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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ
CENTRO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
CONTEXTUALIZAÇÃO EPISTEMOLÓGICA
DA PSICANÁLISE DE FREUD
Curitiba
2006
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2
Ajauna Piccoli Brizolla Ferreira
CONTEXTUALIZAÇÃO EPISTEMOLÓGICA
DA PSICANÁLISE DE FREUD
Trabalho apresentado ao programa de Mestrado
em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica
do Paraná, sob orientação do Prof. Dr.
Cleverson Leite Bastos, como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre em Filosofia.
Curitiba
2006
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3
Pela semente plantada...
Norberto Carlos Irusta - in memorian
II
4
Aos meus pais, pelo que puderam me ensinar e pelo que
me deixaram aprender;
Ao Prof. Dr. Cleverson Leite Bastos, pela sábia condução
de meu percurso;
Ao meu marido Alcione, pela cumplicidade, pelo carinho
constante e pelas pontuações;
Ao meu filho Alexandre, pela doçura e compreensão;
Aos tantos amigos, que direta ou indiretamente partilharam
a angústia que acompanha o prazer solitário da escrita,
em especial Gladys, Humberto, Silvane e Cláudio;
À PUCPR, pela oportunidade;
A meus mestres, que, cada um a seu modo e seu tempo,
me ensinaram a acreditar na capacidade de
aprimoramento.
Serei eternamente grata
III
5
A histeria é uma neurose no mais estrito
sentido da palavra — quer dizer, não só
não foram achadas nessa doença
alterações perceptíveis do sistema
nervoso, como também não se espera
que qualquer aperfeiçoamento das
técnicas de anatomia venha a revelar
alguma dessas alterações.
Freud
IV
6
Resumo
Nesta dissertação, nos propomos a explorar a construção da doutrina
psicanalítica a fim de estabelecer de que modo Freud chegou à noção de
pulsão como elemento fundante do Inconsciente. O objetivo é apresentar como
se a passagem, no viés psicanalítico, de uma concepção “mecânica” de
sujeito para uma concepção em que a subjetividade prevalece sobre o homem.
Desenvolvemos o estudo em três etapas: na primeira, exploramos o contexto
metodológico do surgimento da psicanálise; na segunda, dedicamo-nos à
metapsicologia, que é construída pela revisão conceitual feita a partir do que
Freud estabelece quando do surgimento da psicanálise; por fim, na terceira
etapa, mostramos o modo pelo qual o aparelho psíquico funciona por meio da
noção de pulsão.
Palavras-chave: Epistemologia; Freud; Psicanálise; Pulsão.
V
7
Abstract
Dans cette dissertation, nous proposons explorer la construction de la
doctrine psychanalytique à fin d´établir de quelle manière Freud est arrivé à la
notion de pulsion comme élément fondant de l´Inconscient. L´objectif est de
représenter, par le biais psychanalytique, comment se fait le passage d´une
conception “mécanique” du sujet à une conception dans laquelle la subjectivité
prévaloit sur l´homme. Nous avons développé l´étude en trois étapes: dans la
première, nous avons exploré le contexte méthodologique de surgissement de
la psychanalyse; ensuite, dans la seconde étape, nous nous sommes dédiées
à la métapsychologie, qui est construite à partir de la révision conceptuelle faite
à partir de ce que Freud a établit au moment du surgissement de la
psychanalyse; et, finalement, dans la troisième étape, nous avons montré le
mode par lequel l´appareil psychique fonctionne à partir de la notion de pulsion.
Mots-clefs: Épistémologie; Freud; Psychanalyse; Pulsion.
VI
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................
1
O CONTEXTO METODOLÓGICO DO NASCIMENTO DA
PSICANÁLISE FREUDIANA
...........................................................................
1.1
A definição de “ciência da natureza” e “ciência do espírito”
................
1.2
As opções metodológicas do fisicalismo
.................................................
1.3
As opções metodológicas do agnosticismo...........................................
2
METAPSICOLOGIA FREUDIANA
..............................................................
2.1
Dimensão tópica
.........................................................................................
2.2
Da tópica à dinâmica
.................................................................................
2.3
Da dinâmica à econômica
........................................................................
3
INSCRIÇÕES PULSIONAIS: HORIZONTE DO INDIZIVEL................
3.1
Repetição e a pulsão de morte
.................................................................
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................................
APÊNDICE............................................................................................................
09
12
13
32
38
41
49
55
59
66
85
96
100
103
VII
9
Introdução
A humanidade sempre colocou inúmeras questões acerca do mundo que
a rodeia, procurando respostas que lhe atenuassem a angústia e a
inquietação. É deste modo que nasceu o conceito de alma, onde reside a raiz
etimológica da psicologia: psiché (alma) e logos (razão, estudo). Contudo, a
Natureza não foi o único objeto destas interrogações. Com o surgimento da
psicanálise também se passou a refletir sobre o comportamento e sobre a vida
humana, nomeadamente sobre o aparelho psíquico, o Inconsciente, as
emoções e sentimentos. Todavia, o termo psicanálise apareceu no século
XIX com Sigmund Freud (1856-1939).
A psicanálise é, evidentemente, um saber que marcou profundamente o
desenvolvimento intelectual no século XX. O trabalho de Freud trouxe à
humanidade novas perspectivas no tocante à compreensão que esta tem do
homem. Seu pensamento, seu desejo, sua ação e reação, suas motivações e
outros aspectos são trazidos para um contexto novo. Com a psicanálise,
percebemos que a razão e a consciência não são elementos tão sólidos
quanto pensávamos. Freud não via como situar a psicanálise no quadro geral
do conhecimento humano em seu contexto histórico, senão como partícipe do
empreendimento científico como um todo.
Nesta dissertação, partimos da hipótese de que a psicanálise,
juntamente com outras teorizações desenvolvidas no século XX, leva-nos a, no
mínimo, desconfiar da noção cartesiana de uma consciência objetivável, que
valoriza a subjetividade como um elemento importante para uma explicação
10
coerente e produtiva da psique humana. A idéia central da psicanálise é que o
homem não tem inteiro domínio de sua racionalidade.
Não obstante às discussões acerca da cientificidade ou não da
psicanálise, estudar as suas fundamentações epistemológicas se reveste de
importância na medida em que a idéia de Inconsciente vem sendo incorporada
no discurso atual como uma importante categoria para o exercício de
apresentação das notas características do humano.
Neste cenário, nos propomos a explorar a construção da doutrina
psicanalítica a fim de entender de que modo Freud chega à noção de pulsão
como elemento fundante do Inconsciente. Nosso objetivo é apresentar como
se a passagem, no viés psicanalítico, de uma concepção “mecânica” de
sujeito para uma concepção em que a subjetividade prevalece sobre o homem.
A fim de atingir este objetivo, apresentamos esta dissertação em três
capítulos. No primeiro capítulo, apresentamos o contexto metodológico da
psicanálise por meio da explicitação das influências que levaram Freud a iniciar
pela adoção de uma posição monista e, subseqüentemente, passando pelas
opções metodológicas do fisicalismo e chegando ao agnosticismo. Deste
modo, exploramos o cenário conceitual onde se estabelecem as bases para o
entendimento da psicanálise como uma ciência natural e temos, então,
condições de entender o ponto de partida de Freud quando este se propõe a
fazer uma revisão conceitual de sua teoria.
O segundo capítulo é inteiramente dedicado à metapsicologia, que é
construída a partir da revisão conceitual de sua teoria até então. Na
metapsicologia encontramos a estruturação do aparelho psíquico em três
dimensões: tópica, dinâmica e econômica. A primeira refere-se aos sistemas
psíquicos dotados de características ou funções diferentes, representando uma
figuração espacial do modo pelo qual tais sistemas estão dispostos uns em
11
relação aos outros. A dinâmica, por sua vez, diz respeito ao aparelho psíquico
na medida em que este se estrutura a partir do conflito de forças psíquicas que
se opõem. Por fim, a econômica, se refere ao aparato psíquico como processo
que consiste na circulação e repartição de uma energia quantificável a energia
pulsional. Ao apresentar essas três dimensões indicamos a concepção de
aparelho psíquico segundo a psicanálise em Freud.
O terceiro capítulo é dedicado ao modo pelo qual o aparelho psíquico
funciona a partir da noção de pulsão. Essa noção sofre modificações no
decorrer da obra freudiana, mantendo unicamente em todos os momentos seu
caráter dual. Partindo de algo que se assemelha à idéia de instinto, a pulsão é
estabelecida, num primeiro momento, em termos de pulsões sexuais e de
autoconservação. Posteriormente, após uma série de reformulações, a pulsão
passa a ser estabelecida em termos de pulsão de vida e morte.
Ao descrevermos, desde o contexto metodológico do nascimento da
psicanálise, passando pela construção da metapsicologia, juntamente com a
teoria pulsional, temos algumas indicações de como Freud intui que a
consciência é apenas uma parte do aparato psíquico. Deste modo, temos
melhores condições para entender como ocorre a passagem, no viés
psicanalítico, de uma concepção “cartesiana” de sujeito para uma concepção
em que a subjetividade prevalece sobre o homem.
12
1 O CONTEXTO METODOLÓGICO DO NASCIMENTO DA PSICANÁLISE
FREUDIANA
“Se não puder dobrar os deuses de cima,
comoverei o arqueronte”.
Virgílio, Eneida, livro VII, 312.
O século XIX assistiu a um despertar em termos de desenvolvimento do
estudo do homem, da sua história, da sua linguagem e dos seus costumes. Tal
como nasceram as Ciências da Natureza, na sua cientificidade própria e
específica no século XVII, também as Ciências Humanas ou Ciências do
Espírito nasceram efetivamente no século XIX, com algumas peculiaridades:
esse nascimento foi marcado por um conflito de metodologias. Nessa esteira, o
estatuto epistemológico da psicanálise foi objeto de inúmeras reflexões e
continua ainda a ser um enigma para a epistemologia
1
, pois há uma dificuldade
1
Epistemologia ou teoria do conhecimento (do grego ("episteme" - ciência), "conhecimento"; "logos",
"discurso"), é um ramo da filosofia que trata dos problemas filosóficos relacionados à crença e ao
conhecimento. O termo epistemologia possui dois sentidos. Aquele que se refere à descrição dos
modos de funcionamento de uma determinada atividade de conhecimento, tendo ou não um parâmetro
ideal de ciência como modelo. Outro que se reporta à teoria geral do conhecimento, a uma filosofia da
ciência que define, em cada atividade científica, seus pressupostos filosóficos, seus limites, seus modos
de validade e suas condições de possibilidades. O primeiro sentido da epistemologia tem função
descritiva, trata-se apenas de explicar os meios pelos quais um conhecimento foi obtido, ou
comprobatória, quando a proposta é verificar a adequação daquela atividade de conhecimento a alguma
ciência estabelecida. O positivismo se configura numa epistemologia deste tipo, onde o parâmetro de
validade de todo conhecimento é dado pelos procedimentos de verificação empírica dos resultados das
práticas científicas. O positivismo assume que todo conhecimento derivado das ciências da natureza é
verdadeiro, elidindo, desta maneira, a discussão filosófica acerca da validade e da valoração de seus
resultados (Ortega y Gasset, 1982 p. 152). Ferrater Mora (p.960) apresenta também a Epistemologia
Evolutiva em que se adota em geral um ponto de vista biológico se acreditar que o conhecimento se
13
em classificá-la e dar-lhe um nome: ciência, arte, prática. Nesse primeiro
capítulo, procuraremos demonstrar o contexto metodológico em que nasce a
psicanálise freudiana, a adoção de Freud de um monismo epistemológico e
sua subseqüente passagem pelas opções metodológicas da física e depois ao
agnosticismo.
1.1 A definição de “ciência da natureza” e “ciência do espírito”
Em 1883, momento em que Freud começou as suas práticas médicas,
haviam duas posturas metodológicas vindas de economistas. Por um lado,
existia o naturalismo da economia clássica do século XIX com Adam Smith,
Jean-Baptiste Say, Thomas Malthus e David Ricardo; por outro lado, a corrente
dos historicistas, tendo como destaque Johann Gustav Droysen, August
Boeckh, Wilhelm Roscher, Bruno Hildebrand e Karl Knies. Esses historiadores
foram os primeiros a abordar a questão da hermenêutica, ou seja,
interpretavam a história a partir do modelo dado pela economia, especificando
assim um saber próprio, fato do qual resultou uma divisão: as ciências da
natureza e as ciências do espírito. Nesse sentido, este novo modelo dado
pela economia tornou-se a base e a finalidade fundamental de toda a
problemática levantada pelos historiadores. Firmou-se assim a idéia de que as
ciências da natureza devem ser explicadas, enquanto que os eventos
históricos, os valores e a cultura (ciências do espírito) devem ser
compreendidos, ou seja, as ciências da natureza apareciam com uma
relevância maior em relação às ciências do espírito.
Essa distinção entre ciências da natureza e ciências do espírito, com
supremacia da primeira sobre a segunda, opôs-se à concepção metodológica
de um grupo de autores extremamente significativo na segunda metade do
explica em termos da evolução das espécies e a Epistemologia Genética que investiga os conhecimentos
em função de sua construção real e psicológica.
14
século XIX, sendo justo destacar dentre eles Droysen e Dilthey. Esses
pensadores viriam cunhar definitivamente os conceitos de explicação e
compreensão, e fundar, a partir da análise hermenêutica, uma autonomia
metodológica das ciências do espírito. Wilhelm Dilthey
2
foi o primeiro a
contestar a dualidade ciências da natureza e ciências do espírito. Enquanto os
historiadores aferem às ciências da natureza um método analítico esclarecedor
e às ciências do espírito um método fundado em procedimentos de
compreensão em bases descritivas, Dilthey afirma que ao método científico
físico-matemático (ciência da natureza) corresponderia um conhecimento
explicativo e ao método hermenêutico-histórico (ciência do espírito)
corresponderia um conhecimento compreensivo.
Desta forma, Dilthey aprofundou essa distinção entre conhecimento
explicativo e conhecimento compreensivo, institucionalizando correlativamente
a expressão Ciências do Espírito. Para ele, as manifestações da vida e as
objetivações do homem no mundo social e histórico constituem o principal
ponto de abordagem das Ciências do Espírito, sendo a via de acesso a elas a
compreensão, que definirá a atitude hermenêutica face à história. Deste modo,
todo conhecimento se daria no mundo do espírito e, portanto, o conhecimento
produzido pelas ciências naturais não seria mais garantia de verdade. A
natureza pode ser explicada, mas o conhecimento propriamente dito é uma
atividade do espírito, visando a transformação da realidade histórico-social. O
valor do conhecimento, contido nas ciências da natureza, adviria, pois, de sua
ação transformadora sobre a realidade histórico-social, e, neste sentido,
deveria ser articulado com os conhecimentos realizados pelas demais ciências
do espírito. Dessa forma, para Dilthey, o termo ciência do espírito designa, ao
2
Filósofo alemão (Briebrich, Renânia - 19/11/1833 Suisi, 01/10/1911). Começou a freqüentar a
Universidade de Berlim em 1863. Diplomado com 24 anos, tornou-se professor da Universidade da
Basiléia. Durante esse período, sob influência do clima positivista que dominava a filosofia alemã,
estudou a ótica de Helmholtz e a psicofísica de Fechner.
15
mesmo tempo, tanto as ciências da natureza, que têm por objeto as
organizações sociais e o conjunto articulado dos conhecimentos científicos
realizados no mundo histórico-social, quanto às ciências naturais. Dilthey nos
mostra que toda ciência é ciência do espírito.
Outro nome importante nesse contexto é o de Schleiermacher. Ao criar a
sua idéia de hermenêutica, Schleiermacher retoma duas tradições: a filosofia
transcendental e o romantismo. Dessa união, surgiu a forma de questionar as
condições da possibilidade de interpretação válida e uma nova concepção do
processo de compreensão.
A tônica de Fichte na produtividade do Eu ativo (Ego) levou
Schleiermacher à descoberta da lei hermenêutica de que todo
pensamento do autor tem de estar relacionado com o sujeito ativo e
organicamente desenvolvido: a relação entre individualidade e
totalidade tornou-se o foco da hermenêutica romântica
3
.
Desta forma, os indivíduos são capazes de compreender sem terem de
problematizar a sua atividade. Isso ocorre até cessar a possibilidade de
debater. Assim, a experiência de um equívoco e a conseqüente tentativa de
evitar a sua repetição residem na busca pelas certezas, que culmina na
formulação de uma hermenêutica sistemática por parte de Schleiermacher.
Essa sistemática compõe-se de duas partes: interpretação gramatical
e psicológica. Para a primeira, desenvolve vinte e quatro cânones’
(Kanones). Os dois primeiros são os mais importantes e vieram
decerto lançar alguma luz sobre a abordagem genética de
Schleiermacher: primeiro, tudo o que necessita de uma maior
determinação num dado contexto pode ser determinado por
referência ao campo de linguagem partilhado pelo autor e pelo seu
público inicial; segundo, o significado de cada palavra num dado
passo tem de ser determinado por referência à sua coexistência com
as palavras que a rodeiam. A Tônica da lingüisticidade da
3
BLEICHER, Josef. Hermenêutica contemporânea. p.27.
16
compreensão […] distinguiu com certeza a hermenêutica de
Schleiermacher da dos seus antecessores.
4
No outro aspecto, o da interpretação psicológica, os cânones surgem em
torno da investigação do aparecimento do pensamento dentro da totalidade da
vida de um autor. Na aplicação destas normas, permite-se compreender o
sentido de determinado texto, pois, existindo um conhecimento histórico e
lingüístico adequado, o intérprete encontra-se na possibilidade de
compreender melhor o autor.
O intérprete que segue conscienciosamente o fio do pensamento do
autor terá de trazer para o nível consciente muitos elementos que
ficariam inconscientes neste último – compreendê-lo-á, por
conseguinte, melhor do que ele se compreendeu a si próprio.
5
Para Schleiermacher, a compreensão, enquanto arte, é voltar a
experimentar os processos mentais do autor do texto. Começa com a obra
acabada e volta à vida mental que a produziu. O autor constrói sua frase,
porém, é o leitor que entrará na estrutura própria da frase e do pensamento do
autor.
A interpretação consiste em dois momentos interactuantes: o
momento ‘gramatical’ e o ‘psicológico’ (no sentido lato de tudo aquilo
que se inclui na vida psíquica do autor). O princípio em que assenta
esta reconstrução, seja ela gramatical ou psicológica , é o do círculo
hermenêutico
6
.
4
BLEICHER, Josef. Hermenêutica contemporânea. p.27.
5
PALMER, Richard E. Hermenêutica p. 95
6
Compreender é uma operação essencialmente referencial; compreendermos algo quando o
comparamos com algo que conhecemos. Aquilo que compreendemos agrupa-se em unidades
sistemáticas, ou círculos compostos de partes. O círculo como um todo define a parte individual, e as
partes em conjunto formam o círculo. Por exemplo, uma frase como um todo é uma unidade.
Compreendemos o sentido de uma palavra individual quando a consideramos na sua referência à
totalidade da frase; e reciprocamente, o sentido da frase como um todo está dependente do sentido das
palavras individuais. Conseqüentemente, um conceito individual tira o seu significado de um contexto
17
Já a psicanálise, como um novo saber, surgiu no momento em que estas
discussões epistemológicas passavam um peculiar momento de revolução,
causadas pela “disputa” existente entre o conjunto constituído pelo saber
tradicional clássico galileano, nomeadamente, física, química e demais
ciências naturais, e o conjunto constituído dos nascentes saberes humanos
(saberes acerca do espírito). O primeiro conjunto de saberes apresentava
solidez quanto a métodos e procedimentos, o que, todavia, não acontecia com
o segundo grupo. Os saberes acerca do espírito careciam de uma metodologia
própria de trabalho que lhes possibilitasse fazer frente aos saberes da
natureza.
Dentro desse terreno de disputas metodológicas encontra-se Freud que,
desde o início de seus estudos psicanalíticos, defendia que, na psicanálise,
teoria e clínica deveriam andar juntas – o que o levou a considerar que sempre
haveria uma teoria da clínica e uma clínica que corresponda a uma teoria.
Freud utilizou os modelos historicamente datados das ciências de sua época e
também o seu próprio modelo. Compôs, assim, um modelo específico de
psicologia. Em sua postura metodológica prática estiveram presentes apenas
suas próprias convicções, que o levaram a evitar estabelecer relações com
elementos externos à situação terapêutica. Desta postura resultou, na virada
do século XIX para o XX, o surgimento da psicanálise. Em suas palavras:
Não é de se estranhar o caráter subjetivo desta contribuição que me
proponho trazer à história do movimento psicanalítico, nem deve
causar surpresa o papel que nela desempenho, pois a psicanálise é
criação minha. (...), acho justo continuar afirmando que ainda hoje
ninguém pode saber melhor do que eu o que é a psicanálise, em que
ou horizonte no qual se situa; contudo, o horizonte constrói-se com os próprios elementos aos quais
sentido. Por uma interação dialética entre o todo e a parte, cada um sentido ao outro, a compreensão
é portanto circular. E porque o sentido aparece dentro deste ‘círculo’, chamamos-lhe o ‘círculo
hermêutico’ (Palmer, p. 94).
18
ela difere de outras formas de investigação da vida mental, o que deve
precisamente ser denominado de psicanálise e o que seria melhor
chamar de outro nome qualquer.
7
Freud, ao criar um saber, elaborou um discurso epistemológico sui
generis, datado no universo epistemológico dos séculos XIX e XX. Ao criar
esse saber, elaborou tanto as regras que estabelecem os parâmetros de
funcionamento desse quanto seus referentes específicos. Na constituição e na
produção deste saber, Freud forjou sua epistemologia pensando em uma
prática científica.
A psicanálise tem um direito especial de falar de uma Weltanschaung
científica nesse ponto, de vez que não pode ser acusada de ter
negligenciado aquilo que é mental no quadro do universo. Sua
contribuição à ciência consiste justamente em ter estendido a
pesquisa à área mental. E, aliás, sem tal psicologia, a ciência estaria
muito incompleta.
8
Ainda que no momento do nascimento da psicanálise fosse uma
distinção forte, aparentemente, Freud não se deixou contaminar por essa
distinção entre as ciências da natureza e ciências do espírito. Contudo, mesmo
Freud permanecendo alheio às disputas metodológicas, ainda assim, responde
à comunidade científica de sua época. Na resposta, explana acerca da questão
referente ao lugar que esse novo saber, em constituição, ocupava em relação
ao par ciência da natureza ciência do espírito, ou seja, o lugar ocupado pela
psicanálise a partir da concepção dualista de ciência. Freud simplesmente
toma partido de uma outra posição: mantém-se fiel ao projeto monista, que
defendia o modelo explicativo como único modelo válido para a constituição de
uma ciência que seria sempre uma ciência natural. Para Freud, não haveria
7
FREUD, S. A história do movimento psicanalítico. p. 16.
