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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
EPIGÊNESE RADICAL
A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS DESENVOLVIMENTAIS
João Francisco Botelho
Florianópolis
2007
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JOÃO FRANCISCO BOTELHO
EPIGÊNESE RADICAL:
A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS DESENVOLVIMENTAIS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Filosofia da Universidade Federal de
Santa Catarina como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Filosofia
Orientador: Prof. Dr. Gustavo Andrés Caponi
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JOÃO FRANCISCO BOTELHO
EPIGÊNESE RADICAL:
A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS DESENVOLVIMENTAIS
_____________________________________
Prof. Dr. Marco Antonio Franciotti
Coordenador do Curso
BANCA EXAMINADORA
___________________________________
Prof. Dr. Gustavo Andrés Caponi (Orientador)
Universidade Federal de Santa Catarina
___________________________________
Prof. Dr. Gonzalo Jaime Cofre Cofre
Universidade Federal de Santa Catarina
___________________________________
Prof. Dr. Maurício de Carvalho Ramos
Universidade de São Paulo
Para Janine
Agradecimentos:
As reflexões contidas neste trabalho iniciaram-se algum tempo, quando eu ainda
estava realizando minha graduação em ciências biológicas. Desde então, Kay Saalfeld tem
sido um interlocutor precioso. Nossas conversas iniciaram muitas das questões que discuto
aqui. Neste período, o contato com colegas que compartilham interesses em comum foi
importante, especialmente Fabiano Vieira, Gustavo Ramos e Jorge Linemburg. Nos últimos
anos, dediquei-me ao estudo da filosofia da ciência. Durante o mestrado, fui aluno dos
professors Alberto Cupani, Luiz Henrique Dutra e Déico Krause. Gostaria de agradecer o
estimulante interesse pela docência, componente importante na formação de futuros
professores. O contato com os colegas Thiagus Matheus Batista e Jerzy Brzozowski no
mestrado em filosofia também foi enriqucedor. Jerzy me ajudou em diversas etapas da
realização do trabalho. Sou grato também aos demais membros do promissor Núcleo Fritz-
Müller Desterro de Estudos em Filosofia e História da Biologia (GFMD): Gabriel Porto,
Felipe Faria e Edgar Zachi.
O trabalho foi realizado sob a orientação de Gustavo Caponi, por quem desenvolvi
amizade e admiração ao longo destes anos. Espero que meu trabalho reflita um pouco do rigor
exemplar de suas argumentações histórico-epistemológicas. Sou grato também aos professors
Jaime Gonzalo Cofre-Cofre e Maurício de Carvalho Ramos pela participação na banca e pelas
contribuições para a melhoria do texto. Agradeço aos autores que gentilmente enviaram suas
publicações: Susan Oyama, Jean-Louis Fisher, Timothy Johnston e Eva Neuman-Held,
Sou grato a minha família e amigos por todo tipo de suporte.
Agradeço à UFSC e à Capes pelo apoio.
The preformation idea has always led to immediate, if temporary successes;
while the epigenetic conception, although laborious, and uncertain, has, I
believe, one great advantage, it keeps open the door to further examination and
re-examination. Scientific advance has most often taken place in this way.
T. H. Morgan
An epigenetic account of development is one that never sidesteps the task of
explaining how a developmental outcome is produced.
S. Oyama, P. E. Griffths e R. D. Gray
Resumo:
Existe na biologia contemporânea um consenso de que a genética proporcionou uma solução
conciliatória para o longo debate entre preformacionistas e epigenesistas. O
desenvolvimento, segundo a genética, é um processo híbrido de preformação e epigênese. A
preformação persiste como informação, como um programa codificado do desenvolvimento.
A epigênese persiste como a tradução do programa genético, como a revelação da
informação pela expressão gênica. O presente trabalho critica esta conciliação genética a
partir de duas análises epistemológicas uma histórica e a outra conceitual e defende
uma posição alternativa a Perspectiva dos Sistemas Desenvolvimentais (PSD). A análise
histórica consiste em mostrar que o conceito de preformação é mais amplo e plástico do que
a simples idéia de preexistência e pré-delineação de um organismo completo. O conceito de
preformação chega ao século XX associado ao conceito de unidades hereditárias
determinantes do desenvolvimento e está historicamente associado à tradição de pesquisa
genética. A análise conceitual consiste em mostrar que a biologia contemporânea desautoriza
o discurso preformacionista contido nas idéias de herança como transmissão genética,
primazia e independência causal dos genes, herança sólida e programa genético. No lugar da
conciliação genética defendo uma perspectiva estritamente epigenética dos processos
celulares e desenvolvimentais como proposta pela PSD.
Palavras-chave: Preformação, epigênese, tradições de pesquisa, genética, biologia do
desenvolvimento, Perspectiva dos Sistemas de Desenvolvimento.
Abstract:
There is a consensus in contemporary biology that genetics provided a conciliatory solution
for the long-standing debate between preformationists and epigenesists. Development,
according to the genetic conciliation, is a hybrid process of preformation and epigenesis.
Preformation persists as information, as a codified program of development. Epigenesis
persists as the translation of the genetic program, as the revelation of genetic information.
The present thesis criticizes this genetic conciliation from two epistemological points of view
a historical one and a conceptual one and supports an alternative position: the
Developmental Systems Perspective (DSP). The historical analysis shows that the
preformation tradition is wider than the simple idea of preexistence and pre-delineation of
form. The preformation tradition arrives at the 20th century associated to the concept of units
of inheritance controlling development and it is historically associated with the research
tradition of genetics. The conceptual analysis consists of showing that contemporary biology
discourages the preformationists assumptions enclosed in the ideas of heredity as genetic
transmission, causal priority of the genes, exclusively genetic inheritance and genetic
program. In the place of the genetic conciliation, we defend a strict epigenetic view of cellular
and developmental processes, coherent with the DSP.
Keywords: preformation, epigenesis, research traditions, genetics, developmental biolology,
Developmental Systems Perspective
Sumário:
....................................................................— Introdução — A conciliação genética 1
...........................................................................................Conflito de tradições 6
.....................................................................Preformação: além do homúnculo 13
.............................................................Epigênese: além do programa genético 15
.............................................................................— 1 — Preformação e epigênese 19
...........................................................................................1.1 O antigo debate 21
......................................................................1.2 Preexistência e mecanicismo 23
..............................................................................1.3 A epigênese teleológica 33
...........................................................................— 2 — Determinação e regulação 37
....................................................2.1 Da morfogênese à diferenciação celular 39
...................................................................................2.1.1 Hereditariedade 39
.....................................................................................2.1.2 Teoria Celular 41
............................................................................2.1.3 Material hereditário 42
..........................................................................2.2 Embriologia experimental 48
...............................................................2.2.1 Preformação e determinação 51
.........................................................................2.2.2 Epigênese e regulação 54
..........................................................................................2.3. A teoria do gene 57
....................................................2.3.2 Hereditariedade e desenvolvimento 65
......................................................................2.4 Preformação e teoria do gene 72
........................................................................— 3 — Genética e desenvolvimento 78
...............................................................................3.1 Preformação molecular 79
............................................................................3.1.1 Informação genética 80
..............................................................................3.1.2 Programa genético 82
...................................................................................3.2 Epigênese molecular 88
............................................................................3.2.1 A epigênese do gene 89
........................................................................3.2.2 Regulação molecular 100
.......................................................................................— 4 — A nova epigênese 110
..........................................4.1 Perspectiva dos Sistemas Desenvolvimentais 111
..............................................................................................4.1.1 Origens 112
......................................................................................4.1.2 Pressupostos 124
.............................................4.1.2.1 A hereditariedade como re-produção 125
...............................................4.1.2.2 Paridade e interdependência causal 128
.........................................................................4.1.2.3 Herança expandida 134
..................................................................4.1.2.4 Ciclos de contingências 139
..............................................................— Conclusão — Uma aposta epigenética 145
...................................................................................................— Referências — 155
Lista de Figuras
FIGURA 1. CONFLITO DE TRADIÇÕES DE PESQUISA.................................................................... 17
FIGURA 2. HOMÚNCULO............................................................................................................ 26
FIGURA 3 A GENEALOGIA DA NOÇÃO CONTEMPORÂNEA DE GENÓTIPO E FENÓTIPO................... 72
FIGURA 4. O ORGANISMO DESMONTADO.................................................................................... 75
FIGURA 5. OPERON-LAC............................................................................................................ 83
FIGURA 6. PREFORMAÇÃO MOLECULAR.................................................................................... 89
FIGURA 7. O GENE EM CONTEXTO.............................................................................................. 97
FIGURA 8. EPIGÊNESE MOLECULAR........................................................................................... 99
FIGURA 9. INDUÇÃO NEURAL................................................................................................... 105
FIGURA 10. VISÃO CELULAR DO GENE..................................................................................... 109
FIGURA 11. NORMAS DE REAÇÃO............................................................................................ 123
FIGURA 12: CICLOS DE CONTINGÊNCIAS.............................................................................. 140
— Introdução —
A conciliação genética
O quinto capítulo do livro O acaso e a necessidade (1970) de Jacques Monod chama-
se Ontogenia molecular. O capítulo discute as conseqüências da biologia molecular para a
compreensão do desenvolvimento dos seres vivos. Nos anos 50, a biologia molecular havia
elucidado a estrutura do DNA e a estrutura de proteínas como a mioglobina e a hemoglobina.
As imagens produzidas por técnicas de cristalografia e raio-X mostraram que as moléculas de
DNA que compõem os cromossomos são duas fitas de nucleotídeos complementares,
organizadas em forma de uma dupla hélice. A estrutura primária das proteínas se revelou uma
seqüência linear de peptídeos. Nos anos seguintes, sob a influência do surgimento em paralelo
das ciências da computação (Morange, 1998), a relação entre as estruturas das proteínas e a
estrutura dos ácidos nucléicos passou a ser descrita em termos de codificação, cópia,
transcrição e tradução da informação (Olby, 1990b). O DNA foi interpretado como um molde,
que armazenava na seqüência linear de nucleotídeos a informação específica para cada
seqüência linear de peptídeos que constituíam as diferentes proteínas.
A associação entre mecanismos genéticos, investigação estrutural e as metáforas
informacionais possibilitaram a compreensão do que eram os genes e de como eles atuavam
um assunto pendente desde o surgimento da genética. Antes da biologia molecular, não se
entendia de que maneira os genes produziam seus efeitos fenotípicos. Sabia-se apenas que os
genes eram entidades nos cromossomos, cuja atividade, de alguma forma, produzia variações
hereditárias que seguiam padrões mendelianos de segregação. A princípio, nada era conhecido
sobre como eles causavam estes efeitos. A genética era uma ciência quase alheia à fisiologia e
à bioquímica. A investigação estrutural dos ácidos nucléicos e proteínas a característica
1
mais proeminente da biologia molecular permitiu a definição estrutural e a análise
funcional dos genes como seqüências de DNA que codificavam proteínas.
No entanto, a biologia molecular ainda estava distante de proporcionar a compreensão
dos fenômenos ontogenéticos. Embora a elucidação da estrutura molecular esclarecesse muito
da função gênica, restavam ainda grandes lacunas entre a síntese de proteínas e o processo
coordenado de divisão e diferenciação celular. Uma das principais questões era o que Richard
Burian (2005a) chamou de “paradoxo de Lillie”: como os mesmos genes em todas as células
poderiam ser responsáveis pela diferenciação celular. Nas palavras de Lillie:
É [...] quase universalmente aceito hoje pela doutrina genética que cada célula recebe todo o
complexo de genes. Pareceria, portanto, auto-contraditório tentar explicar a segregação [i.e.
diferenciação] embrionária pelo comportamento dos genes que são ex. hip. os mesmos em
todas as células. (Lillie, 1927, p.365)
A dificuldade em explicar como o desenvolvimento era orquestrado pelos mesmos
genes em todas as células não era apenas um ponto fraco da genética que embriologistas
como Lillie faziam questão de lembrar para defender a abordagem embriológica. Os próprios
geneticistas tinham consciência de que a explicação de como os genes atuavam durante o
desenvolvimento era uma grande lacuna a ser preenchida no futuro. Alguns deles, como T. H.
Morgan, E. E. Just e R. Goldschmidt, especulavam uma solução: a ativação diferencial dos
genes a partir de variações citoplasmáticas (Gilbert, 1996). Mas não havia dado, método ou
experimento que indicasse como isto poderia acontecer.
A ontogenia no nível molecular discutida por Monod em O acaso e a necessidade se
baseou no que foi considerado o primeiro experimento adequado para solucionar o paradoxo
da diferenciação celular: o modelo do operon. A união, no Instituto Pasteur em Paris, dos
estudos de Monod sobre adaptação enzimática e os de François Jacob e sua equipe sobre
bacteriófagos, permitiu construir um modelo compreensível de como um sinal podia controlar
a atividade dos genes. A partir de um elegante experimento, eles chegaram a um modelo
capaz de explicar a regulação da produção de uma enzima em Escherichia coli. A bactéria E.
coli, normalmente, não sintetiza a enzima !-galactosidase, responsável pela degradação da
lactose. Mas, quando em um meio de cultura contendo a lactose como o único carboidrato, a
bactéria consegue sintetizar a enzima e degradá-la, um fenômeno conhecido como indução
enzimática. Monod, Jacob e seus colaboradores demonstraram que a lactose atuava como um
indutor, ou melhor, um desinibidor da transcrição de !-galactosidase. Ela desativava uma
Introdução
– 2 –
proteína (Z) que, na ausência da molécula de lactose, se ligava ao DNA e reprimia a síntese de
!-galactosidase (e outras duas proteínas relacionadas).
1
O modelo propunha, portanto, que havia no genoma genes para proteínas estruturais,
como a enzima !-galactosidase, e genes para proteínas reguladoras, como a proteína Z,
repressora da produção de !-galactosidase. As proteínas reguladoras inibiam a síntese de
proteínas estruturais ligando-se diretamente ao DNA e impedindo a transcrição de RNA
mensageiro. Eis a imagem da expressão gênica que emergiu do modelo do operon: genes
reguladores controlavam a expressão de genes estruturais no nível transcricional e as
proteínas sintetizadas a partir dos genes estruturais assumiam espontaneamente sua estrutura
funcional.
O modelo do operon foi seguido pela proposta quase simultânea de Jacob e Monod
(1961) e Ernst Mayr (1961) da metáfora do programa genético. “[A] descoberta de genes
reguladores e operadores […] revela que o genoma contém não apenas uma série de mapas,
mas um programa coordenado de síntese de proteínas e os meios de controlar sua
execução” (Jacob e Monod, 1961, p.354). A regulação gênica, perseguida pelos primeiros
geneticistas no citoplasma, agora também estava localizada nos próprios genes. Os genes
estruturais eram regulados por genes reguladores, que, de acordo com sinais celulares,
ligavam e desligavam os genes estruturais (Keller, 2002; Sarkar, 2006). Todo controle e
agência do desenvolvimento estavam concentrados nos genes.
Monod e Jacob enxergaram na extrapolação do modelo do operon e na metáfora do
programa genético a solução para o paradoxo de Lillie: “[a] diferenciação bioquímica
(reversível ou não) de células carregando um genoma idêntico não constitui um ‘paradoxo’
como pareceu representar por muitos anos para embriologistas e geneticistas (Monod e Jacob,
1961, p.397). O desenvolvimento era uma questão de regulação da expressão gênica pelos
próprios genes. A metáfora obteve enorme sucesso e representa uma das maiores conquistas
da história da biologia molecular. Embora a regulação genética tenha se mostrado muito mais
complexa em eucariontes, o conceito de genes reguladores e de regulação da expressão gênica
tornou-se um dos conceitos centrais da genética do desenvolvimento. O modelo do operon e o
programa genético, finalmente, haviam oferecido um mecanismo plausível para explicar
como ocorria a diferenciação celular que caracteriza o processo de desenvolvimento.
Introdução
– 3 –
1
Para uma descrição mais detalhada do modelo do operon e sua história, ver Gros (1991, cap. 4), Judson (1979, cap.
7), e Morange (1998).
Após discorrer sobre a regulação da expressão gênica pelo modelo do operon e
também sobre outras duas grandes contribuições suas para a biologia molecular a
regulação alostérica e o RNA mensageiro –, Monod chegou à seguinte conclusão:
Esta análise [...] reduz a uma disputa verbal, destituída de todo o interesse, a antiga querela
entre preformacionistas e epigenesistas. A estrutura pronta, como tal, não está preformada em
lugar algum. Mas o plano para a estrutura está presente nos seus próprios constituintes. Ela
pode, então, se realizar de modo autônomo e espontâneo, sem intervenção exterior, sem
acréscimo de informação nova. A informação está presente, mas inexpressa, nos constituintes.
A construção epigenética de uma estrutura não é uma criação, é uma revelação. (Monod,
1970, p.117, itálicos no original)
As palavras de Monod refletem um entendimento que se tornou muito comum na
biologia contemporânea: a disputa entre preformação e epigênese, frente à biologia molecular,
não faz mais sentido. Se perguntado se o desenvolvimento pode ser descrito como um
processo de preformação ou epigênese, um biólogo moderno, provavelmente, não hesitaria
em dizer: “ambos ou nenhum dos dois — a transmissão dos genes é responsável pela
transmissão da informação genética e a expressão dos genes é responsável pelo
desenvolvimento”. Ou, de modo mais elaborado: “Preformação é representada pelo DNA, não
pela presença de um diminuto homúnculo no esperma ou zigoto; epigênese é representada
pelos ciclos sucessivos de ativação gênica específica” (Cerdá-Olmedo, 1998, p. 236). Ou
ainda, na expressão sintética e precisa do casal Medawar (1988): “A genética propõe, a
epigenética dispõe”.
Alguns dos mais influentes historiadores e filósofos da biologia, escrevendo após o
surgimento da biologia molecular, expressaram a opinião semelhante de que o programa
genético fornece uma solução entre a preformação e a epigênese (Moore, 1963; Smith, 1977;
Mayr, 1997; Pinto-Correia, 1999; Jacob, 2001; Gould, 2004). Stephen Jay Gould (1977) é
particularmente claro ao expressar a idéia de que a genética forneceu uma terceira via, um
caminho intermediário entre a preformação e a epigênese:
A solução de grandes disputas, geralmente, está próxima ao meio-termo [golden-mean] e este
debate não é exceção. A genética moderna está a meio caminho das formulações extremas do
século XVIII. Os preformacionistas estavam certos em afirmar que certa preexistência é o
único refúgio do misticismo. Mas, estavam enganados em postular estruturas preformadas,
pois nós descobrimos instruções codificadas. Os epigenesistas, por outro lado, estavam
corretos em afirmar que a aparência visual do desenvolvimento não é uma mera ilusão.
(Gould, 1977, p.18)
Introdução
– 4 –
O objetivo deste trabalho é mostrar que este “consenso moderno” (Robert, 2004a) de que
houve uma conciliação do longo debate entre preformação e epigênese a partir das noções de
plano, informação e programa genético é, historicamente e conceitualmente, falacioso.
Defenderei que a genética, como tradição de pesquisa, está ligada à idéia de preformação e
que a imagem moderna do desenvolvimento por ela proporcionada continua sendo
preformacionista.
O argumento, em parte, se apoiará em um conjunto de discussões que adquiriram
destaque nos últimos anos. A genética e a biologia do desenvolvimento entraram na pauta da
filosofia da biologia a partir da década de 80, impulsionadas pelos grandes e rápidos avanços
empíricos nestas áreas (Griffiths, 2002a). Desde então, diversos autores vem discutindo temas
como o determinismo genético, o conceito de gene, informação e programa genético. A
maioria tem assumido uma postura crítica em relação ao gene-centrismo implicado por estas
idéias (e.g. Nijhout, 1990; Sarkar, 1996; Keller, 2002; Lewontin, 2002; Morange, 2002; Moss,
2003; Burian, 2005b). Uma das mais importantes (e também mais radicais) críticas levantadas
contra o gene-centrismo é a Perspectiva dos Sistemas de Desenvolvimento (PSD) (Oyama,
1985; Griffiths e Gray, 1994; Griffiths e Knight, 1998; Oyama, 2000a; Oyama, Griffiths et al.,
2001a). Não pretendo apresentar uma discussão completa da PSD. O objetivo é explorar um
ponto que consideramos ser o ponto central da sua proposta: a defesa de uma abordagem
radicalmente epigenética do desenvolvimento. Aceitarei a sugestão de Godfrey-Smith (2001)
de que é “útil ver a PSD, entre outras coisas, como uma forma muito forte de anti-
preformacionismo” (p.290) ou como uma espécie de “nova epigênese” (Weber e Depew,
2001).
O argumento possui duas partes. Nos dois primeiros capítulos, serão investigados os
meandros históricos e epistemológicos que levaram até a conciliação genética. A intenção
com isso não é simplesmente fornecer bases históricas para o debate. O objetivo é mostrar que
a conciliação genética apóia-se em uma historiografia que busca afastar a genética, ou, mais
especificamente, a teoria morganiana do gene, da tradição preformacionista. Nos capítulos
terceiro e quarto, serão explorados os desdobramentos da genética e da biologia molecular
pós-conciliação. Argumentarei porque a biologia contemporânea desautoriza o
preformacionismo genético e apresentarei a PSD como uma estrutura teórica alternativa para
lidar com as causas do desenvolvimento.
Esquematicamente, o meu objetivo é mostrar que:
Introdução
– 5 –
(i) a conciliação genética se apóia em uma leitura histórica enviesada da disputa entre
preformação e epigênese e que é mais apropriado associar a genética à tradição
preformacionista;
(ii) o conhecimento atual da genética e da biologia do desenvolvimento permite uma
interpretação exclusivamente epigenética do desenvolvimento, como defendido pela
Perspectiva dos Sistemas de Desenvolvimento.
Conflito de tradições
Antes de iniciar a busca por estes dois objetivos, é necessário esclarecer o que entendo
por preformação e epigênese. Da maneira como foram expostas acima nas citações de Monod
e Gould, preformação e epigênese são consideradas, implicitamente, teorias científicas. Elas
são apresentadas como hipóteses ou modelos para explicar como os seres vivos são gerados.
A teoria da preformação propunha que os seres vivos preexistiam completamente delineados
no ovo e apenas cresciam mecanicamente durante o desenvolvimento. A teoria da epigênese,
por outro lado, propunha que os seres vivos eram recriados a cada geração, em geral,
orientados por forças vitais. Esta versão mais conhecida do debate a caricatura homúnculo
vs vitalismo coloca em conflito duas teorias. Proponho uma abordagem diferente. A
preformação e a epigênese não serão consideras como teorias propostas nos séculos XVII e
XVIII para explicar a geração orgânica. Elas serão interpretadas como duas tradições de
pesquisas dentro das quais são elaboradas diferentes teorias para explicar como os seres vivos
são gerados. Preformação e epigênese serão consideradas duas perspectivas gerais que
fornecem diferentes ontologias, metodologias e princípios para a investigação de como ocorre
o processo de desenvolvimento.
Para esclarecer esta interpretação, farei algumas considerações sobre o status das
estruturas teóricas em ciência. Nas primeiras décadas do século XX, a filosofia se
caracterizou, sobretudo, por uma abordagem lógica à ciência. O positivismo lógico, o
empirismo lógico e os modelos nomológicos-dedutivos das explicações científicas, a despeito
das suas diferenças, compartilhavam o entendimento de que o papel da filosofia da ciência era
analisar a justificação lógica das teorias científicas. Não havia necessidade de incorporar a
história da ciência à análise filosófica. O objetivo da filosofia da ciência era analisar o
contexto de justificação das teorias. A investigação do contexto de descoberta cabia à história
Introdução
– 6 –
e à sociologia da ciência (Giere, 1988; Cupani, 2000). Dentro deste contexto, as teorias
científicas foram compreendidas como conjuntos de proposições logicamente relacionadas
entre si e entre as evidências observacionais.
Na década de 1960, ocorreu o que ficou conhecido como a virada historicista da
filosofia da ciência. A nova filosofia da ciência que surgiu neste período rompeu com o ideal
de reconstrução lógica da ciência e forneceu uma alternativa ao combalido projeto
empirista. A obra mais conhecida deste período é o livro de Thomas Kuhn, A estrutura das
revoluções científicas, publicado em 1962. Em consonância com as idéias de autores como
Hanson, Toulmin e Feyerabend, Kuhn propôs uma teoria da ciência estreitamente ligada à
análise da história da ciência.
Um dos aspectos que se tornou consenso na nova filosofia da ciência é que o
desenvolvimento da ciência não possuiu um caráter cumulativo. A empreitada científica não é
um processo de acréscimo constante de conhecimento. Este é provavelmente o ponto mais
conhecido da tese de Kuhn. Contrariando os preceitos empiristas, Kuhn propôs que o curso da
ciência é marcado por longos períodos de ciência normal intercalados por curtos períodos de
ciência extraordinária. Os períodos de ciência normal caracterizam a maior parte da
investigação científica e se desenrolam de maneira semelhante à visão cumulativa defendida
pela abordagem tradicional. Durante os períodos de ciência normal, os cientistas trabalham
orientados por um mesmo paradigma. No entanto, o acúmulo de questões não resolvidas (ou
anomalias, para usar o vocabulário kuhniano) leva a ciência à períodos de crise e a
subseqüente substituição do paradigma vigente. Esta mudança de paradigma é o que Kuhn
chama de uma revolução científica a ruptura e a substituição da maneira de compreender e
questionar o mundo. Por exemplo, em um dos casos preferidos de Kuhn, o paradigma
ptolemaico que via a Terra como o centro do universo foi substituído pelo paradigma
heliocêntrico de Copérnico, alterando não apenas os modelos propostos por Ptolomeu, mas os
princípios, métodos, metáforas e conceitos que estruturavam estes modelos.
No posfácio da segunda edição de A estrutura das revoluções científicas, Kuhn
(1997), explicitou dois significados do termo paradigma: (i) o paradigma como exemplar, isto
é, como modelo de investigação, e (ii) o paradigma como matriz disciplinar, isto é, como
“toda a constelação de crenças, valores, técnicas, etc... partilhados pelos membros de uma
determinada comunidade” (ibid, p.218). O conceito de paradigma (sensu matriz disciplinar)
representa o ponto da proposta de Kuhn que gostaria de destacar para discussão: a
Introdução
– 7 –
necessidade de se levar em conta estruturas conceituais de larga escala e de longa duração
para compreender o desenvolvimento da ciência. Na abordagem tradicional da filosofia da
ciência, as unidades de análise eram as teorias (geralmente entendidas como estruturas
lógicas). Na abordagem kuhniana, a ciência passou a ser abordada como um processo que
ocorre em ao menos dois níveis: as teorias em si e as macro-teorias (paradigmas) dentro das
quais as teorias são construídas (Godfrey-Smith, 2003).
2
A metodologia dos programas de pesquisa, proposta pelo húngaro Imre Lakatos
(1979), representa outra abordagem macro-teórica à ciência. Escrevendo sob o impacto das
idéias de Kuhn, a proposta de Lakatos buscou conciliar o falseacionismo popperiano à
algumas questões contrárias levantadas pela tese kuhniana. Segundo o falseacionismo, a
ciência não opera a partir de generalizações indutivas, mas por conjecturas das quais são
tiradas conseqüências observacionais. O objetivo do cientista é “arquitetar conjecturas que
tenham maior conteúdo empírico do que as predecessoras” (Popper apud Lakatos, 1979, p.
163). Uma hipótese primeiro é formulada e depois posta à prova empiricamente. Se a
observação mostrar que a hipótese conjecturada é empiricamente falsa, ela está refutada e
uma outra tentativa deve ser feita. Se a nova conjectura resistir aos novos testes, ela é
corroborada (mas nunca verificada ou confirmada). A teoria persiste enquanto resiste às
tentativas de falseá-la.
A proposta de Lakatos “sofisticou” o falseacionismo popperiano, dando mais robustez
às conjecturas. A partir de argumentos históricos e conceituais, Lakatos defendeu que a
unidade de análise da ciência não são as teorias em si, mas programas de pesquisas. Segundo
Lakatos (1970), programas de pesquisa possuem dois elementos principais: (i) um núcleo
duro ou heurística negativa formado por suposições básicas que não devem ser refutadas. Por
exemplo, as leis do movimento de Newton e a lei da gravidade formam o núcleo duro do
programa newtoniano de pesquisa; e (ii) um cinturão protetor ou heurística positiva formado
por hipóteses e suposições auxiliares que podem ser alteradas. Deste modo, o núcleo duro
jamais é posto à prova. Ele é o esqueleto rígido que deve ser preservado sob um conjunto de
teorias auxiliares maleáveis. O avanço do programa de pesquisa ocorrerá nesta periferia
Introdução
– 8 –
2
Além dos paradigmas de Kuhn (1962), foram propostas outras conceitualizações macro-teóricas, como, por
exemplo, os programas de pesquisa de Lakatos, as tradições de pesquisa de Laudan, os ideais de ordem natural de Toulmin
(1963), as teorias globais de Feyerabend (1989) e as redes de crenças de Quine (1978).
auxiliar, que se transformará orientada pelo núcleo duro de modo a fornecer explicações cada
vez mais corroboradas.
A consequência mais importante da proposta de Lakatos para esta discussão é que um
programa de pesquisa é uma entidade histórica que se transforma ao longo do tempo
(Godfrey-Smith, 2003). Ao contrário dos paradigmas kuhnianos que são estáticos (em parte
porque não são criticados, pois nunca são explícitos), os programas de pesquisa possuem uma
linhagem de teorias auxiliares que mudam para se adequarem aos dados empíricos. As
transformações das teorias auxiliares podem ser progressivas ou degenerescentes. Elas serão
progressivas se elas expandirem sua aplicação e aumentarem sua precisão em relação aos
casos abordados. Por outro lado, o programa será degenerescente se suas transformações
não expandirem sua abrangência para novos casos.
Outro exemplo de abordagem macro-teórica à ciência são as tradições de pesquisa
propostas por Larry Laudan (1977; 1984). Uma tradição de pesquisa é definida como “um
conjunto de pressupostos gerais sobre entidades e processos em um domínio de estudo e sobre
os métodos apropriados a serem usados para investigar os problemas e construir as teorias
naquele domínio” (1977, p. 81). Para identificar uma tradição de pesquisa, Laudan enumera
características comuns a todas elas:
(1) Cada tradição de pesquisa possui um número específico de teorias que as exemplifica e
parcialmente as constitui; algumas destas teoria serão contemporâneas e outras se sucederão
no tempo.
(2) Cada tradição de pesquisa exibe certos compromissos metafísicos e metodológicos que, em
conjunto, individualizam a tradição de pesquisa e a distingue de outras;
(3) Cada tradição de pesquisa (ao contrário de teorias específicas) atravessa diversas
formulações diferentes (por vezes mutuamente contraditórias) e geralmente possui uma longa
história que se estende por longos períodos de tempo (em contraste com teorias que têm
frequentemente curta duração) (Laudan, 1977 , p.78-79)
Um ponto de discordância entre as formulações de Kuhn, por um lado, e Lakatos e
Laudan, do outro, é a coexistência ou não de macro-teorias rivais. Segundo a tese inicial de
Kuhn, o desenvolvimento da ciência é caracterizado por grandes períodos de hegemonia de
uma matriz disciplinar, alternados por curtos períodos de crise, onde propostas rivais
coexistiam e competem até o estabelecimento de uma nova matriz disciplinar hegemônica.
Portanto, via de regra, uma matriz disciplinar não coexiste com suas rivais. Uma ciência
madura possui um único paradigma. De fato, uma revolução científica é descrita as vezes
Introdução
– 9 –
como uma mudança de visão de mundo ou de Gestalt. As teses de Lakatos e Laudan
contrariam este ponto da tese de Kuhn. Para eles, a coexistência de macro-teorias é a regra,
não a exceção. Sempre mais de um programa ou tradição de pesquisa convivem e a escolha de
um deles é uma questão comparativa.
Aceitar a existência simultânea de programas ou tradições de pesquisa tem como
conseqüência a aceitação de dois níveis de transformação das macro-teorias: (i) dentro das
macro-teorias e (ii) entre as macro-teorias (Godfrey-Smith, 2003). Para Lakatos, como dito
antes, a dinâmica interna dos programas de pesquisa pode ser progressiva ou degenerescente.
Quanto à dinâmica entre programas de pesquisa alternativos, isto é, qual programa deve ser
preferido entre os programas coexistentes, Lakatos é um tanto ambíguo. O esperado seria
escolher o programa mais progressivo e abandonar os programas degenerescentes. Mas
Lakatos afirma que é necessário proteger um programa degenerescente ou estagnado, pois ele
pode recuperar-se e voltar a progredir.
Esta ausência de regras claras para escolher entre macro-teorias é um dos pontos da
tese de Lakatos criticado por Laudan. Retomando a idéia geral de Kuhn de que a ciência é
uma atividade que envolve a solução de problemas, Laudan defende que uma tradição de
pesquisa deve ser avaliada segundo a sua capacidade em resolvê-los. Laudan reconhece dois
tipos de problemas: empíricos e conceituais. Os problemas empíricos são dados experimentais
sem respostas ou contrários às teorias de uma determinada tradição de pesquisa. Se uma
tradição de pesquisa rival é capaz de resolver estes problemas empíricos, eles passam a
representar anomalias.
3
Os problemas conceituais, por outro lado, são inconsistências ou
incompatibilidades internas ou externas às teorias de uma determinada tradição de pesquisa.
A escolha entre tradições de pesquisa deverá ser realizada em virtude das suas taxas de
solução de problemas, principalmente conceituais.Uma tradição de pesquisa bem sucedida
é aquela que, por meio das suas teorias constituintes, leva à solução adequada de um número
crescente de problemas conceituais e empíricos” (Laudan, 1977, p.82, itálicos no original).
A imagem geral do desenvolvimento da ciência que Laudan desenha, inspirado pelas
propostas originais de Kuhn e Lakatos, ilumina consideravelmente a interpretação da disputa
entre preformação e epigênese. As tradições de pesquisa são entidades teóricas que coexistem
e competem por hegemonia. A relação flexível entre uma tradição de pesquisa e as teorias que
Introdução
– 10 –
3
Repare que esta noção de anomalia é distinta da noção de Kuhn, para quem as anomalias não são definidas em
referência a paradigmas rivais.
ela contém permite que as primeiras persistam por longos períodos, mesmo que suas teorias
tenham se transformado profundamente. A identidade de uma tradição de pesquisa é mantida
ao longo da sua evolução pela preservação de certos compromissos centrais. Outro ponto
importante enfatizado por Laudan é a possibilidade de retomada de uma tradição de pesquisa
abandonada. “Quando rejeitamos uma tradição de pesquisa estamos meramente decidindo não
utilizá-la naquele momento, pois uma alternativa que provou ser uma melhor
solucionadora de problemas” (Laudan, 1977, p. 83). Nada impede que uma tradição de
pesquisa seja retomada, seus pressupostos orientem novas teorias e novos pressupostos sejam
incorporados à sua estrutura.
A tese de Laudan, assim como as teses de Kuhn e Lakatos, se apoiaram, sobretudo, na
história da física. No contexto da biologia, o darwinismo tem sido o principal exemplo de
macro-teoria discutido em filosofia da ciência. Além de teorias específicas, o darwinismo
forneceu uma nova visão dos fenômenos biológicos, rompendo, em muitos aspectos, com a
biologia pré-darwiniana (Ruse, 1999; Bowler, 2005). Mesmo Popper reconheceu a
necessidade de ir além de conjecturas e refutações para compreender o progresso da biologia
evolucionária, afirmando “que o darwinismo não é um programa de pesquisa testável, mas um
programa metafísico de pesquisa uma estrutura possível para teorias testáveis” (Popper,
1974, p. 134).
No campo da teoria da ciência propriamente dita, as propostas de Griesemer (2000b;
2002), Wimsatt (1972), Kaufmann (1998) e Winther (2006) fazem uma importante
contribuição. A partir da análise da história e da estrutura das ciências biológicas, eles
defenderam que as explicações em biologia são guiadas por perspectivas teóricas. A definição
de perspectiva teórica, em geral, se assemelha à definição de tradição de pesquisa. Griesemer,
por exemplo, diz que “perspectivas teóricas coordenam modelos e fenômeno através de
compromissos que os pesquisadores assumem ao construir modelos em termos de categorias
particulares [...] e ao julgar a adequação entre fenômeno e modelo [...]” (2000, p. 97).
4
No
entanto, um ponto fundamental para o contexto da biologia é acrescentado pela noção de
perspectiva teórica. Em biologia, é necessário dividir os sistemas vivos em partes, destrinchar
ontologicamente o organismo para poder investigá-lo. No entanto, os sistemas biológicos,
Introdução
– 11 –
4
Griesemer descreve o weismannismo como a perspectiva teórica hegemônica no estudo da hereditariedade, do
desenvolvimento e da evolução durante biologia século XX. Em muitos aspectos, o weismannismo como definido
por Griesemer coincide com o que defino como preformacionismo no século XX.
enquanto sistema hierárquicos, dinâmicos e funcionais, podem ser divididos de muitas
maneiras diferentes. A anatomia comparada, por exemplo, divide o sistema vivo em entidades
estruturais no nível de órgãos e tecidos. Por outro lado, a embriologia, embora também focada
nos órgãos e tecidos, divide o sistema em processos e não em unidades estruturais, pois seu
interesse está voltado para a constituição do sistema (organogênese). Portanto, uma
perspectiva teórica também define as partes e o nível de sua análise. Ela “implica ou sugere
os critérios para identificação e individualização das partes, gerando assim uma decomposição
do sistema em partes” (Wimsatt, 1972 , p.70).
5
A partir desta discussão sobre o papel e a natureza de macro-teorias no
desenvolvimento da ciência, é possível apreciar de maneira mais rigorosa a proposta de que a
epigênese e a preformação são perspectivas teóricas ou tradições de pesquisa. Entendo com
isso que elas são arcabouços teóricos que possuem uma dinâmica histórica interna e uma
dinâmica histórica entre elas. Internamente, epigênese e preformação transformaram seus
pressupostos ontológicos e metodológicos e, principalmente, transformaram as teorias que as
constituíam. Externamente, elas se alternaram enquanto tradição de pesquisa hegemônica para
a teorização de fenômenos em um determinado nível dos sistemas vivos a geração da
forma.
Portando, repetindo a interpretação proposta neste trabalho, preformação e epigênese
são tradições de pesquisa que definem diretrizes ontológicas e metodológicas para a
investigação da geração dos seres vivos. Assim como o atomismo, o mecanicismo ou o
vitalismo, a preformação e a epigênese são macro-teorias de longa duração, linhagens de
perspectivas teóricas concatenadas histórica e conceitualmente. A falácia da conciliação
genética apóia-se, em parte, em não reconhecer o caráter ontológico e macro-teórico do
conflito entre preformação e epigênese.
6
Introdução
– 12 –
5
A antiguidade desta decomposição ontológica dos seres vivos revela-se na obra de Aristóteles. Em A reprodução dos
animais, Aristóteles assume uma perspectiva embriológica, enquanto que em As partes dos animais ele assume uma
perspectiva anatômica.
6
É conveniente salientar que a abordagem será internalista, isto é, estarei preocupado com a racionalidade interna
das tradições de pesquisas. Uma abordagem externalista, interessada no contexto social em que as tradições de
pesquisas se desenrolaram, também seria relevante. De fato, valores externos aos valores cognitivos da ciência,
provavelmente, nunca foram tão fortes quanto nas ciências biológicas contemporâneas. Contudo, limitarei-me a
discutir fatores internos. Para uma abordagem de ambos os aspectos ver Leite (2007).
Preformação: além do homúnculo
Retorno às citações de Monod e Gould transcritas no início desta introdução. Elas
opõem a genética molecular a uma das mais famosas polêmicas da história da ciência a
disputa entre preformacionistas e epigenesistas no século XVIII. Preformacionistas, como,
por exemplo, Leibniz, Haller e Bonnet, argumentavam que nos ovos ou espermatozóides
preexistiam animais minúsculos e a aparente geração dos seres vivos era, na verdade, apenas
o crescimento de seres preformados. Por outro lado, epigenesistas, como, por exemplo,
Harvey e Wolff, defendiam que os seres eram produzidos de novo e gradualmente a cada
geração. A disputa, embora não se restrinja ao período moderno, se tornou particularmente
importante com o surgimento do mecanicismo, pois as teorias preformacionistas pareciam a
única explicação possível do desenvolvimento por causas mecânicas.
No entanto, é adequado contrapor os resultados da genética molecular ao debate do
século XVIII? O objetivo do primeiro capítulo é mostrar que não. A disputa entre
preformação e epigênese não se reduz à polêmica do século XVIII. Principalmente, não se
reduz à disputa homúnculo vs vitalismo.
7
A história da preformação e da epigênese precede e
ultrapassa o século XVIII. De Aristóteles a Monod, o problema da geração orgânica esteve no
centro das discussões filosóficas e científicas. Comparar o programa genético à disputa do
século XVIII é inadequado. É erguer um falso problema, um homem de palha a ser derrotado
com um simples golpe.
Se o programa genético, ao invés de comparado ao homúnculo de Hartsoecker ou ao
vitalismo de Joseph Needham, for comparado, por exemplo, ao preformacionismo de
Weismann e Roux, a conclusão de que o século XX obteve uma conciliação da disputa através
da genética torna-se muito menos óbvia. No fim do século XIX e início do século XX, a
disputa entre preformacionistas e epigenesistas obteve um novo fôlego (Weismann, 1893;
Hertwig, 1896; Wilson, 1900; Maienschein, 1986; Fischer, 2002). De um lado, as teorias neo-
preformacionistas de Weismann e Roux defendiam que o desenvolvimento procedia como um
mosaico, onde o destino de cada célula do embrião estava internamente determinado. O
desenvolvimento transcorria independentemente do contexto, auto-determinado na estrutura
da primeira célula. Por outro lado, as teorias neo-epigenéticas de Hertwig e Driesch
Introdução
– 13 –
7
Gould (1999) claramente tinha consciência do fato.
encaravam o desenvolvimento como um diálogo entre as células e seu contexto ambiental e
embrionário. O desenvolvimento procedia em constante regulação.
No segundo capítulo, mostrarei como o debate entre preformação e epigênese, no
contexto da embriologia experimental, contribuiu para o surgimento da genética. Nas
primeiras décadas do século XX, a teoria do gene, formulada pelo ex-epigenetisista T. H.
Morgan, se apoiou na interpretação neo-preformacionista do desenvolvimento. A geração da
forma foi tratada como a manifestação de partículas hereditárias localizadas nos cromossomos
e capazes de determinar as características do organismo.
Ao estudar como as características dos organismos dependiam da transmissão dos
genes, deixando de lado como eles exerciam seus efeitos, a teoria do gene separou e redefiniu
a hereditariedade e o desenvolvimento. A hereditariedade, até então, sempre fora um
problema desenvolvimental. Explicar como uma característica era herdada significava
explicar como o descendente desenvolvia-a novamente. De fato, todos os fenômenos
geracionais desenvolvimento, hereditariedade, regeneração, reprodução, crescimento, etc.
eram tratados de maneira unificada. As teorias propostas para explicar como um ovo se
desenvolvia em uma galinha deviam dar conta também de explicar como o filho se parecia
com o pai (ou às vezes com o avô) e também como uma estrela-do-mar era capaz de regenerar
seu braço (e um homem não). A bifurcação entre a embriologia e a genética, tão óbvia para o
biólogo contemporâneo, ocorreu quando a teoria do gene passou a encarar a hereditariedade e
o desenvolvimento como fenômenos distintos. A hereditariedade, antes um fenômeno
desenvolvimental, foi tratada como a transmissão de um material hereditário e o
desenvolvimento redefinido como a manifestação do potencial contido neste material.
A teoria do gene criou o paradoxo de Lillie, cuja solução teve de esperar a genética
molecular. Somente quando a biologia molecular possibilitou a criação de modelos de
ativação diferencial programada foi possível explicar como genes idênticos em todas as
células eram capazes de controlar o desenvolvimento. Contudo, a solução do paradoxo de
Lillie não livrou a genética molecular da sua herança preformacionista. A proposta de um
programa genético não conciliou a preformação e a epigênese. A resposta para a pergunta feita
dentro do paradigma do desenvolvimento como expressão gênica diferencial, continuou,
inevitavelmente, sendo uma resposta preformacionista.
Introdução
– 14 –
Epigênese: além do programa genético
O primeiro objetivo deste trabalho é mostrar que, historicamente, a tese da conciliação
genética é inadequada. A genética, antes do que um acordo, é uma vitória da preformação
sobre a epigênese. O segundo objetivo é mostrar que, conceitualmente, a genética molecular
ainda é preformacionista e que uma perspectiva epigenética dos processos hereditários e
desenvolvimentais, como proposta pela PSD, é coerente frente à biologia molecular
contemporânea.
O preformacionismo moderno da genética pode ser identificado em quatro princípios:
(i) a hereditariedade é causada pela transmissão genetica; (ii) a forma é determinada pela ação
interna dos genes; (iii) o processo de herança é restrito à transmissão dos genes; e (iv) o
desenvolvimento é um processo programado.
O terceiro capítulo pretende mostrar como estes quatro princípios, presentes na
genética molecular clássica, são enfraquecidos no contexto da biologia molecular pós-
genômica. Os resultados obtidos com a aplicação das tecnologias da biologia molecular em
organismos eucariontes principalmente em animais –, revelaram uma imagem muito
diferente daquela obtida anos antes com Escherichia coli. Os mecanismos de regulação e
expressão gênica em bactérias se mostraram muito mais simples do que nos demais
organismos. O lema pasteuriano dos anos 60 o que vale para E. coli vale também para o
elefante — foi negado pelo avanço da própria biologia molecular.
A complexidade encontrada no genoma de organismos como leveduras, plantas,
insetos e mamíferos colocou a própria noção de gene em questão. Quanto mais se investigou
o gene molecular, mais difícil se tornou identificá-lo (Beurton, Falk et al., 2000). Exemplos
como genes sobrepostos, pseudogenes, genes móveis, mecanismos reguladores complexos e
tantos outros dados empíricos colocaram em discussão os pressupostos epistemológicos da
genética (Portin, 1993). Atualmente, é bastante difundida a crença entre filósofos da biologia
de que a genética clássica não pode ser reduzida à genética molecular e de que a noção de
gene molecular que emergiu em meados do século XX não é suficiente para lidar com a
complexidade encontrada pela genômica do século XXI (Falk, 2000). Várias definições
alternativas da noção de gene foram propostas. Defenderei a proposta de que o gene deve ser
definido como um processo molecular que produz uma molécula funcional (Neumann-Held,
1999; Griesemer, 2000b; Dupré, 2004; Griffiths e Stotz, 2006). Desta forma, a noção de
Introdução
– 15 –
expressão gênica é substitída pela de constituição gênica durante um processo de epigênese
molecular (Burian, 2004; Robert, 2004a).
A disseminação (ou dissolução) da biologia molecular em outras áreas da biologia
também contribuiu para aumentar a complexidade empírica e teórica dos conceitos de
hereditariedade e desenvolvimento. A utilização das técnicas e conceitos da biologia
molecular para responder questões embriológicas revolucionou a biologia do
desenvolvimento. Porém, antes do que a confirmação do programa genético, a biologia do
desenvolvimento levou a um novo enfoque das pesquisas moleculares. O foco voltou-se para
a célula, não mais exclusivamente para o DNA (Morange, 1997; Hall, 2001). Apesar de toda
retórica genômica, o DNA e a expressão gênica se mostraram altamente intricados ao
contexto celular e intercelular.
Somado à contextualização e redefinição do gene proporcionada pela biologia
contemporânea, ocorreu a descoberta (ou, às vezes, revalorização) de novos mecanismos
hereditários. Por exemplo, além da molécula de DNA em si, a herança genética se mostrou
dependente da estrutura tridimensional do cromossomo e de alterações químicas. Gradientes
de proteínas e RNAs citoplasmáticos também se mostraram fundamentais. A reconsideração
de eventos ocorridos durante a ontogênese (p. ex. ação hormonal, a aquisição de simbiontes,
pressões morfodinâmicas, etc.) ampliou o conceito de hereditariedade de forma a englobar
fenômenos desenvolvimentais.
