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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO
REGIONAL – MESTRADO E DOUTORADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM
DESENVOLVIMENTO REGIONAL
Karla Gomes Nunes
DA LETRA DA LEI AO DISCURSO DOS PROFISSIONAIS: UM ESTUDO DE
CASO DO CENTRO DE REFERÊNCIA EM SAÚDE MENTAL DE BETIM/MG
Santa Cruz do Sul, junho de 2008
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Karla Gomes Nunes
DA LETRA DA LEI AO DISCURSO DOS PROFISSIONAIS: UM ESTUDO DE
CASO DO CENTRO DE REFERÊNCIA EM SAÚDE MENTAL DE BETIM/MG
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Desenvolvimento Regional -
Mestrado e Doutorado, Área de Concentração
em Desenvolvimento Regional, Universidade de
Santa Cruz do Sul UNISC, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em
Desenvolvimento Regional.
Orientador: Prof. Dr. Mozart Linhares da Silva
Santa Cruz do Sul, junho de 2008
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Bibliotecária : Muriel Thurmer - CRB 10/1558
N972l Nunes, Karla Gomes
Da letra da lei ao discurso dos profissionais : um estudo de caso do Centro de
Referência e Saúde Mental de Betim/MG / Karla Gomes Nunes ; orientador, Mozart
Linhares da Silva. - 2008.
172 p.
Dissertação (Mestrado) – Universidade de Santa Cruz do Sul, 2008.
Bibliografia.
1. Saúde mental Betim (MG) 2. Serviços de saúde mental. 3. Política de saúde
mental. I. Silva, Mozart Linhares da. II.
Universidade de Santa Cruz do Sul. Programa
de Pó-Graduação em Desenvolvimento Regional. III. Título.
CDD: 362.2
10
Karla Gomes Nunes
DA LETRA DA LEI AO DISCURSO DOS PROFISSIONAIS: UM ESTUDO DE
CASO DO CENTRO DE REFERÊNCIA EM SAÚDE MENTAL DE BETIM/MG
Esta Dissertação foi submetida ao Programa de
Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional
Mestrado e Doutorado, Área de concentração
em Desenvolvimento Regional, Universidade de
Santa Cruz do Sul UNISC, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em
Desenvolvimento Regional.
_______________________________________
Prof. Dr. Mozart Linhares da Silva
Orientador
_______________________________________
Prof. Dr. Marcos Artemio Fischborn Ferreira
_______________________________________
Prof. Dr. Neusa Maria de Fátima Guareschi
11
Dedico este trabalho a Edvaldo (José Gandra), Lourdes, Boião, Ageu, Marcelo e
Seu Hermínio, pessoas cujas trajetórias de vida me fazem lutar pela continuidade da
Reforma Psiquiátrica. E também ao Mico, por apontar de um modo tão radical os
paradoxos desta luta.
12
AGRADECIMENTOS
A realização desta dissertação de mestrado é fruto de diversos encontros e
acontecimentos que marcaram profundamente a minha vida; por esse motivo, são
inúmeras as pessoas a quem devo agradecer. Uma pessoa, porém, não está mais
neste plano, pois com muita dor nos deixou antes que eu concluísse esta
empreitada e ele aqui pudesse ver seu nome.
Agradeço a CAPES pelos recursos que me ofereceram: as condições de
possibilidade para o prosseguimento dos meus estudos e da minha formação como
pesquisadora no Sul do Brasil. Tenho certeza que, em outras terras, os frutos não
seriam os mesmos.
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da
UNISC, especialmente aos Coordenadores Professor Dr. Marcos Artemio Fischborn
Ferreira e Professor Dr. Mário Riedel, por me acolherem com tanta generosidade,
tornando menos árdua a distância de minha região. Estendo estes agradecimentos a
Cássia Andrada, Juliana Molz e Daniela Souza Cuervo e a todos os professores que
compõe este Programa.
Sou extremamente grata ao Professor Dr. Mozart Linhares da Silva, meu orientador,
por apostar em uma caminhada intelectual conjunta e por se desdobrar em me fazer
ver onde eu ainda não podia. Minha sincera gratidão pelo respeito com o qual me
aceitou como sua “aprendiz-de-historiadora”.
Meu afeto à Professora Drª. Edna Linhares Garcia por ela compartilhar comigo sua
sala de aula, em meu estágio de docência, e tantas outras experiências. Sou grata
ao Departamento de Psicologia, aos professores, estudantes e secretárias que
encontrei.
Aos meus pais Carlos e Adélia e aos meus irmãos Priscila e Adriano agradeço pela
presença certa que eles têm em minha vida e por deixarem claro para mim o que é o
amor.
13
O meu carinho estende-se ainda aos meus familiares mineiros e gaúchos, raízes
híbridas fundamentais em minha existência. Os meus amigos loucos de Belo
Horizonte também me tocam profundamente.
Aos membros da família Klein - Rainildo, Noeli, Ronita, Mico, Laureno, Nuki, Daniel,
Henrique, Xinho, Neca e tia Julita, agradeço por tudo, pelo abrigo físico e afetivo e
por tanto mais.
Agradeço sinceramente a Carmen Cristine Lange por me ajudar com os impasses
da escrita e a seu filho Uri Noah por tornar-se também meu amigo.
Agradeço imensamente aos profissionais do CERSAM de Betim por contribuírem em
diversos momentos de minha trajetória, especialmente Cláudia Generoso, Sônia
Diniz, Maurício, Vanda ‘Bubuque’, Morvan e Ronaldo Zenha. Sou grata também aos
meus imprescindíveis mestres: Roberta Romagnoli, Renato Diniz, Jorge Franca e
Tereza Calvet.
Meu afeto aos amigos que encontrei em Santa Cruz do Sul: Fabiana Vargas, Carina,
Eliane, Débora, Fabiana Funk (e a Cá), Mateus, Cláudio, Glória Silvina e a todos os
outros integrantes do grupo do mestrado e do doutorado. Aos migrantes como eu:
Lucir, Eduardo Reis, Esmeradison e Ronaldo Silva. Ronaldo, além de saber o que é
ser mineiro, me trouxe preciosos documentos lá de Barbacena.
Ao Chico, meu amor, agradeço por ter chegado ao fim desta pesquisa junto comigo
e por ter estado lá onde tudo começou. Hoje, formamos uma família!
14
RESUMO
Esta dissertação analisa o processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil
tomando como estudo de caso o CERSAM de Betim, Minas Gerais. Para tanto,
discute-se o processo de institucionalização das organizações especializadas no
trato da loucura no Brasil e, mais especificamente, em Minas Gerais, assim como a
emergência de uma discursividade sobre a ‘saúde mental’ após os movimentos
pelas reformas sanitária e psiquiátrica neste país. Retoma-se aqui os textos das
políticas públicas no campo da assistência psiquiátrica e, posteriormente, no campo
da saúde mental, por entendê-los como parte de um processo histórico maior, onde
estão articulados acontecimentos, práticas, percepções e jogos entre o saber e o
poder. Nesta dissertação, para além do que está documentado sob a forma da Lei,
parte-se em busca do discurso dos profissionais que atuam no CERSAM de Betim,
uma vez que são estes que executam a política pública implementada, levando, de
algum modo, a ação do Estado à população. Inscrevendo, portanto, cidadãos como
usuários dos serviços de saúde mental da cidade de Betim.
PALAVRAS CHAVE: CERSAM, Reforma Psiquiátrica, Políticas Públicas, Saúde
Mental, Técnicos de Referência.
15
ABSTRACT
This research analyses the Brazilian psychiatric reform, taking for study object
the CERSM, in the town of Betim, Minas Gerais. The institutionalization process of
the specialized organizations in madness treatment in Brazil is discussed and,
especially in Minas Gerais, as an urgent speech about a ‘mental health’ discussion
after the movements for sanitary and psychiatric reforms in this country. Here are
retaken the texts about the public politics in psychiatric assistances and, later, mental
health, understanding them as part of a higher historical process, where events are
articulated, as well as practices, perceptions and games between knowledge and
power. In this research, beyond the law, there is a searching for the CERSAM
(Betim) professional speech, because they execute the implemented public politics,
taking, somehow, the action of the state to the people. Inscribing, thus, the citizens
as users of mental health services in the town of Betim.
KEY WORDS: CERSAM, Psychiatric Reform, Public Politics, Mental Health,
Reference Technicians.
16
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 População residente em Betim nos anos de 1970, 1980, 1991,
2001, 2007...........................................................................................................
99
Tabela 2 Valor Adicionado Bruto dos três macrossetores do município
de Betim/MG.......................................................................................................
101
Tabela 3 Estrutura empresarial de Betim: principais atividades
econômicas em relação à População Ocupada – Ano 2004..........................
101
Tabela 4 Número de atendimentos prestados a pacientes provenientes
de Betim em instituições psiquiátricas públicas de Belo Horizonte, no
período de janeiro a dezembro de 1993, em Hospitais/Clínicas privadas
conveniadas entre os meses de agosto/setembro/outubro de 1993 e
consultas ambulatoriais realizadas no trimestre
agosto/setembro/outubro de 1993. Dados referentes ao local de
atendimento, à modalidade de intervenção e ao número de atendimentos
prestados (consultas, internações ou consultas ambulatoriais)..................
115
Tabela 5 Número de pessoas em atendimento pelos profissionais de
saúde mental de Betim, entre janeiro e 15 de março de 1993, e quadro
clínico.................................................................................................................
117
Tabela 6 Perfil dos entrevistados quanto ao local de formação; tempo
de formados; instrução; experiência em Hospital Psiquiátrico; tempo de
trabalho no CERSAM e modalidade de ingresso no mesmo........................
122
17
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................
10
1. PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÂO DA PSIQUIATRIA NO
BRASIL: O CASO DE MINAS GERAIS..............................................................
13
1.1 Os primórdios da Assistência Psiquiátrica em Minas Gerais: o contexto de
criação da Assistência a Alienados.....................................................................
19
1.2 Políticas públicas para institucionalização e administração da loucura: a
Lei 290 e o Decreto de 1903...............................................................................
24
1.3 Práticas bioquímicas de controle da vida...................................................... 39
2. MOVIMENTOS DE REFORMA NO BRASIL: REFORMA SANITÁRIA E
REFORMA PSIQUIÁTRICA ...............................................................................
47
2.1 Democracia: condição de possibilidade para a saúde ser direito do
cidadão e dever do Estado..................................................................................
50
2.2 VIII Conferência Nacional de Saúde e a consolidação do discurso da
saúde como um direito civil.................................................................................
56
2.3 Quanto mais democracia se tem, mais democracia se quer: os porões da
loucura e a luta pela Reforma Psiquiátrica no Brasil...........................................
60
2.4 Abrindo os porões da loucura: o itinerário blico da loucura em Minas
Gerais..................................................................................................................
66
3. OS ANOS DE 1980/90 E AS CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE PARA
NOVAS PRÁTICAS EM SAÚDE MENTAL NO BRASIL: O CASO DE MINAS
GERAIS...............................................................................................................
78
3.1 A década de 1990 e as novas políticas públicas em saúde
mental..................................................................................................................
81
3.2 Os paradoxos da legislação em saúde mental: a Lei 11.802........................ 87
4. CENTRO DE REFERÊNCIA EM SAÚDE MENTAL CERSAM DA
REGIÃO DE BETIM/MG: UM ESTUDO DE CASO............................................
97
4.1 Caracterização da região de Betim............................................................... 99
4.2 Betim e sua rede de saúde pública............................................................... 104
4.3 Centro de Referência em Saúde Mental – CERSAM.................................... 107
4.4 O discurso dos profissionais..........................................................................
120
4.4.1 Reforma Psiquiátrica.................................................................................. 123
4.4.2 Saúde Mental..............................................................................................
130
4.4.3 Público Alvo................................................................................................ 135
4.4.4 Técnico de Referência................................................................................
147
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................ 154
REFERÊNCIAS................................................................................................... 162
ANEXOS..............................................................................................................
171
18
INTRODUÇÃO
Com o movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil, a partir dos anos de 1980,
ocorreu um processo de grande questionamento e crítica à rede assistencial
psiquiátrica constituída em torno do sistema asilar. Isto resultou na gradativa
readequação e desativação dos grandes hospitais psiquiátricos, com a progressiva
implementação de uma modalidade de assistência aos portadores de sofrimento
psíquico baseada nos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS). Em Betim,
Minas Gerais, em meados de 1990, foi criado o primeiro Centro de Referência em
Saúde Mental (CERSAM), um serviço aberto e inserido na comunidade. Este
equipamento e os demais existentes no país, nomeados como Núcleos de Atenção
Psicossocial ou Centro de Atenção Psicossocial (NAPS/CAPS), foram
posteriormente regulamentados pelas portarias 189 e 224 do Ministério da Saúde,
respectivamente de 1991 e 1992.
Esta dissertação de mestrado procurou abordar as condições de possibilidades
implicadas no processo de institucionalização dos equipamentos de atendimento ao
portador de sofrimento psíquico, criados a partir dos discursos e das práticas que
emergiram com a Reforma Psiquiátrica brasileira. Optou-se, para tanto, pela
realização de um estudo de caso do CERSAM, do município de Betim, tendo em
vista que o mesmo representa um exemplo importante da nova ordem
multidisciplinar que se institucionaliza em torno do que, na atualidade, nomeia-se
como campo da saúde mental.
O estudo de caso permite uma reflexão sobre a feição que assume no plano
regional ou local uma proposição política, tendo em vista os diversos
acontecimentos que entram em jogo no processo de implementação de uma política
pública, sobretudo, no que se refere às ações e serviços no âmbito da saúde. Por
outro lado, pode-se também indagar como alguns enunciados como: ‘Reforma
Psiquiátrica’, ‘saúde mental’, ‘público alvo’ e ‘técnicos de referência’ são articulados
na ordem do discurso por aqueles que levam a ação do Estado à população, ou
seja, os atuais trabalhadores em saúde mental do município de Betim, isto porque
tais profissionais na mesma medida em que interpelam novos sujeitos para os
CERSAM, tornando-os usuários desses equipamentos, são também interpelados por
19
uma discursividade que os constituem como os Técnicos de Referência destes
mesmos sujeitos-usuários.
A problematização dos enunciados delimitados acima, partiu da intenção de
indagar ‘como’ os profissionais que atuam no CERSAM de Betim percebem os
movimentos sociais e históricos que precederam a constituição das instituições nas
quais trabalham e, ainda, como articulam discursivamente o campo de atuação no
qual se inserem, o público que constituem e, sobretudo, como percebem a função
que exercem na atualidade, tendo em vista a histórica relação institucional
constituída em torno da loucura e da doença mental. Relação que este estudo
buscou tensionar na tentativa de compreender em qual medida sob novos
enunciados inscreve-se descontinuidades, rupturas e transformações em relação à
lógica psiquiátrica/asilar precedente e ainda presente em muitos estados brasileiros.
Em vistas a alcançar as questões colocadas ao longo do trabalho de pesquisa
e escrita, esta dissertação foi dividida em quatro capítulos. No primeiro, a discussão
centrou-se no contexto de institucionalização do Hospício de Pedro II, destacando-
se as influências européias presentes na construção do primeiro hospício brasileiro.
Procurou-se demarcar a articulação entre a medicina e a política e,
consequentemente, a articulação dos discursos da ciência, da lei e o discurso
político na ressignificação da loucura como doença mental. Mesmo fazendo
referência ao plano nacional, boa parte desse capítulo foi dedicada à conjuntura de
implantação da primeira instituição manicomial em Minas Gerais, nos primeiros anos
do século XX.
No segundo capítulo, foram abordados os movimentos sociais pela reforma
sanitária e psiquiátrica no Brasil, sendo discutidas as condições de possibilidade de
tais movimentos e a emergência de uma discursividade que passou a pressupor ‘a
saúde como um direito de todos e um dever do Estado’. Esse enunciado foi
ratificado pela Constituição Federal de 1988, delineando-se a partir desta época as
diretrizes para um novo modelo de gestão e atenção à saúde. Esta discussão foi
aqui enfrentada tendo em vista a constituição do SUS como condição fundamental
no processo de reorientação nacional da assistência psiquiátrica. Ainda neste
capítulo, foi construído um panorama da assistência psiquiátrica prestada no Brasil e
20
em Minas Gerais, por volta dos anos de 1970/1980, pois tornou-se importante
demarcar contra qual realidade os movimentos pela Reforma Psiquiátrica se
insurgiram. Tal empreitada culmina na descrição do itinerário público da loucura
instituído em Minas Gerais naquele período, itinerário que iniciava na capital do
estado, tendo como último destino o Hospício de Barbacena.
No terceiro capítulo, foram abordadas as políticas públicas em saúde mental,
propostas na transição das décadas 1980/1990. Delimitando-as como integrantes de
um processo histórico muito maior, onde saber e poder sempre foram postos em
jogo e, também, por apreender a existência de uma nova legislação como parte
integrante das condições de possibilidade para a emergência de outros discursos e
outras práticas no campo da saúde mental, como por exemplo a institucionalização
dos NAPS/CAPS/CERSAM.
No quarto capítulo, encontra-se o Estudo de Caso do CERSAM de Betim, onde
partiu-se de uma preliminar análise regional, agregando-se à mesma a descrição da
rede de saúde pública municipal existente em Betim. Seguem-se a esses tópicos, o
histórico da instituição estudada, bem como uma reflexão sobre o discurso dos
profissionais que atuam no CERSAM em epígrafe. Nomeia-se aqui como o discurso
dos cnicos de Referência um conjunto de dezoito entrevistas semi-estruturadas,
realizadas durante o mês de janeiro de 2007. Nestas entrevistas a intenção era
apreender como articulam-se no discurso dos profissionais entrevistados diversos
enunciados que tornam-se fundamentais quando se aborda uma etapa - que se
pretende - nova acerca da relação do homem com a 'loucura' ou, como de diz
atualmente, com os transtornos mentais.
21
1. PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PSIQUIATRIA NO BRASIL: O
CASO DE MINAS GERAIS
No Brasil, será a partir de meados do século XIX que erguer-se-ão as grandes
instituições destinadas ao recolhimento dos insanos, isto é, daqueles que carregam
os estigmas que, instituídos lentamente pela modernidade, esboçam o vulto do
louco. Em 1830, emerge o pedido público para que seja edificado um hospício para
alienados (pedido este desencadeado em meio a um grande movimento organizado
por um grupo de médicos no Rio de Janeiro), os quais - além de fomentarem tal
reivindicação - propuseram outras medidas de higiene pública e saneamento da vida
urbana (COSTA, 1989). Para tanto, o asilo almejado deveria conter aqueles que
perambulavam pela cidade, bem como recolher, sob seus cuidados, todos os
insanos que estavam reclusos nas Santas Casas de Misericórdia, nos hospitais
gerais ou mesmo nas casas de correção cariocas. As más condições dos porões
onde estas pessoas eram trancadas (local também utilizado como palco para a
prática dos castigos corporais) deveriam ser substituídos por um “asilo higiênico e
arejado, onde os loucos pudessem ser assistidos segundo os princípios do
tratamento moral” (COSTA, 1989, p. 70).
A constituição da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, em
1829, ofereceu as condições de possibilidade para a propagação do movimento que
repercutiu na opinião pública com a intenção de edificar tal asilo (COSTA, 1989;
VENÂNCIO, 2003). Historicamente, os profissionais médicos lutaram para o
fortalecimento do corporativismo profissional; com a intenção de alcançar tal
finalidade, mobilizaram-se em prol da condenação de práticas por eles nomeadas
como “charlatanismo”
1
ou “curandeirismo”, como também lutaram pelos lugares de
destaque entre as lideranças gestoras do Estado, o que resultaria em pressões
políticas, objetivando a proposição e implementação de políticas públicas que
expandissem o mercado de serviços médicos (MENDES, 1999). Conforme Mendes,
a luta dos grupos compostos por essa categoria profissional em desautorizar outras
práticas e saberes visava, em última instância, à contínua afirmação do saber
1
Sobre a luta contra o “charlatanismo” no Rio Grande do Sul ver: WEBER, Beatriz Teixeira. Médicos
e Charlatanismo: uma história de profissionalização no Sul do Brasil. In: SILVA, Mozart Linhares da.
História Medicina e Sociedade no Brasil (org). Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2003, p.95-128.
22
médico e à conquista de poder para sua corporação; argumenta o autor que “pelo
profissionalismo, as corporações transformam-se em grupos de interesses ou de
pressão permanentes. Esse pólo corporativo tem grande peso na conformação de
políticas em saúde” (1999, p. 25).
A Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro surge em um contexto
de urbanização e modernização do Brasil, no qual ocorre a constituição de várias
instituições disciplinares, entre elas as casas correcionais previstas pelo Código
Criminal de 1830 (SILVA, 2005c). Esta burocratização da vida é decorrente de uma
estratégia do Estado - no sentido de impor-se como o ordenador do espaço público,
imposição que, de certa forma, ocorreu pela intervenção na esfera privada, onde a
família foi o principal alvo. Contribuiu para a subordinação das famílias ao Estado a
ação do saber médico por meio de sua vertente higienista (ROMAGNOLI, 2003). A
medicina passou a fazer parte do dia-a-dia dos indivíduos em um contexto onde a
expansão econômica - ao lado das descobertas científicas - representava a grande
esperança de progresso. Segundo Romagnoli, apenas na modernidade poderia
eclodir tal aspiração pelo controle. Conforme a pesquisadora,
a era moderna trouxe consigo a criação e a ascensão do saber cientifico.
Saber este que, através do enaltecimento da razão, vinculava a existência
humana a um projeto de conhecimento que tem na ciência seu pilar de
sustentação. Baseada em esquemas de rendimento e eficácia, a ciência
conquista um espaço absoluto na sociedade ocidental, relegando ao
descrédito e ao esquecimento outras formas de saber que não partilhem de
seus pressupostos básicos: objetividade, causalidade, sistematização e
produtividade (2003, p. 5).
Desse modo, quando na modernidade são demarcados os domínios que
passarão a ordenar os núcleos sociais urbanos, delineia-se também aquilo que foge
a essa ordem: como se distinguem aqueles que não se encaixam na disciplina das
fábricas, não possuem endereço fixo ou origem definida. Assim, cada ordem
constitui em contrapartida sua própria desordem, seu refugo que precisa ser
varrido, escondido. No caso do louco, solicita-se que o mesmo seja proibido de
deambular pelo espaço público, como também não se admite mais que o mesmo
seja simplesmente banido das cidades (SILVA, 2005b). Paradoxalmente, ao estar
incluído em uma organização urbana capitalista, onde os principais domínios sociais
orientam-se pelo trabalho, pela produtividade econômica, pela sexualidade
23
controlada sob o ideal da família nuclear e pela linguagem - enquanto possibilidade
de intercâmbio interpessoal - o louco torna-se excluído de todos esses domínios.
Para Foucault, ele “é, sem dúvida nenhuma, o resíduo de todos os resíduos, o
resíduo de todas as disciplinas, aquele que é inassimilável a todas as disciplinas
escolares, militares, policiais, etc., que podem ser encontradas numa sociedade”
(2006, p. 67).
Portanto, não basta excluir. É preciso incluir o sujeito em instituições
moralizadoras, pois esta será a condição para que o mesmo seja governado,
adestrado, podendo, assim, o poder disciplinar atuar diretamente sobre o seu corpo
(SILVA, 2005b). Após o final da década de 1830, na qual a Associação Médica do
Rio de Janeiro solicitou a criação de um asilo para alienados, foi assinado, em 1841,
pelo imperador Pedro II, o Decreto de fundação do primeiro hospício do Brasil
(COSTA, 1989; MACHADO et al, 1978).
Inaugurado em 1852 e batizado com o nome do imperador, ao Hospício de
Pedro II foi atribuído o desígnio de atender aos alienados mentais de todo o país.
Logo, o Decreto 82, de 18 de junho 1841, o qual ordenou a criação dessa
instituição, é apontado pela historiografia como o marco da psiquiatria no Brasil, pois
o modelo asilar seria reiterado em diversos pontos da nação brasileira, marcando o
projeto civilizatório do Segundo Reinado em nosso país (MACHADO et al., 1978;
RESENDE, 1987; ENGEL, 2003; HOLANDA, 2006).
A instituição asilar recém-inaugurada orientava-se pela psiquiatria francesa
que, por sua vez, tinha como principal premissa a implementação de políticas
assistenciais - asilares - para os alienados. Entretanto, deve-se ter em vista que, no
Brasil, o Hospício de Pedro II foi criado a partir de um regime monárquico
centralizador, em consonância a um declarado consenso de elites, diferentemente
do que observou Venâncio sobre o caso francês; isto porque “na França, o que
estava em jogo era a tentativa de criar novos modos de organização social fundados
no ideário da igualdade e da liberdade” a partir da Revolução Francesa (2003, p.
13).
24
Posteriormente, com a Proclamação da República, o Hospício Nacional de
Alienados
2
deixou de estar sob a administração da Santa Casa de Misericórdia,
passando a ser administrado pelo Estado (COSTA, 1989; CORRÊA, 2001). Porém,
o projeto civilizatório (do qual ele era o principal emblema) permanece operante na
transição do século XIX para o século XX, tendo como uma de suas manifestações
concretas a Lei de Assistência aos Alienados, de 1903, ou seja, lei basilar para a
reorganização das instituições de reclusão e manutenção da ordem no cenário
brasileiro (CARRARA, 1998).
Quando inaugurado, o Hospício de Pedro II dispunha de acomodações para
350 pacientes; logo, novos pavilhões foram implantados e sua capacidade passou
para 800 vagas (HOLLANDA, 2004). Lotação rapidamente atingida, o que motivou o
governo central a determinar aos estados a guarda de seus alienados. Tal
determinação multiplicou a criação de hospícios ao longo do território brasileiro. É
importante ressaltar que somente em 1881 foi criada a cadeira de Clínica
Psiquiátrica e Moléstias Mentais na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro
(VENÂNCIO, 2003). Contudo, no período de um século, isto é de 1852 a 1954,
foram inauguradas aproximadamente 55 novas instituições destinadas à
administração da loucura. As mesmas eram divididas entre Hospícios, Asilos,
Enfermarias, Sanatórios, Colônias Agrícolas e Manicômios Judiciários, o que denota
que o funcionamento asilar precedeu a existência de um corpo de conhecimento
regional especializado no trato da loucura (Ver: RESENDE, 1987; VENÂNCIO,
2003). Tal acontecimento foi analisado adequadamente por Silva, isto porque o
historiador esclarece que em se tratando dos dispositivos disciplinares, “não é um
saber que se antecipa a uma prática, mas um saber formado a partir de um
dispositivo que liga o poder e o saber, cujos efeitos se multiplicam, nutrindo-os
incessantemente” (2005b, p. 43).
À discussão precedente, acrescenta-se que a conexão entre saber e poder terá
seu ponto de aplicação no corpo do individuo - corpo capturado por diferentes
mecanismos com a finalidade de torná-lo dócil e submisso (ROMAGNOLI, 2003, p.
2
O Hospício de Pedro II foi rebatizado, após a Proclamação da República, como Hospício Nacional
de Alienados. Entretanto, em 1911, sua nomenclatura passa a ser Hospital Nacional de Alienados
(HOLLANDA, 2004, p. 25 (nota 6)).
25
9). No curso proferido no Collège de France, entre 1973 e 1974, Foucault ofereceu
alguns indícios sobre como, neste contexto, o conceito de individuo pode ser
entendido. Conforme as palavras de Foucault:
o indivíduo é o resultado de algo que lhe é anterior e que é esse
mecanismo, todos esses mecanismos, que vinculam o poder ao corpo. É
porque o corpo foi ‘subjetivado’, isto é, porque a função sujeito fixou-se
nele, é porque ele foi psicologizado, porque foi normalizado, é por causa
disso que apareceu algo como o indivíduo, a propósito do qual se pode
falar, se podem elaborar discursos, se pode tentar fundar ciências
(FOUCAULT, 2006, p. 70).
Nesta conjuntura, onde o corpo e a psique tornam-se objetos da ciência,
emerge a exterioridade do que se configurará como o discurso do patológico,
discurso autenticado pela medicina que - sob o rótulo da loucura - irá autorizar o
seqüestro de determinados sujeitos, incluindo-os, conseqüentemente, em
instituições manicomiais. Como assegura Carrara, “a loucura foi (e continua sendo),
em grande medida, uma linguagem amplamente utilizada em nossa sociedade para
controlar, gerir e, em alguma medida, neutralizar comportamentos que transgridem
normas, valores e regras” (1998, p. 48). Subjacente a essa passagem está a noção
de que sobre o sujeito é projetado um discurso construído previamente, ou seja, ao
atribuir o status de “louco” ou, posteriormente, de “doente mental” a uma pessoa,
invalidam-se, conseqüentemente, quaisquer tentativas suas de estabelecer um
contrato, de modo que “os bens dos loucos tornam-se suspeitos; as mensagens
incompreensíveis; os afetos desnaturados, tornando praticamente impossível
qualquer possibilidade de troca” (KINOSHITA, 2001, p. 55).
Nesse sentido, pode-se inferir que os jogos políticos, as relações onde o saber
assume efeitos de poder e o desejo imperativo de controle do meio público,
tornaram-se algumas das condições de possibilidade para que o Estado e a
medicina atuassem sobre a população, criando instituições para gerenciar e
administrar a vida sob os moldes da ciência moderna. Ciência que respaldará a
imposição da vontade médica e estatal sobre o corpo alheio, negando ao cidadão o
poder de decidir sobre o cuidado de si mesmo. Este contexto é favorável ao
desencadeamento de dois movimentos interdependentes, um dos movimentos
refere-se à propagação do ideal germânico, concretizado por meio da difusão da
26
“eugenia”
3
no Brasil, ou seja, a pretensão de gerir o homem enquanto espécie,
assumindo o controle de seu corpo e de sua sexualidade em vistas ao
melhoramento da “raça”. O outro movimento resulta em uma intenção de moralizar a
sociedade por meio das ações médicas, segundo argumenta Mendes (1999) na
seguinte passagem:
(...) a medicalização dá-se mediante rotulação médica a crescentes áreas
do comportamento, convertendo certos problemas em doenças e
obscurecendo a determinação última do processo saúde-enfermidade. O
processo de medicalização tem a ver com uma dupla tendência
convergente: a complexificação da vida cotidiana com a ampliação do
campo dos “desvios” e o desenvolvimento da profissionalização médica que
reforça sua identidade e poder profissional, legitimando e normalizando
esses desvios. Daí resulta um processo de medicalização de todos os
padecimentos, desumanizando-os, dessocializando-os e convertendo-os em
patologias e, o que é pior, levando à ilusão de que se pode obter saúde
mediante a eliminação das doenças (1999, p. 23).
O pressuposto precedente aponta para a interferência da medicina na
institucionalização de práticas, espaços e, conseqüentemente, políticas públicas
específicas para administrar os mais diversos desvios sociais, entre eles, a “loucura”.
No caso nomeado do louco, a medicina justificou seu seqüestro do espaço público e
preconizou que o mesmo deveria ser incluído em um campo medicalizado. A oferta
desta modalidade de intervenção suscitou uma crescente demanda por vagas nos
hospícios brasileiros, o que - para Mendes - poderia ser um resultado previsto,
porque “se uma tecnologia médica, ela tende a ser usada, justificada ou
injustificadamente, induzindo a demanda pelo lado da oferta e submetendo os
pacientes, muitas vezes, a um custo social e humano desnecessário” (1995, p. 24).
Rapidamente, o Hospício de Pedro II não comportou a imperativa demanda
social para que fossem excluídos e segregados alcoólatras, andarilhos, vadios,
arruaceiros, mulheres defloradas ou abandonadas, sendo necessário que as
Unidades Federativas arcassem com seu próprio refugo (MOREIRA, 1983). Junto a
este fato, emerge o conflito entre os alienistas cuja formação pautou-se pelo ideário
francês e aqueles que passam a aderir aos preceitos da escola psiquiátrica
germânica. O primeiro grupo defende políticas assistenciais, tendo o asilo como a
3
“O termo ‘eugenia’ foi criado pelo fisiologista inglês Francis Galton (1822-1911), em 1883, que o
definiu como ‘o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as
qualidades raciais das futuras gerações seja fisicamente ou mentalmente’” (SANTOS, 2005).
27
matriz principal, enquanto o segundo preconiza a higiene mental e o controle
eugênico da população como uma das medidas para se prevenir a perpetuação das
moléstias mentais (VENÂNCIO, 2003). Como se observará na trajetória de Minas
Gerais, a exclusão, assim como a eugenia, serão balizadoras importantes no que se
refere à gênese das políticas públicas voltadas para a assistência aos alienados.
1.1 Os primórdios da Assistência Psiquiátrica em Minas Gerais: o contexto de
criação da Assistência a Alienados
Em Minas Gerais, até 1900, o destino dos alienados intercambiava-se em
poucas opções: as ruas, anexos das Santas Casas de Misericórdia de São João Del
Rei e Diamantina, acomodações domiciliares, as cadeias públicas ou o
encaminhamento ao Rio de Janeiro, por meio de um convênio firmado com o
Hospital Nacional de Alienados (MAGRO FILHO, 1992). No entanto, assim como no
Rio de Janeiro, na passagem do século XIX para o século XX, o questionadas as
condições insalubres às quais são expostos os insanos encarcerados nas cadeias
públicas e Santas Casas de Misericórdia. Por outro lado, ao ser fundada Belo
Horizonte
4
, a capital do Estado de Minas Gerais, nos anos de 1897, são instituídas
regras de conduta, limpeza e organização do espaço público condizentes com o
imaginário daquela época. Essas regras, por sua vez, demarcavam a intenção de
ordenar o recém-criado lócus para a alta administração do Estado mineiro; para
tanto, deixaram fora de suas fronteiras tanto os operários envolvidos na edificação
da nova capital quanto todos aqueles que rompiam com o ideal do que deveria fazer
parte daquele território em vias de urbanização
5
.
Tais movimentos ocorreram em um período durante o qual difundia-se a idéia
do asilo como o principal lugar para recolher todos aqueles que precisavam ser
4
Em 1893, é assinado o decreto determinando a transferência da capital de Minas Gerais de Ouro
Preto para a nova sede, àquela época denominada como “Cidade de Minas”; entretanto, a
inauguração oficial vem a correr em 12 de dezembro de 1897. Em 1901, a capital do estado
mineiro passa a chamar-se “Belo Horizonte” (www.mineiros_uai.com.br – acessado em 24/07/07).
5
O projeto de construção da capital mineira previa que a mesma deveria restringir-se aos limites da
Avenida do Contorno, pois -como o próprio nome sugere -trata-se de uma avenida construída ao
longo de todo o entorno da área central de Belo Horizonte; esse mesmo projeto previa a construção
dos bairros operários fora dos limites da referida avenida.
28
“tratados”, pois os transtornos morais, os cios, os delírios, as alucinações, a
indigência, assim como as afecções da conduta, junto aos conceitos de monomania
e degenerescência (Ver: CARRARA, 1998), compunham o quadro de
comportamentos entendidos como desviantes e patológicos e, por conseguinte,
indicativos da necessidade de internação em instituições especializadas (SILVA,
2005a). Junto a essas questões, se encontra a necessidade do governo mineiro em
concentrar os recursos públicos dispersos entre as Santas Casas de Misericórdia,
bem como o desafio de enfrentar as restrições relativas às internações impostas
pelo Hospital Nacional de Alienados, devido ao aumento de sua demanda.
Portanto, neste contexto histórico, diversos agentes sociais,
concomitantemente, impuseram ao Governo de Minas a necessidade dele assumir o
controle e a assistência de seus alienados, como acontecia no restante dos Estados
brasileiros. Tal reivindicação era procedente tanto do governo republicano quanto de
lideranças médicas e políticas mineiras, onde se destacaram os médicos Antônio
Gonçalves Gomide (1770-1835), Josephino Santa Rosa (1878-1950) e Joaquim
Antônio Dutra. Deste alinhamento entre políticos e médicos, concretizou-se um
projeto de lei apresentado à Câmara Estadual propondo a criação da Assistência a
Alienados na terra do ouro. Projeto logo aprovado, configurando-se “na Lei 290, de
16 de agosto de 1900, que cria a Assistência aos Alienados em Minas Gerais”
(MAGRO FILHO, 1992, p. 27).
O projeto que culminou na criação da Assistência a Alienados em Minas
Gerais, restrita em sua gênese a um único hospício situado no município de
Barbacena, foi apresentado ao Senado pelo Dr. Joaquim Antonio Dutra, médico cuja
trajetória política deixou marcas na história mineira, pois seu projeto não é
aprovado como o próprio autor é o indicado para implementá-lo, por meio de sua
nomeação como diretor da instituição. A síntese biográfica do fundador da
assistência psiquiátrica em Minas Gerais revela a aliança estabelecida entre as
instâncias mais influentes do estado com a intenção de institucionalizar um espaço
especializado no controle dos alienados, conforme demonstra o fragmento a seguir:
Joaquim Antônio Dutra, nascido em São João Nepomuceno (MG) em 1853,
formou-se em medicina no Rio de Janeiro em 1881, tendo como paraninfo
29
de sua turma D. Pedro II. Passou a clinicar em Leopoldina, onde ocupou a
Presidência da Câmara. Após a Proclamação da República, foi eleito
deputado à Assembléia Constituinte de MG. Posteriormente, ascendeu ao
Senado Mineiro, onde esteve até 1903. Em 1900 apresentou o projeto da
criação de um Hospital de Assistência a Alienados, sendo sancionado pelo
Presidente do Estado Silviano Brandão. Em 1903, o Presidente Francisco
Sales escolheu Barbacena como sede do Hospital, designando o Dr.
Joaquim Dutra para implementação do projeto e o nomeando Diretor.
Exerceu o cargo por 33 anos, quando se aposentou da função aos 83 anos,
em 1936. Em 1933, a Sociedade Médico-Cirúrgica de MG conferiu-lhe a
Cruz de São Jorge pelos 30 anos à frente do Hospital, condecoração
instituída pelo Professor de Psiquiatria da Universidade de Kharkoff, o russo
P. J. Kovalevsky, aos psiquiatras que permanecessem dez anos como
diretores de Hospital Psiquiátrico (DUTRA CÂMARA et al, 2001, p. 1).
O fragmento biográfico acima demonstra como a constituição das instituições
manicomiais, em Minas Gerais, remonta a toda a organização política desse Estado,
expressando um jogo de forças e poder centralizado em poucas mãos (MAGRO
FILHO, 1992). Jogo que se tornou concreto através de políticas públicas que
incidiram diretamente sobre a população e sobre o modelo de desenvolvimento
regional ideal àquela época.
Apesar disso, o caminho adotado por Minas Gerais seguirá rumos, por vezes,
discordantes das estratégias traçadas pelos países europeus na institucionalização
e administração da loucura em asilos específicos para esta finalidade. Os estudos
de Foucault (2005) demonstram que, na Europa, a partir do século XVIII, o hospital
deixará de ser uma simples figura arquitetônica, substituindo sua função de atender
aos pobres e miseráveis tanto materialmente quanto espiritualmente - pela
estratégia de ser uma máquina de curar.
Nesta mesma época, o desenvolvidas uma série de estratégias de gestão
dos homens, as quais foram descritas por Foucault como sendo atributos de uma
“sociedade disciplinar”, cujo modelo institucional proposto por Bentham
6
representou
a expressão máxima do desejo de controle e docilização dos corpos, como assegura
o próprio filósofo na seguinte passagem:
6
O Panóptico de Bentham refere-se a um modelo arquitetônico que poderia servir ao controle de
presos, doentes, loucos ou escolares, cujo principal efeito seria ‘‘induzir no detendo um estado
consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder”
(FOUCAULT, 2005, p. 166). Para um maior entendimento do projeto de Bentham, torna-se
imprescindível a leitura de: BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, como
também as análises empreendidas por Foucault na obra já mencionada e ainda: SILVA (2005).
30
Durante o primeiro episódio da história do poder psiquiátrico, o que é que
cura no hospital? (...) O que cura no hospital é o hospital. Ou seja, é a
própria disposição arquitetônica, a organização do espaço, a maneira como
se circula por ele, a maneira como se olha ou se é olhado nele, tudo isso é
que tem em si valor terapêutico. A máquina de cura, na psiquiatria daquela
época, é o hospital (FOUCAULT, 2006 p. 127).
À preposição precedente, Foucault acrescenta que é “como aparelho panóptico
que o hospital cura” (Foucault, 2006, p. 127). Nesse sentido, o deslocamento da
ação médica para dentro do hospital, auxiliada pelas novas técnicas de controle,
constituiu uma metodologia voltada para disciplinar o hospital, implicada ainda em
controlar o ar respirado pelos internos, a alimentação por eles ingerida, bem como a
temperatura do meio onde habitam, atingindo - em última medida - os corpos
daqueles que ali se encontram.
Todavia, quando se analisa a história de Minas referente às políticas públicas
em saúde mental, pesquisadores como Silva (2005a), Magro Filho (1992) e o
jornalista Hiram Firmino (1982) o contundentes ao postularem que, neste caso, a
escolha - tanto da região quanto do local para a institucionalização do primeiro
hospício de Minas Gerais - atendeu principalmente aos jogos políticos. Eles afirmam
que foram negligenciadas as orientações que aconselhavam a observação das
condições climáticas ou os preceitos arquitetônicos recomendados à distribuição do
espaço e dos homens dentro de uma instituição psiquiátrica naquela época. Cabe
lembrar que a região de Barbacena está localizada a 157 km da capital do estado de
Minas Gerais, ou seja, em terras bem distantes da recém construída Belo Horizonte,
centro político, administrativo e social do estado. Sobre o desígnio de Barbacena
pelas autoridades estaduais, Magro Filho observa que:
É provável que tenha influído na escolha do local para o hospício o fato de
Belo Horizonte ter sido inaugurada por um Barbacenense, quando
Barbacena havia constado da lista das cidades candidatas para sede da
nova capital. Como um dos prêmios de consolação à cidade preterida, ali se
instalou um hospício (MAGRO FILHO, 1992, p. 32).
A cidade acima mencionada tornou-se o centro de convergência de todos os
encaminhamentos relativos à indigência e insanidade mental de Minas Gerais, ação
sustentada, em grande medida, por um sonho de que o hospício atrairia
investimentos e desenvolvimento econômico para a região. Como atesta a
historiografia, com o passar dos anos, o hospício não proporcionou os lucros
31
esperados ao município, rendendo-lhe, apenas, o epitáfio de “cidade dos loucos”
(SILVA, 2005a, p. 29).
Em muitos momentos, o resgate do histórico da região ou mesmo a descrição
dos aspectos físicos do lugar não permitem ao pesquisador fazer a clara distinção
entre mitos e fatos concretos. Desse modo, não é possível precisar se a escolha do
município, em questão, ocorreu devido à sua posição geográfica (que aproximava o
Estado do Rio de Janeiro, então capital do país) ou se tratava-se mesmo de uma
consolação política ao povo barbacenense. O fato é: sobre este território marcado
por lutas políticas travadas, sobretudo, por uma forte elite local, será edificado o
primeiro hospício mineiro. Conforme SILVA, Barbacena torna-se “o ponto de
referência no tratamento daqueles que, no quadro inicial do Hospital, eram
compreendidos como doentes mentais”; porém “o fato de ser um ponto de referência
pode ser explicado não por ser uma instituição perfeita, mas sim pelo fato de ser a
primeira instituição para doentes mentais no Estado de Minas Gerais” (2005a, p.
2930). Em 1903, as terras da antiga Fazenda da Caveira, que pertenceram ao
traidor da causa da Inconfidência Mineira, Joaquim Silvério dos Reis, tornariam-se o
destino de uma grande população, composta por “alienados” ou mesmo “indigentes”,
visto que o governo de Minas Gerais adquiriu tais terras porque lá existira um
Sanatório para tuberculosos fundado em 1870, centralizando os doentes do Estado
de Minas para Barbacena. Para facilitar o fluxo dos enfermos, foi criada uma estação
férrea que ligava o Sanatório a outros pontos do estado, ainda no século XIX
(FIRMINO, 1982). Segundo Moretzohn (1989), a instituição foi fechada em
decorrência de sua situação financeira, apesar de possuir dependências
consideradas luxuosas para a época.
32
1.2 Políticas públicas para institucionalização e administração da loucura: a
Lei 290 e o Decreto de 1903
A Lei 290, de 16 de agosto de 1900, é apontada como a lei basilar no que se
refere às políticas públicas em saúde mental no estado de Minas Gerais.
Sancionada pelo então presidente do Estado, Dr. Francisco Silviano de Almeida
Brandão, esta lei cria a Assistência de Alienados nas terras de Minas. Composto por
sete artigos, tal instrumento legal subordina ao governo todos os estabelecimentos
destinados ao recebimento de alienados no Estado, bem como demarca o hospício
como o principal organizador da Assistência aos alienados, devendo tal
estabelecimento ser organizado tanto espacialmente, quanto administrativamente,
conforme preconizava a Lei nos seguintes artigos
7
:
Art. 1° - Fica criada, no Estado de Minas Gerais, a Assistência a Alienados.
Art. - Ficam na dependência da Assistência todos os estabelecimentos
que venham a ser auxiliados pelo Estado para receberem alienados
e,portanto sujeitos ao mesmo regime.
Art. - No prédio que for destinado ao hospício h averá, além de
acomodações precisas, um pavilhão para observação dos indivíduos
suspeitos, um gabinete eletro-terápico e oficinas, quando necessárias e a
juízo do governo.
§ 1° - Fica o governo autorizado a aproveitar um pr édio estadual para
instalação do hospício.
Art. - A Assistência a Alienados terá um diretor profissional, cujos
vencimentos não deverão exceder os dos diretores das Secretarias do
Estado e terá os auxiliares que o governo julgar necessários com
vencimentos marcados por ele.
Art. - O Governo regulamentará todos os serviços de Assistência, bem
como estabelecerá a competência de cada funcionário.
Art. - Fica o Governo autorizado a abrir o neces sário crédito para a
montagem e custeio da Assistência.
Art. 7° - Revogam-se as disposições em contrário (M INAS GERAIS, 1900,
apud MORETZOHN, 1989, p. 13).
