. Acontece a performance e
o sujeito entra em conjunção com o objeto desejado. A sanção é a constatação da
performance. Para isso se pôs em jogo a máscara da hipocrisia da sociedade e do
clero. Falta lembrar que, quando se diz, em uma narrativa, que houve um poder, um
saber, um querer fazer alguma coisa, pressupõe-se, também, a existência de um
não poder, um não saber, um não querer fazer.
Enfim, ocorre, neste fragmento, uma desmistificação, revelação das
verdadeiras atitudes e intenções dos atos dos sujeitos, no que diz respeito ao
relacionamento afetivo, sexual e comportamental, revelando uma intensa crítica à
vivência dupla face do ser humano.
4.4. Semiótica cinematográfica
A ficção adaptada para os meios de comunicação contamina a vida do
ouvinte e do espectador, que se projeta no universo fílmico. Segundo Balogh, “Na
prática se reconhece como adaptado o filme que conta a mesma história do livro no
qual se inspirou, ou seja, a existência de uma mesma história é o que possibilita o
reconhecimento da adaptação por parte do destinatário”.
117
Segundo D’Ávila,
118
“No cinema, a organização narrativa subjacente à
forma dialogada, coloca-nos diante de uma semiótica em que rios significantes
concorrem à produção de um significado, numa atuação hegemônica do caráter
verbal”. Enquanto um romancista tem à sua disposição a linguagem verbal, com toda
a sua riqueza metafórica, um cineasta lida com diferentes materiais de expressão:
“imagens estáticas e viso-dinâmicas, linguagem verbo-sonora intonativo-entonativa,
ruídos, entre outros”.
119
Todos esses materiais podem ser manipulados de diversas
117
BALOGH, Anna Maria. Conjunções, Disjunções, Trasmutações: da literatura ao cinema e à Tv,
1996, p. 45.
118
D’ÀVILA, Nícia Ribas. Semiótica cinematográfica. Apostila do programa de Pós-graduação em
Comunicação. Disciplina: Semiótica, Comunicação e Linguagens”. Marília, UNIMAR, 2006, p. 01.
119
Idem. Semiótica Musical e Sincrética na Publicidade e Propaganda (da Caixa Econômica Federal).
In: Anais do XI Encontro Nacional da ANPOLL. Campinas: Ed. UNICAMP, 1998, 461-466
160
maneiras, portanto a diferença entre eles não se reduz à diferença entre linguagem
escrita e a imagem visual.
Importa-nos para este final de trabalho o estudo intersemiótico entre
linguagens midiáticas, considerando a relação entre literatura e cinema como uma
forma de intercalação ou imbricamento de micro-narrativas, segundo Greimas.
120
Partiremos do discurso verbal dos protagonistas eleitos sujeitos da
atuação, na seqüência escolhida. Em segunda análise, serão observadas as ações
dos elementos técnicos para a realização da obra filmica. Logo em seguida a
gestualidade oral e visual, depois, a linguagem da produção cromática, as
expressões manipuladoras e por fim os objetos modais (narrativo).
4.4.1. Análise semiótica de uma cena do filme: O Crime do Padre Amaro
Vejamos as cenas escolhidas para a análise que este capítulo se propõe.
Seqüência 1:
Fig. 1
Fig. 2
Fig. 3
Fig.4
120
GREIMAS, A. J; COURTÉS, op. cit., p. 228.
161
Fig. 5
Figura 01 Cenas do Filme: O Crime do Padre Amaro, em que Amaro conta a Amélia aonde vão
se encontrar e ela vai até a igreja.
Nestas seqüências, Amaro havia descoberto a maneira como ele e
Amélia iriam se encontrar. Aqui, ele é o sujeito do querer e do dever fazer,
modalidades virtualizantes. No restaurante, fig. 1, ele comunica ao padre Benito que
Amélia quer ensinar catecismo para Getsemani. Depois, levanta-se da mesa e vai
até Amélia, fig. 2 e diz que encontrou o lugar para os encontros deles. Ele está
conjunto às artimanhas para realizar as manipulações por sedução, tentação e
provocação.