Estes problemas conceituais levantados pela biologia contemporânea, somados a uma
longa tradição de insatisfação com conceitos como instinto e caracteres inatos, forneceram as
motivações e o material para o surgimento da Perspectiva dos Sistemas Desenvolvimentais
(PSD). Os argumentos da PSD que fazem com que a considere uma “nova epigênese” serão
discutidos em detalhes no quarto capítulo. Esquematicamente, os dividi em quatro princípios
antagônicos aos quatro princípios do preformacionismo genético acima citados:
(i) hereditariedade como re-produção: o desenvolvimento é um processo de re-reprodução
desenvolvimental. Os caracteres não são transmitidos, mas reconstruídos pelo
desenvolvimento; (ii) paridade e interdependência causal: não um poder causal
centralizado ou dicotomizado. As causas do desenvolvimento não residem em uma classe
particular de entidades, mas está distribuída na interação de todos os recursos
desenvolvimentais. Todos os elementos e relações são considerados igualmente essenciais;
(iii) herança expandida: o fenômeno hereditário envolve muito mais do que os genes.
Introdução
– 16 –
Engloba a ampla variedade de recursos que são passados de uma geração para outra, estando
assim disponíveis para a reconstrução do ciclo de vida do organismo. Um recurso pode ser,
por exemplo, uma seqüência de DNA, uma membrana, um gradiente citoplasmático, um
organismo simbionte ou um ninho; e (iv) ciclos de contingências: todos os recursos
desenvolvimentais que contribuem para a reconstrução de um novo ciclo de vida se repetem
de forma contingente, não-programada.
Figura 1. Conflito de tradições de pesquisa: Preformação e epigênese são entendidas como duas tradições de
pesquisa que se transformam e se alternam historicamente. Cada período pode ser nomeado de acordo com
perspectiva teórica hegemônica que o caracterizou. Note que períodos de crise, sem hegemonia, precedem a
troca de tradição de pesquisa.
O prefácio de um influente livro-texto de biologia do desenvolvimento começa assim:
“A biologia do desenvolvimento está no centro de toda biologia. Ela trata do processo pelo
qual os genes do óvulo fecundado controlam o comportamento das células no embrião e,
desse modo, determinam o seu padrão, a sua forma e muito do seu comportamento” (Wolpert
et al., 1998). Este trabalho, em suma, pretende deixar claro que este modelo do
desenvolvimento como expressão diferencial dos genes é uma herança da redefinição do
desenvolvimento a partir de um modelo preformacionista. Principalmente, pretende mostrar
que esta redefinição é limitante. Explicar o desenvolvimento não é explicar o papel dos genes
no desenvolvimento. Explicar o desenvolvimento é entender um sistema de fatores que
interagem em diferentes níveis dos processos de morfogênese e diferenciação. Acredito que
expondo e desconstruindo o preformacionismo sutil da genética molecular clássica e o
Introdução
– 17 –
substituindo por um modelo estritamente epigenético, que considere o caráter sistêmico,
hierárquico e contingente do desenvolvimento, obtem-se uma maneira mais adequada de
teorizar a constância e a transformação dos seres vivos.
Introdução
– 18 –
— 1 —
Preformação e epigênese
O embriologista alemão Oskar Hertwig (1849–1922) publicou, em 1894, um livro
intitulado O problema biológico do nosso tempo: preformação ou epigênese?
8
À primeira
vista, o título é estranhamente anacrônico. Afinal de contas, a disputa entre preformacionistas
e epigenesistas havia marcado as ciências da vida no século XVIII e parecia ter sido decidida
a favor dos últimos ao longo do século XIX. A embriologia descritiva, principalmente a
tradição alemã, havia revolucionado a embriologia na primeira metade do século. Amparada
nas novas técnicas de microscopia e liderada por Christian Pander (1794–1865), Ernest von
Baer (1792–1876) e Heinrich Rathke (1793–1860), a nova embriologia alemã havia descrito
detalhadamente a estrutura do embrião. O minucioso exame de ovos de vertebrados
identificou as três camadas germinativasectoderma, mesoderma e endoderma –, os arcos
faringeais, a notocorda, os somitos e demais estruturas histológicas do embrião. Fenômenos
morfogenéticos como a gastrulação e a neurulação também foram descritos. Von Baer havia
encontrado o óvulo dos mamíferos, confirmando o aforismo de Harvey, muito perseguido
ex ova omnia — todo ser vivo nasce de um ovo.
Ao mesmo tempo, eram dados os primeiros passos em direção à teoria celular
(Churchill, 1994). Entre 1838 e 1839, os alemães Theodor Schwann (1810–1882) e Mathias
Schleiden (1804–1881) havia defendido que as plantas e os animais eram formados por
células e, na década de 1850, Robert Remak (1815–1865) e Rudolf Virchow (1821–1902)
havia afirmado que toda célula se origina de uma célula preexistente. A afirmação da teoria
19
8
Originalmente: Zeit- und Streitfragen der Biologie. Vol 1. Präformation oder Epigenese? Grundzüge einer
Entwicklungstheorie der Organismen, Jena: Gustav Fisher, 1894.
celular levou à exploração da divisão celular. De um lado, os cientistas passaram a vasculhar
minuciosamente a estrutura intracelular, em especial o núcleo, dando origem à citologia. Do
outro, os cientistas passaram a investigar as relações intercelulares, levando a fisiologia
experimental ao nível celular (Maienschein, 1994). O mesmo ideal experimental da fisiologia
foi trazido para o estudo do desenvolvimento dos animais e permitiu que, no fim do século
XIX, a embriologia deixasse de ser apenas descritiva e se tornasse também experimental.
Portanto, o que Oskar Hertwig, colaborador e entusiasta da embriologia experimental,
queria dizer quando falava de preformação e epigênese em 1894? Estava claro que era algo
diferente da versão homúnculo vs. vitalismo pela qual o debate do século XVIII é famoso.
Como foi dito, era sabido, no fim do século XIX, que uma célula surgia apenas de outra célula
e que estas eram as responsáveis pela continuidade material entre uma geração e a outra; que
uma abordagem experimental dos processos fisiológicos é possível e eficaz; e que o embrião
originava-se pela formação e organização sucessiva de tecidos. Evidentemente, os cientistas
não buscavam mais explicar como o organismo surgia da matéria amorfa impulsionado por
algum princípio vital, nem de um minúsculo ser humano pré-delineado. Os cientistas
buscavam explicar como a forma surgia da divisão e diferenciação de uma célula inicial. A
pergunta estava deslocada para como as células em divisão se diferenciavam de maneira a
formar um novo organismo (Maienschein, 1991). Para esta pergunta, os cientistas deram
respostas preformacionista e epigenéticas no fim do século XIX.
O que se percebe ao afirmar que a explicação para o desenvolvimento de um
organismo por divisão e diferenciação celular pode ser rotulada de preformacionista ou
epigenética é que estes termos adquiriram significados bastantes diferentes no fim do século
XIX. Mas a mudança de significado não está restrita a este período. Como tem mostrado a
literatura recente sobre a história do debate
(p. ex. Roger, 1971; Roe, 1981), este não foi o
único momento em que os significados dos termos se transformaram. Não apenas no fim do
século XIX, mas ao longo de diversos períodos, a disputa tomou formas distintas, tornando
difícil falarmos em um único debate. Por isso, defendo que a disputa entre preformação e
epigênese é melhor definida como um conflito de tradições de pesquisa. Desde Aristóteles,
passando por Descartes e Kant, o significado desta oposição se transformou, acompanhando a
ciência e a filosofia à sua volta
§1
– 20 –
1.1 O antigo debate
Como muito do conhecimento ocidental, as teorias sobre o desenvolvimento também
possuem raízes na Grécia Antiga. Neste caso em particular, voltar à antiguidade é
especialmente esclarecedor, pois, segundo diversos historiadores (e.g. Roger, 1971; Radl,
1988), o problema está bem definido no livro A reprodução dos animais, de Aristóteles
(384–322 A.C.). Neste livro, Aristóteles defende uma posição que viria a ser chamada na era
moderna de epigênese, opondo-a às teorias preformacionistas de Anaxágoras, Demócrito e
Empédocles.
A teoria aristotélica da geração dos seres vivos está fortemente ligada à sua
interpretação metafísica do mundo. Ela faz parte da discussão mais ampla da geração e da
corrupção dos seres. Aristóteles reconhecia quatro causas: formal, material, eficiente e final.
No caso dos seres vivos, o sêmen feminino (menstruum) contribuía com a causa material para
a geração do organismo, enquanto que o sêmen masculino contribuía com a causa formal.
Somadas à causa final ou telos da espécie e à causa eficiente propriamente dita, as quatro
causas cooperavam no processo de desenvolvimento do embrião. Aristóteles defendeu que
apenas a mãe contribuía materialmente para a geração, opondo-se às teorias dos antigos que
defendiam a dupla contribuição dos pais. E, principalmente, defendeu que o organismo não
está formado no ovo, nem são todas as partes formadas de uma vez. O embrião, guiado
pelas causas formais e finais, desenvolvia-se epigeneticamente, gerando sucessivamente cada
órgão, um após o outro, primeiro o coração, depois os demais:
Ou todas as partes, como o coração, o pulmão, o fígado, o olho e todo o resto, se formam
juntas, ou se formam em sucessão, como é dito no verso atribuído a Orfeu, que um animal se
origina do mesmo modo que o tecer de uma rede. Que o primeiro não é o caso é claro aos
próprios sentidos, pois a existência de algumas das partes é nitidamente visível no embrião,
enquanto outras não o são (Aristóteles, 1994, p.131-132).
A defesa de uma perspectiva epigenética para o desenvolvimento em Aristóteles fica
bastante clara em seus textos o embrião é gerado da matéria homogênea através de uma
sucessão gradual de formas. Contudo, o sentido em que as teorias combatidas por Aristóteles
podem ser chamadas de preformacionistas e, portanto, representam o início do antagonismo
com a epigênese, é mais sutil. As diferentes idéias criticadas em A reprodução dos animais
podem ser agrupadas, grosso modo, em dois conjuntos: (i) panspermia, a idéia de que os seres
são gerados como um agregado de partículas ou sementes existentes na naureza que
§1
– 21 –
determinam as características próprias do ser; e (ii) pangênese, a idéia de que as partículas (ou
fluidos, no caso de Hipócrates) que geram os seres vivos provêm de todas as partes do corpo
dos pais e as características de cada partícula são determinadas de acordo com a parte da qual
ela é proveniente. Não serão abordados os detalhes das teorias citadas em A reprodução dos
animais, nem os argumentos de Aristóteles contra elas. Interessa apenas identificar os
elementos preformacionistas nelas contidas. O principal alvo aristotélico são as teorias
pangenéticas de inspiração hipocráticas defendidas por atomistas como Demócrito e
Empédocles (Smith, 2006). Hipócrates dizia que “a semente vem de todas as partes do corpo
do homem e da mulher para a formação de um ser humano e, caindo no útero da mulher, se
coagula” (Hipócrates, apud Castañeda, 1992, p.8). No caso de Anaxágoras, Aristóteles opôs-
se ao preformacionismo implicado pela idéia panspermática das homeomerias a idéia de
que a matéria (ouro, osso, carne, etc.) se constitui de pequenas partes iguais a si mesmas. O
ouro é formado por pequenas partes de ouro e os ossos por pequeno ossos, etc. (Hegel, 1983).
Há, portanto, dois elementos preformacionistas na pangênese e na panspermia: (i) a
semente é heterogênea, havendo uma correspondência entre sua estrutura e as partes do
organismo.
9
Como escreve Ramos (2004, p.107), “[a semente] é claramente heterogênea, ou
seja, composta por partes que apresentam diferentes atributos. Assim, uma diferenciação
prévia ou uma preformação da semente anterior à concepção ou mistura dos líquidos”; (ii) a
geração ocorre de maneira imediata, como uma metamorfose. Não a origem gradual e
sucessiva da forma.
O pensamento aristotélico exerceu grande influência durante a Idade Média e, nos dois
milênios posteriores à sua obra, a perspectiva epigenética do desenvolvimento prevaleceu.
Autores como Galeno, ainda na antiguidade, e Vesalius, já no século XVI, continuaram
tratando o problema da geração animal a partir das idéias aristotélicas de forma, matéria e
potencial e, mesmo após a Revolução Científica, o aristotelismo continuou a influenciar o
estudo da geração dos seres vivos.
William Harvey (1578–1657), por exemplo, o último grande embriologista
macroscopista, construiu sua obra dentro da tradição epigenética aristotélica. Harvey, mais
conhecido pela descrição do papel do coração na circulação sangüínea, cuja interpretação de
§1
– 22 –
9
“É disputado, no entanto, se o embrião é macho ou fêmea mesmo antes da distinção ser clara para os nossos
sentidos, havendo adquirido esta diferença dentro da mãe ou antes. É dito por alguns, como por Anaxágoras e outros
filósofos, que esta antítese existe desde o início no germe ou na semente” (Aristóteles, 1994, p.235).
Descartes tanto contribuiu para aceitação do mecanicismo nos domínios da fisiologia,
publicou, no fim da sua vida, em 1651, um tratado embriológico chamado Anatomical
Exercises on the Generation of Animals. A obra é escrita como uma série de ensaios em que
compara as idéias de Aristóteles e de seu tutor, Fabricius de Aquapendente (1537–1619), às
suas próprias conclusões obtidas a partir da observação do desenvolvimento de animais.
Embora o tom geral da obra seja de divergência em relação tanto a Aristóteles quanto a
Fabricius, as divergências não implicam uma mudança de perspectiva. Harvey continuou
trabalhando dentro da tradição aristotélica, invocando mudanças qualitativas e substanciais e
apelando a uma teleologia interna, ou alma, para explicar o processo embriológico (Grene e
Depew, 2004). Alma, calor e sangue se misturavam na explicação da geração dos seres vivos.
E, assim como toda tradição aristotélica, Harvey continuou interpretando a geração como uma
sucessão de novas estruturas. Ele criou o termo epigênese
10
para descrever a geração
“gradual, parte por parte” observada nos animais superiores:
A geração da galinha a partir do ovo é o resultado da epigênese [...] e todas as suas partes não
são criadas simultaneamente, mas emergem em sua devida sucessão e ordem; é evidente,
também, que sua forma é produzida simultaneamente ao seu crescimento e seu crescimento à
sua forma; também que a geração de algumas partes sucede outras previamente existentes, das
quais elas se tornam distintas (Harvey, 1952, [1651], p.412-413).
O período entre as obras de Aristóteles e Harvey caracteriza o antigo debate sobre a
interpretação da geração dos seres vivos. A tradição de pesquisa preformacionista neste
período é marcada pela idéia de formação simultânea (ou metamorfose, como definida e
aceita por Harvey para os animais inferiores). A preformação estava associada também à pré-
diferenciação das partes e à heterogeneidade do ovo, como postulado pelas teorias
pangenéticas e panspermáticas (Zirkle, 1946). Contudo, a tradição epigenética, entendida
como o processo de formação gradual dos seres vivos orientada por um telos, predominou
como explicação para a geração dos seres vivos até o surgimento do mecanicismo.
1.2 Preexistência e mecanicismo
A geração dos seres vivos, último refúgio do aristotelismo, não demorou a sucumbir
frente à imagem moderna do mundo que emergiu da ciência e da filosofia de Kepler, Galileu,
§1
– 23 –
10
Aristóteles empregou o termo epiginomai.
Bacon e Descartes. A nova ciência entrou em conflito com a metafísica aristotélica,
fundamentada em causas formais e finais, e demandou uma nova concepção da natureza dos
seres vivos. A ciência natural e sua leis deveriam se basear apenas em causas eficientes
(Westfall, 1977). Os seres vivos haviam tornado-se máquinas, bêtes-machines, autômatos,
cujas ações eram conseqüência do funcionamento da sua própria estrutura. O funcionamento
estava dissociada da alma e devia ser explicado pelo simples movimento da matéria no
espaço.
René Descartes (1596–1650) empregou a mecânica corpuscular em seu Traité de
l’homme (1633) para explicar fenômenos fisiológicos como o movimento, a digestão e as
sensações. Mas foi apenas por volta de 1650, mesmo período em que Harvey publicava suas
idéias sobre a geração, que Descartes se arriscou a explicar a geração dos seres vivos em
termos mecânicos. Em um complemento postumamente adicionado à segunda edição de La
description du corps humain (1647), intitulado De la formation d’animal (1648), Descartes
propôs uma teoria epigenética da geração dos seres vivos baseada simplesmente no
movimento das partículas seminais:
[A semente] sendo muito fluida e produzida originalmente pela conjunção dos dois sexos,
parece ser apenas uma mistura confusa de dois líquidos, que, servindo de fermento um para o
outro, se aquecem de maneira que algumas de suas partículas, adquirindo a mesma agitação
que tem o fogo, se dilatam e empurram as outras, e, dessa maneira, as colocam pouco a pouco
do modo que se exige para formar os membros (Descartes apud Castañeda, 1992, p.99).
A proposta cartesiana de uma epigênese mecânica não encontrou aceitação. A idéia de
que os organismos poderiam surgir do simples movimento da matéria passiva era implausível.
Duas máquinas não podiam gerar uma terceira. A ontologia mecanicista parecia encontrar seu
limite na explicação da geração dos seres vivos. Ela era adequada para explicar a fisiologia e
o crescimento dos organismos, mas era incapaz de explicar como a matéria passiva poderia
gerá-los (Roger, 1971). O padre cartesiano Nicolas Malebranche expressou esta visão de
maneira clara: “O vago esboço fornecido por este filósofo [Descartes] pode nos ajudar a
entender como as leis do movimento são suficientes para efetuar o crescimento gradual das
partes de um animal. Mas que estas leis possam formar e unir estas partes é algo que ninguém
jamais provará” (Malebranche apud Roe, 1981, p.5).
O modo de assimilar o problema da geração dos seres vivos à ontologia mecanicista
foi, justamente, negar a ocorrência da geração, isto é, afirmar que todos os seres preexistem e
§1
– 24 –
apenas crescem. O que se percebe como geração é, na verdade, o crescimento de uma
estrutura preexistente. Todos os seres haviam sido criados por Deus e colocados uns dentro
dos outros, como bonecas russas. Esta idéia recebeu o nome de encaixotamento
(emboîtement). Sua primeira formulação clara foi feita por Malebranche:
Podemos dizer que todas as plantas estão em suas sementes, numa forma menor. Examinando
uma semente de tulipa
11
com uma simples lupa, ou mesmo a olho nu, descobrimos muito
facilmente as diferentes partes de uma tulipa. Não parece absurdo dizermos que árvores
infinitas dentro de uma única semente, pois a semente contém não apenas a árvore, mas
também sua semente, ou seja, outra semente, e a natureza apenas faz estas pequenas árvores se
desenvolverem
12
. Também podemos pensar desta maneira sobre os animais. Podemos ver na
gema de um ovo fresco, ainda não incubado, um pequeno pinto talvez inteiramente formado.
Podemos ver sapos dentro dos ovos de sapos. E ainda outros animais serão vistos em seu
sêmen, quando tivermos suficiente habilidade e experiência para descobri-los [...] Talvez todos
os corpos dos homens e animais nascidos até o final dos tempos foram criados na criação do
mundo, ou seja, as fêmeas dos primeiros animais talvez foram criadas contendo todos os
animais da mesma espécie, que procriaram e procriarão no futuro. (Malebranche apud Pyle,
2006, p.205-206)
A alternativa assumida pela idéia de encaixotamento de não buscar desvendar a
origem dos seres, de certa modo, antecipa a perspectiva cosmológica do mecanicismo de
Boyle e Newton. Enquanto o mecanicismo ateu dos epicuristas e cartesianos buscava explicar
a origem do cosmos (e também dos seres vivos) pelas leis do movimento, o dinamismo
newtoniano atribuía a formação do universo e o estabelecimento das leis que o regem à obra
do criador. Deus havia criado as leis da natureza, o universo e o posto a funcionar em infinita
harmonia. A tradição dinamista havia optado por não perguntar suas origens. Deus era a
“Primeira Causa Eficiente” do mundo (Burtt, 1991). Cabia ao homem apenas desvendar o seu
funcionamento (Rossi, 1992). Uma postura em tudo semelhante existe na idéia de
encaixotamento. Deus havia criado todas as espécies e colocado no ventre de cada uma todos
os indivíduos que viriam a nascer. Não havia razão em explicar a geração dos seres. Os seres
apenas se desenvolviam, ou seja, saiam dos seus invólucros e cresciam segundo as leis da
fisiologia mecânica (Roger, 1971).
As teorias da preexistência, inicialmente, tomaram uma forma ovista o
encaixotamento ocorria nos ovos (idéia que foi fortalecida pela descoberta da existência de
ovos vivíparos). A preexistência espermista se iniciou com a descoberta dos espermatozóides
§1
– 25 –
11
Malembranche provavelmente se referia a um bulbo de tulipa.
12
No sentido preformacionista antigo do termo – desenrolar, sair de um invólucro.
por Antoni van Leeuwenhoek (1632–1723). As novas observações realizadas com a
introdução do microscópio, das quais se destacam os trabalhos de Marcelo Malphighi (1628–
1694) e Jan Swammerdam (1637–1680) forneceram mais suporte para os argumentos de que
os rudimentos do embrião podiam ser observados em ovos e sementes. Isto pode parecer
contraditório, mas ressalta a tese de que conceito de preexistência não surge simplesmente de
evidências observacionais. Ele está estreitamente associado ao fortalecimento do
mecanicismo corpuscular, a visão de que a matéria é passiva e infinitivamente divisível e de
que Deus produziu as leis do movimento, colocou a máquina do mundo para funcionar, sem
interferir mais em seu funcionamento (Roger, 1971).
Figura 2. Homúnculo: A representação do homúnculo de Hartsoecker , de 1674, ícone da teoria da
preexistência.
Antes de prosseguir, cabem alguns esclarecimentos sobre o vocabulário relacionado
aos conceitos discutidos. O termo preexistência tem sido utilizado seguindo a importante
distinção introduzida por Jaques Roger (1971), hoje amplamente adotada pelos historiadores
da biologia, entre preexistência e preformação. Roger reserva o termo preexistência para se
referir à idéia de encaixotamento, ou seja, a idéia de que existe um pequeno ser dentro do ovo
e dentro deste existe outro ser e assim por diante, como infinitas caixas dentro de caixas. O
termo preformação é empregado para se referir às teorias que postulam a formação
instantânea do embrião, seja ela no interior dos pais ou no momento da fertilização. A
distinção entre preexistência e preformação é fundamental, pois refere-se à ocorrência ou não
de geração dos seres vivos. No caso da preexistência, não geração, ou melhor, uma
única geração a criação e o encaixotamento de todos os seres por Deus. No caso da
preformação, ocorre geração ou, como sugere Wilkie (1968), pré-geração. O significado
§1
– 26 –
atribuído ao termo preformação por Roger é semelhante ao conceito de metamorfose,
13
como
definido por Peter Bowler (1971) e mencionado em relação à obra de Harvey. Tanto na
metamorfose quanto na epigênese (e ao contrário da preexistência) ocorre nova formação. A
diferença está no caráter simultâneo da geração das estruturas na metamorfose, enquanto que
na epigênese há a origem gradual e seqüencial do embrião. Portanto, nos século XVII e XVIII
convivem dois modo preformação preformação por preexistência (encaixotamento) e
preformação por metamorfose. Esta terminologia não corresponde à terminologia empregada
pelos autores do período, mas auxiliará, daqui em diante, a acompanhar a evolução das teorias
em questão.
Por volta da metade do século XVIII, a preexistência passou a ser questionada por
modelos que misturavam metamorfose, epigênese e, às vezes, vitalismo. As explicações
estritamente mecânicas, baseadas simplesmente no movimento de partículas, começaram a
perder lugar para as teorias inspiradas nas idéias de Isaac Newton (1642–1727). Forças
atrativas passaram a ser invocadas para explicar a fisiologia e a geração dos seres vivos (Roe,
1981). Novos dados observacionais, como a descrição da incrível capacidade de regeneração
e brotamento da hidra e a descoberta da imensa diversidade de microorganismos, também
alimentaram as novas teorias sobre a geração dos seres vivos.
Pierre Louis Moreau de Maupertuis (1698–1759), tradutor da obras de Newton para o
francês, propôs uma teoria da geração dos seres vivos baseada na dinâmica. Inspirado pela
incipiente química newtoniana
(ver Mocellin, 2006), Maupertuis assumiu que micro-forças
agindo entre as partículas elementares eram responsáveis pela geração dos seres vivos. Ele
argumentou no livro Venus Física [publicado anonimamente em 1745 (Maupertuis, 2005)]
que estas forças atuavam na mistura dos fluidos seminais dos pais, fazendo com que as partes
afins se unissem. Posteriormente, Maupertuis concluiu que as forças atrativas não eram
suficientes e propôs que, de alguma forma, as partículas “lembravam” suas devidas
localizações.
As idéias de Maupertuis influenciaram seu conterrâneo George-Louis Leclerc, Conde
de Buffon (1707–1788), cujo desafio à preexistência teve grande impacto. A teoria de Buffon
foi publicada em 1749, no segundo volume da sua monumental Histoire naturelle, e se
baseava na distinção entre partículas orgânicas e inorgânicas:
§1
– 27 –
13
Wilkie (1967) propõe o termo hamagenesis para se referir ao mesmo conceito.
Os animais e as plantas que podem se multiplicar por todas as suas partes são corpos
organizados compostos por outros corpos orgânicos semelhantes, cujas partes primitivas e
constituintes são também orgânicas e semelhantes [...] Existe na Natureza uma infinidade de
pequenos seres organizados, em tudo similares aos grandes seres organizados que compõe o
mundo. Este pequenos seres organizados são compostos de partes orgânicas vivas comuns aos
animais e aos vegetais. Estas partes orgânicas são as partes primitivas e incorruptíveis e a
união delas formam, aos nossos olhos, os seres organizados. Por conseqüência, a reprodução
ou a geração não é mais do que uma mudança de forma que se faz e se opera apenas pela
adição destas partes similares, como a destruição do ser organizado se faz pela divisão destas
mesmas partes. (Buffon, 1984, p.174–175)
Segundo Buffon, ao se alimentar, o organismo assimilava as partículas orgânicas e as
distribuía pelo corpo. O sêmen era composto pelas partículas excedentes enviadas de todo o
corpo para o órgão reprodutor e o embrião era formado pela mistura das partículas nos
sêmens masculinos e femininos. Cada partícula representava a parte do corpo dos pais da qual
ela provinha. Restava explicar como as partículas se arranjavam de modo a dar forma ao
organismo. Maupertuis havia respondido esta questão propondo afinidades eletivas e uma
espécie de memória das partículas. Buffon atacou o problema com o conceito de molde
interior, em analogia aos moldes utilizados em esculturas:
14
“Da mesma forma que podemos
fazer moldes pelos quais damos ao exterior dos corpos tais formas, suponhamos que a
natureza possa fazer moldes pelos quais ela não faz somente a forma externa, mas também a
forma interna; não seria por esse meio que a reprodução poderia operar?” (Buffon, 1984
[1749-1789]) Cada espécie possuía um molde interior característico, o que garantia a
continuidade da espécie e dava suporte à idéia de Buffon de que os animais deveriam ser
agrupados em espécies como populações históricas ligadas pelo processo de reprodução
15
. Ao
molde interior, Buffon acrescentou a ação de forças penetrantes, responsáveis pela adesão das
partículas umas às outras.
As forças, a memória e o molde postulados por Maupertuis e Buffon tinham como
finalidade resolver o que Roe (1981) chamou de “o problema da fonte de organização”. A
preexistência havia resolvido este problema apelando para a única alternativa mecanicista que
lhe parecia plausível a pré-delineação e o encaixotamento do embrião. Apesar de não
ocasionalista, esta explicação se apoiava em uma criação divina inicial, o que era inaceitável
§1
– 28 –
14
A metáfora do artista, em especial a do escultor, é recorrente nas teorias sobre a geração dos seres vivos, sendo
encontrada também em Aristóteles, Descartes e Harvey.
15
Buffon aceitava um transformismo restrito, causado pela degeneração do molde-corpo por influências do
ambiente.
para os materialistas franceses. Por outro lado, as teorias de Buffon e Maupertuis não
representavam uma posição verdadeiramente epigenética, como alegada pelos próprios
autores e também pelos seus críticos. Combater as teorias da preexistência não fazia das
teorias de Buffon e Maupertuis teorias epigenéticas. Por exemplo, a idéia básica da epigênese
de que a forma é gerada por uma sucessão de transformações é contradita por Buffon: “Eu
abri uma grande quantidade de ovos antes e depois da incubação, e estou convencido pelos
meus olhos que a galinha existe inteira no meio da cicatrícula no momento que sai do corpo
da galinha”. A teoria de Buffon, na verdade, reúne elementos de pangênese e metamorfose,
além da preexistência dos moldes, que parece representar o que Kant depois chamaria de
preformacionismo genérico, ou seja, uma preexistência no nível específico, mas não
individual. Em Maupertuis, também encontramos elementos preformacionistas pangenéticos
na forma de predeterminação das partes que formarão o corpo: “Que haja em cada uma das
sementes partes destinadas a formar o coração, a cabeça, as entranhas, os braços, as pernas e
que estas partes tenham, cada uma, maior afinidade de união com aquela que, para formação
animal, deve ser sua vizinha do que com qualquer outra” (Maupertuis, 2005 [1744], p.135).
Tampouco, apesar do entusiasmo e da importância destes autores para introdução do
newtonismo na Europa continental, é possivel considerar os moldes ou a memória coerentes
com a metafísica mecanicista, mesmo na versão dinamista newtoniana. O conceito de
memória proposto por Maupertuis, por exemplo, parece representar a transição da imagem de
natureza-máquina para a imagem de natureza-organismo do fim do século XVIII, quando
metáforas e princípios explicativos como sensibilidade, irritabilidade e memória foram
retirados do domínio dos seres vivos e atribuídos à matéria (Abrantes, 1996).
A postura crítica que adotei em relação ao mecanicismo epigenético de Buffon e
Maupertuis é coerente com a interpretação de que o debate entre preformação e epigênese é,
na verdade, um conflito entre tradições de pesquisa. A conclusão que sou inclinado a aceitar é
que as críticas e alternativas propostas por Buffon e Maupertuis às teorias da preexistência
ocorreram internamente à tradição preformacionista. Elas não romperam com os principais
pressupostos ontológicos do preformacionismo. Como será discutido mais adiante, a
alternativa de Maupertuis e Buffon possui semelhanças e, possivelmente, influências sobre o
preformacionismo dos séculos XIX e XX.
Como uma resposta às críticas dos materialistas franceses, as teorias da preexistência
alcançaram sua maior elaboração nas décadas seguintes com os suíços Albercht von Haller
§1
– 29 –
(1708–1777) e Charles Bonnet (1720–1793). Haller, figura religiosa e poderosa no meio
científico, adotou três posturas distintas ao longo da sua vida acadêmica em relação à geração
dos seres vivos. Primeiro, quando ainda um jovem aluno, adotou a preexistência espermática;
na década de 1740, impressionado com as experiências de Trembley sobre a regeneração em
hidra, se converteu à epigênese; na década seguinte, após realizar suas próprias experiências
com ovos de galinha, se tornou definitivamente um defensor da perspectiva ovista: “[...] eu
estava inclinado a aceitar a formação gradual dos animais. Mas, desde então, observações
mais maduras [...] me trouxeram de volta para a evolução” (Haller, apud Pinto-Correia, 1999,
p.84).
16
As “observações mais maduras” de Haller mostraram-lhe evidências de que todas as
partes da galinha existiam no ovo não-fertilizado e que elas cresciam pelo fluxo de líquidos
bombeados pelo coração. Haller viu uma continuidade entre as membranas que envolvem a
gema e o intestino e a pele do futuro embrião. Como a gema existia dentro da galinha, o
embrião já existia também, mas era pequeno e translúcido demais para ser percebido.
As idéias de Haller ecoaram em Charles Bonnet, famoso na juventude por ter
descoberto a partenogênese em pulgões e estudado a regeneração em vermes. Em
Considerations sur les corps organisés, de 1762, Bonnet propôs uma teoria ovista na qual
afirmava que “todos os corpos da mesma espécie estavam encapsulados uns dentro dos outros
e daí desenvolveram-se sucessivamente” (Bonnet apud Pinto-Correia, 1999). Para Bonnet, os
corpos não preexistiam como miniaturas pré-delineadas, mas como partes essenciais, que,
além de crescer, reposicionavam-se durante o desenvolvimento.
A historiografia da biologia, como aponta Gould (1999), tende a caricaturar as teorias
da preexistência, relacionando-as sempre a micrografia fantástica do início do século XVIII,
estigmatizada pela imagem do homúnculo no espermatozóide desenhado por Hartsoecker
(figura 2). A idéia de preexistência parecia fruto de anti-empiristas dogmáticos, para quem o
desenvolvimento envolvia apenas o aumento de miniaturas perfeitamente proporcionais. No
entanto, como dito acima, Haller, Bonnet e outros, como Lazzaro Spallanzani (1729–1799),
estudaram profundamente o desenvolvimento de embriões e sabiam que a forma complexa
§1
– 30 –
16
O termo evolução foi primeiramente utilizado por Haller em 1744 para se referir à preformação (Gould, 1977). Por
volta de 1820, iniciou-se a confusão em torno do significado da palavra em biologia. O termo aparece com
freqüência nas obras de “evolucionistas” do início do século XIX, como Geoffroy Saint-Hilaire e Charles Lyell, mas
sempre no sentido literal uma série de eventos conectados ou no sentido preformacionista. O primeiro a utilizá-
lo com o significado de transformismo foi Herbert Spencer, em seu ensaio de 1952, The Developmental Hypothesis
(1852). A palavra evolução não consta na primeira edição do Origem das espécies (1859) Seu uso no sentido
preformacionista só foi abandonado no início do século XX (Burian, 2003).
parecia surgir do ovo homogêneo. No entanto, eles alegavam que esta aparente epigênese era
ilusória e construíram seus argumentos em cima de suas observações, discutindo e rebatendo
as observações de seus oponentes. Respondiam afirmando que alguns órgãos eram
translúcidos, que órgãos distintos cresciam em taxas diferentes e o estavam
necessariamente no mesmo local no ovo, no embrião e no recém-nascido. De fato, a
sofisticação das teorias preexistencialistas da segunda metade do século XVIII torna tênue a
distinção entre elas e teorias como as de Maupertuis e Buffon (Huxley, 1879). A preexistência
dos germes era uma pré-delineação dos primórdios do indivíduo e não sua pré-delineação
completa. Um germe de galinha ampliado não seria reconhecido como uma galinha adulta
(Pinto-Correia, 1999). Ainda, Bonnet não aceitava um encaixotamento ad infinitum, aceitando
que, a partir de certo limite, os germes estariam livres na natureza. O debate, novamente,
mostra-se orientado por preceitos filosóficos. Em geral, as teorias da preexistência de Bonnet
e Haller estavam fortemente motivadas em preservar a idéia de harmonia da Criação dos
ataques iluministas, que atribuíam à matéria poderes formativos (Muller-Sieves, 1997). De
qualquer maneira, as semelhanças entre estas teorias e as teorias de Buffon e Maupertuis
reforçam a interpretação de que todas podem ser incorporadas à mesma tradição
preformacionista.
A preexistência dos germes enfrentou ainda uma última oposição antes do seu
abandono definitivo no século XIX a reformulação das idéias de Harvey pelo alemão
Caspar Friedrich Wolff (1733–1794). Wolff propôs em sua Theoria generationis, de 1759, um
modelo para o desenvolvimento em plantas e animais que resgatava a ontologia da tradição
epigenética. Ao contrário das teorias de Buffon e Maupertuis, na teoria de Wolff não havia
relação alguma entre as partes do germe e o futuro ser vivo e a geração era um processo
gradual onde a formação de cada parte dependia causalmente da estrutura formada
anteriormente. A teoria se baseava em dois fatores: a capacidade de solidificação dos fluidos
orgânicos e a existência de uma força essencial a vis essentialis. Wolff discordou da
interpretação de Haller (com quem manteve um longo debate) de que havia continuidade
entre a membrana que envolvia a gema dos ovos de galinha e o futuro intestino. Para Wolff, o
intestino se formava a partir de dobras de um tecido inteiramente novo, assim como o coração
e as veias que irrigavam a gema. As estruturas eram formadas de novo a cada geração pela
solidificação dos fluidos secretados pelos ovos e sementes. O processo ocorria como uma
§1
– 31 –
seqüência ordenada, cada parte secretando a seguinte após a sua formação. O fluxo do fluido
produzia vasos, seu acúmulo produzia vesículas e assim por diante.
Todo este processo era guiado pela agência de uma força essencial. Inicialmente,
Wolff não explicou a natureza da vis essentialis. Ele simplesmente a propôs com bases no que
havia observado em plantas e animais e se esquivou em discutir sua natureza. Em
conseqüência, Haller o acusou de vitalista por invocar uma força oculta e misteriosa como a
causa da geração dos seres vivos. Apenas nos seus escritos posteriores, como discute Roe
(1979), Wolff tratou do problema. Após a publicação das idéias de Blumenbach, Wolff tratou
de desvincular sua Theoria generationis do vitalismo. Ao lidar com o problema da fonte de
organização e da natureza da força essencial, antes implicitamente resolvidos pela sua
natureza formativa e vitalista, Wolff não conferiu à vis essentialis o poder de formação dos
seres vivos. Ele a definiu simplesmente como uma força atrativa, semelhante à força da
gravidade, não como uma força vital. Ela era simplesmente uma força que movia fluidos e
nada mais (Roe, 1979).
O problema da fonte de organização recebeu outra solução. Wolff atribui a
organização específica dos seres vivos à qualidade da matéria que compunha a substância na
qual a força essencial atuava. A solidificação de diferentes substâncias gerava espécies
distintas. “Ao invés de extensão passiva, a matéria era vista por Wolff como algo que possuía
forma, qualidades, modos e atributos” (Roe, 1979, p.39). Assim, a forma da espécie passou a
depender da substância do germe. Embora o processo de desenvolvimento fosse efetuado pela
força essencial, a organização dependia da qualidade da matéria. “[T]rata-se de uma força
característica da natureza orgânica, mas que depende da estrutura orgânica
preexistente” (Duchesneau, 1999, p.67). Portanto, a obra de Wolff, embora verdadeiramente
epigenética, não pode ser considerada genuinamente mecanicista. Ao dotar a matéria com
qualidades alheias a ontologia mecanicista, ela não difere, essencialmente, das obras de
autores como Buffon e Maupertuis quanto à fonte de organização. A geração da organização
em Wolff dependia das propriedades específicas da matéria orgânica tanto quanto as teorias
anteriores dependiam da memória orgânica ou do molde interior (Bowler, 1989).
A obra de Wolff foi resgatada e valorizada pela embriologia descritiva no século
seguinte e muitos livros de história geral da biologia insistem em considerar Wolff o precursor
da embriologia moderna. No entanto, a valorização da obra de Wolff ocorreu, principalmente,
devido às descrições epigenéticas de suas observaçõesque em grande parte adequavam-se
§1
– 32 –
à nova tradição de pesquisa hegemônica e não devido à sua teoria da geração. A nova
tradição não se apoiou na substância do germe, mas na sua organização.
1.3 A epigênese teleológica
No fim do século XVIII, a tradição de pesquisa preformacionista cedeu lugar para a
tradição epigenética. Contudo, a epigênese não venceu como uma epigênese mecanicista. Ao
menos não como uma epigênese simplesmente mecanicista. Mesmo as versões dinamistas da
epigênese, inspiradas no newtonianismo e apoiadas por propriedades orgânicas atribuídas à
matéria, não haviam conseguido satisfazer o problema da origem da organização dos seres
vivos. A racionalidade mecanicista, nas suas diversas formas, continuava encontrando seu
limite na geração dos seres vivos. Por outro lado, as evidências e a filosofia do fim do Século
das Luzes tornaram a preexistência uma posição insustentável. A ênfase no caráter histórico e
não cíclico dos processos naturais, os conceitos de reprodução e hereditariedade, o cultivo de
híbridos, etc., tornaram inaceitável a idéia de que a geração dos seres vivos era o crescimento
de seres preexistentes. O desenvolvimento era inegavelmente um processo epigenético,
coubesse ou não dentro da ontologia mecanicista.
Um modo de resolver este dilema e conciliar o mecanicismo ao caráter eminentemente
epigenético do desenvolvimento foi proposto por Johann Friedrich Blumenbach (1752–1840)
e Immanuel Kant (1724–1804).
17
Eles recriaram a ontologia da tradição epigenética,
descrevendo o desenvolvimento como um processo mecânico direcionado para um fim, um
teleomecanicismo ou materialismo vital, para usar as expressões de Lennoir (1982).
As idéias de Blumenbach foram expostas pela primeira vez no tratado Uber den
Bildungstrieb und das Zeugungsgeschäft. A obra é marcada por uma explícita rejeição do
preformacionismo e a proposta de uma teoria epigenética do desenvolvimento alternativa e
original em relação às teorias anteriores. Blumenbach, inicialmente simtico ao
preformacionismo ovista de Haller, foi impelido a mudar de convicções por evidências como
a constatação de que espécies diferentes hibridizavam, que o cruzamento entre raças humanas
distintas produziam descendentes com características de ambos os pais e, principalmente, por
suas próprias observações sobre a capacidade de regeneração da hidra. Contudo, Blumenbach
§1
– 33 –
17
Sobre o problema da geração em Blumenbach e Kant ver Lenoir (1980; 1989); Richards (2000); Look (2006) e
Zammito (2003; 2006)
não abandonou o marco central da epistemologia preformacionista de que causas mecânicas
não podiam responder pela origem da organização. Nem tampouco aceitou a imposição da
organização sobre a matéria orgânica por uma força exterior. Entre o reducionismo
mecanicista e o vitalismo, Blumenbach atribui a geração dos seres vivos a uma força
emergente, própria da organização primordial dos seres vivos, que ele chamou de
Bildungstrieb ou impulso formativo. “Ele supôs que a estruturação do organismo requer uma
força capaz de prefigurar a organização estrutural e funcional a ser realizada, uma força que
encarna um tipo de plano imanente e o realiza por adaptação às circunstâncias externas e
internas [...]” (Duchesneau, 1999, p.77-78)
A característica mais importante e original da Bildungstrieb era ser uma força vital
imanente da organização dos seres vivos. O impulso formativo era uma propriedade da
estrutura inicial como um todo. Uma propriedade emergente da organização viva e não uma
propriedade dos seus constituintes. Ela não existia separada da matéria, nem era explicada
pelos elementos que a constituíam (Richardson, 2000). Tampouco, era imposta de fora para
dentro da organização, como uma espécie de alma ou força vital. Ela dependia e imanava da
organização primordial. Nesse aspecto, ela se diferenciava das proposições anteriores como o
molde interior de Buffon ou a vis essencialis de Wolff.
Em a Crítica da faculdade de julgar, de 1790, Kant discute, no longo apêndice sobre a
metodologia do julgamento teleológico, o conceito de Bildungstrieb. Assim como
Blumenbach, Kant estava interessado no problema da origem da forma orgânica e também
aceitava, inicialmente, as idéias preformacionistas. Segundo argumenta Phillip Sloan (2002),
o Kant da Crítica da razão pura, influenciado pelas teorias preformacionistas que formavam
o contexto intelectual do período, ainda possuía um entendimento do processo de geração
mais próximo às idéias de Haller, Maupertuis e Buffon, do que da epigênese posteriormente
defendida na Crítica da faculdade de julgar.
18
Embora Kant tenha escrito a expressão
“epigênese da razão pura” na segunda edição da Crítica da razão pura, tudo indica que Kant
tinha uma interpretação preformacionista das categorias a priori.
Na terceira crítica, Kant reavaliou suas idéias e propôs uma nova maneira de conceber
a geração orgânica. Ele discutiu duas posições em relação à formação dos seres vivos. A
primeira delas o ocasionalismo foi sumariamente rejeitada. Aceitar que cada ser era
§1
– 34 –
18
Ver também Müller-Sievers (1997) e Zammito (2003)
gerado por uma intervenção dividida representava renunciar a toda razão mecanicista. A
segunda posição o pré-estabelecimento das causas foi divida em outras duas: (i) a
preformação individual, ou teoria da evolução, afirmava que o embrião era um eduto,
19
isto é,
ele apenas se desenovelava; (ii) a preformação genérica, ou epigênese, afirmava que o
embrião era um produto, isto é, era re-produzido (Kant, , 1781 [1952]).
Kant preferiu a segundo opção. Negou que a geração dos seres vivos era apenas o
desenovelar de uma estrutura latente e defendeu que a geração era a produção real de um
novo ser vivo. Ao defender a epigênese, Kant afirmou que ninguém fez mais para estabelecer
sua realidade do que Blumenbach. Kant se apropriou do conceito de Bildungstrieb e o
reformulou como um princípio regulador. Os organismos, enquanto uma totalidade auto-
constituinte “em que tudo é fim e, reciprocamente, meio” (Kant, 1952), deviam ser tratados
como se eles fossem teleologicamente constituídos, como se o todo funcionasse para as partes,
como se houvesse uma finalidade guiando a geração da organização. A ciência estava livre de
responder como, por causas mecânicas, os organismos eram gerados. Por exemplo, era
possível, como um princípio regulador, presumir que o coração era gerado para realizar sua
função no todo bombear o sangue para o corpo e, então, investigar como este fim era
realizado. O fisiologista podia descobrir que a contração do coração expulsava o sangue de
seu interior para as artérias, que fluíam para o pulmão ou para o resto do corpo, etc., mas
jamais poderia vir a explicar como este coração era gerado em harmonia recíproca com o
todo.
A embriologia do início do século XIX se desenvolveu orientada pelo entendimento
teleológico e epigenético do processo embrionário. A nova embriologia aceitou que uma
explicação mecânica para o desenvolvimento não era possível (e neste aspecto concordavam
com as teorias preformacionistas). Nunca teríamos um Newton capaz de explicar
mecanicamente a geração de um talo de capim. A organização exigia uma explicação
teleológica. A geração devia ser entendida como um processo direcionado para um fim e
genericamente predeterminado pela organização. O organismo se desenvolvia guiado pela
adequação ao tipo. Como disse von Baer: “é auto-evidente que, embora cada passo do
desenvolvimento seja possibilitado pelo estado precedente, o curso total do desenvolvimento
é todavia regido e guiado pela natureza essencial do futuro organismo” (apud Russell, 1930).
§1
– 35 –
19
Edukt, em alemão. A mesma palavra utilizada por Harvey (educt) para se referir à mesma idéia de preformação.
Mas, uma vez aceito que o desenvolvimento era um fenômeno teleológico, era possível
descrevê-lo, investigar seu funcionamento e a variabilidade individual do tipo. Com o
teleomecanismo de Blumenbach e Kant, a despeito de qualquer mal-entendido recíproco
20
, o
problema da fonte de organização deixou de ser questionado (Roe, 1981).
A epigênese teleológica tomou uma dimensão ainda maior quando, influenciada pela
Naturphilosophen, surgiram teorias do desenvolvimento que passaram a explorar a
transformação da organização e a busca de simetrias e padrões entre tipos distintos (Guillo,
2003). O desenvolvimento individual passou a ser visto como parte do desenvolvimento de
todos os seres vivos. A mudança e o progresso se tornaram características inerentes aos seres
vivos. “Não apenas o desenvolvimento individual era visto como resultado de um poder
teleológico imanente, mas também a história da vida na Terra” (Roe, 1981, p.153).
Aceitar o desenvolvimento como um processo teleologicamente guiado a partir de
uma organização primordial teve grande valor estratégico. Liberada da necessidade de
resolver o problema da fonte de organização, a nova embriologia alemã descreveu de maneira
revolucionária a estrutura do embrião. A imagem do desenvolvimento que emergiu poucas
décadas mais tarde representava o embrião como um conjunto de células que se organizavam
em camadas germinativas, que se diferenciavam em tecidos, que migravam e se moviam
formando gradualmente cada órgão e cada parte do novo organismo. Um processo epigenético
como talvez nem Aristóteles, Harvey ou Wolff tivessem sonhado. Tudo indicava que o termo
preformação estava destinado à história da biologia. Mas, em 1894, Oskar Hertwig ainda
considerava o debate entre preformação e epigênese a grande questão da biologia
contemporânea.
