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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
MESTRADO EM PSICOLOGIA
Eu Tenho Trabalho, Eu Sou Cidadão! Considerações acerca da
Compreensão de Cidadania por Auxiliares de enfermagem da cidade
de Fortaleza
ÍTALO EMANUEL PINHEIRO DE LIMA
FORTALEZA, ABRIL, 2008
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Eu Tenho Trabalho, Eu Sou Cidadão! Considerações acerca da
Compreensão de Cidadania por Auxiliares de enfermagem da cidade
de Fortaleza
ÍTALO EMANUEL PINHEIRO DE LIMA
Orientador: Prof. Dr. Cássio Adriano Braz de Aquino
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em
Psicologia como requisito para obtenção do título de
Mestre em Psicologia.
FORTALEZA - CE
2008
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Dedico todo este trabalho a meu pai
(in memoriam), espelho para a vida, e a
todos aqueles trabalhadores que fazem do
Trabalho a pedra fundamental de suas
vidas.
AGRADECIMENTOS
A Deus, por me dar força, conforto e determinação para percorrer o árduo caminho da
vida.
A meu pai (in memoriam), por nossas discussões frutíferas sobre o que é trabalhar e
por todos os valores envolvidos nessa atividade (levarei isso para onde quer que eu vá).
A minha mãe, exemplo de fibra, determinação e superação do trabalhador (obrigado
por tudo).
A minha irmã, companheira fiel e ombro amigo para dividir glórias e dores da vida.
A minha namorada, alteridade sempre pronta a me compreender e disposta a dar
palavras de motivação, fazendo-me ver caminhos possíveis para seguir. Um porto seguro nos
momentos de tormenta.
Aos meus amigos sempre presentes em toda minha caminhada profissional,
acadêmica e social. Vocês contribuíram até quando na tinham a intenção.
A meu orientador, um amigo, que soube respeitar e conduzir nosso trabalho com
descontração, seriedade e dedicação. Obrigado pelas oportunidades dadas a mim e espero não
o decepcionar.
A meus colegas de mestrado que possibilitaram aulas e momentos frutíferos para que
essa pesquisa se desenvolvesse.
Aos membros da banca examinadora, por dedicarem seu tempo a este trabalho.
A todos que cederam seu precioso tempo para as entrevistas.
À FUNCAP, por ter financiado grande parte desta pesquisa.
Aos colegas de trabalho por terem compreendido o tempo necessário para dedicação
a esta pesquisa.
A todos que, mesmo não sendo citados explicitamente, de alguma forma me ajudaram
a pensar sobre o trabalho (vocês sabem que estarão sempre comigo).
RESUMO
Este trabalho aborda a compreensão de Cidadania explicitada por profissionais
de nível médio (auxiliares de enfermagem) que trabalham em hospitais da cidade e
Fortaleza. Trata-se de uma pesquisa empírica, onde, a partir do que estes profissionais
relatam ser, para eles Cidadania, buscamos uma compreensão de como esse ideal é
afetado pelas mudanças ocorridas no mundo do trabalho.
Palavras-chave: Trabalho, Cidadania, Novas configurações laborais.
ABSTRACT
this work addresses the explicit understanding of citizenship by mid-level professionals
(nurse) who work in hospitals of the city and Fortaleza. This is an empirical research, where,
from the report that these professionals be for them citizenship, we sought an understanding of
how that ideal is affected by changes in the world of work.
Word-key: Work, Citizenship, New configurations work.
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA.........................................................................................................
EPÍGRAFE................................................................................................................
AGRADECIMENTOS................................................................................................
i
ii
iii
PREFÁCIO................................................................................................................
RESUMO..................................................................................................................
SUMÁRIO.................................................................................................................
iv
v
vi
INTRODUÇÃO.........................................................................................................
07
1. CAPÍTULO – 1....................................................................................................
08
1.1 Trabalho em um mundo em transformação ...................................................
09
1.2 A primeira Revolução Industrial (1750 – 1830)...............................................
10
1.3 A segunda Revolução Industrial (1870 – 1915)....................................................
16
1.4 Estado, Direitos, Proteção e Trabalho.........................................................................
22
1.5 A Pós – Modernidade e a “Estética do Consumo”......................................................
25
1.6 Os protagonistas.............................................................................................
33
2. CAPÍTULO – Cidadãos do Mundo.......................................................................
40
2.1 Construindo cidadanias..................................................................................
40
2.2 A gênese da cidadania...................................................................................
41
2.3 O surgimento do Estado Moderno.......................................................................
44
2.4 O Estado- do -Bem -Estar- Social e uma nova idéia de Cidadania..........................
46
2.5 A Reestruturação Produtiva e o Cidadão Consumidor................................................
49
2.6 O Cidadão brasileiro e o trabalhador do Brasil...........................................................
54
3. CAPÍTULO – 3. Percurso metodológico...............................................................
61
4. CAPÍTULO 4 Análise dos dados......................................................................
68
4.1 Trabalho..........................................................................................................
68
4.2 Cidadania........................................................................................................
77
4.3 Cidadania e Trabalho......................................................................................
80
5. Considerações Finais............................................................................................
90
6. Referências Bibliográficas.....................................................................................
93
APÊNDICES
INTRODUÇÃO
Em dois séculos de história, o homem vivenciou mudanças de grande significado em
sua vida individual e em suas relações sociais. Destas mudanças, duas merecem destaque em
nossa análise: o Trabalho e a Cidadania. O primeiro por ser compreendido por nós como
categoria fundamental para subjetivação e humanização do sujeito e que assumiu extrema
importância nas sociedades modernas. a segunda ganha um olhar privilegiado em nosso texto
justamente em interface com a primeira, principalmente, durante a consolidação dos Estados
modernos e do modelo econômico e social adotado após a Revolução Industrial.
Nossa proposta é de uma compreensão da forma como ambas as categorias tomaram a
dimensão atual para constituição do sujeito enquanto parte ativa da sociedade.
O presente texto organiza-se partindo de reflexões teóricas acerca das mudanças
históricas do trabalho, abarcando um período que se inicia no momento que se convencionou
chamar de Revolução Industrial, um momento de transição não econômico, mas também
social, ético e psicológico, até chegarmos ao modelo seguido por nossa sociedade que se pretende
global. Em um segundo momento, buscaremos resgatar as teorias pertinentes sobre Cidadania
investigando as possíveis interseções entre as idéias sobre Trabalho e Cidadania e como estas
podem contribuir para o modo como os trabalhadores compreendem a Cidadania. Por fim, nosso
percurso finaliza de forma muito pontual (escolhendo, para tanto, uma, dentre outras categorias,
que parece ganhar força no âmbito dessas transformações laborais) com a análise empírica de
como os trabalhadores entendem a sua Cidadania dentro da atual configuração social que se
caracteriza por relações contratuais cada vez mais instáveis e predominantemente precarizadas, o
que pode levar a uma produção de subjetividade débil dos trabalhadores submetidos a essas
novas formas de vinculação.
De certo, temos que a sociedade salarial, mesmo degradada pelas idéias e base da
reestruturação produtiva, ainda transmite valores e crenças no nosso modo de subjetivação, no
modo de os sujeitos se verem enquanto partes ativas de uma sociedade e de se identificarem
como tal. Reconhecendo nosso momento também como uma transição de profundos impactos,
buscaremos aqui compreender como cidadãos-trabalhadores, no nosso caso, auxiliares de
enfermagem
1
que atuam na cidade de Fortaleza entendem a Cidadania.
O interesse por esta investigação surgiu a partir da experiência profissional desenvolvida
em hospitais da cidade de Fortaleza. A partir do nosso contato cotidiano com esses trabalhadores
pudemos identificar características contidas em proposições teóricas estudadas por nós
anteriormente e que apontam para um crescente processo de precarização destes trabalhadores.
Esse fato nos inclinou a investigar como esses trabalhadores formam a idéia de Cidadania e em
que medida o trabalho deles influencia esta noção. Para nós, o modelo no qual estes trabalhadores
se inserem parece ser desconsonante com o que embasava a Cidadania erguida na sociedade
salarial. O enfoque dado a essa categoria profissional em nosso trabalho se justifica pelo fato de
que estes trabalhadores acabam por exercerem suas atividades em condições, na sua grande
maioria, precárias, tendo que se submeterem a jornadas laborais longas ou com vinculação
laboral flexibilizada. Alem disso, nosso olhar se volta para este segmento de trabalhadores dado o
crescimento do setor de serviços, em particular os que oferecem atendimento no setor de saúde
privada, despontando como um filão economicamente muito lucrativo e ainda em expansão.
1
Optamos neste trabalho por denominar os trabalhadores de auxiliares de enfermagem, mas estamos cientes de
que a partir do ano de 2008 estes trabalhadores serão denominados técnicos de enfermagem mediante a
exigência, por parte dos órgãos reguladores de enfermagem, de um curso de atualização de nível técnico para
todos os trabalhadores da área.
A nosso estudo é pertinente por acreditarmos que a temática da Cidadania é ainda pouco
explorada, principalmente sob o olhar da Psicologia, estando mais freqüentemente sendo trazida à
tona por outras áreas do conhecimento, como a Sociologia ou as Ciências Sociais. Nosso olhar
buscará dar ênfase não somente ao que está mudando na configuração da Cidadania, mas também
voltar a atenção para os sujeitos que participam dessas transformações e lhes dar voz para
expressarem a real forma de como eles se percebem dentro de tantas mudanças que afetam
diretamente suas formas de inserirem-se e serem / constituir-se na sociedade.
CAPÌTULO 1 – Contextualizando o Trabalho
É estranho que, sem ser forçado, saia alguém em busca de trabalho.
(William Shakespeare)
Você grita que eu não trabalho / Diz que eu sou um vagabundo. / Não faça assim, meu bem! / Pois eu vivo ativo
neste mundo / À espera do trabalho / E o trabalho não vem./ Quando eu me sinto bem forte / Vou procurar um
baralho ,/ Mas fico fraco e sem sorte / Se vejo ao longe o trabalho.// Acordei com pesadelo ,/ Quase que o chão
escangalho / Com dores no cotovelo / Por sonhar com o trabalho! / Trabalho é meu inimigo, já quis me fazer de
tolo: / Marcando encontro comigo, / O trabalho deu o bolo.”
(Noel Rosa e Canuto)
1.1 - Trabalho em um mundo em transformação
Muito se tem falado sobre Trabalho nos últimos anos, devido, em grande parte, às
transformações sofridas por ele no último século e à forma como estas mudanças impactam na
vida da comunidade e na dos sujeitos, individualmente. Aqui, tomaremos como referência para
nossa reflexão o contraste entre o ideal de trabalho que fora constituído durante o período
histórico conhecido por Revolução Industrial, no qual a modalidade de emprego quase obliterou
todas as outras formas de trabalho, tornando-se quase que hegemônica, e as “novas” formas de
trabalho da contemporaneidade. Essa hegemonia, como veremos no decorrer de nosso trabalho,
foi utilizada para regular não a economia, mas toda uma forma de organização social, com
reflexos consistentes até os dias de hoje.
Apesar de tomarmos um recorte histórico como referência para pensar o Trabalho,
compreendemos este como uma categoria, ao mesmo tempo histórica e antropológica, que
acompanha o homem desde a pré-história, e que não pode ser pensada sem uma relação intrínseca
com ele. Em acordo com o pensamento de Marx (1978), compreendemos a relação Homem X
Natureza em um movimento dialético, em que ambos são construídos reciprocamente, sendo o
Trabalho o intermediador desta relação. O homem modifica seu ambiente e ao mesmo tempo
sofre modificações dele. Assim, reconhecemos este como ativo em sua construção social, e não
apenas como passivo frente às transformações da natureza. O recorte se justifica pela forte
influência que a compreensão forjada nos períodos áureos de desenvolvimento do modelo
capitalista tem ainda hoje nas formas de se pensar o Trabalho e em particular como a ênfase no
Trabalho influenciou as formas modernas de compreensão da Cidadania.
Partiremos de um resgate histórico das mais significativas mudanças que ocorreram na
sociedade e nos sujeitos que as vivenciaram. Tomaremos por base a Revolução Industrial como
dividida em dois momentos para que, didaticamente, fique mais claro o impacto das
transformações e para que possamos entender como as transformações oriundas desse momento
histórico reverberam ainda hoje no modo de compreendermos o Trabalho e a Cidadania.
1.2 - A primeira Revolução Industrial (1750 – 1830)
O período que corresponde à primeira Revolução Industrial trouxe grandes mudanças
para o sujeito que viveu esse momento histórico. A sociedade como um todo passa a entrar em
uma nova estrutura, revendo conceitos e criando uma nova maneira de ver o mundo. Estamos
cientes de que um modelo sócioeconômico não é mudado repentinamente; ele passa por períodos
de convivência entre o modelo “antigo” e o “novo”, nos quais as diferenças são exaltadas e os
confrontos inevitáveis.
Consideramos que, nesse momento, vários fatores fizeram-se presentes para que
eclodisse uma revisão dos conceitos que sustentavam a sociedade, dentre os quais destacamos o
fortalecimento de uma classe antes excluída do poder social, a Burguesia comercial; a expansão
comercial advinda do comércio com as colônias; o acúmulo de capital proveniente destas; o
fortalecimento das zonas urbanas pelo comércio; o estabelecimento do capitalismo como modelo
econômico e o crescente enfraquecimento dos dois pilares de sustentação da sociedade feudal:
Monarquia e Clero.
A burguesia, enquanto grupo social, existe desde o feudalismo, mas, com o
fortalecimento do comércio entre as cidades, este segmento social passa a movimentar grandes
quantias financeiras em suas transações comerciais e a exigir visibilidade e parte do poder dentro
da estrutura social da época, batendo de frente com as estruturas rígidas do clero e da monarquia.
Esta exigência em grande parte foi atendida pelos anseios da Revolução Francesa, movimento de
cunho burguês que tinha o intento de horizontalizar a sociedade, apoiada em três preceitos: a
igualdade, a liberdade e a fraternidade. A eclosão deste movimento, na Europa, enfraquece de
forma clara o poder da monarquia que se baseava em uma estrutura estamental antagônica aos
desejos burgueses, que clamavam por uma mobilidade social. A idéia de uma predestinação
divina, que por muito tempo dominou a sociedade e era reforçada pela Igreja na figura do clero,
agora passava a ser questionada, pois, se todos eram iguais, livres e irmãos dentro da sociedade,
por que haveria diferenças na posição social? (AYZPURU Y RIVERA,1994).
O clero, por sua vez, sofre com as desavenças dentro de sua própria estrutura,
culminando com uma cisão que ficou conhecida por Reforma Protestante e personificada nas
figuras de Calvino e Lutero. Lutero condenava a venda de indulgências e propunha a fundação do
luteranismo (religião luterana). De acordo com Lutero, a salvação do homem ocorria pelos atos
praticados em vida e pela fé; Calvino trouxe a idéia de que a salvação da alma dar-se-ia pelo
trabalho justo e honesto. Essa idéia calvinista atraiu muitos burgueses e banqueiros para o
calvinismo. Muitos trabalhadores também viram nesta nova religião uma forma de ficar em paz
com suas crenças e anseios. Calvino também defendeu a idéia da predestinação para o sucesso de
alguns a partir de seus Trabalhos. Esse racha dentro da estrutura do clero, unido com os ideais da
Revolução Francesa, dará origem ao que Weber (2003) chamou de uma ética protestante, o que
mais tarde serviria de base para pensarmos um código moral e ético que alicerçou a sociedade
industrial e que se convencionou chamar de ética ou moral do Trabalho, trazendo para uma
posição de centralidade uma categoria antes vista como segundo plano (BAUMAN, 1999).
Com todas estas transformações político-sociais, entramos em outro fator preponderante
para a instalação de uma nova ordem social: a proletarização dos trabalhadores. Com o grande
êxodo das zonas rurais para as zonas urbanas e circunvizinhanças das cidades, fez-se necessário
transformar os sujeitos recém-saídos do modelo feudal e agrário em trabalhadores adaptados às
novas regras, tanto sociais, com a organização social necessária para gerir as cidades, quanto
estruturais, submetendo-as a uma nova estrutura laboral.
O primeiro dado significativo nessa “submissão” dos sujeitos ao trabalho é o fato de que
agora deveria haver uma separação entre local de trabalho e local de moradia; o trabalhador não
tem mais em seu lar a referência do espaço de trabalho, muito menos o seu ritmo anterior de
execução das tarefas, pois, no ambiente fabril, o tempo, o ritmo e as regras a serem seguidas não
eram mais as do trabalhador. Chama-nos a atenção, nesta cisão, o fato de que, mesmo
empregando-se famílias inteiras na fábrica, estas não podiam executar as tarefas no modelo
antigo. Além disso, vemos crescer o que Marx (2004) denominou de alienação do trabalhador ao
seu trabalho - o estranhamento dele ao produto do seu esforço. Rompe-se com quase toda forma
de subjetivação no trabalho; agora ele deve seguir apenas o ritmo da produção fabril. Esses
sujeitos são atraídos pela promessa de crescimento e melhoria de vida, o que leva uma legião de
miseráveis a abandonar a agricultura e passar a viver nas cidades, em condições que se
assemelhavam às do campo quando não piores. Aqui, o fato de a ciência, de certa forma, assumir
seu intento de subjugar a natureza traz a idéia de que o homem agora poderia estar livre das
agruras naturais e ser senhor de si na sua atividade diária de trabalho. O sonho de liberar-se do
trabalho pelo uso do conhecimento científico desembocará no que conhecemos como Revolução
Industrial.
A acomodação destes sujeitos saídos de um modelo de trabalho agrícola em uma nova
estrutura de trabalho não fora tarefa simples; precisava-se de um novo ordenamento social para
comportar tais sujeitos, como ilustra Ayzpuru Y Rivera:
Outro problema relacionado à mão de obra foi acostumar esta a um novo conceito de
tempo e disciplina laboral. De fato, o membro da primeira geração de proletários fabris
procedia de um ambiente rural no qual a única medida de tempo dada era a dos
fenômenos naturais, no qual eles podiam alternar entre a fiação, o tear e o trabalho no
campo e onde os ritmos irregulares do trabalho eram contextualizados pelo ritmo da
vida familiar, da comunidade e da sociedade artesanal (1994 p.66)
2
.
Tomás (1997) situa aqui o trabalho como peça chave para esse novo ordenamento, o fio
condutor da nova sociedade. Chega-se a pensar que o trabalho seria o redentor de todos os males
da sociedade moderna, desde a solução para o crescimento urbano desordenado até para a cura de
2
Tradução livre
problemas sociais como marginalidade e violência, um bálsamo para a cura de todos os males.
Atentemos para o fato de que somente a categoria trabalho adquire status de peça chave para a
sociedade; o trabalhador permanece em um estado semi-escravo, promovendo um curioso
paradoxo que distingue a ação do agente.
Seria um ledo engano pensarmos aqui que, com toda essa nova estrutura laboral, a
condição do trabalhador diferenciava-se da situação de grande penúria existente na zona rural. Os
trabalhadores advindos do campo acomodavam-se em cubículos, em geral porões das próprias
fábricas, ou em cortiços para fixar moradia. Sem as mínimas condições de higiene, famílias
inteiras se aglomeravam criando um ambiente propício para a disseminação de enfermidades e as
conhecidas pragas - como se confirmou durante o assolamento da Europa pela peste negra.
O capitalismo conseguiu instituir com tudo isso uma nova estrutura econômica (laisser
faire), de direito (individualista), um Estado (não intervencionista), uma ética (a do Trabalho),
um regime político (democracias representativas não participativas) e uma cultura, tudo edificado
a partir do trabalho (AYZPURU Y RIVERA,1994).
Outro fator interessante para nossa análise é a união cada vez mais forte entre as
ciências e o trabalho, mediados pelo capital. Esta triangulação trouxe uma relação ambígua para
os protagonistas do trabalho, pois, ao mesmo tempo que trazia a promessa de uma liberdade
maior, de uma redução do sofrimento no trabalho, de um domínio sobre as forças naturais, trazia
a ameaça de uma necessária nova adequação.
É importante salientar que, muito antes de termos estruturas industriais como as que
conhecemos hoje, a sociedade passou por um período de proto-Industrialização, no qual os
grêmios tiveram grande importância, tanto na produção de bens como no fomento de novos
trabalhadores. Ilustrando isso, Ayzpuru y Rivera (1994), citando Hobsbawn, consideram que a
forma mais evidente de expansão industrial no século XVIII não fora a construção das fábricas,
mas sim a extensão do chamado sistema doméstico. Para estes autores, antes de termos uma
maquinização maciça e presente, além de uma proletarização significativa, foram explorados de
forma profunda as amplas possibilidades oferecidas pela própria organização social da época.
Em uma leitura das entrelinhas desse pensamento, identificamos que estas possibilidades foram
na verdade brechas para uma exploração da mão-de-obra trabalhadora, visto que não havia
dispositivo para regular minimamente o trabalho.
Com o crescente incremento da ciência à produção, destacamos a temporalidade como
uma categoria chave dentro das transformações para podermos desenvolver nossa problemática.
A dificuldade em discutir as alterações temporais inicia-se logo com a definição do que seria essa
temporalidade. Desde Santo Agostinho, busca-se compreender o que é o tempo. Todos sentimos
e sabemos, para nós mesmos, o que esse conceito significa, mas explicá-lo aos outros é o que
seria o grande entrave. Na tentativa de expor nossas idéias de forma compreensiva, nos
deparamos com dois paradigmas de compreensão do que seria tempo, de acordo com o que nos
apresenta Hassard (1992). O primeiro, que aqui chamaremos de Cíclico Qualitativo, estava
diretamente ligado à constante luta entre o homem e a natureza. Nesta tentativa, cada cultura
tenta dar conta de alguma forma da sua temporalidade, estabelecendo parâmetros para se
localizar, mas que remete sempre a um eterno retorno, a um constante reinício. Esta característica
está presente claramente nas sociedades arcaicas, onde os sujeitos eram subjugados às variações
da natureza. O próprio ato de trabalhar era regido por esses tempos: os períodos de luminosidade,
a hora do plantio, da colheita, dos rituais religiosos, enfim, tempos mais subjetivos, perpassados
pela vivência quotidiana dos sujeitos.
Com o advento do cristianismo o tempo do homem passa a ser mais linear, direcionado
para um futuro redentor, progressista. Aqui nos deparamos com o segundo paradigma, o Linear
Quantitativo, ligado à ciência, mais claramente à física, e apresentando um dado que antes não se
via presente quando se falava de tempo: a idéia de irreversibilidade. A ciência aparece como a
chave para o progresso, a possibilidade de se desvencilhar das amarras da natureza. Assim, o
homem busca agora o controle e a mensuração desse tempo.
Tendo estas duas compreensões de tempo, uma mais subjetiva e cíclica e outra mais
objetiva e linear, podemos tentar compreender a dimensão de ambas na forma de o homem se
relacionar com o meio em que ele se inseria. O tempo do homem fora controlado pela natureza e
pela cultura que permeava a sociedade. Com a chegada da ciência a este cenário, há, logo de
início, um impacto na concepção de tempo e de trabalho para os sujeitos. O primeiro passo para
esta mudança é a invenção da luz elétrica. Agora o homem subjuga a natureza e pode realizar
suas atividades laborais cotidianas sem ter a preocupação com os períodos de ausência da luz do
sol. O reflexo inicial disso é que as jornadas de trabalho alteram-se drasticamente com este
cenário, principalmente nos países do hemisfério norte, onde a industrialização se fazia mais
presente e onde parte do ano ficava-se às escuras e em outras se intensificava o trabalho para
compensar tais períodos de ausência (ALBORNOZ, 2000).
Neste momento a produção em larga escala cresce e exige que o trabalhador tenha um
referencial linear para guiar seu trabalho; é preciso um consenso temporal para que a produção
seja cada vez mais eficiente. Aqui, todos os sujeitos envolvidos com a produção industrial, quer
sejam homens adultos, mulheres ou crianças, deveriam seguir apenas um ritmo: o da produção
industrial, o do relógio da fábrica.
Com todos os trabalhadores seguindo um mesmo ritmo sincrônico, o trabalho passa a
ser coletivizado, é necessário o engajamento de todos os envolvidos para que a atividade seja
concluída com êxito. Este fato faz com que os sujeitos se unam em um objetivo comum, o que de
certa forma leva a um fortalecimento dos laços entre os membros dessa coletividade pela via
temporal. Assim, o trabalho também passava a assumir o papel de aglutinador social.
Aparentemente, analisando a alteração temporal necessária ao estabelecimento da nova
realidade laboral do trabalhador, essa alteração não apresentaria grandes impactos para os
sujeitos; pelo contrário, seria muito sedutor acreditar que essas alterações foram de grande valia,
pois organizaram as formas de produzir. Entretanto, devemos estar atentos para não cairmos no
discurso recorrente de nossa época, pois nossa cultura é ainda muito permeada pelo pensamento
produtivo fomentado no período de consolidação do capitalismo industrial.
Como foi referido anteriormente no texto, as condições de trabalho nas indústrias da
primeira revolução eram tão penosas quanto as da lavoura, portanto a extensão da jornada de
trabalho com a chegada, inicialmente, da máquina a vapor e, posteriormente,com o advento da
luz elétrica e seus seguintes, não elevou o tempo “gasto” com o trabalho, mas também fora o
sofrimento deste sujeito. Antes conformado com a condição imposta pelo divino, o trabalhador
não acatava sua condição controlada pela natureza, mas também a fazia pela sua necessidade;
ele trabalhava o que para ele era necessário. Com a “liberação” das condições naturais, o homem
vê-se agora preso às amarras da fábrica e sob o controle do seu apito.
As condições de trabalho extensas e penosas sofrerão mudanças significativas
durante a segunda parte da Revolução, devido à intensa luta operária e à intervenção estatal
(DEJOURS, 1998).