Amélia ajoelhada na igreja, fig. 3, reza por Amaro. As imagens, figs. 4 e 5,
testemunham o sofrimento dela.
Nessas seqüências percebemos uma diferença no enredo do filme em
relação ao livro. No romance, Amaro, na casa da senhora Joaneira, mãe de Amélia,
comunica-lhe que Amélia vai ensinar catecismo para Getsemani. No filme, a
comunicação do fato se dá no restaurante e para padre Benito.
As imagens dos Santos na seqüência da igreja estão sendo testemunhas
do primeiro encontro carnal entre Amélia e Amaro. Os dois se beijam nessas cenas.
Aqui, Amélia e Amaro são dotados de querer, dever e poder-fazer, modalidades
da competência. Depois destas cenas, eles vão se encontrar na casa da doente.
No quadro abaixo, gráfico armazenador, representativo da desconstrução
semiótica do esquema narrativo cinematográfico de Nícia D´Ávila,
121
mostraremos os
detalhes da análise dessas imagens:
121
D’ÀVILA, Nícia Ribas. Semiótica cinematográfica. Apostila do programa de Pós-graduação em
Comunicação. Disciplina: Semiótica, Comunicação e Linguagens”. Marília, UNIMAR, 2006, p. 04.
162
Quadro nº 10 – Gráfico Armazenador
I
Diálogos,
sons, ruídos
Ações e
movimen-
tos
secundá-
rios
Gestualida-
de visual
Luminosidade Expressões
manipuladoras
dos sujeitos
Objeto
Modal,
Objeto
Valor,
Figuras e
temas
FIGURA 1
Sons de
movimentação
no restaurante:
talheres,
passos,
conversas
Amaro diz:
- Piedosa,
inteligente e
freqüenta a
igreja”
- “Amélia quer
ensinar
catecismo para
Getsemani”
Olhares que
se
entrecruzam
Em plano
americano, a
câmera
mostra o
diálogo dos
padres
Olhares que
se penetram
Amélia olha
para Amaro
nesse
momento
sem
entender a
conversa
dos padres
Maior
intensidade
sobre os
personagens
O restaurante é
bem iluminado,
percebemos
detalhes dos
objetos
expostos
Mãos, fala,
olhares
Através da frase:
- “Piedosa,
inteligente e
freqüenta a
igreja” Amaro
prepara o terreno
para comunicar
falsamente a
dedicação de
Amélia. Assim,
ele manipula a
situação em seu
favor
Figuras: a
gestualidade
OM =
catecismo
OV = o
encontro
Figuras:
olhares do
casal, Amélia
falsamente
distante
Tema:
hipocrisia
FIGURA 2
Para Amélia,
ele fala:
- “Achei o lugar
O plano se
fecha e
focaliza o
casal
conversando
Amélia sorri
quando o
padre lhe
explica a
conversa
A imagem aqui
é parcialmente
iluminada
deixando em
destaque
somente o casal
Amaro: sedução,
tentação,
provocação
Figura:
sorriso de
Amélia
FIGURAS 3, 4
E 5
Na igreja, não
som.
Silêncio total
Plano
fechado para
mostrar o
rosto de
amélia
Olhos de
Amélia
cheios de
lágrimas
Há luz no rosto
de Amélia, idéia
de pouca
profundidade no
quadro, o fundo
fica envolto num
leve
escurecimento e
há um jogo de
sombra e luz
Figuras:
expressões
faciais de
Amélia e das
imagens
religiosas
Tema:
Dualidade
O M: a fé
católica
O V: a
decisão
163
Na seqüência de cenas abaixo, vemos Amélia na casa de Getsemani.
Com o livro da Vida dos Santos nas mãos, fig. 6, Amélia mostra as figuras para a
doente, figs. 7 e 8.
Seqüência 2:
Fig. 6
Fig. 7
Fig. 8
Figura 02 – Cenas do Filme: O Crime do Padre Amaro, em que Amélia mostra A Vida dos Santos
para Getsemani.