8
FREUD, S. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. p. 194.
19
ciência do espírito, pelo que, a psicanálise não poderia ser outra coisa que
uma ciência da natureza.
Nas palavras de Freud: A psicologia é uma ciência da natureza. O que
mais ela poderia ser?
9
Indaga Freud, ao final de sua obra, em Algumas
lições elementares de psicanálise, texto de 1938. Para entendermos o sentido
preciso dessa indagação, recorremos ao texto de Assoun, Introdução à
metapsicologia freudiana, a fim de precisarmos o cenário em que se desenrola
o debate epistemológico do qual Freud vai tomar parte.
Para Freud, a diferença entre ciência natural e ciência do espírito não
fazia sentido. Entendia ele que se algo é científico é, por definição, algo
referente à natureza. E assim diz: “mas é justo dizer que uma psicologia que
não pode explicar os sonhos é também inútil para a compreensão da vida
mental normal, e que ela não pode reivindicar a denominação de ciência”
10
.
Assim, instituiu a psicanálise como um saber pertencente ao conjunto da
ciência da natureza. Segundo Assoun:
Eis por onde se anuncia a singularidade freudiana: por sua obstinação
um pouco teimosa em etiquetar a psicanálise como
Naturwissenschaft, ele acha o meio para eludir a questão, de ignorá-la
placidamente. Ele não escolhe a ciência da natureza contra uma
ciência do espírito: na prática ele quer dizer que a diferença não
existe, na medida que, em termos de cientificidade, haverá ciência
da natureza. Freud, aparentemente, não conhece outra.
11
Essa postura efetivou-se porque, naquele momento, Freud teve
significativo contato com a cultura científica clássica e o instrumento
metodológico usado para a sua construção teórica. Freud partiu da idéia do
9
FREUD, S. A natureza do psíquico. p. 317.
10
FREUD, S. A questão da análise leiga. p. 220 .
11
ASSOUN, Paul-Laurent, Introdução à epistemologia freudiana. p. 48.
20
homem em sua dimensão pura como “natureza”, que conduziu a psicanálise ao
modelo de Naturwissenschafte.
O otimismo intelectual, naturalista, de Freud (...) mesmo quando,
comparado ao de seu mestre Meynert, seja incomparavelmente mais
controlado e disciplinado, corresponde ao de seus modelos e de seus
predecessores. Trata-se do otimismo intelectual do naturalista (...), o
do naturalista da segunda metade do século XIX e do início do século
XX. É a esse otimismo intelectual das ciências da natureza, a idéia do
homo natura nele enraizada e por ele construída, invulnerável a todas
as influências não naturalistas, que a doutrina freudiana deve sua
força conquistadora (...) o homo natura constitui o problema científico
no qual o gênio de Freud se verificou, o edifício científico que, com
uma inflexibilidade e uma persistência incríveis, constitui a partir do
material mutante da vida humana.
12
Para entender as razões que levaram Freud a escolher a metodologia
das ciências da natureza é necessário entender que a abordagem psicanalítica
não admite diferenciação entre explicação e interpretação. Vale dizer que a
Deutung (interpretação) freudiana, realmente representada em Freud, aparece
não dissociada da Erklärung (explicação), que a interpretação seja
compreendida como uma variante da explicação. Em nenhum momento Freud
toma a interpretação como termo antagônico de explicação, o que deixa claro
em seus textos: “é necessário observar o fato de que minha teoria não se
baseia numa consideração do conteúdo manifesto dos sonhos, mas se refere
aos pensamentos que o trabalho de interpretação mostra estarem por trás dos
sonhos...”
13
E continua: “assim o trabalho de análise implica uma arte de
interpretação, cujo manuseio bem sucedido pode exigir tato e prática, mas que
não é difícil.”
14
12
ASSOUN, Paul-Laurent, Introdução à epistemologia freudiana. p.22
13
FREUD, S. A interpretação dos sonhos. p. 152.
14
FREUD, S. Um estudo autobiográfico. p. 55.
21
Freud sempre foi muito rigoroso quanto ao seu procedimento intelectual,
onde explica de modo interpretativo ou interpreta fornecendo a causa, o que
re-centra a interpretação sobre a explicação. Desta forma, determinar a
significação do sonho não significa, para Freud, desmantelar o esquema
causal. O que Freud trata é de elucidar o vínculo objetivo entre o conteúdo
manifesto e o conteúdo latente:
(...) Tudo isso é familiar a todo analista, a partir de sua experiência
cotidiana, e é inteligível sem dificuldade. Apenas um ponto exige
investigação e explicação.
15
(...) propomos lidar com estas coisas da mesma forma como o
fazemos com qualquer outro material cientifico: antes de mais nada,
estabelecer se, se pode realmente demonstrar que tais eventos
acontecem, e então, e somente então, quando sua natureza factual
não pode ser posta em dúvida, dedicar-nos à sua explicação.
16
O que não acontece em outras correntes, como a de Droysen e Dilthey,
onde está integrada a idéia de interpretação à conotação antinômica de
explicação. Para Freud, o ato interpretativo não se separa do ato explicativo
pelo qual se remonta do efeito à causa:
Farei uma pequena digressão, para perguntar-lhes se sabem o que
significa uma terapia causal. É este o modo como descrevemos um
procedimento, que não considera como ponto de ataque os sintomas
de uma doença, mas se propõe remover suas causas. Pois bem, é
então nosso método analítico uma terapia causal, ou o? A resposta
não é simples, mas pode, talvez, dar-nos a oportunidade de perceber
a inutilidade de uma pergunta assim formulada. Na medida em que a
terapia analítica não se propõe como sua tarefa primeira remover os
sintomas, ela se comporta como uma terapia causal. Em outro
aspecto, os senhores podem dizer, ela não o é. É que, há muito tempo
atrás, situamos a origem da seqüência das causas da doença, das
repressões às disposições instintuais, suas intensidades relativas na
15
FREUD, S. Construções em Análise. p. 300.
16
FREUD, S. Conferência XXX. p. 45-46.
22
constituição e os desvios no curso de seu desenvolvimento. Supondo,
agora, que fosse possível, talvez, por algum meio químico interferir
nesse mecanismo, aumentar ou diminuir a quantidade de libido
presente em determinada época ou reforçar um instinto à custa de
outro tal coisa, seria então, uma terapia causal no verdadeiro
sentido da palavra, para a qual a nossa análise teria efetuado o
indispensável trabalho preliminar de reconhecimento.
17
A mente humana como um mecanismo, cujo funcionamento pode ser
explicado por causas, é o ponto de partida crucial de toda sua obra. Em
qualquer relato clínico ou explicação teórica pode-se deparar com Freud
buscando causas que expliquem o aparecimento dos quadros patológicos.
Observações como essas nos parecem estabelecer uma analogia
entre a patogênese da histeria comum e das neuroses traumáticas e
justificar uma extensão de conceito de histeria traumática. Nas
neuroses traumáticas, a causa atuante da doença não é o dano físico
insignificante, mas o afeto do susto - o trauma psíquico. De maneira
análoga, nossas pesquisas revelam para muitos, senão para maioria
dos sintomas histéricos, causas desencadeadoras que podem ser
descritas como traumas psíquicos (...). Essas causas só puderam
exercer um efeito traumático por adição e constitui um conjunto por
serem em parte componentes de uma mesma história de sofrimento.
Existem outros casos em que uma circunstância aparentemente trivial
se combina com o fato realmente atuante ou ocorre numa ocasião de
peculiar suscetibilidade ao estímulo, e, dessa forma, atinge a
categoria de um trauma que de outra forma não teria tido, mas que daí
por diante persiste.
18
Fica claro que, para Freud, a psicanálise é uma Naturwissenschaft,
porque ele só vê a ciência como a ciência da natureza. Sua ambição de
cientificidade emana da ciência da natureza, o que pode ser confirmado em
seus escritos:
17
FREUD, S. Conferência XXVII. Transferência. p. 508.
18
FREUD, S. Estudos sobre a histeria. p. 43-44.
23
A intenção é promover uma psicologia que seja ciência natural: isto é,
representar os processos psíquicos como estados quantitativamente
determinados de partículas materiais especificáveis, tornando assim
esses processos claros e livres de contradição.
19
Desta forma, é notável que, na base epistemológica de Freud, encontra-
se um monismo
20
. Freud tinha um modelo teórico sobre a origem do homem:
articulou a definição biológica do cérebro como órgão e o conjunto de
atividades psíquicas chamada mente e desenvolveu o conceito de aparelho
neurocerebral, que é um conceito organizacional. Desta maneira, Freud
organizou uma realidade que comporta tanto uma face organizacional quanto
uma face do órgão biológico e também uma face psíquica. O interesse não foi
o de reduzi-las uma à outra, mas sim pesquisar a natureza de sua articulação.
Assim, entende que toda a ciência é considerada como um único edifício de
conhecimentos, que deve incluir as humanidades.
Mesmo com todas as disputas metodológicas, Freud fez sua escolha
epistemológica, negando o dualismo científico e, optando pela prática científica
que se originou desde a anatomia e a fisiologia, manteve o monismo como seu
ideal científico no campo físico-químico. Além do que, seu contato com os
anátomo-fisiologistas o levou a estabelecer a psicanálise em bases naturais,
reforçando sua postura contra os dualistas. A concepção do estatuto
epistêmico da ciência do psiquismo, em Freud, desde o início, foi então
reducionista, e é este reducionismo que fundou seu monismo epistemológico.
O contato de Freud com Helholtz, Brucke e Du Bois Reymond, mestres da
fisiologia, constituiu-se como um reforço de sustentação do seu juramento
fisicalista. O posicionamento de “Helholtz-Brucke-Du Bois Reymond” parte da
19
FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica. p. 40.
20
Esse vocábulo vem do grego, monos, "único". Refere-se a qualquer doutrina que diz que algum
princípio único governa todas as coisas, por meio de cujo princípio tudo existe e opera.
24
idéia de que as forças químicas e físicas agem no organismo de forma
preponderante.
Ora, Freud exprime sua convicção epistemológica absorvida nessa fonte,
constatando que a psicanálise pertence a Naturwisserschalft como um
requisito. Seu ideal científico está inscrito nos métodos das ciências da
natureza, marcadamente físico e químico. Freud revelou sua fidelidade ao ideal
científico em que se iniciou (na anatomia e na fisiologia) quando ainda era
estudante de medicina, onde tomou parte, em seu tempo e lugar, ao juramento
fisicalista ao qual permaneceu fiel. Dentro da perspectiva reducionista, então
admitida por Freud, tudo deve reduzir-se ao contexto físico-químico.
A posição de Freud sobre a relação mente e corpo teria sido monista,
como nos mostra Assoun:
Na epistemologia freudiana não há lugar para o dualismo. Tanto isso é
verdade que a distinção entre as Geisteswissenschafte e as
Naturwissenschafte remete a uma distinção de duas esferas
axiologicamente diferentes. Ainda é pouco dizer que, para Freud, a
psicanálise é uma Naturwissenschaften: na realidade não ciência
senão da natureza (...) Portanto, vamos encontrar na base da
epistemologia freudiana um monismo caracterizado e radical.
21
Esta posição de Freud decorre da recusa do paralelismo psicofísico tal
qual proposto por Haeckel, cujo fundamento dualista era visto como traição à
fundamentação da psicanálise nas ciências da natureza. A partir desta postura
científica, Freud expôs a descoberta dos sintomas conversivos dos pacientes
histéricos relacionando-os a experiências vividas e não a uma lesão somática.
Embora, por um lado, realmente reconheçamos a veracidade de
certas asserções constantemente repetidas, tais como a de que o
estado histérico é um efeito tardio e duradouro de uma emoção vivida
no passado, introduzimos na etiologia da histeria, por outro lado, um
21
ASSOUN, Paul-Laurent. Introdução à epistemologia freudiana. p. 50.
25
fator que o próprio paciente nunca menciona e cuja validade só admite
com relutância.
22
(...) Da mesma forma que um sofrimento psíquico que é recordado no
estado consciente de vigília ainda provoca uma secreção lacrimal
muito tempo depois de ocorrido o fato. Os histéricos sofrem
principalmente de reminiscências.
23
Esta explicação contrariava a psiquiatria da época, que considerava que
a causa dos sintomas da histeria seria uma alteração orgânica, conseqüência
de uma "degeneração nervosa". Paulatinamente, o modelo neurofisiológico
deu lugar à concepção de "aparelho psíquico", que explicaria a causa dos
sintomas histéricos. Tal explicação seria possível porque as causas não
correspondiam a uma lesão no sistema nervoso, mas à sua representação
psíquica o que levou Freud a reformular a sua concepção sobre a natureza
do psíquico. Freud abandonou a pretensão, que tinha à época do Projeto de
uma psicologia, de formular hipóteses específicas sobre a base
neurofisiológica dos processos psíquicos.
Descrevi a estrutura do aparelho psíquico e as energias ou forças que
nele são ativas, e delineei num exemplo notório a maneira como
essas energias (principalmente a libido) organizam-se numa função
fisiológica que serve ao propósito da preservação da espécie. Nada
havia, nisso tudo, que demonstrasse a característica inteiramente
peculiar do que é psíquico à parte, naturalmente, o fato empírico de
que esse aparelho e essas energias são as bases das funções que
descrevemos como nossa vida mental. Voltar-me-ei agora para algo
que é exclusivamente característico do psíquico, e que, na verdade,
de acordo com opinião largamente aceita, coincide com ele, à
exclusão de tudo o mais.
24
Freud, mesmo na época em que acreditava que devia e podia formular
hipóteses específicas sobre a base fisiológica do psíquico, isto é, na época do
22
FREUD, S. A etiologia da histeria. p. 179.
23
FREUD, S. Sobre o mecanismo psíquico dos Fenômenos Histéricos. p. 45.
24
FREUD, S. Qualidades psíquicas. p. 182.
26
Projeto de uma psicologia científica, pôde constatar que não era tanto sua
psicologia que se tornava fisiológica, mas antes sua fisiologia que se tornava
psicológica.
O motivo principal, porém, foi que Freud, o neurologista, estava sendo
superado e deslocado por Freud, o psicólogo: tornava-se cada vez
mais evidente que até mesmo o elaborado mecanismo dos sintomas
neuróticos era canhestro e grosseiro demais para lidar com as
sutilezas que estavam sendo trazidas à luz pela análise psicológica’,
sutilezas que só poderiam ser explicadas na linguagem dos processos
mentais.
25
Para explicar os sintomas neuróticos dentro das ciências da natureza,
Freud fez uso inicialmente de um modelo neurofisiológico, organizado em torno
dos conceitos de estrutura e função. Um exemplo de estrutura do sistema
nervoso é o arco reflexo cuja função é a de responder a um estímulo. No
Projeto para uma psicologia científica, Freud tentou a compreensão do
funcionamento mental fundamentado na existência de tipos diferentes de
neurônios que com suas vias de condução, barreiras de contato,
mecanismos de facilitação e critérios de energia livre e vinculada explicariam
a causa dos sintomas. Seu objetivo era formular uma psicologia da ciência
natural: apresentar os processos psíquicos como estados quantitativamente
definidos de partes materiais especificáveis: os neurônios.
Esta concepção significa que os conceitos e explicações de natureza
psicológica seriam redefinidos por conceitos e explicações mais próximos de
conceitos neurofisiológicos. Conceitos como representação, desejo,
pensamento, intenção e atenção, entre outros, deveriam ser substituídos por
outros como excitação, inibição ou reflexo. Nessa perspectiva, tudo que é
oferecido pelo "sentido interno" ou pela consciência de si mesmo, deveria ser
25
STRACHEY, J. In: FREUD, S. A história do movimento psicanalítico. p. 187.
27
considerado como não pertinente ou enganoso. O método de pesquisa deveria
ignorar a introspecção e privilegiar os procedimentos do laboratório de
fisiologia ou os procedimentos experimentais baseados na observação objetiva
do comportamento. Todo fenômeno deveria ser explicado sobre fatores
antecedentes e objetivos. Sobretudo, toda explicação teleológica deveria ser
evitada, isto é, toda explicação de um fato deveria estar em sua "finalidade" ou
"alvo" supostos. Os conceitos de natureza psicológica como desejo,
pensamento, prazer e outros não são redefinidos por conceitos
neurofisiológicos, e é sua representação neurofisiológica que se dobra às
exigências da teoria dos processos psíquicos. Mais tarde, a concepção da
base neural do psíquico não lhe imporá mais a tarefa de tentar uma formulação
hipotética dos processos neurofisiológicos em questão e Freud contentar-se-á,
então, em recorrer a instâncias e processos psíquicos para sua teoria.
É por este motivo que o ‘projeto’ é importante para os leitores de A
Interpretação dos Sonhos grande parte do modelo geral do
esquema anterior, assim como muitos de seus elementos, foram
transpostos para o novo esquema. Os sistemas de neurônios foram
substituídos por sistemas ou instâncias psíquicos: uma “catexia”
hipotética de energia psíquica tomou lugar da “quantidade” física; o
princípio da inércia tornou-se a base do princípio de prazer (...) Com o
passar do tempo, seu interesse foi-se desviando gradualmente dos
problemas neurofisiológicos e teóricos para os problemas psicológicos
clínicos.
26
Desta forma, no pensamento de Freud, uma firme adesão ao
pensamento causal. A mesma relação de causalidade dos fenômenos
estudados pelas ciências naturais aplica-se, segundo ele, aos fenômenos
psíquicos, concluindo:
26
STRACHEY, J. In: FREUD, S. Interpretação dos sonhos. 1900, p. 25.
28
Mas a relação causal entre o trauma psíquico determinante e o
fenômeno histérico não é de natureza a implicar que o trauma atue
como mero agent provocateur na liberação do sintoma, que passa
então a levar uma existência independente. Devemos antes presumir
que o trauma psíquico - ou, mais precisamente, a lembrança do
trauma age como um corpo estranho que, muito depois de sua
entrada, deve ser considerado como um agente que ainda está em
ação; encontramos a prova disso num fenômeno invulgar que, ao
mesmo tempo, traz um importante interesse prático para nossas
descobertas.
27
A causalidade dos processos psíquicos é coerente com a idéia de que
estes têm um substrato natural, neural mesmo não podendo ser explicado
em termos neurais. Para Freud, trata-se sempre de compreender os processos
psíquicos em termos de causas. A elucidação do sentido, seja dos sonhos ou
dos sintomas, tem, sem dúvida, um lugar central no seu sistema. Essa
elucidação de sentido deve se fazer apenas como uma simples hermenêutica,
isto é, como uma exploração das possibilidades de significação ou de
simbolização. A teoria freudiana recorre a explicações causais relativas aos
processos psíquicos inconscientes, em termos de conflitos entre instâncias
com diferentes modos de funcionamento. Na técnica de associações, a
interpretação freudiana das associações deriva diretamente de um
pensamento causal: as associações que o paciente produz durante a análise e
os elementos do sonho são considerados como derivados das mesmas
causas. A interpretação simbólica aceita por Freud obtém valor em relação
a uma explicação causal relativa a um desejo inconsciente suposto.
Isso se verifica, em parte, porque o que está em questão é, muitas
vezes, alguma experiência que o paciente não gosta de discutir; mas
ocorre principalmente porque ele é de fato incapaz de recordá-la e,
muitas vezes, não tem nenhuma suspeita da conexão causal entre o
evento desencadeador e o fenômeno patológico. Via de regra, é
necessário hipnotizar o paciente e provocar, sob hipnose, suas
27
FREUD, S. Estudos sobre a histeria. p. 44.
29
lembranças da época em que o sintoma surgiu pela primeira vez; feito
isso, torna-se possível demonstrar a conexão causal da forma mais
clara e convincente.
28
A crença de Freud na causalidade psíquica é, muitas vezes, afirmada
com um termo forte, o de determinismo psíquico. A ciência da época de Freud
era estritamente determinista. Para exemplificar, na Psicopatologia da vida
cotidiana, Freud afirma o seguinte:
Depois que nos habituamos a essa concepção do determinismo na
vida psíquica, sentimo-nos justificados em inferir das descobertas da
psicopatologia da vida cotidiana que as idéias que ocorrem ao sujeito
numa experiência de associação podem também não ser arbitrárias,
mas determinadas por um conteúdo ideativo nele atuante.
29
Muitas pessoas, como se sabe, contestam a suposição de um
determinismo psíquico completo invocando um sentimento especial de
convicção de que existe um livre-arbítrio. Esse sentimento de
convicção existe, e não cede diante da crença no determinismo.
30
A psicopatologia da vida cotidiana encerra-se com um capítulo dedicado
à questão do determinismo, da crença e da superstição, temas que Freud
tornaria a evocar numa de suas conferências proferidas nos Estados Unidos e
reunidas num pequeno volume intitulado Cinco lições de psicanálise. Freud
assinala que o determinismo psíquico, que por antífrase ele denomina de
acaso externo, no qual as determinações psíquicas se acham quase
totalmente ausentes, é quase sempre objeto de um deslocamento espontâneo
por parte do ser humano.
Devo afirmar que às vezes é muito útil ter um pressuposto. Eu tinha
em alto conceito o rigor do determinismo dos processos mentais.
31
28
FREUD, S. Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos. p. 41.
29
FREUD, S. A psicanálise e o determinismo dos fatos nos processos jurídicos p. 107.
30
FREUD, S. Determinismo, crença no acaso e superstição alguns pontos de vista. p. 219.
31
FREUD, S. Cinco lições de psicanálise. p. 29.
30
(...) o psicanalista se distingue pela rigorosa no determinismo da
vida mental.
32
(...) julgo eu, que existem especialmente dois obstáculos, dignos de
nota, contra a aceitação das idéias psicanalíticas: primeiramente, a
falta de hábito de contar com o rigoroso determinismo da vida
mental.
33
O modo encontrado por Freud para escapar ao determinismo estrito de
sua época foi abrigando-se na noção de sobredeterminação
34
. Cada fenômeno
psíquico é determinado, mas pode sê-lo ao mesmo tempo por vários fatores. A
possibilidade de sempre encontrar outros determinantes e de imaginar ainda
outros que não se pode precisar impõe, na realidade, uma limitação, pelo
menos prática, ao determinismo psíquico freudiano. Sua posição causal
permanece, portanto, inalterada, em coerência com sua concepção naturalista
dos processos subjacentes aos fenômenos psíquicos.