Outra mudança trazida pela Revolução no trabalho foi a divisão das tarefas. Este dado,
apesar de não ser novo, teve um diferencial, pois o sujeito que trabalhava poderia desenvolver sua
tarefa sem nem ao menos saber o que aquilo significava em sua completude. A divisão veio
atender a uma necessidade prática das indústrias: a elevação da produção, pois, como os sujeitos
que trabalhavam ali não estavam qualificados para os serviços, eles deveriam apenas desenvolver
uma tarefa. Este dado é reflexo, em parte, também da forma como os mestres e artesãos
receberam a industrialização. Como existiam poucos conhecedores da produção como um todo,
estes negociavam regalias, inclusive com pagamentos diferenciados para participar do processo
de produção. Visando ao lucro, as indústrias encontraram a solução de reduzir custos com a mão-
de-obra, incorporando um contingente ansioso pelo trabalho, a um baixo custo, exigindo deles
somente simples atividades, pequenas frações do todo da produção. Observemos que,
fracionando o trabalho e fazendo com que o sujeito perca a noção de completude do produto de
sua ação, agrava-se o estranhamento do trabalhador ao seu labor e a perda de sentido para a
atividade em si.
Com a proliferação das indústrias e a disseminação do trabalho industrial, alguns setores
tiveram franca expansão durante a fase inicial da Revolução, como foi o caso do segmento têxtil
da indústria. Nesse ramo em particular, encontramos um dado significativo também para nossa
investigação. Além da divisão das tarefas, observou-se uma divisão também de gênero e, mais
que isso, trabalhos antes relegados a um nero quase de forma exclusiva passavam a ser
executados por outro. Exemplo disso é fiação nos teares, trabalho antes feito pelas mulheres, e
que agora fora incorporado pelo contingente masculino.
Mais que tudo, a primeira fase da Revolução Industrial representa uma passagem de
poder econômico da mão dos proprietários de terra, na figura dos monarcas e do clero, para quem
gerava capital, a burguesia urbana. Esta, por sua vez, encontra terreno fértil para edificar essa
nova realidade, que, como toda novidade, ainda coexiste com o passado por um tempo
considerável até tornar-se hegemônica.
O que podemos notar é que as transformações originadas no germe do desenvolvimento
industrial deram força para fomentar uma subjetividade embasada no trabalho e aprofundada
mais adiante por ações cada vez mais direcionadas a um modelo de cidadão aplicado ao
Trabalho.
1.3 - A segunda Revolução Industrial (1870 – 1915)
O que se concebe como segunda Revolução Industrial, é uma complexificação das
ações acontecidas na primeira etapa desse processo de reordenação ciopolítico e econômica. O
que relataremos agora é um crescimento cada vez maior do ideal burguês e das idéias capitalistas.
A sociedade cada vez mais faz uso de uma moral do Trabalho para gerir e organizar a explosão
demográfica recebida pelas cidades.
A ruptura com a estática social dos anos anteriores faz com que a idéia, por mais
remota que pudesse ser, de uma mobilidade social direcione a massa trabalhadora para um fim
único, o Trabalho. Antunes (2004) define como sendo nesse contexto que ocorre o fortalecimento
e a consolidação do que ele chamou de “a classe-que-vive-do-trabalho”. O movimento de
urbanização e o fluxo migratório do campo para a cidade, sendo profundamente afetado pela
expansão da ciência na agricultura, fazem com que as cidades tenham um crescimento
desordenado, o que, sem uma infra-estrutura adequada, provoca seu inchaço. Aproveitando-se
disso, e de uma cultura favorável no momento, os sujeitos que agora estavam mais adequados
ao modo de vida industrial completam o ciclo de uma nova realidade ao assumirem preceitos
advindos da religião protestante. O conjunto de idéias que emergia da ética protestante (WEBER,
2003), como registramos anteriormente, alicerçou o que conhecemos como moral do Trabalho
(BAUMAN, 1999) e representou bem a sociedade do Trabalho. Dentre os cortes promovidos pela
afirmação da ética ou moral do Trabalho, podemos destacar um ascetismo intramundano, a
proscrição de qualquer expressão de ociosidade, uma exaltação da moral profissional como prova
de virtude, uma racionalização instrumental das atividades produtivas e uma valorização ao logro
individual. O trabalho passa a ser tanto uma missão divina na terra como um meio de redenção.
Além disso, o trabalho torna-se o meio principal, quase o único, de reconhecimento cidadão. É
ele quem dota o sujeito de uma possibilidade, nem que mínima, de participar ativamente da vida
em sociedade. Trabalhar passa a ser, além da forma de sobreviver na estrutura capitalista, o modo
de vida padrão de existir na sociedade.
O trabalho torna-se o coordenador principal da moral, o acesso ao direito, à política e
à cultura. Sobre esta transcendência, Álvaro, Garrido y Torregrossa (1996) afirmam que o
trabalho passou a ser a coluna dorsal da sociedade, tornando-se a ponte de ligação entre todas as
suas instâncias.
Com a franca expansão do capital industrial, os postos de trabalho neste setor
abundavam, o modelo industrial imperava como o grande absorvedor da mão-de-obra da época. É
nesse ponto que Aquino (2003) aporta a reflexão sobre uma sobreposição da categoria trabalho
pelo emprego. Assim como o tempo, o emprego industrial foi praticamente único, dominando o
imaginário daqueles que viveram os tempos áureos da indústria no seu contexto de sociedade
salarial.
Acreditamos ser necessário resgatar alguns temas significativos que já discutimos
quanto ao que consideramos como primeira fase da Revolução Industrial. Um desses aspectos é
como foi alterada a percepção temporal dos sujeitos que conviveram nesse momento histórico.
Mesmo com a cisão provocada pela Reforma Protestante, desde a Idade Média, a religião sempre
fora um referencial para a vida dos sujeitos - regia o tempo a partir de suas convicções e fazia
com que todos seguissem um mesmo padrão. Com a dimensão adquirida pelo trabalho, o que
passa a reger a temporalidade dos sujeitos é o tempo da fábrica, o tempo da produção. Assim
como a religião, que com seus signos orientava a vida social cotidiana dos sujeitos antes da
Revolução Industrial, o apito da fábrica passou a reger a vida, tanto dentro como fora do trabalho
ou, como nos propõe Sue (1995), o tempo de trabalho está para a modernidade assim como a
religião estava para a Idade Média. Este dado é essencial para pensarmos como o trabalho passou
a consumir cada vez maiores parcelas de tempo da vida do trabalhador e como este foi se
deixando “cooptar”.
Karl Marx (1978), quando em seus escritos trata da mais-valia, norteia seu
pensamento na relação entre o tempo que o trabalhador leva para produzir determinada
quantidade de produto e o que é pago pelo capital por isso; o lucro excedente desse processo é o
que fora considerado mais-valia. Notemos, com base nisso, que o trabalhador, na venda de sua
força de trabalho, é expropriado. Mesmo cumprindo jornadas extremamente estafantes e longas, o
trabalhador recebia muito pouco por isso, a ele era repassada apenas uma parca parcela do que ia
parar nas mãos de quem detinha os meios de produção. A relação tempo e trabalho também teve
uma grande influência sobre as técnicas surgidas para organizar o trabalho. A ergometria,
enquanto ciência estudada pelos engenheiros de fábrica, visava reduzir ao mínimo os tempos de
produção, os movimentos inúteis, as “perdas de tempo”. Esse processo ficou marcado na célebre
frase do inventor americano Benjamin Franklin time is life/ progress, posteriormente
transformada em time is money. O tempo não poderia mais ser desperdiçado, pois isso implicava
em decréscimo de produção e com isso perda de capital.
Com os olhares direcionados para as indústrias, as ciências foram chamadas a
contribuir com a “organização” e a potencialização das indústrias. Engenheiros aperfeiçoaram o
maquinário, cada vez mais, e buscaram uma forma de melhorar também o desempenho do
trabalhador. A primeira mudança que nos chama a atenção é a criação da linha de montagem,
uma expressão mais concreta da parcialização das tarefas dentro do processo produtivo. Este
dado reflete a opção tomada anteriormente na primeira fase da Revolução; como os trabalhadores
não haviam sido preparados para uma produção como um todo, eles deveriam, somente, exercer
uma atividade simples de forma correta. Taylor foi o expoente ideológico desta idéia que fora
incorporada, principalmente, nas indústrias americanas. Acrescenta-se a isso o fato de que fora
introduzido um fator extra no processo - a esteira da linha de montagem. A um olhar menos
crítico este novo fator, aparentemente, não significaria tanto para a transformação do Trabalho e
do trabalhador, mas, a partir disso, o que se viu foi uma cisão total do controle do trabalhador
sobre sua atividade; o tempo para que a tarefa fosse feita era agora todo controlado pela máquina.
A esteira dita o ritmo de toda a produção; ao trabalhador apenas cabe seguir a marcha imposta
pelo capital. Este momento produtivo ficou conhecido como Fordismo/Taylorismo, pelo fato de a
fábrica americana Ford produzir seus carros embasada nesse preceito de parcelamento das tarefas
(AYZPURU Y RIVERA, 1994).
Autores da teoria dos tempos sociais, como Sue (1995) e Pronovost (1996),
consideram a existência de tempos o suporte para determinados períodos históricos, ou seja, um
tempo faz com que os outros orbitem ao seu redor e se balizem por ele para existirem. Entretanto,
concordamos com Aquino (2004) quando este lança mão da idéia de que sempre existiram
tempos plurais, mas que em um dado momento, pela configuração que a sociedade toma, um
desses tempos se sobressai aos outros, o que vem a provocar uma residualidade dos demais. Com
a hegemonia da indústria os outros tempos sociais existentes passam a não ser percebidos com
clareza e até a serem negados.
Vale lembrar que esse tempo dominante sofreu intervenções até estabelecer o padrão
que nos acostumamos a perceber. Com as reivindicações operárias e, principalmente com o poder
interventor do Estado, essa temporalidade passou a ter uma configuração mais bem delineada. O
certo é que na sociedade do trabalho claramente delimitada, até a década de 1970, o tempo que se
mostrava mais proeminente era o tempo da indústria. Poderíamos, como fez Sennett (2002),
pensar em outros tempos (como o da família, e o da educação, entre outros) como rivais desse
tempo hegemônico, mas o que percebemos é que estes outros tempos realmente orbitavam em
torno do trabalho, pois a família, apesar de figurar como a instituição mais importante para o
sujeito, ficava em um plano a ser seguido após a execução do trabalho, o tempo da educação não
era um tempo alheio ao trabalho, mas sim direcionado a ele. Ilustrando isso, Aquino nos fala:
A sociedade Industrial, ou mais especificamente a sociedade salarial, é caracterizada,
pois, pelo predomínio do tempo de trabalho, que impõe suas características de
linearidade, sincronização, determinação a todas as demais temporalidades das
atividades sociais (AQUINO, 2004 p.198).
No que concerne à política, a segunda parte da Revolução Industrial provocou a
entrada cada vez maior do Estado como interventor e regulador das ações do capital. Se, em
grande parte, o crescimento da economia até meados de 1870 havia acontecido devido ao modelo
liberal econômico mais clássico, o Estado agora tomava parte no crescimento econômico gerado
pela industrialização, deixando de lado o caráter mais positivo do início do capitalismo.
Poderemos aqui aventar algumas razões para esta mudança e pelo interesse estatal em se fazer
mais presente; dentre essas razões, podemos destacar o crescimento urbano, no qual a
industrialização se fez mais presente; o interesse em evitar a evasão de divisas pela expansão dos
negócios; o aumento do nacionalismo; a formação, mais tarde, dos Estados-Nação e a ascensão
de novas classes sociais solícitas por ações de proteção e cuidado, o que fez com que fossem
geradas novas políticas sociais, econômicas, sanitárias e de supervisão do funcionamento
Industrial (AYZPURU Y RIVERA ,1994).
Este último dado pode ter tido reflexo direto na movimentação de trabalhadores
questionando o poder do capital e exigindo, na forma de movimentos de enfrentamento e
mobilização coletiva, melhorias nas condições de trabalho dentro das indústrias. As políticas
criadas para amparar os trabalhadores e regular o trabalho, intermediando a relação
TRABALHADOR CAPITAL, refletem até hoje, mesmo que de forma mínima, nas ações dos
Estados contemporâneos.
A estandardização da produção faz com que se fale agora concretamente em uma
sociedade do trabalho. Todas as instâncias sociais dirigem seu olhar para o trabalho. A família, a
educação, a igreja etc, buscam forjar um homem trabalhador. Todos os esforços se unem para
fortalecer o modelo industrial. Este momento não trouxe novidades somente para o capital; o
próprio Ford enxergou no trabalhador a peça para uma retroalimentação desse sistema. O que era
produzido em larga escala deveria ter um consumidor final em condições de adquirir os bens.
Pensando nisso, Ford acaba criando o primeiro salário digno” pela jornada de trabalho - cinco
dólares por dia. É possível que essa iniciativa, apesar de tímida, tenha propiciado um significativo
retorno ao capital, pois os trabalhadores agora poderiam ter a chance de consumir o que
produziam, além de acalmar seus anseios por melhores condições de vida, dentro e fora do
trabalho.
O modelo americano começa a se consolidar frente ao europeu, e se estabelece ainda
mais com a Primeira Guerra Mundial. O maquinário das fábricas pesava cada vez menos e, por
ser mais leve, tornou-se mais preciso e fácil de manejar. O êxito do modelo taylorista/fordista
mostrou ao mundo a relação, aparentemente de sucesso, entre especialização e eficiência gerando
progresso e lucro. Mesmo pretendendo trazer ganhos, como melhores salários e baixa nos preços
de consumo, se fizermos uma análise dos possíveis impactos para o sujeito aqui produzidos ou
desencadeados, somos inclinados a pensar que a produção em série e o alto nível de
especialização podem ter agravado consistentemente a perda de sentido para com o trabalho, bem
como o aumento da rigidez no trabalho em uma cadeia produtiva cada vez maior, o que pode ter
resultado em problemas com controle comportamental dos sujeitos, mormente em relação a sua
saúde mental e física, desembocando na criação de postos de supervisão ainda mais alheios à
atividade global da produção.
Para alguns historiadores do Trabalho, como Ayzpuru y Rivera (1994), o modelo
fordista/taylorista, ao decompor extremamente o saber-fazer dos trabalhadores, não promoveu
a entrada maciça deles nas indústrias, mas também expulsou das fábricas os que detinham todo o
conhecimento da cadeia produtiva - os mestres dos antigos ofícios - visto que os novos
trabalhadores tinham um custo muito menor que eles e estavam incapazes de questionar o rumo
tomado pelo capital.
Podemos situar neste lapso de tempo a entrada da Psicologia como ciência no mundo
do trabalho. A seleção originalmente destinada a encontrar os soldados mais capacitados para a
guerra nos postos de comando chegava às grandes indústrias com a busca do homem certo para o
posto de trabalho certo. A psicometria unia-se ao que mais tarde se chamaria administração
científica do trabalho. O fato é que agora se buscava não mais um trabalhador, mas sim “o
trabalhador” - aquele sujeito mais capacitado, mais bem adaptado, o menos passível de erros. É
possível que aqui resida a origem de um pensamento muito recorrente em nossa realidade, a idéia
de que o trabalhador qualificado, especializado, terá sempre lugar no mercado de trabalho. Um
discurso falacioso, mas que é muito propagado, quando se tenta justificar a falta de oportunidade
para os trabalhadores, atualmente. O fato é que existem problemas consistentes tanto para a
absorção da mão-de-obra especialista como da generalista.
Em nosso caso particular, por tratar-se de um Trabalho em sua grande maioria,
executado por mulheres, essa parece ser uma porta mais acessível do mercado de trabalho para
esse gênero. Antes tida como uma atividade prática de cuidados, as auxiliares de enfermagem
têm passado por um processo de profissionalização nas últimas décadas, o que vem lhes exigindo
uma crescente qualificação e especialização em áreas especificas de atuação. Neste caso, há ainda
um fator que nos atrai a atenção, a forte conotação de cuidado, paciência e ‘amor’ contida nesta
atividade. Além de uma qualificação direcionada para o serviço, espera-se que os profissionais de
enfermagem em geral sejam compreensivos, amigáveis, verdadeiras mães para aqueles que estão
enfermos como supõe Stacciarini et ali (1999).
Mesmo apontando para o potencial de expansão do setor de saúde em nosso país, com a
criação de inúmeros leitos hospitalares nos últimos anos, pesquisas têm mostrado que a criação
de postos de trabalho neste segmento do mercado não tem acompanhado o mesmo ritmo. O que é
comum de acontecer é que por diversos fatores um trabalhador venha a ocupar dois ou mais
postos de trabalho ao mesmo tempo. Vale ressaltar que esta prática é recorrente não para as
auxiliares de enfermagem, mas sim para todo o corpo de profissionais da saúde, mostrando que o
processo de precarização atinge todos os níveis profissionais desse segmento da economia.
1.4 - Estado, Direitos, Proteção e Trabalho
Retomando aqui um ponto discutido anteriormente, ao passo que a sociedade do
trabalho crescia, cresciam também os anseio de uma nova classe social formada pela porção
intermediária da pirâmide social da época. Os trabalhadores com melhores postos na hierarquia
fabril davam origem ao que hoje conhecemos como a classe média. Eram cidadãos que
reivindicavam uma atenção ao Estado, que pagavam pesados impostos e que queriam uma
contrapartida disso. Por sua vez, o Estado atentou para o terreno lucrativo que era a expansão do
capital. Onde antes somente se ganhava de uma das partes, agora poderia haver um ganho em
dobro, do segmento empresarial e do segmento trabalhador. Dessa maneira, deveria haver uma
contrapartida do Estado em proteger estes membros da sociedade. Segundo essa perspectiva,
poderíamos aventar que isso fora tentado com a criação das leis trabalhistas e, particularmente,
com uma aproximação de uma Cidadania ao trabalho, em particular a modalidade emprego,
modalidade quase hegemônica como modelo nesse período.
Neste momento surge para nós a reflexão mais interessante de nossa discussão. O
Estado se converte, mesmo que em um plano idealizado, no mediador entre o Trabalho e o
Capital e agora passa a se posicionar como freio para as ações desmedidas do capitalismo para
com o trabalhador. São criadas leis de proteção e regulamentação do trabalho, leis de proteção ao
trabalhador. Dejours (1998) aponta para um maior cuidado com o trabalhador a partir das duas
Grandes Guerras, visto que o levante masculino estava nos fronts de batalha e a mão-de-obra
estava escassa. É nesse momento que os movimentos sanitaristas e de saúde do trabalhador criam
força. Os direitos adquiridos com ambas as Grandes Guerras refletem, além das lutas, não
sindicais como corporais, também uma preocupação do capital em proteger uma mão-de-obra e
uma massa de consumidores escassa, garantindo assim a sobrevivência do sistema econômico.
Em meio a esses eventos históricos o capitalismo passou por diversas crises que
afetaram na sua estrutura, crises estas que Antunes (1999, 2004) considera como cíclicas e que
sempre acompanharão o capital enquanto modelo econômico, pois seria nas suas próprias
contradições que ele se refaz. As crises sofridas durante o fim do século XIX e início do século
XX tendo como ícone a quebra da bolsa de valores de Nova York, e mais tarde a crise do
petróleo podem ilustrar bem esse movimento do capital e acenaram para uma crise de
superprodução.
Era preciso uma nova estratégia para que o capital superasse crises tão graves em um
relativo espaço de tempo tão curto. Eis que surge no Japão, numa economia arrasada pela
Segunda Guerra, um novo modelo produtivo. Com bases do modelo produtivo
Taylorista/fordista, o modelo japonês, que ficou marcado pela aplicação na fábrica de automóveis
Toyota, agora preocupava-se não mais com a produção massificada e em grande escala, mas
também com o consumo agora diversificado em vários segmentos. Para este novo modelo, quem
ditaria o passo da produção seria o mercado consumidor, os custos da produção deveriam ser
enxugados, visto que a aplicação da tecnologia estava consolidando espaço nas indústrias.
Apesar de ser uma proposta nova, o princípio produtivo permanece o mesmo, a linha
de montagem ainda é o local de trabalho, o tempo de produção ainda é mínimo. A mudança
introduzida era que esse tempo deveria ser acelerado ou não de acordo com a necessidade Para
isso, o trabalhador agora atendia, dentro da produção, a um painel luminoso que indicava
elevação do ritmo ou não do trabalho (ANTUNES, 2004).
O Toyotismo gerou para o capital uma chance de superar um momento de turbulência;
ao invés de uma produção gida, a nova proposta trazia um modelo flexível, aberto a mudanças,
inclusive com a cadeia produtiva já iniciada. Desta forma, o modelo Toyotista superava o
problema enfrentado pelo modelo americano, com estoques abarrotados de produtos sem
consumidores. O emprego maciço da tecnologia faz os custos despencarem, além de acelerar a
produção do produto final.
A economia em extrema recessão, principalmente depois do crack da bolsa em 1929,
assiste a um abalo na sociedade do trabalho. As empresas com dificuldades financeiras acabam
por demitir grandes contingentes de trabalhadores provocando um aumento nos supranumerários,
além de um déficit nas contas do Estado, que deixa de arrecadar impostos destes trabalhadores
que antes eram empregados.
O mercado, antes em franca expansão, sente o impacto desse freio. Um modelo
hegemônico por quase um século precisava ser revisado. A modalidade de trabalho que nós
conhecemos como emprego, e que fora quase que a única opção, vive um período de recessão
confrontada com as novas possibilidades flexíveis.
Nosso olhar sobre esse ponto é de grande interesse, dada a dimensão que esta
modalidade de trabalho teve e ainda tem para o fomento do trabalhador. O fortalecimento desse
ideal de emprego deveu-se muito às políticas originárias do pacto Keynesiano, um pacote político
que visava a melhorias sociais para os trabalhadores industriais. As garantias do que se
convencionou chamar de Estado-do-Bem-Estar-Social configuraram a modalidade de trabalho-
emprego como uma forma única necessária para se manter dentro da sociedade salarial. A perda
da dominância da configuração industrial, em meio às crises, vai entrar em choque com a cultura
que permeia estas sociedades, ou seja, a idéia de que o trabalho industrial, formal seria a única
via para o progresso. O que nos chama a atenção é que, diferentemente de outros aspectos, a
modalidade emprego parece ser ainda muito buscada por diversas instâncias da sociedade, como
família e educação, o que para nós poderia provocar uma confusão no sujeito que vivencia essa
realidade, afinal, frente às outras novas formas de trabalhar, é nesta que mais se agregam direitos
ao trabalhador, diferentemente de modalidades mais novas de Trabalho que tratam de ser mais
flexíveis a favor do capital e acabam reduzindo direitos para que este possa se expandir. Para nós
fica claro que a partir desse período de fortalecimento das modalidades flexíveis de inserção
laboral o conflito semântico tratado por Aquino (2003) parece tornar-se mais pertinente, pois
passam a conviver em um mesmo espaço modos distintos de estar no Trabalho.
Com o ganho de força dos novos modelos produtivos tomamos, parte agora do que
autores como Antunes (1999, 2004) e Nardi (2006) chamam de Reestruturação Produtiva. Este
movimento pode ser compreendido nas palavras do segundo autor como sendo “a transformação
do modelo de acumulação taylorista –fordista no contexto do Estado-nação para a acumulação
flexível no contexto da globalização” ( Idem, 2006, p. 53)
Para esse autor, as bases para se pensar esta nova conjuntura estão alicerçadas no
advento da terceira Revolução Industrial, que seria a união entre telecomunicações e informática,
associada à conjuntura econômica da sociedade dos anos 90 do século passado. Além de uma
nova configuração na base técnica, o novo modelo expoente traz novas formas de gestão e de
valor moral atribuído ao trabalho.
Autores como Meda (1998), Gorz (2003) e Offe (1992) apontam para um fim do
trabalho, cada um relacionado a um aspecto em particular do que o trabalho se configurou. A
primeira autora situa sua linha de pensamento no fim do valor trabalho, colocando esta categoria
como sendo eminentemente de caráter histórico, que surgiu em um determinado contexto
histórico e que está desaparecendo. Esse momento é o que representa a noção de trabalho que
carregamos hoje. Os outros dois autores convergem em alguns pontos de suas teorias quando,
tratam, não de um fim total do trabalho, mas quando mencionavam uma “perda da centralidade
do trabalho”. Gorz, em sua teoria, discute a perda do poder político que o trabalhador assume. A
luta de classe não estaria mais em tomar o poder da mão dos patrões, pois este não estaria na
figura do patronato, mas sim na própria estrutura do sistema capitalista, tornando, assim, a luta do
proletariado uma batalha inócua. Insistir nessa luta seria apenas uma troca de posições em que o
proletário será patrão e vice-versa. Assim o trabalho perderia sua centralidade quando passa a ser
uma luta despolitizada, visando somente à ocupação de uma posição de status. Offe, por sua vez,
pensa questionando o estatuto teórico da categoria trabalho como não sendo um dado social
fundamental. Isso se devia ao fato de que a sociedade de consumo fez decrescer a capacidade de
estruturação e organização da vida social.
É nessa distinção entre a perda de centralidade do trabalho e o fim de um tipo de
configuração laboral (emprego), que parece haver motivo para que se pense em um fim do
trabalho, como sugere Aquino (2003). Concordamos com esta idéia e trazemos para o foco das
discussões o impacto que este aparente entrave semântico pode trazer para o trabalhador em todas
as suas modalidades.
1.5 – A Pós – Modernidade e a “Estética do Consumo”
Com todas as mudanças provocadas por uma reestruturação produtiva, a sociedade
supostamente assiste à derrocada de grande parte dos valores que movimentaram a sociedade
salarial. Toda a ética ou moral do trabalho deveria ser vista com outros olhos. O modelo de
sujeito não seria mais o poupador e o trabalhador, mas sim o trabalhador consumidor; era preciso
escoar toda a produção, fazer com que o capital girasse, tivesse ampla circulação. Com isso o
trabalhador deveria deixar de preocupar-se com valores que antes eram repudiados, como a
ostentação de bens e o consumo para além do necessário.
Estar trabalhando não seria mais o norte das aspirações do homem moderno, mas, sim,
poder consumir o que lhe é oferecido, e consumir sempre, visto que ele é livre para escolher uma
infinidade de artigos em um hall cada vez maior de opções. O Trabalho, dentro da lógica da
racionalidade econômica, estaria cada vez mais esvaziado de sentido(s), supostamente deixando
os indivíduos cada vez menos implicados no processo de produção, com o qual vinham em
claro processo de desidentificação. Somado a isso, a crise estrutural observada pelo aumento do
desemprego global incitaria a necessidade de se criar uma “nova ética do Trabalho”.