Torna-se notório que, na letra da Lei de 1900, não nenhuma referência às
tradicionais ordens religiosas, que habitualmente se ocuparam do trabalho com a
loucura, o qual reitera a cisão entre o Estado e o poder eclesiástico,
especificamente, no que tangencia à guarda e ao cuidado dos alienados a partir da
Proclamação da República e da Constituição de 1891 (CORRÊA, 2001). Dessa
forma, vale salientar que a Assistência a Alienados, em Minas Gerais, foi concebida
e, logo, subordinada à Secretária do Estado dos Negócios do Interior. Além disso,
33
nos artigos anteriormente transcritos, pode-se verificar a inexistência de referências
ao papel ou lugar do médico dentro da instituição; nota-se um momento no qual o
Estado assume o amplo papel de administrar as tensões sociais através do controle
do meio público e do espaço institucional.
Em Minas Gerais, a influência da corporação médica, junto às instâncias
políticas, contribuiu, em maior medida, para a formalização legal de um espaço
especializado no trato da loucura, ficando para um tempo posterior a nomeação do
médico enquanto soberano do asilo. Tal inferência pode ser justificada quando se
verifica que, no Art. , da Lei 290, não qualqu er deliberação quanto à categoria
profissional que estará à frente do hospício. Outro aspecto importante refere-se ao
gabinete eletro-terápico e às oficinas: indicações terapêuticas, em tese, mas sob o
julgo do Governo e não de uma disciplina ou terapêutica médica.
Mesmo sendo formalizada, a criação da Assistência a Alienados, em 1900,
nenhum prédio pertencente ao Governo mineiro foi aproveitado para atender à
finalidade prevista na Lei em questão. Tal proposição viria a ser implementada,
posteriormente, em 1903, ano no qual foi expedido - pelo Presidente do Estado de
Minas Gerais, Francisco Antonio de Salles - o Decreto n. 1579A, ou melhor, aquele
que “aprova o Regulamento que organiza a Assistência de Alienados” (MINAS
GERAIS, 1903, apud MORETZSOHN, 1989, p. 15).
Tal ato se configurou como o tema da mensagem dirigida pelo Presidente de
Minas Gerais, à época, aos membros do Congresso Legislativo de seu Estado.
Neste pronunciamento, o Presidente justifica a criação da Assistência de Alienados,
demonstrando que a estratégia mineira para lidar com a loucura estaria respaldada
pela experiência do Hospício de Pedro II e do Hospital Franco da Rocha (Juqueri),
instituições inspecionadas pelo Dr. Joaquim Antônio Dutra, como se verifica nas
próprias palavras de Francisco Antonio Salles:
Continuando em progressão o crescente número de loucos, que o governo
é obrigado a manter em tratamento por conta do Estado, no Hospício
Nacional de Alienados e hospício anexo à Casa de Caridade de São João
7
Para facilitar a leitura do texto optou-se por grafar todos os extratos de Leis ou Regulamentos
seguindo-se as regras contemporâneas da língua portuguesa.
34
Del Rei, onde já subiu a 88 o número de internados até ao segundo
semestre do ano passado, excedendo a despesa com esse serviço em mais
do dobro da quantia consignada no orçamento, julguei que era oportuno dar
execução à Lei 290, de 10 de agosto de 1900, que criou no Estado a
Assistência a Alienados. Foi comissionado o hábil clínico Sr. Dr. Joaquim
Antonio Dutra para examinar e observar a organização que é dada a esse
serviço no Rio de Janeiro e em São Paulo, a fim de aproveitar-se, si julgado
fosse conveniente, do sistema adotado nesses estabelecimentos, para
modelar o que devemos fundar (...) (ARQ. PÚB. MINEIRO, 1920, apud,
MORETZSOHN, 1989, p. 22).
Em outro momento da mesma declaração, Francisco Salles formalmente
nomeia a cidade para onde deverão orientar-se todos os encaminhamentos relativos
à alienação do estado. Em seguida, o discurso político empenha-se em esclarecer o
motivo pelo qual não foi seguido o que determinava o § do Art. da Lei 290. Por
meio de um jogo de palavras, o desejo de seduzir os ouvintes opera-se pela
apresentação das supostas vantagens obtidas pelo governo em “aproveitar” um
prédio do Estado, mesmo que para isso fosse preciso comprá-lo, conforme o
Presidente:
(...) foi expedido o decreto 1.579, de 21 de fev ereiro deste ano, dando
regulamento àquela lei e designando a cidade de Barbacena para a sede do
estabelecimento, por possuir o Estado um prédio que pode ser adaptado
a esse mister.
Tendo o Banco da República se proposto a ceder ao Estado em boas
condições o vasto edifício que serviu de Sanatório ali, não hesitei em
adquiri-lo, tais as vantagens que lobriguei na operação.
Esse edifício, reunido ao que possui o Estado, depois de
convenientemente adaptado, oferece acomodações para mais de 200
enfermos. Tendo sido nomeado para dirigir o estabelecimento o Sr. Dr.
Joaquim Antonio Dutra, aguardo do Governo a conclusão das obras
necessárias de adaptação para autorizar a aceitação de enfermos. Era
medida inadiável a fundação desse instituto, que, até considerando sob o
ponto de vista econômico, oferece vantagens apreciáveis (ARQ. PÚB.
MINEIRO, 1920, apud, MORETZSOHN, 1989, p. 22).
Por força da lei, em 1903, o antigo Sanatório de Tuberculosos, construído na
antiga Fazenda da Caveira, será transformado no Hospício Central de Barbacena.
Nesse sentido, pode-se sublinhar que os anos subseqüentes à Proclamação da
República ofereceram condições de possibilidade tais que o Decreto 1.579A teve
a força de desdobrar-se em dois acontecimentos simultâneos. Em um deles ratificou
a Lei de 1900, oficializando o hospício como o principal organizador da lógica
assistencial relativa à loucura. Em um acontecimento contínuo, tornou a mesma Lei
ainda mais especializada, ao subjugar “a morada dos loucos” ao mando do
profissional médico, cabendo a esta categoria a direção do hospício, como ratificado
35
no Art. do Decreto em questão (DECRETO N. 1.579A - de 21/02/1903 Apud
MORETZOHN, 1989).
Em Minas Gerais, afim de que a maquinaria manicomial entrasse em
funcionamento, o diretor médico deveria ser auxiliado por um corpo técnico e
administrativo designado pelo Governo, composto por escriturário, auxiliar,
almoxarife, farmacêutico, porteiro e médicos auxiliares, estes últimos contratados
desde que na proporção de - um - para grupos de cem doentes. Seriam contratados
ainda um enfermeiro e uma enfermeira chefes, segundos enfermeiros, inspetores de
enfermarias, serventes e cozinheiros. O diretor-médico, externamente subordinado
ao Secretário do Interior e internamente no topo da hierarquia do manicômio, deveria
responsabilizar-se por toda a parte administrativa e clínica do lugar.
Na Europa, semelhante institucionalização do saber psiquiátrico foi um dos
grandes objetos de pesquisa de Foucault, o que, para Magalhães (1997), vai indicar
que a série de análises arqueológicas desenvolvidas pelo filósofo se organiza com a
finalidade de explicitar a situação da loucura na modernidade. Portanto, a
hierarquização intra-asilar tornou-se o tema de uma das aulas proferidas por ocasião
do Curso O Poder Psiquiátrico. No registro destas aulas, encontra-se uma
importante passagem que pode auxiliar na compreensão do poder atribuído aos
alienistas em Minas Gerais, por meio do Decreto de 1903. Na ocasião do Curso,
Foucault observou que:
essa espécie de ordem imanente, que pesa indiferentemente sobre todo o
espaço do asilo, na realidade é percorrida, inteiramente animada de ponta a
ponta por uma dissimetria que faz que ela seja ligada imperiosamente, a
uma instância única que é, ao mesmo tempo, interior ao asilo e o ponto a
partir do qual se fazem a repartição e a dispersão disciplinares dos tempos,
dos corpos, dos gestos, dos comportamentos, etc. Essa instância interior ao
asilo é ao mesmo tempo dotada de um poder ilimitado, a que nada pode
nem deve resistir. Essa instância, inacessível, sem simetria, sem
reciprocidade, que funciona assim como fonte de poder, elemento da
dissimetria essencial da ordem, que faz com que essa ordem seja sempre
derivada de uma relação não recíproca de poder, pois bem, é
evidentemente a instância médica que como vocês vão ver funciona como
poder muito antes de funcionar como saber (2006, p. 5).
Conseqüentemente, ao analisar a posição dos médicos europeus dentro da
instituição, Foucault demonstrou como, gradativamente, o corpo do médico dissipou-
36
se pela hierarquia e estrutura do hospital, ato que tornava todas as medidas
terapêuticas e até os empregados apenas “dispositivos” ou “meios” através dos
quais sua vontade e o seu poder poderiam ser exercidos. Observando o
Regulamento de 1903, depreende-se que, em Minas Gerais, em certa medida,
buscou-se constituir um sujeito revestido de parecido status e poder, outorgando-lhe
a posição de diretor-médico do asilo. Deve-se considerar, contudo, que o
Regulamento em questão tornava o diretor um efeito do poder e, ao mesmo tempo,
um intermediário, não uma finalidade última, pois como concluiu Foucault: “o poder
transita pelo individuo que ele constitui” (2002b, p. 35).
Levando em consideração as investigações foucaultianas sobre as instituições
européias, torna-se oportuno refletir sobre outro aspecto relativo ao processo de
institucionalização das práticas de gestão da loucura no Brasil e no caso em Minas
Gerais, ou seja, deve-se levar em conta a precedência das estratégias de poder em
relação à formalização de um saber psiquiátrico, pois, no caso de Minas, os
documentos atestam que o ensino de psiquiatria na Faculdade de Medicina de
Minas Gerais somente ocorreu a partir de 1920 (sendo este o marco do ensino da
psiquiatria em MG), duas décadas após a promulgação da Lei 290 (MAGRO FILHO,
1992). Entretanto, este fato não impediu que, desde o Decreto de 1903, ao médico
fosse atribuída a gestão clínica e administrativa da instituição manicomial. Logo, nos
primórdios da Assistência aos Alienados, postulou-se que o diretor visitasse, quando
necessário, todas as seções do asilo, deliberando tanto sobre a distribuição espacial
dos enfermos quanto ao tratamento a eles dispensado; em tais ocasiões, deveria ser
efetivado o registro escrito do estado dos internos, com a justificativa das
intervenções realizadas. Conseqüentemente, o controle da alimentação tornou-se
mais um atributo da ampla função do diretor, competindo-lhe a tarefa de elaborar os
cardápios, bem como deliberar sobre a distribuição dos alimentos aos internados. O
referido instrumento centralizava no dirigente a prestação de contas relativa à receita
e despesas da instituição, a distribuição de funções entre todos os funcionários,
além da vigilância quanto à conduta e à assinatura do livro de ponto pelos
subordinados. Competia ainda, ao diretor, fornecer informações aos familiares dos
internos, bem como providenciar o sepultamento destes últimos ou mesmo a venda
de seus corpos à Faculdade de Medicina (DECRETO N. 1.579A - de 21/02/1903
Apud MORETZOHN, 1989, p. 15 -16; AMORIM, 2006).
37
Ao ser descrita a trama institucional organizada em Barbacena, evidencia-se
como os demais funcionários do asilo eram fixados estrategicamente como ao ser
tecida uma grande rede. Assim, a hierarquia institucional, ora instaurada, pode ser
pensada como uma tática implicada em estender os olhos do diretor a todos os
recantos do hospício, através dos médicos auxiliares, enfermeiros, guardas e
porteiros. Aos médicos auxiliares, o Regulamento prescreveu a rotina de visitar os
enfermos às 8 horas da manhã, receitando-lhes tratamentos ou cirurgias, anotando
todas as alterações encontradas para, em seguida, serem informadas à diretoria.
Além disso, ao conhecimento do diretor deveria chegar de imediato o resultado das
autopsias realizadas pelos médicos auxiliares, porém, somente quando se tratasse
de óbito dos pensionistas (DECRETO N. 1.579A - de 21/02/1903 Apud
MORETZOHN, 1989, p. 16).
Já os enfermeiros-chefes, foram situados na hierarquia institucional de um
modo intermediário, porquanto deveriam ser subordinados imediatos ao diretor-
médico e aos dicos assistentes, obedecendo às suas ordens e prescrições. Em
contrapartida, deveriam exercer o controle e a vigilância sobre o restante do grupo
da enfermagem e, principalmente, sobre os internos por meio do exercício da
constante vigilância e - quando indispensável - da coerção física, conforme descrito
no Regulamento de 1903:
Art. 19° - Aos enfermeiros-chefes compete:
I. Observar assídua e atentamente os alienados, tomando nota de tudo
quanto possa interessar ao tratamento dos mesmos;
II. Assistir à distribuição dos remédios e dos alimentos;
III. Aplicar o tratamento prescrito pelos médicos; socorrer prontamente os
enfermos que carecerem de cuidados imediatos, recorrendo ao Diretor nos
casos graves; aplicar, na ausência do Diretor e dos médicos, quando
forem absolutamente indispensáveis e durante o menor prazo possível, os
meios coercitivos necessários para conter os alienados, de acordo com as
ordens e prescrições do Diretor;
IV. Consignar, em livro especial, todas as ocorrências que se derem com
referência ao serviço clínico, compreendida a aplicação dos meios
coercitivos;
V. Executar as instruções que receberem dos médicos ou do Diretor, com
referência ao serviço clínico;
VI. Manter inteira disciplina entre os segundos enfermeiros, inspetores de
enfermarias e demais pessoal do serviço da seção, que estiver a seu cargo,
e irrepreensível nascio nas dependências (DECRETO N. 1.579A de
21/02/1903 Apud MOORETZOHN, 1989, p. 17-18);
38
Os artigos supracitados atestam à contínua busca de uma hierarquização que,
através da relação entre poder e saber, possa interpelar os enfermeiros-chefes a
assumirem uma posição que reproduza continuamente o lugar da autoridade
médica. Porém, estrategicamente, o corpo do enfermeiro é disposto na linha de
frente do campo de batalha. Nota-se, nas atribuições dos enfermeiros-chefes, uma
série de estratégias e táticas postas em ação para que eles enfrentem tudo aquilo
que a sociedade mineira relegou para dentro da instituição asilar. A regulamentação
da atividade profissional dos enfermeiros-chefes, por meio de normas, requer dos
mesmos a manutenção da ordem de modos superpostos, ora convocando-os a
exercer um controle ostensivo por meio de um olhar permanente, ora interpelando-
os a alimentar os internos, registrando por escrito todos os acontecimentos do asilo.
Entretanto, a Lei vai além. Ela os autoriza ao uso da força, dos meios coercitivos,
que, à época, eram as camisas-de-força, algemas, pegemas
8
, celas-fortes, células e
solitária (FIRMINO, 1982; DECRETO N. 1.579A - de 21/02/1903 Apud
MOORETZOHN, 1989).
Neste contexto, o uso da escrita tornava-se fundamental para garantir que o
fluxo das informações percorresse todo o sistema hierárquico implantado nos
hospícios. Para Foucault, o uso do controle gráfico pode ser compreendido em três
níveis:
primeiro para garantir a notação e o registro de tudo o que acontece, de
tudo o que o individuo faz, de tudo o que ele diz; depois, para transmitir a
informação de baixo para cima, ao longo da escala hierárquica e, por fim,
para poder tornar sempre acessível essa informação e assegurar assim o
principio da onivisibilidade, que é, creio, a segunda grande característica da
disciplina (2006, p. 60).
De modo geral, a estrutura burocrática, esboçada até aqui, destinava-se a uma
população previamente delimitada pelo Regulamento de 1903. População que,
mediante a suspeita de alienação mental, deveria ser submetida a um período
probatório de avaliação, a partir do qual caberia a instituição dizer sobre o seu
destino, como pode ser observado no Artigo 31°:
Art. 3 - Todos os indivíduos que, por atos indica tivos de alienação mental,
tiverem de ser recolhidos ao hospício, darão entrada provisória ao pavilhão
8
Semelhantes às algemas, mas com a função de conter os internos por meio da junção de seus pés.
39
de observação, até ser verificada a alienação. A matrícula se fará 15 dias
depois da entrada salvo o caso de dúvida ainda existente (DECRETO N.
1.579A - de 21/02/1903 Apud MOORETZOHN, 1989, p. 18).
A análise do documento em epígrafe evidência aspectos que estavam
presentes na Lei 290, como a referência às oficinas e ao gabinete eletro-terápico,
permanecendo, além disso, a deliberação quanto ao funcionamento do pavilhão de
observação para os suspeitos de alienação mental, como ratifica o fragmento
transcrito acima. Tal organização institucional seguia a experiência do Hospício de
Pedro II, lugar onde o escritor Lima Barreto esteve internado por duas vezes nas
primeiras décadas do Século XX. No romance Cemitério dos Vivos, Lima Barreto
oferece um importante testemunho de quem conheceu uma instituição total e
disciplinar por dentro:
Estive no pavilhão de observação, que é a pior etapa de quem, como eu,
está por aqui pelas mãos da polícia [...]. Tiram-nos a roupa que trazemos e
dão-nos outra só capaz de cobrir a nudez e nem chinelos ou tamancos nos
dão (2004, p.19) .
O pavilhão de observação é uma espécie de dependência do hospício a que
vão ter os doentes enviados pela polícia, isto é, os tidos e havidos por
miseráveis e indigentes, antes de serem definitivamente internados (2004,
p. 151).
Tal como observado pelo literato no hospício da Praia Vermelha, em Minas
Gerais, a admissão de internos procedia a uma peculiar classificação, porquanto os
distinguia entre indigentes e pensionistas. Tal divisão não se restringia apenas às
diferenças quanto à hospedagem e aos serviços prestados aos internos,
estendendo-se mesmo aos critérios da admissão. Na categoria dos indigentes, a
internação ocorreria por ordem do Secretário do Interior, desde que acompanhada
por uma guia que caracterizasse o candidato a asilado com “nome, filiação,
naturalidade, idade, sexo, cor, profissão, domicílio, sinais físicos e fisionômicos do
individuo ou a sua fotografia, bem como os demais esclarecimentos que puder coligir
em ordem a certificar-se a identidade” (MINAS GERAIS, 1903, apud
MORETZSOHN, 1989, p. 18). Em conjunto a esses dados, deveriam ser expostos os
motivos que justificassem a alienação, bem como atestados médicos - caso
existissem - confirmando a moléstia mental. À autoridade local competiria a
expedição de atestado, assegurando a situação social de indigência do sujeito, bem
40
como seu tempo de residência, que deveria ser superior a seis meses em Minas
Gerais (MINAS GERAIS, 1903, apud MORETZSOHN, 1989).
Quanto aos pensionistas, o requerimento deveria ser feito ao diretor, contendo
os mesmos dados de identificação mencionados, acrescido de um parecer dos
médicos pelos quais o “doente” foi examinado. Neste caso, a reclusão do sujeito
poderia ser solicitada por um grupo maior de pessoas quando comparado à situação
precedente, podendo o internamento ser requerido pelo cônjuge; ascendente;
descendente; tutor ou curador; chefe da corporação religiosa ou beneficente (a que
pertencer o enfermo) e, ainda, pelos seus parentes próximos. Contudo, a efetiva
entrada do enfermo estaria condicionada ao pagamento dos custos relativos ao
primeiro trimestre de internação. Tais custos dependeriam da classe escolhida para
se internar o indivíduo, isto porque a primeira classe abarcava o direito a quartos
individuais, mobiliados, com alimentação especial; a segunda classe dispunha de
quartos duplos, mobiliados e também alimentação especial, enquanto a terceira
classe não oferecia nada além de um quarto comum. Os contribuintes de primeira e
segunda classe poderiam dispor de servente ou criado especial oferecido tanto pelo
estabelecimento quanto pelas famílias, desde que o custo de tais serviços fosse
acrescido ao valor da mensalidade (MINAS GERAIS, 1903, apud MORETZSOHN,
1989, p. 18).
Conforme o Decreto, também o direito a receber visitas estaria atrelado à
condição de indigente ou pensionista do interno. No primeiro caso, as visitas
poderiam ocorrer apenas nos primeiros domingos de cada mês, salvo em casos de
licença extraordinária do diretor. no segundo caso, os parentes ou interessados
poderiam reencontrar seus entes queridos aos domingos ou em dias da semana,
com licença do diretor.
Pode ser observado que o acesso ao hospício era regulamentado de tal modo
que nem todos poderiam ultrapassar os muros da instituição. O acesso aos internos
e as visitas às acomodações ou locais onde os mesmos permaneciam estava sujeito
a autorização ou não do Diretor , conforme o artigo 57°:
41
Art. 57° - As pessoas que desejarem visitar o hospí cio terão entrada
permitida aos domingos e dias feriados, das 11 horas da manhã às 2 horas
da tarde, com permissão do Diretor, e limitar-se-ão a percorrer a parte do
edifício não ocupada pelos loucos. A entrada nas diferentes divisões do
estabelecimento será permitida por licença especial do Diretor (MINAS
GERAIS, 1903, apud MORETZSOHN, 1989, p. 18).
As distintas modalidades de ingresso no mundo asilar, seja como pacientes ou
visitantes, chamam atenção para um importante aspecto problematizado por Celi
Pinto: para a pesquisadora, torna-se notório que muitas vezes “os sujeitos sociais
não são causas, não são origem, mas são efeitos de discursos” (1989, p. 25).
Discursos cuja capacidade de exercer poder está atrelada à sua capacidade de
responder às demandas veiculadas pela sociedade, ou ainda pela capacidade de
compartilhar do conjunto de significados de um grupo, mas com a intenção de
construir outras modalidades subjetivas para revestir os corpos somáticos (PINTO,
1989). Do artigo 57°, pode-se depreender que mais d o que constranger o encontro
dos internos com seus familiares, o discurso enunciado pela letra da Lei promete,
subliminarmente, ocultar do olhar cotidiano aqueles cuja demanda social baniu para
dentro do hospício, tornando possivelmente a instituição asilar algo como um
“Cemitério dos Vivos”, como observou Lima Barreto (2004).
Ainda neste contexto, deve-se levar em conta que o vocabulário de uma
instituição é formado por enunciados articulados em relações de saber-poder
importantes nas análises acerca da significação dos conceitos e categorias que
instrumentalizam as práticas de determinada área de saber. Por conseguinte, a
imprecisão das categorias utilizadas pelo Decreto de 1903, como “pensionistas”,
“indigentes”, “loucos” ou “doentes” obscurece o fundamento epistemológico que
autoriza o seqüestro e a internação de seres humanos. Como conseqüência, o
manicômio pode tornar-se o destino de uma população tão difusa e múltipla quanto
àquela com quem Lima Barreto compartilhou seu tempo de reclusão no Hospício de
Pedro II. Dessa forma, tanto no romance “Triste fim de Policarpo Quaresma” quanto
em “Cemitério dos Vivos” o escritor retrata as tensões sociais existentes no Brasil.
Especificamente, na segunda obra mencionada, o autor denuncia as iniqüidades da
sociedade brasileira através da construção de um breve perfil da população que o
circunda no hospício da Praia Vermelha. Logo, ao descrever uma experiência que
incidiu diretamente sobre sua vida, ele encontrou a sensibilidade necessária para
42
demonstrar como o universo dos rostos reclusos assemelhava-se ao rosto da
grande população excluída de seu país. Em uma das páginas de Cemitério dos
Vivos, pode-se ler a seguinte observação:
Os loucos são de procedência as mais diversas, originam-se em geral, das
camadas mais pobres da nossa gente pobre. São pobres imigrantes
italianos, portugueses, espanhóis e outros mais exóticos, são negros
roceiros, que levavam a sua loucura humildemente [...], são copeiros,
trabalhadores braçais e proletários mais finos, tipógrafos, marceneiros, etc.
(BARRETO, 2004, p. 182).
Por meio de um árduo conhecimento empírico, o escritor reconhece na face de
seus companheiros de hospício aquilo que de algum modo estava previsto pela lei,
ou seja, em um momento anterior à edificação das instituições psiquiátricas, um
instrumento legal que dispõe sobre as condições que legitimam a reclusão,
determinando os grupos sobre aos quais ela recairá, como bem exemplifica o
Decreto n° 1579A. Por conseguinte, ao serem conside radas as observações de
Corrêa (2001), pode-se inferir que junto à institucionalização da medicina, à
cristalização de leis e à organização de espaços especializados no controle da
população por meio da reclusão de seus loucos - está diretamente ligado um jogo
de relações muito mais amplo e complexo, que se destina a gerir e controlar os
seres humanos. Em consonância a esta posição, Silva assegura que “o sistema
judiciário, assim como os sistemas de normalização como a medicina sanitária e a
psiquiatria, fazem parte de um processo comum de emergência da sociedade
disciplinar” (2005c, p. 20), onde o controle de muitos pode ser exercido pela
suposição de um olhar, apenas.
que ser considerado, além disso, que a instituição asilar, de certa forma,
reproduz a organização da sociedade que a demandou. Sobre este aspecto, Corrêa
ressalta que “nossa sociedade se constituiu historicamente como um espaço onde
as desigualdades se expressaram tanto nas leis como nas normas sociais em
vigência desde o período colonial” (2001, p. 56). A favor dessa posição, Eirizik
(2002) afirma que os processos de exclusão devem ser entendidos dentro de uma
cultura, onde confluem tempo e espaço, multiplicando as formas que os dispositivos
de controle tomam ao se misturarem ao tecido social, percorrendo a vida por meio
das instituições. No caso de Minas Gerais, será preciso ponderar que o poder
43
disciplinar, silencioso e discreto das instituições européias, tão bem descritas por
Foucault (1972, 2006), foi exercido nas instituições em questão lado a lado com
certo poder soberano, que não abdicava ao uso da força. Este argumento pode ser
sustentado a partir do enunciado contundente de Corrêa, quando a antropóloga
aponta que as importações teóricas, sobretudo as européias, ganhavam contornos
outros quando em terras tropicais. Dessa forma, ela afirma que, no tocante às
instituições brasileiras, o discurso disciplinar não passou “em muitos casos de uma
retórica afinada aos reclamos da ciência contemporânea, dificilmente posta em
prática em uma sociedade tão indisciplinada” (2001, p. 57). Por último, Corrêa
adverte que a concepção de uma sociedade indisciplinada, com uma origem
corrompida, está subjacente a uma série de tecnologias de controle que perpassam
toda a trama social no momento em que as instituições começam a se organizar no
Brasil.
São essas condições de emergência subjacentes à promulgação da Lei de
Assistência a Alienados, em Minas Gerais, as quais permitiram que, no instrumento
legal, fossem dispostos - em um mesmo artigo - os meios de tratamento e de
manutenção da ordem asilar. Mais especificamente, o Artigo 55°demonstra que
concepção de tratamento permeava as instituições disciplinares à época; ela se
baseava na intenção de moralizar os internos através de práticas que incidissem
diretamente sobre seus corpos, como pode-se verificar adiante:
Art. 55° -Como meio de tratamento e para manutenção da ordem entre os
enfermos, poderá o Diretor recorrer:
. A privação de receberem visitas, passeios e qua isquer outras distrações;
. A reclusão solitária;
. Ao colete de forças e à célula (MINAS GERAIS, 1 900, apud
MORETZOHN, 1989, p. 20).
Com o tempo, será observado que o tratamento moral, em voga nos primeiros
anos da assistência psiquiátrica, no Brasil não produzirá os efeitos esperados no
asilo, nem mesmo conseguirá conter a demanda sempre crescente por vagas no
Hospício de Barbacena. Por este motivo, a partir de 1905, a instituição começa a
sofrer sucessivas ampliações, uma das quais resulta na inauguração, em 1911, de
um anexo em forma de uma Colônia Agrícola, para onde deveriam ser transferidos
os internos aptos à exploração da terra (MAGRO FILHO, 1992). Entretanto, o
44
advento da laborterapia (ou praxiterapia), nova modalidade de tratamento
preconizada naqueles anos, deveria aplicar-se somente aos internos na condição de
indigentes. Essa peculiaridade é apontada por Magro Filho junto à observação de
que a emergência de tal prática de tratamento é concomitante ao desencadeamento
de uma crise financeira que acompanhará a longa existência do hospício. Nesse
sentido, o pesquisador esclarece que o trabalho como meio terapêutico ocorre ao
mesmo tempo em que se torna pública a crise financeira instaurada na instituição.
Conforme atestam os documentos compilados por Magro Filho, em 1916, a
produção da Colônia de Barbacena correspondeu a aproximadamente um terço da
receita da Assistência a Alienados, através do cultivo de gêneros agrícolas, da
produção de peças de vestuário e, também, por meio da construção de estradas que
facilitavam, em contrapartida, o fluxo de novos sujeitos à internação. No ano
mencionado, a contabilidade da produção revela os seguintes dados:
3.521/2 quilos de marmelada, 278 quilos de batata, 3.099 peças de roupa,
consertos de estradas, limpeza de pastos, plantação de 10 alqueires de
milho, 05 alqueires de batata doce, 09 hectares de mandioca, 07 alqueires
de feijão, 05 alqueires de arroz, 04 résteas de alho (MAGRO FILHO, 1992,
p. 40-41).
Para Foucault, o fundamento último da laborterapia assentava-se sobre a
seguinte premissa: “se a inaptidão ao trabalho é o primeiro critério da loucura, basta
que se aprenda a trabalhar no hospital para curar a loucura” (FOUCAULT, 2002c, p.
266). Porém, quando a concepção descrita por Foucault é confrontada com o
considerável montante da produção da Colônia de Barbacena, torna-se
insustentável a idéia de que o trabalho foi utilizado simplesmente como meio
terapêutico com vistas à cura ou à alta hospitalar. Os números apresentados
invalidam também qualquer argumentação no sentido de afirmar que os internos
destinados ao labor agrícola ou às oficinas eram inaptos ao trabalho. O trabalho é
instituído em Barbacena em um tempo posterior à institucionalização dos grilhões ou
dos meios físicos coercitivos; todavia o labor não invalida tais artefatos; ao contrário,
se junta a eles para subtrair do sujeito sua força de trabalho, obrigando-o a participar
do sustento e da manutenção do lugar que o segrega.
45
Em seu tempo de reclusão, em algum sentido, Lima Barreto conseguiu
combater, denunciando por meio da literatura a fragilidade epistemológica do
sistema manicomial que o fez cativo. Mesmo tendo seu corpo capturado, fixado por
dispositivos de coerção que percorrem desde o pavilhão de observação à cozinha,
atravessando indiscriminadamente funcionários e asilados, ele expressou sua
resistência por meio de sua crítica mordaz contra uma maquinaria, que para ele não
realizava nem mesmo o pressuposto das ancestrais instituições européias: de ser
uma máquina de curar. Como atestam suas palavras:
Conheço loucos, médicos de loucos, perto de trinta anos, e fio muito que
a honestidade de cada um deles não lhe permitirá dizer que tenha curado
um só (BARRETO, 2004, P. 64).
É bem sabido que os especialistas, sobretudo de países satélites, como o
nosso, são meros repetidores de asserções das notabilidades européias,
dispensado-se do dever mental de examinar a certeza das suas teorias,
princípios, etc., mesmo quando versam sobre fatos ou fenômenos que os
cercam aqui dia e noite, fazendo falta, por completo, aos seus colegas da
estranja. Abdicam do direito da crítica, de exame, de livre-exame; e é como
se voltássemos ao regímen da autoridade (BARRETO, 2004, p. 138).
Esta passagem clarifica que o desejo de esquadrinhar, vigiar, controlar não
acontece sem oposição, porquanto a existência do poder pressupõe
ontologicamente resistência. Contra os processos de captura e formação de
subjetividades apáticas e adestráveis, insurgem contra-movimentos que buscam a
libertação por meio de linhas de fuga que escapam ao controle - que se pretende
soberano - a qualquer expressão de vida (DUARTE, 2006). Entretanto, o sujeito
também se cansa de colocar-se em contínuo combate, cedendo frente aos sutis
mecanismos de controle impetrados para administrar a vida. No interior de um
manicômio, conforme Lima Barreto, a função da refeição ultrapassa a saciedade das
necessidades fisiológicas ou nutricionais, revestindo-se da capacidade de controlar o
tempo, dando pausas no ócio contínuo que habita a vida enclausurada. Em sua
experiência, parece que de algum modo o ato da alimentação religa-o à vida,
transformando a espera em um momento, mesmo que fugaz, de esperança. Os
fragmentos a seguir demonstram a expressividade do escritor sobre essa vivência
em seu tempo de interno:
Vive-se aqui pensando na hora das refeições. Acaba-se o café, logo se
anseia pelo almoço; mal se vai deste, cogita-se imediatamente o café com
pão; à uma hora volta-se e, no mesmo instante, se nos apresenta a imagem
46
do jantar às quatro horas. Daí até dormir, são as horas piores de passar
(BARRETO, 2004, p. 102).
Para mim, eram as mais tristes horas que passei no hospital, aquelas que
vão da refeição até a hora do sono. Durante as outras, sempre uma
esperança para nos animar e sustentar o espírito: são as das refeições.
Marca-se a vida daquelas horas vazias de que fazer, do ócio obrigado, mas
cheias de dio, por elas, mas depois do jantar, não mais nenhum marco
no tempo que vai correr, senão o duvidoso do instante em que se lhe
concilie o sono. Vem então uma melancolia, que a luz da tarde faz mais
sombria, mais física, mais dolorosa; e o nosso pensamento, quando pára
em alguma coisa, é para os tristes episódios de nossa vida (BARRETO,
2004, p. 222).
Este mesmo relato pode ser um exemplo valioso para se pensar como as
estratégias de poder, nas sociedades disciplinares, podem despojar-se de certas
características negativas e apenas repressoras, tornando-se positivas, produtivas
mesmo (DUARTE, 2006). Produtivas de sujeitos submissos, controlados pelo
arbitrário bater de garfos e tampas de panelas. Controlados, muitas vezes, por um
olhar (su)posto, que age diretamente sobre “as fibras moles de seu cérebro”
(FOUCAULT, 2006, p. 50). Silva, ao revelar a episteme subjacente às diversas
instituições disciplinares operantes na modernidade (escolas, quartéis, oficinas,
prisões ou hospícios), realiza uma importante síntese ao afirmar que o ideal
Panóptico se realiza para além da realidade de uma presença, pois “o que adestra o
sujeito é o fato de que ninguém precisa estar realmente vigiando para que o sujeito
se sinta vigiado. Esta é a grande estratégia da ortopedia social de BENTHAM”
(2005b, p. 54).
Como resultado, o ápice do sistema manicomial, fundamentado pelos
dispositivos disciplinares, ocorre quando o controle do corpo dispensa o uso da
força, do trabalho, ou mesmo de um olhar físico, prolongando-se para o interior do
corpo do sujeito por meio do controle químico à distância; neste momento, o controle
não visa apenas fixar ou governar um indivíduo, ao contrário, quando ocorre o
entrelaçamento entre o poder estatal e o poder médico as estratégias de dominação
são mais ambiciosas, visando à gestão da população, dos homens enquanto
espécie.
47
1.3 Práticas bioquímicas de controle da vida
As primeiras duas décadas da Assistência a Alienados em Minas Gerais têm o
Asilo Central de Barbacena como o destino privilegiado daqueles que, por ordem
das autoridades policiais ou médicas, foram considerados “suspeitos de alienação”
ou “alienados”. Durante este período, as intervenções realizadas na instituição
limitavam-se à contínua expansão de vagas, ou à exploração da mão-de-obra dos
internos, com uma suposta intenção de minimizar a crítica situação financeira do
lugar (MAGRO FILHO, 1992).
Em 1920, Arthur da Silva Bernardes, governador de Minas, manifesta ao
Congresso Mineiro seu descontentamento frente à situação à qual são expostos os
alienados, bem como propõe uma reforma que prevê a reorientação da Assistência
que deveria passar da qualidade de asilo à condição de hospital, portanto, tendo o
tratamento como uma de suas finalidades. Tais inferências podem ser feitas a partir
do seguinte fragmento:
Temos que transformar a Assistência de Barbacena, de simples depósito de
loucos ou asilo-prisão, baldo dos mais elementares recursos terapêuticos,
em um hospital de tratamento, onde os doentes, como nos demais
hospitais, possam recuperar a saúde e a liberdade.
Temos que adaptar e desenvolver a Colônia de Alienados por forma que o
trabalho, clinicamente orientado como elemento de cura e não como fator
econômico, complete o tratamento médico da Assistência, consoante o
ensino dos especialistas (“MENSAGEM”, 1920, apud MORETZOHN, 1989,
p. 27).
Essa passagem confirma que também na percepção de Arthur Bernardes a
recorrência ao trabalho dos “doentes” era, especialmente, uma medida econômica
em favor da instituição. Entretanto, além de constatar a situação atual, o
posicionamento do governador avança ao apontar o restabelecimento da saúde dos
internos como uma meta a ser alcançada; preconiza-se, desta feita, o tratamento -
concomitantemente com a formação local de especialistas no assunto. Esta
mensagem demarca o momento em que o Estado demanda a formalização do saber
e do ensino psiquiátrico, dado que os profissionais que atuavam em Minas Gerais
eram formados, sobretudo, no Rio de Janeiro (MORETZOHN, 1989). Pode-se
considerar, além disso, que o Presidente do Estado está em franca sintonia com as
medidas de saúde executadas em todo o país, especificamente as campanhas de
48
vacinação, o saneamento das cidades, pois ao longo de seu discurso ele redefine as
funções do asilo, ao ampliar o seu público alvo, bem como ao estabelecer
atribuições à Assistência, o que deverá ocorrer além das fronteiras de Barbacena.
Como conseqüência, é autorizada a criação de um pavilhão de observação em
Belo Horizonte, nomeado como Instituto Neuro-Psiquiátrico, estabelecimento no qual
deveria ocorrer, por meio de um convênio com a Faculdade de Medicina, a formação
tanto de alienistas como de enfermeiros especializados no trato da loucura. Durante
a mesma mensagem, mas extrapolando os muros institucionais, o Presidente
expressa a urgência da saúde da população ser defendida; para isso refere-se ao
saneamento do meio rural através dos postos de profilaxia com o intuito de combater
o “mal de chagas e outras moléstias igualmente aniquiladoras que roubavam às
lides sadias e nobilitantes da lavoura tantas energias úteis” (“MENSAGEM”, 1920,
apud MORETZOHN, 1989, p. 28).
A referida “Mensagem” concretizou-se na Lei nº. 778, de 16 de setembro de
1920, Lei que - por sua vez - seria posta em prática pelo Decreto nº. 6.169, de 31 de
agosto de 1922, o qual aprovou um novo “Regulamento de Assistência a Alienados
em Minas Gerais”. Este regulamento traz significativas inovações quando
comparado ao de 1903, sobretudo, por incluir em seu texto a necessidade de
compartimentalizar botanicamente o asilo, separando os internos indigentes em
categorias cada vez mais especializadas, distinguindo-os entre epiléticos e
alcoolistas (MORETZOHN, 1989, p. 31).
A interface entre o crime e a loucura é também objeto da nova regulamentação,
ao passo que se observa a determinação da institucionalização do manicômio
judiciário, ao qual seriam remetidos os “criminosos loucos” e os “loucos criminosos”.
Para os “psicopatas não-alienados”, entretanto, deveriam ser criados meios de
tratamento em todos os estabelecimentos da Assistência; esta última medida
constava na IV Seção do Regulamento intitulada: Profilaxia da Alienação Mental. Os
dois parágrafos subseqüentes dessa seção são de crucial importância para se
entender como a junção entre Estado e a medicina resultou na extensão de
estratégias que ultrapassaram o corpo individual, fixado nos asilos, chegando à
população. Logo, na íntegra do Art. 8°, pode-se ler :
49
Art. - Em todos os estabelecimentos de Assistênc ia poderão ser
instalados, como meio profilático de alienação mental, ambulatórios para
tratamento dos psicopatas não alienados.
§1° - Para o mesmo fim, a Diretoria de Higiene pode rá celebrar acordo com
o Departamento Nacional de Saúde Publica, no sentido de anexar aos
ambulatórios, postos de profilaxia das doenças venéreas, quando nos
lugares não tenham ainda sido fundados.
§2° - Os diretores dos estabelecimentos poderão instituir conferências
públicas, mensais, sobre assunto de eugenia, feitas em linguagem simples
e destinadas a apurar as qualidades da raça, obstando sua degeneração.
Tais conferências ficarão a cargo dos médicos do estabelecimento
previamente designados pelo diretor (“MENSAGEM”, 1920, apud
MORETZOHN, 1989, p. 32).
Os enunciados presentes na letra da Lei expressam os novos domínios
institucionalizados sob a tutela do Estado, onde emergem práticas que pretendem
enfrentar uma série cada vez mais ampla de anômalos, nomeados como alienados,
indigentes, alcoolistas, epiléticos, psicopatas, criminosos loucos, loucos criminosos e
os doentes venéreos. Todavia, não bastava mais extirpar as irregularidades do meio
social, incluindo-as em instituições disciplinares, tornando-se necessárias táticas que
façam com o que a população seja finalmente higienizada e moralmente
aperfeiçoada. Deve-se ressaltar que o Decreto de 1922 encontra as condições de
possibilidade de sua emergência em um contexto onde as idéias eugênicas são
propagadas no Brasil, pela intelectualidade da época presente nos meios jurídicos,
criminológicos e médicos, tendo como um de seus principais divulgadores Renato
Kehl, fundador da “Sociedade Eugênica de São Paulo (1917)” (SILVA, 2005c, p. 80).
Neste período, em contraposição ao alienismo francês, que respaldou a criação de
políticas públicas voltadas para assistência asilar aos alienados, ganha força a
psiquiatria alemã que passa gradativamente a influenciar os psiquiatras brasileiros,
formando uma verdadeira escola no Rio de Janeiro, regida pelo famoso psiquiatra
Juliano Moreira (VENÂNCIO, 2003).
Conforme Venâncio (2003), o interesse dos psiquiatras brasileiros deslocava-
se da formulação de políticas para a realização de pesquisas, estas últimas
espelhadas nas descobertas do alemão Émil Kraepelin, cuja ênfase recaía sobre as
relações de causalidade entre alterações somáticas e distúrbios mentais. O Art. ,
do Regulamento de 1922, demonstra que o entendimento da emergência de uma
nova episteme psiquiátrica - que perpassa o corpo, mas visa à gestão da população
50
- não pode ser dissociado do contexto social, econômico e político onde foi
produzido. Neste sentido, Silva, a partir da análise do imaginário daquele tempo,
situa o contexto no qual foram construídos discursos semelhantes aos da Lei em
questão, demonstrando algumas de suas condições de possibilidade. Para o
historiador, entendia-se naquele período que:
para o Brasil entrar no rumo das nações civilizadas o bastava os avanços
técnicos, os econômicos e mesmo os sociais se, antes, não fosse resolvido
um problema estrutural na concepção da época: o biológico, estrutura da
espécie humana, mutante pelas leis da evolução, mas, de acordo com o
otimismo evolucionista que caracterizou aquele contexto, controlável pelo
próprio homem. Desde que conheçam as leis da hereditariedade, se legisle
a partir delas, se eduque as novas gerações a partir de seus ensinamentos,
se organize o meio onde vive o homem, através da higiene do campo e da
cidade, o homem pode aperfeiçoar a espécie (2005c, p. 81).
Por conseguinte, diversos problemas inerentes à nação brasileira como
imigração de estrangeiros, migração de camponeses, desamparo dos
afrodescendentes pós-escravidão, ou seja, toda ordem de desigualdades é
deslocada para o mundo da natureza, para dentro das células do corpo que ao
serem controladas adequadamente poderiam produzir bons frutos (COSTA, 1989).
Assim, em Minas Gerais, o ideal eugênico prolifera-se sobre um solo que viu grande
parte de suas riquezas serem produzidas por negros africanos na condição de
escravos. Homens que trabalhavam em um período em que a opulência do ouro não
impediu a disseminação da fome decorrente das escassas áreas destinadas à
agricultura; em contrapartida, visando ao aumento do desempenho dos cativos,
nunca faltou água-ardente por aquelas terras. A conseqüente mestiçagem do povo
mineiro e o alcoolismo de boa parte dele, gradativamente, situam-se como
problemas a serem enfrentados dentro e fora do hospício.
O Regulamento de 1922, além de ampliar os poderes do Estado frente ao
combate da degeneração da raça, autoriza e incentiva a iniciativa privada a fundar
estabelecimentos para o tratamento dos alienados, oferecendo subsídios a todas as
“instituições pias” que se voltassem para esta finalidade, como registrado no
Capítulo II, no seguinte artigo:
Art. - 138°- As instituições de caridade que se pro puserem a fundar e
manter anexados aos seus serviços hospitalares, pavilhões destinados ao
tratamento dos alienados em geral ou de certas formas de alienação
51
mental, em particular, o Governo concederá a autorização pedida,
independentemente do pagamento da quota de fiscalização e concederá
subvenção proporcional [...] (“MENSAGEM”, 1920, apud MORETZOHN,
1989, p. 47).
São mencionadas, no decorrer do longo artigo, subvenções proporcionais ao
número de indigentes socorridos, bem como maiores adicionais às instituições que
mantiverem pavilhões “destinados ao asilamento e educação médico-pedagógica
das crianças anormais de inteligência [...]” (“MENSAGEM”, 1920, apud
MORETZOHN, 1989, p. 47). Com estas últimas medidas, o Regulamento pretende
normatizar todo o ciclo da vida, controlando desde as condições de gestação, por
meio da educação, dos casamentos eugênicos, dos exames pré-nupciais, chegando
até ao asilamento precoce das “crianças anormais”; ao incluí-las em instituições
totais
9
, tem-se a ilusão de que o mal não seja disseminado.