O determinismo psíquico adotado por Freud poderia ser visto como
entrando em choque com seus conceitos de escolha de objeto e escolha da
neurose.
Pode-se considerar como ocorrência típica que a escolha de objeto se
efetue em dois tempos, em duas ondas. A primeira delas começa
entre os dois e os cinco anos e retrocede ou é detida pelo período de
latência; caracteriza-se pela natureza infantil de seus alvos sexuais. A
segunda sobrevém com a puberdade e determina a configuração
definitiva da vida sexual.
35
A propósito, escrevem Laplanche e Pontalis:
32
FREUD, S. Cinco lições de psicanálise. p. 36.
33
FREUD, S. Cinco lições de psicanálise. p. 48.
34
Sobredeterminação, termo empregado em filosofia e psicologia para designar, conforme as
modalidades próprias de cada objeto, uma pluralidade de determinação que gere um dado efeito. Essa
palavra foi utilizada por Sigmund Freud, em particular, na Interpretação dos sonhos. (Roudinesco E. e
Michel Plon. Dicionário de psicanálise).
35
FREUD, S. Dois tempos da escolha de objeto. p. 187.
31
Todavia, não é indiferente que, numa concepção que invoca um
determinismo absoluto, apareça este termo sugerindo que seja
necessário um ato do sujeito para que os diferentes fatores históricos
e constitucionais evidenciados pela psicanálise assumam os seus
sentidos e o seu valor motivante.
36
Freud iniciou seu pensamento teórico assumindo que não nenhuma
descontinuidade na vida mental. Afirmou que nada ocorre ao acaso, muito
menos os processos mentais. uma causa para cada pensamento, para
cada memória revivida, sentimento ou ação. Cada evento mental é causado
pela intenção consciente ou inconsciente e é determinado pelos fatos que o
precederam. Uma vez que alguns eventos mentais parecem ocorrer
espontaneamente, Freud começou a procurar e descrever os elos ocultos que
ligavam um evento a outro.
O conceito de determinismo psíquico foi essencial para a psicanálise em
seus primórdios. Por meio dele, Freud buscava, entre outros objetivos, afastar
a psicanálise de misticismos e aproximá-la do campo das ciências, dentro de
um modelo causa-efeito determinado. Freud precisou elucidar uma identidade
epistemológica que superasse a contradição entre a exigência fenomenal à
psicanálise, a naturwissenschalft e a transobjetividade de que se trata. Ao
construir uma metapsicologia, Freud deu uma identidade epistêmica à
psicanálise.
Dentro desse entendimento, o que Freud fez foi apropriar-se do modelo
químico para elucidar a sua idéia de aparelho psíquico, ou seja, continuou fiel
às suas idéias de que a psico-análise é uma ciência da natureza, e como tal,
deveria se apresentar de acordo com o modelo das ciências clássicas.
36
LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário da Psicanálise. p. 154.
32
1.2 As opções metodológicas do fisicalismo
O significativo ano de 1840 marcou a prática desenvolvida pela fisiologia, física
e química, com interesses comuns quanto à matriz energética. É com esse
modelo que Freud introduziu os Processos do Inconsciente, nos quais
decompor e compreender tornaram-se a chave para seu procedimento, e
também, onde ele encontrou a linguagem do inconsciente. Os desafios da
psicofisiologia marcaram o último quarto do século XIX, trazendo com eles
disputas entre os campos de saber: por um lado, os “Nativistas” e, por outro, os
“Empíricos”. Essas divergências culminaram em duas grandes escolas
filosóficas a dos Empíricos e a dos Nativistas disputando o campo da
ótica fisiológica e reclamando pelo conhecimento do espaço - se era adquirido
de forma inata ou como resultado da experiência - embora Freud deixe claro
esta divisão entre naturalismo e empirismo, no tocante ao aparelho psíquico e
à percepção. Todo esse cientificismo fisicalista desembocou em algo do qual
Freud jamais se separou: o determinismo, sua origem de formação.
Dentro do grande debate entre as escolas, não se pode deixar de citar o nome
de Koller, que propôs um debate ativo sobre o determinismo diante da disputa
de opiniões, o que mostra que a Ciência da Natureza, seguindo a física,
fisiologia e psicologia, apóia-se numa rigidez determinista. Pode-se constatar
que Freud, absorvido pelo modelo de saber vigente, quase meio século antes
de criar a psicanálise, evidenciava que a sua postura estava ligada a modelos
epistêmicos antigos. Isso se porque ele foi educado nesse meio, o que o
tornava conservador à evolução de outros modelos que não tivessem esses
referentes.
Além do forte interesse pela química e pela física, Freud demonstrava,
em especial, um interesse pela fisiologia anatômica, terreno de sua formação
33
como médico neurologista. Contudo, Freud sofreu ainda outra influência: em
1842, surgiu, no cenário, um médico-físico chamado Robert Mayer,
37
que
explicitou a lei geral da conservação da energia. Com esta descoberta, a
fisiologia encontrou seu pilar: o princípio energético único (força única), que se
manifesta de várias formas. A psicologia apoiou-se nesse pilar, pela lei da
conservação da força nos domínios psíquicos. Em contrapartida, os avanços
da química começaram também a apontar neste cenário. Foi inaugurada a era
da química, por Justos Von Liebig, com o primeiro laboratório de química
Giessen, em que Liebig esboçou uma energética química pela via da química
analítica. Seu método consiste na análise dos constituintes do organismo pela
comparação dos átomos de um composto ingerindo com átomos dos derivados
expelidos, surgindo dentro desta perspectiva a passagem de um composto
vegetal a um composto animal por subtração de componentes
38
.
Contudo, pode-se dizer, trata-se de um modelo de saber que se instaura um
terço de século antes que Freud ingresse no campo do saber, e quase meio
século antes que ele crie o instrumental heurístico da psicanálise. É
justamente a primeira aquisição dessa primeira abordagem descritiva das
posições freudianas: Freud está extraordinariamente ligado a modelos
epistêmicos antigos
39
.
A psicanálise, tanto quanto a química, opera com forças explosivas: uma com
substâncias, outra com analogias psíquicas, o que torna claro a escolha do
termo psico-análise, utilizado por Freud, pois podemos encontrar sua raiz
37
Em 1842, Julius Robert Mayer propunha a lei geral da conservação da energia. Neste ano Mayer
não tinha feito experiências quantitativas, mas havia observado processos fisiológicos, envolvendo
calor e respiração, que o levaram a intuir a conclusão importante a que chegou, a saber: a lei da
conservação geral da energia. Em 1847, Hermann von Helmholtz lançou a idéia de que a energia pode
mudar várias vezes de forma, mas que, nos processos de conversão da energia, nada se cria ou se
destrói, isto é, a quantidade de energia mantém-se constante, num sistema isolado. A lei da conservação
da energia ficou, pois, estabelecida em meados do século XIX, tendo-se tornado um ponto de apoio
fundamental para o progresso científico.
38
Cf. ASSOUN, Paul-Laurent. Introdução à epistemologia freudiana. p. 70.
39
ASSOUN, Paul-Laurent. Introdução à epistemologia freudiana. p. 75.
34
ligada a procedimentos químicos. Ao tentar uma fundamentação científica da
psicanálise, Freud apoiou-se na química e na física como tentativa de escrever
seu modelo epistemológico. Primeiro, fez a analogia com a química,
psicanálise-química, como forma de introduzir na sua teoria do psiquismo um
volume químico. Ao tratar do narcisismo, afirma:
Devemos nos lembrar de que todos os nossos conhecimentos
psicológicos provisórios deverão ser estabelecidos, um dia sobre o
solo dos substratos orgânicos. Parece então verossímil a existência
de substâncias e de processos químicos produzindo os efeitos da
sexualidade e permitindo a percepção da vida individual na vida da
espécie.
40
Pensando no futuro da psicanálise, Freud apostou no saber químico como
forma de dar conta, mais tarde, do saber psicológico. Esta é a forma que
encontrou para manter seu juramento fisicalista e construir sua metapsicologia.
Em seus próximos textos Ensaios de Metapsicologia (1915) e Psicanálise e
Teoria da Libido (1923) continuou sua referência à física e à química.
Nestes textos, tentou caracterizar a natureza científica da psicanálise, dando-
lhe um verdadeiro modelo epistemológico:
A psicanálise se comporta como a física ou a química, de tal sorte
que seus mais elevados conceitos não são esclarecidos, suas
proposições são provisórias, mas espera do futuro, que tenham uma
determinação mais contundente.
41
Eis o fundamento de sua tese. A analogia que Freud fez com a química lhe
serviu para determinar um sentido mais preciso à análise freudiana, enquanto
que a física deu-lhe subsídios para a construção de sua identidade epistêmica.
40
FREUD, S. Sobre o Narcisismo. p. 95.
41
ASSOUN, Paul-Laurent. Introdução à epistemologia freudiana. p. 66-67.
35
A hipótese que adotamos, de um aparelho psíquico que se estende no
espaço, convenientemente reunido, desenvolvido pelas exigências da
vida, que origem aos fenômenos da consciência somente em um
determinado ponto e sob certas condições essa hipótese nos
colocou em posição de estabelecer a Psicologia em bases
semelhantes às de qualquer outra ciência, tal como, por exemplo, a
Física. Em nossa ciência, tal como nas outras, o problema é o mesmo:
por trás dos atributos (qualidades) do objeto em exame que se
apresenta diretamente à nossa percepção, temos de descobrir algo
que é mais independente da capacidade receptiva particular de
nossos órgãos sensoriais e que se aproxima mais do que se poderia
supor ser o estado real das coisas
42
.
No texto de 1918, sobre os Caminhos da Terapia Psicanalítica, podemos
perceber de forma mais contundente essa busca de Freud por assemelhar a
psicanálise com a análise química como “decomposição”, como
“desagregação”, mostrando que o trabalho do químico assemelha-se muito ao
do analista. Assim como o químico separa os elementos químicos, o analista,
por igual, separa as moções pulsionais, explicando as tendências sexuais dos
homens, decompondo-as, o que indica uma concepção naturalista da moção
pulsional, visto que o analista trata dos pedaços da natureza psíquica, que são
as pulsões, enquanto o químico, das substâncias encontradas na natureza.
O trabalho da psicanálise sugere analogia com a análise química,
mas o sugere também, na mesma medida, com a intervenção de um
cirurgião, ou com as manipulações de um ortopedista, ou com a
influência de um educador. A comparação com a análise química tem
a sua limitação: porque, na vida mental, temos de lidar com
tendências que estão sob uma compulsão para a unificação e a
combinação. Sempre que conseguimos analisar um sintoma em seus
elementos, liberar um impulso instintual de um vínculo, esse impulso
não permanece em isolamento, mas entra imediatamente numa nova
ligação.
43
Freud, ao apoiar-se nesse modelo químico, ressaltando suas afinidades
com o modelo psicanalítico, deparou-se com a problemática dos limites dessas
42
FREUD, S. O aparelho psíquico e o mundo externo. p. 225.
43
FREUD, S. Linhas de progresso na terapia analítica. p. 203.
36
afinidades. Esses limites surgem porque o que acontece na química psíquica
não acontece na química propriamente dita. Comparemos os dois modelos da
seguinte maneira: depois de decompostos, os elementos psíquicos tendem a
unir-se novamente em uma psicossíntese, sem a interferência do analista. Já
na química, isso não acontece. Seus corpos, após serem isolados pelo
químico, formam sínteses pela afinidade de suas substâncias. Isto permite
concluir, pela peculiaridade da análise psíquica, que o que ocorre num caso
particular da química torna-se um caso geral no psiquismo. Assim, na química
psíquica sempre ocorrerá uma psicosíntese, enquanto que na química essa
síntese só se dará se entre as substâncias houver afinidades. Enquanto que na
química, caso os elementos não tenham afinidades, eles continuarão
separados, na química psíquica essa síntese sempre ocorrerá. Por mais que o
analista consiga decompor as pulsões de suas causas, de seus vínculos,
essas pulsões não ficarão isoladas para análise, elas formarão um outro
elemento, um vínculo novo para análise. Diante dessa dificuldade com a
química, Freud mostra-se fiel ao método analítico, isto é, toma cuidado para
não introduzir no doente, nem muita análise e nem pouca síntese.
Tomemos ao da letra essa analogia: antes mesmo das
conseqüências terapêuticas, isto supõe uma concepção naturalista da
moção pulsional. Assim como o químico trata das substâncias
encontradas na natureza, o analista se encontra em condições de
tratar, em seu laboratório pessoal (a cura) esses pedaços da natureza
psíquica que são as moções pulsionais. A própria doença não passa
de uma combinação artificial desses elementos naturais. Portanto, a
análise é uma intervenção artificial de segundo grau tendo por tarefa
desatar de novo complexos, artefatos cuja desconstrução deve ter por
efeito da reobtenção desses elementos básicos. É nisto que a
comparação é “pertinente” (berechtigt), tendo mesmo um efeito, aos
olhos de Freud, de estimulação para ”abrir os novos caminhos” à
terapêutica analítica
44
.
44
ASSOUN, Paul-Laurent. Introdução à epistemologia freudiana. p. 60.
37
Para compreender porque Freud partiu da química e da física na
construção epistêmica de sua teoria é importante entender o que se passou na
Alemanha, no ano de 1840, e acompanhar a evolução epistemológica, em que
acontece o desenvolvimento da física e da química e a chegada dos
fisiologistas que contribuiram para tal desenvolvimento. A renovação que
modificou o cenário epistemológico vem da fisiologia com o Manual de
Fisiologia Humana, de Johanes Muller
45
, que reformulou a teoria da energia
dos nervos e revolucionou a Neurologia da época, de onde saiu a primeira
geração de fisiologistas alemães. Com o seu surgimento, avançou o campo da
física e da química. Todos chegaram à física pela medicina, via fisiologia,
caracterizando-se na imagem do médico-físico. A psicologia científica veio na
seqüência, por Wundt, e foi nesse cenário que se desenvolveu a passagem de
Freud da medicina para a psicologia.
A psicologia, em especial, apóia-se nesses dois pilares. Se, por volta
de 1860, é reconhecido a Wundt o mérito de ter inaugurado a
psicologia científica, é porque, de um lado, ele a apóia em fatos
tomados de empréstimo à eletro-fisiologia; do outro, e antes de tudo,
porque, em suas Lições sobre a alma no homem e no animal,
aparece, pela primeira vez, a lei da conservação da força estendida ao
domínio psíquico
46
.
Desta forma, podemos entender que a ambição de Freud em fazer
da psicanálise uma Naturwissenschft, se dá pelo seu arcabouço físico-
químico-fisiológico e na necessidade causal e determinista. Entender as
causas, reconstituir o seu processo dentro de um modelo rigoroso, ainda
que esses modelos sejam extremamente conservadores, permitiu a Freud
pensar a psicanálise como ciência natural.
45
JOHANES MULLER (1801-1858) notável psicólogo e fisiologista alemão, propôs a teoria da
“energia nervosa específica” a qual defendia que os diferentes nervos (óptico, auditivo etc) transmitem
uma espécie de código que identificava sua origem no cérebro.
46
ASSOUN, Paul-Laurent. Introdução à epistemologia freudiana. p. 79.
38
1.3 As opções metodológicas do agnosticismo
O período agnosticista iniciou com um célebre fisiologista, Emile Du
Bois-Reymond (1870), que trouxe um discurso inovador no meio científico da
época, absorvido, de alguma forma, por todos os cientistas. Reymond
desenvolveu, em seu discurso, um agnosticismo sustentado em uma
perspectiva kantiana, na qual o conhecimento da natureza possui dois limites.
Refere-se ao problema do “elo entre a matéria e a força” e, também, do
problema da “consciência e sua relação com as condições materiais e com os
movimentos”. Trata-se de saber qual é a substância comum entre a força e a
matéria. Reymond conclui que para sempre Ignoramus Ignorabimus”. O termo
que o consagrou e serviu de profissão de para os cientistas de seu tempo,
também é palavra símbolo para a filosofia natural.
Du Bois-Reymond desenvolve um agnosticismo resoluto que se apóia
na teoria kantiana do limite do conhecimento, mas especificando-a
para o uso dos cientistas que, a partir de então, de bom grado
retirarão dela seus filosofemas. […] Confere ao conhecimento da
natureza dois limites absolutos, os dois problemas insondáveis com os
quais se debaterão eternamente os esforços da ciência e que definem
as duas extremidades do campo de expansão da Ciência. […] De um
lado, do problema do “elo entre a matéria e a força” e da essência
respectiva da força e da matéria; do outro, do problema da
consciência em sua relação com as condições materiais e com os
movimentos. […] trata-se de saber ao mesmo tempo o que é a
“substância” fundo ou princípio comum da força e da matéria e
como esta substância sente, deseja e pensa
47
.
A aprendizagem de Freud neste momento está inserida no contexto da
filosofia natural mecanicista em estudos de medicina. Na medida em que a
psicologia quer ocupar um lugar de ciência diante dos saberes, o agnosticismo
47
ASSOUN, Paul-Laurent. Introdução à epistemologia freudiana. p. 79.
39
impõe-lhe seu imperativo obrigatório: “se queres tornar-te uma ciência da
natureza digna deste nome, renuncia a ambição (metafísica) de conhecimento
da alma, coisa em si”
48
. A psicologia fundará seu saber nessa profissão de fé,
à sombra do incognoscível. Ou seja, ainda que queira fugir às tentações de
explicações metafísicas, a psicologia funda seu modelo a partir do que não se
conhece, ou seja, o elo que liga o material a uma substância que pensa, sente,
etc.
É nesse momento histórico que Lange pode ser encontrado com seu
discurso (1878) A História do Materialismo, definindo a psicologia como “uma
psicologia sem alma”. A psicologia científica, bem como a psicanálise, ouviu
esse aviso. No entanto, mesmo reconhecendo o incognoscível de seu objeto,
Freud não o considerou para o estudo dos processos inconscientes. Ele
precisaria de procedimentos mais específicos e codificados, uma
metapsicologia, não apenas de uma psicologia a mais, e sim, de uma
psicologia que vai ao fundo do consciente, como comentou em uma
correspondência para Fliess.
49
Assim, Freud reconhecia em seu modelo, o inconsciente como o
incognoscível. “Porque seu castelo possui seu fantasma, e Freud não faz
outra coisa senão rebatizá-lo: ‘inconsciente’”
50
. E assim, é justamente desse
impasse que nasce um saber seguro. Sabendo qual é o ‘calcanhar de Aquiles’
de seu projeto, mesmo com toda a efervescência das disputas entre ‘ismos’
como o monismo, materialismo, dualismo, etc, o que Freud faz é fundar a
metapsicologia, ou seja, uma psicologia que vá ao fundo do consciente.
Freud não pode contentar-se com essa garantia agnosticista: precisa
integrar, em procedimento de conhecimento específico e codificado, o
estudo desses processos inconscientes, que enquanto transparecem
nos fenômenos, constituem uma transobjetividade. Não poderia
48
ASSOUN, Paul-Laurent. Introdução à epistemologia freudiana. p. 81.
49
Carta de 12 de dezembro de 1896 cf. JONES, T.I. p. 325.
50
ASSOUN, Paul-Laurent. Introdução à epistemologia freudiana. p. 81.
40
contentar-se com uma forma posicional de objetividade em primeiro
grau, vale dizer, em produzir uma psicologia a mais. Portanto, o que
se torna exigido, é aquilo que ele chama, desde sua correspondência
com Fliess, de uma “metapsicologia”, “psicologia que ao fundo do
consciente”.
51
Freud precisou elucidar uma identidade epistemológica que superasse a
contradição entre a exigência fenomenal à psicanálise, a Naturwissenschaft e a
transobjetividade de que se trata. Ao construir uma metapsicologia, Freud deu
uma identidade epistêmica à psicanálise. E foi na metapsicologia que
encontrou a identidade epistemológica da nova teoria que buscava.
51
ASSOUN, Paul-Laurent. Introdução à epistemologia freudiana. p.84
41
2 METAPSICOLOGIA FREUDIANA
“Para muitas pessoas que foram
educadas na filosofia, a idéia de
algo psíquico que não seja
também consciente é tão
inconcebível que lhes parece
absurda e refutável simplesmente
pela lógica”.
Freud
Nesse capítulo, apresentaremos as dimensões tópica, dinâmica e
econômica. Por meio delas, Freud busca refinar seu trabalho desenvolvendo
um aparato psíquico. Para mostrar como essas dimensões se constroem e se
sucedem se faz importante entendermos de que modo Freud, após apoiar-se
nos modelos da ciência de sua época, constrói uma teoria do aparelho
psíquico baseado no inconsciente.
A Metapsicologia
52
a partir de 1915 torna-se uma revisão conceitual que
tem a preocupação de fazer com que a psicanálise seja reconhecida como
ciência. Freud empenhou-se na elaboração de uma síntese, por meio de doze
textos, partindo de sua correspondência com Jones, Abrahan, Ferenczi,
Andréas-Salomé, em que esclarecia a teoria psicanalítica e aprofundava suas
52
Metapsicologia Termo criado por Sigmund Freud, em 1896, para qualificar o conjunto de sua
concepção teórica e distingui-la da psicologia clássica. Elisabeth Roudinesco e Michel Plon, Dicionário
de Psicanálise.1997.
42
hipóteses fundamentais. Desses textos, somente cincos foram publicados
entre 1915 e 1917. Até então, Freud possuía uma prática científica baseada no
modelo anátomo-patológico, adquirida pela psicologia e psiquiatria alemãs.
O prefixo meta indica sua pretensão teórica de uma pesquisa que fosse
além da psicologia, e também, como uma tentativa científica de ultrapassar as
construções “metafísicas” na metapsicologia. Demonstra que a intenção da
psicanálise foi a de ir além de uma concepção da consciência do psiquismo em
direção a um psiquismo fundado no inconsciente.
Freud buscava um dispositivo teórico novo: fundar uma prática
consistente e reconhecida pela ciência da época, pois o que se praticava até
aquele momento era insatisfatório. Foi em nome de um ideal científico,
resultado de sua prática de origem, que Freud mostrou sua originalidade. No
encontro da neuropatologia e da psicopatologia clínica ele delimitou seu novo
objeto e dessa delimitação nasceu a Teoria Geral das Neuroses.
Sob o ponto de vista clínico, a neurose era objeto de uma prática e, sob
o neuropatológico, encontrava-se como uma condição de trabalho teórico.