Era preciso buscar um homem que fora perdido em meio ao crescimento do capital,
um sujeito dissolvido, transformado em mais uma peça. A ciência propõe mais uma vez a
possível solução para os problemas; seria necessário resgatar esse homem, ele não era mais um
recurso qualquer, ele era um Recurso Humano, cheio de idiossincrasias e particularidades como
nos sugere Chanlat (1992). O homem volta a se caracterizar como a principal peça da realidade
laboral. Procura-se criar um novo estilo de trabalhador: mais motivado com seu posto de
trabalho, que veja nele a satisfação de seus desejos, que busque fazer um plano de carreira, seja
mais cooperativo e mais integrado.
Autores como Gorz ( 2003) acreditam que essa fora apenas uma estratégia para formar
um exército de reserva ajustado às demandas do mercado, o grande gerente do mundo laboral na
atualidade.
Neste momento, cada vez mais o Estado se resguardaria a regular somente a
economia, deixando paulatinamente a área social relegada a segundo plano. Esta retirada do
Estado para a economia reflete bem o cenário político que se solidifica, principalmente, na
Europa, mas com uma repercussão muito específica no território americano, com as idéias
liberais da Era Thacther e Reagan e a “Terceira Via” implantada no mandato de Tony Blair,
como nos sugere Antunes (1999). O modelo neoliberal, como ficou conhecido, corroeu as bases
da sociedade salarial colocando em perigo os valores solidificados nesse contexto.
Este modelo econômico elegeu como “inimigo” mais próximo o Estado. Visto pelos
defensores dessa nova tendência como uma barreira para superar a recessão e ampliar os
negócios, o Estado passou de herói a vilão, sendo apontado como culpado pela estagnação
econômica e pela ingerência dos recursos que se seguiu aos anos de crise.
Toda esta estratégia supostamente fez com que o Estado se afastasse de uma posição
mais protecionista e se resguardasse a outra mais neutra no que concerne à regulação da díade
trabalho-capital. Vemos com isso a derrocada das ações do Estado-do-Bem-Estar-Social. Aliado
a esse fato, observamos uma exacerbação do ideal individualista. O que antes havia libertado o
homem das amarras divinas, oferecendo-lhe liberdade para guiar sua vida no início da Revolução
Industrial, apoiada em idéias da Reforma Protestante, agora fazia com que aparecesse o que
poderíamos ilustrar como um egoísmo exacerbado que enfraqueceria os laços de solidariedade,
visto que cada indivíduo deveria aparecer mais que os outros. No ideal protestante, a base do
“sucesso social” era a capacidade de acumular bens; já na nova configuração social que se
estabelece o alicerce parece estar na capacidade de consumir cada vez mais bens que, por sua
vez, passam a nomear em que estrato social este sujeito se encontra.
O fato de vivenciar uma sociedade individualista provoca nesse sujeito um sentimento
de inutilidade, caso ele não ascenda ao patamar consumista ou ao ideal de sucesso apresentado
pela cultura. Em grande parte, devemos esse individualismo à estratégia americana usada para
superar o excedente acumulado nos estoques. O american way of life mostrou-se como uma
forma de acabar com a crise fortalecendo o nacionalismo. A defesa do consumo e a idéia de que a
sociedade oferece infinitas possibilidades de trabalho para aqueles aptos a apreendê-las fizeram
com que o ideal norte-americano fosse buscado por diversas outras sociedades, inclusive a
brasileira.
Com toda essa mudança, o processo de alienação agrava-se fazendo com que o
Trabalho passe cada vez mais a não ser considerado uma expressão do desejo (Chanlat, 1992).
Como prováveis conseqüências desse contexto temos o aumento da resistência dos trabalhadores
ao trabalho industrial, refletida no absenteísmo, nos atrasos, nas falsas enfermidades, na apatia,
na indisciplina, nos roubos, entre outros, que eles não viam no trabalho a satisfação de suas
necessidades nem o identificavam como um valor humano. A proposta desse autor é um resgate
da condição de sujeito dentro das organizações buscando o que fora perdido ou negado com o
passar da evolução do Trabalho.
A nosso ver, essa tentativa de resgate não é um intento novo na história do trabalho. A
teoria das relações humanas proposta por Elton Mayo (Apud Chiavenato, 2000), baseada em seus
estudos na fábrica de componentes elétricos, já apontara para essa consideração dos fatores
humanos em detrimento dos econômicos. O que vemos de entrave nessas propostas é o que acima
mencionamos: o sujeito apenas é “moldado”, “domesticado”, a ele não é permitido tomar
consciência do seu valor, dos seus reais interesses.
O forte impulso dado à tecnologia e às telecomunicações, nos últimos 50 anos, fez
com que as fronteiras, antes gidas e bem delimitadas dos Estados-Nação, fossem enlarguecidas,
estendidas a outros mercados. Com a mundialização do mercado e a migração das grandes
organizações para países em desenvolvimento, observa-se uma nova tendência surgindo, e
como grande força. Apesar de o contingente de trabalhadores ainda estar concentrado nas
indústrias, um outro setor desponta como a grande promessa para a economia, o setor de serviços,
que desde meados da década de 70 do século passado, possuía a maioria dos trabalhadores
ocupando seus postos, como nos mostra Daniel Bell (1973). Cada vez mais este segmento assume
importância para o mundo do trabalho. O setor de serviços surge como uma esponja que
amortece e absorve os impactos da crise estrutural pela qual o mundo moderno passa. Podemos
falar em uma crise na estrutura do mundo laboral pelo fato de que este perdeu todas as suas
certezas, as suas bases estão sempre sendo reformuladas, estamos em um cenário no qual o que
impera é a instabilidade.
Antunes (1999, 2004) nos mostra que o mundo do trabalho cada vez mais se
heterogeneíza e se complexifica no contexto do capitalismo contemporâneo. Segundo ele,
podemos identificar alguns movimentos que ficam bem claros no mundo de hoje, e que mesmo
parecendo contraditórios, demonstram como encontra-se o mundo do trabalho na atualidade,
quando o trabalho típico da sociedade salarial perde o lugar hegemônico que teve tempos atrás.
A primeira tendência caracteriza-se por uma massiva desproletarização do trabalho
industrial, principalmente nos países mais desenvolvidos, onde podemos observar uma intensa
migração nas últimas décadas para países periféricos, onde a mão-de-obra é farta, com um grande
exército de reserva, principalmente composto de jovens às portas de entrarem no mercado de
trabalho, no qual as empresas podem conseguir mão-de-obra barata.
Junto a isso, destaca-se o grande salto tecnológico na área de automação e robótica,
algozes de muitas profissões e postos de trabalho. A idéia de que a tecnologia é ruim para o
trabalho é contrabalançada pelos que acreditam que, ao passo que se extinguem profissões pelo
uso continuado e massivo de tecnologia, outros postos e profissões são criados (Castell,1999). O
certo é que onde antes trabalhavam dez pessoas, hoje somente trabalham duas.
Segundo o mesmo autor, poderíamos elencar cinco condições que alicerçaram as
mudanças ocasionadas pelas metamorfoses que vêm acontecendo no mundo do Trabalho e na
sociedade. A primeira seria uma separação rígida entre quem trabalha efetiva e regularmente e os
inativos e semi-ativos, sendo os segundos a parte que deve ser evitada. Para ele, pelas
transformações sociais promovidas nesse período, somente a população ativa tinha interesse, pois
viria dela a parcela para a edificação de uma sociedade melhor. Notemos que hoje esta premissa
levantada pelo autor deve ter inúmeras ressalvas, pois, mesmos os semi-ativos e inativos, dada
a imensa massa de informais, movimentam grande parcela do mercado consumidor atual,
entretanto ainda parece haver rechaço por parte do trabalhador ao encontrar-se no segundo
segmento.
O segundo ponto seria o processo de cooptação do trabalhador a seu posto de trabalho
e a racionalização crescente do processo produtivo marcado pela gestão do tempo. Como
havíamos tratado, o trabalhador vem passando por um processo crescente de adequação a estas
condições impostas pelo modelo econômico mundial, no qual os mercados estão abertos a
diversos modelos, dos menos aos mais perversos no que tange à exploração do trabalhador.
A condição seguinte seria o acesso ao consumo de bens propiciado pelo salário, o que
acabou convertendo os trabalhadores nos próprios usuários da produção massificada. Esse
também foi um dado relevante abordado por nós anteriormente e que vem alicerçando o modelo
capitalista, mesmo em suas mais graves crises. A nós parece muito caro crer que se possa pensar
em um fim do Trabalho enquanto a forma socialmente privilegiada de sobrevivência social seja o
salário. Apesar de alguns autores como Bauman (1999) apontarem para uma passagem de foco do
Trabalho para o Consumo, somos mais tendenciosos a crer que ainda uma influência muito
intensa do modelo salarial na identificação e constituição dos sujeitos dentro da sociedade.
A penúltima condição seria o acesso à propriedade social e aos serviços públicos
mediante o Trabalho. Aqui reside um ponto chave para nossas indagações, pois este ponto por
muito tempo significou a principal ligação entre o Trabalho e a Cidadania. Essa característica da
sociedade salarial só começa a ter alguma rivalidade quando se universalizam os direitos de todos
os homens enquanto cidadãos. Mesmo reconhecendo como um avanço na igualdade de direitos,
notamos que esta equidade parece ser reconhecida apenas no plano teórico, permanecendo o
trabalho e seu pagamento de contrapartida como a chave de acesso à participação social.
Por último uma condição que se liga diretamente a anterior, o fato de haver uma
inscrição de um direito de trabalho que reconheça o trabalhador como membro de uma
coletividade dotado de um estatuto social. Notemos que este dado vem confirmar o anterior para
reafirmar o trabalhador como principal peça motriz da sociedade. Agora o trabalhador tem seus
direitos regulamentados e garantidos. Por sua vez eram esses direitos que o diferenciavam da
coletividade. A regulamentação da identidade trabalhista e do trabalhador fez com que este
assumisse papel de destaque. Por muito tempo a regulamentação do trabalho formalmente serviu
de passaporte e garantia de vida regrada, honesta e idônea para os sujeitos. Vejamos o caso
particular do Brasil, onde, por muito tempo, o registro em carteira garantia ao sujeito evitar
problemas com a polícia ao ser abordado na rua, como nos mostra Gomes (2002).
Os estudos mais atuais apontam em contrapartida para um crescente aumento do
chamado terceiro setor, ou setor de serviços, incluindo comércio, finanças, seguros, indústria
do lazer, saúde e imóveis (Annunziato, 1989 apud Antunes, 2004).
Acreditamos ser importante ressaltar que esse crescimento do terceiro setor
aparentemente possibilitou a entrada massiva no mercado de trabalho de mulheres e jovens,
entretanto quase sempre em empregos precários, com baixos salários, em especial as mulheres, as
quais, na maioria dos casos, têm uma jornada dupla, considerando a permanência do seu papel no
âmbito do trabalho doméstico, e sem garantias (Antunes, 2004).
A precarização seria um movimento que se caracteriza por uma desregulação ou
ausência de garantias que assegurem direitos adquiridos pelos trabalhadores. Esse movimento
fica evidente quando voltamos nosso olhar para as novas modalidades de trabalho flexíveis
propostas dentro da estrutura do setor de serviços, na qual esta tal flexibilização é sempre em
direção a uma extensão da carga de trabalho.
Outra tendência explicitada por Antunes (idem) é a de sub-proletarização do trabalho,
caracterizada pela precariedade dos empregos e salários, trabalhos parciais (part time job),
temporários, sub-contratações, terceirizações, e empregos inseridos na gica da economia
informal. Busca-se a flexibilização do mundo do trabalho com trabalhadores menos ligados a
sindicatos e leis de proteção a seus direitos, o que para as empresas gera uma economia enorme
com contratações e com demissões, mas que para o trabalhador significa a dissolução dos direitos
conseguidos durante as lutas entre a classe trabalhadora e os capitalistas donos das indústrias de
um século atrás.
As contradições presentes na nova estrutura laboral ficam mais patentes quando
identificamos uma tendência à desespecialização caminhando lado a lado com uma
superespecialização. A primeira representa bem a flexibilização do mercado, em que estão os
mais polivalentes, que dominam o básico de diversas tarefas e se adaptam melhor às demandas
do capital, tendendo a encontrar mais espaço no mercado através da flexibilização de suas tarefas.
Para a organização é interessante ter um empregado que faz o serviço de mais de um, sendo
remunerado da mesma forma, mas para o trabalhador, ainda que ele não se conta, isso passa a
ser uma potencial brecha para uma banalização do seu papel dentro da empresa. No que se refere
à superqualificação, que também acontece nitidamente no mercado de trabalho, decorrente do
avanço científico e tecnológico, percebemos a preocupação de uma pequena parcela, em geral os
de classes abastadas, com uma crescente especialização. Os profissionais passam a se especializar
em áreas cada vez mais restritas e, muitas vezes, perdem a noção do “todo”. Exemplos disso
estão nas áreas como a medicina de ponta, a jurídica - isso no setor de serviços -, além das
especializações tecnológicas que ainda impactam no âmbito da indústria. Nesse contexto,
também podemos observar um processo de “pseudo intelectualização” da classe trabalhadora. O
que significa dizer, em outras palavras, que os trabalhadores passam a ser os supervisores do
processo produtivo, o que, como foi dito, promove um distanciamento maior entre o
trabalhador e o produto de seu trabalho.
Ao mesmo tempo que pretensamente se exige uma contínua preparação para o
mercado de trabalho, isso traria um custo ao trabalhador, que o Estado não supre de forma
satisfatória questões como saúde e educação. Estas lacunas são preenchidas pelo capital privado.
Dentro de uma concorrência desleal, observam-se dois movimentos: o primeiro daqueles sujeitos
mais desfavorecidos socialmente e que têm de antecipar sua entrada no mercado de trabalho por
uma exigência de sobrevivência - afinal precisam consumir bens para sobreviver na lógica
capitalista, além de uma exigência cultural, resquícios da sociedade salarial, à qual somente
reconhece como pertencente aquele que é ativo dentro da sua estrutura, ou seja, aquele que
trabalha e/ou que consome.
O segundo movimento refere-se àqueles que podem retardar o ingresso no mercado de
trabalho para buscar uma melhor qualificação. Estes em geral buscam qualificar-se para obterem
uma boa colocação no mundo do trabalho. Aqui há, a nosso ver, uma cilada de nossa cultura. O
fato de qualificar-se continuamente é tomado como certeza de trabalho, porém, com a difusão da
educação, muitas das tentativas de qualificar-se esbarram na enorme concorrência, o que faz com
que pensemos na lei básica da economia para ilustrar esta situação. Como a oferta de mão-de-
obra é grande, devido ao enorme exército de reserva disposto a adentrar o mercado de trabalho,
os valores a serem pagos pelos qualificados sem diferencial são baixíssimos. Assim, segmenta-se
o mercado entre os que podem diferenciar-se, os que pensam estar se diferenciando e entre os que
nunca se diferenciarão, esta, a grande parcela da população economicamente ativa.
Observamos facilmente que uma parcela da sociedade acabaria sendo sempre
privilegiada, restando à grande maioria sobreviver no meio de todas as dificuldades, servindo
como exército de reserva sem quase nenhum poder de negociação.
Talvez sejam as conseqüências dessas evidências o que leva autores como Gorz
(2003) a considerar que o trabalho perdeu a função de integrador social, pois hoje é exigida uma
competição constante entre os sujeitos para manterem-se nos postos de trabalho. A sociedade
“Pós-Moderna” ou “Pós-Industrial” exige que o sujeito seja o melhor sempre, taxando de
incapazes aqueles que não conseguem espaço dentro dessa disputa. Essa idéia contrapõe o
pensamento de Antunes (1999) quando ele defende o trabalho como protoforma social,
ratificando que, enquanto o capitalismo for o regime econômico vigente, não se pode pensar uma
sociedade sem trabalho como criador de valor.
Essa idéia também é defendida por Aquino (2003), quando este coloca uma forma de
coexistência entre todas as formas de trabalho em um mundo laboral complexo, no qual já não
existe mais uma só forma hegemônica de trabalho.
A crescente expansão do terceiro setor como expoente da economia não significa o
fim das outras formas de trabalho, elas continuam existindo e tendo seu papel na ordem social ou
como diz Aquino (2003), são períodos de convivência dialética. A perda da hegemonia do
emprego é sentida em nossa sociedade como uma ameaça à existência do trabalhador pelas
próprias implicações contidas nas novas formas de trabalho, tais como: perda de perspectivas
futuras, perda da estabilidade, inexistência de certezas quanto ao trabalho, volatilidade extrema
do capital e das relações de trabalho.
Atentemos nesse momento para a forma como o capital se comporta frente aos novos
investimentos. Com a mundialização do comércio, o capital deixou de ser concreto e passou a ser
especulativo, de sorte que os investidores acabam optando por direcionar seus intentos para as
ações e para o mercado especulativo, retirando-se do cenário industrial, notadamente o que mais
concentrou postos de trabalho. É consenso que, para que haja crescimento na indústria, deve
haver um pesado investimento, o que não ocorre desde o fim dos “30 gloriosos” (1945 a 1975).
1.6 - Os Protagonistas
Até aqui, tratamos quase que exclusivamente do trabalho e suas transformações,
deixando em segundo plano os protagonistas de todas estas mudanças. Acreditamos ser
fundamental um espaço reservado para analisarmos os diversos tipos de trabalhadores que
compuseram os diversos momentos do trabalho.
Para compor esses tipos , enquadraremos os trabalhadores em categorias que serão
abordadas individualmente. Iniciaremos nosso intento pelo clássico trabalhador, ou seja, o
homem, adulto, arrimo de família. Este trabalhador representa o modelo que temos quando
pensamos em trabalho.
É interessante pensarmos em como o caráter familiar desse sujeito representou grande
importância financeira e social para a sociedade, afinal este era o membro que detinha o maior
montante da renda familiar o que na maioria dos casos levava este a ser o provedor de toda
família, responsável não só pelo cuidado, mas também pela transmissão de valores estruturais
para a organização dos membros na sociedade. No que concerne ao consumo gerado por esse
membro, isso significava a maior parcela de capital dessa relação, apesar de que, nos períodos em
que a moral do trabalho era mais presente, este era um consumo direcionado somente para
garantir o sustento diário. Com a passagem da sociedade do trabalho para a do consumo, como
propõe Bauman (1999), mesmo tendo uma divisão maior no montante financeiro gerado pela
família, esse era o sujeito que praticamente provinha todos os bens para a família.
Se pensarmos em uma divisão do trabalho por gênero, encontraremos uma grande
discrepância entre o que era pago ao homem adulto e provedor da família e o que era destinado
aos outros membros que trabalhavam. Mesmo exercendo funções semelhantes, o que era pago ao
sexo feminino girava em torno de 50% do que se pagava aos trabalhadores varões (AYZPURU Y
RIVERA, 1994).
Muito desse panorama de início e meio, que aqui, denominamos, revolução do
mundo do Trabalho, desencadeia-se no modelo que observamos ainda hoje. É certo que, com
muitas lutas por igualdade e paridade salarial, outros grupos de trabalhadores avançaram muito
nesta questão, entretanto ainda é muito comum encontrar casos em que a questão de gênero ainda
é definidora no salário e na execução da tarefa.
Este mesmo homem que por muito tempo teve como opção permanecer em um único
emprego por toda a vida, agora enfrenta um problema que afeta toda a estrutura social da
contemporaneidade. Com a decadência do sistema de pleno emprego, e de grande parte das
opções de trabalho estável, esse trabalhador, ao ser desligado de suas funções laborais no
emprego, encontra extrema dificuldade em recolocar-se no mercado de trabalho, em parte por
uma nova dinâmica laboral, que exige cada vez mais da reciclagem do trabalhador, algo que não
acontecia antes, pois o sujeito teria de pensar em somente executar seu trabalho sem preocupar-se
com sua saída do emprego. Ainda nesta mesma linha de raciocínio, o grande exército de reserva,
cada vez mais instruído para o ingresso no mercado de trabalho, gera concorrência muitas vezes
desleal pelo fato de haver, hoje, uma, predileção por colaboradores mais jovens, com carreiras
mais rápidas e, em geral, com menores salários. A não absorção desta mão-de-obra faz com que
sentimentos como incapacidade, incompetência ou fracasso povoem o imaginário destes sujeitos
em processo de marginalização social. Outro agravante é o rombo que isso abre no sistema
previdenciário do país, o primeiro a sentir a falta de contribuição destes ex-empregados.
Tomando agora como foco de análise o gênero feminino, Dejours (1998) aponta para
uma entrada maciça da mulher no mundo do trabalho com o desenrolar das Grandes Guerras,
momento em que os homens aptos à batalha afastam-se das fábricas. Ayzpuru y Rivera (1994),
em contraponto a esse dado, apresentam uma parcela significativa presente nas fábricas desde o
início da revolução, apontando estatísticas da própria época que mostram um contingente, em
torno de 50%, da mão-de-obra sendo ocupada por mulheres, principalmente na Inglaterra, dentro
da indústria algodoeira.
Não é tão significante para nossa reflexão quando a mulher entrou ou não como mão-
de-obra na indústria, mas a importância que ela teve para o movimento de transformação do
trabalho. É verdade que alguns momentos tiveram mais expressão, até pelo apelo existente neles,
como é o caso das duas Grandes Guerras, mas o movimento é diferente em ambos os casos. Na
Primeira Guerra, a expressão tida fora grande, mas houve uma evasão com o retorno do
contingente masculino. Já na Segunda Guerra, com os crescentes movimentos de emancipação da
mulher e o forte movimento feminista, a visibilidade do trabalho feminino teve uma maior
abertura. Desde então, o reconhecimento da mulher enquanto força de trabalho tem crescido e se
consolidado, embora ainda muito aquém da paridade com o trabalho masculino. Atentemos para
o impulso que a mão-de-obra feminina teve com o fortalecimento do setor de serviços. Como, em
geral, estes postos não exigem força física, o contingente preferencial a ser utilizado foi o
feminino. Esse dado seria favorável se não fosse o fato de que as condições destes empregos são
na grande maioria, extremamente precárias como apontam Antunes (1999) e Beck (2000). Este
dado é tão significativo que os autores chegam a descrever esse movimento como feminilização
das relações de trabalho. Concordamos com ambos no que concerne à condição, hoje, do sexo
feminino e dirigimos um olhar não às implicações referentes a este gênero, pois esses dados
refletem para todos os trabalhadores, visto que a reserva de mão-de-obra é tomada como um todo
para regular o mercado atual. Como o gênero feminino acaba se inserindo de forma rebaixada em
relação ao masculino, isto acaba desembocando em um duplo prejuízo, pois faz com que os
salários em geral sejam nivelados pelos mais baixos, como afirma Nogueira (2004) .
Abordaremos agora a parcela jovem da população, talvez a que hoje seja a classe de
trabalhadores que mais sofre com a precarização das relações e condições de trabalho. Assim
como o contingente feminino, os jovens, de ambos os sexos e de diversas idades, também
ocupavam as fábricas do início do século XX. Eles exerciam os mesmos trabalhos que os adultos
por uma remuneração ainda menor do que a paga pela mão-de-obra feminina. Com o passar do
tempo, e com as lutas por uma legislação trabalhista justa, os infantes passaram a ser de alguma
forma protegidos. O intento parece ter sido afastar esses sujeitos por enquanto, fazendo com que
estes se preparassem para adentrar o mundo do trabalho. A cargo disso estaria responsável a
educação formal, incumbida de fornecer subsídios para que, ao chegar à fase adulta, este mesmo
sujeito ocupasse um posto de emprego. As gerações que viveram o tempo do Estado-do-Bem-
Estar-Social usufruíram algo que dificilmente se experienciará novamente nos tempos atuais: o
pleno emprego, o emprego de uma vida toda. Essas duas vertentes representam a forma de
organização no período da sociedade salarial. A primeira refere-se a uma conjuntura na qual o
número de postos ofertados seria igual ou maior ao número de sujeitos prontos para trabalhar.
Com isso era dado como certa a entrada no mundo do trabalho. Na segunda vertente, a
estabilidade econômica promovia uma possibilidade de se permanecer até a aposentadoria em um
mesmo emprego, possibilitando um planejamento da vida do trabalhador à longo prazo.O sujeito
que é preparado para ocupar um emprego, atualmente, mesmo com esta realidade sendo posta em
xeque, ainda é impelido a crer nesse modelo.
O jovem, ansioso por assegurar seu posto de trabalho, submete-se a condições
inferiores para garantir sua primeira oportunidade. Recentemente, assistimos a uma nova
tendência que antes não tinha tanta expressão: as oportunidades do funcionalismo público.
Podemos aventar aqui que esta busca seja em função do que foi perdido ou degradado na
iniciativa privada: a estabilidade do emprego.
Este seria mais um indício desta complexificação do mundo laboral, em que pelo
menos identificamos duas vertentes mais bem delimitadas, uma que ainda recorre a valores da
sociedade salarial, buscando formas de manter condições que não são mais hegemônicas, e outra,
com uma proposta mais adequada ao mercado, onde o sujeito é individualizado e deve
responsabilizar-se por seu sucesso ou fracasso, sendo assim um trabalhador inclinado ao risco do
mercado. São provavelmente duas gerações de trabalhadores vivenciando um momento de
transição e de cortes significativos no mundo do trabalho.
Para nós esse momento é fundamental para pensar como esse trabalhador se constrói,
como ele tem se adaptado ao novo sistema econômico e de trabalho. Com a mundialização da
economia, e o mundo do trabalho transcendendo barreiras geográficas, temporais e culturais, os
trabalhadores acabam sendo cooptados pelo discurso do capital e da mídia consumista, não
havendo mais dispositivos fortes o suficiente para contrabalançar esse jogo de poder.