A análise da emergência e institucionalização de práticas relativas à loucura e
à anormalidade em geral permite que seja visualizada a sutil sofisticação dos
mecanismos disciplinares, a partir dos quais a disciplina foi integrada e modificada
por uma tecnologia de poder ainda mais complexa, cuja conceituação realizada por
Foucault, em aula proferida no Collège de France, em 1976, é esclarecedora: “a
biopolítica lida com a população e a população como problema político, como um
problema a um tempo científico e político, como problema biológico e como
problema de poder” (2002b, p. 292). Para o filósofo, tais mecanismos
regulamentadores que percebem o homem não mais como ser individual, mas como
pertencente a uma série biológica - parte de uma população - foram consolidados,
em toda sua radicalidade, em terras em que o racismo e a eugenia percorreram toda
a estruturação de um regime político como o nazismo. Entretanto, Silva (2005c)
pondera que, no Brasil, a influência do ideal eugênico não ocorreu de uma forma
uniforme, sem resistências ou adaptações ao gosto local. Deste modo, a influência
germânica, com os pressupostos da psiquiatria biológica, repercute em práticas
largamente utilizadas no meio institucional, consideradas como meios bioquímicos
de intervenção no corpo, ou mais especificamente, terapêuticas que abordavam a
dimensão orgânica do paciente (VENÂNCIO, 2003).
9
Sobre a completa e detalhada análise do que foi conceituado como “instituições totais” ver:
Goffman, 1990.
52
Quando o corpo é percebido como uma máquina e as doenças psíquicas como
decorrências de perturbações inerentes ao funcionamento dessa máquina, a função
do médico torna-se, aos olhos de Nise da Silveira, a de “atuar por meios físicos ou
químicos para consertar enguiços mecânicos”, porém os tratamentos eram
“extremamente agressivos e utilizados para consertar à força a quina doente”
(2001, p. 11).
A partir da segunda década de 1900, ocorre gradativamente a inclusão das
práticas bioquímicas de controle da vida em Minas Gerais; entre elas, métodos que
geravam reiteradas convulsões no paciente, como a piroterapia que provocava um
choque protéico desencadeado pela aplicação intravenosa de ‘Termogênio’. Tal
técnica substituía, em alguns casos, a malarioterapia
10
, que pretendia promover a
recuperação do doente através da inoculação do vírus da malária em seu
organismo. Nesta série, constam ainda a insulinoterapia e a convulsoterapia; no
primeiro caso, as convulsões eram provocadas pela aplicação de insulina nos
internos, enquanto no segundo pela aplicação, também endovenosa, da suspensão
de nfora, sendo substituída, posteriormente, pelo cardiozol (MORETZOHN, 1989,
p. 173).
Em meados da década de 1940, chega ao Instituto Neuro-psiquiátrico de Belo
Horizonte, neste período rebatizado como Instituto Raul Soares, a
penicilinoterapia destinada ao tratamento de pacientes com neuro-sífilis; conforme o
psiquiatra Joaquim Afonso Moretzohn, tratava-se do uso de penicilina em “solução
aquosa para aplicações intramusculares com espaço de 4/4 horas. Os braços e
nádegas dos pacientes tornavam-se um verdadeiro ‘paliteiro’, mas os resultados,
miraculosos” (1989, p. 174). A observação do psiquiatra demonstra que os efeitos
colaterais no corpo dos internos não eram indicativos últimos para a suspensão dos
métodos. Nesse sentido, como apontado por Santos (2005), o coma insulínico
poderia ser uma conseqüência prevista em pacientes diabéticos, porém, em suas
pesquisas, ao menos no Hospital Psiquiátrico São Pedro (Rio Grande do Sul), não
eram realizados testes prévios para a identificação de diabetes entre aqueles que
seriam submetidos ao tratamento. A aniquilação da memória, além da degradação
10
Em obras como a de Moretzohn (1989), Silveira (2001), Santos (2005) encontram-se uma criteriosa
descrição de tais métodos bioquímicos de intervenção no corpo.
53
moral e física do paciente, é apontado por Silveira como conseqüências inerentes à
prática da eletroconvulsoterapia ou eletrochoque, como popularmente conhecido.
Prática amplamente utilizada em Minas Gerais, derivada do pressuposto de Ugo
Cerletti de que, entre a esquizofrenia e a epilepsia, existia uma intrínseca
incompatibilidade. Para o professor de neuropatologia e psiquiatria em Roma, tal
constatação toma a forma de um problema e logo de uma solução, ambos
sintetizados por Silveira nos seguintes termos:
Mas como conseguir que um esquizofrênico apresentasse crises epiléticas?
A luz se fez para Cerletti quando ele visitou um matadouro de porcos em
Roma. Por que o grande psiquiatra teria se sentido atraído a visitar um
matadouro de porcos? Ali ele verificou que os porcos submetidos a choques
elétricos antes de serem abatidos apresentavam crises convulsivas. Foi
uma iluminação às avessas! Cerletti concluiu que se poderia também
provocar no homem uma convulsão, por corrente transcerebral, sem matá-
lo. Assim nasceu, em 1928, o eletrochoque (SILVEIRA, 2001, p. 11).
Tão mortificante quanto o eletrochoque, a lobotomia - ou psicocirurgia - deve
ser incluída entre as técnicas que antecederam ao amplo e, ainda atual, uso dos
medicamentos psicotrópicos ou quimioterapia. Ao serem descritas tais abordagens
orgânicas, torna-se mais compreensível o temor de Lima Barreto dentro do hospício
carioca, como também sua incredulidade nas explicações pautadas na gênese da
loucura ou na sua efetiva cura pela medicina. Ele, negro, boêmio, alcoólatra,
capturado pelo sistema manicomial, mas ainda expressivo em sua obra literária,
deixou para a humanidade um importante testemunho histórico, como expressam
suas palavras:
Todas as explicações da origem da loucura me parecem absolutamente
pueris. Todo problema de origem é sempre insolúvel; mas não queria que
determinassem a origem, ou a explicação, mas que tratassem e curassem
as mais simples formas. Até hoje tem sido em vão, tudo tem sido
experimentado (BARRETO, 2004, p. 44).
Tentou-se de tudo um pouco até difundir-se o uso dos medicamentos,
considerados como camisas-de-força químicas, inaugurando uma fase em que o
controle pode ser exercido à distância, pois a função normalizadora do hospício
passa a ser desempenhada quimicamente no corpo do “paciente”. A calma
alcançada nos hospícios, como aquela calma típica dos aquários observada por
Foucault (2006), desloca-se do meio institucional para o ambiente doméstico, de tal
54
forma que a população dentro ou fora do manicômio torna-se passível da mesma
ação biopolítica. Entretanto, a serenidade intra-asilar, arranjada pela força química,
por vezes é atravessada por raios de violência, pela resistência que se opõe às
mutações do poder (FOUCAULT, 2006). O grito dos insanos é silenciado por um
longo período, entretanto, dentro e fora dos manicômios reverberam a indignação e
a contestação contra a opressão em suas mais distintas formas. Decorrido mais de
um século desde o movimento, o qual culminou na edificação dos hospícios,
delineiam-se outros, entre eles movimentos sociais que lutam pela ampla
redemocratização do país, tendo como ponto de discussão privilegiado a reforma
sanitária brasileira.
55
2. MOVIMENTOS DE REFORMA NO BRASIL: REFORMA SANITÁRIA E
REFORMA PSIQUIÁTRICA
O contexto histórico da Primeira República, compreendido entre 1889 e 1930,
caracterizou-se pelo avanço do controle do Estado sobre a população brasileira por
meio das políticas de saúde. Nessa fase, ocorreram as campanhas contra a febre
amarela e contra peste, nas quais se destaca a ação de Emílio Ribas e Oswaldo
Cruz. Por força da Lei, em 1904, é regulamentada a vacinação compulsória contra a
varíola. Poucos anos após essa ação política, mais especificamente a partir de
1921, torna-se legítimo o uso da força policial para submeter pessoas suspeitas de
serem portadoras da lepra a realizarem o exame diagnóstico. Nos casos em que a
suspeita se confirmava, as autoridades sanitárias poderiam proceder ao isolamento
compulsório dos doentes em colônias ou sanatórios específicos para esse fim
(RISSI JUNIOR, NOGUEIRA, 2002, p. 121). Como observou Foucault (1972), o
mundo europeu estava livre da lepra ainda no século XVIII, enquanto o Brasil,
conforme Rissi Junior e Nogueira (2002), na segunda década do século XX, ainda
estava a realizar sensos leprológicos, com o fim de identificar e isolar os portadores
daquele mal. A imposição da força do Estado, através do uso de seus diversos
aparelhos, torna-se evidente, sobretudo quando se observa a expansão das
instituições manicomiais ao longo da Primeira República, em boa parte dos estados
brasileiros (Resende, 1989).
Vale demarcar que a Primeira República foi caracterizada politicamente como
predominantemente oligárquica, com as unidades federativas capitaneadas por
agentes locais em constante luta por um Estado mínimo e liberal. Entretanto, o
governo centralizador de Getúlio Vargas, entre 1930 e 1945, procurou consolidar -
no Brasil - o ideal do Estado Nacional. Tendo em vista o alcance de tal desígnio, as
políticas sociais serviram à sua liderança como uma grande estratégia para adentrar
o tecido social, espalhando seus pontos de controle pelo território brasileiro. No caso
da saúde, as diretrizes do primeiro governo de Getúlio Vargas primaram em construir
um sistema pautado na verticalização, centralização e setorialização (LIMA,
FONSECA, HOCHMAN, 2006, p. 27). Neste contexto, a complexificação do Estado
com a criação de diversos órgãos como o Ministério da Educação e Saúde, o
Ministério do Trabalho Indústria e Comércio e, posteriormente, o Departamento
56
Nacional de Saúde foi seguida de árdua elaboração normativa. Isso porque se
acreditava que a orientação deveria emanar do órgão central de governo para que
as unidades federativas e, conseqüentemente, os municípios seguissem a mesma
ordem. Desse modo, “ocorreu a elaboração de leis, regulamentos e códigos
sanitários que objetivavam padronizar as atividades dos diversos serviços de saúde
em seus mínimos detalhes, acompanhando o processo de burocratização do Estado
que se intensificava” (LIMA, FONSECA, HOCHMAN, 2006, p. 43-44).
Conforme Santos, o Estado Novo despoticamente governado por Vargas,
inspirava-se nas realidades fascistas européias com o objetivo de implantar no Brasil
um aparelho estatal absoluto, sustentado pelo amplo desenvolvimento da indústria
como uma forma de viabilizar o bem-estar social. Neste solo, tornava-se propício o
franco desenvolvimento das idéias eugenistas, uma vez que o desejo de obter o
pleno controle social era compatível com a aspiração de alcançar o controle da
espécie. Tal análise leva a historiadora a concluir que: “eugenia e Estado novo
combinam...” (2005, p. 81). Silva (2005a) compartilha desse posicionamento ao
afirmar que a década de 1930 foi um marco para a psiquiatria brasileira, porque o
respaldo da Liga Brasileira de Higiene Mental, cujos membros foram eleitos para
cargos legislativos estaduais, amplia o poder coorporativo da psiquiatria.
Em Minas Gerais, a pesquisadora Maristela Nascimento Duarte (1996)
observou um aumento significativo do número de internações nos anos de 1922,
1934 e 1937 no Hospital Colônia de Barbacena; a pesquisadora, no entanto,
denuncia a ausência de fichas de pacientes e informações relativas aos registros de
novos internos no ano da instauração do Estado Novo por Getúlio Vargas,
precisamente em 1937. Neste mesmo ano é inaugurada a primeira instituição
psiquiátrica privada em Belo Horizonte, prática que se repetirá nos anos
subseqüentes em todo o estado de Minas Gerais e por quase todo território nacional
(MORETZSOHN, 1989; RESENDE, 1989). Para Foucault (2002b), o melhor exemplo
de uma intrínseca correlação entre o regime totalitário e as concepções eugenistas
localiza-se na experiência do nazismo. Dessa forma, Duarte (2006) conclui que será
nos regimes totalitários que Foucault irá reconhecer a expressão radical da
biopolítica. Pode-se inferir que o Estado Novo priorizava ações direcionadas ao
57
conjunto da massa, visando a atingir o homem enquanto espécie e não mais
enquanto pessoa humana.
Quanto às diretrizes políticas, pode-se apontar, além disso, que a
heterogeneidade dos municípios brasileiros, com as profundas diferenças regionais
e sociais que lhe são inerentes, foi relegada ao segundo plano em vistas a uma
normatização central e homogênea a ser executada de forma descentralizada.
Paradoxalmente ampliou-se a ação do Estado nos espaços micro políticos do
território brasileiro, ao passo que as lideranças municipais foram destituídas da
possibilidade de construir arranjos locais implicados com a realidade da região e dos
homens que ali constroem suas histórias.
Em 1945, Getúlio Vargas é derrubado pelo Congresso Nacional e logo, no ano
seguinte, é promulgada uma nova Constituição, fato antecedente ao processo
eleitoral que conferiu o lugar de presidente da República a Eurico Gaspar Dutra.
Após 15 anos de governo autoritário de Vargas, o país atravessou uma temporada
de quase duas cadas nas quais as ações de saúde foram discutidas dentro e fora
dos aparelhos de Estado. Entre 1945 e 1964, a luta pela saúde e pela erradicação
das doenças surge atrelada a um discurso cuja tônica é o desenvolvimento do país.
A idéia da miscigenação da população brasileira, vista até a década de 1920 como
uma estigma de sua inferioridade, é suplantada gradativamente pelo pressuposto de
um povo doente, sobretudo o rural, que precisava ser tratado e não excluído. Nesse
ambiente, as relações entre pobreza e doença ganhavam outra perspectiva quando
se pensava na transformação social e política do país (LIMA, FONSECA,
HOCHMAN, 2006).
Apesar de não existir uma posição única quanto à equação saúde
desenvolvimento, posto que alguns atores sociais acreditavam que o primeiro termo
era uma condição necessária para o segundo, enquanto outros postulavam que
somente o desenvolvimento poderia conferir condições dignas de existência à
população, ocorreu significativamente, em 1953, a criação do Ministério da Saúde e
“o deslocamento das discussões e do processo decisório para o legislativo e para a
esfera política”, atos fundamentais para “incorporação irreversível da dimensão
58
político-partidária à definição de políticas para o setor” (LIMA, FONSECA,
HOCHMAN, 2006, p. 51). Surge, portanto, a partir de 1950, um novo olhar para a
importância dos municípios no cenário nacional, junto com a imagem de que a mão-
de-obra doente precisa ser recuperada. Admite-se, além disso, a importância da
estrutura de cada sociedade no sentido de garantir - ou o - condições de saúde
aos seus membros.
2.1 Democracia: condição de possibilidade para a saúde ser direito do cidadão
e dever do Estado
Neste cenário a Conferência Nacional de Saúde (3ª CNS), realizada em
1963, é apontada como um marco histórico quando se observa a discursividade em
torno do tema da saúde dentro de uma arena mais ampla, a qual almejava a
democratização do país com as reformas sociais necessárias. Cabe ressaltar que
“os principais pontos da CNS eram a rediscussão da distribuição de
responsabilidades entre os entes federativos, uma avaliação crítica da realidade
sanitária do país e uma clara proposição de municipalizações dos serviços de
saúde...”, entretanto, o entusiasmo gerado neste processo de discussão “foi
abortado três meses depois pelo golpe militar de 31 de março de 1964” (LIMA,
FONSECA, HOCHMAN, 2006, p. 54-55).
Os articuladores do golpe militar de 1964 justificaram tal ato alegando a
necessidade da ordem social e política do país ser restabelecida, juntamente com o
realinhamento da economia. Em conseqüência disso, foi instaurado um regime
político, autoritário e auto-centrado, que reprimiu diversas formas de articulação e
manifestação política da sociedade civil. Isto ocorreu por meio do fechamento dos
canais de comunicação entre Estado e sociedade, extinção dos partidos políticos,
cassação dos mandatos dos parlamentares, além da crescente exclusão econômica
de grande parte da população brasileira (EDLER, ESCOREL, NASCIMENTO, 2006).
A partir de 1969, o governo exercido pelo general Emilio G. Médici acentua as
características de um mando autoritário e brutalmente repressivo, agressivo também
nas atitudes para retomar o controle inflacionário e o crescimento econômico do
59
país; esta fase ficou marcada pelo chamado “milagre econômico brasileiro”, milagre
este distribuído desigualmente entre a população. Pesquisadores como Edler,
Escorel e Nascimento atestam que, nesse período, “pelo menos metade da
população economicamente ativa estava fora do mercado de trabalho formal,
portanto, sem acesso a qualquer direito previdenciário” (2006, p. 60). Ao estar
excluído do mercado de trabalho, o sujeito via-se relegado a um grande desamparo,
pois as políticas públicas implementadas pelo governo militar provocaram uma clara
cisão entre assistência médica e saúde pública, dessa forma o direito à assistência
médica era assegurado àqueles cujo trabalho formal garantia assistência através de
institutos de aposentadorias e pensões. Crianças, idosos, donas-de-casa,
trabalhadores informais e toda a população indígena do país eram percebidos como
um grande encargo que o Estado deveria assumir (PAULIN, TURATO, 2002).
A Primeira República (1889) tornou-se reconhecida também por desencadear
um intenso projeto sanitarista, como um verdadeiro plano de Estado, ao passo que o
período posterior à mesma é caracterizado como uma fase de sucateamento do
setor público no que tangencia as ações sanitárias (LIMA, FONSECA, HOCHMAN,
2006; MERHY, ONOCKO, 1997). Todavia, é preciso estar atento às estratégias do
governo militar, porque após os anos de 1964 acontece uma ampliação do número
de leitos no país, especialmente leitos psiquiátricos; porém, ao ser analisado o
momento em questão, evidencia-se um processo de intensa privatização da
assistência médica institucional. No que se refere à assistência psiquiátrica, o
processo de privatização dos leitos é denunciado pelo médico Luiz Cerqueira como
uma verdadeira ‘indústria da loucura’ (CERQUEIRA, 1989), sobre este tempo Paulin
e Turato afirmam que:
o período foi marcado pelo crescimento, não apenas numérico como
também político, dos setores privados. Tal força política emergente se
concretizou com a indicação, em 1968, de Leonel Miranda, grande
proprietário de leitos psiquiátricos no Rio de janeiro, para a pasta de saúde
no governo Costa e Silva. A filosofia que se tentou impor na administração
de Miranda, por meio do Plano Nacional de Saúde, refletia uma proposta
radical de privatização da assistência médica, eliminando-se o setor próprio
de serviços médicos previdenciários, cujas instituições seriam repassadas
aos produtores privados. Ao Estado caberia somente o papel de financiador
(2004, p.6).
60
Torna-se notório que o projeto de Leonel Miranda centrava-se totalmente na
privatização dos serviços médicos; tal proposição refletia o alinhamento do governo
com a elite nacional, principalmente no que a recorrente tentativa de privilegiar os
privilegiados (MERHY, ONOCKO, 1997). O período de transição, entre as décadas
de 1960 e 1970, consolida a mercantilização da saúde provocada pela ditadura
militar e a instauração da burocratização do Estado. Este aspecto foi lucidamente
apontado por Madel Therezinha Luz quando a pesquisadora conclui que “os
interesses contraditórios enraizados no solo político brasileiro manifestam-se com
muita intensidade nas políticas de saúde, na medida mesma da importância histórica
destas políticas para a própria consolidação da Ordem” (1994a, p. 133).
Tal consideração nos indica que o poder estatal não pode ser entendido como
algo apenas verticalizado, que se exerce ao se impor o que é permitido e o que não
o é. Ao contrário, todo poder é produtivo e plural, sendo exercido através das
relações, de práticas distintas e com certa capacidade de transfiguração e
complementaridade, ou seja, “o poder se em um conjunto de práticas sociais
constituídas historicamente, que atuam por meio de dispositivos estratégicos que
alcança a todos e dos quais ninguém pode escapar, pois não se encontra uma
região da vida social que esteja isenta de seus mecanismos” (DUARTE, 2006, p.
47). No entanto, Duarte insiste na potência do ser ao asseverar categoricamente:
“onde poder resistência” (2006, p. 48). Frente a tal pressuposto, pode-se
inferir que as eleições de 1974 garantiram à população um importante meio para
manifestar seu repúdio e sua oposição contra todas as táticas ditatoriais e de
aniquilamento da vida. Retornava, além disso, ao debate intelectual a intrínseca
relação entre desenvolvimento e saúde, conforme ratifica a seguinte passagem:
Foi nesse momento, ainda, que começaram a ganhar visibilidade estudos e
pesquisas que demonstravam os efeitos maléficos do modelo de
desenvolvimento adotado no país para a qualidade de saúde de amplos
grupos populacionais e, ao mesmo tempo, o caráter irracional e perdulário
do sistema de saúde (EDLER, ESCOREL, NASCIMENTO, 2006, p. 62).
As diversas formas de repressão e controle do homem, típicas das sociedades
disciplinares caracterizadas por Foucault, visam, em alguma medida, à produção de
corpos dóceis e úteis, com a conseqüente produção de subjetividades facilmente
adestráveis, ou melhor, sujeitos que reproduzam o sistema (ROMAGNOLI, 2006).
61
Contudo, a historiografia brasileira atesta que a ditadura militar encontrou resistência
ao seu autoritarismo e às múltiplas tentativas de uso do equipamento público para
extinguir física e moralmente um imenso contingente de pessoas. Sendo assim, o
movimento em prol da saúde pública e da permeabilidade da máquina estatal pela
sociedade civil, iniciado entre os anos de 1945 e 1964, começa a rearticular-se ao
longo da década de 1970. Tal acontecimento tornou-se conhecido como movimento
sanitário, cujo enfrentamento pautava-se em primeiro lugar por um posicionamento
político-ideológico, como assegura Eugênio Vilaça Mendes (1999). Esta perspectiva
é compartilhada por Edler, Escorel e Nascimento que percebem no movimento
sanitarista uma aspiração maior de transformação que abarcava a toda a estrutura
social do país e não apenas uma simples realocação de recursos no setor da saúde;
segundo os pesquisadores,
O pensamento reformista, que iria constituir uma nova agenda no campo da
saúde, desenvolveu sua base conceitual a partir de um diálogo estreito com
as correntes marxistas e estruturalistas em voga. A reformulação do objeto
saúde, na perspectiva do materialismo histórico, e a construção da
abordagem médico-social da saúde pretendia superar as visões biológica e
ecológica do antigo preventivismo (2006, p. 64).
A mobilização em prol de uma profunda mudança epistemológica e
metodológica - acerca tanto das concepções de saúde quanto das práticas
relacionadas à vida e, fundamentalmente, à oposição ao governo militar têm como
um dos marcos fundamentais a formalização do Centro Brasileiro de Estudos de
Saúde (CEBES) e a revista Saúde em Debate. Essas propostas foram apresentadas
por David Capistrano e José Rubens “em 1976, no encontro nacional da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência em Brasília” (CAMPOS, 2006a, p. 130).
Ambas as experiências apresentaram-se como dispositivos importantes de reflexão,
articulação e mobilização entre os intelectuais comprometidos com a causa da
redemocratização, destacando-se dentre eles o nome do sanitarista Sérgio Arouca,
como uma importante liderança tanto no campo intelectual quanto na prática política
militante (CAMPOS, 2006a). Em linhas gerais, o movimento sanitário caracterizava-
se como:
constituído principalmente por médicos e intelectuais de formação
comunista, socialista e liberal, e originado nos Departamentos de Medicina
Preventiva das faculdades de medicina, o movimento sanitário influenciou o
mundo acadêmico e atuou como liderança do processo de reformulação do
62
setor saúde. Exercia uma forte crítica à antiga abordagem estritamente
biológica da medicina e discutia a prática da medicina numa perspectiva
histórico-estrutural, pela qual se buscava apreender as relações entre saúde
e sociedade (EDLER, ESCOREL, NASCIMENTO, 2006, p. 62).
Como uma das condições de possibilidade para a emergência do movimento
sanitário pode-se apontar o gradativo declínio do regime militar. Observa-se que o
período compreendido entre os anos de 1974 e 1985 representa um processo de
progressiva abertura política do país, ou melhor, um intervalo de tempo que
compreende desde a posse do general Ernesto Geisel, em 1974, até o final do
último governo militar, em 1985, comandado pelo general João Figueiredo. Neste
ínterim, em 1975, Geisel decretou o fim da censura à imprensa e, em 1977, o
ministro da justiça pôde negociar com diversos segmentos da sociedade civil a
intenção do governo de promover um processo de abertura política controlado, neste
sentido: “lento, gradual e seguro” (EDLER, ESCOREL, NASCIMENTO, 2006, p. 66).
Nesse momento de negociações, destacam-se dois movimentos da Igreja Católica:
a Conferência Nacional dos Bispos (CNBB) e as Comunidades Eclesiais de Base
(CEBS), juntamente com organizações laicas como a OAB e a Associação Brasileira
de Imprensa. Reorganizaram-se, ainda nesta cada, o movimento estudantil, o
movimento pela anistia, o novo sindicalismo, além da consolidação do
mencionado movimento sanitário (EDLER, ESCOREL, NASCIMENTO, 2006).
Frente ao repúdio popular às iniciativas militares, o governo Geisel (19741979),
buscando legitimar sua permanência no poder, lançou o II Plano Nacional de
Desenvolvimento, cujas diretrizes priorizavam ações no campo social, mais
especificamente, na área da educação, saúde e infra-estrutura de serviços urbanos.
Entretanto, tal iniciativa ofereceu as condições de possibilidade para que agentes
contrários à política estatal, em voga, adentrassem o espaço institucional, isto
porque o governo militar:
não tinha quadros para ocupar todos os espaços abertos e terminou por
criar espaços institucionais para pessoas de pensamento contrário, senão
antagônicos, ao dominante em seu setor. Por esta brecha, lideranças do
movimento sanitário entraram na alta burocracia estatal, na área da saúde e
da previdência social (EDLER, ESCOREL, NASCIMENTO, 2006, p. 66).
A possibilidade de militantes do movimento sanitário adentrar a estrutura
estatal permitiu o desenvolvimento de ações focadas nas necessidades das
63
comunidades mais empobrecidas, democratizando o acesso à assistência a saúde
(EDLER, ESCOREL, NASCIMENTO, 2006).
Luz identifica a década de 1980 como um momento histórico ímpar para o
Brasil, período durante o qual ocorreu a convergência de diversos esforços para
criação de um Estado democrático. Segundo ela, “foi durante essa década que a
sociedade brasileira passou a considerar, em sua maioria, que a saúde é um direito
de cidadania, e que certas ações políticas de estado foram nessa direção” (1994a, p.
131). Ao analisar a década em epígrafe, a pesquisadora afirma a ocorrência de dois
acontecimentos marcantes: o primeiro deles consiste na emergência do tema ‘saúde
como direito civil’ na discursividade de diversos segmentos da população brasileira,
o outro acontecimento remonta à percepção social dos trabalhadores como os
principais provedores dos sistemas de saúde, em vistas aos descontos em folha e
aos impostos pagos por cada um.
Convergente com esta posição, GERSCHMAN (1995) aponta que o tema da
saúde sempre foi recorrente nos movimentos populares, mas seu aparecimento
enquanto um tema central e articulador de diversos movimentos em prol de uma
mesma luta é algo que na história brasileira ocorreu na transição dos anos de
1970 para 1980.
Em 1985, a eleição indireta de Tancredo Neves demarca o final da era militar,
porém a rápida morte do presidente eleito confere a José Sarney a missão de
conduzir o país em sua fase de redemocratização, nomeada como Nova República.
Cabe ressaltar, neste contexto, a grande influência dos governadores eleitos, entre
1982 e 1986, “pois José Sarney, além de não ter sido eleito diretamente pelo povo,
era muito identificado com a ditadura militar” (COSTA, 2004). Nesta fase, diversas
lideranças do movimento sanitário são escaladas para posições estratégicas em
instituições estatais responsáveis pela formulação e implementação de políticas
públicas na área da saúde brasileira. Sérgio Arouca assume a presidência da
Fundação Oswaldo Cruz e, em 1986, preside a VIII Conferência Nacional de Saúde,
“considerado o momento mais significativo do processo de construção de uma
plataforma e de estratégias do movimento pela redemocratização da saúde em toda
sua história” (EDLER, ESCOREL, NASCIMENTO, 2006, p. 77).
64
2.2 VIII Conferência Nacional de Saúde e a consolidação do discurso da saúde
como direito civil.
Realizada em Brasília, a VIII Conferência Nacional de Saúde reuniu mais de
4.000 participantes entre profissionais da área da saúde, instituições atuantes no
setor, bem como representantes dos usuários do sistema de saúde brasileiro,
através da presença de diversos segmentos da sociedade civil organizados em
movimentos sociais, partidos políticos e representantes das categorias profissionais
(GERSCHMAN, 1995; LUZ, 1994a).
O Relatório da VIII Conferência consolida as principais discussões que
ocorreram nos três dias de Conferência, cujos principais eixos temáticos foram:
“Saúde como Direito, Reformulação do Sistema Nacional de Saúde e Financiamento
Setorial” (RELATÓRIO FINAL DA CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE. In:
CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 8, 1986, p. 381). Nessa ocasião ocorreu
um amplo debate quanto à necessidade de ser reformulado o conceito de saúde
enunciado aentão; isso porque a idéia de saúde enquanto ausência de doença foi
percebida como reducionista, medicalizada, conveniente apenas aos prestadores
privados de assistência médica (LUZ, 1994a). Extrapolou-se a noção de uma
medicina curativa, pensando na necessidade da União garantir políticas que
promovam, protejam e recuperem a saúde de seus cidadãos, a partir de um novo
modo de se compreender os processos de saúde-doença, como bem expressa o
fragmento do Relatório Final da Conferência Nacional de Saúde, onde pode-se
ler:
1-Em seu sentido mais abrangente, a saúde é a resultante das condições
de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho,
transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a
serviços de saúde. É assim, antes de tudo, o resultado das formas de
organização social da produção, as quais podem gerar grandes
desigualdades nos níveis de vida (1986, p. 382).
A passagem acima demarca a influência do legado do marxismo histórico e,
em certa medida, dos pressupostos foucaultianos na luta pela superação do modelo
biomédico hegemônico, que insiste em medicar o corpo, sem considerar as diversas
forças contraditórias que atuam sobre o mesmo (BEZERRA JR, 1994). Para
65
Campos, essa problematização não é recente; ao contrário, ainda em 1800 “Engels
traça um paralelo entre as condições de vida da classe trabalhadora e a ocorrência
de doenças, mortes e agravos, concluindo que as condições de vida interferem
diretamente na produção da saúde, associando pobreza e injustiça com doença,
morte e degradação da dignidade humana” (2006b, p. 111). Ao tornarem-se visíveis
algumas das influências teóricas que subsidiaram o processo de luta pela
redemocratização da saúde no Brasil, torna-se plausível o argumento de que a luta
pela reforma sanitária caracteriza-se como um movimento de cunho eminentemente
político-ideológico, não se reduzindo a uma proposta meramente reformista ou
incrementalista (MENDES,1999). A radicalidade do movimento está, em seu nítido
posicionamento, em defesa da vida (MERHY, ONOCKO, 1997), em contraponto aos
seculares processos de alargamento das desigualdades e democratização da
pobreza impostos ao povo brasileiro. Essas inferências podem ser elucidadas por
meio da leitura das seguintes passagens:
2- A saúde não é um conceito abstrato. Define-se no contexto histórico de
determinada sociedade e num dado momento de seu desenvolvimento,
devendo ser conquistada pela população em suas lutas cotidianas.
3- Direito à saúde significa a garantia, pelo Estado, de condições dignas de
vida e de acesso universal e igualitário às ações e serviços de promoção,
proteção e recuperação da saúde, em todos os níveis, a todos os habitantes
do território nacional, levando ao desenvolvimento pleno do ser humano em
sua individualidade (RELATÓRIO FINAL DA 8ª CONFERÊNCIA NACIONAL
DE SAÚDE. In: CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 8, 1986, p. 382).
A reformulação do conceito de saúde era uma condição necessária para ser o
principal orientador da reestruturação do Sistema Nacional de Saúde, porque - ainda
na VIII Conferência - postulou-se a urgência de ser criado o “Sistema Único de
Saúde (SUS)”, com a intenção de que este viesse a atender toda a população
brasileira de modo descentralizado e eqüitativo. Estados e municípios são
convocados a assumir grande parcela de responsabilidade no que tangencia a
estruturação de dispositivos que oportunizem à população o acesso aos diversos
níveis de atenção à saúde e, ainda, aos dispositivos de participação e controle dos
mesmos. A inovação da participação dos usuários pode ser entendida como uma
tentativa de construir uma ampla estrutura democrática, conforme o conceito
proposto por Gerschman: “denomino de estrutura democrática a capacidade
reprodutiva da democracia, ou seja, a capacidade de o governo e a sociedade virem
a autogerar comportamentos políticos democráticos” (1995, p. 25).
66
Tal estrutura democrática encontra as condições para sua emergência
quando o coletivo passa a apreender a idéia de saúde como um direito. Conforme
Fuerwerker (2005), essa foi a grande potencialidade do movimento em prol da
reforma sanitária, pois ele conseguiu convergir forças de tal modo que a luta pela
saúde e pela democracia mobilizou diversos segmentos do país. Porém, tais
pressuposições precisam ir além do discurso, constituindo-se em práticas; para isso,
no entanto, precisam ser inseridas na Carta Magna da Nação. Sobre este aspecto é
contundente o Relatório da VIII CNS, como pode ser observado na passagem a
seguir:
A efetivação das propostas da 8ª Conferência Nacional de Saúde e a
continuidade do processo de discussão sobre a questão da saúde devem
ser asseguradas através do aprofundamento das teses debatidas e do
estudo dos temas específicos, como forma de subsidiar a Assembléia
Nacional Constituinte e criar as bases para uma Reforma Sanitária
Nacional. Os participantes da Conferência Nacional de Saúde propõem,
com essa finalidade, a criação do Grupo Executivo da Reforma Sanitária
composto por Órgãos governamentais e pela sociedade civil organizada, de
forma paritária. Cabe ao Ministério da Saúde a convocação e constituição
do referido Grupo, segundo os critérios aqui propostos (1986, p. 388).
A Nova República (1985-1989) é marcada por fatos importantes para a
constituição de um novo discurso e de novas práticas relacionadas à saúde e aos
direitos sociais. Após a Conferência, em epígrafe, é constituída a Assembléia
Nacional Constituinte e, em 1988, a nova Constituição da República Federativa do
Brasil traz em seu texto vários dos princípios propostos em prol de uma Reforma
Sanitária Brasileira (LUZ, 1994a). Portanto, a nova Carta Constitucional do Brasil
proclama o país como um Estado Democrático, onde “a saúde é um direito de todos
e dever do Estado...”. Tal inscrição encontra-se consagrada no artigo 196 do referido
instrumento legal (BRASIL, 2005, p. 141). Posteriormente, a Lei 8.080, de 19 de
setembro de 1990, regulamentou os serviços de saúde em todo o território nacional,
consolidando os princípios doutrinários e administrativos do SUS. Neste ano
também é decretada e sancionada a Lei 8.142, de 28 de dezembro de 1990, que
“Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde
(SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na
área da saúde e dá outras providências” (BRASIL, 1999a; BRASIL, 1999b, p. 1).
67
Por outro lado, Gerschman argumenta que mesmo com a regulamentação da
Reforma Sanitária na Constituição Federal, com os conseqüentes desdobramentos
em Constituições Estaduais e leis Orgânicas Municipais, pode ser observado que o
poder de proposição de políticas públicas foi maior que a capacidade de
implementação das mesmas. Para a pesquisadora criou-se “uma situação sui
generis, como a de ter conseguido plasmar apenas na Constituição o que deveria
ser a política de saúde no país” (1995, p. 137). Tal posicionamento aponta a
distância, que por vozes ocorre, entre a proposição de uma política pública e sua
conseqüente implementação, processos inerentes ao sistema político de qualquer
país. As políticas públicas são, afinal, ações de governo ou o governo em ação, na
tentativa de responder às demandas diversas provenientes da vida social, por
conseguinte, no jogo político entram em cena interesses diversos, que por vezes
dão rumos distintos ao que determina a lei.
Maria Eliana Labra observa que na “neodemocracia” brasileira o SUS
representa um importante marco - quando se considera a mudança estrutural
ocorrida no país a partir da Reforma Sanitária. Entretanto, a pesquisadora
reconhece a intrincada e difícil implementação do sistema (1999, p. 162). Costa, por
sua vez, ao analisar as bases políticas do federalismo no Brasil, com as inerentes
relações entre governos, afirma que “apesar dos problemas que enfrenta, como falta
de recursos e conflitos com a rede privada, o SUS é um exemplo bem sucedido de
cooperação intergovernamental” (2004 p. 180).
Especificamente no campo do atendimento psiquiátrico, que passa
gradativamente a ser redefinido como campo da saúde mental, todos os
acontecimentos de contestação à Ordem, ocorridos especialmente a partir da
segunda metade do século XX, foram de primordial importância para abalar as
práticas e estratégias de controle e exclusão solidamente fundamentadas sobre as
grandes estruturas manicomiais. Nesse sentido, a constituição de uma nova
discursividade, a permeabilidade da sociedade civil no aparato estatal, a
reestruturação da legislação brasileira e, fundamentalmente, a criação do SUS são
algumas das condições de possibilidade para que aconteçam a proposição de
práticas descentralizadas, territorializadas e inseridas na comunidade, como por
exemplo, a estruturação dos Centros de Referência em Saúde Mental no município
68
de Betim - Minas Gerais, ao longo da década de 1990, além da regulamentação de
toda legislação em saúde mental que demarcará - na letra da Lei - uma nova
orientação sobre o tratamento do sofrimento psíquico a partir do século XXI
(ZENHA, 2001).
Vale sublinhar que os movimentos instituintes, no campo da saúde mental, que
marcam a transição do culo XX para o século XXI, devem ser entendidos como
produções cujas condições de emergência remontam às lutas e embates travados
entre profissionais da assistência psiquiátrica, intelectuais, atores da sociedade civil,
familiares de usuários e usuários do sistema, como também representantes tanto do
Estado como da oligarquia da saúde
11
. Essa rie de acontecimentos tornou-se
historicamente conhecida como Reforma Psiquiátrica.
2.3 Quanto mais democracia se tem, mais democracia se quer: os porões da
loucura e a luta pela Reforma Psiquiátrica no Brasil
O movimento social pela Reforma Psiquiátrica brasileira configura-se como um
dos acontecimentos inscritos no seio das manifestações articuladas em prol da
redemocratização do país, na transição dos anos de 1970-1980. Neste período de
embate à organização política do país, as críticas às instituições ganham espaço
nas arenas de discussão, este fato acontece porque as instituições passam a ser
entendidas como permeadas por normas, regras, estruturas e, principalmente,
interesses (CAMPOS, 2001). Ainda neste contexto, os variados discursos
decorrentes do movimento pela Reforma Psiquiátrica condensavam a contestação e
a crítica às diversas formas de opressão e controle do homem; contudo a instituição
manicomial constituiu-se como seu principal alvo de luta, por ser um local onde,
historicamente, se condensam ou se superpõem uma multiplicidade de estratégias
repressoras.
11
Segundo Luz “a oligarquia da saúde pode ser caracterizada, quanto à sua composição, por
proprietários de grandes empresas médicas, hospitais e clínicas médicas, grupos financeiros ligados
aos serviços médicos destinados às empresas e ao público em geral; grandes indústrias de
equipamentos médicos, nacionais e internacionais; empresas multinacionais de produtos
farmacêuticos; finalmente, os médicos liberais mais bem situados na escala profissional, defensores
de uma ideologia privatista em relação aos serviços de saúde” (1994a, p. 134).
69
Acontecimentos em países estrangeiros, como a Psicoterapia Institucional,
proposta por Tosquelles, na França, em 1940; a Comunidade Terapêutica
organizada, em 1943, no Reino Unido, por Bion e Rickeman, bem como os
pressupostos da antipsiquiatria - veiculados por David Cooper e Ronald Laing
começam a repercutir, no Brasil, em um momento de franco declínio da ditadura
militar (DESVIAT, 1994). Junto a estas experiências, as pesquisas de Michel
Foucault, Gilles Deleuze, Felix Guattari, Erving Goffman, Robert Castel e, ainda, o
advento da psiquiatria democrática liderada por Franco Basaglia, em Gorizia e,
posteriormente, em Trieste (ambas as cidades italianas)
12
, compõe parte do cenário
político-ideológico que mobilizou diversos atores brasileiros a empreender uma luta
contra a ‘indústria da loucura’, estabelecida, no Brasil, a partir das medidas
privatizantes oriundas do regime militar (BEZERRA JR, 1994).
Após a Segunda Guerra Mundial, ocorre no plano internacional, uma série de
denúncias relativas aos danos subjetivos causados àqueles que são submetidos à
reclusão em organizações manicomiais semelhantes aos hospícios brasileiros. Isto
porque os sujeitos permanecem “reclusos numa estrutura que impõe a supressão da
liberdade, o afastamento do convívio sócio-familiar, a inflexibilidade das regras, o
distanciamento hierárquico, a suspensão das negociações, o anulamento dos atos
(...), a suspensão de direitos” (FÓRUM MINEIRO DE SAÚDE MENTAL, 2004, p. 7).
É preciso observar que a inflexão do regime militar favoreceu tanto a
introdução de referências estrangeiras às arenas de discussão do país, como por
exemplo, as noções mencionadas acima, mas - principalmente - o fim à censura
permitiu a exposição das chagas provocadas pelas medidas estatais. Deve-se notar
que o movimento em prol da Reforma Psiquiátrica desenvolveu-se em um momento
próspero, posto a precedência dos acontecimentos que culminaram no movimento
social pela reforma sanitária brasileira.
12
Sobre a experiência de Franco Basaglia torna-se esclarecedora a leitura de: BASAGLIA, F.
(Coord.). A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1985.
70
A partir dessa época, a histórica aliança entre o Estado
13
e as práticas
psiquiátricas começa a ser problematizada, pois gradativamente esta aliança passa
a ser percebida como um encontro estratégico, a partir do qual derivam diversas
medidas biopolíticas de controle da vida, conforme conceituado por Foucault na obra
O Poder Psiquiátrico (2006). Conseqüentemente, concebe-se as relações de poder
e saber como totalmente implicadas nos discursos e nas práticas que produzem,
não existindo qualquer sentido essencial ou natural; ao contrário, trata-se tão
somente de construções humanas, por isso mesmo históricas. No caso da loucura,
são produzidos estudos que abalam os fundamentos epistemológicos da psiquiatria
e a hegemonia do saber médico que por décadas se encarregou de livrar as cidades
de “seus loucos”. Estes estudos postularam que a loucura “é, antes de tudo,
construção política e teórica, institucional e científica” (LUZ, 1994b, p. 89). Observa-
se que quando a “loucura” deixa de ser entendida como uma resposta psíquica de
uma disfunção biológica ou quando se tem a percepção de que a mesma não é uma
mera conseqüência do meio social (LUZ, 1994b), insere-se a discussão em um outro
plano, em um plano político.
Mais do que reconstituir cronologicamente todos os aspectos envolvidos no
movimento pela Reforma Psiquiátrica no Brasil, trata-se de ir em busca de certos
acontecimentos cruciais que favoreçam o entendimento da emergência de uma
discursividade - que se pretende nova - quando se trata das práticas, discursos e
políticas públicas em torno da loucura. Desse modo, torna-se pertinente citar a
delimitação mencionada por Paulo Amarante (1995), quando o pesquisador nomeia
como “crise da Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM)
14
o ponto de eclosão
do referido movimento.
Segundo Amarante (1995), a crise deflagrada na DINSAM, em 1978, pode ser
entendida como um momento de ruptura com o silêncio e a negligência à qual
estavam submetidos tanto os profissionais quanto os internos das unidades
13
O conceito de Estado, neste estudo, baseia-se nos pressupostos de Luz, conforme a socióloga - no
sentido mais restrito - o conceito de Estado refere-se ao “conjunto de seus aparelhos institucionais,
repressivos e ideológicos. Estes aparelhos incluem tanto a escola, o hospital, como o cárcere, a
polícia, a lei, a norma – forma do discurso institucional – e os Ministérios” (1994b, p. 87).
14
A DINSAM era um órgão estatal responsável pela formulação de políticas públicas em saúde
mental, sob seu controle estavam o Centro Psiquiátrico Pedro II, Hospital Pinel, Colônia Juliano
Moreira e Manicômio Judiciário Heitor Carrilho, todos no estado do Rio de Janeiro (AMARANTE,
1995).
71
hospitalares deste setor estatal. Neste ano, três residentes assumem os riscos de
registrar no livro de plantão do pronto-socorro as irregularidades de todo Centro
Psiquiátrico Pedro II
15
. Segue-se a este fato uma mobilização entre diversos
profissionais da DINSAM e externos a ela, que não apóiam a atitude dos
residentes - que como tantos outros trabalham em condições irregulares - como
também articulam reuniões e discussões junto aos integrantes do CEBES e do
Movimento de Renovação Médica (REME). Na ocasião, é organizada uma greve
cujo desfecho normativo foi a demissão de 260 trabalhadores. Entretanto, as
demissões o conseguem extinguir o movimento que, aos poucos, organiza-se
como Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM). O MTSM é
apontado como um articulador fundamental para o processo em desenvolvimento,
uma vez que tem a capacidade de inserir, em uma lógica de equivalência, tanto as
questões de cunho trabalhista quanto a demanda humanitária, condensando-as em
uma reivindicação em conjunto contra a instituição manicomial. Ao analisar a
trajetória desse movimento Amarante relata que:
A pauta inicial de reivindicações gira em torno da regularização da situação
trabalhista visto que a situação dos bolsistas é ilegal aumento salarial,
redução do número de excessivo de consultas por turno de trabalho, criticas
à cronificação do manicômio e ao uso do eletrochoque, por melhores
condições de assistência à população e pela humanização dos serviços. Ou
seja, reflete um conjunto heterogêneo e ainda indefinido de denúncias e
reivindicações que o faz oscilar entre um projeto de transformação
psiquiátrica e outro corporativo (1995, p. 52).
Na passagem acima, Amarante ressalta claramente a vastidão das
reivindicações do MTSM; todavia, talvez neste aspecto encontra-se uma possível
chave para a compreensão da habilidade agregadora deste movimento, bem como a
capacidade de inserção de seu discurso em espaços, até então, marcadamente
conservadores, no que tange ao discurso e à prática psiquiátrica. Segundo Pinto
(1989, p. 36), “um discurso exerce poder pela identificação, pela adesão
espontânea”. Nesse sentido, pode-se inferir que a amplitude dos questionamentos
veiculados pelo MTSM consegue abarcar uma série de demandas da sociedade,
naquele contexto específico, de tal forma que a interpelação de atores tão distintos
15
Conforme Oliveira, após o golpe militar de 1964 o Hospício Nacional de Alienados (Hospício de
Pedro II até a Proclamação da República) passa a ser nomeado como Centro Psiquiátrico Pedro II,
como uma forma de negação aos ideais republicanos. Entretanto, em 2000, com a municipalização
da instituição ela torna-se: Instituto Municipal Nise da Silveira (2001).