Freud buscou na sexualidade e na teoria do inconsciente uma justificativa para
a teoria da neurose. A metapsicologia é, pois, a psicologia apoiada na
neurologia, ou a neurologia renovada pela psicologia, por intermédio de uma
teoria das neuroses, o novo projeto, como exigência epistêmica da busca
freudiana de uma psicologia científica designada por Freud como
“metapsicologia”.
Com a metapsicologia a psicanálise desenvolveu uma teoria com
contornos revisáveis e definidos, pois estudou os processos inconscientes, o
que a psicologia não conseguiu atingir. Segundo Freud, não seria possível
construir uma psicologia científica sem uma metapsicologia. A teoria
psicanalítica está composta por dois corpos de naturezas diferentes: um
43
empírico e outro de caráter teórico especulativo que se articulam
coerentemente. A metapsicologia se constitui nas superestruturas teóricas que
buscam explicar os processos psíquicos e construir sentido para eles ou parte
do sentido desses processos.
... Idéias como estas fazem parte de uma superestrutura especulativa
da psicanálise, podendo qualquer parcela da mesma ser abandonada
ou modificada, sem perda ou pesar, no momento em que a sua
insuficiência tenha sido provada.
53
No entanto, Freud reconheceu a possibilidade e a necessidade de mudar
os conceitos de sua metapsicologia, desde que os fatos assim o exigissem.
Isso caracteriza a teoria metapsicológica como necessária e substituível. Sua
função é a de auxiliar a organização dos fatos, tornando possível estruturá-los
e relacioná-los, configurando-se como um construto para conectar as
descrições e uma orientação guia para observar novos dados. A teoria
metapsicológica estabelece um quadro, uma direção para a busca de
explicações para os processos psíquicos.
Freud não escondeu seu respeito a todos os mestres que, de alguma
forma, foi possível tomar por modelo. Encontrou, então, as bases do teórico
Ernest Mach, que representava uma corrente fisicalista na Alemanha, na virada
do século XIX, e exerceu uma forte influência na nova geração de psiquiatras e
cientistas, pois tentava dar continuidade da sica à psicologia, tornando
possível uma psicofísica. Foi num dos escritos de Mach, chamado
Conhecimento e Erro (1905), que Freud foi buscar parte de seu material
epistemológico para a criação da metapsicologia.
Todavia, paralelamente ao que desenvolveu Mach, Freud construiu uma
lógica da pesquisa científica, sobre a questão dos conceitos fundamentais,
tendo em vista que o que para a filosofia e o filósofo deve estar fundado na
53
FREUD, S. Um estudo autobiográfico. p. 46.
44
necessidade pré-construída apriori de um sistema filosófico, para o cientista,
paira na arbitrariedade de seu ponto de partida. Para tanto, foi preciso
desenvolver a racionalidade científica no seu trabalho de construção da
metapsicologia. A exigência de racionalidade não passou despercebida por
Freud, que deu especial importância ao papel determinante das idéias
abstratas e dos conceitos fundamentais.
Tenho um motivo especial para usar a palavra ‘concepção’, aqui.
Estes são os problemas mais difíceis que se nos apresentam, mas
sua dificuldade não está em alguma insuficiência de observações; o
que nos propõem esses enigmas são realmente os fenômenos mais
comuns e mais conhecidos.
Nem a dificuldade se situa na natureza recôndita das especulações a
que eles dão origem; a reflexão especulativa desempenha uma parte
insignificante nessa esfera. É, contudo, verdadeiramente uma questão
de concepções isto é, de introduzir as idéias abstratas corretas,
cuja aplicação ao material bruto da observação nele produzirá ordem
e clareza.
54
O trabalho metapsicológico de Freud vem enunciado nesse modelo. As
suas idéias iniciais partem com todo o rigor ao estilo de convenções:
O verdadeiro início da atividade científica consiste antes na descrição
dos fenômenos, passando então ao seu agrupamento, sua
classificação e sua correlação. Mesmo na fase de descrição não é
possível evitar que se apliquem certas idéias abstratas ao material
manipulado, idéias provenientes daqui e dali, mas por certo não
apenas das novas observações. Tais idéias que depois se tornarão
os conceitos básicos da ciência - são ainda mais indispensáveis à
medida que o material se torna mais elaborado. Devem, de inicio,
possuir necessariamente certo grau de indefinição, não pode haver
dúvida quanto a qualquer delimitação nítida de seu conteúdo.
Enquanto permanecem nessa condição, chegamos a uma
compreensão acerca de seu significado por meio de repetidas
referências ao material de observação do qual parecem ter provindo,
mas ao qual, de fato foram impostas. Assim rigorosamente falando,
54
FREUD, S. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. p. 103.
45
elas são de natureza das convenções - embora tudo dependa de não
serem arbitrariamente escolhidas, mas determinadas por terem
relações significativas com o material empírico, relações que
parecemos sentir antes de podermos reconhecê-las e determiná-las
claramente.
55
Com esse pensamento, Freud encontrou o ponto de partida para a sua
posição metodológica. O modo de pensar da psicanálise científica inaugurada
por Freud é inacabado, visto que se encontrava sempre pronto a modificar
suas teorias. No lugar de princípios, ele se satisfazia em usar pressupostos
provisórios. Assim fazia observância ao que Mach dizia: somente essa atitude
pode tornar possíveis os progressos sérios e as grandes descobertas.
56
Freud
ainda censurou os sistemas filosóficos porque os mesmos não permitiriam
nenhum espaço para novas descobertas e pontos de vistas aperfeiçoados. Diz:
A psicanálise não é como as filosofias, um sistema que parta de
alguns conceitos básicos nitidamente definidos, procurando apreender
todo o universo com o auxílio deles, e, uma vez completo, não possui
mais lugar para novas descobertas ou uma melhor compreensão. Pelo
contrário, ela se atém aos fatos de seu campo de estudo, procura
resolver os problemas imediatos da observação, sonda o caminho à
frente com o auxílio de experiências, acha-se sempre incompleta e
sempre pronta a corrigir ou a modificar suas teorias. Não
incongruência (não mais que no caso da física e ou da química) se a
seus conceitos mais gerais falta clareza e seus postulados são
provisórios; ela deixa a definição mais precisa deles aos resultados do
trabalho futuro.
57
Segundo Mach, o conhecimento organiza-se a partir do próprio corpo e
esboça seu limite, externo e interno. Daí o nexo funcional entre as
racionalidades sica e psíquica. Neste aspecto, Mach levantava um obstáculo
55
FREUD, S. A história do movimento psicanalítico. p. 137.
56
In: ASSOUN, Paul-Laurent. 1983. p. 90.
57
FREUD, S. Além do princípio do prazer. p. 307.
46
da arbitrariedade do ponto de partida (convencionalismo), formulando quatro
pressupostos explicitamente:
1. A relação direta dos elementos é complexa e não pode ser feita de
uma só vez. Precisa-se avançar passo a passo.
2. A compreensão supõe a limitação da extensão: “método das
variações”.
3. O valor da escolha: “referências ao material da experiência”.
4. Adaptação dos pensamentos aos fatos. As idéias são investidas de
objetividade do trabalho da racionalidade
58
.
Confrontado com o mesmo obstáculo no ponto de partida, Freud
respondeu no mesmo sentido que Mach pelas descrições e pela observação.
As idéias são somente retiradas da experiência atual, por indução. Eis, pois,
seu caráter de convenções. A construção metapsicológica consistia no trabalho
de constante revisão, sempre na busca do mordente da teoria e da adaptação
dos pensamentos aos fatos. De certa forma, Freud manteve um vínculo com
essa corrente positivista machiana, porém apenas como referência
epistemológica. Esse movimento que ele realizou ao relacionar-se com as
ciências naturais demonstrava que a psicanálise ainda estava em busca de
seu estatuto científico.
Mas o agnosticismo de Freud cujo postulado é o caráter de “coisa
em si” do inconsciente impõe o relacionismo como base
inexpugnável da teoria psicanalítica. É por este motivo que a
linguagem machiana, digerida pela síntese metapsicológica,
transformada e reelaborada, permanece até o fim ligada com a sua
natureza, à síntese epistemológica freudiana. Cremos que esse
elemento genealógico deverá adquirir todo o seu sentido de
empreendimento, que precisa ser levado a cabo, de uma investigação
global dos princípios e da lógica da metapsicologia freudiana. A
58
Cf. ASSOUN, Paul-Laurent. p. 94-96.
47
filiação a Mach deve adquirir, nessa perspectiva, todo o seu sentido
de revelador da identidade epistêmica freudiana, tal como ela se
construiu historicamente tendo acesso à consciência de sua diferença.
Se fica salva a paternidade freudiana, pelo menos ela tem que tolerar
o apadrinhamento machiano
59
.
Segundo Chemama,
60
Freud tinha o projeto que não conseguiu realizar
por completo, o de dedicar à metapsicologia uma grande obra. Quando criou
sua psicanálise por volta de 1890, Freud deparou-se com a crise marcada pela
elevação do energetismo fenomenalista
61
e, quando elaborou a
metapsicologia, as idéias de Mach estavam no auge do cientificismo.
Para além de Mach, Freud estava preocupado também com o aspecto
da fantasia. A derivação de conceitos metapsicológicos, baseada na analogia
de Freud no início do texto Pulsões e Destino das Pulsões revelam a forma
geral do trabalho do inconsciente, ou seja, de um conjunto de procedimentos
que culminou num efeito de deformação.
62
O trabalho teórico seria absorvido
de uma lógica do inconsciente, cuja raiz seria o phantasieren. Freud manteve
muita cautela em relação ao racionalismo e contra o irracionalismo, para que
sua teoria não tivesse um teor de ficção fantasmática.
Em seu texto de 1895, o phantasieren limitava-se a encontrar analogias,
transpor o racionalismo à maneira científica do saber. Com o conceito de
pulsão de morte, em 1920, o phantasieren metapsicológico atingiu seu ponto
máximo. O termo phantasieren utilizado por Freud, em seu texto de 1937,
Análise Terminável e Interminável, remetia-o à especulação e a theoresieren, o
que não aconteceu em 1895.
59
ASSOUN, Paul-Laurent. Introdução à epistemologia freudiana. p. 103.
60
CHEMAMA, Roland. Dicionário de psicanálise Larouse. p. 136.
61
Energetismo fenomenalista é a doutrina pela qual a energia coloca-se, em detrimento da mecânica,
como princípio explicativo para a física. Em Ostwald, a posição sugere uma forma nova de filosofia da
natureza; em Mach, temos a abertura para uma espécie de positivismo. Cf. ASSOUN, Paul-Laurent.
Introdução à epistemologia freudiana. p. 98.
62
FREUD usa a palavra deformação onírica àquilo que faz parecer estranho e não inteligível.
48
Freud justifica que:
Se nos perguntarem por quais métodos e meios esse resultado é
alcançado, não será fácil achar uma resposta. Podemos apenas dizer:
So muss denn doch die hexe dran!
63
‘– a metapsicologia da feiticeira.
Sem uma especulação e uma teorização metapsicológica - quase
disse ‘fantasiar’ – não daremos outro passo à frente. Infelizmente, aqui
como alhures, o que a feiticeira nos revela não é muito claro nem
muito minucioso.
64
É nesse sentido que ele faz um apelo à feiticeira, mesmo que esta não
deixe muito claro seu ensinamento, pois a metapsicologia é a parte da
psicanálise mais difícil de ser transmitida, por sua forma sui generis de ser
construída.
Freud deixa-se levar por suas idéias tão longe onde elas o levem,
dizendo:
Podemos ter dado um golpe de sorte ou havermo-nos extraviado
vergonhosamente. Não penso que, num trabalho desse tipo, uma
parte grande seja desempenhada pelo que é chamado de ‘intuição’.
Pelo que tenho visto da intuição, ela me parece ser o produto de um
tipo de imparcialidade intelectual. Infelizmente, porém, as pessoas
raramente são imparciais no que concerne às coisas supremas, aos
grandes problemas da ciência e da vida.
65
O momento do saber metapsicológico é aquele em que o phantasieren
restringe-se e a subjetividade se impõe. Foi seguindo essa lógica que Freud foi
ao fundo de sua investigação na racionalidade metapsicológica de sua
descoberta. Ele iniciou a metapsicologia no primeiro ensaio sobre as Pulsões e
Destinos das Pulsões, como uma introdução, forma encontrada para fazer uma
revisão epistemologica. Procurou, nesse texto, dizer algo novo sobre a
identidade epistêmica da psicanálise.
63
Temos de chamar a feiticeira em nosso auxílio, afinal de contas! Goethe, Fausto, parte I, cena 6 em
busca do segredo da juventude, busca de má vontade o auxílio da Feiticeira.
64
FREUD. S. Análise terminável e interminável. p. 257.
65
FREUD, S. Além do Princípio do Prazer. p. 80.
49
2.1 Dimensão tópica
Freud, diante da necessidade de representar o psiquismo como uma
interação dinâmica de instâncias, com freqüência intensamente conflitiva,
propôs representar essas instâncias por um aparelho psíquico distribuído de
forma espacial. Introduziu uma primeira tópica (1900), na qual as instâncias
são: o inconsciente, a percepção-consciência e o pré-consciente.
Na abordagem metapsicológica encontra-se a elaboração de modelos
teóricos que não estão diretamente ligados a uma experiência prática ou a uma
observação clínica: ela se define pela consideração simultânea dos pontos de
vista tópico, dinâmico e econômico. A tópica
66
psíquica teve sua origem em um
contexto científico dentro da neurologia, psicofisiologia e psicopatologia, que
predominaram no decurso da segunda metade do século XIX, onde se
pretendia que tipos específicos de representação dependiam de suportes
neurológicos rigorosamente localizados em determinada parte do córtex
cerebral.
Naquele momento da construção metodológica, Freud transferiu o seu
requisito epistemológico, que de início vinculava uma objetividade determinada
em espacialização (espaço-corpo), para uma investigação freudiana do corpo
ao aparelho psíquico. No início de sua teorização sobre o inconsciente, ele já o
representava num esquema espacial.
66
Tópica - O termo “tópica” significando teoria dos lugares (do grego ´topoi´) pertence, desde a
antigüidade grega, à linguagem filosófica. Para os antigos e em especial para Aristóteles,os lugares
constituem rubricas, de valor lógico ou retórico, de que são tiradas as premissas de argumentação.
- Teoria ou ponto de vista que supõe uma diferenciação do aparelho psíquico em certo número
de sistemas dotados de características ou funções diferentes e dispostos numa certa ordem, uns em
relação aos outros, o que permite considerá-los metaforicamente como lugares psíquicos de que
podemos fornecer uma representação figurada espacialmente. (Laplanche e Pontalis Vocabulário da
psicanálise, ed. Martins Fontes, 1992. p. 505.).
50
Seria mais difícil explicar concisamente como veio a acontecer que a
psicanálise fizesse outra distinção no inconsciente e o separasse em
um pré-consciente e em um inconsciente propriamente ditos. Basta
dizer que pareceu ser um caminho natural complementar da
experiência com hipóteses que estavam destinadas a facilitar o
manuseio do material, e que estavam relacionadas com assuntos
que poderiam não ser objeto de observação imediata. O
mesmíssimo método é adotado pelas ciências mais antigas.
A subdivisão do inconsciente faz parte de uma tentativa de retratar o
aparelho da mente como sendo constituído de grande número de
instâncias ou sistemas, cujas relações mútuas são expressas em
termos espaciais, sem, contudo implicarem qualquer ligação com a
verdadeira anatomia do cérebro.
.67
Freud descreveu esse ponto como o método topográfico de abordagem.
A primeira dimensão tópica do aparelho psíquico está apresentada no capítulo
VII de A Interpretação de Sonhos (Die Traumdentung, 1900), mas, desde o
Projeto para uma Psicologia Científica (1895), ele a apresentava exposta no
quadro neurológico de um aparelho neurológico. nos estudos sobre a
histeria, a psique tornou-se manuseável e comparável a arquivos, lugares
objetiváveis.
As dimensões constitutivas da metapsicologia estão sustentadas no
processo psíquico nos modelos tópico, dinâmico e econômico sobre um único
objeto: o inconsciente.
É no texto O Inconsciente que Freud enuncia:
Não sedescabido dar uma denominação especial a essa maneira
global de considerar nosso tema, pois ela é a consumação da
pesquisa psicanalítica.
67
FREUD, S. Um estudo autobiográfico. p.46.
51
Proponho que, quando tivermos conseguido descrever um processo
psíquico em seus aspectos dinâmico, tópico e econômico, passemos
a nos referir a isso como uma apresentação metapsicológica.
68
Esta seria a ordem da metapsicologia e a sua lógica como epistemologia
freudiana. Foi pela sua ligação com a anatomia que Freud deu o primeiro
passo no terreno da ciência, cujo trajeto o levou, como bom neurólogo, a
descortinar a psicanálise de forma sui generis.
Na primeira visão freudiana, foi a observação da estrutura que forneceu
a chave para a inteligibilidade do funcionamento psíquico. A técnica anatômica
possibilitou não apenas uma melhor visão da materialidade, mas construir o
objeto desejado. Para Freud, determinar uma questão consiste antes em
formular a técnica, o que permitiu sua investigação e aquilo que moveu nele o
interesse da verificação da sua teoria na clínica.
Fica esclarecido que a experiência freudiana tem a função de efetuar a
passagem de um estado de observação a outro. O que fortalece a clínica
freudiana, na prática da observação, é analisar o sintoma e, a partir daí,
determinar a topologia do inconsciente.
Freud dedicou-se inteiramente à sua paixão: descobrir como funciona o
aparelho psíquico esforçando-se em determinar em quais pontos dele ocorrem
os vários processos mentais e, por meio da dimensão tópica, a forma de uma
teoria do funcionamento mental. Foi quando apareceu a primeira figuração
tópica ternária: o inconsciente, pré-consciente e consciente, que são divididos
de acordo com sua função e o tipo de investimento energético, segundo Freud:
Chegamos à conclusão de que a repressão constitui essencialmente
um processo que afeta as idéias na fronteira entre os sistemas Ics. e
Pcs. (Cs.). Podemos fazer agora uma nova tentativa de descrever o
68
FREUD, S. A história do movimento psicanalítico. p. 208.
52
processo com maiores detalhes. Aqui, a repressão pode consistir
em retirar da idéia da catexia (pré)-consciente que pertence ao
sistema Pcs. A idéia, portanto, ou permanece não catexizada, ou
recebe a catexia do Ics., ou retém a catexia do Ics. que possuía.
Assim, uma retirada da catexia pré-consciente, uma retenção de
catexia inconsciente, ou uma substituição da catexia pré-inconsciente
por uma inconsciente. Notemos, além disso, que baseamos essas
reflexões (por assim dizer, intencionalmente) na suposição de que a
transição do sistema Ics. para o sistema seguinte não se processa
pela efetuação de um novo registro, mas por uma modificação em
seu estado, uma alteração em sua catexia.
69
Entre cada um desses sistemas, Freud situou censuras
70
que inibem e
controlam a passagem de um para o outro.
À primeira hipótese, a topográfica, está estreitamente vinculada a de
uma separação topográfica dos sistemas Ics. e Cs., e também a
possibilidade de que uma idéia possa existir simultaneamente em dois
lugares no mecanismo mental — na realidade, a possibilidade de que,
se não estiver inibida pela censura, ela avançará regularmente de
uma posição para outra, sem perder talvez sua primeira localização ou
registro.
71
Freud descreveu dois estados do ato psíquico: no primeiro, o ato
psíquico é inconsciente e pertence ao sistema inconsciente; no segundo, se
conseguir passar pela censura irá para o sistema consciente. Caso seja
rejeitada a sua permissão, o ato psíquico ficará recalcado, permanecendo
inconsciente e, mesmo que consiga passar para o sistema consciente, ainda
não será consciente, mas será capaz de se tornar consciente
72
.
69
FREUD, S. Topologia e dinâmica da repressão. p. 207.
70
O termo censura, como outras imagens de Freud (fronteiras), evidencia o aspecto espacial da teoria
do aparelho psíquico, é também a função psíquica que impede a emergência dos desejos inconscientes
na consciência, a não ser de forma disfarçada. A finalidade da censura é transvestir os conteúdos dos
desejos inconscientes, para que não sejam reconhecíveis pela consciência. Na primeira tópica, ela se
exerce nos limites dos sistemas, de um lado inconsciente, e do outro o pré-consciente. Todavia, deve-se
notar que Freud também fala de censura entre pré-consciente e consciente. (Roland Chemama,
Dicionário de Psicanálise, p.33).
71
FREUD , S. Vários Significados de o Inconsciente. O ponto de vista topográfico. p. 201.
72
Cf. FREUD. S. O ponto de vista topográfico. p. 199.
53
Toda a atividade psíquica parte de estímulos internos e externos. O
aparelho psíquico pensado por Freud tinha uma extremidade sensitiva, onde
se encontrava um sistema que receberia as percepções e uma extremidade
motora que serviria de passagem para a motricidade. O processo psíquico em
geral vai da extremidade perceptiva para a extremidade motora
73
.
Freud esclareceu que a topologia psíquica nada tem a ver com a
anatomia, porque ela efetua-se na recusa da localização anatômica. A hipótese
topográfica está vinculada a uma separação topográfica dos sistemas
Inconsciente e Consciente, e também, na possibilidade de que uma idéia
possa existir simultaneamente em dois lugares no mecanismo mental e não
pode ser separada de uma concepção dinâmica. Segundo LAPLANCHE e
PONTALIS, Freud:
Mostra-se, no entanto, firmemente ligado ao que considera a
originalidade da sua tentativa de tornar compreensível a complicação
do funcionamento psíquico decompondo este funcionamento e
atribuindo cada função em especial às diversas partes do aparelho, a
noção de localização psíquica implica uma exterioridade das partes
entre si e uma especialização de cada uma.
74
Por fim, Freud ainda comparou o aparelho psíquico com um aparelho
ótico (um microscópio complexo, por exemplo), ao eliminar a noção de
localização anatômica. Permanecendo no terreno psicológico, esclareceu o
que ele entendia por lugar psíquico, ou seja, algo que corresponderia a um
ponto desse aparelho em que a imagem se forma, mais do que suas peças
materiais.
Sob o ponto de vista epistemológico, KAUFMANN salienta:
73
Cf. FREUD. S. A interpretação de sonhos: parte II. p. 495.
74
LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário da psicanálise. p.507.