Grande semelhança entre enredo do romance e do filme. Antes de o
casal ir ao quarto para entrar em conjunção com o Objeto-Valor (abstrato, ideológico
e descritivo) consumação do desejo, Amélia ensina religião para Getsemani, figs.
6, 7 e 8. Vejamos o quadro.
Diálogos,
sons,
ruídos
Ações
e
movimentos
secundários
Gestualidade
visual
Luminosidade
Expressões
manipuladoras
dos sujeitos
Objeto
Modal,
Objeto
Valor,
Figuras e
Temas
FIGURAS:
6, 7 E 8
Barulho da
porta que
se fecha
quando
Amélia entra
no quarto de
Getsemani,
não ruído
externo
Amélia
conversa
com
Getsemani
-“Olhe
...Este aqui
é o Espírito
Santo... Esta
é a Virgem
Em plano
Americano, a
câmera
observa os
sujeitos da
cena. Amélia
mostra o livro
da Vida dos
Santos para
O livro é
folheado por
Amélia e as
figuras vão
surgindo
perante os
olhos confusos
da doente
A luz deixa o
quarto claro,
percebemos os
rostos de Amélia
e Getsemani e
os detalhes na
parede do
quarto
O ato de ensinar
religião para
Getsemani é uma
manipulação por
sedução
referencializada à
sociedade para
chegar ao seu
objetivo
OM =
ensinar
religião
OV =
desejo
Figuras:
livro,
figuras,
imagens
Tema:
Hipocrisia
164
Quadro nº 11 – Gráfico Armazenador II
Seqüência 3:
Fig. 9
Fig. 10
Fig. 11
Fig. 12
Fig. 13
Fig. 14
Figura 03 – Cenas do Filme O Crime do Padre Amaro, em que Amélia consegue realizar a paixão.
Nestas cenas, o casal já está no quarto, fig. 9, e a performance principal é
realizada, figs. 10, 11 e 13, o ato sexual representa o objeto modal (meio) para
atingir o fim idealizado, ou seja, quando eles entram em conjunção com o Objeto-
Valor “consumação do desejo”. Eles exercem o papel de destinatários auto
sancionados. Getsemani percebe o que está acontecendo, figs. 12 e 14. A análise
esquemática está apresentada abaixo.
Maria....
Veja os
desenhos
que depois
eu conto a
história. Está
bem?”
Getsemani
165
Quadro nº 12 – Gráfico Armazenador III
Diálogos,
sons, ruídos
Ações e
movimen-
tos secundá-
rios
Gestualidade
visual
Luminosidade Expressões
manipuladoras
dos sujeitos
Objeto
Modal,
Objeto
Valor,
Figuras e
Temas
FIGURA 9
Em princípio
não som,
nem ruído,
somente se
escuta a
respiração do
casal
FIGURAS 10
E 11
Quando
Amaro se
aproxima de
Amélia, ele
recita o
poema
adaptado
para o filme,
retirado do
Cântico dos
Cânticos
Salomão -
Bíblia: -
“Como o lírio/
Entre os
espinhos/
Assim é
minha amada/
Entre as
mulheres”
(...), depois
somente a
respiração
ofegante do
casal
FIGURA 13
Entre as
cenas do
casal e no
final da
seqüência, a
respiração
ofegante e o
som, um
grunhido, da
voz de
Getsemani
FIGURAS 12
e 14
Respirações
ofegantes
Em plano
médio, a
câmera mostra
o casal se
aproximando
Amaro recita o
poema, abraça
e beija Amélia,
alternância de
planos que se
fecha e abre
conforme a
necessidade da
câmera para
mostrar as
seqüências de
cenas das
ações do casal
cortes
secos das
cenas do casal
para cenas de
Getsemani, em
plano
Americano
De nervosismo
O casal se
entreolha
Abraços, beijos,
rostos
sorridentes,
corpos se
unindo
Corpos em
plena união se
intercalam com
expressão
ansiosa e depois
em êxtase
Olhar
paralisado,
movimentos
desconexos,
corpo retesado
A câmera, em
abertura ampla,
capta luz no rosto
do casal
A iluminação
enfatiza o
elemento
específico da
cena, o casal,
como um meio
natural de mostrar
somente o que
interessa.