72
torna-se possível. Outro ponto importante, relativo à configuração deste movimento,
remonta à conexão do mesmo com outros grupos que já mantinham uma forte
posição política e militante, como é o caso do CEBES e do REMES. Tais
organizações congregavam diversos atores implicados não com a reflexão
intelectual, mas também com a militância política, o que os tornava importantes
difusores de pesquisadores cujo cerne de suas indagações era a questão do poder,
como por exemplo, Karl Marx e Michel Foucault (BEZERRA JR, 1994).
Ainda, em 1978, dois grandes eventos favorecem a articulação de diversos
atores em prol da Reforma Psiquiátrica. O primeiro deles refere-se ao V Congresso
Brasileiro de Psiquiatria, em Camboriú, SC. Evento historicamente organizado de um
modo conservador, mas que, neste ano, desdobra-se em uma série de discussões
distintas do esperado. A introdução de novos problemas e reflexões é uma
conseqüência da mobilização realizada por vários militantes antes do episódio.
Quanto ao segundo evento, trata-se do I Congresso Brasileiro de Psicanálise
Grupos e Instituições, no Rio de Janeiro. Nesta última ocasião, estão presentes
Franco Basaglia, Felix Guattari, Robert Castel e Erving Goffman, pensadores que
decididamente contribuem para que as discussões confluam para um plano
eminentemente político, aspecto essencial para o “engajamento das novas gerações
de psiquiatras, psicólogos e outros profissionais da área na direção da reforma”
(BEZERRA JR, 1994, p. 176).
Nesses eventos, a presença de Franco Basaglia, devido à sua experiência
transformadora na Itália, aquece as discussões, oferecendo subsídios teóricos para
novas pesquisas, além de contribuir para a interpelação de novos sujeitos
identificados com a causa. Também Michel Foucault estivera no Brasil se
posicionado contra todas as formas de tortura e enclausuramento da vida
(AMARANTE, 1995; BEZERRA JR, 1994).
Em 1979, ocorre, em São Paulo, o I Encontro Nacional dos Trabalhadores de
Saúde Mental e, em Belo Horizonte, o III Congresso Mineiro de Psiquiatria - este
último organizado pelos residentes do Instituto Psiquiátrico Raul Soares (VAN
STRALEN, 2001). O cartaz de convocação deste evento contém a fotografia de uma
mulher caída ao chão, paciente do “Raul Soares”, e a inscrição dos artigos e
73
da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao que dizem respectivamente:
“ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano e
degradante”; “Ninguém será arbitrariamente preso ou detido ou asilado”. Nesta
oportunidade, são realizadas diversas denúncias pelos psiquiatras Halley Bessa e
Francisco Paes Barreto (FIRMINO, 1982, p. 34).
O III Congresso Mineiro de Psiquiatria contou com a presença de Robert Castel
e Franco Basaglia (VAN STRALEN, 2001). Este último percorreu boa parte das
instituições manicomiais mineiras, o que favoreceu em muito o acesso da imprensa
a estes locais. Quanto ao impacto das imagens presenciadas por Basaglia, o
jornalista Hiram Firmino faz a seguinte descrição:
Horrorizado com o que viu e não acreditava mais existir no Brasil, Basaglia
comparou o Hospital “Galba Veloso”, de Belo Horizonte, onde é feita a
triagem de todos os doentes mentais do Estado, via INAMPS, a uma
“cadeia pública”. Chamou os médicos psiquiatras e enfermeiros do
estabelecimento de “carrascos” e seus diretores de “carcereiros”. Quanto ao
manicômio de Barbacena, Basaglia classificou-o como “um campo de
concentração nazista” (1982, p. 11).
Quando Basaglia compara às macro-instituições psiquiátricas de Minas Gerais
(que foram construídas sobre a mesma matriz epistemológica das demais
instituições deste gênero no país) aos campos de concentração nazistas, ele faz
mais do que uma contundente denúncia quanto à precariedade das instalações
locais: ele convoca à cena uma das grandes catástrofes provocadas pela pretensão
humana, cujo subsídio maior foi o discurso da ciência. De algum modo, o genocídio
dos judeus praticado pelos nazistas ainda permanece no imaginário coletivo.
Portanto, quando o mesmo é evocado, parece existir a intenção de convocar os
brasileiros a barrarem a reedição de uma tragédia conhecida, lembrando ainda
que a mesma está posta em movimento, através da segregação em manicômios
de milhares de homens, mulheres e crianças por todo o território nacional.
Nesse momento, faz-se necessário retomar alguns aspectos da Assistência
Psiquiátrica, em Minas Gerais, no contexto em que se articula o movimento pela
Reforma Psiquiátrica. Deste modo, ao ser apresentado um panorama geral da
situação da rede de serviços psiquiátricos no estado, tornar-se-á mais
compreensível a realidade que se pretende transformar.
74
2.4 Abrindo outros porões da loucura: o itinerário público da loucura em Minas
Gerais
Em Minas Gerais, ainda em 1979, o Secretário da Saúde do Estado, Eduardo
Levindo Coelho, concede a Hiram Firmino e à fotógrafa Jane Faria o acesso aos
hospitais psiquiátricos da Fundação Hospitalar de Minas Gerais (FHEMIG)
16
. Como
resultado, no dia 16 de setembro de 1979, o jornal Estado de Minas anuncia a série
de reportagens: “Nos Porões da Loucura”, através das quais passa a ser descrito o
“itinerário público da loucura” no estado mineiro. Trajeto que, àquela época, era
iniciado no Hospital Psiquiátrico Galba Veloso e dividia-se em poucas opções:
Instituto Raul Soares
17
, clínicas psiquiátricas particulares estabelecidas na capital e,
por fim, o Hospital Central e o Hospital Colônia de Barbacena. Cabe mencionar que
as clínicas privadas reivindicavam avidamente os pacientes, pois junto aos mesmos
seguiam os recursos públicos que financiavam suas internações. Esta afirmação é
ratificada pelo neurologista Novantino dos Santos Filho (diretor do “Raul Soares” e
ex-diretor do “Galba
18
”), quando indagado por Hiram Firmino sobre as pressões
sofridas pelo diretor do “Galba Veloso” na triagem dos pacientes, momento no qual o
destino dos mesmos é decidido. Conforme Novantino: “as clínicas particulares
sustentam-se à custa dos loucos do INAMPS. E Vivem reclamando mais doentes”
(FIRMINO, 1982, p. 38).
O Hospital Psiquiátrico Galba Veloso tornou-se, a partir de 1969, a porta de
entrada prioritária a todos os que requeressem ou fossem encaminhados a qualquer
tipo de tratamento psiquiátrico em Minas Gerais, ou seja, tratava-se de uma
assistência centralizada no paradigma hospitalar e distante da região de origem da
grande maioria das pessoas que residiam fora da capital do estado e da região de
Barbacena (MORETZSOHN, 1989). Segundo Firmino (1982), os pacientes que
chegavam ao “Galba Veloso” eram rapidamente atendidos em uma pequena sala
anexa à portaria; em seguida, eram encaminhados ao Posto de Sedação e,
16
Órgão responsável por todos os hospitais estatais (psiquiátricos ou não) no estado de Minas
Gerais.
17
17 Os Instituto Psiquiátrico Raul Soares foi inaugurado em 24 de agosto de 1924 (MORETZSOHN,
1989), ao passo que o “Galba Veloso” fora inaugurado em 25 de janeiro de 1961 (FIRMINO, 1982).
18
“Raul Soares e Galba” refere-se ao modo como popularmente são nomeados estes hospitais em
Minas Gerais.
75
posteriormente, a uma das enfermarias, subdivididas em: Ala dos Neuróticos, Ala
dos Psicóticos, Ala dos Alcoólatras, Ala Mista e Ala das Mulheres Neuróticas e
Epiléticas. Atendendo aos regulamentos da Assistência Psiquiátrica, ali também se
encontrava uma ala para pensionistas. A descrição das alas para pacientes
conveniados com INAMPS ou com a Polícia Militar e Rodoviária em nada se
assemelha à asserção de Foucault (1987) de ser o Hospital, depois do século XVIII,
uma máquina de curar. Talvez a intenção de disciplinar a instituição e obter o
controle por meio da disposição dos corpos dos internos e, conseqüentemente,
através da vigilância de todos os seus atos, ocorresse - no caso da rede psiquiátrica
da FHEMIG - mais eficazmente pelas características intrínsecas aos arranjos
arquitetônicos de seus manicômios, do que propriamente por um olhar que
pousasse sobre os que ali habitavam. Conforme veiculado pelo jornal Estado de
Minas, o “Galba” resumia-se a:
Um jardim florido na frente. Uma seqüência de pátios ensolarados, tipo
alçapões de cimento, ao fundo. Muros acinzentados de até cinco metros de
altura. Nenhuma área verde no interior, nenhuma sombra, um banco para
se sentar. Sequer uma peteca, uma bola, um cigarro para fumar. Apenas
uma única salinha de praxiterapia. Enfermarias escuras e fétidas. Homens e
mulheres transmutando seus problemas, piorando da doença. Neuroses,
psicoses e ausência de amor reunidas em dormitórios comuns. Nenhum
médico nos ambulatórios, nas enfermarias ou nos pátios... (FIRMINO, 1982,
p. 15).
Na ocasião da presença do jornalista, os internos do referido hospital
demonstram a total iniqüidade a qual estão expostos, seja através da nudez de
muitos deles, seja por meio da indicação da ausência dos chuveiros ou quaisquer
recursos para o cuidado de si e de sua higiene pessoal, pois inexistiam sabonetes e
toalhas. Entretanto, as queixas maiores recaem sobre a impossibilidade de
estabelecerem contatos com seus familiares. Apontam, além disso, as transferências
arbitrárias para as clínicas particulares e, ainda, a prevalência da medicação a
despeito de quaisquer necessidades do ser humano, como a fome. A este respeito é
contundente o apelo de um interno: “Eles obrigam a gente a tomar remédios em
jejum. A gente tem de engolir os comprimidos com água, antes do café. Às oito e
meia isso, pensa bem?! A gente de barriga vazia, morrendo de fome” (FIRMINO,
1982, p. 20).
76
que ser ressaltado que os pacientes não-pagantes ou considerados
indigentes não eram submetidos ao período de 72 horas mínimas para “controle,
medicação e avaliação” (FIRMINO, 1982, p. 24), sendo levados diretamente para o
Instituto Raul Soares, o segundo estágio público da loucura: “único refúgio, além de
Barbacena, de todos os loucos pobres do Estado. Os mendigos e os bêbados sem
Instituto, nome ou endereço” (FIRMINO, 1982, p. 33).
Ao chegar ao “Raul Soares”, Hiram Firmino logo percebe que se repetem as
mesmas cenas de horror, reproduzindo-se as estratégias de confinamento de seres
humanos em pátios de cimento, sem qualquer atividade ou perspectiva de saída. O
diretor da instituição com poucas palavras define ao jornalista a finalidade daquele
hospital: “Atender a todo paciente indigente do Estado. Os pacientes agudos que
não têm INAMPS”. Em seguida, ele explicita sua percepção sobre o lugar cuja
direção está a seu comando:
Isso aqui é um inferno. Aqui vem gente doida de todo o País. Não sei o que
acontece. Ou se eles gostam do tratamento que recebem aqui. Mas a
polícia dos outros Estados põe os seus doidos nos ônibus e os despacha
para cá. Todo mundo, essa é a verdade, quer vir para este hospital
(FIRMINO, 1982, P. 36).
No ato da entrevista, o hospital contava com 386 pacientes internados, entre
homens e mulheres e um adolescente, cuja média de reinternações girava em torno
de 55%, mesmo com a utilização em massa de tratamentos extremamente
agressivos, conforme os avalia Silveira (2001), como é o caso dos medicamentos,
do eletrochoque e da lobotomia, além dos meios coercitivos. O dico-historiador
que se dedicou a retratar os fatos importantes do “Raul Soares” despoja-se de toda
a parcimônia quando pretende exaltar o papel de vanguarda deste hospício, no que
tange à importação de técnicas terapêuticas e ao desenvolvimento de estudos
empíricos, como se observa no relato de Moretzsohn sobre a utilização da
insulinoterapia:
Depois que Manfred Sakel (1900-1957), em Viena, começou a usar a
insulina no tratamento de alguns casos de dependência de morfina,
publicando suas conclusões em 1933 e introduzindo sua técnica em 1936, a
psiquiatria passou a contar com um extraordinário processo de tratamento
para a esquizofrenia, aentão considerada incurável. Em nosso meio, dois
anos depois da comunicação de Sakel, no Instituto “Raul Soares”, o
psiquiatra Nagib Abdo (1910-1952) publicava notável trabalho, no qual
77
demonstrava todo seu conhecimento e sua experiência com o novo
processo terapêutico: “Tratamento da Esquizofrenia pelo choque
hipoglicêmico” (Método de Sakel) (1989, p. 173).
Também quanto ao uso do eletrochoque, Moretzsohn ressalta seu caráter
revolucionário na terapêutica psiquiátrica, como se pode observar em suas próprias
palavras: “este método é usado até hoje e, por vezes, com êxitos verdadeiramente
espetaculares, sobretudo depois que sua técnica foi muito aperfeiçoada graças à
introdução, por A. E. Bennet, em 1941, da narcose e da curarização prévia do
paciente” (1989, p. 174). Esta técnica chega a Belo Horizonte em 1958. Em 1979,
depois de algumas discussões sobre a ética médica, a imprensa consegue
presenciar e relatar à população uma sessão de eletroconvulsoterapia (ECT)
realizada no Hospital Raul Soares. Antes do início da sessão, o funcionário do
hospital descreve ao jornalista o funcionamento do aparelho eletroconvulsor, bem
como o processo que provoca reiteradas convulsões no paciente submetido à
mencionada técnica. Como veiculou o Jornal O Estado de Minas:
Isso aqui é um eletroconvulsor (um aparelho com marcador de voltagem e
duas tomadas, ligadas a dois fios). E isso aqui se chama “ambu”, somente
usado para emergências. Se o paciente tem uma parada respiratória após o
choque, como é comum acontecer, acompanhada de parada cardíaca, aí
temos de lançar mão deste aparelho (uma espécie de máscara nasal e
bucal de sucção). [...] O coração parou mais de 60 segundos, a gente então
lança mão dele. isso aqui é um pedaço de látex, uma espécie de
borracha grossa, que é colocada na boca do paciente. Senão, ele quebra os
dentes, quando o eletroconvulsor for ligado. [...] Nos homens, geralmente
nós aplicamos 120 volts. Nas mulheres, temos que aumentar a dosagem
um pouco. Eu por exemplo, aplico uns 130 volts. A mulher é muito mais
resistente que o homem (FIRMINO, 1982, p. 48).
Após conceder tais informações ao jornalista Hiram Firmino, o trabalhador
prossegue em sua jornada cotidiana. Sob o olhar e temor dos internos, ele, assim
mesmo, obedece à prescrição médica, conforme narra o jornalista:
Teve início a sessão.
O primeiro foi um rapaz ainda, de uns 25 anos, que acompanha a nossa
conversa com os olhos arregalados. O ajudante do aplicador de ECT subiu
literalmente - em cima dele e colocou uma perna em cima de cada braço,
assentando-se sobre sua barriga, imobilizando-o completamente. Passou
um algodão molhado nas duas frontes do paciente, segundo ele para
aumentar o contado e passar maior carga elétrica. Colocou o látex na boca
do rapaz e segurou, firme, com as duas mãos, o seu queixo. O rapaz ficou
olhando para cima, sob o olhar passivo, alheio, dos outros dois pacientes.
O aplicador chegou para trás. Colocou as duas tomadas de uma vez, na
sua cabeça. O rapaz deu um grito. E começou a pular sem parar, na cama.
78
O corpo entrou todo em convulsão. Os olhos pulavam tanto, pareciam que
iam pular das órbitas. Começou a babar e a gemer, enquanto continuava se
contorcendo todo, violentamente.O funcionário segurou seu queixo, por
algum tempo. Depois, virou-o de costas, ainda em convulsão. Uma
secreção branca, espécie de gosma, começou a sair pela boca e pelas
narinas... (1982, p. 48).
Esta mesma cena foi repetida com as outras duas pessoas, que aguardavam
sentadas no chão. Atitudes repetidas, mesmo frente à recusa dos internos. O
jornalista pergunta ao aplicador por que o procedimento o poderia ser realizado
fora do olhar dos próximos da fila, tendo em vista o pavor presente nos semblantes
daqueles expectadores. À indagação, o funcionário responde respaldado por sua
experiência: “tem problema, não. O cabra vem pra cá meio lerdo. Antes de chegar
aqui, ele passou no psiquiatra que prescreveu o ECT. foi devidamente
examinado e medicado para isso. E tem mais: depois que toma o choque, o paciente
não se lembra de mais nada. Nem se doeu” (1982, p. 48).
Nise da Silveira (2001) é contundente ao denunciar o quão degradante são os
tratamentos de choque, tendo em vista que eles provocam a perda da memória
naqueles em que são aplicados. Perder a memória pode significar fugir dos
“fantasmas” por um tempo, mas também pode significar perder os fios, ou perder-se
entre os fios, que vão compondo a história de vida de cada um, com seus nós, laços
e embaraços. Santos (2005), por sua vez, faz uma importante análise acerca do uso
da insulinoterapia, informando inclusive os riscos de morte aos quais são expostos
os pacientes. Historicamente os meios de tratamento eram pouco ou quase nada
diferenciados dos meios punitivos, como atesta o analisado Regulamento que
organizou a Assistência Psiquiátrica em Minas Gerais. Regulamento atravessado
por uma série de enunciados do discurso científico, do discurso político e do
discurso jurídico. Discursos atravessados pela percepção de uma época cujas
conseqüências, em muitos casos, resultaram na composição de uma trama, ou
melhor, de um círculo nada virtuoso cujo efeito era aniquilação do sujeito.
Aniquilação psíquica muito antes que física. Conforme Oliveira (2004), o ponto
crucial dos manicômios localiza-se no fato de sua lógica operante trabalhar com a
porta de entrada sem a porta de saída, ou seja, uma vez preso às conexões do
sistema asilar, as possibilidades de um sujeito se ver livre das mesmas tornam-se
muito reduzidas, em virtude da alta incidência das reinternações. A análise - adiante
79
empreendida por Oliveira - decompõe a dinâmica da clausura, de forma clara e
precisa como pode ser observado:
As práticas oficiais do manicômio são produtos da organização de um
recorte espacial e temporal hierarquizado, normatizador, reduzindo o interno
ao espaço de nulidade e de troca zero na impossibilidade da autonomia.
Não trocas, mas ordens a serem obedecidas. Mesmo o afeto não é
trocado e se, às vezes, doado é por quem está na condição hierárquica
de doar. O interno colocado no local de troca zero é despojado das
possibilidades de afeto e é justificado por estar ali por não possuir laços
afetivos por características da enfermidade. E os labirintos arquitetônicos
com portas, maçanetas, móveis, chaves, grades, longos corredores,
banheiros sem privacidade, camas iguais, pessoas iguais, deambulando em
círculos que não levam a lugar algum e repetem os gestos da fila do
almoço, do remédio, do banho, do deitar, do o-ser, garantem este recorte
espacial e temporal. Conjugação de tempo e espaço que se repete até a
exaustão de se estar “desorientado no tempo e no espaço” (2004, p. 110).
Este modo de entendimento do hospital permite que seja visualizado como o
poder do médico está necessariamente implicado na verdade que ele produz. É
nesse sentido que Foucault fala de “efeitos” produzidos sobre o doente, a partir de
relações assimétricas, desiguais, cujo poder torna-se uma condição primeira para
todo saber, tal como aponta o próprio filósofo, no texto intitulado Casa dos Loucos,
presente em sua obra Microfísica do Poder:
As relações de poder constituíam o a priori da prática psiquiátrica. Elas
condicionavam o funcionamento da prática asilar, distribuíam as relações
entre os indivíduos, regiam as formas de intervenção médica (...). Esse jogo
de uma relação de poder que origem a um conhecimento que, por sua
vez, funda os direitos deste poder, caracteriza a “psiquiatria clássica” (2005,
p. 127).
Foram, portanto, os pressupostos da psiquiatria clássica à qual se refere
Foucault, nomeadamente o alienismo francês, que orientou a edificação do Hospício
de Pedro II. Este último foi molde para a grande maioria dos outros manicômios do
país, como é o caso do Hospício Central de Barbacena
19
, derradeiro estágio público
da loucura em Minas Gerais (FIRMINO, 1982).
Ainda em 1979, a cidade de Barbacena constituía-se como o principal destino
dos “alienados” crônicos do estado, cujos principais encaminhamentos provinham do
“Raul Soares”, ou diretamente dos 72 municípios que formam o entorno de
80
Barbacena, região nomeada como Zona da Mata. Os encaminhamentos diretos
visavam à contenção dos custos decorrentes da triagem dos pacientes em Belo
Horizonte. Naquele ano, o Hospício Central e a colônia agrícola a ela anexa
contavam com 1.360 leitos, entretanto a população interna superava a capacidade
de alojamento, uma vez que, àquela época, os internos estavam divididos entre:
“717 mulheres, 640 homens e 38 crianças”, o que totalizava 1.395 pessoas
(FIRMINO, 1982, p. 52).
A edificação do hospício em Barbacena ocorreu logo nos primeiros anos do
século XX; nas décadas seguintes, deu-se a construção do Hospital Colônia e a
expansão de pavilhões em ambas as unidades. A esse respeito a entrevista
concedida pelo psiquiatra-diretor da instituição em setembro de 1979, José
Theobaldo Tolendal, ao repórter do Jornal Estado de Minas, oferece um importante
testemunho sobre a realidade daquela instituição:
Para vocês terem uma idéia, os nossos pavilhões mais modernos datam de
1940. Esse hospital foi construído em 1903, dentro daquela concepção
psiquiátrica reinante no início do século. Muros altos grossos, pátios no
meio, tipo senzala, onde os doentes ficam confinados (FIRMINO, 1982, p.
52).
Um mil trezentos e noventa e cinco internos, entre homens, mulheres e
crianças. Confinados em pátios de cimentos, cercados por muros que impedem
qualquer contato com o mundo exterior. Para atendê-los, seis psiquiatras, na
proporção de um médico para cada grupo de 200 internos, uma enfermeira formada,
seis atendentes de enfermagem e cento e oitenta funcionários do corpo não-médico.
Números que esclarecem a comparação feita por Basaglia entre a assistência
psiquiátrica prestada em Barbacena e os campos de concentração nazistas.
Comparação que se torna ainda mais eloqüente quando se leva em conta outros
trechos da fala do diretor registrados pelo repórter:
Para cada um de nossos 16 pavilhões, ou seja, para cada 200 loucos, nós
temos duas moças para tomar conta [...].Temos seis médicos para tratar
de todos os casos de doença aqui. Tuberculose, doença de chagas,
verminose etc. [...]. Com muita dificuldade, conseguimos vacinar os doentes
contra a varíola. Isso mesmo, de vez em quando. tivemos casos, e
19
Com o passar dos anos, este estabelecimento foi renomeado como: Centro Psiquiátrico de
Barbacena.
81
eles foram vários, de contaminação geral em quase todo o hospital. Uma
vez, por falta de exame (abreugrafia), descobrimos um pavilhão de 200
pacientes todos tuberculosos. A doença tinha contaminado todos eles
[...]. Aqui não se faz pesquisa alguma. A gente nem sabe de que os doentes
morreram. Às vezes, tem um paciente conversando com você e, de repente,
ele cai para trás, morto. A gente vai ver, ele estava com doença de chagas.
Isso é muito comum aqui (FIRMINO, 1982, p. 53-55).
A passagem acima demonstra que mesmo as funções diagnósticas e
classificatórias, típicas da psiquiatria do século XIX - que transformava os hospícios
em espécies de hortas ou zoológicos - deixaram de ser exercidas em Barbacena.
Também não se pode dizer que, neste contexto, a reclusão fosse recomendada para
que a vontade reta do dico, junto a sua paixão ortodoxa, confrontasse as
vontades perturbadas e as paixões pervertidas dos internos (FOUCAULT, 2005).
Dessa forma, o escritor Lima Barreto que ocupou um dos leitos psiquiátricos
públicos, no Rio de Janeiro, consegue expressar com sagacidade a episteme que
sustentou a prática psiquiátrica brasileira por mais de cento e cinqüenta anos.
Quando se alinha a descrição de uma instituição psiquiátrica estatal e asilar às
anotações de Lima Barreto, realizadas durante seu tempo de internação, os sentidos
de suas palavras tornam-se ainda mais precisos, como pode ser averiguado pelo
próprio leitor: “Amaciando um pouco, tirando dele a brutalidade do acorrentamento,
das surras, a superstição das rezas, exorcismo, bruxarias, etc., o nosso sistema
psiquiátrico de tratamento da loucura ainda é o da Idade Média: o seqüestro” (2001,
p. 69).
Em Barbacena, à segregação alia-se o uso maciço de antipsicóticos, sedativos
e antiparkisonianos, posto que na farmácia do hospital psiquiátrico em questão
encontrava-se junto aos remédios para vermes e diarréias, “prateleiras e mais
prateleiras de Haldol, Neozine, Amplictil e Akineton” (FIRMINO, 1982, P. 61). Para
Foucault a introdução da farmacologia nos hospícios opera dois golpes estratégicos,
em um deles “transforma a sala dos agitados em grandes aquários mornos” e, em
uma ação contínua, faz desaparecer a loucura, instituindo a doença mental (2002c,
p. 219). Logo, doença pressupõe cura. Porém, lembrem-se! Os pacientes descritos
nos manuais de psiquiatria como “crônicos” são aqueles cujas doenças os
acompanharam por toda a vida, tal como aponta Bezerra Jr. na seguinte passagem:
82
De fato, a psiquiatria criou os crônicos, mas não porque fosse pessimista. A
figura do crônico resulta de um “otimismo terapêutico” ilimitado e totalitário.
Conceber o sofrimento psíquico como doença
20
é inscrevê-lo num ideal
normativo de cura, de retorno a um estado universal de normalidade. O
chamado crônico é, porém, uma pedra no caminho desse ideal. Ele é a
testemunha da limitação e inadequação de qualquer vocabulário, de
qualquer rede conceitual que pretenda reduzir o polimorfismo da
experiência subjetiva a um modelo normativo absoluto. Sempre haverá
aqueles que não se encaixam bem, que não se enquadram nas descrições
normativas oferecidas. Quando se define a cura como elemento ordenador
dessas descrições, cria-se automaticamente a figura do crônico como
definição negativa (1994, p. 187).
Se para os “pacientes crônicos” a medicação perdeu a finalidade de cura,
pode-se supor que ela se alinha então às práticas disciplinares, fabricando “efeitos
homogêneos de poder” (FOUCAULT, 1987, p. 167). A medicação, portanto, é mais
uma tática para atingir a todos os corpos, de forma tal que a calma prescrita nos
asilos seja prolongada ao interior do corpo dos internos (FOUCAULT, 2006). Sem
a disciplina, levada às ultimas conseqüências do indivíduo, seria impossível executar
todas as manobras necessárias para alimentar à população do hospital em questão.
Hiram Firmino presenciou o momento do almoço no pavilhão “Crispim Jacques, onde
ficam crônicos, os mais antigos, indigentes, que nunca receberam uma vista sequer”
(1982, p. 59), ao que ele descreve:
A gente se deparou com um campo de concentração, como havia-nos
advertido. Duzentos e sessenta homens reunidos em um pátio de apenas
300 metros quadrados. Dividido em uma parte aberta, cercada por muros
intransponíveis. E outra, um galpão escuro, fétido. Umas mesas compridas
de pedra, eles almoçando. Todos os 260 pacientes nus e sujos. Muito
machucados, sangrando, com feridas pelas pernas, pelos braços. Uma
comida de aparência horrível. Esbranquiçada, servida em pratos de lata.
Apenas colheres. A maioria comendo com as mãos mesmo, de toda
maneira. Obedecendo às atendentes como se fossem meninos (1982, p.
60).
Os refeitórios não comportavam todos os pacientes de uma vez. De modo
que os internos tinham que ser “manejados” em grupos de cem para que todos
comecem. Àquela época eram preparadas 3.000 refeições-dia, por oito funcionárias
incumbidas do serviço de cozinha, que preparavam as refeições tantos dos internos
do hospital-central, quanto do hospital-colônia; para este último, a comida era
conduzida por uma carreta, duas vezes ao dia. Conforme o diretor, faltava à
instituição uma nutricionista e a possibilidade de pagar os fornecedores em dia,
20
Todos os grifos são do autor da citação.
83
chegando as contas a se acumularem por até três meses. Nas palavras do Dr.
Tolendal, a base da alimentação dos internos era semelhante ao padrão do povo
brasileiro, sem nenhum requinte, como se pode observar em suas palavras:
Três mil (refeições) por dia. Gastamos uma média de seis mil dúzias de
ovos por mês. de frango, uns 2.500 quilos por mês. Outro dia veio um
repórter aqui, que depois meteu o pau na nossa comida. Ele disse que não
viu os pacientes comerem nada disso. É que ele não sabe que trituramos
tudo primeiro, e depois misturamos no arroz e no feijão. Daí a impressão
que não damos carne aos doentes. O fato é que não podemos dar talheres
a eles, tipo faca e garfo (1982, p. 52).
A ausência de talheres, como garfos e facas, é justificada pelo risco dos
internos cometerem o auto-extermínio. Cabe mencionar que, nas estatísticas de
Barbacena, o suicídio não parece figurar entre as principais causas de morte. Junto
à carência nutricional e às precárias condições sanitárias das instalações no geral, o
clima da região parece propício a aumentar o comprometimento físico dos internos.
Esta cidade localiza-se em uma das regiões mais frias e úmidas do estado; por
conseguinte, no período do inverno, a incidência de óbitos tornava-se ainda maior
que em outras épocas do ano. Tais fatos esclarecem o porqde Barbacena ter-se
destacado muito antes como uma importante fornecedora de cadáveres (ou
simplesmente peças) às faculdade de medicina, do que como uma região de
reconhecida vocação à promoção, proteção e recuperação da saúde. Segundo
Amorim,
Uma prática macabra e comum no Hospital-Colônia era o comércio de
cadáveres, vendidos para as universidades de todo o Brasil. Eram corpos
de internos indigentes, abandonados pelas famílias, dizem os registros
oficiais. Encontravam, após a morte, a utilidade de se transformarem em
peças para as aulas de anatomia alguns corpos eram cozidos em
caldeirões, muitas vezes na frente de outros internos, para o
aproveitamento dos ossos. Foram 17 universidades que receberam os
mortos de Barbacena e em diferentes partes do país: Pouso Alegre, Belo
Horizonte, Valença, Rio de Janeiro, Santos, São Paulo, entre outras.
Segundo Jairo Toledo, ex-diretor do hospital, apenas nos anos de 1970
foram comercializados 1.853 cadáveres (2006, p. 61).
Dentro de uma instituição total como esta nem sempre a vida e a morte são tão
diferenciadas. Pois, os que ali estão são privados de tudo o que a cultura moderna,
ocidental e urbanizada produziu, pois os internos permanecem em sua maioria
nus, são privados de qualquer possibilidade de propriedade ou privacidade, não
usam talheres, seus nomes são esquecidos. Na morte não ninguém a velar por
84
eles, de modo que o ritual que soleniza a morte é substituído pela radicalidade de
uma ação mercantil, que transforma corpos em peças, corpos em valor monetário.
Na enfermaria infantil, sob os olhares de uma única funcionária, alinham-se
uma série de berços onde as crianças mais crescidas têm seus braços e pernas
pendentes para fora. Crianças cuja expectativa de vida não ultrapassa os 20 anos.
Nas “celas femininas”, mulheres presas entre fezes e urina. Cenas que se
intensificam quando o olhar avança em direção aos pátios, onde a nudez dos corpos
sobre o cimento frio é a cena mais marcante (FIRMINO, 1982). Ao estar literalmente
imerso no fenômeno que descrevia, pois que interno em um hospício, Lima Barreto
conseguiu demonstrar com sagacidade que, apesar de todo o horror, o pior ainda
estava por vir. Dessa forma, ele faz uma advertência sobre existência da “secção de
indigentes, aquela em que a imagem do que a Desgraça pode sobre a vida dos
homens é mais formidável” (BARRETO, 2001, p. 23).
Certamente, o escritor referia-se a uma situação de total miséria análoga a
existente no Hospital-Colônia de Barbacena. Segundo o olhar de Hiram Firmino, tal
recinto era uma espécie de “asilo medieval, de pedra e barras de ferro. Úmido, frio e
indesejável”, onde se encontra o “Pavilhão dos Aleijados”, o que para o repórter foi:
O quadro mais deprimente. Quase 50 homens, 25 mulheres, algumas
crianças, vários velhos. Uns cegos, outros surdos, a maioria dessa gente,
paralítica. Gente suja, mal vestida e nua. Arrastando-se pelo chão, na falta
de pernas, de muletas, de companhia. Promiscuidade, horror visual. Apenas
o sol forte e os muros altos [...]. Gente de todo o tipo, mendigando nada
mais do que a morte, um cigarrinho (FIRMINO, 1982, P. 67).
Estes internos, isolados para não serem pisoteados pelos próprios
companheiros, são semelhantes àqueles que Foucault considerou como o “...
resíduo de todas as disciplinas...
21
(2006, p. 67).
Depois de uma breve passagem pelo “itinerário público da loucura”, em Minas
Gerais, tornam-se mais claros os objetivos da luta por uma Reforma Psiquiátrica no
21
Nas primeiras páginas do primeiro capítulo essa passagem de Foucault é transcrita integralmente.
85
Brasil. Por isso, nesta ocasião, torna-se oportuno ainda tecer algumas
considerações sobre esta história.
86
3. OS ANOS 1980/90 E AS CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE PARA NOVAS
PRÁTICAS EM SAÚDE MENTAL NO BRASIL: O CASO DE MINAS GERAIS
Ao longo da década de 1980, progressivamente, consolida-se o movimento
pela Reforma Psiquiátrica no Brasil. Em Minas Gerais, o Programa de Residência
Médica do Instituto Raul Soares organiza dois seminários para debater o rumo da
assistência psiquiátrica no estado. As propostas decorrentes do segundo seminário
parecem alinhar-se mais com uma tentativa de “reforma” do hospital, do que com
uma busca efetiva de ruptura com o modelo estabelecido. Entre as propostas,
constam “a modificação do espaço físico do hospital (humanização das
enfermarias); contratação de pessoal em todos os níveis; adequação da
remuneração profissional; formação de equipes interdisciplinares com poder de
decisão e execução; separação física entre o ambulatório e o serviço de internação”
(VAN SATRALEN, 2001, p. 11). Os esboços de reforma desencadeados nos
primeiros anos de 1980 em Belo Horizonte são compatíveis com o que preconiza o
Plano do Conselho Consultivo da Administração de Saúde Previdenciária
(CONASP), criado pelo decreto 86.329, de 02 de s etembro de 1981, tendo em
vista a orientação deste último para o desenvolvimento de ações racionalizadoras no
sistema, sobretudo no que se refere à alocação racional de recursos (AMARANTE,
1995).
Entre 1984 e 1985, no caso de Belo Horizonte e seu entorno, as proposições
de políticas públicas no campo da saúde mental vão em direção ao atendimento
ambulatorial, ou seja, à incrementalização da rede e não apenas dos macrohospitais
psiquiátricos. o formulados, nestes anos, respectivamente, “o Plano Operativo
para o Programa Integrado de Saúde Mental a Nível Ambulatorial na Região
Metropolitana de Belo Horizonte e o Programa de Ações integradas em Saúde
Mental Região Metropolitana de Belo Horizonte” (VAN SATRALEN, 2001, p. 13).
Nesta época, a Escola de Saúde Pública do estado se organizava para
especializar profissionais capacitados para sustentar projetos alternativos à gica
manicomial, o que passa a acontecer a partir de 1986 (ESP-MG, 2007).
Em 1986, Belo Horizonte já contava com 24 equipes multiprofissionais de
saúde mental, onde atuavam psicólogos, assistentes sociais e psiquiatras. Neste
87
ano, é alocada a primeira equipe no município de Betim. Tais fatos condizem com a
afirmação de Bezerra Jr. (1994), quando ele aponta que a segunda metade de 1980
destaca-se pela ocorrência de uma expressiva quantidade de propostas de
reestruturação da assistência psiquiátrica no país. Para ele, isto indica que mesmo
com certas diferenças de orientação, pode-se considerar que foi consolidado um
movimento nacional em prol da Reforma Psiquiátrica. Movimento que se fortalecia
com a ocupação de importantes cargos diretivos por seus militantes, pela crescente
produção editorial sobre o tema e, principalmente, pela multiplicidade de encontros
regionais e nacionais onde as questões da reforma ocupavam o centro da arena
(BEZERRA JR, 1994).
Em decorrência da VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, é
convocada a I Conferência Nacional de Saúde Mental, que ocorre em 1987, no Rio
de Janeiro. Nesta ocasião, é estabelecido o claro embate entre os setores
reformistas e conservadores no que tange à assistência psiquiátrica. O setor
conservador, nomeado por Luz como “oligarquia da saúde” (1994a, p.134), institui
como sua representante principal a “Federação Brasileira de Hospitais” (FBH)
(AMARANTE, 1995; ALVES e GULJOR, 2004). Logo na seqüência, ocorre em
Bauru, São Paulo, o II Encontro Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental, onde
estiveram reunidas cerca de 350 pessoas. Tais eventos garantem as condições de
possibilidade para a emergência de um enunciado fundamental que delimitou
claramente os objetivos da luta a essa altura, dado o lema proclamado na cidade de
Bauru: “Por Uma Sociedade Sem Manicômios”. Este acontecimento inscreve o II
Encontro de Trabalhadores como uma grande referência para o movimento pela
Reforma Psiquiátrica, manifestando a radicalidade da negação ao aparato
hospitalocêntrico, legitimado pela psiquiatria e pela percepção de uma época.
Pinto (2006) observa que a sobrevivência de um discurso revolucionário está
diretamente ligada à sua capacidade de desconstruir o seu opositor. Portanto,
quando finalmente decreta-se discursivamente a extinção do manicômio, define-se
precisamente o opositor, como também seus aliados e aqueles que contra o mesmo
estão. Nesse sentido, a Federação Brasileira de Hospitais apresenta-se na arena de
discussões em defesa explicita à oligarquia da saúde, representando fielmente os
88
interesses de uma classe de forte prestígio social, econômico e político, que
pressente ruir sob seus pés as bases de seus grandes templos.
Entretanto, não basta apenas desconstruir o adversário. Para existência de um
discurso que se pretende hegemônico é preciso que novos sentidos sejam
construídos. Sentidos plenos de positividade de uma forma tal que podem se definir
sem referência ao outro (Pinto, 2006). A criação do Centro de Atenção Psicossocial
Professor Luiz da Rocha Cerqueira, na cidade de São Paulo, em 1986, é um bom
exemplo de práticas que são concebidas a partir da atribuição de sentidos que não
têm como ponto de referência o macrohospital psiquiátrico. No plano nacional,
outras experiências marcam este processo de luta pela desconstrução, ao lado da
emergência de práticas inovadoras, como pode ser citada a histórica intervenção
realizada em 1989 na Casa de Saúde Anchieta, na cidade de Santos/SP, e a
reconfiguração da rede de atendimentos naquela cidade (CAMPOS, 2006b). A
respeito desta experiência, Lancetti esclarece que a intervenção ocorreu
especificamente em 3 de maio de 1989, ao passo que, em 1994, a região
dispunha de uma rede de atenção ao portador de sofrimento psíquico inserida no
território, o que rendeu à cidade de Santos o atributo de ser “a primeira cidade
brasileira sem manicômios” (2002, p.14). o pode ser esquecida, também, a
experiência de vanguarda de Nise da Silveira a partir dos anos de 1940, no Rio de
Janeiro. Experiência marcada pela franca resistência à violência dos métodos de
tratamento tradicionais da psiquiatria e pela proposição de outras possibilidades de
acolhimento, àqueles que m suas experiências de vida atravessadas pelo
sofrimento psíquico (SILVEIRA, 2001). No plano legal, o Deputado Paulo Delgado
(PT-MG) apresentou ao Congresso o Projeto de Lei 3.657-D/89. Projeto que para
Bezerra Jr. (1994) significou a concretização na letra da Lei de uma série de
enunciados emergentes do discurso em prol da reorientação da assistência
psiquiátrica. Deste modo, o projeto em epígrafe previa desde a desativação do
aparato manicomial à institucionalização de novos recursos de atenção ao portador
de sofrimento psíquico. Neste projeto de Lei, também estavam previstos a
regulamentação dos direitos das pessoas que estão submetidas ao tratamento
psiquiátrico asilar ou mesmo daquelas que venham a necessitar de alguma forma de
amparo em qualquer tempo da vida. Tal proposição tramitou por muito tempo no
Congresso Nacional, o que por um lado indica a força dos jogos de interesse em
89
perpetuar uma situação existente muitas décadas no país. Por outro lado, a
repercussão da proposta de Paulo Delgado fez com que um número cada vez maior
de pessoas participasse das discussões em torno de seu conteúdo. Depois de várias
alterações, em 2001, é sancionado o referido projeto, tornando-se a Lei Federal
10.216, de 6 de abril de 2001, onde - nas primeiras linhas de sua redação final pode-
se ler: “Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos
mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental” (BRASIL, 2002, p.15).
Torna-se importante ressaltar que no período de tramitação do projeto, que foi
ratificado como uma política pública em saúde mental, consolidava-se a experiência
do Sistema Único de Saúde (SUS) no país. Sistema que parte do principio que a
“saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado”. Devendo a atenção à saúde
ser oferecida de forma universal e descentralizada, conforme sanciona a
Constituição Federal de 1988. É essencial à referência a este contexto, pois - no
intervalo temporal que decorreu entre a proposição do projeto do Deputado Paulo
Delgado até sua regulamentação - o Ministério da Saúde decretou as portarias 189 e
224, respectivamente em 1991 e 1992. Portarias fundamentais para o real
andamento da Reforma Psiquiátrica em curso: estes instrumentos legais
regulamentaram o funcionamento dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e
dos Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS).
3.1 A década de 1990 e as novas políticas públicas em Saúde Mental
A década de 1990 demarca uma nova etapa da história do Brasil e de Minas
Gerais no que se refere à assistência psiquiátrica. Neste período, as mobilizações
sociais em prol da ruptura do modelo manicomial e as contínuas tentativas de
redefinição do conceito de saúde parecem penetrar a máquina estatal, influenciando
a reorientação do sistema de saúde brasileiro. Porém, conforme Labra, é
extremamente complexo compreender o campo dinâmico e mutante das políticas
públicas em saúde, o que se deve ao fato de que:
...cada sistema de saúde, antes de ser o resultado de um desenho
predeterminado, é sobretudo o produto de uma infinidade de confrontações,
transações e ajustes entre a burocracia estatal, a categoria médica, os
90
sindicatos, os partidos políticos, os parlamentares e os poderosos grupos de
interesses que gravitam em torno da indústria da medicina (LABRA, 1999,
p. 134).
Este pressuposto faz um alerta de que a análise das proposições de políticas
públicas no Brasil, no campo da assistência psiquiátrica, deve considerar a crise do
sistema psiquiátrico, as pressões por parte da sociedade civil e da oligarquia da
saúde. Frente a este tensionamento, coube ao Estado a tarefa de enfrentar os
conflitos decorrentes dos embates entre os diversos interesses que entram em jogo
quando a pauta em discussão é a manutenção ou não dos grandes hospitais
psiquiátricos. É possível dizer que as escolhas do passado e os acordos realizados
ao longo de uma grande história induzem, em muitos casos, a produção de
mudanças incrementais, muito antes que mudanças que alterem profundamente as
estruturas e escolhas anteriores, em virtude dos custos que isto resulta (LABRA,
1990).
Nota-se, contudo, que o discurso político, expresso em pronunciamentos ou na
escritura da Lei, nem sempre revela todos os detalhes do jogo político, como, por
exemplo, os acordos ou compromissos firmados. Ao retomar o ordenamento legal e
os regulamentos das organizações que atuam na administração da vida social, tem-
se a possibilidade de problematizar as condições de possibilidade de estruturação
das instituições contemporâneas no campo da saúde mental. Além disso, pode-se
comparar o discurso inerente às proposições políticas (a Lei enquanto texto) com o
discurso dos trabalhadores ou Técnicos de Referência
22
, que são aqueles que
executam a política implementada, levando, de algum modo, a ação do Estado aos
cidadãos brasileiros.
Quanto às novas proposições de políticas da década de 1990, podem ser
destacadas as Portarias do Ministério da Saúde n° 1 89, de 19/11/1991, e 224, de
29/1/1992, as quais preconizam a implementação de uma nova lógica de assistência
aos portadores de sofrimento psíquico no Brasil, o que, por sua vez, incita a
produção de outros discursos. Estas Portarias determinam tanto os princípios
norteadores da nova rede assistencial, quanto os recursos humanos e equipamentos
91
necessários à nova proposta. Sinalizando, além disso, a intenção do Estado em
retomar o compromisso de gerenciar e oferecer diferentes formas de cuidado ao
público em questão. Compromisso que passa a ser compartilhado entre os três
níveis gestores do SUS: governo federal, estadual e municipal (BRASIL, 2002, p.
55).
Deve-se ter em vista que a implementação de uma política pública requer a
clara definição daqueles que serão responsáveis pela sua execução e controle,
como também a fonte de seu financiamento. Sobre este aspecto, a Portaria 189,
de 19 de novembro de 1991, define as novas regras para o financiamento das
internações psiquiátricas, prevendo ainda outros procedimentos que passam a ser
custeados pelo Estado, como o tratamento em psiquiatria em Hospital-geral. Além
desta nova modalidade de atendimento, o Ministério da Saúde institucionaliza, no
mesmo ato legal, os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) e os Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS), definindo recursos para a existência de Hospitais-dia,
realização de oficinas terapêuticas e atendimentos em grupo (ver: BRASIL, 2002, p.