54
A construção tópica terá, portanto, o estatuto de uma construção
auxiliar... quero dizer com isso que podemos dar livre curso às nossas
hipóteses desde que conservemos nosso senso crítico e não
tomemos os andaimes pelo próprio edifício. Precisamos apenas de
representações auxiliares para nos aproximar de um fato
desconhecido e, quanto mais simples e tangíveis elas forem, tanto
melhor. Em suma, o essencial da construção tópica será figurar essa
característica do aparelho psíquico: ser dotado de uma direção.
75
Parece ter ficado difícil para Freud a questão da a região anatômica e
sua localização no sistema tópico. Sua pesquisa, no cerne da metapsicologia,
acaba inconclusa, afirmando: “A atividade psíquica está ligada à função do
cérebro como não se encontra a nenhum outro órgão”.
76
E continua:
Todas as tentativas para se adivinhar, a partir daí, uma localização
dos processos psíquicos, todos os esforços para se pensar as
representações como armazenadas em células nervosas e para se
transpor às excitações sobre fibras nervosas fracassaram
radicalmente. O mesmo destino seria reservado a uma teoria que
tentasse reconhecer o lugar anatômico do sistema consciente da
atividade consciente no córtex e situar os processos inconscientes nas
partes subcorticais do cérebro.
77
Freud deixou aberta a dimensão tópica e por esta razão sua estrutura
teórica ficou incompleta e sujeita a revisão, que foi elaborada a partir de 1920,
o que não nos toca tratar neste tópico.
75
KAUFMANN, P. Dicionário enciclopédico de psicanálise. p. 522.
76
FREUD, S. A história do movimento psicanalítico. p. 200.
77
FREUD, S. Vários significados de ‘O Inconsciente’ – O ponto de vista topográfico. p. 201
55
2.2 Da tópica à dinâmica
O ponto de vista dinâmico
78
corresponde à suposição de pulsões (forças
psíquicas) básicas em conflito, como causas motoras originárias e primeiras do
funcionamento da vida psíquica. Para Freud, as forças que caracterizam esse
ponto de vista são análogas às forças que os físicos supõem agir sobre a
matéria. Elas são tomadas como um fundamento estrutural ao qual se deve
recorrer para organizar e relacionar os fatos, orientando a busca das
explicações dos fenômenos observados.
O ponto de vista dinâmico figurava, pois, como um guia metodológico
para buscar explicações que cobrissem as lacunas deixadas pelas teorias
empíricas. A esse respeito, Freud declarou:
Enquanto a psicologia da consciência nunca foi além das seqüências
rompidas que eram obviamente dependentes de algo mais, a outra
visão, que sustenta que o psíquico é inconsciente em si mesmo,
capacitou a Psicologia a assumir seu lugar entre as ciências naturais
como uma ciência.
79
Seguindo a constituição lógica de seu objeto, o inconsciente, Freud
introduziu, na dimensão psicológica, a tópica dinâmica e, naquele momento,
entrou em contato com outro ramo científico, o da psicologia alemã. A partir de
então, acrescentou à anatômica-tópica uma dimensão dinâmica vinda do
modelo da psicologia alemã, principalmente por intermédio de Herbart.
A psicologia herbartiana abriu caminho para a construção freudiana,
dando-lhe de empréstimo uma linguagem e um modelo. Freud assimilou a
78
Dinâmica – Quantificação de um ponto de vista que considera os fenômenos psíquicos como
resultantes do conflito e da composição de forças que exercem uma certa pressão, sendo essas forças,
em última análise, de origem pulsional. Nos escritos de Freud, “dinâmico” qualifica sobretudo o
inconsciente, na medida em que ele exerce uma ação permanente, exigindo uma força contrária, que
exerce igualmente de forma permanente, para lhe interditar o acesso à consciência. (LAPLANCHE e
PONTALIS. Vocabulário da psicanálise. p.119).
79
FREUD, S. Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise. p.183.
56
inspiração herbartiana com precisão, porém não fez nenhuma referência a
Herbart em toda sua obra.
A psicologia de Herbart apóia-se em uma metafísica e une-se a uma
Teoria do Conhecimento. Para ele, o psiquismo constitui-se de uma maneira
dinâmica quantificável em um campo de forças e oscilações suscetíveis de
medida, que são as representações.
Para Herbart, pois, a intuição primeira do psiquismo consiste na idéia
de uma dinâmica qualificável, ou seja, de um campo de forças e de
oscilações susceptível de mais e de menos, de um escalonamento de
graus precisos.
Todavia, por detrás dessa tese psicológica, oculta-se uma tese
metafísica. A alma é representada como uma substância simples que
tende a autoconservar-se: cada representação constitui um ato
particular pelo qual a alma se conserva
80
.
Em Herbart
81
, encontra-se uma física das representações, que tem
por objeto o movimento ascendente e descendente das representações. Sob
essa base é possível uma investigação que dependa da física e da lógica. A
racionalidade freudiana, seguindo os passos da teoria herbartiana, da mesma
forma, dependeria da física e da lógica para a construção metapsicológica,
pois a vida psíquica também se apresentava como uma cadeia de
representações.
No sistema dinâmico há uma comunicação entre os sistemas. Nas bases
da atividade pulsional, os sistemas comunicam-se entre si mais
extensivamente. Um determinado processo psíquico pertencente ao sistema
inconsciente procura acesso à consciência em busca de satisfação. A censura
que opera na passagem do inconsciente para o pré-consciente/consciente
opõe-se a esse propósito. A razão da oposição é que a satisfação de um
desejo inconsciente, que em si mesmo provocaria prazer, provoca desprazer,
80
ASSOUN, Paul-Laurent. Introdução à Epistemologia Freudiana. p. 151.
81
ASSOUN, Paul-Laurent. Introdução à Epistemologia Freudiana. p. 152.
57
relativamente às exigências do pré-consciente/consciente, em decorrência de
uma segunda censura entre os sistemas pré-consciente/consciente. O desejo
tem de permanecer inconsciente podendo retornar sob a forma de sintoma ou,
como diz Freud, procurar expressão através dos sonhos.
O sonho não se materializaria se o desejo pré-consciente não tivesse
êxito em encontrar reforço de outro lugar. Do inconsciente, bem
entendido. É minha suposição que um desejo consciente só consegue
tornar-se instigador do sonho quando logra despertar um desejo
inconsciente do mesmo teor e dele obter reforço. Segundo indicações
provenientes da psicanálise das neuroses, considero que esses
desejos inconscientes estão sempre em estado de alerta, prontos a
qualquer momento para buscar o meio de se expressarem quando
surge a oportunidade de aliarem a uma moção do consciente e
transferirem sua grande intensidade para a intensidade menor desta
última. Assim fica a aparência de que apenas o desejo consciente se
haveria realizado no sonho, e alguma pequena peculiaridade na
configuração do sonho serve de indicador para nos colocar na pista do
poderoso aliado oriundo do inconsciente.
82
É por esse mecanismo de recalque que a atividade do sistema
inconsciente resulta em desprazer. No entanto, o que ficou recalcado persiste
na procura de uma expressão consciente e o faz exercendo uma força
constante sobre os conteúdos do pré-consciente/consciente com os quais ele
possa estabelecer uma ligação a fim de escoar sua energia.
Garcia Roza
83
esclarece: “De um lado temos o desejo inconsciente
procurando uma realização através do pré-consciente/consciente, de outro
temos o pré-consciente/consciente se defendendo do caráter ameaçador do
desejo recalcado”. Freud pensava em um critério que resolvesse o conflito
entre os dois sistemas e, em sua opinião, a chave estava na teoria do
recalcamento, pois o segundo sistema (pré-consciente/consciente) só pode
investir uma representação se estiver em condições de inibir o
desenvolvimento do prazer dela decorrente.
82
FREUD, S. A Interpretação dos Sonhos. p.505.
83
ROZA, L. A Garcia. Introdução à metapsicologia freudiana 3. p. 174.
58
Sabe-se que a representação, para Freud, é um dos elementos do
processo psíquico e o outro, o afeto, traduz a quantidade de energia pulsional.
Isso quer dizer que Freud acrescenta aos fatos psíquicos da representação um
elemento, o affekt, que permanece essencialmente representacional. O que se
pode dizer é que o afeto, como representante da pulsão, possui tanto um
aspecto quantitativo quanto um aspecto qualitativo, ou ainda, que ele pode ser
tomado como expressão qualitativa da quantidade de excitação proveniente da
fonte pulsional.
Freud diz que é justamente o ponto de vista dinâmico que propõe, no
lugar de descrições, uma explicação dinâmica fundada sobre a interação das
forças psíquicas que caracteriza a sua maneira de compreender os fatos
psíquicos. Diz ele:
Buscamos não apenas descrever e classificar fenômenos, mas
entendê-los como sinais de uma ação recíproca de forças na mente,
como manifestação de intenções com finalidade, trabalhando
concorrentemente ou em oposição recíproca. Interessa-nos uma visão
dinâmica dos fenômenos mentais. Em nossa opinião, os fenômenos
que são percebidos devem ceder lugar, em importância, a tendências
que são apenas hipotéticas.
84
É a partir deste eixo metodológico que se organiza a concepção
dinâmica, graças à sua mediação com a Teoria Central do Conflito. Freud
descreve o inconsciente não mais conotando o inconsciente com o que está
fora do campo da consciência (tópico), e sim, por meio de uma concepção
dinâmica de idéias que possuem certo caráter dinâmico; idéias que continuam
separadas da consciência a despeito de sua atividade e intensidade. Contudo,
a dinâmica não rompe seu elo com o registro tópico, mas fica atrelada ao jogo
de forças que se resolve numa relação de forças, o que leva à próxima
dimensão: a econômica.
84
FREUD, S. Conferências Introdutórias sobre psicanálise. p. 86-87.
59
2.3 Da dinâmica à econômica
Na abordagem econômica
85
, Freud esclarece que o objetivo fundamental
da atividade mental pode ser descrito qualitativamente como um esforço para
obter prazer e evitar desprazer. Quando examinado sob esse ponto de vista,
surge então, como tarefa, dominar as quantidades de excitação (massa de
estímulos) que atuam no aparelho mental e em conter sua acumulação, capaz
de gerar desprazer. Diz ele:
Sem dúvida, terão observado que, nessas últimas explanações,
introduzi um fator novo na estrutura da série etiológica ou seja, a
quantidade, a magnitude das energias em questão. Ainda temos de
levar em conta esse fator em tudo o mais. Não basta uma análise
puramente qualitativa dos determinantes etiológicos. Ou,
expressando-o de outra maneira, é insuficiente uma visão
simplesmente dinâmica desses processos mentais; requer-se também
uma linha de abordagem econômica. Devemos dizer para nós
mesmos que o conflito entre duas tendências não irrompe senão
quando foram atingidas determinadas intensidades de catexias, ainda
que por muito tempo tenham estado presentes os fatores
determinantes do conflito e referentes ao seu próprio tema. Da mesma
forma, a significação patogênica dos fatores constitucionais deve ser
avaliada em relação ao quanto mais de um instinto parcial, do que de
outro, está presente na disposição herdada. Pode-se mesmo supor
que a disposição de todos os seres humanos é qualitativamente
semelhante e apenas difere em virtude dessas condições
quantitativas.
86
Ao desenvolver a construção da concepção econômica na
metapsicologia, Freud inspirou-se em vários mestres que contribuíram com o
desenvolvimento da ciência no século XIX. Em Wundt, não Freud, mas
também a psicologia científica, estabeleceram algumas de suas bases no
conceito de quantificação para a psicologia, porque procurava uma condição
sólida para edificar o seu saber. E é no conceito de peso e medida que ela se
85
Econômica Qualifica tudo o que se refere à hipótese de que os processos psíquicos consistem na
circulação e repartição de uma energia quantificável (energia pulsional), isto é, suscetível de aumento e
diminuição de equivalências. (LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário da psicanálise, p.121).
86
FREUD, S. Conferências introdutórias sobre a psicanálise. p. 437.
60
funda. “Para Wundt a medida é possível como procedimento relativo na
psicologia, como em toda ciência da natureza”.
87
À sua maneira, Freud também se reportou às virtudes do quantum para
implicar os fenômenos psíquicos à dimensão econômica, e é atravessado por
este requisito epistemológico da quantificação, como forma de demonstrar que
no psiquismo não é só a pulsão que se faz representar, mas também o afeto
se faz presente no inconsciente. Em seu artigo de 1894, As Neuropsicoses de
Defesa, Freud tentou distinguir as propriedades de uma quantidade (quota de
afeto soma excitatória) embora sem meios de medi-las. Sabe que algo é
capaz de aumento, diminuição, deslocamento e descarga, que se transmitem
pelas marcas mnêmicas das representações. Já nos Estudos Sobre a
Histeria,o “afeto” é entendido quase como sinônimo de “investimento”, pois se
trata de um afeto que ao invés de ser descarregado permanece ligado a uma
representação.
Vinte anos mais tarde, Freud deu uma concepção próxima dessa, em
seu artigo O Recalque (1915), em que se referiu à representação como
investida a partir da pulsão com um quantum de energia psíquica e que ele
denominou de quantum de afeto e soma de excitação. Embora os termos
empregados por Freud apareçam como sinônimos, seus significados são
diferentes, pois ambos dizem respeito ao fator quantitativo utilizado na sua
hipótese econômica. Enquanto a soma de excitação marca a origem da
quantidade, quantum de afeto refere-se ao fator intensivo, capaz de destacar-
se da representação e encontrar caminhos diferentes desta última. Ambos
tratam de noções muito mais intensivas do que quantitativas, e é com este
caráter intensivo que a noção de afeto apareceu em seus textos da
metapsicologia, de 1915.
87
ASSOUN, Paul-Laurent. Introdução à epistemologia freudiana. p. 169.
61
A diferenciação entre afeto e soma de excitação parece ficar mais clara
no artigo O Inconsciente. Entretanto, o que se pode entender é que o afeto,
como representação da pulsão, possui tanto um aspecto quantitativo como um
qualitativo.
Nas palavras de Freud, a economia consiste:
Levando esse curso em conta na consideração dos processos
mentais que constituem o tema do nosso estudo introduziremos um
ponto de vista econômico em nosso trabalho, e se, ao descrever
esses processos, tentarmos calcular esse fator ‘econômico’ além dos‘
topográficos’ e ‘dinâmicos’, estaremos penso eu, fornecendo deles a
mais completa descrição que podemos atualmente conceber, uma
descrição que merece ser distinguida pelo nome de metapsicologia.
88
A Fechner, Freud dedicou seu reconhecimento no início de seu
trabalho teórico em Além do Princípio do Prazer, por meio das seguintes
palavras:
Não podemos, entretanto, permanecer indiferentes à descoberta de
um investigador de tanta penetração como G. T. Fechner que sustenta
uma concepção sobre o tema do prazer e do desprazer que coincide
em todos os seus aspectos essenciais com aquela a que fomos
levados pelo trabalho psicanalítico.
89
Fechner também teve uma forte influência na psicologia científica dos
anos 80 (século XIX), quando estabelecida a relação constante e
matematizada entre um dado físico e um fenômeno psíquico.
Os princípios fundamentais da energética freudiana vêm de empréstimo
direto da energética fecheriana. No projeto de 1895, Freud estabeleceu um
princípio denominado princípio de inércia neurótico em que o organismo
aparece como um sistema físico de energia livre, segundo o qual os neurônios
tendem a desembaraçar-se das quantidades. Esta noção pertence ao período
88
FREUD, S. Além do princípio de prazer. p. 17.
89
FREUD, S. Além do princípio de prazer. p. 18.
62
de elaboração da concepção freudiana do aparelho psíquico. Na
metapsicologia, Freud não retomou mais esta expressão. A noção de princípio
de inércia ajudou Freud a concretizar o sentido dos princípios fundamentais
que regulam o funcionamento do aparelho psíquico.
Freud postula também a lei de constância, que quer dizer que o aparelho
psíquico mantém constante ou tão baixo quanto possível a quantidade de
excitação nele presente, o que em certo sentido vem opor-se ao princípio de
inércia. O princípio de constância está na base da teoria econômica e
estreitamente relacionado com o princípio de prazer, na medida em que o
desprazer pode ser considerado, numa perspectiva econômica, como a
percepção subjetiva dessa tensão. Porém, Freud considerou complexa a
relação entre as sensações subjetivas de prazer-desprazer e os processos
econômicos que lhes servem de substrato, pois a sensação de prazer pode
acompanhar um aumento de tensão.
O princípio de constância faz parte do aparelho teórico elaborado por
Freud, em comum com Breuer, por volta dos anos de 1892-95, com a intenção
de explicar os fenômenos por eles verificados na histeria, porém em cada um
deles há uma nítida diferença de perspectiva
90
.
Para Freud, o princípio de inércia está em reger o tipo de funcionamento
primário do aparelho, a circulação da energia livre e a lei de constância.
Mesmo não sendo enunciada como um princípio, corresponde ao processo
secundário, em que a energia é ligada e conservada a um determinado nível.
Somente em 1920, em Além do princípio do prazer, Freud formulou
explicitamente um princípio de constância apresentado como o fundamento
econômico do princípio de prazer. Encontra também, em Fechner, uma
antecipação da teoria do sonho e do inconsciente desenvolvendo-se,
90
Cf. FREUD, S. Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos. p. 37.
63
principalmente, nas considerações sobre o prazer e desprazer, que se
encontram relacionados com a Lei da Constância.
Em 1924, Freud escreveu o Problema Econômico do Masoquismo e
apresentou o princípio que dominou todos os processos psíquicos como um
caso particular daquilo que Fechner chamou de Tendência à Estabilidade.
Todavia, percebe-se que Freud apoiou-se em pontos importantes das idéias de
Fechner na continuidade da sua dimensão econômica.
Junto com Fechner, Helmholtz entra no cenário com o mesmo prestígio,
pois é o homem que sela a união da psicologia com a neurologia, a qual Freud
adere como modelo epistemológico no horizonte científico.
É pelas idéias de Robert Mayer, médico-físico, em seu discurso sobre a
força e traduzindo-as por energia encontrada em todos os fenômenos físicos e
nas matérias, que a dinâmica duplica a mecânica, sem excluí-la. Esta
revolução foi introduzida por Mayer e o energitismo ganhou seu lugar no final
do século XIX. É dessa fonte que se pode situar a dinâmica energética de
Helmholtz, que Freud tinha como ídolo. Helmholtz, no entanto, superou a
intenção mayeriana sobre causalidade.
Os trabalhos de Mayer e de Helmholtz representam duas versões do
energetismo. O projeto de Mayer é de assegurar a promoção epistemológica
da noção de força, que é explicitamente imposta pelo princípio de causalidade.
Helmholtz, por sua vez, apresenta uma tese sobre a conservação da força em
dois tipos de força que são denominadas de força viva e forças de tensão.
Mayer e Helmholtz influenciaram o modelo freudiano da esfera fenomenal e
fisiológica sob a esfera psicológica, dentro dessa perceptiva de forças vindas
da física e da fisiologia. Freud já figurava este esquema energético no projeto
de 1895 como imagem da marca da psicanálise.
64
Em 1910, Freud recebeu um convite de um famoso químico chamado
Ostwald, que o deixou muito lisonjeado pelo seu reconhecimento em colaborar
com um artigo em sua revista. Porém, Freud nunca escreveu tal artigo.
Ostwald foi o consagrado teórico do energetismo, na mesma época em que
Freud terminou sua teoria do sonho. Este famoso químico abriu, no cenário
científico, a consciência dos sábios, evidenciando uma concepção de mundo,
não mais da mecânica clássica, e sim, da era da energia, em que esta vale
como o elemento essencial de todas as coisas reais e concretas. A noção de
energia serviu para explicar tudo o que outrora fora explicado pelas noções de
força e matéria e foi a grande contribuição histórica de Ostwald à ciência.
Freud e Breuer podiam reconhecer esse energetismo nos seus
esquemas de explicação do psiquismo. Esta forma de representação da
energia, na análise do sonho, pelo processo de deslocamento e condensação,
traduz a concepção econômica da investigação metapsicológica do
inconsciente num caráter energético.
Freud teve várias razões para prestigiar os trabalhos realizados por
Ostwald, mas em nenhum momento colocou a psicanálise sob o patrocínio do
energetismo ostwiano. A prova disso é que ele refere-se a processos atuando
no psiquismo e não somente a energia. A energia freudiana possui uma
característica cujo aspecto qualitativo constitui-se de um processo mecânico
quantitativo e o energetismo fornece, à construção metapsicológica, sua
dimensão econômica, articulada com as dimensões dinâmica e tópica. O
percurso dos processos inconscientes, porém, jamais serviu de doutrina
energética para Freud.
Freud trabalhou a metapsicologia a partir das três perspectivas: a
dinâmica, a tópica e a econômica, como forma de distinguir claramente a
psicanálise das outras psicologias. Para ele, foi preciso superar a consciência
para fundar o psíquico no inconsciente, criticando, porém, as psicologias
65
clássicas fundamentadas somente no comportamento. Assim, sua reflexão
original sobre o sujeito inaugurou uma nova vertente no pensamento moderno.
Seria preciso ir além da psicologia e realizar um percurso que transcendesse o
comportamento e a consciência, para encontrar o funcionamento pulsional do
sujeito. Eis sua psicologia das profundidades.
66
3 INSCRIÇÕES PULSIONAIS: HORIZONTE DO INDIZÍVEL
"A teoria das pulsões, é por assim
dizer, nossa mitologia. As pulsões são
entidades míticas, magníficas em sua
imprecisão".
Freud
Neste capítulo, apresentaremos de que modo a noção de pulsão
propiciou a evolução da teoria psicanalítica de uma forma geral.
Evidenciaremos o percurso da noção de pulsão desde sua primeira concepção,
quando era similar à noção de instinto, até seu último desdobramento, quando
Freud a conceituou como pulsão por meio da dualidade: pulsão de vida e
pulsão de morte.
A idéia de pulsão é um componente novo no modo de entender a psique
humana, pois está em um ambiente diferente das demais categorias utilizada
até então. A pulsão não pode ser tratada nos meandros da linguagem, pois
antecede a tudo que é lingüístico.
O termo trieb
91
(pulsão) apareceu nos textos freudianos de 1905, nos
Três ensaios para uma teoria da sexualidade. Desde os primórdios das
91
Trieb, (Pulsão) A palavra alemã era empregada há séculos, na língua corrente, bem como na
linguagem comercial, religiosa, científica e filosófica. Estes usos variados se fertiliza mutuamente,
dotando o termo de uma ampla gama de sentidos, os quais, contudo, não aparecem em atuais
dicionários. Para melhor cercar o termo em seu colorido e polissemia, vale uma breve consulta ao
monumental dicionário Deutsches rterbuch, um sucesso editorial na época de Freud. Na linguagem
literária e filosófica no século XVI, aparece na acepção de propulsor externo, significando “estímulo”
(Reitz), ou no sentido de compulsão/coerção (Zwang), ou ainda como princípio maior, Instintos
Divinus, referindo-se em geral a elementos que são internalizados na acepção de força motriz interna
aparece como Drang (ânsia, vontade, pressão, necessidade) Lust (prazer-vontade) e Energie (energia).