O modelo neoliberal em si busca a sobrevivência do capital sem preservar o
trabalhador; o que observamos sem grande esforço é que “a faceta perversa das transformações
contemporâneas é visível através do aumento da população de excluídos do mercado formal de
trabalho e da miséria produzida pelas formas precárias de sobrevivência” (CATTANI,1996 apud
NARDI 2006).
A idéia pregada pelos teóricos neoliberais de que promovendo-se um crescimento
econômico estar-se-ia promovendo uma melhoria nas condições de vida, vem sendo posta à
prova a cada divulgação do crescimento do PIB dos países, resultados que nos permitem
continuar a ver uma distribuição de renda concentrada na o de quem já detinha o capital. Esse
fato faz com que países de economia periférica, como é o caso do Brasil, fiquem subordinados a
políticas das instituições financeiras internacionais que, por sua vez, são subordinadas à dinâmica
imposta pela globalização, agora tomada não mais pela geração de empregos, mas sim pelo
capital especulativo (IDEM,2006).
Neste contexto, exige-se um fortalecimento do mercado enquanto regulador,
mantendo uma taxa natural de desemprego, incitando uma maior competição entre os
trabalhadores, onde não visibilidade dos que fracassam, um enfraquecimento dos sindicatos e
das ações coletivas e submissão das políticas e ações sociais à lógica do mercado. Com a falência
destas instâncias vemos uma ameaça direta aos laços sociais, inclusive à própria constituição do
cidadão, que, como veremos, fora forjado no modelo cidadão-trabalhador.
Atualmente estamos envoltos no que Dejours (1998) denominou de “banalização do
mal”, ou seja, uma exacerbação do individualismo que faz com que os indivíduos não se
sensibilizem com a miséria do outro, onde este mesmo outro passa a lhe ser estranho e
ameaçador.
O desemprego passa a ser tomado como uma opção individual; o sujeito deveria se
responsabilizar por suas ações em busca de um lugar na sociedade. Sendo assim, vejamos um
contraponto a esta idéia. Antes, na sociedade salarial, havia subempregos, empregos precarizados
e desemprego, mas nesse período havia uma idéia generalizada/ precipitada de que estes podiam
ser considerados quase como opção, afinal haveria nesse momento uma configuração social em
que o espaço reservado a essas atividades menos expressivas que as formas regulamentadas era
muito reduzido, o que fazia com que elas fossem praticamente imperceptíveis a grosso modo.
Hoje estas mesmas facetas do trabalho passam a não ser mais uma opção dada a conjuntura
desfavorável do mundo do trabalho atual.
O mercado informal em países mais pobres passa a ser visto como parte significativa
da economia do país. Concordamos com Singer (1998) quando este mostra esta situação não
como opção individual, mas como uma problemática microssocial.
Com a erosão de grande parte dos valores da sociedade salarial, o status de cidadão
atrelado ao emprego em uma sociedade na qual o mundo do Trabalho está em um momento de
mudanças estruturais. A nós parece ser necessário que repensemos a forma como estes sujeitos
compreendem-se como parte ativa de uma sociedade. Para isso, discutiremos a nese do que se
compreende por Cidadania.
No nosso caso em particular, os protagonistas acabam por englobar condições muito
particulares, afinal a grande maioria dos auxiliares de enfermagem são mulheres, submetidas a
condições de trabalho com fortes características precárias, tendo que dar conta de múltiplos
postos de trabalho, além de uma segunda jornada como donas de casa.
Faremos aqui uma breve problematização acerca da condição desses trabalhadores e
sobre suas características próprias. Em nossa sociedade o trabalho na área de enfermagem ainda
é, em sua grande maioria executado por mulheres, o que a essa profissão uma forte conotação
feminina, pelo próprio ato de cuidar, como sugere Stacciani et ali (1999).
Apesar de reconhecermos como sempre existente e em diversos momentos de extrema
importância, o trabalho feminino somente vem adquirindo expressão mundial a partir da década
de 1970 com o fortalecimento dos movimentos feministas. A literatura, ainda hoje, parece ser
controversa acerca do tema, com alguns autores apontando apenas para um crescimento das taxas
de emprego femininos e outros que sugerem que a empregabilidade feminina é acompanhada
na maioria dos casos, por um forte conteúdo precário, quer seja por disparidade salarial ou por
condição contratual diferente da masculina ( HOFFMAN E LEONE, 2004).
O contínuo crescimento da atividade feminina pode encontrar explicações numa
combinação de fatores econômicos, demográficos e culturais que vêm ocorrendo na sociedade
mundial, inclusive na brasileira. Dentre estas mudanças, podemos destacar o aumento da
escolaridade dos trabalhadores, a crescente expansão do mercado de terceirizações em meados
dos anos 1980, o que pode ter favorecido atividades econômicas intimamente ligadas ao gênero
feminino, tais como prestação de serviços, comércio, atividades administrativas, bancárias, entre
outras. O perfil etário e o estado civil destas mulheres também é fator apontado pelos autores
como importante para compreender o ingresso cada vez maior de mulheres no mercado de
trabalho. Para Hoffmann e Leone (2004), na década de 1970, os trabalhadores do gênero
feminino eram, na sua grande maioria, jovens, solteiras e com pouca escolaridade. Dez anos
depois esse perfil passa a ser de mulheres acima dos 25 anos com uma escolaridade em média
mais elevada que a do homem, casadas e com renda familiar não muito baixa. Esses dados
sugerem que mesmo casadas algumas mulheres permaneceram trabalhando, mesmo havendo a
renda do marido na família e a mudança do estado civil.
Mesmo apontando dados que fazem referência a uma maior emancipação feminina no
mercado de trabalho, a literatura ainda é controversa acerca da situação desse gênero no mundo
do trabalho. Ao mesmo passo que identificamos dados positivos como estes citados, vemos que a
atividade laboral feminina ainda é influenciada fortemente pelo mercado informal dada a notória
associação entre o trabalho das mulheres e as formas de inserção menos convencionais como o
trabalho doméstico, de cuidados e Trabalhos autônomos, o que representa a grande fatia da
participação feminina.
A procura por trabalho numa conjuntura desfavorável como estratégia de
complementação de renda exerce forte influência na decisão das mulheres de ingressar no
mercado de trabalho, mas não explicam uma tendência de mais longo prazo, pois isso atualmente
ocorre com ambos os gêneros, quando se trata de algumas profissões como a dos auxiliares de
enfermagem. Essa idéia coaduna diretamente com o que Beck (2000) sugere como feminilização
das relações de trabalho. Nesse caso, todas as condições contratuais e de execução das atividades
são débeis, independente do gênero que ocupe o posto de trabalho.
O caso dos auxiliares de enfermagem torna-se mais particular por tratar-se de uma
profissão recente, apesar de esta atividade ser antiga. No Brasil, a profissionalização desses
trabalhadores teve início em meados da década de 1990 quando o governo inicia o PROFAE
(Projeto de profissionalização do profissionais de enfermagem), em 15 de outubro de 1999,
publicando a Portaria 1262/GM, do Ministério da Saúde, instituindo o Projeto de
Profissionalização dos Trabalhadores da Área de Enfermagem. Somente no ano de 2000, quando
tem início a primeira turma de qualificação destes profissionais no estado do Espírito Santo, é
que a atividade exercida por estes trabalhadores é formalizada como profissão. Antes disso, esta
atividade era exercida por práticos, pessoas que adentravam a área, mas que não possuíam
nenhuma qualificação específica para o trabalho.
Um olhar mais direcionado para esta área se faz necessário devido a dados do próprio
SUS que apontam para a grande dimensão que este serviço tem para o setor de saúde. Como
ilustração podemos citar que a área de enfermagem corresponde a 49,6% do Setor Saúde,
enquanto que a soma de todas as outras especialidades médicas alcança 30,3%
3
. Alem disso,
57% da Área de Enfermagem é composta por Auxiliares e Técnicos de Enfermagem. Vale
ressaltar que após o PROFAE, estabeleceu-se que a partir de 2003 haveria um prazo para que
todos os profissionais se qualificassem para que fossem nomeados como técnicos. Este é um dado
que tem causado muita controvérsia e ambigüidades na sua interpretação.
Para nós é muito significativo que estes profissionais, assim como grande parte dos
que trabalham na área da saúde, tenham que submeter-se a jornadas ltiplas, como apontam
Borges (2005) e Medeiros (2006), o que acaba por gerar um desgaste maior do trabalhador, como
apontam ambos os autores. inúmeras possibilidades para esta ocupação de múltiplos postos,
principalmente quando isto ocorre com trabalhadores do nero feminino, como no caso das
auxiliares de enfermagem. Dentre estas possíveis motivações estão os baixos salários, o ímpeto
consumista, a possibilidade de complementação da renda familiar e um dado que tem nos
chamado a atenção: o fato de um contingente cada vez maior de mulheres que se tornam arrimos
de família, quer seja pelo desemprego do cônjuge ou pelo fato de estas estarem constituindo
família sem a presença do esposo como nos mostra Leone (2003) e Nogueira (2004). Ao mesmo
tempo que a mulher assume os múltiplos postos de trabalho não se exime da sua condição de
dona de casa, mãe, esposa e cuidadora, o que acaba por incrementar ainda mais o desgaste do
trabalhador.
Notemos com o que expusemos aqui, que a situação da mulher trabalhadora, em
particular, o caso das auxiliares de enfermagem, apesar de soar como uma emancipação destas
frente ao mercado de trabalho tem um forte conteúdo em processo de precarização explícito, o
que pode afetar diretamente as concepções de cidadania destes trabalhadores pois são justamente
os direitos que alicerçam a cidadania, fomentada na sociedade salarial, que vem sendo cada vez
mais corroídos pelo mercado de trabalho apoiado no modelo cada vez mais neo liberal.
3
O valor restante (20,1%) para completar a totalidade dos profissionais do setor de saúde é composta
por profissionais que realizam atividades complementares como limpeza, atendimento, entre outras.
Capítulo 2 - Cidadãos do Mundo
Todo homem trabalhador tem sempre uma oportunidade
(H. Hubbert)
Eu hoje tenho tudo, tudo que um homem quer/ Tenho dinheiro, automóvel e uma mulher!/ Mas
pra chegar até o ponto em que cheguei/ Eu trabalhei, trabalhei, trabalhei.// Eu hoje sou feliz/ E posso
aconselhar:/ Quem faz o que eu já fiz/ Só pode melhorar.../ E quem diz que o trabalho não dá camisa a
ninguém/ Não tem razão, não tem, não tem.
(Roberto Roberti e Jorge Faraj. Samba gravado por Orlando Silva)
2.1 - Construindo Cidadanias
Ao nos propormos uma investigação sobre o que seja Cidadania, nos deparamos com
questões semelhantes às que vimos ao abordar a categoria Trabalho, ou seja, esta também é uma
categoria construída sócioculturalmente que sofreu diversas mudanças desde seu surgimento a
partir de transformações na sociedade que permeavam essa idéia.
Nossa proposta é fazer um resgate de como o ideal de Cidadania chegou ao que
compreendemos hoje. Investigaremos, desde sua origem, fazendo recortes históricos para buscar
subsídios que nos levem ao ponto chave de nossa pesquisa, até a conjuntura que aproximou o
trabalhador do cidadão.
Para nós essa questão é mister, pois, com toda discussão em torno de uma possível
perda da centralidade do Trabalho, o reconhecimento do sujeito enquanto cidadão de uma
sociedade, com a estrutura laboral em transformação, sofre graves impactos. Nossas indagações
perpassam possíveis conflitos, como perda de identidade do trabalhador, fomento de uma
subjetividade débil subjugada pela precariedade do trabalho, desinteresse por temas coletivos e
deteriorização das condições de trabalho, bem como de que forma isso tudo é percebido pelo
sujeito enquanto se constitui, como trabalhador e como cidadão, um membro ativo dentro da
estrutura social.
2.2 - A gênese da Cidadania
Diferentemente do Trabalho, a Cidadania, a nosso ver, não se configura como uma
categoria antropológica, ou seja, não acompanha o homem desde sua origem na terra. Esta é uma
categoria que surge eminentemente em um determinado contexto histórico, a formação das
cidades-Estado, mais precisamente nas antigas cidades de Atenas do século V e IV a.C e na
Roma do século III a.C. Nestas cidades se desenvolveu o embrião do que hoje reconhecemos por
Cidadania. É necessário que compreendamos que o recorte que nos referimos aqui, trata a
Cidadania como uma relação política entre um indivíduo e uma comunidade política, e da qual
este indivíduo é membro de pleno direito, devendo a ela total fidelidade.
Na Grécia antiga, havia uma compreensão de Cidadania como natural - o sujeito
somente era considerado parte integrante da sociedade, se fosse filho de pais gregos e nascido na
Grécia. A Cidadania grega se fundava em uma dicotomia entre interno e externo, na separação
dos diferentes (CORTINA, 2005). Entretanto, nas entrelinhas, havia um critério mais complexo
para determinar quem seria ou não cidadão nesta sociedade. O fato é que poucos teriam
participação na sociedade grega clássica; essa participação somente era permitida a homens
adultos e que tinham prestado serviço militar, com pouquíssimas divergências desse modelo.
Para os gregos somente os homens livres poderiam se fazer presentes nas decisões da
Polis. Isto demonstra a forte relação que o ideal de Cidadania para a antiga Grécia tinha com a
liberdade. Porém, Corrêa (2002) fala de uma liberdade regulada por um direito divino; o fato é
que a liberdade para os gregos era um dom designado pelos deuses, algo natural, imutável. Para
Platão(1999), a justificativa para o modelo de sociedade estava no mundo das idéias como uma
tentativa de harmonia; para ele não interessava o sofrimento, pois isso estava resguardado à
esfera do mundo sensível. O que era justo seria uma sociedade que harmonicamente
hierarquizaria as diferenças - no caso da sociedade grega a diferença estava bem delimitada entre
os que eram livres para pensar, para gozar do ócio e entre os que verdadeiramente subsidiavam a
estrutura social - aqueles que não tinham liberdade e deveriam trabalhar.
Diferente da idéia utópica de Platão, mas ainda ligado a uma concepção política,
Aristóteles vislumbra dois tipos de justiça - uma ligada aos deuses, invariável e inquestionável, e
outra ligada aos homens, esta gerida por leis que decidiriam o que seria justo ou não. Observemos
que, para o pensador, poderiam existir dois tipos de justiça que visavam à relação de equidade
entre os sujeitos. A primeira, considerada uma justiça distributiva, visava dar a cada sujeito da
sociedade o que ele merecia de acordo com seu mérito próprio. Já a segunda justiça, chamada de
comutativa, tinha somente o papel de equilibrar o sistema, caso houvesse alguma alteração na
justiça distributiva. O critério fundante da teoria aristotélica é o fato de que o justo é o natural e
não cabe ao homem destituir o natural, pois assim se manteria o equilíbrio das coisas tanto físicas
como sociais.
Podemos, então, apontar que o sistema político que alicerçou a construção da
Cidadania grega era um sistema fundamentalmente conservador, que defendia uma ordem
vigente sem deixar espaço para eventuais contestações. Observamos aqui que, para os gregos, o
mundo de exploração e exclusão social era justo e, por isso, direito. Esta idéia seria interessante
para a Polis, visto que assim haveria o fortalecimento das classes minoritárias que estavam no
poder em detrimento da expansão do império que dominava cada vez mais territórios,
incorporando novos sujeitos.
Com a derrocada do Estado Grego por revoltas escravas e a ascensão do império
romano, há uma passagem do Polites grego para o Civis latino (romano), ou, de forma mais clara,
o sujeito agora era amparado por leis do Estado em todo seu território (CORTINA, 2005). Apesar
de parecer simples, a profundidade destas mudanças é significativa. A partir de então, todos
seriam iguais perante a lei de Roma, não existiria diferença entre os sujeitos amparados pelo
império. Aparentemente, todos podiam exercer qualquer posição, mas o que realmente se
estabeleceu foi uma lei do Estado de “dois pesos e duas medidas”. Esta noção é ainda vigente nas
políticas públicas atuais, nas quais se tenta, através de leis, conseguir a condição igualitária para
todos os sujeitos, ou pelo menos os mínimos de igualdade. O ideal de participação concreta
ateniense entra em conflito com a expansão do império, pois nem todos podiam se fazer presentes
nas assembléias populares, gerando uma problemática estrutural no que se concebia por
Cidadania.
A solução encontrada para isto foi a criação de representantes para as assembléias -
pessoas que seriam escolhidas para levar ao conhecimento público problemas dentro da
sociedade. Mesmo sendo um intento para um melhor funcionamento da política cosmopolita da
época, a representatividade era diferenciada para cada segmento da população, ficando a maior
parcela para a classe dominante desse período histórico. É na Roma antiga que a Cidadania
política toma proporções que resvalam até hoje nas formas dos Estados modernos de conceberem
suas estruturas políticas. A Cidadania passa a ser um estatuto jurídico em que o sujeito se ampara
para reclamar direitos e não só um sistema no qual dele são exigidas responsabilidades.
Marcadamente compreendida como alicerce das sociedades modernas, a estrutura de
Roma, esfacelada depois das disputas internas e da corrosão do sistema político do Estado, fica
praticamente esquecida durante a Idade Média, quando se resgata a idéia natural e divina do
direito. Apenas alguns eleitos por Deus seriam designados a participar da vida pública. Apesar de
muito semelhante ao modelo político grego, a Idade Média coloca como mediador entre o natural
(divino) e o terreno, o teológico. A religião assume papel preponderante na manutenção do status
quo da sociedade e tem na figura de Santo Tomás de Aquino a expressão das idéias aristotélicas,
com uma nova roupagem.
Para Correia (2002), todo dado de direito, nesse período, tinha um cunho diretamente
teológico e tem o mesmo caráter justificador das práticas sociais. O direito sempre passava pelo
crivo ideológico da religião, muitas vezes interessada exclusivamente em defender sua posição
social. Nas palavras do mesmo autor:
Portanto, temos legitimada no discurso justificador do modo de produção feudal
uma concepção discriminatória de Cidadania, na qual os direitos eram
reservados ao detentores do poder econômico da época, cabendo aos servos, no
máximo, uma Cidadania regulada, de qualidade inferior, sustentada com base
em favores ao invés de radicada em direitos advindos da própria condição
humana (Correia, 2002, p. 44)
Com a erosão das instituições que monopolizavam o poder de decisão desse momento
histórico e com as crescentes reivindicações das classes sociais que vinham se fortalecendo,
veremos o surgimento de uma nova estrutura política, um modelo que em muito perpassa o
nosso.
2.3 - O surgimento do Estado Moderno
A passagem da Idade Média para a Modernidade representou uma ruptura com as
estruturas cristalizadas que praticamente impediam qualquer forma de mobilidade social. Os
movimentos que buscavam uma emancipação do homem começaram a questionar uma estrutura
aparentemente estável, que desde a Roma antiga, não havia sofrido alteração.
Com a Revolução Francesa, em particular, o homem parte em busca de um espaço seu
que possa ser construído dentro da sociedade. O que antes era absoluto, transpositivo e metafísico
passa a dar lugar, paulatinamente, a um pensamento em que o homem era o eixo central. Apesar
de a natureza ainda ser fundamental para explicar o mundo, não era mais a natureza física e social
o carro-chefe, mas a natureza do homem abandonando as referências fortes às divindades.
Tentando uma síntese dessa nova realidade, Correia (2002) aponta para uma mudança
do significado da palavra direito, a qual passava de justiça para regra. É na modernidade que pela
primeira vez, a justificativa político-social aparece como baseada na vontade individual de cada
sujeito, entendido como resultante de convenções humanas e, conseqüentemente, da cultura que
permeia esta sociedade. A Cidadania moderna surge como um conceito antagônico à realidade
presente no feudalismo, pois neste não havia nenhum padrão de direito comum aos sujeitos que
fosse generalizado para todos.
Não se trata de mudar a realidade radicalmente, mas esta passagem possibilita, mesmo
que reconheçamos como mínima, uma mobilidade dentro da estrutura social. O simples fato de
haver a possibilidade é razão motivadora para que o homem busque mudança em sua
existência. Lembremos aqui que, mesmo reconhecendo que o direito às coisas fosse uma
convenção dos homens, o poder dessas convenções ainda é parte de uma minoria, não mais a dos
donos de terra, mas agora passava para uma nova classe, fomentada dentro dos novos ideais
modernos, um novo segmento que retira o poder da economia e do acúmulo de capital.
Cortina (2005), Correia (2002) e Assis (2002) apontam aqui para o aparecimento do
que se convencionou chamar de Estado-de-Direito. Para nós, esse modelo de Estado é o que faz
com que haja a possibilidade de se criar uma concepção moderna de Cidadania amplamente
vinculada ao direito de cada sujeito. Não podemos desvincular também uma relação direta entre o
fortalecimento da burguesia com todas estas transformações. É justamente o fortalecimento desse
segmento que faz com que se questione toda estrutura da sociedade pós-feudalismo, que ainda
estava impregnada de conceitos e estruturas muito rígidas.
Apesar de pensarmos estas transformações como eminentemente urbanas, será no
campo que se o germe do que os autores entendem como condição fundamental para a
Cidadania, a noção contratual. Essa noção aparece com as lutas dos trabalhadores rurais por
garantia de direitos mínimos na vida do campo( AYZPURU Y RIVERA, 1994).
A Cidadania erguida com o Estado Moderno relaciona-se diretamente com dois
aspectos que para nós são fundamentais - a Liberdade e o Trabalho. Estas duas categorias
despontam na modernidade e contemporaneidade como princípios a serem alcançados por todos
os homens. Marshall (1967) afirma que na economia o direito civil básico é o Trabalho, o de
seguir uma ocupação de escolha do sujeito, direito este negado durante toda a Antigüidade,
quando as posições a serem seguidas por cada um eram delimitadas previamente. Para nós, o
direito à igualdade proposto dentro do Estado moderno é atingido na forma de isergonia (igual
direito de trabalhar) como sugere Assis (2002) e, por isso, o Trabalho torna-se um eixo central
para pensarmos a constituição destes sujeitos enquanto cidadãos.
Recuperando idéias abordadas quando tratamos de Trabalho, dentre os ideais que
sustentavam toda a mudança na sociedade, o tri da Revolução Francesa leva a uma nova
concepção de homem e, como conseqüência, uma nova estrutura para se relacionar em sociedade.
Liberdade, Igualdade e Fraternidade buscaram uma superação do paradigma dicotômico advindo
desde a Grécia antiga, o da separação dos opostos e união dos iguais, mas, de certa forma, a s
essa superação ocorre minimamente, pois o diferente somente é aceito em ocasiões muito
particulares, em situações de conveniência, principalmente, para o Estado. Vale lembrar que estes
valores ainda hoje são buscados dentro dos discursos políticos, econômicos e sociais, o que
demonstra que essas idéias acabam funcionando como instintuinte e não como instituído,
existindo como uma promessa a ser alcançada.
O pilar central desse momento histórico foi o Trabalho e suas formas de reger a vida
do homem moderno. Apesar de que em um Estado moderno, de pleno direito, seus membros
sejam considerados cidadãos, o trabalho foi uma das formas de ascender a esse status, como era o
caso dos trabalhadores convidados, sujeitos que, por terem um ofício, eram convidados a
morarem em um outro território, tendo sua Cidadania reconhecida como membro de direito
daquele Estado.
Para tentarmos conceituar essa Cidadania, à qual tentamos nos referir, usaremos como
base o que Assis (2002) propõe. Ser cidadão, na modernidade, refere-se ao conjunto de direitos e
deveres de influir, em igualdade de condições, no poder político do país (p.15). Entretanto nossa
visão ultrapassa os limites políticos e tenta compreender Cidadania como participação efetiva
dentro da sociedade, reconhecimento enquanto membro desta e proteção do Estado em
contrapartida às obrigações. Essa tentativa de conceituar Cidadania baseia-se no que se
convencionou como padrão durante um período em que as ações protecionistas do Estado
estavam bastante presentes, englobando direitos civis (liberdade individual), direitos políticos e,
principalmente para nosso foco, direitos sociais, entre os quais destacamos: Trabalho, educação,
moradia e benefícios sociais em períodos de particular vulnerabilidade (CORTINA,2005).
Com a estrutura que se formava, buscando cada vez mais liberdade para o homem, as
instituições fortalecidas nesse período acabaram criando uma conjuntura que se convencionou
chamar de Estado do Bem Estar Social, apoiado nos ideais burgueses e em uma ética advinda de
pressupostos protestantes. Da mesma forma como o Trabalho sofreu uma transformação radical
nesse período, influenciando até hoje nossas concepções acerca dele, a noção de Cidadania foi
adequada a uma nova realidade. A garantia de direitos e a necessidade de se criar um fator de
coesão social fizeram com que essas duas categorias sofressem uma aproximação tamanha a
ponto de as duas passarem a caminhar unidas na identificação do trabalhador. Durante os anos
em que as idéias implantadas pela política do Estado social cresciam, ocorria no mundo um
fortalecimento do trabalho como eixo unificador para agregar questões sociais e econômicas de
uma vez só.
2.4 - O Estado- do -Bem -Estar- Social e uma nova idéia de Cidadania
Com a solidificação de um modo de vida embasado nos preceitos éticos da sociedade
do trabalho, os princípios protestantes, como a laboriosidade e a procura racional de ganho
econômico, transformaram o Trabalho de uma obrigação para uma vocação. Isso fortalecia os
lucros, a classe que lucrava, burguesia, e o Estado, que, além disso, poderia lucrar duplamente
com novas formas de taxação, agora também sobre o trabalhador.
O fato é que estar trabalhando e ser reconhecido por isso fizeram com que esse sujeito
fosse identificado com sua tarefa e com seu papel para aquela sociedade. As instâncias que
preparavam este sujeito para sua vida em sociedade, como a escola e a família, direcionaram seus
olhares para o potencial doutrinador do trabalho. A importância foi tanta que obrigou o Estado a
tomar uma posição protecionista daquele que fazia a sociedade do trabalho funcionar, o
Trabalhador.