51-55).
Neste contexto, a Portaria 224, de 29 de janeiro de 1992, é concebida como
uma “regra mínima” a ser cumprida em todo país. Vale observar que tal instrumento
legal tem a força de institucionalizar vários enunciados e termos que emergiram ao
longo do movimento pela Reforma Psiquiátrica, definindo a “saúde mental” como um
campo de intervenção que não mais se restringe a assistência psiquiátrica, mas um
campo onde novos serviços e atores serão instituídos em consonância aos
princípios fundamentais do SUS: universalidade, hierarquização, regionalização,
integralidade das ações e controle social (BRASIL, 2002, p. 56).
Conforme os princípios do SUS, os serviços tornam-se abertos, oferecendo
igualmente atendimento a todos os brasileiros ou brasileiras, independentemente de
sua situação trabalhista ou financeira. A hierarquização implica em serviços com
distintos graus de complexidade que vão desde o atendimento ambulatorial, até
22
O discurso dos Técnicos de Referência aqui se refere às falas registradas por meio das entrevistas
realizadas para este estudo. As entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas. O que as
qualifica enquanto textos. A discussão sobre este aspecto será aprofundada nas seções seguintes.
92
internação hospitalar. Conseqüentemente, o princípio da regionalização busca
garantir aos cidadãos que o atendimento às suas necessidades seja prestado em
sua região, dentro de seu território.
A noção de território sugere o mapeamento das localidades com a definição de
áreas de cobertura populacional para cada serviço de saúde. No entanto, esta noção
vai além da simples definição de regiões geográficas, aproximando-se à realidade
das pessoas e ao modo como elas interagem com seus semelhantes e com o
ambiente onde vivem. Neste contexto, o princípio da integralidade ratifica a
concepção de saúde expressa na VIII Conferência Nacional de Saúde, entendendo-
se que não basta pensar a saúde como ausência de doenças, mas que são
imprescindíveis ações e serviços preventivos e curativos, que atuem desde a
promoção à saúde e prevenção de doenças, até a reabilitação do sujeito (BRASIL,
1999b, p. 3). O controle social é demarcado como a participação da sociedade civil
23
nas Conferências de Saúde e nos Conselhos de Saúde, tendo como finalidade a
formulação conjunta de estratégias entre o Estado e os diversos segmentos da
sociedade e o controle da execução da política nos diversos aspectos que isto
implica (ver: BRASIL, 1999b, p. 1-2).
A rede assistencial em Saúde Mental, preconizada pelas Portarias 189 e 224,
abarca diferentes modalidades de atendimento, sendo composta inicialmente por:
Unidades Básicas de Saúde (UBS), Centros de Saúde, Ambulatórios, NAPS/CAPS,
Hospitais-dia, leitos psiquiátricos em Hospitais-gerais e, ainda hospitais psiquiátricos.
Estes serviços são idealizados como descentralizados (espalhados pelo território) e
hierarquizados, no que tange à complexidade do cuidado ofertado. Determinou-se
que as UBS, os Centros de Saúde e os Ambulatórios devem oferecer: atendimentos
individuais - como consultas e psicoterapia; atendimentos em grupo - abarcando
grupos operativos, terapêuticos, grupos de orientação; a realização de visitas
domiciliares, atividades comunitárias, entre outros (BRASIL, 2002).
23
Uma discussão séria e consistente sobre a participação em saúde encontra-se na tese de
doutorado: Entre a Norma Institucional e a Ação Coletiva: Uma Arqueologia da Participação em
Saúde, cujo autor é o sociólogo Marcos Artêmio Fischborn Ferreira (1992) (ver Referências).
93
Conforme a Portaria 224, os NAPS/CAPS e os Hospitais-dia são serviços de
maior complexidade, quando comparados à rede de Atenção Básica; isto porque os
mesmos devem oferecer atendimentos e cuidados de forma intermediária entre o
ambulatório e a internação hospitalar, sendo referência para os demais serviços de
saúde e para os pacientes egressos de internações psiquiátricas. Os CAPS/NAPS e
Hospitais-dia devem dispor de uma maior variedade de recursos e um maior suporte
a ser oferecido aos usuários, como a possibilidade de permanência no serviço por
um ou dois turnos, por um dia ou mais, ou mesmo a permanência noturna quando o
sujeito necessitar de cuidados intensivos. Conforme a regulamentação, estes
equipamentos devem oferecer atendimento individual e em grupo, tratamento
medicamentoso, psicoterapêutico, atividades em grupo e comunitárias, oficinas
terapêuticas, atendimento à família, além do fornecimento de alimentação ao usuário
que estiver em permanência-dia e/ou permanência-noite.
Quanto aos recursos humanos, institui-se a imagem da equipe técnica,
multiprofissional, onde outros saberes e discursos disciplinares passam a interagir
com o saber médico, conforme descreve a Portaria 224:
1.4 Recursos Humanos:
A equipe mínima, por turno de quatro horas, para 30 pacientes-dia, deve ser
composta por:
1 médico psiquiatra;
1 enfermeiro;
4 outros profissionais de nível superior (psicólogo, enfermeiro, assistente
social, terapeuta ocupacional e/ou outro profissional necessário à realização
dos trabalhos (BRASIL, 2002, p. 59).
A existência das equipes multiprofissionais também foi preconizada nos
Hospitais-gerais com leitos psiquiátricos. Esses últimos seguem os princípios dos
equipamentos descritos, com a diferença de que nos mesmos estão previstas
internações por breves períodos de tempo, nas quais devem ser oportunizadas aos
usuários atividades individuais e em grupo, conforme a necessidade de cada um.
Em princípio, a proposição de uma nova lógica assistencial não determinou o
fim dos manicômios, pois as Portarias mencionadas regulamentam a existência dos
mesmos, prevendo formas de custeio e controle das internações. Todavia, são
94
estabelecidas metas para a adequação dos hospitais psiquiátricos especializados,
conforme atesta a transcrição do fragmento a seguir:
4. DISPOSIÇÕES GERAIS
1) Tendo em vista a necessidade da humanização da assistência, bem
como a preservação dos direitos de cidadania dos pacientes internados, os
hospitais que prestam atendimento em psiquiatria deverão seguir as
seguintes orientações:
- está proibida a existência de espaços restritivos (celas fortes);
- deve ser resguardada a inviolabilidade da correspondência dos pacientes
internados;
- deve haver registro adequado dos procedimentos diagnósticos e
terapêuticos efetuados nos pacientes;
- os hospitais terão prazo máximo de 1 (um) ano para atenderem estas
exigências a partir do cronograma estabelecido pelo órgão gestor local
(BRASIL, 2002, p. 64).
As Portarias Ministeriais esboçam um grande desenho estrutural e funcional da
rede assistencial em saúde mental proposta a partir dos anos 90. Quando a análise
desta estrutura é realizada à luz das problematizações de Hillesheim e Guareschi,
torna-se claro que não se trata apenas de um modelo abstrato, mas de “uma
construção discursiva que institui determinadas posições [...], instituindo modos de
ser” (2007b, p. 93). Posições e modos de ser que se formatarão na figura do sujeito-
gestor, do sujeito-profissional da equipe técnica e, é claro, do sujeito-paciente ou,
contemporaneamente, sujeito-usuário portador de sofrimento psíquico. Para
Amarante (2003), a institucionalização do CAPS como um novo serviço não garante
que ele seja inovador, que produza novas práticas para se lidar com a loucura, com
o sofrimento psíquico e a adversidade. Nesse sentido, uma estrutura “nova” ainda
assim pode sustentar velhas formas de se relacionar com o outro, produzindo
posições e modos de ser sob os moldes do velho discurso manicomial.
Observa-se que a proposição do Ministério da Saúde pretende fixar sentidos
que sejam adotados por todo o país; portanto, seguido por muitos, por meio de uma
sutil formação de compromisso que atende tanto aqueles que lutam pelo
estabelecimento de uma nova ordem, quanto aqueles que defendem os interesses
inerentes à “indústria da loucura”, pois não ocorre o rompimento por definitivo com o
antigo sistema psiquiátrico, ordenado em grandes estruturas estatais e privadas.
Contudo, o discurso ministerial torna-se legitimo de ser seguido na medida em que é
expresso por um órgão central do Governo, autorizado pelo povo a isto.
95
3.2 Os paradoxos da legislação em saúde mental: A Lei 11.802
No âmbito federal, as Portarias Ministeriais 189 e 224 ratificaram a posição do
SUS como principal financiador do sistema público de saúde. Foram, portanto,
estabelecidas normas quanto à forma de custeio dos procedimentos realizados em
saúde mental. Nesse contexto, os gestores estaduais e municipais seriam
responsáveis pela implementação de serviços e ações e pela complementação dos
recursos.
Em Minas Gerais, a Lei Estadual 11.802, de 18 de janeiro de 1995, apresenta
diferenças significativas quando comparada à Lei que criou a “assistência a
alienados”, sendo que também revela as tensões que subjazem aos processos de
mudança. Tal inferência aponta para o fato de que o discurso político (como todo
discurso) se estabelece a partir de outros discursos que o precederam, apontando
discursos ainda por vir. Nesse sentido, os discursos não se fecham em si próprios,
mas mantém-se na clara tensão entre o estabelecido e a ruptura (ORLANDI, 2003).
O instituído exerce uma contínua coação para manter-se tal como está; para tanto,
às vezes camufla-se, desloca-se, tentando apresentar-se como uma novidade,
novidade que carrega em si a vantagem de ser conhecida. Assim, quando o
objeto em análise é o discurso da Lei, expresso enquanto texto constata-se - de
modo sutil - que o conflito entre a continuidade e a ruptura deixa-se mostrar através
da própria escritura da Lei, como pode ser apreendido a partir do exame do seguinte
fragmento:
Lei n° 11.802, de 18 de janeiro de 1995
Dispõe sobre a promoção de saúde e da reintegração social do portador de
sofrimento mental; determina a implantação de ações e serviços de saúde
mental substitutivos aos hospitais psiquiátricos e a extinção progressiva
destes; regulamenta as internações, especialmente a involuntária, dá outras
providências (BRASIL, 2002, p. 28, grifos da autora).
Esta lei assinada pelo governo estadual Eduardo Azeredo, do PSDB, é dirigida
aos gestores municipais, aos técnicos de governo que operam a quina pública,
aos proprietários de hospitais psiquiátricos e ao governo federal. Quanto a este
último, ela dirige-se claramente ao mesmo por alinhar-se às proposições do
Ministério da Saúde. Vale notar que o instrumento legal interpela, desde já, os
96
futuros técnicos que passarão a executar a política, junto àqueles que se tornarão o
público alvo das ações e serviços, nomeadamente os “portadores de sofrimento
mental”.
Em Minas Gerais, a Lei 11.802 é inovadora quando inscreve em seu texto o
significante “saúde mental”, aspecto importante quando se observa que o enunciado
“sofrimento mental”, quando inscrito no campo da saúde requer outras formas de
abordagem que não a clausura. Nota-se que ao usar a expressão ‘portador de
sofrimento mental’ a Lei parece romper com as tradições anteriores que percebiam a
“alienação” como diretamente relacionada ao erro e ao desvio moral, passando a
inscrever a “loucura” enquanto dor e padecimento. Paradoxalmente, quando
‘portador’ é anteposto a ‘sofrimento mental’ a recorrência a uma formação
discursiva outra, que não o discurso político. Recorre-se à ordem da ciência que
passa, a partir dos anos de 1980, sob a rubrica do DSM III, a introduzir um novo
modo de realizar diagnósticos em psiquiatria (BEZERRA JR, 2007, p. 26).
Bezerra Jr (2007) observa que a intenção dos criadores do DSM III era a de
construir uma espécie de mapa ou cartografia das patologias psiquiátricas
sustentada por critérios claros, precisos e passíveis de serem aplicados
universalmente. O autor destaca que a difusão dessa abordagem de diagnóstico
trouxe conseqüências que vão além da simples mudança terminológica, isto é, os
diagnósticos passam a ser realizados em referência aos transtornos; logo, os
sujeitos tornam-se portadores do transtorno X ou Y, o que é diferente do sujeito ser
X ou Y. Entretanto, esta abordagem amplia as categorias nosológicas, tornando os
diagnósticos mais simples e generalizáveis para a vida cotidiana, o que pode induzir
à medicalização, muitas vezes indiscriminada, da população.
Inicialmente o enunciado ‘portador de sofrimento mental’ parece compatível
com uma percepção e uma prática que levem em consideração a condição do
sujeito no mundo. Entretanto, Bezerra Jr problematiza a aparência desta idéia ao
assinalar que a noção de transtorno e, conseqüentemente, de portador filia-se a uma
perspectiva que rompe com o método fenomenológico e psicanalítico,
dessubjetivando o sofrimento. Sobre este aspecto, torna-se relevante transcrever a
fala do próprio autor quanto ao uso dos DSM:
97
Existem, no entanto, aspectos problemáticos no seu uso que merecem uma
atenção particular. Em primeiro lugar, ao eliminar a dimensão
fenomenológica e psicodinâmica da experiência subjetiva, a nosografia dos
DSM oferece uma descrição que pouco consegue dizer do sofrimento
daquele paciente diante de nós. No lugar da singularidade da experiência
de um sujeito, temos a universalidade das categorias nosológicas aplicadas
a um indivíduo. Pode-se falar sem exagero de um processo de
dessubjetivação do sofrimento, que uma elaboração acerca da posição
do sujeito frente ao que lhe sucede é muito pouco solicitada. Como
conseqüência torna-se virtualmente nebulosa a discussão acerca das
fronteiras entre o normal e o patológico, que os critérios objetivos usados
para diagnosticar acabam podendo ser aplicados numa extensão quase
ilimitada. sempre um diagnóstico disponível para ser usado em qualquer
situação. [...] O efeito disto é que, com base nesse tipo de diagnóstico, é
quase automático pensar a terapêutica como simples eliminação de
sintomas, numa clínica que bem poderia ser chamada de ortopedia do
cérebro (2007, p. 26-27).
Ao recolocar a questão do diagnóstico (e dos pacientes aos quais ele se aplica)
no fluxo da história, observa-se a formação de um discurso e de uma prática que
foram baseados em uma clínica do olhar (cujo fenômeno se apresenta à
observação) e, posteriormente, em uma clínica da escuta (em cujo cerne está o
inconsciente e a sexualidade). Estas práticas clínicas e discursivas o
desapareceram, ao contrário, mantêm-se vivas em uma ordem que passa a
conectar-se aos “vistos e ouvidos” transtornos do DSM e correlatos (como a
‘Classificação Internacional das Doenças’ - CID). Multiplicam-se os discursos sobre
as patologias do ser e esta discursividade passa a produzir um caráter de verdade,
“principalmente no momento em que este discurso articula os sentidos que produz
sobre os modos de ser e de viver com os saberes dos diferentes campos de
conhecimento já legitimados pela ciência, ou por aquilo de se entende por científico”
(GUARESCHI e REIS, 2007a, p. 8).
O discurso político recorre ao que foi conceituado por Pinto (2006) como
“intertextualidade”, ou seja, a recorrência a outras formações discursivas para
legitimar e lutar por tornar hegemônico o discurso defendido pelo partido que ocupa
o poder. Deve-se ter em vista que de modo distinto à lógica que centrou toda a
assistência psiquiátrica do estado de Minas Gerais na intervenção intra-hospitalar, a
Lei Estadual 11.802 propõe espalhar a assistência por diversos pontos do território,
criando dispositivos com diversas fisionomias no que tange à intensidade do suporte
ofertado. Dessa forma, postula-se a possibilidade de oferecer modalidades de
98
cuidado e atenção que vão desde espaços destinados a atividades artísticas e
culturais, como os centros de convivência, a locais onde o sujeito em crise pode
permanecer por curtos períodos de tempo recebendo atenção intensiva, como por
exemplo, nos Centros de Referência em Saúde Mental (CERSAM). Dentro desta
perspectiva, os lares ou pensões protegidas oferecem um suporte àquelas pessoas
cujos laços familiares foram rompidos devido às longas internações ou mesmo por
questões outras que impossibilitem a convivência com a família ou com qualquer
outro grupo de pessoas no qual existiu algum vínculo.
Esta diversidade de equipamentos e ações está prevista no Art. da Lei em
epígrafe, onde se pode ler:
Os poderes públicos estaduais e municipais, em seus níveis de atribuição,
estabelecerão a planificação necessária para a instalação e o
funcionamento de recursos alternativos aos hospitais psiquiátricos, os quais
garantam a manutenção da pessoa portadora de sofrimento mental no
tratamento e sua inserção na família, no trabalho e na comunidade, tais
como:
I – ambulatórios;
II serviços de emergência psiquiátrica em prontos-socorros gerais e
centros de referência;
III – leitos ou unidades de internação psiquiátrica em hospitais gerais;
IV – serviços especializados em regime de hospital-dia e hospital-noite;
V – centros de referência em saúde mental;
VI – centros de convivência;
VII – lares e pensões protegidas (BRASIL, 2002, p. 28, grifos da autora).
Nota-se que o fragmento transcrito descreve o desenho da nova rede
assistencial alternativa aos hospitais psiquiátricos. Isto sugere o acréscimo de
opções que passarão a ser ofertadas lado a lado ao antigo sistema. Uma rápida
observação da passagem acima poderia levar a crer que se trata de uma construção
discursiva baseada na lógica da equivalência (PINTO, 2006), ou seja, uma gica na
qual a criação de outros sentidos. Uma nova rede territorializada e aberta, por
exemplo, negaria definitivamente os sentidos referentes às grandes instituições de
reclusão. Porém, está presente no discurso legal uma lógica que recomenda a
complementaridade e não a exclusão, acontecimento que ao menos em princípio
esclarece porque na descrição da nova rede assistencial não consta a expressão:
‘recursos substitutivos’, mas “recursos alternativos ao Hospital Psiquiátrico”
(BRASIL, 2002, p. 28).
99
Nos artigos e da Lei 11.802, são vetados o em prego dos procedimentos
violentos empregados nos tratamentos psiquiátricos, como o uso de celas-fortes e
camisas-de-força. Nesta ocasião, foram proibidas as psicocirurgias ou qualquer
outro procedimento que produza efeitos orgânicos irreversíveis, como meio de
tratamento das enfermidades mentais. Todavia a Emenda daquela Lei, dada em
de dezembro de 1997, regulamenta o uso do eletrochoque, além de autorizar os
procedimentos de restrição física, desde que necessários e acompanhados por
profissionais (Ver: BRASIL, 2002).
Ao ser analisado o “caput” do Artigo 3°, junto ao r etrocesso da Emenda à lei
quanto aos meios coercitivos, podem-se inferir quais são os discursos subjacentes
ao discurso político, consolidado em texto legal. São discursos que remontam a uma
concepção de racionalidade adaptada ao trabalho, à produção de bens e às normas
familiares e comunitárias. Sugere-se que sujeito plenamente adaptado a estes
sistemas, que se sobrepõem, alcançará a “integridade física e mental”.
Segundo Foucault, o auge dos sistemas disciplinares é alcançado quando
nasce a arte do corpo humano, onde o homem-máquina é constituído enquanto uma
estrutura anátomo-metafísica. Conseqüentemente, estrutura inteligível, decifrável e
apta a ser transformada e aperfeiçoada. Para o autor:
O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o
desarticula e o recompõe [...]. A disciplina aumenta as forças do corpo (em
termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos
políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz
dele por um lado uma “aptidão”, uma capacidade que ela procura aumentar;
e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e
faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa
a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar
estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma
dominação acentuada (1987, p. 119).
Vale lembrar que todo ordenamento jurídico compartilha de uma história que o
antecede. Foucault, em seu trabalho genealógico, recoloca a disciplina e os diversos
mecanismos disciplinares no fluxo do processo histórico, indicando que os mesmos
não emergem do nada, mas remontam a diversos processos, às vezes ruidosos,
outras vezes mínimos. Processos os quais cedo aparecem nas escolas, no
100
ordenamento da vida familiar, incitando o individuo a entrar em uma ordem
discursiva e a assumir posições.
As considerações de Foucault favorecem a sensibilização da escuta às
interpelações inerentes aos regulamentos (sejam eles leis, portarias ou decretos)
que fundamentam as instituições especializadas no trato da “loucura”. Porém, para o
filósofo a loucura não existe em um estado selvagem. Ela existe em uma cultura,
portanto, dentro das normas da sensibilidade que a isolam e das formas de repulsa
que a excluem ou a capturam. Assim, ele demonstra que na Idade Média, e depois
no Renascimento, a loucura estava presente no horizonte social como um fato
estético ou cotidiano; depois, no século XVIII a partir da internação, a loucura
atravessou um período de silêncio, de exclusão, ela se tornou derrisória, mentirosa.
Mas, o século XX se apossou da loucura, reduzindo-a a um fenômeno natural,
“desse ato de posse positivista derivaria a filantropia desdenhosa manifestada por
toda a psiquiatria com respeito ao louco” (FOUCAULT, 2002c, 163).
A legislação que regulamenta os CAPS/NAPS/CERSAM é herdeira desse
processo de institucionalização que primeiro segregou tudo o que fugia à ordem da
produção, das normas familiares para depois classificar, hierarquizar, separar e,
posteriormente, escutar aqueles que sobre seus corpos viram desenvolver-se a
psiquiatria (FOUCAULT, 1972; MACHADO, 1987; MOREIRA, 1983). Como herdeira,
as novas práticas discursivas se apresentam em outros tempos, em outro contexto
social, institucionalizando um modo de atendimento que não se articula mais em
torno do grande hospital, mas em pequenos núcleos de atendimento espalhados
pelos diversos pontos da cidade (DELGADO, 1987; NUNES, 2003; SILVEIRA,
2000). O psiquiatra perde a soberania de outrora sobre o corpo do usuário
participando, agora, de uma clínica feita por muitos, pois esta é a era do “inter”,
“multi”, “transdiciplinar”.
Foucault nos adverte que mesmo que os progressos da medicina façam
desaparecer a ‘doença mental’, reinventando-a sobre outros signos, como os
transtornos, ainda permanecerá
101
a relação dos homens com seus fantasmas, com seu impossível, com sua
dor sem corpo, com sua carcaça da noite; uma vez o patológico posto fora
de circuito, a sombria pertença do homem à loucura será a memória sem
idade de um mal apagado em sua forma de doença, mas obstinando-se
como desgraça. Permanecerá sob qualquer disfarce o inalterável, aquilo
que é muito mais precário do que as constâncias do patológico: a relação
de uma cultura com aquilo mesmo que ela exclui (2002b, p. 13).
Como conseqüência o desenvolvimento dos saberes disciplinares, que se
rearticulam em instituições, ampliam os mecanismos de controle, demarcando novas
formas de domínio sobre aqueles que perturbam os sistemas normativos e
produtivos (SILVA, 2006; ROMAGNOLI, 2003, 2006a). Estes mecanismos articulam-
se enquanto discursos que deverão ser coerentes com sua época. Foucault (1972)
demonstrou os mecanismos de controle desenvolvidos da Idade Média à Idade
Clássica. Roberto Machado (1978) e outros buscaram reconstruir a trajetória das
instituições psiquiátricas no Brasil (RESENDE, 1987). Na atualidade, frente ao horror
dos manicômios, foram institucionalizadas políticas públicas que determinam novas
modalidades de atendimento, selecionando novos clientes, outros campos de ação
e, em tese, um discurso epistemologicamente distinto.
Conforme Foucault (2002c), o discurso deve ser entendido como uma violência
feita às coisas, como uma prática imposta. Dessa forma, o discurso é o espaço de
articulação entre saber e poder; porque quem fala, fala de um lugar determinado e a
partir de um direito reconhecido pela instituição. Como conseqüência, esse discurso
que veicula saber, especificamente, um saber institucional é gerador de poder
(BRANDÃO, 2004).
As contradições e paradoxos inerentes aos ordenamentos jurídicos tornam-se
menos opacos quando analisados à luz dos argumentos de Foucault. No registro da
aula inaugural, pronunciada no Collège de France, cujo título é A ordem do discurso
(2002a), Foucault esclarece como, ao longo da história, ocorreu uma profunda cisão
entre a razão e a loucura. Cisão de tal ordem que foram interditados os atos e o
discurso do “louco”, tornando sua palavra nula. Na modernidade, o filósofo francês
não constatou uma ruptura com a antiga relação estabelecida entre a razão e a
loucura ou mesmo uma densa transformação nas instituições de gestão da vida. Ao
contrário, com sagacidade Foucault deixa como herança a contínua indagação sobre
como os dispositivos de controle tornam-se mais sofisticados. Sofisticados ao ponto
102
de simularem a dissolução das fronteiras, sustentadas pelo saber e pelo poder, que
colocam “loucos” e “não loucos” de lados opostos. As palavras pronunciadas pelo
filósofo em 1970, no Collège de France, tornam-se perturbadoras a este respeito:
Dir-se-á que, hoje, tudo isso acabou ou esem vias de desaparecer; que a
palavra do louco não está mais do outro lado da separação; que ela não é
mais nula e não-aceita; que, ao contrário, ela nos leva à espreita; que nós
buscamos um sentido, ou o esboço ou as ruínas de uma obra; e que
chegamos a surpreendê-la, essa palavra do louco, naquilo que nós mesmos
articulamos, no distúrbio minúsculo por onde aquilo que dizemos nos
escapa. Mas tanta atenção não prova que a velha separação não voga
mais; basta pensar em todo o aparato de saber mediante o qual deciframos
essa palavra; basta pensar em toda a rede de instituições que permite a
alguém médico, psicanalista escutar essa palavra e que permite ao
mesmo tempo ao paciente vir trazer, ou desesperadamente reter, suas
pobres palavras; basta pensar em tudo isto para supor que a separação,
longe de estar apagada, se exerce de outro modo, segundo linhas distintas,
por meio de novas instituições e com efeitos que não são de modo algum os
mesmos (2002a, p. 12-13).
As análises de Foucault vão da interdição do corpo à interdição da palavra na
idade clássica, contudo será na modernidade que a interdição do discurso é
suplantada pelo seu controle. O discurso do louco deixa de ser silenciado para ser
disciplinado, isto é, ele aponta a apropriação das palavras dos “loucos”, dos
“doentes mentais” pelos diversos saberes disciplinares, provocando assim um efeito
não mais de embargo, mas de “controle da produção do discurso” (FOUCAULT,
2002a, p. 36). Partindo desta perspectiva, pode-se inferir que novas instituições
implicam novos rituais, onde são atribuídos os papéis a serem desempenhados por
cada um, em cada nova circunstância.
Vale sublinhar que a implementação de uma política blica no campo da
saúde em geral e, especialmente, no campo da saúde mental ganha diferentes
matizes e contornos dependendo dos atores que a operam. Destes atravessamentos
(e de outros mais) serão produzidos discursos, práticas e subjetividades. Por isso,
ao retornar ao local, às instituições construídas em uma região, abre-se a
possibilidade de comparar o discurso expresso na letra da Lei, com o discurso
daqueles que trabalham a partir das condições de possibilidade viabilizadas pelas
políticas públicas, isto porque os trabalhadores também são atravessados pelos
diversos discursos que orientam sua prática e seu modo de ser sujeito no mundo.
103
Tendo sido analisadas algumas das condições de possibilidade para a
estruturação dos novos recursos de assistência ao portador de sofrimento psíquico
em Minas Gerais, trata-se agora de tomar como objeto de análise uma experiência
concreta, contextualizando-a quanto a sua história e aos discursos que produz.
Conforme Silva (2007, p. 103), “o estudo de caso é um importante instrumento de
análise e diagnóstico”; portanto, este seo procedimento de pesquisa a partir do
qual será abordado o Centro de Referência em Saúde Mental (CERSAM) da região
de Betim/MG. Os textos oficiais (Leis, Portarias e Regulamentos) até aqui analisados
ofereceram uma rie de enunciados que passaram a fazer parte dos discursos
acerca do “louco” e das instituições especializadas em seu cuidado.
O vocabulário de uma instituição é formado por enunciados articulados em
relações de saber-poder importantes nas análises acerca das rupturas e
permanências de significação dos conceitos e categorias que instrumentalizam as
práticas de determinada área de saber. No caso, a utilização de enunciados como:
“Reforma Psiquiátrica”, "saúde mental", “público alvo”, "portador de sofrimento
mental", "Técnico de Referência", “equipe multiprofissional”, demarca as
especificidades de uma época e de uma discursividade acerca da ‘’loucura’’
articulada em torno dos centros de atendimento como o CERSAM. O que se indaga
na ordem discursiva, neste caso, é como estes termos são percebidos pelos
profissionais que atuam nestas instituições. Problematiza-se, portanto, a constituição
da ordem do discurso multidisciplinar procurando tencionar os enunciados
destacados, por entendê-los como inerentes às “práticas que formam
sistematicamente os objetos de que falam” (FOUCAULT, 2004, p. 55). A episteme,
por sua vez, oferece as condições de possibilidade para a emergência de um saber
em determinada época; ela convoca, controla, ordena os discursos a partir dos
critérios de cientificidade vigentes (ROMAGNOLI, 2003). É possível inferir que todo
discurso traz a marca de seu tempo, mas que não enuncia tudo através do que é
dito. Escamoteia, disfarça, esconde, controla o que é enunciado.
Logo, pode-se indagar, a partir do discurso dos profissionais do CERSAM, qual
é o objetivo esperado de uma rede de atendimento em saúde mental
24
disposta pela
24
Na atualidade a rede de Saúde mental da região de Betim é composta por: 3 CERSAM adulto, 1
infantil, 1 Moradia Protegida e 1 Centro de Convivência.
104
região de Betim. Com esta questão procura-se problematizar se os CERSAM
reproduzem as antigas funções dos manicômios: trabalhando para controlar a
angústia social e para exercer a continua vigilância da diferença, ou se representam
uma intenção ética que vislumbre a restituição do sujeito ao cuidado de si mesmo.
As questões precedentes agregam-se ainda a duas outras: como ocorre a
transformação do sujeito, que procura ou é levado ao CERSAM, em usuário do
serviço de saúde mental
25
?
Estas problematizações nortearão o Estudo de Caso
26
do Centro de Referência
em Saúde Mental de Betim, cenário a partir do qual os Técnicos de Referência desta
Instituição foram convidados a ‘produzir discursos’ sobre suas percepções, suas
práticas e sobre a história que ajudam a construir no campo da saúde mental.
25
Em Betim, “usuário do serviço de saúde mental” é o termo utilizado recorrentemente para designar
a clientela dos CERSAM, Centros de Convivência e Moradia Protegida da Rede Assistencial em
Saúde Mental.
26
Vale mencionar as dissertações de mestrado defendidas pelas autoras Luciane de Almeida Pujol
(2004) e Najla Nassere (2007), no Programa de s-Graduação em Desenvolvimento Regional da
UNISC, tendo em vista que ambas realizaram Estudos de caso dos serviços de saúde mental do
município de Santa Cruz do Sul, a partir de diferentes perspectivas (ver Referências).
105
4. CENTRO DE REFERÊNCIA EM SAÚDE MENTAL CERSAM DA REGIÃO DE
BETIM/MG: UM ESTUDO DE CASO
A escolha do Centro de Referência em Saúde Mental do município de Betim
como objeto para um Estudo de Caso considerou a importância dessa experiência
regional, em que a intenção de construir de uma rede de atendimento ao portador de
sofrimento psíquico partiu da organização de um grupo de trabalhadores. Nesse
sentido, foi um marco para o desenvolvimento de Betim e região o compromisso
assumido entre o governo municipal e os trabalhadores que atuavam no campo da
saúde mental, no inicio da década de 1990, em construírem uma rede de
atendimento - orientada pelos princípios do SUS e do movimento pela Reforma
Psiquiátrica - que evitasse a internação e a cronificação de pessoas em hospitais
psiquiátricos (SOUZA, 1992). Trata-se, portanto, de uma trajetória superior a uma
década, o que rendeu aos profissionais e ao município o reconhecimento de
diversos setores organizados da sociedade civil, como também:
a seleção do projeto de saúde mental de Betim como um dos três
representantes brasileiros na mostra de trabalhos e experiências no campo
da Reabilitação Psicossocial, acontecido em Rotherdam, em abril de 1996,
durante o Vth Congress World Association for Psychosocial Rehabilitation, e
com a premiação do projeto com o Prêmio Pi, oferecido pelo Instituto
Phillipe Pinel do Rio de Janeiro, em outubro de 2000 (VAN STRALEN,
2001).
Outro aspecto importante refere-se à recorrência de profissionais de outros
municípios mineiros a Betim em busca de subsídios técnicos e teóricos que orientem
a implementação de novas redes assistenciais em outros pontos do estado. Sendo,
portanto, os trabalhadores do CERSAM responsáveis pela difusão de
conhecimentos, percepções e, conseqüentemente, práticas. Este fato reafirma a
posição do CERSAM de Betim como uma significativa referência para a população
local, como também para os municípios que fazem parte do Consórcio
Intermunicipal do Médio Paraopeba, composto por dez municípios, dando à rede
assistencial uma abrangência que transcende ao local, consolidando uma região de
abrangência.
106
Explicitados os motivos que levaram à escolha da instituição, torna-se
imprescindível retomar as palavras de Foucault, com a intenção de demarcar a
trajetória de trabalho ainda por vir. Diz o filósofo:
suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo
tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número
de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos,
dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível
materialidade (2002a, p.8).
Por conseguinte, o discurso disciplinar não ocorre no vácuo; ao contrário, ele
requer um suporte material, físico, institucional, calcado em uma região constituída
no espaço e no tempo. Todo discurso é histórico (apesar de não explicitar todas as
tensões de sua época); por isso, o discurso remete para o fora, para os
acontecimentos que precedem e ultrapassam as existências individuais. Para
Orlandi “o analista de discurso relaciona a linguagem à sua exterioridade” (2003, p.
16). Por isso, antes de proceder à análise do discurso dos profissionais que atuam
no CERSAM trata-se de cartografar a região a partir da qual estes discursos são
proferidos, apresentando, além disso, o histórico da instituição a partir de onde
falam.
Esta escolha se orienta pelo percurso empreendido pelo historiador Mozart
Linhares da Silva, em sua recente obra Educação, Etnicidade e Preconceito no
Brasil (2007). Nesta pesquisa, o autor desenvolve uma importante argumentação
sobre a Análise do Discurso como um valioso método de análise de entrevistas
(estas entendidas como discurso materializado enquanto texto); para tanto, sustenta
a hipótese de que o ser falante deve ser compreendido enquanto “sujeito histórico a
partir dos ordenamentos discursivos que o atravessam em determinado contexto”
(2007, p. 109). Até aqui foi realizado o esforço de recolocar o discurso das Leis
referentes à assistência à saúde mental, no Brasil e em Minas Gerais, no fluxo da
história, com a intenção de situar - neste fluxo - o discurso dos sujeitos “técnicos de
referência”:
[...] através da análise do discurso se está interessado não na fala
propriamente dita, mas na observação do homem falando” (ORLANDI,
2003, p. 15). A análise não está interessada, propriamente, em quem fala,
mas nas possibilidades do dizer, nas condições para que o discurso
produza significados que signifiquem a cultura e as relações de
107
sociabilidade. A maneira como a língua faz sentido para o sujeito coloca
esse entre língua e as visões de mundo. É no processo de significação que
esse sujeito é construído na ordem discursiva. Para usar a expressão de
Orlandi, a questão a ser respondida pela análise do discurso é “como” e não
“o que” se fala (ORLANDI in: SILVA, 2007, p. 110).
Para analisar “como” o sujeito fala, trata-se primeiro de situar “o lugar” a partir
do qual fala esse sujeito.
4.1 Caracterização da região de Betim
Fundado em 1938, o município de Betim está localizado na Região
Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), a aproximadamente 30 km da capital.
Contando com uma área de 346,8 km², a densidade demográfica da cidade foi
avaliada em 874,4 hab/km², em 2000 (PNUD, 2003). Na última contagem da
população, realizada em 2007, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), estima-se que o município alcançou a marca de 415.098 habitantes.
Em 2001, aproximadamente 97,25% da população residia em áreas urbanas,
ao passo que em áreas rurais residiam apenas 8.417 pessoas, o que - em termos
percentuais - corresponde a 2,74% da população total. Conforme estes dados, o
município configura-se como essencialmente urbano (IBGE).
Tabela 1
População residente em Betim nos anos de 1970, 1980, 1991, 2001, 2007.
Anos Urbana Rural Total
1970 17.536 20.279 37.815
1980 76.801 7.382 84.183
1991 162.143 8.791 170.934
2001 298.258 8.417 306.675
2007 415.098
Fonte: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), figura elaborada pela autora.
Como mostram os dados acima, no período de 1970 a 2007, a população de
Betim teve uma volumosa taxa de crescimento. Segundo a prefeitura local, a
população tem crescido em média 7,85% ao anotaxa significativamente superior à
média de crescimento populacional da RMBH (2,09%) e de Minas Gerais (1,15%)
(BETIM, 2008).
108
Em 2000, a esperança de vida ao nascer, em Betim, foi calculada em 71,76
anos, média inferior àquela encontrada em Caxias do Sul (RS), de 74,1 anos
27
,
cidade de porte semelhante, quando considerado o mesmo ano de análise. Quanto
aos indicadores de mortalidade, em Betim, calcula-se que, no ano de 2000, o
coeficiente de mortalidade infantil (mortalidade de crianças com até 1 ano de idade)
era de 23,60 por mil crianças nascidas vivas. Tal indicador apresenta uma
significativa melhora quando comparado ao ano de 1991, pois neste ano a taxa foi
de 36,9. Entretanto, quando se leva em conta que em cada grupo de mil crianças
nascidas vivas - mais de 23 destas crianças correm o risco de morrer - este dado
torna-se preocupante, apontando a necessidade de estudos que avaliem as
condições de saúde da população local, posto que em outras cidades do país, de
porte semelhante, o mesmo coeficiente chega a ser muito inferior ao registrado em
Betim, como é o caso de Caxias do Sul (RS) no qual a taxa de mortalidade infantil foi
de 12,9, em 2000 (PNUD, 2003).
Em relação à taxa de analfabetismo, avaliada em 11,2 em 2001, o município de
Betim estava em uma boa posição quando comparado ao Estado de Minas Gerais
como um todo, pois Minas Gerais contou com uma taxa de analfabetismo estimada
em 14,8 no mesmo período. a média de anos de estudo é compatível entre
estado e município. Porém, quando se compara a Renda per capta Média, o Estado
apresenta melhores valores em relação ao município em questão. Quando estes
dados são confrontados com os indicadores de Caxias do Sul, pode-se verificar que
tanto Betim quanto Minas Gerais apresentam um desempenho inferior à cidade
gaúcha em epígrafe. Em 2000, a renda per capta média em Betim foi calculada em
R$ 203,20, enquanto Minas Gerais alcançou a marca de R$ 276,60, ambas
superadas por Caxias do Sul, onde a renda per capta média foi orçada em R$
490,70 (PNUD, 2003). Tais dados, quando comparados ao Produto Interno Bruto de
Betim, em 2004
28
, sugerem um quadro de acentuada desigualdade social, tendo em
vista que, neste período, o PIB total da cidade alcançou a marca de R$
14.838.779,00, enquanto o PIB per capta foi orçado em R$ 39.431,40 (IBGE).
27
Torna-se curioso que Santa Cruz do Sul (RS) apesar de ter uma renda per capta superior a Betim
apresenta uma expectativa de vida bem menor quando comparados os dois municípios em relação
ao ano de 2000, quanto ao coeficiente de mortalidade infantil, Santa Cruz do Sul apresenta uma taxa
ligeiramente inferior a Betim, segundo os dados do PNUD, 2003.
109
Conforme dados do PNUD, em 2000, mais da metade da renda do município
(56,66%) foi apropriada por apenas 20% da população considerada a mais rica.
Quando considerados os três macrossetores (indústria, serviços e
agropecuária), observa-se que o setor agropecuário é o menos expressivo em
termos de Valor Agregado Bruto, como indica a Tabela 2. Conforme o IBGE, em
2005, a maior produção registrada nas lavouras temporárias foi decorrente do cultivo
de cana-de-açúcar, feijão, mandioca, milho e tomate. No mesmo ano, nas lavouras
permanentes, foi produzido: banana, goiaba, laranja, manga, tangerina e uma
pequena quantidade de uvas. na pecuária ocorre a criação de bovinos, suínos,
eqüinos, asininos, muares, bufalinos, ovinos, caprinos, galinhas, galos, frangas,
frangos e pintos, além da produção de leite, ovos e mel de abelhas (IBGE).
Tabela 2
Valor Adicionado Bruto dos três macrossetores econômicos do município de Betim/MG
Fonte: IBGE/Produto Interno Bruto/2004. Tabela elaborada pela autora.
Observa-se, portanto, que a maior fonte de riquezas do município provém do
setor industrial e dos serviços, setores que também absorvem a maior parcela da
População Ocupada (PO), como mostra a Tabela 3:
Tabela 3
Estrutura empresarial de Betim: principais atividades econômicas em relação à População Ocupada –
Ano 2004
Atividade econômica População Ocupada (PO)
Indústrias de transformação 20.070
Comércio reparação de veículos automotores, objetos pessoais e
domésticos
12.214
Administração pública, defesa e seguridade social 10.808
Transporte, armazenagem e comunicações 8.438
Outros serviços coletivos, sociais e pessoais 3.299
Atividades imobiliárias, aluguéis e serviços prestados às empresas 2.586
Construção 2.130
Alojamento e alimentação 2.092
Educação 1.011
Saúde e serviços sociais 668
Intermediação financeira 570
Indústrias extrativas 82
Fonte: IBGE/Estrutura empresarial/2004. Tabela elaborada pela autora.
28
Neste caso, os dados indicam uma análise preliminar tendo em vista a defasagem temporal dos
mesmos.
Setores Valor Adicionado Bruto/ mil reais
Agropecuária 7.228.48
Indústria 8.118.016.274
Serviços 3.695.062.769
110
Vale ressaltar que as atividades produtivas relacionadas aos setores da
indústria, serviços, saúde e administração pública, diferentemente do setor
agropecuário, exigem uma maior qualificação da mão-de-obra - em termos de
escolaridade - e aperfeiçoamento tecnológico. No caso das indústrias, exige-se do
trabalhador a adesão a rígidos esquemas de horário e produtividade. Deve-se
lembrar ainda que a modernização tecnológica das empresas resulta em um impacto
direto sobre o quadro de funcionários, tornando-o cada vez mais restrito. Esta
inferência pode ser realizada diante da comparação do volumoso PIB industrial, com
a população total do município de Betim e a PO neste setor.
Uma das hipóteses para o fluxo populacional verificado em Betim, remonta ao
seu posicionamento estratégico em relação às principais rodovias que ligam o
estado a outros grandes centros urbanos do país, como São Paulo, Rio de Janeiro e
Brasília. Outro aspecto refere-se à ampliação da sua planta industrial, a partir de
1968, com implantação da Refinaria Gabriel Passos (REGAP Petrobrás), o que
incrementou diversos setores da economia, como os serviços, transporte e comércio
atacadista de combustíveis. Na década de 1970, foi criado o segundo parque
industrial da região e, em 1973, ocorreu a implantação da montadora italiana Fiat
Automóveis S/A e de suas indústrias satélites, cujo resultado foi a consolidação do
segundo pólo industrial automobilístico do país (BETIM, 2008). Nesse sentido, a
exploração do potencial industrial do município pode ser destacada como um
importante condicionante para configurá-lo como uma região urbano-industrial.
Em uma região, a alocação de grandes empresas desencadeia uma série de
acontecimentos que se refletem no território e na vida daqueles que ali habitam
como, por exemplo, a concentração elevada da renda e o aumento das
desigualdades sociais e regionais, caso pico do capitalismo brasileiro. Outro
aspecto refere-se à densa e desordenada ocupação de determinados pontos da
cidade, tal como ocorreu no entorno do local onde foi implantada a Fiat Automóveis
S/A na década de 1970. Isso porque a construção da montadora atraiu um enorme
contingente de pessoas com a esperança de obter trabalho naquela fábrica; tal
expectativa resultou na formação de um extenso aglomerado, conhecido como
Jardim Teresópolis, onde - segundo dados do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES, 2004) - moram cerca de 65 mil pessoas.
111
Diante da antiga situação de grande carência e elevados índices de violência
nesta comunidade, a FIAT criou a “Rede Fiat de Cidadania”
29
, tendo como uma das
principais frentes o Programa ABC+, cuja meta é erradicar o analfabetismo em
Betim, contribuindo para “auto-estima e empregabilidade dos alunos” (BNDES,
2004). Em 2004, o BNDES financiou R$ 120 milhões para a Fiat, dos quais 500 mil
seriam destinados a um projeto social cuja finalidade seria:
promover a inclusão social de jovens da comunidade Jardim Teresópolis,
com investimentos em educação voltada para a formação e geração de
emprego e renda; [...] capacitação profissional; incentivo ao
empreendedorismo; com a formação de cooperativas; criação de agência
de empregos; e melhoria das condições habitacionais locais (BNDES,
2004).
Apesar das grandes desigualdades sociais existentes no município,
decorrentes em grande medida do modelo de desenvolvimento econômico ali
adotado, na atualidade, o município de Betim tem se tornado uma referência para
seu entorno na área do ensino superior e no atendimento à saúde. Isto porque Betim
possui instituições de ensino de nível superior e é a cidade líder do Consórcio
Intermunicipal de Saúde do Médio Paraopeba (CISMEP), composto por 10
municípios, entre eles: Betim, Bonfim, Brumadinho, Mário Campos, Sarzedo,
Igarapé, São Joaquim de Bicas, Mateus Leme, Juatuba e Rio Manso (BETIM, 2007).
Esta parceria foi fundada em 2001, através de acordos entre os gestores municipais
das localidades mencionadas. Deste modo, a rede de saúde de Betim tem uma
abrangência regional, portanto, no que à saúde, pode-se falar na configuração de
uma região, ou seja, a “região de Betim”.