Pode refererir-se a uma força interna indefinida que tem efeito em geral espontâneo. Pode ter o sentido
67
elaborações freudianas, pode-se encontrar uma noção energética seguindo as
linhas de seu pensamento, resultando assim na construção do conceito de
trieb. Esse conceito tem sua base na antiguidade, sobretudo do estoicismo
92
e
na esteira da teoria da termodinâmica (a posição entre a energia livre e a
energia ligada), com Helmholtz. Como vimos anteriormente, é somente sob
o domínio psicológico, que a noção é chamada a designar um princípio de
ação independente da vontade.
A pulsão foi desenhada por Freud no horizonte do discurso psicanalítico,
aquém do inconsciente e do recalque, escapando à trama da linguagem e da
representação e marca o limite do discurso conceitual. Freud, em seu artigo A
pulsão e suas vicissitudes, 1914-1916, adverte que o conceito de pulsão é um
Grundbergriff, isto é, um conceito fundamental. Em uma nota de rodapé
acrescentada no artigo (5) Pulsões parciais e zonas erógenas, informa que a
teoria das pulsões é a parte mais importante da teoria psicanalítica, embora, ao
de um Drang (ânsia, pressão) com um objetivo definido. Apenas a título de menção, fica adiantado que
uma relação entre Trieb, estímulo (Reitz), pressão (Drang), prazer-vontade (Lust) e coerção-
compulsão Zwang), idéia/representação (Vorstellung). Também se pode notar, no emprego corrente, a
concepção de pulsão como algo rigoroso e energético seu caráter indefinível e absoluto e seu caráter
oscilante entre prazer e o desprazer. Na língua alemã, bem como no texto de Freud, Trieb pode
manifestar genericamente como uma Grande força que Impele ou Princípio da Natureza (em Freud,
pulsão de vida, de morte, etc). Finalmente, Trieb pode aparecer como manifestação dessa força que
impele na esfera do indivíduo. A força impelente e motivadora (Trieb) brotará no indivíduo como
fenômeno somático-energetico. É descrita por Freud como: a) fenômeno fisiológico que envolve os
neurônios, nervos, fontes pulsionais situadas em glândulas, etc. e b) como processo energético-
econômico onde está em jogo o acúmulo de energia, a circulação e a descarga. (Luiz Hanns, 1999,
Imago, A teoria pulsional na clínica de Freud).
92
Estoicismo - Doutrina filosófica fundada no século III a.C. por Zenão de tio, propõe uma vida de
indiferença em relação a tudo o que é exterior ao ser. A ligação da Pulsão com o estoicismo remete ao
que o naturalismo estóico implica, num conhecimento da natureza susceptível de fundamentar uma
sabedoria. A Pulsão reflete o bem-dizer da invenção artística, da criação literária, da fundação do saber
subjetivo em ato poético. Na verdade, estamos falando de uma erótica, de uma energia pulsional mais
radical e própria do falante. Erotização, em potência, do sintoma humano em sua relação estética com o
mundo. Os modelos da física e da termodinâmica são uma permanente tentação explicativa. É o
momento dos opostos, dos antagonismos, da contraposição causa-efeito, do verdadeiro e do falso. Os
pares dicotômicos a partir dos quais se organiza o pensamento da época penetram nos redutos mais
íntimos da subjetividade (Ferrater Mora, p. 575.).
68
mesmo tempo, a menos completa”.
93
Alguns comentadores de Freud
entenderam que o estatuto metafísico da pulsão seria o responsável pela falta
de acabamento da teoria. Nesse sentido, diz Garcia Roza:
94
Tal como os anjos ou demônios, a pulsão seria inabordável pela
ciência. Apesar de tocar num ponto importante da questão, essa
interpretação comete um engano fundamental: em nenhum momento
Freud se propõe a estabelecer o estatuto metafísico da pulsão; aquilo
de que ele nos fala é do conceito de pulsão, isto é, de uma ficção
teórica e não de uma entidade que possua realidade ontológica.
Podemos concordar que este conceito tem como referência o corpo,
mas isto não significa que designe uma parte do corpo ou que possa
ser identificado a uma substância determinada que tenha escapado ao
olhar da ciência.
Breuer
95
elaborou a distinção entre a energia tônica e a energia livre,
porém essa conceituação não faz nenhuma referência à sexualidade. Coube a
Freud fazer essa especificação como pulsão sexual. Ele teve o interesse em
conceituar pulsão para especificar a pulsão sexual e relacioná-la à energia
própria da libido, distinta da pulsão do eu ou de conservação, em que fontes
internas constantemente produzem excitações, das quais o organismo não
pode fugir. Desta maneira, o aparelho psíquico é impulsionado a funcionar.
Freud elaborou e desenvolveu o conceito de pulsão e nunca mais abandonou
seu uso.
São suas palavras:
93
FREUD, S. Um caso de Histeria e três ensaios sobre a sexualidade. p. 158.
94
ROZA-GARCIA, L. A. Acaso e repetição em psicanálise. p. 11-12.
95
Breuer, Josef. Médico e fisiologista austríaco, nasceu a 15 de janeiro de 1842 e faleceu a 20 de
dezembro de 1925, em Viena. Seu primeiro trabalho importante foi publicado em 1868. Com Ewald
Hering, um professor de fisiologia da escola de medicina militar de Viena, demonstrou a natureza
reflexa da respiração. Foi o primeiro exemplo de um mecanismo autônomo no sistema nervoso dos
mamíferos, diferente da visão que os cientistas tinham da relação entre o sistema nervoso e os pulmões.
O mecanismo é ainda hoje conhecido como reflexo de Hering-Breuer.
69
Sob o conceito de pulsão podemos entender, a princípio, apenas o
representante psíquico de uma fonte endossomática de estimulação
que flui continuamente, para diferenciá-la do “estímulo”, que é
produzido por excitações isoladas vindas de fora. Pulsão, portanto, é
um conceito da limitação entre o anímico e o físico. A hipótese mais
simples e mais indicada sobre a natureza da pulsão seria que, em si
mesma, ela não possui qualidade alguma, devendo apenas ser
considerada como uma medida da exigência de trabalho feita a vida
anímica. O que distingue as pulsões entre si e as dota de
propriedades especificas é sua relação com suas fontes somáticas e
seus alvos. A fonte da pulsão é um processo excitatório num órgão, e
seu alvo imediato consiste na supressão desse estímulo orgânico
96
.
A pulsão, para Freud, tem quatro características fundamentais: a fonte, a
pressão, o objeto e o alvo. Dessa maneira estava esboçada a primeira
formulação da teoria das pulsões. Para Freud, o conflito psíquico está
ancorado num dualismo que, naquele momento, foi postulado como pulsões
sexuais e pulsões de autoconservação, que estariam em oposição, produzindo
o conflito. As pulsões de autoconservação seriam responsáveis pela
manutenção das funções vitais, indispensáveis à conservação do indivíduo.
Como exemplo de pulsão de autopreservação, poderíamos citar a fome,
que teria como decorrência a função de alimentação. As pulsões sexuais
seriam as ligadas a objetivos diferentes dos de manutenção da vida, no sentido
biológico do termo. Seus objetivos seriam a satisfação de um estímulo gerado
em uma ou mais partes do corpo, sendo, portanto, objetivos sempre parciais.
Para Freud, esse dualismo pulsional ocorre nas próprias origens da
sexualidade. A pulsão sexual nasce destacando-se das funções de
autoconservação, eis sua noção de apoio.
97
Segundo os comentadores da
96
FREUD, S. Um caso de histeria e três ensaios sobre a sexualidade. p. 157-158.
97
Apoio: termo introduzido por Freud para designar a relação primitiva das pulsões sexuais com as
pulsões de autoconservação; as pulsões sexuais, que só secundariamente se tornam independentes,
apóiam-se nas funções vitais que lhes fornecem uma fonte orgânica, uma direção e um objeto. Em
conseqüência, fala-se também de apoio para designar o fato de o sujeito se apoiar sobre o objeto das
70
psicanálise, Laplanche e Pontalis, a noção de apoio não ficou bem esclarecida
na obra de Freud, pois seu sentido principal é o estabelecimento de uma
relação e de uma oposição entre as pulsões sexuais e as de autoconservação.
Nesse sentido, dizem:
A própria idéia de que originariamente as pulsões sexuais tomam das
pulsões de autoconservação as suas fontes e os seus objetos
implicam que existe uma diferença de natureza entre as duas
espécies de pulsões; as primeiras encontram todo o seu
funcionamento predeterminado pelo seu aparelho somático, e o seu
objeto é imediatamente fixado; as segundas, pelo contrário, definem-
se em primeiro lugar por um certo modo de satisfação que de início,
não passa de um ganho obtido à margem (Lustnebengewinn) do
funcionamento das primeiras. Essa diferença essencial é atestada em
Freud pelo emprego repetido, para falar das pulsões de
autoconservação, de termos como função e necessidade.
98
Nos Três ensaios há uma menção a essa noção, quando Freud descreve
o auto-erotismo:
A princípio, a satisfação da zona erógena deve ter-se associado com
a necessidade de alimento. A atividade sexual apóia-se primeiramente
numa das funções que servem a preservação da vida, e depois se
torna independente dela. No mesmo parágrafo diz ainda: “a
necessidade de repetir a satisfação sexual dissocia-se então da
necessidade de absorção do alimento”.
99
Quando Freud propôs a noção de apoio, fez aparecer uma distinção: de
um lado, as pulsões sexuais e, de outro, as de autoconservação. Nessas
pulsões ele empregou sempre o termo necessidade para designar a função,
dando possibilidade de fazer uma aproximação desta pulsão com o instinto.
pulsões de autoconservação na sua escolha de um objeto de amor; é a isso que Freud chama tipo de
escolha de objeto por apoio.(Laplanche e Pontalis, p.30).
98
LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário da Psicanálise. p. 32.
99
FREUD, S. A sexualidade infantil. p. 170.
71
Já para a pulsão sexual, não há um objeto específico. Sua fonte é
corporal, nasce apoiada no instinto, mas não se confunde com ele. Seu
objetivo não é a manutenção da vida, no sentido biológico da expressão, e com
isso, a pulsão sexual escapa do reino das necessidades determinadas por
esse campo, o que fica mais explícito na fase do auto-erotismo.
Desde o início, em seu trabalho de conceituação, Freud procurou dar
conta de três tarefas, que são:
1. Formular um modelo de funcionamento psíquico;
2. Estabelecer as bases fisiológicas do psiquismo;
3. Situar os fatores biológicos do comportamento.
É da clínica que Freud partiu para fornecer o conceito abrangente de
Trieb, mas sua intenção esbarrou em dificuldades metodológicas e em limites
científicos. No momento em que escrevia O projeto (1895), Freud mostrava-se
ambicioso. A pulsão era, às vezes, designada como estímulo endógeno, o que
mais tarde foi abandonado. Ele suspendeu a pretensão de estabelecer bases
de uma fisiologia das pulsões, entretanto, em sua obra, manteve um modelo
energético-econômico com o pressuposto de que uma inter-relação entre o
que ocorre no sistema nervoso e a percepção psíquica. Mesmo assim, não
bastava apenas que a fisiologia pulsional e a psique se relacionassem entre si.
Elas deveriam corresponder a determinantes situados na biologia das
espécies, e, para tal, cada pulsão corresponderia a uma finalidade biológica da
espécie.
Foi então que Freud utilizou os conceitos de pulsão de autoconservação
e pulsão sexual. Foi um desafio encontrar uma conceituação de pulsão que
satisfizesse as exigências da psicanálise, da fisiologia e da biologia, e isso o
levou a reformular várias vezes sua teoria pulsional.
72
Mesmo sentindo dificuldade em dar um conceito à pulsão, Freud
manteve seu modelo dualista. O que o moveu foi explicar a raiz do conflito
psíquico, procurando encontrar na forma mais irredutível, manifestada como
um combate de dois princípios. Sua busca foi em função de estabelecer uma
teoria pulsional geral, para ser aplicada a todos os seres vivos, algo paralelo a
uma biologia unificada.
Freud encontrou um modelo que se consolidou como hipótese definitiva,
duas pulsões básicas e irredutíveis, subjacentes a todo o indivíduo: princípio
das pulsões de vida e princípio das pulsões de morte. Essa hipótese aparece
para ele como fundamental, capaz de abarcar o seu construto teórico, com alto
alcance explicativo e de grande utilidade clínica.
Apesar do apoio buscado na biologia, não se assenta totalmente sobre a
biologia ou a fisiologia a teoria pulsional freudiana:
Tento em geral manter a psicologia isenta de tudo que lhe seja
diferente em natureza, inclusive das linhas biológicas de pensamento.
Por essa mesma razão, gostaria, nessa altura de admitir
expressamente que a hipótese de instintos (triebe) do ego e instintos
sexuais separados (isto é, a teoria da libido) está longe de repousar
inteiramente numa base psicológica, extraindo seu principal apoio da
biologia. Mas serei suficientemente coerente [com minha norma geral]
para abandonar essa hipótese, se o próprio trabalho psicanalítico vier
a produzir alguma outra hipótese mais sutil sobre os instintos (triebe).
Até agora isto não aconteceu... Visto não podermos esperar que outra
ciência nos apresente as conclusões finais sobre a teoria dos
instintos, é muito mais objetivo tentar ver que luz pode ser lançada
sobre esse problema básico da biologia por uma síntese dos
fenômenos psicológicos.
100
Assim, a teoria pulsional de Freud, além do mundo psíquico da esfera
fisiológica e do patamar biológico das espécies, abrange uma dimensão mais
geral das leis da vida (morte), dos sentidos irredutíveis e últimos das pulsões.
Com sua teoria pulsional, Freud forneceu um modelo de orientação para o
100
FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução. p. 95.
73
trabalho da clínica, com a pretensão de dar conta das três tarefas citadas
anteriormente. Esta pretensão fez parte de seu aporte científico da época, e
também, era necessária para dar força e relevância ao seu novo campo de
conhecimento que estava sendo inaugurado: a metapsicologia.
Na ausência total de qualquer teoria dos instintos (triebe) que nos
ajude a encontrar nossa orientação, podemos permitir-nos, ou antes,
cabe-nos começar por elaborar alguma hipótese para a sua conclusão
lógica, até que ela ou se desintegre, ou seja, confirmada.
101
Freud trata da amplitude conceitual do termo pulsão ao longo de sua
obra não como um conceito vago, mas em diversos momentos nas suas
manifestações específicas tanto na clínica, como na fisiologia, na psique, na
biologia e na cultura. É da posição de uma psique que se situa entre a biologia
e a cultura que Freud irá sempre tratar.
Contudo, quem se dedica à construção de hipóteses científicas só
pode começar a levar suas teorias a sério se elas se adaptam em
mais de uma direção ao nosso conhecimento e se a arbitrariedade de
um constructo ad hoc pode ser mitigada em relação a elas.
102
A segunda formulação de Freud sobre o dualismo pulsional, pulsões
sexuais versus pulsões do ego, aconteceu entre 1910 e 1914.
103
As pulsões do
ego seriam aquelas cuja energia estaria colocada a serviço do ego, no conflito
defensivo e contra as sexuais. Nelas estão englobadas as de
autoconservação. Neste período, Freud ainda considera a noção de apoio das
pulsões sexuais sobre as do ego. No nível biológico, ele considera que as
pulsões do ego são as de conservação de si mesmo, porque o ego é a
instância psíquica que se ocupa da conservação do indivíduo. No sentido do
101
FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução. p. 94.
102
FREUD, S. Projeto para uma psicologia. 1895, p. 412.
103
Segundo alguns comentadores, este dualismo vai até 1919, mudando apenas em Mais Além do
princípio de prazer.
74
funcionamento psíquico, Freud mostra que essas pulsões funcionam segundo
o princípio de realidade.
104
Este é um marco teórico importante porque aponta a transição para uma
outra postulação das pulsões. No seu texto Introdução ao Narcisismo (1914),
Freud defendeu o dualismo pulsional para não cair em uma perspectiva
monista que se aproximasse da idéia junguiana de libido originária, ao mesmo
tempo em que percebeu que as pulsões do ego introduzem uma ambigüidade:
são tendências que emanam do ego e que visam objetos externos, tais como
fome e amor, mas também são pulsões ligadas ao ego e podem tomá-lo como
objeto.
As catexias de energia que o ego dirige aos objetos de seus desejos
sexuais, nós as denominamos ‘libido’; todas as outras catexias,
emanadas dos instintos de autopreservação, denominamos
‘interesse’. Traçando a trajetória das catexias libidinais, com suas
transformações e vicissitudes finais, podemos obter uma primeira
compreensão interna (insight) dos mecanismos das forças mentais.
105
Freud tentou resolver esta ambigüidade postulando que a energia das
pulsões do ego não é libido, mas interesse. Assim, afastou a sua teoria das
concepções puramente biológicas, colocando-a no domínio do psíquico.
O valor dos conceitos ‘libido do ego’ e ‘libido do objeto’ reside no fato
de que se originam do estudo das características íntimas dos
processos neuróticos e psicóticos. A diferenciação da libido numa
espécie que é adequada ao ego e numa outra que está ligada a
objetos, é o corolário inevitável de uma hipótese original que
104
Princípio de realidade: um dos dois princípios que , segundo Freud, regem o funcionamento
mental. Forma par com o princípio de prazer e modifica-o; na medida em que consegue impor-se como
princípio regulador, a procura da satisfação já não se efetua pelos caminhos mais curtos, mas faz
desvios e adia o seu resultado em função das condições impostas pelo mundo exterior. Encarado do
ponto de vista econômico, o princípio de realidade corresponde a uma transformação da energia livre
em energia ligada; do ponto de vista tópico, caracteriza essencialmente o sistema pré-consciente-
consciente; do ponto de vista dinâmico, a psicanálise procura basear a intervenção do princípio de
realidade num certo tipo de energia pulsional que estaria mais especialmente a serviço do ego.
(Laplanche e Pontalis, p. 368).
105
FREUD. S. Conferência XXVI. A Teoria da Libido e o Narcisismo. p. 483-484 .
75
estabelecia distinção entre os instintos sexuais e os instintos do ego.
Seja como for, a análise das neuroses de pura transferência compeliu-
me a fazer essa distinção, e sei apenas que todas as tentativas para
explicar esses fenômenos por outros meios foram inteiramente
infrutíferas (...) existem vários pontos a favor da hipótese de ter havido
desde o início uma separação entre os instintos sexuais e os outros,
instintos do ego, além da utilidade de tal hipótese na análise das
neuroses de transferência. Admito que somente essa segunda
consideração não seria destituída da ambigüidade, portanto poderia
tratar-se de uma energia psíquica indiferente que se torna libido
através do ato de catexização de um objeto. Mas em primeiro lugar, a
distinção feita nesse conceito corresponde à distinção popular comum
entre a fome e o amor.
106
A formulação do conceito de narcisismo levou Freud a propor a
existência de uma fase intermediária entre o auto-erotismo e o amor objetal na
evolução da libido: a fase do narcisismo. Nesta, um novo ato psíquico veio dar
forma ao auto-erotismo, fundando um EU. Assim, as pulsões sexuais, antes
funcionando de modo anárquico, passaram a operar de modo integrado. Com
isso, os objetos da pulsão passaram a ser ou o ego ou o objeto externo. Há um
movimento dessa libido com o conflito pulsional que, na segunda teoria das
pulsões, fica entre a libido do ego e a libido do objeto.
Freud pensou o narcisismo como uma operação psíquica onde as
pulsões, até então dispersas e satisfazendo-se auto-eroticamente, são
reunidas em prol da unificação de uma imagem corporal, fundando a instância
psíquica conhecida como ego. Este processo é possível devido ao
enamoramento do sujeito por sua imagem corporal; seu próprio ego torna-se
alvo da libido. Tal concepção, contudo, provoca um impasse na distinção
pulsional entre pulsões do ego e pulsões sexuais, pois Freud tomava as
primeiras como dessexualizadas, tendo como pólo de origem o próprio ego.
Monzani nos esclarece que:
Foi a partir da introdução do conceito de narcisismo que a distinção
anterior se viu ameaçada, que a distinção entre pulsões sexuais e
106
FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução. p. 94.
76
pulsões do ego se encontra obscurecida na medida em que o ego é
também investido libidinalmente. A rigor, tudo indica que nesse
momento seria mais correto falar em libido do ego e libido objetal. O
dualismo está evidentemente esfumaçando-se, pois o ego é agora o
grande reservatório da libido, a partir do qual a libido é enviada para
os objetos e pode também refluir deles no ego. Por conseguinte, é
preciso confessar que as pulsões de autopreservação também são de
natureza libidinal, são pulsões sexuais que, em vez de objetos
externos, haviam tomado o próprio ego do sujeito como objeto.
107
A saída encontrada por Freud foi pensar o ego como o reservatório da
libido, isto é, uma instância que é alvo da pulsão sexual, mas que não é sua
sede. Portanto, o psiquismo pode ser visto como uma balança energética,
onde a libido encontra-se num constante movimento entre o ego e o mundo
objetal. Freud criou os termos narcisismo primário e narcisismo secundário
para descrever estas idas e vindas da libido. No primário, apenas ao tomar a si
mesma como objeto de amor, através da reunião da libido em torno do ego, a
criança será capaz de, posteriormente, dirigir a libido para os objetos. O
narcisismo primário é descrito por Freud como um estado de onipotência
narcísica, onde a criança nutre a ilusão de ser protagonista de toda a realidade
à sua volta.
O narcisismo secundário, por sua vez, representa refluxo da libido para o
ego, mas somente após sua passagem pelos objetos. Ou seja, a partir do
narcisismo primário, o sujeito é capaz de enviar a libido para o mundo externo
e, ao retornar, traz consigo uma representação do mundo externo com a qual
se deparou. “O narcisismo do ego é, assim, um narcisismo secundário, que foi
retirado dos objetos.”
108
Desta forma, pode-se pensar o narcisismo secundário
como uma etapa crucial no desenvolvimento do ego. É o momento em que o
sujeito é capaz de representar a realidade à sua volta; e a fantasia é o território
onde tal representação reside, alvo da regressão da libido.