Pouca iluminação
para mostrar a
união do casal; e
ampla para
mostrar o estado
de Getsemani
Parte do rosto e
parte do
travesseiro sobre
o rosto e peito
Olhar carinhoso,
sedutor
Sensação,
tentação,
provocação
O poema, os
abraços, os beijos,
sorrisos, sedução,
tentação,
provocação
Ao êxtase deles e
de Getsemani
Provocação e
intimidação
OM = a
paixão
OM = O
sexo
OV =
consumação
do desejo
Figuras:
olhares,
beijos,
abraços,
corpos,
respiração
Temas:
Paixão/
Imoralidade
/ Sexual
Percurso
figurativo do
engodo
OM =
respiração ,
grunhido da
voz
166
Por meio da exposição dos quadros, pudemos perceber as semelhanças
entre o fragmento do romance e a seqüência selecionada do filme. Pelas imagens,
observamos que a princípio Amaro e Amélia estavam em disjunção com o Objeto-
Valor abstrato a consumação do desejo, depois através da manipulação, sujeitos
do querer-fazer e do dever-fazer, conseguem marcar um encontro. Conjugados ao
saber e ao poder, encontram-se.
Na transformação central da narrativa, Amaro e Amélia entram em
conjunção e se auto-sancionam na consumação do desejo realizado. Getsemani (no
romance, Totó) é a enganada, como no fragmento do romance, e no final fica em
êxtase por perceber o que estava acontecendo no quarto.
Não fica claro se Getsemani, nesta cena selecionada, sente raiva de
Amélia, mas sabemos pela totalidade fílmica narrada e algumas cenas em que ela
olha com furor e êxtase para o padre Amaro, que este era o seu objeto de valor
modal também para a consumação de um desejo.
Os temas Hipocrisia / Religião / Paixão / Imoralidade / Sexual vieram
revestidos pelas figuras olhares, sorrisos, livro, figuras, imagens religiosas, beijos,
abraços, corpos.
Na primeira seqüência, o percurso foi do fingimento; na segunda, da
enganação; e na terceira, do desrespeito com o clero e a sociedade. O percurso
figurativo concretiza, então, os temas propostos pela história desse fragmento e
confirma a semelhança com o romance, mesmo que a ordem ou os fatos não sejam
necessariamente idênticos. .
vários outros enfoques que não foram analisados nesse capítulo em
Semiótica. Fizemos aqui uma tentativa de interpretação dos fragmentos da narrativa
do romance de Eça de Queirós, e do filme homônimo O Crime do Padre Amaro, de
Vicente Leñero, sob a luz das Semióticas greimasiana para o verbal narrativizado
em programas e daviliana para as seqüências fílmicas transcodificadas por
esquemas armazenados em gráficos para o sincretismo verbo-viso-sonoro. O
assunto, porém, não se esgotará nesta abordagem, nem em outras tantas que
pretendam tratá-lo sem parcimônia.
167
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao propormos a análise acerca da adaptação fílmica da obra literária O
Crime do Padre Amaro, 1875, de Eça de Queirós, foi nossa intenção promover um
diálogo entre as duas linguagem, literária e fílmica. A transposição dessas
linguagens resultou em transformações inevitáveis diante da mudança de veículo,
dos contextos diferentes e modos de produção, revelando que a nova obra se tornou
autônoma, sujeita a comparações e críticas, mas com várias relações com o texto
que lhe serviu de base, portanto não foi uma mera ilustração do texto literário.