29
A Rede Fiat de é formada pelas empresas Fiat Automóveis, Aethra. Collins & Aikman, Lear,
Plásticos Mueller, Resil, Teksid, Sada, Tecsoma, Instituto Magnum, Associação de Voluntários para o
Serviço Internacional (AVSI), Prefeitura de Betim e BNDES, ver: www.odebate.com.br, data de
acesso: 21/01/08.
112
4.2 Betim e sua rede de saúde pública
Conforme o Guia da Saúde Pública de Betim
30
, editado pela Secretaria
Municipal da Saúde em 2007, o município es comprometido em cumprir as
principais diretrizes do SUS, assumindo - junto à União - o Pacto pela Vida e a
humanização dos serviços. Para tanto, a Secretaria Municipal de Saúde criou a
Diretoria Operacional da Saúde (DIOP), responsável pela operacionalização,
acompanhamento e avaliação das ações assistenciais no campo da saúde referente
ao SUS, sendo uma das prioridades a consolidação da Atenção Básica
31
, integrada
à média e alta complexidade; segundo o Guia,
os procedimentos de média complexidade são compostos por um conjunto
de normas e serviços especializados ambulatoriais e hospitalares, que
visam a atender aos principais problemas de saúde e agravo da população.
Demanda a disponibilidade de profissionais especialistas e a utilização de
recursos tecnológicos, apoio diagnóstico e terapêutico. Os procedimentos
de alta complexidade são aqueles que envolvem alta tecnologia e alto custo
para fornecer um atendimento qualificado à população no contexto do
Sistema Único de Saúde (SUS). Algumas áreas compõem a alta
complexidade como os procedimentos de diálise, da quimioterapia, da
radioterapia, hemoterapia, a assistência ao paciente portador de doença
renal crônica, assistência oncológica, cirurgias vasculares e
cardiovasculares, das vias aéreas superiores e da região cervical, entre
outros procedimentos (BETIM, 2007, p. 47).
A divisão dos equipamentos, a partir da complexidade do cuidado que
oferecem, orienta-se pela diretriz do SUS de hierarquização dos serviços de saúde.
Em Betim, esta organização preconiza que as principais portas de entrada do
sistema de saúde local sejam as “Unidades Básicas de Saúde” (UBS) e o “Saúde da
Família”. A primeira refere-se a uma estrutura que visa a resolver os problemas
básicos de saúde da população, através de 19 Unidades dispostas pelo município,
as quais oferecem atendimento da clínica médica, ginecológica, dermatológica,
clínica pediátrica, psiquiátrica. Contando também com profissionais da psicologia,
enfermagem, terapia ocupacional, farmacêuticos, técnicos de higiene dentária e
agentes comunitários de saúde (ACS). o “Saúde da Família” consiste em um
modelo de atendimento em saúde, cuja equipe multiprofissional (composta por
30
Este Guia oferece um panorama geral da rede de serviços de saúde organizada em Betim,
disponibilizando o endereço e telefone de cada unidade, bem como a forma de acesso às mesmas,
ver: BETIM, 2007 (Referências).
31
Sobre a Política Nacional de Atenção Básica ver: Portaria n° 648 de 28 de março de 2006, do
Ministério da Saúde.
113
médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem e ACS) responsabiliza-se por
acompanhar o estado de saúde das famílias residentes na área geográfica de
abrangência de cada Unidade Básica de Saúde da Família (UBSF), o que totaliza 13
no município. Além destas estruturas e programas, existem - no município - quatro
Unidades de Atendimento Imediato (UAI), as quais se caracterizam como serviços
de urgência, abertos todos os dias, durante as 24 horas. As UAIs são
regionalizadas, atendendo a uma população delimitada; são oferecidas
modalidades de cuidados que ultrapassam a capacidade das UBS: cirurgias de
emergência e apoio diagnóstico (bioquímico, hemograma e de imagens). Articulado
aos atendimentos de urgência/emergência está o Serviço de Atendimento Móvel de
Urgência 24 horas, SAMU/192 (BETIM, 2007).
No que tange à atenção secundária à saúde, existe no município o Centro de
Referência e Especialidades Divino Ferreira Braga, que atende á população local e à
consorciada por meio do CISMEP. Trata-se de um ambulatório que atende à
demanda de médicos da rede básica, das UAIs, da rede hospitalar dos municípios
participantes do consórcio e dos próprios médicos do ambulatório, através de
interconsultas. Ainda, na atenção secundária, constam:
o Centro de Referência em Reabilitação Anderson Gomes de Freitas,
especializado em fisioterapia e estimulação precoce, disponibilizando à
população: clínicas de reabilitação em ortopedia, reumatologia e
traumatologia, reabilitação em neurologia adulto e infantil e reabilitação
respiratória (BETIM, 2007);
o Centro de Referência em DST/AIDS - Centro de Convivência Cazuza,
comprometido com a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e
com a promoção à saúde através de diversos serviços ofertados pela
unidade; entre eles, destaca-se a sorologia do anti-HIV e para sífilis
(VDRL), exames estes realizados de forma gratuita e anônima;
Centro de Referência em Saúde Mental
32
.
32
Este último será estudado na próxima seção tendo em vista sua importância fundamental para este
estudo.
114
Os atendimentos que exigem maior complexidade são realizados no Hospital
Público Regional Prefeito Osvaldo Resende Franco, através de diversas unidades:
Pronto-socorro; Centro de Tratamento intensivo (CTI); Bloco Cirúrgico e Obstétrico;
diagnósticos por imagem (tomografia computadorizada, ultra-som, mamografia, raio-
x, teste ergométrico, holter, duplex, eletroencefalograma, eletrocardiograma);
hemodiálise; unidade de neurologia; farmácia; pediatria e clínica médica. Os
atendimentos a gestantes e a parturientes são realizados também na Maternidade
Pública Municipal Haydeé Espejo Conroy, situada no Bairro Jardim Teresópolis.
Dentre as diversas ações desenvolvidas por essa maternidade, está a modalidade
de cuidado “Mãe Canguru”, a qual já rendeu ao município diversos prêmios e
menções honrosas (BETIM, 2007).
Na região mais distante do centro de Betim, está localizado o Complexo
Assistencial Santa Isabel, a antiga Colônia Santa Isabel para “leprosos”, criada em
1921, a partir da política sanitária liderada por Oswaldo Cruz, na década de 1920,
que obrigava a realização compulsória de exames e a internação involuntária dos
portadores da “lepra” em Colônias especializadas para este fim
33
. Ao longo da
existência desta colônia, seu entorno foi sendo ocupado por familiares dos internos,
o que fez com que a Comunidade de Santa Isabel abrigue atualmente cerca de
4.000 moradores, de acordo com os números da Prefeitura Municipal de Betim
(BETIM, 2007). Esta comunidade, por sua vez, está inserida no Subdistrito de
Citrolândia, onde a população estimada para 2000 foi de 18.532 habitantes (IBGE).
Atualmente, o Complexo Assistencial Santa Isabel atende à comunidade em
geral, isto é, hansenianos e não-hansenianos, dispondo de:
Um Hospital de pequeno e médio porte, pronto-atendimento em clínica
médica e pediátrica, ambulatório com atendimento nas diversas
especialidades, serviço de raio x, laboratório de análises clínicas, farmácia,
uma unidade do SAMU, equipes de estratégia de saúde da família, um
Centro de Referência em Saúde Mental, um centro de tratamento de lesões,
um centro de reabilitação para atendimento de fisioterapia, terapia
ocupacional, fonoaudiologia e sapataria ortopédica, serviço de nutrição e
dietética, lares abrigados e uma unidade assistencial para internação
(BETIM, 2007, p. 67).
33
A respeito desta política pública de saúde foram tecidas algumas considerações no item 2.1 deste
estudo.
115
A unidade para internação atende a pacientes de longa permanência, internos,
moradores das unidades (antigos pavilhões) e usuários portadores de hanseníase
que precisam de cuidados intensivos; são 73 leitos no total.
Através da DIOP são desenvolvidos diversos programas em todas as unidades
descritas, como o programa de Saúde Bucal, programa de Saúde da Mulher, Saúde
da Criança e do Adolescente, Saúde do Idoso, Controle de Hipertensão e Diabetes,
Controle da Tuberculose, Saúde do Trabalhador, Saúde Mental e Programa de
Doenças Sexualmente Transmissíveis – DST/AIDS (BETIM, 2007, p. 67).
4.3 Centro de Referência em Saúde Mental - CERSAM
Atualmente, o município de Betim conta com uma rede de atendimentos em
saúde mental composta por três CERSAM para adultos; um CERSAMI (infanto-
juvenil); um Centro de Convivência; dois Serviços Residenciais Terapêuticos e
equipes de Saúde Mental nas UBS. Esta rede é coordenada por um profissional
nomeado como “Referência Técnica” que, por sua vez, é subordinado ao secretário
de saúde e ao prefeito municipal (BETIM, 2007). Dentre estes serviços, o CERSAM
é considerado o equipamento de maior complexidade, pois além do acolhimento e
atendimento ambulatorial, sua retaguarda se estende à possibilidade de acolher o
usuário por um período de tempo superior àquele dispensado em uma consulta.
O CERSAM de Betim é um exemplo entre muitos outros no país, mas ao
mesmo tempo em que certa trajetória compartilhada que os assemelha, uma
série de atravessamentos que singulariza a instituição aqui enfocada. Em linhas
gerais, a posição no tempo e no espaço das três unidades do CERSAM de Betim
determina uma série de diferenças quanto aos demais CAPS brasileiros. Quanto à
localização das unidades: o pioneiro, CERSAM Betim Central, oficialmente nomeado
como CERSAM Nara Ozório, se localiza às margens da BR 381, que liga Belo
Horizonte a São Paulo. Seu nome popular, além de fazer referência à sua posição
geográfica na cidade, também sinaliza sua posição na rede devido à sua condição
de CAPS III, que o faz ser a retaguarda dos demais serviços em relação aos
atendimentos que exigem maior intensidade de cuidado, podendo o usuário ali
116
permanecer ao longo do dia e/ou noite, incluindo finais de semana, por um intervalo
temporal determinado pela equipe; o segundo centro implantado foi o ‘CERSAM
Teresópolis’, oficialmente CERSAM Jefferson Peres Pereira, localizado na região
leste da cidade; esta unidade abrange uma das áreas mais empobrecidas e
violentas da região. Sua área faz divisa com o município de Contagem. Por último,
foi implantado, o CERSAM Cézar Campos, conhecido como CERSAM Citrolândia; o
mesmo tem a particularidade de estar situado dentro de uma antiga Colônia para
hansenianos (vale mencionar que esta unidade está localizada na região mais
distante do município, quando a referência é a área central da cidade).
O percurso do CERSAM, assim como o da rede de saúde mental de Betim
como um todo, remonta a uma pequena equipe de trabalhadores (formada por
psicólogo, psiquiatra e assistente social) designada para o município pelo governo
estadual em 1986. No decorrer do tempo, esta equipe contou com diversas
composições, resumindo-se a um psicólogo, quando em seu período mais restrito.
Inicialmente, o trabalho foi desenvolvido em uma Policlínica nomeada como Alcides
Brás; em seguida, o grupo foi transferido para um anexo da Policlínica, situado em
uma casa na região central do município, conhecido àquela época como Posto de
Saúde Betim Central. A partir desta transferência, os profissionais puderam contar
com o apoio da equipe operacional e administrativa da unidade. Também foram
lotadas equipes mínimas de saúde mental em outros bairros de Betim: o bairro
Citrolândia passou a contar com uma psicóloga e uma assistente social, vinculadas
ao Estado; a UBS do Jardim Teresópolis recebeu um psiquiatra e uma psicóloga
(SOUZA, MAIA e TELES, 1996; ZENHA, 2001).
Ainda no final da cada de 1980, a “rede” - que aos poucos era constituída foi
incrementada com os psicólogos da equipe de saúde escolar. Em seguida, logo nos
primeiros anos de 1990, a Secretaria Municipal de Saúde realizou o primeiro
concurso público municipal na área da saúde, com vagas abertas para assistentes
sociais, terapeutas ocupacionais, psiquiatras e psicólogos (SOUZA, MAIA e TELES,
1996). Nesta fase, a oferta de atendimentos era organizada em torno da proposta
dos ambulatórios, em consonância às propostas vigentes em Belo Horizonte na
década de 1980. Como conseqüência, os pacientes que requeriam atendimento
emergencial eram encaminhados ou levados aos hospitais psiquiátricos públicos de
117
Belo Horizonte, como o Instituto Raul Soares e Hospital Galba Veloso. Após este
itinerário, muitos dos pacientes eram encaminhados às clínicas privadas ali
existentes. A recorrência à capital era justificada pela inexistência de hospital
especializado em psiquiatria no município. Entretanto, esta medida não era eficaz,
ou melhor, o modelo técnico-assistencial implantado não conseguia resolver os
problemas da população referentes ao adoecimento psíquico, conforme aponta um
documento elaborado, entre os anos de 1992 e 1993, pela equipe de saúde mental
que atuava na cidade:
Não existe no município nenhum hospital psiquiátrico, contudo a população
procura os hospitais de Belo Horizonte, onde nem sempre é atendida.
Retornando ao município, a continuidade do tratamento em grande parte,
não ocorre, por motivos que vão desde a desinformação quanto à existência
de serviços de saúde mental até a falta de vagas neste mesmo serviço. Isto
provoca a repetição deste ciclo, inclusive internações desnecessárias além
de um grande número de reincidências de internações (SOUZA, 1994, p. 4).
Este documento é dirigido ao poder público municipal no período em que é
desencadeada uma profunda reformulação técnico-assistencial e político-
ideológica
34
do sistema de saúde de Betim. Ação iniciada em 1993, quando assume
a gestão da cidade a “Frente Betim Popular”, liderada pela prefeita do Partido dos
Trabalhadores (PT) Maria do Carmo Lara. A reforma proposta àquela época envolvia
não a alocação racional dos recursos, mas marcava o declarado compromisso
em assumir os princípios do SUS, tornando viva a letra constitucional. Em sua
dissertação de mestrado, Ronaldo Zenha faz uma síntese desse período:
Tendo como prioridade a área da saúde, o Governo da Frente Betim
Popular investiu na constituição e consolidação de um modelo assistencial
que não colocou uma rede integral de atenção à saúde a serviço da
população, mas também ajudou a produzir cidadania [...]. Em junho de
1993, a Prefeitura de Betim e a Secretaria Municipal da Saúde realizaram a
II Conferência Municipal de Saúde, com a participação maciça de usuários e
de trabalhadores, aferindo a essa Conferência um caráter democrático e
participativo, no qual todos os segmentos interessados na questão se
fizeram presentes. A partir de então deu-se inicio a um verdadeiro Plano
Estratégico da Saúde, incorporando-se novas diretrizes e tecnologias de
gestão apropriadas às diversas demandas provenientes da construção do
novo modelo assistencial [...]. Além de terminar as obras iniciadas no
Governo anterior, como a Maternidade Municipal, com 32 leitos, a nova
administração revisou o projeto do Hospital Municipal, ampliando sua
capacidade operacional de 200 para 313 leitos, reduzindo seu custo pela
34
Sobre modelos tecnoassistenciais em saúde ver: SILVA JUNIOR, Aluisio Gomes. Modelos
Tecnoassistenciais em saúde (1998) (ver Referências).
118
metade do que estava orçado e, ainda, reestruturou toda a Rede de Saúde
do município (2001, p. 29).
A passagem anterior dá alguns indícios do contexto político de Betim,
indicando a existência de um partido no poder cujo discurso está comprometido em
construir uma cidade na qual os serviços de saúde estejam a serviço de todos.
Pode-se notar que a referência aos ideais republicanos perpassa este discurso, pois
segundo a síntese de Renato Janine Ribeiro, a República “valoriza o bem comum,
todo desvio dele para o particular a ameaça [...]. Contudo, para promover a coisa
pública, é imprescindível que o próprio público a controle. Ele não pode ser
beneficiário, tem que ser o responsável e o autor do bem comum” (2001, p. 51 e 65).
A idéia de tornar a coisa pública acessível a todos (mais que isso: compartilhar o
cuidado pelo que é comum) pressupõe um outro princípio fundamental: a
democracia. Estando presentes os ideais republicanos e democráticos, tem-se as
condições de possibilidade para um discurso político no qual a participação popular
e o controle social sejam pressupostos. Neste cenário, não seria uma tautologia
dizer que “quanto maior o controle popular, mais democrático o poder” (RIBEIRO,
2001, p. 69). A ampliação da democracia torna as instâncias gestoras da vida social
mais ‘porosas’, conseqüentemente, maior permeabilidade haverá para que as
demandas da sociedade civil
35
cheguem ao governo e às arenas de discussão e
decisão política.
Em Betim, o cenário de abertura política e de mudanças torna-se propício para
que os profissionais que atuavam no campo da saúde mental apresentem o “Projeto
de Saúde Mental para o Município de Betim”, ainda em 1993 (SOUZA, 1994).
Documento que parte de um diagnóstico da realidade municipal neste campo para
defender a rede almejada pelos profissionais que ali atuavam. Logo, trata-se de um
discurso marcadamente político, pois um discurso que parte da necessidade de fixar
uma verdade outra que não o manicômio. Para tanto é preciso entrar no cenário de
disputas políticas, interpelando sujeitos a que esta ‘verdade’ seja aceita por
muitos. Em síntese, como diz Céli Pinto: “o que é discurso político, senão uma
repetida tentativa de fixar sentidos em um cenário de disputa?” (2006, p. 89).
35
Uma importante discussão sobre os temas da esfera pública, sociedade civil e democracia
encontra-se na obra de Sérgio Costa: As cores de Ercília: Esfera Pública, Democracia, Configurações
Pós-Nacionais (2002), ver referências.
119
Ao se dirigirem ao gestor municipal, os sujeitos enunciadores se declaram,
demarcando o lugar de onde falam, isto é, são profissionais, portanto, são investidos
de um poder que pressupõe o domínio de um saber disciplinar, atuam na área,
conhecem o campo e a realidade inerente ao mesmo. Nesse sentido, as condições
de existência do “Projeto” remetem tanto externamente ao contexto político nacional
e local, como também internamente ao próprio discurso e à forma como os sujeitos
se constroem no que enunciam. Tais observações podem ser feitas a partir da
análise do item I do Projeto, cujo título é “Apresentação”:
Este projeto é fruto de um trabalho sistemático dos profissionais que atuam
no serviço de saúde mental de Betim, realizado a partir do mês de maio de
1992. Tem o objetivo de implementar a política de saúde mental em curso
no país, através da estruturação de uma rede de serviços, com níveis de
complexidade compatíveis com a nova política de saúde mental, visando
prioritariamente o atendimento de pessoas acometidas de sofrimento
psíquico, em crise, na eminência de crise e egressos de hospitais
psiquiátricos. Estes serviços constituídos darão respostas efetivas aos
usuários que deles necessitam (SOUZA, 1994, p. 3).
De uma forma positiva, os profissionais buscam inserir na agenda política a
construção de uma “rede” que está para além das equipes mínimas de psicólogos,
psiquiatras e assistentes sociais designados para o município. Com vistas ao
alcance desta finalidade, recorrem ao que Pinto (2006, p. 105) conceituou como o
“Campo da Memória”, ou seja, demarcam que não se trata de uma invenção; ao
contrário, relembram que se trata sim de seguir o curso das políticas blicas em
saúde mental que estão sendo implementadas pelo país, em consonância a uma
política maior que é o SUS. Nota-se que o texto do Projeto parte em defesa de uma
proposta que não se refere à reforma dos hospitais psiquiátricos. Para tanto, os
profissionais precisam contrapor-se à histórica lógica centrada nos manicômios, pois
neste momento não basta dizer que a proposta ora apresentada é ‘diferente’: ela
precisa ser constituída como antagônica para lograr o efeito desejado, ou seja, o
efeito de interpelar pessoas que viabilizem a implementação de uma rede
assistencial aberta e territorializada.
Conforme Pinto (1996, p. 97), o discurso político “só se constrói pela
desconstrução do outro”. Nesta tensão entre a tentativa de romper com uma ordem
psiquiatrizante secular e institucionalizar uma nova ordem multidisciplinar, os
120
profissionais recorrem à desconstrução do fundamento subjacente ao manicômio: o
asilamento. A partir disso, apontam os efeitos provocados por uma prática, que por
sua vez deve ser entendida como um efeito das políticas públicas implementadas no
Brasil a partir do ato do Imperial de Dom Pedro II. Esta inferência pode ser feita a
partir do seguinte trecho da “Justificativa”:
Historicamente o sistema de saúde no país está centrado no modelo médico
e hospitalar. No setor de saúde mental esta realidade não é diferente, com o
agravante de que as pessoas portadoras de sofrimento mental o recurso
hegemonicamente disponível é o hospital psiquiátrico, que em 200
(duzentos) anos de existência no país serviu para o isolamento, segregação
e cronificação dos portadores de sofrimento mental (SOUZA, 1994, p. 4).
Ao inserir no fluxo dos acontecimentos históricos este discurso, materializado
como um Projeto, observa-se que o mesmo foi precedido e é atravessado pelos
movimentos provocados pela antipsiquiatria, pela intervenção de Basaglia, na Itália,
pelos embates em prol da reforma sanitária e da Reforma Psiquiátrica no Brasil e
por todo o processo de redemocratização do país. Em vistas a estes
acontecimentos, um discurso que se alinhe à psiquiatria asilar é também um
discurso que soa como posicionado a favor da tortura, da supressão da liberdade e
da violação dos direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988. De certa
forma, o texto em análise procura propagar que o não-comprometimento dos
gestores municipais com a legislação em saúde mental da década de 1990 sinaliza
uma proximidade com a antiga ordem, apontada como segregadora. Em outro
momento, o texto remete seus interlocutores às experiências de ‘desospitalização’ e
‘desmanicomialização’ desencadeadas no cenário internacional e nacional.
Experiências que partem do fechamento dos macrohospitais para a constituição de
pequenos núcleos de atendimento e acolhimento em saúde mental. Sobre este
aspecto, vale transcrever a passagem a seguir:
É fato inegável que no mundo inteiro o modelo hospitalocêntrico citado
está em processo de questionamento. Experiências de desospitalização e
desmanicomialização é realidade em vários países como a Itália, Inglaterra,
etc. No Brasil também estamos vivendo este processo. Experiências
pioneiras têm sido realizadas em alguns estados, como por exemplo a
experiência de Santos/SP, que possuía em 1989 um manicômio com cerca
de 600 leitos que no momento está desativado. Esta desativação se deu
concomitantemente à implantação de serviços alternativos ao hospital como
o NAPS (Núcleo de Atenção Psicossocial), Centros de Convivência,
Ambulatórios de Saúde Mental, Urgência Psiquiátrica no Pronto-Socorro
(SOUZA, 1994, p. 4).
121
Trazer à cena trajetórias percorridas, concretas, conduz o leitor a
compreender que o Projeto, apesar de ser constituído a partir da ordem do desejo,
pauta-se pelo princípio da realidade, com todas as restrições que isto impõe.
Entretanto, neste ponto reside o perigo de se acolher como novo ou como uma
criação recente o que por ele é pronunciado. Ora, conforme demonstrado por
Foucault (2002a), ao longo dos culos formou-se uma clara separação entre a
razão e a loucura, o que impôs ao discurso do “louco” uma série de interdições e
restrições. Em contrapartida, ocorreu uma proliferação do discurso da razão sobre a
loucura e isto perpassa a percepção que se tem sobre esta última.
Michel Foucault, ao empreender suas investigações sobre a loucura, buscou
demonstrar como, ao longo da história, a percepção acerca do louco foi
determinante nas relações institucionais estabelecidas com o mesmo. Nesse
sentido, o conceito de percepção refere-se à maneira de considerar o louco estando
intimamente ligada ao modo de agir sobre ele, dependendo de regras e critérios que
não são estabelecidos pelo discurso teórico. Porém, mesmo que o autor diferencie
percepção de conhecimento, isto não quer dizer que se trata de ausência de
discurso ou exclusão de saber. Trata-se, sobretudo, de uma relação com pessoas
que se dá ao nível das instituições.
Segundo Machado (1981), o conceito de percepção acima mencionado
representou uma contribuição teórica valiosa, pois - a partir dele Foucault (1972)
pode orientar grande parte da investigação realizada na sua História da Loucura,
podendo, assim, elucidar acontecimentos que não haviam sido mencionados pelos
historiadores da psiquiatria. Ao analisar esta primeira obra de Foucault, Roberto
Machado escreve:
Na época clássica, as instituições que recebiam os loucos, os critérios de
internação, a designação de alguém como louco e sua conseguinte
exclusão da sociedade não dependiam de uma ciência médica, mas de uma
‘percepção’ do indivíduo como ser social, que o estatuto do louco é
conferido não pelo conhecimento médico, mas por uma percepção social
(MACHADO, 1981, p. 63).
A passagem acima atesta a necessidade de a psiquiatria ser considerada como
uma disciplina recente e a doença mental ser entendida como uma construção
122
derivada de uma complexa relação entre o discurso científico, político e jurídico, que
a delimitou em um tempo posterior à construção dos hospícios. A doença mental
não é da ordem da natureza, mas da ordem do discurso
36
. Este pressuposto reitera
que as práticas estabelecidas em torno da “loucura” acontecem dentro da história,
estando intimamente ligadas à época na qual ocorreram.
Vale lembrar que junto aos movimentos em prol da Reforma Psiquiátrica
consolida-se discursivamente o enunciado ‘saúde mental’. Logo, este enunciado
remete a um meio institucional que o é mais o hospital psiquiátrico. Ao longo do
Projeto elaborado pelos profissionais de Betim, “saúde mental” aparece em 40
passagens; contudo, no texto citado, não uma definição ou mesmo elaboração
acerca desta expressão. Marcado pela história que o precede, o enunciado ‘saúde
mental’ o remete a uma essência ou descreve uma coisa, segundo os
pressupostos de Deleuze e Guattari (1992, p. 33), pode-se dizer que o mesmo “diz
de um acontecimento”, inscrito no tempo e no espaço das instituições especializadas
na organização da vida criadas no Brasil entre os anos de 1980/90.
O Projeto ora analisado tem como formação discursiva principal o discurso
político, porém ele é proferido por um conjunto de técnicos, de profissionais, cujo
discurso da ciência norteia sua fala, dando uma aparência de unidade ao texto. Sob
a aparência da unidade, Foucault (2002a) reconhece “séries” discursivas. Séries
inerentes a uma ordem que é a do acontecimento e não da criação. Dessa forma,
pensar em regularidades do discurso implica em considerá-lo como emergindo a
partir da história, em seus encontros e rupturas. Emergindo (e não sendo criado) a
partir das condições de possibilidade de uma determinada época.
Conseqüentemente, sobre o caso de Betim, os profissionais demarcaram três
aspectos fundamentais:
1) em Betim não existe hospital psiquiátrico;
36
A respeito desta problematização sugerimos a obra: NADI, Yonissa Marmitt. Palácio para guardar
doidos: uma história das lutas pela construção do hospital de alienados e da psiquiatria no Rio
Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da universidade/UFRGS, 2000.
123
2) existem pessoas, na cidade, “acometidas de sofrimento psíquico, em crise,
na eminência da crise e egressos de hospitais psiquiátricos” (SOUZA, 1994,
p. 3), que precisam de atendimento, por isso recorrem aos hospitais de Belo
Horizonte;
3) a recorrência a Belo Horizonte não interrompe um ciclo de crises-
internações.
Estes três aspectos são delineados junto à apresentação dos dados
consolidados pela Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte (SMSBH),
referentes ao número de atendimentos prestados aos moradores de Betim, em
instituições psiquiátricas públicas e privadas da capital no ano de 2003. Na tabela 4,
encontra-se a transcrição destes dados, pois os mesmos quando observados, junto
à fala precedente e à que se segue dos trabalhadores em epígrafe, dão mostras de
como o discurso vai sendo trabalhado de forma a constituir uma ordem
multidisciplinar, que pressupõe um outro modo de organização que não mais é
derivado do modelo Panóptico, aproximando-se em grande medida da imagem do
que Deleuze (1995) conceituou como Rizoma.
Tabela 4
Número de atendimentos prestados a pacientes provenientes de Betim em instituições psiquiátricas
públicas de Belo Horizonte, no período de janeiro a dezembro de 1993, em Hospitais/Clínicas
privadas conveniadas entre os meses de agosto/setembro/outubro de 1993 e consultas ambulatoriais
realizadas no trimestre agosto/setembro/outubro de 1993. Dados referentes ao local de atendimento,
à modalidade de intervenção e ao número de atendimentos prestados (consultas, internações ou
consultas ambulatoriais).
Local de atendimento Modalidade da intervenção
Consultas ou internações
de atendimentos
Instituto Raul Soares* consultas
60
Instituto Raul Soares internações
09
Hospital Galba Veloso (HGV)* internações
73
Posto de Urgência Psiquiátrica do HGV consultas
524
Clinica Serra Verde** internações
02
Clínica Pinel S/A** internações
22
Clínica Nossa Senhora de Lourdes** internações
0
GD Psiquiatria LTDA*** internações
03
Hospital Galba Veloso Consultas ambulatoriais
185
Hospital Raul Soares Consultas ambulatoriais
197
PAM Psiquiatria Padre Eustáquio*** Consultas ambulatoriais
500
* Hospitais psiquiátricos estatais
** Hospitais psiquiátricos privados conveniados
*** Ambulatório estadual
Fonte: SMSBH, 1993, apud SOUZA, 1994, p. 5. Tabela elaborada pela autora.
124
Em um ato contínuo à apresentação dos dados, os profissionais traçam um
panorama da assistência em saúde mental na cidade, como pode ser observado na
transcrição a seguir:
A organização atual do serviço de Saúde Mental de Betim é insuficiente
para o atendimento da demanda da população. Temos equipe de saúde
mental apenas em duas unidades de saúde e estas ainda estão
incompletas. E temos pulverizados em algumas unidades básicas de saúde
profissionais isolados. Além disso, os serviços funcionam diurnamente, de
segunda a sexta-feira, não oferecendo à população atendimento noturno
nem nos finais de semana e feriados. Não nenhum serviço de urgência
psiquiátrica no município, a rede física é precária (SOUZA, 1994, p. 5).
Tais fragmentos, quando comparados às Portaria Ministeriais 189 e 224 e à Lei
Estadual 11.802 dão mostras de como os profissionais foram interpelados e se
identificaram plenamente ao discurso presente nos referidos instrumentos legais. O
cumprimento da “regra mínima” presente na Portaria 224 passa a ser reivindicado
pelos profissionais que recorrem a estatísticas, ao diagnóstico da realidade local e
ao mapeamento da população que, aos poucos, vai sendo constituída como público
alvo da política publica municipal almejada. A identificação ao discurso legal é
tamanha que a grande luta desencadeada em Bauru é silenciada; observa-se que,
em Betim, não se luta “por uma sociedade sem manicômios”, mas pela implantação
de uma “rede em saúde mental” que abarque a população da região de Betim,
reivindicação que não é equivalente à luta pela extinção dos grandes hospitais
psiquiátricos. Esta aspiração, de certa forma, parece aproximar-se do movimento
ocorrido na França, conforme relata Félix Guattari:
A psiquiatria na França foi modernizada em seus equipamentos: toda
uma política de abertura, de desenvolvimento de equipamentos extra-
hospitalares – enfim, de setorialização. Essa política de setorialização é
reformista, ela o resolveu nenhum problema fundamental. Primeiro,
porque reforça o sistema de esquadrinhamento que existe em todos os
outros registros de controle social. E, depois, porque a reforma que ela
implantou na França fracassou. O que aconteceu foi uma multiplicação de
equipamentos de outra natureza, mas os grandes bastiões da psiquiatria
não foram tocados [...].
A política de setor instaurou-se, na França, a partir de 1960: os poderes
públicos, apoiados nas correntes progressistas da psiquiatria institucional,
quiseram fazer com que a psiquiatria saísse dos grandes hospitais
repressivos. Pretendia-se aproximar a psiquiatria da cidade. Isso conduziu a
criação daquilo que foi chamado de ‘equipamentos extra-hospitalares’:
centros de saúde, hospitais-dia, albergues, ateliês protegidos, visitas
domiciliares, etc. Essa experiência reformista transformou o aspecto social
externo da psiquiatria sem por isso desembocar num verdadeiro
empreendimento de desalienação: miniaturizaram-se os equipamentos
125
psiquiátricos, mas fundamentalmente em nada mudaram as relações de
segregação e opressão (GUATARRI e ROLNIK, 1996, p.95).
Em relação ao caso de Betim, o esquadrinhamento da população respalda-se
principalmente no saber médico, o qual é historicamente aceito como cientifico. No
caso em análise, o discurso da ciência situa-se na construção do Projeto
marcadamente como um recurso ao principio de autoridade, em vistas a legitimar e
tornar hegemônico aquilo que é dito. Torna-se oportuno observar as recorrentes
formas utilizadas para caracterizar e constituir o público dos serviços de saúde
mental de Betim. Com a intenção de ilustrar este aspecto, serão citados 3 exemplos:
em primeiro lugar, a Tabela 5 onde consta a transcrição dos diagnósticos atribuídos
à população atendida, entre janeiro e 15 de março de 1993, pelos profissionais de
saúde mental do município; em seguida, o Objetivo Geral do Projeto, bem como o
Público Alvo definido neste mesmo documento.
Tabela 5
Número de pessoas em atendimento pelos profissionais de saúde mental de Betim, entre janeiro e 15
de março de 1993, e quadro clínico.
Psicóticos 150
Neuróticos 286
Epiléticos 24
Oligofrênicos 19
À esclarecer 23
Alcoolista e Drogadicto 25
Fonte: SOUZA, 1994, p. 6.
Objetivo Geral:
Implementar a política de saúde mental em curso no país, através da
estruturação de uma rede de serviços, com níveis de complexidade
compatíveis com a nova política de saúde mental, visando prioritariamente o
atendimento de pessoas acometidas de sofrimento psíquico em crise, na
eminência de crise e egressos de hospitais psiquiátricos residentes no
município de Betim e regiões adjacentes, evitando a internação e
cronificação em hospitais psiquiátricos buscando a reinserção social e o
resgate da cidadania do louco (SOUZA, 1994, p. 7).
Público Alvo:
“Psicóticos, Neuróticos, Alcoólatras, Toxicômanos, Oligofrênicos, egressos de
hospital psiquiátrico e pacientes em crise que não demandem internação intensiva”
(SOUZA, 1994, p. 9).
126
A Tabela 5 mostra o número de pacientes atendidos em um pequeno intervalo
temporal; segundo os dados, foram 527 pessoas. Quanto ao diagnóstico que
receberam, alguns são recorrentes nas antigas legislações que regulamentavam as
internações psiquiátricas no passado como, por exemplo, os alcoólatras e os
psicóticos. Entretanto, outros quadros clínicos são somados, emergem as figuras
contemporâneas dos ‘drogadictos’ e dos ‘toxicômanos’. Quando se compara o item
“Objetivo Geral” ao tópico seguinte: “Público Alvo”, vê-se que “Loucos” e “neuróticos”
são enunciados em uma mesma rie discursiva, que, a princípio, parece
homogênea, mas que deixa mostrar as descontinuidades que afetam o sujeito e o
incitam a uma pluralidade de posições e funções possíveis (FOUCAULT, 2002a).
Quando colocados lado a lado, os textos do “Objetivo Geral” e do fragmento
citado da “Justificativa”, percebe-se a repetição do mesmo texto, exceto das últimas
frases. O extrato da justificativa termina da seguinte forma: “Estes serviços
constituídos darão respostas efetivas aos usuários que deles necessitam(SOUZA,
1994, p. 3). no Objetivo Geral, este fragmento é substituído por: “...evitando a
internação e cronificação em hospitais psiquiátricos buscando a reinserção social e o
resgate da cidadania do louco” (SOUZA, 1994, p. 7). Os enunciados do segundo
texto ocupam dois lugares significativos, quando se tem em vista aquilo que os
precederam. A construção final da justificativa é uma promessa: quando a mesma é
sobreposta ao enunciado que a substituiu, a construção final pode ser lida da
seguinte forma: Os novos serviços serão tão efetivos que evitarão as internações
nos hospitais psiquiátricos e a cronificação por eles provocada.
Em relação ao restante dos fragmentos, é significativo dizer que, em todo o
Projeto, o adjetivo “louco” aparece apenas uma vez. Emergindo na construção
discursiva no lugar da passagem: “daqueles que necessitam”, sinteticamente
sugere-se: o louco é aquele que necessita do serviço de saúde mental, para ser
reinserido no social e ter o estatuto de cidadão resgatado. Ao mesmo tempo em que
aparece a intenção de reescrever a história das instituições com a loucura sob
outros moldes, mantem-se a supremacia da ‘razão’ sobre a ‘não razão’.
Quanto ao público alvo, deve estar claro que o objeto de análise ora proposto
não é realizar um histórico das psicopatologias, onde se trataria de localizar a matriz
127
epistemológica de cada classificação, porém é digna de atenção a multiplicidade de
discursos que perpassa a busca de ‘classificação’ do sujeito e daquilo que lhe
acomete. No caso, a variedade de discursos pode tanto indicar uma abertura do
campo tradicional da psiquiatria a outros saberes (inclusive o saber de cada um
sobre o cuidado de si), como pode também simular uma conversação sustentada
pelo efeito da expressão: ‘equipe multiprofissional’, enquanto o que se passa é a
antiga cena da Torre de Babel.
Em relação ao Projeto, resta ainda dizer que o mesmo foi acatado e
implementado pela Frente Betim Popular e, apesar dos desafios e impasses
impostos pelo jogo político, sobretudo no que se refere à alternância do poder, a
“rede” almejada tornou-se realidade e ainda mantêm-se atuante. Em 2007, o
CERSAM Betim Central comemorou uma década de funcionamento como CAPS III,
o que lhe permite estar de portas abertas e assim ofertar à população atendimento
ininterrupto, conforme relatado por Generoso (2007) no Encontro Nacional “20 Anos
de Luta Por Uma Sociedade Sem Manicômios”, realizado em Bauru no ano de 2007.
Por fim, uma questão se impõe: a comparação entre o Projeto de Saúde
Mental para o Município de Betim-MG e a Lei de 1903, que regulamentou a
Assistência a Alienados em Minas Gerais, permite dizer que se trata agora de um
discurso novo ou o que se assiste são as transformações de um discurso e suas
diferentes formas de relação com a instituição e com a loucura? Esta questão o
será aqui respondida, pois o que se buscou foi apenas descrever qual contexto
precedeu e perpassa a fala dos Técnicos de Referência que adiante seestudada.
Está evidente que um grupo de profissionais participou da construção do Projeto até
aqui discutido; entretanto, tal grupo não se mantém o mesmo, assim como era;
daqueles primeiros profissionais, hoje, alguns se ocupam do discurso universitário,
outros estão nos órgãos de governo; outros, porém, permanecem na assistência ao
usuário, a estes profissionais outros novos se juntaram. Portanto, o que se indaga
é como, na atualidade, os diversos enunciados que emergiram com os movimentos
pela Reforma Psiquiátrica são percebidos e inseridos na ordem do discurso pelos
Técnicos de Referência que atuam nas unidades do CERSAM do município de
Betim.
128
4.4 O discurso dos Profissionais
Nesta seção, será objeto de estudo o discurso dos Técnicos de Referência que
atuam nas três unidades do CERSAM, para adultos, do município de Betim. A
nomeação deste profissional dentro da instituição faz parte de uma construção
interna, que o coloca no centro da relação estabelecida entre usuário-CERSAM. As
palavras de Souza, Maia e Teles são esclarecedoras a este respeito:
Trabalhamos com o conceito de Técnico de Referência, onde um terapeuta
médico ou não médico assume a posição clínica de conduzir o tratamento e
auxiliar o sujeito em seu percurso. É através desse técnico que se constrói o
vínculo com o tratamento e com o centro de referência (1996, p. 4).
Para que ocorresse o encontro com os Técnicos de Referência a serem
entrevistados, o primeiro passo consistiu em apresentar à Referência cnica de
Betim, o psiquiatra Alexandre A. Pereira, o Projeto de Pesquisa de Mestrado
submetido ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da
UNISC, juntamente com o roteiro das entrevistas
37
. Após a aprovação da proposta
pelo mesmo, foram realizadas 18 entrevistas semi-estruturadas com representantes
de todas as categorias profissionais, de nível superior, que formam as equipes
multiprofissionais. Nomeia-se aqui como entrevista semi-estruturada uma técnica de
coleta de dados, onde o entrevistador apresenta algumas perguntas ao entrevistado
com a intenção de estabelecer com o mesmo uma conversação, a partir de temas
definidos previamente pelo pesquisador, em vistas à realização do estudo de caso
aqui proposto (MINAYO, 1996). Esta fase da pesquisa ocorreu entre os dias 10 a 15
de janeiro de 2007.
Foram, portanto, entrevistados 33% dos profissionais que atuam no CERSAM,
entre eles: 03 Assistentes Sociais, 04 Psicólogos, 05 Psiquiatras, 01 Enfermeiro, 03
Farmacêuticos e 02 Terapeutas Ocupacionais. Pessoas que gentilmente aceitaram o
convite de falar sobre o campo no qual trabalham; o público que atendem; sobre o
seu papel e a prática que realizam no dia-a-dia de uma instituição pública de saúde.
A grande maioria das entrevistas foi concedida no próprio ambiente de trabalho, ao
longo dos plantões diurnos, noturnos ou plantões no final de semana. Alguns
37
Anexo I.
129
profissionais, mesmo estando em férias, foram ao serviço com a finalidade de serem
entrevistados. Um deles, também em virtude de seu período de descanso, recebeu a
pesquisadora em sua própria residência, após acordo estabelecido pelo telefone.
As entrevistas foram todas gravadas e, posteriormente, transcritas, totalizando
um montante de, aproximadamente, 26 horas de áudio e 140 ginas de texto. A
transcrição das falas buscou ser o mais fiel possível à forma como cada entrevistado
se expressa; assim, não foram realizadas correções de estilo ou excluídos eventuais
vícios de linguagem. Quando, neste estudo, forem citados fragmentos das
entrevistas, a autora reserva-se o direito de o entrecortar as passagens com a
expressão sic”, mesmo quando o discurso do entrevistado não se adequar
plenamente à forma culta da língua portuguesa. Para garantir a privacidade dos
entrevistados, os nomes foram excluídos e, na maioria das vezes, não será
mencionada a categoria profissional do informante e/ou seu local de trabalho, uma
vez que algumas profissões têm apenas um representante em cada unidade do
CERSAM, como os Terapeutas Ocupacionais e Farmacêuticos.
A tabela 6 apresenta um breve perfil dos entrevistados. Conforme os dados
agrupados na mesma, vê-se que a grande maioria dos profissionais realizaram o
curso de graduação em instituições localizadas na capital mineira, sobretudo na
Universidade Federal de Minas Gerais e na Pontifícia Universidade Católica (PUC).
Destas pessoas, aquelas que se formaram mais de 15 anos relatam que foram
alunas dos principais militantes pela Reforma Psiquiátrica em Minas Gerais, sendo
influenciados desde a graduação pelo Movimento da Luta Antimanicomial. Tal relato
não se verifica nos profissionais formados entre 1 e 4 anos. Em relação aos que
fizeram Especialização Lato Senso, uma grande parte foi realizada na Escola de
Saúde Pública de Minas Gerais, instituição reconhecida na formação de
profissionais no campo da saúde pública e saúde mental.
Quanto aos profissionais dicos psiquiatras, todos eles tiveram experiência
em hospitais psiquiátricos, pois - conforme os entrevistados - o Programa de
Residência Médica em Psiquiatria, em Minas Gerais (e o extinto Programa de
Residência Multiprofissional), somente era oferecido dentro de hospitais
130
psiquiátricos. Dos profissionais de outras áreas, dois deles participaram do antigo
Programa de Residência Multiprofissional em Psiquiatria. Do grupo geral de
entrevistados, três atuaram profissionalmente em instituições manicomiais.
Tabela 6
Perfil dos entrevistados quanto ao local de formação; tempo de formados; instrução; experiência em
Hospital Psiquiátrico; tempo de trabalho no CERSAM e modalidade de ingresso no mesmo.
Local de Formação
UFMG
Campus Belo Horizonte
Universidades de
outros locais do Estado
de MG
PUC Minas
Campus Belo
Horizonte e Betim
Outras faculdades
privadas de Belo
Horizonte
N %
N %
N %
N %
7 38,88
3 16,66
6 33,33
2 11,11
Total de Respostas (TR): 18
Tempo de Formados
1 a 4 anos 5 a 10 anos 11 a 14 anos 15 a 20 anos 21 a 24 anos
N %
N %
N %
N %
N %
3 16,66
7 38,88
1 5,55
4 22,22
3 16,66
TR: 18
Instrução
Apenas Superior
Completo
Programa de
Residência Médica e
Multiprofissional
Pós-Graduação Lato
Senso
Pós-Graduação Strictu
Sensu – Mestrado
N %
N %
N %
N %
2 11,11
7 38,88
12 66,66
2 11,11
TR: 18
Nota: 3 dos respondentes fizeram Pós-graduação Lato Senso e Residência;
1 respondente fez Especialização e Mestrado e outro fez todas as formações citadas acima, entre
outros cursos.
Experiência em Hospital Psiquiátrico
Trabalhou em Hospital Psiquiátrico Realizou Residência Médica ou Multiprofissional
em Hospital Psiquiátrico
N %
N %
3 16,66
7 38,88
TR:18
Tempo de Trabalho no CERSAM
1 a 4 anos 5 a 9 anos 10 a 14 anos
N %
N %
N %
11 61,11
1 5,55
6 33,33
TR: 18
Modalidade de ingresso no CERSAM
Concurso Público p/ o
CERSAM
Contrato Transferência de
Unidade
Extensão de Jornada
N %
N %
N %
N %
6 33,33
5 27,77
3 16,66
4 22,22
TR: 18
Como pode ser verificado na Tabela 6, o maior número de trabalhadores atuam
no CERSAM menos de 09 anos. Outro aspecto relevante, diz respeito ao número
de profissionais não-concursados, especificamente para o CERSAM; ou seja,
131
66,66% deles ingressaram na instituição seja através da extensão de jornadas, seja
pela transferência de unidade ou pela realização de contratos emergenciais. No ato
das entrevistas, as três unidades do CERSAM contavam com 54 profissionais de
nível superior. Entretanto, frente à falta de profissionais concursados (com
dedicação exclusiva para a unidade onde fossem lotados), a alternativa encontrada
foi a contratação de técnicos apenas para plantões noturnos, outros para finais de
semana; outros profissionais trabalham no CERSAM por meio de ‘horas-extras’, ou
extensão de jornadas. Os mesmo se deslocam de distintas unidades de saúde do
município, como as UBS ou UAI, para suprir as necessidades mais imediatas do
CERSAM. Nesse sentido, deve ser sinalizado que o grande número de profissionais
não representa, necessariamente, uma ampliação do atendimento à população.