Com o Estado moderno amparado em um modelo democrático, no qual a maioria
tomaria as decisões, forma pela qual a burguesia destitui o poder aristocrático, e no direito à
propriedade privada, seria necessário criar um modelo de contrapartida para a grande massa
destituída de propriedade: Uma parcela da população que se fazia ainda mais presente na
constituição da sociedade nesse momento. É aqui que o direito ao Trabalho remunerado ganha
força enquanto forma de contrabalançar o direito à propriedade privada. Para o cidadão não
detentor dos meios de produção, este direito o colocaria em um plano de equivalência com os
proprietários, pelo menos em suposição.
Assis (2002) aponta para a aproximação entre os conceitos de Cidadania e direito ao
Trabalho como representando um espaço limítrofe entre as esferas políticas e econômicas, mas
podemos ir mais além, trazendo ganhos sociais propiciados por essa relação e que para nós
somente se sustentam dentro dela. As lutas trabalhistas por melhoria das condições de vida
levaram o Estado a mover-se em direção a políticas de garantias, intermediando a relação
‘Trabalho X Capital’. Uma proposta de garantia de uma “sobrevivência digna” para o
trabalhador, a garantia de perspectivas em relação ao seu futuro.
Com esse contexto, surge na sociedade do trabalho o que ficou conhecido como pleno
emprego, que mesmo envolto em diversas contestações em torno de uma definição precisa, em
grande parte delas se configura como uma conjuntura em qual o número de desempregados é
igual ao número de postos vagos. A aparente despretensão deste movimento representa para o
trabalhador uma estabilidade frente ao trabalho não mais experimentada depois da derrocada
deste modelo. É nessa configuração econômica, política e principalmente social que os
movimentos coletivos ganham força de barganha frente ao capital; é aqui também que o
trabalhador vive do e para o trabalho. A sociedade salarial torna-se hegemônica e com ela um
modelo de trabalho se estabelece , o emprego.
Nardi (2006) afirma que é na modernidade que o Trabalho adquire o valor de atributo
moral e garantia de Cidadania; é nele que se busca o referencial não para gerenciar a vida
profissional, mas a vida política, econômica e social. O trabalho representa, para Durkheim
(1973a), um fator agregador que mantinha os membros da sociedade unidos por um ideal comum,
assim como a religião. O que percebemos é que ambas as categorias agregadoras desse contexto
parecem se retroalimentarem e se fortalecerem. A ética incutida dentro do Trabalho sustentou
toda a sociedade durante o pacto Fordista, que, por sua vez, representava um compromisso social
em torno da triangulação entre Estado Trabalhador Capital. Castel (1998), ao abordar a
sociedade salarial, reconhece que a filiação do cidadão trabalhador a essas diversas instituições
garantiam a ele uma existência digna que junto à condição assalariada representava a porta de
acesso a um sistema protecionista por ele denominado de “Propriedade Social”.
A Ética do Trabalho foi usada pelos sujeitos não somente enquanto trabalhadores, mas
também enquanto cidadãos para identificar-se com os outros e com seu próprio trabalho, como
um guia para definir o que seria correto ou não em sua conduta social, a forma de gerenciar sua
propriedade privada e sua vida pública.
É em meados do século XX que a modalidade emprego assume o status de modelo
hegemônico, sendo regulado pelo Estado. Essa seria a única forma de o sujeito ter seu espaço
sem ser proprietário dos meios produtivos. Liedke (1997, apud Nardi, 2006) afirma que a
associação entre trabalho e emprego construída na sociedade salarial foi o que possibilitou que
essa categoria viesse a se tornar um referencial emocional, ético e cognitivo para os indivíduos ao
longo do seu processo de subjetivação e socialização, possibilitando uma identificação e um
prestígio social para esse indivíduo, um diferencial coletivizador. Mesmo sendo apenas uma das
formas de expressão laboral, o emprego, enquanto modalidade assalariada, conseguiu ser o
denominador comum na sociedade salarial. Buscando resumir o que dissemos aqui, Blanch
(1996) afirma que ter emprego não é somente ter trabalho, mas, sim, ter um lugar na sociedade.
2.5 - A Reestruturação Produtiva e o Cidadão Consumidor
A partir do fim dos anos 70 do século passado, o mundo viu crescer um movimento de
reestruturação produtiva, uma tentativa do capital para se livrar da crise de superprodução
ocasionada pela estagnação dos mercados consumidores. Esse movimento levou a uma crise
estrutural do mundo do Trabalho e com isso de toda a sociedade. De início, os impactos mais
visíveis são os econômicos emblematizados por crises como a do petróleo. O capitalismo
enquanto modelo econômico vigente elege como o grande vilão o Estado, justificando isso como
um enfrentamento à grande máquina ineficiente e burocrática em que o Estado havia se tornado,
uma grande barreira para a expansão do capital. Nesse contexto, uma passagem que Bauman
(1999) identifica como a mudança de uma sociedade do trabalho para uma sociedade do
consumo. Essa mudança de foco vai bater de frente com os pilares éticos mantenedores da
sociedade salarial, ou seja, com o Estado interventor, com a ética restritiva advinda do modelo
protestante, com o modelo de homem. Era preciso, agora, que sujeitos trabalhadores fossem
também pessoas que consumissem em larga escala o que era produzido. Além disso, a sociedade
assiste a uma erosão dos postos de emprego e às grandes organizações migrarem para mercados
abertos onde a lucratividade seria maior. A tecnologia acelera ainda mais todo esse processo,
quando possibilita uma intensiva substituição do trabalhador nos postos de trabalho por
maquinário especializado e a abertura das barreiras geográficas com a possibilidade de
comunicação e transmissão de dados a distância com rapidez.
O cidadão-trabalhador, que tinha sua vida orientada em um modelo gido, agora
experimenta a proposta flexível do capital, na qual as relações trabalhador X capitalista não
deveriam mais ser reguladas de forma direta pelo Estado - elas deviam ser mediadas segundo o
mercado e seus indicadores. O modelo neoliberal implantado pelas democracias modernas prega
como estandarte uma maior liberdade de negociação sem a presença de reguladores que não
estejam diretamente ligados à relação. De forma geral, o que vemos com a mudança na estrutura
produtiva é uma exacerbação da liberdade, algo que, a nosso ver, é a principal falácia colocada
por esse novo sistema. Nessa perspectiva, o trabalhador estaria livre para negociar seu trabalho
com o empregador sem o “entrave” dos sindicatos e das convenções coletivas. Entretanto, se
analisarmos isso do ponto de vista do trabalhador, essa tal liberdade não existe, pois o capital,
seguindo a livre regulação do mercado, impõe ao cidadão-trabalhador uma nova estrutura de
vinculação ao trabalho, em geral sem garantias e sem proteção, deixando o trabalhador
desamparado, à mercê do capital, sem poder de barganha, que as causas coletivas devem ser
pretensamente abandonadas.
Em nossa investigação, essa exacerbação da liberdade e do individualismo acabam
por colocar em risco todas as conquistas adquiridas nos tempos áureos do Estado-do-Bem-Estar-
Social, além de falsear ao cidadão-trabalhador uma nova conjuntura nada favorável a ele.
As problemáticas por nós levantadas dizem respeito ao processo de precarização
maciça que os postos de trabalho sofrem desde a solidificação da reestruturação produtiva.
Tomás (2001) propõe como nível de análise dois tipos de precarização. A primeira, intitulada de
precarização social, faz alusão à condição de emprego que aparece nessa estrutura laboral -
trabalhos parcializados, mal remunerados sem estrutura digna, flexíveis. A partir do exposto,
acreditamos ser pertinente entendermos que a flexibilização não implica necessariamente uma
redução do trabalho, mas em sua grande maioria ocorre, sim, uma intensificação da jornada com
a exploração de determinadas habilidades do trabalhador.
O outro nível de análise é o da precaridade de subsistência, no qual o autor referencia
a condição existente na sociedade salarial frente a condição atual do trabalhador. A nós
interessam os dois níveis, pois consideramos ambos como indissociáveis quando pensamos em
uma sociedade marcada - e ainda muito influenciada - pelo trabalho. Compartilhamos com este
autor a idéia de que o que vemos hoje é um retrocesso de todas as conquistas adquiridas pelo
trabalhador na sua construção enquanto cidadão; isso para nós é claro, quando pensamos na
‘classe média’, segmento da população composto em grande parte, pelo antigo proletariado fabril
e que agora é cada vez mais reduzido e empurrado a níveis inferiores de consumo e status social.
Antunes (1999) alerta-nos para o que ele concebe como uma segmentação do proletariado. Para
ele a sociedade laboral de hoje apresenta dois movimentos: um apresentando profissionais que ele
concebe como superespeciaizados, com larga qualificação, e um outro grupo identificado como
subproletários, aos quais são relegados trabalhos fora da esfera formal, sem qualquer garantia e
perspectivas. Segundo o autor, tal separação do proletariado favorece o enfraquecimento das
causas coletivas do trabalhador, pois reivindicações passam a ser parcializadas referentes a
pequenos grupos que terminam por não ter a expressão de tempos anteriores.
Esse movimento é uma das implicações que o mesmo autor traz para a crescente
disseminação da precariedade, chamando de “novo pauperismo”, onde parece-nos que a
perspectiva precária de trabalho se tornou a última solução. É importante que lembremos que as
formas precárias não são novidade, mas agora é que estão tomando visibilidade significativa por
atingir considerável parcela de trabalhadores. Além disso, podemos falar de uma precaridade
se nos referirmos à condição existente na sociedade salarial em particular, pois, nos períodos pré-
fordistas e de germinação da indústria, o que existia era uma mortificação do Trabalho, o
trabalhador se via estranhado do produto de sua jornada laboral.
Se pensarmos em efeitos para aqueles que buscam a condição de cidadão na sociedade
atual, todas as modalidades de trabalhador são afetadas diretamente, desde o padrão masculino
adulto, até os jovens e a inserção feminina.
Sem a pretensão de um juízo de valores, tomamos o jovem e a mulher como um
referencial para observarmos o alto nível de precarização destes trabalhadores, que como
tratamos anteriormente, sofrem com uma entrada já precária no mercado de trabalho. Estes
trabalhadores estão susceptíveis ao discurso responsabilizador implícito em nossa sociedade que
imprime naqueles que não adquirem o sucesso ofertado por uma liberdade universal propiciada
pelo modelo econômico vigente, um sentimento de fracasso diretamente ligado às atitudes que
este toma para gerenciar sua vida.
Ao investigar as metamorfoses sociais ocorridas concomitantes com os anos áureos da
sociedade salarial e suas reverberações na sociedade atual, Castells (1997) sugere que os sujeitos
passam a se relacionar de forma a gerarem processos constantes de filiação e desfiliação. Para
este autor, o uso destas expressões representam melhor a forma de interação dos sujeitos que a
díade inclusão-exclusão pura e simples. Com a exclusão de um dado grupo o sujeito ficaria
impossibilitado de retornar àquele grupo e teria que se agregar em outro. quando se pensa em
processos de filiação e desfiliação, a idéia que se passa é de que hoje os vínculos são mais frágeis
e permitem uma maior transição pelos grupos, além de propiciar uma melhor compreensão dos
processo que geram essas transições. Vejamos, então, se nessa proposição os vínculos sociais
teriam a característica de serem mais lábeis. Isso pode ser estendido a todas as relações, inclusive
às de Cidadania. Logo, a compreensão de Cidadania destes sujeitos poderia ser referida ao
momento em que ele se encontra, filiado a um determinado grupo e, mais que isso, pode levar a
uma incessante idéia de que se vai ascender para níveis sociais mais elevados, basta que surja a
oportunidade. Pode ser que esse processo pareça simples e faça somente referência à ligação dos
sujeitos a grupos dentro da sociedade. Mas é justamente nessa interação dos membros dos grupos
que se forjam as subjetividades , logo poderíamos aventar em um exercício de radicalidade que
grandes chances de formarem-se nessa configuração subjetividades precárias ou débeis,
preocupadas apenas em responder a um script momentâneo, enquanto faz parte daquele grupo.
No momento em que o modelo neoliberal, que segue como dominante no nosso
contexto (desde os governos Thatcher e Reagan na década de 80), apregoa uma liberdade como
se esta fosse igual a todos e algo necessário para o progresso da humanidade, cria-se um ideal de
que todos devem buscar essa tal liberdade, algo que em geral se acredita encontrar no consumo
sem limites. Dahrendorf (2005) nos alerta para o perigo existente nesse pensamento quando
afirma que, não é que a liberdade não seja necessária para que haja o progresso, mas ela é
diferente para os diversos segmentos. O que vemos em nossa sociedade é uma liberdade atrelada
ao consumo, uma liberdade para escolha do que se elege para consumir, desde que se tenha
condição financeira para consumir. O discurso atual se apóia em uma perspectiva universalizante
segundo a qual, o sujeito deve estar sempre pronto para “abraçar” as chances que lhe aparecem -
o incompetente, o fracassado é aquele que não sabe ou não consegue aproveitar isso, vinculado à
estética e à efemeridade do consumo.
Nesse sentido, o contingente jovem e feminino fica à mercê do discurso, pois, ainda
segundo Dahrendorf (idem), estes, como buscam ainda um lugar para si, não têm muito, em tese,
para perder, se deixam enganar’ com grande facilidade. Discordamos aqui desse autor quando
ele afirma que, em geral, o jovem não tem muito a esperar da vida em nossa sociedade. A nós
parece que justamente esta oferta aparentemente próxima de felicidade ao alcance de todos é que
faz com que esse sistema tenha uma forte retroalimentação em que a força motriz é chegar a
patamares sociais mais elevados, fazendo com que a classe-que-vide-do-trabalho viva um diário
castigo de Sísifo, fadado ao eterno retorno para, no dia seguinte, buscar o mesmo que logrou no
dia anterior.
Não é preciso grande esforço para perceber que, com toda essa liberdade individual,
os movimentos coletivos perdem cada vez mais espaço, ficando o cidadão-trabalhador
responsável por si só. As políticas vigentes em nossa configuração social, cada vez mais se
mostram como vias de mão única, onde a coletividade perde a cada dia mais expressão.
Essa aparente apatia do cidadão-trabalhador parece relacionar-se diretamente com a
própria configuração adotada pelo cidadão em nossos tempos, uma participação mais efetiva
como consumidor do que como membro ativo da sociedade. O Estado, que em princípio ocupou
o lugar de representante do contingente trabalhador, agora toma uma posição mais distanciada,
apenas garantindo mínimos para o cidadão, mínimos estes que, em grande parte, devido à
ingerência de recursos não chega ao contribuinte, gerando por sua vez extremo descrédito da
máquina estatal. Reconhecemos que o Estado nunca assumiu de forma soberana essa
representação, ela ocorreu com variações de contexto social. Essa bola de neve agrava-se ainda
mais quando o discurso de “perfeição” da iniciativa privada chega ao cidadão.
O processo de desaparecimento do pleno emprego, conquistado com grande sacrifício
pelos movimentos sindicais e grupos de representação de classes, poderia ter levado a
questionamentos, mas o grande exército de reserva necessário ao modelo econômico vigente
parece ser um meio disciplinador muito efetivo.
Nos últimos 20 anos, nos foi possível ver um movimento que para nós trouxe
conseqüências não esperadas para a configuração do que hoje entendemos como Cidadania. O
mundo promoveu uma extensão universalizante da Cidadania, as democracias promoveram o que
conhecemos por Cidadania ampliada, ou seja, a extensão a todos os membros da sociedade dos
mesmos direitos que antes somente se destinavam aos que participavam efetivamente da
sociedade, nesse caso, quase que na maioria, os trabalhadores.
Em uma apreciação nossa, esta tomada de decisão das democracias Pós-Modernas,
reflete uma tentativa do Estado de retomar prestígio com políticas assistencialistas, e esse é o
caráter que vai ser característica dos governos em países em desenvolvimento, governos com
políticas amplamente populistas. A contrapartida para esse processo é que se acabou gerando um
rombo previdenciário pelo encolhimento no número de postos de trabalho formal. Com menos
trabalhadores contribuindo efetivamente para o Estado, as contas desandam e o cenário para
críticas quanto à forma de gestão estatal por parte dos defensores do neoliberalismo está
montado.
A flexibilização do trabalho leva o cidadão, na grande maioria das vezes, em jornadas
duplas ou trabalhos informais, a desprender cada vez menos tempo para a vida pública, ainda
mais com os freqüentes escândalos políticos que levam a uma descrença intensa no modelo
político representativo. O próprio sufrágio universal é alvo de desinteresse das pessoas, mantido
ainda somente por lei. Aqui nos parece que embarcamos em uma falta de perspectivas quanto a
saídas desse quadro de degradação do cidadão-trabalhador.
Dessa forma, a nós é necessário um olhar direto para as práticas sociais e
organizacionais que objetivam um maior comprometimento com o trabalho e com a sociedade,
pois o cidadão-trabalhador, mesmo seduzido pelo discurso recorrente na conjuntura social em que
vivemos, sente os efeitos das contradições internas desses mesmos discursos, fazendo com que
perca o eixo norteador de suas ações. Sempre houve na construção do ideal de cidadão, um
norteador que desse referência para os sujeitos, que lhes imprimisse regras, que regulasse suas
ações. Primeiramente, a Religião, e depois, o Trabalho assumiram essa posição dentro de nossa
cultura. A nossa configuração social hoje não tem, a priori, um referencial único - o que vemos é
um misto de várias instâncias que tentam tornar-se esse referencial; entretanto, em um olhar mais
criterioso das ações propostas por estas instâncias, percebemos, sem grande dificuldade, que o
Trabalho ainda é foco das ações.
Partilhamos da mesma preocupação de Cortina (2005) quando esta nos alerta para o
fato de que o trabalho na sociedade capitalista continua sendo o meio principal de sustento e
alicerce para a identidade e, conseqüentemente, para o exercício da Cidadania. A perda do
trabalho com a erosão da modalidade emprego, sem o devido tratamento ou a abertura para o
surgimento de outras formas participativas, pode levar esse Cidadão a transformar-se,
exclusivamente, em um consumidor alheio à coletividade ou, de forma mais preocupante,
estimular o surgimento de Cidadanias isoladas e marginais, como propõem Aquino y Moya
(2002).
2.6 - O Cidadão brasileiro e o trabalhador do Brasil
Resolvemos abrir este tópico para falar da nossa realidade propriamente dita, pois
acreditamos existirem algumas particularidades significativas na nossa sociedade que merecem
um olhar crítico na abordagem da nossa temática.
Canclini (2005) nos fala que, sob um olhar mais minucioso e abrangente das
interações cotidianas em paises latino-americanos, observamos claramente formas híbridas de
estruturação. No caso do nosso país, isso reflete na forma como se estruturou a sociedade do
trabalho ou o que se aproxima dela em nossa realidade.
A Industrialização chega ao Brasil em um processo radical, transformando uma
sociedade ainda escravista e agrícola em uma “sociedade de trabalhadores livre e urbana”. Como
esse processo acontece de forma tardia e não homogênea vale ressaltar que muitas etapas de
consolidação da sociedade industrial foram queimadas. Não que estas devessem acontecer como
que seguindo um roteiro pré-programado ou fixo, mas, pelo fato de não termos cumprido todas
essas etapas, nós perdemos a construção de instituições importantes, principalmente para o
trabalhador.
Aqui no Brasil, até a abolição da escravatura, assim como fora na Europa, a grande
parte da força trabalhadora era de homens não livres, o que fazia do Trabalho algo relacionado a
humilhação, rebaixamento e sofrimento. A contribuição da república enquanto inovação da época
fora a definição jurídico e política de um país de homens livres, nem que isso representasse
apenas um plano ideológico, em que todos estariam potencialmente prontos para o exercício da
cidadania.
Ao fim da primeira república, o trabalhador brasileiro conquistou, mesmo que de
forma ainda insipiente, uma identidade e partia em busca de seus direitos para que houvesse
uma regulamentação do seu Trabalho.
Em nosso país, também foi necessário que se criasse uma nova tradição , a de respeito
ao trabalhador. Nesse ponto, tivemos uma participação decisiva dos imigrantes que, junto com
uma força de trabalho mais especializada, trouxe na bagagem os valores trabalhistas dos seus
países de origem, principalmente de países que vivenciaram a sociedade salarial ou pelo menos o
germe dela.
Apesar de reconhecermos, a exemplo de Castell (1999), que a sociedade brasileira
nunca se configurou propriamente como uma sociedade salarial, pois, mesmos nos áureos tempos
de políticas de pleno emprego, estes não foram homogêneos dentro do contexto de nossa
população, a nossa realidade sofreu influência direta deste modelo político-social advindo dos
países centrais. O interessante é que, mesmo sendo uma realidade vivenciada por poucos, o ideal
da sociedade salarial perpassou grande parcela da população brasileira, talvez pelo fato de ela
portar em si a possibilidade do progresso que, como vimos, impulsionou a indústria no velho
mundo e nos Estados Unidos. Outra perspectiva para explicar essa tendência no Brasil é o que
Colbari (1997) e Nardi (2006) explicitam como sendo influência da estrutura familiar patriarcal e
outros valores ligados à estrutura familiar. Apesar de não termos sofrido influência de uma ética
puritana de forma acentuada, esses valores representaram bem o papel de uma moral para o
trabalho. Esta característica da nossa sociedade ficou conhecida por familismo e se explicita nas
idéias de Colbari (1995):
O familismo facilitou o despertar do interesse e do gosto pela laboriosidade e
pela vida mais disciplinada, ao mesmo tempo em que sedimentou a ética do
provedor e a condição de produtor, base para a universalização da racionalidade
capitalista , fundada em regras, códigos e rígido controle disciplinar.
(COBALRI, 1995 apud NARDI, 2006 p.. 46)
Com a fragilidade dos direitos políticos e civis, o Trabalho no Brasil desponta como
peça chave para tornar-se cidadão a partir desse momento, como nos mostra Gomes (2002).
Várias ações para valorizar o trabalhador nacional são tomadas para que a sociedade fortalecesse
o ideal de progresso contido na idéia da industrialização do país.
É durante o Estado Novo que Getúlio Vargas cria diversos mecanismos para regular a
relação Trabalho X Capital e estimular o Trabalho, entre as quais podemos destacar a “lei dos
2/3” que obrigava as empresas nacionais a terem pelo menos 2/3 dos trabalhadores nacionais em
seus quadros de funcionários. Essa parece ter sido a primeira tentativa de uma nacionalização do
Trabalho e que representou enorme ganho para os trabalhadores.
Ao tratarmos da construção dos direitos do Trabalho no Brasil, é necessário que
falemos concomitantemente das formas de organização dos trabalhadores nesse momento. Para
Gomes (idem), elas foram basicamente duas, ambas se desenvolvendo desde a Primeira
República. As organizações corporativas, explicitadas pelos sindicatos, ligas ou associações e as
organizações políticas, aqui representadas pelos partidos, ambas as formas influenciam
diretamente ainda hoje na vida do cidadão-trabalhador em suas diversas instâncias.
Com a criação de leis mais específicas para os trabalhadores, houve um fortalecimento
da classe, o que em, contrapartida, acabou levando a uma necessidade de fortalecer também as
representações corporativas destes. Em meados de 1931, o governo cria a lei da sindicalização
que tornava legais os sindicatos, uma reivindicação antiga da classe trabalhadora, mas que
também trouxe um custo para ele. Embora não fosse obrigado a contribuir com o sindicato,
apenas os sindicalizados podiam colher os louros dos benefícios da legislação social vigente. O
que temos aqui é, a nosso ver, uma imposição velada que, apesar de pregar uma liberdade maior
ao trabalhador, gera uma dependência direta deste ao sindicato para poder gozar de seus direitos,
não enquanto membro de uma organização, mas enquanto trabalhador. É interessante aqui abrir
um parêntese para explicitar que, diferente de hoje, os sindicatos da época eram verticalizados,
sempre por categorias (ferroviário, bancários e etc.), o que acabava por fortalecer o movimento
aglutinando inúmeros trabalhadores de diferentes instituições. O que se assiste nos dias de hoje é
uma dissolução dos grandes sindicatos em detrimento de ações localizadas e particulares, como
nos mostra Antunes (1995), afirmando que esta é mais uma das estratégias do modelo neoliberal
de enfraquecimento do trabalhador. Toda a estratégia de vinculação do trabalhador ao sindicato,
proposta pelo governo, culminou em 1932 na criação da carteira de trabalho, gerando assim um
controle mais efetivo sobre a população crescente de trabalhadores. Este aparente controle nos
mostra como, a partir desse momento, o Estado passa a comportar-se, caracteristicamente, como
fiscal das ações tanto do capital como dos trabalhadores. Um passo importante para a valorização
do Trabalho em nosso país acontece também nesse momento, e diz respeito à criação da Justiça
do Trabalho, um órgão criado, exclusivamente, para mediar conflitos e buscar acordos o
individuais, mas coletivos também, o que de certa forma implica uma maior tutela do Estado
sobre estas ações.
Os anos que se seguiram foram de sucessivas criações de leis, tanto trabalhistas como
sociais (previdenciárias). Notemos que, até então a classe trabalhadora era bem restrita a um
seleto grupo de cidadãos, os que possuíam emprego formal com registro em carteira e que
contribuíam com o sindicato. Se trouxermos para nossa realidade tal aspecto, somos inclinados a
concordar com Antunes (1999) quando este fala de uma complexificação da classe trabalhadora
nos dias atuais. A classe-que-vive-do-trabalho hoje não se compõe mais somente do proletário
industrial, mas comporta também o trabalhador rural, autônomo, doméstico e outras modalidades.
Tal diversidade, a grosso modo, não fora pensada quando se constituiu a classe trabalhadora em
anos anteriores.
Antes de experimentar outra grande influência no que concerne ao Trabalho, o Brasil
vivencia um período de autoritarismo, mas que, ao mesmo tempo que suspendia os direitos civis
e políticos de Cidadania, esse movimento não aconteceu com os direitos sociais, em particular os
do Trabalho, que evoluíram significativamente nesse período. Como a única cidadania possível
era a social e seu estandarte era o Trabalho, Gomes (2002) afirma que estas são características
que nos fazem pensar o Brasil como um país que elege os direitos trabalhistas como grande
símbolo de justiça social.