Além dessa constatação, outros temas foram analisados. Mostramos que
possibilidades de diálogos entre a cultura de um povo e o cinema, pois este é um
veículo que repercute na vida das pessoas, oferecendo entretenimento com
informação, em diversos níveis. Por isso é importante reconhecer nesse veículo de
comunicação a sua contribuição para a formação das pessoas. Ele nos faz ficar cara
a cara com nós mesmos, não é mera diversão, mas parte de nossas idéias, nossos
desejos e anseios. Milhões e milhões de imagens nos enviam reflexos de nós
mesmos. Mesmo que sejam situações fictícias, podem nos levar a uma realidade
superior, mais forte, mais real do que a própria realidade. Essas considerações
justificam-se mais ainda num filme como O Crime do Padre Amaro, que traz uma
visão crítica contundente a respeito de um dos pilares da sociedade ocidental, que é
a religião católica.
Analisamos os elementos expressivos empregados no cinema a
câmera, a fotografia, o som, a música, as interpretações, entre outros a fim de
evidenciar as significações na narrativa fílmica. Vimos que estes recursos auxiliam o
diretor para a composição do mundo maravilhoso do espetáculo cinematográfico.
Investigamos, também, como uma história pode ser contada em imagens
utilizando um roteiro. Evidenciamos a interpretação feita pelo roteirista em sua
transposição da obra de origem, destacando o que se manteve e o que se
modificou.
Julgamos que um estudo semiótico das linguagens utilizadas no romance
e no filme seria de grande valia para a nossa proposta e fizemos, portanto, uma
leitura dos aspectos discursivos e narrativos das obras escolhidas. O estudo levou a
crer que os recursos utilizados para a composição das obras analisadas convergem
168
em pontos centrais, que os elementos intratextuais imprimem forte sentido de
totalização ao universo das linguagens. Mostramos uma reflexão sobre a
significação inserida na comunicação, priorizando as relações intersubjetivas no uso
das linguagens verbal, não-verbal e sincrética.
Trabalhos voltados para a transcodificação de linguagens podem auxiliar
outros que queiram mostrar como as adaptações podem se constituir em poderosa
instância para ampliar e diversificar o conhecimento e a leitura, tanto dos textos
ficcionais, literários, como da própria linguagem cinematográfica. Adaptar significa
modificar, recriar o texto de obra literária. Nesse sentido, as modificações sofridas
pela recriação do filme que analisamos revelam diferentes formas de composição
de textos ficcionais, indicando como os gêneros literários acionam modos
particulares de construir os argumentos e roteiros elaborados pelo adaptador.
Ao produzirmos este trabalho, buscamos leituras dialógicas entre
literatura e cinema para ampliarmos os conhecimentos das duas linguagens. Ao
final, isto possibilitou-nos dinamizar e atualizar as formas de aquisição dos
conhecimentos da linguagem fílmica e do caminho para uma leitura interdiscursiva.
Escolhemos Eça de Queirós por ser um dos maiores romancistas da
língua portuguesa. Não foram poucos os intelectuais que correram a imitar-lhe o
estilo, adotando seus padrões de linguagem. Como romancista com profunda
consciência social, fez o que lhe parecia mais lícito: inquietou-se diante das
injustiças e na veemência de suas denúncias, na profunda individualização de seus
personagens, o artista revelou as próprias idéias e sentimentos.
Carlos Carrera e Vicente Leñero também souberam identificar nesse
contexto uma oportunidade para explorar ainda mais os temas denunciados pelo
artista e recriaram a narrativa queirosiana em um filme cheio de inquietações,
lágrimas e indignação. Os autores do filme adaptaram e reinterpretaram aspectos da
narrativa do romance e adequaram à linguagem do veículo fílmico. Livro e filme
possuem distanciamentos tanto de tempo quanto de estética e sensibilidade
artística; no entanto, houve, na adaptação, um diálogo com o texto de origem como
também com o seu próprio contexto. Realizaram uma recriação, respeitando a
essência do romance. Dinamizaram, enriqueceram com temática atual e
estabeleceram entre os dois discursos diálogos possíveis: os recursos não-verbais
do filme aumentaram as possibilidades significativas, os temas, as ideologias,
permitindo leituras interdiscursivas.