Estes fatos perpassam as falas dos entrevistados em muitos momentos, como será
evidenciado ao longo do próximo item.
Dentre as diversas questões destacadas pelos Técnicos de Referência do
CERSAM, chama-se aqui atenção para as seguintes categorias: ‘Reforma
Psiquiátrica’ e ‘saúde mental’. Junto às mesmas, será discutido o modo como se
constitui no discurso dos Técnicos de Referência o público por eles atendido. A
discussão pretende contemplar ainda como os próprios profissionais inserem na
ordem do discurso a percepção que têm sobre o que vem a ser o Técnico de
Referência. Para tanto, cada entrevista não será considerada isoladamente. Ao
contrário, serão tomadas como um todo que constitui o discurso dos Técnicos de
Referência. Pretende-se que este corpus discursivo seja escutado não em sua
totalidade horizontal, mas em sua profundidade vertical, onde “a língua, a história e a
ideologia concorrem conjuntamente” (ORLANDI, 2003, p. 35).
4.4.1 Reforma Psiquiátrica
Resumidamente, a literatura a respeito do tema define a Reforma Psiquiátrica
brasileira como um movimento de contestação à lógica manicomial, cujas origens
remontam ao movimento da Antipsiquiatria e à Psiquiatria Democrática, liderados
por Laing, David Cooper e Basaglia, respectivamente.
132
No plano nacional, as mobilizações pela redemocratização do país e a luta pela
reforma sanitária podem ser apontadas como algumas das condições de
possibilidade do acontecimento em questão (ZENHA, 2001). Todavia, neste item,
importa, sobretudo observar como o enunciado ‘Reforma Psiquiátrica’ é percebido
pelos profissionais do CERSAM de Betim-MG. Desta forma, merecem atenção as
respostas de quatro entrevistados à pergunta: O que você entende pela Reforma
Psiquiátrica?
Reposta 1:
Olha...eu não sei te explicar direito, porque como eu estou te falando tem
pouquíssimo tempo que eu to aqui, mas o que eu escuto o pessoal
falando... a gente vai nas reuniões... essa questão que antes os pacientes
eram internados... tem essa questão que eles ficavam como se fossem... é
isolados mesmo... tinha aquele tratamento de choque, aquela coisa mais
grosseira, brutal, hoje em dia não, já não tem essa internação... entre
aspas... passou a ter a permanência-dia, a permanência-noite... uma coisa
mais leve.
Reposta 2:
O quê que eu entendo? A Reforma Psiquiátrica ela veio mesmo né? pra...
tentando instituir essa mudança, essa visão do campo da saúde mental,
bem com essa questão da saúde mental. Cria-se um novo espaço, um novo
olhar sobre as doenças mental. Ela veio mesmo para garantir direitos, incluir
também o doente mental na sociedade e, além disso, desospitalizar.
Reposta 3:
A Reforma Psiquiátrica é um movimento que veio para mudar um pouco a
maneira como o paciente é abordado, tratado, né? E mesmo a maneira de
se enxergar o paciente dentro da rede de saúde mental. Então, eu penso
que é isso, uma maneira nova de tratar o paciente, de enxergar o paciente
dentro da rede... eu considero isso.
Resposta 4:
Mas, eu acho que a Reforma tinha que acontecer, não tinha como hoje em
dia a gente pensar na situação como viviam aquelas pessoas nos
manicômios, nos hospícios, assim né... totalmente esquecidas... alienadas...
com direito a nada... escolher se quer o que pudesse comer ou que
pudesse vestir, né? então eu acho assim, foi assim de muita importância e é
por isso que os CERSAM estão ai hoje, a rede de dispositivos alternativos
133
estão todos ai hoje e eu acho que tem que continuar mesmo lutando, com
moradia protegida, com trabalho protegido, com gerações de trabalho e
renda, para reinseri-los né?
Tais falas, quando consideradas em conjunto, apontam para algumas questões
essenciais. Uma delas refere-se, desde início, à menção da restrição da discussão e
do entendimento do que venha a ser ‘Reforma Psiquiátrica’ aos profissionais que
atuam nos serviços de saúde mental. O primeiro fragmento dá a idéia de uma
sociedade de discurso (FOUCAULT, 2002a), cujo acesso é permitido apenas aos
iniciados, no caso, os profissionais que partilham de um saber disciplinar. Torna-se
claro, ainda, a construção de um antagonismo entre o Hospital Psiquiátrico e os
atuais serviços de saúde mental: aqueles a clausura, a privação de direitos, estes a
inclusão, a reinserção, internação entre aspas e “uma coisa mais leve”.
Logo em seguida, torna-se importante observar o emprego do verbo vir na
construção das frases, como nesse exemplo: “a Reforma Psiquiátrica veio
mesmo...”, insinua-se aqui uma forma de narrativa onde a origem da Reforma
Psiquiátrica não é circunscrita em lugar algum, o que se assemelha a uma narrativa
mítica na qual o fato contado está para além do tempo e do espaço, em uma
espécie de imanência que se assemelha a ordem da natureza e o a ordem do
discurso, que é datado e comprometido com as condições políticas, econômicas e
sociais de sua época. Merece destaque ainda, o uso do verbo vir no passado, isso
ocorre duas vezes em uma mesma resposta, sendo empregado também, quase
literalmente, na resposta 03. Se a Reforma é algo do passado sugere-se que na
atualidade a relação com a ‘loucura’ aconteça de outros modos, sob ‘outros olhares’,
que não mais aqueles caracterizados pela era manicomial. Esta premissa está
presente sobretudo nas respostas 01 e 02, onde pode-se ler: “[...] antes os pacientes
eram internados [...]”; “[...] na situação como viviam aquelas pessoas nos
manicômios, nos hospícios[...]”. Em ambas as passagens, o modo como as frases
são construídas coloca em um passado longínquo a ocorrência das internações
psiquiátricas. Logo, parece não fazer parte do horizonte dos entrevistados a
existência de 52.406 leitos, distribuídos entre 240 hospitais psiquiátricos (localizados
em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais a grande maioria dos hospitais e dos
leitos). Estes números se referem a março de 2004, conforme reportagem presente
no Portal do Ministério da Saúde (ver: BRASIL, 2004).
134
Deve-se considerar o fato de Betim ser o contexto imediato a partir de onde
falam os entrevistados, cidade cujo território jamais abrigou um hospital psiquiátrico;
porém isto não quer dizer que alguns dos moradores da cidade nunca foram
internados em tais instituições. Como discutido anteriormente, as pessoas que
‘necessitavam’ de algum tipo de atendimento no campo da assistência psiquiátrica
eram encaminhados aos hospitais públicos e às clínicas privadas da capital mineira.
No entanto, quando se observa apenas as respostas acima transcritas, este fato
parece cair em uma espécie de “esquecimento ideológico”, conforme conceitua
Orlandi (2003, p. 35). Por outro lado, o contexto mais amplo onde tal discurso é
enunciado envolve todos os movimentos reacionários em prol das grandes
estruturas psiquiátricas, isto é, uma série de práticas que buscam nos efeitos de
saber/poder da ciência seu maior respaldo. Para exemplificar esse contexto mais
amplo, vale citar o recente uso de um veículo de mídia com o aparente intuito de
mobilizar diversos segmentos da população a reivindicar o restabelecimento das
amplas instituições de internação; nomeadamente, cita-se aqui a reportagem
veiculada pelo Jornal O Globo, dia 09 de dezembro de 2007, sob o título: “Sem
hospícios morrem mais doentes mentais”. O conteúdo desta reportagem aponta o
fechamento dos leitos psiquiátricos como causa para o aumento de mortes no Brasil
dos portadores de sofrimento mental. Argumento considerado tendencioso e
notadamente comprometido com os interesses econômicos, conforme manifesto
assinado pelo CEBES e por outras instituições da sociedade civil
38
.
Tendo em vista a discussão precedente e ainda sobre o tema da Reforma
Psiquiátrica, torna-se oportuno considerar o relato de um dos profissionais
entrevistados:
Bom... ela eu acho que assim, num primeiro momento, ela [Reforma
Psiquiátrica] foi construída muito mais pelo desejo de algumas pessoas e,
nesse momento atual, eu acho que ela passando por um momento meio
complicado. Porque a reforma, ela tem muitos atores vinculados a ela
buscados na área do serviço social, da psicologia, terapia ocupacional...
mas eu acho que na formação ela... o lado dos psiquiatras está meio
sucateado. A gente que alguns psiquiatras que, estão se formando
recentemente, não estão mais com aquela visão da psiquiatria social da
38
Sobre esta discussão recomenda-se a leitura da reportagem: Manifesto defende a Reforma
Psiquiátrica brasileira contra constantes ataques veiculados no jornal O Globo, disponível em:
cebes.org.br (acessado em 08/02/2008).
135
década, por exemplo, de 95, 96, 97, 98 até mais ou menos 99, 2000, que é
a turma dos últimos que chegaram aqui... ce que o pessoal saiu com
uma formação de psiquiatria social. Depois ce uma retomada à formação
médica mais pesada. E eu acho que isso compromete sim o funcionamento
dos CAPS e a idéia da Reforma Psiquiátrica, porque na verdade você vê, de
novo, uma outra fala na direção do hospital.
Neste fragmento, o entrevistado não nomeia as pessoas que, segundo ele,
desejaram e construíram a Reforma Psiquiátrica, mas ao apontar que a mesma é
fruto do desejo de alguns sujeitos, o enunciador parece fazer a seguinte operação:
A) a reforma foi construída a partir do desejo de algumas pessoas: psicólogos,
assistentes sociais, terapeutas ocupacionais e alguns (antigos) psiquiatras
sociais;
B) Os médicos psiquiatras, formados depois de 2000, não partilham do desejo
de fazer a reforma;
C) A formação dos psiquiatras atuais sustenta-se no modelo biomédico; logo,
privilegia-se os hospitais em detrimento dos CAPS, rompendo assim com os
ideais da Reforma Psiquiátrica.
O entrevistado conclui sua resposta com as seguintes palavras:
você percebe alguns profissionais que estão chegando na rede, que são
dessas últimas turmas que estão vindo agora – eu vi isso muito o ano
passado no Teresópolis que a gente percebe isso muito bem... falando
muito mais nesses casos que a gente sempre segurou no CERSAM, em
internação, tá... com uma facilidade muito maior do que a anterior.
Esta fala mostras de como a linguagem é constantemente afetada pela
história, de forma que a compreensão dos sentidos relaciona-se, em grande medida,
com a exterioridade e não com a intenção do enunciador (ORLANDI, 2003). Para
além de apontar diferenças e semelhanças entre profissionais novos e antigos, a
passagem supracitada aponta a reedição de um acontecimento comparável ao
desencadeado pela Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, entre 1929
e 1930, quando a corporação médica suscitou uma importante articulação
profissional e política com o fim de reivindicar a construção de uma organização
especializada no trato da loucura. Na atualidade, porém, as condições de
136
emergência de um discurso conservador apresentam características distintas
(quanto à forma mais que o conteúdo) daquelas encontradas nas primeiras décadas
do culo XX. Época na qual pessoas como o escritor Lima Barreto (devido ao uso
abusivo de álcool ou pela condição de indigentes) eram internados
compulsoriamente em instituições manicomiais.
Antes, porém, da presente análise avançar para outras questões, duas
respostas sobre o tema suscitam algumas ponderações, sendo elas:
Resposta 06:
O que eu entendo? Eu entendo que foi um mecanismo necessário para
mudar muitas coisas que estavam muito inadequadas e até ilegais, com a
reforma foi ficando mais organizado e foram colocadas dentro de um padrão
de conduta, ético é... e clínico também. Acho que foi um movimento que foi
necessário, que teve a sua época.
Resposta 07:
Eu tenho antipatia desse nome Reforma Psiquiátrica, eu acho que nada é...
nada é... reformar... você reforma aquilo que está estragado, entendeu?
Talvez aquilo queo presta mais você tenta reformar. Assim um ventilador
que estraga, cai e quebra, você reforma. Um vídeo cassete que não presta
mais tenta recauchutar ele, enfim... eu acho que essa palavra reforma
ela... ela atrapalha o movimento que se quer fazer... que é um movimento
instituinte, um movimento que institui alguma coisa, que está para ser
instituído, que o dia que ele for instituído ele vai morrer.
Apesar das visíveis diferenças, as respostas 06 e 07 foram dadas por
respondentes da mesma categoria profissional, ambos são médicos psiquiatras. Nas
duas passagens, percebe-se um embaraço quanto ao uso do enunciado ‘reforma’.
Em termos gramaticais, trata-se de um substantivo feminino que oferece múltiplas
possibilidades de emprego. Ao mesmo tempo, deve-se lembrar que os sentidos
atribuídos às (quase) infinitas variações deste termo não nascem a cada vez que o
mesmo é pronunciado. A este respeito Orlandi afirma que,
quando nascemos, os discursos estão em processo e nós é que
entramos nesse processo. Eles não se originam em nós. Isso não significa
que haja singularidade na maneira como a língua e a história nos afetam.
Mas não somos o início delas. Elas se realizam em nós em sua
materialidade. Essa é uma determinação necessária para que haja sentidos
e sujeitos (2003, p. 35).
137
Conforme este pressuposto, as duas respostas devem ser entendidas como
partes que se conectam a um discurso que as antecederam, deixando marcas que
perpassam o modo como cada um simboliza o que vem a ser Reforma Psiquiátrica.
Segundo Bezerra Junior (1994), a “psicoterapia institucional”, a “psicoterapia de
setor” e a “psiquiatria preventiva” foram iniciativas cuja intenção era formular
alternativas ao modelo psiquiátrico tradicional, mas que, na verdade, apenas
aperfeiçoaram o sistema existente, pois as ações mencionadas se restringiram a
uma modificação intra-hospitalar. Dessa forma, quando consideradas as respostas
06 e 07, vê-se que elas apontam distintas perspectivas quanto à ação
desencadeada (ou intencionada) pela Reforma Psiquiátrica; porém, notadamente, a
resposta 06 demarca uma percepção deste movimento como sendo uma importante
adequação e modernização das tecnologias de atenção psiquiátrica e não um
processo de ruptura com o discurso que se tornou hegemônico no que tangencia o
que se chama de sofrimento psíquico.
A resposta 07, por sua vez, parece lidar com os impasses impostos pela língua
em uma tentativa de atribuir outros sentidos a um movimento nomeado como
‘reforma’; parafraseando Orlandi (2003), pode-se dizer que esta resposta desvela
uma tensão entre o retorno aos mesmos espaços do dizer e o deslocamento e a
ruptura de processos de significação. Em termos analíticos, trata-se dos processos
de paráfrase e polissemia, isto é, “duas forças que trabalham continuamente o dizer,
de tal modo que o discurso se faz nessa tensão: entre o mesmo e o diferente”
(ORLANDI, 2003, p. 36).
Para Foucault (2006), a ação desencadeada por Basaglia, na Itália, tinha um
caráter eminentemente revolucionário, que não admitia a reconversão do asilo sob
outros moldes que mantivessem a separação entre os que detêm o poder e os que
não o detêm. Como visto, esta percepção não é hegemônica entre os entrevistados,
tal fato pode ser entendido a partir da assertiva de Pinto, quando ela aponta que “os
sentidos são atribuídos historicamente”, conseqüentemente, todo discurso contém
uma série de significados que ao serem subjetivados pelos indivíduos “provocam
efeitos concretos, na forma das pessoas se relacionarem entre si, na forma como a
história toma seus rumos” (2006, p. 89).
138
4.4.2 Saúde mental
Os movimentos pela Reforma Psiquiátrica, entre outras coisas, possibilitaram a
emergência de uma série de práticas e enunciados que mantém uma importante
articulação entre si, como é o caso da expressão ‘saúde mental’. Na tentativa de
explicitar como, na atualidade, este enunciado é percebido pelos Técnicos de
Referência dos CERSAM de Betim, foi colocada aos mesmos a seguinte questão:
“Como você define saúde mental?”. Com a intenção de citar os elementos presentes
no imaginário social acerca deste tema, vale destacar, inicialmente, 04 repostas
dadas a pergunta em epígrafe:
Resposta 01:
Saúde mental então, não é uma definição teórica, um campo teórico
definido. Eu entendo que é um campo de vários saberes e a saúde mental
seria mais uma estratégia em termos até político mesmo de mudança, de
provocar alguma mudança, de organizar esse campo mais jurídico, de leis,
de implantação de serviços e que comporta vários saberes: psiquiatria,
psicologia, inserção psicossocial e por ai vai... é um campo de vários
saberes mesmo, tanto político, quanto social, cultural e quanto esses vários
saberes que estão ai no meio e a gente precisa de alguma coisa para
amarrar, para orientar esse campo.
Resposta 02:
Saúde mental... saúde mental é a parte... a parte da saúde relacionada ao
tratamento das doenças mentais e do sofrimento mental seja ele orgânico
ou só psíquico, é isso.
Resposta 03:
Saúde mental? Antes quando eu não trabalhava na Saúde Mental eu não
entendia... não é que eu não entendia, eu entendia igual todo mundo
entende. Eu trabalho
39
num posto de saúde então todo mundo dizia: Ah,
aquele paciente ali, aquilo ali é frescura... aquilo ali não é doença”,
depressão principalmente, o pessoal fala que é preguiça... que é o sei o
quê. Só quando você entra dentro da saúde mental que você vê que é muito
mais complexo, que às vezes conversa com uma pessoa acha que
ela é normal, eu não tenho muita experiência da saúde mental, às vezes,
39
Quando entrevistado, o respondente relatou trabalhar no CERSAM e em um posto de saúde.
139
você o paciente e acha que ele é um paciente normal e na verdade ela
tem um problema grave psiquiátrico. Eu acho que a saúde mental é muito
interessante, é uma coisa assim que eu quero estar estudando,
aprofundando, eu quero entender mais ainda... mais assim eu vejo...eu
participo das reuniões clínicas que a gente tem aqui toda sexta-feira, então
eu aprendo muito. Que eu fico assim deslumbrada sabe? como é que pode
assim...uma doença... na cabeça da pessoa mexer com a vida dela, com a
vida da família toda. Eu acho muito interessante, muito interessante e muito
triste, não é nada para você falar que é bom, que não é uma doença que vai
ter cura, então o paciente estabiliza, é muito triste também, eu acho
muito triste.
Resposta 04:
Saúde mental... dentro do SUS é um recorte, da saúde pública que trabalha
com a questão o sofrimento mental, mas se eu for pensar de uma forma
mais ampla eu vou pensar em ações de prevenção, de promoção de
saúde, mas dentro do SUS é esse recorte que precisa ser feito da atenção
ao portador de sofrimento mental.
Em uma primeira leitura, as falas acima não parecem manter nenhuma
correlação entre si. Não caracterizando uma rie que poderia ser representativa
quando se objetiva analisar a percepção de um grupo, localizado no tempo e no
espaço, sobre o que vem a ser - para eles - saúde mental. Entretanto, quando se
leva em conta os sujeitos que falam e para quem falam, certos aspectos deste
discurso vão se tornado menos opacos. Quanto aos enunciadores, está explicito que
se trata de um grupo de profissionais que professam um saber disciplinar. Para ser
Técnico de Referência, está pressuposta a passagem pela academia, pelo mundo
do saber formalizado, com todos os rituais que isso impõe e com todas as restrições
ao discurso que a disciplina requer. O saber da ciência somente pode ser
pronunciado a partir de determinadas regras que regulam seu surgimento;
conseqüentemente, o respeito ou não a estas regras interfere, em grande medida,
na credibilidade ou no descrédito que será atribuído ao conteúdo do que é dito e
difundido.
Quando se considera para quem falam, novamente, a ciência entra em cena,
uma vez que será à academia o lugar para onde será remetido o discurso arquivado
por meio das entrevistas. É nesse jogo entre enunciador e (a imagem que este
forma do) interlocutor que o discurso vai sendo constituído, como um efeito. O jogo
de imagens ultrapassa esta simples relação estabelecida entre entrevistador-
entrevistado, abarcando um emaranhando muito mais amplo onde saber e poder
140
estão em jogo continuamente, estabelecendo relações desiguais, hierarquizadas e
perpassadas pela ideologia. As palavras de Foucault são contundentes a esse
respeito,
Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar
de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar
de qualquer coisa. [...] Por mais que o discurso seja aparentemente bem
pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua
ligação com o desejo e o poder (2002a, p. 9-10).
Em linhas gerais, pode-se dizer que, nas repostas transcritas anteriormente, o
discurso dos Técnicos de Referência a propósito de ‘saúde mental’ assume três
formas, referindo-se a:
1) um campo de interlocução/intervenção de saber (disciplinar) e político;
2) algo interno ao sujeito: doença, mais especificamente, algum tipo de doença
na cabeça;
3) uma política pública, um serviço (equipamento) e/ou uma modalidade de
atendimento/tratamento dentro do SUS.
As perspectivas parecem destoantes entre si, indicando percepções que nada
compartilham; porém, uma escuta mais delicada do que é dito permite evidenciar
que algo comum lhes perpassa, mesmo com as diferentes formas de responder a
questão proposta. Nas repostas destacadas, recorrentemente o saber disciplinar é
evocado, seja como um saber que intervém no campo social, seja como aquele que
desvela e identifica a doença, podendo assim tratá-la, o que demanda por si mesmo
políticas públicas e equipamentos para que tal ato se realize. Nesse sentido, o
discurso científico pode ser apontado como aquele que confere certa
homogeneidade ao que é dito, mas este é um discurso que é inacessível para
aqueles que estão situados fora de determinados grupos.
Para Pinto (2006, p. 94), “o discurso científico não é para ser entendido por
aquele que não é iniciado, que não é o portador dos títulos. Quanto mais o discurso
científico for restrito, maior será o seu poder”. Quando se distingue quais
141
regularidades estruturam o dizer, é possível remeter o discurso ao que Foucault
(2004) denominou como “formação discursiva”, ou seja, um conjunto de condições
que conformam o modo como os temas, os objetos e as hipóteses entram na ordem
do discurso. Conforme a distinção realizada por Pinto (2006), pode-se inferir que no
item aqui tratado, a formação discursiva principal refere-se ao discurso da ciência.
Para Luz, “a loucura não é um ser puramente biológico na dimensão psíquica
do biológico, nem sociológico, produto do meio social. Ela é, antes de tudo,
construção política e teórica, institucional e científica” (1994b, p. 89). No mesmo
sentido, pode-se falar sobre o enunciado saúde mental, uma vez que também ele é
fruto de uma construção discursiva que traz a marca de uma grande articulação
entre o saber, o poder e a política. Seja ainda sobre o tema da loucura ou sobre o
discurso em torno da saúde mental, o que se percebe, a partir da fala dos
entrevistados, é um espaço em que se desenvolvem acontecimentos discursivos em
que, gradativamente, a razão, o conhecimento e o saber disciplinar se apossam e
constituem limites cada vez mais difusos entre o ‘normal’ e o ‘patológico’, deixando
ainda sem reposta uma provocação de Foucault: “É possível que a produção da
verdade da loucura possa se efetuar em formas que não sejam as da relação de
conhecimento?” (FOUCAULT, 2002c, p. 128).
Para Foucault (2004), as práticas discursivas formam sistematicamente os
objetos de que falam, mas nem por isso tudo é dito, sempre o que é
escamoteado, silenciado. Compondo os esquecimentos e as interdições do dizer.
Observem a seguinte resposta:
Saúde mental... (risos) bom... é... saúde mental acho que tem vários
significados... acho que para aqui pra área da saúde mental, no caso da
gente que atende casos de psicose, neuroses graves... acho que é um
termo que para a psiquiatria que antes era visto como doente mental foi
modificado, com a reforma também passa a ganhar esse título de saúde
mental, mas a gente tem também a saúde mental do trabalhador, varias
configurações.
A leitura deste fragmento revela os deslizamentos da língua e as
transformações discursivas em torno da loucura, nota-se a percepção do
entrevistado sobre a mutação do que era convencionalmente chamado de ‘doente
mental’ para ‘saúde mental’ e a diversificação deste último enunciado que passa a
142
comportar até mesmo a ‘saúde do trabalhador’. Parece que o histórico antagonismo
entre ‘louco’ e ‘trabalhador’ é desfeito. Porém, ao prosseguir com sua fala o
enunciador conclui:
Mas aqui eu entendo [a Reforma Psiquiátrica] como a promoção mesmo da
inclusão, acho que no âmbito da reforma, saúde mental... o que é promover
uma saúde mental? É incluir esse paciente psiquiátrico, é escutá-lo, é
promover acho que essa reinserção mesmo, acho que está mais voltado
nisso aí, na reinserção social.
Inclusão, reinserção, substantivos femininos que denotam o ato ou efeito de
incluir, reinserir. Todavia, para que tais ações ocorram é necessário que uma ação
anterior tenha sido praticada: a ação de excluir e colocar um sujeito fora do jogo ou
de qualquer sistema de regras existente entre um grupo. Quando este fato não é
evocado, no que é respondido, pode ser que o mesmo tenha caído no
esquecimento, ou ainda inserido na ordem da natureza; portanto, imanente e
independente da ação humana.
Ao longo das pesquisas de Foucault, ele evidencia que o asilo foi uma das
respostas dadas a uma problemática histórica em evolução. Entretanto, os
questionamentos deste pensador ultrapassam a descrição do momento em que os
‘loucos’ foram internados em instituições especializadas para seu tratamento;
avançando para a problematização de como sua sociedade continuamente colocava
à margem grandes contingentes populacionais. Como escreveu Foucault:
Não se trata tampouco, como na história da loucura, de compreender
porque, na história das nossas relações com os loucos, em certos
momentos estes foram internados em certas instituições especificas que
deveriam curá-los. Trata-se doravante de fazer a história servir ao
desnudamento das relações de continuidade que vinculam nossos
dispositivos presentes a antigas bases ligadas a determinado sistema de
poder, com o fim de identificar objetivos de luta (2006, p. 457).
A alusão à inclusão (ou sinônimos deste substantivo) é recorrente no discurso
dos cnicos de Referência, este enunciado se conecta a uma série de
acontecimentos que, historicamente, definiram aqueles que seriam não apenas
excluídos, mas incluídos nos sistemas de administração e regulação da vida social,
como por exemplo: as prisões e os hospícios. Incluídos também nas redes
discursivas, nos saberes e instituições, numa palavra, incluídos numa racionalidade
143
(SILVA, 2005b). Neste sentido, também o CERSAM, os NAPS ou CAPS mantém
certa vinculação com antigas relações que nem sempre são explicitadas quando se
fala em ‘saúde mental’.
À medida que este enunciado emerge e se institucionaliza com os movimentos
de reforma sanitária e Reforma Psiquiátrica, ele torna-se recorrente em quase todos
os discursos que versam seja sobre o que, na atualidade, se chama de doença
mental ou mesmo psicose ou outros termos afins. Não isto, mas ele condensa o
desejo de mudança da forma de se relacionar com a loucura; manifesta a intenção
de ver os hospitais psiquiátricos reformados; representa o deslocamento da idéia de
eliminação de sintomas para promoção de saúde; enfim, sob este enunciado estão
reunidos diversas percepções que se tornam equivalentes, mas que nem por isso
deixam de ser diferentes (PINTO, 2006). Entretanto, mesmo sendo recorrente no
discurso dos Técnicos de Referência, a expressão saúde mental condensa tantos
significados que sua definição se torna da ordem da impossibilidade, pois se refere
ao que conceitualmente se nomeia como “significante vazio”, isto porque “trata-se de
um significante que foi, historicamente, objeto de tantas condensações que chega
um momento que a ele pode ser atribuído qualquer coisa, ou seja, são tantas
condensações, que ele se torna um significante vazio” (PINTO, 2006, p. 113).
A grande possibilidade de atribuição de significados, mesmo antagônicos, faz
com que um número cada vez maior de indivíduos sejam interpelados e sintam-se
identificados com o discurso em torno da ‘saúde mental’, discurso que suscita
políticas públicas, práticas e re-configura os sistemas de inclusão/exclusão
contemporâneos, constituindo novos sujeitos trabalhadores e novos pacientes,
clientes ou usuários.
4.4.3 Público Alvo
Na discussão do Projeto de Saúde Mental de Betim, realizada no item 4.3, foi
apontado o público alvo delimitado pelos profissionais que participaram da
construção do referido documento, isto é, aqueles que seriam acolhidos e assistidos
pelo CERSAM. Tratava-se, pois de um documento que subsidiaria as políticas
144
públicas a serem implementadas no município, nos primeiros anos da década de
1990. Na ocasião, foram nomeados como futuros usuários da rede de saúde mental
os: “Psicóticos, Neuróticos, Alcoólatras, Toxicômanos, Oligofrênicos, egressos de
hospital psiquiátrico e pacientes em crise que não demandem internação intensiva”
(SOUZA, 1994, p. 9). A constituição deste público, pelos trabalhadores, tomava
como base um conhecimento empírico, fruto dos atendimentos realizados nas
pequenas equipes de saúde mental e também baseava-se nas estatísticas
derivadas das internações e consultas psiquiátricas realizadas em Belo Horizonte,
mas usufruídas por moradores de Betim.
Entretanto, este conhecimento empírico não está de modo algum dissociado de
um saber que determina as condições necessárias para a existência de
determinados objetos, ou seja, para que existam psicóticos, neuróticos e todos os
outros (nomeados como) portadores de transtornos psíquicos, que passariam a ser
atendidos no CERSAM, é necessário - que pré-exista - toda uma nosografia e
nosologia psiquiátrica que isola e classifica as formas de aparição do fenômeno
psicopatológico. Um fenômeno terá distintos significados dependendo da ordem
discursiva da qual é objeto, dependendo da formação discursiva a partir da qual é
falado. Um mesmo homem que abandona seu lar e sua família, ornamenta seu
corpo com diversos crucifixos, cobre-se com um manto e passa a andar sem um
rumo - aparente - pelo mundo, pode ser nomeado como um peregrino, profeta ou
como um esquizofrênico em surto, dependendo do lugar, a partir do qual dele se
fala, dependendo ainda se sobre ele recairá um discurso religioso ou científico.
O estudo de como se constitui no discurso dos cnicos de Referência o
público por eles atendido precisa levar em conta o modo como são realizados os
diagnósticos e o ritual que determina a passagem de um cidadão a usuário do
serviço de saúde mental, isto é, a inscrição de um individuo como um sujeito-
paciente. Em um primeiro momento, cabe considerar três respostas dadas pelos
profissionais entrevistados à seguinte questão: Como você caracteriza o público alvo
do CERSAM?
145
Resposta 01:
O quê que acontece mesmo ou o público alvo da lei?
Pesquisadora: Você pode falar de ambos, por favor?
Por que a lei diz muito mais de egresso de hospitais psiquiátricos, os
psicóticos, os casos graves, que assim... o que aparece, depois de mais
de dez anos de CERSAM, é uma população muito mais ampla do que isso e
que a gente precisa dar uma resposta. Então, às vezes, tem casos que não
são tão graves, mas você precisa ficar com ele, pra que ele... esse caso não
se tornar um caso gravíssimo. Então, aqui a população que aparece é
psicótico e neurótico também. Os alcoolistas, a gente não ta ficando mais
com essa população, mas se tem um componente tipo depressivo, algum
sintoma que vai para... além disso, daí a gente pode tentar fazer algum
trabalho, mas não é o nosso alvo aqui.
Reposta 02:
CERSAM? O publico alvo aqui? É... o público alvo seria os pacientes
portadores de algum sofrimento mental. O público alvo normalmente dos
CERSAM... a preferência são os psicóticos em crise ou que já saíram da
crise e precisam de um acompanhamento mais próximo. Aqui tem uma
peculiaridade, por ser muito distante, acaba que a gente trata de muita
neurose também, a gente tenta não... não manter isso, mas é um problema.
Reposta 03:
O público alvo do CERSAM sempre vai ser a clientela que é preconizada na
portaria: grave, aguda, né? que é psicose ou neurose.
A primeira resposta remete ao discurso político e aquilo que o mesmo
preconiza na forma de leis e portarias que regulamentaram os CAPS, NAPS e
CERSAM. Além disso, mostras da assimetria que, por vezes, ocorre entre uma
política pública formalizada - enquanto texto legal - e aquela efetivamente
implementada e praticada no dia-a-dia pelos operadores da máquina pública, no
caso, os trabalhadores do CERSAM de Betim. Delineia-se, na fala em epígrafe, a
ampliação dos casos abarcados pela instituição e, ao mesmo tempo, aponta-se a
restrição e a interdição de categorias antes conhecidas dos serviços psiquiátricos,
como, por exemplo, os alcoolistas. Isso não quer dizer que estes últimos deixaram
de ser alvo das ações sanitárias; ao contrário, demarca-se a exigência de novas
organizações especializadas para esta clientela. Sobre os sistemas disciplinares,
Foucault faz uma precisa análise ao demonstrar que sempre existirão aqueles que
ficarão à margem, sendo inassimiláveis pelos sistemas existentes, mas estes
indivíduos ainda serão alvos de sistemas por vir. Por analogia, este pressuposto
146
pode auxiliar no entendimento da proliferação de instituições de controle biopolítico
da população, pois, como diz Foucault, “creio que temos aí uma característica
própria dessa isotopia de sistemas disciplinares: é a existência necessária dos
resíduos que vai acarretar evidentemente o aparecimento de sistemas disciplinares
suplementares para poder recuperar os indivíduos e isso ao infinito” (2006, p. 67).
Para as patologias contemporâneas o demandadas novas organizações,
especializadas em públicos específicos. Para os ‘drogadictos’, ‘toxicômanos’, ou
para aqueles que abusam de álcool e outras drogas, o Ministério da Saúde instituiu
o CAPS Álcool e outras Drogas, conhecido como CAPSad, através da Portaria
GM/336, de 19 de fevereiro de 2002. Esse instrumento legal foi regulamentado pela
Portaria SAS/189, de 20 de março de 2002, "criando no âmbito do SUS os serviços
de Atenção Psicossocial para o desenvolvimento de atividades em saúde mental
para pacientes com transtornos decorrentes do uso prejudicial e/ou dependência de
álcool e outras drogas" (BRASIL, 2004a, p. 22).
A resposta 02 e 03, por sua vez, dão uma representação importante do
conjunto das falas sobre o público alvo dos CERSAM, posto que a grande maioria
dos entrevistados recorreu ao que está estabilizado no texto legal. Apesar de
utilizarem diferentes formulações, o que é dito aproxima-se muito mais de uma clara
referência, ou paráfrase, das legislações mencionadas do que uma ruptura com a
conseqüente atribuição de novos significados ao que se nomeia como público ou
usuários do CERSAM. Quando um grupo de profissionais reitera o que está dito na
Lei, vê-se continuar, de certo modo, relações onde sujeitos humanos continuarão
sendo incluídos em redes discursivas que acolhem suas queixas, ou as queixas
alheias, e as reinscrevem sob o código do sintoma e das patologias a serem
classificadas, tratadas e controladas. É desse modo que a ideologia perpassa os
espaços do dizer, naturalizando as relações sociais e assegurando que certas
imagens sejam simbolizadas pelos sujeitos e encadeadas na ordem do discurso,
dando prosseguimento à constituição de novos sujeitos e subjetividades marcadas
pelo controle - como um ideal - a ser exercido mutuamente. Controle onde o político
e a ciência estão necessariamente implicados. Segundo Orlandi,
tudo isso vai contribuir para a constituição de condições em que o discurso
se produz e portanto para seu processo de significação. É bom lembrar: na
análise do discurso, não menosprezamos a força que a imagem tem na
147
constituição do dizer. O imaginário faz necessariamente parte do
funcionamento da linguagem. Ele é eficaz. Ele não “brota” do nada:
assenta-se no modo como as relações sociais se inscrevem na história e
são regidas, em uma sociedade como a nossa, por relações de poder. A
imagem que temos de um professor, por exemplo, não cai do u. Ela se
constitui nesse confronto do simbólico com o político, em processos que
ligam discursos e instituições (2003, p. 42).
A relação com a instituição e com os efeitos que dela derivam o ocorre,
fundamentalmente, sob um determinado espaço físico. As relações se dispersam e
se perpetuam por uma multiplicidade de espaços que passam a executar funções
semelhantes àquelas que, em um em tempo anterior, eram restritas a lugares como
os grandes manicômios. Na atualidade, a atribuição de uma classificação
psicopatológica a um sujeito não ocorre apenas no espaço dos CERSAM ou das
alas psiquiátricas de hospitais gerais, isto porque este conhecimento foi apropriado e
disseminado entre as outras especialidades médicas, ampliando de um modo
imensurável, o ‘público que se tornou alvo’ das ações bioquímicas de controle da
vida. Para Foucault (2002c), uma das funções dos neurolépticos seria a de levar
para dentro do corpo a lógica do hospital, sua ordem e sua disciplina. A
complexidade deste pressuposto auxilia na compreensão de todos os jogos
discursivos que entram em cena e perpassam o cotidiano de um profissional que
executa a função de dispensar medicamentos à população de Betim. A passagem a
seguir refere-se à resposta dada por um profissional farmacêutico, quando
questionado sobre o público alvo da instituição em que trabalha.
Resposta 04:
eu acho que está se tratando tudo hoje, então dá-se benzodiazepinicos pra
tudo quando é caráter social de problema, então e isso é grave. Então, eu
atendo uma clientela que é tratada e diagnosticada como... qualquer coisa:
triste, a tristeza hoje em dia é tratada, qualquer dor, qualquer perda,
qualquer luto é medicado... e não é pelo... e nem é pela área psiquiátrica
não é pelo clínico mesmo. E isso é complicado... e ninguém consegue
fazer, isso é evidente, é claro para mim desde que eu entrei vem se
agravando e não se acha tempo para tá... fazendo um estudo disso e
chamando o pessoal pra conversar com a gente, tentando ver na rede como
é que se ameniza. Estão associando um monte de dependentes de
benzodiazepinicos, de antidepressivos, tudo hoje se trata. A pessoa fica... é
melhor ficar mais abobado e deixar os problemas da vida... são da vida, né?
fica assim...
Como discutido, Betim é uma cidade predominantemente urbana, cujo
Produto Interno Bruto municipal provém, principalmente, da indústria e do setor de
148
serviços. A instalação de grandes indústrias, nesta região, como a Fiat Automóveis,
foi influenciada por incentivos como a doação de terrenos equipados com a toda a
infra-estrutura necessária e a isenção de impostos municipais e estaduais. A Fiat,
portanto, localiza-se no Bairro Jardim Teresópolis, área constituída nas
“proximidades da empresa e que surgiu e cresceu de forma extraordinariamente
rápida, concomitantemente à instalação e consolidação daquela montadora. Trata-
se de um bairro pobre, quase uma favela, em termos tanto de níveis de renda
quanto de inexistência ou precariedade de serviços básicos” (COSTA, 2003, P. 449).
A implantação da Fiat Automóveis e de outras grandes empresas atraiu um grande
número de pessoas que migraram para a região em busca de trabalho. Entretanto,
nem toda a mão-de-obra disponível foi absorvida pelas indústrias, formando-se, em
contrapartida, um grande exército de reserva, que acabou por formar outros fluxos e
outras redes sociais. Redes que nem sempre têm suas tramas permeadas pelo que
é lícito. Segundo relato de diversos entrevistados, faz parte do dia-a-dia da
população de Betim o conflituoso convívio com o narcotráfico e a exposição à
violência. Fatos que perpassam o discurso dos profissionais quando apontam a
tensa articulação entre miséria, violência e loucura. Assim relatou um dos
respondentes: “Nós estamos aqui, nós estamos no Jardim Teresópolis uma das
maiores favelas de Minas Gerais nós estamos aqui, num lugar, onde a gente sabe
que é ponto... a questão do tráfico aqui é muito forte. carência, carência mesmo:
do que comer, do que vestir, se tem um remédio, se não é...”.
Esse, portanto, é um dos contextos donde provém a clientela do CERSAM,
tendo em vista que neste bairro está situada uma das unidades da instituição. A
resposta 04 questiona os processos de medicalização do social e aplacamento da
angústia comunitária, através de medidas cada vez mais sutis e econômicas, como
bem descreve Foucault em suas análises genealógicas. O filósofo francês aponta a
sofisticação e deslocamento dos processos disciplinares que passam a prescindir do
uso da força, mas que nem por isso deixam de agir e exercer um contínuo poder
sobre o corpo, de modo a alcançar e manter o controle social (ROMAGNOLI, 2003).
A resposta seguinte apresenta uma percepção voltada para os ‘sujeitos em si’,
atendidos no CERSAM; portanto, uma perspectiva diversa da entrevista anterior,
que percebia nas relações sociais e de poder os determinantes para a ampliação da
149
clientela abrangida pela instituição. Dessa forma, a passagem a seguir, constitui um
discurso cujo orientador não é o que está prescrito na lei. O respondente subscreve
sob o substantivo “carência” uma série de exclusões que se sobrepõe e recaem
sobre aqueles nomeados como os loucos. Nesse sentido, tais sujeitos não são
constituídos positivamente por aquilo que supostamente são: neuróticos,
psicóticos... ao contrário, neste caso, a delimitação da clientela se pela rasura,
por aquilo que falta ao grupo de usuários ou pelo o que eles não experimentam na
vida comunitária. Frente à pergunta “Como você caracteriza o público alvo do
CERSAM?”, o entrevistado respondeu:
Resposta 05:
Caracteriza em que sentido? Moradores de Betim e da redondeza, muito
carentes... é não no setor financeiro... tem muito, isso pesa muito
também, mas carente de uma vida mais... de um bem-estar, de uma
interação maior com a comunidade, de um...carente de um lazer que, às
vezes, num depende nem de muito de dinheiro mas da boa vontade de uma
pessoa do lado, carente de amigo, carente até de família que, às vezes, a
família abandona, uma população muito carente não em termos
financeiros, mas em vários outros âmbitos.
Conforme Silva (2007, p. 110), as entrevistas não devem ser tomadas como
séries por trás das quais um sentido está escondido, mas a partir delas torna-se
possível encontrar “redes enunciativas que podem ser remetidas a saberes e
verdades apropriadas socialmente”. A resposta 05 (e também a anterior) torna-se
mais clara quando pensada a partir da seguinte argumentação de Foucault:
De um modo geral, os domínios das atividades humanas podem ser
divididas nestas quatro categorias:
-trabalho ou produção econômica;
-sexualidade, família, quer dizer, reprodução da sociedade;
-linguagem, fala;
-atividades lúdicas, como jogos e festas.
De qualquer forma, aqueles que são excluídos diferem de um domínio a
outro, mas pode acontecer de a mesma pessoa ser excluída de todos os
domínios: é o louco. O louco é excluído de todas as coisas e, segundo o
caso, ele se recebendo um status religioso, mágico, lúdico ou patológico
(2002c, p. 260-261).
Um “púbico carente” seria, então, aquele excluído do trabalho, das relações
sociais e afetivas. Estes aspectos não estão descritos nos manuais de
psicopatologia, porque o são características inerentes ou mesmo exclusivas dos
150
portadores de sofrimento psíquico, porém conforme o respondente estas são
experiências que marcam a vida de boa parte da população empobrecida de Betim
e, certamente, do Brasil.
A partir do conjunto das respostas dadas pelos Técnicos de Referência, vê-se
constituir um público alvo cujo corpo é atravessado pelo saber científico; portanto,
corpo inteligível, ao ponto de ser manejado quimicamente. Entretanto, a intervenção
bioquímica não parece ser enunciada como algo que potencializaria a força e a
capacidade produtiva dos sujeitos, tornado-os dóceis e úteis, ao contrário, no
contexto estudado, a medicalização é percebida também como uma saída para
amenizar os efeitos do complexo sistema sócio-econômico ao qual estão
submetidos os indivíduos. Para Romagnoli (2003, p. 9), “o sujeito é imanente às
particularidades culturais, constituído por práticas reais atravessadas pelo social e
pelo histórico”; estes acontecimentos não estão prescritos nos ordenamentos
jurídicos apenas, mas carregam a força de antigas relações de poder e de
submissão que, ao serem reescritas sob outros signos, deslocam-se e naturalizam-
se através da ideologia.
Quando as perguntas dirigidas aos entrevistados passam da caracterização do
público atendido pela instituição para a formulação do diagnóstico deste público, os
respondentes se dividem em dois grupos: aqueles que elaboram um diagnóstico
e/ou uma hipótese diagnóstica e aqueles que não o fazem. Estes últimos justificam a
não realização de diagnósticos tendo como principal argumento que esta ação não
faz parte das atribuições de suas categorias profissionais, sendo função dos
psicólogos e psiquiatras. Nesse primeiro grande grupo, situam-se os assistentes
sociais, terapeutas ocupacionais e farmacêuticos. o enfermeiro, os psiquiatras e
os psicólogos entrevistados explicitam que a formulação do diagnóstico ou de uma
hipótese diagnóstica faz parte das funções que realizam no cotidiano do trabalho.
A atribuição de um diagnóstico é uma das etapas do ritual de inclusão de um
individuo em um equipamento como o CERSAM. Nesse processo, o individuo chega
(ou é levado) ao serviço e a partir daí ele seescutado em vistas a definir se é
tratado ou não de um novo caso para a instituição; nas palavras de Foucault, estes
rituais podem ser entendidos como “[...] o ponto de decisão entre loucura e não
151
loucura” (2006, p. 321). Neste primeiro contato, assinalam-se as posições que cada
um deve assumir: a posição do médico ou de qualquer profissional que acolhe o
indivíduo e, deste último, através do que fala, do modo como se porta, se irá
participar deste jogo de imagens que por cada um é simbolizado de um modo
singular.