Outro movimento que, junto com o familismo, fortaleceu a idéia do Trabalho no país
foi o trabalhismo, movimento surgido no Estado Novo e que retomava as ações iniciadas nos
anos 30 acerca da legislação social e trabalhista que ainda enfrentavam resistências patronais. O
discurso do Estado é bem recebido pela classe trabalhadora e reforçado por uma forte campanha
de divulgação que envolvia, inclusive, a máquina estatal. Todo esse movimento representou
ganhos materiais para o trabalhador, mas, além disso, trouxe inúmeros ganhos simbólicos, como
a instituição do salário mínimo, a consolidação das leis trabalhistas, entre outras ações. Nas
palavras de Gomes (idem),
A ideologia trabalhista, veiculada durante os anos que vão de 1942 a 45 e
materializada na idéia de cidadania como exercício dos direitos do trabalho,
pode ser interpretada como uma proposta de conceituação política brasileira
fora dos marcos da teoria liberal então desacreditada internacionalmente. Nessa
proposta de pacto entre representantes (Executivo) e representados
(povo/trabalhadores) o que se valora é a idéia de cidadania centrada nos direitos
sociais e não nos direitos civis e políticos (Gomes, 2002, p. 43-44).
Com essa estrutura, o trabalhador brasileiro passa a representar o modelo de cidadão;
era pelo trabalho que se julgava a vida pública e particular desse sujeito. Esta configuração
será alterada quando se cria a Constituição de 1988, universalizando os direitos sociais. O Brasil
estende a cidadania, o acesso aos benefícios sociais a todos os cidadãos e não só mais àqueles que
trabalhavam. Vale lembrar que pela ingerência dos recursos e participação em seguidos
escândalos envolvendo fraudes e desvio de verba esse acesso continua a ser precário até os dias
atuais deixando o atendimento a todos os cidadãos somente para um plano ideológico.
O caso do nosso país nos chama a atenção, porque aqui essa relação Trabalhador -
Cidadão era o que garantia a saúde e a educação, ante o reconhecimento social pela atividade
exercida. Até 1988, direitos básicos como, o atendimento médico, somente eram garantidos pelo
Estado àqueles que eram trabalhadores com registro em carteira profissional. Com isso, o
brasileiro passou a somente considerar como trabalho aquele que lhe concedia o status de
cidadão.
Vale lembrar que esses fatos foram o que mais aproximaram a realidade brasileira
com a vivida nos Estados-Nação do continente europeu e nos Estados Unidos da América e com
as políticas de bem-estar social. Aqui no Brasil, os direitos trabalhistas representaram o símbolo
da justiça social. Era pelo trabalho que, minimamente, se buscava uma equidade social, que
embora nunca alcançada ainda, reverbera nos dias atuais como projeto a ser alcançado.
A abertura aos direitos sociais parece ter levado a uma complexificação de questões
antigas como a própria configuração dos trabalhadores, que, gradativamente, passou a englobar
trabalhadores rurais, domésticos e autônomos, o que vem levando a um enorme déficit
previdenciário e a problemas de acesso a serviços básicos, como saúde e educação.
Com a chegada da reestruturação produtiva, nos anos 1990, o trabalhador começa a
perceber que o emprego para toda a vida é uma realidade do passado, os programas políticos neo-
liberais buscam uma maior flexibilização do trabalho, uma desfiliação do trabalhador das
instituições protecionista e um crescente fortalecimento do mercado como regulador. O que se
via na flexibilização das leis como uma forma de se abrir mais espaço para criarem-se mais
postos de trabalho vem se mostrando mais proeminentemente como uma forma de se excluírem
ganhos antigos do trabalhador, diferentemente do que ocorrera anteriormente quando se
barganhavam direitos como foi o caso da estabilidade vitalícia flexibilizada pelo FGTS.
O impacto disso para a sociedade é a provável degradação das perspectivas de
crescimento, de estabilização social, de compromisso com o trabalho e mais radicalmente de
idéia de futuro. O consumo atinge níveis cada vez maiores movendo a economia sem
perspectivas concretas de abertura de postos, a não ser os precários.
O setor de serviço cresce assustadoramente à custa da flexibilização do trabalho, do
grande exército de reserva e do ideal de emprego vivido tempos atrás. As novas gerações ainda
permeadas pelo ideal salarial, sonham com a perspectiva de um dia serem enquadradas nesse
segmento que ainda tem regalias como a estabilidade do vínculo empregatício. Exemplo claro
disso é a corrida em busca de postos de trabalho na estrutura estatal, a única que ainda preserva
garantias até agora inflexíveis.
Em um contexto onde se deve viver um dia por vez, o trabalhador, cada vez mais sem
tempo e descrente da vida pública, tenta se ver dentro da sociedade. Arriscamos aqui que, tanto
em sociedades como a norte-americana, onde a onda consumista se fortaleceu, quanto em paises
periféricos como o nosso, a imagem e os bens de consumo têm-se configurado como a única
saída para se ver reconhecido dentro da estrutura social. O trabalho parece estar tomando uma
posição acessória, apenas como um passo para propiciar acesso ao consumo. O perigo que
identificamos com isso é que a grande massa excluída dessa estrutura busca formas marginais
para ascender a ela, gerando desconforto social, além de esvaziamento de todo o sentido de
pertença.
Poderíamos aqui, pensar que a não exigência do registro em carteira para diferenciar o
cidadão poderia levar a uma cidadania ampliada e menos regulada, porém a realidade que nos
aparece tem se mostrado muito mais complexa. O desmonte da máquina estatal, a crescente
precarização do trabalho, a flexibilização das leis trabalhistas e os diminutos investimentos de
base social, em contraponto ao impulso neoliberal e ao aumento do capital privado, têm levado,
ao que parece a uma restrição da cidadania o que possivelmente esteja levando o cidadão a
perceber-se apenas como um consumidor. A cultura do nosso país em perceber o direito como
uma graça concedida pelo Estado e o direito a Cidadania como direito ao Trabalho torna-se
fundamental para que possamos compreender a constituição do espaço público e do pacto que se
estabelece entre Estado e Sociedade, bem como esses fatos influenciam na construção das
subjetividades desses trabalhadores.
Poderíamos aqui, mais uma vez, pensar de forma radical e compreender o
fortalecimento da identidade consumidora em detrimento de outras, por estas estarem
caminhando para um enfraquecimento análogo ao que aconteceu com o exercício cívico e
político de anos atrás. Assim sendo, poderíamos aqui falar de um enfraquecimento da crença do
direito aos bens sociais em detrimento de uma supervalorização dos bens de consumo e o valor
que estes passam a conceder a seus portadores.
Precisamos, a partir da nova conjuntura em que nos encontramos, buscar formas de
superar o ideal salarial e adequar um referencial agregador para os sujeitos, antes que seja perdida
toda a coesão social e passemos a viver uma existência individual sem nenhuma relação com o
outro, agravando o que Dejours (1998) chamou “banalização do mal”, um total alheamento para
com o outro e para com as responsabilidades coletivas.
Capítulo 3 – Percurso metodológico.
Quando optamos por estudar a interseção entre Trabalho e Cidadania, partimos do
pressuposto de que ambas são categorias eminentemente sociais, culturais e subjetivas, não
sendo, nem mais nem menos, influenciadas por nenhuma destas dimensões, formando assim uma
unidade no qual, em muitos momentos, individual e coletivo, interior e exterior não são passíveis
de distinção.
Dessa forma acreditamos que ambas as categorias interagem em uma constante
dialética, em que, ora o trabalho influencia a idéia de Cidadania, ora a Cidadania influencia a
idéia de trabalho. Mesmo com definições diversas, compreendemos a dialética como Keller e
Bastos (2002), referindo-se a este referencial como a forma de compreender a realidade em um
constante movimento, uma união de contrários, um devir. Nele, admite-se uma inter-relação dos
fenômenos ou fatos, como elementos que lhes dão sentido e inteligibilidade. Isto nos encaminha
para uma perspectiva de uma abordagem sócio-histórica dos fenômenos e dos sujeitos que
participam desse contexto. Sendo assim, abordaremos esta temática buscando uma compreensão
a partir da vivência dos próprios sujeitos na construção de ambas as categorias. Para Barros e
Lehfeld (2001), dessa forma seria possível mostrar como as forças existentes na natureza dos
fatos atuam na história, levando os sujeitos que participam desse processo a tomarem consciência
dessa realidade. Assim, o papel da história e da cultura das sociedades movimento aos fatos
ao invés de tratá-los em uma “camisa-de-força”; os dados de realidade ganham acúmulos
qualitativos gerando um conhecimento superior ao já existente, mas que contém elementos do
anterior, não apenas uma superação linear de tese-sintese-antítese, mas uma espiral num
constante complemento do conhecimento, no qual o conhecimento final gerado é sempre
momentâneo ficando o pesquisador com uma aproximação da realidade.
Investigar a inter-relação entre estas categorias se faz necessário para
compreendermos a partir dos novos modos de inserção laboral, como os sujeitos se compreendem
enquanto participantes destas transformações e como eles lidam com elas.
Ao traçarmos um percurso metodológico para realizar este trabalho, optamos por uma
proposta metodológica qualitativa nos moldes definidos por Rey (2002), o qual propõe um
resgate da subjetividade dos sujeitos da pesquisa partindo em busca de interpretações acerca de
suas vivências, vendo cada fenômeno como um processo de constante construção e não como um
estado permanente. Por sua natureza não quantificável e não generalizável, a pesquisa qualitativa
possibilita a aproximação da realidade, tal como vivida pelos seus atores, ou seja, o acesso é a
experiência imediata, pré-reflexiva, dimensão não atingida por procedimentos matemáticos.
Desta forma, sua epistemologia é distinta da que fundamenta as abordagens positivistas (REY,
2002). Ao optarmos por esta forma de abordagem metodológica dos fenômenos, estamos a par
das críticas dos positivistas no que concerne a uma perda ou a um rebaixamento do nível de
exigência acadêmica, como nos alerta Thiollent (1998). Para nós, esta perda pode ocorrer em
qualquer método desde que este não siga o rigor de sua proposta, portanto uma abordagem
qualitativa destes fenômenos satisfaz nossa investigação, visto que nós procuramos uma
aproximação da realidade que nos propomos investigar.
A proposta da pesquisa qualitativa refere-se à compreensão de que o conhecimento é
uma construção sóciocultural e toma, tanto pesquisador quanto sujeitos da pesquisa, como
participantes na construção do conhecimento, na tentativa de dar um sentido à vida cotidiana.
Não se trata de uma observação distanciada, como em propostas positivistas; o pesquisador busca
participar da dinâmica da construção de sentidos dos sujeitos ou da situação coletiva na qual ele
pretende aprofundar sua investigação. Dessa forma, interessa buscar em seu levantamento uma
interpretação do que lhe é dito pelos sujeitos e que lhe parece mais pertinente, procurando, a
partir do que surge em sua interação com eles e com o meio no qual eles se inserem, compreender
a realidade presente. Nesta perspectiva, o pesquisador torna-se também participante de todo o
processo, fomentando suas conclusões de forma indutiva, saindo do distanciamento proposto nos
moldes quantitativos em que se prezava, com este “isolamento”, uma pureza” na coleta dos
dados, que desta forma estariam livres de qualquer influência externa para deduzir o que estava
acontecendo. Thilollent (idem) nos mostra que esta interferência do pesquisador junto ao campo
não se isenta de impressões e de conhecimentos prévios, pois ela se baseia na vivência pregressa,
na forma como ele se relaciona com os dados levantados.
Como a intenção do nosso trabalho é apreender como os sujeitos percebem-se
inseridos dentro das transformações do mundo laboral e a partir delas constroem suas noções de
Cidadania, noções essas definidas por eles mesmos, acreditamos que o método qualitativo dentro
da perspectiva em uma abordagem sócio-histórica seria, o mais indicado ao nosso propósito -
dado nosso interesse pelo que de subjetivo nos discursos dos sujeitos que constroem suas
realidades e, ao mesmo tempo, são construídos por ela. A linguagem aqui desempenha um papel
primordial como instrumento de investigação desta realidade, pois é a fala dos participantes que
servirá de guia para nosso percurso de investigação.
É necessário que delimitemos um campo de investigação para que possamos
compreender de que forma esta realidade é apreendida pelos sujeitos na construção de seus
significados. Minayo (2002) concebe como campo de pesquisa o local utilizado pelo pesquisador
em termos espaciais, buscando representar uma realidade empírica a ser estudada a partir de
concepções teóricas que fundamentam a investigação.
Nosso intento central é investigar como os profissionais que atuam como auxiliares de
enfermagem constroem sua compreensão sobre Cidadania. Em nosso caso, a forma de abordagem
foi o contato com estes profissionais para que possamos assim compreender como estes lidam
com suas realidades quando o foco é a Cidadania.
Antunes (1999) expõe que a grande maioria dos trabalhadores precários encontram-se
trabalhando no setor de serviços. No nosso caso, em particular, optamos por um recorte dentro do
universo de uma categoria profissional, os trabalhadores de enfermagem de nível médio ou
técnico de ambos os sexos que trabalham na cidade de Fortaleza e que perfaçam as seguintes
condições: trabalhem em mais de um local ou com jornada de trabalho formal flexível; estejam
trabalhando com vínculo a cooperativas e/ou trabalhos temporários ou com tempo previamente
determinado, o que para este autor são características que determinam uma precarização das
condições de trabalho.
Nossa opção por esses trabalhadores deu-se pelo fato de ter havido uma grande
expansão do serviço de saúde nas últimas décadas. Borges (2005) afirma que, mesmo com todo o
crescimento do serviço de saúde, ele ainda está aquém do necessário, portanto é um campo ainda
bastante aberto para a expansão em seus diversos segmentos de atenção. A Figura 01 demonstra
o crescimento do setor de serviços de saúde no Ceará e no Brasil por unidade de saúde:
Figura 01
- Estabelecimentos de saúde
Variável = Estabelecimentos de saúde (Unidade)
LEGENDA: Brasil e Unidade da Federação
EIXO: Ano
Nota:
1 - A partir de 1992 foram incorporados na pesquisa os estabelecimentos que realizavam exclusivamente
Serviços de Apoio à Diagnose e Terapia.
2 - Em 1999 não foram investigados os estabelecimentos que realizavam exclusivamente Análises Clínicas.
3 - A partir de 1983 e até 1987: Inclusive Fernando de Noronha.
4 - A partir de 1988 Fernando de Noronha está incluído na Unidade da Federação Pernambuco.
Fonte: IBGE - Pesquisa de Assistência Médico-Sanitária
A mesma autora afirma que, apesar da expansão do setor, a visibilidade de questões
acerca da situação da mão-de-obra se perde em detrimento da modernização dos equipamentos
utilizados. O próprio Estado sofre com a precarização dos trabalhadores que prestam serviço nas
unidades cobertas pelo Sistema Único de Saúde.
Variável = Estabelecimentos de
saúde (Unidade)
Brasil e
Unidade da
Federação
Ano
1987
32.450
1988
33.632
1989
34.831
1990
35.701
1992
49.676
1999
56.134
2002
65.342
Brasil
2005
77.004
1987
1.527
1988
1.528
1989
1.548
1990
1.656
1992
2.192
1999
2.614
2002
2.869
Ceará
2005
3.206
Apesar de não haver dados concretos e precisos, o próprio Ministério da Saúde
acredita que cerca de 20% a 30% de todos os trabalhadores da saúde encontram-se vinculados a
alguma modalidade precária, o que contribui para uma alta rotatividade e comprometimento
desses trabalhadores com seu trabalho.
Como este segmento do setor de serviços ainda não tem excesso de mão-de-obra
disponível, nem redução de postos de trabalho - pelo contrário está tornando-se a porta de entrada
para muitos profissionais pelo baixo custo de sua formação -, a queda salarial e a perda da
eqüidade têm levado muitos profissionais a assumirem mais de um posto de trabalho. Este dado
ocorre da mesma forma dentro da iniciativa privada, que muitas vezes, aproveita-se desta
situação para agregar uma mão-de-obra precarizada.
A escolha do grupo de profissionais que participaram desta pesquisa foi feita por
indicação em cascata, ou seja, a partir de um primeiro sujeito conhecido pelo pesquisador, foram
surgindo novas indicações para possíveis participantes. Esse modelo de seleção dos membros da
pesquisa foi escolhido por garantir uma aleatoriedade na escolha dos participantes e pelo fato de
desvincular o profissional da instituição na qual ele trabalha. Acreditamos que este
distanciamento se fez necessário para isentar os indivíduos de uma maior influência institucional.
Como a pesquisa qualitativa não tem embasamento em um critério numérico para
assegurar representatividade, a amostragem significativa seria aquela que garante ao pesquisador
a possibilidade de permitir uma saturação no levantamento dos dados do problema que se
pretende investigar. O critério é o aprofundamento da compreensão simbólica do grupo estudado,
e o que delimita o conjunto de atores sociais é a exaustão, pela reiteração das categorias
empíricas presentes no discurso produzido. Desta forma, uma boa amostragem é aquela que se
revela suficiente para objetivar o objeto empiricamente, em todas as suas dimensões (MINAYO,
2000, 2002). No nosso caso, foi abordado um grupo de quatro profissionais, em sua totalidade
trabalhadores do gênero feminino, em parte devido à dificuldade de se encontrar homens
trabalhando nesta área, em parte devido à pouca disponibilidade de tempo daqueles encontrados
por nós.
A forma de coleta dos dados escolhida foi a de entrevistas individuais, deixando claro
ao entrevistado que poderia ocorrer uma nova entrevista para aprofundamento de alguma
questões que pudessem ficar em aberto ou que gerassem maiores indagações. A modalidade
semi-estruturada de entrevistas foi o instrumento escolhido por nós para a coleta dos dados.
Foram utilizadas basicamente duas perguntas norteadoras para subsidiar as entrevistas e conduzir
a conversa com o participante: “O que é Trabalho” e “O que é Cidadania”. A partir destas,
seguiam-se aprofundamentos de acordo com a temática trazida pelo entrevistado. Esta opção foi
tomada pelo fato de essa técnica permitir um envolvimento do entrevistador com a realidade do
entrevistado, através da fala, na qual ele poderá identificar aspectos relevantes quando estes
surgirem, em particular dados referentes à afetividade, ao cotidiano, às ideologias e à cultura, nas
suas dimensões social e individual, dados estes que, muitas vezes, podem não estar explícitos a
priori na pergunta, como nos mostra Barros e Lehfeld (2001). Devido ao seu caráter de discurso
livre, este instrumental pode revelar mais conteúdos acerca da subjetividade, menos censurados
pela fala livre dos sujeitos proporcionando, uma melhor compreensão de como eles constroem
sua realidade sóciocultural (SPINK, 1999).
Vale ressaltar que, dada a jornada de trabalho variar de trabalhador para trabalhador,
cada entrevista foi realizada em local diferente, deixando a escolha deste a critério do
participante, resguardando nossa opção de não ser realizado no local de trabalho. Notemos que
esse fato pode ser por si a constatação de que os trabalhos desses profissionais passam por um
forte período de precarizaçao. Este fato representou um momento de dificuldade de nossa
pesquisa, não pela escassez de trabalhadores nessas condições, mas pela dificuldade de adequar
os horários livres deles, quase sempre tomado em sua totalidade por escalas de trabalho em outras
organizações. Dado o tempo restrito para a coleta dos dados e para a conclusão da pesquisa, isso
pode ter reduzido à diversidade dos participantes, apesar de não ter comprometido a execução do
nosso trabalho.
Todas as entrevistas foram gravadas em mídia digital, garantindo a todos os
participantes o anonimato e o sigilo total das informações coletadas no ato das entrevistas, como
foi referido no termo de consentimento livre e esclarecido aprovado pelo Comitê de Ética em
pesquisa.
Com os dados das entrevistas colhidos e devidamente registrados, procedemos à
transcrição literal das entrevistas para que pudéssemos analisar-lhes o conteúdo . Spink (1999)
afirma que, ao relacionarmos práticas discursivas com produção de sentidos, assumimos que, os
sentidos contidos ali não estão na linguagem enquanto materialidade, mas sim no discurso que
faz da linguagem utilizada uma ferramenta para a construção de uma realidade. Dado o
reconhecimento polissêmico de nossa realidade, nossa escolha para analisar os dados será através
de uma Análise de Conteúdo semântica.
Os dados colhidos com as entrevistas foram tratados mediante uma análise de
conteúdo semântico, buscando informações que fossem identificadas como de grande relevância
para o grupo de sujeitos, sejam elas manifestas e/ou latentes, dentro de cada fala dos
entrevistados. Para isso, todos os dados foram reunidos em um corpus que serviu para a
delimitação de categorias de análise em consonância com os objetivos da pesquisa. Estas
categorias foram organizadas em um quadro temático, de acordo com o conteúdo das falas.
Para Barros e Lehfeld (2001), a técnica de Análise de Conteúdo possibilita
compreender as condições que induziram ou produziram determinada mensagem, além de dar
subsídios para analisar o contexto ou o significado de conceitos sociais, observando a influência
que estes têm na sociedade. Assim, acreditamos ter delimitado de forma satisfatória o percurso de
investigação, coleta e tratamento dos dados para dar conta de nossa pesquisa. Desta maneira,
acreditamos ser possível efetuar uma investigação compreensiva de como os sujeitos entendem e
vivenciam a(s) relação(ões) entre o Trabalho e a Cidadania.
OBJETIVOS
Geral: Compreender como, a partir dos novos modelos de inserção laboral, o trabalhador de nível
médio do setor de enfermagem que trabalha em hospitais na cidade de Fortaleza , constrói sua
noção de Cidadania.
Desdobramentos:
Compreender de que forma o processo de precarização das relações de trabalho é percebido
pelos auxiliares de enfermagem inseridos nessa condição.
Compreender a relação entre os modelos de inserção laboral experienciados pelos auxiliares
de enfermagem e o processo de precarização.
Capítulo 4 – Análise dos dados.
4.1 - Trabalho
Dentro de nossa investigação, os sujeitos que participaram de nossa pesquisa fizeram
referência a seus trabalhos como sendo algo maior que somente o emprego. Para eles, o Trabalho
enquanto atividade presente no seu cotidiano está diretamente ligado à condição para que os
trabalhadores se vejam inseridos na sociedade. Seria a porta de acesso principal e desejada para
que se possa ser visto como parte integrante e ativa dentro da estrutura social em que eles vivem.
Em meio às várias linhas de reflexão acerca do possível fim ou perda da centralidade do
Trabalho, nos deparamos, pelo contrário, com sujeitos que afirmam alicerçar suas existências
pelo Trabalho, que buscam nele o reconhecimento de suas ações dentro da estrutura social, como
sugere a fala deste participante.
- é isso que eu estou te dizendo, é reconhecer o teu Trabalho. Pessoa e Trabalho, está ligado ao
meu serviço que eu fiz com aquela pessoa no hospital, aquela que eu tratei e com a minha
pessoa. fora, ela está vendo a L. mais está sabendo que eu sou a L. auxiliar de enfermagem
(Auxiliar 02)
.
Entretanto, ainda é recorrente que estes sujeitos se encontrem envolvidos na armadilha
semântica entre o Trabalho e o Emprego. Apesar de o primeiro ser visto como estruturante e
integrador, o segundo ainda é a forma de inserção procurada e desejada por agregar direitos e dar
mais possibilidades de existir na sociedade. Para nosso grupo investigado isto aparece da seguinte
forma:
-...Trabalho e emprego... é, emprego é digamos aquele que você vai todo dia... de carteira
assinada e Trabalho é aquilo que você faz independente de carteira assinada (Auxiliar 03).
- carteira assinada significa essa autoconfiança que eu estou dizendo. É a gente ter todos os
direitos que precisa... (Auxiliar03).
Para nós, essa confusão é fator preponderante para a forma como os sujeitos interagem
na nossa sociedade, pois demonstra que não se trata de uma questão apenas de incluir e excluir os
sujeitos; mesmo os excluídos têm a possibilidade de retornarem e ocuparem uma posição de
reconhecimento social. O passaporte para isso, na grande maioria das vezes, é o aval contido na
assinatura da carteira profissional, é com esse passaporte que o trabalhador passa a ser
identificado como tal. Sobre isso um dos participante nos fala:
- ...porque as pessoas confiam mais se você[...] eles confiam mais se você tenha carteira
assinada. É nesse ponto de vista que a sociedade confia mais em quem trabalha com carteira
assinada. (Auxiliar0 3).
Pudemos observar, também de forma clara, o caráter organizador que o Trabalho
continua tendo para os trabalhadores que participaram desta pesquisa, que, mesmo estando
cooptados pelo processo de precarização, ainda se vêem integrados à sociedade pelo seu
Trabalho. Sobre isso um dos sujeitos nos fala:
- Eu acho que para você se interligar na sociedade hoje você tem que ter um Trabalho certo,
porque teu Trabalho está ligado a tudo. Para sair, seu círculo de amizades, tudo está ligado ao
Trabalho. (Auxiliar02).
Mesmo rivalizando com outras instâncias da sociedade que nomeiam e qualificam o
sujeito, o fato de estar realizando uma atividade laboral em contrapartida a não estar é
extremamente valorizado por estes. A nosso ver, este fato se justificaria por eles fazerem parte
ainda da lógica do trabalhador e conseqüentemente da população economicamente ativa,
segmento este que alicerça a sociedade. Por mais precário que o Trabalho seja, estes
trabalhadores retiram dele sua integridade e suas possibilidades de satisfação, tanto profissionais
como pessoais, ou como afirma um dos entrevistados:
- trabalhar pra mim é uma maneira de se estabilizar né? Se estabilizar economicamente e
profissionalmente dependendo da profissão que você vai exercer. Trabalhar para mim no
momento é me realizar profissionalmente[...] pessoalmente também.( Auxiliar 01)
Ser visto como um sujeito ativo, entretanto, não significa apenas trabalhar, traz outras
possibilidades, mas que, em si, ainda estão carregadas pela idéia do trabalhador. Um desses
discursos é o do estudante, que é visto como ativo dentro da nossa estrutura social, sendo que este
é um estágio momentâneo para alcançar o objetivo maior, Trabalhar. Este dado é coerente com a
idéia que temos de um tempo de Trabalho que ainda se mantém como referencial apesar de
perder espaço para outras temporalidades, tal como afirmam alguns teóricos do tempo social
(Aquino, 2003). Talvez esse dado tenha aparecido em nossa investigação desta forma por
estarmos tratando de sujeitos ainda inseridos de forma regular, embora com forte características
precárias, como apontam autores como Borges (2005) e Medeiros et ali(2006), partindo tanto de
um olhar sobre as formas de vinculo trabalhistas como também da perspectiva das extensas
jornadas de trabalho. Notemos isso nas falas a seguir:
-...você muitas vezes tem uma jornada de vida apesar de voo estar trabalhando, mais tem
um jornada de vida como seus estudos ter uma faculdade. (Auxiliar 01)
-...se você não trabalha e estuda, você tem alguma coisa a fazer na vida (Auxiliar 02).
Outro conteúdo que acreditamos ser pertinente é que para os sujeitos o Trabalho
também aparece como uma obrigação, algo do qual ele não pode fugir, sob pena de não ser aceito
pelos outros, ficando excluído dos deveres sociais que lhes são impostos pela sociedade. O fato
de trabalhar e daquele Trabalho tirar seu sustento traz a esses trabalhadores um status
diferenciado. Observamos que culturalmente o Trabalho é visto como um dever a ser cumprido
para que, depois o trabalhador possa usufruir o seu produto. Este fato é carregado de uma
conotação ética, de um juízo de valores que é feito sobre a origem do que é consumido. Esse
dado coaduna com o que Bauman (1999) chamou de ética do Trabalho apoiado nas idéias de
Weber (2003) como tratamos no capítulo inicial de nossa investigação. Tal dado aparece de
forma clara quando os sujeitos fazem referência a possibilidade de consumirem bens ofertados
pelo capitalismo. aqui uma sutil diferença entre a ética fomentada no período de expansão do
capitalismo, no qual consumir deveria ser apenas um objetivo secundário. Em nossa pesquisa, o
consumo aparece como o dado final, o objetivo, sempre embasado no discurso do conforto e da
melhoria da qualidade de vida tanto do trabalhador como da família. Não há limite para o que se
consumir, o limite seria o poder aquisitivo de cada um. É aqui que nós nos deparamos com uma
cilada do capitalismo que permite acesso a créditos facilitados as diversas faixas de consumo, o
que tem provocado um crescente endividamento da classe trabalhadora. Essa lógica se sustenta, a
nosso ver, por existir sim uma qualificação do trabalhador pela faixa de consumo à qual ele
pertence, sendo mais valorizado quanto mais consome. Para Bauman (1999), esta seria a
principal característica que justificaria a passagem de uma sociedade pautada no Trabalho para
outra pautada no consumo, visto que os sujeitos supostamente passariam a ser significados a
partir dos bens que consomem. Em nossa análise essa idéia não surge de forma tão radical; para
os participantes de nossa pesquisa o consumo não sustentaria a identidade do sujeito. Para isso,
ele precisa do Trabalho, um Trabalho que o identifica e lhe confere valor, apesar de o consumo
aparecer como algo que qualifica e confere valor ao sujeito.
- ... Trabalho é uma... um dever de todos nós, temos que trabalhar para... pelo menos no meu
caso, para mim , na minha vida é a maneira que eu tenho de me sustentar, de ter que viver, de
ganhar um salário. Então, é aquela obrigação que nós temos no dia a dia para poder ter uma
sobrevivência, é a sobrevivência da gente, para nós trabalhadores a partir do momento que esse
é o único meio que temos para receber o salário. Eu não tenho pai nem mãe que me dê um, então
tenho que trabalhar para me sustentar(Auxiliar 03).
- Ah, Trabalho é a nossa fonte de renda. o ser humano hoje em dia, sem Trabalho ele não vive,
ele tem que trabalhar até para ter o senso de responsabilidade né? e ter a sobrevivência dele,
sem Trabalho ninguém vive. (Auxiliar02)
-...olha, você que a pessoa que trabalha, ela pode ir à loja, ela pode comprar uma roupa, ela
pode ir num restaurante, ela pode ir jantar, por que ela tem aquele dinheiro ali para pagar. a
pessoa que não trabalha ela vê, ela quer, ela não tem condições. o que ela vai fazer ? ela vai
roubar. ela não tem as condições de ter aquilo mas ela quer aquele produto então ela vai fazer
de tudo. (Auxiliar 01)
Em nossa leitura das transformações ocorridas no mundo do Trabalho e seus impactos
sobre o trabalhador, vemos como alicerce para a idéia do trabalhador contemporâneo as idéias de
Castels (1997), quando este trata das mudanças ocorridas na condição do trabalhador com o
fortalecimento da sociedade salarial a partir dos cinco pontos explicitados por nós, quando
tratamos da condição de cidadão na sociedade contemporânea em nosso primeiro capítulo. Nessa
perspectiva, tais transformações, em grande parte, ainda não foram superadas, o que as levam a
permanecer como condições necessárias para a identificação do trabalhador com a sociedade. Na
nossa sociedade capitalista, o fato de consumir não foge à regra do Trabalho. É dessa forma que
os trabalhadores se vêem como dignos e aptos para usufruir os bens. Em nossa leitura sobre a
díade trabalhador-consumidor, nos deparamos com duas hipóteses: a primeira faz referência ao
fato de que estes sujeitos são trabalhadores e por isso tentam justificar essa prática na tentativa
de se verem valorizados pelo tempo e esforço desempenhado na sua atividade laboral. A segunda
hipótese levantada por nós é a de que aqui implicado um código de valores morais, o que
impede que estes sujeitos identifiquem-se como puramente consumidores, algo que, a nosso ver,
esvaziaria estes sujeitos de significado dentro da sociedade, eles não conseguiriam se ver mais
como ativo na lógica social. Para Blanch (2006), o Trabalho significa uma igualdade entre os
sujeitos, uma forma de possibilitar a participação na vida pública daqueles que não detêm a
propriedade privada, como sugere Assis (2002).
Em outro momento, observamos uma contradição significativa dentro do discurso dos
participantes de nossa pesquisa quando estes referem-se ao tipos de trabalhos exercidos e a
valoração que cada um tem para a sociedade. Aqui, um forte conteúdo cultural influencia a
própria concepção do que é Trabalho. Enquanto, para uns, as atividades exercidas freqüentemente
em troca de uma remuneração são vistos e aceitos como Trabalho, para outros, além dessas
características, o Trabalho deve ter um caráter de honestidade para ser considerado como tal.
Pensando nisso, acreditamos que o fato de a atividade realizada pelo sujeito ser ou não vista
como Trabalho depende diretamente de um consenso social, e mais que isso, da forma como esta
atividade laboral é transmitida culturalmente em cada nação, de como a atividade é dotada do
valor Trabalho.
Blanch (2006), ao tratar do valor que o Trabalho assume em cada sociedade, elenca uma
multiplicidade de formas de se compreender como determinada atividade adquire conotação
valorada ou não. Para isso, ele sugere que se busque compreender esta valoração como um evento
interdisciplinar que envolve aspectos etimológicos, filosóficos, econômicos, psicológicos,
sociológicos, antropológicos, políticos e jurídicos que se engendram e se transformam na forma
como cada sociedade valora suas coisas. Atividades antes não aceitas ou que tinham um sentido
pejorativo na cultura passam a ter seu conceito revisto em parte pela dimensão que estes têm para
a economia do país ou para a geração de novos postos de Trabalho. Lima (2007) afirma que a
nova configuração do mundo do Trabalho em nossos tempos resgata formas atípicas de trabalho
para tempos anteriores , em particular quando a sociedade industrial e salarial era dominante. O
que se diferencia de antes é que estas formas, vistas aqui por nós como contendo forte tendência
precária, são usadas hoje pelo capital como uma nova modalidade de exploração da mão-de-obra,
dissolvendo estruturas de enfrentamento que nasceram em grande parte para contrabalançar os
efeitos pejorativos dessas modalidades. O que antes era visto como disfuncional, ruim,
atualmente vem tomando formas cada vez mais funcionais para o capital, mesmo que a um preço
alto cobrado ao trabalhador.
Nesse aspecto, podemos citar como ilustração a própria atividade exercida pelos sujeitos
participantes da nossa investigação. Acreditamos que, por tratar-se de um setor em franca
expansão e que pode abrigar ainda bastante postos de Trabalho, a atividade de técnico de
enfermagem tem mudado seu conceito dentro da sociedade, passando de um segundo plano para
figurar como uma grande oportunidade para aqueles que querem uma inserção laboral com pouco
tempo de qualificação.
- antes, quando comecei com a minha profissão, eu não vou mentir, eu tinha vergonha, hoje não.
(Auxiliar 01).
A qualificação profissional foi outro ponto importante observado por nós quando estes
sujeitos falam de si enquanto trabalhadores. Para eles, a idéia de que a qualificação leva a um
lugar garantido no mercado de Trabalho parece estar bem viva. Para eles, a atividade exercida
como enfermeiro de nível dio é apenas um degrau para ascender a níveis mais elevados na
hierarquia do Trabalho. É verdade que a qualificação abre oportunidades para novas inserções no
mundo do Trabalho, mas a nós parece complicado manter uma qualificação significativa, quando
o trabalhador precisa dedicar-se a vários postos de Trabalho.Há também referência a trabalhos
que os sujeitos reconhecem como tal, mas que, segundo eles a sociedade não reconhece. Exemplo
vivo são atividades marginais, como a prostituição e o tráfico.
- eu acho que existe uma discriminação porque, por mais que ser uma prostituta no calçadão
seja o Trabalho dela e eu ser uma enfermeira um médico que trabalha em um hospital, ser uma
auxiliar de enfermagem é totalmente diferente. É cidadão mais é um cidadão desconsiderado
pela sociedade. (Auxiliar 02)
O interessante é que, muitas vezes, esses trabalhos marginais, como o das prostitutas
têm um nível de precarização tão grande quanto outros trabalhos formais, salvo as devidas
ressalvas de cada condição. Na tentativa de justificar a separação entre estes trabalhos e os outros
ditos como socialmente aceitos, o trabalhador se apóia em um critério de moralidade. O Trabalho
que tem valor é aquele honesto e carregado de valoras morais, aquele que o sujeito se esforça
para obter os frutos “sem ofender a si nem aos outros”. Porém, em uma análise mais macro dessa
visão, nos deparamos com outras culturas que dotam, por exemplo, atividades como a
prostituição de um caráter idôneo. Nessas culturas, a prostituição tem um lugar reconhecido como
parcela participativa da sociedade. Esse dado é fundamental para pensarmos na perspectiva de
uma Cidadania fundamentada no Trabalho.
No que concerne ao processo de precarização de seus trabalhos, os participantes
parecem não se darem conta da degradação implícita nesse movimento da estrutura laboral. Para
alguns, isso é tratado até com naturalidade. De acordo com as idéias de Aquino (2005), a
precarização das relações de trabalho não atingem de forma homogênea todos os trabalhadores;
para uns, na sua maioria trabalhadores recém ingressos no mercado de trabalho, o precário acaba
recebendo a conotação de flexível, aparecendo como a solução contemporânea do capital para
adequar-se a novas configurações, ou como a única saída para que o trabalhador possa sobreviver
nessa nova realidade. Assim, para esses trabalhadores, o precário começa a despontar como
normal, como o padrão, o que não acontece com os trabalhadores que, de alguma forma,,
experienciaram as garantias existentes anteriormente.
Em geral, as extensas jornadas, que chegam a turnos de 18 ou 36 horas ininterruptas ou
a ocupação de 2 ou 3 postos de Trabalho, além dos vínculos nem sempre definidos de forma
clara, são compreendidos como a única opção para que eles consigam se inserir no mundo do
Trabalho. Os mais jovens, que já ingressaram por esse modelo, passam a compreendê-lo como o
modelo possível a eles nessa conjuntura; os que estão há mais tempo na área, apesar de
perceberem a degradação imposta pelas modalidades de Trabalho vigentes, vêem-se como
impotentes para contornar esta realidade. Essa idéia coaduna com a hipótese de Antunes
(1998,1999) que faz referência a uma perda de força dos trabalhadores frente ao capitalismo pelo
esfacelamento das ações coletivas dos trabalhadores. Em nossa opinião, esta é uma questão mais
complexa, pois o que acontece não é puramente o enfraquecimento do poder de negociação, mas
uma complexificacão das relações de Trabalho, o que pode levar a uma rivalidade entre os
trabalhadores, o que, conseqüentemente, leva a uma menor coesão grupal para direcionar
esforços para enfrentar uma conjuntura desfavorável.
Além destes fatores, nos parece que as relações de Trabalho em crescente precarização,
específicas da área de cuidados de saúde, são aceitas tanto pelo empregador como pelo
trabalhador, como afirma Borges (2005). É impossível aqui dizer para qual das partes o prejuízo
se torna maior, o que não se pode negar são os prejuízos, pois tanto o trabalhador se desgasta com
jornadas estafantes e longas, como o empregador tem prejuízos com o mal serviço prestado.
Entretanto o preço da mudança parece não agradar nem aos trabalhadores, nem aos patrões, o que
leva a uma reprodução deste modelo junto aos novos investimentos na área. Um de nossos
participantes discorrendo sobre os múltiplos empregos, expõe tanto a conivência como os perigos
existentes nessa prática.
-Acontece, acontece porque a gente trabalha em regime de ficar esperando o colega chegar para
poder sair e às vezes o colega nem sempre chega naquele horário para você sair.[...] quando
ela chega é que a gente pode sair se não tem de ficar.[...] aí tem que dobrar. Aí no caso, no outro
fica com a falta justificada porque, por que você não foi porque estava trabalhando também
mesmo que em outra empresa, mas você ficou sem condições de sair[...] é assim, eles podem até
ficar com raiva, mas tem que entender, eles não podem prejudicar o funcionário (Auxiliar03)
- É como eu digo, a gente tem que procurar se forte porque existem momentos em que a gente
está muito cansado e, então você tem que ter atenção redobrada porque trabalha com ser
humano. Então você tem que ter atenção redobrada e procurar fazer de tudo para não errar. E
vi, mas graças a deus nunca aconteceu comigo até hoje, mas vi colegas se
prejudicarem.[...] chegaram até a administrar medicações erradas que fizeram com que a pessoa
(paciente) se prejudicasse, e ela junto porque perdeu o emprego, os empregos que tinha
(Auxiliar 03).
Percebemos que, de acordo com o vínculo de Trabalho presente na relação do
trabalhador com o capitalismo influencia diretamente as formas de enfrentamento. Essa
segmentação faz com que profissionais que atuam no mesmo ambiente de Trabalho sintam-se
preteridos mesmo exercendo as mesmas funções.
Além de aspectos profissionais, a precarização das relações trabalhistas é apontada
como fator que interfere diretamente na vida pessoal e social dos sujeitos. Segundo eles, a
extensa jornada interfere desde o lazer com a família e amigos até a vida amorosa. Aqui é
interessante observar que os sujeitos que estão adentrando o mundo do Trabalho de formas
precarizadas minimizam os efeitos desse processo e sustentam que esta é uma condição apenas
momentânea, para que eles consigam se estabilizar. aqueles que estão inseridos mais
tempo vêem como danosa essa situação. Para estes, a perspectiva de mudanças é muito remota,
sendo apontada como possibilidades para isso a ascensão profissional ou a mudança de vinculo
para relações mais estáveis como o funcionalismo público, que, na grande maioria dos casos,
oferece melhores salários, além da estabilidade do vínculo empregatício, pelo menos no caso das
auxiliares de enfermagem.
-... como sou solteira para mim é mais fácil. A única satisfação que tenho a dar é a meus pais
onde eu estou. Agora, não me veria na situação dela, casada tendo que dar conta de 3 empregos
de marido e filho... e casa. eu não saberia como lidar com aquilo, como aquela situação ali... eu
não saberia. Com certeza eu abriria mão de um. (Auxiliar 01).
-... porque quando a gente arranja um namorado é difícil, eles não entendem, é muito difícil
arranjar um namorado que entenda esse lado da gente (Auxiliar 03).
Em meio aos discursos dos sujeitos que participaram desta pesquisa a questão de gênero
presente na atividade desses profissionais é algo que muito nos chamou a atenção. Talvez por ser
uma profissão de forte caráter feminino, a presença masculina torna-se inexpressiva, apesar de
existir. As trabalhadoras mostraram uma grande necessidade de complementarem o orçamento
doméstico, alem de casos em que elas mesmas são arrimo de família e têm que arcar com todas as
despesas, além de executarem uma outra jornada laboral ao retornarem para casa. O que denota
para nós um nível ainda maior de intensificação e esgotamento pelo Trabalho.
- eu tenho sonhos. Sonho que daqui a alguns anos mais possamos nos equilibrar
financeiramente, que meu marido termine a faculdade dele ... eu gostaria assim, de o deixar o
hospital, não gostaria de deixar de trabalhar ... essa parte vai melhorar, assim em relação ao
Trabalho e minha vida pessoal. (Auxiliar 02).
- eu tenho uma produção independente isso me fez... o meu pai até enquanto era vivo me
ajudava aí depois ele faleceu e ela foi crescendo e precisando de mais coisas[...] Então eu tenho,
com lhe disse, uma produção independente, totalmente independente, não posso contar com
ninguém para me ajudar somente eu. Eu tenho a mim e depois a mim de novo. Então isso fez
com que eu tivesse que arranjar outro emprego. (Auxiliar 03).
Para nós, a ascensão profissional não garante uma mudança na condição dos sujeitos,
visto que o processo de precarização atinge atualmente todos os níveis funcionais da área de
saúde. Mas este é mais um dos pensamentos recorrentes nas falas dos sujeitos, a idéia de que com
o curso superior eles passariam a ter uma vida mais estável e mais calma. Esta é mais uma das
ciladas para quais o sujeito é levado na sua busca por uma melhoria na condição de vida e que,
muitas vezes, é alimentada por nós mesmos na busca incansável por essa melhor qualificação.
Nesse aspecto Antunes, (1998, 1999) é enfático em falar que a precarização atualmente atinge
todos os níveis de trabalhadores, desde os subproletários, em sua grande maioria desprovidos de
qualquer assistência, até os superqualificados que acabam deparando-se com trabalhos aquém do
seu nível de qualificação. Com isso notamos que além de não atingir de forma única os sujeitos, o
processo de precarização presente em nossos tempos atinge também, de maneira distinta,
diferentes contingentes ou segmentos da sociedade na mesma medida como nos mostra Aquino
(2005)
-...pretendo me formar um dia enfermeira pela estabilidade que tem a faculdade... (Auxiliar 01)
Mesmo vendo a possibilidade de ascensão profissional como uma possível saída desta
situação, na fala seguinte um dos entrevistados expõe sem perceber o nível a que tem chegado o
processo de precarização dos profissionais da saúde em geral.
- uma enfermeira que trabalha comigo.[...] ela trabalhava em 3 e era casada, quer dizer, é
casada e tem um filho. (Auxiliar 01)
O que podemos perceber é que, ao mesmo tempo que o Trabalho aparece como valor
estruturante, criador de sentido e ordenador, já aparecem fortes indícios de uma conotação
instrumental, ligada diretamente a uma melhoria da condição de vida desses indivíduos. Apesar
de inseridos de forma precária, os trabalhadores parecem ver em seus empregos ainda a melhor
forma de seguridade. Talvez esta seja uma forma de os sujeitos enfrentarem a passagem de uma
sociedade pautada no emprego, para uma caracterizada pela instabilidade e pelo risco, como
sugere Blanch (2006).
4.2 - Cidadania
Quando passamos a investigar como os trabalhadores compreendiam a idéia de
Cidadania, o fato que mais se fez presente foi de que esta se trata do cumprimento de regras
sociais, o cumprimento de um código ético e moral explícito e implícito dentro da estrutura social
que engloba esses sujeitos.
Surgiram duas formas de olhar esse cidadão. Uma delas mais global, que envolve
obrigações mais gerais para que o sujeito possa viver em harmonia com a sociedade. Nesse caso,
abrange-se desde regras familiares, institucionais e sociais até convenções culturais de cada
região. Para ser considerado cidadão, o sujeito bastaria ser um cumpridor destas regras. Qualquer
contravenção a estes preceitos colocaria em jogo o status desse sujeito perante a sociedade.
Todos os cidadão estariam envolvidos nesta gica e todos seriam iguais perante as leis e perante
uns aos outros.
A outra vertente apresentada, e que no caso nos interessa mais, é a de que o cidadão é
aquele que trabalha e que edifica sua vida a partir de sua atividade laboral. Atentemos para o fato
de que essa vertente coaduna diretamente com as idéias de Castels (1998), Assis (2002), Cortina
(2005) e Nardi (2006) que apontam para uma centralidade do Trabalho na vida dos sujeitos,
quando se trata de cidadania. Nessa perspectiva, o cidadão é aquele que, a partir do seu trabalho
edifica sua vida pública.
Faremos uma breve leitura da primeira vertente para nos dedicarmos mais tarde à
segunda, por acreditarmos que é nela que reside nossa problemática.
Compreender-se como cidadão a partir do cumprimento de regras, e aqui podemos
incluir como regra ou dever também o Trabalho, implica levar o sujeito a delimitar esse conjunto
de regras a ser seguido. Esse código nasce no seio da própria sociedade na qual o trabalhador
vive e perpassa todas as instituições que interagem com o indivíduo, tais como a escola, a família,
os círculos de amizade e o Trabalho. Para nossos participantes, não basta que o sujeito seja bom
cumpridor de apenas um ou alguns desses preceitos, é necessário que ele se mantenha regrado em
todos, pelo menos aparentemente. Isso pode ser visto na fala de um dos participantes.
- para mim ser cidadão é você primeiro de tudo né, ter suas contas em dia não roubar,
não matar, para mim isso é ser cidadão. Porque a pessoa que não é cidadão ela faz tudo isso,
não mantém sua mente ocupada e no que sua mente não se ocupa ela faz coisa errada (Auxiliar
01).
- acho que a sociedade não classifica o cidadão pelo seu Trabalho só, classifica pela
sua educação, pela sua família, pelo seu círculo de amizades. Se você está com uma má
companhia toda a sociedade te recrimina então você é passa a não ser um cidadão ali ela não te
considera uma pessoa, então você discriminado. a sociedade o considera um cidadão.
(Auxiliar 02).
Não foi localizada por nós uma idéia mais global no sentido territorial do que seria
Cidadania; os sujeitos investigados direcionaram suas falas para uma referência local, tomando
por base uma perspectiva micro de suas realidades. Essa idéia está de acordo com o que propõe
Castel (1999), quando este trata de uma relação de filiação e desfiliação. Nesta perspectiva, ao
invés da recorrente compreensão de inclusão e exclusão dentro da idéia de Cidadania, observa-se
uma possibilidade mais dinâmica de mobilidade entre os grupos, mesmo que isso signifique
apenas estar trabalhando com vinculo formal ou não. Para estes sujeitos, um claro desejo de
ascender de vel. Isso se manifesta na fala de todos, quando tratam dos planos futuros para suas
vidas. Mesmo comprometidos com uma longa jornada laboral, nossos participantes almejam
conseguir uma ascensão funcional através uma qualificação mais prolongada, mediante, na
grande maioria dos casos, o acesso a um curso de nível superior dentro da sua área de Trabalho.
Mesmo rara de acontecer, essa idéia é algo que perpassa os planos dos trabalhadores de nível
médio por nós investigados. Notemos que, por mais dinâmica e móvel que pareça ser esta forma
de se compreender a cidadania, ela não garante ao sujeito nada além da possibilidade de transitar
por diferentes níveis da sociedade. A nós fica claro que não como garantir seguridade alguma
para estes sujeitos, visto que esta aparece em cenários estáveis, o que entraria em confronto
direto com o modelo vigente. Assim, para os sujeitos resta permanecer na eterna ilusão de que,
um dia ele passará a ser visto como um cidadão diferenciado, sem levar em conta que em pouco
tempo esta condição pode se inverter.
no discurso uma idéia de Cidadania ampliada, segundo o qual todos os sujeitos
teriam os mesmos direitos e deveriam ser vistos da mesma forma pelos membros da sociedade.
Apesar de essa tendência ser a proposta na nossa realidade, os participantes de nossa pesquisa
identificam que ela não funciona na prática. Para eles, prerrogativas para que o sujeito seja
reconhecido como cidadão, como pertencente ao grupo. O que observamos é que aqui há, de
alguma forma, uma tentativa de se isentar deste julgamento, passando toda a responsabilidade
para a sociedade, esquecendo-se que são parte ativa desta. Podemos ver isso quando um dos
participantes fala da discriminação em relação a alguns trabalhadores.
- todo mundo como eu te disse, é um cidadão brasileiro, a partir do momento que você
nasce, é registrado, o você considerado um cidadão. que em nossa sociedade hoje, como
sempre ela recrimina algumas profissões. Então, o vendedor ambulante era um cidadão,
independente da profissão que está fazendo, com uma prostituta também. que, a sociedade
isola. Aquela profissão e aquele ser que está ali não existe, é um rato de esgoto (Auxiliar 02).
Podemos identificar aqui que, de certa forma, há uma segmentação da idéia de uma
Cidadania universal. O papel de uma Cidadania política é reconhecido, mas não sustenta por si
o caráter de Cidadania de um sujeito. Ele precisa de outros fatores, como o Trabalho, para que
seja reconhecido como integrante do grupo ou da comunidade. Ao que parece, a Cidadania
política que mostrou nos discursos é apenas uma formalidade pois não é o definidor da condição
para esses cidadãos, como se coloca em seu conceito ou como sugere o sujeito tratando desta
pseudo igualdade entre os membros da sociedade:
- Eu acho que tem diferença, acho que tem diferença em você... aliás era para ter igualdade com
todo mundo mais todo ser humano nunca tem esse tipo de igualdade, tem sempre a
discriminação, gente que trabalha, gente que tem, gente que não tem. coisa que eu acho que não
deveria haver. todo o ser humano deveria ter seu espaço, mas infelizmente não tem (Auxiliar 01).
A reverberação desses fatos diretamente sobre a subjetividade do trabalhador pode ser
explicitado em quatro grandes eixos explicitados por Dejours (1998), os quais tratam de uma
intensificação do trabalho e aumento do sofrimento subjetivo, inibição ou neutralização da
mobilização coletiva, negação do sofrimento alheio e exacerbação do individualismo, aspectos
encontrados recorrentemente nas falas dos entrevistados, mesmo que de forma velada.
4.3 - Cidadania e Trabalho
A segunda vertente para a Cidadania, como mencionamos anteriormente, faz referência
mais direta ao papel que o Trabalho tem para que os sujeitos se reconheçam e sejam reconhecidos
como membros efetivos da sociedade. Em sua totalidade, os participantes de nossa investigação
reconhecem como fundamental estar trabalhando para ascender à condição de Cidadania,
chegando a reconhecer que somente por meio do Trabalho isso é possível.
- porque para mim Ítalo, a pessoa que não trabalha eu não considero como cidadão normal
entendeu, porque para mim o Trabalho faz parte da vida da gente. O Trabalho faz parte não
pelo salário que vai se ganhar, que isso também quer dizer muito, porque se vonão tem um
salário como a que você vai ter uma... como a que você vai viver normalmente. Então, pelo
prazer também de você fazer o que gosta se você trabalha no que gosta (Auxiliar 03).
A nosso ver, essa idéia respalda nossa reflexão teórica, quando tratamos da forma como
a Cidadania foi compreendida em nosso contexto social, principalmente influenciada por idéias
de uma sociedade igualitária em termos de direitos sociais, assim como fora durante os períodos
de grande expansão industrial em nosso país. Estar trabalhando significa para esses sujeitos um
atestado de idoneidade e de bom caráter, o que caracteriza um bom cidadão; mais que isso,
garantiria àquele que trabalha uma contrapartida na forma de direitos sociais, o que representaria
o reconhecimento pelos serviços prestados à sociedade. Esse dado fica ainda mais patente,
quando tratamos de profissões que nascem como um caráter de ajuda, de auxílio em seu
objetivo, como é o caso das auxiliares de enfermagem.
- porque eu estou trabalhando de uma forma digna. Como disse a você procuro ser uma
profissional, desempenhar bem meu Trabalho, pago os meus direitos, tudo que tem direito de ser
pago, e para mim isso me faz ser... (Auxiliar 03).
... por que o momento que eu to trabalhando eu não pensando besteiras. Eu pensando em
ajudar o próximo (Auxiliar 01).
- porque significa que eu estou fazendo um bom desempenho no meu Trabalho, as pessoas com
quem eu Trabalho gostam do meu Trabalho e para mim isso é ser um bom cidadão, aquele que
faz o seu Trabalho, que faz um bom desempenho, faz com que as pessoas confiem porque nossa
profissão precisa muito disso, alguém que confie no teu Trabalho.... (Auxiliar 03).
O cidadão-trabalhador faz de sua atividade laboral sua identidade dentro da estrutura
social, não trabalhar é descumprir talvez a regra mais básica para a organização social. Aquele
que se furta a esta obrigação, como intitularam nossos sujeitos, ficam relegados a um outro plano,
vistos com um olhar pejorativo. Manter-se em uma busca incansável pelo emprego (Trabalho) é
algo que possibilita aos que não têm emprego ou Trabalho ao menos o rótulo de interessados em
sair desta condição e chegar à posição de desejo: ser visto como trabalhador. Esta idéia coaduna
com o pensamento de Blanch (2006), quando este afirma que o pensamento moderno acerca do
Trabalho impõe aos sujeitos uma realidade aparentemente natural, o que favorece a adoção de
uma série de valores sem reflexão, “obrigando” a uma aceitação e aplicação dessas regras e
valores. Por sua vez, o não cumprimento destas regras “naturais” leva a uma condenação do que
se opuser a elas. No nosso caso em particular, a regra trabalhar opõe-se diretamente ao não
trabalhar, o que justifica, a nosso ver, o rechaço social que recebem os trabalhadores
desempregados.
- ... porque o Trabalho é uma profissão, então se você não tem uma profissão você não é
completamente um cidadão (Auxiliar 03)
-Para mim não ser cidadão é aquela pessoa que não trabalha porque o quer. Eu conheço
várias pessoas que até tem condição não é, que estudaram até para isso, para poder conseguir
algo melhor, mas quando chega uma etapa da vida não quer nada com a vida, quer viver só na
boa-vida . é essa pessoa que para mim não é cidadão, mas aquele que não consegue, que fica
batalhando, que fica correndo atrás é (Auxiliar 03).
Além desses fatores que citamos, a interface entre Trabalho e Cidadania implica um
juízo de valores morais muito forte e que dita quais as formas de Trabalho dignas ou não para
serem aceitas socialmente. O modelo formal de Trabalho com registro em carteira é o modelo a
ser alcançado pela grande maioria, pois seria a partir dele que o Trabalhador se certificaria de
que, por meio de seu Trabalho, ele estaria coberto de alguma proteção e contribuindo com os
encargos para uma melhoria da sociedade.
Para os profissionais entrevistados, há uma dificuldade em reconhecer que essa
assistência mediante a contribuição, pode ser arrecadada por iniciativa do próprio trabalhador. O
pagamento da contribuição ao Instituto Nacional de Seguridade Social pode partir do próprio
trabalhador, o que, em um futuro, lhe garantiria uma aposentadoria. É certo que o emprego
formal em carteira garante um leque maior de seguridades, mas outras possibilidades, como a
contribuição individual não são nem minimamente vislumbradas pelos trabalhadores, que só
vêem como possibilidade para isso a arrecadação formal implicada na relação trabalhista da CLT.
A nós esse parece mais um fator que perpetua o ideal do emprego formal com registro em
carteira. Para os sujeitos que não conseguem esse registro, resta um status diminuído, uma
posição social menor do que os afortunados que conseguem isso.
- ...porque nós trabalhadores temos que pensar numa aposentadoria, mas claro que a gente pode
pagar avulso, mas fica muito difícil para o trabalhador se encaixar ainda mais nessa dívida,
mais nesse orçamento, colocar no orçamento dele mais um... pagar voluntário o SUS, o INSS. Aí
fica difícil, porque não paga... como o Trabalho dele não direito, futuramente se ele quiser se
aposentar vai ser mais difícil. Se ele é acidentado como eu falei para ela, é um direito que nós
temos de ficar em casa e com o INSS vai... e quem não têm carteira assinada infelizmente vai ter
que ir trabalhar (Auxiliar 03).
- carteira assinada significa essa autoconfiança que eu estou dizendo. É a gente ter todos os
direitos que precisa, no caso, a gente que a mãe, licença maternidade, no caso de um acidente,
você poder usufruir de ficar em casa e receber, na realidade nós estamos recebendo o que a
gente contribuir, e eles não estão fazendo nada mais do que a obrigação deles por que se nós
contribuímos, nós temos esse direito, de estar acidentado e ficar em casa, enquanto uma pessoa
que não trabalha de carteira assinada não pode usufruir (Auxiliar 03).
Chamou-nos a atenção em nossas entrevistas uma dubiedade quando os sujeitos falavam
dos trabalhos formais e dos informais com relação à condição de Cidadania. Para eles estar,
trabalhando , de forma geral, faria com que o sujeito se sentisse cidadão, mas, ao mesmo tempo,
apresentam como distintas as condições dos formais, informais e precários, estes últimos
raramente sendo reconhecidos dessa forma, mas sim como trabalhadores que optaram por uma
carga maior de Trabalho. Borsoi (2005) reconhece a carteira de trabalho como uma identidade
que aos sujeitos uma espécie de passaporte para o consumo, uma identidade consumista que o
faz inserir-se (filiar-se) a um segmento da sociedade. Mesmo que, pouco o pagamento registrado
em carteira é para esses trabalhadores uma certeza, hoje; mais que isso, ele passa a ser uma
perspectiva futura, pois o registro formal possibilita linhas de crédito futuros, mesmo que
carregados de pesada carga de impostos, levando esses trabalhadores a um progressvo
endividamento.
- não, não são reconhecidas até porque... por causa da sociedade. A sociedade você apor
uma loja... se eu fosse com a carteira assinada fazer um crediário, a li eu faço rapidinho e uma
pessoa que não têm carteira assinada, ela não... é uma verdadeira dificuldade. Na nossa
profissão também no caso: se uma pessoa vai arranjar emprego para aquela pessoa ela quer
saber tudo isso também, tudo isso conta, se você trabalha de carteira assinada, há quanto tempo,
então isso dá mais confiança as pessoas. Eu acredito, eu acho que é uma questão de burocracia ,
mais parte burocrática (Auxiliar 03).
- ...já trabalhei oito anos na cooperativa sem carteira assinada e saí de dois hospitais sem ter
direito a nada simplesmente tchau e trabalhei de carteira assinada e saí e tive todos os meus
direitos. Você tem alguns meses recebendo alguma coisa enquanto você arranja um outro
emprego de carteira assinada e tudo. carteira assinada, você tem alguma coisa legalizada ali, e
serviço prestado você não tem nada, ganha quando que está trabalhando, se você adoecer
você não ganha, não tem direito a nada (Auxiliar 02).
- ...se eu namoro com você e você não trabalha e eu Trabalho, vo é considerado um
vagabundo, mesmo que você não tem o Trabalho por falta de oportunidades não tenha surgido
ainda um campo de Trabalho para você, mas a sociedade se você não está trabalhando e não
procura ela te consideram vagabundo, um marginal...( Auxiliar 02).
Além de considerar-se cidadão, o trabalhador necessitaria exercitar esta Cidadania,
deveria estar em um ambiente que possibilite sentir-se útil e acolhido pelos outros. Nesse sentido,
para os entrevistados, o ambiente de Trabalho cumpre esse papel. No caso dos auxiliares de
enfermagem, isso fica mais claro por tratar-se de um espaço de convivência que consome
praticamente todo o tempo destes sujeitos, é no Trabalho que eles fortalecem os laços sociais pois
é que passam grande parte do seu tempo. Para estes sujeitos, o Trabalho passa a ser uma vida
social extra àquela que ele leva com a família, em muitos casos.
-... uma vida social, você tem uma vida social com seus colegas de Trabalho porque, no seu
Trabalho você é convidado para em uma festa, em passeio, você tem convites para sair... e a
gente que trabalha com o público tem diversas pessoas que a gente convive, cada cabeça
diferente, você aprende muita coisa, muita mesmo... (Auxiliar 03).
-... no hospital a gente considera nossa casa ali, principalmente porque a gente convive ali
muitas horas. Então é uma nova família da gente (Auxiliar 02).
Para os entrevistados, a Cidadania tem interseção com o Trabalho deles também pelo
fato de este lhes proporcionar uma autonomia, uma possibilidade de criarem a própria família, de
ascenderem a patamares mais elevados na nossa estrutura social. A via pela qual isso ocorreria
seria a via do consumo. Vale lembrar que este consumo aqui não foi referenciado como algo
desenfreado e sem mensuração; pelo contrário, ele está sempre embasado pelo critério do
Trabalho aceito socialmente. A nosso ver, essa perspectiva segmenta a idéia de cidadania pelo
fato de possibilitar àquele que mais tem e que mais ganha obter direitos diferenciados daqueles
outros. Não trata-se aqui de uma meritocracia, no qual aquele que mais trabalha, mais tem, e sim
de uma gica sob a qual o sujeito é impelido a ter mais para suprir algo que a ele deveria ser
garantido. Aqui, vemos uma relação clara com a passagem de uma sociedade pautada em uma
ética do Trabalho para uma outra em que a estética do consumo aflora como objetivo, como nos
propõe Bauman (1999).
Na fala dos participantes de nossa pesquisa, o fato de todos estarem envolvidos em
múltiplas vinculações laborais é sempre referenciado como uma necessidade de melhorar a
condição nas quais se encontram. Este esforço, segundo eles, dirige-se para uma melhor
qualificação, saúde e um melhor lazer. Mas estes deveriam ser garantidos com qualidade pelo
Estado, fato que não ocorre na prática. Estes sujeitos reconhecem que a contrapartida social que
deveria haver dos aparelhos estatais não satisfaz as necessidades da população, o que força estes
sujeitos a buscarem outras saídas. Desta feita, somos inclinados a pensar que a transformação do
modelo estatal em Estado mínimo agrava ainda mais a condição do trabalhador, pois este, além
de não se ver protegido como antes, não consegue ver o retorno para suas contribuições. Sem
grandes perspectivas futuras, o trabalhador envolve-se cada vez mais na lógica das políticas
neoliberais que pregam uma valorização maior do capital privado em detrimento dos serviços
ofertados pelo Estado. Para aqueles que não podem consumir, resta o sentimento de
incapacidade, incompetência e falta de iniciativa. Em nossa investigação, esse dado assume um
caráter primordial, pois ilustra um dos efeitos mais proeminentes em nossa realidade, um
processo de marginalização provocado por uma segmentação das “oportunidades de vida”, como
nos mostra Aquino (2005), idéia essa que é compartilhada tanto pelos ganhadores como pelos
perdedores, o que deixa transparecer uma clara corrosão da coesão social fomentada na sociedade
salarial de base industrial. Assim, assiste-se à emergência de uma subjetividade debilitada,
carente de suporte e vulnerável a discursos universalizantes e dissociadores, separando o sujeito
de sua construção subjetiva, como se isto fosse possível. Tais fatos nos levam a perceber que
cada vez mais o cidadão-trabalhador se coagido a adequar-se sem questionar sob a ameaça de
se ver desfiliado da coletividade.
- não, de jeito nenhum , é tanto que a educação que o estado oferece... é isso que me fez arranjar
outro emprego, para poder pagar um estudo melhor para minha filha por que a educação pra
gente é... horrível. A saúde mais ainda quem não tem um plano de saúde hoje em dia é
revoltante, muito mesmo. Então não me vejo. Até agora somente com as coisas básicas que a
gente tem direito como disse para você, mas em relação à saúde, educação e lazer... lazer nem se
fala porque na hora que o governo oferece uma festa a gente nem vai por que não compensa não
dá certo, não vale a pena (Auxiliar 03).
O que surge na fala dos sujeitos é um sentimento de impotência frente ao modelo que se
instalou. Como explicitamos em parágrafos anteriores os trabalhadores mais novos, recém
ingressos no mercado de Trabalho, já vêem o precário como única possibilidade de inserção, pois
nunca experimentaram outro modelo. os trabalhadores mais antigos observam impotentes as
degradações das conquistas conseguidas há tempos atrás.
- Na verdade é isso, a gente era obrigado a se adaptar para poder ter a sobrevivência e aceitar.
Porque, se os governantes não fazem alguma coisa, nós os trabalhadores somos obrigados a
aceitar o que vem, mesmo sabendo que o está bom para a gente. Por exemplo, eu uma carga
horária de 36 horas isso não é normal. Muito melhor seria se eu pudesse trabalhar em um
hospital, ganhar o que eu ganhou em dois me sentir... como a que diz... mais segurança e ser
feliz né. (Auxiliar 02.)
A noção de coesão vivida por esses trabalhadores é um dado que está diretamente sendo
influenciado por essas novas possibilidades de inserção, pois gera vínculos mais frágeis. Dessa
forma, o que percebemos é que se formam pequenos grupos que se unem em torno apenas de
seus interesses específicos, deixando de lado a coletividade dos trabalhadores. Poderíamos pensar
que esta coesão existe, pois estes grupos se formam, mas é necessário lembrar que esta não é uma
condição estável; o trabalhador é agora levado a transitar por esses vários níveis, enfrentando um
processo constante de filiação e desfiliação. Este dado transparece quando surgem na fala dos
sujeitos os diversos tipos de vinculação trabalhistas nos ambientes de Trabalho, onde coexistem
desde trabalhadores em regime de estabilidade, como os funcionários públicos, trabalhadores
celetistas e trabalhadores com vinculação precária, como no caso das cooperativas. Para nossos
entrevistados se estabelece aqui uma diferença entre o status de cidadania a partir do tipo de
vinculo laboral.
-há diferença entre o trabalhador da carteira assinada, do serviço prestado e concursado. O
concursado é como se ele fosse dono do hospital, ele se sente mais direito ele ganha melhor e
exerce a mesma função... e trabalha às vezes eu posso dizer é um serviço o grosseiro sem amor.
tem pessoas a lei de carteira assinada que tão fazendo um excelente trabalho e não... o
concursado sabe que ele tá ali e não vai ser penalizado, faz o serviço do jeito que ele quer
(Auxiliar 02).
- ele é mais protegido, muito mais. Nós que somos CLT se cometemos uma falta, somos
chamados atenção ... porque, o funcionário concursado ao invés de fazer o serviço dele ele fica
fiscalizando o nosso. Tem uma diferença muito grande e, principalmente em relação ao serviço.
(Auxiliar 02).
Quanto maior a estabilidade do vínculo, maior parece ser o status desse sujeito,
inclusive afetando a sua forma de trabalhar e seu poder de negociação dentro da estrutura laboral
a qual pertence, sendo os mais precarizados os mais explorados e sem direito de reivindicar nada,
apenas o pagamento ao fim da jornada. Notemos que a ameaça de perda do emprego ou exclusão
do Trabalho faz com que estes trabalhadores sejam submetidos a uma coação velada em qual o
imprescindível parece ser garantir ou manter o emprego. Para nós, com a crescente flexibilização
das relações de trabalho, o capital impõe maior poder sob os trabalhadores que praticamente não
possuem formas de barganhar condições melhores, na medida em que as representações deles
perante os patrões têm se portado mais como uma forma de amortizar os prejuízos que tentar
enfrentá-los. Esse cenário apresenta alguma alteração quando tratamos de vinculações que
ainda comportam algum nível de poder de reivindicação e estabilidade, como é o caso do
funcionalismo público em nossa realidade. Observemos isso na fala seguinte:
- é aquela velha história, não enfrentam, aceita porque precisa. Se o trabalhador de carteira
assinada, você trabalha num determinado local e faz a greve, voque é avulso é obrigado a ir
trabalhar porque se não fosse arrisca a perder seu emprego. Então ele não tem como reivindicar
a nenhum direito, porque o direito dele é trabalhar e receber no final do mês (Auxiliar 02).
. No que concerne aos direitos implicados na condição de cidadania, observamos uma
contradiçao no discurso dos trabalhadores que investigamos, os quais, apesar de valorizarem e
reconhecerem como existentes, não consideram a contrapartida de direitos como algo que
diretamente implique ser cidadão. O fato de trabalhar, não importando o vínculo, garantiria
direito de ser reconhecido como cidadão trabalhador, mas esse fato é, em diversos casos,
deturpado tanto pela relação de vinculação como evidenciamos anteriormente como pela própria
hierarquia existente na instituição e na sociedade. Sobre isso um dos sujeitos nos fala:
- ... é como a gente... o que eu entendo é por ser um cidadão que trabalha, então, no meu ponto
de vista de ser um cidadão trabalhador, é o mesmo direito. Porque ele trabalha como eu, sai
todo dia de manhã, vai... que infelizmente não têm os mesmos direitos que uma pessoa que
trabalha de carteira assinada, mas no meu ponto de vista ele é um cidadão (Auxiliar 03).
Ao que indica nossa investigação dentro da realidade em processo de precarização dos
trabalhadores por nós abordados, parece haver um processo análogo ao que ocorreu tempos
atrás quando se enfraquecem as idéias de Cidadania político e civil e se fortalece a Cidadania em
uma perspectiva social, embasada no direito ao trabalho e nas benesses que advinham em
contrapartida a ele. O que percebemos agora é que, com a abertura dos direitos sociais a todos, a
Cidadania social perde o lugar privilegiado que tivera outrora e abre lugar para uma forma de se
ver enquanto cidadão, ainda embasada no trabalho, mas que agora tem um cunho consumista, em
que há uma pseudo diferenciação dos sujeitos associada a uma forte valorização do capital
privado em oposição ao Estado, que tem uma imagem cada vez mais associada a ingerência de
recursos e à incompetência.
O cidadão configurado em nossa pesquisa ainda traz valores cunhados na sociedade
salarial, como a ideal de emprego e o retorno que esta modalidade de inserção ainda proporciona.
Estar enquadrado neste modelo de trabalhador, nem que minimamente, parece ser uma tentativa
de filiar-se, como nos mostra Castels (1997), ou de incluir-se, como sugere Organista (2006).
Para este último, esta busca do trabalhador por uma significação cidadã no Trabalho, mesmo que
este só lhe resguarde no fim do mês o salário, sem direitos a mais, representa uma busca por fazer
parte de uma ética que ainda opõe Trabalho a vadiagem, demonstrando que em nosso país ainda
existe um forte vinculo simbólico entre trabalho e moral e que o primeiro ainda parece ser
instrumento regulador para determinar iguais e diferentes, nem que seja sutilmente como hoje.
5 - Considerações finais
O que pudemos perceber em nossa pesquisa é que o processo de precarização das
relações de Trabalho, no setor de serviços, mais especificamente na área de cuidados da saúde,
tem se tornando uma prática comum e aceita como normal ou sem perspectivas de mudanças,
pelo menos a curto e médio prazo, por aqueles que vivenciam essa realidade. Os trabalhadores
deste setor estão cada vez mais sendo impelidos a abdicar de seus direitos para continuarem
trabalhando e tentando integrar-se à sociedade através de empregos, com o mínimo de condição
para que eles possam exercer de forma digna sua Cidadania.
Cidadania aqui surgiu com diversas facetas, desde idéias mais gerais explicitando
formas outras de se pensar o exercício cível, até a idéia que motivou esta investigação, a de que o
cidadão é aquele que trabalha. Conflitando em diversos momentos com o que se expõe na
literatura, o sentido dado por estes trabalhadores à relação entre Trabalho e Cidadania não
pressupõe necessariamente a proteção assegurada pelo registro em carteira. A prática do Trabalho
e as regras que esta prática impõem aos sujeitos a se verem como cidadãos. Vale ressaltar que
mesmo não sendo condição intrínseca para ser considerado cidadão, o Trabalho formal junto com
outras modalidades estáveis de Trabalho são insistentemente buscadas e valorizadas por estes
sujeitos.
Os valores éticos e morais forjados durante os tempos de expansão do Trabalho
industrial no Brasil ainda estão fortemente presentes nas falas destes trabalhadores, fato que os
leva a reproduzir um discurso que não condiz com a realidade presente no mundo do Trabalho
atual. Percebemos que, apesar da expansão do setor de saúde, os trabalhadores tem ficado cada
vez mais a mercê de contratos débeis, que não possibilitam ao trabalhador mais do que correr em
busca de sua sobrevivência. O apelo ao consumo é algo que aparece de forma secundária, quando
se pensa a questão da Cidadania, ficando o Trabalho e os valores éticos e morais como os
fundamentos de uma existência cidadã harmoniosa com a sociedade.
Acreditamos ser necessário, aqui, abrir um parêntese para aprofundar como os
trabalhadores que atuam em serviços que passaram a ter expressão social pouco tempo têm
construído suas identificações com suas profissões, pois o que percebemos é que, em meio a
tantas mudanças, algumas atividades, antes relegadas a um plano de marginalidade, têm assumido
um outro papel na sociedade atual.
No que concerne à configuração atual da Cidadania, para os trabalhadores o que
podemos afirmar é que os laços coesivos existentes hoje são muito mais instáveis, até para
possibilitar uma mobilidade mais fluida entre os diversos níveis da sociedade. O que na primeira
soa como um avanço na forma de se compreender cidadão tem uma lado perverso que extingue
as garantias de alguma certeza para o trabalhador, o qual passa a viver o incerto todos os dias,
sendo levado a buscar de alguma forma adaptar-se ao que as instituições sociais, como família,
Estado e aparelhos repressores, esperam dele.
Para nós, ainda ficam muitas lacunas na investigação do que é hoje ser cidadão em um
mundo que se propõe global, mas que conserva diversas contradições culturais, econômicas e
sociais, que, ao mesmo tempo que busca a aproximação, ainda apregoa a segregação. Talvez por
isso, estejamos inclinados a crer que ainda um longo caminho a ser percorrido para que o
cidadão possa ter uma perspectiva mais ampla de compreensão.
O Trabalho ainda é pedra fundamental para a constituição do sujeito dentro da estrutura
social vigente, fazendo com que, a nosso ver, não se possa pensar uma cidadania descolada do
Trabalho, mas somos contrários ao discurso que ainda prega valores de uma realidade que não
condiz com a nossa. Para nós, isso funciona apenas como perpetuação de um aparelho ideológico
que submete os trabalhadores a situações degradantes e que remete aos que não alcançam o
sucesso a um segundo plano, com a eterna possibilidade de que ele poderá sair dali um dia.
Para nós fica claro que Cidadania, assim como Trabalho, hoje é um tema muito mais
complexo que tempos atrás. A tentativa de uma maior inclusão pelas políticas públicas tem
trazido a tona problemáticas pouco debatidas e que escondem por traz de discursos beneméritos,
ações de interesses da grande maioria, mas que ficam restritos a uma pequena parcela que, ou
ignora o que se passa em detrimento de interesses pessoais, ou restringe, deturpa essa realidade
mantendo um status quo pelo menos para aqueles que mais são responsáveis pela transformação
de sua realidade, o trabalhador.
Em suma, ser cidadão é emergir subjetivamente em uma sociedade em constante
transformação, é poder ser reconhecido como parte integrante e aceita de uma coletividade. O
alerta fica para o fato de como esta emerncia subjetiva vem acontecendo. Desconectadas de sua
globalidade e complexidade, as subjetividades têm sido fomentadas com uma debilidade e
vulnerabilidade que representam perigo à sobrevivência dos cidadãos, trabalhadores ou não. A
dissociação das subjetividades e de seus processos de construção faz com que não se percebam
possibilidades para enfrentar toda essa metamorfose pela qual passa nossa sociedade.
Acreditamos ser necessário que o conhecimento acerca destas questões seja algo que possa
circular extravasando as fronteiras do meio acadêmico e atinja a sociedade como um todo.
Esperamos que a partir deste trabalho, possam ser abertas vias de diálogo entre outros
saberes para que a interseção entre a Cidadania cidadão e o Trabalho trabalhador seja mais
discutida e aprofundada para que assim possamos pensar em outros possíveis caminhos para
nossa sociedade, construindo muito mais que reproduzindo realidades.
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