169
Dentro desse contexto, a transposição da linguagem literária de Eça de
Queirós para a audiovisual de Carrea e Leñero destacou-se como uma forma de
recriar a arte. Eles produziram uma nova obra a partir de um texto consagrado e
reconhecido pelo público. Na recomposição da narrativa, Leñero e Carrera
selecionaram o eixo dramático e, a partir dessa escolha, determinaram quais
episódios e personagens deveriam integrar a adaptação. Nesse processo,
privilegiou-se a trama principal: paixão x moralidade e religião x hipocrisia regida por
uma sociedade atual, exposta por um lado ao grande desenvolvimento tecnológico e
à riqueza do poderoso vizinho, EUA, e, por outro, ao atraso das crendices de uma
colonização espanhola cristã e predatória. Nesse contexto, o roteirista abriu novas
discussões para os problemas atuais de uma sociedade mexicana de extrema
desigualdade social, de bolsões de extrema miséria como pudemos notar nas
imagens que mostravam o padre Natálio ajudando os camponeses muito pobres na
zona rural da mesquinhez e ignorância da sociedade interiorana onde a história foi
ambientada, enfim, como o poder do narcotráfico e da Igreja aumentou com essa
ignorância.
Mesmo considerando que as diferenças de técnicas de (re)construção
inviabilizam algumas cenas e seqüências às vezes acrescentam outras – porque o
formato escolhido o filme para ser produzido impõe o tempo de duração e o
modo de construção do texto visual, Leñero e Carrera transpuseram de modo
eficiente o lugar e a época e evidenciaram que os séculos se passaram e o homem,
a natureza humana continuou a mesma; os equívocos em relação à religião se
perpetuaram. Tudo isso o adaptador trouxe do livro de Eça, do século XIX, e
transpôs para o xico atual. Não é pouco. Principalmente se levarmos em conta
que temos uma obra de Eça de Queirós, um grande clássico da literatura
portuguesa.
Sem dúvida, adaptar uma obra de arte de um mestre da literatura
portuguesa deve ter sido um desafio muito grande para Carrera e Leñero. Eles
optaram pela adaptação livre, enfatizaram a autonomia e a liberdade em relação ao
texto original, e não se preocuparam com a questão da fidelidade. Tudo isso sem
perderem de vista o drama central da história. Com certeza não conseguiram manter
o mesmo ritmo da narrativa e preservar as principais características do livro
queirosiano. O filme o produziu, com a mesma intensidade, o espírito geral do
romance. Perde na ironia afinada, no instinto da análise penetrada de transparência
170
e de clareza, o espírito crítico que decompõe e dissocia os problemas individuais, o
revestimento artístico de influências clássicas dos estudos e dos livros. Essas
particularidades não implicam necessariamente em qualidade, mas em maneiras
diferentes de representar, criar e produzir sentido. No romance, a narração fica
sempre a cargo do narrador que traduz a voz crítica, revoltada contra a injustiça, de
espírito livre, inteligência independente, de uma força de inquietude e renovação
presente em Eça. No filme, a narração se faz através da câmera. Por isso, nem tudo
o que o filme mostra os dramas das personagens, os cenários, os figurinos, as
intrigas...- passa pela apreciação minuciosa, crítica e sarcástica do narrador. Assim,
a representação das personagens e do espaço-tempo acabou ocupando, no filme,
grande parte do espaço que, no livro, foi ocupado pelo narrador, que enquadrava
tudo em seu modo de ver o mundo.
Mesmo não se equiparando em qualidade e valor artístico ao romance de
Eça, não quer dizer que o resultado final do processo de transposição da literatura
para a linguagem audiovisual tenha perdido suas características e qualidades
próprias. Com efeito, o filme trouxe para discussão as mazelas da sociedade
mexicana e a constatação da mesquinhez da natureza humana. No plano artístico, o
filme agrada pela beleza: a utilização bem compreendida da cor no filme, o que
representa muito na colorida paisagem e cultura mexicanas: sua utilização não foi
apenas uma fotocópia do real, mas também preencheu uma função expressiva e
metafórica; o jogo de câmera ( a cena inicial a cruz e final o travelling para trás
repudiando o crime do padre) são em si comentários críticos da trama; a atuação
dos atores principais ( Gael Garcia Bernal padre Amaro, Ana Claudia Talancón -
Amélia, Sancho Gracia padre Benito, entre outros), foi envolvente e expressiva e
merecedora de prêmios; e principalmente, o filme não cai no excesso lacrimoso e
emotivo que caracteriza tradicionalmente filmes e novelas mexicanos.