107
MONZANI. Luiz Roberto. Freud O movimento de um pensamento. p. 145-146.
108
FREUD. S. As duas classes de instintos. p. 62.
77
Freud faz porém uma ressalva com relação aos estados patológicos,
como é o caso da parafrenia
109
. Coloca que, nestes casos, a libido é
desvinculada do mundo externo sem que haja esta representação do mundo
no aparelho psíquico, segundo suas palavras:
Com o parafrênico a situação é diferente. Ele parece realmente ter
retirado sua libido de pessoas e coisas do mundo externo, sem
substituí-las por outras na fantasia. Quando realmente as substitui, o
processo parece ser secundário e constituir parte de uma tentativa de
recuperação, destinada a conduzir a libido de volta a objetos.
110
Desta forma, pode-se pensar no narcisismo primário como a primeira
operação narcísica, o processo pelo qual a libido, até então disposta auto-
eroticamente, é reunida para poder dirigir-se ao mundo objetal. E o narcisismo
secundário é a introversão da libido rumo ao ego, mas com a introjeção dos
objetos de interesse da libido. Se, com o narcisismo primário, surge a noção de
ego, com o narcisismo secundário surge a questão da fantasia.
Assim, mais do que uma dimensão quantitativa, entre introversão e
extroversão da libido, a distinção entre narcisismo primário e secundário
remete a um eixo qualitativo, referindo-se ao complexo processo de
subjetivação do indivíduo.
Não se pode entender a saída encontrada por Freud em manter o
dualismo pulsional senão como uma alternativa provisória, que carecia de uma
distinção mais consistente. O desfecho para esta questão, conforme veremos
mais adiante, reside na radical reformulação da dinâmica psíquica, presente a
partir do texto Mais além do princípio de prazer (1920). Neste trabalho, Freud
109
Parafrenia: termo proposto por Freud para designar, quer a esquizofrenia (parafrenia propriamente
dita), quer o grupo paranóia esquizofrenia.
110
FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução. p. 90.
78
toma a compulsão à repetição como um movimento estreitamente articulado ao
pulsional e não ao desejo inconsciente.
No seu texto O inconsciente, de 1915, ele diz que “um instinto nunca
pode tornar-se objeto da consciência”.
111
E em seguida, enumerou e definiu as
quatro características da pulsão: pressão (força), alvo (finalidade), objeto e
fonte. A pressão constitui a própria essência da pulsão e a situa como o motor
da atividade psíquica. O alvo é sempre a satisfação e pressupõe a eliminação
da excitação que se encontra na origem da pulsão; esse processo pode
comportar alvos intermediários ou até fracassos, ilustrados pelas pulsões
chamadas de pulsões inibidas quanto ao alvo que se desviam parcialmente
de sua trajetória. O objeto da pulsão é o meio dela atingir seu alvo e nem
sempre lhe está originalmente ligado. E por último, a fonte das pulsões é o
processo somático, não psíquico localizado numa parte do corpo ou um órgão,
cuja excitação é representada no psiquismo pela pulsão.
Freud, ao formular a pluralidade do conceito de pulsão, apontando sua
relação com fonte, objeto, alvo e pressão, deixou implícito na articulação
desses aspectos que o campo representacional é apenas uma parte de um
espectro que inclui desde o somático até o objeto. Naquele momento, a teoria
freudiana ainda se encontrava em uma relação dualista. Assim, a pulsão de
ego/pulsões sexuais, começou a ser percebida como insustentável, dado que a
libido do ego podia tomar como objeto tanto objetos externos quanto o próprio
ego, denotando também, sua natureza sexual. Neste sentido, estas duas
pulsões seriam englobadas em um único tipo (uma terceira teoria pulsional),
que Freud chamaria de pulsões de vida.
Visto que um estudo da vida pulsional a partir da direção da
consciência apresenta dificuldades quase insuperáveis, a principal
fonte de nossos conhecimentos continua a ser a investigação
111
FREUD, S. Emoções Inconscientes. p. 202.
79
psicanalítica das perturbações mentais. A psicanálise, contudo, em
conseqüência do curso tomado pelo desenvolvimento, até agora só
tem sido capaz de nos proporcionar informações de natureza
razoavelmente satisfatória acerca das pulsões sexuais, pois este é
precisamente o único grupo que pode ser observado isoladamente,
por assim dizer, nas psiconeuroses. Com a extensão da psicanálise
as outras afecções neuróticas, sem dúvida encontraremos também
uma base para o nosso conhecimento das pulsões do ego, embora
seja temerário esperar condições de observação igualmente
favoráveis nesse outro campo de pesquisa.
112
Até aquele momento, o princípio que regulava o aparelho psíquico, o
princípio de prazer, era o conceito básico para a compreensão dos fenômenos
psíquicos; tudo era reduzido à fórmula da livre descarga de excitação e sendo,
por outro lado, o acúmulo desta geradora de desprazer. Tratava-se de um
princípio econômico.
É somente no artigo de 1920, Mais além do princípio de prazer, que
Freud concebeu a última dualidade pulsional. Foi a partir de observações
clínicas e da vida cotidiana que ele percebeu que as manifestações psíquicas
estavam além do princípio de prazer. Percebeu ainda que, se todo processo
psíquico estivesse sob o seu domínio, sempre seria acompanhado de prazer
ou então conduziria a ele.
A questão levantada por Freud passou a ser: de onde provinha o
desprazer observado? Por exemplo: nos sonhos traumáticos, na transferência,
nos jogos infantis ou ainda na vida cotidiana. Aqui aparecem em jogo atos
compulsivamente repetidos.
Ao descrever as neuroses traumáticas, destaca dois fatores básicos em
sua composição: a ausência de um dano físico e o susto (Schreck). Para
entender melhor a natureza e a importância deste último item no presente
texto, é preciso contextualizá-lo a partir de outras duas modalidades de reação
112
FREUD, S. A história do movimento psicanalítico. p. 146.
80
psíquica ante um perigo externo. São elas: o medo (Furcht) e a angústia
(Angst).
No medo, além da percepção de um objeto ameaçador, a
representação do mesmo, como é o caso do objeto fóbico. Na angústia,
embora haja a percepção do objeto de ameaça, sob a forma de uma angústia
preparatória, não há sua determinação precisa, tal como ocorre no medo.
no caso do susto, encontram-se ausentes estes dois elementos: tanto
a identificação quanto a preparação ante o objeto. Desta forma, o aparelho
psíquico é invadido por uma profusão de estímulos contra os quais é incapaz
de se defender. Este processo confere tal intensidade à cena traumática que
sua mera lembrança é percebida pelo psiquismo como um evento atual. A
investigação do fenômeno da angústia foi retomada em seu texto Inibições,
sintoma e angústia (1926) e também articulada com o fenômeno da repetição.
Ainda no que se refere às neuroses traumáticas, esta reprodução do
momento traumático é marcada por uma compulsão à repetição. Isto porque o
aparato psíquico visa, com a contínua reprodução do momento do susto, criar
a angústia preparatória que se encontrava ausente no momento do trauma.
Porém, tal compulsão não garante qualquer indício de prazer, pelo contrário,
apenas a continuidade do desprazer. Desta forma, Freud se depara com o
impasse de como sustentar que tal modalidade neurótica atenda à lógica do
princípio de prazer.
Em relação aos sonhos traumáticos, Freud nos diz:
Os sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas possuem a
característica de repetidamente trazer o paciente de volta a situação
de seu acidente, numa situação da qual acorda em outro susto.
113
113
FREUD, S. Além do princípio de prazer. p. 24.
81
E ainda: Não é de meu conhecimento, contudo, que pessoas que
sofreram de neurose traumática estejam muito ocupadas, em suas
vidas despertas, com lembranças de seu acidente.
114
Porém, não é apenas o caso das neuroses traumáticas o exemplo clínico
a problematizar a manutenção da perspectiva do além do princípio de prazer.
Freud enuncia o caso da brincadeira infantil do "Fort-Da", (1920, p.26).
Tal brincadeira, protagonizada por seu neto Ernst, (filho de Sofie),
caracterizava-se pelo contínuo ato de jogar um carretel e puxá-lo. Ernst, ao
fazê-lo, pronunciava respectivamente os termos "Fort", (ir) e "Da", (ali), de
acordo com a ausência da mãe. Freud, inicialmente, não percebia qualquer
obtenção de satisfação em tal prática, apenas sua repetição. Porém,
posteriormente, passou a enxergá-la de outro modo: tal repetição que,
aparentemente não teria nada de prazeroso, seria uma forma da criança
passar de uma posição passiva para uma posição ativa. Agora era a criança
que mandava a mãe embora, vingava-se dela pelo seu afastamento, conforme
as palavras de Santos:
Sem dúvida, o jogo do Fort-Da é o mais complexo dos fenômenos
analisados por Freud (os outros dois são o sonho e a repetição
transferêncial). Apesar de ser a repetição de uma situação dolorosa -
a partida da mãe - ele é acompanhado de prazer. Assim, por um lado
ele contradiz e, por outro, afirma o princípio do prazer. O prazer
encontra-se na própria atividade de representação, ainda que o
representado em si mesmo seja doloroso.
115
Portanto, este jogo representa uma experiência de repetição que,
embora reproduzisse uma situação angustiante, é capaz de dominar o estímulo
desprazeroso, sendo assim uma repetição da ordem do princípio de prazer.
Ao abordar a questão da transferência, percebe-se como a dinâmica da
repetição permeia todo seu funcionamento, tanto no que tange à aliança
114
FREUD, S. Além do princípio de prazer. p. 24.
115
SANTOS, L. G. O Conceito de repetição em Freud. p. 97.
82
terapêutica com o analista, a serviço da associação, quanto no que tange a
possíveis sentimentos eróticos ou hostis, a serviço da resistência. A questão
da repetição configura-se como um elemento intrínseco ao funcionamento
psíquico. A forma de interagir do indivíduo é sob a forma de uma repetição.
Assim, tal padrão não poderia deixar de aparecer no setting analítico, sendo a
figura do analista seu principal alvo.
No texto A dinâmica da transferência (1912), Freud pensa o sujeito em
sua relação com o mundo, marcado por determinados clichês estereotípicos,
repetidos em diferentes momentos de sua vida, com diferentes pessoas. A
figura do analista, que não foge a tais padrões, também está incluída nestas
séries psíquicas que compõem a vida psíquica do indivíduo. Esta projeção das
fantasias inconscientes pode tanto auxiliar como dificultar o processo de
análise. Isso porque, ao mesmo tempo em que revela o desejo inconsciente,
tal projeção desloca o analista de sua função original e este pode vir a ser
odiado ou amado.
No que diz respeito à transferência, Oscar Masotta nos fala:
Não há psicanálise sem transferência, e a transferência – disse um dia
Freud - é o lugar onde se ata o que deve ser desatado, ou seja, o
amor de transferência. Mas este amor nos adverte o criador da
psicanálise – não é um simulacro, é um amor real.
116
Desta forma, o analista torna-se alvo de uma variedade de sentimentos,
tanto amorosos quanto hostis. Freud procura, ao longo de sua obra, entender
esta dupla face do processo de transferência, dividindo-a da seguinte forma: ao
nível do inconsciente e ao da consciência. Declara que toda e qualquer
admiração ou simpatia entre as pessoas, presentes na esfera da consciência,
pode, em um nível inconsciente remontar a desejos sexuais recalcados:
116
MASOTTA, Oscar. Dualidade psíquica o modelo pulsional. p.96.
83
E somos assim levados à descoberta de que todas as relações
emocionais de simpatia, amizade, confiança e similares das quais
podemos tirar bom proveito em nossas vidas, acham-se
geneticamente vinculadas à sexualidade e se desenvolvem a partir de
desejos puramente sexuais, através da suavização de seu objeto
sexual, por mais puros e não sensuais que possam parecer à
autopercepção consciente (..) a psicanálise demonstra-nos que
pessoas que em nossa vida real são simplesmente admiradas ou
respeitadas podem ainda ser objetos sexuais para nosso
inconsciente
117
.
A estratégia clínica pensada por Freud ante a transferência, enquanto
resistência, é a busca pela enunciação destes sentimentos eróticos ou hostis,
por natureza inconsciente, de modo que se descolem da figura do analista.
Com isso, ao desligar de sua figura tais categorias de sentimentos
transferenciais, restam apenas ao analisando os sentimentos afetuosos,
ligados à consciência e ao desejo de associação, portanto fundamentais para o
trabalho analítico. Assim, a enunciação dos sentimentos inconscientes é a
forma encontrada por Freud para minimizar os efeitos da resistência. A
transferência traz consigo um paradoxo: é, ao mesmo tempo, motor e
obstáculo ao trabalho analítico.
Também se observou que o paciente não consegue recordar o que foi
recalcado, pois se vê:
Obrigado a repetir o material recalcado como se fosse uma
experiência contemporânea, em vez de, como o médico preferiria ver
recordá-lo como algo pertencente ao passado. Essas reproduções,
que surgem com tal exatidão indesejada, sempre têm como tema
alguma parte da vida sexual infantil, isto é, do complexo de Édipo, e
de seus derivados, e são invariavelmente atuadas na esfera da
transferência, da relação do paciente com o médico. Quando as
coisas atingem essa etapa, pode-se dizer que a neurose primitiva foi
então substituída por outra nova, pela ‘neurose de transferência’.
118
117
FREUD, S. A dinâmica da transferência. p. 116-117.
118
FREUD, S. Além do princípio de prazer, p. 31-32.
84
Freud nos diz ainda que:
É claro que a maior parte do que é reexperimentado sob a compulsão
à repetição, deve causar desprazer ao ego, pois traz à luz as
atividades das pulsões recalcadas. Isso, no entanto, constitui
desprazer de uma espécie que já consideramos e que não contradiz o
princípio de prazer: desprazer para um sistema e, simultaneamente,
satisfação para outro. Contudo, chegamos agora a um fato novo
digno de nota, a saber, que a compulsão à repetição também
rememora do passado experiências que não incluem possibilidade
alguma de prazer e que nunca, mesmo longo tempo, trouxeram
satisfação, mesmo para impulsos instituais que desde então foram
reprimidos.
119
Em Mais além do princípio de prazer (1920), Freud faz a sua
conceituação final do conflito pulsional, enfatizando o caráter conservador da
pulsão: parece, então, que uma pulsão é um impulso, inerente à vida orgânica,
a restaurar um estado anterior de coisas.
120
Este seria o caráter geral das
pulsões e talvez de toda a vida orgânica, não reconhecidos claramente até o
momento. Neste sentido, Monzani nos esclarece que: “Trata-se de um
momento no qual, ao que tudo indica, Freud patina num problema. Mas, por
outro lado, esse mesmo movimento conduz a um arranque do texto”.
121
Uma
pulsão seria, pois, uma tendência própria do organismo vivo à reconstrução de
um estado anterior. Freud parte dessas premissas observadas diretamente da
clínica para todo seu desenvolvimento.
Para Freud, a compulsão de repetição é um processo de origem
inconsciente no qual o sujeito repete experiências desagradáveis, sem se dar
conta delas, e tendo a impressão de que aquilo é atual.
Da compulsão de repetição apareceu uma nova pulsão, que Freud
definiu como o principal representante do outro pólo do conflito pulsional: as
119
FREUD, S. Além do princípio de prazer, p. 33-34.
120
FREUD, S. Além do princípio de prazer, p. 53-54.
121
MONZANI. Luiz Roberto. Freud O movimento de um pensamento. p. 154.
85
pulsões de morte. Por outro lado, as pulsões do ego e as pulsões sexuais
passaram a fazer parte do conjunto das pulsões de vida.
3.1 Repetição e a pulsão de morte
A questão da repetição foi abordada por Freud nos artigos A dinâmica da
transferência (1912), Recordar repetir e elaborar (1914) e finalmente, em Além
do princípio de prazer (1920). A partir de 1920, a repetição serviu de
fundamento para a explicação da pulsão de morte.
Freud se refere a essa repetição como a própria natureza das pulsões.
Considera que existe um domínio onde o princípio de prazer não consegue
explicar, tal como um resíduo que persiste e deve ser explicado e que é
suficiente, segundo Freud, para que estejamos frente a um:
Inexplicado o bastante para justificar a hipótese de uma compulsão à
repetição, algo que parece mais primitivo, mais elementar e mais
pulsional que o princípio de prazer que ela domina. Mas, se uma
compulsão à repetição opera realmente na mente, ficaríamos
satisfeitos em conhecer algo sobre ela, aprender a que função
corresponde, sob que condições podem surgir e qual é sua relação
com o princípio de prazer, ao qual, afinal de contas, até agora
atribuímos dominância sobre o curso dos processos de excitação na
vida mental.
122
A repetição se torna a característica própria da pulsão. Assim como a
compulsão de repetição está para a pulsão de morte, a repetição está para a
pulsão de vida.
A primeira pulsão nasce como tentativa de um retorno ao estado
inanimado, a um nível de tensão zero, tendendo desta maneira, repetir
indefinidamente o movimento com a menor modificação possível. a
122
FREUD, S. Além do princípio de prazer. p. 37.
86
repetição, ligada às pulsões de vida, tenta repetir o que está criado a partir
do primeiro movimento na matéria inanimada, procurando estender este
movimento a estruturas cada vez maiores, conseguindo desta maneira
perturbar o retorno a zero. Este movimento pulsional é descrito por Freud da
seguinte maneira:
Em uma época indeterminada foram despertadas na matéria
inanimada, pela atuação de forças inimagináveis, as qualidades do
vivente. Talvez tenha sido este processo que serviu de modelo àquele
outro que depois fez surgir a consciência em determinado estado da
matéria animada. A tensão, então, gerada na antes inanimada
matéria, tentou-se revelar, aparecendo assim a primeira pulsão: a de
voltar ao inanimado (...) estes rodeios para a morte, fielmente
consentidos pelas pulsões conservadoras, constituiriam hoje o quadro
dos fenômenos vitais.
123
um movimento independente, autônomo, que vence o meio externo,
levando a uma redução para além do que seria o equilíbrio com o externo. A
pulsão de morte, por si, é uma força irreprimível, independente do princípio de
prazer.
As mudanças conceituais promovidas em 1920 também repercutiram
clinicamente. Para Knoblock
124
, o dispositivo da interpretação deixa de ser um
método de deciframento que busca um significado oculto para tornar-se uma
forma de representação de algo que ainda não fora capaz de portar inscrição
no psiquismo. Enquanto a idéia de um sintoma relaciona-se com a lógica da
representação, a pulsão de morte fala de algo que é pura insistência, pura
pressão ao aparelho psíquico. O psiquismo é obrigado a transformar-se de
modo a dar conta daquilo que não possui representação, que é da ordem do
não ligado, fora da linguagem.
123
FREUD, S. Além do princípio do prazer. p. 56.
124
Cf. KNOBLOCK, F. O tempo do traumático. p. 39.
87
A este respeito, Prata
125
ressalta que a presença de uma compulsão à
repetição aponta, sobretudo, para uma escuta do silêncio, isto é, daquilo que
comparece apenas como pressão, estreitamente articulado ao pulsional e não
ao campo da linguagem.
A compulsão à repetição aponta, contudo, para uma atividade pulsional
originária, anterior à existência do aparato psíquico. Foi a ligação do pulsional
que fundou o psiquismo. Talvez a dificuldade encontrada por Freud em
descrever o processo do recalcamento primordial aponte, desde esta época,
para uma suspeita de um movimento anterior ao psiquismo, mas que não deixa
de exercer seus efeitos sobre o aparelho. É possível conceber o próprio
aparelho psíquico como resultado da ligação da ação pulsional, a ação da
pulsão de vida sobre a pulsão de morte.
A própria noção de pulsão não deixa de sofrer transformações com a
criação da hipótese da pulsão de morte, conforme colocado por Bastos:
A pulsão - nesta postulação - não é mais um fator que pressiona rumo
a um desenvolvimento, mas justamente o seu oposto: um esforço de
reprodução da inércia. A meta de todo ser vivo passa, dentro da nova
teoria, a ser a morte e, o desenvolvimento, uma conseqüência dos
fatores externos, perturbadores e desviantes.
126
Desta forma, se a exigência pulsional, até 1920, se referia à ascensão de
conteúdos inconscientes à esfera da consciência, passou a relacionar-se à
manutenção de um mesmo estado de coisas. Sua essência passou a ser,
sobretudo, conservadora, o que não quer dizer que a pulsão de morte não
porte em si uma noção de movimento. A atividade da compulsão à repetição
nos demonstra este caráter ativo do pulsional, porém, sua energia busca, antes
de tudo, a manutenção de um estado anterior, cuja ação das pulsões de vida
125
Cf. PRATA, M. R. Repetição e pulsão de morte em Freud. p. 67.
126
BASTOS, L. Eu-corpando: o ego e o corpo em Freud, 1998, p. 121.
88
impediu. Portanto, mais do que um caráter conservador, pode-se atribuir à
atividade pulsional um caráter restaurador, no caso a um estado de não vida,
ou, assim denominado por Freud, de retorno ao inanimado.
Freud descreveu um conceito fundamental para compreensão do
aparelho psíquico regido pelo princípio de prazer, que é o conceito de ligação
(Bindung), ou seja, se concebe um princípio a partir do surgimento de uma
ordem. Esta ordem se com a ligação que é uma operação de limite sobre o
livre escoamento das excitações. Uma operação que tende a ligar as
representações, mantendo formas com alguma estabilidade. Num momento
mítico, haveria o livre escoamento de excitações, e, num segundo momento,
ocorreriam as primeiras ligações promotoras de uma ordem ou, de outra forma,
a organização desta dispersão de excitações num princípio. Com este evento
está concebido o aparelho psíquico funcionando no sentido de vincular as
quantidades de excitação às representações, promovendo a descarga destas
excitações, porém de forma limitada.
Neste sentido, este conceito de ligação seria o modelo do funcionamento
das pulsões de vida. Garcia-Roza, em Acaso e Repetição, diz:
O que inicialmente é uma superfície corporal sobre a qual o
diferencial prazer-desprazer se fará com absoluta independência de
qualquer princípio organizador. Assim, não é o princípio de prazer que
funda o prazer, mas, ao contrário, é o prazer que se erigirá em
princípio. A passagem do prazer entendido como processo psicológico
para o prazer entendido como princípio se daria em função da ligação
(Bindung), isto é, por uma contenção ao livre escoamento das
excitações, transformando o estado de pura dispersão em estado de
integração (transformação de energia livre em energia ligada). Esse
estado de pura dispersão das excitações, anterior à instauração do
princípio de prazer e de seu complementar, o princípio de realidade, é
evidentemente um estado hipotético e que pode ser pensado
recorrentemente. É a partir do aparelho psíquico constituído que
Freud pensa esse estágio inicial anárquico. Tal como na física, onde a
concepção de um estado caótico de pura dispersão de energia
pode ser feito recorrentemente a partir de um sistema estruturado,
também em psicanálise esse momento inicial é uma ficção teórica,
89
não tendo como referente um momento real da gênese do aparelho
psíquico.