§1
– 36 –
20
A Buildungstrieb, para Kant, tinha um papel meramente heurístico, regulativo, enquanto que para Blumenbach, tinha
papel um constitutivo, era um princípio causal não-mecânico. Segundo Richards (2000), Kant e Blumenbach jamais
perceberam estas diferenças.
— 2 —
Determinação e regulação
Com o surgimento do darwinismo, a partir década de 1860, a embriologia adquiriu
uma nova meta: fornecer evidências para a reconstrução das relações de parentesco entre os
diversos grupos de organismos. A primeira geração de evolucionistas se concentrou,
sobretudo, na tarefa de elucidar a árvore da vida (Bowler, 1996). Cada grupo de ser vivo, de
microorganismos a plantas e animais, foi ligado um ao outro em uma imensa seqüência
genealógica. As semelhanças entre as diversas espécies, antes associadas à unidade do tipo,
passaram a ser tratadas como evidências de um ancestral comum. Os tipos da embriologia
morfológica se tornaram filos. Nesta corrida pela descoberta das relações filogenéticas, nem
sempre a anatomia fornecia dados inequívocos e suficientes, principalmente entre grupos
distantes evolutivamente. Nestes casos, o embrião se mostrou uma evidência preciosa. Como
havia feito Étienne Geoffroy Saint-Hilaire (1772-1844), no início do século, a partir de uma
perspectiva pré-evolucionária, os evolucionistas empregaram a embriologia para poder
relacionar organismos tão distintos quanto moluscos, insetos e vertebrados. Acompanhando o
embrião, os cientistas descobriram homologias desenvolvimentais como, por exemplo, o
destino do blastóporo e a efêmera formação de arcos faringeais, que, por sua vez, permitiram
perceber, por exemplo, que os equinodermos e as ascídeas são mais aparentados aos
vertebrados do que aos demais invertebrados. O próprio Darwin havia afirmado que a
embriologia era “segunda para nenhuma outra evidência” da realidade da evolução (Darwin,
1959) e demonstrou, a partir da análise das larvas, que os cracas eram crustáceos e não
moluscos como se acreditava até então.
37
Mas a embriologia não ficou restrita à prova mais importante da teoria da
descendência com modificação. A evolução ou (desenvolvimento da espécie, como era
comum dizer na época) foi interpretada por alguns autores como a causa do desenvolvimento
individual. A interpretação da evolução como agente causal do processo embrionário teve em
Ernst Haeckel (1834-1919) seu mais célebre defensor. Haeckel formulou, a partir da
interpretação das idéias de Darwin, Étienne Geoffroy Saint-Hilaire, Johann Friedrich Meckel
(1781- 1833) e Von Baer, sua “lei biogenética”, segundo a qual a ontogenia recapitula a
filogenia.
21
Para Haeckel, os mecanismos responsáveis pela filogenia eram os mesmos
mecanismos que dirigiam a ontogenia. O que impulsionava o embrião era sua história
evolutiva (Nyhart, 1987). O desenvolvimento da espécie (filogenia) era o acúmulo do
desenvolvimento dos indivíduos (ontogenias).
Em 1874, o morfologista alemão Wilhelm His (1831-1904) expressou uma profunda
insatisfação com os excessos filogenéticos de Haeckel e a sua embriologia evolutiva (Gould,
1977; Maienschein, 1994). Segundo His, era necessário estudar a embriologia por si mesma.
Era preciso investigar as causas físico-químicas do desenvolvimento embrionário. “Não havia
necessidade de apelar ao passado histórico para uma explicação causal apropriada. [...] a
embriologia se basearia estritamente no estudo de processos desenvolvimentais ocorridos no
indivíduo e não em padrões evolutivos de mudança estrutural” (Maienschein, 1994, p.44).
Embora poucos pesquisadores tenham concordado com os mecanismos propostos por His
para explicar o desenvolvimento embrionário, muitos aceitaram seu convite para entrar no
labirinto das causas mecânicas. Para isso, fizeram da embriologia uma ciência experimental.
Apropriando-se da epistemologia da fisiologia, a nova embriologia rompeu com a tradição
estabelecida desde Kant e Blumenbach. O desenvolvimento deixava de ter um impulso, fosse
ele tipológico ou histórico. Ele deveria ser explicado mecanicamente e em referência ao
indivíduo a partir do método experimental.
§2
– 38 –
21
Haeckel foi um grande criador de termos, muitos esquecidos e alguns poucos célebres. Ontogenia e filogenia são
termos criados por Haeckel para se referir ao que entende-se atualmente como os processos de desenvolvimento e
evolução, respectivamente.
2.1 Da morfogênese à diferenciação celular
A embriologia experimental surgiu no fim do século XIX, em um ambiente intelectual
muito diferente daquele em que havia sido construída a embriologia descritiva. O século XIX
produziu a maioria dos alicerces da biologia contemporânea: a teoria celular, a fisiologia
experimental, a microbiologia e a teoria da evolução. Portanto, para compreender como o
antagonismo preformação e epigênese renasceu reformulado dentro da estrutura teórica da
embriologia experimental, é necessário, primeiro, explorar alguns destes elementos que
transformaram a biologia do século XIX. A discussão limitar-se-á aos elementos que
influenciaram mais diretamente a embriologia. Mais especificamente, serão discutido três
elementos que re-configuraram o problema da morforgênese (a geração da forma) em termos
de diferenciação celular (as transformações que as células passam durante a ontogenia): (i) a
identificação da hereditariedade como um fenômeno biológico distinto; (ii) o
desenvolvimento da teoria celular entre as décadas de 1840 e 1880 e (iii) o conceito de
material hereditário.
2.1.1 Hereditariedade
É evidente que fenômenos hereditários eram conhecidos antes do século XIX. A
origem do conhecimento de que os seres vivos dão origem a seres semelhantes e de que filhos
se parecem aos pais é certamente tão antigo quanto a humanidade. A domesticação de plantas
e animais, mais de dez mil anos, pressupõe este conhecimento. Da mesma forma, doenças
e anomalias hereditárias foram reportadas ao longo dos séculos. Contudo, a hereditariedade
não era reconhecida como um fenômeno distinto dos demais problemas da geração dos
organismos e assim permaneceu até o século XIX. Como visto no capítulo anterior, a
investigação da geração dos seres vivos não estava interessada em esclarecer como as
características dos pais eram passadas para os filhos. A pergunta era mais ampla. As teorias
diziam respeito à geração da forma. Perguntava-se se era possível ou não recriar os seres
vivos a cada geração. E, se possível, como? Na verdade, fenômenos hereditários, como, por
exemplo, a semelhança dos filhos com ambos os pais, foram usados como argumentos para
defender uma ou outra teoria da geração, mas não como um fenômeno a ser explicado por si.
Em geral, os pré-existencialistas negavam a realidade da hereditariedade, atribuindo as
semelhanças entre pais e filhos à ação do mesmo ambiente. Por outro lado, os epigenesistas
§2
– 39 –
alegavam que os femenos hereditários como, por exemplo, a manifestão de
características mistas em cruzamentos híbridos, eram evidências do caráter epigenético da
geração dos seres vivos (Terrall, 2007). A hereditariedade passou a ser reconhecida como um
domínio distinto dos demais domínios biológicos apenas no século XIX, tornando-se assim
acessível à análise (Müller-Wille e Rheinberger, 2007).
López-Beltran (1994; 2004; 2007) aponta a importância da comunidade médica
francesa no inicio do século XIX para a identificação de uma classe de fenômenos sobre a
égide do termo hereditariedade. O termo francês heredité (derivado do latim hereditas)
originalmente designava a transmissão de bens, títulos e propriedades de pais para filhos.
Antes do século XIX, o termo foi freqüentemente emprestado do contexto social e jurídico e
aplicado ao universo biológico, mas sempre na forma do adjetivo hereditário (p. ex. em
Maupertuis, Kant e Blumenbach). O termo qualificava a reaparição nos filhos de doenças,
anomalias e temperamentos dos pais, em expressões como, por exemplo, doença hereditária.
O substantivo hereditariedade foi introduzido pela comunidade médica francesa somente nas
primeiras décadas do século XIX. Mais do que uma mera mudança lingüística, a presença de
um substantivo indica a existência de uma coisa. A metáfora da hereditariedade havia sido
reificada como a causa comum subjacente a um conjunto de fenômenos biológicos (ver
também Pichot, 1999; Cobb, 2006).
A materialização da hereditariedade a partir dos estudos médicos contribuiu para a
discussão de outros temas de ordem mais geral. Na segunda metade do século XIX, o
conceito de hereditariedade passou a ser usado por naturalistas como um conceito explicativo
e adquiriu um papel central na explicação das relações taxonômicas e genealógicas (López-
Beltran, 2004). Em língua inglesa, o substantivo foi empregado pela primeira vez, no sentido
biológico, por Darwin e Spencer, na década de 1860, tanto o termo inglês inheritance quanto
o galicismo heredity (López-Beltran, 1994; Amundson, 2005).
A reificação da metáfora social como um fenômeno biológico a hereditariedade
implicou um novo tipo de causalidade no domínio da biologia. Jean Gayon (2000) faz uma
análise original de como a natureza desta causa foi concebida ao longo dos séculos XIX e
XX. As primeiras abordagens foram fenomenológicas. A hereditariedade foi concebida como
uma força conhecida apenas pelos seus efeitos, da mesma maneira que a força da gravidade.
A tentativa mais importante de quantificar a força hereditária foi elaborada por Francis
Galton e levada adiante pela biometria como o conceito de hereditariedade ancestral. A
§2
– 40 –
principal característica epistemológica da teoria da hereditariedade ancestral era, justamente,
ela ser meramente fenomenológica. Galton e a biometria não propuseram nenhuma hipótese
sobre os mecanismos hereditários. Segundo Gayon (2000), a análise fenomenológica da
biometria foi subjugada, no século XX, pela análise estrutural da hereditariedade proposta
pelo mendelismo e pela genética. A concepção da hereditariedade como força foi substituída
pela concepção da hereditariedade como estrutura. Mais adiante, discutirei como a abordagem
mendeliana instrumental da estrutura herediria se uniu à abordagem realista e
preformacionista proposta pela teoria cromossômica, dando origem à Teoria do Gene.
2.1.2 Teoria Celular
Diversos autores têm se esforçado em mostrar que a história da teoria celular é mais
complexa do que costumam apresentar os compêndios de história da biologia (e.g. Coleman,
1965; Maienschein, 1990; Sapp, 2003a). A simples atribuição da paternidade da teoria a
Schleiden e Schwann é uma versão simplificada da história. Embora seja possível apontar
nestes dois autores o início da moderna teoria celular, uma apreciação mais detalhada da
história mostra que ela difere do entendimento atual em pontos fundamentais. Ressaltar estas
diferenças é especialmente importante no contexto deste trabalho, pois a evolução da teoria
celular teve conseqüências diretas para a embriologia.
Segundo Sapp (2003), a teoria celular possui três princípios centrais: (i) todos os seres
vivos são compostos de células; (ii) as células são as unidades funcionais fundamentais; (iii)
toda célula surge da divisão de células preexistentes. Os dois primeiros princípios a célula
como unidade estrutural e funcional dos seres vivos possuem diversos precursores, mas
não contradizem, em geral, as idéias propostas por Schleiden e Schwann. Contudo, o mais
relevante para o desenrolar da embriologia pós-teoria celular é o terceiro princípio — a
continuidade celular. A teoria celular de Schleiden e Schwann contraria este princípio. Ao
invés da continuidade celular, eles acreditavam na livre formação das células. As células
originavam-se espontaneamente no ambiente. E este era um ponto central da teoria de
Schleiden e Schwann, pois seu argumento dependia do modo como surgiam novas células. O
suporte para a crença na célula como unidade da vida não era fornecida pela estrutura celular.
As células de diferentes tecidos e de diferentes seres vivos são estruturalmente muito
distintas. Para Schleiden e Schwann as células eram a unidade fundamental da vida, mas esta
§2
– 41 –
unidade se apoiava no modo de formação celular e não na estrutura ou continuidade
genealógica de todas as células. A unidade estava no processo, não na estrutura ou na
história.
22
A partir da década de 1850, a maioria dos pesquisadores passou a aceitar uma forma
ou outra da teoria celular. A discussão se concentrou nos princípios e detalhes da teoria. Neste
espírito, surgiram as críticas à teoria da livre formação das células. Diversos autores, em
coerência com o abandono da geração espontânea, questionaram que as células pudessem se
formar livremente no ambiente. A idéia de que a divisão celular, um fato muito tempo
observado e aceito, era a maneira exclusiva de como as células originavam-se ganhou força.
As células surgiam e se multiplicavam apenas por divisão. Em 1852, Robert Remak
demonstrou que o ovo de era uma célula e que as demais células do embrião formavam-se
pela divisão de células previamente existentes. Rudolf Virchow (1821–1902), estudando
tecidos animais, forneceu suporte à idéia de que toda célula se origina de uma célula
preexistente. Em 1855, ele proferiu um novo aforismo: omnis cellula e cellula toda célula
a partir da célula (Singer, 1947; Coleman, 1965; 1985; Maienschein, 1990; Mayr, 1998).
O princípio de que toda célula se originava apenas de outra célula serviu de marco
para discussões posteriores entre epigenesistas e preformacionistas. Ao se estabelecer que
todo desenvolvimento embrionário se originava de uma célula individual, restringiu-se as
especulações em torno da heterogeneidade ou homogeneidade do germe. O desenvolvimento
se iniciava como uma célula herdada de outro ser vivo.
2.1.3 Material hereditário
Com a teoria celular como alicerce conceitual, Darwin e Spencer iniciaram um
importante conjunto de teorias na segunda metade do século XIX a proposição da
existência de partículas intracelulares responsáveis pelos diversos fenômenos associados à
geração dos seres vivos. A célula como a unidade fundamental da vida e a continuidade
celular como o princípio que unia as gerações levaram à busca pela natureza estrutural dos
§2
– 42 –
22
Contemporâneos da embriologia teleológica alemã, Schleiden e Schwann acreditavam que a formação de novas
células era um processo epigenético. Para o botânico Schleiden, as células formavam-se pela coagulação de material
em torno de uma substância granular dentro da célula, que, ao se acumular, dava origem a um novo núcleo. O
zoólogo Schwann afirmava a existência de “uma substância sem estrutura […] capaz de produzir células”
chamada de citoblastema —, que se depositava em torno de um núcleo. Para Schwann, o processo ocorria no meio
ambiente, fora de células preexistentes (Coleman, 1965; 1985).
fenômenos geracionais para dentro da célula. A abordagem fisiológica e individual destas
idéias introduziu a noção de hereditariedade como continuidade estrutural, embora ainda não
houvesse uma metodologia quantitativa precisa para se inferir esta estrutura. Por motivos
práticos, irei empregar o termo teorias micromeristas, criado por Yves Delage (1903), para se
referir às teorias que postulavam a existência de partículas hereditárias.
23
Em 1861, o fisiologista alemão Ernst von Brücke (1796–1873) enfatizou a utilidade de
assumir a existência de unidades biológicas (Elementarorganismen) posicionadas
hierarquicamente entre as moléculas e as células (Wilson, 1900; Delage e Goldsmith, 1914).
Em 1863, Spencer adotou a hipótese similar das “unidades fisiológicas”. Spencer propôs que
as unidades que compunham os seres vivos, da mesma maneira que as unidades químicas em
cristalização, possuíam um poder inerente de assumir uma disposição definida, o qual chamou
polaridade. Cada espécie de animal ou planta, à maneira dos cristais, era composta por
unidades fundamentais próprias da espécie (Spencer, 1864).
24
A despeito da teoria precursora de Spencer, o papel de iniciador da moderna
perspectiva micromerista é melhor atribuído a Charles Darwin. Em 1968, Darwin publicou a
primeira edição do livro The Variation of Plants and Animals under Domestication, obra que
influenciou profundamente a tradição micromerista moderna. Nos dois volumes do livro,
Darwin discutiu extensamente todos os fenômenos conhecidos relacionados à geração dos
seres vivos, ilustrando-os com exemplos tirados da sua familiaridade tanto com o mundo
natural, quanto com a prática de criadores de plantas e animais. No final do segundo volume,
Darwin propôs a sua “hipótese provisória da pangênese”:
É universalmente aceito que as células ou unidades do corpo aumentam por auto-divisão ou
proliferação […]. Mas, além desta forma de aumento, eu proponho que as células liberam
pequenos grânulos que são dispersos por todo o sistema. […] Estes grânulos podem ser
chamados de gêmulas. Elas são coletadas de todas as partes do sistema para constituírem os
elementos sexuais e o desenvolvimento [das gêmulas], na próxima geração, forma um novo
ser vivo. (Darwin, 1883, p.370)
A teoria da pangênese, como Darwin reconheceu, possui semelhanças com a teoria de
Spencer. No entanto, a teoria de Darwin difere de Spencer em um ponto que se tornou
§2
– 43 –
23
Segundo Holmes (1948) e Rostand (1949), as teorias micromeristas, influenciadas pelo desenvolvimento da
química e da teoria celular, representaram uma forma de atomismo novecentista no mundo orgânico.
24
“E aqui a suposição a qual somos levados pelo conjunto das evidências é que as células germinais são
essencialmente nada mais do que veículos nos quais estão os pequenos grupos de unidades fisiológicas capazes de
obedecer à sua propensão em direção ao arranjamento estrutural da espécie a qual pertence” (Spencer, 1864, p.254).
fundamental para todas as teorias micromeristas posteriores: as gêmulas não eram mais todas
idênticas. Cada uma delas representava um tipo de célula do organismo e não mais o
organismo completo.
25
Dentro de cada célula havia um molde da própria célula e não mais um
molde de todo o organismo. As células sexuais atuavam como os centros concentradores de
gêmulas oriundas de cada célula do organismo. Por isso, a teoria de Darwin resgata a idéia
central das teorias pangenéticas propostas desde a Grécia antiga
26
(ver o capítulo 1). No
entanto, escrevendo após a teoria celular, Darwin fez uma inovação. Enquanto as teorias
anteriores falavam em partículas, humores ou fluidos que representavam as diversas partes do
organismo, na pangênese as gêmulas representavam as células do organismo adulto.
A historiografia neodarwinista, geralmente, diminui a importância do The Variation of
Plants and Animals under Domestication (e, principalmente, da hipótese da pangênese) na
obra de Darwin. A versão tradicional conta que Darwin, quando escreveu o The Origin of
Species, não possuía uma teoria da hereditariedade adequada. Darwin acreditava na teoria da
herança por mistura, na qual os materiais hereditários de ambos os progenitores se
misturavam nos seus descendentes, de modo que os filhos herdavam características que eram
uma média entre as características dos pais. A crença neste mecanismo hereditário rendeu-lhe
as piores críticas (sendo a mais notória a resenha da terceira edição do Origin of Species
escrita por Fleeming Jenking). Pressionado, Darwin formulou a teoria da pangênese um
equívoco a ser esquecido. Tivera Darwin tomado conhecimento da obra de Mendel e o eclipse
do Darwinismo teria sido evitado e a teoria sintética da evolução teria sido antecipada em
mais de meio século.
27
O grande equívoco na historiografia neodarwinista é atribuir à Darwin e à teoria da
pangênese uma resposta a uma pergunta que não estava formulada. Quando Darwin The
Variation of Plants and Animals under Domestication e propôs a hipótese provisória da
pangênese, não pretendia dar uma resposta aos fenômenos hereditários como entendidos hoje.
§2
– 44 –
25
Não como deixar de relacionar esta mudança de um tratamento tipológico das unidades fisiológicas em Spencer
para o tratamento populacional das gêmulas em Darwin, com a introdução do pensamento populacional de Darwin
no nível dos organismos.
26
Zirkle (1946) cita e discute dezenas de pensadores entre Demócritos e Darwin que adotaram teorias pangenéticas.
Darwin, em uma longa nota de rodapé acrescentada à segunda edição, reconheceu a semelhança de sua teoria com
teorias pangenéticas anteriores.
27
p. ex. “Se Darwin tivesse conhecido o trabalho de Mendel [...] poderia ter se poupado do embaraço de, no final da
carreira, haver endossado algumas das idéias de Lamarck (Watson, 2005, p.19). A origem desta versão historiográfica
é atribuída por Porter (2006) à R. A. Fisher (1930) e T. Dobzhansky (1937).
Darwin não pretendia descrever como ocorria a transmissão hereditária. Ou melhor, não
pretendia descrever apenas como ocorria a transmissão hereditária. Pois tal pergunta não faria
sentido para ele nem para qualquer outro pensador em meados do século XIX (Olby, 1991a).
A busca de Darwin era por um modelo que explicasse uma variedade maior de fenômenos do
que simplesmente a transmissão hereditária como entendida atualmente. A teoria da
pangênese visava explicar fenômenos como reprodução, metamorfose, regeneração e
atavismos, além da recentemente descoberta diversidade de modos de reprodução como
hermafroditismo, alternância de gerações e partenogênese (Farley, 1982; Müller-Wille e
Rheinberger, 2007). Darwin se perguntava:
Como é possível que um caráter possuído por um ancestral remoto de repente reapareça nos
descendentes; como os efeitos da diminuição ou aumento de um membro podem ser
transmitido para a criança; [...] como um híbrido pode ser produzido pela união de tecidos de
duas plantas independentemente dos órgãos de geração; como um membro pode ser
reproduzido na altura exata da amputação, nem mais, nem menos; como o mesmo organismo
pode ser produzido por processos tão diferentes quanto brotamento e geração seminal; e,
finalmente, como em duas formas afins, uma passa por complexas metamorfoses ao longo do
curso de seu desenvolvimento e a outra não, embora quando adultas ambas são iguais em cada
detalhe de suas estruturas. (Darwin, 1883, p.439)
Darwin não propôs uma teoria da transmissão hereditária, mas uma teoria da gênese
dos seres vivos: “Reprodução sexual e assexual […] não diferem essencialmente; e nós
mostramos que na reprodução assexual, o poder de re-crescer [i.e. regenerar] e o
desenvolvimento são todos partes de uma mesma grande lei” (Darwin, 1883, p.357). Hodge
(1985) leva ao extremo esta interpretação. Argumenta que a geração foi uma preocupação de
Darwin por toda sua carreira. A teoria da pangênese não fora um mero adendo subsidiário ao
projeto central de Darwin de uma teoria da evolução, mas a continuação de um amplo projeto
zoonômico iniciado com o The Origin of Species. Hodge no conjunto da obra de Darwin a
tentativa de formular um grande sistema da geração dos seres vivos, à maneira de Haeckel e
Spencer. Mesmo sem irmos tão longe quanto a interpretação de Hodge, que de fato parece
exagerada, não se pode negar que a teoria da pangênese extrapola a interpretação
neodarwinista. A teoria da pangênese não é simplesmente uma tentativa de defesa contra o
problema da herança por mistura, nem a proposta de um mecanismo plausível para a herança
de caracteres adquiridos. Ela é a proposta de uma teoria capaz de organizar uma vasta
quantidade de fenômenos antes desconexos e pouco entendidos (Vorzimmer, 1963; Geison).
§2
– 45 –
Esta discussão um tanto longa sobre a pangênese tem um propósito. Na apreciação da
teoria da hereditariedade de Darwin, principalmente devido à historiografia neodarwinista,
encontra-se com mais freqüência um mal-entendido comum ao tratamento histórico de todas
as teorias micromeristas: a não percepção de que o problema do desenvolvimento e da
hereditariedade era um e o mesmo. A explicação de ambos os fenômenos ocorriam em um
mesmo espaço epistêmico. As teorias micromeristas do século XIX, mesmo as de Galton e
Weismann (ver adiante), não distinguiam a hereditariedade do desenvolvimento. Elas
buscavam nas partículas hereditárias uma explicação para os diversos fenômenos relacionados
ao desenvolvimento da forma, incluindo a hereditariedade. “Os explananda incluíam uma
ampla ordem de fenômenos” (Burian, Richardson et al., 1996). Portanto, não se deve
confundir o conceito de hereditariedade em si com o conceito de transmissão hereditária. No
século XIX, a hereditariedade não era transmitida. Ela era desenvolvida. Os seres vivos re-
desenvolviam as características dos ancestrais. A noção de hereditariedade como transmissão
nasce no século XX com a teoria cromossômica da hereditariedade e amadurece com a teoria
do gene (ver adiante seção 2.3).
Embora, como dito antes, nem sempre seja reconhecido, The Variation of Plants and
Animals influenciou profundamente a direção dos trabalhos posteriores sobre a
hereditariedade e o desenvolvimento e pode ser considerada como a obra que resgata a
tradição preformacionista.
28
A obra impulsionou a discussão de uma série de novos
mecanismos, mesmo que, na grande maioria das vezes, para contrariá-los. Weismann
expressou de forma clara a importância das idéias de Darwin: “Eu apontei o quão
extremamente importante e frutífera sua teoria da pangênese tem sido: ela chamou a atenção,
pela primeira vez, para todos os fenômenos que necessitavam explicação e mostrou quais
suposições deveriam ser feitas a fim de explicá-los” (1893, p.4). No período posterior à
pangênese de Darwin, a busca de respostas para os fenômenos apontados em The Variation of
Plants and Animals levou ao que Mayr (1997, p.744) chamou de uma “orgia de especulações
desinibidas”. De uma maneira que hoje soa quase anedótica, praticamente todo autor
envolvido com o problema propôs sua própria entidade hereditária.
29
Todas elas supunham a
§2
– 46 –
28
W. K. Brooks (1883) e Weismann (1893) dedicaram seus livros sobre a hereditariedade a Charles Darwin. A
epígrafe de De Vries (1910) cita Darwin em sua autobiografia: “minha bem-abusada hipótese da pangênese”.
29
Entre as denominações de tais partículas encontram-se: unidades fisiológica (Spencer), micelas (Nägeli), gêmulas
(Darwin), idioblastos (Hertwig), pangenes (De Vries), biósforos (Weissman), plastidulos (d’Erlberg), moléculas vitais
(Haeckel) e granulações elétricas (Fol).
existência de partículas que, pelas suas propriedades e distribuição, representavam e
determinavam as características dos seres vivos.
Contudo, em paralelo a estas especulações micromeristas, muitos pesquisadores
voltaram seus microscópios para dentro da célula, especialmente, para o núcleo. Por volta de
1880, as elucubrações sobre as partículas hereditárias desenvolveram-se em diálogo com a
citologia, permitindo aprofundar a análise do que se chamou de as bases materiais da
hereditariedade. Cada vez mais, as especulações se apoiaram em observações e experimentos.
O aperfeiçoamento da microscopia, principalmente o uso de novos corantes e a introdução de
lentes de óleo de imersão (que permitem um aumento de 1000 vezes), mostrou a estrutura
celular além da tríade núcleo, protoplasma e membrana plasmática. Estruturas intracelulares
como as mitocôndrias, o complexo de Golgi e os cromossomos foram observadas
(Maienschein, 1990). O debate sobre a continuidade material migrou da célula para as
estruturas intracelulares. A hereditariedade passou a ser discutida no nível da continuidade da
estrutura intracelular. Sintomaticamente, na década de 1880, os citologistas e embriologistas
alemães passaram a empregar o termo Vererbung, mais comprometido com a idéia de
transmissão do que os termos anteriores Erbrecht e Erblichkeit, para se referir à
hereditariedade (Churchill, 1987). A hereditariedade estava sendo gradualmente relacionada à
transmissão de uma estrutura intracelular.
A grande maioria das discussões citológicas sobre hereditariedade remete às idéias do
botânico suíço K. W. Nägeli (1817–1891), também famoso pela sua correspondência com
Mendel. Embora Darwin tenha proposto que as gêmulas eram partículas intracelulares, a
citologia estava virtualmente ausente de sua teoria. As gêmulas eram germes celulares e não
estruturas intracelulares. As idéias de Nägeli foram importantes por integrar, pela primeira
vez, o micromerismo à citologia. Nägeli associou a hereditariedade não com a transmissão da
célula como um todo, mas com a transmissão de uma substância intracelular portadora das
bases físicas da hereditariedade, que ele chamou de idioplasma. O resto do material celular,
chamado de trofoplasma, não desempenhava um papel direto na hereditariedade. Nägeli não
relacionou o idioplasma à nenhuma estrutura celular em particular. Mas, após a publicação
das suas idéias, diversos autores identificaram o idioplasma com o núcleo. Hugo de Vries, por
exemplo, formulou uma espécie de neo-pangênese, rebatizando as gêmulas de Darwin de
pangenes e as isolando no núcleo, impedidas de circularem pelo corpo. A identificação do
comportamento dos cromossomos durante a fertilização, a mitose e a meiose impulsionou a
§2
– 47 –
interpretação de que o idoplasma estava contido no cromossomo. Em 1884, Hertwig,
Strasburger, Kölliker e Weismann propuseram quase simultaneamente que o núcleo continha
as bases materiais da hereditariedade e que o idioplasma era formado pelos cromossomos. Os
famosos aforismos sobre a continuidade estrutural da vida foram reduzidos por Fleeming a
omnis nucleus e nucleo (Wilson, 1900; Churchill, 1987; Maienschein, 1986).
30
2.2 Embriologia experimental
A união do micromerismo com os avanços da citologia fortaleceu a concepção
estrutural e individual da hereditariedade. A idéia de que existia um material hereditário,
inquestionável e onipresente durante o século XX, nasceu desta união. Hereditariedade e
desenvolvimento deveriam ser explicados em referência à diferenciação celular e à estrutura
da célula. A embriologia experimental surgiu entrelaçada a este contexto. Por volta do fim do
século XIX, diversos pesquisadores passaram a buscar uma maneira de incorporar métodos
experimentais à embriologia, que tinha sido, até então, basicamente uma ciência descritiva. O
interesse dirigiu-se, sobretudo, às causas da diferenciação celular. A abordagem fisiológica do
desenvolvimento defendida por His, em oposição à embriologia evolutiva, foi levada adiante
por autores como Eduard Pflüger, Wilhelm Roux, Oscar Hertwig e Hans Driesch. Apesar de
algumas contribuições de embriologistas franceses e ingleses, a embriologia experimental,
também conhecida por embriologia fisiológica, menica do desenvolvimento ou
Entwicklungsmechanik, foi uma disciplina eminentemente alemã (assim como havia sido a
embriologia comparada nas décadas anteriores).
A embriologia herdou o ideal experimental da fisiologia, primeiro ramo da biologia a
adotar métodos experimentais. O método experimental foi consagrado por Claude Bernard
(1813–1878) durante o século XIX, na França. Bernard havia demonstrado que muitas das
funções vitais podiam ser entendidas em termos físico-químicos. Para investigar estas
funções, defendeu como metodologia o controle dos procedimentos experimentais, isto é, a
manutenção de todas as influências exceto a que está sendo investigada. Contudo, Bernard
não estendeu os métodos experimentais ao problema do desenvolvimento, restringindo sua
§2
– 48 –
30
Cometi aqui um certo whiggismo comum à historiografia da genética que costuma narrar a descoberta de que os
cromossomos são os portadores do material hereditário como um processo triunfante de acúmulo de conhecimento
científico. Contudo, estou ciente de que o tema permaneceu controverso até, pelo menos, a década de 1940. E que,
como aponta Sapp (1983), a aceitação da idéia envolveu muito mais que o glorioso peso das evidências.
aplicação à fisiologia (Goodfield e Toulmin, 1982; Caponi, 2001). Coube à
Entwicklungsmechanik dar o passo que Claude Bernard hesitou em dar: intervir e manipular o
embrião e o ambiente embrionário. Fazer da embriologia uma ciência entre o estudo da forma
e o processo funcional que produz a forma. Entre a morfologia e a fisiologia (Maienschein,
1994).
Como mencionado no início do capítulo, a necessidade de tornar a embriologia
experimental foi apontada pela primeira vez por Wilhelm His (Russell, 1930; Gould, 1977;
Maienschein, 1994). A embriologia deveria fornecer uma explicação por causas físico-
químicas e abandonar a explicação histórica da embriologia evolutiva. Contudo, His não se
limitou a combater Haeckel e a convocar a embriologia à experimentação. Ele mesmo propôs
um mecanismo para o desenvolvimento e a diferenciação celular. Segundo His, o citoplasma
era composto por “regiões germinais formadoras de órgãos”, isto é, os órgãos estavam pré-
diferenciados no ovo. Durante o desenvolvimento, esta diferenciação inicial era traduzida na
diferenciação mais complexa do organismo adulto. O futuro organismo tinha seus órgãos pré-
localizados no citoplasma:
É evidente, por um lado, que todo ponto da região embrionária do blastoderma deve
representar um futuro órgão, e, por outro lado, que cada órgão desenvolvido do blastoderma
tem seu germe preformado em uma região definidamente localizada no folheto do disco
germinal [...] O disco germinal contém os órgãos germinais espalhados em um folheto plano e,
inversamente, cada ponto do disco germinal reaparece no órgão futuro. Eu chamo isto de o
princípio de regiões germinais formadoras de órgãos (His apud Wilson, 1900, p.398, itálicos
no original).
Na década de 1880, também na Alemanha, o fisiologista Eduard Pflüger (1829–1910)
direcionou suas pesquisas para o problema da determinação do sexo em sapos. Como não
podia ser diferente na época, a aquisição do sexo era entendida como um problema
desenvolvimental e não genético, no sentido de transmissão de fatores sexuais, pois a
hereditariedade e o desenvolvimento estavam entrelaçados em um mesmo domínio de
explicação. O sexo do indivíduo era algo que surgia durante a epigênese. “A maioria dos
biólogos assumia que a produção de um sexo ou outro em um indivíduo era algo que ocorria
durante o curso do desenvolvimento, estimulado, em parte, por fatores externos ao
organismo” (Maienschein, 1994, p.46). Portanto, de acordo com este entendimento, um
experimento desenhado para investigar a herança do sexo deveria buscar suas causas no
desenvolvimento. E assim o fez Pflüger. Para investigar a origem dos sexos em sapos, ele
§2
– 49 –
interveio no ambiente no qual eles se desenvolviam. Em seguida, Pflüger investigou o efeito
do campo gravitacional na ontogenia, concluindo que o primeiro plano de clivagem era
orientado pela ação gravitacional. De seus experimentos, Pflüger concluiu que o
desenvolvimento dependia de causas externas e, assim como havia sido demonstrado para a
fisiologia do organismo adulto, o desenvolvimento embrionário apresentava a capacidade de
regulação.
Na França, o principal nome da embriologia experimental foi Laurent Chabry (1855–
1894), herdeiro de uma importante tradição de pesquisa francesa a teratologia, estudo de
malformações causadas por perturbações do processo embrionário. A teratologia foi iniciada
por Étienne Geoffroy Saint-Hilaire
31
e levada adiante por autores como Isidore Geoffroy
Saint-Hilaire e Camille Dareste, chegando, no fim do século XIX, a Chabry. As alterações no
desenvolvimento provocadas pelos estudos teratológicos não empregavam uma metodologia
experimental, no sentido de serem procedimentos controlados e reproduzíveis. O importante
era alterar o desenvolvimento de modo a revelar a transformação das espécies. Não se
buscava entender como a forma era gerada. A obra de Chabry não teria se descolado da
tradição teratológica se a morte natural de algumas das células dos embriões de tunicados que
estava estudando não tivesse causado anormalidades desenvolvimentais. Chabry não teve
dificuldades em reproduzir experimentalmente estes resultados e percebeu que a perda de
células nos estágios iniciais levava, inexoravelmente, à ausência de estruturas no futuro
organismo. Cada blastômero, aparentemente, continha o potencial para uma determinada
parte do organismo (Sander e Fischer, 1992; Fischer, 1994).
As teses de His, Pflüger e Chabry, rapidamente mencionas aqui, são importantes
porque prenunciam, ainda no seu início, o conflito macro-teórico que ressurgiria dentro da
embriologia experimental. A discussão se o desenvolvimento era determinado pela estrutura
§2
– 50 –
31
A obra de Geoffroy Saint-Hilaire, produzida na primeira metade do século XIX, enquadra-se no que foi chamado
de morfologia transcendental. Geoffroy, ao contrário de Cuvier e Von Baer, defendia a existência de um plano de
organização comum a todos os animais. De polvos a estrelas-do-mar, de lagostas a homens, todos os animais
possuíam um mesmo plano de organização. Além da evidência descritiva em si, Geoffroy via no processo
embrionário também as causas das variações do plano de organização. A unidade do plano de todos os seres vivos
havia divergido a partir de transformações durante o processo embrionário. As causas das transformações eram as
variações de fatores ambientais durante o desenvolvimento. As variações, por exemplo, na quantidade de oxigênio
atmosférico, da temperatura, etc., durante as eras geológicas haviam levado o plano de organização original a divergir
até as formas animais presentes. Para provar sua teoria da unidade de plano e mostrar que as modificações se
originavam a partir de variações ambientais, Geoffroy conduziu experimentos teratológicos. Alterando a temperatura,
a posição e o aporte de oxigênio de ovos de galinha, Geoffroy pretendia produzir um plano de organização inferior
ou superior. Alterando as condições de incubação do ovo, por exemplo, ele pensava ser capaz de produzir um réptil
ou um mamífero
interna da célula ou se era regulado pelo diálogo com as influências externas reavivou a
discussão entre as tradições epigenética e preformacionista (Maienschein, 1986; Fischer,
2002). Se havia uma relação de isomorfismo entre cada blastômero ou parte do citoplasma e
as partes do futuro organismo, como apontaram His e Chabry, este estava predeterminado. Por
outro lado, se a aquisição de características como o sexo dependia de influências externas
durante o desenvolvimento, como defendido por Pflüger, o organismo não estava
predeterminado, mas emergia durante o processo.
O novo debate adquiriu um caráter bastante distinto dos debates anteriores. Mas, como
foi discutido no capítulo anterior, as tradições epigenética e preformacionista se
transformaram em congruência com panorama científico e filosófico de cada período. No fim
do século XIX, os auto-intitulados preformacionistas defendiam que a forma era
predeterminada pela estrutura do material hereditário contido nas células germinais, enquanto
os epigenesistas defendiam que a forma emergia da regulação de fatores desenvolvimentais e
fisiológicos. Preformação ou epigênese agora eram sinônimos de determinação ou regulação,
mosaico programado ou sistema responsivo. A primeira posição tem seu exemplo
paradigmático nas obras de Weismann e Roux. A segunda, em Hertwig e Driesch.
2.2.1 Preformação e determinação
Weismann escreveu sobre hereditariedade e desenvolvimento em diversos trabalhos,
mas sua obra mais famosa sobre o tema é o livro Das Keimplasma, publicado em 1892 e
traduzido para inglês no ano seguinte. No prefácio deste livro, Weismann explica que
inicialmente tinha simpatia por teorias epigenéticas, mas que estas se mostraram inadequadas:
Minhas dúvidas quanto à validade da teoria de Darwin por muito tempo não se restringiram a
este ponto apenas [o não isolamento das gêmulas nas células sexuais]: a suposição de que
existem constituintes preformados de todas as partes do corpo me parecia uma solução fácil
demais para o problema [...]. Portanto, me empenhei em verificar se era possível conceber que
o germe-plasma, embora de estrutura complexa, não era composto de tal imensa quantidade de
partículas e sua complicação posterior surgia subseqüentemente no decorrer do
desenvolvimento. Em outras palavras, o que eu buscava era uma substância da qual o
organismo inteiro pudesse surgir por epigênese e não por evolução [i.e. preformação]. Depois
de repetidas tentativas, eu, mais de uma vez, imaginei ter tido sucesso, mas após testes
adicionais, todas elas se mostram falsas e eu finalmente me convenci que um desenvolvimento
epigenético é impossível. Além disso, encontrei uma prova da realidade da evolução […].
(Weismann, 1882, p.xiii–xiv, itálicos no original)
§2
– 51 –
A prova consistia em mostrar como ocorria a diferenciação celular. Segundo
Weismann, a diferenciação celular resultava de diferenças internas entre as células. “A
igualdade ou diferença das células-filhas produzidas depende da igualdade ou diferença do
núcleo” (Weismann, 1889, p.193). Cada uma das células do organismo herdava, durante a
divisão celular, partículas distintas, chamadas de bióforos.
32
“A ontogenia depende do
processo gradual de desintegração do germe-plasma [...] No final, [...] apenas um tipo de
determinante permanece em cada célula [...] e à célula seu caráter específico
herdado” (Weismann, 1893, p.76–77). Para Weismann, as células se auto-diferenciavam: “o
destino das células é determinado por forças situadas dentro delas e não por influências
externas” (Weismann, 1893). Ao contrário do que os epigenesistas defendiam, Weismann não
aceitava que a posição da célula ou as condições externas do embrião pudessem influenciar a
direção do desenvolvimento. As diferenças internas de constituição, isto é, quais bióforos a
célula continha, determinavam seu destino ontogenético.
Embora na teoria de Weismann não houvesse uma pré-delineação da forma como no
pré-existencialismo mecanicista do século anterior, havia uma predeterminação do processo.
Havia uma predeterminação da ontogenia. E assim como em Buffon, Maupertuis e Darwin,
havia uma pré-diferenciação das partes do organismo no material germinal. No germe-
plasma, havia partículas destinadas a tornarem-se tanto os diferentes tecidos, quanto os
membros e órgãos do indivíduo adulto.
O preformacionismo de Weismann foi elaborado por Whilhelm Roux (1850–1924)
dentro da embriologia experimental. Roux é considerado pela maioria dos historiadores o
fundador da Entwicklungsmechanik. Embora seja difícil e talvez arbitrário afirmar quando
começa uma nova disciplina, o esforço de Roux para convencer a comunidade científica de
que a epistemologia experimental por ele proposta era a melhor maneira de investigar o
desenvolvimento e seu empenho para estabelecer institucionalmente a nova disciplina, mostra
que ele desejava o título de iniciador da embriologia experimental. Em 1984, Roux fundou o
jornal Archiv for Entwicklungsmechanik der Organismen, dedicado a publicar artigos que
rompessem com a embriologia morfológica e realizassem pesquisas experimentais. No
primeiro volume, publicou um longo manifesto pela embriologia experimental, defendendo
seu escopo, metodologia e filosofia. Em resumo, Roux defendeu que o objetivo da
§2
– 52 –
32
Os conjuntos de bióforos formavam os determinantes, os conjuntos de determinantes os ids e, finalmente, os
conjuntos de ids formavam os cromossomos.
embriologia era elucidar as causas mecânicas do desenvolvimento, que a experimentação era
o único método apropriado de investigação causal e que a investigação causal era única forma
legítima de ciência (Roux, 1986).
A teoria do desenvolvimento proposta por Roux é muito semelhante à teoria do
germe-plasma, a ponto de ser chamada por Wilson (1900) de teoria de Weismann-Roux.
Ambas defendiam que a ontogenia era um processo internamente determinado e
independente. Para Roux, ao menos nas fases iniciais da ontogenia, o desenvolvimento
ocorria como um mosaico auto-diferenciador onde o destino de cada célula era determinado
por sua estrutura interna. Assim como uma imagem em mosaico, o todo era formado por
partes independentes. Mas, ao contrário da teoria de Weismann, que não se apoiava em
praticamente nenhum dado concreto, Roux baseou sua teoria em dados experimentais. Em um
experimento que se tornou clássico, Roux colocou em teste as duas alternativas para o
desenvolvimento. De maneira clara, ele expos objetivo do seu experimento era:
Determinar se e se, o quanto o ovo fertilizado é capaz de se desenvolver independentemente
como um todo e em suas partes individuais. Ou se, pelo contrário, o desenvolvimento normal
pode ocorrer através das influências formativas diretas do ambiente no ovo fertilizado ou
através das interações diferenciadoras das partes do ovo separadas umas das outras pela
clivagem. (Roux, 1885, p.148)
O experimento de Roux consistiu em matar um dos blastômeros após a primeira
divisão celular de um ovo de sapo com uma agulha quente e acompanhar o desenvolvimento
do blastômero sobrevivente. Se o blastômero sobrevivente fosse capaz de compensar a
ausência do blastômero morto, seria demonstrado que o embrião era um sistema responsivo
capaz de regulação. No entanto, se o desenvolvimento procedesse na ausência de um dos
blastômeros como se nada houvesse acontecido, se o blastômero se transformasse exatamente
naquilo que ele teria se transformado na presença do outro blastômero, então o destino
ontogenético de cada célula estaria auto-determinado pela estrutura intracelular. Como o
plano da primeira clivagem em sapos determina a simetria bilateral do futuro organismo, na
ausência de um dos blastômeros, se não houvesse regulação, seria esperarado a formação de
meio organismo. E foi isto que, incrivelmente, o experimento mostrou. O blastômero
sobrevivente produziu apenas meia gástrula. A célula remanescente não compensou a célula
morta e o desenvolvimento transcorreu como estava pré-determinado pela sua estrutura
interna. “O desenvolvimento da gástrula de sapo e do embrião formado dela é, da segunda
§2
– 53 –
clivagem em diante, um trabalho em mosaico [...]” (Roux, apud Wilson, 1900, p.399). Ou,
como diria muitos anos depois o embriologista Hans Spemann: “De acordo com esta teoria,
todo simples primórdio se mantém lado a lado, separados uns dos outros, como pedras em
uma obra de mosaico e se desenvolve independentemente, embora em perfeita harmonia com
os outros, em um organismo final (apud Maienschein, 1994, p.249).
33
2.2.2 Epigênese e regulação
O preformacionismo de Weismann e Roux encontrou sua contraparte nos trabalhos de
Hertwig e Driesch. O livro de Hertwig: O problema biológico do nosso tempo: Preformação
ou epigênese deixa isto claro. O preformacionismo combatido no livro é praticamente
sinônimo das idéias publicadas dois anos antes em Das Keimplasma. A primeira metade do
livro consiste em criticar diferentes aspectos da teoria preformacionista de Weismann.
Hertwig questionou o valor heurístico e mesmo científico do neo-preformacionismo e o
comparou à estratégia das teorias pré-existencialistas por também dificultar a pesquisa das
causas do processo de desenvolvimento. A teoria de Weismann “obstrui a investigação, pois
não como testá-la. A esse respeito, ela é muito parecida a sua predecessora, a teoria da
preformação no século XVIII”. Criticou também a tese de que as causas do desenvolvimento
estavam contidas exclusivamente no germe-plasma. Para Hertwig, as propriedades do
organismo não podiam ser “representadas como partículas materiais preformadas como
determinantes na célula germinal” (Hertwig, 1929, p.199). No lugar da auto-determinação
germinal de Weismann, Hertwig propôs que a diferenciação era determinada por uma
seqüência ordenada de causas internas e externas à célula. A diferenciação celular era uma
sucessão de reações reguladoras.
É importante não confundir a posição de Hertwig com a negação da existência de um
material hereditário. A epigênese de Hertwig não presumia um óvulo desestruturado ou
homogêneo. Hertwig, assim como Weismann e Roux, acreditava que o núcleo era o portador
do material hereditário (fato que, aliás, ele havia sido um dos primeiros a defender). Ele
aceitava que existiam partículas hereditárias localizadas nos cromossomos, que chamou de
§2
– 54 –
33
Roux provavelmente obteve o resultado que esperava. Ele havia negado que o campo gravitacional orientava a
primeira clivagem em ovos de sapos, como defendido por Pflüger (Haraway, 2004). É possivel especular que a
imagem mecânica do desenvolvimento que ele tanto prezava o levou a favorecer causas internas do desenvolvimento.
A idéia organicista de regulação, embora importante para a fisiologia experimental, não era o objetivo da abordagem
analítica e mecânica que Roux defendia para a embriologia experimental.
idioblastos. Contudo, não aceitava que os idioblastos continham todas as causas do
desenvolvimento. Eles eram o material do desenvolvimento, mas não as causas. Uma
metáfora utilizada por Hertwig deixa claro seu entendimento: “Eu diria que os idioblastos são
comparáveis às letras do alfabeto que, embora sejam poucas, se combinam distintamente para
formar diferentes palavras. E diferentes combinações de palavras fazem frases com
significados diferentes (apud Fischer, 1994, p.40). O material hereditário era um material e
nada mais. Um material utilizado pela fisiologia da célula. Ele não era o agente causal do
desenvolvimento, pelo menos não o único. O argumento lembra a metáfora empregada por
Nijhout (1990) em uma crítica contemporânea à noção de gene. Para Nijhout, os genes devem
ser entendidos como recursos desenvolvimentais e não como controladores do
desenvolvimento. Da mesma forma, Hertwig acreditava que os idioblastos eram um recurso e
que as causas do desenvolvimento emergiam das sucessivas relações celulares:
Por outro lado, nós consideramos o desenvolvimento do germe como dependente de forças ou
causas que são externas ao germe-plasma do óvulo, mas que, no entanto, surgem de maneira
ordenada durante o curso do desenvolvimento. As causas que reconhecemos são, primeiro, as
mudanças contínuas nas relações mútuas que as células exercem umas com as outras enquanto
aumentam em número por divisão e, segundo, as influências do meio circundante sobre o
organismo. (Hertwig, 1896, p.103)
Além disso, Hertwig, apoiado nos dados recentes fornecidos pela citologia, acreditava
que a arquitetura do material hereditário permanecia constante e estável durante o
desenvolvimento. Não havia desintegração do material hereditário durante as divisões
celulares, como defendia a teoria de Weismann. A diferenciação era o resultado de alterações
fisiológicas nos idioblastos e não da sua variação quantitativa (Hertwig, 1896; Wilson, 1986).
Um dos exemplos discutidos por Hertwig para mostrar a importância das causas
externas para o desenvolvimento é a determinação do sexo por fatores ambientais em animais.
O exemplo é particularmente curioso porque a descoberta da determinação cromossômica do
sexo em insetos foi o principal argumento da teoria cromossômica da herança, formulada nos
primeiros anos do século XX. O fato de que existiam dois tipos de células segundo a
quantidade de cromossomos e que havia uma relação entre o número de cromossomos e o
sexo do inseto foi um argumento poderoso para a aceitação de que os cromossomos
determinavam a hereditariedade. Mas, ironicamente, Hertwig via na determinação sexual,
especialmente em espécies que apresentavam dimorfismo sexual, um dos argumentos mais
fortes a favor da sua teoria. Do fato de que larvas iguais podiam produzir ambos os sexos,
§2
– 55 –
mesmo em espécies cujas características sexuais secundárias diferem profundamente, ele
concluiu: “Machos e fêmeas, parecidos ou não, crescem do mesmo material germinal. O
material germinal em si é assexuado. Quer dizer, não há um material sexual masculino e outro
feminino” (Hertwig, 1896, p.123). O sexo, assim como as demais características do
organismo, não estava predeterminado no embrião ele era um produto do
desenvolvimento.
Um apoio importante para a neo-epigênese veio dos experimentos de Hans Driesch
(1867–1941) sobre o potencial de desenvolvimento dos primeiros blastômeros. Roux havia
demonstrado que as duas células resultantes da primeira clivagem de ovos de sapo não
possuíam o potencial para formar um novo indivíduo completo, mas estavam
predeterminadas. Driesch decidiu realizar um experimento similar, mas ao invés de ovos de
sapos, empregou ovos de ouriços-do-mar.
34
O experimento havia sido projetado para
confirmar as idéias de Roux, mas Driesch foi surpreendido com resultados contrários:
Esperei ansiosamente a imagem que estava para aparecer em minha placa no dia seguinte.
Devo confessar que a idéia de um hemisfério livre-natante ou meia gástrula com seu
arquêntero aberto longitudinalmente parecia algo um tanto extraordinário. Eu imaginava que
as formações provavelmente morreriam. No entanto, na manhã seguinte, encontrei, em suas
respectivas placas, blástulas típicas, mas com metade do tamanho. (Driesch, 1885, p.166)
O resultado do experimento mostrou que o embrião era capaz de compensar a perda de
um dos blastômeros e regular seu desenvolvimento. Ao contrário de uma peça de mosaico
independente, o experimento mostrou que o destino de cada célula dependia da sua posição
no todo. “A posição relativa de um blastômero no todo determina, em geral, o que se
desenvolverá a partir dele; se sua posição é alterada, ele origem a algo diferente; em outras
palavras, seu valor prospectivo é uma função da sua posição” (Driesch, apud Wilson, 1900).
O experimento de Driesch pode ser considerado o experimento fundador da
embriologia do século XX. Nele está a raiz da tradição de pesquisa da embriologia organicista
o conceito de regulação diacrônica do organismo. A homeostase estática da fisiologia fora
apropriada para descrever o processo dinâmico do desenvolvimento. Como descreve
Canguilhem:
§2
– 56 –
34
A escolha do animal modelo viria a ser decisiva. Em ouriços-do-mar não era necessário perfurar um dos
blastômeros para realizar o experimento. Bastava chacoalhar a placa com água onde os ovos estavam para que os
blastômeros espontaneamente se separassem. Os resultados obtidos por Roux com ovos de sapo foram
influenciados pela não remoção do blastômero morto. Em 1910, quando novas técnicas permitiram a separação dos
blastômeros de ovos de sapos, eles se mostraram capazes de compensar a perda de um dos blastômeros.
Ao reconhecer, nos primeiros blastômeros de um ovo em desenvolvimento, uma
“potencialidade total”, isto é, uma capacidade de impor ou transformar de uma parte uma
regra de conformidade com a estrutura de um todo, os embriologistas tinham completado e
confirmado o reconhecimento efetuado pelos fisiologistas, de funções controladoras de outras
funções, e que, pela manutenção de certas constantes, permitiam ao organismo comportar-se
como um todo. As estas funções foi dado, no último terço do século XIX, o nome de
“regulação”. (Canguilhem, 1977)
E. S. Russell (1930), em um capítulo chamado “Algumas teorias epigenéticas
modernas”, buscou reunir um conjunto de teorias que, nas primeiras décadas do século XX,
continuavam abordando o desenvolvimento epigeneticamente. O resultado é uma lista de
pesquisadores que hoje são reconhecidos como os primeiros embriologistas do século XX:
Yves M. Delage (1854–1920), Edwin G. Conklin (1863–1952), Charles M. Child (1869–
1954) e Hans Spemann (1869–1941). Para estes autores, o problema do desenvolvimento era
uma questão de regulação da morfogênese e o foco estava no organismo e nas relações
intercelulares. A tradição de pesquisa neo-epigenética seguiu com a embriologia do século
XX na forma de uma embriologia organiscista (no caso específico de Driesch, vitalista). a
tradição de pesquisa neo-preformacionista encontrou seu nicho em uma nova disciplina.
2.3. A teoria do gene
Um nome foi omitido até agora dentre os embriologistas experimentais: Thomas Hunt
Morgan (1866–1945). Aquele que seria o fundador da teoria do gene na segunda década do
século XX era um dos principais nomes da embriologia nos Estados Unidos. Logo após
terminar sua graduação, em 1891, Morgan largou a tradição morfológica sob a qual havia sido
formado e aderiu ao novo programa experimental. Favorável à epigênese, seus primeiros
trabalhos incluíram a confirmação das observações do seu colega Driesch sobre a capacidade
de regulação dos primeiros blastômeros, o estudo da regeneração e a aplicação do conceito de
gradiente em embriologia (Morgan, 1898; 1901; Wolpert, 1991).
Morgan, junto a Edmund Beecher Wilson (1856–1939), Edwin Grant Conklin,
Theodor Heinrich Boveri (1862–1915), entre outros, podem ser considerados representantes
de uma segunda geração da disputa entre preformação e epigênese dentro da embriologia
experimental. Dispondo dos avanços da citologia, eles polemizaram em torno de uma nova
questão: se as atividades do desenvolvimento eram controladas pela microestrutura
intercelular ou por moléculas solúveis de acordo com as leis físico-químicas (Gilbert, 1978).
§2
– 57 –
Ou, da maneira direta que a disputa logo viria a tomar: o desenvolvimento era direcionado
pela morfologia do núcleo ou pela química do citoplasma.
Como foi visto na seção 2.1.3, a idéia de que os cromossomos portavam o material
celular obteve grande aceitação a partir das duas últimas décadas do século XIX. O
comportamento dos cromossomos durante a fertilização, a mitose e a meiose havia chamado
atenção para sua provável importância na hereditariedade. No fim do século XIX, Boveri, que
em 1902 seria o primeiro a cogitar a relação entre o mendelismo e a dinâmica dos
cromossomos, realizou um experimento que fortaleceu ainda mais a interpretação de que os
cromossomos controlavam a hereditariedade. Boveri fertilizou um óvulo sem o núcleo de uma
espécie de ouriço-do-mar com o esperma de outra espécie. O ovo haplóide resultante desta
hibridização continha apenas o núcleo paterno derivado do espermatozóide. Como a larva do
híbrido lembrava aquela da espécie paterna, Boveri concluiu que o núcleo controlava a
hereditariedade (Gilbert, 1987). As idéias de Boveri foram saudadas por Wilson em seu
influente livro-texto The Cell in Development and Inheritance. Para Wilson, o núcleo
controlava o desenvolvimento secretando substâncias para o citoplasma. “Ambos são
necessários para o desenvolvimento, mas o núcleo sozinho é suficiente para a herança de
possibilidades específicas de desenvolvimento” (Wilson, 1900, p.11). A hereditariedade era
cromossômica.
A idéia de que os cromossomos controlavam a hereditariedade despertou o interesse
de Morgan e ele direcionou suas pesquisas para o interior da célula. No entanto, seus próprios
experimentos indicaram que o desenvolvimento era controlado pelo citoplasma e não pelo
núcleo. Por exemplo, ele demonstrou que a incapacidade de blastômeros pequenos em
produzir embriões inteiros era devida ao volume de citoplasma contido neles e não à perda de
material cromossômico, como seria esperado pela teoria de Roux. Outros experimentos,
realizados em co-autoria com Driesch, demonstraram que a retirada de material
citoplasmático de ctenóforos produzia larvas aberrantes (Gilbert, 1987). As evidências obtidas
pareciam não deixar dúvidas de que o desenvolvimento inicial do embrião era controlado pelo
citoplasma. O volume citoplasmático do embrião como um todo, e não o núcleo individual de
cada célula, guiava a ontogenia.
Em 1902, Walter Sutton, o novo aluno do laboratório de Wilson, inspirado em um
artigo de Boveri (1902), escreveu um comentário associando a segregação mendeliana ao
comportamento dos cromossomos durante a meiose:
§2
– 58 –
Para finalizar, eu gostaria de chamar atenção para a probabilidade de que a associação dos
cromossomos paternos e maternos em pares e sua subseqüente separação durante a divisão
redutora [i.e. meiose], como mostrado acima, pode constituir as bases físicas das leis
mendelianas da hereditariedade. Eu espero retornar em breve a este assunto em outra
oportunidade. (Sutton, 1902, p.39)
E, de fato, Sutton retornou ao assunto no ano seguinte expondo de modo detalhado sua
interpretação citológica das leis mendelianas de segregação independente dos genes e alelos
(1903). A proposta de Sutton foi retrabalhada por Wilson e Stevens, dando origem à teoria
cromossômica mendeliana da herança (TCMH). No mesmo período, outra evidência da
correlação entre os cromossomos e a hereditariedade foi fornecida pelo estudo da
determinação sexual em insetos, fortalecendo assim a concepção cromossômica da
hereditariedade. A análise de dezenas de espécies de insetos mostrou que machos e fêmeas
diferiam cromossomicamente (Mcclung, 1902; Stevens, 1905; Wilson, 1905).
Contudo, Morgan permaneceu cético e não aceitou que os cromossomos controlavam
a hereditariedade e o desenvolvimento (Benson, 2001). Ele continuou cauteloso tanto em
relação à TCMH, quanto à proposta de que o sexo era determinado pelos cromossomos.
Morgan acusou o mendelismo de estar transformando “fatos em fatores” (Morgan, 1909b) e
em tom de aprovação citou Oscar Ridle: “A natureza da interpretação e descrição mendeliana
está inextricavelmente comprometida com a ‘doutrina das partículas’ no germe ou outro lugar
qualquer. [...] Ela é, essencialmente, uma concepção morfológica com apenas um resquício de
caráter funcional. Com um olho vendo apenas partículas e um discurso apenas as
simbolizando, não tal coisa como o estudo de um processo [...] (Morgan, 1909a, p.509).
Assim como Hertwig, Morgan defendia que os ovos e os primeiros estágios do embrião
tinham a potencialidade de se tornarem ambos os sexos. A determinação sexual dependia da
dinâmica de influências internas e externas durante a ontogenia (Maienschein, 1984). Para
Morgan “[...] a determinação do sexo não deve ser o resultado da divisão nuclear diferencial
que dispõe os cromossomos determinantes do sexo em células diferentes, o processo é
químico ao invés de morfológico” (Morgan, 1905, p.841). Até o fim da primeira década do
século XX, Morgan favoreceu a interpretação epigenética do desenvolvimento em relação ao
preformacionismo:
A interpretação atualmente aceita da herança mendeliana é estritamente preformacionista [...]
Quais destes pontos de vista, preformação ou epigênese, podemos considerar mais útil como
hipótese de trabalho é, na minha opinião, a questão do momento. Minha preferência ou
§2
– 59 –
talvez preconceito é pela interpretação epigenética, mas a verdade pode estar em algum
lugar entre estas duas formas de pensamento que são Cila e Caribdes das especulações
biológicas. (Morgan, 1907, p.384)
A “conversão” de Morgan, como é freqüentemente chamada sua aceitação repentina
do mendelismo e do papel dos cromossomos no desenvolvimento, ocorreu em 1910. As
causas que levaram Morgan a mudar tão radicalmente de opinião são variadas e controversas,
passando por motivos empíricos, filosóficos e institucionais. Mas o fato é que as pesquisas
com um novo organismo modelo a mosca Drosophila melanogaster lhe oferecu
evidências contundentes. Ele ainda acusava a teoria cromossômica da hereditariedade de
preformacionista quando começou a obter dados ligando a herança do sexo à herança de
mutações. O evento decisivo para a conversão de Morgan e que produziu o experimento
exemplar da teoria do gene se iniciou com a aparição de uma mosca de olhos brancos entre
centenas de moscas normais de olhos vermelhos. O cruzamento desta mosca com uma mosca
normal produziu uma geração composta apenas de moscas de olhos vermelhos. No entanto, o
cruzamento entre as moscas desta geração produziu um resultado surpreendente: cerca de
metade das moscas era de fêmeas de olhos vermelhos, um quarto era de machos de olhos
vermelhos e o quarto restante era formado por machos de olhos brancos. Não havia uma única
fêmea de olhos brancos (Morgan, 1910b). O experimento fornecia uma evidência
inquestionável de que havia uma ligação entre a segregação do sexo e a cor do olho. Como
havia sido demonstrado que a determinação do sexo em moscas drosófilas era cromossômica,
a ligação da segregação mendeliana de um caráter ao sexo era um indício de que o caráter
também era determinado pelos cromossomos, como defendia a TCMH. Um ano depois,
Morgan demonstrou que além da cor do olho, a cor do corpo e o formato da asa também se
segregavam juntos ao sexo.
As evidências a favor da TCMH foram recebidas de bom grado pela nova geração de
estudantes de Morgan — Sturtevant, Muller e Bridges —, todos ex-alunos de Wilson e
simpáticos à teoria cromossômica da herança. Em menos de uma década, eles mapearam
cerca de 400 mutações em Drosophila e, em 1915, o grupo publicou The Mechanism of
Mendelian Heredity, a primeira tentativa de unificar e apresentar sua nova interpretação da
hereditariedade.
A consolidação de uma nova disciplina inclui também contar sua história. E, a partir
da década de 1920, a teoria do gene ou genética começou a contar a sua. Segundo Gilbert
§2
– 60 –
(1998a), a teoria do gene costuma reconhecer três influências fundadoras (além de Mendel, é
claro): os criadores de plantas e animais, a citologia e o mendelismo (p. ex Dunn, 1965;
Sturtevant, 1965). Os criadores de plantas e animais contribuíram com o papel de
investigadores pré-científicos da hereditariedade. O “mendelismo evolutivo” de Bateson e De
Vries contribuiu com o resgate de Mendel. A contribuição da citologia é limitada a desvendar
o papel dos cromossomos como portadores do material hereditário e preparar o caminho para
descoberta dos mecanismos mendelianos. Apesar da evidente importância da embriologia
para a formulação da teoria do gene, sua influência foi quase que completamente omitida. A
historiografia da genética, começando pela história contada pelo próprio Morgan (1932), fez
questão de ignorar suas origens embriológicas (Gilbert, 1978; Oppenheimer, 1983). No
entanto, é inegável que a teoria do gene nasce de dentro da embriologia experimental, fruto do
debate sobre como ocorria o processo de desenvolvimento e quem o controlava, o núcleo ou o
citoplasma. E, em última instância, se o desenvolvimento era um processo predeterminado ou
regulativo. Esta perspectiva, com o tempo esquecida pela imposição da historiografia
genética, é evidente quando Russell, por exemplo, ainda em 1930, escreve uma história das
teorias da hereditariedade e do desenvolvimento. Ele não teve dúvidas em ligar a teoria do
gene à embriologia experimental e às teorias micromeristas, colocando-a, especificamente, ao
lado da perspectiva preformacionista: “As teorias do germe-plasma e do gene, e de fato todas
as teorias lidando com partículas hipotéticas condicionando ou determinando o
desenvolvimento, pertencem, claro, à mesma corrente de pensamento que produziu as teorias
da preformação anteriores” (Russell, 1930, p.76). A ligação da teoria do gene com o
micromerismo não escapou ao próprio Morgan, que teve de se defender de críticas
semelhantes as que ele mesmo dirigia ao mendelismo cromossômico dez anos antes:
A tentativa de explicar o fenômeno biológico por meio de partículas representativas foi feita
com freqüência no passado. A semelhança superficial da teoria do gene com algumas teorias
anteriores muito abandonadas, tem oferecido aos oponentes da teoria mendeliana a
oportunidade de atacá-las fingindo que a idéia moderna do gene é igual às idéias de Herbert
Spencer a respeito das unidades fisiológicas, de Darwin em relação aos pangenes e,
principalmente, de Weismann sobre os bióforos. [...] Não é necessário negar, no entanto, que
uma conexão histórica entre a teoria da preformação medieval e a teoria particulada da
herança. (Morgan, 1919, p.234)
Contra as acusações de que a teoria do gene não diferia das teorias micromeristas
anteriores, Morgan tratou de mostrar o que as distinguiam. A primeira diferença apontada é
§2
– 61 –
que as teorias anteriores explicavam tanto o desenvolvimento quanto a hereditariedade. “De
fato, toda teoria de Weismann foi inventada para explicar primariamente o desenvolvimento
ao invés da genética (Morgan, 1919). A teoria do gene dividiu ontológica e
metodologicamente o organismo em uma dimensão horizontal hereditariedade e em
uma dimensão vertical — o desenvolvimento e se comprometeu a explicar apenas a
primeira delas (ver adiante a seção 2.3.2).
A outra diferença entre a teoria do gene e a tradição micromerista é a natureza da
evidência na qual as teorias se apoiaram. A teoria do gene apropriou-se da metodologia do
mendelismo para obter evidências da estrutura hereditária. Os famosos experimentos de
Mendel trataram caracteres descontínuos rugoso, liso, verde, amarelo, etc. pela sua
probabilidade de distribuição. Ele analisou os resultados de cruzamentos por várias gerações e
percebeu que alguns caracteres presentes na primeira, mas ausentes na segunda, reapareciam
na terceira geração. Tudo se passava como se o caráter fosse determinado por dois elementos
distintos que não se misturavam cada um proveniente de um dos progenitores. A
interpretação dos trabalhos de Mendel no início do século XX, principalmente por William
Bateson (1902), criou o mendelismo e formulou explicitamente as duas leis de Mendel. A
primeira lei afirmava que as variações dos fatores mendelianos (os alelos) se segregam
separadamente. A segunda lei afirmava que os fatores mendelianos (os genes) se segregam
independentemente.
A abordagem mendeliana da hereditariedade tem muito em comum com a biometria
de Galton, Pearson e Weldon. Ambas as abordagens não se interessaram em explicar a
fisiologia da hereditariedade. Elas apenas estudavam o padrão de distribuição das
semelhanças e das variações entre gerações e nenhuma delas contemplava o problema do
desenvolvimento. Tanto o mendelismo quanto a biometria foram projetados para explicar as
diferenças entre indivíduos e a segregação destas diferenças em uma população (Webster e
Goodwin, 1996). No entanto, seguindo a análise de Gayon (2000), mencionada na seção
2.1.1, duas rupturas epistemológicas na abordagem mendeliana em relação à biometria: (i)
para a biometria, a hereditariedade era quase sinônimo de descendência ou linhagem. Ela era
uma força que agia como a soma de influências dos antepassados, como denota a expressão
hereditariedade ancestral utilizada por Galton. No mendelismo, a hereditariedade deixa de
ser uma questão de força ancestral e passa a ser uma questão de estrutura da descendência. O
que importa é a constituição hereditária das gerações anteriores. (ii) Conseqüentemente, as
§2
– 62 –
duas abordagens diferem quanto ao uso da matemática: para os biometristas a estatística era
uma ferramenta para medir uma magnitude. para os mendelistas, “a tarefa da análise
estatística era revelar a estrutura genotípica individual e a dinâmica de recombinação entre
unidades” (Gayon, 2000, p.77). Como disse o mendelista Johannsen, a hereditariedade deve
se investigada “com matemática, não como matemática” (Sapp, 2003a, p.135).
Eis aqui o ponto que Morgan chama a atenção em favor da sua abordagem: o
mendelismo permitia a inferência da estrutura hereditária. As especulações micromeristas
deduziam a estrutura hereditária de pouco mais do que a necessidade de uma explicação da
hereditariedade coerente com a teoria celular e a citologia. Não era isso que fazia a teoria do
gene. A nova teoria foi inferida “passo por passo de evidências genéticas experimentalmente
determinadas e cuidadosamente controladas em cada ponto” (Morgan, 1926, p.31). O gene
não era uma entidade hipotética, era uma variável operacional.
A maior virtude da teoria do gene em relação ao mendelismo é que ela amplia esta
capacidade de mensuração da estrutura hereditária (Gayon, 2000). O mendelismo, na sua
forma original, não se comprometia com a realidade das estruturas hereditárias. Bateson e
Johannsen propuseram a genética como uma ciência independente da embriologia e da
citologia, comprometida exclusivamente com os dados genealógicos dos experimentos de
hibridização (Olby, 1985). Quando Wilhelm Johannsen propôs o termo gene, buscava uma
nova palavra que estivesse livre da contaminação do preformacionismo associado às
partículas das teorias micromeristas. O termo pretendia simplesmente especificar o fato de
que certas características do organismo comportavam-se como unidades que se segregavam
segundo as leis de Mendel:
A palavra gene é completamente livre de qualquer hipótese; ela expressa apenas o fato certo
de que muitos caracteres do organismo são de alguma forma estipulados pelas condições,
rudimentos ou germes [Anlagen] especiais, separáveis e, conseqüentemente, independentes
que estão presentes nos gametas [...] quanto à realidade do ‘gene’ ainda não vale a pena propor
qualquer hipótese; mas que a noção de gene cobre uma realidade, é evidente no mendelismo.
(Johannsen, 1911, p.133)
O gene era reconhecido pelo seu “representante”, o caráter, ou mais precisamente, pela
aparição alternativa do caráter. Este, por sua vez, era definido como uma unidade fenotípica
transmitida segundo as leis de Mendel, sendo, portanto, tanto o gene quanto os caracteres
identificados pelos seus efeitos (Falk, 1984). De fato, os primeiros geneticistas, como Bateson
§2
– 63 –
(1861–1926) e De Vries (1848–1935), referiam-se à unidade de herança como “caráter-
unidade”, indiferentemente para a unidade ou para o caráter (Burian et al., 1996).
Mas, evidentemente, a intenção de Bateson e Johannsen de afastar o mendelismo da
embriologia e da citologia falhou. Na segunda década do mendelismo, a disciplina foi
invadida pelas moscas drosófilas e seus cromossomos. O gene passou a ser definido como
uma estrutura especificamente localizada no cromossomo a partir da metodologia mendeliana.
Eis a formulação da Teoria do Gene na sua forma madura:
A teoria propõe que os caracteres do indivíduo se referem aos elementos pareados (genes) no
material germinal que estão agrupados em um número definido de grupos de ligação; propõe
que os membros de cada par de genes se separam [...] de acordo com a primeira lei de Mendel
e em conseqüência cada célula germinal contém apenas um membro do par; propõe que os
membros pertencentes a grupos diferentes de ligação se segregam independentemente de
acordo com a segunda lei de Mendel; propõe também que ocorre [...] crossing-over entre os
elementos dos grupos de ligação correspondentes; e propõe que a freqüência de crossing-over
fornece evidência da ordem linear dos elementos em cada grupo de ligação e da posição
relativa dos elementos em relação uns aos outros. (Morgan, 1926, p.25, itálicos meus)
O conceito de grupo de ligação e a relação da freqüência de crossing-over com a
localização cromossômica permitiram não apenas inferir a estrutura hereditária, como
também associá-la à estrutura morfológica da célula. Ao impor uma condição à segunda lei de
Mendel
35
os genes se segregavam independentemente apenas se pertencessem a grupos de
ligação diferentes foi possível relacionar os genes aos cromossomos. Ao propor que “a
freqüência de crossing-over fornece evidência da ordem linear dos elementos em cada grupo
de ligação e da posição relativa dos elementos em relação uns aos outros” a teoria do gene
forneceu uma descrição cartográfica da estrutura hereditária. O fator mendeliano tornou-se
uma posição no cromossomo, um loco.
Com a definição do gene como um loco cromossômico, a interpretação instrumental
do conceito de gene dos mendelistas foi gradualmente sendo substituída pela interpretação do
gene como uma entidade real posicionada sobre o cromossomo a famosa imagem do colar
de contas. Embora sua estrutura material não fosse conhecida, ele existia como uma partícula
no cromossomo, determinante do fenótipo, que se segregava segundo as leis mendelianas.
Como disse Falk (2003), as modernas técnicas de seqüenciamento de DNA são uma extensão
direta dos mapas cromossômicos da teoria do gene.
§2
– 64 –
35
Esta modificação da segunda lei do mendelismo fornece um bom exemplo de alteração do núcleo duro de uma
teoria, como defendido por Laudan contra Lakatos.
Os fundadores da genética ainda permaneceram divididos por um longo tempo quanto
a se o gene era uma entidade real ou um recurso instrumental para o estudo da transmissão
hereditária. Para E. M. East (1879–1938), o gene funcionava como um recurso contábil:
“Quase quinze anos atrás, tentei defender a tese de que o método mendeliano de registrar os
fatos da herança era simplesmente uma noção útil para a descrição de fatos
fisiológicos” (East, 1926). Para Herman J. Muller (1890–1967), que havia demonstrado que
raios-X induziam mutações, o gene representava uma espécie de substância orgânica:
Além dos ordinários carboidratos, lipídios, proteínas e extratos de vários tipos, na célula
milhares de substâncias distintas os “genes”; estes genes existem como partículas
ultramicroscópicas; no entanto, sua influência permeia toda a célula [...] os genes estão no
cromossomo [...] A composição química dos genes e a fórmula das suas reações permanecem
bastante desconhecidas. (Muller, 1922)
Ao receber o prêmio Nobel, em 1933, pelas “suas descobertas a respeito do papel dos
cromossomos na hereditariedade”, Morgan sintetizou o estado do conhecimento do período e
deixou claro que o gene não era uma mera partícula hipotética, mas uma variável com a qual
era possível inferir a estrutura hereditária:
Qual a natureza dos elementos hereditários que Mendel postulou como entidades puramente
teóricas? O que são genes? Agora que nós os localizamos nos cromossomos estamos
justificados em considerá-los como unidades materiais; como corpos químicos de ordem
superior às moléculas? [...] Não há opinião consensual entre os geneticistas sobre o que são os
genes — se eles são reais ou puramente fictícios [...] Em qualquer dos dois casos a unidade [o
gene] é associado com um cromossomo específico e pode ser localizado pela análise
puramente genética. (Morgan, 1965, p.316)
2.3.2 Hereditariedade e desenvolvimento
A distinção entre genótipo — “a dotação genética de um indivíduo” e o fenótipo —
“o corpo em que esse genótipo se transformou durante o desenvolvimento” (Mayr, 1998) — é
um dos alicerces da biologia contemporânea. Contudo, a despeito das duas noções
§2
– 65 –
desempenharem um papel central na tradição de pesquisa preformacionista que dominou a
biologia do século XX, suas origens e significados são confusos.
36
Em geral, a distinção entre genótipo e fenótipo é considerada conseqüência ou mesmo
sinônimo do weismannismo. Mas, quando ela foi proposta por Johannsen, em 1909, não se
referia às idéias de Weismann (pelas quais, aliás, Johannsen não cultivava simpatia). O
weismannismo em si também é sinônimo de outra idéia relacionada a teoria da
continuidade do germe-plasma. Mas, a idéia de separação entre germe e soma, normalmente
associada à Weismann, possui um precursor legítimo. A idéia de continuidade germinal
havia sido claramente defendida por Francis Galton (Hertwig, 1929; Olby, 1990a; Gayon,
1998; Mayr, 1998). Em 1896, o próprio Johannsen chamava atenção para a precedência de
Galton: “As concepções nas quais esta importante teoria [a continuidade do germe-plasma] é
baseada são bastante antigas e até onde sabemos foram propostas pela primeira vez por
Galton, cerca de vinte anos, em conexão com algumas idéias de Darwin agora
abandonadas” (apud Dunn, 1965, p.38). Soma-se a tudo isto o fato de que nem Galton, nem
Weismann, nem Johannsen faziam a distinção entre os fenômenos de transmissão hereditária e
desenvolvimento, a característica fundamental das noções atuais de genótipo e fenótipo.
Dado este quadro bastante complexo, realizarei uma discussão conceitual na tentativa
de esclarecer a gênese destas duas noções tão poderosas. Começarei pelo início, quando
Galton, para impedir a herança de caracteres adquiridos, propôs a separação entre partículas
latentes e partículas patentes. As investigações de Galton sobre a hereditariedade foram tão
influentes quanto variadas. Sua obra pode ser arbitrariamente dividida em três fases (Michael,
1999): (i) os trabalhos com gêmeos e o início do debate entre natureza e criação
37
(e.g.
Galton, 1865); (ii) a abordagem fisiológica e micromerista (e.g. Galton, 1876a); e (iii) a
§2
– 66 –
36
Limitar-me-ei em discutir a polêmica conceitual envolvendo as origens das noções de genótipo e fenótipo.
Atualmente, o principal problema conceitual é de ordem ontológica. Ambos os termos são usados inadvertidamente
para se referir tanto ao type, quanto aos seus tokens. Designa tanto um tipo de coisa quanto os seus casos concretos. O
genótipo pode se referir ao conjunto de locos de uma espécie o genoma humano, por exemplo ou a um loco
particular o gene do alcoolismo, por exemplo ou ainda ao conjunto de alelos de um indivíduo os meus genes,
por exemplo. Da mesma forma, um fenótipo pode ser tanto um tipo de caráter da espécie por exemplo, a cor dos
olhos –, quanto uma a manifestação real deste tipo por exemplo, olhos azuis –, ou ainda, o conjunto de todos os
caracteres de um indivíduo. Para uma discussão mais completa do tema, ver Lewontin (1992b; 2004) e Mahner e
Bunge (1997).
37
O debate entre natureza e criação é conhecido em inglês pelo jogo de palavras nature and nurture . Ele inclui, mas
não se limita à dimensão biológica do debate aqui discutida. Oposições filosóficas como razão e experiência, ou
sociológicas como biologia e cultura, também são acomodados sob o leque de significados do debate entre natureza
e criação.
abordagem estatística da hereditariedade (e.g. Galton, 1889). A primeira fase será abordada,
brevemente, no capítulo 4, quando discutirei Perspectiva dos Sistemas Desenvolvimentais. A
última fase foi mencionada quando falei da tentativa de quantificação estatística da força
hereditária pela biometria. Irei me concentrar agora na segunda fase, quando Galton abordou
o problema do desenvolvimento e da hereditariedade de uma perspectiva fisiológica e propôs
a idéia de continuidade germinal.
Galton foi um dos primeiros autores a explorar a teoria da pangênese. Impressionado
pela idéia de Darwin, Galton projetou um experimento para testá-la. O experimento foi
concebido de maneira a detectar se as gêmulas (as partículas responsáveis pelos fenômenos
geracionais propostas por Darwin) circulavam pelo corpo. Ele realizou a transfusão de
grandes quantidades de sangue entre diversas raças de coelho. Galton esperava que, se a teoria
da pangênese estivesse correta, as gêmulas circulantes contidas no sangue injetado nas
linhagens puras fariam com que características das outras raças se manifestassem na prole dos
coelhos que haviam recebido as transfusões. O sangue de coelhos de cor cinza, por exemplo,
injetado em coelhos brancos, deveriam causar alterações na coloração do pêlo da prole da
raça branca. Galton repetiu os experimentos por duas gerações, mas não observou qualquer
dado que pudesse dar suporte à hipótese provisória de seu ilustre primo. “A conclusão que não
pode ser evitada a partir desta grande série de experimentos é que a doutrina da pangênese,
pura e simples, como eu a interpretei, é incorreta” (Galton, 1870, p.404).
Em virtude destes experimentos, Galton elaborou uma teoria da herança micromerista
alternativa à teoria da pangênese. Ao invés de permitir que as partículas hereditárias
circulassem pelo corpo e depois se concentrassem nas células sexuais, ele propôs que cada
indivíduo era composto de duas partes: uma latente e “conhecida apenas por seus efeitos na
posteridade e outra patente que constitui o corpo manifesto para os nossos
sentidos” (Galton, 1871, p.394). Galton propôs que as partículas hereditárias contidas no ovo,
denominadas por ele de estirpe (Galton, 1876a), em sua maioria eram responsáveis pelo
desenvolvimento da estrutura orgânica, ou seja, o corpo patente. Contudo, uma minoria ficava
latente, isolada da influência das circunstâncias de vida e eram passadas adiante pelas células
sexuais. “A dimensão da verdadeira ligação hereditária não conecta [...] os pais aos filhos,
mas os elementos primários dos dois, tais como eles existiam em cada ovo fertilizado, de
onde eles respectivamente se desenvolveram” (Galton, 1871, p.400).
§2
– 67 –
Weismann reconheceu as semelhanças da sua teoria da continuidade germinal com as
idéias de Galton, mas fez questão de ressaltar que elas eram superficiais (Weismann, 1893).
Contudo, as grandes diferenças apontadas por Weismann entre as duas teorias envolviam
aspectos não relacionados à continuidade germinal, como, por exemplo, o modo de
desenvolvimento. Em relação à continuidade germinal, as teorias eram, de fato, muito
semelhantes, exceto pelo fato de Galton aceitar algumas violações da separação entre o germe
e o soma que permitiam, excepcionalmente, a herança de caracteres adquiridos. Mas, ao
contrário de Galton, cujas idéias oscilaram em torno de temas e métodos muitos diferentes por
toda sua carreira, a idéia de continuidade germinal desempenhou um papel central na teoria
do desenvolvimento de Weismann.
O que primeiro me chamou atenção quando comecei a considerar seriamente o problema da
hereditariedade […] foi a necessidade de assumir a existência de uma substância hereditária
distintamente organizada e vivente, a qual em todos os organismos multicelulares, ao contrário
da substância que compõem o corpo efêmero do indivíduo, é transmitida de geração para
geração. Esta é a teoria da continuidade do germe-plasma. (Weismann, 1892, p.xi, itálicos no
original)
A teoria da continuidade germinal parece antecipar os conceitos de genótipo e
fenótipo. O genótipo seria o conjunto de determinantes contido nas células germinais e o
fenótipo a conseqüência da manifestação do potencial dos determinantes. Contudo, esta
interpretação tem dois problemas. Primeiro, Weismann, no sentido estrito do que se entende
hoje como weismannismo, não era weismannista (Griesemer e Wimsatt, 1989; Winther, 2001;
Amundson, 2005). Se o weismannismo for entendido como a proibição da herança tênue (soft
inheritance), como definida por Mayr a herança de caracteres adquiridos e “da
modificação do material hereditário pelas condições gerais do clima e do meio ambiente
(geoffroysmo), ou diretamente por nutrição, sem que os caracteres periféricos fenotípicos
servissem necessariamente como intermediários (Mayr, 1998, p.766, itálicos meus)então
Weismann não era weismannista. Para Weismann, o material hereditário estava
morfologicamente isolado do restante do corpo. Contudo, isto não significada que ele estava
variacionalmente isolado. As variações do germe-plasma eram causadas por influências
externas ao germe plasma durante a existência do corpo. A fonte de variação hereditária o
material sobre o qual a seleção natural operava — era a ação do meio sobre as células
germinais. Embora Weismann tenha se tornado famoso no século XX “por combater a
§2
– 68 –
herança de variações somáticas adquiridas, na realidade ele consagrou a herança de variações
adquiridas no germe-plasma” (Winther, 2001).
O segundo ponto pelo qual a interpretação das idéias de Weismann como a
antecipação dos conceitos de genótipo e fenótipo é inadequada deriva do fato de que para ele,
assim como para todos os seus contemporâneos, o desenvolvimento e a hereditariedade eram
explicados no mesmo domínio cognitivo. Este ponto, que enfatizei diversas vezes, fica
claro se lembrarmos que, como foi visto na seção 2.2.1, Weismann defendia que a
diferenciação celular era conseqüência da desigualdade da divisão dos determinantes. A teoria
de Weismann (assim como a de Galton) explicava tanto os mecanismos desenvolvimentais
quanto os mecanismos hereditários. A separação entre desenvolvimento e hereditariedade, a
característica fundamental dos conceitos contemporâneos de genótipo e fenótipo, não existia
na teoria de Weismann.
Contudo, se Weismann não antecipa as noções atuais de genótipo e fenótipo por não
distinguir a hereditariedade e o desenvolvimento, tampouco os sentidos originais dos
conceitos propostos por Johannsen, em 1909, o fazem. Ao propor o termo fenótipo, Johannsen
tinha em mente a idéia de média como aplicada pelos biometristas (Falk, 1986; Mayr, 1998).
Johannsen realizou uma série de auto-fecundações para a obtenção de linhagens puras de
feijão. Mas, quando as plantas cresciam, permaneciam variações no tamanho dos grãos que
elas produziam. Embora fossem linhagens mendelianamente puras (eram homozigotas em
todos os locos), não produziam plantas iguais. Para referir-se ao valor estatístico médio da
variação do tamanho dos grãos de uma amostragem produzida por uma linhagem pura,
Johannsen introduziu o termo fenótipo. Em contrapartida, para referir-se à constituição
hereditária das sementes, utilizou o termo genótipo. Portanto, originalmente, o termo genótipo
era uma abstração do potencial do embrião, freqüentemente descrito como uma norma de
reação, mas nunca reduzido por Johannsen a uma estrutura material (Falk, 1986). O fenótipo,
por sua vez, era um conceito populacional que se referia ao conjunto de indivíduos formados
a partir de um mesmo genótipo. Johannsen não tinha em mente a continuidade do germe-
plasma. E, principalmente, ele não pretendia redefinir a hereditariedade como a transmissão
do genótipo. Aliás, Johannsen era um crítico das “concepções da hereditariedade como
transmissão” (Johannsen, 1911). “Em 1909, transmissão e desenvolvimento são considerados
por Johannsen um e o mesmo” (Churchill, 1974, p.18).
§2
– 69 –
Até agora foi esclarecido o que as noções contemporâneas de genótipo e fenótipo não
são. Elas não são sinônimos da teoria da continuidade germinal como entendida por Galton e
Weismann, nem são o sentido original dos termos propostos por Johannsen em 1909. Resta
agora defini-los positivamente. Os sentidos contemporâneos dos termos genótipo e fenótipo
são uma cooptação dos termos realizada pela teoria do gene para se referir à separação
entre os fenômenos hereditários e desenvolvimentais. Como vem sendo dito ao longo do
capítulo, a hereditariedade e o desenvolvimento, antes da teoria do gene, pertenciam a um
mesmo domínio de explicação (Gilbert, 1978; Allen, 1985; 1986; Maienschein, 1986; Sander,
1986; Olby, 1990a; Gilbert, Opitz et al., 1996; Burian, 2005b). Todas as teorias que
propuseram a existência de um material hereditário explicavam tanto a hereditariedade quanto
o desenvolvimento. A teoria do gene limitou seu escopo explicativo. Ela se propôs explicar
apenas a transmissão das partículas hereditárias e não a maneira como elas se manifestavam
na realização da ontogenia:
Entre os caracteres que fornecem os dados para a teoria e os genes postulados aos
quais os caracteres se referem reside todo o campo do desenvolvimento embrionário. A
Teoria do Gene, como aqui formulada, não diz nada em relação à maneira como os genes
estão conectados ao seu produto final ou caráter. A ausência de informação em relação a este
intervalo não significa que o processo do desenvolvimento embrionário não é do interesse dos
geneticistas. O conhecimento do modo como os genes produzem seus efeitos no
desenvolvimento individual, sem dúvida, ampliaria imensamente nossas idéias a respeito da
hereditariedade e provavelmente tornaria mais claro muitos fenômenos que atualmente são
obscuros, mas o fato é que a segregação dos caracteres em gerações sucessivas pode ser
explicada atualmente sem referência ao modo como os genes afetam o processo
desenvolvimental. (Morgan, 1928, p.26, itálicos meus)
E, mais adiante, respondendo às críticas dos embriologistas, Morgan se defendeu
afirmando que estes não entendem, justamente, a separação que ele está propondo:
Tem sido dito, por exemplo, que a suposição de unidades invisíveis no material germinal, na
realidade, não explica nada, pois atribui as unidades às próprias propriedades que a teoria se
propõe a explicar. No entanto, as únicas propriedades atribuídas ao gene são os dados
numéricos fornecidos pelos indivíduos. Este criticismo, como outros do tipo, surgem da
confusão dos problemas da genética com aqueles do desenvolvimento. (Morgan, 1928, p.27,
itálicos meus)
Note o contraste destas afirmações com a abordagem defendida pelo próprio Morgan,
em 1910, período em que iniciava as pesquisas com Drosophila: “Nós temos abordado o
problema da hereditariedade como idêntico ao do desenvolvimento. A palavra hereditariedade
§2
– 70 –
refere-se às propriedades das células germinais que se expressam do desenvolver do
organismo” (Morgan, 1910a, p.449).
38
O amadurecimento da teoria do gene durante a
segunda década do século XX levou Morgan a mudar mais uma vez de opinião. Além de
aceitar a TCMH e materializar os fatores mendelianos como locos cromossômicos, Morgan
separou o problema da “segregão dos caracteres hereditários” do problema do
desenvolvimento dos caracteres. De maneira direta, sem a sábia cautela de Morgan de não se
comprometer com a realidade dos genes, a hereditariedade foi redefinida como a transmissão
dos genes e o desenvolvimento como suas manifestações fisiológicas.
A reinterpretação do weismannismo e dos conceitos de fenótipo e genótipo realizada
pela Teoria do Gene serviram para legitimar a separação entre fenômenos hereditários e
desenvolvimentais. A separação teórica logo se manifestou como uma separação disciplinar.
Durante a maior parte do século XX, a genética e a embriologia seguiram seus caminhos
como disciplinas distintas. A embriologia, com seu modelo epigenético, buscou elucidar a
morfogênese do organismo e a regulação do desenvolvimento com conceitos como gradientes
e campos morfogenéticos. A genética, com seu modelo preformacionista, investigou a
segregação dos caracteres e esperou até que a análise funcional dos genes pudesse revelar
como a ação gênica podia ser responsável pelo desenvolvimento.
§2
– 71 –
38
A estratégia de fechar o desenvolvimento em uma caixa-preta havia sido usada pelo Mendelismo no contexto da
evolução. Para Bateson, o grande obstáculo para o estudo da evolução, em todo o período pós-darwiniano do século
XIX, havia sido o foco excessivo no desenvolvimento. Para Bateson, o estudo da evolução deveria focar apenas a
variação, independente de como ela era produzida durante o desenvolvimento. Como é corrente na literatura
contemporânea da evo-devo, a estratégia morganiana de fechar o desenvolvimento em uma caixa-preta para estudar a
hereditariedade como a transmissão de genes foi empregada para o estudo da evolução pela genética de populações e
mais tarde pela Teoria Sintética. A evolução foi redefinida como a alteração da freqüência gênica de uma população e
o desenvolvimento ignorado.
Figura 3 A genealogia da noção contemporânea de genótipo e fenótipo, segundo as suas representações
esquemáticas: (a) A segregação da linhagem germinal em Weismann (1893 , p.196). Repare como as células germinais,
representas pelos círculos pretos com núcleos brancos, “fazem parte do fenótipo”. Elas são seqüestradas morfologicamente,
mas não são seqüestradas variacionalmente. (b) A simplificação da idéia de continuidade germinal apresentada na introdução
de Wilson (1900, p.13). (c) O weismannismo molecular representado pelo fluxo unidirecional da informação do DNA para a
proteína, como reza o Dogma Central. (d) A interpretação moderna da divisão entre genótipo e fenótipo. Figuras 1c e 1d.
adaptadas de Maynard-Smith (1993), p.67, figura 8, intitulada Weismannismo e o Dogma Central.
2.4 Preformação e teoria do gene
Após a discussão de todos estes elementos, é possível avaliar a proposta de que a
conciliação genética é historicamente falaciosa. De maneira direta, é o momento de perguntar:
a teoria do gene é preformacionista? Em que sentido ela rompeu com a racionalidade da
§2
– 72 –
tradição de pesquisa preformacionista? Segundo Morgan, a teoria do gene rompeu com o neo-
preformacionismo e forneceu uma alternativa às especulações micromeristas devido à nova
metodologia e à separação entre a hereditariedade e o desenvolvimento. A teoria do gene foi
construída em cima de uma metodologia completamente distinta das anteriores. Havia
evidências experimentais das partículas. Evidências tão incisivas que a posição das partículas
nos cromossomos podia ser inferida. E afinal de contas, como uma teoria que não se propõe a
explicar o desenvolvimento pode ser rotulada de preformacionista? Portanto, para responder à
pergunta se a teoria do gene é preformacionista, é necessário primeiro contemplar a própria
defesa de Morgan. É preciso responder se a evidência experimental da estrutura hereditária e a
separação ontológica entre a hereditariedade e o desenvolvimento, como ele argumenta,
libertam a teoria do gene da tradição preformacionista.
De fato, a teoria do gene rompeu metodologicamente com o preformacionismo da
embriologia experimental. Ela inferiu a estrutura do material hereditário a partir da
metodologia mendelista e da teoria de que a freqüência de crossing-over indica a posição dos
genes no cromossomo. Mas isto a liberta da ontologia da tradição preformacionista? O fato de
que evidências experimentais da existência e da posição dos genes faz com que eles
deixem de ser partículas determinantes do desenvolvimento? Parece evidente que não. A
evidência experimental de que existem genes nos cromossomos (independentemente da sua
constituição) capazes de determinar as características do organismo adulto não faz com que os
genes deixem de ser uma forma de preformação. É claro que o sentido de preformação aqui é
mais amplo do que o sentido de pré-existência. Assim como nas teorias neo-preformacionistas
da embriologia experimental, na teoria do gene não há, logicamente, a pré-existência dos
germes. O século XIX, principalmente através da teoria celular, havia negado a possibilidade
de que os germes fossem miniaturas pré-delineadas. Tampouco, a nova racionalidade
biológica permitia a preformação dos germes no sentido de uma metamorfose, ou seja, a
geração instantânea do germe pré-delineado. Para o século XIX, o Anlagen era uma célula
cuja estrutura interna era complexa e estruturada e o desenvolvimento um processo gradual de
diferenciação celular.
No entanto, o neo-preformacionismo, como exemplificado pelas teorias de Weismann
e Roux, não defendiam a pré-delineação da forma, nem sua metamorfose, mas a
predeterminação do processo de diferenciação celular. O desenvolvimento (e no caso também
a hereditariedade, pois a hereditariedade era ainda um fenômeno desenvolvimental) era auto-
§2
– 73 –
determinado pela estrutura do material hereditário. As causas da ontogenia residiam todas no
núcleo. O desenvolvimento era a manifestação da complexidade pré-existente nos
cromossomos. Ou, se me permitem um anacronismo, repito a citação de Monod: “[não havia]
acréscimo de informação nova (Monod, 1970, p.117)”.
A tese que defendo é que a teoria do gene mantém a ontologia do neo-
preformacionismo. Os privilégios causais que o gene possui para explicar as propriedades do
organismo são os mesmos dos bióforos weismannianos, por exemplo. Atribui-se às
propriedades das partículas o poder de controlar e determinar o sistema. O fato de a prioridade
causal residir em partículas hipotéticas ou em variáveis operacionais não faz diferença
alguma. As causas do desenvolvimento permanecem concentradas exclusivamente no material
hereditário.
Além disso, o fato de que a teoria do gene rompeu metodologicamente com o
micromerismo não significa que ela rompeu historicamente com a tradição de pesquisa
preformacionista. Isto fica claro ao acompanhar a evolução do modo como as partículas foram
concebidas pelas teorias. De modo geral, elas se aproximaram cada vez mais do que o século
seguinte iria consagrar como o gene. Em Spencer, as partículas eram todas iguais e cada uma
representava todo o organismo. Em Darwin, as partículas eram diferentes umas das outras e
eram amostras de cada célula. Em Galton, estavam isoladas do resto do corpo nas células
germinais. Em Weismann, além de isoladas, estavam localizadas no cromossomo. Em De
Vries, representavam não as células, mas os caracteres do organismo. uma linhagem de
conceitos concebidos sob a orientação de uma mesma ontologia.
Na verdade, ao cooptar a metodologia do mendelismo, a teoria do gene tornou-se mais
preformacionista do que a maioria das teorias micromeristas. Pois, assim como os pangenes
de De Vries e os fatores mendelianos, os genes referiam-se a caracteres do organismo e não a
entidades da hierarquia biológica como células, tecidos ou órgãos. Inicialmente, a teoria do
gene manteve a epistemologia instrumentalista do mendelismo e definiu o gene pelo fenótipo.
Mas, com a evolução da teoria do gene, o próprio fenótipo passou a ser definido pelo gene e
não mais o gene definido pelo padrão de segregação do caráter fenotípico. Os cromossomos
foram representados como uma fileira de genes para diferentes caracteres. O resultado é que
os mapas cromossômicos pareciam conter um organismo desmontado. Não havia um ser pré-
delineado, mas existiam todas as partes do organismo representados em uma seqüência linear
de partículas. Havia o gene da cor do olho, ao lado o gene para o formato da asa, ao lado deste
§2
– 74 –
o gene para o formato do olho e assim por diante. Enquanto que um mapeamento hipotético
dos determinantes de Weismann representaria uma seqüência de tipos celulares
(determinantes de neurônios, osteoblastos, etc.) e, portanto, estaria menos comprometida com
o conceito de forma, a teoria do gene dividiu o organismo em módulos preformados.
39
Nos
genes existiam instruções para a forma do organismo adulto.
Figura 4. O organismo desmontado: Representação das mutações nos quatro cromossomos de Drosophila
melanogaster. Retirado de Morgan (1922).
§2
– 75 –
39
Aqui caberia a crítica de que a teoria do gene incluiu os conceitos de pleiotropia (o efeito de um gene em mais de
um caráter) e caracteres poligênicos (o efeito de mais de um gene em um único caráter). Mas, embora estes
fenômenos aumentem consideravelmente a complexidade da teoria do gene, eles não invalidam o raciocínio. O fato
de que os cromossomos contêm um mapa do organismo não é alterado. Além disso, estes fenômenos não tiveram
um papel central na formulação inicial da teoria do gene, sendo considerados complicações ou mesmo anomalias em
relação ao padrão normal da relação um gene – um caráter.
O segundo argumento de Morgan é que a teoria do gene rompe com o
preformacionismo micromerista, pois não se propõe a explicar o desenvolvimento, mas
apenas a hereditariedade. A teoria do gene não é uma teoria do desenvolvimento, mas uma
teoria da transmissão hereditária. Portanto, ela não pode ser comparada ao neo-
preformacionismo, pois não propõe um mecanismo ontogenético. Ela responde apenas à nova
questão que ela mesma perguntou: a hereditariedade, no sentido limitado de transmissão das
partículas hereditárias determinantes do fenótipo. No entanto, como poderia ocorrer o
desenvolvimento a partir da concepção de que a hereditariedade é efetuada pela transmissão
dos genes? Dito de outra maneira, quais alternativas de explicação do desenvolvimento a
teoria do gene deixa aberta? A resposta é: a expressão diferencial dos genes.
O argumento de que a teoria do gene não é preformacionista porque não diz respeito
ao desenvolvimento é falacioso, pois, embora a teoria do gene não explique o
desenvolvimento, ela redefine o que é o desenvolvimento. A teoria do gene não apenas
separou a hereditariedade do desenvolvimento, mas também redefiniu o desenvolvimento em
termos do gene.
40
Para a neo-epigênese e, principalmente, a embriologia organicista do século
XX, o desenvolvimento era um processo fisiológico, uma seqüência de eventos causais que
levavam ao surgimento da forma. Para a teoria do gene, entender o desenvolvimento era
entender o papel dos genes no desenvolvimento.
O preformacionismo contido na redefinição do desenvolvimento pela teoria do gene
fica claro se o compararmos à alternativa epigenética como proposta por Hertwig ainda no
século XX:
Agora, vamos refletir que o ovo e o adulto são dois estágios finais do material organizado e
que eles são separados um do outro por uma série quase inconcebivelmente longa de estágios
coordenados e intermediários. Considere que cada estágio do desenvolvimento é o germe e o
produtor do estágio seguinte, do estágio que segue como conseqüência dele [...]. Então
entendemos que é um erro lógico assumir que todos os caracteres presentes na última etapa da
cadeia e desenvolvimento têm suas causas determinadas na primeira etapa da cadeia. O
equívoco está na falha em distinguir entre as causas contidas no ovo no início do
desenvolvimento e as causas introduzidas durante o curso do desenvolvimento a partir do
acréscimo de material externo nos vários estágios. Como não pode haver absoluta identidade
entre germe e produto, é errado transformar a complexidade visível dos estágios finais do
desenvolvimento em uma complexidade invisível no primeiro estágio, como os antigos
evolucionistas fizeram e como os novos evolucionistas estão tentando fazer. (Hertwig, 1896,
p.87)
§2
– 76 –
40
A ontologia e a metodologia de uma tradição de pesquisa podem influenciar o que conta como problemas
legítimos para suas teorias constituintes” (Laudan, 1977, p. 86).
O entendimento do desenvolvimento como produto da expressão gênica ignora o
processo de desenvolvimento. A “série quase inconcebivelmente longa de estágios
coordenados e intermediários” entre o primeiro e o último estágio do desenvolvimento é
substituída pela relação imediata entre genes e caracteres. A seqüência ordenada de eventos é
transposta por uma associação direta entre genótipo e fenótipo. As causas da ontogenia ficam
restritas aos genes, sendo o resto apenas as condições em que a relação normal entre gene e
caráter é constituída.
Quando na década de 1960 a biologia molecular finalmente forneceu um modelo
capaz de explicar o desenvolvimento como expressão diferencial dos genes, ela não ofereceu
uma conciliação entre as tradições de pesquisa da epigênese e preformação. Ela ofereceu
apenas um mecanismo capaz de explicar o desenvolvimento segundo a redefinição
preformacionista realizada pela teoria do gene. Isto fica claro, por exemplo, em uma
passagem muito citada da terceira edição do livro de Wilson The Cell in Development and
Heredity,
41
de 1925, (citada em Russel, 1930, p.267; Hall, 1992, p.87; Gilbert, 1987, p.800):
“Fundamentalmente, no entanto, chegamos à conclusão de que, em relação a um grande
número de caracteres, a hereditariedade é efetuada pela transmissão de uma preformação
nuclear que é expressa no curso do desenvolvimento por um processo de epigênese
citoplasmática”. A falsa conciliação genética estava delineada desde a teoria do gene. Ela
não era uma conciliação, mas a única solução para o desenvolvimento possível segundo a
teoria do gene. O fato de que os geneticistas viram na expressão gênica diferencial a
conciliação entre preformação e epigênese não é surpreendente. Nenhum autor do século XX
aceitaria associar sua teoria ao preformacionismo. Afinal de contas, todos querem ser Ulisses
e conseguir navegar sua teoria com destreza entre Cila e Caribdes.
§2
– 77 –
41
Note que o termo inheritance das duas primeiras edições (1896 e 1900) foi substituído no título por heredity, mais
restrito ao domínio biológico em língua inglesa.
— 3 —
Genética e desenvolvimento
Os capítulos anteriores mostraram a falácia histórica da tese da conciliação genética.
A disputa entre as tradições de pesquisa da preformação e da epigênese não alcançaram uma
síntese na genética. Na verdade, a genética possui uma continuidade histórica com a
perspectiva preformacionista que a antecedeu. Por isso, a rigor, também não é apropriado
afirmar que a genética encontrou na molécula de DNA o seu homúnculo, como apontam
alguns críticos do preformacionismo genético (p. ex. Keller, 2000). A genética não representa
um resgate superficial dos modelos da preexistência do século XVIII. Ela possui uma ligação
conceitual e histórica com a noção de preformação. A teoria morganiana do gene se
desenvolveu dentro da tradição de pesquisa preformacionista. Ela empregou a ontologia do
neo-preformacionismo na explicação do desenvolvimento, enfatizando a existência de
partículas hereditárias, controle interno e pré-determinação da ontogenia.
Neste terceiro capítulo, a análise histórica será deixada em segundo plano e o foco se
concentrará na análise epistemológica da biologia atual. Inicialmente, mostrarei como a
tradição de pesquisa preformacionista foi mantida como diretriz teórica para a construção dos
modelos da genética molecular. Conceitos como informação genética e programa genético
refletem os mesmos pressupostos preformacionistas que orientaram a genética morganiana.
Em seguida, me empenharei em uma tarefa mais complexa. Discutirei como os dados da
biologia molecular contemporânea colocam em questão o preformacionismo dos modelos
elaborados pela genética molecular clássica. A biologia molecular, embora reducionista,
permite a construção de modelos epigeneticamente orientados.
– 78 –
3.1 Preformação molecular
A genética clássica, representada pela teoria de Morgan e sua concepção materializada
do gene, propôs uma solução e uma fez promessa. Propôs uma solução para a hereditariedade
e fez uma promessa para o desenvolvimento. A hereditariedade era causada pela transmissão
do gene. Quanto ao desenvolvimento, não havia ainda uma resposta. Mas havia uma promessa
de solução (ou, se preferirem, uma diretriz de pesquisa específica): o desenvolvimento era
causado pela expressão dos genes. A história subseqüente da genética foi guiada pela
realização desta promessa: responder como os genes eram expressos, isto é, descobrir como
eles funcionavam.
Como foi discutido no capítulo anterior, o termo gene foi originalmente proposto para
designar uma unidade instrumental. Ele era o Merkmale de Mendel, uma unidade útil para
marcar e seguir o padrão de segregação de caracteres entre gerações. A genética de Morgan
trouxe a metodologia mendeliana para o âmbito da biologia fisiológica e materializou o gene
como as unidades que compunham os cromossomos e determinavam as características do
organismo. Uma vez que esta interpretação realista dos genes prevaleceu, era necessário
explicar como os genes causavam seus efeitos e a bioquímica era o ponto de partida mais
evidente.
O período posterior à interpretação realista do gene foi marcado pela associação de
técnicas bioquímicas à análise genética. Nos anos 40, foi proposto que cada gene atuava
produzindo uma determinada proteína com atividade catalítica hipótese que ficou
conhecida pelo mote um gene uma enzima (Falk, 1986; Portin, 1993; Keller, 2002). No
mesmo período, os experimentos de Oswald Theodore Avery (1877–1955) demonstraram que
o DNA era a substância responsável pela transformação em bactérias, fornecendo evidências
para a aceitação de que os genes eram compostos de DNA.
42
Contudo, não havia uma resposta para como os genes funcionavam. A análise
bioquímica havia indicado que os genes eram formados de DNA e que exerciam suas funções
produzindo proteínas, mas ainda não havia um modelo de como faziam isso. A questão da
função gênica foi adequadamente respondida a partir do modelo da estrutura do DNA
§3
– 79 –
42
Transformação foi a denominação dada à capacidade de bactérias patogênicas mortas transferirem sua virulência a
bactérias vivas inócuas. Na época, era discutido se os genes eram compostos de proteínas ou ácidos nucléicos.
proposto por Watson e Crick em 1953. Mais do que o famoso modelo icônico em metal e
cartolina da estrutura do DNA, o modelo da dupla hélice forneceu um modelo teórico para
explicar a função gênica. no sucinto artigo no qual propuseram a estrutura da dupla hélice,
Watson e Crick adiantaram que “[n]ão escapou à nossa atenção que o pareamento específico
que postulamos imediatamente sugere um mecanismo de cópia do material genético” (1953b).
Cinco semanas depois, mais confiantes na exatidão da proposta, acrescentaram: “a seqüência
precisa das bases é o código que contém a informação genética” (1953a, p.956). O modelo da
dupla hélice havia revelado a estrutura físico-química dos genes cromossômicos e, ao mesmo
tempo, aberto caminho para uma explicação de como eles funcionavam. A materialização do
gene, iniciada pela genética morganiana, estava completa (Gayon, 2000). Ex omnia DNA”,
diria Wolpert (apud Gilbert, 2003, p.90).
3.1.1 Informação genética
O modelo da estrutura do DNA de Watson e Crick marcou o amadurecimento da
genética molecular.
43
Desde a década de 30, a interpretação material do gene clássico havia
levado à investigação da sua natureza físico-química. Havia uma corrida para desvendar “o
átomo da biologia” (Pichot, 1999). Nesta busca, foi criado um conjunto de técnicas
experimentais que, no futuro, viria a se espalhar pela demais áreas da biologia: a biologia
molecular (Burian, 2005c). Unindo técnicas de genética clássica, química estrutural,
cristalografia e biofísica, a biologia molecular forneceu a instrumentação necessária para o
aprofundamento da concepção estrutural do gene.
44
Distintamente da bioquímica, a genética molecular concentrou-se na estrutura, relação
e replicação dos ácidos nucléicos e proteínas, deixando de lado as demais moléculas orgânicas
e o metabolismo (Olby, 1990b). Com o modelo da dupla hélice em mãos, os geneticista
§3
– 80 –
43
A história da descoberta da dupla hélice foi contada muitas vezes e envolve uma série de polêmicas (Judson, 1979;
Olby, 1990b; Morange, 1998). Não interessa para o objetivo deste trabalho discuti-las, mas não se pode deixar de
assinalar que Watson e Crick entraram em uma programa de pesquisa criado e liderado por outros cientistas,
especialmente Linus Pauling e Rosalind Franklin.
44
O surgimento de uma disciplina focada na especificidade, estabilidade e replicação de macromoléculas biológicas
deve muito ao interesse de físicos e químicos pelos problemas da biologia. Em 1944, o físico Erwin Schrödinger
publicou um influente ensaio chamado O que é vida? (1997), onde especulou que o gene poderia ser um tipo de cristal
aperiódico que funcionaria como um código hereditário. Mas o maior impacto veio com a investigação liderada por Max
Delbrueck e Salvador Luria (médico de formação) sobre a replicação de vírus um sistema modelo perfeito para a
investigação da hereditariedade definida como replicação de ácidos nucléicos.
puderam concentrar-se na investigação de como esta estrutura relacionava-se com a estrutura
das proteínas. Em pouco tempo, a relação específica entre um gene e uma proteína antevista
pela análise bioquímica foi explicada pelo que Crick chamou de a hipótese da seqüência: “Na
sua forma mais simples, ela supõe que a especificidade de um pedaço de ácido nucléico é
expressa somente pela seqüência de suas bases e que esta seqüência é um código (simples)
para a seqüência de aminoácidos de uma determinada proteína” (Crick, 1958, p.152). O gene
era uma seqüência de nucleotídeos que continha a informação específica para a produção de
uma determinada seqüência de polipeptídeos.
A leitura da informação codificada no DNA foi explicada por dois mecanismos a
transcrição e a tradução. Primeiro, a seqüência DNA era transcrita no núcleo em uma
seqüência de RNA mensageiro (RNAm). O RNAm era exportado para o citoplasma, onde era
traduzido, de acordo com o código genético, em uma seqüência de polipeptídeo. DNA !
RNA ! proteína: eis a imagem clássica da função gênica. Como resumiu Crick:
Ao mostrar em detalhes como a linguagem de quatro letras do ácido nucléico controla a
linguagem de 20 letras da proteína, confirma-se o tema central da biologia molecular de que a
informação genética pode ser armazenada no ácido nucléico como uma mensagem
unidimensional e pode ser expressa como a sequência uni-dimensional de aminoácidos de
uma proteína. (Crick, 1966, p.9)
Percebe-se nos trechos de Watson e Crick citados acima a marca característica da
biologia molecular: o uso do jargão informacionista para se referir às correlações causais
entre ácidos nucléicos e polipeptídios. Os modelos da genética molecular estavam
encharcados de expreses como digo, tradução, transcrição, informação, pia,
transmissão e etc. Lilly Kay (1995) afirma que estas representações da hereditariedade em
termos informacionais não refletem uma necessidade cognitiva interna dos modelos da
biologia molecular, mas sim o contexto social do pós-guerra, fortemente influenciado pela
cibernética e as tecnologias da informação (ver Mahoney, 1990). Contudo, mesmo que apenas
como retórica, o informacionismo forneceu uma alternativa ao enfraquecido reducionismo
mecanicista da embriologia experimental. As explicações puramente mecânicas, focadas na
redução de sistemas complexos em níveis mais básicos de organização e na análise das partes
independentes, continuavam encontrando dificuldades com a organização dos seres vivos. De
Descartes a Jacques Loeb, no início do século XX, a relação entre mecanicismo e seres
vivos permanecia desconfortável. O informacionismo da genética molecular trouxe alento
§3
– 81 –
para esta relação. Ao referir-se à especificidade entre uma seqüência de DNA e uma seqüência
de polipeptídeo como código genético ou à duplicação cromossômica como cópia da
informação genética, a genética molecular recriou o reducionismo mecanicista que Roux
sonhara para a embriologia experimental. A metáfora da máquina mecânica havia sido salva
pela máquina cibernética do século XX:
Animal e máquina, cada sistema torna-se então um modelo para o outro [...]. Órgãos, células e
moléculas estão unidos por uma rede de comunicação. Trocam sem cessar sinais e mensagens
em forma de interações específicas entre componentes. A flexibilidade do sistema baseia-se
nos mecanismos de retroação e a rigidez das estruturas na execução de um programa
rigorosamente prescrito. (Jacob, 2001, p.257)
3.1.2 Programa genético
A estrutura em dupla hélice e os mecanismos de transcrição e tradução da informação
genética forneceram uma explicação de como os genes agiam. No entanto, a consolidação de
um modelo para a expressão gênica se aproximava, mas ainda não respondia o problema do
desenvolvimento. Os mecanismos moleculares de expressão gênica seriam capazes de
explicar o desenvolvimento quando explicassem também a expressão ordenada e dinâmica
dos genes durante a ontogenia. A promessa genética de explicar o desenvolvimento a partir
dos genes seria realizada apenas quando ela se tornasse capaz de explicar a natureza
diacrônica da expressão gênica. A genética molecular havia obtido uma genética fisiológica.
Restava ainda construir uma genética desenvolvimental.
Como foi dito na introdução, o primeiro modelo adequado de expressão gênica
diferencial foi o modelo do operon da lactose. O estudo da síntese de enzimas em bactérias
levou Monod, Jacob e Lwoff a propor um mecanismo que explicava como células
geneticamente idênticas podiam gerar células diferentes. O modelo do operon, de maneira
resumida, propunha (i) que existiam dois tipos de genes genes estruturais e genes
reguladores; (ii) que as proteínas seqüenciadas a partir dos genes reguladores reprimiam a
transcrição de RNAm dos genes estruturais; e (iii) que a repressão da transcrição era realizada
pela ligação das proteínas reguladoras ao DNA (ver figura 5).
§3
– 82 –
Figura 5. Operon-lac: Modelo simplificado do operon da lactose. A expressão de genes estruturais é regulada
pelo produto de genes reguladores. (a) Proteína reguladora reprime a transcrição ao se ligar ao DNA. (b) A
lactose se liga à proteína repressora e a transcrição !-galactosidase é liberada.
A extrapolação do modelo do operon para o desenvolvimento de seres multicelulares
permitiu vislumbrar o cumprimento da promessa genética. O operon indicava como a
ontogenia podia ser controlada pelos genes. As células se diferenciavam durante o
desenvolvimento de acordo com a ativação e repressão da transcrição gênica. O paradoxo de
Lillie tinha uma resposta. Todas as células possuíam os mesmos genes, mas nem todos os
genes eram expressos em todas as células. Cada tipo celular células nervosas, musculares,
epiteliais, etc. — se diferenciavam de acordo com os genes que eram expressos no seu
§3
– 83 –
interior. O desenvolvimento era uma questão de ligar e desligar os genes nos momentos e
locais corretos.
A imagem do desenvolvimento como uma cascata de ativação e desativação de genes
foi devidamente transportada para o jargão informacionista da biologia molecular pela
metáfora do programa genético (Monod & Jacob, 1961; Mayr, 1961). A pressuposição
preformacionista de que a ontogenia está predeterminada na estrutura da primeira célula foi
explicada pela existência no DNA de instruções e dos meios para executá-las. O
desenvolvimento, definido como expressão gênica diferencial, era um processo realizado e
controlado pelos próprios genes. De certa maneira, a idéia de que o desenvolvimento era um
processo determinado que poderia ser previsto pela “mente super-penetrante um dia
concebida por Laplace, e rapidamente capaz de perceber qualquer relação causal”, havia
sido cogitada nas influentes especulações do físico Erwin Schrödinger: “tendo-se o retrato
molecular do gene, deixou de ser inconcebível que a diminuta célula corresponda
precisamente a um plano complicado e específico de desenvolvimento e deva, de alguma
maneira, conter os meios para colocá-lo em ação” (Schrödinger, 1997 [1944]).
Mais do que qualquer outra idéia, o programa genético sintetiza a tese da conciliação
genética. Vale citar uma passagem escrita por François Jacob, muito semelhante à passagem
de Jaques Monod citada na introdução. Ele reafirma a tese de que o programa genético
resolveu o debate entre preformação e epigênese:
Hoje, a biologia pôs fim ao velho debate entre epigênese e preformação ao introduzir o
conceito de programa desenvolvimental. Nesta visão, o ovo fertilizado não contém uma
descrição completa do futuro organismo, como assumido pelos preformacionistas, mas sim as
instruções codificadas requeridas para produzir sua estrutura molecular e fazê-lo operar no
tempo e no espaço. (Jacob, 1978, p.249)
A relevância do conceito de programa genético para o debate entre preformação e
epigênese também se reflete na sua freqüente associação com os conceitos de teleologia,
finalidade e propósito. Ernst Mayr, por exemplo, definiu um programa como a “informação
codificada ou pré-ordenada que controla um processo (ou comportamento) em direção a um
determinado fim” (Mayr, 1988, p.49). Segundo Mayr, o programa genético naturalizou a
§3
– 84 –
teleologia.
45
Ele forneceu um mecanismo capaz de explicar o propósito natural dos seres
vivos.
46
Foi dito no primeiro capítulo que a teleologia orientou a tradição de pesquisa
epigetica em dois momentos distintos durante o aristotelismo e durante o
teleomecanicismo kantiano. Parece incompatível, portanto, que a teleologia seja aproximada à
metáfora preformacionista do programa genético. Mas, de fato, Mayr traçou uma analogia
direta entre o programa genético e o telos aristotélico:
47
“Somente quando foi entendida a
natureza dual dos organismos vivos é que se percebeu, nos nossos dias, que a matriz do
desenvolvimento e da atividade o programa genético representa o princípio formativo
que Aristóteles havia postulado” (Mayr, 1997, p.112). uma contradição entre as idéias aqui
defendidas e a afirmação de Mayr: apresentei Aristóteles como ponto de partida da
perspectiva epigenética, enquanto Mayr percebe no telos aristotélico uma quase antecipação
da solução alcançada pela genética. A aparente contradição ocorre devido a dois pontos na
interpretação de Mayr. Primeiramente, Mayr não no programa genético um modelo
preformacionista do desenvolvimento embrionário, mas sim a solução conciliatória entre
preformação e epigênese, à maneira de Gould, Jacob e Monod. Portanto, Mayr no telos de
Aristóteles algo próximo à solução do debate entre preformação e epigênese porque na
idéia de programa genético a solução do debate e não a versão contemporânea do
preformacionismo. A interpretação de Mayr, assim como a de Gould, Jacob e Monod, é
enviesada por um entendimento restrito do significado de preformação.
Em segundo lugar e mais importante, Mayr faz uma interpretação equivocada do telos
aristotélico. Ele o potencial aristotélico precedendo a realização do ser, como se ele fosse
um plano para um determinado fim. Mas, como diz Lennox (2006): “Para Aristóteles, o real
precede o potencial em todos os aspectos ontológico, causal e epistemológico. Um
processo de vir-a-ser é a realização de um potencial para um ser real específico e,
conseqüentemente, para entender um processo de vir-a-ser é preciso entender o que é vir-a-
ser” (ibid, p.23, itálico no original). Quando Aristóteles propõe um telos para explicar a
§3
– 85 –
45
O programa genético foi definido como teleonômico uma das quatro categorias de processos teleológicos
reconhecidas por Mayr (1997, p. 66-68).
46
O argumento de Mayr apóia-se em uma concepção etiológica do conceito de função. O programa genético teria
sido “programado” pela seleção natural.
47
Ver também Muller (1996).
realização potencial de um embrião, não atribui um propósito ou intenção, mas um
desenvolvimento ordenado para um fim, uma cascata de eventos na qual o que acontece em
cada etapa é causado pela etapa anterior (Grene e Depew, 2004). O potencial é a possibilidade
para forma. A forma não preexiste, nem representada ou programada. Não forma sem
matéria, mas hilomorfismo. Não há predeterminação, mas epigênese.
48
Da mesma maneira, o teleomecanicismo de Kant não pressupunha um mecanismo
responsável pelo caráter teleológico dos seres organizados. A teleologia era apenas um
princípio heurístico. Uma estratégia para contornar o não-explicável mecanicamente. A
teleologia permitia abrir mão de explicar o propósito natural dos seres vivos e aplicar os
princípios constitutivos da razão para investigar seus mecanismos. Mayr afirma que a
descoberta da existência de programas genéticos forneceu uma explicação mecânica
justamente para os fenômenos teleológicos que Kant havia alertado não serem explicáveis
mecanicamente. “Da perspectiva de Mayr a biologia alcançou o que Kant pensou ser
inalcançável. Ela explicou o propósito natural por meio do mecanismo do programa
genético” (Moss, 1992, p.346).
O programa genético se desdobrou em muitas outras metáforas, todas evocando a
predeterminação da ontogenia e o privilégio causal dos genes. O DNA conteria o livro da
vida, a planta arquitetônica, o projeto do futuro organismo, etc. Mas a metáfora que melhor
revela as sutilezas da conciliação genética é a preferida por Richard Dawkins (2001): a
metáfora da receita. A metáfora do plano arquitetônico, segundo Dawkins, é inadequada pois
implica um preformacionismo (leia-se preexistencialismo) por representar a forma
tridimensional em duas dimensões. A forma, neste caso, preexistiria como uma representação
simplificada da verdadeira forma. Por outro lado, na metáfora da receita, a forma não
preexiste, mas instruções de como construir a forma sim: “uma receita em um livro de
culinária não é, em nenhum sentido, uma planta do bolo que no fim sairá do forno.[...] Ela é
um conjunto de instruções que, se seguidas na ordem correta, resultarão em um bolo”. Mais
adiante, Dawkins conclui: “O desenvolvimento embrionário é um processo. É uma seqüência
ordenada de eventos, como os procedimentos de preparo de um bolo, que milhões de
passos a mais no processo e passos diferentes são dados simultaneamente em diferentes partes
da ‘iguaria’” (Dawkins, 2001, p.428–429).
§3
– 86 –
48
Para uma critica detalhada da interpretação do telos aristotélico como um plano ou programa, ver Grene (1972) e
Vinci e Robert (2005).
A crítica de Dawkins é esclarecedora. A rejeição da metáfora da planta arquitetônica é
uma rejeição da idéia de preexistência da forma mesmo como representação. A forma, em si,
não preexiste. No entanto, ele aceita a idéia de que o desenvolvimento é um processo
predeterminado, executado como uma receita de bolo. Existem instruções que dirigem o
processo para um determinado fim. Portanto, Dawkins assume uma perspectiva muito
semelhante à perspectiva neo-preformacionista de Roux e de Weismann: a ontogenia é um
processo predeterminado. As semelhanças são reforçadas ainda mais pela concepção de que o
organismo é composto como um mosaico de células autonomamente determinadas:
[Os genes são] uma receita que é seguida não pelo embrião em desenvolvimento como um
todo, mas individualmente pelas células ou por agrupamentos locais de células em processos
de divisão. Não estou negando que o embrião, e posteriormente o organismo adulto, tem uma
forma em grande escala. Mas esta forma emerge devido a numerosos efeitos locais sobre as
células por todo o corpo em desenvolvimento [...]. (Dawkins, p.2001, p.88, itálicos no
original)
É possível perceber que os modelos da genética molecular mantiveram os
pressupostos da tradição de pesquisa preformacionista. As diretrizes ontológicas que haviam
orientado Roux, Weismann e a genética morganiana prosseguiram orientando a nova
disciplina. O pressuposto de que desenvolvimento é um processo determinado e de que existe
uma relação direta entre a primeira e a última etapa da ontogenia foi preservado no conceito
de programa genético. O pressuposto de que a hereditariedade é a transmissão de entidades
que determinam as características do organismo foi preservada pelo conceito de informação
genética. As diferenças em relação a genética clássica, embora grandes, se estabeleceram no
nível teórico, metodológico e metafórico. Por baixo, como alicerce, a perspectiva
preformacionista permaneceu guiando a genética molecular. François Jacob, no entusiasmo do
triunfo desta imagem dos sistemas vivos, não deixa dúvidas:
A hereditariedade é descrita hoje em termos de informação, mensagem e código. A reprodução
de um organismo tornou-se a reprodução das moléculas que o constituem. Não porque cada
espécie química tenha a capacidade de produzir cópias de si mesma, mas porque a estrutura
das macromoléculas é minuciosamente determinada pelas seqüências de quatro radicais
químicos contidos no patrimônio genético. O que se transmite, de geração em geração, são as
“instruções” que especificam as estruturas moleculares. São as plantas arquitetônicas do futuro
organismo. São também os meios de executar estas plantas e coordenar o sistema. Portanto,
cada ovo contém, nos cromossomos recebidos dos pais, todo o seu futuro, as etapas de seu
desenvolvimento, a forma e as propriedades do ser que surgirá dele. O organismo torna-se
assim a realização de um programa prescrito pela hereditariedade. (Jacob, 2001, p.10,
itálicos meus)
§3
– 87 –
3.2 Epigênese molecular
Na seção anterior, preocupei-me em mostrar como a perspectiva preformacionista foi
preservada na genética molecular com as noções de que o DNA contém informação para os
caracteres dos organismos e o genoma contém um plano ou receita para o desenvolvimento.
Kenneth Waters (2007) chama esta interpretação de teoria fundamental da genética molecular.
Ela deriva do pressuposto de que a genética molecular reduziu a genética clássica. Apóia-se
também em um reducionismo característico da abordagem molecular dos anos 60 e 70.
Supunha-se que a ordem celular e organismal se originava por auto-assembléia dos produtos
dos genes estruturais (Sapp, 2003a). Membranas, organelas e todo resto se originava
diretamente das propriedades físico-químico das proteínas. Como afirmou Monod, na de
que a organização macroscópica era o resultado da organização molecular, “a construção de
um tecido ou a diferenciação de um órgão, fenômenos macroscópicos, devem ser
considerados como a resultante integrada de múltiplas interações microscópicas devidas às
proteínas [...]” (Monod, 1970, p.118). Consequentemente, a função dos genes era concebida
muito além da produção de polipetídeos. Os genes faziam proteínas e as proteínas faziam nós.
A cadeia causal seguia: DNA ! RNA ! proteína ! célula ! organismo.
Mas a genética molecular também possui um significado mais restrito, que Waters
chama de teoria básica. Ela refere-se simplesmente aos modelos da genética molecular que
explicam como os genes produzem proteínas. DNA ! RNA ! proteína e só. Os genes
codificam ou determinam seqüências de polipeptídios, não organismos. Atualmente, esta
versão tem substituído a versão forte da genética molecular. Frente à grande complexidade
dos dados contemporâneos, não é possível sustentar que os genes produzem caracteres. No
entanto, a versão moderada da genética molecular persiste: “A informação genética carregada
pelo DNA é expressa em dois estágios: transcrição do DNA em RNAm e tradução do RNAm
em proteína” (Lewin, 2007, p.147). A especificidade da seqüência de polipeptídios continua
sendo atribuída à relação de colinearidade com uma seqüência de DNA. Esta imagem
poderosa e persistente da função genética legitima uma forma mitigada de preformacionismo,
como exposto por Godfrey-Smith: “Eu sustento que uma justificação parcial moderna do
preformacionismo se baseia no fato de que genes codificam quase todas as proteínas e
portanto muito da maquinaria celular (Godfrey-Smith, 2001, p.292) (ver figura 6).
§3
– 88 –
Figura 6. Preformação molecular: A seqüência de nucleotídeos é transcrita em RNAm que é traduzida em
polipeptídeos segundo o código genético. A proteína é a decodificação de uma representação preexistente no
DNA.
No próximo capítulo, apresentarei a Perspectiva dos Sistemas Desenvolvimentais
como uma alternativa à perspectiva preformacionista da genética molecular. Mas, antes disso,
argumentarei porque um preformacionismo molecular no sentido moderado, como defendido
por Godfrey-Smith, também não se sustenta frente aos dados empíricos da biologia
contemporânea. Nem mesmo um preformacionismo reduzido à simples noção de que as
seqüências de DNA pré-figuram as seqüências de polipeptídios é coerente com a
complexidade dos mecanismos e entidades envolvidos na expressão gênica. Por último,
contestarei outra faceta da teoria moderada da genética molecular: a noção de que o programa
genético alude simplesmente à cascatas predeterminadas de ativação e desativação de genes
específicos e não a um plano do futuro organismo (Rosenberg, 2006).
3.2.1 A epigênese do gene
A biologia molecular redefiniu o gene clássico como uma seqüência de nucleotídeos
que especifica uma seqüência de polipeptídios. Esta conceituação tem a imensa virtude de
sintetizar o aspecto estrutural e o aspecto funcional do gene. Estruturalmente, o gene foi
definido como uma seqüência de DNA delimitada por uma região promotora e um códon de
terminação (uma open reading frame [ORF]). Funcionalmente, o gene foi definido como a
produção de uma proteína por meio da transcrição e tradução da informação codificada em
sua seqüência de nucleotídeos. Griffiths e Neumann-Held (1999) chamam este conceito de
§3
– 89 –
gene molecular clássico. Enquanto que o gene clássico havia sido inferido instrumentalmente
a partir da sua função — seu efeito fenotípico –, o gene molecular possuía uma dupla
identidade estrutural e funcional.
Contudo, a virtude inicial de conciliar função e estrutura em uma mesma conceituação
logo colocou o conceito de gene em tensão (Falk, 2000). Os resultados empíricos obtidos com
as novas tecnologias de pesquisa molecular revelaram uma complexidade irreconciliável com
a unidade estrutural e funcional do gene molecular clássico. A partir do fim da década de 70,
observou-se, por exemplo, que os genes de eucariontes, via de regra, não são seqüências
contínuas de DNA. Eles são dividos em exons (seqüências codificadoras) e introns
(seqüências não-codificadoras). A estrutura do gene não é uma seqüência contínua de DNA,
mas um conjunto de seqüências emendadas após a transcrição. As seqüências reguladoras
também se mostraram muito mais complexas do que as propostas no modelo do operon.
Seqüências reguladoras podem estar contidas no início, no fim ou mesmo dentro da seqüência
do gene. Regiões promotoras (promoters) e amplificadoras (enhancers), por exemplo, podem
estar distantes da região codificadora, até mesmo em outro cromossomo. Ainda, uma
seqüência de DNA pode estar envolvida na produção de muitas proteínas diferentes, assim
como a produção de uma proteína pode envolver seqüências de DNA distintas.
Estes exemplos o uma amostra da complexidade da biologia molecular
contemporânea que levou a um amplo debate sobre o status do gene molecular clássico (Falk,
1984; 1986; Portin, 1993; Griffiths e Neumann-Held, 1999; Beurton, Falk et al., 2000; Falk,
2000; Hall, 2001; Moss, 2001; Neumann-Held, 2001; Morange, 2002; Moss, 2003; Burian,
2004; El-Hani, 2007). A maioria dos autores reconhece que não uma definição única e
inequívoca de gene. Um gene inclui introns ou apenas exons? As seqüências reguladoras
fazem parte dos genes? Uma seqüência que produz várias proteínas é apenas um gene ou são
vários? Estas dificuldades não se restringem às discussões conceituais e também são refletidas
na prática científica, como expressa com clareza o geneticista Niall Dillon (2003):
[...] tentativas de traduzir tal conceito operacional complexo em uma estrutura física concreta
com limites claramente definidos foram sempre problemáticas e agora parecem estar
destinadas a falhar. Pelo contrário, o gene tem se tornado uma entidade flexível com limites
que são definidos por uma combinação de organização espacial e localização, habilidade em
responder especificamente a um conjunto particular de sinais celulares e o relacionamento
entre padrões de expressão e o efeito fenotípico final. (ibid, p.457)
§3
– 90 –
A tensão envolvendo o conceito de gene na biologia contemporânea, em geral, é
conseqüência da transição da genética clássica para a genética molecular. As seqüências bem
delimitadas de DNA mostraram não ser os marcadores fenotípicos de Mendel materializados
no cromossomo por Morgan. A genética molecular não havia elucidado a estrutura física do
gene clássico, como parecia claro na época. Este tema foi amplamente debatido em filosofia
da biologia. No fim da década de 60, Kenneth Schaffner (1969), em um contexto influenciado
por interpretações lógicas das teorias científicas, propôs que a genética clássica havia sido
reduzida à genética molecular. De modo simplificado, sem entrar nos aspectos lógicos da
proposta, Schaffner defendeu que a genética molecular explicava, a partir de um nível mais
fundamental, todos os fenômenos explicados pela genética clássica. Contrariando a proposta
de Schaffner, David Hull (1975) defendeu que a genética clássica não havia sido reduzida
genética molecular. Segundo Hull, as entidades e processos descritos em cada uma das teorias
não podiam ser correlacionados. O único correlato molecular plausível para um alelo, por
exemplo, era uma maquinaria celular específica, não uma entidade molecular. Termos da
genética clássica como gene, alelo e dominante não possuíam correspondentes em simples
categorias moleculares. Outros autores deram continuidade ao debate. Kitcher (Kitcher, 1984)
e Darden (Darden, 2005), por exemplo, defenderam que a genética molecular lida com
fenômenos e níveis diferentes daqueles abordados pela genética clássica, enquanto que Waters
(1994) argumentou a favor da redução.
O debate se a genética clássica foi reduzida à genética molecular não interessa
diretamente a este trabalho. O que pretendo destacar referindo-me a este longo debate é que
ele deixou claro que o gene molecular clássico não é a estrutura molecular subjacente ao gene
morganiano. Portanto, combiná-los é uma possível fonte de inconsistências e confusões.
Como resume Dupré:
Por uma grande parte da sua história, a genética foi orientada pela investigação de um tipo
[kind] hipotético, o gene. À medida que identificamos gradualmente o material referente a este
tipo hipotético e fomos capazes de aprender algo sobre como casos [tokens] deste tipo
funcionavam e o que eles faziam, tornou-se cada vez mais claro que eles não eram um tipo,
mas um conjunto diverso de objetos e processos moleculares (Dupré, 2004, p.331).
Parece adequado, portanto, seguir, a princípio, a proposta de Lenny Moss (2001;
2003) e fazer uma distinção que corresponde, aproximadamente, à distinção entre o gene
clássico e o gene molecular. Segundo Moss, quando se fala em genes para determinados
§3
– 91 –
fenótipos o gene para esquizofrenia, cor dos olhos, ansiedade, câncer de mama, etc.
refere-se à noção de gene clássico, morganiano. O gene é identificado pela sua expressão
fenotípica: “Ele segue a heurística explicativa do preformacionismo, pois procede como se
aquilo que é transmitido fosse diretamente responsável por uma conseqüência fenotípica”.
Moss chama este conceito de gene–P (preformacionista). Ele é “definido em relação a um
efeito fenotípico, mas é indeterminado em relação à seqüência molecular” (2001, p.223).
Moss reconhece o caráter preformacionista das explicações baseadas no conceito de gene-P,
mas defende seu valor epistemogico. Quando aplicado de maneira estritamente
instrumental, o gene–P permite a predição de resultados fenotípicos, além de uma interação
metodológica com a genética molecular (ver Vance, 1996).
No entanto, quando fala-se no gene para noggin, BMP, hemoglobina, etc., alude-se à
outra noção de gene. É feito referência ao gene como uma seqüência de DNA que codifica um
produto gênico. Não se faz referência ao caráter fenotípico relacionado ao gene. Ele não é
seguido por um Markmale fenotípico, mas por sua estrutura molecular. Moss chama esta
noção de gene–D, com o D se referindo a recurso desenvolvimental:
[O gene–D] refere-se a um segmento de DNA caracterizado como uma unidade transcricional
que fornece um molde informacional para um conjunto de polipeptídeos, mas cuja relação
com o fenótipo é sempre, por si só, indeterminada. Deste ponto de vista, os genes, para
poderem ser relacionados a um fenótipo final, devem estar situados no contexto dinâmico do
desenvolvimento e do ambiente organismal Ao contrário do Gene–P, ele é definido
precisamente pela sua seqüência molecular, mas é indeterminado em relação à sua
conseqüência fenotípica. Como uma categoria de recurso interno, um tipo de molécula (ou
parte dela) entre muitas, os genes não justificam, necessariamente, qualquer forma de
privilégio causal. (Moss, 2003, p.52)
A proposta de Moss chama a atenção para alguns pontos importantes. Ela,
pertinentemente, acentua a diferença entre o conceito de gene da genética clássica e o
conceito de gene da genética contemporânea, sem deixar de notar que ambos ainda são
empregados (Moss atribui o determinismo genético à combinação equivocada destes dois
conceitos). No entanto, a noção de gene–D não avança sobre muitos dos problemas
conceituais levantados pela genética molecular contemporânea em relação a uma definição
molecular do gene. Definir o que é um gene–D “precisamente pela sua seqüência molecular”
continua sendo uma tarefa extremamente problemática.
Uma primeira alternativa para lidar com a complexidade molecular é expandir a
estrutura do gene molecular clássico. O gene molecular contemporâneo seria definido como
§3
– 92 –
um conjunto de seqüências. Ele seria uma seqüência codificadora, mais um sítio de iniciação,
mais um sítio de terminação, mais introns e exons, mais promotores, mais amplificadores, etc.
Mas a definição do gene como um conjunto de seqüências, embora intuitiva, origina diversos
problemas. Em certos casos, como no modelo do operon da lactose, as regiões reguladoras
são específicas e ficam imediatamente ao lado da seqüência codificada. Nestes casos, é
simples considerar as seqüências reguladoras como parte do gene. No entanto, em
eucariontes, normalmente existem regiões reguladoras distantes da região transcrita e elas não
são específicas para um determinado gene (Griffiths e Neumann-Held, 1999). Além disso,
uma seqüência não pode ser identificada independentemente da sua função em um
determinado contexto. Uma mesma seqüência pode ser descrita como um exon ou como
intron, de acordo com o papel que desempenha na expressão de diferentes genes. Se, em
determinado contexto celular, ela for removida do RNAm, será descrita como um intron. Se,
em outro contexto, a mesma seqüência permanecer no RNAm, será descrita como um exon
(Griffiths e Neumann-Held, 1999; Sterelny e Griffiths, 1999). Como escreve Jason S. Robert
(2004a, p.77), “o significado ontogenético de um pedaço de DNA é constituído pelo contexto
desenvolvimental de interações no qual se encontra (espacial, histórico, temporal, ambiental e
organismal)”. Um outro problema ainda é que este tipo de definição tende a considerar a
maquinaria celular como mero pano de fundo, quando, na verdade, ela compreende elementos
fundamentais para a produção de uma proteína específica (ver adiante).
Uma maneira de superar a dificuldade em delimitar e definir precisamente a estrutura
do gene é ver na própria diversidade de estruturas designadas como gene uma virtude; “uma
epistemologia do impreciso” (Rheinberger, 2000). Um conceito de gene versátil é eficaz. Ele
permite a comunicação entre pessoas trabalhando com temas diferentes, mas relacionados.
Não seria útil defini-lo rigidamente. A flexibilidade do conceito de gene impede que “o uso de
uma linguagem muito ligada a determinadas práticas experimentais, por sua própria
especificidade, [torne] praticamente impossível a comunicação entre contextos experimentais
diferentes” (Keller, 2000, p.158). Ao mesmo tempo, de maneira mais positiva, permite o
progresso da investigação através da incorporação de novos elementos descobertos em áreas
de pesquisa próximas. O gene seria “um termo tolerante o suficiente em suas referências para
ligar as diferenças entre os vários fenômenos nos quais comunidades locais de pesquisadores
possam estar interessados” (Dupré, 2004, p.334). A utilidade da flexibilidade do conceito de
gene é bem representado pelo que Richard Burian define como o gene nominal:
§3
– 93 –
O uso de bancos de dados contendo seqüências de nucleotídeos está bem estabelecido.
Implícito como parte deste processo está o uso de um conceito particular de gene a partir do
qual podemos identificar os vários genes e contar o número de genes de um determinado
genoma […] Eu chamo os genes, escolhidos desta maneira, de genes nominais. (Burian, 2004,
p.64)
Os genes nominais são entidades operacionais subentendidas na prática científica. Eles
são um estereótipo da estrutura mais precisa e complexa de cada gene “real”. Thomas Fogle
(2000), de modo semelhante, defende que o gene molecular é identificado
metodologicamente, com base na sua utilidade prática. Os genes são reconhecidos pela
contínua comparação de elementos estruturais e funcionais que compõe um tipo de “coleção
de características consensuais encontradas usualmente entre genes bem-descritos” (Fogle,
2000, p.4). Ele defende que o gene é um conceito “guarda-chuva”, capaz de abrigar um
conjunto de estruturas reconhecidas pela prática científica e em constante mudança de acordo
com as novas evidências empíricas.
Sem dúvida o gene nominal ou consensual desempenha um papel importante na
prática científica. Contudo, ele não proporciona um modelo para entender a função e a
estrutura do gene molecular. Como diz Burian “[o gene nominal] é importante e legítimo, mas
[...] ele emprega um conceito empobrecido de gene que não serve para muitos dos propósitos
que se supõe que um conceito de gene deve servir (Burian, 2004, p.64). Como exemplo,
Burian cita o caso dos pseudogenes.
49
A decisão se uma seqüência é um gene ou um
pseudogene não pode ser feita com base em um conceito estereotipado de gene. É preciso
levar em conta como a expressão gênica emerge da complexidade do genoma e da célula.
Portanto, se a intenção é compreender como um gene produz uma proteína, não é
possível defini-lo apenas estruturalmente. A estrutura do ácido nucléico não é suficiente para
especificar ou delimitar um gene. Tampouco, uma definição flexível da estrutura do gene,
embora útil, ilumina a compreensão de como os genes dão origem a produtos específicos.
Consequentemente, uma definição adequada de gene exige uma apreciação funcional. Ela
deve incorporar o processo de produção de uma seqüência de polipeptídeos ou RNA (Portin,
1993; Neumann-Held, 1999; Fogle, 2000; Moss, 2003; Burian, 2004; Griffiths e Stotz, 2006).
E é justamente este ponto a função gênica que pretendo explorar para mostrar que não
§3
– 94 –
49
Pseudogenes são seqüências de DNA semelhantes aos genes possuem regiões promotoras e sitios de splicing –,
mas que não são transcritos. Em geral, os pseudogenes possuem homólogos funcionais. O genoma humano possui
quatro vezes mais pseudogenes do que “genes verdadeiros” (Lewin, 2007).
uma justificativa do preformacionismo molecular na relação entre um gene e uma proteína,
como defendido por Godfrey-Smith.
Como foi comentado na seção anterior, na genética molecular clássica a função do
gene foi descrita como a transcrição e a tradução da informação contida em uma seqüência
definida de nucleotídeos. Nesta seção, a discussão até agora se concentrou no colapso
estrutural do gene frente aos dados da genética molecular contemporânea. Mas as
conseqüências para a função do gene molecular clássico não foram menos problemáticas. O
processo de produção de uma determinada proteína não pode mais ser adequadamente
descrito como um simples processo de duas etapas: transcrição e tradução. Diversos
mecanismos pós-transcricionais e pós-traducionais fazem da função gênica um processo
muito mais complexo. Três destes mecanismos fornecem exemplos úteis para discussão:
(a) 5’ capping e poliadenilação: Concomitantemente ao processo de transcrição, são
adicionadas à extremidade 5’ do RNAm primário de organismos eucariontes uma base
guanina metilada, um fenômeno conhecido como 5’ capping. Na outra extremidade
(3’) do RNAm primário, é acrescentada uma longa cola com cerca de 200 bases de
adenina, um fenômeno conhecido como poliadenilação. Estas modificações são
fundamentais para a estabilidade do RNA e, consequentemente, para a quantidade de
polipeptídeos produzidos.
(b) splicing alternativo: Na maioria dos organismos eucariontes, o RNAm primário é
formado por exons e introns. Em humanos, por exemplo, os introns representam cerca
de 24% do genoma e os exons cerca de apenas 1% (Lewin, 2007). Após a transcrição,
um complexo formado por proteínas e RNA nucleares pequenos
50
, remove os
introns
51
e emenda os exons. Contudo, nem sempre esta emenda respeita a ordem em
que os exons estavam dispostos na seqüência de DNA. Ao emendá-los, a maquinaria
celular pode combiná-los de diferentes maneiras, ampliando em muito a variedade de
RNAs transcritos a partir de um mesmo gene (ver figura 7). Este processo é conhecido
como splicing [emenda] alternativo e ocorre em aproximadamente 60% dos genes
humanos. A diversidade gerada pelo splicing alternativo é fundamental para o
§3
– 95 –
50
Small nuclear RNAs – um dos muitos tipos de RNAs ativos descobertos nos últimos anos (Eddy, 2001)
51
A biologia molecular vem ampliando a análise funcional além das regiões de DNA que codificam proteínas. Em
coerência com esta análise funcional ampliada do genoma, os introns têm sido reconhecidos como importantes fontes
de miRNAs. Recentemente, foi proposto que estes miRNAs também são processados (Ruby, Jan et al., 2007).
funcionamento e o desenvolvimento dos seres vivos (ver figura 6). Por exemplo, ele é
um dos principais mecanismo no modelo molecular mais aceito para a diferenciação
sexual em moscas drosófilas (Nagoshi, Mckeown et al., 1988; Lewin, 2007).
52
(c) edição de RNA: A edição de RNA refere-se a alterações pontuais nos nucleotídeos
de RNAm. Ela envolve duas classes de processos: a inserção ou exclusão de
nucleotídeos e a modificação de nucleotídeos preexistentes. (Keegan, Gallo et al.,
2001). A forma mais conhecida de edição de RNA são as conversões de citosina em
uracila e de adenosina em inosina (que é interpretada pela maquinaria celular como
guanina). Em muitos casos, estas mudanças são necessárias para a produção de uma
proteína específica. E seus efeitos não se limitam apenas à mudança de um
determinado aminoácido. A edição de RNAm pode alterar, por exemplo, a posição do
códon de terminação ou a moldura de leitura (reading frame), produzindo assim um
polipeptídio completamente diferente.
Os três processos apresentados acima bastam para construir uma crítica ao
preformacionismo molecular, mas outros processos pós-transcricionais são importantes. Por
exemplo, nem todo RNAm transcrito e processado no núcleo é exportado para o citoplasma.
Consequentemente, mesmo uma célula com a mesma população de RNAm no seu núcleo, não
produzirá as mesmas proteínas (Gilbert, 2006). A regulação também pode ocorrer após a
tradução do RNAm em proteína. Por exemplo, muitas proteínas precisam associar-se com
ións, carboidratos, lipídeos, etc. ou interagir com outras proteínas (chaperonas) para se
tornarem funcionais. Além disso, “a célula não é mais vista como um saco, com cada proteína
encontrando seus parceiros funcionais ao acaso, mas como uma estrutura altamente
organizada” (Morange, 2006, p.119), de modo que a função de uma proteína depende da sua
posição e transporte a regiões específicas da célula.
A conseqüência geral desta complexidade da função gênica é que o contexto celular
tem sido considerado determinante para expressão de um determinado gene (Wolf, 1995;
Hall, 2001; Nijhout, 2003; Stotz, 2006). A especificidade de uma proteína não pode mais
simplesmente ser atribuída à colinearidade com o DNA. Ela depende de diversos mecanismo
§3
– 96 –
52
Pode ocorrer também um processo, por enquanto pouco conhecido, chamado de trans-splicing, onde transcritos
primários de RNAm provenientes de diferentes cromossomos são unidos para formar uma única molécula de
RNAm. Acrescenta-se ainda que o splicing em si também é regulado por sequências silenciadoras e amplificadoras
de splicing.
distribuídos pela célula. “Um contexto celular é necessário para o DNA funcionar e contextos
celulares diferentes extraem informações diferentes da mesma seqüência de DNA” (Burian,
2004, p.63). Os fatores que ativamente atuam na expressão de um gene co-especificam a
seqüência do polipeptídio (Stotz, no prelo). O caso do gene "-tropomiosina fornece um bom
exemplo (Figura 7). Diferentes seqüências de RNAm são produzidas a partir da mesma
seqüência de DNA, de acordo com o tipo celular em que a expressão genética ocorre.
Mecanismos como splicing alternativo e diferentes sítios depoliadenilação fazem com que a
especificidade da proteína esteja acoplada ao contexto celular.
Figura 7. O gene em contexto: O processo de produção das proteínas
isoformes "-tropomiosina mostra como a seqüência de nucleotídeos de
RNAm produzido a partir de uma mesma seqüência de DNA depende do
contexto celular. Adaptado de Burian (2004) e Gilbert (2006).
Uma maneira de lidar com a necessidade de contextualizar o gene é mudar de
perspectiva teórica, deixando de conceituar certas entidades biológicas como estruturas e
passando a conceituá-las como processos (Griesemer, 2000b). Desta maneira, é possível
incorporar à definição de gene as condições do contexto desenvolvimental necessárias para a
expressão de uma proteína específica (Neumann-Held, 1999; Burian, 2004; Robert, 2004a;
Griffiths e Stotz, 2006). O gene deixa de ser definido em referência às estruturas que
§3
– 97 –
produzem uma determinada entidade e passa a ser descrito como o próprio processo de
produção destas entidades. Esta perspectiva processual foi devidamente elaborada por Eva
Neumann-Held e defendida também por Paul Griffiths na definição de gene como um
processo molecular (1999, 2001). Desta perspectiva, o gene passa a se referir ao “processo
recorrente que leva à expressão regulada no tempo e no espaço de um determinado produto
peptídico” (Griffiths e Neumann-Held, 1999, p.659). O gene deixa de ser o material ou
substância hereditária e passa a ser uma unidade dinâmica, vias metabólicas que se repetem
ciclicamente:
“Gene” é o processo (i.e., o decurso de eventos) que liga o DNA e todas as outras entidades
não-DNA relevantes na produção de um polipeptídeo particular. O termo gene, neste sentido,
refere-se aos processos que são especificados por (1) interações específicas entre segmentos
de DNA específicos e entidades específicas não localizadas no DNA e (2) mecanismo
específicos de processamento dos RNAms em interações com entidades não localizadas no
DNA. Estes processos, em sua ordem temporal específica, resultam (3) na síntese de
polipeptídios específicos. Este conceito de gene é relacional e sempre inclui interações entre o
DNA e seu ambiente desenvolvimental. (Neumann-Held, 2001, p.74)
A principal virtude da definição de gene como um processo recorrente de produção de
uma determinada proteína é que ele permite acomodar os numerosos processos pós-
transcricionais. Mecanismos fundamentais para a especificidade de uma proteína, mas
independentes da seência de DNA, como os discutidos acima 5’ capping,
poliadenilação, splicing alternativo e edição de RNAm –, são apreciados por uma
conceitualização processual do gene. Além disso, o gene, entendido como um processo, está
aberto a interações fora do contexto celular. Ele permite incorporar, por exemplo, o efeito do
ambiente (Gilbert, 2001b), do comportamento (Gottlieb, 2001a) e de outros níveis da
organização (Bissell, Mian et al., 2003) à produção de proteínas específicas.
A conseqüência de se levar a sério os mecanismos pós-transcricionais envolvidos na
produção de uma proteína e o indissociável embutimento contextual do gene é que o
preformacionismo molecular moderado, como defendido por Godfrey-Smith, torna-se difícil
de ser sustentado. As proteínas não são simplesmente reveladas a partir da sua imagem no
DNA. A especificidade do estágio final a proteína não está determinada pelo estágio
inicial do processo o DNA. A seqüência é selecionada, combinada e criada durante a
expressão gênica. Como afirmou Burian (2004), em relação ao splicing alternativo:
§3
– 98 –
O resultado é uma forma de epigênese molecular: o ambiente molecular diferente encontrado
pelo gene nominal altera o modo como a seqüência de DNA é processada (ou a impede de ser
processada), produzindo assim um produto com uma seqüência de aminoácido diferente (ou
produto nenhum). (ibid, p.67–68)
O caráter epigenético da expressão gênica fica claro na necessidade de expandir o
projeto genoma para outros níveis do processo, como o transcriptoma e o proteoma. A cada
etapa do processo, o aporte de sinais intracelulares, organismais e ambientais contribui para a
produção da etapa seguinte. “Não é mais possível pensar no transcriptoma como preformado
no genoma” (Griffiths e Stotz, 2006, p.515-516).
Portanto, o gene, enquanto a produção de proteínas e RNAs ativos específicos, é uma
seqüência de eventos moleculares cujo produto final não está determinado em nenhuma etapa,
nem mesmo na seqüência de DNA. Aceitar um preformacionismo moderado, na forma da
cadeia causal linear DNA ! RNA ! proteína, resulta de uma sub-apreciação da
complexidade molecular pós-genômica. O gene é um processo molecular epigenético, não um
processo de revelação da informação. A seqüência de peptídeos não está preformada na
seqüência nucleotídeos. O genes não preexistem à sua manifestação desenvolvimental
(Robert, 2004a). Eles emergem na história e no contexto celular.
§3
– 99 –
Figura 8. Epigênese molecular: A seqüência de polipeptídios de uma proteína não está representada em uma
seqüência de DNA específica. A seqüência é criada durante a sua realização (a ordem dos processos aqui
representados não corresponde necessariamente a ordem em que eles ocorrem. Eles podem ocorrer
concomitantemente).
3.2.2 Regulação molecular
No capítulo dois discuti como a teoria celular originou duas tradições de pesquisas
diferentes: a citologia focada no conteúdo intracelular e a embriologia experimental
focada na diferenciação e relação intercelular. No decorrer do século XX, a metodologia da
biologia molecular, inicialmente focada na relação entre DNA e proteína, invadiu o restante
da célula, transformando a citologia em biologia molecular da célula (e.g., Alberts, Bray et
al., 1999). No entanto, por motivos principalmente técnicos, a análise molecular do
desenvolvimento ganhou força apenas a partir da década de 80, levando a biologia do
desenvolvimento (como passou a ser chamada a embriologia a partir dos anos 50) a
reconquistar seu prestígio. Discuto nesta seção porque os resultados obtidos desde então
contrariaram a esperança de que o desenvolvimento poderia ser descrito como um processo
programado de ativação e desativação ordenada de genes. Mostrarei que a abordagem
molecular do desenvolvimento, embora reducionista e genecêntrica, emprega modelos de
regulação intercelular. A expectativa dos primeiros anos da genética molecular de descrever o
desenvolvimento a partir de mecanismos autônomos de diferenciação foi frustrada pelos
resultados obtidos por seus próprios avanços sobre questões embriológicas (De Chadarevian,
1998) .
Durante o nascimento da genética, a embriologia continuou sendo um próspero campo
de pesquisa. Enquanto Morgan e muitos outros pesquisadores, especialmente citologistas,
migravam para a genética, os embriologistas rejeitaram a redefinição do desenvolvimento
como a expressão diferencial dos genes e deram continuidade à tradição de pesquisa
epigenética. A embriologia continuou a investigar o desenvolvimento a partir de modelos que
enfatizavam as interações reguladoras entre as partes do organismo e entre o organismo e o
ambiente. O resultado foi uma completa ruptura disciplinar entre a embriologia e a genética.
Rapidamente, “genética e embriologia tinham suas regras de evidência, seus experimentos
paradigmáticos, seus próprios organismos favoritos, seus próprios professores, seu próprios
jornais e, mais importante, seu próprio vocabulário” (Gilbert, 1996, p.102).
§3
– 100 –
As décadas de 1920 e 1930 foram o auge da embriologia organicista. Dando
continuidade à tradição epigenética da embriologia experimental, ela realizou seus
experimentos clássicos. É deste período, por exemplo, a demonstração da polaridade dos
membros por Ross G. Harrison (1870–1959), os estudos sobre o crescimento e a
especificidade dos neurônios de Paul Weiss (1898–1989) e Viktor Hamburger (1900–2001) e
o organizador de Hans Spemann (1869–1941) e Hilde Mangold (1898–1924) (Haraway,
2004). Todos eles enfatizavam a organização e a capacidade de regulação do embrião. Apesar
dos sucessos obtidos pela jovem ciência da genética, o estudo da geração da forma ainda
cabia à embriologia.
Mas a incapacidade em seguir a crescente tendência reducionista das ciências
biológicas e propor uma explicação no nível molecular destes experimentos, fez da
embriologia uma ciência à sombra do triunfo da genética molecular. Mesmo sem grandes
resultados, a redefinição morganiana da ontogenia como um epifenômeno da expressão
genética prevaleceu. O estudo do desenvolvimento subordinou-se ao estudo de como os genes
moleculares produziam seus efeitos.
Neste espírito, a embriologia, rebatizada de biologia do desenvolvimento, trouxe o
reducionismo da biologia molecular para a investigação da embriogênese. A partir da década
de 80, a utilização do aparato técnico e conceitual da biologia molecular permitiu a
elaboração de modelos genéticos do desenvolvimento. Apesar de ainda ser a disciplina
responsável pela estudo da ontogenia em seus vários níveis, grande parte da biologia do
desenvolvimento voltou-se para como os genes afetavam a diferenciação celular. Ela tornou-
se o estudo da expressão gênica diferencial. Coerentemente, o objetivo central passou a ser a
investigação de mecanismos de controle e regulação intercelular da expressão gênica: vias
sinalizadoras, fatores de transcrição e cascatas de sinais de tradução (Gilbert, 1998b). Como
conseqüência, a biologia do desenvolvimento tornou-se entrelaçada à biologia celular e à
genética. O seu progresso dependeu, por exemplo, da descoberta de numerosos fatores de
transcrição que se associam à amplificadores (enhancers) e promotores, tornando tênue as
fronteiras entre as três disciplinas.
53
§3
– 101 –
53
Gayon (2004) constata que, no sentido intelectual do termo disciplina, é questionável que a genética molecular
ainda seja uma disciplina. Ela tornou-se “mais uma anatomia e uma fisiologia molecular de estruturas e regulações
genômicas do que uma ciência dos genes propriamente dita” (ibid, p.252). O acoplamento do gene ao contexto
celular fez da genética uma sub-disciplina da biologia celular.
Uma boa maneira de avaliar o progresso da biologia do desenvolvimento é considerar
os resultados obtidos na investigação molecular dos experimentos da embriologia organicista.
No fim do século XX, as técnicas da biologia do desenvolvimento pareciam finalmente terem
tornado-se eficientes o bastante para a formulação de modelos moleculares dos fenômenos
observados pelas técnicas histológicas da embriologia. Como apontou Carroll (1998, p.305),
“conceitos fundamentais da embriologia como campos morfogenéticos e organizadores vêem
sendo definidos a nível molecular”. Um bom exemplo é o conceito de indução, traduzido para
a biologia molecular como fatores paracrinais proteínas sinalizadoras intercelulares (que,
ao contrário dos hormônios, atuam em um espaço restrito) e o conceito de competência,
traduzido como a habilidade de receber e processar os fatores paracrinais (Gilbert, 2006).
O caso da indução neural é particularmente interessante, pois representa o
experimento paradigmático da embriologia organicista, envolvendo, ao mesmo tempo, um
dos eventos mais marcantes da embriogênese e um dos nomes mais importantes da história da
embriologia. Desde o início do século XX, Hans Spemann vinha defendendo uma perspectiva
epigenética para embriologia experimental, orientada pela idéia de que o embrião em
desenvolvimento se comportava como um todo auto-regulado. O conceito chave na
investigação de Spemann era justamente a indução “a ocorrência de estímulos formativos
que são exercidos por uma parte do embrião sobre uma outra” (Herbest, 1901, apud em
Gilbert, 1996). Em 1901, Spemann publicou o primeiro experimento demonstrando uma
seqüência de eventos indutivos. Ele mostrou que a formação das lentes dos olhos de sapos a
partir da ectoderma epitelial dependia do contato desta com a vesícula ótica (Saha, 1994).
Nas décadas seguintes, Spemann ampliou o estudo da indução para investigar os
estágios iniciais do desenvolvimento. Para testar se os destinos das partes do embrião
estavam determinados nos primeiros estágios do desenvolvimento, ele e sua aluna Hilde
Mangold
54
transplantaram pequenas partes de uma região para outra da gástrula de anfíbios.
55
§3
– 102 –
54
Mangold morreu tragicamente na época dos experimentos.
55
Após a penetração do espermatozóide no ovo de anfíbios, ocorre uma série de clivagens que dividem o ovo em
células cada vez menores, chamadas de blastômeros. No interior da massa esférica composta pelos blastômeros,
forma-se uma cavidade cheia de líquido chamada blastocele e o embrião passa a ser chamado de blástula. No estágio
seguinte, chamado de gástrula, as células da superfície do pólo animal ingressam para o interior do embrião, dando
origem às camadas germinativas endodérmicas, mesodémicas e ectodérmicas. As células ingressam por uma
invaginação em forma de fenda na superfície dorsal do embrião, chamada de blastóporo. Em répteis, aves e
mamíferos, a invaginação ocorre na linha primitiva. A gastrulação é sucedida pela neurulação a formação do tubo
neural a partir de uma invaginação da ectoderma dorsal do embrião. O tubo neural origina o sistema nervoso central.
Todas as regiões transplantas diferenciaram-se de acordo com a nova região em que foram
enxertadas, mostrando que seu destino ainda não estava determinado e podia ser regulado. A
única exceção foi a região do lábio dorsal do blastóporo. Quando enxertado na região que
presumivelmente se tornaria a pele da barriga, ela originou as mesmas estruturas que teria
formado na sua região original: a endoderma faringeal e a mesoderma dorsal (somitos e
notocorda). Porém, o que mais chamou atenção não foi o fato de que esta região, ao contrário
das demais, estava comprometida com um determinado destino. O enxerto também induziu
a formação de uma nova placa neural na região adjacente, que deu origem a um segundo
sistema nervoso central e, por fim, um segundo embrião completo (ver Figura 9b e 9c). Como
o experimento foi realizado com espécies de tritões de cores diferentes, foi possível perceber
que as células que deram origem aos neurônios pertenciam ao embrião que recebeu o enxerto
e que, presuntivamente, teriam outro destino. Elas haviam sido induzidas pelo enxerto a
mudar de destino e diferenciar-se em células nervosas. Em 1924, Spemann e Mangold
publicaram o resultado da sua pesquisa, chamando a região do lábio dorsal do blastóporo de
organizador, pois ele era responsável não apenas pela indução neural, mas também pela
dorsalização da mesoderma e pela iniciação da gastrulação. A indução neural também foi
chamada de indução primária, pois iniciava a cascata de diferenciação e relações indutivas
cada vez mais específicas que caracterizava a ontogenia segundo a perspectiva epigenética da
embriologia.
O organizador tornou-se o centro das atenções dos embriologistas.
56
Durante mais de
meio século, diversos laboratórios dedicaram-se à investigação da natureza molecular dos
sinais indutivos emitidos pelo organizador. Os primeiros anos de pesquisa levaram a crença de
que moléculas solúveis eram secretadas verticalmente pelo organizador da mesoderma
dorsal para as células ectodérmicas acima instruindo-as a se tornarem células nervosas
(Gilbert, 2001a). A metodologia era clara e direta: a ectoderma competente era exposta a
diversas substâncias e sua evolução morfológica era acompanhada. Os resultados,
inicialmente estimulantes, levaram a um impasse a não especificidade das substâncias
indutoras. Centenas de substâncias eram capazes de induzir a formação do sistema nervoso
central, até mesmo soluções salinas e grãos de areia (Gilbert, 2001a; De Robertis, 2006).
§3
– 103 –
56
Regiões equivalentes ao organizador foram descobertas em todas as classes de vertebrados e também em anfioxos
(Gilbert, 2006; Garcia-Fernandez, D'aniello et al., 2007).
O período inicial de pesquisas em química foi seguido por uma re-interpretação
molecular da indução. Baseado no modelo de Beadle e Tatum de um gene-uma enzima,
Spielgelman “redefiniu diferenciação embrionária como ‘a produção controlada de padrões
enzimáticos únicos’” (Gilbert, 2001a). Waddington, por sua vez, comparou a indução neural à
indução enzimática em bactérias e tentou associá-la ao modelo do operon de Jacob e Monod
(Gilbert, 1996). No entanto, estes primeiros esforços moleculares não foram menos frustrantes
que a investigação química. A busca pelas moléculas responsáveis pela indução neural parecia
condenada ao fracasso. Foram mais de cinqüenta anos de pesquisas infrutíferas em química e
biologia molecular. De Robertis (2006) afirma que, durante a sua graduação, era comum ouvir
comentários de que o organizador de Spemann havia atrasado a embriologia meio século.
Ainda em 1987, John Moore, escreveu: “O problema parece insolúvel [...] Nós devemos
esperar novas idéias e novas técnicas” (Moore, 1987, p.554).
As novas idéias e técnicas não tardaram a chegar. A introdução da tecnologia de DNA
recombinante no estudo do desenvolvimento permitiu que fossem isolados os RNAm
presentes no organizador em concentrações muito pequenas para seres detectados pelas
antigas técnicas. Deste modo, foi possível descobrir genes cujos produtos eram capazes de
dorsalizar o embrião. O primeiro deles foi noggin, seguido por cordina e folistatina (Gilbert,
2001a; De Robertis e Kuroda, 2004; Gilbert, 2006). Os RNAm destes genes, quando inseridos
em embriões sem tubo neural, mostraram-se capazes de induzir a formação de novas
estruturas neurais. Finalmente, a indução neural e a genética molecular haviam chego a um
modelo comum: as células da ectoderma eram induzidas a diferenciarem-se em células
nervosas por proteínas solúveis específicas produzidas no organizador.
Esta primeira interpretação molecular logo foi radicalmente alterada. Após setenta
anos de busca por substâncias indutoras neurais, novos experimentos indicaram que não havia
indução neural. Os cientistas estiveram procurando por moléculas indutoras do tecido neural,
quando, na verdade, era a formação de tecido epitelial que era induzida. As células neurais
eram o estado padrão da ectoderma. A diferenciação em células nervosas era o resultado da
repressão da indução epitelial (Wilson e Hemmati-Brivanlou, 1995). Restava, então, encontrar
as moléculas indutoras do epitélio. A primeira das candidatas foi a proteína sinalizadora
BMP-4, mais tarde confirmada como o principal sinal indutor.
Com isso chegou-se ao que ficou conhecido como modelo padrão da indução neural:
o mesoderma secreta proteínas indutoras do epitélio BMP-4 –, que são inibidas na placa
§3
– 104 –
neural por moléculas antagônicas secretadas pelo organizador — noggin, cordina e folistatina
(ver figura 9d) (Weinstein e Hemmati-Brivanlou, 1997; De Robertis e Kuroda, 2004).
57
Por último, cabe ainda acrescentar que a indução primária, que havia mostrado não
ser uma indução, mas uma repressão da indução epitelial, mostrou-se também não ser
primária (Gilbert, 2001a). A endoderme dorsal presuntiva forma uma região o centro de
Nieuwkoop
58
, que induz a formação do organizador de Spemann na mesoderma acima. O
centro de Nieuwkoop é formado por proteínas e RNAm maternos distribuídos no citoplasma a
partir do ponto de entrada do espermatozóide no óvulo e da rotação cortical, assim como
também a gravidade (Wolpert, 1998; Gilbert, 2006).
Figura 9. Indução neural: (a) o transplante do lábio do blastóporo e a formação de um segundo
blastóporo em outro embrião; (b) a organização de um segundo tubo neural; (c) formação de um
segundo embrião e (d) simplificação do modelo molecular padrão da indução neural. Relações
antagônicas entre gradientes moleculares são responsáveis pela regulação. Figura b retirada de
Spemann e Mangold (2001, [1924]). Figura c retirada de Gilbert (2006).
§3
– 105 –
57
O modelo padrão atualmente tem sido debatido (Munoz-Sanjuan e Brivanlou, 2002; Stern, 2005; 2006; Zaraisky,
2007) Mas para o propósito desta discussão ele é suficiente, pois estou interessado na estrutura dos modelos
moleculares em biologia do desenvolvimento e não em uma explicação adequada e completa da indução neural.
58
Em homenagem ao seu descobridor, o embriologista holandês Pieter Nieuwkoop (Wolpert, 1998).
Esta longa digressão sobre o organizador de Spemann e os mecanismos moleculares
envolvidos na indução neural tem um simples propósito: mostrar que os processos de
regulação propagados pela tradição epigenética da embriologia não entram em conflito com a
biologia do desenvolvimento. Modelos moleculares da ontogenia também envolvem
interações reguladoras. O desenvolvimento, mesmo entendido restritamente como ativação
gênica diferencial, depende de interações que emergem durante o próprio processo (Burian,
2005b).
Estas interações moleculares, presentes em muitos dos modelos da biologia do
desenvolvimento, são importantes porque permitem confrontar uma versão moderada da
noção de programa genético (Rosenberg, 1997; Wolpert, 1997; Maynard-Smith, 2000; Weber,
2004; Rosenberg, 2006). Segundo esta versão, o genoma não contem uma planta arquitetônica
ou um projeto do futuro organismo. A idéia de que o genoma possui um programa genético
diria respeito simplesmente ao fato de que ele é o primeiro estágio de uma longa cascata de
ativação gênica pré-determinada. Uma cascata de ativação gênica na qual cada gene prepara
as condições para o próximo, em um complexo efeito dominó. “O gene A controla os genes B,
C, D… e cada um dos genes B, C e D controlam ainda outros genes” (Maynard-Smith, 2000,
p.188). Esta versão moderada baseia-se em modelos da genética do desenvolvimento que
descrevem a ontogenia como uma cadeia hierárquica de ativação genética.
59
No entanto, a imagem fornecida por estes modelos ignora o tipo de fenômeno
ilustrado em casos como o da indução neural. Os circuitos de ativação gênica não se
desenrolam como uma imensa queda de dominós desengatilhada nas etapas iniciais. Eles
dependem de relações e contextos que emergem durante a ontogenia. Mesmo descrito como
§3
– 106 –
59
A formação do eixo antero-posterior em moscas drosófilas é um destes casos. Em uma série de experimentos
fundamentais para revalorização da biologia do desenvolvimento a partir da década de 80, o laboratório de Christiane
Nüsslein-Volhard chegou a um modelo molecular da formação do eixo antero-posterior em Drosophila melanogaster
(Keller, 1996). O modelo propõe que gradientes citoplasmáticos de proteínas e RNAm maternos ativamente
inseridos no oócito por células maternas pré-padronizam o eixo antero-posterior e a segmentação do corpo. De
maneira simplificada, o modelo afirma que a região anterior do oócito possui uma alta concentação do RNAm do
gene bicoid, enquanto que a região posterior possui alta concentração do gene nanos. Logo após a fertilização, os
RNAm dos genes bicoid e nanos são traduzidos pela maquinaria celular do embrião. A proteína bicoid ativa a síntese de
outro RNAm materno distribuído no citoplasma chamado hunchback. A proteína nanos, pelo contrário, reprime a
síntese de hunchback
, criando um novo gradiente citoplasmático. O gradiente de proteínas hunchback
ativa,
diferencialmente, oito genes gap, que por sua vez ativam a expressão de nove genes pair-rule, os quais determinarão a
identidade dos segmentos pela ativação diferencial de Hox genes (Gilbert, 2006). Uma recente revisão do assunto
aponta que, mesmo na blastoderma sincicial de drosófilas, interações entre os núcleos não podem ser ignoradas
durante a padronização espacial do embrião (Kerszberg e Wolpert, 2007).
expressão gênica diferencial, o desenvolvimento não é uma cadeia causal linear e pré-
determinada, mas depende da reticulação de interações criadas a cada etapa do processo.
A linguagem informacional da biologia do desenvolvimento, amparada em termos
como sinais e receptores, não são uma extensão dos modelos preformacionistas da genética
molecular clássica, como sugere Maynard-Smith (2000). Sinais e receptores, em biologia do
desenvolvimento referem-se a interações entre células, não a manifestação da informação
contida em um programa genético. Em que sentido é possível dizer que a ontogenia está
programada no DNA, quando ela depende, desde sua etapa mais inicial, de sinais e interações
entre células? Como o exemplo da indução neural mostra, a diferenciação em uma célula
epitelial ou em uma célula neural não está internamente programada. Ela depende da relação
de indução e competência entre as células da gástrula. E as condições para uma relação de
indução e competência resultam de muitos outros eventos anteriores e independentes. Por
exemplo, a ectoderma responde aos antagonistas de BMP-4 após ter sido exposta a outros
sinais do organizador durante cinco horas (Stern, 2005). Ademais, as relações indutivas não se
limitam ao interior do organismo. Interações ambientais e sociais participam da expressão
“normal” dos genes (Van Der Weele, 1999; Gottlieb, 2001a; Gilbert, 2002; 2006). A própria
determinação da região onde se formará o tubo neural depende do ponto de entrada do
espermatozóide e a formação do centro de Nieuwkoop. De fato, durante a ontogenia, certos
genes são ativados e outros são desativados. No entanto, atribuir a seqüência de ativação e
desativação à instruções no DNA da célula inicial é ignorar a série de interações que emergem
durante a ontogenia. “Programa, neste contexto, é uma descrição a posteriori da estrutura e
não uma instrução a priori para gerar a estrutura” (Wolf, 1995, p.145).
60
Além disso, não é possível atribuir um início à hierarquia de ativação gênica. É
verdade que um gene pode alterar o padrão de ativação de muitos outros genes, como no caso
dos chamados “genes mestres” (Gehring, 1996). Porém, isso não implica que eles sejam o
início da hierarquia, nem que os genes seguintes não dependam de novas interações (Wilkins,
2002). Todo gene está situado em um contexto histórico e celular e sua expressão está
intrincada a este contexto. “Não pode haver topo da hieraquia em um ciclo de vida. A
§3
– 107 –
60
Deparado com o problemas com estes, Konrad Lorenz considerou a indução neural como um exemplo de
programa aberto, uma idéia proposta por Mayr (1997). Nesta interpretação pouco parcimoniosa, as relações indutivas
entre a ectoderma e o organizador não são causalmente constitutivas. Elas apenas ativam informações alternativas
preexistentes no programa aberto (Oyama, 1985).
hierarquia tem se tornado uma rede de interações […] Reguladores devem ser regulados por
fatores que são eles mesmos regulados e reguladores” (Gilbert, 2000, p.186-187).
Levando-se em consideração as discussões da seção anterior, na qual mostrei a
necessidade de contextualizar a expressão gênica, a perspectiva epigenética ganha ainda mais
força. As proteínas envolvidas na sinalização intercelular p. ex. noggin, cordina, BMP4,
etc. não são simplesmente ativadas, mas constituídas. Assim como seu efeito, sua própria
produção está contextualizada em locais e momentos específicos. A questão não é quais
seqüências determinam o processo desenvolvimental, mas quais seqüências são usadas pelo
processo desenvolvimental para produzir aqueles produtos (Griffiths, 2001). Pois a própria
natureza da proteína depende da maquinaria celular e do entorno intercelular. Tome como
exemplo os fatores de crescimento de fibroblastos (FGF), protnas sinalizadoras
intercelulares envolvidas no crescimento e diferenciação de diversos tipos celulares. Embora
transcritas a partir de nove genes em mamíferos, podem resultar, por splicing alternativo e
sítios de iniciação de transcrição alternativos, em dezenas de proteínas diferentes (Wolpert,
1998; Gilbert, 2006).
61
A regulação intercelular e a epigênese do gene podem ser vistos como
dois extremos de uma perspectiva celular do gene (figura 10).
§3
– 108 –
61
No caso da indução neural, Stern chama atenção para o fato de que, em embriões de galinha, a inibição de BMP4
pode ocorrer no nível de transcrição, mostrando como so fenômenos de regulação molecular e expressão gênica
estão interligados (Stern, 2005).
Figura 10. Visão celular do gene: De 1 a 13, o processo de expressão gênica unifica genética, biologia celular
e biologia do desenvolvimento. Adaptado de Gilbert (2006).
§3
– 109 –
— 4 —
A nova epigênese
O século XX, mais do que o século do gene (Keller, 2000), foi o século da
preformação. Desde a concepção de um material hereditário, no fim do século XIX, passando
pela operacionalização mendeliana, até a formulação molecular contemporânea, a biologia foi
guiada pelo pressuposto de que existem partículas que controlam a hereditariedade e o
desenvolvimento. Durante este século de hegemonia, a perspectiva preformacionista orientou
a construção dos modelos da genética clássica e da genética molecular. No capítulo anterior,
discuti a adequação dos modelos preformacionistas da genética molecular clássica frente aos
dados da biologia atual. A contextualização celular do gene colocou em questão os modelos
que representam (i) o DNA como uma imagem codificada das proteínas e (ii) o
desenvolvimento como uma seqüência linear de ativação gênica.
Estas duas suposições formam o que chamei de versão moderada do
preformacionismo molecular. O DNA não codifica caracteres, nem o genoma possui uma
planta do organismo. Contudo, existe uma versão forte do preformacionismo molecular. Ela
resulta da noção subentendida de que a genética molecular revelou a estrutura físico-química
do gene instrumental da genética clássica. Misturando as duas teorias, a versão forte atribui ao
DNA a capacidade de produzir um caráter fenotípico e ao genoma a prefiguração da forma
adulta.
A versão forte do preformacionismo molecular torna explícita sua relação com a
tradição preformacionista. A analogia entre o homúnculo e a planta arquitetônica é evidente.
No entanto, tanto a versão forte, quanto a versão moderada, são orientadas por um arcabouço
preformacionista. Ambas conservam os pressupostos de que existe uma estrutura interna
§3
– 110 –
causalmente privilegiada, que a hereditariedade é a transmissão destas entidades e que a
ontogenia é um processo predeterminado pela estrutura inicial.
A proposta deste capítulo é apresentar uma contraparte epigenética ao
preformacionismo molecular. Historicamente, preformação e epigênese alternaram-se como
perspectiva hegemônica para construção de teorias sobre a geração dos seres vivos. Defendo
que a Perspectiva dos Sistemas de Desenvolvimento (PSD) seja interpretada como uma
perspectiva epigenética alternativa ao preformacionismo molecular. A PSD propôs uma “nova
epigênese”. Uma revalorização e reformulação da ontologia e da metodologia epigenética.
4.1 Perspectiva dos Sistemas Desenvolvimentais
Iniciarei a discussão sobre a PSD com um esclarecimento sobre sua denominação e
seu status enquanto entidade teórica. A PSD é mais conhecida como TSD (DST, em inglês,
com o T se referindo a teoria). No entanto, a designação teoria tem sido criticada. A principal
crítica é que a PSD não oferece diretamente modelos para os cientistas testarem
experimentalmente. Philip Kitcher, por exemplo, diz que a PSD “não oferece nada que
pesquisadores aspirantes possam colocar para funcionar” (apud Godfrey-Smith, 2001, p.283).
Este tipo de crítica é pertinente. De fato, a PSD não fornece modelos ou mecanismos para a
hereditariedade e o desenvolvimento. Ela não é uma teoria no sentido restrito de um “máquina
geradora de hipóteses” (Oyama, 2000a, p.2). Como os seus proponentes reconhecem, ela é
uma entidade teórica de outra ordem. É “uma estrutura tanto para conduzir pesquisa
científica, quanto para entender o significado mais amplo dos resultados das
pesquisas” (Oyama, Griffiths et al., 2001b, p.2). Por isso, diversas vezes eles reconhecem que
a PSD seria definida de modo mais preciso como uma abordagem ou perspectiva. Como “um
tipo de pano de fundo conceitual que serve para orientar empreitadas empíricas e teóricas
mais específicas (Oyama, 2000a, p.2). Porém, em geral, eles optam por preservar a
denominação teoria, pois ela foi estabelecida pelo uso (mas ver Griffiths e Gray, 2004;
Oyama, 2006){, 2004 #762}.
Contudo, no contexto desta discussão, é importante ser preciso quanto ao status
epistemológico da PSD. Por isso, escolhi o termo perspectiva. Concordo com Griesemer
(2000a) que a PSD representa precisamente o tipo de macro-teoria que na introdução deste
trabalho foi descrita como uma perspectiva teórica. Vejo a PSD como uma tentativa de tornar
§3
– 111 –
explícito um conjunto de pressupostos ontológicos e metodológicos que orientam e sugerem
uma maneira de pesquisar uma classe de fenômenos biológicos.
62
Ela é um arcabouço
alternativo à perspectiva preformacionista e genecêntrica da genética molecular clássica. Um
arcabouço que permite a elaboração de modelos atentos à importância das “ligações
ecológicas, comportamentais e fisiológicas entre gerações” para explicar os sistemas vivos
(Oyama, 2000a, p.9).
O marco inicial da PSD é o livro de Susan Oyama, The Ontogeny of Information,
publicado originalmente em 1985, mesmo período em que publicou alguns artigos influentes
(reunidos em Oyama, 2000a). O livro de Oyama caracteriza-se por um olhar estritamente
epigenético sobre os fenômenos de constância, mudança e variação dos seres vivos. O
objetivo central é romper com a dicotomia entre natureza e criação que permeia as
explicações destes três fenômenos. Em poucas palavras, Oyama se opõe aos pressupostos de
que a constância genealógica dos seres vivos é devida a uma essência genética interna, que a
mudança ontogenética é causada por um plano interno e a mudança filogenética pela ação
externa selecionadora, e que as causas da variação possam ser dividas em herdadas e
adquiridas.
Como comenta Richard Lewontin no prefácio da segunda edição de The Ontogeny of
Information, a obra de Oyama “foi instigada por um crescente empobrecimento da explicação
e do entendimento de como os organismos se formam” (Oyama, 2000b, p. xvii). Este
empobrecimentouma conseqüência da ênfase nos modelos da genética levou Oyama a
valorizar explicações alternativas. No lugar da perspectiva preformacionista da genética, ela
articulou e integrou um conjunto de abordagens epigenéticas que haviam permanecido em
segundo plano durante o século XX. A iniciativa original de Oyama influenciou diversos
autores, especialmente filósofos da biologia, que deram continuidade e expandiram a PSD
(Gray, 1992; Moss, 1992; Gray e Griffiths, 1994; Griffiths e Gray, 1997; Robert, 2004a).
4.1.1 Origens
As abordagens que alimentaram a PSD são um tanto difusas e heterogêneas,
provavelmente em virtude da tradição de pesquisa preformacionista ter permanecido
§3
– 112 –
62
Larry Laudan defende que as tradições de pesquisa, ao contrário das matrizes disciplinares de Kuhn, não são
necessariamente implícitas.
hegemônica durante o século XX. Articulada nas décadas de 80 e 90, a PSD seguiu contra a
corrente determinista do mainstream da biologia. Não surpreende, portanto, que ela, em parte,
tenha se inspirado fora do núcleo das ciências biológicas. Muito dos seus conceitos,
metodologias e experimentos exemplares têm raízes no estudo do desenvolvimento do
comportamento animal ou psicobiologia desenvolvimental.
Ao contrário da biologia em geral, onde o preformacionismo genético dominou de
modo quase absoluto, a psicobiologia desenvolvimental preservou uma perspectiva
epigenética. Ao estudar as bases biológicas da conduta dos animais, ela rejeitou o pressuposto
de que as características dos seres vivos eram determinadas por um material hereditário. As
tentativas de atribuir a herança e o desenvolvimento dos comportamentos aos genes foram
constantemente criticadas e contrapostas por explicações desenvolvimentais (Lehrman, 1953;
Schneirla, 1966; Kuo, 1967; Bateson, 1978; Johnston, 1987; Gottlieb, 2001b).
A recusa da psicobiologia desenvolvimental a explicações preformacionistas fica clara
na resistência à redefinição do conceito de instinto como comportamentos geneticamente
determinados. O conceito de instinto foi largamente empregado pela jovem ciência da
psicologia.
63
Contudo, até o início do século XX, não havia uma nítida distinção entre instinto
e hábitos (comportamentos aprendidos que se tornavam automáticos com a prática). Instintos
podiam ser provenientes de hábitos que foram incorporados como comportamentos inatos. Do
mesmo modo, comportamentos complexos eram considerados como instintos que foram
afrouxados e elaborados pela experiência. Comportamentos que precisavam ser “afinados”
pela experiência eram chamados de “instintos incompletos” (Griffiths, 2004). Lloyd Morgan
falava em “hábitos instintivos”; Wundt em “instintos adquiridos”, George Romanes em
“instintos secundários” (Johnston, 1995). Havia um gradiente entre comportamentos
instintivos e aprendidos, como deixou claro Whitman (1986, p.245): “podem haver ‘misturas’
e todo tipo de ‘interações’ entre hábitos e instintos”.
A nítida separação entre instintos e hábitos ocorreu somente após o amadurecimento
da genética e a absoluta separação entre fenômenos hereditários e desenvolvimentais
§3
– 113 –
63
Charles Darwin dedicou um capítulo do Origens das espécies aos instintos e os definiu como uma ação
“desempenhada por um animal [...] sem nenhuma experiência e por muitos indivíduos da mesma maneira, sem que
eles saibam qual o propósito da ação (Darwin, 1959, p. 207). William James, no Princípios de Psicologia, também
dedicou um capítulo aos instintos, definidos na primeira frase como “a faculdade de agir de tal maneira a produzir
um determinado fim, sem prever este fim e sem ter sido educado para fazê-lo”(1890, p.384). Portanto, os instintos
eram entendidos como impulsos, atos irracionais que conduziam a comportamentos apropriados tanto no homem
como nos demais animais.
(Johnston, 1995). Os instintos, ou comportamentos inatos, foram atribuídos aos genes,
enquanto que os hábitos, ou comportamentos aprendidos, foram atribuídos à ação do ambiente
no desenvolvimento. A disciplina da etologia, como elaborada inicialmente por Konrad
Lorenz, tornou-se a principal representante desta abordagem genética ao comportamento.
Contudo, pesquisadores comprometidos com o estudo do desenvolvimento foram
contrários às tentativas de transpor a abordagem da genética para o estudo do comportamento.
Eles não aceitaram a materialização dos instintos em genes. A existência de padrões de
conduta rígidos, repetidos e previsíveis não era uma justificativa para o argumento de que eles
eram determinados por partículas hereditárias. O resultado foi justamente o surgimento da
psicobiologia desenvolvimental: uma disciplina interessada na investigação da ontogenia do
comportamento. As bases da abordagem desenvolvimental e sua oposição ao inatismo
genético encontram-se paradigmaticamente expostas no texto clássico de Daniel Lehrman,
intitulado A Critique of Konrad Lorenz’s Theory of Instinctive Behavior (1953).
64
Em sua
crítica, Lehrman defendeu uma abordagem estritamente desenvolvimental para o estudo da
conduta animal. Para ele, atribuir os comportamentos aos genes era ignorar o problema
fundamental da psicobiologia: a gênese dos comportamentos. A ciência devia investigar como
os comportamentos emergem durante o desenvolvimento. Por isso, era necessário assumir
uma perspectiva epigenética:
O problema do desenvolvimento é o problema do desenvolvimento de novas estruturas e
padrões de atividade. Ele se a partir da relação entre estruturas e padrões existentes no
organismo e seu ambiente interno e entre o organismo e seu ambiente externo. (Lehrman,
1953, p.345)
O legado mais importante da psicobiologia desenvolvimental é o abandono da
dicotomia entre natureza e criação, em todas as suas versões. Ela forneceu um arcabouço
teórico e experimental para lidar com a investigação do comportamento sem dividi-los em
inatos/aprendidos, herdados/adquiridos ou genéticos/ambientais. Em primeiro lugar, repetindo
§3
– 114 –
64
As críticas de Lehrman foram, em boa medida, assimiladas pelos etologistas, principalmente Nikolaas Tinbergen,
que gradualmente abandonou as noções inatistas. Por exemplo, em On the aims and methods of ethology Tinbergen
assume que o uso do termo inato para descrever o comportamento é “heuristicamente prejudicial” (Tinbergen, 1963,
p.425) Contudo, Konrad Lorenz preferiu não abandonar o inatismo e continuou a defender a divisão entre
comportamentos inatos e aquiridos em uma perspectiva filogenética adaptacionista. Para isso, ele reformulou sua
teoria a partir da linguagem informacional. Comportamentos inatos e adquiridos diferiam, segundo as novas idéias
de Lorenz, quanto a informação da qual eles provinham. Instintos eram hereditários e provinham da informação
genética acumulada durante o processo evolutivo. Esta tradição de pesquisa deu origem à sociobiologia (Wilson,
1975) e, posteriormente, à psicologia evolutiva (Pinker, 1997).
o teor das críticas ao antigo preformacionismo, considerar certas condutas inatas ou
geneticamente determinadas é contra-produtivo. Falar em condutas inatas é se esquivar do
que deve ser explicado. “O uso de ‘categorias explicativas’ como ‘inato’ ou ‘genético’
obscurece a necessidade de investigar o processo desenvolvimental para elucidar os reais
mecanismos do comportamento e suas inter-relações” (Lehrman, 1953, p.345).
Além disso, a psicobiologia desenvolvimental mostrou que o conceito de inato possui
diferentes significados. Ele refere-se a coisas diferentes: presente ao nascer, adaptativo, não
modificado durante o desenvolvimento, comum a todos o membros da espécie, etc. (Griffiths,
2002b; Mameli e Bateson, 2006). Por isso, ao utilizarem o conceito de inato, os etologistas
fazem falsas inferências (Griffiths, 2002b). Propriedades como invariância, universalidade ou
importância adaptativa são inferidas uma das outras, quando, na verdade, são propriedades
que não estão necessariamente conectadas. Se determinado caráter está presente em toda a
espécie, não significa que é uma adaptação. Nem o fato de estar presente em espécies
relacionadas significa que seja inato.
65
Tampouco, constância desenvolvimental significa
determinismo genético. A repetição do mesmo conjunto de relações ambientais, por exemplo,
pode ser responsável pela invariância desenvolvimental (Gray, 1997). Este tipo de crítica aos
múltiplos significados de inato reflete-se nas discussões de Oyama (1985) sobre as
explicações internalistas da constância dos sistemas vivos. O universal e invariável é
atribuído, indiscriminadamente, a causas internas preexistentes.
A crítica à dicotomia entre natureza e criação também baseia-se em resultados
experimentais. Estes experimentos representam uma outra face, mais positiva, da contribuição
da psicobiologia desenvolvimental: ela produziu uma tradição metodológica para investigar a
embriogênese. A metodologia empregada pela genética do comportamento é semelhante à
metodologia da genética em geral: a análise estatística da segregação de determinados
caracteres no caso, comportamentos. A psicobiologia desenvolvimental, por outro lado,
prioriza a intervenção experimental em ontogenias individuais (Gottlieb, 2001a; Griffiths,
2006). Ela é uma embriologia do comportamento. Os experimentos são projetados para
investigar as interações sucessivas que ocorrem durante o desenvolvimento de um
determinado indivíduo.
§3
– 115 –
65
Lickliter e Berry (1990) chamam esta falsa inferência de “falácia filogenética”.
O uso desta metodologia forneceu suporte empírico às críticas ao preformacionismo
da genética comportamental e à dicotomia entre inato e aprendido. Os experimentos
mostraram, por exemplo, que diversos comportamentos concebidos como “inatos” necessitam
de estímulos sensório-motores durante a embriogênese; que a constância e universalidade
depende de causas ambientais; que existe uma inter-relação entre o desenvolvimento do
sistema nervoso e o desenvolvimento do comportamento, contrariando o reducionismo da
genética e evidenciando relações causais entre diferentes níveis da hierarquia dos sistemas
vivos (Hamburger, 1971).
A metodologia da psicobiologia desenvolvimental é bem exemplificada pela série de
experimentos clássicos realizados por Gilbert Gottlieb com patos-reais (Anas platyrhyncos)
(1971; 2001a). Patos-reais, quando nascem, demonstram clara preferência pelos chamados de
indivíduos de sua própria espécie, um comportamento aparentemente inato. Ele é adaptativo,
espécie-específico e se manifesta mesmo em indivíduos criados em isolamento. Porém,
Gottlieb mostrou que, se desvocalizados cirurgicamente enquanto ainda estavam no ovo, os
patos perdiam a preferência pelo chamado de sua espécie. A presença do comportamento
“inato” dependia de eventos epigenéticos. A desvocalização impedia que os patos se auto-
estimulassem com o próprio canto. A interação emergente entre vocalização e sistema nervoso
era necessária para o desenvolvimento do comportamento. Portanto, a constituição de uma
conduta antes definida como inata, revelou-se dependente de causas geradas durante o próprio
desenvolvimento.
Auto-estímulos pré-natais são a base de muitos outros experimentos chaves da
psicobiologia desenvolvimental. Outro exemplo, discutido por Lehrman (1953), são os
elegantes experimentos de Zing Yang Kuo sobre o comportamento de ciscar em pintos recém-
nascidos (resumidos em Kuo, 1967). Pintos domésticos ciscam logo após eclodirem do ovo.
Tal comportamento consiste de três componentes coordenados: (i) dar botes balançando a
cabeça, (ii) abrir e fechar o bico e (iii) engolir. Este é um comportamento estereotipado,
adaptativo, específico da espécie e presente logo após o nascimento, mesmo em indivíduos
isolados. Um típico candidato à comportamento inato. Mas a investigação realizada por Kuo
revelou a produção desenvolvimental deste “instinto”. Em um embrião com três dias,
observa-se que o pescoço é passivamente inclinado pelas batidas do coração, fazendo com
que a cabeça balance para cima e para baixo. A cabeça é estimulada tatilmente pelo saco
vitelínico, que é deslocado mecanicamente pelo movimento sincronizado do líquido
§3
– 116 –
amniótico bombeado pelas batidas do coração. Um dia depois, a cabeça passa a inclinar-se
ativamente em resposta à estimulação tátil e o bico a abrir e fechar. Poucos dias depois, o
fluxo forçado de líquido amniótico pela garganta causa o movimento de engolir. Ao nascer, o
pintinho, “instintivamente”, cisca.
É importante perceber nestes experimentos que as interações que emergem durante o
desenvolvimento não são instruções para um determinado comportamento. O chamado
produzido pelo pato de Gottlieb dentro do ovo é diferente do chamado materno. Ele não
ensina ao patinho o chamado da sua espécie, mas apenas fornece uma interação necessária
para o desenvolvimento do sistema nervoso e auditivo. Da mesma forma, o bater do coração
não instrui o pinto a ciscar. Estas ações não-instrutivas demonstraram a inadequação da
dicotomia inato e aprendido. Não certos comportamentos genéticos e outros adquiridos.
Todo comportamento é, ao mesmo tempo, inato e aprendido. Sobre a análise
desenvolvimental, as categorias inato e aprendido expandem, inter-ramificam e coalecem,
deixando de ter sentido (Gray, 1992, p.171). O processo de desenvolvimento é um processo
inerentemente epigetico. [E]m qualquer estágio do desenvolvimento, as novas
características emergem das interações no estágio atual e entre o estágio atual e o
ambiente” (Lehrman, 1953, p.345).
Uma maneira de interpretar a PSD é encará-la como uma extrapolação da
psicobiologia desenvolvimental para outros domínios. Como afirma Paul Griffiths, “[a PSD] é
uma tentativa de tornar explícito e refletir sobre os principais conceitos desta tradição de
pesquisa” (2006, p. 191). A PSD leva a recusa da dicotomia entre comportamentos herdados e
adquiridos para o estudo dos sistemas vivos em geral. A ontogenia morfológica também deve
ser investigada como uma constante interação entre causas internas e externas. Assim como o
desenvolvimento do comportamento não é um epifenômeno da maturação neural (Gottlieb,
2001a), o desenvolvimento do organismo não é um epifenômeno da expressão genética. Ele é
a constituição epigenética de um sistema através das interações entre seus múltiplos níveis e o
ambiente.
Uma segunda contribuição que se destaca na confluência de idéias que alimentaram a
PSD são as idéias de Richard Lewontin. É inusitado que um geneticista de populações, ex-
aluno de Dobzhansky, tenha tornado-se inspiração de uma abordagem radicalmente
desenvolvimental. Porém, além da sua contribuição empírica em genética, Lewontin
colaborou também com discussões em filosofia e sociologia, tornando-se um importante
§3
– 117 –
crítico de alguns dos princípios e metodologias do preformacionismo genético (Rose, Kamin
et al., 1984; Levins e Lewontin, 1985; Lewontin, 1992a; Lewontin, 2002).
Uma primeira crítica de Lewontin dirige-se diretamente às explicações genéticas. Ele
aponta que, historicamente, a genética confundiu a análise das causas das diferenças com
análise das causas da forma (Lewontin, 1974). A partir do que foi discutido no segundo
capítulo, é possível perceber que esta confusão tem suas raízes na cooptação da metodologia
mendeliana pela genética de Morgan. Desde Mendel, a metodologia da genética concentrou-
se em regularidades estatísticas na segregação de diferenças entre gerações. Ela investigava a
produção de variações entre caracteres, não a produção de caracteres em si. “A genética era
uma ciência de similaridades, não como mais tarde viria a se tornar uma ciência dos
mecanismos que produzem estas similaridades” (Morange, 2002, p.12). Na genética
morganiana, a análise das diferenças entre caracteres foi confundida e misturada à análise da
produção dos caracteres. O estudo da aparição alternativa de cores dos olhos, sexo ou
comportamentos foi equivocadamente transposto para o estudo da geração da forma.
Consequentemente, a utilização da metodologia mendeliana pela genética morganiana não
levou apenas à materialização do gene instrumental. Ela também transformou instrumentos de
análise da variação em partículas responsáveis pela geração da forma (todavia pressupostas
pela tradição micromerista).
Outra crítica de Lewontin dirige-se ao tratamento da relação entre organismos e
ambiente. As raízes deste problema são ainda mais profundas. Elas remetem à antiga e
persistente distinção entre natureza e criação, já discutidas pela psicobiologia
desenvolvimental. Vale recapitular algumas idéias gerais antes de discutirmos a crítica
específica de Lewontin. Durante o período discutido no capítulo 1, da antiguidade ao início do
século XIX, a idéia de natureza esteve ligada à permanência da forma. As espécie eram tipos
naturais, classes de entidades que compartilhavam propriedades essenciais. A mesma relação
que unia diferentes pedaços de ouro ou mármore, unia também as espécies vegetais ou
animais. A permanência das espécies era explicada pela sua essência. Portanto, a ligação
genealógica era irrelevante para explicar a natureza dos seres vivos. Como disse François
Jacob, “[...] os seres não se reproduziam. Eram engendrados” (Jacob, 2001). Cada geração era
única, independentemente de como ela ocorria. Por isso, os fenômenos hereditários não eram
importantes para a discussão entre preformacionistas e epigenesistas. O fenômeno a ser
explicado era a conservação da forma, não a propagação de peculiaridades periféricas nos
§3
– 118 –
descendentes. A recorrência de doenças, anomalias e semelhanças entre famílias era uma
questão secundária à preservação do tipo. Neste contexto, o efeito da criação estava
relacionado ao surgimento destas peculiaridades não-essenciais. A criação era um estorvo para
forma. Um bom exemplo é o efeito atribuído à imaginação materna no nascimento de
monstros (Pinto-Correia, 1999).
A partir da segunda metade do século XVIII, os fenômenos hereditários começaram a
ganhar importância para a explicação da continuidade da forma. A hibridização entre espécies
a as discussões sobre as raças humanas apontavam a variabilidade do tipo e aproximaram a
persistência da forma à segregação genealógica de semelhanças. De fato, a necessidade dos
modelos da geração dos seres vivos darem conta dos fenômenos hereditários foi uma das
principais razões para o fim do preformacionismo mecanicista e o surgimento da epigênese
teleológica. O “preformacionismo genérico” de Kant era uma maneira de conciliar
persistência da forma e variação individual. A aceitação de que o tipo era variável abriu
espaço para o efeito da criação. Por exemplo, a persistência dos efeitos do ambiente foi
teorizada por autores como Buffon e Lamarck como a propagação de semelhanças e,
principalmente, degenerações da forma.
No século XIX, a estabilidade das espécies e a segregação de semelhanças entre
descendentes passaram a ser explicadas de maneira unificada (López-Beltran, 2007). O
surgimento do conceito de hereditariedade criou um novo domínio fisiológico que uniu
definitivamente a permanência da forma e a repetição de similaridades. Os fenômenos
hereditários explicavam não apenas a segregação de peculiaridades acidentais, mas a própria
continuidade da forma entre gerações. A forma não era mais transcendental, mas histórica
(Russell, 1982).
Como foi dito no Capítulo 2, a hereditariedade, inicialmente, foi investigada de
maneira fenomenológica (Gayon, 2000).Ela era uma força antagônica à variação. Havia uma
oposição entre a tendência a reproduzir a forma e a tendência a desviar da forma. Na segunda
metade do século XIX, a concepção fenomenológica inicial foi substituída por uma
concepção estrutural da hereditariedade (Gayon, 2000). Autores como Darwin e Spencer
propuseram a existência de uma estrutura hereditária responsável pelo desenvolvimento,
transmissão e regeneração da forma. A concepção estrutural da hereditariedade foi mantida
como pressuposto básico da perspectiva preformacionista da genética e persiste materializada
§3
– 119 –
no gene molecular clássico. O DNA é a estrutura que transmite e forma (informa) à
natureza dos seres vivos.
O início da versão contemporânea da distinção entre natureza e criação está
intimamente ligada ao pressuposto de que existe um material hereditário. em Darwin, por
exemplo, a natureza foi atribuída à ação interna das gêmulas. O efeito da criação ou do
ambiente sobre o organismo e sobre as gêmulas causava apenas variações, isto é, desvios da
forma (Winther, 2000). Darwin, como é bem sabido, aceitava que variações surgidas durante a
existência do organismo podiam ser incorporadas às gêmulas. Acreditava também que a
variação “herdada”, isto é, a variação direta das gêmulas não as variações do organismo
incorporada às gêmulas — dependia de causas externas (Winther, 2000). Portanto, em Darwin
é possível perceber as bases da versão moderna da dicotomia entre causas internas e causas
externas da forma. A constância tinha causas internas (gêmulas) e a mudança causas externas
(o ambiente).
A divisão entre interno e externo tornou-se mais forte com a idéia de continuidade
germinal de Galton e Weismann, discutida na seção 2.3.1. A distinção entre estrutura latente e
estrutura patente ou entre soma e germe impediu que as variações causadas pelo ambiente
durante o desenvolvimento fossem incorporadas ao material hereditário. Galton e Weismann
ergueram uma barreira entre as partículas que fluíam entre as gerações e as partículas que
causavam o desenvolvimento (mas não entre os mecanismos de herança e desenvolvimento,
nem entre a ação externa do ambiente sobre a variação das células germinais!).
Consequentemente, as características adquiridas pelo corpo durante a realização da ontogenia
não podiam ser incorporadas ao material hereditário, como havia defendido Darwin. A
proibição da assimilação hereditária do efeito da criação acentuou a distinção entre causas
herdadas e adquiridas. Havia uma nítida correspondência entre interno, herdado e natural, por
um lado e externo, adquirido e criado, por outro. Esta perspectiva, trazida para a morfologia
experimental, é a base do preformacionismo de Weismann e Roux. A natureza dos seres vivos
tinha uma causa interna. Ela era auto-determinada pela estrutura do núcleo. O seu
desenvolvimento era a manifestação da forma inerente. As interações durante a ontogenia não
eram constitutivas da natureza dos seres vivos. As interações com o externo causavam apenas
o desvio da forma predeterminada.
O último passo em direção à dicotomia moderna entre interno e externo foi a
atribuição da variação do material hereditário a causas exclusivamente internas. Na genética,
§3
– 120 –
a variação foi atribuída à mudanças e recombinações internas aleatórias (Jablonka e Lamb,
2005). Ela não estava sujeita a influências externas, como acreditavam Darwin, Galton e
Weismann (Winther, 2001). A natureza do organismo era causada pelos genes e suas
variações. A forma herdada e também as variações estavam alienadas do mundo externo. Ao
externo cabia apenas perturbar, censurar ou selecionar a natureza interna.
A alienação do interno em relação ao externo criou uma nova questão. A forma tinha
causas internas, porém a variação tinha causas internas e externas. Ela podia ser causada por
variações no material hereditário transmitido pelos pais ou pela ação direta do ambiente.
Portanto, era necessário diferenciar e quantificar variações herdadas e variações adquiridas.
Este é o significado da moderna dicotomia entre natureza e criação, combatida pela
psicobiologia desenvolvimental e também por Richard Lewontin. Biologia e cultura, inato e
adquirido, genético e ambiental: as diferenças possuem causas internas ou externas. Existem
variações naturais ou criadas. Essenciais ou superficiais. A relação entre organismo e
ambiente tornou-se uma questão de quanto da variação entre indivíduos é devida a diferenças
nos genes e quanto da variação é devido a diferenças no ambiente.
O primeiro autor a lidar com a nova questão foi o próprio Galton, após criticar os
elementos lamarckistas na pangênese darwiniana. Ele criou um programa de investigação para
“distinguir os efeitos de tendências recebidas no nascimento daquelas que foram impostas
pelas circunstâncias durante a vida; em outras palavras, entre os efeitos da natureza [nature] e
da criação [nurture]” (Galton, 1876b, p.391). O método utilizado por Galton era quantitativo e
populacional. Ele comparou caracteres de centenas de pessoas inclusive gêmeos e
analisou estatisticamente a correlação entre a distribuição dos caracteres e o parentesco. O
efeito da natureza era considerado mais forte nos caracteres que se repetiam mais
frequentemente entre parentes do que entre pessoas sem parentesco. Portanto, natureza e
criação eram inferidas de análises populacionais, não de ontogenias individuais.
As idéias de Galton deram origem à biometria, disciplina que viria a ser um dos
pilares da genética de populações (Provine, 1971).
66
A metodologia e os conceitos da genética
de populações ainda são as bases da atual abordagem genética da relação entre organismo e
ambiente. Uma das maneiras mais comuns de quantificar a versão genética da dicotomia
natureza/criação são as análises de variação (ANOVA). Este tipo de análise permite inferir a
§3
– 121 –
66
Como mencionado no capítulo 2, Galton resgatou uma concepção fenomenológica e quantitativa da
hereditariedade
herdabilidade de um caráter, isto é, inferir um índice estatístico que mostra a proporção das
variações que podem ser atribuídas aos genes e ao ambiente.
Para a realização de uma ANOVA, é necessário uma população com variação no
caráter estudado. Por exemplo, se o estudo pretende investigar a herdabilidade do tamanho do
corpo, a população deverá conter indivíduos de tamanhos diferentes. Como em uma
população natural haverá também variação genética, a herdabilidade será inferida da
correlação entre a variação no tamanho e a variação genética. Quanto mais indivíduos com o
mesmo genótipo apresentarem o mesmo tamanho, maior será a porcentagem de herdabilidade
genética. Se todos os indivíduos com o genótipo g possuírem o caráter t e todos os indivíduos
não-g não apresentarem o caráter t, a variação do caráter será 100% genética. Por outro lado,
se a distribuição do caráter t for aleatória em relação aos diferentes genótipos, a variação será
100% ambiental. Mas, se apenas metade dos indivíduos com o caráter t possuírem o genótipo
g, a variação será 50% genética e 50% ambiental.
Neste ponto, duas críticas de Lewontin se encontram. O estudo genético de populações
(i) confunde causas da variação e causas da forma e (ii) pressupõe que a relação causal entre
organismos e ambiente é independente. A confusão das causas da variação com as causas da
forma, discutida acima, torna-se evidente no índice de herdabilidade: as causas
quantificadas em análises de variação não são causas da forma, são causas da variação. Um
caráter cuja variação é 100% ambiental, depende, evidentemente, da ação de genes para
existir. O cálculo do índice de variação do número de pernas em uma população de seres
humanos fornecerá um alto coeficiente ambiental. A maioria da variação será devida a causas
ambientais como acidentes e doenças. Mas ninguém supõe que o fato de humanos terem duas
pernas não possui causas genéticas (Bateson, 2001). Além disso, a análise genética
quantitativa não ilumina o processo de desenvolvimento individual. Ela fornece apenas
informações sobre uma determinada população em um determinado contexto. Dizer que a
variação de um caráter em um indivíduo é 50% genética e 50% ambiental a partir de uma
ANOVA é uma falsa inferência. “Variações encontradas entre indivíduos não podem ser
validamente aplicadas para uma explicação em indivíduos: variação inter-individual não
explica a variação intra-individual” (Gottlieb, 2003, p.338). A falácia fica clara ao percerber
que alterando a população (adicionando ou removendo indivíduos), alteram-se também os
índices de herdabilidade. Não faz sentido afirmar que a ação dos genes ou do ambiente em
§3
– 122 –
ontogenias individuais depende da presença ou não de certos indivíduos na amostra
populacional.
Mas a principal crítica de Lewontin aos cálculos de herdabilidade dirige-se ao
pressuposto de que genes e ambiente atuam de maneira independente. Os efeitos dos genes
são representados como os mesmos em diferentes contextos ambientais. E, de modo inverso,
os efeitos do ambiente são considerados os mesmos em diferentes genótipos. No entanto,
Lewontin alerta que, na maioria dos casos, evidências empíricas indicam a interdependência
das influências genéticas e ambientais (Gupta e Lewontin, 1982; Lewontin, 2002). Genes e
ambiente co-atuam. Não é possível distinguir uma parcela de contribuição genética e outra
ambiental. A equação genótipo + ambiente = fenótipo, em geral, é inadequada. Genótipos e
ambientes determinam conjuntamente o fenótipo. Por isso, “entender o desenvolvimento de
indivíduos requer um conceito relacional de causalidade” (Gottlieb, 2003, p.338).
Figura 11. Normas de reação: (a) determinismo genético; (b) interacionismo aditivo; e (c) interacionismo não-
aditivo. Modificado de Lewontin (1974).
A interdependência causal torna-se evidente quando a relação individual genótipo/
ambiente é representada em uma norma de reação, como na figura acima. Na figura 11a, é
representada uma situação improvável de determinismo genético: os genótipos G1 e G2
determinam o mesmo fenótipo (F) em qualquer ambiente (A). A figura 11b representa um
caso onde as relações entre ambiente e genótipo apresentam uma norma de reação aditiva. Os
genótipos G1 e G2 respondem de modo similar às mesmas variáveis ambientais. Suponha, por
exemplo, que o fenótipo (F) se refere ao tamanho do corpo e o ambiente à temperatura. Qual
genótipo, G1 ou G2, resultará em um indivíduo maior dependerá do ambiente em que eles
forem criados. Mas, se forem criados em um mesmo ambiente, o genótipo G1 será sempre
§3
– 123 –
maior que G2. No entanto, este tipo de interação aditiva (G + A = F) é rara (Gupta e
Lewontin, 1982; Nijhout, 2003). A interação entre ambiente e fenótipo, geralmente, é não-
aditiva, como representada na figura 11c. As mesmas variáveis ambientais produzem
resultados fenotípicos diferentes em genótipos distintos. Enquanto no genótipo G1, digamos,
o aumento de temperatura leva ao aumento do tamanho do corpo, no genótipo G2 ele resulta
na diminuição. Portanto, é impossível diferenciar a porcentagem da variação do tamanho que
é causada pelos genes e a porcentagem que é causada pelo ambiente. As duas causas são
interdependentes. Cada genótipo responde de maneira particular ao ambiente.
Consequentemente, o conhecimento dos efeitos fenotípicos em um ou vários contextos
ambientais não permite prever os efeitos em outros contextos ambientais (Gottlieb, 2003).
Portanto, seguindo um caminho diferente a análise quantitativa da relação entre
organismo e ambiente Lewontin chega à mesma conclusão da psicobiologia
desenvolvimental: organismo e ambiente atuam juntos no desenvolvimento. Tanto a análise
individual da psicobiologia desenvolvimental quanto a análise populacional da genética do
comportamento indicam que não uma natureza inata e uma variação adquirida. As
características são produzidas epigeneticamente em interações não-aditivas. A natureza do
organismo não é determinada por um potencial interno que se manifesta em um contexto
ambiental. A natureza do organismo é construída em uma seqüência permanente de interações
interdependentes entre suas partes e com o ambiente.
4.1.2 Pressupostos
Reflexões e críticas como as de Daniel Lehrman e Richard Lewontin são as bases da
Perspectiva dos Sistemas Desenvolvimentais (PSD). Somadas ao enfraquecimento da versão
forte do preformacionismo genético frente aos dados da biologia contemporânea, elas
permitiram articular uma perspectiva teórica radicalmente epigenética. A PSD costuma
apresentar suas idéias como uma lista de princípios ou temas. Eles compõem as diretrizes
ontológicas e metodológicas defendidas pela PSD para a investigação dos fenômenos
hereditários, desenvolvimentais e evolutivos. Diferentes listas são apresentadas (e.g. Gray,
1992; Griffiths e Knight, 1998; Oyama, 2000a; Oyama, Griffiths et al., 2001b). Destaco
quatro idéias em comum: (i) hereditariedade como re-produção (ou reconstrução); (ii)
paridade e interdependência causal (iii) hereditariedade expandida; e (iv) o desenvolvimento
§3
– 124 –
como um processo contingente. Estes quatro pressupostos confrontam quatro pressupostos do
preformacionismo molecular discutidos ao longo deste trabalho: (i) a hereditariedade é um
processo de transmissão; (ii) os genes contêm a informação que determina o
desenvolvimento; (iii) a hereditariedade é restrita aos genes; e (iv) a hereditariedade é um
processo programado (ver tabela 1).
Preformação
Epigênese
Hereditariedade como transmissão
Hereditariedade como re-produção
Primazia causal dos genes
Paridade e interdependência causal
Hereditariedade genética
Hereditariedade expandida
Processo programado
Processo contingente
Tabela 1. Comparação entre os pressupostos da perspectiva da genética e da perspectiva dos
4.1.2.1 A hereditariedade como re-produção
Como destaca Amundson (2005), a separação entre hereditariedade e desenvolvimento
é um truísmo para a biologia contemporânea. O entendimento de que a hereditariedade é
simplesmente a transmissão do material hereditário e não a sua manifestação está tão
enraizado na cultura científica que jamais é contestado. A realidade da transmissão hereditária
é aceita como um fato evidente. No entanto, distanciando o foco de maneira que é possível
ver um segmento maior da história das ciências biológicas, percebe-se que o fato da
transmissão do material hereditário se estabeleceu com o próprio nascimento da genética.
Como apontei diversas vezes, a hereditariedade e o desenvolvimento, até o início do século
XX, estavam entrelaçados em um único fenômeno e, consequentemente, eram explicados
conjuntamente. Somente após a consolidação da genética morganiana, hereditariedade e
desenvolvimento foram separados como dois fenômenos distintos e, portanto, explicados em
domínios diferentes. Onde antes existia uma questão, passaram a existir duas. A
hereditariedade era causada pela segregação de partículas hereditárias capazes de controlar a
produção das características dos organismos. Ou, para usar o vocabulário da nova disciplina, a
hereditariedade era conseqüência da transmissão dos genes. Como os genes causavam as
características que eles transmitiam era outro problema e demandava outra explicação.
Existiam dois processos distintos: a segregação horizontal dos genes e a manifestação vertical
dos genes.
§3
– 125 –
A apreciação histórica da separação entre hereditariedade e desenvolvimento é
importante, pois torna mais amena a proposta aparentemente radical da PSD: abandonar a
dicotomia herdado e desenvolvido. Ela permite perceber que a divisão ontológica do
organismo em uma dimensão hereditária e outra desenvolvimental é conseqüência de uma
perspectiva teórica específica. A dicotomia surge de compromissos com as noções de material
hereditário e determinação interna da forma. De maneira direta:aA dicotomia entre herdado e
adquirido é um pressuposto do preformacionismo genético.
É este pressuposto que a PSD substitui quando rejeita a idéia de transmissão
hereditária. Ela abandona o entendimento estrutural da hereditariedade, iniciado com o
micromerismo e encravado na genética. Afinal, hereditariedade não é sinônimo de
transmissão hereditária. A metáfora herança biológica tem origem na passagem de bens e
status social aos descendentes. Mas tomá-la literalmente é enganoso. As semelhanças entre
pais e filhos que os médicos franceses do início século XVIII reconheceram como um
fenômeno biológico distinto e, metaforicamente, descreveram como herança biológica, não
exigem sua transmissão. O fenômeno a ser explicado é como o semelhante gera o semelhante.
Mas a geração de semelhanças não implica a transmissão de semelhanças. Como alertava
Johannsen, “o biólogo comete um erro grave ao usar a palavra herança no sentido vulgar. Esta
palavra significa transmissão. Por conseguinte, deveríamos buscar outra palavra para
representar a herança biológica” (apud Hertwig, 1929, p.212){apud Hertwig, 1929 #500 }.
Os defensores da PSD não substituem a palavra herança, mas a desvinculam da noção
de transmissão. A palavra que sugerem para descrever o processo hereditário é construção.
“Todos os fenótipos são construídos, não transmitidos” (1992, p.177). O semelhante gera o
semelhante porque reconstrói as semelhanças. As similaridades são preservadas entre
gerações através da repetição do processo que as produziu. As características dos seres vivos
são re-produzidas a cada geração, não transmitidas em partículas que as representam.
“Caracteres não passam de um organismo para o outro como bastões em uma corrida de
revezamento. Eles devem ser construídos na ontogenia” (Oyama, 2000a, p.87).
A PSD, portanto, ao abandonar a idéia de hereditariedade estrutural, assume uma
abordagem da hereditariedade “baseada em processos ao invés de produtos” (Oyama, 2000a,
p.90). A hereditariedade não é a transmissão de caracteres (ou representações codificadas de
caracteres). A hereditariedade é o processo de re-construção dos caracteres. “Fenótipos, na
verdade, não persistem entre gerações, mas re-ocorrem (Oyama, 2000a, p.83). O filho possui
§3
– 126 –
os olhos azuis da mãe e o daltonismo do avô não porque possui genes para a cor dos olhos ou
para o daltonismo. O gene molecular contemporâneo não é um gene para um fenótipo. Ele
produz, no máximo, uma proteína e, em raros casos, é possível relacionar a alteração de uma
proteína a um fenótipo. O gene contemporâneo é um recurso desenvolvimental envolvido no
processo de produção de fenótipos, não a representação codificada de um determinado
fenótipo. O fato do daltonismo, às vezes, poder ser relacionado a uma mutação no
cromossomo X, não significa que o gene do daltonismo foi literalmente transmitido. Este tipo
de asserção tem valor apenas instrumental. Fisiologicamente, o que foi transmitido foi um
recurso que participa da produção de um certo fenótipo. A percepção alterada de cores é o
resultado de um processo que envolve múltiplos recursos e níveis em interação. Ele pode ser
tanto a conseqüência de uma proteína defeituosa, quanto de uma lesão cerebral em um
acidente de carro (Sacks, 1997).
Para continuar a falar em transmissão entre gerações, deve-se abandonar a idéia de
que os caracteres ou os determinantes dos caracteres são transmitidos. Se algo é transmitido,
são os recursos desenvolvimentais que permitem a reprodução destes caracteres. “O que é
transmitido entre gerações não são os caracteres ou as plantas arquitetônicas ou
representações, mas sim meios (ou recursos ou interagentes)” (Oyama, 2000a). Isto não
significa que todos os recursos desenvolvimentais pré-existem ao desenvolvimento. “Os
constituintes e configuração do sistema mudam com sua atividade. Deste ponto de vista,
muitas partes do complexo em mudança são gerados por eles mesmos” (Oyama, 2000, p.88).
Os hormônios produzidos pelos testículos, por exemplo, serão decisivos para a determinação
das características sexuais em humanos. Ele é um recurso desenvolvimental que deve estar
presente em um determinado momento da ontogenia, mas não preexiste à sua realização. Ele
emerge durante a ontogenia.
Em resumo, a PSD propõe que o fenômeno hereditário é resultado da re-ocorrência de
um processo, não a transmissão de um material preformador. Por isso, a “natureza” dos seres
vivos é radicalmente epigenética e histórica. Ela não depende da existência e transmissão de
um material portador da forma. A natureza é re-desenvolvida, re-produzida e re-adquirida a
cada geração. O que é transmitido são apenas recursos internos e externos para que o processo
possa se repetir.
§3
– 127 –
4.1.2.2 Paridade e interdependência causal
O que é necessário para que uma uva possa produzir um bom vinho? É de
conhecimento comum que dependerá tanto da variedade da uva, quanto de onde e quando ela
foi plantada. A uva deverá ser de uma variedade apropriada. O clima deverá ser seco e
ensolarado. O solo deverá ter uma permeabilidade adequada. Dependerá também do período
de poda e de hibernação. Enfim, o fenótipo da uva vinífera dependerá tanto do genótipo
quanto do ambiente. O mesmo pode ser dito para as asas da mosca drosófila, que dependerão
de uma determinada temperatura para se desenvolver. E também para a altura de uma pessoa,
para o diabetes, para o alcoolismo, ou qualquer outra característica de um ser vivo. O
ambiente, todos sabem, influencia as características dos organismos. Ninguém aceita uma
versão extrema de determinismo genético em que os genes determinam as conseqüências em
todo e qualquer contexto ambiental (como representado na figura11a).
O reconhecimento universal de que genes e ambiente interagem durante o
desenvolvimento é chamado por Griffiths e Sterelny (1999) de consenso interacionista. O
consenso interacionista parece resolver a dicotomia entre natureza e criação e, de certo modo,
também o preformacionismo genético. Afinal, os genes não determinam sozinhos as
características dos seres vivos. Elas sempre serão o produto dos genes mais o ambiente. Aliás,
a relação entre genes e ambiente está longe de ser um ponto alheio à genética. Desde o
mendelismo, o resultados dos experimentos clássicos com linhagens puras deixavam claro
que os mesmos genes não produziam os mesmos caracteres em diferentes circunstâncias. A
noção de que os genes dependem de variáveis ambientais está na raiz da distinção entre
genótipo e fenótipo. Como todos também sabem, os fenótipos são o resultado do genótipo
mais o ambiente.
Contudo, o consenso interacionista não resolve a dicotomia entre natureza e criação,
nem o preformacionismo. A solução não é reconhecer que gene e ambiente são importantes,
pois o problema não é ignorar que ambos influenciam o desenvolvimento. Afinal, a genética
nunca supôs que o gene é a causa completa de uma característica do organismo. Genes
sempre dependem do suporte de condições internas e externas. Ninguém pensa no gene como
“algo que, se jogado na lata de lixo do laboratório, faria crescer olhos na lata de lixo” (Dupré,
2004, p.325). Os problemas com a dicotomia entre genes e ambiente são outros: (i) assumir
§3
– 128 –
que o efeito dos genes e o efeito do ambiento são independentes e (ii) assumir que o papel dos
genes e do ambiente têm pesos diferentes no desenvolvimento.
O pressuposto de que causas ambientais e causas genéticas são independentes foi
discutido quando abordei as origens da PSD. A tradição experimental da psicobiologia
desenvolvimental e as críticas de Lewontin ao conceito de herdabilidade mostraram que
causas internas e externas atuam de maneira conjunta. “O fenótipo é a conseqüência única de
um genótipo particular desenvolvendo-se em um ambiente particular” (Lewontin apud Gray,
1992, p.174). uma “interpenetração” entre organismo e ambiente (Lewontin, 2001). A
ontogenia não é simplesmente produzida pela soma de causas internas e externas. O efeito de
cada fator é uma função relativa aos demais fatores. Por isso, ao invés de simplesmente
interacionismo, Oyama prefere a expressão “interacionismo construtivo” (Oyama, 2001;
2006). Cada instante da ontogenia é o resultado da relação organismo-ambiente, não da soma
dos seus efeitos.
O pressuposto de que as causas genéticas e ambientais são independentes apóia-se na
alienação entre causas internas e externas, na qual a forma emana do material hereditário e o
ambiente é responsável apenas por variações. Mas, a aceitação da interdependência das causas
internas e externas acaba com a dicotomia entre causas genéticas e ambientais ou caracters
herdados e adquiridos. “Se aceitamos seriamente a origem dos fenótipos em interações
causais [...], nenhuma distinção entre componentes do organismo herdado e adquirido é
defensável” (Oyama, 2000a, p.86). Forma e variação, constância e mudança são o resultado
de interações construtivas entre organismo e ambiente, interno e externo. A ontogenia é
entretecida por causas relacionais.
Um ponto relevante a ser destacado é que a independência causal dos fatores externos
e internos na genética é um pressuposto influenciado mais pela tradição micromerista/
preformacionista da embriologia do que pela tradição mendeliana. As primeiras teorizações
genéticas, antes da materialização do gene, reconheciam que a resposta a uma mesma variável
ambiental não era idêntica em linhagens puras distintas. A gama de respostas era específica do
genótipo. Richard Woltereck, em 1909, chamou esta gama de respostas de norma de reação
(Sarkar, 1999). Woltereck acreditava que o organismo herdava uma norma de reação, não
determinantes dos caracteres. Acreditava também que o conceito, como endossou Johannsen,
era similar ao conceito de genótipo (Schlichting e Pigliucci, 1998). Percebe-se, portanto, o
caráter construtivo e não-deterministas destas conceituações pré-genética morganiana (Sarkar,
§3
– 129 –
1999). Pelo próprio caráter instrumental, elas não podiam negligenciar a co-interação entre
genes e ambiente, ao preço de perder sua eficiência prática. Consequentemente, a
hereditariedade era concebida de modo muito mais permissivo do que normativo. O genótipo
individual limitava as interações possíveis, mas não determinava o fenótipo.
Contudo, após a materialização do gene, as análises e conceitos enfatizaram cada vez
mais a independência causal do gene. Conceitos como penetrância a proporção de
indivíduos portadores de um determinado alelo que manifestam seu efeito — e expressividade
a intensidade de manifestação de um alelo atribuíam a causa da variação às
propriedades do próprio alelo, não ao seu contexto genético e ambiental. Dito de modo
diferente, o fato de que indivíduos portadores de um gene não manifestavam (penetrância) ou
manifestam de modo incompleto (expressividade) os efeitos do gene, também tinham uma
causa genética. Como percebe Sarkar, “as propostas destes novos conceitos era manter a
etiologia genética em face a plasticidade fenotípica induzida pelas interações entre genótipos
e ambientes. A variabilidade na manifestação fenotípica de um caráter tornou-se o resultado
da expressividade do gene e (indiretamente) sua penetrância” (Sarkar, 1999, p.242).
É importante notar que o reconhecimento da interdependência das causas que
interagem na re-construção de um ciclo de vida não significa dizer que os fatores não podem
ser diferenciados (Oyama, 2000a). A PSD defende o abandono da dicotomia, não a rejeição de
distinções. O fato de que os efeitos dos genes dependem de outros fatores não significa que
eles não possam ser reconhecidos separadamente. A PSD não advoga um holismo no qual
todos os elementos devem ser analisados juntos. O que ela defende é uma contextualização
das causas. “[G]enes, organismos e ambientes estão em interação recíproca uns com os
outros, de tal modo que ambos são causa e efeito, de modo complexo, mas perfeitamente
analisável” (Lewontin, 2001, p.61). O efeito de cada fator pode ser definido, mas depende do
contexto histórico e relacional.
O segundo problema com o consenso interacionista aparece justamente na hora de
fazer as distinções. A PSD aceita distinções, mas com duas grandes ressalvas: não devem ser
dicotômicas, nem assimétricas. A atitude usual, ao se analisar os fatores que contribuem para
a ontogenia, é dividi-los em dois. De um lado, são colocados os genes. Do outro, todo os
demais fatoresdo citoplasma à cultura. Mas esta dicotomia é uma visão empobrecida dos
vários fatores necessários para a realização do desenvolvimento. A ontogenia não é o
§3
– 130 –
resultado da relação dos genes com o ambiente. Ela resulta de múltiplos fatores, internos e
externos, que interagem em cada etapa do processo (ver próxima seção).
A dicotomia entre gene e ambiente é ainda mais inadequada porque considera o gene
um tipo especial causa. Ela é causalmente assimétrica: os genes são os portadores da natureza
dos seres vivos. O ambiente (e inclui-se todo o resto), via de regra, é concebido como
agente permissivo, suporte material para a execução de um programa interno ou, pior, um
“estorvo inevitável” durante a manifestação da essência genética do ser vivo (Falk, 2000).
Ambos, genes e ambiente, são importantes, mas os genes são a causa da forma.
Portanto, o problema com a dicotomia entre gene e ambiente não é a atribuição ao
gene de completude causal, mas de privilégio causal em relação às outras causas. Deste
modo, é mantido o pressuposto preformacionista de que a ontogenia é um processo
internamente determinado por uma partícula portadora da forma, como defendido por
Weismann e Roux. “Permanece a convicção de que existe uma hierarquia de causas, algumas
subalternas e envolvidas apenas em restrições rudimentares (não causas, mas matéria-prima) e
outros que são fonte da forma” (Oyama, 1985, p.14). As interações entre as partes do
organsimo e com o ambiente não são consideradas constitutivas da forma, como defendia
Oscar Hertwig. Elas são apenas causas da variação da forma. No máximo, o ambiente indica
qual natureza alternativa deve ser manifestada (e.g. Agrawal, 2001).
No lugar da primazia causal dos genes, a PSD defende a noção de paridade causal
entre todos os recursos que participam da realização da ontogenia. “Paridade é a idéia que
gene e outras causas materiais estão em par de igualdade” (Griffiths e Knight, 1998, p.254).
Todo componente necessário para a realização da ontogenia possui o mesmo status causal.
Não existe justificativa em atribuir ao DNA privilégios em relação ao demais constituintes do
sistema. Embora o DNA desempenhe um papel único na conservação do sistema, membranas,
mitocôndrias e íons de ferro também desempenham. A primazia causal dos genes permanece
apenas como um ranço do gene clássico e da idéia preformacionista de que existe uma
entidade portadora da forma. Mas, como foi discutido no capítulo 3, o DNA não é esta
entidade. O DNA, enquanto molécula que participa do processo de produção de uma proteína,
possui sentido em um contexto específico (Burian, 2004). A biologia molecular
contemporânea não permite atribuir qualquer tipo de primazia ou independência às seqüências
de DNA. Nada autoriza exceto interesses práticos rebaixar a pano de fundo a
multiplicidade de elementos necessários para a produção de uma proteína. A relevância causal
§3
– 131 –
do DNA está justamente na sua relação com os outros componentes do sistema. Por isso, a
PSD defende “uma visão de causalidade que peso formativo a todas as influências
necessárias, pois nenhuma delas sozinha é suficiente para o fenômeno ou para qualquer das
suas propriedades [...]” (Oyama, 1985, p.15).
O privilégio causal atribuído aos genes está profundamente associado à idéia de que
eles possuem informação genética. “Genes são instruções eles fornecem informação
enquanto outros fatores são meramente materiais” (Griffiths, 2001). O gene para olho branco
possui informação para o desenvolvimento de olhos brancos, mesmo se a mosca desenvolver
olhos vermelhos. Por outro lado, elementos não-genéticos não possuem informação. Embora
todos aceitem a relevância das membranas ou do ambiente, raramente alguém dirá que eles
possuem informações ou instruções para uma determinada característica. Por exemplo, a
temperatura do ninho é um fator decisivo para a determinação do sexo em tartarugas. Mas
raramente alguém dirá que a temperatura do ninho contém informação para o sexo da
tartaruga. Da mesma forma, via de regra, ninguém dirá que a membrana plasmática de
paramécios possui informação, embora modificações nos padrões de seus cílios sejam
estruturalmente herdadas (Sapp, 2003a).
A PSD argumenta que esta exclusividade dos genes como portadores da informação é
injustificada. Em qualquer sentido que os genes possuem informação, fatores não genéticos
carregam informação também (Sterelny e Griffiths, 1999).
67
A tese da paridade também se
aplica ao conceito de informação. Não justificativa para considerar a informação uma
propriedade exclusiva do DNA.
Alguns autores propõem o abandono da noção de informação. Sarkar, por exemplo,
afirma que “não uma noção clara e técnica de ‘informação’ em biologia molecular. Ela é
pouco mais que uma metáfora que mascara um conceito teórico [...] que leva a uma imagem
enganosa da natureza das explicações em biologia molecular” (Sarkar, 1996, p.187). Contudo,
a PSD não nega a utilidade do conceito de informação para conceituar as relações causais dos
§3
– 132 –
67
Sterelny e Griffiths (1999) dividem os conceitos de informação em duas classes: informação causal e informação
intensional. As noções causais de informação referem-se simplesmente à dependência sistêmica das causas. A noções
intensionais, por outro, referem-se a propriedades semânticas do gene. A característica mais fundamental da
definição intensional é que ela pode ser falsa. “O conteúdo intensional de uma instrução é o comportamento que ele
pretende produzir, não o comportamento que ele efetivamente produz” (Griffiths, 2006, p.185, itálico no original).
Uma defesa da noção intensional de informação genética foi proposta por Maynard-Smith (Maynard-Smith, 2000).
Segundo Maynard-Smith, entre todos os fatores que contribuem para o desenvolvimento, apenas os genes estão
porque foram selecionados para exercer uma determinada função no desenvolvimento. Por isso, os genes possuem
informação intensional para um determinado caráter.
sistemas vivos. A objeção dirige-se à utilização do conceito de informação para legitimar
pressupostos preformacionistas como a predeterminação da ontogenia e a primazia causal dos
genes.
A não-objeção ao conceito de informação em si fica evidente quando nos deparamos
com o conceito no texto de autores trabalhando dentro da PSD. O próprio título do livro de
Susan Oyama A ontogenia da informação utiliza o termo. O título, um tanto irônico,
questiona um determinado significado de informação, não o uso do termo em si. Oyama se
opõe ao conceito de que a informação preexiste nos genes. Ao contrário, ela propõe que a
informação está dispersa e emerge durante a ontogenia. Além disso, Oyama insiste que a
informação deve ser definida em relação a um contexto. “A função ‘informacional’ de
qualquer influência é determinada pelo papel que ela desempenha no sistema
desenvolvimental como um todo” (Oyama, 2000a, p.84). Como resume Russel Gray, “a
informação desenvolvimental não está nos genes, nem no ambiente, mas se desenvolve na
relação fluida e contingente entre os dois” (Gray, 1992, p.177).
68
Em resumo, a PSD opõe-se a idéia de que existe uma entidade causalmente
privilegiada no controle dos sistemas vivos. A primazia causal do DNA justifica-se apenas
pela manutenção do pressuposto preformacionista de que a fonte de organização está em um
material hereditário. No seu lugar, a PSD propõe uma abordagem que reconheça em par de
igualdade todos os elementos e interações necessários para a realização da ontogenia. A PSD
também opõe-se à solução aparente do consenso interacionista. Não é necessária uma
abordagem equilibrada que enfatize tanto causas genéticas quanto causas ambientais. É
necessária uma abordagem que considere a interdependência causal dos múltiplos fatores,
internos e externos, que interagem durante a ontogenia. Não existe natureza e criação. A
natureza é produzida via a criação. “Dualismo não é mais necessário; a distinção herdado-
adquirido, enquanto que baseada em tipos de processos desenvolvimentais ou fontes da
forma, pode ser eliminada não modificada ou transformada em uma questão de graus, mas
eliminada” (Oyama, 2000a, p.71, itálicos no original).
§3
– 133 –
68
Para uma defesa detalhada do conceito de informação coerente com a PSD ver Jablonka (2002).
4.1.2.3 Herança expandida
Os dois princípios da PSD discutidos acima têm uma conseqüência lógica: as
entidades envolvidas na hereditariedade devem ser expandidas além dos genes. A
hereditariedade, redefinida como um processo de re-construção das similaridades, depende da
recorrência de uma matriz de recursos desenvolvimentais. A tese da paridade e
interdependência causal não permite atribuir o fenômeno hereditário a certos recursos da
matriz e não outros. Logo, a explicação da hereditariedade deve ser expandida de modo a
incluir diversos fatores extra-genéticos que interagem na re-produção da ontogenia.
A hereditariedade, entendida restritamente como um fenômeno de transmissão, limita
o que é transmitido e quando ocorre o fenômeno hereditário. A hereditariedade é a
transmissão dos genes (o que) no momento da reprodução (quando). Como o fenômeno
hereditário é concebido de maneira independente do desenvolvimento, os eventos
ontogenéticos não interessam. Tampouco interessam as interações do material hereditário com
o ambiente e o organismo. Os genes estão isolados do mundo externo. “Forma e agência
causal são colocados no núcleo, protegido da interação com o mundo cambiante fora da
barreira weismanniana” (Oyama, 2000a, p.82).
Esta interpretação da hereditariedade como simplesmente a continuidade genética
entre gerações é uma maneira comum de privilegiar os genes em relação às outras causas do
desenvolvimento (Oyama et al., 2001). No entanto, esta interpretação foi enfraquecida nos
últimos anos. Atualmente, é amplamente reconhecida a importância de outros componentes da
estrutura celular para a hereditariedade. Uma área que se tornou particularmente proeminente,
principalmente no período pós-genômico, é o que se convencionou chamar de herança
epigenética.
69
Esta versão do termo epigenética refere-se tipicamente a alterações da
expressão gênica transmissíveis para células filhas, mas que não envolvem mudanças nas
seqüências de DNA. Um dos mecanismos epigenéticos mais estudados são as mudanças na
§3
– 134 –
69
É necessário ter cuidado com o termo epigenética, pois ele possui diferentes significados (Jablonka e Lamb, 2002).
Primeiro, o termo pode ser usado como um adjetivo para teorias que concebem o desenvolvimento como um
processo de epigênese. É neste sentido que ele vem sendo utilizado até aqui. Harvey, por exemplo, defendia uma
perspectiva epigenética em oposição às teorias preformacionistas. Mas o termo também foi empregado como um
substantivo em meados do século XX para batizar uma nova disciplina. Conrad H. Waddington propôs o termo
epigenética para definir “o ramo da biologia que estuda as interações causais entre genes e seus produtos que
produzem o fenótipo” (Waddington, 1942, p.19). Por último, na década de 1990, o termo epigenética passou a
referir-se restritamente a alterações na expressão gênica. Formando expressões como controle epigenético, herança
epigenética, mecanismo epigenético, o termo passou a significar a “herança nuclear que não é baseada em diferenças
na seqüência de DNA” (Lederberg, 2001).
estrutura da cromatina devido à metilação (Sapp, 2003b; Jablonka e Lamb, 2005). Em
eucariontes, regiões altamente metiladas não podem ser transcritas e estes padrões de
metilação são passados adiante a cada divisão celular. Deste modo, células geneticamente
idênticas herdam diferentes padrões de expressão genética.
Este tipo de herança epigenética, por um lado, é importante, pois coloca o DNA de
volta na célula (ou ao menos no núcleo). Ele não é conceituado como a “molécula da vida”,
portadora da forma, isolada e acima da química mundana. As propriedades do DNA são
contextualizada na dinâmica metabólica da célula. Mas, por outro lado, esta epigenética
restrita “é maginalmente melhor que focar no DNA puro” (Oyama, 2000, p.88), pois o
pressuposto preformacionista de que o desenvolvimento é determinado pela expressão gênica
é mantido intacto. A diferença, simplesmente, é que a herança dos padrões de expressão
genética passam a depender de fatores além da seqüência nucleotídica em si. Como diz
Morange, “ela é uma maneira de estender o escopo da genética sem precisamente discutir a
origem dos seus limites” (Morange, 2006, p. 358).
Outras expansões usuais da hereditariedade dizem respeito ao restante da estrutura
celular. Tem tornado-se claro que a continuidade material entre as gerações envolve mais do
que o núcleo das células sexuais. O novo organismo herda uma célula funcional e utiliza
muitas das estruturas desta célula para realizar seu ciclo de vida. Embora algumas estruturas
formam-se de novo por auto-assembléia (p. ex. ribossomos), muitas outras necessitam de
estruturas preexistentes na célula para se reproduzir. Cloroplastos, mitocôndrias e centríolos,
por exemplos, originam-se apenas a partir de outras organelas. O mesmo vale para as
membranas celulares e organelas relacionadas, como o retículo endoplasmático (Sapp, 2003b)
A ampliação da herança celular não se limita à herança estrutural. A estabilidade inter-
geracional não depende apenas de moldes estruturais, mas também da repetição de estados
dinâmicos. Jablonka e Lamb (2005), em sua elegante expansão da hereditariedade
70
, fornecem
um bom exemplo da natureza dinâmica do processo hereditário: circuitos auto-sustentáveis
(self-sustainable loopings). Imagine que um gene inativo que produz a proteína A é ativado
por uma interação ambiental, ou por interações com as células vizinhas ou mesmo por acaso.
Suponha que a proteína produzida pelo gene A controla a ativação do próprio gene A. Assim,
§3
– 135 –
70
Jablonka e Lamb (2005) propõem quatro dimensões de sistemas hereditários: uma dimensão genética, uma
dimensão epigenética, uma dimensão comportamental e uma dimensão simbólica. Todas estas dimensões se
entrecruzam e entretecem conjuntamente o desenvolvimento.
enquanto houver a proteína A no citoplasma, o gene estará ativado. Em uma célula existem
diversos ciclos independentes como estes, cada um envolvendo muitos elementos (Jablonka e
Lamb, 2005). A conseqüência é que células geneticamente idênticas, tornam-se
metabolicamente distintas devido à sua história.
71
A herança não é apenas estrutural, mas
dinâmica.
Embora a célula como um todo represente um conjunto fundamental de recursos
desenvolvimentais, a ampliação sincrônica da herança é apenas uma dimensão da expansão
defendida pela PSD. Ela é simplesmente a aceitação de que a continuidade material não se
limita à transmissão de determinadas entidades celulares. É o reconhecimento de que a
divisão entre idioblasto e trofoblasto, proposta por Nägeli ainda no século XIX e levada
adiante pela teoria do gene durante o século XX, é inapropriada. A organização celular, com
suas entidades e relações, é herdada como um todo. Não existe um elemento celular
independente e causalmente suficiente para a geração desta organização.
Ao redefinir a hereditariedade como a re-produção de um novo ciclo de vida, a PSD
também amplia a hereditariedade em uma dimensão diacrônica. O fenômeno hereditário não
se restringe à transmissão da estrutura celular que formará o estágio inicial do processo. Ela é
expandida temporalmente, entrelaçada à ontogenia. A hereditariedade passa a incluir a
recorrência de elementos e relações durante a realização do ciclo de vida. A hereditariedade
não é apenas material, mas também interacional.
Um conjunto de interações importantes durante a ontogenia são as simbioses entre
eucariontes e bactérias. Atualmente, é bem aceita a idéia de que as mitocôndrias e cloroplastos
foram incorporadas a partir de bactérias simbiontes (Margulis, 1981). No entanto, estudos
recentes têm ampliado muito nossa percepção da importância de simbiontes. Por exemplo,
novas técnicas permitiram perceber que seres humanos possuem centenas de espécies de
bactérias distribuídas em locais e proporções específicas do trato digestivo (Mcfall-Ngai,
2002; 2006). A ausência destas bactérias tornam a ontogenia inviável. Humanos necessitam
ser “infectados” por bactérias do trato reprodutivo materno durante o desenvolvimento. Outro
exemplo de simbiose bem estudado é a relação entre a lula Euprymna scolopes e a bactéria
luminescente Vibrio fischeri (Nyholm, Stabb et al., 2000). Indivíduos adultos de E. scolopes
§3
– 136 –
71
Ironicamente, Jacob e Monob haviam observado a importância de circuitos auto-sustentáveis para a síntese de
ß-galactosidase (Morange, 2002).
possuem um órgão bioluminescentes repleto de bactérias que a lula jovem adquire da água do
mar. Como se o fato da bioluminescência depender da simbiose não fosse interessante o
suficiente, a própria formação do órgão luminescente depende de interações indutivas com a
bactéria. Lulas livres de V. fischeri não desenvolvem o órgão. O caso mais difundido de
simbiose conhecido é o das bactérias do gênero Wolbachia que “infectam” os óvulos de
milhares de espécies de insetos, crustáceos e nemátodas. Dada a importância da determinação
do sexo para as teorias sobre a hereditariedade, vale dizer que, entre diversas conseqüências,
Wolbachia pode causar a feminização de moscas drosófilas (Clark, Anderson et al., 2005)
72
.
Exemplos como estes sobre a onipresença de simbioses entre eucariontes e bactérias levaram
Gilbert a afirmar que “todo desenvolvimento é co-desenvolvimento” (2002, p.213). Todo
desenvolvimento envolve o acoplamento entre ontogenias distintas.
A expansão diacrônica da hereditariedade inclui também a recorrência de padrões de
nutrição, feromônios, interações fisiológicas, comportamentais e sociais (Van Der Weele,
1999; Jablonka e Lamb, 2005; Gilbert, 2006). Alguns exemplos: Larvas de abelhas
domésticas se desenvolverão em abelhas-rainhas ou abelhas-operárias de acordo com a
nutrição que receberem: se alimentadas com geléia-real, produzirão altas doses de hormônio
juvenil e se tornarão abelhas-rainhas. (Brian, 1980). O fenótipo de formigas Solenopsis
invicta é influenciado pela “cultura de feromônios” do formigueiro: se trocadas de
formigueiro, as larvas se desenvolvem em fenótipos diferentes (Jablonka e Lamb, 2005).
Pressões exercidas por atividades como mastigar e caminhar são necessárias para o
desenvolvimento do sistema músculo-esquelético (Muller, 2003; West-Eberhard, 2003). Da
mesma forma, a atividade neural é essencial para a formação do sistema nervoso (Goldman e
Nottebohm, 1983; Majdan e Shatz, 2006).
Um ponto talvez mais controverso desta expansão seja a inclusão da recorrência de
recursos ambientais tão genéricos quanto determinados parâmetros de temperatura, insolação
ou umidade como parte do fenômeno hereditário. Mesmo que necessários para a realização de
uma determinada ontogenia, a aplicação da tese da paridade causal nestes casos é controversa.
Mas a importância do papel do ambiente para o desenvolvimento é advertida por Carl
Schlichting (2003): “Quanto maior a amplitude de valores que permitem o desenvolvimento
normal, mais provavelmente esqueceremos o ambiente. Fora destes limites, no entanto, somos
§3
– 137 –
72
Recentemente, os biólogos foram surpreendidos ao constatar que o genoma de uma espécie de mosca drosófila
incorporou o genoma inteiro de Wolbachia. E não mudou fenotipicamente! (Hotopp, Clark et al., 2007).
lembrados da sua importância fundamental quando o organismo apresenta defeitos
desenvolvimentais ou o desenvolvimento é interrompido”. Alguns exemplos extremos deixam
claro a relevância da repetição de parâmetros ambientais específicos para a realização do
desenvolvimento. O peixe antártico Pagothenia borchegrevinki vive em águas cuja
temperatura média é de -2ºC. À temperatura de 6ºC P. borchegrevinki morre de hipertermia.
No outro extremo, arqueobactérias termófilas como Thermus aquaticus possuem seu nível
ótimo de ação enzimática a 70ºC (Schlichting, 2003). Nestes casos, é evidente que a repetição
de parâmetros ambientais restritos são necessários para a realização do desenvolvimento. É
difícil negar que a repetição de valores ambientais específicos são causalmente necessários
para um novo ciclo de vida de P. borchegrevinki. Mas mesmo quando uma grande amplitude
de valores ambientais é tolerada ou quando fatores ambientais são estáveis, não
justificativa em considerá-los, a priori, como causalmente irrelevantes. Por exemplo, a força
da gravidade, cujos valores para todos os animais são praticamente os mesmos, é
imprescindível para a clivagem dos ovos de Xenopus laevis (Wolpert, 1998). Todos estes
exemplos ganham força quando se considera que os organismos ativamente transformam o
ambiente e alteram as condições em que as novas gerações se desenvolverão (Odling-Smee,
Laland et al., 2003).
A expansão da hereditariedade não tem se limitado ao debate conceitual. O
reconhecimento da importância de contextualizar o desenvolvimento em ambientes
específicos levou o embriologista Scott Gilbert (2001) a propor uma nova disciplina: a
biologia desenvolvimental ecológica (eco-devo). O objetivo da proposta de Gilbert é articular
a investigação dos efeitos do ambiente na expressão gênica. Para isso, ele propõe investigar o
desenvolvimento embrionário no “mundo real”, isto é, como o ambiente em que uma
determinada espécie vive contribui causalmente para a constituição do fenótipo. A expressão
“mundo real” empregada no título do artigo em que Gilbert propõe a disciplina refer-
seuma crítica comum às características dos organismos modelos utilizados nos experimentos
biológicos. Gilbert (2001), assim como também Keller (2002), Bolker (1995) e Lewontin
(2002), apontam que, entre outras características, os organismos modelos empregados em
biologia do desenvolvimento são selecionados por terem (i) rápido desenvolvimento
embrionário; (ii) imediata separação da linhagem germinal da linhagem somática; e (iii) a
habilidade para se desenvolverem em laboratório. Embora apresentem vantagens, “estes
organismos têm sido selecionados pela conformidade com o paradigma genético da biologia
§3
– 138 –
do desenvolvimento” (Gilbert, 2001, p.3), isto é, são selecionados para pesquisar como o
fenótipo pode ser relacionado diretamente ao genótipo. Expandir o estudo do
desenvolvimento a outras espécies permite superar o viés imposto pelos organismos modelos
tradicionais e explorar a relação entre organismo e ambiente durante a ontogenia.
O interesse pelo papel de fatores não-genéticos no desenvolvimento, de certa
maneira, resgata a abordagem epigenética da embriologia experimental (Sultan, 2003). O
reconhecimento de que a ontogenia é realizada em constante interação com o ambiente fazia
parte da agenda de pesquisadores como Pflüger e Hertwig (lembre, por exemplo, dos estudos
de Pflüger sobre a determinação ambiental do sexo em sapos, discutido no segundo capítulo).
Mas, acima de tudo, a “eco-devo” aponta para a necessidade de expandir o conjunto de
elementos e interações que participam da re-produção de ciclos de vida. Embora a atitude de
Gilbert (2001b; 2002) ainda preserve a prioridade causal dos genes o ambiente apenas
desengatilha a expressão gênica correta, atuando como uma “indução terciária” (Gilbert,
2003) ela reflete a necessidade de situar o organismo no seu mundo para entender sua
ontogenia. O fenômeno hereditário, isto é, a re-produção de ontogenias semelhantes, não é
realizada pela transmissão de uma forma interna, mas pela repetição de um complexo
ordenado de interações entre um organismo e um determinado ambiente (ver figura 12). Uma
ecologia do desenvolvimento reconhece o papel do ambiente na constituição da forma, não
apenas na sua variação (Van Der Weele, 1999).
4.1.2.4 Ciclos de contingências
Uma floresta, apesar de perturbações, existe em um estado de aparente constância.
Animais morrem, outros animais nascem. Uma grande árvore cai, abre uma clareira e o
espaço logo é reocupado. O fogo consome uma área e alguns anos depois ela está recuperada.
Lentamente a comunidade se reconstrói e readquire as antigas características. No entanto, ela
não se reconstrói de qualquer maneira. A reocupação da área perturbada ocorre em uma série
ordenada. Quando uma clareira é aberta na Mata Atlântica, não crescem na área descampada
as palmeiras, bromélias, figueiras e perobas que antes compunham a floresta. Crescem
primeiro ervas, gramíneas, arbustos e samambaias. Estas são seguidas por algumas árvores
pioneiras, como embaúbas (Cecropia) e vassouras (Piptocharpha), dando origem a uma
capoeira. As palmeiras e as árvores que tipicamente compõem o dossel da floresta crescerão
§3
– 139 –
apenas quando os estágios anteriores da sucessão produzirem as condições necessárias para
sua germinação (sombra, umidade, etc.) e serão seguidas por abundantes epífitas.
Esta seqüência ordenada que caracteriza o desenvolvimento de uma comunidade é
conhecida como sucessão ecológica. Um dos pioneiros no estudo da sucessão ecológica foi o
americano F. E. Clements. Ele investigou a recuperação das pastagens do meio-oeste
americano no início do século XX. Clements via a comunidade ecológica como um super-
organismo e comparou seu desenvolvimento ao desenvolvimento de um organismo
individual:
O estudo do desenvolvimento da vegetação se baseia necessariamente na suposição de que a
formação unidade ou clímax é uma entidade orgânica. Assim como um organismo, a formação
surge, cresce, amadurece e morre [...]. Além disso, cada formação clímax é capaz de se
reproduzir, repetindo com fidelidade os estágios de seu desenvolvimento. A história-de-vida
de uma formação é um processo complexo, mas definido, comparável em suas características
principais à história de vida de uma planta individual. (Clements, 1916p.xvii)
Clements, escrevendo no início do século XX, não hesitou em comparar o
desenvolvimento de um indivíduo ao desenvolvimento de um ecossistema. Mas a analogia de
Clements tornou-se inadequada a partir da imagem do desenvolvimento individual como um
processo geneticamente programado. Afinal de contas, o desenvolvimento de um indivíduo
passou a ser entendido como a expressão da informação contida no genoma. O
desenvolvimento seguia instruções previamente programadas. O processo individual, ao
contrário do processo ecológico, estava predeterminado.
Contudo, a analogia entre o desenvolvimento do ecossistema e o desenvolvimento
individual foi retomada muitos anos depois por Gunther S. Stent, um dos fundadores da
biologia molecular:
[As sucessões ecológicas] são fenômenos regulares, no sentido de que uma estrutura ecológica
mais ou mais menos previsível surge através de um padrão estereotipados de etapas
intermediárias, em que as abundâncias relativas dos vários tipos de flora e de fauna seguem
uma seqüência bem definida. A regularidade destes fenômenos não é obviamente a
conseqüência de um programa ecológico codificado no genoma dos táxons envolvidos. Ao
invés, ele surge através de uma cascata histórica de interações estocásticas complexas entre as
várias biotas (nas quais os genes desempenham um papel importante, naturalmente) e o
mundo como tal. (Stent, 1981, p. )
Os defensores da PSD citam com freqüência esta analogia entre o desenvolvimento
ecológico e o desenvolvimento individual (e.g. Oyama, 1985; Gray, 1992; Griffiths e Gray,
§3
– 140 –
1994). O objetivo não é afirmar que os sistemas vivos e os sistemas ecológicos são sistemas
de mesma ordem, nem fazer qualquer julgamento quanto à natureza das sucessões ecológicas.
O ponto a ser destacado é que um processo recorrente o é necessariamente
predeterminado. Como aponta Stent, a fidelidade com que um processo de desenvolvimento
se repete não é evidência para um programa. O desenvolvimento do ecossistema ocorre como
uma sucessão ordenada de etapas, sem que haja uma prescrição desta ordem. Seria absurdo
atribuir a estabilidade e fidelidade da sucessão ecológica a um programa ou qualquer tipo de
predeterminação no estágio inicial do processo. A repetição do desenvolvimento de uma
comunidade depende da recorrência contingente de múltiplos fatores. Diversas cadeias
causais independentes se repetem em uma série típica. Plantas anuais modificam o solo e
atraem animais. Eles semeiam novas plantas, que germinam no solo modificado e fornecem
sombra e abrigo para outros animais, modificando o solo novamente e assim por diante, em
uma sucessão de eventos iterativos e causalmente distribuídos.
O mesmo raciocínio pode ser feito em relação ao desenvolvimento individual. O fato
de ele ser um processo cíclico não significa que ele está predeterminado na estrutura inicial do
processo. A ontogenia é realizada pela repetição contingente das interações entre diversos
recursos desenvolvimentais. DNA, membranas, hormônios, forças morfodinâmicas, cuidado
parental, etc. interagem em uma ordem sucessiva sem que haja um plano ou receita.
A
ontogenia é um processo cíclico, mas contingente.
73
Ciclos e contingências são palavras que aludem a significados aparentemente opostos.
Repetição e singularidade, confiável e inesperado, necessidade e acidente. Mesmo assim,
Oyama descreve a ontogenia como um ciclo de contingências (Oyama, 2000a). O tema das
contingências tornou-se famoso em biologia através do livro Vida Maravilhosa de Stephen
Jay Gould. Ao discutir a re-interpretação da fauna fóssil pré-cambriana, Gould apontou que
muitos grupos de animais que se tornaram extintos eram aparentemente tão complexos e bem
adaptados quanto os que sobreviveram. O fato de que determinados táxons sobreviveram não
foi devido a qualquer tipo de necessidade interna à lógica do processo evolutivo. Os animais
que sobreviveram e se diversificaram, levando às espécies que existem no presente, são o
resultado da confluência de muitas cadeias causais longas, complexas e independentes, que
§3
– 141 –
73
A idéia de que a comunidade se desenvolvia em direção a um clímax estável e único foi combatido por uma
concepção mais contingente e individualistica do processo de sucessão ecológica, como defendida por Gleason e
Tansley (Mcintosh, 1975). Tais críticas reforçam a analogia entre os dois processos, pois libertam o
desenvolvimento do ecossistema de qualquer resquício finalista existente na idéia de um clímax único e determinado.
dão ao processo evolutivo um caráter contigente. A filogenia é “uma seqüência imprevisível
de estados antecedentes onde qualquer alteração em qualquer etapa da seqüência teria
modificado o resultado final. Este resultado final, portanto, depende ou está na contingência
de tudo que aconteceu antes — a indelével e determinante marca da história” (Gould, 1990, p.
329).
A idéia de que o processo evolutivo é um processo contingente, como descrito por
Gould, é aceito pela maioria dos biólogos. O processo evolutivo não é necessário, direcionado
ou progressivo. Contudo, as contingências ficam restritas à filogenia. A ontogenia, embora
temporal, é considerada um processo determinado e programado. Rudolf Raff, dicutindo
justamente a integração entre ontogenia e filogenia, deixa claro: Biologia do
desenvolvimento e biologia evolucionária são duas disciplinas que exploram as mudanças
morfológicas dos organismos no tempo. No entanto, o desenvolvimento é geneticamente
programado e cíclico. A evolução é não-programada e contingente” (Raff, 2000, p.74).
Segundo Oyama, esta disparidade na interpretação dos processos filogenéticos e
ontogenéticos é causada pela confusão do significado ontológico e epistemológico das
contingências. Gould associa as contingências, principalmente, à noção de previsibilidade.
Em seu último livro, ele define contingência como “a tendência de sistemas complexos com
substanciais componentes estocásticos e interações o-lineares intricadas entre os
componentes, serem imprevisíveis em princípio a partir do conhecimento completo das
condições antecedentes” (Gould, 2002, p.46). No entanto, Oyama aponta que a previsibilidade
é uma noção epistemológica, enquanto que a contingência é também uma noção ontológica.
Contingências referem-se também à natureza do processo, não apenas à sua investigação. Por
isso, Oyama sugere distinguir estas duas noções, pois nem sempre elas coincidem. Certas
características do desenvolvimento podem ser previstas de maneira precisa, mas são
contingentes no sentido de que não são o resultado necessário de um processo
predeterminado. São previsíveis, não porque dependem de um controle central preexistente,
mas porque são gerados pela interação de uma rede intrincada de recursos desenvolvimentais
que se repete de modo contingente. O caso da sucessão ecológica, mais uma vez, é
esclarecedor. A fidelidade na repetição dos processos ecológicos levou Shelford a dizer, ainda
em 1911, que “a ecologia das sucessões é um dos raros campos da biologia no qual a predição
é possível” (apud Acot, 1990). A sucessão ecológica é um processo previsível e cíclico, mas
não está pré-determinado.
§3
– 142 –
A noção de que o desenvolvimento é um processo programado é popular. A própria
etimologia da palavra desenvolvimento, como aponta Lewontin (2002), evoca a idéia de
manifestação de algo preexistente, de desenovelamento.
74
A PSD propõe abandonar esta
noção. No seu lugar, ela oferece a noção do desenvolvimento como um ciclo de interações
contingentes entre recursos distribuídos dentro e fora do organismo. O fato do processo
complexo de interações que caracteriza a ontogenia repetir-se de maneira cíclica, dando
origem a um outro processo semelhante, não é evidência de que ela é guiada por uma natureza
interna, um programa ou instruções. “As características precisas destes processos e suas
conseqüências são uma questão de determinadas entidades e condições no lugar certo, ao
invés de necessidades preexistentes” (Oyama, 2006, p.274). A ontogenia não se repete, apesar
de depender da repetição da interação de múltiplos fatores a cada ciclo. Ela se repete
justamente porque depende de uma matriz de elementos e interações para ser realizada. A
constância entre gerações é mantida pela rica rede de interações, não por instruções em
seqüências de DNA.
§3
– 143 –
74
A palavra desenvolvimento foi inicialmente utilizada para se referir à teoria da preexistência. Em língua inglesa
um contratempo a mais, pois a palavra development designa também o processo de revelação de um filme fotográfico.
Curiosamente, em uma carta de Fritz Müller a Charles Darwin, de 1868, comentando sua primeira impressão sobre a
leitura de The Variation of Plants and Animals under domestication, Müller escreveu: A hipótese da pangênese certamente
cobriria e conectaria várias classes de fatos outrora isolados e inexplicados; dificilmente seria questionável que ovos,
espermatozóides, óvulos de plantas e grãos de pólen, apesar de seus tamanhos minúsculos e aparente simplicidade,
sejam estruturas altamente complicadas, contendo, assim como elas são, uma fotografia de todo organismo do qual
eles são derivados”.
Figura 12: Ciclos de contingências A repetição de ontogenias depende da recorrência de diversos recursos
desenvolvimentais, internos e externos (Gray e Griffiths, 1994).
§3
– 144 –
— Conclusão —
Uma aposta epigenética
A discussão realizada neste trabalho partiu da percepção de que a biologia
contemporânea não resolveu a disputa entre preformação e epigênese. A genética não
forneceu uma solução conciliatória a meio caminho das duas posições. O entendimento de
que o genoma possui a informação que determina a ontogenia é, na verdade, por inteiro
preformacionista. Como diz Lewontin:
[...] não existe nenhuma diferença essencial, exceto quanto aos detalhes mecânicos, entre a
idéia de que o organismo está formado no ovo fertilizado e a de que o projeto completo do
organismo e toda a informação necessária para especificá-lo estão contidos ali, uma visão
que domina os estudos modernos do desenvolvimento (Lewontin, 2002, p.13).
Decidi explorar esta acusação e investigar o que significa, precisamente, dizer que a
biologia contemporânea é preformacionista. A conclusão é que a relação não é uma analogia
superficial. O preformacionismo da genética molecular clássica está histórica e
conceitualmente associado ao antigo preformacionismo. Mas, ao invés de dizer, como
Lewontin, que as diferenças entre o homúnculo do século XVII e o preformacionismo
genético estão nos “detalhes mecânicos”, preferi dizer que as diferenças estão nas teorias e
seus modelos. O que as unem é uma perspectiva teórica em comum. Elas compartilham uma
mesma ontologia. Interpreto a preformação, e também a epigênese, como duas estruturas
macro-teóricas que forneceram e ainda fornecem os pressupostos que orientam os processos e
entidades possíveis em diferentes teorias. Mais especificamente, sugeri que preformação e
epigênese, da mesma maneira que o atomismo ou o mecanicismo, sejam interpretadas como
§3
– 145 –
duas tradições de pesquisa guiando a investigação dos seres vivos em diferentes períodos da
ciência ocidental (Laudan, 1977).
Justifiquei a interpretação de que preformação e epigênese são duas tradições de
pesquisa a partir de uma análise histórico-epistemológica. A interpretação partiu do
argumento de que a disputa entre preformação e epigênese é mais ampla e complexa do que a
famosa rivalidade entre preexistência e vitalismo na idade moderna. Diferentes teorias
preformacionistas foram propostas por autores como Hipócrates, Malebranche, Bonnet e
Darwin. Do mesmo modo, diferentes teorias epigenéticas foram propostas por autores como
Aristóteles, Harvey, Kant e Hertwig. Mesmo nos séculos XVII e XVIII, a disputa oscilou
entre posições muito distintas (Roe, 1981). Um ponto importante a ser destacado desta
heterogeneidade é que preformação não é sinônimo de preexistência (Roger, 1971). Nem toda
teoria preformacionista pressupõe a pré-delineação do ser vivo. Teorias como as de Buffon e
Maupertuis, por exemplo, são teorias preformacionistas, mas não preexistencialistas. Elas
supunham uma pré-diferenciação das partes, mas não a preexistência da forma.
Portanto, o que identifiquei como tradição de pesquisa preformacionista não deve ser
igualado às noções de preexistência ou pré-delineação. O compromisso central da tradição
preformacionista é com a predeterminação da forma. Em toda teoria preformacionista, a
forma não é efetivamente realizada durante a existência do ser vivo. Ela está interna e
autonomamente predefinida, de maneira que existe uma pré-diferenciação ou representação
do futuro ser vivo. Por outro lado, a tradição epigenética assume que a forma é realizada
durante sua existência. Não existe pré-diferenciação das partes ou predeterminação da
ontogenia. A forma é efetivamente gerada. Cada etapa produz a etapa seguinte, de modo que
não existe relação direta entre as etapas iniciais e finais do processo.
A interpretação mais ampla do status teórico da preformação e da epigênese como
duas tradições de pesquisas e a identificação dos seus pressupostos centrais permitiu postular
duas questões específicas: (i) de que maneira estas tradições estão historicamente relacionadas
com a biologia contemporânea e (ii) de que maneira os pressupostos preformacionistas e
epigenéticos se relacionam conceitualmente com as explicações atuais.
Quanto à relação histórica, mostrei que as tradições da preformação e da epigênese
chegaram ao século XX polemizadas no contexto da embriologia experimental. No fim do
século XIX, a embriologia, antes meramente descritiva e comparativa, passou a pesquisar
experimentalmente as causas da forma. Apoiada na teoria celular (toda célula era gerada por
§3
– 146 –
outra célula) e no conceito de hereditariedade (a forma era genealógica), a embriologia
buscou explicar como a forma é gerada a partir da continuidade celular entre gerações
(Maienschein, 1994). Neste contexto, o debate entre preformação e epigênese foi recriado
como a dicotomia entre auto-determinação e regulação (Hertwig, 1896; Maienschein, 1986;
Fischer, 2002). Na nova disputa, a noção de material hereditário teve um papel central. A
interpretação estrutural do fenômeno hereditário levou ao pressuposto de que havia partículas
intracelulares causalmente responsáveis pela perpetuação genealógica da forma (Gayon,
2000). O neo-preformacionismo apoiou-se neste pressuposto. A ontogenia foi interpretada
como um processo auto-determinado pelas propriedades do material hereditário (Weismann,
1889). A diferenciação celular era o resultado de instruções internas herdadas na estrutura
celular do ovo fertilizado. Por outro lado, a neo-epigênese defendeu que, embora a estrutura
celular fosse extremamente complexa e limitasse as interações possíveis, a forma emergia da
interação entre as células no organismo e com o ambiente (Hertwig, 1896).
A historiografia da genética costuma relacioná-la, principalmente, ao mendelismo,
ignorando a relação entre a genética e a embriologia experimental (Gilbert, 1998a). No
entanto, focando a atenção no conjunto de polêmicas que precedeu o nascimento da genética,
percebe-se que a estrutura teórica da genética clássica está ligada ao neo-preformacionismo da
embriologia experimental. Ela manteve uma ontologia similar à que orientou teorias como a
de Weismann e Roux. Por isso, a origem da genética clássica é melhor interpretada como a
confluência entre o preformacionismo da embriologia experimental e as técnicas de
cruzamentos híbridos elaboradas pelos criadores de plantas como Naudin e Mendel (sem
esquecer o papel de William Bateson e Hugo de Vries na re-contextualização do mendelismo).
Mais especificamente, a genética morganiana é o resultado da combinação da ontologia
micromerista com a metodologia mendeliana. Na disputa entre preformação e epigênese, a
cooptação de métodos e conceitos do mendelismo levou à vitória da preformação.
Esta origem híbrida, resultado da mistura da ontologia de uma tradição com a
metodologia de outra, levou a genética a redefinir hereditariedade e desenvolvimento. O
mendelismo não estava interessado no desenvolvimento. Aliás, Bateson acreditava ser esta
sua maior virtude para o estudo evolução. A biologia evolucionária pós-darwiniana, segundo
Bateson, havia se perdido nos meandros da ontogenia. O mendelismo, estrategicamente,
ignorava o desenvolvimento e concentrava-se na variação. Sua metodologia dizia respeito
apenas à segregação de similaridades e diferenças. Consequentemente, as explicações
§3
– 147 –
genéticas também diziam respeito apenas à repetição de similaridades, não à sua produção.
Como enfatizou Morgan, a genética clássica era uma ciência da transmissão hereditária, não
uma ciência do desenvolvimento (Morgan, 1919).
Para compreender o fenômeno desenvolvimental, era necessário investigar como os
genes atuavam na fisiologia do organismo. A investigação do efeito fisiológico do gene partiu
da noção de que os genes eram entidades materiais. Os fatores operacionais do mendelismo
foram reificados pela genética morganiana como as partículas hereditárias determinantes da
ontogenia postuladas pela tradição preformacionista. Os genes-instrumentais tornaram-se os
genes-determinantes-da-forma. O projeto da genética molecular clássica pode ser interpretado
como uma busca pela função gênica a partir desta interpretação realista do gene. O gene
clássico, inferido como um locos cromossômico a partir de grupos de ligação, foi redefinido
pela genética molecular como uma seqüência de DNA. A partir desta redefinição estrutural, a
função gênica foi definida como a produção de uma seqüência de polipeptídios por meio dos
processos de transcrição e tradução. O desenvolvimento, por sua vez, foi descrito como um
processo de expressão gênica diferencial. Apoiados no jargão informacionista, estes modelos
moleculares levaram à duas noções centrais da biologia a partir da segunda metade do século
XX: os genes possuem a informação para os caracteres dos organismos e o genoma possui um
programa que determina a ontogenia.
Estas duas noções representam a manutenção do compromisso central do neo-
preformacionismo: a existência de uma estrutura que determina a ontogenia e as
características do organismo. No entanto, busquei mostrar que os modelos e metáforas
elaborados no início da genética molecular tornaram-se inadequados frente ao progresso da
própria biologia molecular. Como diz Morange (2006, p.356), “é precisamente este ambicioso
programa reducionista que falhou nas últimas duas décadas, pois os dados gerados pelas
ferramentas genéticas não confirmaram esta visão preformacionista”. Ao contrário da
impressão inicial, o gene molecular clássico revelou não ser a estrutura material subjacente ao
gene morganiano. A suposição de que os genes são seqüências de DNA que determinam as
características fenotípicas mostrou-se uma combinação inadequada dos modelos da genética
clássica com a genética molecular (Moss, 2003). Do mesmo modo, a noção de que o genoma
contém um programa para o futuro organismo mostrou-se não mais que uma metáfora
inapropriada (De Chadarevian, 1998; Keller, 2002).
§3
– 148 –
Contudo, o preformacionismo ainda persiste de maneira mais sutil. O gene ainda é
concebido como uma seqüência de DNA que especifica a estrutura das proteínas e, deste
modo, é responsável por grande parte dos processos biológicos (Godfrey-Smith, 2001). De
maneira semelhante, o programa genético é concebido, simplesmente, como o início de uma
rotina de ativação gênica em que cada gene determina quais genes seguintes serão
determinados. Sem dúvida, estas duas noções são menos controversas do que as noções de
que os genes possuem informação para fenótipos e o genoma um plano para o futuro
organismo. Contudo, nem mesmo este preformacionismo moderado é coerente frente aos
dados da biologia molecular atual. As proteínas não estão predeterminadas no DNA. Elas são
o resultado de um processo celular realizado com a participação de seqüências de DNA. “Os
fatores que interativamente regulam a expressão genômica estão longe de serem meras
condições de fundo ou suporte ambiental: eles estão em par com a informação genética, desde
que eles co-especificam a sequência do produto gênico junto com a sequência de DNA em
questão” (Grffiths e Stotz, 1006, p.510, itálico no original). A função gênica é melhor
interpretada como a utilização do DNA pelo sistema na produção de proteínas, do que como a
expressão da informação preexistente no DNA. A pressuposição de que a estrutura do DNA
determina a estrutura das proteínas em uma relação causal linear resulta da insistência em
construir modelos orientados por uma perspectiva preformacionista. Insistência esta que
também entremeia a interpretação de que o desenvolvimento é um processo programado. O
processo ontogenético não está pré-determinado por instruções codificadas nos genes. A
ativação gênica diferencial durante o desenvolvimento não é determinada pela estrutura do
genoma. Ela é resultado de interações distribuídas pelo organismo e com o ambiente que
ocorrem durante a ontogenia.
Portanto, enquanto baseada nas noções de que a informação genética preexiste no
DNA e de que a ontogenia é um processo programado, a biologia do século XX foi,
majoritariamente, preformacionista. Tanto a genética morganiana, quanto a genética
molecular clássica, mantiveram o compromisso central da tradição de pesquisa
preformacionistas: a noção de que a geração da forma está interna e autonomamente
predefinida, de maneira que existe uma pré-diferenciação ou representação do futuro ser vivo.
Sob a orientação desta perspectiva, modelos foram construídos, observações foram julgadas,
certas questões foram perguntadas e outras não foram necessárias.
§3
– 149 –
O outro lado do reconhecimento de que o preformacionismo dominou a biologia do
século XX é que algo esteve ausente: uma perspectiva verdadeiramente epigenética.
Apresentei a Perspectiva dos Sistemas Desenvolvimentais (PSD) como uma tentativa de
sistematizar uma perspectiva epigenética frente aos dados da ciência atual e em contraposição
ao preformacionismo molecular.
O preformacionismo contemporâneo apóia-se no pressuposto de que a hereditariedade
é a transmissão de um material hereditário responsável pela constância da forma. A forma é
passada de geração em geração representada em estruturas intracelulares. Este pressuposto é
mantido pelo entendimento de que o DNA é o portador da informação genética. A PSD
substitui esta visão estrutural da hereditariedade por uma visão processual. A constância da
forma não é mantida pela transmissão de uma entidade causalmente privilegiada, mas é
mantida (e transformada) dinamicamente. O fenômeno hereditário é um processo de re-
construção da ontogenia a cada geração. A forma não é transmitida ou manifestada, mas re-
produzida.
A re-produção da ontogenia a cada geração envolve a interação de fatores genéticos e
fatores não-genéticos. Este é um ponto pacífico também para o preformacionismo molecular:
a aparência (fenótipo) é o resultado da essência (genótipo) mais o contexto da sua
manifestação (ambiente). Contudo, este interacionismo é pernicioso. Ele preserva no DNA os
mesmos privilégios causais atribuídos às partículas micromeristas, pois a interação é
assimétrica. Os genes contribuem com as causas da forma e os demais componentes com o
suporte material para ação dos genes. Além disso, ele não reconhece que a causalidade deve
ser concebida de maneira relacional. O efeito do ambiente no sistema vivo é definido por sua
própria estrutura. As causas ambientais e organismais são interdependentes. Por isso, a PSD
defende que as interações com o ambiente participam constitutivamente da produção do
sistema. Não existe uma causa formal interna e uma causa material externa. Interno e externo
co-atuam e co-definem a ontogenia.
Contudo, a dicotomia entre gene e ambiente ainda é um retrato pobre da rede de
interações que produzem um sistema vivo. A ontogenia envolve a interação de múltiplos
elementos, internos e externos, todos eles necessários, nenhum deles suficientes para sua
realização. A rede de elementos envolvidos na repetição de um ciclo de vida demanda uma
abordagem que inclua processos fisiológicos, ecológicos e comportamentais. A constância (e
variação) entre gerações não depende, exclusivamente, da transmissão do DNA. Ela depende
§3
– 150 –
da recorrência de uma matriz de recursos desenvolvimentais que inclui o DNA, mas também
proteínas, membranas, organelas, hormônios, cultura, etc.
Todas estas interações necessárias para a re-produção de um ciclo de vida ocorrem em
uma ordem temporal e espacial específica. Contudo, a repetição precisa e confiável deste
conjunto de interações não demanda um controle interno e pré-estabelecido. Um processo
cíclico não é evidência de um processo programado. A ontogenia repete-se a cada geração
pela recorrência contingente do conjunto de interações que participou da produção da
ontogenia anterior. A constância e fidelidade com que os processos ontogenéticos são
reproduzidos resulta, justamente, desta rede de interações, não de um controle central no
DNA.
Por tudo isso, defendi que a re-interpretação realizada pela PSD dos fenômenos
hereditários e desenvolvimentais (ou, dito de maneira mais ampla, da constância e variação
dos seres vivos) fornece uma reformulação da tradição de pesquisa epigenética. Ela resgata os
compromissos centrais da epigênese. A forma dos seres vivos é realizada, não manifestada.
Não existe pré-diferenciação das partes ou predeterminação da ontogenia. Cada etapa produz
a etapa seguinte, de modo que não existe relação direta entre as etapas iniciais e finais do
processo. E cada etapa envolve interações entre as partes do sistema vivo e com o ambiente.
Como epílogo, resta discutir o que esperar de uma perspectiva epigenética, como
defendida pela PSD, na biologia atual. Uma objeção comum à PSD é que a sua aplicação não
é eficiente em termos práticos. Kenneth Waters, por exemplo, diz que o sucesso do gene-
centrismo não é ontológico, mas epistemológico:
O sucesso de uma visão gene-centrada sobre o organismo não se deve ao fato de os genes
serem os mais importantes determinantes dos principais processos nos seres vivos. Eles
figuram tão proeminentemente porque eles fornecem pontos de entradas altamente bem
sucedidos para a investigação destes processos (Waters, 2007).
O argumento de Waters segue um raciocínio heurístico. Ele parte do princípio que a
investigação experimental em biologia necessita, estrategicamente, fazer simplificações.
Desde Claude-Bernard, o controle seletivo do contexto faz parte da metodologia básica do
procedimento experimental em biologia. Para investigar uma parte do ser vivo, a parte de
interesse é manipulada e o restante do sistema é mantido constante. A parte manipulada, claro,
não é causalmente suficiente pela ocorrência do fenômeno observado. Ele depende do
contexto que, por uma escolha pragmática, foi mantido invariante. Seguindo o argumento de
§3
– 151 –
Waters, os genes não são causalmente suficientes ou mais importantes para os fenômenos
biológicos, mas são a maneira mais eficaz de manipulá-los. É mais fácil intervir nos genes em
um contexto constante, do que em algum elemento deste contexto, mantendo os genes e
demais elementos invariantes. Todo sistema é igualmente importante, mas os genes são o
caminho mais prático para investigação.
O problema com esta heurística é que ela produz um viés na investigação biológica
(Robert, 2003). O argumento de que os genes são o modo mais eficaz de interferir nos
sistemas vivos é rapidamente transformado em uma negligência dos contextos em que os
genes atuam. A escolha pragmática de focar a investigação nos genes contra um pano de
fundo constante é facilmente convertida na conclusão de que os processo vivos são
controlados pela replicação e ativação dos genes. Sutilmente, a opção metodológica é
transformada em primazia causal. Em parte porque este tipo de justificativa epistemológica a
favor da proeminência dos genes é feita ad hoc. Os genes são “pontos de entrada mais bem
sucedidos” para o estudo dos processos biológicos porque, durante décadas, foram
desenvolvidos métodos e tecnologias para refinar este ponto de entrada. Grande parte da
estrutura conceitual e metodológica da biologia atual foi construída para investigar os genes.
Mas esta escolha não foi metodológica. Ela é resultado da história de práticas científicas
guiadas por pressupostos ontológicos preformacionistas e que levaram à crença de que o
DNA era uma molécula causalmente privilegiada. Se hoje os genes possuem vantagens
práticas, elas não se devem exclusivamente a uma opção metodológica, mas à história da
biologia. Elas são conseqüências de um tempo em que o DNA era a “molécula da vida”.
Ademais, o argumento de que os genes são epistemologicamente privilegiados é
desmentido pela própria prática científica. A pesquisa com células troncos, por exemplo, uma
das fronteiras mais importantes da biologia contemporânea, estaria seriamente comprometida
se baseada apenas em técnicas genéticas. A caracterização de genes ou conjunto de genes
responsáveis pela diferenciação ou pela manutenção do estado célula-tronco [“stemness”],
apesar dos grandes esforços, ainda é pouco compreendida (Vogel, 2003). O sucesso da
investigação de células troncos está estreitamente ligado ao conceito de micro-ambiente ou
nicho celular (Moore e Lemischka, 2006). A diferenciação e manutenção das células-tronco é
realizada experimentalmente pela manipulação do contexto extracelular. A intervenção nas
interações extracelulares são o “ponto de entrada” mais prático. A simples alteração da
elasticidade da matriz extracelular, por exemplo, é suficiente para diferenciar células-troncos
§3
– 152 –
mesenquimais. Matrizes macias favorecem a diferenciação em neurônios, matrizes com
elasticidade moderada favorecem a formação de células musculares e matrizes rígidas células
ósseas (Engler, Sen et al., 2006).
Na verdade, as vantagens da manipulação não-gênica em células troncos são, ao
mesmo tempo, conseqüência e evidência dos limites do preformacionismo molecular. Células-
troncos são melhor definidas como estados dinâmicos (Zipori, 2004), como uma propriedade
relacional entre células e um micro-ambiente formado por moléculas sinalizadoras, fatores de
crescimento, moléculas de adesão celular, etc. (Robert, 2004b). O estado célula-tronco não é
determinado pela história individual da célula ou por determinantes internos. É o resultado da
dinâmica de um sistema interativo e responsivo (Robert, Maienschein et al., 2006). Portanto,
longe de favorecer epistemologicamente uma abordagem gene-cêntrica, a pesquisa com
células-tronco indica a coerência de uma ontologia epigenética. Não por acaso, Hertwig
definiu assim a diferenciação celular:
[...] células combinam suas individualidades no todo e a força que direciona seus
desenvolvimentos finais e as levam à diferenciação apropriada, não podem estar dentro delas,
não podem residir nos determinantes, no sentido de Weismann. Elas são dadas pelas relações
que as células estabelecem com o organismo como um todo e com as partes do organismo,
assim como também com o ambiente. (Hertwig, 1896, p.115)
Por outro lado, a necessidade de simplificação dos sistemas vivos não pode ser
encarada como meta da investigação biológica. Os sistemas vivos são sistemas complexos e
esta complexidade também deve ser investigada. A manipulação de partes do sistema não
permite investigar propriedades do sistema como um todo. A investigação de propriedades
emergentes exige uma abordagem sistêmica. E existe na biologia contemporânea a
expectativa de que o século XXI será o século da biologia de sistemas (Kitano, 2002;
Westerhoff e Palsson, 2004).
A pergunta sobre o que esperar de uma perspectiva epigenética pode, então, ser
colocada na forma de qual perspectiva deve ser trazida para a biologia de sistemas. Embora a
abordagem reducionista não implique na tese preformacionista (Sarkar, 1996), a efetivação de
uma biologia de sistemas parece depender do reconhecimento da organização hierárquica dos
sistemas vivos. Os sistemas vivos são sistemas complexos, isto é, sistemas de sistemas
(Mesarovic e Sreenath, 2006). Esta hierarquia organizacional é avessa à uma perspectiva
preformacionista. Os pressupostos da preformação molecular levam a um “colapso de
§3
– 153 –
níveis” (Oyama, 2000b). A organização dos sistemas vivos é explicada exclusivamente a
partir de níveis inferiores da organização, pois os genes possuem prioridade causal. O genoma
é visto, na melhor das hipóteses, como uma rede digital que determina a constituição dos
outros níveis do sistema (Dupré, 2004). Por outro lado, uma perspectiva epigenética permite
conceituar os sistemas vivos como sistemas dinâmicos, com múltiplos níveis em interação
entre eles e com o meio. Ao abrir mão de um controle centralizado, permite explorar relações
de causalidade entre níveis do sistema, assim como também entre cada um deles e o ambiente,
sem necessariamente recorrer à uma etiologia genética para explicar todos os níveis. Em
suma, a determinação do sistema pode ser concebida de modo relacional e distribuído entre
seus diversos níveis.
Portanto, voltando novamente a questão sobre o que esperar de uma perspectiva
epigenética na biologia contemporânea, os exemplos das células-troncos e da biologia de
sistemas contrariam a justificativa pragmática do gene-centrismo. Os genes não são os pontos
de entrada mais práticos e mais promissores para investigar os fenômenos biológicos. A razão
de sua proeminência encontra-se em outra lugar. Ela é devida ao fato de que explicações,
modelos e teorias são apoiados em um conjunto de pressupostos que os limitam e orientam.
Pressupostos estes que são construídos durante a história de cada ciência. A proeminência dos
genes na biologia atual é conseqüência do pressuposto de que o DNA é uma entidade
causalmente privilegiada, capaz de transmitir a natureza dos seres vivos de geração em
geração e de controlar a ontogenia e demais processos vivos.
Adotar uma perspectiva epigenética significa, portanto, mudar de pressupostos.
Significa postular diferentes questões, re-interpretar os dados, focalizar em diferentes
fenômenos, conceber novas entidades e processos. Significa apostar algumas fichas na idéia
de que os seres vivos são sistemas situados em um meio; que a realização da ontogenia
depende de co-interações entre fatores internos e externos; que os processos biológicos
envolvem múltiplos níveis; que não existe um controle central e dicotomizado. Conceber que
a ontogenia se repete de maneira contingente, não pré-determinada; que o DNA, embora
extremamente importante, é parte de um sistema e, como tal, possui significado em
referência ao todo.
§3
– 154 –
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