No mundo mágico da literatura e do cinema, o que parece é que a
imaginação é a criação ideal da realidade, servindo de experiência e de ponto de
partida para a criação artística, é a arte ampliando e corrigindo a realidade. Livro e
filme, com mais e ou menos intensidade, possuem o dom extraordinário de
surpreender a realidade num momento flagrante. No conjunto temos uma visão de
artes que exercitam seus elementos componentes em obras distintas, mas com o
propósito único de buscar uma forma de expressão plena.
171
REFERÊNCIAS
1. Bibliografia geral
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria e metodologia literárias. Lisboa:
Universidade aberta, 2002.
BALOGH, A M.. Conjunções – disjunções - transmutações: da literatura ao cinema e
à tv. 1. ed. São Paulo: ANNABLUME: ECA-USP, 1996.
BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 2006.
CAMÍN, Héctor Aguilar; MEYER, Lorenzo. À sombra da revolução mexicana. São
Paulo: Editora da Universidade de são Paulo, 2000.
CAPUZZO, Heitor. Lágrimas de Luz – o drama romântico no cinema. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 1999.
CARRIÈRE, J-C. A Linguagem Secreta do Cinema. Rio de janeiro: Nova Fronteira,
2006.
COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
COSTA. Maria Cristina C. Ficção, Comunicação e Mídias. São Paulo:Senac São
Paulo, 2002.
CUNHA, Renato. As formigas e o fel – literatura e cinema em um copo de cólera.
São Paulo: Annablume, 2006.
D’ÁVILA, R.N. Renart e Chanteclerc Análise semiótica do texto embasada na
teoria de A. J. GREIMAS. In: Leopoldianum–Revista de Estudos e
Comunicações.Vol. XVI (nº 47). Santos: ed. Da Unisantos: 1990, p. 23-42.
_______ Semiótica cinematográfica. Apostila do programa de Pós-graduação em
Comunicação. Disciplina: Semiótica, Comunicação e Linguagens”. Marília, UNIMAR,
2006.
______ O filme “Harry Potter e a Pedra Filosofal” e o vídeo: “A camisinha”. A
Semiótica na transcodificação e esquematização de textos sincréticos. 2 Apostilas,
Unimar, 2005.
172
_______ Aladim e a lanterna mágica. (No prelo). Em Apostila, no programa de Pós-
graduação em Comunicação. Disciplina: “Semiótica, Comunicação e Linguagens”.
Marília, UNIMAR, 2006.
______. Semiótica Musical e Sincrética na Publicidade e Propaganda (da Caixa
Econômica Federal). In: Anais do XI Encontro Nacional da ANPOLL. Campinas: Ed.
UNICAMP, 1998, 461-466. Publicação também encontrada no site
www.niciadavila.com.br
______ e MELLO, S. R. DE TARDE - de Cesário Verde. In. Comunicação:
VEREDAS - Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação- 4. Org.
S. Flory e L. Bulik. Marília: Editora UNIMAR –2005b., p.313-336.
D’ONOFRIO, S. Teoria do texto: prolegômenos e teoria da narrativa. 2. ed. São
Paulo: Editora Ática, 2002.
FIELD, Syd. Manual do roteiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. 7. ed. São Paulo: Contexto,
1999.
GÓES, Laércio Torres. O mito cristão no cinema: “o verbo se fez luz e se projetou
entre nós”. Salvador: EDUFBA – EDUSC, 2003.
GOTTARDI, Ana Maria (Org.). A retórica das mídias e suas implicações ideológicas.
São Paulo: Arte & Ciência, 2006.
SILVA, Juremir Machado da. As tecnologias do imaginário. Porto Alegre: Sulina,
2003.