127
A repetição refere-se às pulsões de vida porque nesta repetição está
acoplado o princípio de prazer. É uma repetição onde os componentes
psíquicos estão em estado ligado, formando unidades cada vez maiores, ou
seja, é um movimento de criar complexidades. Nas palavras de Freud:
...Eros, por ocasionar uma combinação de conseqüências cada vez
mais amplas das partículas em que a substância viva se acha
dispersa, visa a complicar a vida e, ao mesmo tempo, naturalmente, a
preservá-la. Agindo dessa maneira, ambos os instintos seriam
conservadores no sentido mais estrito da palavra, visto que ambos
estariam se esforçando para restabelecer um estado de coisas que foi
perturbado pelo surgimento da vida. O surgimento da vida seria,
então, a causa da continuação da vida e também, ao mesmo tempo,
do esforço no sentido da morte. E a própria vida seria um conflito e
uma conciliação entre essas duas tendências.
128
A pulsão de morte, por sua vez, é uma força irreprimível, uma força
demoníaca, independente do princípio de prazer. A esse respeito Monzani
salienta:
A Bindung é algo que antecede, algo mais primitivo que o princípio do
prazer, mas, como o próprio Freud indica, ela não o contradiz e mais
que isso, trabalha a seu favor. Assim, num certo sentido, tudo está por
resolver. E a operação central que nos levará ainda mais além não
está na consideração da Bindung, mas na sua falha, isto é, quando
essa operação fracassa em seus propósitos, pois é nesse vazio da
Bindung, nessa fresta, que aparece a compulsão à repetição.
129
Assim como ela, a compulsão de repetição, que é a sua principal
manifestação, escapa do princípio de prazer. Sob a ação da pulsão de morte, o
sujeito se repetindo situações que em momento algum foram vividas com
prazer. Safouan nos esclarece que:
127
Garcia-Roza, Luis Alfredo. Acaso e Repetição: uma Introdução à teoria das pulsões. p. 47.
128
FREUD, S. As duas classes de instintos. p. 55-56.
129
MONZANI. Luiz Roberto. Freud, O movimento de um pensamento. p. 181.
90
A própria condição humana que sepor Freud revisada e desnudada
até a denúncia de seu procedimento mais íntimo: a verdade do prazer
é que ele é prazer de privação, é prazer do desprazer, da ausência da
coisa. Repetir sempre o eterno fracasso do encontro, reconsumar a
falta, eis o verdadeiro princípio do prazer ao qual o homem es
fadado.
130
A compulsão de repetição insiste na repetição destas vivências, cuja
representação está ligada a outros conteúdos psíquicos. Isto ocorre, por um
lado, no sentido de propiciar ligações e, por outro, sendo a característica
essencial da pulsão de morte o retorno ao estado anterior das coisas. Uma
repetição com produção de desprazer, levaria à diminuição da potência criativa
do sujeito até sua extinção.
Em oposição à função da pulsão de morte está a função de Eros.
Segundo Freud, a cultura seria um processo posto a serviço de Eros,
destinado a condensar em uma unidade vasta, na humanidade, os indivíduos
isolados, depois as famílias, as tribos os povos e as nações.
131
O que Eros efetua é a promoção de grandes complexidades
existentes, sem que haja, porém, uma demarcação de diferenças entre os
componentes. a pulsão de morte atua no sentido de não propiciar
complexidades e, sim, de desfazer as complexidades existentes. Logo, o
caráter criador da pulsão de morte reside no oposto do que Eros efetua. Eros
massifica, não deixando transparecer diferenças entre os elementos em
questão. A pulsão de morte promove estas diferenças e produz um corte sobre
organizações e sistemas estabelecidos, possibilitando, com isso, o
aparecimento do novo, da criação.
As pulsões de vida e pulsões de morte, em sua quase totalidade, agem
sempre em conexão umas com as outras. Para Freud, apenas tal junção pode
130
SAFOUAN, Moustapha . O fracasso do princípio de prazer. p. 11.
131
FREUD, S. O mal estar na Civilização. p. 145.
91
promover a vida. Qualquer predominância, seja da pulsão de morte ou da
pulsão de vida, pode rumar para um caminho mortífero. Se a pulsão de vida,
com seu caráter complexo, toma a dianteira, não haverá limites para tal
crescimento, o que é danoso. a pulsão de morte atuaria cortando o
crescimento desordenado e estabelecendo limites. Da mesma forma, se a
pulsão de morte predominar haverá um rumo mortífero, ocasionando assim a
redução quase que total de complexos. Freud, em seu texto, O ego e o Id,
coloca:
A cada um destes dois tipos de pulsões estaria subordinado um
processo fisiológico especial de anabolismo e catabolismo, e, em cada
fragmento de substância viva, atuariam, se bem que em proporção
distinta, pulsões das duas classes, devendo assim existir uma
substância que constituiria a representação principal de Eros.
Portanto, a gênese da vida seria a causa tanto da continuação da vida
como tendência à morte. Por sua vez, seria um combate e uma
transação entre ambas as tendências.
132
A mesclagem, como também a desmesclagem, se realiza de modo
regular. Freud nos mostra ainda, no mesmo texto de 1923, O ego e o Id, que
seria possível neutralizar:
A hipótese não lança qualquer luz sobre a maneira pela qual as duas
classes de pulsões se fundem, mistura e ligam uma com a outra, mas
que isso se realiza de modo regular e de modo muito extensivo,
constitui pressuposição indispensável à nossa concepção. Parece
que, em resultado da combinação de organismos unicelulares em
formas multicelulares de vida, a pulsão de morte da célula isolada
pode ser neutralizada com sucesso e os impulsos destrutivos
desviados para o mundo externo, mediante o auxílio de um órgão
especial. Esse órgão especial pareceria ser o aparelho muscular; e a
pulsão de morte pareceria, então expressar-se - ainda que,
provavelmente, apenas em parte como uma pulsão de destruição
dirigindo contra o mundo externo e outros organismos... No
componente sádico da pulsão sexual teríamos um exemplo clássico
de uma mescla adequada de pulsões.
133
132
FREUD, S. O ego e o Id. p. 56.
133
FREUD, S. O ego e o Id. p. 56.
92
Freud continua teorizando a respeito da mesclagem entre os dois tipos
de pulsões em seu artigo O mal estar na Civilização (1930), mostrando:
... que os dois tipos de pulsão raramente, ou talvez nunca, apareçam
em mútuo isolamento, mas se mesclam entre si, em proporções
distintas e muito variáveis, tornando-se de tais modos irreconhecíveis
para nós. No sadismo, admitimos desde muito tempo como pulsão
parcial da sexualidade, encontraríamos uma mesclagem
particularmente sólida entre impulso amoroso e a pulsão de
destruição; o mesmo acontece com o similar antagônico, o
masoquismo, que representa uma mescla entre a destruição dirigida
para dentro e a sexualidade, através da qual aquela tendência
destrutiva, de outro modo inapreciável, se torna notável ou
perceptível.
134
O sadismo e o masoquismo seriam os exemplos mais utilizados por
Freud para exemplificar o funcionamento da mesclagem pulsional.
Freud, em seu texto O problema econômico do masoquismo (1924),
problematiza a questão do desprazer, deixando de pensá-la sob um viés
puramente econômico; isto porque vê, na experiência de excitação sexual, um
aumento de tensão que não está obrigatoriamente associado ao desprazer,
desde que, em sua perspectiva final, haja a possibilidade de descarga. Desta
forma, a questão da excitação sexual deixa de se referir a um prisma
meramente quantitativo, onde o aumento de excitação está diretamente
articulado ao desprazer, para ser enfocado por um prisma qualitativo, conforme
colocado por Freud:
O prazer e o desprazer, portanto, não podem ser referidos a um
aumento ou diminuição de uma quantidade (que descrevemos como
'tensão devida a estímulo'), embora obviamente muito tenham a ver
com esse fator. Parece que eles dependem, não desse fator
quantitativo, mas de alguma característica dele que só podemos
descrever como qualitativa.
135
134
FREUD, S. O mal estar na Civilização. p.141-142.
135
FREUD, S. O problema Econômico do Masoquismo. p. 200.
93
Freud pensa o masoquismo como primário, isto é, uma agressividade
inicialmente voltada para o próprio sujeito, e apenas num segundo momento,
direcionada ao mundo objetal. Eis, então, a origem do sadismo, derivado de
um masoquismo primordial.
Desta forma, Freud contrapõe o masoquismo ao sadismo a partir da
relação entre as pulsões de vida e de morte, ou seja, aponta a iniciativa de
Eros em inibir o movimento de morte.
Freud, no início de sua conceituação, antes de 1920, propôs um sadismo
original. Depois, no artigo Mais Além do Princípio de Prazer, menciona a
possibilidade de haver um masoquismo original, antes do sadismo. Com isso
ele nos diz que o sujeito, num primeiro momento, está com toda a carga da
pulsão de morte dentro de si e a libido, para neutralizá-la, flexiona-a para o
mundo externo. Esta teorização da pulsão de morte é o que Freud vai chamar
de sadismo, porém nunca é a totalidade que será transposta para o exterior. O
quantum restante, masoquismo originário, fica neutralizado pela libido. Em O
problema econômico do masoquismo (1924), Freud formula que a libido tem a
tarefa de:
A libido tem a missão de tornar inócua a pulsão destruidora e a realiza
desviando essa pulsão, em grande parte, para fora e em breve com
o auxílio de um sistema orgânico espacial, o aparelho muscular no
sentido de objetos do mundo externo. A pulsão é então chamada de
pulsão destrutiva, pulsão de domínio ou vontade de poder. Uma parte
da pulsão é colocada diretamente a serviço da função sexual, onde
tem o papel importante a desempenhar. Esse é o sadismo
propriamente dito. Outra porção não compartilha essa transformação
para fora; permanece dentro do organismo e, com o auxílio da
excitação sexual antes mencionada, fica libidinalmente presa. É
nessa porção que temos de identificar o masoquismo original,
exógeno
136
.
136
FREUD, S. O problema Econômico do Masoquismo. p. 204.
94
Freud continua, em O mal estar na civilização (1927) De tal maneira a
pulsão de morte seria posta a serviço de Eros, pois o ser vivo destruiria algo
exterior, animado ou inanimado, em vez de destruir-se a si mesmo.
137
Em toda
sua obra, defende a idéia de haver um dualismo pulsional, fundamental para
toda a movimentação do aparelho psíquico e da vida do sujeito. Seria,
portanto, um engodo atribuir valores qualitativos às pulsões, no sentido de que
uma seria boa e, a outra, ruim. Isto pelo simples fato de que ambas são
responsáveis pela manutenção da vida.
Freud insiste sempre em colocar que a pulsão de vida é bastante
ruidosa, extravagante, e a pulsão de morte, ao contrário, silenciosa. Age
imperceptivelmente e nunca é captada pura, fora da mesclagem com a pulsão
de vida. A pulsão de morte é inerente ao homem: é uma luta obstinada,
contínua e inexorável que o leva a procurar paz e repouso, não importa por
qual meio, sob qualquer forma, e não simplesmente uma força que visaria
transformar o animado em inanimado.
Assim é que o aparelho psíquico mostra-se como fenômeno e acontece
como processo, nele toda a vida é feita de mortes. No entanto, o retorno ao
inorgânico, postulado no vetor da pulsão de morte, remanesce como ponte
lançada sobre o abismo do impossível, sem jamais lograr repouso na outra
margem. Dada a organização, insiste e resiste como reorganização. Se há luta,
pode-se dizer que há vida se há magnitude, pode-se dizer que a vida contém a
morte, é maior do que ela, pulsa, também no sentido dela, estabelece com ela
a maior das contradições, serve-se dela para ser o que é. O movimento vital
acontece em elevações e declínios, cada declínio, necessariamente à vida, é a
morte que há, por isso consagrado em pulsão, a qual ao entrever
nostalgicamente a sombra da morte, faz acender os candelabros da vida.
Nas palavras de Freud:
137
FREUD, S. O mal estar na Civilização. p. 141.
95
Essa pulsão agressiva é o derivado e o principal representante da
pulsão de morte, que descobrimos lado a lado de Eros e que com este
divide o domínio do mundo. Agora, penso eu, o significado da
evolução da civilização não mais nos é obscuro. Ele deve representar
a luta entre Eros e a Morte, entre a pulsão de vida e a pulsão de
destruição, tal como ela se elabora na espécie humana. Nessa luta
consiste essencialmente toda a vida, e, portanto, a evolução da
civilização pode ser simplesmente descrita como a luta da espécie
humana pela vida. E é essa batalha de gigantes que nossas babás
tentam apaziguar com sua cantiga de ninar sobre o Céu.
138
É nisso que a pulsão de morte, destruindo as falsas ilusões, impelindo
não a reproduzir, mas a repetir, o que requer sempre algo de novo, efetiva a
emergência do desejo. Paradoxalmente, pode-se concluir que é a pulsão de
morte que leva o sujeito a fazer o percurso da vida.
138
FREUD, S. O mal estar na Civilização. p. 145.
96
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Não, nossa ciência não é uma ilusão. Ilusão
seria imaginar que aquilo que a ciência não nos
pode dar, podemos conseguir em outro lugar”
Freud
Ao partirmos da hipótese de que a psicanálise, juntamente com outras
teorizações desenvolvidas no século XX, leva-nos a desconfiar da noção
cartesiana de uma consciência objetivável, nos propomos a entender a razão
pela qual o homem não tem inteiro domínio de sua racionalidade. Para isso, se
fez necessário explorar a construção da doutrina psicanalítica, a fim de
estabelecer de que modo Freud chega à noção de pulsão como elemento
fundante do Inconsciente, pois nosso objetivo foi apresentar como se deu à
passagem, no viés filosófico, de uma concepção epistemológica “cartesiana”
de sujeito para uma concepção em que a subjetividade prevalece sobre o
humano agora sobre o viés psicanalítico.
Com este intuito, exploramos as convicções de Freud acerca da
psicanálise, notadamente suas implicações dentro de uma visão monista e o
que esta trouxe para o entendimento da relação entre a mente e o corpo, como
também a idéia de determinismo psíquico e suas inscrições pulsionais.
Repassamos ainda a origem epistemológica da teoria freudiana e os modelos
históricos de que se serviu Freud para a constituição de um saber ou de uma
ciência: modelos que o levaram a conceber a psicanálise como uma ciência da
natureza, e assim, estabelecer uma metapsicologia e o que pode ser chamado
de identidade da psicanálise.
97
Independentemente do fato de a psicanálise ser aceita ou não como um
saber que possa ser colocado junto com os ditos “saberes científicos”, é
impossível não aceitar que se constitui como um marco do pensamento
ocidental no século passado. A principal razão para constituir-se como tal é
que Freud, com a metapsicologia, desafiou os discursos dominantes de sua
época. A ousadia freudiana está em perceber os sinais de sua época e
trabalhá-los por meios que entendia científicos, numa perspectiva original do
que resultou uma produção teórica sui generis.
Desta produção, podemos destacar a idéia de Inconsciente, que,
notadamente, está incorporada no discurso atual como uma importante
categoria para o exercício de apresentação das notas de compreensão das
características do humano. A investigação psicanalítica, ao descobrir e
explorar o inconsciente, desfez também as ilusões de que bastaria
fundamentar-se corretamente as ciências para alça-las ao papel de orientação
da ação humana. Para Freud, o desafio enfrentado pelo projeto de implantação
da Weltanschauung cientifica é superar as resistências psíquicas que surgem
cada vez que as ciências impõem ao homem novas feridas narcísicas e lutar
contra as tendências conservadoras pulsionais que ganham expressão nas
organizações sociais.
Em Freud sabemos que a pulsão, conceito fundamental da psicanálise,
tem por principal característica a tendência à conservação, vai neste sentido a
afirmação freudiana de que fazer ciência é pensar além do principio de prazer.
Como vimos ao longo do trabalho, Freud foi levado a estabelecer a pulsão
como condição de possibilidade do Inconsciente. Sendo assim, somos
induzidos a entender que é sobre a noção de Inconsciente que pesa a maior
parte do legado freudiano. A decorrência dessa noção sob a nossa concepção
de homem é tão forte que:
98
O próprio Freud apontou a psicanálise como a terceira grande ferida
narcísica sofrida pelo saber ocidental ao produzir um decentramento
da razão e da consciência (as outras duas feridas foram as
produzidas por Copérnico e por Darwin). Sem dúvida alguma, a
psicanálise produziu uma derrubada da razão e da consciência do
lugar sagrado em que se encontravam. Ao fazer da consciência um
mero efeito de superfície do Inconsciente, Freud operou uma
inversão do cartesianismo que dificilmente pode ser negada
139
.
Para chegar a ser uma “terceira grande ferida narcísica”, a psicanálise
freudiana sofreu constantes mutações. No princípio, Freud buscou estabelecer
as bases da relação entre neurologia e psicologia. Para isso, buscou nas
estruturas explicativas da ciência de sua época, utilizando-se de analogias com
a sica e a química. Deste processo, Freud percebe que é preciso ir além da
psicologia, criando um procedimento que alcance “as profundezas da alma”.
Um esboço dessa “profundeza” é apresentado no que Freud denominou de
metapsicologia.
A metapsicologia “trouxe” à luz um aparelho psíquico estruturado a partir
de elementos existentes em uma dimensão psíquica nunca antes explorada.
Freud apresenta notas acerca das características espaciais desta dimensão,
que está povoada por sistemas psíquicos com características e funções
distintas entre si; tais sistemas se relacionam de forma dinâmica por meio do
fluxo conflituoso de forças; este fluxo se define por uma economia que busca
obter prazer e evitar o desprazer.
Essa concepção de psiquismo é, à época de Freud, uma
subversão. Com ela, passamos a um novo estágio do entendimento acerca do
humano. Isso se porque, ao trilhar este caminho que culmina com a
metapsicologia –, Freud nos mostrou que não podemos conceber a idéia de
sujeito apenas com as categorias “cartesianas” que nos levam a ter a
consciência como o lugar da verdade. Com a psicanálise, principalmente a
139
GARCIA-ROSA, L. A. Freud e o inconsciente. p. 20.
99
partir da idéia de Inconsciente, percebemos a subjetividade como um elemento
importante para uma explicação coerente e produtiva da psique humana, pois
o homem, a partir da lógica pulsional que estrutura o Inconsciente, não tem
inteiro domínio de sua racionalidade, do desejo que o anima.
100
REFERÊNCIAS
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2000.
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_______. Conferência XXVII. Transferência. v XVI.
_______. Estudos sobre a histeria. v II.
_______. Projeto para uma psicologia cientifica. v I.
_______. A etiologia da Histeria. v III.
_______. Sobre o mecanismo psíquico dos Fenômenos Histéricos. v III.
_______. Qualidades psíquicas. v XXII.
_______. Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos. v XXII.
_______. A psicanálise e o determinismo dos fatos nos processos
jurídicos. v IX.
_______. Cinco lições de psicanálise. v XI.
_______. Sobre o Narcisismo. v XIV.
_______. O aparelho psíquico e o mundo externo. v XXII.
_______. Linhas de progresso na terapia analítica. v XXII.
_______. Além do princípio de prazer. v XVII.
_______. Análise terminável e interminável. v XXII.
_______. IV Topologia e dinâmica do inconsciente.
_______. Vários Significados de o Inconsciente: O ponto de vista
topográfico. v XIV.
_______. A interpretação de sonhos: parte II. v V.
_______. Um caso de Histeria e três ensaios sobre a sexualidade. v VII.
_______. A sexualidade infantil. v VII.
102
_______. Projeto para uma psicologia Científica. v I.
_______. Conferência XXVI: A Teoria da Libido e o Narcisismo. v XVI.
_______. As duas classes de instintos. v XIX.
_______. Emoções Inconscientes. v XIV.
_______. O mal estar na Civilização. v XXI.
_______. A dinâmica da transferência. v XII.
HANNS, L. A teoria pulsional. Rio de Janeiro: Imago, 1999.
KAUFMANN, P. Dicionário enciclopédico de psicanálise. Rio de Janeiro:
Zahar, 1996.
KNOBLOCK, F. O tempo do traumático. São Paulo, Educ/Fapesp, 1988.
LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.
MASOTTA, Oscar. Dualidade psíquica: o modelo pulsional. Campinas:
Papirus, 1986.
MONZANI. Luiz Roberto. Freud: O movimento de um pensamento.
Campinas: UNICAMP, 1989.
PRATA, M. R. Repetição e pulsão de morte em Freud. in: Trabalho de
dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, UFRJ/IP, 1992.
ROZA, L. A Garcia. Introdução à metapsicologia freudiana. Rio de Janeiro:
Zahar, 1986.
_______. Acaso e repetição em psicanálise. Rio de janeiro: Zahar, 2000.
SAFOUAN, Moustapha. O fracasso do princípio de prazer. Campinas:
Papirus, 1987.
SANTOS, L. G. O Conceito de repetição em Freud. Belo Horizonte:
Escuta/Fumec, 2002.
103
APÊNDICE
CRONOLOGIA DA VIDA DE SIGMUND FREUD
104
CRONOLOGIA DAS OBRAS DE SIGMUND FREUD
PSICOLOGIA DO SUJEITO
PSICOLOGIA SOCIAL
Publicações pré-psicanalíticas e
esboços inéditos
Estudos sobre a histeria
Primeiras publicações
psicanalíticas
A interpretação de sonhos
A psicopatologia da vida
cotidiana
Um caso de histeria e três
ensaios sobre a sexualidade
Os chistes e sua relação com o
inconsciente
Delírios e sonhos na “Gradiva”
de Jensen
Duas histórias clínicas (O
pequeno Hans e o Homem dos
ratos)
Cinco lições de psicanálise
O caso de Schreber e artigos
sobre técnica
Totem
e
tabu
e
outros
trabalhos
A história do movimento
psicanalítico
Conferências introdutórias
sobre psicanálise
Uma neurose infantil
Além do princípio do prazer
O ego e o ID
Um estudo autobiográfico
O futuro de uma ilusão
Novas conferências
introdutórias sobre psicanálise
Moises e o monoteísmo
1886 a 1913 1913 a 1914 1915 a 1939
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