Na resposta abaixo, o entrevistado descreve, ao mesmo tempo, a acolhida de
um individuo no serviço e a interlocução que estabelece com o mesmo, com vistas a
compreender o motivo da busca ao CERSAM. A pergunta feita ao entrevistado foi:
Como você formula um diagnóstico ou uma hipótese diagnóstica?
Resposta 06:
Diagnóstico clínico? Como que eu formulo? Eu primeiro faço uma história
de vida, eu acho que quando o sujeito chega tem algumas perguntas que
para mim que são básicas: “quem você é? Onde você nasceu? Quantos
irmãos você tem? Que religião você tem? Qual sua escolaridade? Você
trabalha? Ce estuda? Ce tem namorada? Ce tem namorado? Ce tem filhos?
Como é que é sua vida social?” são perguntas que me norteiam, de onde
que eu vou começar a conversar com essa pessoa, depois que eu sei
disso... que a pessoa me... é possível a pessoa me dizer essas coisas
básicas? essas definições básicas delas, será que ela conta de dizer
isso naquele momento? isso é possível? Eu começo a interrogar, a
conversar com a pessoa sobre o quê que trouxe ela até aqui, o quê que fez
ela chegar até aqui. Às vezes é alguém que trouxe ou às vezes, ele veio. Se
foi alguém que trouxe nós... ai tem outro tipo de urgência, né? Se o
sujeito veio por ele mesmo... quer dizer, talvez, fique mais fácil um pouco
da gente perguntar: “o quê que você veio fazer aqui?”. Aquele que é trazido,
às vezes, a gente tem que perguntar para quem trouxe e quem trouxe, às
vezes, o conta exatamente a versão do que o sujeito ta sentindo...
daquele sujeito que foi trazido... enfim, eu tento fazer uma história
pregressa, anterior a esse fato, fazer história longitudinal (Grifos da autora).
Como pode ser observado, o respondente acredita que através da construção
da biografia do individuo será possível conhecer melhor seus antecedentes, suas
queixas, conhecendo os domínios onde o mesmo ainda se insere ou não. Pode-se
dizer que a realização do exame permite “transcrever a demanda como doença,
fazer existir os motivos da demanda como sintomas da doença [...]” (FOUCAULT,
2006, p. 349). É preciso observar que mesmo em um novo contexto, a resposta
acima permite desvelar permanências históricas que se apresentam no que está
dito. A este respeito, Orlandi faz um importante alerta: “a observação do
interdiscurso nos permite remeter o dizer a toda uma filiação de dizeres, a uma
152
memória, e a identificá-lo em sua historicidade, em sua significância, mostrando
seus compromissos políticos e ideológicos” (2003, p. 32).
Quais as permanências históricas ou qual o interdiscurso deixa-se ver na
resposta transcrita anteriormente? De forma sutil, o entrevistado coloca em uma
mesma construção os verbos interrogar e conversar. Enquanto ‘conversar’ remete a
uma relação de troca e reciprocidade, o verbo interrogar remete a uma relação de
forças explicitamente desiguais, onde aquele que interroga subtrai, sob condições
especiais, do interrogado informações, depoimentos e delações. Esta expressão,
convencionalmente, refere-se ao discurso jurídico e policial. No caso brasileiro,
relembra ainda o período da ditadura, onde o interrogatório era uma prática exercida
sob tortura e decisiva para o destino do informante, destino decidido tacitamente por
outros. Nos diversos sistemas disciplinares (seja a escola, o hospital, a prisão ou o
quartel), o exame está presente, exame que no caso da psiquiatria e nas instituições
dela derivadas ocorre, principalmente, por meio da linguagem.
Todavia, deve-se esclarecer que, no caso analisado, o ritual de inscrição de um
indivíduo como um usuário ou paciente, cujo diagnóstico é o ponto alto deste
processo, não pode ser confundido com a relação estabelecida entre súdito e
soberano, pois trata-se, neste caso, de uma relação que se por meio da coleta,
de forma negativa. Ao contrário, Foucault em Vigiar e Punir situa o exame em uma
outra ordem que não a da subtração, cujo resultado sempre é negativo. Conforme
suas palavras:
O exame está no centro dos processos que constituem o individuo como
efeito e objeto de poder, como efeito e objeto de saber. É ele que
combinando vigilância hierárquica e sanção normalizadora, realiza as
grandes funções disciplinares de repartição e classificação, de extração
máxima das forças e do tempo, de acumulação genética contínua, de
composição ótima das aptidões [...] (1987, p. 160).
O individuo é sem dúvida o átomo fictício de uma representação ideológica
da sociedade; mas é também uma realidade fabricada por essa tecnologia
especifica de poder que se chama a ‘disciplina’. Temos que deixar de
descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele ‘exclui’,
‘reprime’, ‘recalca’, ‘censura’, ‘abstrai’, ‘mascara’, ‘esconde’. Na verdade o
poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais de
verdade. O individuo e o conhecimento que dele se pode ter se originam
nessa produção (1987, p. 161).
153
O reconhecimento, a constituição e interpelação do público alvo do CERSAM
não é uma operação isolada, mas que envolve desde o acolhimento do sujeito, até
seu exame e sua posterior inclusão em um sistema positivo, produtivo de discursos
e práticas sobre o sujeito. Deve-se mencionar que o CERSAM de Betim apresenta
uma forma de acolhida desburocratizada, quando comparado a outros CAPS
40
,
tendo em vista que o serviço está aberto ininterruptamente, não sendo necessário a
marcação de horário ou a apresentação de encaminhamentos. A chegada ao
CERSAM se pela busca do próprio individuo ou, em alguns casos, o mesmo é
levado à instituição. Mas ser levado não significa, apenas, ser acompanhado, o que
remete aos casos em que a força física, policial ou outras formas de coação ainda
mantêm-se atuantes no encaminhamento de pessoas aos locais que supostamente
validarão ou não sua sanidade mental. Vale lembrar os relatos do Lima Barreto e as
descrições por ele feitas sobre os momentos em que era levado pelo carro policial
ao Hospício da Praia Vermelha, o ressentimento do literato pode ser percebido nas
seguintes palavras: “[...] não posso deixar de censurar a simplicidade dos meus
parentes, que me atiraram aqui, e a ilegalidade da polícia que os ajudou” (2004, p.
64).
Conforme os profissionais entrevistados, no caso do CERSAM, o diagnóstico é
realizado, tendo como balizadores uma série de critérios validados
internacionalmente, uma vez que a referência é a Classificação Internacional das
Doenças CID 10. Por outro lado, a grande maioria dos entrevistados fez menção
também à psicanálise como uma outra forma de compreensão do sujeito que ali se
apresenta. As respostas a seguir o exemplos significativos da fala dos Técnicos
sobre este tema:
Resposta 07:
Eu acho que na saúde mental a gente tem que sempre jogar tanto com uma
orientação teórica que a gente forma, busca uma formação, quanto com o
que o próprio campo em termos político, de legislação, das normas exige
também. Então eu entendo que você tem que trabalhar com dois
diagnósticos, duas formas de entender o diagnóstico. Uma que é pela
40
O CAPS II do Grupo Hospitalar Conceição (GHC) de Porto Alegre tem como diretriz o acolhimento
de sujeitos mediante, tão somente, a apresentação de guia de referência expedida pela atenção
básica de saúde. Esta guia é emitida após a existência de vaga para avaliação do individuo, portanto,
com dia e horário marcados.
154
CID10, que é a classificação que o Ministério da Saúde e OMS também
pede, quanto uma outra possibilidade de formular o diagnóstico, que no
meu caso é a psicanálise que é o diagnóstico estrutural. Então pratico esses
dois, que é o diagnóstico mais do lado das síndromes, dos transtornos, que
é daquele momento, não diz de uma estrutura, ali nesse diagnóstico não
está dizendo se é psicótico, neurótico, perverso – no caso que é estrutural
mas que diz daquela situação naquele momento. E que a gente tem que
trabalhar com os dois tanto a classificação – que é importante a gente
colocar nos prontuários: CID, CID-10 F tal e no meu caso eu coloco
estrutura também: neurótico, psicótico, perverso, então eu formulo por ai.
Resposta 08:
Através da escuta mesmo, do que o paciente trás, do que ele... você vai
escutando e ele vai falando e assim você pega o número do CID e além
do CID minha formação psicanalítica mesmo, meu embasamento teórico.
Seu embasamento teórico?
É a psicanálise e pegamos também o CID, que a gente tem que saber para
trabalhar.
Resposta 09:
Nós usamos os critérios diagnósticos da CID 10 que são já pré-definidos e
quando vai se formular esse diagnóstico a gente leva em consideração
esses critérios da CID 10.
Reposta 10:
Ora eu sou psiquiatra, então inicialmente eu me baseio na minha formação
psiquiátrica, na psicopatologia, na nosologia, claro vendo as questões
culturais, sociais, regionais, mas eu formulo, eu me baseio na Classificação
Internacional, na CID 10, que é o que é utilizado nos serviços, em todos os
locais atualmente. Então eu me baseio na CID 10, mas usando recursos
também de...da...do diagnóstico estrutural psicanalítico e também no meu
referencial que trabalha pouco com esse tipo... que trabalha mas com a
interação, com outro tipo de abordagem onde o diagnóstico não e tão
importante.
A CID 10 é um sistema de categorias que delimita entidades mórbidas a partir
de critérios previamente definidos. Dessa forma, por meio de recursos estatísticos,
os mais diversos tipos de doenças, descritas e validadas pelos pré-requisitos da
ciência ocidental, passam a ser enquadradas dentro de classes ou divisões. No
capítulo V, da CID 10, constam os “Transtornos mentais e comportamentais”, que se
refere a uma ampla variedade de classificações que levam em conta desde as
afecções orgânicas e cerebrais até as alterações comportamentais secundarias ao
uso de drogas (Ver: ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, 1996).
155
Como evidenciado nas respostas anteriores, as queixas e os sintomas
apresentados por aqueles que chegam aos serviços serão decodificados a partir de
parâmetros que têm a pretensão de ser universalmente aplicáveis, posto que isto
seja o exigido pela lei. Em contrapartida, o diagnóstico estrutural ou psicanalítico
tenta abarcar a constituição psíquica do sujeito, decorrente de suas relações
primárias. Em ambos os casos, pratica-se uma forma de exame cuja episteme ainda
é o que se chama convencionalmente de saber científico e este, em franca
articulação com o político, produz subjetividades e modos de ser... sujeito-usuário
dos serviços de saúde mental, sujeito-paciente, sujeito-Técnico de Referência.
4.4.4 Técnico de Referência
No Item anterior, foi apontado preliminarmente que no CERSAM de Betim
opera-se com a lógica do ‘acolhimento’, ou seja, o cidadão que chega a qualquer
uma das unidades daquele equipamento passa pela portaria, sendo posteriormente
encaminhado aos funcionários da recepção que, por sua vez, o encaminham a um
profissional: psicólogo, assistente social, enfermeiro, médico-psiquiatra; enfim, a
qualquer membro da equipe multiprofissional que naquele momento estiver escalado
para a realização do acolhimento. Esse profissional escutará o indivíduo decidindo, a
partir daí, os encaminhamentos a serem realizados. Os encaminhamentos poderão
se dar para outros serviços de saúde ou assistência social do município ou externos
a ele, conforme a queixa ou o que é apresentado no ato da entrevista.
Porém, se - na avaliação - o profissional decidir que se trata de um caso para o
CERSAM, inaugura-se um percurso do indivíduo dentro da instituição, percurso
onde o profissional que o acolheu torna-se uma peça fundamental na sua inserção
como um usuário do serviço de saúde mental. Constitui-se, a partir desta relação, o
que se nomeia em Betim como Técnico de Referência’, ou seja, “um dispositivo
situado na interface entre as ofertas dos equipamentos substitutivos e as demandas
e necessidades apresentadas pelos usuários...” (FURTADO, MIRANDA, 2006, p.
508). Com a intenção de refletir sobre ‘comodeterminados enunciados se articulam
na percepção e no discurso dos profissionais que atuam no CERSAM de Betim, aos
156
mesmos foi feito o seguinte questionamento: “Como você caracteriza o cnico de
Referência?”. Seguem algumas respostas:
Reposta 01:
O Técnico de Referência é uma pessoa da equipe, ela pode ter qualquer
formação, desses que agem no tratamento em saúde mental: assistente
social, psicóloga. Têm vários também que nem tem um curso superior... O
Técnico de Referência é uma das pessoas que trabalham no serviço que
acolhe o caso, quando ele chega num primeiro momento, e a partir de então
ele vai acompanhar toda a trajetória desse caso. Então, por exemplo, se a
pessoa que acolher for uma assistente social ela vai ser o Técnico de
Referência e vai encaminhar esse paciente para o atendimento psiquiátrico,
psicológico se for necessário, mas, toda a articulação feita com família,
comunidade e outras instituições são através desse técnico e ele vira a
referência do paciente dentro do serviço.
Resposta 02:
Como que eu caracterizo? Essa pessoa é o... a porta de entrada... a pessoa
que chega, ela que vai acolhendo no momento. Acho o papel de suma
importância dele, porque ele que vai ta tendo o primeiro contato, ele é que...
quando a pessoa chega, acho que a primeira vez que ela chega, ela
chega com um receio... porque é um desconhecido, um lugar diferente e
que...no imaginatório de todo mundo é um lugar que tem doido. E doido
não é uma coisa muito bem vista na sociedade. E ai ele é que vai tar... vai
tar tendo esse primeiro contato com o paciente e ele é que vai...à vezes, ali
é que vai tar definindo, a pessoa vai definir se, realmente, ela vai estar ou
não. Às vezes, é necessário que seja um outro, que tenha um outro período,
um outro momento para ele ta entrando nesse... acompanhamento do
serviço, por que o próprio paciente não foi... não se deu muito bem com a
pessoa que o acolheu no momento.
Resposta 03:
Aquele que ao acolher o paciente ele fica responsável pela conduta com o
usuário, o quê que ele deve tar fazendo, como modificar a medicação dele,
se deu certo ou não, o projeto terapêutico dele como um todo, ele fica
responsável por aquele paciente.
As respostas acima mantêm certa regularidade, demonstrando que a figura do
Técnico de Referência se constitui no momento de acolhida de uma nova pessoa
que chega ao CERSAM. Entretanto, uma vez constituído como ‘o’ Técnico de
Referência de alguém, esse profissional estabelecerá uma relação com o usuário ao
157
longo do tempo. Relação significativa, uma vez que se funda o principal
articulador de toda rede de assistência à saúde mental que se propõe ora como
substitutiva ora como alternativa ao hospital psiquiátrico. Torna-se capital dizer que
será da percepção que o Técnico de Referência tem sobre a pessoa por ele acolhida
que ocorrerá sua ação em relação ao mesmo. Neste contexto, convergem todas as
categorias até aqui estudadas, uma vez que, será a partir das representações
imaginárias que o profissional tem sobre seu campo de atuação e seu público alvo
que ele irá interferir nos processos de produção de modos de ser, ou melhor,
processos de subjetivação, isto porque, “as subjetividades se metamorfoseiam nas
relações, afetadas pelo que vem de fora, sendo alterados dessa maneira, seus
modos de existência” (ROMAGNOLI, 2005, p. 12).
Aceitando a interpelação de ser - além de portador de um discurso disciplinar -
um Técnico de Referência e, enquanto tal, sujeito ao discurso da ciência e ao
discurso político, o trabalhador do CERSAM passa a constituir novos sujeitos,
através da adesão e identificação espontânea desses aos discursos citados, entre
outros possíveis. Guareschi e Hüning fazem uma discussão fundamental sobre os
modos de produção de subjetividades, conforme se pode ler na passagem a seguir:
Os processos de subjetivação são culturais, compreendem práticas de
significação que posicionam os sujeitos e produzem modos de existência. A
cultura não é um termo abstrato, mas diz respeito às práticas cotidianas que
se dão num campo de lutas, de relações de poder. A ciência insere-se,
desse modo, entre as práticas culturais, como discursos que produzem
determinados modos de subjetivação. Ao se relacionarem a ciência à
cultura a primeira passa também a ser ação, entendida aqui como prática
política que se efetua e modifica as ações alheias. Tanto a cultura quanto a
ciência são tomadas como práticas que ao produzirem sentidos, estes
adquirem efeitos de verdade, instituindo modos de ser e de compreender e
explicar a si e ao mundo (2005, p. 112).
A resposta 04 apresenta aspectos de suma importância de serem pensados à
luz da discussão precedente.
Resposta 04:
O Técnico de Referência, eu acho que um ponto muito importante de
sustentação desse tipo de serviço substitutivo, por que ele vai ta atendendo
o paciente que chega seja na crise, na urgência, seja estabilizado e vai ter
que articular esse caso na comunidade, se for necessário, no próprio
158
CERSAM com a equipe, nas ações de reabilitação psicossocial: oficinas,
ações de trabalho, então ele vai ter que ta atento a tudo isso. que, às
vezes, o Técnico de Referência ele cai numa situação... ele pode cair numa
situação... de tarefeiro e não deve ir muito por ai.
Quando questionado sobre o que viria a ser um “tarefeiro” o respondente
continua:
Tarefeiro no sentido: “Ah, esse caso precisa de oficina”, então vai para a
oficina, “ah esse caso precisa de marcar uma consulta no ginecologista”
vai e marca essa consulta. Isso não é uma condução clínica, eu entendo
que o Técnico de Referência tem que estar totalmente atrelado a uma
condução clínica, do quê que o sujeito ta pedindo ali, tem que acompanhar
aquele sujeito, né? ai entra a questão da escuta que a psicanálise tanto fala,
então ele não pode virar um tarefeiro e nem também fazer um projeto
terapêutico como ele idealiza. O próprio técnico idealiza? não, mas assim o
que o caso clínico vai ta pedindo para ser montado esse projeto terapêutico,
porque atrelado ao Técnico de Referência vem o tal do projeto terapêutico,
então cê tem que ta vendo isso daí... eu entendo que a clínica ajuda a gente
a não cair na padronização, nessa normatização intensa.
Quais as questões estão condensadas nesta resposta? Em primeiro lugar, o
profissional aponta como um dos diferenciais dos serviços substitutivos a busca pela
articulação do sujeito no CERSAM e, mais que isso, na comunidade. Este aspecto é
basilar, quando se pretende trabalhar com uma lógica diversa da atualização dos
manicômios sob uma nova estrutura física. Erving Goffman (1990) descreveu as
características e os efeitos das instituições totais, sendo inerente às mesmas o
fechamento sobre si e o atendimento das necessidades humanas de forma
burocratizada e padronizada.
Em um segundo momento, o respondente insiste na necessidade de uma
condução clínica. Conforme Carlo Viganó, clínica deriva da palavra grega kline,
significando leito; portanto, para o psicanalista mencionado “a clínica é ensinamento
que se faz no leito, diante do corpo do paciente, com a presença do sujeito” (1997,
p. 2). Ensinamento que não se por meio da dessimetria entre o mestre que tudo
sabe e o discípulo ainda por saber, mas um ensinamento que parte do sujeito,
daquilo que ele sabe sobre sua vida e sua dor. No discurso do entrevistado, uma
marcada recorrência aos fundamentos da clínica psicanalítica junto à demarcação
da necessidade de perscrutar o que cada caso teria de particular. Isso é o que está
dito, porém ainda uma velada referência ao fato de que, subjacente à demanda
do sujeito, existem outras que são direcionadas aos equipamentos de saúde
159
mental/administração da vida e aos profissionais que ali atuam. Trata-se, pois, de
uma outra demanda: a demanda do social com seu imperativo de controle. Controle
que visa ao enquadramento do sujeito naqueles domínios designados por Foucault
(2002c), ou seja, a inserção no mundo do trabalho, nas regras familiares, a
participação nos jogos e festejos comunitários. Historicamente, a medicina e o
Estado atuaram conjuntamente em vistas a naturalizar estes domínios,
reconhecendo naqueles que se aderem aos mesmos o padrão de normalidade física
e mental esperado.
Tendo em vista o legado de Deleuze e Guatarri (1995-1997), pode-se sugerir
que a sociedade na qual está inserido o CERSAM de Betim assume a forma do que
idealmente é conceituado como uma sociedade de controle. Isso não quer dizer que
os mecanismos disciplinares descritos por Foucault desapareceram; ao contrário,
trata-se de reconhecer que os mesmos se dispersaram, multiplicando-se e
espalhando-se pela vida social e comunitária, de uma forma tal que não como
pensar, na atualidade, em uma única fonte donde o poder emana. O poder, ao se
dispersar, passa a ser exercido nas diversas relações sociais, metamorfoseando-se
ao ponto dos mecanismos de controle passarem a ser subjetivados pelos indivíduos,
que se tornam sujeitos de múltiplos discursos: como o discurso da mídia, o discurso
religioso, o discurso da ciência, cada um desses tem regras peculiares, que apesar
de nem sempre coincidirem entre si perpassam o tecido social sendo fonte de
múltiplas identificações (PINTO, 2006).
Ocorre que o saber derivado das práticas psicológicas, ou do campo da saúde
mental, pode servir perfeitamente para reabilitar o sujeito, enquadrando-o em
modelos pré-fabricados. Por outro lado, ainda a possibilidade de resistência e do
constante re-flexionar sobre a prática e sobre os atravessamentos que também a
constituem. A resposta 04 um primoroso exemplo a este respeito, tendo em vista
que o entrevistado não desconsidera os condicionantes que interferem em sua ação.
Ao explicitar os referenciais teóricos que o orientam, o respondente indica que
reconhece o seu saber como datado e marcado pela história que fatalmente interfere
em sua produção. Apesar disso, o discurso em questão aponta a intenção de o
profissional estabelecer uma relação com o usuário que tenha como finalidade não o
enquadramento, mas uma visada ética que pressupõe aproximar-se do outro, seja
160
ele louco ou não louco, para juntos (junto com outros...) construírem formas do
sujeito-usuário apropriar-se do cuidado de si mesmo, ou dito de outro modo, “fazer
da experiência de si uma obra de arte” (NARDI E SILVA, 2005, p. 93).
Entretanto, a resposta 04 pode ser considerada como uma exceção ou ruptura
entre a série da qual faz parte, pois ela tenta situar-se na ordem do discurso,
deixando espaço para discursos ainda por vir; no caso, o discurso do usuário
atendido pelo CERSAM. Tal fragmento discursivo não está isento de repetições,
mas pode ser caracterizado como uma repetição histórica, conforme define Orlandi,
na seguinte passagem:
a repetição histórica, que é a que desloca, a que permite o movimento
porque historiciza o dizer e o sujeito, fazendo fluir o discurso, nos seus
percursos, trabalhando o equívoco, a falha, atravessando as evidências do
imaginário e fazendo o irrealizado irromper no já estabelecido (2003, p. 62).
Diferentemente, a resposta 05 também remonta a uma série de repetições.
Menciona, desde o início, que tanto a noção de Técnico de Referência quanto de
projeto terapêutico são exigências do Ministério da Saúde; portanto, parte da
exigência de um lócus de poder formalizado e autorizado para tal. Todavia, no
segundo e terceiro parágrafos, a repetição não mais se refere ao discurso político,
ou seja, o é mais um modo de repetição formal (ORLANDI, 2003). Trata-se da
referência à repetição que se estabelece a partir das relações primárias das crianças
com aqueles que exercem a função de pai ou mãe, ou melhor, a função de
cuidadores, como pode ser observado nas palavras a seguir:
Resposta 05:
Ich! Isso é embrólio, porque na verdade a gente teria como Técnico de
Referência aquele que constrói o projeto terapêutico individual, porque é
uma coisa que agora o Ministério ta cobrando, né? Projeto terapêutico do
sujeito que fica em tratamento. Seria o profissional com quem o paciente ta
em acompanhamento e pode ser psiquiatra, pode ser psicólogo, pode ser
um outro profissional e que ele vai trabalhar todas as questões que
envolvem aquele indivíduo e o tratamento dele, o que estiver aquém da
formação dele ele vai estar buscando isso, articulando outros atores para o
tratamento do paciente.
Então assim, a gente fala Técnico de Referência porque seria a pessoa que
estaria referenciando aquele paciente, mas a gente sabe por experiência
própria que referência não se dá, se constrói. Então, a gente - na vida - tem
as nossas referências de vida. Qual que a primeira referência sua de vida?
161
Se você for pensar, construída ao longo da sua vida como alguém que você
sempre se reporta a ela? São os nossos pais. Depois, ao longo da vida, a
gente vai construindo outras pessoas que vão ocupando esses lugares.
No tratamento, o Técnico de Referência vai ser esse sujeito que vai ajudar o
paciente a construir esse lugar dele, dessa caminhada dele. Porque o
psicótico em crise ele tem algumas perdas. Ce vai construir com ele o quê,
que esse lugar, quê que é essa doença, qual que é a situação dele.
Construindo uma coisa básica.
A diferença entre as repostas pode ser observada sem maiores dificuldades.
Pois a reposta 04 aponta para a função do Técnico de Referência como aquele que
poderá auxiliar o indivíduo na busca da experiência de si mesmo. Enquanto a
resposta seguinte parece divergente do discurso da Lei, o que, a principio, poderia
ser caracterizado como um processo de criatividade, mas ela mostra-se, entretanto,
muito mais próxima daquilo que Orlandi conceituou como produtividade, ou seja,
uma forma de repetição “regida pelo processo parafrástico, a produtividade mantém
o homem num retorno constante ao mesmo espaço dizível: produz a variedade do
mesmo” (2003, p. 37). Logo, a resposta 05 remete ao instituído, a perpetuação dos
papéis apreendidos num ideal de família, nas supostas relações onde papai e
mamãe existiram. Reitera-se a relação sujeito-paciente-doente, onde se ratifica o
saber da ciência e da medicina sobre o corpo do outro e, fundamentalmente, sobre o
modo como os indivíduos se vêem e se fazem sujeitos.
Falar sobre o que vem a ser o Técnico de Referência, talvez tenha sido a mais
difícil pergunta a ser respondida pelos entrevistados, pois mais que falar acerca de
uma questão política, estabelecida em Lei, é falar sobre o papel que exercem,
falando afinal sobre si mesmos e sobre suas próprias constituições como sujeitos. É
remeter às relações que perpassam uma equipe profissional, na qual novos
discursos começam a ecoar onde somente ouvia-se um monólogo da razão sobre a
loucura, como bem afirmara Foucault (2002a) na aula inaugural que pronunciara no
Collège de France, lá em 1970.
162
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Cuidar, sim. Excluir, não. Essa foi a insígnia da III Conferência Nacional de
Saúde Mental, realizada em janeiro de 2002, em Brasília, Distrito Federal. Proferido
em um espaço historicamente constituído como uma importante arena de discussão
política, tal enunciado indica não somente o foco das discussões naquela ocasião,
como também representa uma aproximação de boa parte dos discursos e das
práticas que, na atualidade, ressoam em torno do campo da saúde mental. De modo
afirmativo, o enunciado pressupõe a necessidade de oferecer assistência e cuidados
àqueles considerados como portadores de sofrimento mental. Logo em seguida,
contudo, uma negação, que remete o interlocutor a um passado de clausura e
segregação cuja gênese está ligada ao Hospício de Pedro II, inaugurado em
meados do Século XIX, no Rio de Janeiro. Instituição esta sustentada por uma
discursividade que pressupunha a retirada de indivíduos do meio social e a
conseqüente inclusão dos mesmos em organizações fechadas, permeadas por
rígidos regulamentos, como um meio de correção e tratamento.
Nesta dissertação, foi abordado tanto o processo de institucionalização de um
modelo assistencial baseado no asilamento e na inclusão dos “loucos ou insanos”
em dispositivos de saber/poder que, gradativamente, ressignificaram a ‘loucura’
como ‘doença mental’, sendo também tema de discussão e análise a reorientação
da assistência aos portadores de sofrimento psíquico. Reorientação que, em
algumas regiões como Betim/MG, por exemplo, compartilhou dos princípios e
diretrizes do Sistema Único de Saúde, delineados a partir da Constituição Federal de
1988. A escolha por tal percurso não pressupunha fazer uma avaliação dos atuais
equipamentos de atendimento à saúde mental, como os CAPS, NAPS ou CERSAM,
classificando-os como ‘bons’ ou ‘ruins’, ou ainda como ‘melhores’ ou ‘piores’ que as
grandes instituições psiquiátricas - ainda - existentes neste país. Também não era
objeto da investigação aqui empreendida a classificação dos sujeitos atendidos por
um ou outro, ou mesmo por ambos, os modelos como ‘loucos’ ou ‘não loucos’, de
modo a validar ou desqualificar o crivo utilizado para a inclusão dos indivíduos em
tais organizações.
Ao longo deste estudo, foi apontado que, no Brasil, a institucionalização de
práticas no campo da assistência psiquiátrica ou da saúde mental foi precedida e
163
regulamentada pelo ordenamento jurídico, seja através de leis, portarias ou
regulamentos. Tais instrumentos legais não são imanentes ou transcendentes à vida
humana e à natureza; ao contrário, os mesmos são efeitos de uma série de
acontecimentos e processos históricos que, por sua vez, estão fundamentalmente
implicados na emergência de qualquer discurso político. Entendidos dessa forma, os
diversos fragmentos discursivos, que estão consolidados nos textos das políticas
públicas, oferecem uma importante aproximação da percepção subjacente às
práticas que historicamente são constituídas em torno da loucura, em determinadas
épocas e lugares.
A apreensão do contexto político, econômico e social de um país, estado ou
região é fundamental quando se quer analisar a emergência de uma nova forma de
organização e gestão do espaço público e da população. Desse modo, ao ser
recolocada a legislação de Minas Gerais de 1903, referente à assistência a
alienados, no fluxo dos acontecimentos históricos, foi possível vislumbrar que a
mesma foi precedida por uma intensa articulação entre as instâncias políticas do
país e a corporação médica. Posterior à Proclamação da República, a citada
legislação de 1903 é atravessada pelo discurso da ciência, mas também pelo
discurso político e jurídico, época em que o discurso religioso é relegado e a loucura
passa a ser inserida em uma ordem discursiva que a ressignifica como doença;
portanto, parte do corpo e, por isso, inteligível e manipulável. Ao médico e,
posteriormente, ao médico-psiquiatra é conferido o lugar de gestor do asilo e
autoridade máxima no que tangencia o corpo do ‘alienado’. Tal deslocamento
ofereceu, a partir das primeiras décadas do século XX, as condições de
possibilidade para a difusão da psiquiatria germânica e dos ideais eugenistas entre
os alienistas brasileiros. Apostava-se, pois, em última medida, no aperfeiçoamento
da espécie e na regeneração do povo brasileiro. Logo, a partir de 1920, os critérios
de inclusão dos indivíduos nas instituições destinadas ao trato dos alienados
mentais incorporam tais pressupostos, o que pode ser vislumbrado tanto a partir da
leitura dos instrumentos legais em si, mas principalmente quando à compreensão
dos mesmos soma-se a caracterização da população efetivamente internada nos
asilos. As obras de Lima Barreto citadas, sobretudo, na primeira parte desta
dissertação, oferecem uma caracterização importante do público alvo das
instituições psiquiátricas do inicio do século XX: público que, para o escritor, não
164
diferia da população excluída do país naquela mesma época, ou seja, negros,
alcoólatras, boêmios, desempregados, imigrantes...
No Brasil, com a instauração do regime militar, tornaram-se ainda mais
amplos e inespecíficos os critérios de inclusão de indivíduos no circuito psiquiátrico.
inferências de que, neste período, a repressão política provocou um aumento
importante do número de pessoas internadas nas instituições manicomiais.
Concomitantemente, verificasse uma ampliação do número de leitos psiquiátricos,
em decorrência da inserção da iniciativa privada nesse setor, através da compra de
serviços dessa última pelo Estado. A importação de modelos assistenciais para o
Brasil, junto às vicissitudes políticas desta terra, resultou na criação e
institucionalização de uma lógica de ‘assistência psiquiátrica’ segregadora e
economicamente onerosa para o Estado, o que perdurou por mais de um século.
Os movimentos de reforma instituídos no país, na transição dos anos de
1970/1980, desencadearam um amplo processo de discussão e luta política, cujo
foco centrou-se na emergência de uma discursividade que passou a pressupor a
saúde como um direito civil, implicando como conseqüência na reformulação do
sistema de saúde nacional, bem como a reorientação dos recursos para este fim. A
mobilização política em torno da saúde inseriu na agenda de discussões a situação
de exclusão, na qual se encontravam todos aqueles que estavam fora do sistema
formal de trabalho, isto é, donas-de-casa, crianças, idosos, desempregados e,
também, os loucos. Entretanto, não os processos de exclusão foram
questionados, como também as condições daqueles que se encontravam sujeitos às
instituições manicomiais, seja como trabalhadores, seja como internos das mesmas.
A emergência de tais questionamentos remonta ao movimento pela Reforma
Psiquiátrica, liderado na Itália por Franco Basaglia, assim como a inserção no plano
nacional das críticas de Michel Foucault e outros pensadores acerca da loucura e da
articulação entre o saber e o poder como forma de controle e produção da mesma.
Agrega-se, a isso, o processo de abertura política resultante do declínio da ditadura
militar no país e uma intensa mobilização em prol da reformulação do sistema de
saúde brasileiro.
165
A descentralização e regionalização da atenção à saúde, a universalização
do acesso e equidade das ações são princípios e diretrizes fundamentais do SUS,
os quais, ao postularem uma nova forma de organização da assistência,
pressupunham uma concepção de saúde distinta da noção de saúde como mera
ausência de doença. Entretanto, uma nova formatação legal não é exeqüível sem
que velhos acordos sejam rompidos e novos compromissos sejam firmados entre os
gestores das três esferas de governo. Dessa forma, a institucionalização de
equipamentos, como o CERSAM, tornou-se possível na medida em que novas
formas de gestão do dinheiro público foram preconizadas, sendo possível reorientar
parte dos recursos destinados às macro-instituições manicomiais para os novos
Centros inseridos na comunidade.
As instituições contemporâneas ao CERSAM de Betim demarcam uma nova
forma de interação entre as instâncias de governo, o espaço público e aqueles
considerados como loucos ou, mais especificamente, os diagnosticados como
portadores de sofrimento psíquico. A partir do estudo de caso aqui realizado, pode-
se delinear as feições que o CERSAM assumiu em Betim, sendo o mesmo possuidor
de características que o distinguem dos demais Centros de Atenção Psicossocial do
Estado. Nessas características, tem implicação fundamental a formação histórica,
geográfica e política da região onde o CERSAM foi criado, ou seja, seu contexto
imediato. Entretanto, uma história maior que envolve não o estado de Minas
Gerais, mas as relações historicamente constituídas em torno da loucura também
perpassam este equipamento, implementado a partir da legislação em saúde mental
dos anos de 1990. Relações marcadas pelas percepções, que ao longo das épocas
esboçam as fronteiras entre a razão e a desrazão. No caso estudado, as
mobilizações pela Reforma Psiquiátrica e o movimento pela luta antimanicomial
foram acontecimentos importantes que interpelaram diversos atores em prol da
construção de uma rede de atenção à saúde mental. Rede esta que sintetizava a
intenção de um grupo que conseguiu inserir nas agendas das instâncias
governamentais suas reivindicações. As mesmas posteriormente foram plasmadas
no texto das políticas públicas municipais e efetivadas através da abertura dos
equipamentos em epígrafe, onde diversos profissionais como psicólogos,
assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, enfermeiros e médicos psiquiatras
passaram a formar as equipes multiprofissionais.
166
Desde a criação do primeiro CERSAM, decorreram mais de dez anos;
atualmente, a população de Betim conta com três unidades localizadas em distintos
pontos do município. Ao longo desta trajetória, o quadro de funcionários da
instituição sofreu diversas alterações, sendo hoje composto por um número
considerável de profissionais diplomados há menos de uma década. Dentre os
entrevistados, 55,32% têm entre um e dez anos de graduados. Tal aspecto torna-se
relevante quando em um estudo de caso o corpo discursivo é composto por leis,
portarias, regulamentos, mas especialmente pelo discurso dos cnicos de
Referência. No ato em que estes profissionais foram convidados a falar sobre o
campo no qual atuam, o público que atendem e sobre o papel que exercem, as
tensões entre as permanências discursivas de uma velha ordem e as rupturas
históricas tornaram-se um pouco menos opacas, mas não menos complexas.
Para a realização desta pesquisa foram entrevistados dezoitos Técnicos de
Referência das três unidades do CERSAM de Betim, para adultos. Suas falas não
foram consideradas isoladamente, mas tomadas em conjunto, compondo um texto.
Deste conjunto, foram destacados quatro enunciados fundamentais, sendo eles:
Reforma Psiquiátrica, saúde mental, público alvo, Técnico de Referência. Tal
delimitação pressupunha a necessidade de um corte vertical, de modo que a
percepção dos profissionais sobre os enunciados acima pudesse ser explicitada.
No conjunto das falas, o enunciado ‘Reforma Psiquiátrica’ foi percebido de
modo distinto pelo grupo de entrevistados, sendo apreendido por alguns
respondentes como um movimento político-revolucionário que questionou as
condições nas quais os internamentos em instituições psiquiátricas ocorriam. Para
estes, a ‘Reforma Psiquiátrica’ foi um acontecimento que ultrapassou os limites do
que o substantivo ‘reforma’ pode indicar em seu sentido literal, não estando restrito,
portanto, a uma ação de melhorar, aperfeiçoar ou reparar os asilos existentes.
Subjacente a esta série de respostas, um tanto homogênea e regular, está a
referência ao discurso político e à idéia de ruptura com a ordem psiquiatrizante que
se articulava em torno dos grandes hospitais. Outra série discursiva em torno da
Reforma Psiquiátrica indica uma percepção pautada pelo discurso da ciência; logo, a
referência é a continuidade e não a ruptura.
167
Nesse sentido, as falas se dividiram entre aquelas que apontam a
radicalidade da ‘reforma’ em seu profundo sentido político de repensar as condições
nas quais se deram as relações institucionais com a alienação mental, questionando
os processos de exclusão/inclusão como diretamente implicados nas condições em
que aconteceu o internamento dos indivíduos. Como também um outro conjunto
de falas, ou seja, aquelas que retomam o sentido denotativo do termo reforma:
melhorar, consertar. Nesse último grupo, não uma referência à (su)posta ruptura
operada pela Reforma Psiquiátrica, mas a percepção de continuidade e processo
evolutivo da assistência psiquiátrica, que hoje se daria sob os moldes da ciência
contemporânea. Estas percepções são fundamentais de serem apreendidas,
sobretudo, quando se leva em conta que as percepções e, consequentemente, as
ações destes profissionais provocam alterações na dinâmica regional ao
contribuírem para a potencialização do trânsito da ‘loucura’ pela cidade, ou ao
interditarem a circulação do ‘louco’ do meio social, por meio de diversos mecanismos
de contenção, como, por exemplo, o controle químico exercido à distância.
Quando aos profissionais a questão colocada referia-se ao público alvo do
CERSAM, a recorrência maior foi ao que é preconizado pela Lei, o que evidencia os
efeitos da interpelação. Quando as respostas são articuladas, enquanto paráfrases
dos textos legais, isso sugere que os Técnicos de Referência tornaram-se sujeitos
ao que está estabilizado, sobretudo, nas últimas portarias que regulamentam o
funcionamento dos equipamentos substitutivos aos hospitais psiquiátricos, como a
Portaria GM/336 de 2002. Esta operação indica que os Técnicos, por sua vez,
passarão a interpelar tantos outros indivíduos, tornando-os também sujeitos, porém
na condição de usuários dos serviços de saúde mental. Ao mesmo tempo em que os
entrevistados apontam como público alvo privilegiado do CERSAM aquele descrito
pela Lei (neuróticos, psicóticos e egressos de hospitais psiquiátricos), eles também
assinalam a existência de um rito de passagem que pode qualificar um sujeito-
cidadão como um sujeito-usuário-do-serviço-de-saúde-mental. Este deslocamento
ou qualificação dependerá da relação estabelecida no ato do acolhimento, momento
em que o individuo chega ao CERSAM e é escutado pela primeira vez, ocasião esta
em que se fixam os papéis tanto do candidato a usuário, quanto de seu futuro
Técnico de Referência.
168
No acolhimento, o encontro entre o profissional e o individuo é perpassado
tanto por uma avaliação pautada pelos critérios objetivos descritos na CID-10, como
também atravessa tal momento uma multiplicidade de outros discursos que
historicamente decodificaram, classificaram e se sobrepuseram ao corpo alheio,
constituindo-o como um ‘sujeito-louco’. As palavras proferidas no ato do acolhimento
tanto podem ser interpretadas, pelo profissional, como sinais e sintomas relativos a
critérios que são generalizáveis a uma determinada população, como também
podem ser ouvidas com a intenção de entender o modo particular como cada sujeito
se posiciona no mundo, como expressa seus sofrimentos, buscando perscrutar o
significado de tais ‘sintomas’ para a vida do sujeito. Esta última posição, enunciada
por um dos entrevistados, destoou do montante de respostas, dando mostras de
uma importante ruptura, quando se considera que o modelo hegemônico instituído
pela psiquiatria pautava-se pela classificação e não pelo entendimento de todos os
atravessamentos implicados na constituição de subjetividades.
É necessário destacar que no momento em que as perguntas dirigiam-se à
discussão sobre o público alvo do CERSAM houve, por parte dos entrevistados, uma
constante referência ao crescente número de pessoas que demandam atendimento
nessa instituição. Isto implica que sejam questionados o uso que se faz das
diretrizes e princípios do SUS, como regionalização e universalização do acesso,
visto que os mesmos podem favorecer o reverso da integralidade da assistência ao
cidadão, facilitando um amplo processo de medicalização do meio social. Isso
porque, uma vez extintos os muros e os limites institucionais, os diversos recantos
da cidade passam a ser locais potenciais para a intervenção das equipes
multiprofissionais. A emergência do enunciado ‘saúde mental’, além de constituir
uma nova discursividade em torno dos processos de saúde e adoecimento psíquico,
constituiu um campo de articulação entre diversos saberes disciplinares.
Tradicionalmente, as instituições psiquiátricas eram vistas como locais onde
somente ecoava o solilóquio da razão (encarnada no saber psiquiátrico) sobre a
loucura; com os CAPS ou CERSAM, outros discursos acerca do sofrimento
humano entraram em cena. Por um lado, esta abertura provocou um tensionamento
entre as fronteiras estabelecidas entre a normalidade e a patologia, na medida em
que outros profissionais passaram a dialogar entre si e a interagir com os usuários
de tais equipamentos. Por outro lado, os profissionais psi (os psiquiatras e os
169
psicólogos) são ainda apontados como aqueles a quem compete a realização de um
diagnóstico, conseqüentemente, são ainda convocados a decidir entre a razão e a
‘loucura’ e a fixar modos pré-fabricados de ser sujeito.
Diante do exposto, observa-se que quando a análise do ordenamento legal
referente às políticas públicas em saúde mental, contemporâneas, se desloca para o
discurso dos Técnicos de Referência, torna-se mais claro que instituições como o
CERSAM mantém certa continuidade histórica, ao orientarem-se para o acolhimento
de sujeitos que têm suas experiências de vida marcadas por sobrepostos modos de
privação. Recaindo, assim, as práticas atuais em saúde mental principalmente sobre
aqueles que, na maioria das vezes, estão excluídos do mundo do trabalho e das
relações sociais e familiares. Ao mesmo tempo em que os serviços de saúde mental
tornaram-se um importante local de acolhimento para o sofrimento humano,
possibilitando ao sujeito a construção de saídas para o que lhe acomete dentro de
seu território, tais equipamentos incorrem no risco de ressignificarem a angústia
social como adoecimento psíquico, docilizando os corpos e, principalmente,
tornando mais suaves as imensas desigualdades sociais e regionais, como aquelas
existentes em Betim.
Por fim, dentro desta nova tendência institucional na qual o CERSAM de
Betim está inserido, pode-se notar que os Técnicos de Referência tem um papel
político fundamental, sendo eles, portanto, os responsáveis por levar a ação do
Estado ao cidadão. Fato que os qualifica como agentes fundamentais quando se
almeja relações onde o cuidado seja um pressuposto e não a exclusão. Cuidar, sim.
Excluir, não. Mais que uma intenção, este enunciado demarca o imperativo de uma
constante luta contra os processos que historicamente colocam à margem grande
parte da população brasileira, incluindo-a em sistemas disciplinares cada vez mais
sofisticados e econômicos.
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www.Biblioteca.ibge.br/barbacena (acessado em 24/07/2007)
www.polbr.med.br/ano06 (acessado em 24/07/2007)
www.mineiros.uai.com.br - acessado em 24/07/2007)
179
ANEXO
Roteiro para entrevistas com os Técnicos de Referência da Instituição
CERSAM de Betim/MG
1) Nome:
2) Formação Profissional:
3) Ano de formatura:
4) Cidade/ Estado/ Instituição na qual se formou:
5) Após a graduação você realizou cursos de Pós-graduação e/ou formações
clínicas?
6) Você atuou em outras instituições antes do CERSAM?
7) Qual o seu tempo de trabalho no CERSAM?
8) Você trabalha em outros lugares além do CERSAM?
9) Como você ingressou na rede de atendimento em Saúde Mental do Município de
Betim? Você já ocupou outros cargos na instituição e/ou na rede de Betim?
10) O que você entende pela Reforma Psiquiátrica?
11) Como você define Saúde Mental?
12) Como você caracteriza o público alvo do CERSAM?
13) Como você formula uma hipótese diagnóstica ou um diagnóstico?
14) Qual a trajetória de um paciente que entra no CERSAM e seu percurso de
tratamento?
15) Como o CERSAM se posiciona frente à articulação usuário-família-comunidade?
16) Como você caracteriza o Técnico de Referência?
17) Como vo percebe a articulação das diversas áreas do conhecimento que
atuam no CERSAM?
18) Como você se vê dentro da articulação das diversas áreas que atuam no
CERSAM?
19) Você percebe uma relação horizontal ou hierárquica entre as áreas que atuam
no CERSAM?
20) Como você percebe as relações de poder dentro da instituição?
21) Como você entende a organização do CERSAM enquanto política pública de
assistência à Saúde Mental?
22) Você percebe uma mudança significativa da categoria loucura antes e depois da
Reforma Psiquiátrica?
23) Gostaria de fazer alguma outra colocação além do que foi lhe perguntado?
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