MANZANO, Luiz Adelmo F. Som-imagem no cinema. São Paulo: Perspectiva:
FAPESP, 2003.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2003.
METZ, Christian. [tradução Jean-Claude Bernadet]. A significação no cinema. São
Paulo: Perspectiva, 2004. – (Debates; 54 / dirigida por J. Guinsburg).
MOISÉS, Massaud.. A literatura portuguesa. 26. ed. São Paulo: Cultrix, 1991.
ORLANDO, J.A. A cidade dos lunáticos. In: NAZARIO, L. (Org.). A Cidade
Imaginária. São Paulo: Perspectiva, 2005.
173
PACCOLA, Rivaldo Alfredo. Cinema e imaginário: em a história sem fim. Bauru, SP:
EDUSC, 2006.
PALMA, Glória Maria (Org.). Literatura e cinema: A demanda do Santo Graal &
Matrix / Eurico, o presbítero & A máscara do Zorro. Bauru, SP: EDUSC, 2004.
PELLEGRINI, Tânia. [et al.]. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Senac São
Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2003.
QUEIRÓS, Eça de. O crime do padre Amaro. 15. ed. São Paulo: Editora Ática, 2004.
SAVIOLI, Francisco Platão; FIORIN, JoLuiz. Para entender o texto. São Paulo:
Ática, 1992.
______. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo: Editora Ática, 1996.
STAM, Robert. O espetáculo interrompido: literatura e cinema de desmistificação.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
STRAUBHAAR, Joseph; LAROSE, Robert. Comunicação, mídia e tecnologia. São
Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004.
THOMPSON, John B. A Mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
TURNER, Graeme. Cinema como Prática Social. São Paulo: Summus, 1997.
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. São
Paulo: Paz e Terra, 2005.
____________ A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal: Embrafilmes, 2003.
2. Dicionários e enciclopédias
CHEVALIER, Jean.; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2005.
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss de Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001
174
3. Filmografia e imagens:
O crime do padre Amaro. Carlos Carrera. Vicente Leñero. Gael Garcia Bernal. Ana
Claudia Talancón. México: Alameda Films, 2002. 118 min. Drama. DVD vídeo.
Dolby Digital. Colorido.
4. Sites consultados:
CABRAL, Alexandre Marques. A Teologia da Libertação: o Cristianismo a favor dos
excluídos. Disponível em: http://www.achegas.net/numero/dois/a_cabral.htm. Acesso
em 02/05/2008.
SABADIN, Celso. Crítica ao filme O crime do padre Amaro. Disponível em:
http://cineclick.uol.com.br/criticas/index_texto.php?id_critica=669. Acesso em
07/05/2008.
Entrevista para Revista de Cinema. Disponível em:
http://www2.uol.com.br/revistadecinema/edicao33/cinema_latino/index. Acesso em:
06/03/2008.
http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/crime-do-padre-amaro/crime-do-
padre-amaro.asp
Site Oficial: www.elcrimedelpadreamaro.com
Morena, M. Leonardo Boff fala sobre ética para os acreanos. TiãOnline, Acre, maio,
2002. Seção TiãOnline Recomenda. Disponível em:
http://www.senado.gov.br/web/senador/tiaovian/online/TIAOnline/2002/m.. Acesso
em: 15 fev. 2007.
Notas da produção disponível em:
http://www.webcine.com.br/notaspro/npcripam.htm. Acesso em 22/03/2008.
OLIVEIRA, M.J. Entrevistas Carlos Carrera. Cinecartaz.Publico.Pt, Lisboa, Seção
Cinecartaz. Disponível em http://cinecartaz.publico.clix.pt/entrevista.asp?id=72291.
Acesso em: 05/03/2008.
SANT’ANNA, Romildo. Crônica A Cruz. Disponível em:
http://www.triplov.com/romildo/2008/cruz.html. Acesso em 02/05/2008.
______________. Crônica O Crime do Padre Amaro. Disponível em: http://www.triplov.com/romildo/2008/O
crime do padre Amaro.html. Acesso em 07/05/2008.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo